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Pégasus Lançamentos Juan Del Diablo II Mônica Caridad Bravo Adams Disponibilização e Tradução: Jo Slavic Revisão:Vânia Gusmão Formatação: Evânia Amorim 1 Pégasus Lançamentos Capitulo 1 — Ana. Ana! — Chama Aimée com impaciência: — Ana. — Aqui estou senhora Aimée, já chego. Chegou correndo. — Correndo? Faz três horas que te enviei. Se te parecer podias ter demorado mais. — Ai! Senhora Aimée, é que o senhor Renato mandou fazer uma coisa e tive que fazê-la. — Renato? A que te mandou Renato? __Que acompanhasse à senhorita Mônica a seu quarto e que dissesse à senhora Catalina que a senhorita não se encontrava bem. O senhor me mandou que fizesse isso e tive que fazê-lo. — Naturalmente. Esquecendo por completo meus encargos, sabendo que estou aqui morrendo de impaciência, esperando que chegue. Fala logo. Pôde ver o Juan. Falou com ele? — Não, senhora, o senhor Juan deixou ao notário com a palavra na boca, agarrou um cavalo e se foi. — Aonde?— Que rumo tomou? Não te fixou? — Não senhora, com a boca aberta fiquei olhando o cavalo correr. Enquanto vinha para cá contar a você, zás! O menino Renato que me chama e eu que tenho que acompanhar à senhorita Mônica, que tampouco me deixou que entrasse em seu quarto nem que lhe dissesse nada a dona Catalina. Entrou ela primeiro, fechou-me a porta nos narizes e me deixou fora. Para mim que não estava doente, mas sim como assustada. Seguro que a assustou o senhor Juan, que esteve brigando com ela. — Brigando com ela? Quando? — Quando a encontrou surrupiando ao negro esse que sempre vai com ele, ao Colibri. Moço mais revoltoso e mais travesso, e mais atrevido também! Roubou uma empanada da cozinha, e sabe o que respondeu à cozinheira? 2 http://pegasuslancamentos.blogspot.com/ Pégasus Lançamentos — O que pode me importar? Responda-me ao que preciso saber. Antes de ir- se Juan, com quem falou? O que disse? Foi imediatamente depois de discutir com a Mônica? — Não, senhora, logo esteve também com o notário briga que briga. Desde aí se foi como um tiro a procurar um cavalo que já tinha mandado selar. Montou-se de um salto, e depois não se via mais o que a poeirada. — Me ouça, Ana — impacienta-se Aimée — é preciso, indispensável, que eu veja o Juan antes que anoiteça que eu lhe fale. Tem que encontrá-lo, e lhe dar esse recado de minha parte, mas sem que te sinta a terra, sem que ninguém suspeite que fosse eu quem te mandei, entende? — Entendo senhora. Mas, como vou fazer isso? Eu não sei nem aonde foi. — Pergunte a alguém, a quem pode te dar razão. Espera, o moço foi com ele? — Não, ele se foi sozinho e feito uma fúria. — Pois busca ao moço e me traga isso sem que ninguém te veja, sem que ninguém se inteire de que sou eu quem vai falar com ele. Sirva-me bem. Ana me sirva bem e terá o anel mais lindo do mundo. E dinheiro, todo o dinheiro que queira. Anda. Vê, corre! Com gesto de determinação e desesperada empurrou Aimeé à escura donzela nativa, obrigando-a a acelerar o sempre pausado ritmo de seus movimentos. Logo vai de um lado a outro pelo luxuoso quarto sem saber como acalmar-se, como aplacar seus nervos, submetidos há várias horas a penosa tensão da espera. Nunca pôde pensar que Juan do Diabo tomasse tão rapidamente uma determinação semelhante. Seguir-lhe, fugir com ele, deixá-lo tudo, trocar sua posição e sua riqueza pela sorte daquele aventureiro, por muito atrativo que fosse para ela, por muito grande que fosse a sugestão que sobre seus sentidos exerce, é mais do que humanamente está disposta a dar. Não, não irá com ele daquela maneira. Mas, como aplacá-lo? Como evitar a feroz vingança de seus ciúmes? Pensando nele se estremece de temor e desejo de uma vez. Deseja-o e o repudia, ama-o e o aborrece, desespera-se ao não poder dominá-lo a seu desejo e lhe ama mais ao vê-lo como é: duro e rebelde, feroz em seu domínio, implacável naquela amargura que agora destilam suas carícias e seus beijos. Tem cansado de joelhos ao pé da janela, apertadas uma contra outra as mãos engarfadas, dilatadas as pupilas que espiam inútil e ansiosamente. Uma férrea determinação se levanta também em sua alma e prorrompe em voz alta: — Não será como ele deseja muito! Será como eu queira! Terá que ser como eu queira! — Ana. Ana. — exaspera-se Aimée. — Acabará de mover esses malditos pés? Acabará de chegar? — Já chego senhora Aimée. Mas é que faz um calor. — E demônio carregue contigo! Onde está o menino? 3 Pégasus Lançamentos — Pois não o encontrei, mas me disseram onde estava o senhor Juan. Foi ao engenho. Aninha estava dizendo ao Batista que o senhor Juan. Juan do Diabo como diz ela, havia mandado selar o cavalo branco do amo e havia tombado nele para o engenho, e que terei que ver como mandava e como dispunha, como se o amo fora ele. Se você quiser, eu posso ir para lá. Agora mesmo estão carregando no pátio vos carrinhos de mão grandes com tudo o que vão mandar para o engenho. Eu posso ir com um deles e digo ao senhor Juan o que você me mande que diga, minha ama. Que venha, não? — Sim. Que preciso lhe falar, vê-lo. Mas espera, espera. Não confio muito de que chegue a tempo — Com angustia crescente foi para a janela. Já o sol está muito baixo, logo que doura com seus últimos raios a cúpula altiva do Mont-Brigue, e murmura como para si: — Ele me espera esta noite às doze. — Daqui as doze há muito tempo. — Ninguém perguntou por mim na casa? — Ninguém saiu que seu quarto desde esta manhã. Nem a senhora Sofia, nem a senhorita Mônica, nem a senhora Catalina. E o senhor Renato está com o notário no escritório que foi do amo dom Francisco, é o único que pediram que entrassem foi conhaque e café. Aninha mesma entrou e leva-lhe, disse que não podia entrar outro a incomodá-los, porque estavam arrumando as contas. — Menos mal. Bom, vais procurar, onde esteja o senhor Juan. Vais dizer-lhe que estou doente, muito doente; que por piedade aguarde a manhã para me falar e para ver-me. Diga-lhe que o pedido chorando. Diga-lhe. — Por que não me escreve tudo isso em um papel, minha ama? — Em um papel? Sim, tem razão. Mas... — Em um papel sem assiná-lo. Eu já lhe digo que é de você. De sua própria mão e ponho. Só a ele o entrego. O juro, minha ama, só a ele. Não tenha medo. — Vou confiar em ti, Ana, vou escrever esse papel, mas me responde com sua vida de que só ao Juan o tem que entregar. Jura-me isso Ana, jura-me isso. — Por Deus e a Virgem do Céu! Só ao senhor Juan lhe darei o papel, e se não for assim, que me caia morta! A escura donzela jurou cruzando os dedos, e um instante Aimée parece vacilar entre a necessidade peremptória de confiando-se a ela e a pensar a arma terrível que fabrica contra si mesmo naquelas letras. Com ânsia febril vai até a pequena escrivaninha e nervosamente rebusca até achar o que necessita. — Ana, vais ter muito cuidado com isto. Se alguém quiser lhe tirar isso se te vir em qualquer apuro. — Como a carta antes que dar-lhe a outro! Juro, minha ama. — Está bem, está bem. — Acata Aimée ficando a escrever, mas de repente duvida e rompe o papel. — Não posso expor-me dessa maneira! Espera. Não sabe você escrever. Ana? — Eu escrever? O que vai! Sei tirar contas e pintar muito bonito. Aninha sim sabe escrever e ler. Puseram-lhe professor como às meninas brancas. Das 4 Pégasus Lançamentos faxineiras, é a única que sabe escrever. Mas você não vai confiar nela. Além disso, se o senhor Juan não vir sua letra não vai acreditar que o papel é de você. — Ele nunca viu minha letra. Mas espera. Espera. Posso escrever um papel que não me comprometa muito. Sim, isso, ele compreenderá. O compreenderá que não posso mandar outra coisa contigo. Ele entenderá. Agora sim escreve, rápida e firmemente, uma carta ambígua, cerimoniosa, que é, entretanto, um pedido dilacerador. Logo a dobra, guardando-a em um envelope com seus dedos que tremem, e murmura:— Para o Juan. Para o Juan de Deus. Sim. É melhor assim. — Juan de Deus? — se estranha a faxineira. — Alguém lhe chama assim. O entenderá perfeitamente. Mas você lhe diga que a carta é minha, que estou realmente doente, que a escrevi chorando e desesperada. Anda. Vê, corre, não vás perder a oportunidade dessa carreta. — O que vai, minha ama! Quem a leva é Esteban e esse sim é meu amigo para tudo o que seja. Aimée empurrou violentamente à faxineira e voltou à janela. O último raspou de sol desapareceu e uma só estrela, enorme, resplandecente, brilha no céu azul muito pálido, sobre o topo do Mont-Brigue. — Bom, Renato, em definitivo. A voz se apagou em lábios do notário, dando-se conta de que Renato D'Autremont não lhe escuta. Cruzados os braços, de pé em meio da ampla habitação que fora o escritório de seu pai, os claros olhos inquisitivos percorrem as estantes que chegam ao teto, como se interrogassem os velhos volumeis pretendendo lhes arrancar o segredo que encerram. — O que tanto miras aí, moço? — Era neste painel. Sim. Atrás dos livros, não sei se mais acima ou mais abaixo, mas por aqui se abria um oco. Era um esconderijo, uma espécie de caixa de ferro na moda do século passado. Certamente aí papai guardaria valores, papeis coisas importantes. — Seu pai tinha contas correntes em todos os bancos do Saint-Pierre. Não acredito que guardasse nada importante nos esconderijos do escritório. — Pois algo guardava Noel, e mais de uma vez, sendo eu menino, vi o Pai remexer nele. A última foi à noite que precedeu à madrugada em que nos trouxeram ele moribundo depois de seu acidente. Esta casa é muito velha. Mandou-a fazer um de meus avôs. Ampliaram e reformaram muitas partes, mas no escritório não foi tocado por ninguém desde então. — O escritório tem, efetivamente, uma porta secreta naquela esquina, e você a conheceu de menino. Ao menos, isso me disse dona Sofia esta manhã. — Mamãe? Mamãe falou esta manhã com você? — Acabo de cometer uma indiscrição lhe dizendo isso, mas, enfim, já parece e não é possível voltar atrás. Em efeito, filho, falamos. Entrou aqui quando menos o esperava, precisamente por essa portinha, e me deu um grande susto. 