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Marilena Chauí 
 
A NÃO VIOLÊNCIA DO BRASILEIRO, 
UM MITO INTERESSANTÍSSIMO. * 
 
Nosso céu tem mais estrelas, nossos bosques têm mais flores, somos, graças 
a Deus, gente ordeira e pacífica. Nós, brasileiros, não temos horror à 
violência...Quantas vezes, dos palanques de comício, pelas ondas de rádio e 
pelos canais de televisão, ouvimos o refrão? A classe dominante, assistida por 
seus intelectuais, construiu a imagem do brasileiro como povo não violento. 
Mito interessantíssimo porque, se nos interessa perceber quais os dispositivos 
ideológicos que permitem sua construção, a despeito (ou por causa?) da 
realidade brutal dos fatos. Aliás, o próprio refrão – somos gente que odeia 
violência – sugere que a dissimulação da realidade se efetua graças a um 
mecanismo de exclusão social: se violentos houver, não são nossa gente. 
Interessa, pois, apreender a elaboração do mito da não-violência brasileira 
assimilando procedimentos ideológicos que, sendo fonte cotidiana de praticas 
violentas, no entanto aparecem como ordenação racional e justa das relações 
sociais. Este segundo aspectoé, hoje, de grande relevância porquanto a 
sociedade brasileira parece estar boquiaberta diante do atual “surto” de 
violência que assola o país, a crermos nas manchetes dos jornais e discursos 
oficiais, como plantação surpreendida por praga de gafanhoto. 
* Exposição no simpósio de Educação e Sociedade Violenta durante a 1ª 
Conferencia Brasileira de Educação – São Paulo, 31 de março de 1980. 
 
1 – O mito da não-violência: alguns mecanismos ideológicos para sua 
construção. 
De maneira vaga e genética, definamos a violência como um processo pelo 
qual oindividuo (humano ou não) é transformado de sujeito em coisa. Essa 
“definição” grosseira tem aqui uma finalidade precisa. Estamos habituados a 
considerar a violência pelo prisma da violação, isto é, como transgressão de 
regras, normas e leis aceitas por uma coletividade e das quais ela depende 
para continuar existindo. Neste contexto (jurídico), o individuo violento é aquele 
que põe em risco a vida da comunidade. Definindo aqui violênciacomo 
processo de redução de um sujeito à condição de coisa, visamos a retirá-la do 
contexto que a define como transgressão de regras e de leis para pensar 
nestas regras e estas leis como portadoras de violência. Em outras palavras, a 
violência se encontra originariamente do lado da sujeição e da dominação, da 
obediência e de sua interiorização, e não do lado da violação dos costumes e 
das leis. Em suma, estamos habituados a encarar a violência como um ato 
enlouquecidoque vem de baixo para cima da sociedade (é assim, aliás, que 
esta sendo apresentada pelos jornais e pelas comissões estatais), quando na 
verdade seria mais pertinente encará-la de modo oposto, isto é, como um 
conjunto de mecanismos visíveis e invisíveis que vem do alto para baixo da 
sociedade, unificando-a verticalmente espalhando-se pelo interior das relações 
sociais, numa existência horizontal que vai da família à escola, dos locais de 
trabalho às instituições publica, retomando ao aparelho Estado. 
Somente focalizando a violência do lado do exercício da dominação é que se 
pode perceber com certa clareza o caminho que conduz a construção do mito 
da não-violência brasileira. O mito é construído graças a um processo de 
exclusão social e histórica preciso, cuja finalidade é admitir a existência 
inegável da violência, fazendo-a aparecer de modo a negá-la. O primeiro 
mecanismo de aceitação-negação da violência consiste em tomá-la como um 
acontecimento esporádico ou acidental e não como construtiva da própria 
sociedade brasileira – foi desse modo que a atual “crise” de violência foi 
relatada pela comissão encarregada pelo Ministério da Jusitiça para estudar as 
causas e conseqüências dos comportamentos violentos nos grandes centros 
urbanos do país. Criada pelo Ministério da Justiça, essa comissão não poderia 
deixar de tomar a violência pelo lado da violação e localizá-la nos crimes contra 
a propriedade e contra a vida (esta, aliás, também tida como propriedade 
inalienável do corpo). Os especialistas atribuem o atual “surto” de violênciaao 
anacronismo do Judiciário, que se encontra despreparado para enfrentar uma 
situação histórica nova (o desenvolvimento industrial), situação esta descrita a 
partir de conceitos da sociologia durkheiniana, em particular, o conceito de 
anomia. Em outras palavras, a situação atual é apresentada como favorável à 
criminalidade e à transgressão porque as regras, normas e leis das relações 
sociais.Assim, migração, urbanização desenfreada, miséria, proletarização do 
homem do campo, marginalização social e política, excessiva concentração da 
riqueza e perecimento dos laços tradicionais de existência comunitária seriam 
as causas da atual violência no país, sendo também compreensível que as 
camadas mais violentas sejam as mais miseráveis. Em uma palavra, na 
passagem do “tradicional” para o “moderno”as desigualdades socioeconômicas 
aumentaram e a violência é uma resposta circunstancial à situação de 
disfunção social causada por essa transição. Não cabe, aqui, analisar os 
conceitos sociológicos empregados. Basta apenas assinalar o que eles 
permitem fazer. Como efeito, a violência esta sendo tratada como uma reação 
de baixo para cima (portanto, como violação) como acidental ou ocasional (isto 
é, como fruto inesperado do descompasso entre as leis e costumes), como 
circunscrita à esfera da criminalidade (isto é, como transgressão do direito de 
propriedade e de vida) e como a ação perpetrada pelos extratos mais baixos da 
classe trabalhadora (portanto, como ação de inimigos sociais desorganizados). 
