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1 TUDO SOBRE MARLENE! 2 Para ela. 3 ítulo original: Tudo Sobre Marlene! Copyright © 2019 por Alberto Alpino Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito do autor. Revisão: Cláudio Marcel Diagramação e adaptação para ebook: Juliana Souza Moreira Capa: Diógenes Barros / Alpino Foto do autor: Bárbara Rodrigues Sá. 4 PREFÁCIO Na metade do ano de 2018, quando alguns amigos me sugeriram que reunisse os cartuns de Marlene em um livro, eu rejeitei a ideia. Explico. Meu propósito inicial era ter um cartum dela a cada quinze dias, dentro do meu perfil no Instagram, o @cartuns.alpino. Diante desta projeção, decorreriam ainda alguns anos até haver material para compor uma coletânea de suas investidas sobre o marido. Isso mudou quando comecei a receber mensagens em meu Direct. Quase todas diziam o mesmo: “Eu sou a Marlene”. Eram de mulheres que estavam então na faixa dos seus 20 a 50 anos de idade. Em algumas mensagens havia um pouco mais do que aquela frase de identificação. Eram relatos breves sobre suas vidas amorosas. Alguns eram de solteiras, agora frustradas com um namoro ou noivado que havia chegado ao fim. Mas a maior parte deles eram de mulheres casadas. Algumas delas estavam em processo de separação, outras já estavam divorciadas. A maioria se encontrava em matrimônios frustrados, curtos e longos. Sem possuir nenhum título na área do aconselhamento matrimonial ou sexual, me limitei a ler com respeito aquelas linhas tão íntimas. De tudo o que li, me deparei com um quadro não tão surpreendente. Na verdade, trata-se de uma afirmação que já ecoa a quase uma década em publicações impressas e na 5 Internet: a sexualidade, a personalidade e o desejo feminino ainda assustam os homens. Eles, ainda presos ao papel clássico de dominante, se aborrecem e se frustram com relacionamentos onde ambos manifestam seus anseios para uma vida a dois. Resolvi passar então a fazer um cartum semanal. Não foi o suficiente. Marlene ganhou postagem diária e seu próprio perfil na rede social. Homens e mulheres a receberam com entusiasmo. 6 SURGE MARLENE Na manhã de 19 de março de 2018 peguei o meu celular para verificar se haviam mensagens e e-mails com urgência de resposta. Eu o havia abandonado sobre o rack da sala na noite anterior. Não adquiri até hoje o hábito, tão comum em todo o mundo, de deixar o smartphone ao lado na cama. Ainda receio um incêndio, uma explosão de bateria ou ‘ondas cancerígenas’. Olhei. Havia a média normal de e-mails: duas consultas sobre licenciamento de cartuns para editoras, um de Rafael Braz, meu editor do Caderno Dois do diário capixaba A Gazeta e um do grupo Avaaz, pedindo ajuda para salvar baleias. No WhatsApp, havia apenas a mensagem da minha irmã Marina e seu clássico desejo de “bom dia” com uma imagem de flores. No Instagram haviam duas mensagens no Direct. Uma me pedia para passar a seguir uma pessoa que eu não conhecia. Ela, em reciprocidade, passaria a me seguir. Não passei a segui-la. Apaguei. A segunda mensagem era de uma seguidora do @cartuns.alpino. Ela dizia em um texto breve: “Sigo seus cartuns e amo todos. Alguns parecem terem sido feitos para mim. O motivo do meu contato é dizer que meu marido já não se interessa mais por mim, sexualmente falando. Embora eu tenha tentado lingeries e todas as insinuações possíveis. Nada. Não sei se me separo ou se 7 arranjo um amante. Você acha que poderia fazer um cartum sobre esse momento da minha vida? Aguardo. Bj.” Sem saber o que responder, passei os próximos minutos acessando seu perfil, vendo suas fotos, lendo suas postagens e tentando entender o que ocorria ali. Ela, com 37 anos, casada, como havia dito, empresária, mãe de duas crianças e vivendo em uma realidade financeira invejável para muitos brasileiros. Eu não sabia o que dizer para ela. Optei pelo