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Autores: Prof. César Henrique de Carvalho Moraes Profa. Maíra Ladeia Rodrigues Curti Colaboradoras: Profa. Mônica Teixeira Profa. Carolina Kurashima Educação Alimentar e Nutricional Professores conteudistas: César Henrique de Carvalho Moraes / Maíra Ladeia Rodrigues Curti César Henrique de Carvalho Moraes Graduado em Nutrição pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), possui especialização em Nutrição Aplicada ao Exercício Físico pela Escola de Educação Física e Esportes da Universidade de São Paulo (EEFE-USP). É mestre em Nutrição Humana Aplicada pelo Programa Interunidades em Nutrição Humana Aplicada da USP e doutorando do Programa de Nutrição em Saúde Pública da FSP-USP. Sua área de pesquisa concentra- se na psicologia aplicada à nutrição, especialmente nas influências sociais sobre a escolha alimentar. Tem experiência em atendimento em consultório e atua como docente em cursos de pós-graduação. Maíra Ladeia Rodrigues Curti Graduada em Nutrição pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). É especialista em Nutrição Clínica pela Associação Brasileira de Nutrição (ASBRAN) e mestre em Nutrição e Saúde Pública pela FSP-USP. Atuou por 10 anos no atendimento em consultório particular e ambulatório de empresas com educação alimentar e nutricional. É desde 2013 nutricionista supervisora do Programa de Alimentação Escolar da Prefeitura de São Paulo (PAE-PMSP), desenvolvendo projetos de educação alimentar e nutricional nas escolas da rede de ensino municipal. Integrante do Grupo de Trabalho Práticas Educativas em Saúde e Comunicação (PESC), da Divisão de Nutrição do PAE-PMSP. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M827e Moraes, César Henrique de Carvalho. Educação Alimentar e Nutricional / César Henrique de Carvalho Moraes, Maíra Ladeia Rodrigues Curti. – São Paulo: Editora Sol, 2021. 112 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Educação. 2. Avaliação. 3. Alimentação. I. Moraes, César Henrique de Carvalho. II. Curti, Maíra Ladeia Rodrigues. III. Título. CDU 613.2 U511.38 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Auriana Malaquias Willians Calazans Sumário Educação Alimentar e Nutricional APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL...........................................9 2 MARCO DE REFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL PARA POLÍTICAS PÚBLICAS ............................................................................................................................. 13 2.1 O que é o Marco de Referência de EAN? .................................................................................... 13 2.2 Princípios norteadores estabelecidos pelo Marco de Referência de EAN ..................... 14 3 COMPORTAMENTO, ESCOLHAS, ATITUDES, HÁBITOS ALIMENTARES E SEUS DETERMINANTES: APLICAÇÕES EM EAN.................................................................................... 15 3.1 Comportamento e escolhas alimentares: definição, determinantes e aplicações ..... 16 3.2 O processo de escolha alimentar ao longo do curso de vida ............................................. 17 3.3 Atitudes alimentares ........................................................................................................................... 18 3.4 O hábito alimentar ............................................................................................................................... 18 4 CORRENTES PEDAGÓGICAS E TEORIAS DE MUDANÇA DE COMPORTAMENTO APLICADAS À EAN ....................................................................................................... 19 4.1 Pedagogias e aplicações em EAN ................................................................................................... 20 4.2 Teorias de mudança de comportamento .................................................................................... 24 4.2.1 Modelo das crenças em saúde .......................................................................................................... 25 4.2.2 Teoria da motivação para proteção ................................................................................................. 27 4.2.3 Teoria do comportamento planejado e teorias associadas ................................................... 28 4.2.4 Teoria social cognitiva .......................................................................................................................... 29 4.2.5 Modelo transteórico da mudança (ou modelo dos estágios de mudança) .................... 30 4.2.6 Entrevista motivacional ....................................................................................................................... 31 4.2.7 Comer intuitivo ........................................................................................................................................ 35 4.2.8 Comer com atenção plena (mindful eating) ............................................................................... 37 4.3 Aconselhamento versus prescrição nutricional ....................................................................... 39 4.3.1 O educador nutricional: um facilitador de mudanças de comportamento alimentar ............................................................................................................................. 40 Unidade II 5 EAN NOS DIVERSOS CAMPOS DE ATUAÇÃO DO NUTRICIONISTA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS................................................................................................................................ 48 5.1 As áreas de atuação do nutricionista ........................................................................................... 50 5.2 Políticas públicas em alimentação e nutrição .......................................................................... 51 5.2.1 Exemplos de atuação em políticas públicas ................................................................................ 53 6 PLANEJAMENTO DE PROJETO DE EAN .................................................................................................... 56 6.1 Estratégias de diagnóstico para um programa educativo em EAN ................................. 58 6.2 Determinação dos objetivos do programa educativo ........................................................... 61 6.3 Planejamento e cronograma de atividades ............................................................................... 63 7 DESENVOLVIMENTO DE PROGRAMAS DE EAN ...................................................................................64 7.1 Metodologias para atividades de EAN ......................................................................................... 65 7.2 Desenvolvimento de conteúdo programático .......................................................................... 69 7.3 Recursos audiovisuais ......................................................................................................................... 74 7.3.1 Recursos audiovisuais não tecnológicos ....................................................................................... 75 7.3.2 Recursos audiovisuais tecnológicos ................................................................................................ 76 7.4 Programas de EAN para diferentes populações nos ciclos da vida.................................. 77 7.4.1 Crianças ...................................................................................................................................................... 77 7.4.2 Adolescentes, jovens e adultos .......................................................................................................... 83 7.4.3 Idosos ........................................................................................................................................................... 88 8 AVALIAÇÃO DE PROJETOS DE EAN ........................................................................................................... 89 8.1 Identificação de instrumentos e critérios de avaliação ........................................................ 90 8.2 Tipos de avaliação ................................................................................................................................ 91 7 APRESENTAÇÃO Este livro-texto tem como objetivo apresentar a Educação Alimentar e Nutricional (EAN) no contexto brasileiro. Pretende-se apresentar as concepções de EAN e seu histórico no Brasil, os principais componentes na mudança do comportamento alimentar, o papel da EAN nos diversos campos de ação do nutricionista, e definir a atuação do nutricionista como um educador. Estudaremos a importância da aprendizagem na mudança de comportamentos alimentares do indivíduo e o estabelecimento de hábitos, e da análise e identificação de problemas educacionais em tais hábitos e condutas alimentares, propondo soluções científicas para tal, e o manejo de técnicas de comunicação individual e coletiva. Serão dadas as diretrizes para o planejamento e execução de intervenções e programas de EAN, além de orientações sobre como utilizar recursos de comunicação nas diversas áreas de atuação profissional. Pretende-se com este livro-texto promover o aprendizado para a realização e o planejamento de intervenções e programas de EAN, segundo as características dos diferentes indivíduos, grupos e populações. INTRODUÇÃO A EAN é uma estratégia fundamental para a garantia da segurança alimentar e nutricional e da promoção da saúde, sendo uma ferramenta chave para a prevenção e o controle dos problemas alimentares e nutricionais contemporâneos. Portanto, é imprescindível para a formação do nutricionista a preparação para sua atuação na formulação, implantação e avaliação de programas de EAN. O nutricionista deve estar plenamente apto a desenvolver projetos de intervenção em alimentação e nutrição para indivíduos e grupos de diferentes faixas etárias. Este livro-texto fornecerá subsídios para o desenvolvimento de ações para indivíduos ou grupos sadios, ou com algum agravo ou doença, inclusive promovendo a consciência social, ecológica e ambiental, para clientes, pacientes, usuários de diferentes faixas etárias, cuidadores, familiares ou responsáveis. Compreende, inicialmente, como base para os demais aprendizados, os conceitos e concepções de EAN, seu histórico no Brasil, assim como as mudanças alimentares que ocorreram nas últimas décadas, as quais são fundamentais para a apreensão da EAN como campo de conhecimento e prática. Será apresentado o Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas, seus conceitos, premissas, metas e perspectivas. Para compreender com profundidade o comportamento alimentar, as atitudes e os hábitos alimentares, estudaremos o processo de escolha alimentar ao longo do curso da vida, como ele se dá, seus determinantes e aplicações. Da mesma forma, estudaremos as correntes pedagógicas e as teorias de mudanças de comportamento alimentar, cujo conhecimento e entendimento é essencial para atuarmos em projetos de EAN. Serão apresentados campos de atuação do nutricionista no contexto da EAN e seu importante papel no desenvolvimento de políticas públicas na área de alimentação e nutrição. Todas as etapas da 8 execução de um projeto de EAN serão estudadas, desde o planejamento, as estratégias de diagnóstico da problemática local, a determinação dos objetivos, a escolha de referenciais teóricos, as metodologias e os recursos para realização das atividades. Por fim, serão apresentados diversos exemplos de projetos realizados nos diferentes ciclos da vida, com sugestões de atividades, e os instrumentos e critérios de avaliação de projetos. A combinação de estratégias educacionais, acompanhadas pelo suporte do contexto em que vivem os indivíduos, facilita a adoção tanto de escolhas alimentares como de comportamentos que levam os indivíduos à saúde e bem-estar. Nesse contexto, a EAN é fundamental, e deve ser considerada segundo sua rede múltipla de saberes que envolverão ações no nível individual, da comunidade e das políticas públicas (CONTENTO, 2007). 9 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL Unidade I 1 HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO BRASIL O debate acerca de educação nutricional, termo utilizado na época, se inicia na década de 1930, à medida que há um aumento da classe trabalhadora no meio urbano dado o crescimento da industrialização. Nesse período, são instituídas as leis trabalhistas, definida a cesta básica de referência, ao lado dos estudos de Josué de Castro acerca das desigualdades e a fome no país. Naquele momento, as estratégias de educação nutricional eram dirigidas aos trabalhadores e suas famílias a partir de uma abordagem que hoje é avaliada como estigmatizante, devido ao fato de os indivíduos serem ensinados a se alimentar corretamente de acordo com um parâmetro descontextualizado e estritamente biológico sem que fossem consideradas suas particularidades. Nesse sentido, as ações eram focadas em campanhas que priorizavam a introdução de alimentos que não faziam parte da realidade dos indivíduos e se valiam de práticas educativas que não facilitavam a autonomia daqueles que delas participavam, ou seja, as camadas de menor renda (BRASIL, 2010; SANTOS, 2005). Surgem, então, os profissionais denominados “visitadores de alimentação”, que iam até os domicílios com objetivo de realizar a educação alimentar de forma tradicional (veremos as diferenças entre pedagogias tradicionais e ativas no tópico 4), seguindo estritamente o conjunto de recomendações alimentares da época. Nesse cenário, os indivíduos ou as famílias eram sujeitos passivos no processo de educação em relação à alimentação e apenas ouviam as orientações e prescrições desses profissionais. Não havia contextualização acerca da cultura e regionalidade de cada local atendido nem a utilização de teorias e técnicas especificamente direcionadas para mudança de comportamento. Essa atividade permaneceu por pouco tempo em execução e foi considerada pela população uma abordagem hostil (BOOG, 1997). O tom da educação nutricional com enfoque unicamente na dimensão nutricional dos alimentos e sem considerar os aspectos culturais e sociais perdurou ainda nas décadas de 1970 e 1980, em virtude da ampliação do cultivo de soja que precisava ter a produção absorvida pelo aumento do consumo de seus produtos e derivados. Nota-se nessa fase pouca efetividade das ações em educação nutricional em detrimento da atenção central aos interesses econômicos que se apresentavam.Todo esse cenário que contava com ações pouco contundentes em direção à promoção da alimentação adequada colocou a educação nutricional em situação de desprestígio, o que a tornou, até os anos 1990, um tema pouco valorizado e sem relevância para as políticas públicas. Com o passar do tempo, conforme a prevalência e o conhecimento das doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão, câncer, doenças cardiovasculares) tornam-se mais notórios, aumenta também a necessidade de ações conjuntas em saúde, o que reacende a premência de ações voltadas para formação e manutenção de hábitos saudáveis, o que passa necessariamente pela reconsideração da importância da educação nutricional. 