Assim, pela circunscrição do campo em que ocorre (criminalidade e 
delinquencia, esfera do direito penal) e pela delimitação temporal do seu 
surgimento (a fase de industrialização recente), a violência pode aparecer 
como acidental e, em contrapartida, a não-violência é implicitamente afirmada 
como essecial à sociedade brasileira, pois nem todos os cidadãos são 
delinqüentes, nem a violência andou à solta como nos dias de hoje. 
Sintomaticamente, a repressão que desde sempre se abate contra os 
trabalhadores, a repressão exercida durante os últimos quinze ano sobre as 
outras camadas da população, a distancia estabelecida entre o poder político e 
a sociedade, não são mencionadas. Na qualidade de forças da ordem, política 
e policia podem aparecer como exercício de violência. Se a miséria, de um 
lado, e a ausência de participação nas decisões, por outro, endoidecem a 
sociedade brasileira, contudo não é menos verdade que a pobreza é 
desmobilização política cresceram paralelamente ao aumento de forças 
repressão. Todavia, este não é o melhor ângulo para focalizar o problema. Em 
primeiro lugar, porque a oposição entre as forças das ordens violentas e 
sociedade violentada esconde o fato de que uma parte da sociedade esta 
comprometida visceralmente com tais forças, de sorte que se mantivermos o 
contraponto acabaremos colocando a violência como momento de desmedida 
do poder e caindo, sem perceber, no mito de que a sociedade brasileira, como 
tal, não é violenta. Em segundo lugar, e na mesma linha de raciocínio, porque 
essa perspectiva tende a homogeneizar formas e conteúdos diferentes de 
violência – o quebra-quebra na estação suburbana não tem o mesmo sentido 
que um linchamento, o medo do operário de ser morto nas ruas não é o mesmo 
medo que leva o executivo multinacional a cercar sua propriedade com 
guardas armados, a briga no estádio de futebol não tem o mesmo significado 
que a histeria nos postos de gasolina às vésperas do aumento do preço da 
combustível, uma passeata dissolvida a gáslacrimogênio não é o mesmo que a 
arruaça de motoqueiros fazendo cavalo-de-pau nas vias publicas, as levas de 
flagelados que invadem as cidades em busca de alimento e abrigo não possui 
o mesmo sentido quebandos do Esquadrão da Morte caçando supostos 
marginais. Por homogeneizarem os atos violentos, essa perspectiva leva 
também a homogeneizar a legalidade/legitimidade de suas formas de 
contenção, como se ojulgamento do delegado Fleury fosse mensurável aos 
espancamentos, torturas e mortes por ele perpetrados, ou como se o 
abrandamento da censura sobre a informação e a produção cultural fosse 
comensurável aos danos que causou em períodos anteriores, todavia, o maior 
inconveniente dessa perspectiva esta no fato de que mantem a violência no 
contexto do acontecimento excepcional (ainda que a exceção dure quinze 
anos!) e, dessa maneira, fornece água ao moinho do mito da não-violência 
nacional, pois a excepcionalidade e o acidente são dois mecanismos 
indispensáveis para sua construção. 
Uma outra maneira, mais útil, de construir o mito da não-violência por exclusão 
dos agentes sociais considerados violentos é empregada na elaboração da 
historia oficial do país. A violência, dissemos, reduz um sujeito à condição de 
coisa. Esta, como se sabe, é suposta inerente e exibe sua inercia, por exemplo, 
no fato de que, enquanto coisa, não fala. Há, pois violência quando sujeitos 
sociais são reduzidos ao silêncio. Sob este prisma, o saber montado pelas 
ciências humanas é exemplar, uma vez que o silencio imposto a seus “objetos” 
é sua condição de possibilidade: os homes se convertem em coisas cientificas 
desde que sua palavra seja cassada. Sem duvida, as baterias de testes e de 
questionários, tão ao gosto dos cientistas sociais, parecem pedir aos “objetos” 
que se manifestam. Todavia, se falam, é para responder à fala de um outro e 
não para exprimir a realidade de suas existências. Falam para que o cientista 
imagine tirar conclusões novas, quando desde o principio já sabia que iria 
encontrar. 
Ora, examinemos o relato cientifica-oficial da historia do Brasil, tal como é 
elaborado pelos historiadores e reproduzido nas escolas (do primeiro grau à 
universidade). Diante dele estamos colocados face àquilo que Walter Benjamin 
designou como “historia dos vencedores”, isto é, uma historia na qual os 
acontecimentos são recortados e interpretados a partir da perspectiva do 
vencedor, dono do poder. Eis porque, nessa historia, não há relato dos 
vencidos. Sobre estes, abate-se uma tríplice violência: a de seu silencio, para 
que o vencedor fale do seu lugar, pois, silenciado, o vencido se toma uma 
coisa manipulada pelo saber do historiador cujo o ponto de vista coincide com 
do vencedor; a da sua figura reduzida à do revoltoso violento que precisa ser 
eliminado fisicamente (pela prisão, tortura e morte) e historicamente (pelo 
silêncio); e. enfim, a violência da própria historia do vencedor, que se apresenta 
como contínua e progressiva, pois nela a contra-violência dos vencidos é 
transformada em momento acidental. Assim, não só a comunidade histórica é 
obtida pela eliminação dos vencidos, mas ainda é apresentada como vitória da 
justiça contra a injustiça, porque suprime a desordem.A redução da contra-
violência dos vencidos à condição de desordem e de perigo para a paz social, 
bem como sua redução a um acidente na marcha linear da historia do Brasil, é 
o melhor dispositivo ideológico para a construção do mito da não-violência de 
uma sociedade intrinsecamente justa e pacifica, sua ordem e sua paz 
identificadas como a vitória do vencedor.Compeende-se, então, porque, nessa 
história, os índios apareçam através do jesuíta (e, quanto massacrados, sejam 
exibidos como selvageria ignorante e assassina cuja destruição sumária fica, 
ipso facto, justificada) e os negros sejam sistematicamente descritos e 
compreendidos a partir do olhar e das mãos do senhor de escravos (senhores 
que o benfazejo clima tropical converteu em elementos assassinos). Canudos, 
Balaiada, Praieira, Sabinada, Contestado, Farrapos, Muckers, 1924, 1932, 
1935, 1946, 1964 ou 1968, enfileirados numa sequencia homogênea que lhes 
rouba todo sentido histórico, são tomados simultaneamente como 
manifestações de violência social (sem que se pergunte qual é nem de onde 
vem) e como marcos de uma história oficial única cuja periodização lhe permite 
oferecer-se como consolidação da ordem nacional contra praticas sociais e 
políticas reduzidas a atos de fanatismo e banditismo ou como importação de 
ideologias estrangeiras. Em outras palavras, a ação dos vencidos é 
apresentada não como luta contra a violência (isto é, contra a redução de 
sujeitos a coisas), mas como violência a ser eliminada para que se construa a 
imagem da não-violência. A história oficial do Brasil é como a composição 
fotográfica do Estadão: um diálogo entre oMinistro do Trabalho e o líder 
sindical, a foto mostra apenas a cara do Ministro. 