óbvio: “Espero que tudo se resolva. Farei sim o cartum e envio para você em seguida. Se gostar, o posto aqui no meu Instagram. Bj.” Na tarde do dia 28 de março, selecionando algumas ideias de minha pasta de rascunhos para transformar umas delas no cartum do dia seguinte, me deparei com o esboço, com um recado que deixei, me alertando do cartum prometido para aquela seguidora. Nas linhas ainda indefinidas do desenho, uma esposa curvilínea se insinuava para o marido. Ele a rejeitava, com a desculpa de que estavam no período da Semana Santa, a tradição católica que celebra a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. Estava escolhido o próximo cartum. Dois dias depois, enviei o cartum finalizado para aquela esposa. Horas depois ela retornou. Disse brevemente que gostou muito e que, se o publicasse, não revelasse seu nome. O postei às 18 horas daquele mesmo dia. No cartum, a legenda trazia a frase do marido aborrecido: “É semana santa, Marlene!.” 8 O cartum recebeu muitos comentários, 4.921 curtidas e 18 repostagens. No dia seguinte, como sempre faço, li todos os comentários. A maioria elogiava as curvas da esposa ou criticava o marido. Comentários como: “A semana é santa, mas a Marlene não.”, surgiram várias vezes. Outros citavam casos parecidos ou diziam conhecer casais como aquele. O que me surpreendeu foi ler dois escritos por duas mulheres casadas que diziam viver a mesma situação que a personagem. Aquilo me causou um certo desconforto e uma dose de preocupação por elas, ao vê-las expondo a frustração de suas vidas privadas – e seus maridos – em um perfil de humor do Instagram. Esses dois comentários obtiveram muitas curtidas e, para minha surpresa, nenhum comentário indevido ou deselegante. Por trás daquelas dezenas de coraçõezinhos parecia haver uma silenciosa declaração de apoio e compreensão. Nos dias seguintes, vieram os cartuns sobre vida saudável - onde trato de questões sobre exercícios e alimentação - e os cartuns sobre vida moderna - onde trato do alucinado momento em que o mundo vive em meio ao surgimento incessante de novas tecnologias. Tudo seguia seu curso normal até o momento em que, ao ler os comentários dessas postagens, comecei a me deparar com perguntas sobre Marlene: “O que aconteceu com a Marlene?”, “Quando vai ter outros cartuns da Marlene?”, “Onde está a Marlene?”, “Já passou a Semana Santa. E a Marlene?.” 9 Entendi que a personagem havia conquistado muitos admiradores. Fiz um novo cartum, que foi sucedido por outro e outro. E, a cada novo cartum, mais pedidos por eles. Resolvi por fim criar no Instagram um perfil exclusivo para ela. Escolher um nome não foi tão fácil como eu acreditei que seria. Fui surpreendido com uma infinidade de perfis com o nome ‘Marlene’. Na verdade, já haviam escolhido os melhores: @marlene, @sou.marlene, @a.marlene, @marlene_linda, @souamarlene, etc. Por fim, encontrei um que casava bem com ela e que ainda não havia sido usado. No dia 8 de dezembro, estreava o perfil @marlenesexy. 10 11 12 INFLUÊNCIAS Em janeiro de 2012 aconteceu a estreia da minha página de cartuns na edição nacional da revista Playboy, publicada pela Editora Abril. O editor Edson Aran havia aprovado no dia 14 do mês anterior a minha proposta de cinco cartuns mensais que seguiriam o modelo padrão dos cartuns da edição norte-americana. Mas, com uma alteração que impus: eu retrataria a mulher dos nossos trópicos, com suas curvas, sua ‘latinidade’, confiantes e plenas em sua sexualidade. Em um contraponto com as mulheres dos cartuns dos EUA, as que passei a levar para aquela página,além de serem menos passivas, teriam os seios um pouco menores e um bumbum mais acentuado. O excelente feedback dos leitores me fez ter certeza que estávamos no caminho certo. Revendo alguns cartuns a seguir - coletados das edições dos meus cinco anos na publicação - vejo que os traços físicos e de personalidade que resultariam mais tarde em Marlene, surgiram ali. Pacientemente eles aguardavam para eclodirem juntos em uma única criatura. 