10 Unidade I O período passava por aprimoramento internacional da definição de promoção da saúde (WHO, 1986), e, nacionalmente, foi marcado por grandes influências de Paulo Freire e a pedagogia dialógica (SANTOS, 2005). A pedagogia dialógica, conforme será visto mais a fundo no tópico 4, considera o indivíduo (ou grupos) como parte ativa no processo de educação e pondera todo o processo de aprendizado pela valorização de práticas e saberes populares, pelo desenvolvimento de senso crítico e respeito às particularidades do educando. Tais características passarão, então, a influenciar profundamente as práticas do que será chamado, a partir desse momento, de Educação Alimentar e Nutricional (EAN), termo que melhor identifica as prioridades do momento, marcadas por uma consideração mais ampla do que é saúde e do que deve ser considerado para promoção efetiva de uma alimentação adequada e saudável. Impelidos por esse movimento, é a partir do final dos anos 1990 que documentos oficiais brasileiros de programas governamentais começam a considerar em suas proposições as ideias de promoção de práticas alimentares saudáveis e modos de vida saudáveis, termos e condutas mais condizentes com as demandas nutricionais e a realidade do momento. Torna-se, nesse momento, mais realista o que deve ser realizado por políticas, programas e ações governamentais no que diz respeito à implementação progressiva do direito humano à alimentação adequada (DHAA). A EAN passa então por uma fase de valorização e volta à pauta de congressos e eventos da área e sob nova perspectiva: enfoque na valorização da cidadania, dos sujeitos assistidos, na democratização dos saberes e na valorização cultural (LIMA; OLIVEIRA; GOMES, 2003; CAMOSSA et al., 2005). No entanto, é de fato nos anos 2000, com fomento e implementação do Programa Fome Zero, que a EAN ganha grande relevância ao ser incorporada às frentes de atuação do programa e ao ser implementada por meio de: • campanhas publicitárias e palestras; • introdução de temas de EAN no currículo escolar do ensino fundamental; • criação de normas brasileiras para comercialização de alimentos industrializados e, também, para aqueles voltados a lactentes; • ações de alerta para o aprimoramento quanto à rotulagem de alimentos e o controle da publicidade nesse segmento. É então em 2003 que se nota presença mais relevante de ações em EAN nas iniciativas públicas, tais como as presentes em restaurantes populares, bancos de alimentos, na atuação das equipes de atenção básica de saúde. Esse quadro também favoreceu a experiência de EAN em importantes inciativas governamentais, como no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e no Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT). A atuação do nutricionista nessas iniciativas públicas será apresentada no tópico 5. 11 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL São exemplos de ações que decorreram do fortalecimento da EAN à época: • O PNAE, com a implementação da Lei n. 11.947, de 16 de junho de 2009, em que uma diretriz prevê a inclusão da EAN no processo de ensino e aprendizagem, sendo inclusa no currículo escolar e abordando o tema alimentação e nutrição e o desenvolvimento de práticas saudáveis de vida, sempre na perspectiva da segurança alimentar e nutricional (SAN). Esta lei contribui diretamente para a EAN na medida em que garante a presença de alimentos da agricultura familiar local e os parâmetros que orientam a definição do que será oferecido aos escolares (BRASIL, 2009). • No campo da saúde, as ações que envolvem a EAN passaram a ser crescentemente valorizadas como parte das políticas públicas. • No cenário internacional, a EAN também ganhou relevância, passando a compor discussões das estratégias globais para alimentação do bebê e da criança pequena (WHA, 2002), e para a promoção da alimentação saudável, atividade física e saúde (WHA, 2004). • Nacionalmente, apresenta notável participação nos textos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), seja na versão de textos de 1999, seja na versão mais atual, de 2012 (BRASIL, 2011b). Destacam-se ainda como discussões de EAN na PNAN (BRASIL, 2003): • Incentivo ao aleitamento materno. • A socialização do conhecimento sobre os alimentos, processo de alimentação, e da prevenção dos problemas nutricionais, o que inclui as deficiências nutricionais específicas e até a obesidade. • Alerta sobre a necessidade de se abordar os temas na perspectiva do DHAA. • Consensos sobre conteúdos, métodos e técnicas do processo educativo, considerando os diferentes espaços geográficos, econômicos e culturais. • Disciplinamento da publicidade de produtos alimentícios infantis. • O acompanhamento e o monitoramento de práticas e marketing de alimentos. • A elaboração de material de formação e orientação alimentar para profissionais de saúde. A EAN está ainda presente em outras políticas e documentos normativos de saúde, tais como: • Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) (BRASIL, 2010); 12 Unidade I • Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) no Brasil (BRASIL, 2011a); • Portaria Interministerial n. 1.010/2006, que, em parceria com o Ministério da Educação, estabelece as bases da promoção da alimentação saudável nas escolas (BRASIL, 2006). Ressalta-se que a EAN é parte crucial da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), definida pela: Realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural econômica e socialmente sustentáveis (BRASIL, 2006). Nota-se que a partir desse momento o sistema alimentar é considerado em sua complexidade e multideterminação (ou multicausalidade, como veremos nas definições de comportamento no tópico 3) no que se refere aos comportamentos e práticas alimentares. Além disso, ganha destaque a necessidade de ações públicas coordenadas, eficientes e que contam com a participação de diversos setores que são muito necessários para que todas essas proposições não se restrinjam ao campo teórico, mas que sejam assertivas e claras na prática. A figura 1 mostra a linha do tempo desses fatos de maneira resumida. 1930 1980 20001970 1990 2003 2009 • Leis trabalhistas; • Educação nutricional dirigida a trabalhadores e famílias; • Cesta básica; • Estudos de Josué de Castro (fome e desigualdades no país); • Enfoque estritamente bilógico em educação nutricional; • "Visitadores de alimentação". • Aprimoramento internacional da definição de promoção da saúde (WHO, 1986); • Paulo Freire e pedagogia dialógica (BRASIL, 2008; SANTOS, 2005) → valorização de práticas e saberes populares, pelo desenvolvimento de senso crítico. • Implementação do Programa Fome Zero; • Grande importância da EAN no período que é então incorporada a várias frentes de atuação do programa. • No PNAE → implementação da Lei n. 11.947, de 16/6/2009 → EAN no currículo escolar. • Presença da EAN em: — Restaurantes populares; — Bancos de leite; — Atenção básica em saúde; — PNAE; — PAT. • Grande cultivo de soja e consumo de sua produção; • Pouca efetividadedas ações em educação nutricional em detrimento da atenção central aos interesses econômicos; • Enfoque unicamente na dimensão nutricional dos alimentos e sem considerar os aspectos culturais e sociais; • Despretigio da educação nutricional. • Programas governamentais começam a considerar em suas proposições as ideias de promoção de práticas alimentares saudáveis e modos de vida saudáveis; • Valorização da agora intitulada EAN; • Aproximação da promoção de práticas alimentares às realidades da população. Figura 1 – Linha do tempo com o processo histórico de EAN até o momento recente 13 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL 2 MARCO DE REFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL PARA POLÍTICAS PÚBLICAS 2.1 O que é o Marco de Referência de EAN? O Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para Políticas Públicas é um documento que marca as ações estratégias de EAN para a atenção à segurança alimentar e nutricional (SAN) e a garantia ao direito humano à alimentação adequada (DHAA). Antes de prosseguirmos com a definição do que se constitui esse documento, é fundamental que definamos o que são DHAA e SAN. Segundo a Lei n. 11.346, de 15 de setembro de 2006, art. 2º, o DHAA estabelece que: A alimentação adequada é o direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população (BRASIL, 2006). A partir dessa premissa, espera-se que a alimentação de indivíduos e grupos seja considerada segundo aspectos ambientais, culturais, econômicos, regionais e sociais pelas iniciativas governamentais e, a partir disso, colocada em prática garantindo a SAN, assim definida: A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (BRASIL, 2006). A SAN, por sua vez, é articulada politicamente pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), que formula, monitora e avalia a SAN no país, nos estados e municípios brasileiros, sempre com propósito final de garantir o DHAA. A existência do SISAN é assegurada legalmente, pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) (BRASIL, 2006). As práticas de SAN têm por princípios: • possibilitar maior acesso aos alimentos, sobretudo àqueles advindos da agricultura tradicional e familiar; • a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos; • respeitar as diversidades existentes na cultura do país para a implementação de políticas públicas que participem da produção, do comércio e consumo de alimentos, sendo, ao mesmo tempo, sustentáveis; 14 Unidade I • fomentar a prática alimentar e o estilo de vida saudável sempre com respeito à diversidade étnica, racial e cultural do país, segundo a Secretaria de Atenção à Saúde (BRASIL, 2008). A EAN como estratégia fundamental para o controle e a prevenção do avanço das doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, doenças cardiovasculares, câncer, hipertensão), por meio da promoção da SAN e do estabelecimento do DHAA, estrutura-se, então, a partir de 2012, por um documento que estabelece um conjunto de iniciativas: o Marco de Referência de EAN. O Marco de Referência de EAN, por sua vez, foi desenvolvido por iniciativa conjunta de diversos setores da sociedade, sendo estes cidadãos, gestores, profissionais, sociedade civil, professores e acadêmicos. O documento visa estabelecer reflexões e orientações práticas para o conjunto de iniciativas públicas de EAN pensando na alimentação desde o processo de produção, distribuição, abastecimento e consumo final da comida agindo segundo alguns princípios norteadores. 2.2 Princípios norteadores estabelecidos pelo Marco de Referência de EAN Os princípios norteadores do Marco de Referência de EAN deverão se ater aos princípios do SISAN, ao Sistema Único de Saúde (SUS) e à Política Nacional de Alimentação Escolar, por exemplo. A figura 2 apresenta os princípios norteadores do Marco de Referência de EAN. Sustentabilidade social, ambiental e econômica Refere-se às relações humanas, sociais e econômicas estabelecidas no sistema alimentar Planejamento, avaliação e monitoramento de ações Fundamentais para eficácia e efetividade das iniciativas e sustentabilidade das ações Comida e alimento como referências; Valorizar a culinária enquanto prática emancipatória Preparar o próprio alimento gera autonomia, permite praticar as informações técnicas e amplia o conjunto de possibilidades dos indivíduos Intersetorialidade Setores poderão expandir suas capacidades de analisar e transformar suas ações a partir do convívio com outros setores aumentando a eficiência dos esforços Abordar o sistema alimentar em sua integralidade Considerar todas as dimensões do sistema alimentar (biológica, cultural, social etc.) de modo a contribuir para que indivíduos e grupos façam escolhas conscientes Promoção do autocuidado e da autonomia O autocuidado é processo de mudança de comportamento centrado na pessoa, em sua disponibilidade e sua necessidade Diversidade nos cenários de prática Para alcançar os objetivos da EAN é fundamental o desenvolvimento de estratégias adequadas para cenários específicos Valorização da cultura alimentar local e respeito à diversidade de opiniões e perspectivas, considerando legítimos diferentes saberes Considerar todas as dimensões do sistema alimentar (biológica, cultural, social etc.) de modo a contribuir para que indivíduos e grupos façam escolhas conscientes Educação enquanto processo permanente e gerador de autonomia e participação ativa das pessoas Abordagens pedagógicas devem privilegiar processos ativos e contextualidades às realidades dos indivíduos, suas famílias e grupos, integrando teoria e prática Figura 2 – Princípios norteadores do Marco de Referência de EAN A agenda para implementação de EAN segundo esses princípios é direcionada por meio de ações em políticas públicas, o que, portanto, conta com a essencial conscientização de gestores e a formação de profissionais de modo que sejam autônomos e tenham acesso contínuo à educação. O setor da gestão pública não é o único importante para a boa condução da EAN, mas também a sociedade, que precisa valorizar a alimentação saudável e a ciência que gera referenciais teóricos e metodológicos para que as ações e estratégias de EAN sejam implementadas. 