Além dos dois procedimentos mencionados – a violência reduzida a um 
momento acidental de disfunção social e de irrupção da irracionalidade e a 
violência reduzida à injusta transgressão da ordem por revoltosos ignorantes 
do verdadeiro bem social – há um terceiro, para a construção do mito da não-
violência nacional. Trata-se do mascaramento de determinadas formas de 
violência sob imagens aparentemente não violentadas. É o caso, por exemplo, 
do paternalismo branco que serve para encobrir a realidade da discriminação e 
afirmar a existência da democracia racial. A violência, aqui, é dupla. Em 
primeiro lugar, há uma violência visível, pois sabemos que não há democracia 
racial no Brasil, mas, em segundo lugar, há uma violência sutil e invisível que é 
o próprio paternalismo, pois onde há paternalismo branco, certamente os 
negros não foram consultados, pois sua redução ao silencio depende a 
conservação dessa forma de relação social. O paternalismo branco silencia o 
negro para afirmar o mito não-violento da democracia racial: pratica uma 
violência para inventar a não-violência. Outra máscara: o elogio da força e 
virilidade masculina e da fragilidade feminina para encobrir a violência do 
machismo. Este é violento não só pelas praticas em que implica, mas 
sobretudo porque nele a mulher não é sujeito, mas objeto sexual. A máscara 
serve para ocultar a condição feminina não so porque serve para dissimular a 
dominação sob a imagem da proteção, mas ainda porque a imagem da 
fragilidade serve para encobrir a força real das mulheres (para o bem e para o 
mal, evidentemente), limitando seu campo de ação. Outra máscara: a 
afirmação do caráter natural e sagrado da família. Um exame, ainda que 
superficial, das causas dos estupros no interior da família, cuja a hierarquia 
rígida toma o poder paterno inquestionável e legitima a sua violência, um 
exame do numero de aborto provocados para evitar efeitos da cólera paterna 
(ou materna) ou para contornar os danos causados por um parceiro 
irresponsável, ou, enfim, um exame das violências domésticas praticadas 
contra os membros da família que apresentam “desvios” sexuais, seriam 
importantes para retirar o véu que recobre a sacralização do recesso do lar. As 
condições reais de trabalho, educação, saúde e moradia são sistematicamente 
mistificadas pela máscara benfeitora da política social do Estado, cujos 
numerosos falsos parecem já não escandalizar ninguém, como se esse tipo de 
violência tivesse conseguindo torna-se normal e incapaz de abalar a crença em 
nossa não-violência. Os números fornecidos em 1973, e que permitiram 
legitimar a política de arrocho salarial, os números que afirmam a erradicação 
da malária quando centenas de criaturas estão morrendo dessa doença no 
centro do país, os falsos números referentes à pólio, deixando a descoberto a 
situação real de abandono da saúde infantil, já não espantam – como o violento 
trombadinha, o menor delinqüente (cuja escola é a instituição publica), o 
traficante (em conluio com a política), ou o ladrão-de-pão-do-brar-da-esquina, a 
violência da política salarial e de saúde publica não encontra espaço para 
nossa reflexão.Podíamos ir longe enumerando situações de violência 
institucionalizada – Febem, Bemfam, hospitais psiquiátricos, condições de 
trabalho e de higiene, ausência de recursos mínimos nas escolas publicas para 
atender às crianças mais carentes, condições gerais de moradia e de 
alimentação – mas essa enumeração é quase inútil, pois para cada situação 
mencionada é certo encontrarmos uma imagem pronta para desfazê-la ou 
ocultá-la, numa inversão ideológico que culmina na maior de todas as 
violências: aquela que afirma a culpa da vitima (o pobre que é pobre porque 
não trabalha, ou, se trabalha, porque não pouca; a favelada, mãe irresponsável 
porque não dispensou à criança os devidos cuidados de higiene e de 
alimentação; a menina estuprada, vista como provocadora e prostituta em 
potencial; o trombadinha que, como todos sabem, é um perverso por natureza). 
O que interessa, porém, é compreender que a inversão ideológica, pela qual a 
violência é admitida, mas negada ai ser posta fora de lugar (isto é, o violentado 
vira autor da violência), é uma inversão característica do modo de produção 
capitalista no qual as relações entre os homens aparecem como relações entre 
coisas. A reificação, pois é disto que se trata, generaliza e naturaliza a violência 
e, graças à idéia de cidadania, desloca para a esfera jurídica a luta contra a 
sujeição, denominando-a violação. 