13 14 15 16 17 18 19 20 21 ELE 22 No final de 2018, durante um bate-papo dominical que passei a ter com os seguidores do @cartuns.alpino, alguém perguntou qual era o nome do marido da Marlene. À pergunta se seguiram sugestões, vindas de outras pessoas interessadas na questão. Dentre elas, a mais curiosa foi ‘Cornélio’. Eu nunca o adotaria. Cornélio é o nome de um tio querido, irmão mais jovem do meu pai. Ele mora em Governador Valadares, Minas Gerais, onde o visitei algumas vezes, sendo sempre maravilhosamente recebido. Antes que eu pudesse responder que havia me decidido por um nome, alguém deixou a sugestão: “O marido não deve receber um nome. Seria bom deixar aberta a escolha de nomes e xingamentos destinados a ele.” Apesar de não concordar com a fúria destilada semanalmente contra o personagem, achei que aquela era uma boa ideia. Uma decisão quase salomônica. De lá para cá, ele ganhou inúmeros ‘nomes’. Se eles fossem adicionados como sobrenomes, não caberiam em um documento de identidade. Como disse, embora até hoje não tenha surgido nos cartuns, eu me decidi por um nome: Alaor. Alaor Sarcinelli é um esposo devotado e apaixonado. Mesmo fugindo às tentadoras investidas diárias de sua querida Marlene, ele acaba por fim nunca resistindo e se entregando. 23 Fisicamente ele não é parecido com o marido da leitora que havia me enviado a mensagem que deu origem à Marlene. Aliás, totalmente o seu oposto. Optei por fazê-lo baixo, com pouco cabelo e peso variável a cada cartum, indo do gordinho ao gordão. Na verdade, são traços comuns em qualquer homem após os trinta. Ultrapassando esta barreira do tempo, encolhemos, o cabelo se vai e a barriga se destaca. Eu sei bem o que é isso. Seu cabelo castanho e sem brilho é um contraponto ao cabelo afogueado de seu par. Alaor Sarcinelli, vem de uma longa linhagem de pessoas irritadas - com tudo e com todos. Ele nasceu em São Paulo, com raízes familiares que remontam o período áureo do café e possui uma irmã gêmea, Alana. Seus pais, Ágata e Demétrius, são primos em segundo grau – um casamento à moda antiga, por conveniência, para manter o negócio restrito à família. O casal mora fora do país, sem fixar residência por muito tempo nos países que visitam. Segundo eles: “Levamos pouco tempo para passar a odiar novas lugares e pessoas.” Ao contrário dos pais e da irmã, Alaor não gosta de viajar. Ele prefere o conforto do lar aconchegante que criou com Marlene em São Paulo. Com a aposentadoria precoce dos pais e diante do desinteresse declarado da irmã pelo mundo dos negócios, ele permanece à frente da pequena empresa de exportação da família, a ‘FOI!’ 24 ELA 25 A escolha do nome Marlene me ocorreu após lembrar de uma curta matéria lida em uma revista na década de 90, enquanto aguardava ser atendido por Santana – não o músico mexicano - o meu barbeiro. Ela listava os nomes que haviam deixado de ser moda com o passar do tempo e que voltavam a serem populares. No texto, dentre alguns nomes meigos, havia Marlene. Agora que eu fechava a legenda do primeiro cartum da personagem, pesquisei no Google o seu significado e a origem do nome. Descobri que foi em 1960 que Marlene teve seu pico de registros nacionais, com mais de 100 mil pessoas. E, além de ser o belo resultado da fusão de Maria – o nome da minha mãe – e Madalena, que vem do grego Magdaléne, quer dizer “a que vem de Magdala”, uma aldeia próxima ao Mar da Galiléia, que significa “torre” em hebraico. O nome da personagem sedutora a ser rejeitada por ocasião da Semana Santa estava escolhido. Do seu home office, a diretora de marketing online Marlene Hervé Montalbán, especialista em contratos publicitários na Web, cria campanhas