15 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL Os tópicos seguintes discutirão teorias e práticas que abrangem todos esses princípios de EAN estabelecidos pelo Marco de Referência. Saiba mais Confira síntese dos princípios do Marco de Referência no vídeo: [3 ANOS de Ideias]. Marco de Educação Alimentar e Nutricional (EAN). 2015. 1 vídeo (3 min). Publicado pelo canal Ideias na Mesa. Disponível em: https://bit.ly/3t58vMs. Acesso em: 8 abr. 2021. 3 COMPORTAMENTO, ESCOLHAS, ATITUDES, HÁBITOS ALIMENTARES E SEUS DETERMINANTES: APLICAÇÕES EM EAN A definição do que é comportamento não tem sido homogênea ao longo do campo da nutrição, mas a questão vem ganhando crescente atenção da área. Na psicologia, a definição de comportamento apresenta também diferentes concepções. Há, no entanto, uma consideração bastante razoável: constitui-se por um conjunto de ações que derivam de múltiplas causas, definição esta derivada da teoria da multicausalidade skinneriana (SKINNER, 1957). Segundo a teoria, essas causas teriam origens em diversos aspectos do conhecimento, por exemplo, naqueles ligados à biologia, nos aspectos sociais,e, de modo geral, no ambiente no qual o indivíduo vive e estabelece suas relações. Essa definição parece ser plausível também para os comportamentos ligados à alimentação, ou seja, os comportamentos alimentares. Nessa linha, podemos definir comportamento alimentar como um conjunto de condutas, procedimentos e ações ligados ao ato de comer que decorrem da relação do indivíduo ou dos grupos com o ambiente no qual se inserem (HOUAISS; VILLAR, 2009). Nesse sentido, podemos ainda definir o comportamento alimentar, de maneira resumida, como o conjunto de ações em relação ao ato de se alimentar. Ao considerar esse conjunto de ações e as definições de comportamento que acabamos de apresentar, entendemos que essas ações decorrem de múltiplas causas, de ordem biológica, social, econômica e cultural. Nesse sentido, e conforme será amplamente discutido neste livro-texto, o comportamento alimentar não se restringe ao que seria denominado consumo alimentar ou nutricional, que considera apenas aspectos bioquímicos e biológicos do alimento, mas também às contribuições das ciências sociais, econômicas, da psicologia, antropologia e sociologia, para enfim compreender o que leva as pessoas a manter certas ações no ato de se alimentar. Observação Consumo alimentar: ingestão de alimentos. Consumo nutricional: ingestão de energia de macro e micronutrientes (ALVARENGA et al., 2019). 16 Unidade I É ainda bastante razoável considerar o comportamento alimentar como um produto de fenômenos que ocorrem pré-deglutição, ou seja, ligados à cultura e à sociedade, e a experiência com alimento é também um produto de fenômenos pós-deglutição, ligados ao metabolismo, digestão, absorção e armazenamento de elementos bioquímicos (GERMOV; WILLIAMS, 1996). Os fenômenos pré-deglutição e pós-deglutição podem ser ainda vistos em discussões mais recentes dentro dos estudos do comportamento alimentar como controles não homeostáticos e controles homeostáticos da fome e saciedade, respectivamente (ALONSO-ALONSO et al., 2015). Lembrete Fenômenos pré-deglutição para os comportamentos alimentares: também entendidos como controles não homeostáticos da fome e saciedade. Fenômenos pós-deglutição para os comportamentos alimentares: também entendidos como controles homeostáticos da fome e saciedade. Nessa perspectiva dos comportamentos alimentares, estudaremos neste tópico as escolhas alimentares, seus determinantes ligados às atitudes alimentares e como se situam os hábitos alimentares nesse contexto. A consideração dos comportamentos alimentares sobre essas perspectivas alinha-se às estratégias necessárias em EAN, que, para serem mais efetivas, têm se mostrado sensíveis à consideração do comer como algo que envolve não só os componentes biológicos da comida, mas suas representações simbólicas, culturais e sociais. 3.1 Comportamento e escolhas alimentares: definição, determinantes e aplicações Agora que definimos comportamento alimentar, podemos definir as escolhas alimentares. Escolhas alimentares, como descreve Rozin (2006), envolvem a seleção e o consumo de alimentos e bebidas considerando o que, como, quando, onde e com quem as pessoas comem e bebem, entre outros aspectos nesse contexto. Vemos, então, que as escolhas alimentares se constituem em um conjunto específico de comportamentos alimentares, ligados à seleção de alimentos com base em preferências, identidades e significados culturais. Podemos elencar quatro grandes grupos de determinantes das escolhas alimentares: os determinantes biológicos, os determinantes psicológicos, os determinantes sociais e os determinantes culturais (ROZIN, 2006). A seguir cada um desses determinantes é descrito brevemente: • Determinantes biológicos: focam-se nos mecanismos fisiológicos que explicam o que se passa no corpo e no cérebro quando ocorre uma escolha alimentar. • Determinantes psicológicos: envolvem as experiências da psicologia individual que se desenvolvem a partir da relação com os pais, os amigos, os colegas de trabalho, a mídia e a publicidade, que geram alguma forma de aprendizado e que, no final, influenciarão as preferências alimentares do indivíduo. 17 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL • Determinantes sociais: consideram as influências sociais sobre a escolha alimentar sendo ligadas aos aspectos demográficos, tais como sexo, renda, escolaridade, localização geográfica do indivíduo ou grupo, assim como as influências sobre a escolha alimentar que ocorrem na cultura. • Determinantes culturais: são ligados às preferências culturais do grupo no qual se insere o indivíduo e de acordo com as diferentes fases da vida, além de depender dos custos dos alimentos e das atitudes ligadas à comida para aquela cultura (as atitudes serão discutidas a seguir). O contexto cultural que determina nossas escolhas alimentares ocorre ao longo de todo o curso de nossa vida, como veremos no tópico seguinte. 3.2 O processo de escolha alimentar ao longo do curso de vida As escolhas alimentares apresentam uma evolução ao longo de nossa vida. Elas acontecem à medida que as pessoas se desenvolvem, mudam e se adaptam ao longo do tempo ao ambiente e vivenciam suas experiências. Nesse sentido, as escolhas alimentares dependerão de transições de vida iniciais, por exemplo, as transições alimentares da infância para a adolescência (repletas de mudanças de vida), e, além disso, dos demais momentos marcantes na vida adulta, até que, enfim, as últimas transições alimentares, ou seja, as mais recentes, aconteçam. Ao longo de toda essa trajetória de acumulação de experiências, haverá influência tanto de macrocontextos (isto é, sociedade, cultura, economia, governo etc.), como de microcontextos (família, amigos, escola, trabalho, comunidade etc.), até que se construa a escolha alimentar atual do indivíduo, baseada em pensamentos, sentimentos, estratégias, crenças e ações em relação à comida que se deram com o passar do tempo (DEVINE et. al., 1998). A figura a seguir apresenta um resumo do que seria a dinâmica da escolha alimentar ao longo da vida de uma pessoa. Sociedade, cultura, economia, governo etc. (chamados de macrocontextos) Famílias, amigos, escola, trabalho, comunidade etc. (chamados de microcontextos) Transições iniciais Momentos marcantes inciais Últimos momentos marcantes Escolha alimentar atual Últimas transições Trajetótia d a esc olha alim ent ar ao long o da vida Tempo Figura 3 – Como a escolha alimentar é estabelecida ao longo do curso de vida 18 Unidade I A consideração de todo esse contexto estará presente nas teorias e técnicas de mudança de comportamento alimentar, bem como na sua aplicação, em ações de EAN que serão apresentadas ao longo deste livro-texto. 3.3 Atitudes alimentares As atitudes são um construto (ou seja, um “conceito” que envolve aspectos da psicologia) considerado em várias teorias da psicologia social e que se aplica à alimentação. Embora a consideração das atitudes especificamente na área da nutrição seja relativamente recente, estudaremos que a discussão desse conceito na psicologia social que estuda a comida e o comer não é nova (veremos nos tópicos seguintes as teorias de mudança de comportamento entre as quais se consideram as atitudes alimentares). As atitudes alimentares, de maneira geral, são uma avaliação que cada indivíduo ou um grupo de pessoas realiza em relação aos aspectos favoráveis e desfavoráveis em relação ao alimento ou a comportamentos alimentares (AJZEN; FISHBEIN, 1977). Por exemplo, ao ver uma lasanha a sua frente, uma pessoa pode avaliá-la de maneira favorável (por exemplo, “está muito saborosa”) ou desfavorável (por exemplo, “vai me engordar”). As expectativas que a pessoa estabelece em relação ao alimento ou ao comportamento alimentar a partir de tais avaliações são as atitudes alimentares. De maneira geral, podemos dizer que essas expectativas, as atitudes alimentares, são um conjunto de pensamentos, crenças e sentimentos que se estabelecema partir de avaliações que acontecem o tempo todo em relação à alimentação; são, portanto, um conceito muito relevante para entender como as pessoas e os grupos comem, e assim direcionar de maneira mais assertiva ações em EAN. As atitudes alimentares, por sua vez, podem ser divididas em três componentes (ALVARENGA et al., 2019): • Componente afetivo: diz respeito às avaliações (favoráveis ou não) do indivíduo ou grupo, ligadas ao afeto (humor, emoções e sentimentos) em relação à comida e ao comer. • Componente cognitivo: diz respeito às avaliações (favoráveis ou não) do indivíduo ou grupo, ligadas às crenças e ao conhecimento em relação à comida e ao comer. • Componente volitivo: refere-se a uma predisposição a agir de acordo com as cognições (crenças e conhecimento) e afetos no que diz respeito à comida e ao comer. As atitudes alimentares constituem, então, um importante componente das escolhas alimentares que, por sua vez, contribuem também para a formação do hábito alimentar. 3.4 O hábito alimentar Os hábitos alimentares consideram os comportamentos alimentares, bem como todas as suas múltiplas causas, referindo-se também às atitudes alimentares anteriormente discutidas. De maneira objetiva, o hábito alimentar pode ser definido como um conjunto de costumes e formas de comer de 19 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL uma pessoa ou de uma comunidade e que ocorre, de maneira geral, inconscientemente. Isto porque se constitui por regras alimentares que vão se tornando mecânicas à medida que o indivíduo as repete (ALVARENGA; PHILIPPI, 2011). Portanto, já que o hábito alimentar se constitui desse conjunto de regras, é um tema relacionado ao cotidiano ligado às práticas alimentares. O hábito alimentar faz parte, então, do modo como as pessoas comem e agrega em si um significado ligado ao sustento dos indivíduos e a seus valores que por fim representaram os modos rotineiros de lidar com a comida (FREITAS et al., 2017). Observação Práticas alimentares: “Forma como os indivíduos se relacionam com a alimentação em diferentes esferas” (ALVARENGA et al., 2019). Mudar hábitos, portanto, não é algo trivial, já que tal mudança requer não apenas a troca de um alimento pelo outro, mas alterações na estrutura de valores que o indivíduo atribui à comida e ao ato de comer. Assim, transformar hábitos alimentares envolve a mudança de atitudes e as relações sociais que cercam a comida, dando novo sentido ao modo como o indivíduo ou os grupos vivenciam o comer. Vemos, então, que a mudança de hábitos depende de uma consideração da alimentação sob uma ótica biopsicossociocultural, ou seja, como foi discutido, que envolve a biologia, a cultura, a psicologia, a antropologia e a sociologia. No que diz respeito à comida, a EAN que considera tais aspectos permite ao educador nutricional maior diálogo com pessoas e grupos, o que no final das contas será a prerrogativa das pedagogias mais efetivas e de teorias de mudança do comportamento alimentar que veremos a seguir. Lembrete Hábito alimentar: conjunto de costumes e formas de comer que se tornam rotineiros a partir de regras alimentares que se estabelecem ao longo do tempo, podendo ocorrer inconscientemente. 4 CORRENTES PEDAGÓGICAS E TEORIAS DE MUDANÇA DE COMPORTAMENTO APLICADAS À EAN Como vimos no tópico anterior sobre comportamentos alimentares e como veremos ainda nas teorias para mudança de comportamento neste tópico, os comportamentos alimentares são algo complexo, não guiados apenas pela preocupação com nutrientes ou aspectos bioquímicos que constituem os alimentos, mas, além disso, por aspectos chamados biopsicossocioculturais, que envolvem não só os aspectos biológicos, mas também perspectivas da psicologia, antropologia, sociologia e até economia, todas como parte de entender as escolhas alimentares de maneira ampla (CONTENTO, 2008). Nesse sentido, restringir ações de educadores nutricionais e programas de EAN a enfoques estritamente biologicistas e prescritivos, sem considerar “como” colocar em prática comportamentos alimentares, é uma abordagem que passa a ser questionada (BEZERRA, 2018). Tais abordagens, que se restringem a práticas prescritivas, concentram-se,sobretudo, em uma visão 20 Unidade I específica de pedagogia denominada tradicional ou, ainda, na associação desta com o que se denomina pedagogia renovada ou, ainda, na pedagogia denominada tecnicista. Nesse sentido, alternativas pedagógicas emergem, sobretudo a partir dos anos 2000 (BEZERRA, 2018), mostrando-se mais promissoras para a geração de mudanças de comportamentos alimentares, seja para indivíduos, seja para grupos. Essas pedagogias, as chamadas pedagogias ativas (sobretudo a dialógica), consideram não só os aspectos biológicos do alimento e do comer que gerariam ações apenas prescritivas, mas também as dimensões culturais e históricas da comida e do comer. Muitas premissas dessas pedagogias encontram-se nas raízes das teorias de mudança de comportamento que ainda veremos. Além disso, as experiências de mais de 300 estudos demonstram que a EAN se mostra mais efetiva quando foca em tais teorias de mudança de comportamento (com premissas de pedagogias ativas) (CONTENTO, 2008). 