O mito da não-violência, por seu turno, está encarregado de negar a realidade 
das formas de dominação engendradas pela divisão social das classes, 
afirmando uma unidade social como unidade nacional e colocando como 
violação acidental tudo quanto manifeste a existência da diversão, da 
exploração e da dominação. Uma vez estabelecida a imagem nacional como 
não-violenta, o acidente violento pode ser legitima e legalmente eliminado na 
qualidade de perturbador da ordem e da paz sociais. Quanto mais pública a 
violência se torna, isto é, quanto mais revela sua determinação sócio-
econômico, tanto mais o mito ganha força, pois é construído justamente para 
retirar a violência do contexto em que se origina. Entretanto, um mito não é 
uma fantasia arbitraria. Se existe e se conserva é porque algo o sustenta e lhe 
dá força. É bem sucedido porque sua construção responde, de modo invertido, 
a necessidades sociais reais. Este aspecto é que deve nos interessar agora. 
2 – O mito da não-violência: alguns mecanismos ideológicos para sua 
conservação. 
Michael Foucault nos alerta para o risco de engano presente na idéia de que o 
poder é uma instância separada da sociedade, encarnada no Estado com 
papel puramente repressivo ou relativo. O poder, diz Foucault, é repressivo e 
criativo. Inventa formas para seu exercício e acha-se difundido pelo interior das 
relações sociais, irradiando-se em todas as direções, suscitando sempre novas 
formas de sujeição e novas possibilidades de dominação. No meu entender, 
entre os vários ricos de engano ao tomarmos o poder apenas em sua face 
estatal ou apenas em sua face repressiva, há pelo menos dois que, atualmente 
no Brasil, merecem atenção: o primeiro deles concerne à democratização e o 
segundo diz respeito à conservação do mito da não-violência. Se localizarmos 
o poder e o exercício da dominação apenas na esfera do Estado, nossa 
tendência será encarar a democracia somente em seu aspecto 
partidário/parlamentar e como esforço para fortalecer o legislativo contra os 
desmandos do executivo. Com isto, faremos da liberalização (problemática) do 
Estado a condição da democracia política e nos esquecemos da democracia 
social. Ora, esta ultima pode ser pensada e realizada se não tomarmos o 
exercício da dominação de uma classe social. A democracia social esta 
referida a um problema mais vasto do que imaginamos à primeira vista, pois diz 
respeito à separação entre dirigentes e dirigidos (e, portanto, entre dominantes 
e dominados) em todas as esferas da vida social, do transporte às fontes de 
energia, da alimentação à política fiscal. Se não encararmos a questão 
democrática por esse ângulo, teremos dificuldade para compreender como o 
mito da não-violência se enraíza na sociedade brasileira, pois deixarmos a 
violência ser definida a partir do Estado e nos afastarmos de sua realidade 
social cotidiana. 
Essas observações, muito sumárias, visam apenas a fornecer alguns 
elementos para nossa reflexão acerca dos mecanismos de conservação e 
reprodução do mito da não-violência. Em outras palavras, vale a pena 
retornarmos aquilo que, no século XVI, La Boétie denominava de “servidão 
voluntária”, isto é, a existência para a submissão. La Boétie afirma que é 
perfeitamente compreensível a submissão de uma sociedade inteira a um 
poder estranho que a domina pela força, mas que é aparentemente ininteligível 
a sujeição de homens a um poder que poderiam derrubar, se quisessem 
derrubá-lo. Para compreender o paradoxo de servidão voluntária, diz Le Boétie, 
é preciso perceber o modo como o poder se espalha pelo interior da sociedade. 
Não se trata, como poderia apressadamente supor alguns althusserianos, de 
uma difusão social do Estado através dos “aparelhos ideológicos”, pois neste 
caso continuaríamos a imaginar que tôo poder se concentra no Estado e dele 
emana. Não é disto que se trata na servidão voluntária. Aqui, a sujeição se 
deve ao fato de que cada um dos membros da sociedade em cada uma de 
suas atividades e em cada esfera de sua existência social e privada encarna e 
realiza o mesmo poder que parece existir apenas no topo da sociedade. Ou 
seja, cada um dos membros da sociedade se submete porque espera submeter 
os outros ao seu próprio poder, por menor que seja. Há, como lembra Foucault, 
uma verdadeira reação em cadeia dos poderes que se entrecruzam e se 
difundem no interior da sociedade e que a soldam nos mínimos detalhes. 
Assim, o mito da não-violência, que, enquanto mito, nega a realidade da 
violência, não poderia ser conservado se não correspondesse a determinadas 
expectativas sociais para as quais a violência realmente praticada por todos e 
cada um precisa surgir como ação justa e legitima. 
Evidentemente, como dissemos há pouco, a primeira tarefa do mito consiste 
em apagar a realidade das divisões sociais e dos conflitos, reduzindo sua 
emergência à situação de meros momentos enlouquecidos da sociedade 
(como por exemplo, uma greve) ou momentos nos quais novas condições de 
vida se realizam em quadros institucionais antigos que não podem dar conta da 
novidade e geram violência naqueles que se sente vitimas das condições 
adversas (como, por exemplo, no aumento da delinquência). Uma das 
maneiras brasileiras de apagar o sentido real dos conflitos emergentes e 
reafirmar a não-violência consiste, como já sugerimos acima, em elaborar uma 
ideologia nacionalista e desenvolvimentista por cujo intermédio a violência real 
possa ser reduzida a nada. Com efeito, no momento em que todos os membros 
da sociedade surgem unificados na qualidade de cidadãos brasileiros, não só a 
divisão social das classes pode ser dissimulada, mas ainda a suposta violência 
de alguns aparece como crime de uns poucos contra todos, pois é violência 
contra a nação. Por outro lado, a ideologia otimista do desenvolvimento 
econômico como condição do bem-estar social e da participação politica, 
permite circunscrever a violência real a um tempo determinado (isto é, ao 
tempo em que o desenvolvimento ainda esta se processando), mas sobretudo 
persuade a todos (os brasileiros) da necessidade de se engajarem numa luta 
comum pelo progresso econômico que acabará, de uma vez por todas, com os 
surtos de violência. O envolvimento de toda a sociedade brasileira num projeto 
histórico comum legitima a exclusão social de todos os violentos e incapazes 
que, por definição, deixam de fazer parte do povo brasileiro. 