para a promoção de produtos. Ela nasceu no dia 28 de março, na cidade de São Paulo. Ela é o único fruto da união do casal de médicos: a paulista com ascendência francesa, Penélope Hervé e do espanhol, brasileiro naturalizado, Ulisses Montalbán. Sua infância e juventude transcorreram no bairro Campos Elíseos, na cidade de São Paulo. O casal Hervé- Montalbán escolheu o lugar para seu lar levando em 26 consideração a beleza daquele que foi o primeiro bairro planejado da cidade e a comodidade de ambos estarem próximos de seus consultórios, instalados na Alameda Barão de Limeira. Segundo eles: “Sempre foi prazeroso sair de mãos dadas pela rua e caminhar até o mesmo prédio, onde nos despedíamos no elevador.” Ele ficava no décimo andar e ela no décimo primeiro. Não posso dizer muito sobre a aparência da mulher que originou a personagem Marlene. Como ela ainda segue todas as postagens, algumas vezes comentando, facilmente ela poderia ser identificada entre os seguidores de @marlenesexy. Sua identidade, tal como a do Zorro, permanecerá selada em meus lábios de Bernardo, o fiel e mudo criado de Don Diego de La Vega. O que posso dizer, é que ela possui todo o espírito de Marlene e que a ela devo uma imensa gratidão por dividir comigo - e agora com o mundo - um pouco de si. 27 NÓS Naquela manhã de janeiro, minha mãe levava minha irmã e eu à pracinha para brincarmos. Segundo ela nos informou, aquela era a última vez. Seria então a minha terceira despedida da cidade de São Paulo. No caminho até ali fui me despedindo do nosso bairro e da nossa casa, que estava na família a mais de cem anos. Meu bisavô a havia construído para as estadias longe da sua fazenda de café. Meu bisavô era rico. Meu avô, mais ou menos rico. Meus pais, Ágata e Demétrius, eram primos em segundo grau e criaram uma pequena exportadora de café. Não éramos nem ricos como meu bisavô e nem menos ricos como meu avô. Éramos ‘bem de vida’. Meus pais haviam decidido deixar o país, mais uma vez. Era a terceira mudança para ‘novos ares’ desde que nasci. Eles não gostavam de permanecer muito tempo no mesmo lugar. Segundo minha mãe: “Levamos pouco tempo para passar a odiar novas lugares e pessoas.” Poucos meses após meu nascimento, mudamos para Buenos Aires, na Argentina. Voltamos para São Paulo um ano depois. Passados dois anos, minha irmã nasceu e mudamos para Montevidéu, no Uruguai. Voltamos para nossa casa ancestral quatro anos depois. Agora, nosso novo destino estava definido: Granada, na Espanha. Semanas mais tarde, já residindo lá, descobri para minha desilusão que não havia granadas em Granada, mas touros. Muitos. Meu pai deixava à cargo de minha mãe a livre escolha do destino de nossas viagens. Ele tinha apenas uma exigência: o lugar deveria possuir um idioma igual ou 28 similar ao nosso português. Como ele mesmo gosta de afirmar: “Detesto ser obrigado a aprender línguas idiotas.” Voltando àquela manhã na pracinha, minha mãe estava ocupada com minha irmã Alana e discutindo com alguém sobre um motivo qualquer que já não me recordo. Eu me dirigi à caixa de areia, onde planejava brincar sozinho com meu caminhão de boi e o planejado e sangrento atropelamento de um dos meus bonecos. Em instantes, eu estava absorvido em minha brincadeira. Uma sombra se projetou sobre mim. Assim que ergui acabeça, a vi. Era um anjo de cabelos avermelhados. Tal como na enciclopédia, quando li sobre as obras dos artistas europeus no Renascimento. Ela sorria e, sem cerimônia, sentou na areia, pertinho de mim. Colocou sobre seu colo uma boneca e coisas de cabelos de menina. Muitas coisas de cabelos de menina. Ela se apresentou: “Marlene”. Já eu, demorei um pouco para lembrar e pronunciar o meu nome: A... Ala... Alaor. Em poucos momentos ela já havia me contado que morava ali perto, como eu. Que seus pais eram médicos e ela não tinha medo de