4.1 Pedagogias e aplicações em EAN De modo geral, notamos que as abordagens que se pautam em teorias que buscam tanto a autonomia como a espontaneidade dos indivíduos ou grupos são aquelas que mais se mostram efetivas quando se refere à EAN. Por autonomia em EAN, podemos considerar o desenvolvimento da capacidade de questionamento e compreensão crítica da realidade, que coloca o indivíduo que faz escolhas alimentares em uma situação ativa de interpretação do mundo, daquilo que o cerca e impacta em sua forma de comer. Por espontaneidade, podemos considerar as mudanças alimentares que ocorrem por vontade da própria pessoa (e que dependerão também do aumento da autonomia). Lembrete Autonomia na alimentação: desenvolvimento da capacidade de questionamento e compreensão crítica acerca da comida e do comer. Espontaneidade na alimentação: mudanças alimentares ocorrem pela própria vontade da pessoa. Podemos dizer que autonomia e espontaneidade são pilares fundamentais das pedagogias ativas, o que inclui a pedagogia dialógica. As posturas e pedagogias ativas tal como a dialógica são fundamentais para as ações orientadas no documento oficial Marco de Referência de Educação Alimentar e para as Políticas Públicas e no Guia Alimentar para a População Brasileira. Lembrete Pedagogias ativas/dialógicas: estimulam a postura ativa daqueles que aprendem por meio delas. Pedagogias tradicionais: são pautadas exclusivamente na prescrição de alimentos e práticas, o que torna o indivíduo passivo no processo. 21 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL De modo a compreender melhor as pedagogias, sejam elas tradicionais, renovadas, ativas, dialógicas, ou outras que descreveremos a seguir, vamos inicialmente agrupá-las de acordo com suas tendências educativas. De antemão, podemos dividir as pedagogias dentro de duas tendências: as tendências liberais e as tendências progressistas. Entre as tendências liberais, encontram-se não só a pedagogia tradicional, mas também a pedagogia renovada e a tecnicista. Já as tendências progressistas compreendem não só a pedagogia dialógica, mas também a pedagogia crítico-social de conteúdos (LIBÂNEO, 1994; LUCKESI, 2011). As pedagogias com suas respectivas tendências encontram-se organizadas na figura a seguir. Pedagogia renovada Pedagogia tecnicista Pedagogia tradicional Tendências liberais Pedagogia dialógica Pedagogia crítica-social de conteúdos Tendências progressistas Figura 4 – Como se organizam os tipos de pedagogias em suas respectivas tendências pedagógicas Iniciando pelas correntes liberais, elas têm por pressupostos comuns: • considerar que os indivíduos têm funções específicas na sociedade que são determinadas por suas características pessoais; • valorizar oportunidades para todos,mas sem considerar as disparidades socioeconômicas existentes na sociedade; • ter caráter individualista e com valorização de conquistas dos indivíduos, mas de maneira descolada dos contextos sociais e disparidades existentes na sociedade. Entre essas correntes liberais, encontram-se: • Pedagogia tradicional: tem origem no período da colonização, especificamente a partir do século XVI com a atuação dos missionários católicos jesuítas em suas campanhas de evangelização pelo Brasil. São características da pedagogia tradicional: 22 Unidade I — O professor é o centro da dinâmica de educação que transmite as informações para o ouvinte oralmente. Nesse contexto, não há participação do estudante, que apenas escuta passivamente aquilo que está sendo comunicado; — Não há estímulo de senso crítico, questionamento e desenvolvimento de autonomia intelectual do estudante, que apenas responde automaticamente ao que apresenta o professor, valendo-se este de mecanismos tal como a memorização de conteúdos e sem valorizar as vivências do aluno (LIBÂNEO, 1994); — No campo da EAN, restringe-se o processo de aprendizado alimentar à reprodução passiva de prescrições dietéticas impostas pelo educador nutricional. Não há geração de autonomia no processo de escolha alimentar. • Pedagogia renovada: data do final do século XIX, mas ganha maior popularidade no início do século XX. Tem como princípio o otimismo pedagógico que vê na educação um caminho para reconstruir a sociedade. São características da pedagogia renovada, segundo Libâneo (1994): —― Ao aluno é atribuída a oportunidade de ter postura ativa; —― Foca-se no aprender pela prática ou ainda no aprender a aprender. Nesse sentido, são oferecidas aos alunos situações-problema tendo como base o próprio conteúdo escolar. Nessas situações, é requisitado ao aluno participação intelectual ativa para resolução das questões apresentadas. Os alunos, então, são estimulados a criar soluções por si mesmos, valendo-se de expressão verbal, escrita ou outras formas de expressão necessárias; —― Pedagogia historicamente relevante para o Brasil no contexto da EAN entre os anos 1940 e 1960, tendo valorizado o aprender a comer pela prática do comer. No entanto, não substituiu a pedagogia tradicional, tendo convivido com ela no ambiente escolar. • Pedagogia tecnicista: de ocorrência principalmente a partir da década de 1950, ganhou ênfase após o regime militar no Brasil e foi abordagem voltada a atender anseios políticos, econômicos e ideológicos do período. São características da pedagogia tecnicista, segundo Libâneo (1994): —― Baseada em preceitos da escola da psicologia do behaviorismo, pautava a educação do aluno em um princípio de estímulos (apresentados pelo professor) e reforçamentos (ou punições) dos comportamentos dos alunos em virtude de tais estímulos. Por exemplo, um professor poderia chamar um aluno a responder-lhe algo (estímulo). Uma vez correta a resposta do aluno (um comportamento verbal, segundo Skinner [1957]), o professor lhe reforça (ou pune, dependendo da resposta dada) a ação de responder; —― Considera a educação um meio para atender necessidades da sociedade principalmente para maximizar a produção econômica e manter as estruturas sociais já estabelecidas. Nesse sentido, o indivíduo é valorizado não pela sua capacidade crítica e de criação de soluções para desafios, 23 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL mas sim por seu potencial de sustentar a estrutura socioeconômica estabelecida por meio de sua força de trabalho; —― No contexto da alimentação, tem enfoque em uma EAN que não estimula autonomia e senso crítico em relação àquilo que se come, mas apenas a reprodução de regras preestabelecidas por métodos estritamente prescritivos. Uma outra vertente de pedagogias são as de tendência progressista, que serão apresentadas a seguir: a pedagogia crítico-social e a pedagogia dialógica. • Pedagogia crítico-social de conteúdos: de acordo com Libâneo (1994), a pedagogia crítico-social de conteúdos está voltada ao desenvolvimento de senso crítico do aluno à medida que é exposto a situações de sua realidade, para que então reflita e proponha soluções para tal. A grande diferença quando comparada à pedagogia renovada (de tendência liberal) é que os conteúdos discutidos no contexto da pedagogia crítico-social não se restringem apenas ao conteúdo escolar. Nesse sentido, além de melhorar a qualidade do aprendizado do aluno tornando-o ativo no processo (o que a pedagogia renovada também faz), a crítico-social leva o aluno a refletir, criticar e propor soluções para cenários colados a sua própria realidade. São características da pedagogia crítico-social: —― Priorizar a análise crítica de conteúdo sempre à luz da realidade em que vive o aluno de modo a estimular um aprendizado que valoriza suas experiências e não se restringe à visão de mundo do professor. A relação entre teoria, realidade e prática para a construção de conhecimento é muito valorizada; —― Aqui o professor é considerado uma “ponte” para o processo de desenvolvimento crítico do aluno, seja para interpretar sua realidade, seja para transformá-la. O professor, como “ponte” para tal processo, passa a ser um facilitador, termo que é muito adequado ao papel que deve ter o educador em alimentação e nutrição (conforme é descrito no tópico 4.3 deste livro-texto). Ao educador em alimentação e nutrição como facilitador é atribuída a competência de viabilização (leia-se facilitação) de mudanças de comportamentos alimentares e de forma duradoura; —― Valoriza o domínio dos conteúdos escolares, mas sempre estimulando o senso crítico e desenvolvimento do pensamento racional a respeito e, como dito antes, em alinhamento com a realidade social. Desse modo, viabiliza a existência de pessoas protagonistas e grandes agentes de transformação social. Na alimentação, a utilização dessa pedagogia favorece a existência de indivíduos aptos a realizarem escolhas alimentares dentro de suas respectivas realidades, com senso crítico e de modo autônomo. • Pedagogia dialógica: tem como fundamentos a ideia de que a educação é geradora de indivíduos conscientes e que provocam transformações na estrutura social em que vivem. Essa pedagogia, proposta pelo educador brasileiro Paulo Freire, recebe o nome também de pedagogia freireana ou, ainda, pedagogia de Paulo Freire. É recorrente nos cenários educativos não formais, tais como 24 Unidade I movimentos sociais, sindicatos, associações de moradores e de bairro. São características da pedagogia dialógica: —― Valorizar o diálogo como principal ferramenta de comunicação entre aquele que educa e aquele que aprende, de modo horizontal, com contribuição mútua (de educador e educando). —― Estabelecer como cenário para que ocorram os diálogos, os grupos de discussão e/ou assembleias com temas específicos, de relevância social e que permitam o questionamento da realidade. A frequência de uso de grupos de discussão e assembleias é uma diferença marcante entre esta pedagogia e a crítico-social de conteúdos. —― Fundamentar-se em discussões que se estabelecem à medida que os participantes trazem suas próprias vivências que passam, então, a nortear a discussão. —― Valoriza, a partir de tais ferramentas, o aprendizado que se estabelece de forma crítica e ajustado à realidade. Aqui o indivíduo se torna agente de sua própria aprendizagem deixando de ser passivo e restrito apenas à memorização mecânica de palavras, frases, ideias. Pelo contrário, o indivíduo é estimulado a adotar postura ativa e crítica da própria realidade. A pedagogia dialógica tem muitas aplicações no campo da EAN efetiva. As teorias e abordagens para facilitação do processo de mudança de comportamentos alimentares que serão apresentadas a seguir, bem como todos os demais tópicos deste livro-texto, que tratam desde a atuação do nutricionista nas políticas públicas até avaliação, desenvolvimento e planejamento de projetos de EAN, passam por princípiosdiscutidos pela pedagogia dialógica. Tais princípios, como serão apresentados a seguir, se mostram mais efetivos e podem ser aplicados para o estabelecimento de hábitos alimentares saudáveis, na esfera das escolas, do PNAE, dos serviços de saúde, dos movimentos sociais e outros. 4.2 Teorias de mudança de comportamento As teorias de mudança de comportamento alimentar têm suas bases na psicologia social (CONNER; ARMITAGE, 2002). Tais teorias têm por objetivo, além de predizer comportamentos alimentares por determinantes psicossociais específicos, oferecer conhecimento para que estratégias em EAN sejam implementadas (CONTENTO, 2008). Seu enfoque é na motivação para ação e no papel de crenças, sentimentos e atitudes apresentando o “porquê” das escolhas alimentares como subsídio para EAN (CONTENTO, 2011). É importante ressaltar que as teorias de mudança e predição de comportamentos, tais como modelo de crenças em saúde, teoria da proteção, teoria do comportamento planejado, teoria social cognitiva e modelo de estágio de mudanças, funcionam como ferramentas para predizer comportamentos e a partir disso identificar quais atitudes, pensamentos ou crenças são mais relevantes para o público-alvo em estratégias de alimentação e nutrição. Já a entrevista motivacional, o comer intuitivo e o aconselhamento nutricional são abordagens que funcionam como intervenções ou técnicas, que, em conjunto com a predição proposta pelas teorias anteriores, podem facilitar mudanças em comportamentos alimentares e implementação de novos hábitos. 25 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL Inicialmente, apresentaremos então essas teorias de predição de pensamentos, atitudes e crenças em relação aos comportamentos alimentares e, em seguida, as possíveis abordagens que funcionariam como intervenção para mudanças de comportamento alimentar. Na figura 5, as teorias são divididas entre aqueles que visam prever comportamentos alimentares (ou seja, as teorias comportamentais) e aqueles que visam intervir nesses comportamentos (ou seja, as técnicas comportamentais). Teorias comportamentais (que visam prever comportamentos alimentares) • Modelos de crenças em saúde; • Teoria da motivação para proteção; • Teoria do comportamento planejado; • Teoria social cognitiva; • Modelo transteórico da mudança. Técnicas comportamentais (que visam intervir em comportamentos alimentares) • Entrevista motivacional; • Comer intuitivo; • Comer com atenção plena (mindful eating); • Aconselhamento nutricional. Figura 5 – Teorias comportamentais e técnicas comportamentais Observação Os termos “teoria” e “modelo” podem ser utilizados de modo equivalente ao longo das discussões sobre as teorias de mudança de comportamentos alimentares (HERMAN et al., 2019). 4.2.1 Modelo das crenças em saúde O modelo das crenças em saúde, um dos mais antigos entre os modelos de predição de comportamentos da psicologia social, considera que comportamentos em saúde apresentam seis determinantes (CONNER; ARMITAGE, 2002): • percepção de suscetibilidade a doenças; • percepção de gravidade da doença; • percepção de benefícios no sentido de se tomar uma ação para melhora de saúde; • percepção de barreiras para se tomar uma ação para melhorar a saúde; • motivações para ação; • gatilhos para a ação. A seguir um exemplo de situação considerando cada um desses aspectos é apresentada. 