5 Pégasus Lançamentos — Por que entrou minha mãe dessa maneira? Por esquivar-se de Juan, verdade? Por não querer vê- lo nem sequer de longe. — Bom, filho, sim. É inútil que lhe negue isso. Sua mãe se aborrece. E algo pior: tem-lhe medo. Às vezes parece tolo e supersticioso deixando-se levar dessas coisas, mas quando o coração de uma mãe dá um aviso. — Não diga tolices Noel. Você também tem medo do Juan do Diabo e não é por intuições nem por pressentimentos. Há algo mais positivo, mais concreto. O que teme? Que roube sua herança? Não, não se alarme Noel sente-se. Volte a sentar-se. Já lhe disse, ao trazê-lo para este escritório, que tinha que me contar várias histórias velhas, e a primeira delas a de meu pai. A de meu pai e a do Juan. — Do Juan ninguém sabe nada, meu filho. — Você sabe Noel, e minha mãe também sabe. E um pouco do Juan havia naqueles papéis que eu vi esconder a meu pai. Depois disso ocorreu a única cena realmente desagradável e vergonhosa que lembro minha infância. Prefiro não falar disso, mas volto a lhe perguntar, Noel: O que temem do Juan minha mãe e você? Diga-me a verdade. A verdade, por crua, por desagradável que pareça. — Bom, filho, eu só temo a seu caráter, a seus arrebatamentos, a sua pouca educação. — Mas minha mãe lhe temeu sempre. Desde menino lhe inspirou ódio e horror, e agora evita o vê-lo porque sua presença lhe faz mal. Quando se enfrentou com ele, ficou tão pálida que temi vê-la cair sem sentido. E sabe por quê? Juan se parece extraordinariamente a meu pai. Pode ser uma coincidência. Mas pode não sê- lo. E são tantos os detalhes ao redor desse assunto, que eu. — Renato, meu filho. Eu te peço — interrompe-lhe Noel profundamente apurado. — Eu sou quem lhe pede que se cale, Noel. Sou já um homem feito. Conheço a vida e não vou assustar-me a estas alturas de que meu pai me tenha dado um irmão fora da lei. Por que essa confusão? Por que esse susto, Noel? — Não é susto, é preocupação e angústia. Como chegou a pensar todo isso? E como tomará sua mãe que saiba? — Logo é certo! Acalme-se, Acalme-se, Noel, não hei lhe forjado uma armadilha. Tinha a convicção moral. Tenho-há a muito tempo. Acredito que desde menino, embora em forma inconsciente. Até há pouco tempo não quis pensar nisso porque também me incomodava, mas o tenho feito e não foi difícil. Ontem à noite mesmo estive rondando por todos esses livros. Vê você? Em um destes tecidos, em um destes três, estava o esconderijo. — Para que procurar esconderijos? — observa Noel dando-se por vencido. — É certo. Para que? Tenho a convicção e com ela deve me bastar, mas também me interessam os detalhes. Como foram as coisas? Até que ponto teve razão minha mãe para ser implacável? Até onde sabe Juan quem é? — A sua mãe não a culpe, meu filho, sofreu muito e ainda segue sofrendo, — Suponho que sua conversa secreta com você foi sobre isso. — Pois bem, sim. Ela está agora disposta a ser generosa. 6 Pégasus Lançamentos — Contanto que Juan se vá, naturalmente — apostila Renato com um sotaque de amargura. — Bom, filho, não terá que pedir muito a uma mulher que viu sua vida amargurada e destroçada por causa desse caso que deram ao Juan a existência. Ela quer apagar rastros que lhe ferem, esquecer um passado cuja lembrança lhe é insuportável, verte feliz sem lastros nem taras em sua vida, e nada disso é criticável. Eu sempre senti pelo Juan compaixão e afeto. — Sei muito bem e por isso me surpreende sua atitude destes dias. Além de nascer. Como nasceu, o que tem feito Juan para que você tenha trocado assim com ele? — Não é o que tem feito. — Já. É o que pode fazer. Mas, o que é isso? Há tramado? Ameaçou? Ou acaso são temores de outro gênero? Sua mão se apoiou premente, no ombro do notório. Depois de breve luta com sua indecisão. Noel parece decidir-se: — Olha, Renato, eu não sei mais que o que pressinto, e o que pressinto são amarguras e desgostos que podem evitar-se sem dar às coisas tantas voltas. Juan quer ir sim, quer voltar para mar. Deixe-lhe que se vá. Mais adiante, quando as coisas troquem, procuraremos a fórmula de lhe compensar com uma boa quantidade de dinheiro que em uma ou outra forma se faça chegar a ele. Mas, de momento. — Não, Noel, não decidirei nada até falar com o Juan, até lhe mostrar meu coração e lhe obrigar a que me mostre o seu. É meu irmão, dá-se você conta? Esta verdade que para mim só existia pela metade, agora está clara e diáfana. Tenho um irmão, um irmão no que a nobre figura de meu pai parece reviver. Você não pode imaginá-lo que significa isto para mim, e acaso tampouco possa medir toda a felicidade que me negaram de menino ao me negar esta verdade íntima e humana — Renato falou com exaltado entusiasmo, e em um arranque de emoção, roga: — Conte-me isso tudo. Noel me diga quanto saiba disso. É a história de meu próprio sangue. NÃO me negue isso! O velho notário começa a relatar a história, tão bem conhecida dele, desde aquela noite tormentosa em que o pequeno Juan do Diabo fez o papel de mensageiro da morte. Renato bebe sedento de saber, o relato pormenorizado, e, de repente, indaga: — E essa carta. Noel? — Bom. Ficou em mãos de seu pai, certamente. Eu suponho que ele a queimou ou a rompeu depois. — Ou a guardou. Quem sabe! — Talvez; embora não acredito. Seu pai, ao princípio, mostrou-se muito desconfiado. Bertolozi era um homem vingativo, cruel e traiçoeiro. Algo podia esperar-se dele: a maior mentira, a maior infâmia. Estou bem seguro que depois de seu perdão aparente, atormentou a Gina até fazê-la morrer de desespero. E quanto ao Juan. 7 Pégasus Lançamentos — Posso muito bem adivinhar sua horrível infância. Que fácil é perdoar sua rudeza e seus defeitos sabendotudo isto! — Com quanta razão temia sua mãe que o saber tudo isto te desarmasse mais frente a Juan, tirasse-te a pouca vontade de te defender que possa ter. — O que pensa você que possa fazer Juan contra mim? — Eu não penso, mas sua mãe teme e tem razão em temer. Não quero nem pensar o que dirá quando souber tudo isto. — Eu falarei com ela depois de ter falado com ele. E acaso dê a ela e a surpresa de comprovar que se equivocaram. Às vezes, o coração sabe mais que a cabeça. Juan não pode me odiar se eu for a ele como irmão, se o demonstro todo o sinceramente que lhe quero se nobremente me adiantar a oferecer o que incluso não pediu. — Não caia em uma loucura de generosidade, Renato! Pensa que a só existência do Juan é, para sua mãe, uma ofensa viva, candente; que até o nome da Gina Bertolozi a fere como uma faca envenenada. — Não pode ser. Minha mãe tem que ser mais generosa. Gina Bertolozi já está morta. — Há ódios que não se aplacam nem com a morte. Há rancores. E ciúmes dos que não tem uma ideia. Você não há sofrido nunca, Renato, não pode medir a amargura, a dor, o desespero a que a alma descende em alguns momentos. Você não pode ser juiz, porque a vida foi até hoje, para ti, um caminho de rosas. — Talvez por isso compreenda e compadeço mais aos que sofrem, e ao Juan o primeiro. Vou mandar buscá-lo. Noel, para lhe falar como irmão. Para lhe dizer. — Certamente, ele sabe. — Mas pensa que eu o ignoro. E se não o pensa, acredita algo pior: que sou insensível, egoísta. Quero que saiba que estou disposto a reparar, a devolver. Que o mundo não é tão mau como ele pensa. — Nem tão bom como você imagina, Renato. Deixa-o que se vá. É o maior desejo de sua mãe! — Até agora minha mãe cumpriu nesta casa todos seus desejos, até os mais injustos. Vou contraria-la por uma só vez e confio em que sua contrariedade não dure muito. Renato se levantou, foi para a parede e touca um timbre, ante o qual, sentido saudades, Noel pergunta: — O que faz filho? — Chamo um servente para que vá em busca do Juan. Aguardei quinze anos por este momento. — E se Juan não merecesse sua generosidade, Renato? Se não fora nem sequer capaz de compreendê-lo? Se respondesse a sua boa vontade com sarcasmos, com desprezo, acaso com uma amarga ingratidão? — Pensaria que a culpa não é dele, mas sim dos que o converteram em um emparelha, dos que lhe desapropriaram de tudo. Meu bom Noel deixe de dúvidas e vacilações. Não há mais que um caminho e é o que me assinala minha consciência. 