Todavia, o nacionalismo desenvolvimentista é um mecanismo ideológico frágil 
para a compreensão do enraizamentodo mito da não-violência, pois para que 
este seja mantido por aquela ideologia é preciso que responda e corresponda a 
situações concretas que esta encarregado de dissimular. Em outras palavras, o 
mito da não-violência não é pura invenção fantasiosa. É a resposta social 
(forjada por uns e conservada por outros) para problemas reais de ideologia do 
nacionalismo desenvolvimentista não é suficiente, embora necessária, para dar 
conta do mais importante, ou seja, a conservação do mito no interior de 
instituições e praticas violentas (desde a dependência dos sindicatos ao Estado 
até a morte nas delegacias de policia, desde o Esquadrão da Morte até a morte 
de um calouro, desde o Bemfam até o aborto com barbante e gilete, desde o 
FGTS e o INPS até a prostituição, desde os planos nacionais de educação até 
o Mobral, desde o restabelecimento das eleições diretas por decreto estatal até 
a discriminação racial, sexual e de classe, desde a estrutura vertical do sistema 
escolar até a contaminação por lepra em mesas de hospitais públicos, desde a 
venda de anticoncepcionais cancerígenos até a falsificação de dados sobre a 
pólio, desde as condições do trabalho fabril taylorzado até a miséria do volante 
ou bóia-fria, desde a arbitrariedade da politica energética até os acidentes de 
transito, desde a contaminação dos alimentos até a fome crônica e a invasão 
periódica de propriedades pelos famintos, desde a situação dos favelados e 
dos posseiros até o genocídio dos índios, desde greves resolvidas a bala e gás 
lacrimogênio, com destruição dos sindicalistas, até p arrocho salarial, desde a 
desnutrição da cultura popular posta sob tutela estatal até a inexistência de giz 
e apagador nas escolas do primeiro grau, desde a corrupção econômica em 
todos os altos escalões da politica nacional até o furto do pão no bar da 
esquina, desde o quebra-quebra nas estações suburbanas até as fraudes na 
construção de metrôs e rodovias, etc., etc.). É preciso retomar, aqui, a ideia da 
violência como redução de sujeitos à condição de coisas para 
compreendermos o processo de sua institucionalização e a necessidade de 
erguer contra sua realidade o mito da não-violência. 
A sociedade contemporânea vive sob o sino da organização e da 
administração como exercício deum controle racional sobre todas as esferas da 
vida social, indo da família aos centros de pesquisa, da fabrica ao aparelho 
estatal, da escola ao hospital, do escritório ao lazer. Há pelo menos três 
pressupostos nessa concepção do funcionamento racional da sociedade. O 
primeiro deles concerne a ideia de que as decisões depende de critérios 
técnicos e não sociais, de sorte que as condições de trabalho, de moradia, 
saúde, educação, produção de conhecimentos, lazer, etc., fiquem submetidas a 
critérios de rendimento e de produtividade ou de uma eficácia definida segundo 
os princípios da exploração capitalista. Em segundo lugar, a idéia de 
administração exige que todas as esferas da vida social, todas as formas de 
relações sociais e todos os produtos sociais sejam encarados especificialidade, 
uma vez que os princípios administrativos são genéticos e independentes da 
natureza ou qualidade do objeto a ser administrado. A submissão das 
condições sociais de vida e trabalho aos critérios do rendimento e exterioridade 
entre administração e coisa administrável reinviam ao terceiro pressuposto da 
idéia de organização, qual seja, o da separação radical entre decisão e 
execução, de sorte que organizar é, na realidade, controlar. Seja, por exemplo, 
o caso do trabalho industrial. “O conceito de controle adotado pela 
administração moderna exige que cada atividade na produção tenha suas 
diversas atividades paralelas no centro gerencial: cada uma delas deve ser 
prevista, calculada, experimentada, comunicada, atribuída, ordenada, 
conferida, inspecionada, registrada através de toda sua duração e após a 
conclusão. O resultado é que o processo de produção é reproduzido no papel 
antes e depois de adquirir forma concreta. Desse modo, como o trabalho 
humano exige que seu processo ocorra no cérebro e na atividade física do 
trabalhador, do mesmo modo agora a imagem do processo, tirada do processo 
de produção para um lugar separado e num grupo distinto, controla o próprio 
processo. A novidade disto, durante o século passado, residiu não na 
existência separada de não e cérebro, concepção e execução, mas no rigor 
com o qual são divididas uma e outra e, daí por diante, sempre subdivididas, de 
modo que a concepção seja concentrada em grupos cada vez mais restritos 
dentro da gerência e intimamente associados a ela. Assim, o estabelecer 
relações sociais antagônicas, de trabalho alienado, mão e cérebro tornam-se 
não apenas separados, mas divididos e hostis e a unidade humana da mão e 
do cérebro converte-se no seu oposto, em algo menos do que humano (...) as 
unidades de produção operam como a mão vigiada, corrigida e controlada por 
um cérebro distante” ¹ 
(¹) Harry Braverman – Trabalho e Capital Monopolista – Zahar Editores, Rio, 
1977pg 113. 