26 Unidade I Um grupo de indivíduos que participam de um ambulatório de atenção à síndrome metabólica podem ser avaliados pelo educador nutricional quanto a: • percepção a respeito da possibilidade de terem no futuro doenças cardiovasculares (ou seja, determinante percepção de suscetibilidade à doença). • percepção de cada um do grupo em relação à gravidade das doenças cardiovasculares dentro do contexto de síndrome metabólica que vivenciam (ou seja, determinante percepção de gravidade da doença). • percepção de cada um do grupo quanto ao benefício de comerem frutas, legumes e verduras para a síndrome metabólica que apresentam (ou seja, determinante percepção de benefícios para saúde). • percepção de cada um do grupo quanto às barreiras e dificuldades para comer frutas, legumes e verduras em seus cotidianos (ou seja, determinante percepção de barreiras). • motivação externa ou do próprio indivíduo em relação a comer frutas, legumes e verduras (ou seja, determinante motivação para ação). • situações do ambiente, por exemplo, ações para promoção de saúde, propagandas, ou mesmo uma dor física percebida por cada indivíduo do grupo (ou seja, determinante gatilho para a ação). O modelo resumido está apresentado a seguir. Percepção de suscetibilidade à doença Motivação para ação Ação Percepção de gravidade da doença Percepção de benefícios para saúde Percepção de barreiras Gatilhos para ação Figura 6 – Modelo de crenças em saúde Estudos têm utilizado o modelo para prever e prevenir a bulimia nervosa (GRODNER, 1991), para avaliar comportamentos e crenças de saúde em um programa de avaliação de risco para doenças 27 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL cardiovasculares, para prever o comportamento de ingestão de gorduras e para prever a percepção da qualidade de dieta. Ainda, aplicações do modelo como alternativa de intervenção nutricional em comparação com uma intervenção baseada em programas de TV e até sua aplicação para verificar a adesão a dietas com nutrientes específicos por gestantes de baixa renda (STRYCHAR et al., 1993; SCHAFER et al., 1995; SAPP; JENSEN, 1998; CHEW; PALMER; KIM, 1998). Mais recentemente, o modelo também é aplicado para verificar a adesão a tratamentos específicos para alergia alimentar de adolescentes (JONES et al., 2015), e a percepção de barreiras ao se consumir frutas, verduras e legumes (DUNCAN; ANNUNZIATO, 2018). O modelo também recebe algumas críticas, entre elas, sobre o fato de o modelo considerar suficiente que a percepção de ameaça (formada por percepção de suscetibilidade à doença e de gravidade da doença) seria suficiente para gerar mudanças de comportamento alimentar. 4.2.2 Teoria da motivação para proteção De acordo com Conner e Armitage (2002), a teoria da motivação para proteção apresenta similaridades quando comparada ao modelo de crenças em saúde, já que apresenta determinantes comuns. Uma característica importante da teoria é considerar o medo das pessoas como agente de mudança para proteção contra doenças ou outros aspectos ligados à saúde. Dessa maneira, a teoria parte do pressuposto de que comportamentos de saúde seriam determinados pela motivação pessoal de se proteger. O que a teoria chama de “motivação para proteção” seria, portanto, uma motivação ligada à tendência do indivíduo de cuidar de si perante o que considera risco para sua saúde. Segundo a teoria, a motivação para proteção seria por sua vez determinada pela percepção de vulnerabilidade do indivíduo em relação a uma condição de saúde específica ou, ainda, a percepção de gravidade que o indivíduo nota a respeito dessa mesma condição. Em resumo, a teoria considera que os comportamentos em saúde serão favorecidos quando houver uma motivação para proteção que, por sua vez, será determinada por quanto a pessoa se julga vulnerável e em risco para dada condição em saúde (por exemplo, doença cardiovascular, diabetes, hipertensão e outras condições de saúde). Além desses aspectos, a teoria ainda considera as crenças do indivíduo em sua capacidade de ter certos comportamentos (denominada autoeficácia) como mais um dos determinantes para a motivação de proteção. Sintetizando toda essa ideia em um exemplo, poderíamos considerar o seguinte: um indivíduo terá mais comportamentos saudáveis à medida que apresentar mais motivação para proteção de sua saúde. Essa motivação para proteção, por sua vez, dependerá do quanto o indivíduo percebe sua vulnerabilidade e seu risco e, ainda, o quanto acredita ser capaz de ter bons comportamentos em saúde. Pode ser o caso de um indivíduo que passa a comer mais frutas,verduras e legumes (isto é, um comportamento de proteção para saúde), que foi levado, por sua vez, por uma motivação de proteger a saúde quando percebeu que estava vulnerável a doenças crônicas (isto é, percebeu sua vulnerabilidade) e notou grande risco (isto é, percepção de risco) quando apresentou sintomas de hipertensão. Esse comportamento de comer mais frutas, verduras e legumes, além de determinados por esses aspectos, foi também influenciado pela crença do indivíduo em sua capacidade de comer mais frutas, verduras e legumes (isto é, sua autoeficácia). 28 Unidade I A teoria da motivação para proteção está resumida na figura a seguir. Percepção de vulnerabilidade/gravidade Adaptação ou não adaptação do indivíduo à situação Motivação para proteção Proteção da saúde Capacidade de enfrentamento (p. ex., autoeficácia) Figura 7 – Teoria da motivação para proteção A teoria foi aplicada, no passado, no campo da alimentação, por exemplo, em estudo que procurava predizer as intenções e o comportamento em relação a uma dieta reduzida em gorduras, e outro que avaliava o risco de mulheres para osteoporose e motivação para que aumentassem o consumo de cálcio. A teoria também apresenta fragilidades, entre elas, a dificuldade de se estabelecer riscos específicos para comportamentos de saúde específicos. Com relação particularmente à alimentação, há pouca descrição de tais riscos nos estudos (PITUCH-ZDANOWSKA et al., 2019; LIM et al., 2019). Além disso, ressaltamos também que modelos que consideram apenas o medo, conhecidos também como modelos baseados apenas em conhecimento em nutrição (por exemplo: coma mais frutas, verduras e legumes para não ter doença cardiovascular), têm se mostrado menos eficientes para programas em alimentação e nutrição quando comparados a modelos que se valem dos múltiplos determinantes dos comportamentos alimentares (CONTENTO, 2008). Além disso, quando consideramos os tratamentos em grupo, muito comuns nas estratégias de EAN, vemos que o comprometimento estabelecido em grupo perante os outros para comportamentos alimentares e sem qualquer coerção mostra maior adesão dos indivíduos à implementação de novos hábitos alimentares (HALVERSON; PALLLAK, 1978). 4.2.3 Teoria do comportamento planejado e teorias associadas A teoria do comportamento planejado, versão mais recente de teorias dos pesquisadores Fishbein e Ajzen (FISHBEIN; AJZEN, 1975; AJZEN, 2011), se apresenta como modelo de predição e mudança de comportamentos muito aplicada em saúde e também para comportamentos alimentares. Considera-se que comportamentos são determinados pelas intenções (predisposições a ações), que por sua vez são determinadas por atitudes (ver atitudes nos tópicos anteriores deste capítulo), normas sociais e autoeficácia (conceito visto anteriormente e que será retomado na teoria social cognitiva). De acordo com a teoria, as atitudes são uma avaliação em relação a aspectos favoráveis ou desfavoráveis ao se colocar uma ação em prática. Por exemplo, antes de comer uma maçã, o indivíduo pode ter avaliado quais os aspectos favoráveis para comê-la (por exemplo, “fará bem para o meu intestino”) ou desfavoráveis (por exemplo, “acho o gosto ruim”). 29 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL Já as normas sociais podem ser compreendidas como crenças naquilo que as pessoas a nossa volta fazem, as quais podem se tornar guias para nossos comportamentos. Essas crenças dependem da importância que damos para os grupos de pessoas que nos cercam e com os quais nos identificamos e, ainda, do quanto queremos fazer parte daquele grupo. Por fim, conta também com a autoeficácia, como discutido antes, que representa a crença do indivíduo ou dos indivíduos de um grupo em suas capacidades para realizar algo e superar barreiras. Esta teoria foi amplamente utilizada para previsão e também para pautar intervenções que visaram à implementação de comportamentos em saúde (KOTHE; MULLAN, 2015). Entre eles, foi também amplamente utilizada para comportamentos alimentares, tais como consumo de frutas, verduras e legumes, consumo de dietas reduzidas em gorduras e outros comportamentos (ARMITAGE; CONNER, 1999; POVEY et al., 2000; LIEN; LYTLE; KOMRO, 2002; FILA; SMITH, 2006; EMANUEL et al., 2012; MCDERMOTT et al., 2015; GUILLAUMIE; GODIN, 2010; ALLOM; MULLAN, 2012; KOTHE; MULLAN, 2015). O resumo da teoria está apresentado na figura a seguir. Atitudes Normas sociais Intenções Comportamento Autoeficácia Figura 8 – Teoria do comportamento planejado 4.2.4 Teoria social cognitiva Proposta por Bandura (1986), a teoria social cognitiva se refere à confiança de uma pessoa na sua própria habilidade de realizar algo ou adotar um comportamento (conceito definido anteriormente como autoeficácia). No caso da alimentação, a ideia é que quanto mais confiante uma pessoa for de sua própria habilidade para comer de maneira saudável, mais provável isso será. Além da autoeficácia, a teoria social cognitiva também inclui as medidas de expectativas de resultado, ou seja, similares às “atitudes” descritas pela teoria do comportamento planejado, dizem respeito a uma avaliação dos aspectos favoráveis e desfavoráveis ao se colocar em prática um comportamento, no caso, alimentar. Por exemplo, comer mais vegetais ao longo da semana, segundo a teoria, dependerá das expectativas que o indivíduo (ou grupos) tem em relação aos vegetais, sendo essas expectativas favoráveis (por exemplo: “fazem bem para minha saúde” ou “são saborosos”) ou desfavoráveis (por exemplo: “são amargos”, “não me saciam”). Além disso, nesse exemplo, comer mais vegetais também dependerá do quanto 30 Unidade I o indivíduo ou o grupo de pessoas assistidas pelo educador nutricional acreditam que são capazes de implementar esse novo comportamento, ou seja, comer mais vegetais. Essa teoria tem aplicações para diversos comportamentos em saúde, porém é raramente utilizada como teoria para mudança de comportamentos alimentares, sendo o seu conceito principal (a autoeficácia) utilizado no contexto da mudança de comportamento alimentar de modo isolado. Nesse sentido, a autoeficácia tem sido base para intervenções, principalmente aquelas ligadas ao controle de peso (CONNER; ARMITAGE, 2002). A teoria social cognitiva considera ainda em sua concepção os modelos que servem como exemplos para o aprendizado dos indivíduos. Segundo a teoria e trazendo para o contexto da alimentação, aquilo que comemos não é apenas determinado pelo quanto acreditamos que podemos colocar em prática um comportamento alimentar (autoeficácia), nossas expectativas (favoráveis ou não em relação ao alimento), mas também ao contexto e grupo no qual nos “espelhamos” para estabelecermos nossos comportamentos alimentares (BANDURA; AZZI; POLYDORO, 2008). Essa teoria tem grande importância para a EAN, já que para que sejam implementados novos comportamentos é necessário que o educador nutricional fortaleça a convicção de pessoas na capacidade que elas têm para mudar comportamentos alimentares. 4.2.5 Modelo transteórico da mudança (ou modelo dos estágios de mudança) O modelo transteórico, além dos estágios de mudança, torna possível identificar outros três pilares: equilíbrio de decisões, autoeficácia e processos de mudança. Os estágios de mudanças, que acabam sendo o maior foco, usam uma dimensão temporal, já que mudança implica fenômenos que ocorrem ao longo do tempo, e são divididos em cinco: pré-contemplação, contemplação, preparação, ação e manutenção (PROCHASKA; VELICER, 1997). A pré-contemplação é o estágio no qual os indivíduos não têm intenção de tomar uma ação num futuro próximo, talvez por falta de percepção das consequências do comportamento atual, ou por tentativas passadas que não ocorreram como esperado e os tornaram mais resistentes ou desmotivados para ação. A contemplação é o estágio no qual os indivíduos já têm uma intenção de agir (por exemplo, nos próximos seis meses), pois, apesar dos contras, eles estão mais conscientesdos prós para a mudança, embora esse balanço “prós versus contras” faça muitos ficarem estagnados nessa fase. Na preparação, a intenção de agir para mudança já é num futuro mais imediato, por exemplo, no mês seguinte, e tipicamente os indivíduos aqui já têm algum possível plano de ação. Pessoas nesse estágio seriam as “indicadas” para iniciar programas destinados à mudança de comportamento (PROCHASKA; VELICER, 1997). A fase de ação corresponde àquela em que os indivíduos já tiveram ações de mudanças nos últimos seis meses e que são visíveis. No entanto, nem todas as modificações no comportamento contam como ação nesse modelo, uma vez que critérios específicos para cada comportamento precisam ser atingidos (por exemplo, reduzir o número de cigarros fumados versus a ação consenso que é parar de fumar). Já na fase de manutenção, as pessoas trabalham para evitar recaídas e são mais confiantes de continuar na mudança. Os novos comportamentos aqui são mantidos por pelo menos seis meses. Apesar dessa categorização, na prática os diferentes estágios podem seguir muito rapidamente em uma direção ou outra e até coexistir. 