8 Pégasus Lançamentos — Uns golpes discretos, dados na porta, interrompem-lhe momentaneamente e, elevando a voz, convida: — Adiante. Se, Luiz, eu fui quem te chamou. Procura o senhor Juan por toda a fazenda e lhe diga que o espero em meu escritório, pois preciso falar com ele imediatamente. Que se apresse que não se detenha por nenhuma razão, e te apresse você também. Capitulo 2 — Que é isso, tio Batista? — Isso. Luiz que passou ao galope, rumo ao engenho. Entrou nas quadras pedindo o melhor cavalo que houvesse porque tinha que ir, por ordem do amo, em busca do Juan do Diabo. — De maneira que mandaram a procurar o Juan do Diabo. — Sim, o amo tem muita urgência de falar com ele. Vamos ver que presente lhe oferecem agora a esse mendigo que para nada serve. Junto à larga arcada do portal que dá acesso às habitações da asa esquerda, Batista dá rédea solta a sua cólera, a seu despeito. Acaba de sair das cavalariças, — onde a última ordem da Sofia lhe confinasse. Enchente a barba, revolto o cabelo, cobertas de lama as altas botas e o látego na mão, é algo bem diferente do outro tempo onipotente capataz de Campo Real. Junto a ele, atenta sempre aos menores ruídos, naquela espionagem que é sua vida inteira, fica Aninha alerta a todo ruído e movimento, e comenta pensativa: — Quão único querem Noel e dona Sofia é que Juan do Diabo se vá para sempre; mas há alguém que não quer lhe deixar partir. — A quem te refere? — Já o verá. Já o verão todos. Disse-te que tivesse paciência. Acalme-te, tio. — Não me dá a vontade de me acalmar. Nas veias me ferve o sangue de ver o que vejo. Sou menos que um cão nesta casa, mas o primeiro servente que volte a me responder mal vai, ou seja, quem sou, mesmo que me tenham tirado o mando para dar-lhe a qualquer. — Cala. Esteja-te aquieto um momento. Vê? — Não vejo a não ser à senhora Aimée que aparece à janela de seu quarto. — Todo o dia esteve nele, mas Ana entrou e saiu mais de cem vezes. É sua confidente. Sua criada de absoluta confiança. Certamente conta com ela até para os 9 Pégasus Lançamentos encargos mais íntimos. OH, olha! Ana sai Outra vez.. Algo vai passar esta noite, e apostaria a que sei o que é. — Mas que loucura. — Baixa a voz. Ana se aproxima. Não, vai para o outro pátio. Vou atrás dela. Algo vai passar esta noite. Pôs-se a andar atrás da Ana. Batista, preocupado, segue-a. Muito perto está o enorme carrinho de mão que deve sair rumo ao engenho. A ele enfia seus passos Ana, enquanto o rosto de Batista se decompõe de cólera, ao protestar: — Aonde vai essa imbecil? Esse é o carro que vai para o engenho; — Naturalmente. Ana vai procurar ao Juan do Diabo, vai levar-lhe um encargo ou um recado do Aimée do Molnar, estou segura disso. — Não vai levar nada, porque não vai subir a esse carro. Está proibida que as mulheres vão aos carros do engenho. Sou o chefe das cavalariças, dona Sofia me nomeou ontem, e muitos vontades tenho que ajustar as contas a essa. — dirigiu-se com passos rápidos ao encontro da Ana, e gritando enfurecido, ameaça-a: — Fora desse carro. Abaixo. Fora! Sai ou lhe tiro arrastando, benjamima! — Não sou benjamima. E não posso sair! Tenho que ir para o engenho. — Que não vai sair. Descerá-te de cabeça — Esteban vai levar-me. A senhora mandou que fora. — Protestou Ana, lutando com Batista, e elevando a voz, grita angustiada: — Esteban.. Esteban.. — Hei dito que não vão mulheres nos carros do engenho — recalca Batista imperioso, enquanto sujeita à mestiça servente. — Esteban, maldito pollino. Agarra as rédeas e te largue de uma vez. Que te largue, disse. Ou vais arrepender-te! Comprido! Batista açoitou aos cavalos que partem assustados, enquanto Esteban logo que acerta a sujeitar as rédeas. Logo sacode como um farrapo à donzela do Aimée, arrojando-a longe de um violento tranco, ao tempo que afirma furioso: — Que aprendam que ainda mando nas garagens! — Ana. Ana! Tio Batista! — grita Aninha, que chega a toda presa. — Olha- a. Está como morta. Golpeou-se a cabeça ao cair! — Oxalá arrebente! Mas não tem nada. Está-o fingindo! É uma cadela maldita! Vou por não chutá-la, por não acabar com ela seriamente. Batista voltou para as garagens. O carro se afasta pelo caminho em sombras. Nervosamente, Aninha toca o rosto frio e cinzento da Ana, e a sacode chamando-a insistente: — Ana. Ana. Não tem nada. Não siga fingindo. Abre os olhos. Ai, Jesus! Ana! Tremendo pelo medo de ver aparecer ao Renato ou a qualquer capaz de lhe informar, sem atrever-se a chamar, Aninha levanta a cabeça da Ana procura algo com o que poder auxiliá-la. Ao fim desabotoa totalmente o sutiã, lhe despindo o peito, procurando o batimento do coração do coração que logo que percebe debilmente. Tropeçou com um sobre branco. A pouca luz do farol das garagens lê em um instante a quem vai dirigido, e com rápido movimento o esconde entre suas 10 Pégasus Lançamentos próprias roupas, ficando de pé ato seguido. A emoção é tão forte que lhe parece afogar-se, mas um passo e uma voz conhecida se aproximam investigando: — O que aconteceu? O que foram essas vozes? — Aninha se afasta procurando as sombras retrocedeu de costas, fugindo da figura que aparece no corredor iluminado, que cruza para as garagens ao não achar resposta, e que persiste em seu chamado: — Quem está aí? O que é isto? Ana! Surpreendida, a senhora D'Autremont se inclinou sobre o desacordado corpo da Ana. Rápida e silenciosaAninha se afasta, enquanto a voz da Sofia se eleva chamando insistentemente: — Aninha. Aninha. Esteban. Esteban! — Dona Sofia! — exclama Aimée aproximando-se assustada. E de repente, com verdadeiro pânico ao reconhecer a figura inerte que se acha no chão, prorrompe: — OH, Ana! O que aconteceu? O que aconteceu? — É o que queria saber. Ouvi vozes, um carro. Chamei e não responderam; saí a ver o que ocorria. Não sei o que é o que tem esta mulher. — Parece desmaiada, mas. Aimée olhou com ânsia o sutiã aberto; com febril angustia apalpa seu peito, suas mãos, registra seus bolsos e volta o olhar espantado para a dama que se pôs de pé, ao tempo que explica: — Tinha jurado que havia alguém junto a ela. Quando sentiram me aproximar, fugiram. E me surpreende muitíssima que ninguém apareça! — OH! Tenho que ir ao engenho.. — murmura Ana entre gemidos, já voltando pouco a pouco em se. — O que diz?— quer saber Sofia. — Nada. Loucuras. Parece que delira.. — replica Aimeé extremamente nervosa, — Ana, sou eu, e aqui está dona Sofia também! Entende? Aqui está dona Sofia! — Dona Sofia, sim.. — murmura Ana fazendo um esforço. — Ai, minha cabeça! — queixa-se. E de repente, com espanto repentino, exclama: — A carta! Tiraram-me isso! — Que carta era essa? — Aviva-se a curiosidade da Sofía. — Está delirando, Ana! — As unhas do Aimée se cravaram na mão da mestiça. Recuperando do todo o sentido. Ana olha o rosto furioso de Aimée, e logo aquele outro rosto pálido, grave e atento, inclinado sobre ela, e aquela voz que é lei em terras dos D'Autremont: — O que te ocorreu. Ana? — Ai, senhora! Não sei. Não sei. Não sei.. — rompe a chorar Ana com visível angustia. — Não chore e responde! — recrimina Sofia. — Diz que lhe tiraram a carta? — Deve ter escorregado e caído — intervém Aimée, conciliadora, tratando de desviar a investigação de sua sogra. 11 Pégasus Lançamentos — Mas o seu lado havia alguém. Ana. Quem era? — insiste a senhora D'Autremont. — Não sei. Não sei! — trata de evitar a faxineira. — Não sabe nada, dona Sofia — volta a intervir Aimée. — Já sabe você como é ela. Tem pouca cabeça. Não se preocupe mais.. Levarei-a a cozinha e farei que a atendam. Não se incomode. — Sim, filha, vê com ela. Eu levei um susto atroz. Não sei onde se metem os criados, que nunca aparecem quando mais lhes necessita — E elevando algo a voz, chama de novo: — Aninha! Pelo lado oposto, Aninha, impecável, correta, com o mesmo gesto de perfeita solicitude com que se acerca sempre a sua senhora, e se oferece humildemente: — Aqui estou madrinha, chamava-me você? — Chamei-te faz um momento. Ana se deu um golpe, sofreu um desmaio. Não sei, em realidade. Não sabemos. Faz que a atendam, Aninha. — Não, Por Deus. Eu a atenderei — adverte Aimée rapidamente. — Que Aninha a acompanhe a você, dona Sofia. A senhora está assustada, Aninha. Acredito que necessita uma xícara de chá imediatamente. Vamos, Ana! — Que acidente mais estranho! — comenta Sofia. — Tudo é agora estranho nesta casa, senhora. Mas o único lamentável é que a tenham assustado a você. Vou até a cozinha para lhe fazer uma xícara de chá.. — Não, Aninha , deixa-o. Dê-me o braço e me acompanhe a meu quarto. Temos que falar nós também. — Quem te tirou a carta? Quem? — apressa Aimée em um deplorável estado de nervosismo. — Ai, senhora. Não sei. — choraminga Ana. — Maldita imbecil! Mas, o que te passou? O que pôde te acontecer? — Já lhe contei. Esse Batista. Eu estava montada no carro, Esteban vinha já e íamos sair para o engenho. Chegou o Batista feito um demônio e tirou-me a puxões. Logo lhe gritou ao Esteban que se fora e ele mesmo lhe tocou os cavalos. Eu quis sair correndo atrás do carro e o Batista me empurrou. Sim, empurrou-me e me deu um chute também. Depois, já não me lembro. Dava-me contra uma pedra. Já não sei nada mais, minha ama, já não sei. — Estava totalmente desacordada. Alguém te revistou, tirou-te a carta. Quem foi? Quem pôde ser? Batista acaso? Quem mais estava aí? — Ninguém. Eu não vi ninguém. Eu estava sozinha, o Esteban vinha. O Batista chegou correndo. Seguro foi Batista, senhora! — Se Batista tiver essa carta, não a entregará ao Renato, não se atreverá a ficar frente a ele, me preferirá vender isso a um bom preço. Tenho que buscá-lo, que falar com ele.. — Uma badalada do relógio de parede a interrompe, e com sobressalto exclama: — OH.. . A hora que é. Tenho que pegar essa carta. Aimeé olhou de novo pelas janelas. Não há ninguém nos portais nem nas galerias, nem no largo trecho que separa o edifício central das garagens. Nenhum 12 Pégasus Lançamentos ruído se percebeu tampouco do outro lado da casa. Tremendo de angústia volta até o armário próximo, toma um espesso xale de seda, envolvendo-se nele a cabeça e os ombros, enquanto Ana o olha surpreendido, os grossos lábios entreabertos, e pergunta: — Aonde vai, senhora Aimée? — A procurar Batista. Certamente está escondido nas garagens. Bom