Seja, agora, o caso da fragmentação do trabalho de escritório. “O processo é 
subdividido em operações mínimas. Funcionários distintos abrem a 
correspondência, datam e endereçam os pedidos, interpretam as informações 
do cliente, apuram o crédito, conferem os artigos pedidos, ditalografam uma 
fatura, acrescentam os preços, discriminam, descontam, calculam as despesas 
de embarque, lançam na conta do cliente, etc. Tal como nos processos fabris, 
o trabalho de escritório é analisado e parcelado entre muitos trabalhadores em 
setores especiais, que por isso perdem a compreensão do processo como um 
todo e as praticas subjacentes a ele (...) As funções de pensamento e de 
planejamento tornam-se cada vez mais concentradas em grupos cada vez 
menores dentro do escritório, enquanto, para a massa dos demais 
empregados, o escritório passou a ser o lugar do trabalho manual exatamente 
como no piso da fabrica (...) A eliminação progressiva do pensamento no 
trabalho de escritório assume a forma da redução do trabalho mental à 
execução de pequenas tarefas rotineiras e repetitivas da mesma série de 
pequenas funções. O trabalho ainda é feito pelo cérebro, mas o cérebro usado 
como equivalente da mão do trabalhador de pormenor na produção, pegando 
ou soltando uma única peça de “dados” vez por outra. O passo seguinte é a 
eliminação do processos pensantes e o aumento das categorias burocráticas 
nas quais apenas trabalho manual é executado.”² 
² Idem ibidem – PP 267/268/270. 
O arcabouço organizacional, que é administrativo e burocrático, ao ser definido 
como racional, porque eficiente e lucrativo, define a situação global de cada 
sujeito social a partir dos critérios da eficácia e da competência, de sorte que a 
organização, ao exercer o controle social pela fragmentação absoluta e pela 
alienação completa do trabalho e das demais relações sociais, determina de 
antemão o que cada um é e o que cada um pode fazer, pensar e sentir. Em 
uma palavra, a racionalidade técnica reduz todos os sujeitos sociais à condição 
de objetos da organização e cria, simultaneamente, regras de exclusão para 
todos os que escaparem desses critérios – o louco, a criança, o velho, em 
cetros casos o negro e a mulher e, evidentemente, os contestadores, isto é, os 
violentos. Eis ai um dos elementos mais poderosos para a conservação do mito 
da não-violência, na medida em que o violento não é excluído da sociedade na 
qualidade de um mal, mas como irracional. Por um cruel paradoxo (mas nisso 
reside a força da ideologia dominante), são os sujeitos reduzidos à condição de 
coisas organizadas que se encarregam de excluir os que recusaram essa 
redução, ainda que a recusem através do crime, o qual, por sua vez, também é 
violência, pois reduz a vitima a uma coisa destruída de direitos. Estamos como 
engrenagens de uma poderosa máquina infernal.O poder difuso da racionalidade organizacional, entretanto, não se sustenta 
sozinha. Para ser hegemônica, no sentido gramsciano da palavra, isto é, para 
ser interiorizada e tornar-se objeto de consenso por parte por patê dos 
dominados, a racionalidade administrativa possui dois aliados poderosos: as 
ciências humanas e as técnicas de disciplina. Cabe às ciências humanas 
enquadrar a violência sob a rubrica da patologia, da disfunção, da não-
adaptação, da não-integração, da resistência psicológica, do bloqueio de 
personalidade e, evidentemente, a partir da avaliação do QI. As ciências 
humanas produzem um saber por cujo intermédio a violência é posta não 
apenas como irracional e incompetente, mas como doença ou anormalidade. 
Se, como escrevia em 1912 Münsterberg, “nosso objetivo é traçar os esboços 
de uma nova ciência que seja intermediaria entre o moderno laboratório de 
psicologia e os problemas de economia, isto é, a experimentação psicológica 
deve ser sistematicamente colocada a serviço do comércio e da industria”, 
compreende-se que tal cientificidade esteja apta a criar um conjunto de 
técnicas normalizadoras ou disciplinadoras do corpo e da alma, formas de 
vigilância e de punição, de reeducação (para o trabalho) e de adaptação (às 
condições sociais dadas) que visam a transformar recusa a ser reduzido de 
sujeito em coisas à condição de patologia e da indisciplina. Ora, o poder desse 
saber é imenso para a conservação do mito da não-violência. Em primeiro 
lugar, porque esse saber não é percebido em si mesmo como violento, mas 
como racionalidade acima dos valores. Em segundo lugar, porque o poder 
exercido também não aparece como violento, pois é considerado impessoal: 
ninguém determinado o produz nem o exerce, existe quase por si e impõe-se 
pela força de sua verdade. Poder invisível, justifica e legitima a exclusão dos 
“violentos”, pois essa exclusão parece ser feita em nome da verdade e não da 
autoridade. Assim como no caso da historia dos vencedores, aqui também a 
escola reaparece como núcleo de difusão da violência, pois alimenta a crença 
na não-violência do saber constituído. Todavia, a escola é violenta também por 
outra razão: aplica sistematicamente, sob o nome de pedagogia, técnicas 
disciplinares de adaptação ao mundo tal como ele esta. Para essa escola, por 
exemplo, a criança subalimentada que é submetida a testes de inteligência 
para crianças bem nutridas, torna-se uma criança débil mental, lenta, 
desadaptada e, por vezes, excepcional. Essa escola formará psicólogos e 
sociólogos industriais, que se encarregarão de promover a integração do bom 
operário na boa empresa, como também se encarregarão de fornecer 
explicações inacreditáveis para as causas dos acidentes de trabalho (gente 
desatenta, sabe?), para o desemprego (gente atrasada do campo sem 
disciplina laboriosa, sabe?), ou para a sabotagem e a greve (greve violenta, 
sabe?). Essa formará, também, os pedagogos. Um exercito de homens e 
mulheres competentes para os quais a violência, reduzida a dimensão de 
irracionalidade e da ignorância, não abalará a crença de que somos antes de 
tudo um povo não violento. 