31 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL Diversos estudos são encontrados utilizando o modelo transteórico na área de alimentação (HORWATH, 1999; SPENCER et al., 2007). No Brasil há uma revisão explicativa do modelo (TORAL; SLATER, 2007) e trabalhos originais mostrando até efeitos positivos do modelo como estratégia para melhora de parâmetros de peso, IMC, percepção corporal e redução no consumo calórico e de alimentos ricos em gordura (MENEZES et al., 2015). Mas, em geral, os estudos se concentram na identificação dos estágios de mudanças, avaliando com base nisso associações com consumo alimentar (REIS et al., 2014), ou desejo de engajamento em comportamentos de mudança (RIBEIRO; ALVES, 2014). Os estágios de mudança podem ser resumidos na figura 9. Pré-contemplação Contemplação Preparação Ação Recaída Manutenção Figura 9 4.2.6 Entrevista motivacional A entrevista motivacional, assim como o aconselhamento em saúde, que será descrito a seguir, é uma abordagem que se apresenta para estimular as motivações intrínsecas do indivíduo ou dos grupos que estão sendo assistidos pelo educador nutricional de modo a favorecer o diálogo entre paciente e nutricionista e, ao final, favorecer a adesão a novos comportamentos alimentares. É uma abordagem que compreende uma série de habilidades sempre destinadas à melhoria de motivações, no caso voltadas para comportamentos alimentares. Quando se diz que a entrevista motivacional tem como enfoque a melhoria das motivações intrínsecas, entende-se por motivações intrínsecas aquelas ligadas à satisfação e prazer inerentes ao próprio indivíduo, atrelados a seus valores particulares e que não dependem de influências externas. Nesse sentido, já que a definição de motivação é importante para o entendimento da técnica da entrevista motivacional, as definições de motivação e suas origens serão descritas em detalhes a seguir. A motivação pode ser entendida como um impulso para agir de determinada forma, o que justificaria, por sua vez, o comportamento. Essa motivação seria, então, essencial para a vida, tanto para compreender os comportamentos humanos como para compreender por que as pessoas agem de uma forma ou de outra (MASLOW, 1943; MCCLELLAND; BURNHAM, 2003). 32 Unidade I Segundo a teoria da autodeterminação (RYAN; DECI, 2000; NG et al., 2012), a motivação pode ter origem intrínseca (também chamada de autônoma) ou extrínseca (também chamada de controlada). A motivação intrínseca envolve uma situação de prazer e satisfação que pode ser experimentada pelo indivíduo à medida que ele aprende, explora ou compreende algo novo. Também pode acontecer uma motivação intrínseca quando o indivíduo realiza uma tarefa ou desafio em que se supera. Pode estar também ligada a sensações prazerosas associadas a alguma mudança realizada, por exemplo, quando se come de maneira saudável para se sentir bem com o corpo e a vida, e não para atender a um padrão de corpo imposto pela sociedade. Em resumo, a motivação intrínseca está intimamente alinhada com os valores do indivíduo. Já as motivações extrínsecas estariam ligadas ao ambiente no qual a pessoa vive e tudo aquilo que acontece ao seu redor. Exemplos dessas motivações seriam a recompensa com prêmios ou a coerção para que comportamentos sejam implementados. Quando o indivíduo acata para si as vontades dos outros como guias de seu comportamento, desse modo evita desaprovação ou mesmo culpa ao se adequar àquelas pessoas. Alguém pode querer mudar a alimentação porque a família está exigindo, ou porque o médico solicitou. Pode, ainda, querer mudar a alimentação por observar corpos e padrões de beleza específicos em revistas, mídias sociais e televisão. Todas essas são motivações extrínsecas, que, em geral, levam a um baixo engajamento a comportamentos e, quando ocorrem, são pouco duradouros. A figura a seguir apresenta resumidamente motivações intrínsecas e extrínsecas e suas respectivas origens. – Move-se por recompensas externas; – O receio da punição é o motivador; – Observa e repete as ações dos outros. – Pouco interesse pela situação ou ação; – Pessoa acredita que não é competente o suficiente; – Pouca intenção de agir. – Interesse completo e genuíno pela realização da atividade; – Satisfação inerente pela atividade; – Motiva-se de maneira autônoma, com alinhamento da atividade com seus valores. Caminhar de motivações extrínsecas às motivações intrínsecas – Traz para si o interesse dos outros; – Este interesse passa a fazer parte de si, mas de modo não autêntico; – Age a partir desta situação. – Fase de transição para motivações intrínsecas; – Passa a valorizar de modo mais consciente a atividade; – Reconhece-se quando atinge as próprias metas. – Maior alinhamento das metas com aquilo que lhe é importante de fato; – Praticamente uma motivação intrínseca. Regulação externa Regulação introjetada Regulação identificada Regulação integrada Motivação extrínseca Falta de motivação Motivação intrínseca Figura 10 – Motivação intrínseca e extrínseca segundo tipo de regulação 33 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL A técnica da entrevista motivacional permite ao educador nutricional estimular motivações intrínsecas no sentido de melhoria de comportamentos alimentares. Essa técnica apresenta habilidades e estratégias comuns ao aconselhamento nutricional (ROLLNICK; MILLER; BUTLER, 2009) como descrito a seguir. • No início da conversa com grupos ou individualmente: receber o paciente ou grupo adequadamente, mostrando-se disponível a escutar, com respeito e empatia, e a colaborar. É importante nesse momento que o educador nutricional utilize perguntas abertas (ver tópico 4.3) para compreender de maneira ampla os porquês da procura pelo acompanhamento. Vale ressaltar que as perguntas abertas permitirão ao grupo assistido ou ao indivíduo a apresentação de todo o seu histórico de maneira ativa e, além disso, estimularão maior envolvimento e adesão na relação com o educador nutricional. • Negociação da agenda: é importante que o educador nutricional apresente de maneira clara quais são os planejamentos e as metas não só para o momento presente de encontro com o grupo ou indivíduo, mas também para os encontros futuros. Nesse caso, é importante que, na prática, haja um agendamento para aquilo que será trabalhado em cada encontro, especificamente, com o estabelecimento de metas a serem trabalhadas a cada momento. • Foco em construir a motivação e fortalecê-la: uma das habilidades a qual o educador nutricional deve fazer questão de ter atenção é em relação ao reflexo de querer consertar possíveis inadequações ou falas do paciente que podem estar incorretas ou distantes daquilo que seria ideal. Tais reflexos mostram-se inadequados para estimular a motivação nesse contexto. São mais efetivos nessecaso a exploração tanto da ambivalência como predisposição à mudança de indivíduos ou grupos, como veremos a seguir. • Explorando ambivalências: a ambivalência consiste em uma contradição simultânea, no caso da alimentação, em querer comer algo, mas ao mesmo tempo ter medo de fazê-lo. É muito comum, por exemplo, querermos um delicioso bolo de chocolate, mas ao mesmo tempo termos medo de que esse bolo irá nos engordar. Estamos aqui presenciando um exemplo de ambivalência em que, ao mesmo tempo que existe o desejo pelo bolo, há o medo de comê-lo. Quando essa ambivalência é apresentada por pacientes ou grupos é preciso saber explorá-la adequadamente, mas sem o reflexo de consertar as coisas e dizer para o paciente ou grupo que isto ou aquilo é certo ou errado. É nesse momento que perguntas abertas podem ser realizadas para que ao longo do diálogo as motivações intrínsecas do paciente apareçam e desse modo seja possível o estabelecimento de metas em direção às mudanças. A exploração adequada da ambivalência sempre será iniciada pelo educador nutricional, que, treinado em entrevista motivacional, vai interagir com uma reflexão que terá por objetivo levar o paciente ou grupo a desenvolver alguns pontos que ele disse e que o educador nutricional considera importante aprofundar. A partir dessas reflexões podem surgir possíveis soluções ou barreiras específicas que podem ser superadas ou trabalhadas em conversas subsequentes e assim permitir o estabelecimento de metas assertivas. Exemplos de ambivalências que podem surgir e a exploração delas pelo educador nutricional são apresentadas no quadro 1. 34 Unidade I • Explorando a prontidão para mudar: uma outra estratégia que pode ser utilizada pelo educador nutricional é a de explorar se o cliente ou grupo está disposto a mudar (para saber mais sobre estágios de mudança consultar tópico 4.2.5). Para isso, o educador nutricional pode explorar vantagens ou desvantagens, benefícios ou prejuízos para dada situação ou comportamento trazido pelo paciente ou grupo no encontro. O objetivo dessa estratégia também é aprofundar reflexões e levar os indivíduos ou grupos a identificar e a trazer à consciência aspectos que podem levá-lo a considerar uma situação de mudança. Para exemplos de exploração da prontidão à mudança, verificar no quadro 1. • Compartilhando informações, planejando os próximos passos e encerrando o encontro: entre as estratégias do educador nutricional que utiliza entrevista motivacional encontra-se também a maneira como se compartilham informações. Nesse sentido, é muito importante que o educador sempre compartilhe informações de maneira respeitosa, sem depreciar o assistido, e pedindo permissão para tal. Além disso, é necessário também, como antecipado anteriormente, planejar com clareza os próximos passos dos encontros seguintes. Para isso, é importante estabelecer metas realistas para os próximos encontros e que sejam definidas de acordo com a realidade do paciente ou do grupo e realizadas em conjunto com eles. A finalização da conversa também é fundamental. Para que isso ocorra de maneira adequada é importante que se encerre sempre com o resumo daquilo que foi discutido ao longo de encontro. A seguir é importante apresentar de maneira clara as metas para o próximo encontro e por fim fazer um fechamento com um discurso que valorize o paciente ou grupo e o estimule a se manter engajado nos encontros. Quadro 1 – Exemplos de exploração de ambivalência e prontidão à mudança pelo educador nutricional em situações com seu paciente ou grupo assistido Discursos de indivíduos ou grupos com oportunidade para exploração da ambivalência Como o educador nutricional pode explorar esses discursos “Eu já tentei comer saladas, mas elas não têm gosto” Você já teve algumas experiências bem ruins com as verduras e acredito que já tenham recomendado muitas vezes que você as comesse. Você se importaria de compartilhar um pouco como foi isso? “Eu sei que preciso reduzir o sal, mas é tão gostoso uma comida bem temperada” O sal parece ser um ingrediente muito importante para você sentir o gosto da comida e é fundamental para você que ela seja bem temperada, porém você se depara com várias orientações para reduzir o sal da comida. Como foram suas experiências com relação a isso? “Preciso comer menos, mas é tão gostoso comer o tempo todo” A comida parece um problema para você, pois você acredita que come muito. O que faz você pensar que come muito? 35 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL Discursos de indivíduos ou grupos com oportunidade para exploração da prontidão à mudança Como o educador nutricional pode explorar esses discursos “Tomo refrigerante todos os dias, não tem jeito” Você toma refrigerantes todos os dias. O que você acha bom e o que acha ruim desse hábito? “Tenho o costume de usar muito tempero pronto rico em sal” O que faz você gostar de usar essa quantidade de temperos ricos em sal? Você experimentou temperar a comida com outros temperos? Você sabe as consequências do excesso de sódio, mas quanto de sal seria demais? Você sabe me dizer? Imagine que no futuro você tenha conseguido diminuir a quantidade de sal que consome, como você teria feito? “Não consigo comer frutas” Imagine que você está no futuro e que está conseguindo comer frutas. Qual teria sido seu método ou estratégia para comer mais frutas se essa fosse a sua decisão? 4.2.7 Comer intuitivo Comer intuitivo é uma abordagem desenvolvida pelas nutricionistas Evelyn Tribole e Elyse Resch (2012). A abordagem tem a premissa de ensinar os indivíduos a terem uma relação saudável com a comida e a se tornarem autônomos e especialistas dos seus próprios corpos. Com a ideia de ensinar as pessoas a confiar nas próprias habilidades e distinguir entre as sensações físicas e emocionais, a teoria do comer intuitivo visa estimular o desenvolvimento de uma consciência corporal e assim atender às necessidades no que concerne ao comer. A abordagem tem ganhado grande evidência no campo científico já que há um grande número de publicações atualmente, concentrando-se principalmente nos últimos anos, e que somam atualmente um total de 156 publicações (dados obtidos por pesquisa utilizando o termo “intuitive eating” na base de dados em saúde PubMed, no ano de 2020). A teoria parte do pressuposto de que se deve existir uma sincronia entre sistemas internos, sendo estes pensamentos, emoções e necessidades fisiológicas da pessoa, com sistemas externos, isto é, família, comunidade e cultura. Para promover essa sincronia, a abordagem destaca que é preciso atribuir importância ao nosso sistema interno, que envolve: os pensamentos (nesse sentido, devemos rejeitar a mentalidade de dieta e fazer as pazes com a comida), nossos sentimentos (honrando nossas emoções sem usar a comida para isso) e o componente fisiológico (ao honrar a nossa fome, respeitar a nossa saciedade, descobrir a satisfação, exercitar-se e honrar a saúde por meio de uma nutrição que seja gentil). A abordagem se alicerça em três grandes pilares: • permissão incondicional para comer; • comer para atender às necessidades fisiológicas e não emocionais; • apoiar-se nos sinais internos de fome e saciedade para determinar não só o que se come, mas quanto e quando se come. Esses três pilares, por sua vez, são considerados nos dez princípios do comer intuitivo que serão apresentados no quadro 2. 36 Unidade I Quadro 2 – Os dez princípios do comer intuitivo Princípio O que quer dizer? 1. Rejeitar a mentalidade de dieta Descartar informações que estimulam dietas restritivas com enfoque exclusivo em restrição de calorias e perda de peso de forma rápida. Dietas restritivas e da moda têm se mostrado capazes de desregular as funções de fome, apetite e saciedade, causando ganho e reganho de peso e aumentando as chances para exageros e compulsões alimentares. 2. Honrar a fome Quer dizer que para honrar a fome é preciso ter horários padronizados e notaros sinais dessa fome tais como perda de energia, desatenção, dor de cabeça e “roncar” da barriga. 