cuidado teve de não aparecer quando o chamou dona Sofia! Rodeou mais o xale ao redor de seu corpo estatuário, o jogou mais à cara cobrindo-a quase por completo, onde só brilham seus olhos acesos de febre. Com as duas mãos no peito, onde o coração parece golpear espião um momento o deserto corredor, e sai rápida e silenciosa como uma pantera. — Quer abrir essa janela? Esta noite parece que faltasse o ar. Esta noite tornei a sentir que me afogo, como nos primeiros anos em que cheguei a estas terras. Precisa silenciosa, com a rapidez e a perfeição que são características nela, Aninha tem aberto a janela do amplo quarto de Sofia, mas em nada troca o ambiente da luxuosa estadia, não há uma rajada de vento, não há uma nuvem no escuro céu coberto de estrelas. É uma dessas noites sem lua em que se entretecem os luzeiros, tão apertados como uma rede de prata, sobre o veludo do firmamento. Com suave passo, a pálida soberana de Campo Real se aproxima da janela, e o corpo magro, escuro e vibrante da Aninha , retrocede um passo lhe cedendo o sítio respeitosamente. — Durante muitos anos aborreci esta terra até no que tem de mais formoso: seu campo, seu céu, seu sol de fogo, suas noites imóveis. Quantas noites como esta acreditei me asfixiar e pus-se a andar desesperada por esses atalhos! Sofia estendeu a mão para os escuros campos silenciosos, enquanto se sente como invadida, como golpeada por uma marejada de lembranças. Ardentes lembranças de seus primeiros meses de casada, amargas memórias dos largos anos em que esperava cada noite ao Francisco D'Autremont, calculando com áspero despeito em que braços esqueceria seu nome, em que lábios estaria bebendo o mel de um amor que a ela só chegava já como um sorriso, como uma ternura diferente, como um amável e frio respeito. — Não vai você a deitar-se, madrinha? Precisa descansar. — Esta noite não tenho sono. Temos que falar Aninha. Quer me escutar? — Certamente, madrinha. Aninha inclinou a cabeça com aquele gesto de frio respeito que está acostumado a fazer como um autômato, mas as mãos tremulas se juntam, apertando-se sobre o peito, e treme mais ao contato daquela carta. Ali tem a prova, a arma terrível, a adaga com que pode de um golpe certeiro destronar a sua odiada rival. Mas, rival no que? Ao baixar a cabeça se olhou a si mesma, contemplando a seu pesar o traje típico com que se veste; a larga saia de tecido floreado, o avental branquíssimo, e volta a olhar também, como outras vezes, suas magras mãos morenas. São finas e belas, cuidadas com esmero. Mãos cor de cobre claro, 13 Pégasus Lançamentos forçadamente castas, que se crispam no anseio de todas as candas, que se fecham como querendo apanhar um desejo impossível. Mãos de uma vez gentil e lúbricas, generosas e perversas. Mãos que ao fim se sabem proprietárias do turvo destino do Aimée. — Está cansada? Sente-se, Aninha. — Não, madrinha,não estou cansada — afirma Aninha refreando com muita dificuldade sua impaciência. — Mas temo que você. Que você se fatigue mais da conta. — Sim. Meu coração parte devagar. Amou e sofreu muito. É natural. Mas deixemos isso; quero falar do Renato. Por ele, e para ele, necessito que haja paz absoluta nesta casa. Renato a necessita; é o único ambiente no que respira seu coração tão sensível, tão tenro. E tão apaixonado também. Renato é como um menino Aninha. E contra seus anos, contra sua força e contra seu orgulho de homem, como um menino tenho que defendê-lo. Não sei se me compreende; mas necessito que me compreenda para que não te pareça uma ingratidão o que vou dizer-te. É preciso que Batista, e que você mesma, afastem-se desta casa. — Como? O que? — surpreende-se dolorosamente Aninha. — Vai você nos jogar, madrinha? — Para que empregar essa frase tão feia, e que ao mesmo tempo não é certa? Não, Aninha. Pensei que seu tio deve voltar para a França e que é justo que você lhe acompanhe. Você não gosta da ideia de fazer uma viagem a Europa? — Eu o único que quero é estar junto a você, madrinha. — Esperava essa resposta. Agradeço-lhe isso, e certamente, é a justa no primeiro momento. Mas a pouco que pense nele, tomará gosto à viagem. Sentirei-te falta, é para mim um verdadeiro sacrifício. — Mas pensa você que o senhor Renato não quer ver-me, verdade? — Ao menos por algum tempo, mais vale lhe evitar a ocasião de ver Batista. Você nada tem feito, já sei. Mas se o recorda. Pensa que ficou aqui Batista contra a vontade de meu filho. Nestes dias espero que também Juan do Diablo se afaste. Pus os meios, e se irá. Quero dar ao Renato uma verdadeira lua de mel, pois não a teve pela intranquilidade destes dias, pelos contínuos problemas que lhe apresentam. — Se o senhor Renato voltasse a pôr a meu tio em seu posto, não teria problemas. Com ele não os havia. O senhor Renato está cego, não sabe onde estão seus amigos e seus inimigos. Não sabe distinguir. — Aninha, por que diz isso? — atalha-lhe Sofia com severidade. — Você sabe igual a mim, madrinha. — Talvez saiba, mas não ficam bem essas palavras em seus lábios. Além disso, quero que me diga que razão tiveste para dizê-las. A quem te refere? Viu, ouviste algo para? Aninha levou as mãos ao peito, apalpou de novo o duro papel daquela carta, mas seu rosto permanece impassível, nada delata nele a fogueira em que se abrasa. Suave e cortesmente, diz sua mentira: — Só sei o que lhe ouvi dizer a você, madrinha. Perdoe-me. 14 Pégasus Lançamentos — Não é nada. Compreendo o que sente. Tenho por ti gratidão e carinho, filhinha, e não te abandonarei nunca. Compreende? Se não achar bom na Europa, pode voltar seguir-me acompanhando, e quando aqui ou lá chegue o momento em que queira te casar com um bom moço de sua classe, darei-te um dote com a que tem que te sentir proprietária e senhora de seu lar.. — Obrigado, madrinha. Não esperava menos de você — observa Aninha em forma fria, embora cortês. — Sei que te tenho feito acontecer um gole amargo. Vete a descansar. Parece nervosa e impaciente. Anda, vete a procurar a seu tio, lhe fale disto e lhe diga que, não voltará para a França com as mãos esvazia, a não ser com dinheiro para viver sem trabalhar ou para estabelecer por sua conta um pequeno negócio. — Obrigado outra vez, madrinha. Aninha beijou a mão da Sofia com um gesto automático e se afastou depois. Frente à porta fechada do despacho, detém-se, com as mãos no peito para sentir o roce daquela carta. E sentindo também o tamborilar de seu coração desbocado, sentindo em seus lábios, ardidos pelo fogo de uma paixão sem esperança, que o fel do rancor é mais amarga que nunca, murmura com raiva: — Me jogar desta casa, me afastar dele! Já veremos! Já veremos quem é a que se afasta! Até o fundo das garagens chegou Aimée, o passou rápido e nervoso, o olhar escrutinador. Mas o antigo mordomo não se acha nas garagens, nem nos estábulos, nem no departamento dos empregados, nem nos quartos destruídos onde se guarda a lenha. Aimée esquiva o encontro com a sonolenta moço de guarda, cruza sob os arcos e se detém com surpresa frente a uma figurinha fina e escura que, subida no alto de um montão de feno, parece devorar algo às escondidas. — Colibri, o que faz aqui? — Eu. Eu, nada. Comer. Mas eu não roubei à empanada. Ana me disse. — Te aproxime e não fale forte. Onde está Juan do Diabo? Por que não anda com ele como sempre? Não sabe onde está? Responde! — Pois não sei onde está, minha ama, seriamente que não sei. O se foi esta manhã para o engenho.. — E em tom de mistério, adiciona: — Levou-se dois cavalos. Um primeiro e outro depois, e me disse que não falasse com ninguém, que não lhe dissesse nada a ninguém, que se me buscavam para me perguntar, escondesse-me. E toda a tarde estive escondido, até que se foi esse velho mau que lhe pega às pessoas. Batista, não? — Batista? Que Batista se foi? — Sim, minha ama, foi. Colocou roupa em um saco, e dois pães e um queijo. Logo colocou o saco na alforja de uma mula negra que estava daquele lado, ficou a jaqueta e o chapéu, agarrou a escopeta do sereno, montou-se na mula e se foi. — Batista se foi. Foi. — murmura Aimée consternada. — E seu amo. Colibri? Diga-me tudo o que dele saiba. Diga-me isso 15 Pégasus Lançamentos — Você também sabe, porque é a ama nova, não? Isso me disse o amo. Que íamos ter ama nova e que era você. Eu a, ninguém, a ninguém digo nada, mas você se souber. Você sabe tudo. — O que? O que é tudo? — O navio está na praia pequena, ao lado do engenho, e esta noite as doze estará o amo atrás da igreja, e você se vai com ele. Você e eu vamos com ele Aimée fechou os olhos sentindo que um vento gelado a recobre dos pés a cabeça. É terror, é espanto. Tudo é certo, respiram verdade as ingênuas palavras do menino que se aproximou de lhe falar em tom de mistério, brilhantes os negros olhos sobre o rosto escuro, tremente e assustado ele também. Com angústia olha Aimée a todas as partes até comprovar que ninguém escutou as palavras do pequeno. Logo pensa naquela carta, queda sabe Deus em que mão. Mas que eleva aquele papel, comparado com o apresso do momento? O Lúcifer escondido muito perto, lhes aguardando, preparado para partir quem sabe para que rumos, para que aventuras, para que portos. O Lúcifer, um barquinho ridículo onde a vontade do Juan é onipotente, onde teria que submeter-se, como uma escrava, a seu domínio, perdido tudo: fortuna, dignidade, posição, direitos. Até o nome. Juntou as mãos, elevou os olhos ao céu. Se soubesse rezar, rezaria e neste instante; mas como um relâmpago passa um nome por seu pensamento: — Mônica! Mônica! Ela pode me salvar. Só ela. Como uma fera perseguida, salvou Aimée o largo terreno que separa as cavalariças do luxuoso edifício central, mas não torce pelo lado esquerdo. Vai diretamente para as habitações dos hóspedes, sobe a escada de pedra, chega junto à porta do quarto da Mônica e alta sem chamar o trinco, entrando de repente. Lentamente, Mônica se levanta do genuflexório em que orava inclinada a frente, e pouco a pouco vai dominando sua emoção, sua angústia, sua estranheza, enquanto juntas as mãos, vivendo um minuto de verdadeira agonia, Aimée lhe aguarda. — O que te passa Aimée? O que tem? Para que vem a me buscar assim? — Não sei nem para que venho nem sei como me arrisco ir a ti. Não mereço sua ajuda nem seu apoio. Mereço que me volte às costas, que me jogue daqui sem me ouvir sequer. — Fala que já te estou ouvindo. — Não, não me atrevo nem a te falar sequer. Perdoa-me. Estou perdida se você não me salva, se você não me ajudar, se você não o detiver! — Deter quem? — apressa Mônica francamente alarmada. — Ao Juan do Diabo. — estala Aimée. — Ah! — tranquiliza-se Mônica. — Pensei. — Renato não sabe nada. Acredita-me pura, poda,inocente, e não me importa morrer cem vezes com tal de que siga acreditando. É por ele, Mônica, juro-te que é por ele. É pelo Renato que não quero cometer essa infâmia! Como posso destroçar o coração de um homem tão bom? Como possa amargar sua vida para sempre? Como posso lhe cravar a adaga de uma desilusão assim? Se te pedir 16 Pégasus Lançamentos que me ajude, se te pedir que me salve, é por ele, Mônica. Você me compreende. Irmã. Irmã. — Eis resolvido me apartar de seu caminho, Aimée. Eis resolvido deixar que siga sua sorte. Minha luta foi inútil, e a abandono. Faz o que queira tudo o que queira. Como desaba no tapete, aos pés da Mônica, está Aimée, que agora se incorporou, tomando desesperadamente entre as suas as mãos geladas e brancas de sua irmã. Como longínqua, como ausente, permaneceu Mônica sem dar amostras de que aquela dor, verdadeiro ou fingido, ou comover-se. Fez o gesto de afastar-se, de apartar-se, mas Aimée, se desesperada, fecha-lhe o passo: — Não pode me abandonar agora! — Cem vezes me pediu que me fora, que te deixasse em paz. — Cem vezes o pedi, e não o fez. Continuou aqui impedindo com sua presença que eu resolvesse minhas coisas mau ou, me exasperando, me enfurecendo. E agora. Precisamente agora. — Pretende jogar a mim a culpa? — atalha-lhe indignada Mônica. — Não, irmã, não é isso. Ao contrário. Meço, vejo, apalpo que tem razão em tudo, que seus broncas eram merecidas, que seus prognósticos eram certos. Como uma louca segui a lei de meus instintos. Cega por uma paixão insalubre rodei e rodei, e agora estou ao bordo do inferno. Mas não quero cair mais abaixo, não quero seguir rodando, não quero me afundar na lama definitivamente, e afundar comigo o nome de meu marido. — Agora pensa em seu marido! Não minta mais! — Juro-lhe isso, irmã. Enlouquece-me a ideia de perdê-lo, de ser indigna aos olhos dele. Estou desesperada, arrependida. Não quero mais que ao Renato, não quero viver mais que para ele. Mas Juan não me deixa! Não o compreende? — Que não te deixa? Não siga mentindo! Você é quem o busca quem o enlouquece, quem lhe juraste que a ama apesar de tudo, que está disposta a lhe seguir a onde quer que ele leve. — Não. Não. Não irei com ele! Antes o direi tudo ao Renato. Se você não me ajudar, se você não me salvar, procurarei a morte. Confessarei a verdade ao Renato, e que me mate. Sim, que me mate, para acabar com tudo de uma vez. Que venha o escândalo! Que venha a morte! Eu mesma lhe sairei ao encontro! — Aimée! Aonde vai? — detém Mônica com um grito a sua irmã que começa a afastar com passos rápidos. — Estas louca? — Pouco me falta! Mas antes que Juan venha a me buscar a esta casa, antes de pô-los a ele e ao Renato frente a frente, em uma luta em que Renato será vencido. Porque Juan lhe matará; Juan é mais audaz, mais forte. Antes que Juan o mate a ele, prefiro que Renato me mate. E agora mesmo. — Quieta Aimée! Onde está Juan? O que quer que faça? — Vais ajudar-me? Mônica de minha alma! Já sei que não o faz por mim. A mim queria ver morta. 17 Pégasus Lançamentos — Não, Aimée. É minha irmã, meu sangue. Não poderia te abandonar a sua sorte, mas não posso Fazê-lo. Não é só pelo Renato; é por ti também. Se houver algo que eu possa fazer. — Juan te escutará. A ti tem que te escutar. É a única que pode detê-lo, embora seja de momento. Um prazo, uma prorrogação, umas horas de tempo para fazer algo, algo com o que me liberar desse maldito Juan. — Agora lhe amaldiçoa. — Amaldiçoo-lhe e lhe aborreço! Quero ao Renato e viverei para ele! Juro- lhe isso! Se me salvar desta, serei a mulher melhor, mais total, mais honesta, mais dedicada ao amor de meu marido. — Mas como te salvar, Aimée? — Juan quer me levar esta noite. As doze espera com dois cavalos atrás da igreja. Se não for, se não chegar, se faltar a esse encontro, virá a me buscar, arrastará-me com ele jurou que me levará, embora seja diante do Renato. — Mas é um selvagem, um demente! — exclama Mônica com o espanto refletido em seu branco rosto. — É. Quem é. Já sabe. Procura só que não dê o escândalo esta noite. Diga- lhe que estou doente, lhe prometa em meu nome que irei com ele. Mas não esta noite, não neste momento, — E, visivelmente alarmada, assinala: — Porque já são as doze! Certamente que neste instante chega. Esperara só uns minutos se eu não me apresentar, se você não chegar a detê-lo. Não lhe importará matar nem destroçar ao Renato. Odeia-o, odiou-o sempre! Corre, Mônica, corre, vê e lhe fale. Eu ficarei aqui rezando porque Deus tenha piedade de nós, e porque aceite meu arrependimento. Tem cansado aos pés do crucifixo que preside a quarto da Mônica, e chora. Chora de espanto, de angústia, de medo. Mônica o olha um instante, coberta de suor as têmporas, e vencendo seu horror, oferecendo-se inteira ao momento terrível, sai arrastando o corpo gelado a alma ardente. Capitulo 3 Nervoso, inquieto, com uma impaciência que é alegria febril, vai Renato de um lado a outro do escritório, seguido pelos cansados passados do velho Noel. Um instante, os olhos do jovem D'Autremont olham compassivos ao velho notário, para em seguida lhe propor: — Está você cansado. Vá-se descansar se quiser. — Pensa que poderia descansar sem saber no que acaba tudo isto? Vamos fazer um trato, filho: você te vais descansar, e eu o espero. 18 Pégasus Lançamentos — Que ocorrência! Você sim que se vê que não pode mais. Vá, Noel, vá repousar. — Vou, mas só a dar uma volta. Muito me temo que dona Sofia não se deitou esperando que eu passe a falar com ela. Se me permite usar esta porta secreta. Dá diretamente frente à quarto de sua mãe, conforme me disse ela. Abre-se oprimindo a moldura, acredito que neste lado. Aqui. Sim. Se afunda a moldura, mas não se abre a porta. — OH! O esconderijo que procurávamos! Não lhe disse ficava neste painel? Abriu-se ao apertar você à moldura. Foram as duas para a prateleira, onde efetivamente se encontra o oco de uma portinha. Mas na escura cavidade só há um papel enrugado. Um papel do que os dedos do Renato se apoderam rapidamente e, emocionado exclama: — Aqui está! Isto era! Diante de mim, meu pai enrugou esta carta e a arrojou aqui dentro. — Era essa a carta que? — Sim. Acredito que se. Você, naturalmente, saberá o que diz. — Não, filho, nunca cheguei a lê-a. Bertolozi a enviou com o próprio Juan, como já te contei, e seu pai a leu frente ao cadáver de que tinha sido seu implacável inimigo. Fixa a vista naquelas linhas que lhe queimam, Renato permanece silencioso e imóvel muito tempo, e ao fim começa a ler em voz alta o que já leu com o olhar. Começa a ler com a mesma angústia, com o mesmo invencível respeito de maneira que leu seu pai frente ao cadáver do Andrés Bertolozi. Com minhas últimas forças te escrevo Francisco D'Autremont, e te peço que venha a meu lado. Veem sem medo. É tarde para que eu me cobre em sangue todo o mal que me tem feito. Não tenho que te repetir quanto te odeio. Você sabe. Se matasse com o pensamento, te teria aniquilado, mas só eu mesmo me consumei inutilmente na fogueira deste rancor que me apodrece a alma. Mata-me o ódio mais que o álcool. Por ódio calei durante anos inteiros. Hoje quero te dizer algo que acaso te interesse. Esta carta a porá em suas mãos um moço. Tem doze anos e ninguém se ocupou jamais de batizá-lo. Eu lhe chamo Juan, e os pescadores da costa lhe dizem algo mais. Juan do Diabo. É uma fera, um selvagem, acreditai-o no ódio. Tem seu coração malvado, e eu lhe dei, além disso, rédea solta a todos seus instintos, destilei sobre seu coração rancor e veneno. Sabe por quê? É seu filho!" A velha carta do Bertolozi tremeu nas mãos do Renato, como tremeu primeiro nas do Francisco D'Autremont. Seus olhos, aumentados de angústia, elevam-se para percorrer a estância, sem vê-la, e a figura desolada dovelho notário, imóvel, mudo junto a ele. Um instante respira com dificuldade, afogado pela emoção daquela tragédia, não por longínqua menos cruel; mas de novo os artigos desiguais lhe atraem como se ardessem. Outra vez volta para eles, e outra vez bebe naquelas letras todo o veneno que Andrés Bertolozi pusesse nelas: — “Sim seu filho estiver frente a ti, olha-o à cara. Às vezes é seu vivo retrato, outras se parece com ela, ela, a maldita rameira que me traiu, a que me 19 Pégasus Lançamentos arrancou, a que foi tua, como é teu esse filho, vergonha