Gostaria de mencionar um ultimo aspecto que me parece propício à 
conservação do mito da não-violência brasileira. Refiro-me ao autoritarismo. 
Não me refiro ao que já nos habituamos a designar como o autoritarismo no 
Brasil – o Estado arbitrário, o Estado descolado na Nação, o Estado separado 
da sociedade civil e repressivo, o Estado onipotente, condutor da vida social e 
política sem consultar periodicamente suas bases, o Estado do serviço 
nacional de informação, o Estado da recusa di habeas-corpus, enfim, o Estado 
da segurança nacional. Refiro-me ao autoritarismo difuso que conserva o mito 
da não-violência, não porque recuse a existência da violência, mas por praticá-
la cotidianamente a ponto de torná-la imperceptível. Existe, creio, uma maneira 
autoritária de pensar e de agir que se realiza com ou sem o “Estado de direito”. 
O pensamento e a ação autoritários não suportam o risco de enfrentar as 
experiências sociais presentes, aquilo que, aqui e agora, pede para ser 
compreendido e feito. Não suportam o risco do novo nem o da contestação. O 
pensar e o agir autoritários precisam de certezas prévias decretadas de fora e 
antes do pensamento e da ação – precisam de um saber já feito, de um 
discurso já proferido e de ações já realizadas. Essas certezas anteriores e 
exteriores, existentes na qualidade de modelos teóricos e práticos, de conjunto 
fixo de representações e normas, fornecem balizas definitivas para conhecer e 
agir, de sorte que a inteligibilidade de uma situação presente depende da 
possibilidade de reduzi-la ao que já foi pensado (a teoria como modelo prévio) 
e ao que já foi feito (as ações passadas tomadas como feitos exemplares e 
imitáveis). Destinados à repetição e à imitação, o pensamento e a prática 
autoritários renunciam à história: para o presente, possuem o modelo 
explicativo e o manual de ações; para o futuro, possuem o “abre-te sésamo” do 
provir, isto é, a idéia de progresso como desdobramento temporal dos germes 
do presente, herdados do passado. Assim, no contexto autoritário, pensar e 
agir é sempre apenas obedecer. A atitude autoritária exige obediência porque 
ela própria nasce da submissão (à tradição, às teorias, aos exemplos). É esse 
autoritarismo que se encontra difuso no Brasil, desde o pai e a mãe até a(a) 
professor(a), desde o militar até o empresário, desde o estudante até o policial, 
desde o funcionário subalterno até o chefe de Estado. Nos projetos 
conservadores e nos projetos libertadores. Ele próprio exerce a violência e por 
isso consolida; porém, como essa violência não chega a ser percebida como 
tal, serve tanto para alimentar o mito da não-violência (pois o autoritarismo é 
avesso à necessidade de pensar), a violência horizontal, espraiada pela 
sociedade brasileira, conserva o mito da não-violência como exorcismo do real, 
aqui e agora. Por ser incapaz de pensar, o autoritarismo tente a reprimir. A 
repressão não é sua causa, mas apenas uma de suas expressões. 
 
*** 
Nos meados do século XVII, Espinosa escrevia: “Se fosse tão fácil dominar os 
espíritos como se censuram as línguas, não haveria governo violento e todo 
ocupante do poder reinaria em segurança, não tendo necessidade de recorrer 
a meios violentos, pois os cidadãos orientariam suas vidas segundo os 
caprichos e decretos do governante so julgariam quanto ao bom e ao mau, ao 
justo e ao iníquo de acordo como o desejo do detentor do poder. Porém tal não 
ocorre, pois nenhum homem deixa seu espírito dica sob a total dependência de 
um outro, nem transfere de bom grado o uso de sua razão e da sua capacidade 
de julgar para esse outro. Portanto, o poder político que pretenda exerce-se 
sobre os espíritos dos cidadãos será sempre violento (...) Não nego, porém, 
que ocorra um fato extraordinário, qual seja o de que muitos homens, sem 
estarem diretamente submetidos ao poder de alguém, entretanto, reproduzam 
palavras e idéias de um outro que parece não estar em parte alguma. Agem 
como se tivessem alienado sua independência. ³ 
(³) Espinosa – tratado Teológico-Politico – Van Vloten e-Land, Haia, 1923, cap. 
XX. 
O que é curioso no texto de Espinosa é sua afirmação de que um poder 
plenamente violento ou um poder violento bem sucedido é impossível, pois 
para ser bem sucedido precisaria deixar de ser visto e sentido como violento. A 
necessidade de recorrer incessantemente a meios violentos visíveis assinala 
os limites do sucesso no exercício da violência. No entanto, prossegue o texto, 
a violência bem sucedida é possível, pois é possível uma sociedade violenta, 
isto é, uma situação na qual a submissão é obtida sem que haja necessidade 
de um poder visível e localizado para exercê-la. Pelo contrario, a invisibilidade 
da dominação é a condição de uma violênciabem sucedida. Em outro lugar, o 
mesmo filosofo escreve: “Mantém um outro sob seu poder aquele que domina 
pelas armas, o conserva prisioneiro e desarmado, roubando-lhe toda 
possibilidade de fuga, ou aquele que conseguiu submeter o espírito desse 
outro pelo medo de castigos ou cm promessas de benefícios” 4. 
(4) Espinosa – Tratado Político – Van Vloten e Land, Haia, 1923, cap. 2, 
parágrafo 6. 