3. Fazer as pazes com a comida Envolve a permissão incondicional para comer, que não diz respeito a comer o que quiser, em qualquer momento e sem nenhum critério para escolha, como alguns podem pensar. Essa permissão incondicional, por outro lado, envolve a permissão por escolhas alimentares daquilo que a pessoa ou grupo realmente gosta de comer. Além disso, essa ideia sempre estimula reflexões como “eu realmente quero esse macarrão agora?”; “eu vou gostar de uma torta de morango ou uma salada de frutas nesse momento?”; “eu me sinto seguro em comer essa comida sem culpa?”. 4. Desafiar o “policial” da comida Diz respeito a desafiar os pensamentos de julgamento a respeito do que se deve ou não fazer, presentes na mentalidade de dieta. Ou seja, os pensamentos de “policial de plantão” coagindo você e os outros acerca daquilo que se deve ou não comer. Exemplo desse pensamento: “Você não deveria comer este bolo, é muito calórico e você está de dieta”. 5. Sentir a saciedade Aprender a escutar os sinais internos do corpo de que a fome já foi atendida e compreender que se está saciado. 6. Descobrir a satisfação em comer Diz respeito a sentir prazer ao realizar aquilo que se espera, neste caso, sentir prazer em comer aquilo que se esperava. Assim, é preciso encontrar a satisfação na comida e não a usar apenas como um meio para “matar” a fome ou se nutrir. 7. Lidar com as emoções sem usar a comida Há uma grande relação entre comida, emoções e comportamentos. A comida pode ser usada para diminuir sensações negativas e prolongar sensações boas. Então, esse princípio visa melhorar a consciência com relação a esses momentos de modo a criar alternativas à busca de comida por essas razões. 8. Respeitar seu corpo A insatisfação corporal atualmente é um fenômeno muito comum e pode causar muitos problemas para as pessoas. Respeitar o corpo diz respeito a aceitar a genética e aprender a abandonar a ideia de que o corpo é maleável (altura, tamanhos de pés, não são coisas modificáveis). Estimula apreciar as partes do corpo de que se gosta e evitar evidenciar aquelas de que não gosta. 9. Exercitar-se sentindo a diferença Ver o exercício como uma fonte de bem-estar, e não apenas uma maneira de queimar calorias. 10. Honrar a saúde praticando uma nutrição gentil Escolhas devem ser feitas de modo a honrar a saúde e o paladar, fazendo que pessoas se sintam bem. A partir da avaliação das 156 publicações mencionadas anteriormente, é possível verificar que o comer intuitivo tem apresentado uma série de benefícios para comportamentos ligados à saúde e alimentação (VAN DYKE; DRINKWATER 2014). Nesse sentido, existem evidências de redução de fatores de risco para transtornos e compulsões alimentares (DENNY et al., 2013). Além disso, o comer intuitivo tem se mostrado útil para minimizar a internalização de ideais de magreza e padrões específicos de imagem corporal que podem levar a distúrbios de alimentação. Cabe ainda ressaltar que com utilização do comer intuitivo como ferramenta há um aumento no prazer em comer, menor prática de dieta e redução de ansiedade em relação à comida, o que gera benefícios para a saúde (SMITH; HAWKS, 2006). Nota-se, ainda, menor IMC e menores níveis de triglicérides e risco cardiovascular naqueles que se valem da abordagem do comer intuitivo (DOCKENDORFF et al., 2012; HAWKS et al., 2005; HEILESON; COLE, 2011). 37 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL Considerando o comer intuitivo para a EAN, nota-se que esta pode ser uma abordagem bastante útil na medida em que não foca apenas na dieta e prescrição (visões que seriam muito ligadas a uma pedagogia tradicional, conforme discutimos no início deste capítulo), mas também na maneira como indivíduos podem ter seus comportamentos alimentares facilitados ao longo de um processo de mudança de hábitos, podendo somar-se não só a atenção aos indivíduos como também aos programas de EAN para grupos. Vale ressaltar que o comer intuitivo não se constitui em uma abordagem voltada para o emagrecimento. Devido à efetividade em facilitar a implementação de novos hábitos, o comer intuitivo eventualmente pode levar a emagrecimento e/ou controle do peso. 4.2.8 Comer com atenção plena (mindful eating) Antes de definirmos o comer com atenção plena, é importante definirmos o que é atenção plena (mindfulness). A atenção plena diz respeito à nossa capacidade intencional de trazer atenção ao momento presente sem que haja julgamentos ou qualquer tipo de crítica e com uma atitude de abertura e curiosidade. Segundo autores como Bauer-Wu (2011), essa capacidade de atenção plena é inata, porém vamos a perdendo ao longo de nossas experiências de vida, com nossas atribulações, aumento de expectativas, críticas e julgamentos, preocupações e planos que ocorrem à medida que a vida adulta acontece (KABAT-ZINN, 1990). Essa falta de atenção também se aplica, em última análise, ao comer, que passa a ser influenciado por regras determinadas por mídias, pela atenção a padrões de beleza específicos e recomendações, muitas vezes equivocadas, tanto de profissionais de saúde como a partir de crenças estabelecidas por aqueles que convivem conosco. Nesse sentido, como qualquer outro de nossos comportamentos no mundo moderno, passamos a comer de forma distraída, assistindo à televisão e sem perceber, por exemplo, o que estamos saboreando e comendo. Essa situação nos torna insatisfeitos e é comum permanecermos com fome, o que nos levará a buscar mais alimentos para nos satisfazer em um curto espaço de tempo. Considerando esse cenário de desatenção, a atenção plena torna-se uma habilidade a ser treinada, sendo colocada em prática por técnicas meditativas com raízes no budismo, porém utilizadas de maneira laica, sem fins religiosos. Há uma série de aplicações da atenção plena via técnicas meditativas para diminuição de estresse e ansiedade e, além disso, manejo de doenças crônicas. Essa prática popularizada por Jon Kabat-Zinn (1990), um dos pioneiros para popularização da atenção plena, tem se mostrado bastante efetiva para melhoria de sintomas físicos, mentais e emocionais (BAER, 2013; GROSSMAN et al., 2004). Especificamente em relação ao comer, que pode sofrer interferências devido à desatenção, ansiedade e estresse próprios do mundo moderno, verifica-se também a aplicação das técnicas de atenção plena que, nesse caso, recebem o nome de “comer com atenção plena” (mindful eating). Entre outras aplicações, o comer com atenção plena tem sido utilizado para tratamento de obesidade, não se focando primariamente no controle de peso, mas tendo o controle deste como algo secundário. Há diversos outros benefícios que ocorrem em função da aplicação dessas técnicas (GODSEY, 2013). Existe, ainda, a aplicação do comer com atenção plena nos casos de transtornos alimentares (WANDEN-BERGHE; SANZ-VALERO; WANDEN-BERGHE, 2011; KATTERMAN et al., 2014; COURBASSON; NISHIKAWA; SHAPIRA, 2011; KRISTELLER; HALLETT, 1999; SMITH et al., 2006; BAER, 2013). 38 Unidade I O comer com atenção plena é caracterizado como um comer com presença, de maneira que não ocorram julgamentos ou críticas em relação a sensações físicas, pensamentos, emoções, que ocorrem durante todo o cenário da alimentação. Bays (2009) assim define o comer com atenção plena: Experiência que engaja todas as partes do nosso ser, corpo, mente e coração, na escolha e no preparo da comida, bem como no ato de comê-la em si. O comer com atenção plena nos imerge nas cores, texturas, aromas, sabores e até mesmo sons do comer e beber. Permite que sejamos curiosos e até lúdicos enquanto investigamos nossas respostas à comida e nossos sinais internos de fome e saciedade. A partir do desenvolvimento de habilidades de comer com atenção plena, indivíduos e grupos passam a experimentar autonomia quanto àquilo que comem e da forma como comem. Portanto, considerando o que énecessário para mudanças de comportamentos alimentares no longo prazo, a EAN pode se utilizar da atenção plena no comer, que se apresenta como mais uma ferramenta que permite melhoria de hábitos alimentares de maneira autônoma e duradoura. Desse modo, considerando que nossa cultura e sociedade impõem um ritmo de alimentação extremamente acelerado, repleto de distrações, sem tempo para que se coma à mesa com calma e atenção, e classificando os alimentos sempre como “bons” e “ruins”, “engordativos” e “proibidos”, verifica-se que o desenvolvimento da atenção plena, além de melhorar a relação de indivíduos e grupos com a comida, permite-lhes se libertar das dicotomias e crenças inadequadas e geradoras de estresse que ocorrem na classificação dos alimentos como “proibidos” e “permitidos”. Entre as características e estratégias fundamentais do comer com atenção plena e que podem ser de grande valia para o manejo da EAN de grupos e indivíduos e para elaboração de programa de EAN, destacam-se as representadas na figura a seguir: Observar Note seu corpo (roncar do estômago, baixa energia, estresse, satisfação, estar cheio, estar vazio) Estar presente Esteja totalmente presente (desligue a tv, celular, sente. Enquanto comer, apenas coma) Saborear Note o aroma, a textura e o sabor (é crocante, doce, salgado, apimentado?) Não julgar Fale com atenção plena e de maneira compassiva. Note quando normas rígidas e culpa surgirem em sua mente Consciência Saborear x mastigar sem atenção plena Figura 11 – Características e estratégias do comer com atenção plena 39 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL 4.3 Aconselhamento versus prescrição nutricional Uma EAN adequada exige não só a consideração dos aspectos ligados aos nutrientes e ao alimento (aspectos estritamente biológicos), mas também à comida e ao comer como um todo, de modo que esses fatores atendam às reais necessidades, tanto de indivíduos como de populações. Nesse sentido, é fundamental respeitar aspectos como cultura, tradições familiares, experiências, disponibilidade e custo dos alimentos, além de funções fisiológicas, como mastigação e absorção de nutrientes, a maneira como a pessoa come e com quem come. Portanto, esses aspectos englobam uma ampla gama de fatores e se estendem não só por áreas biológicas, mas também por psicologia, antropologia, ciências sociais, e, em alguns casos, também economia. É importante notarmos que nesse contexto cabe também uma abordagem específica daquele que será o educador nutricional, quem, por sua vez, pode ser considerado um facilitador de mudanças de comportamentos alimentares, seja na atuação com indivíduos ou na atuação em grupos, por exemplo no que diz respeito às políticas públicas em alimentação e nutrição (conferir unidade II sobre políticas em alimentação e nutrição). Nesse processo de facilitação de mudança de comportamento alimentar, o educador não se aterá apenas à prescrição de dietas fechadas com valores de macronutrientes e micronutrientes calculados, já que lidar exclusivamente com tais aspectos não garante adesão de indivíduos a tratamentos e programas de políticas públicas em alimentação e nutrição, como discutido anteriormente. É nesse sentido que o aconselhamento nutricional se apresenta como uma ferramenta que leva em conta não só aspectos ligados à prescrição dietética (a “o que” se come), mas também ao “como” se come. O aconselhamento nutricional é um conjunto de ferramentas que envolvem a consideração dos pensamentos, vivências, percepções e atitudes em relação ao comer daquele ou daqueles que estão sendo aconselhados (para relembrar atitudes, ver capítulo 1 desta unidade). Esse conjunto de ferramentas visa à resolução das dificuldades alimentares e melhora de habilidades e estratégias individualizadas que estimulam então a potencialização de recursos do indivíduo para lidar com a implementação de novos hábitos alimentares (MARTINS, 2014). De acordo com Motta (2009), o aconselhamento nutricional é “um encontro entre duas pessoas para examinar com atenção, olhar com respeito, e deliberar com prudência e justeza sobre a alimentação de uma delas”. Vale ressaltar que o aconselhamento nutricional não visa desconsiderar a prescrição dietética (assim como não é o caso de qualquer outra abordagem apresentada até aqui). Por outro lado, busca ser mais uma ferramenta para se associar às abordagens tradicionais em EAN. Nesse sentido, tratamentos específicos para, por exemplo, indivíduos em condição de insuficiência renal, dislipidemias, erros inatos de metabolismo ou qualquer outra condição específica sob atenção do educador nutricional podem se beneficiar dos princípios do aconselhamento nutricional, já que estes permitirão prescrições menos impositivas focando não só nas necessidades nutricionais específicas desses grupos, mas também na forma, nos pensamentos e nas atitudes alimentares inerentes a tais condições. 40 Unidade I Observação O aconselhamento nutricional tem por objetivo um trabalho ampliado e compartilhado sobre o processo de saúde-doença em oposição a intervenções pontuais e isoladas que dizem respeito apenas à prescrição de alimentos e nutrientes. Desse modo, busca promover a autonomia e o protagonismo dos aconselhados. Entre as características do aconselhamento nutricional, podemos destacar: • O encorajamento da escuta do educador nutricional em relação àquilo que é dito por pacientes e grupos que estão sendo assistidos. • O entendimento do contexto da pessoa além das barreiras e dificuldades apresentadas por ela. • Compartilhamento e discussão das informações trazidas pelo paciente ou pelos grupos com todos os membros da equipe. • Condutas terapêuticas, metas, divisão de responsabilidades e planejamentos estabelecidos em conjunto com a equipe. • Estratégias definidas com, e não apenas para indivíduos e grupos. Há então um trabalho horizontal, e não vertical. Várias são as teorias que embasam o aconselhamento nutricional, e, entre elas, encontram-se a entrevista motivacional, que lida com atitudes, e outras teorias que envolvem a psicologia social na alimentação, já discutidas neste tópico. Vimos até aqui que todas as teorias comportamentais apresentadas (que visam prever comportamentos alimentares), como as técnicas comportamentais (que visam intervir e facilitar comportamentos alimentares), estabelecem paralelos importantes com as tendências pedagógicas progressistas, seja a dialógica ou a crítico-social de conteúdos. Considerando ambas, vemos que tornar o indivíduo autônomo, a partir da melhora de seu senso crítico, questionador e gerador de suas próprias mudanças no campo de sua alimentação, é um aspecto de algum modo sempre debatido pelas teorias e técnicas apresentadas, seja pela descrição de determinantes diversos de comportamentos alimentares (no caso das teorias comportamentais), seja pela aplicação de técnicas para mudá-los (no caso das técnicas comportamentais). 