de minha vida. Toma-o, leve-o. Tem o coração podre e a alma danificada de rancor. Não sabe mais que odiar que aborrecer. Se o levar contigo, será seu inimigo, envenenará seu lar e turvará seus sonhos. Se o abandonar, rodará ao mais baixo, será um assassino, um pirata, um bandido que acabará na forca. E é seu filho. Seu filho. Tem seu mesmo sangue. Essa é minha vingança!" Com dor intensa, pálido de primeiro espanto, vermelho de indignação um instante depois, Renato D'Autremont espreme aquela carta, última mensagem do rival vencido, do inimigo triunfador na morte. E como Francisco, naquela madrugada fatal, sente o desejo de cuspir sobre o rosto morto, sobre a tumba do Bertolozi. — Pode um homem ser tão vil. Noel? Pode alguém vingar-se deste modo na carne indefesa de uma criatura inocente? Sabia você tudo isto? — Pressentia-o, até sem ter conhecido até agora esta carta horrenda. — E Juan? O pobre Juan. — Minha compaixão por ele tinha como vê, toda a razão do mundo. Era bem justa, como justo era o empenho de seu pai em protegê-lo. Mas todo ficou contra ele. — Foi minha mãe a que ficou contra ele. Recordo àquelas horas, como se as vivesse de novo. Lembrança aquela noite em que meu pai saiu a cavalo por última vez, e a lembrança é como uma queimadura. Porque eu também me voltei contra ele! — Renato, filho, o que diz? — Foi defender a minha mãe, e suas últimas palavras foram para liberar do peso a minha consciência. Sim, Noel. Em Seu leito de morte, meu pai me disse duas coisas: que tinha feito bem defendendo a minha mãe, até contra ele, e que ajudasse ao Juan, que lhe tendesse minha mão de amigo, de irmão. De irmão, sim, essa foi à palavra que usou a lembro perfeitamente. E essa palavra se cravou para sempre em meu coração de menino, e lhe jurei cumprir seu desejo. E contra o mundo inteiro o cumprirei, Noel! Deixou cair à carta sobre a mesa, Enxugou-se as têmporas, úmidas de um suor de angústia. Logo, com rápido movimento, toma o velho papel espremido e o acende na chama amarela do abajur, comentando: — Agora queimo esta infâmia, este papel odioso, este grito de rancor e baixeza, que é a herança do Juan. Eu lhe darei outra, darei-lhe ao que meu pai quis que lhe desse: minha confiança meu afeto, meu carinho de irmão. E a metade destas terras que por seu sangue lhe pertencem. — Filho, Por Deus. Tenha prudência. — Prefiro ter justiça, Noel. Que ao fim haja justiça sobre a terra dos D'Autremont. Justiça, compreensão, amor e piedade para os que vivem, e perdão para os pecados dos que morreram. 20 Pégasus Lançamentos Deixou cair sobre o largo cinzeiro de porcelana a carta que é já só um punhado de cinza negra; logo, com rápido gesto, vai para a porta, e o velho notário pergunta: — Aonde vai, Renato? Não espera ao Juan? — Não posso esperá-lo, Noel. Agora vou a seu encontro! No largo portal quase em penumbras, Renato retrocede um passo contemplando a Aninha. Esteve a ponto de tropeçar com ela ao sair do escritório. Pela primeira vez, os olhos claros e doces do filho da Sofia se fixam nela com suavidade. Tem o coração cheio de ternura, de compreensão humana, de amor e compaixão para todos os seres da terra. Sente-se imensamente generoso, disposto à bondade e à indulgência, e domina até ele movimento instintivo de antipatia que lhe produz a magra e escura mestiça, e pergunta afetuoso: — O que acontece, Aninha, por que me olha dessa maneira? — Parece você contente senhor. — Sim, Aninha , estou contente. — Entretanto, é preciso que saiba a verdade, que não lhe enganem mais, que não se burlem mais de você. Que saiba quem lhe mente, quem lhe desonra. — Aninha! O que está dizendo? — exalta-se Renato, endurecendo o gesto de sua expressão, faz um momento todo doçura. — Você leia esta carta, senhor Renato! Leia-a! As palavras da mestiça foram uma sacudida brutal, um descender violento do exaltado e luminoso clima de ternura, de amor e de nobreza no que sua alma vivia. É um halo que lhe derruba, um mundo de ilusões que se despenha, uma espantosa sensação de cair no vazio. De um momento arrebatou a carta das mãos da Aninha sem olhar sequer a quem vai dirigido. Logo lê de repente, como se tragasse de um só sorvo um copo de veneno, e ameaça à mestiça: — O que significa isto? Quem te deu esta carta? Para quem é? — Para o Juan do Diabo! — Para o Juan de Deus. — retifica Renato, lendo. — Quem escreveu esta carta? — Não o está vendo? Não sabe? Não conhece a letra ? Outra vez tornou Renato a olhar aquelas linhas, aquelas letras que parecem dançar ante seus olhos, arder em chamas de brincadeira e de ignomínia. Aquelas palavras cujo significado horrível não quer compreender, e que, entretanto, vai lhe penetrando mais e mais, até cravar-se em sua fibra mais sensível. Com olhos de louco olha a Aninha, que retrocede como pretendendo a fugir, quando lhe fecha o passo: — Perguntei-te quem te deu esta carta! — Não deram isso a mim. Roubei-a, recolhi-a quando a deixou cair à estúpida com quem a enviaram. Esta é a carta que a senhora Aimée mandou ao Juan do Diabo com sua Ana criada de confiança. Mandou entregá-la ao Juan do Diabo! — Ao Juan do Diabo! Ao Juan do Diabo! O que diz é mentira! — É verdade! Juro-o! A senhora Aimée. 21 Pégasus Lançamentos — Não a nomes para manchá-la, porque vai nisso a vida! Fale. Fale! — Não minto! A senhora Aimée quer ao Juan do Diabo! Veem-se a sós, têm encontros. — Cala! Cala! Rudemente, a mão do Renato tomou a garganta da mestiça e apura enlouquecida, enquanto, sem defender-se, lança Aninha seu último jorro de veneno: — É a verdade, é a verdade! Me mate se quiser, por dizer-lhe, mas mate-a também a ela por lhe ser traidora! — OH, basta! Basta! Soltou-a fazendo-a cair; um instante a olha como fora de si, logo volta às costas e corre para seu quarto. Aimée se pôs que pé apoiando-se no genuflexório, onde permaneceu imóvel, de joelhos, juntas as mãos, sem chorar nem rezar, doloridos pela tensão o corpo e a alma. Agora sacode a escura cabeça, ante a chegada de sua mãe, que a interroga: — Filha, o que passou? Onde está sua irmã? Foi a meu recado. Pedi-lhe que me fizesse um favor, e está Fazendo-me. Isso é tudo. Ia esperá-la aqui. Aimée se dirigiu para a janela, tratou que perceber todos os ruídos, mas nenhum chega até ela no longo silêncio da noite. Tudo está em sombras, tudo parece totalmente tranquilo, só um passo que chega muito depressa faz gelá-la sangue em suas veias. Quer retroceder, esconder-se, fugir, mas já é tarde, pois Renato irrompe na habitação e ordena autoritário: — Aimée! Veem! Arrastou-a quase, levando-lhe consigo, os dedos como ganchos de ferro de aço cravados no braço dela, obrigando-a a afastar-se daquela quarto onde fica sozinha a assustada Catalina, que não teve tempo sequer de pronunciar palavra alguma. . Empurrou-a, colocando-a pela força sob o farol de luz amarela, e fica olhando-a muito de perto de marco em marco, com expressão? Fera e terrível, enquanto ela treme e em vão tenta retroceder. Não tem onde dar um passo atrás, e ele está ali. Em seus olhos lhes dar há uma labareda de cólera infinita, de rancor sem nome, um fogo que Aimée nunca viu naquelas pupilas, mas que bem conhece em outrosolhos, e suplica assustada: — Renato! Está louco? — Louco e cego tudo que ter sido! Hipócrita! Perdida! — Por que falas desse modo? Por que me olha assim? — E com afogado espanto tenta defender-se: — Renato perdeste o julgamento? — Recorda esta carta? Diga-me! — Eu. Eu. Eu. — balbucia Aimée sem encontrar saída. —É tua. Não o negue, não pode negá-lo. É tua sim, você a escreveu! Enganava-me! — Não, Renato, não. — Nesta carta geme, suplica, pede-lhe compaixão a outro homem, e é para mim a quem devia pedi-la. Mas não o faça, porque será inútil. Será inútil! 22 Pégasus Lançamentos Aimée tratou que fugir, mas as mãos do Renato a atendem oprimindo-a sobem a sua garganta, arrudas e decidida. Com a suprema audácia do terror, Aimée obtém forças para fugir para destilar o veneno de uma acusação: — Não sou eu a culpada. Juro-lhe isso! É ela. Ela. Peço compaixão, mas não para mim. Peço piedade, mas é para ela. Humilho-me e suplico, mas é para salvá-la a ela. A Mônica! — O que é o que diz? — Mônica é a amante do Juan do Diabo! — Não! Impossível! — Jurei calar a custa de tudo. Jurei não dizê-lo. Por minha mãe. Renato, por nossa pobre mãe, quis salvar a minha irmã. Quis salvá-la a custa de mim mesma. Tenha piedade dela, Renato! Tenha piedade dela, e tenha piedade por mim! Como se um golpe brusco despertasse, como se ascendesse do fundo de um abismo, como se em suas trevas se fizesse a luz de repente, como se em meio de seu desespero sem limites um raio de esperança chegasse lhe deslumbrando, Renato retrocedeu procurando a verdade nos olhos do Aimée, que agora choram de espanto, em suas mãos estendidas que pedem compaixão e piedade, é aquela voz que o terror há quebrado em soluços, enquanto torpe e desesperadamente resmunga sua mentira: — É Mônica. É Mônica. Minha pobre irmã que está louca, já lhe disse isso. Escrevi a essa fera do Juan para detê-lo. Não era possível abandoná-la em mãos dessa besta sem coração. Dá-la ao Juan é igual a entregá-la indefesa nas garras de um tigre. Não me entende, Renato? Mônica é a amante do Juan! Entregou-se a ele em um momento de loucura, sem saber o que fazia, e ele a converteu em sua escrava, em sua vítima. Não compreende? — E como posso compreender? — Lhe quis, perdeu a razão um momento, e agora ele é o amo. Manda, ordena, arrasta-a como a um farrapo, e ameaça com o escândalo. E ela morre de medo, e sofre, e chora e... É um canalha, Renato, um canalha, um bandido! Mas não lhe provoque, não ponha frente a ele. Deixa que eu seja quem lhe fale quem lhe diga. — Não minta mais! — estala com fúria Renato. — Não acredita o que te digo? Juro-te que é pela Mônica que escrevi esta carta! Ela estava enlouquecida de espanto e me pediu auxílio. Tem-na encurralada, aterrada, e agora mesmo. — Agora mesmo, o que? — Estão discutindo ali, depois da igreja! Ela luta por convencê-lo de que se afaste, de que a deixe voltar para seu convento. É o único que lhe pede o único que lhe implora. — Atrás da igreja disse? — Renato querido, tenha pena da Mônica. E perdoa-me. Perdoe-me por não lhe haver isso dito. Ela não me perdoaria jamais se soubesse que você sabe. Ela está arrependida. Quer matar-se, morrer. 