injeção ou Merthiolate. Eu falei dos meus pais, de nossas mudanças e sobre a próxima, que ocorreria dentro de alguns dias. Nos despedimos sem que eu o quisesse. Minha mãe se aproximou e me disse lacônica: “Vamos!” Fomos para casa. Restava embalar nossas últimas coisas. Uma parte seguiria conosco, a outra seria levada por um pequeno caminhão até o navio. Pedi à minha mãe se poderíamos ir mais uma vez à praça para brincar. Na verdade, eu queria mesmo era encontrar a menina de cabelos vermelhos para me despedir adequadamente, como um cavalheiro e não como um degredado, condenado ao 29 exílio. Ou, pelo menos fazê-lo melhor do que dizer “tchau” sendo arrastado pela minha mãe. A resposta que ouvi ao meu pedido foi algo como um grunhido e “Arrume suas coisas, antes que eu mude de ideia e o deixe morando com os vizinhos”. Partimos para nosso destino espanhol dois dias depois. 30 Só voltaria a ver a garota do cabelo vermelho quando eu tinha dezesseis anos e havíamos retornado da Espanha. Desta vez, para ficarmos definitivamente. O motivo da decisão de meus pais de voltarem ao Brasil foi a má administração de nossa pequena empresa de exportação nas mãos – segundo meu pai – de um idiota diplomado. Eles haviam decidido que só alguém da família poderia gerir o patrimônio da família Sarcinelli: eu. Meus progenitores esperavam o seguinte: que eu concluísse o colegial e cursasse em seguida Administração e Comércio Exterior. Ao mesmo tempo, de preferência. E lá fui eu. Ao chegar atrasado no colégio naquela manhã, fui à Secretaria fazer a minha matrícula e segui correndo até a sala de aula. Pedi a autorização do professor e sentei na primeira cadeira vazia. Peguei o meu caderno e o pus sobre a mesa, junto de lápis, caneta e borracha Mercur. Noto então uma sombra à minha frente. Quando ergui meus olhos, eu a vi. Era uma deusa de cabelos avermelhados. Tal como nas revistas que minha mãe rasgou ao encontrá-las embaixo do meu colchão na Espanha. Ela sorria e, sem cerimônia, me disse: “Você sentou no meu lugar...”. Só então percebi os cadernos embaixo da carteira e um lápis roxo, com uma peninha rosa colada no topo. Balbuciando algo, eu já me levantava para procurar um outro lugar ao mesmo tempo que minha cabeça pensava em coisas espirituosas que poderia dizer sobre a minha distração. Mas só me ocorria uma piada boba sobre touros numa campina. Ela tocou em meu ombro e disse aquelas que nos dias seguintes seriam para mim as mais lindas palavras do idioma português: “Pode ficar. Eu sento atrás de você. Vê? Ela está vazia.” 31 Sorri, balbuciando mais uma vez um agradecimento enquanto tentava - mais uma vez - pensar em coisas espirituosas que poderia dizer. E, mais uma vez, em meu cérebro lá estava apenas a piada idiota sobre touros numa campina. O que consegui dizer, não era de fato para ser dito a ela, mas uma nota mental: “Passei tempo demais na Espanha...”. Ela sorriu, sem entender. Mas sorriu. O gelo estava quebrado. No recreio eu não passei a integrar nenhum grupo. Haviam o grupo dos filhinhos de papai, o dos encrenqueiros e os dos CDF. Eu não era um grande fã de grupos ou de pessoas. Resolvi andar pelo pátio enorme. Para todos os efeitos, caso alguém me notasse e perguntasse o que fazia, eu estava interessado nas estruturas do prédio. Olhando todas aquelas paredes laranja atijoladas eu tentava descobrir se eram sólidas ou se já mostravam algum desgaste imposto pelo tempo. Ao caminhar em minha voluntária ‘inspeção’ notei Marlene, sentada sozinha, radiante como o sol que a banhava, imersa em um livro. Não me aproximei, demonstrando meu total foco na arquitetura e solidez do prédio que nos abrigava. Um braço para trás e uma mão no queixo ajudavam – eu acreditava – a me dar uma aparência mais madura que os outros rapazes da minha idade. Nos dois dias seguintes, agora fingindo fiscalizar o chão do