A violência sobre o corpo é, inevitalmente, visível, porém a violência sobre o 
espírito so é obtida pela via da submissão interiorizada e, portanto, pela 
invisibilidade da dominação: o castigo e o beneficio, a culpa e a recompensa 
ocupam o lugar do poder e este, por não estar localizado em parte alguma, 
encontra-se em toda parte. Cabe, pois, considerar a violência sob dois 
aspectos: a violência vertical ou visível, exercida de cima para baixo sobre a 
sociedade, e uma outra, horizontal e invisível, espalhada pelo interior das 
relações sociais. A primeira, por ser localizada e visível, possibilita algum 
combate, aquele da contra-violência que se ergue de baixo pra cima da 
sociedade, polarizando-a sem remissão. A segunda, por ser localizada e 
invisível, difusa e impessoal, praticada por todos e cada um, suscita novas 
violências para responder àquelas existentes que, por não poderem ser 
percebidas, permanecerem ignoradas em sua origem e seus efeitos. Se hoje, 
no Brasil, a primeira forma de violência esta sendo questionada, em 
contrapartida a segunda continua fazendo seu caminho, indo da Febem e do 
Bemfam ao Esquadrão da Morte, do trombadinha à multinacional, do pequeno 
traficante às máfias internacionais. Todavia, mais importante do que perceber a 
existência de suas formas de violência – vertical e horizontal – talvez seja 
perceber o entrecruzamento de ambas. 
Como se sabe, em quaisquer de suas formas (direta ou representativa, indireta 
ou participativa), a democracia possui um mecanismo cujo significado simbólico 
costumamos deixar na sombra, mesmo porque no plano factual esse 
significado tende a desaparecer. Refiro-me às eleições. Evidentemente, nas 
sociedades de classe as eleições significam apenas o rodízio dos ocupantes do 
poder vinculados aos interesses particulares de uma classe particular. No 
entanto, em seu significado simbólico, as eleições significam a aceitação dos 
conflitos sociais, o direito à disputa pelo poder e sobretudo significam que 
durante um breve tempo o poder não se encontra em parte alguma. Isto não 
significa que está vago, mas que retornou a sociedade como um todo e dela 
emergirão novos ocupantes. O fundamental numa democracia política real é o 
fato de que nela, periodicamente, o poder reaparece em sua origem social 
porque, periodicamente, é percebido como pertencente a todos, isto é, a 
ninguém. No pólo oposto ao da democracia encontramos formas autoritárias e 
totalitárias do exercício do poder, isto é, formas nas quais o poder esta sempre 
ocupado por alguém (uma classe, uma fração de classe, um partido, um 
homem, um conselho técnico-burocrático, etc.). Estando sempre ocupado e 
tendo a identifica-se como seus ocupantes, o poder aparece localizado e só 
podendo ser reocupado por usurpação ou transgressão (isto é, por violação) 
ou, então, por herança (isto é, como propriedade privada). Nestas 
circunstâncias, nunca é possível estar contra o poder, contra este ou aquele 
homem, grupo de homens, classe. A luta contra o poder assume, portanto, a 
forma de luta pelo poder. Ora, como violência vertical e horizontal se 
determinam reciprocamente, é duvidoso que nessa luta pelo poder a 
democracia social e política sejam resultados automáticos. 
Pensemos, por um momento, na reprodução social da figura política autoritária, 
isto é, nos pais e professores como realizações sociais do autoritariosmo, 
agora não mais apenas no sentido de encanações concretas de modos 
autoritários de pensar de agir, mas também no sentido político de ocupante 
vitalício do poder. Numa sociedade violenta como a nossa, a violência 
horizontal ou invisível torna-se perceptível quando conseguimos avaliar o 
significado (e os danos) dessas figuras sociais, isto é, quando chegamos a 
aquilatar os efeitos de uma ocupação permanente do lugar da autoridade, do 
saber e da decisão, pois se novas pessoas se sucedem nessa ocupação, 
todavia como tal permanece para sempre preenchido. 
Fiquemos com a figura do professor, pois estamos num encontro de 
educadores. Na medida em que o professor surja como alguém que é detentor 
ou proprietário de um saber que lhe confere autoridade, e como alguém que 
legitimamente ocupa um lugar de poder decorrente da posse do saber, a 
relação pedagógica tende a tornar-se violenta porque tende a roubar do aluno 
a possibilidade de ser sujeito, reduzindo-o a uma coisa ensinável. O professor 
não apenas possui algo que o aluno não possui (o que é natural, pois o ensino 
também é transmissão da cultura), mas ainda possui um saber acerca do 
próprio aluno, decidindo (senão como individuo, pelo menos como membro da 
comunidade docente supervisionada pelo Estado e dirigida por este ultimo) 
quando ao que ensinará, quando e de que maneira o fará. Posto nesta posição 
de proprietário de um saber e de detentor de um poder, o professor surge como 
distribuidor de cultura àqueles que dela estão excluídos, mas que continuarão 
excluídos, pois o lugar da posse da cultura esta sempre preenchido. Para o 
aluno, o acesso ao saber-poder tenderá a aparecer como luta pelo lugar do 
professor, como necessidade de usurpação ou transgressão, violação. A 
relação pedagógica fica reduzida à relação professor-aluno mediada pela 
cultura quando poderia ser o contrário, isto é, uma relação do aluno com a 
cultura mediada pelo professor, cujo lugar, então, permaneceria sempre vazio a 
fim de que pudesse ser visto como acessível a todos porque não pertence à 
ninguém. Como, então, pensar numa alternativa de educação não-violenta, se 
a educação que praticamos é um exercício cotidiano de violência não 
percebida? A violência não esta apenas no aspecto, já muito discutido, da 
escola como reprodução da ideologia dominante ou da escola como 
instrumento de reprodução social das classes, ela se encontra sutilmente na 
própria forma da relação pedagógica. Como ter a ingênua pretensão de 
“educar para a liberdade” quando a relação pedagógica se encontra 
institucionalizada de modo a impedir a liberdade?

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