23 Pégasus Lançamentos — Pelo Juan do Diabo? — Prorrompe Renato com desbordado sarcasmo e amargura. — Não por ele, mas sim por seu pecado, por sua vergonha. Eu quero ajudá- la a que ele se afaste. O prometi. Comprar marcha e seu silêncio. Talvez um pouco de dinheiro bastaria — Você acredita que basta com um pouco de dinheiros salta Renato com ira concentrada. — Acredita que Juan é o mais vil, o mais canalha, o mais prostituído dos homens? — Sim, Renato, sim. É todo isso. Por isso Mônica está enlouquecida. Sabe que mamãe morreria se ela desse um escândalo assim. Prometi-lhe falar com essa fera, lhe deter, lhe pedir. Interrompe-se de repente e ao observar o movimento de Renato, pergunta espantada: — Aonde vai? — Vou ali, e você vem comigo! Arrastou ao Aimée, levando-a consigo. Em vão ela luta, em vão resiste. O vai como louco, como cego, sem acertar sequer a distinguir em que caos de sentimentos, em que torvelinho de loucura vão envoltas sua razão e sua vida. E lutando, Aimée suplica: — Não, Renato, não! Por favor, espera. Ouça-me! — Frente a eles dirá o que tenha que dizer! — Não. Não! Está louco? Não me leve assim! — E em seu desespero grita Aimée: — Por favor. — Renato. Aimée. Filha. Filha. — Em vão clamou a voz espantada da Catalina, pois tomo uma tromba cruza Renato salga e jardins, arrastando ao Aimée consigo, enquanto a voz da Catalina do Molnar persiste em um grito: — Renato. Aimée. A anciã intui a tragédia, pressente, e adivinha. Quer correr, mas lhe falta o ar, lhe nubla a vista, e cai fim de joelhos. Viu cruzar uma pequena sombra e chama. . É Colibri, mas este não se detém a voz desesperada que clama em um soluço: — Moço. Moço! Logo. Socorro. — O que acontece? Quem chama? — É a voz do velho notário que espantado ante os gritos de auxílio se aproxima e, assombrado, exclama: — Dona Catalina. — OH, Noel, meu amigo! Logo! Terá que impedi-lo! Chame dona Sofia! Terá que impedi-lo! — Mas, impedir o que? — Vai matar a minha filha! Ai. Ficou imóvel, sem sentido. Noel, trêmulo, olha a todas as partes. Sombra e silêncio caem sobre campos e jardins. Um trovão próximo parece agitar o espaço e uma rajada de vento assobia entre a folhagem e a espessura. Também ele presente, intui, adivinha, treme ante o terror do que vê, e levanta em vão os olhos ao céu enquanto a tormenta se mora. Tão inútil como o desejo de deter a tormenta, tão, impossível como sujeitar o raio, é impedi- lo. E ante sua impotência, exclama como em uma reza: 24 Pégasus Lançamentos — Meu deus! Meu deus. Capitulo 4 — Mente! Você veio a atravessar-se em meu caminho porque averiguou que íamos fugir, porque vive a espiã. — Eu vim porque Aimée me pediu que viesse! Vim em seu nome para fazer compreender a você sua loucura e sua baixeza! Vim para lhe pedir. — É inútil me pedir! Ferozmente, Juan enfrentou Mônica, acesas de cólera as soberbas pupilas. Foi a ela como se queria destroçá-la, golpeá-la com seus punhos poderosos, mas a pálida figura gelada e triste que se eleva ante ele, detém-lhe, inspirando um respeito invencível, enquanto um relâmpago vermelho, o que é já de ódio, brilha em seus olhos magníficos. — Advirto-lhe que se Aimée não aparecer dentro de cinco minutos, vou procurá-la onde esteja, sem que nada nem ninguém me detenha. Nem sequer seu marido! — Pretende levar-lhe pela força? É que não entende que ela não quer ir? — protesto Mônica em um arrebatamento de ira. — Lhe roga! — Pois bem, sem pedidos! Exaspera-se Mônica. — Não quer ir com você; não quer lhe seguir. Volte em si dessa estúpida vaidade pela que pretende ser para ela mais que nada no mundo. Aimée está arrependida de sua loucura. Chorando me pediu que lhe detenha; rezou, acaso pela primeira vez em sua vida, lhe pedindo a Deus que a salve de você, de sua violência, de sua barbárie, da brutal paixão que você significa. — Quem disse isso? — Ela mesma! Já sabe Juan: ela não quer lhe seguir. Ela só pede que a deixe tranquila! — Burlando-se por mim? — Não há brincadeira. Há arrependimento, dor de sua consciência, desejo de refazer sua vida, de ser fiel e leal ao homem honrado de quem é esposa. — Mentira! Mentira! Que ela venha! Que cara a cara me diga isso, que me jure todo isso, que me diga que não quer voltar para ver-me, que ela peça, ela mesma, que ouvi seu nome, e então. — Juan! — atalha-lhe Mônica com gesto imperioso. — Alguém vem. Alguém vem, sim. Vá-se, esconda-se. — De pronto, como se o mundo lhe viesse em cima, lança um grito: — Renato! — E até mais espantada: — Aimeé 25 Pégasus Lançamentos — Eu, sim. — confirma Renato, chegando junto a eles. — No melhor momento, Mônica. Já sei que pretendia que o ignorasse tudo. Já sei que reprovará a suairmã por haver dito, mas ela não podia calar, não era possível que seguira calando, porque, queira ou não, eu sou o amo desta casa e o chefe desta família. — Renato. — murmura Mônica completamente desconcertada. — Importa-me pouco o que pense, nem o que Juan possa dizer. Estão em minha casa, e em minha casa se vai pelo caminho reto, joga-se limpo, procede-se com dignidade e decoro. E se o esqueceste, Juan, aqui estou para lhe recordar isso e para exigir-te conta muito estreitas da forma em que procedeste com a Mônica. — O que? — se estranha Juan, sem compreender o alcance das palavras do Renato. — Entende de uma vez, Juan, que neste assunto é comigo, e não com as mulheres, com quem vais medir-te. — Não sabe quanto celebro que seja contigo! — aceita Juan em tom insolente. — Desejando estava te encontrar cara a cara! — Pois aqui me tem! — oferece-se Renato violentamente. — Entender-te-á comigo, e só comigo! — Quando quiser! — desafia Juan dando um passo adiante e jogando mão a sua cintura. — Não! Não! Essa faca. — Adverte Mônica em um grito de espanto. — Eu não tenho armas! — Indica Renato com gesto nobre e feroz. — Melhor é assim! — Aceita Juan arrojando a faca ao chão. — Cara a cara. De homem a homem! Com os punhos, com os dentes, com as unhas. Como quer! Vim a levá-la, e a levarei por cima de ti! — Não lhe levará isso sem fazê-la sua esposa! — O que? — desconcerta-se Juan. — Fazê-la minha esposa? — Mônica é para mim uma irmã. Se lhe dever a honra, terá que cumprir! — Mônica. — gagueja Juan estupefato. — Mônica. Sim. Sim! — intervém Aimée com decisão. — não o negue, Juan do Diabo, não tente mentir. Você arrastou a minha pobre irmã aos piores extremos, Você a tem assustada, encurralada e submetida pelo terror. Você. Você. — Aimée. — reprova Mônica com acento dilacerador. — É a verdade! É a verdade! Perdoe-me que o aja dito ao Renato, mas eu não podia me calar isto. Não podia! Perdoe-me, Mônica, me perdoe! Tive que lhe dizer. Foi necessário. Ouve-me? Entende-me? Era horrível o que Renato acreditava. Tive que lhe dizer a verdade. Que foi você. Você. Você! Foi a ela, espremendo seu braço, mas Mônica a rechaça de um brusco empurrão, erguendo-se fria, tensa, sacudida por um tremor nervoso. Juan retrocedeu afogada de assombro à voz em sua garganta, mas Renato deu um passo sujeitando ao Aimée com suas mãos como garras, cravadas as pupilas no rosto da Mônica como se aparecesse ao fundo de um abismo: — Mônica, Aimée me há dito que Juan é seu amante. É verdade, ou é mentira? 26 Pégasus Lançamentos — É verdade, Renato. — murmura Mônica em voz rouca. E cobrando forças e valor, prossegue com seu engano: — É o homem a quem quero o homem a quem lhe dava meu amor e minha vida, e não te dou direito a intervir. Não te dou direito. O olhar do Renato foi para o Juan como um relâmpago. Vê o rosto viril endurecido, apertadas as mandíbulas, ardentes os olhos com uma chama indefinível e lhe espeta: — Isto se arruma de homem a homem, Juan: sua vida contra a minha! — Por quê? Por quem? Por essa. — Salta Juan em um estalo de ira e de asco. — Pela mulher que é uma irmã para mim! — Sentencia Renato em tom terminante e ameaçador. — Cumprirá com ela! Levará-te como um homem, ou te matarei como a um cão! — Não. Não, Renato! — intervém Mônica com a angustia refletida em seu pálido rosto. — Este assunto é meu, só meu. Não posso consentir. — Cala! — interrompe-a Renato imperioso. E dirigindo ao Juan, exclama: — Só a mim tem que me dar contas, Juan! — Lhe darei cumpridas isso. Me aceita por marido, Mônica do Molnar? — Não. Não! — Rechaça Mônica com o desespero enroscada em sua garganta. — Que não, há dito? Pois eu digo que sim! Casará-te com o Juan do Diabo, ou não sairá ele vivo daqui! É um instante, um desses instantes largos como séculos em que as almas tremem. Desesperadamente, Renato ordena, pede, exige. Não acreditou mais que pela metade as palavras de Aimeé, logo que pôde dar crédito a seus olhos ao achar juntos a Mônica e ao Juan e se aumenta em seu peito