4.3.1 O educador nutricional: um facilitador de mudanças de comportamento alimentar Entre as habilidades que envolvem o educador nutricional como facilitador do processo de mudança, encontram-se a capacidade de escuta do paciente, a empatia, a compaixão, a compreensão 41 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL e a flexibilidade nos tratamentos nutricionais, além de otimismo, carisma e bom humor. Tais características podem ser trabalhadas ao longo do tempo e não precisam todas estarem totalmente presentes inicialmente na atuação do educador nutricional, que pode aprender durante o processo. No entanto, é importante que esse profissional esteja atento a trabalhar para aprimorar tais características e minimizar outras que possam interferir em seu trabalho. Entre as características a serem melhoradas, encontram-se: necessidade extrema de controle, regras morais inflexíveis, pessimismo, baixa autoestima, narcisismo, mau humor. A melhora das habilidades do educador nutricional facilitará para o aconselhadonão só saber “o que” deve comer, mas “como” deve comer, conforme já temos discutido ao longo do texto. O quadro 3 apresenta um resumo das diferenças entre abordagens estritamente prescritivas e as que consideram o aconselhamento nutricional. Quadro 3 – Diferenças entre abordagens prescritivas e aquelas baseadas em aconselhamento nutricional Abordagens exclusivamente prescritivas Abordagens que englobam aconselhamento nutricional Foca-se no que se come, isto é, exclusivamente em alimentos e nutrientes. Foco também na dinâmica daquilo que se come, ou seja, na forma como se come. Intervenção focada no curto prazo. Intervenções focadas no longo prazo. Foco na educação alimentar. Educação alimentar e nutricional (ver tópico 1 para saber as diferenças entre educação nutricional e educação alimentar e nutricional). Relacionamento cordial mas distante entre nutricionista e paciente. Relacionamento intenso entre educador nutricional e o indivíduo ou o grupo, o que torna isso parte do tratamento. Plano de ação baseado apenas em uma dieta ou prescrição, o que é determinado logo no início da consulta. Plano de ação baseado em metas e objetivos individualizados e desenvolvidos ao longo de várias consultas, o que evolui ao longo do tempo. Considerando o aconselhamento nutricional, a EAN, então, passará por algumas premissas, seja no atendimento a indivíduos ou a grupos, dentro de seus programas. Entre essas premissas, destacam-se: • Postura adequada do educador nutricional: o educador nutricional terá que estar atento a comentários sobre a aparência física das pessoas assistidas, bem como sobre suas condições de saúde, exames bioquímicos, além de características de personalidade dos indivíduos. • Acompanhamentos: seja no acompanhamento de indivíduos ou grupos, espera-se que o educador nutricional estabeleça um vínculo adequado ao longo de sua atuação. Para tal, é importante que o educador nutricional sempre se apresente no início de sessões individuais ou em grupo, descrevendo sua formação, atuação profissional e o intuito daquele encontro, sem que se discutam naquele momento questões pessoais do educador. 42 Unidade I • Transparência: é esperado que após a apresentação o educador estabeleça aspectos práticos com os aconselhados, seja na definição de estratégias e metas que serão tomadas no presente e no futuro, seja no seu papel ao longo dessas estratégias (aspectos já abordados na entrevista motivacional). Além disso, é importante que sempre estejam transparentes os momentos de início, as condutas acordadas e o término dos tratamentos ou programas em alimentação e nutrição, quando for o caso. • Comunicação: é esperado que o educador nutricional se utilize de comunicação específica, valorizando a realização de perguntas abertas (investigação socrática discutida no item “entrevista motivacional”), e favoreça assim a participação ativa do indivíduo ou grupo, escutando sempre atentamente aquilo que é apresentado. A figura 12 apresenta dois exemplos de comunicação com perguntas abertas que podem ser realizadas. Como não fazer Como fazer Por que você não come frutas? O que você não gosta nas frutas? Como foi para você tentar comer frutas? O que acontece quando você coloca uma fruta na boca? Quais são suas primeiras lembranças das frutas? Por que você come tanto? O que essa quantidade que você come representa para você? O que você acha da quantidade que come? Como é para você comer essa quantidade? Como você se sente? Figura 12 – Exemplos de comunicação com perguntas abertas Lembrete O educador nutricional será um facilitador para mudanças de comportamento alimentar que utilizará comunicação com questões abertas, postura específica e estabelecimento de metas realizáveis, realistas, que serão reformuladas a cada novo encontro, seja no atendimento de indivíduos ou grupos. 43 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL Saiba mais O vídeo a seguir apresenta um traço importante que o educador nutricional deve considerar em seu trabalho, a diferença entre empatia e simpatia em sua comunicação e postura com indivíduos ou grupos. O PODER da empatia – dr. Bené Brown. 2015. 1 vídeo (2 min). Publicado pelo canal Afetoterapia. Disponível em: https://bit.ly/3d0Ly7z. Acesso em: 8 abr. 2021. Resumo Inicialmente a educação nutricional, como até então era chamada, apresentava visão inerente ao contexto histórico em que se encontrava, sendo este ligado às doenças nutricionais e carências e ao aumento do trabalho no meio urbano e à grande demanda energética do cenário. O período destaca-se, entre outros aspectos, também pelos estudos de Josué de Castro acerca da fome e das desigualdades no país. Este é um momento em que a então educação nutricional tem ações baseadas estritamente em metodologias prescritivas e com visão exclusivamente biologicista em suas ações, atendo-se estritamente às demandas vitamínicas, de minerais e energéticas, mas sem olhar atento às realidades socioculturais, regionalidades alimentares e particularidades dos indivíduos assistidos. Esses sujeitos eram então passivos nas tentativas de mudanças alimentares e tinham pouca autonomia e, por fim, baixa adesão às ações. A partir da pedagogia de Paulo Freire no Brasil, do avanço das doenças crônicas não transmissíveis no mundo todo e de revisões dos posicionamentos de órgãos internacionais, tais como a Organização Mundial da Saúde, acerca das concepções de promoção da saúde, a educação nutricional, além de ganhar maior relevância como fator de promoção de saúde, passa a valorizar também em suas ações: práticas e saberes populares, o desenvolvimento de senso crítico e o respeito às particularidades dos educandos. Nesse momento, passa a não ser mais denominada “educação nutricional”, mas sim “Educação Alimentar e Nutricional” (EAN), termo que engloba adequadamente o contexto biopsicossociocultural da alimentação, sendo enfoque que ganhou destaque em programas governamentais, tais como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa Fome Zero, à época. 44 Unidade I O documento Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas concretiza as ações sistemáticas e intersetoriais para garantia ao direito humano à alimentação adequada (DHAA). Para a implementação de ações considerando tais aspectos, passaram a ser enfoque as pedagogias chamadas ativas, sobretudo a dialógica de Paulo Freire, que estimula a autonomia e espontaneidade dos indivíduos no processo de mudanças de hábitos alimentares. Interagindo com tais pedagogias, discussões sobre teorias e técnicas de mudança de comportamento alimentar passam a fazer parte das abordagens a serem consideradas para EAN. O modelo de crenças em saúde, a teoria da ação para proteção, a teoria do comportamento planejado e o modelo transteórico são teorias discutidas no campo e voltadas ao entendimento dos comportamentos alimentares. Entrevista motivacional, comer intuitivo, mindful eating, aconselhamento nutricional e uma postura de facilitador do educador nutricional são algumas técnicas ou abordagens a serem somadas em contextos contemporâneos da adequada EAN. Exercícios Questão 1. (Enade 2019) O Fundo Nacional de Desenvolvimento de Educação (FNDE) está realizando, em 2019, a 3ª edição da Jornada de Educação Alimentar e Nutricional (EAN). A iniciativa visa a incentivar o debate e a prática das ações de EAN no ambiente escolar, dando destaque para os temas: “Merendeira como Agente Transformadora da Alimentação Escolar”; “Sustentabilidade na Alimentação Escolar”; “Imagem Corporal e Bullying” e “Movimento + Comida de Verdade = Saúde”. Tanto os diretores de escolas quanto os nutricionistas ligados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) puderam se inscrever na Jornada de EAN que se estenderá até dezembro desse ano. Disponível em: https://bit.ly/2Q85ZqR. Acesso em: 17 jul. 2019 (adaptado). A respeito das diretrizes do PNAE e da Jornada de EAN, avalieas afirmações a seguir. I – O objetivo do PNAE é a efetivação do direito à alimentação pelos alunos, por meio da oferta de alimentos adequados, em quantidade e qualidade, a fim de satisfazer as necessidades nutricionais diárias de cada estudante. II – A iniciativa da Jornada de EAN está alinhada com a diretriz do PNAE que trata da inclusão da EAN e do desenvolvimento de práticas saudáveis de vida no processo de ensino e aprendizagem. III – As ações de alimentação escolar, segundo o PNAE são realizadas por nutricionista habilitado, que assume a responsabilidade técnica do programa e envolve ações de EAN no ambiente escolar em conjunto com a direção e com a coordenação pedagógica. 45 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL É correto o que se afirma em A) I, apenas. B) II, apenas. C) I e III, apenas. D) II e III, apenas. E) I, II e III. Resposta correta: alternativa D. Análise das afirmativas I – Afirmativa incorreta. Justificativa: o objetivo do PNAE é contribuir para o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento escolar e a formação de práticas alimentares saudáveis dos alunos, por meio de ações de educação alimentar e nutricional e da oferta de refeições que cubram as suas necessidades nutricionais durante o período letivo (BRASIL, Resolução/CD/FNDE n. 26, de 17 de julho de 2013). II – Afirmativa correta. Justificativa: a Jornada de EAN, que visa a incentivar o debate e a prática de ações de EAN no ambiente escolar, está alinhada com a diretriz do PNAE sobre a formação de práticas alimentares saudáveis. III – Afirmativa correta. Justificativa: de acordo com o PNAE, a coordenação das ações de alimentação escolar será realizada por nutricionista habilitado, que será responsável por: I – realizar o diagnóstico e o acompanhamento do estado nutricional dos estudantes; II – planejar, elaborar, acompanhar e avaliar o cardápio da alimentação escolar de acordo com a cultura alimentar, o perfil epidemiológico da população atendida e a vocação agrícola da região, acompanhando desde a 46 Unidade I aquisição dos gêneros alimentícios, o preparo, a distribuição até o consumo das refeições pelos escolares; e III – coordenar e realizar, em conjunto com a direção e com a coordenação pedagógica da escola, ações de educação alimentar e nutricional (BRASIL, Resolução/CD/FNDE n. 26, de 17 de julho de 2013). Questão 2. (Enade 2019) Segundo a Lei Orgânica n. 11.346/2006, a segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Disponível em: https://bit.ly/3tz2NTw. Acesso em: 19 ago. 2019 (adaptado). Considerando as políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), avalie as afirmações a seguir. I – A conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos são abrangidas pela segurança alimentar e nutricional. II – O Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) possui como base a centralização das ações e a conjugação entre orçamento e gestão. III – A Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) tem papel fundamental na estratégia de desenvolvimento das políticas de SAN, principalmente no que se refere ao diagnóstico e vigilância da situação alimentar e nutricional e promoção da alimentação adequada e saudável, por exemplo. É correto o que se afirma em: A) I, apenas. B) II, apenas. C) I e III, apenas. D) II e III, apenas. E) I, II e III. Resposta correta: alternativa C. 47 EDUCAÇÃO ALIMENTAR E NUTRICIONAL Análise das afirmativas I – Afirmativa correta. Justificativa: de acordo com a Lei Orgânica n. 11.346/2006, a SAN abrange a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos. II – Afirmativa incorreta. Justificativa: o SISAN (Lei n. 11.346/2006) apresenta como diretrizes: I – promoção da intersetorialidade das políticas, programas e ações governamentais e não governamentais; II – descentralização das ações e articulação, em regime de colaboração, entre as esferas de governo; III – monitoramento da situação alimentar e nutricional, visando a subsidiar o ciclo de gestão das políticas para a área nas diferentes esferas de governo; IV – conjugação de medidas diretas e imediatas de garantia de acesso à alimentação adequada, com ações que ampliem a capacidade de subsistência autônoma da população; V – articulação entre orçamento e gestão; e VI – estímulo ao desenvolvimento de pesquisas e à capacitação de recursos humanos. III – Afirmativa correta. Justificativa: a PNAN interage com a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) e outras políticas de desenvolvimento econômico e social, e apresenta papel importante no desenvolvimento das políticas de SAN, principalmente em aspectos relacionados ao diagnóstico e vigilância da situação alimentar e nutricional e à promoção da alimentação adequada e saudável.