pátio, cheguei à conclusão que ela, como eu, não se enquadrava. Notei que não sentava com outras meninas durante aquele intervalo diário. Ela também não aderia a grupos de meninas, que se moviam literalmente como manadas durante o recreio. Na sala, desde aquele primeiro dia em diante, mantivemos a mesma posição das cadeiras: uma ao lado da 32 outra. Mesmo quando eu tive caspa – um curto período – ela continuou ao meu lado. A amizade cresceu. Pela manhã, eu passava pelo seu prédio para aguardá-la e a acompanhava até a escola, onde sentaríamos juntos pelos dois próximos dois anos. Na saída, íamos sempre embora juntos. Na portaria ela sempre me chamava para subir e almoçar com a família dela. Sempre recusei. Mas, por conta de trabalhos escolares, eu fui finalmente à sua casa e conheci seus pais. Pessoas maravilhosas. Um outro trabalho escolar a levaria à minha casa, onde conheceu meus pais e minha irmã. Nesse dia, assim que Marlene foi embora, ouvi em coro algo inédito de minha irmã, mãe e pai: “Gostei dela”. Ouvir tal declaração em minha família me fez expressar abertamente em alto e bom som algo também inédito: “Quero me casar com ela”. Silêncio naquela sala com ornamentos antigos, linhas circulares e retas de sua decoração art déco. Emendei ponderado: “Algum dia”. Atentei para um fato. Para que esse ‘algum dia’ chegasse, eu primeiro precisaria saber a opinião dela sobre o assunto, já que era a metade interessada. No dia seguinte e nas semanas posteriores, todo assunto entre nós dois – a nova temporada de Além da Imaginação, o frustrado projeto do bigode do professor de química, etc - parecia terminar perdido entre as paredes de um labirinto, sem me permitir encontrar a saída para dizer: “Quer namorar comigo?” Numa quarta-feira chuvosa, que antecederia o feriado prolongado, eu a levava embaixo do meu guarda-chuva de cabo de bambu e chifre que havia pertencido ao meu avô. A chuva repentina a havia pego de surpresa. O aguaceiro que caia só não me pegou também desprevenido pois em dias 33 nublados eu gostava de sair com aquele elegante guarda- chuva dos anos 30, mesmo não o abrindo na maioria das vezes. Mas, deixando de lado a descrição do artigo fino, voltemos ao meu ato de cavalheirismo. Eu a protegia dos pingos junto ao meu ombro esquerdo, enquanto todo o meu lado direito se ensopava. Após um trovão, que parecia ter sacudido o céu, aproveitei o ato divino e disse: “Eu te amo.” Ela sorriu e disse algo que não ouvi por conta do segundo trovão. Ela notou e repetiu ruborizada e olhando nos meus olhos: “Você vai ter que adivinhar de quem eu gosto. É uma charada. Eu gosto secretamente de uma pessoa que você conhece melhor do que ninguém.” Antes que eu pudesse dizer que detestava charadas, ela sorriu e disse entrando em seu prédio: “Na segunda- feira você me diz se adivinhou...” Nunca odiei tanto um feriado prolongado. As horas se arrastavam e nem a nova temporada de Além da Imaginação – me perdoe Rod Serling - me fez esquecer a elucidação da tal charada que se opunha ao meu destino idealizado com Marlene. Chegou a segunda-feira. Ao encontrar Marlene, fui logo dizendo sobre o meu imenso ódio por charadas, adivinhações e jogos de azar. Ela disse a frase que mudaria toda a minha vida: “É você, seu ranzinza...” Começamos a namorar. Eu, meio tímido. Ela, sem timidez alguma. Como eu, ela nunca havia namorado antes, mas os temas ‘contato físico’ e ‘relações amorosas’ era corriqueiramente,amplamente e naturalmente debatidos por seus pais médicos. Em seu apartamento havia farta literatura e documentários versando sobre a saudável relação biológica que leva os seres à procriação. Em uma das vezes em que jantei com seus pais, assistimos um vídeo 34 sobre a vida selvagem nas savanas. Tento até hoje esquecer a parte sobre o acasalamento de um casal de hipopótamos. Não era uma produção do senhor Walt Disney, tenho certeza. 35 Com o fim do colegial, passamos ao preparatório para o vestibular. Eu tinha a ambição de cuidar do negócio familiar e cursar ao mesmo tempo Administração e Mercado Exterior. Ela, se inclinava para um campo ainda em seu nascedouro, o mercado digital. Ela optou por Marketing. Ao fim da faculdade estávamos noivos. E ainda não havíamos feito sexo. Parece meio exótico em nossos tempos, mas decidimos esperar. Assumi o controle de nossa pequena exportadora. Debatemos e chegamos à conclusão que não deveríamos morar nem com meus pais e nem com os dela após o casamento. Alugaríamos um pequeno apartamento e faríamos economia para um carro. Os pais dela discordaram e nos impediram de gastar dinheiro com o aluguel de um imóvel. Nos deram as chaves de uma casa no nosso próprio bairro. Era uma construção dos anos 40, mas totalmente reformada e adaptada para nos receber. Meus pais também quiseram ajudar e nos deram um automóvel. As economias que Marlene e eu havíamos juntado para darmos entrada em um carro e uma íntima festa de casamento, foram guardadas. Agora que já tínhamos um lugar para morar e um transporte próprio, fomo surpreendidos com um outro presente. Os pais dela e os meus juntaram um montante em um cheque para que fizéssemos uma festa de casamento como bem entendêssemos. Optamos pela mesma celebração íntima pela qual já havíamos decidido e decidimos gastar o restante em nossa lua de mel. O lugar havia sido escolhido dois anos antes. Estávamos então sentados na mesa externa de nossa cafeteria favorita - um recanto de casais - pensando no assunto, quando notei um folheto de viagens embaixo do meu tênis. Não importando se ele foi trazido de longe pelo vento, obra da mãe natureza ou do dono da 36 empresa de viagens da esquina, o destino estava definido. Seriam duas semanas em Madagascar, a bucólica ilha ao largo da costa sudeste da África. 37 Às 11 horas do dia 8 de agosto, estávamos os dois em frente ao padre que nos casaria. Os pais dela estavam emocionados e vi lágrimas. Os meus pais apenas murmuravam algo sobre odiarem vários dos nossos parentes que foram convidados. Quando aquele ritual milenar já se aproximava do término, tentei tocar discretamente a mão de Marlene para obter aquela calma que ela sempre me emprestava. Parecia telepatia, pois a mão dela também estava buscando a minha. Ela encostou seu ombro ao meu, passando em seguida seu braço próximo ao meu pescoço. Quando notei, ela já estava instalada sobre meus ombros – não lembro como ela chegou lá - e dali ia respondendo ao questionário do sacerdote. Apesar de não termos ensaiado assim no dia anterior, acredito que aquele gesto fosse algo proveniente daqueles vídeos da vida selvagem que seus pais colecionavam. Dali de cima, ela foi dizendo olhando para mim: “Prometo ser fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da nossa vida.” Posso afirmar que a festa foi ‘esquecível’. Meus pais fizeram uso daquele momento descontraído e de reunião familiar para deixar claro para todos os nossos parentes por quais motivos não gostavam deles. Os dois tiveram a disposição de fazer isso com todos eles, um a um. 38 Viajamos na mesma noite. Nossa primeira vez foi no bangalô número 9 do Le Grand Bleu, um hotel duas estrelas, mas com uma praia particular na ilha de Nosy Be. Descobri que Marlene gosta muito de sexo. Sim, ela gosta. Seu vigor e naturalidade nesse campo me fez querer ter visto mais daqueles vídeos da coleção de seus pais. No alvorecer do nosso segundo dia, o nosso quarto parecia ter sido invadido por uma horda de vikings. Quebramos a cama. 39 Homens que estiverem lendo essas linhas, esqueçam o que nos disseram sobre ‘mulheres não gostarem de sexo’. Aprendi que elas gostam sim de sexo, se ele for feito com desejo, entrega e reciprocidade. Para a mulher, o sexo é muito diferente do filme pornô que nós homens acreditamos ser o sexo. 40 Nos próximos dias de nossa lua de mel, descobri com Marlene prazeres que não sabia existirem na conjunção de um casal de amantes. Se nos vissem, aqueles hipopótamos ficariam corados. Falando neles, embora estivéssemos no continente africano, não vimos hipopótamos correndo ou acasalando. 41 Aqui listo sete coisas que aprendi sobre sexo naqueles dias quentes e nas noites de brisa daquele paraíso desenhado pelo Criador e preservado pelo homem: 1. Demonstre desejo 2. Seja reciproco 3. Reserve tempo para cada parte do corpo dela 4. Use MUITO lábios e língua 5. Alterne entre o vigor e a delicadeza 6. Barulho é tão importante quanto sussurros 7. Mãos na cintura e cabelo Dentre muitas fotos da lua de mel, poucas registraram tão bem aqueles dias de paixão como as repetidas fotos mal tiradas e tremidas feitas em nosso passeio de balão. Após duas semanas, dissemos adeus à Madagascar, prometendo regressar. Em nossa volta ao Brasil e nosso primeiro lar, continuei a aprender a amar Marlene de todas as formas conhecidas e com algumas que ela mesma criou. Nem sempre estou na mesma sintonia que ela em sua disposição contínua de fazer amor e me surpreender, mas acabo sempre cedendo. Somos felizes. 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 ALPINO Alberto Correia de Alpino Filho nasceu no dia 4 de junho de 1970, na cidade de Baixo Guandu, Espírito Santo. Sexto filho do guarda-chaves da Vale do Rio Doce, Alberto Correia de Alpino e da dona de casa, Maria Neves de Alpino. O casal 86 teve oito filhos. Em 1978 a família se muda para o interior de João Neiva, a pequena Piraqueaçu, onde ficava a estação de trem na qual Alberto pai iria desempenhar novas funções. Em 1983, com sua aposentadoria, outra mudança, desta vez para a cidade de João Neiva. Ali, Alpino teria seu primeiro contato com a arte impressa, com seu ingresso como chapista na Gráfica Herculis, aos 17 anos. Em 1993, após a empresa adquirir um computador e uma impressora que viria a substituir a suafunção, ele aceita a oferta de algo bem distante de seu campo: guarda bancário na agência do Banestes, na cidade vizinha, Ibiraçu. “Meu posto não era na agência, mas no seu andar superior. Me tornei responsável pela segurança do Cense, o departamento de correção das agências bancárias da região. Eu era muito bem remunerado, tinha um uniforme caqui que dava coceira, um revólver Rossi 38 e um cassetete de borracha. Nos quase dois anos em que desempenhei a profissão, não precisei usar nem um nem o outro. Não havia dinheiro naquele departamento, apenas listas impressas das transações financeiras feitas durante o dia pelos caixas dos bancos, decorrendo daí o desinteresse de assaltantes por aquele departamento.” No fim de 1994, ele consegue retornar à sua área na agência publicitária M&M, ilustrando cartilhas educativas para o Governo Federal. Ali toma contato com profissionais dos quadrinhos capixabas. Em novembro de 2001 sua tira Luzia estreia no diário A Gazeta. Nos dois anos seguintes, 87 cria A Doce Vida, Super Dog e Samanta. Esta última, leva o nome de sua filha nascida em agosto de 2002. A personagem ganha espaço nos jornais nacionais, passando a ser publicada diariamente em O Sul, Jornal do Brasil, A Crítica e Agora-SP. Em Abril de 2010 começa a produzir a charge diária do portal de comunicação Yahoo!Brasil. Em janeiro de 2011, se une ao corpo de ilustradores do jornal Folha de São Paulo. Em janeiro do ano seguinte, a edição nacional da revista Playboy passa a contar com sua página mensal de cinco cartuns com teor erótico light. Hoje, residindo em Vitória, capital do Espírito Santo, seu estúdio licencia cartuns e charges, produz ilustrações para jornais e revistas e apresenta diariamente seus cartuns para seus dois perfis no Instagram, o @cartuns.alpino e @marlenesexy. 88 89