a resolução terrível, o anseia selvagem de matar, até agora desconhecida para ele. Quer achar a verdade. A verdade que ao mesmo tempo lhe espanta, e treme também ele ao ver tremer a Mônica, que vacila como se um momento considerasse a e daquele abismo repentinamente aberto a seus pés. — Já viu que não quer casar-se comigo — Expõe Juan com o mais amargo sarcasmo. — Sou muito pouca coisa. Para uma Molnar. Como marido, não sirvo. Sirvo como brinquedo, como diversão, coma amante de um dia, como boneco com o qual divertir-se durante os meses de espera para umas bodas de sua fila. Para isso é para quão único sirvo. Sorriu. Sorriu como Satanás pudesse sorrir. E não olha a Mônica, a não ser a Aimée que se mantém tensa e rígida, sentindo apertar-se um pouco mais as mãos de Renato, lhe devolvendo aquele olhar com a sua fixa como se contemplasse a moeda que salta no ar para cair, jogando a cara ou cruz a morte ou a vida. E é Mônica quem rompe o silêncio espectador: — Aceito! —Eu acredito Renato. — Começa a dizer Aimée; mas Renato a atalha imperativo: 27 Pégasus Lançamentos — Você, cala! Aceita, sim? Naturalmente que aceita, Mônica. E você, naturalmente que cumpre Juan. — E com indefinível amargura, comenta: — Que razão pode haver para que essas bodas não se realize? Qual é o impedimento legal? Por que citar-se atrás da igreja, Juan, quando pode levá-la depois de receber a bênção de Deus no altar, com a alegria de todos e o aplauso da sociedade? Por que não casá-los, Aimée? Não é isso encher a medida de seu desejo, cumprir como Deus manda, como uma boa irmã? Por que não ser nós padrinhos dessas bodas? Por que proceder como criminosos quando não estão fazendo nada, absolutamente nada para o que não tenham direito legal? Aceita. Naturalmente que aceita, Mônica! Casa-te. Naturalmente que te casa Juan! Há um rumor de passos e vozes que se aproximam, e uns e, outros se olham surpreendidos, até que Renato comenta: — Acredito que vem minha mãe. Certamente Catalina correu a lhe dar aviso. Bem vindos todos para escutar a boa nova e elevando a voz, chama: — Mãe. Noel. Aqui estamos. Já verão como vão alegrar se todos. — Renato. Renato. — Suplica Aimée presa de angustia. — Não lhes fale. Não lhes diga. — Aimée. Filha. — prorrompe Catalina chegando junto ao grupo. E surpreendendo-se, exclama: — OH, Mônica. — Mônica, sim — confirma Renato. — Mônica e Juan de Deus. Não é esse o nome que Mônica gosta de lhe dar? Juan de Deus. Aproxime-te, mãe. Sim, Juan está aqui, mas não há nada pelo que tenham que alarmar-se. Sofia D'Autremont chegou junto ao Renato, pálida, temerosa, como se visse chegar por fim a desgraça tantas vezes pressentida para seu filho; mas Renato sorri. Sorri com um sorriso novo nele: desafiante, amarga, quase agressivo, quando explica: — Tenho que dar a todos uma grande noticia: Mônica e Juan decidiram casar-se, e o farão em seguida. Em seguida! — Renato, suplico-te. — Nenhuma palavra mais por esta noite, querida — corta Renato com ira o pedido do Aimée. — Precisa descansar e dormir. Amanhã te aguarda um dia terrível. Amanhã mesmo será as bodas. Tenho também o maior empenho em que amanhã mesmo estejam longe daqui. — Mas. — Sem pesar. Eles não protestam, não replicam, aceitam sua cruz, aceitam a lógica consequência do pecado que hão cometido. Ou não acredita que é um pecado? Pensa que devo aplaudir sua falta de respeito à casa de minha mãe? Desculpe-me. Já sei que se trata de sua irmã e que deve te sentir, quase como se o tivesse feito você mesma. Sente-se assim, verdade, querida? Pois despreza essa ideia e não pense mais no assunto. Eu faço em todos os quem absoluto responsável por seus atos, desligando o de responsabilidades co-sanguíneas. Ninguém é culpado, mas sim deseus próprios atos, e pobre daquele cujos atos possam voltar-se contra ele algum dia! 28 Pégasus Lançamentos Quase arrastada por Renato, agora detida por ele frente à porta daquele departamento preparado para o amor e a sorte, Aimée procura em vão gestos e palavras. Há algumas horas acredita viver em um pesadelo. Renato é agora, de repente, outro homem para ela: longínquo, gelado, amargurado, e ao mesmo tempo imperioso, desconfiado, agressivo, como se cada instante temesse ser apunhalado pelas costas, como se alguém tivesse derramado em suas veias um sutil veneno que corre envenenando-o. A olha. A olha muito de perto, com fera olhar interrogadora, e logo sorri. Sorri com um sorriso frio e breve, que é pior que todas as recriminações, que todos os insultos, que todos os gritos. — Renato. — suplica Aimée com mortal angustia. — Entra, e me deixe. Tenho muito que fazer ainda — ordena Renato com aspereza e lhe dando um leve empurrão, depois do qual fecha com chave a porta. — Renato. Renato. O que faz? — assusta-se Aimée. — Renato. Renato. — Filho, fechaste com chave essa porta? — pergunta Sofia aproximando-se preocupada e vacilante — Com a Aimeé atrás dela? — Justamente, mãe, com a Aimeé atrás dela. E agora, se me der sua permissão. — Não, aguarda um instante. Quero saber o que há passado. Reclamo-o, exijo-o. Por que decidiste essas bodas, que não te concerne, em uma forma assim? Por que trata Aimée deste modo? Por que procede como se tivesse enlouquecido? — Talvez porque quero chegar ao fim. Não me perguntes muito, mãe. — O que lhe têm feito Renato? — angustia-se Sofia. — Estava segura, estava bem segura. O golpe que mais possa ferir-te tem que chegar dele. — De meu irmão Juan? — revolve-se Renato desafiante. — Renato! — alarma-se vivamente Sofia. — De meu irmão Juan, mãe. Diga-o de uma vez, acaba de dizê-lo. E me diga mais, me diga tudo o que sente tudo o que pensa tudo o que calaste e cala ainda, contendo anos e anos o desejo de me gritar isso me diga que me odeia que sabe que me odeia justamente por isso, porque é meu irmão e bastou uma fórmula legal, bastaram uns papeis e umas assinaturas para que a mim todo fosse outorgado enquanto a ele lhe negava tudo. Diga-o, mãe, diga-o. — Não foram uns papéis, não foram umas assinaturas. Foi à diferença de toda uma vida: a minha, reta, honorável, limpa; a dessa mulher que deu à casa D'Autremont um bastardo. O que digo um bastardo, um filho maldito, fruto do adultério e a vergonha, a dessa prostituta baixa e vil, como baixo e vil tem que ser o coração desse homem que hoje te feriu. — Não me feriu, mãe. — Que não te feriu? Então, por que te revolve assim? O que pode te importar que Mônica. Renato, filho, diga-me a verdade, toda a verdade! — A verdade é a que ouviste, é essa e não pode ser outra. O que pensaste mãe, o que acreditaste? Pensa que se houvesse sido ela como suspeitas, estaria ela viva atrás dessa porta? Nem ele nem ela teriam escapado com vida, mãe. Mas essas bodas é minha garantia. Por isso quero casá-los eu mesmo, em seguida, quanto 29 Pégasus Lançamentos antes. Ver no rosto de minha esposa o sorriso feliz de quem leva uma irmã ao altar. Já sabe tudo, mãe, e sabe também aonde vou. Vou acautelar aos que cuidam os lindemos, a pôr guardas em todos os caminhos do vale, com ordem de deter os que entrem ou saiam. Juan do Diabo não escapará daqui sem haver-se unido para sempre a Mônica do Molnar, sem atar suas vidas ante os juízes e o sacerdote, sem fazer boa a palavra empenhada, sem me provar a mim que é ela, e só ela, a que pôde prostituir-se até ser a rameira do porto que aguarda os marinhos. — Renato. Filho! Sofia D'Autremont deu uns passos atrás do Renato como se pretendesse até lhe reter, mas ele não se detém sua voz nem a seu gesto, afasta-se rápido e decidido. Sofia vacila, olha à porta daquela quarto em que Renato encerrasse ao Aimée. Por um longo momento parece lutar consigo mesma e, antes de afasta-se, ameaça como sacudida pela violência de um sentimento invencível: — Pobre de ti! Pobre de ti se tiver chegado a manchar o nome de meu filho! Aimée se deixou cair rendida no pequeno divã de raso colocado aos pés da cama. Em vão sacudiu a fechada porta, em vão tratou que escutar aproximando de suas frestas o ouvido. Só percebeu os passos que se afastam as vozes apagadas daquela conversação entre a mãe. E o filho, e agora lhe assalta a lembrança daquelas horas que foram como a ameaça de uma adaga sobre seu peito. Como o vértice de um torvelinho, volta a sentir-se arrastada pelo Renato até aquela cena de pesadelo em que saltam como visões de horror os rostos conhecidos: Mônica, Renato, Juan. Juan, sobre tudo. Aquele Juan amado e aborrecido, temido e desejado, a cuja evocação o sangue de suas veias parece ferver. — Não é possível. Não é possível. Todos hão enlouquecido. Todos! Ele disse que sim. Ela disse que sim. — Senhora Aimée. — Ana! — surpreende-se Aimée. — Como entraste? Por onde? — Não entrei senhora, estava aqui. Esperando-a como me ordenou. Quando senti que vinha com você o senhor Renato, escondi-me. Como você me disse que não falasse com ninguém a não ser o que me mandasse lhe dizer. Já não se lembra senhora? — Não tenho nada que te dizer! Vete daqui! — E por onde, senhora? O senhor fechou com chave a porta. — Quer me dizer para que me encerra como a uma fera? — O senhor anda desconfiado, senhora Aimée, bem desconfiado. Não há mais que ver como a olha. Se eu fosse você, andaria com muito cuidado, porque ao senhor Renato lhe deveram dizer. — Algo mais que dizer, Ana. A carta que mandei contigo, essa maldita carta que lhe arrebataram essa carta que seguramente roubou Batista, está em suas mãos. Deveu entregar-lhe ele, para comprar seu perdão com esse serviço. E tinha que ser você a que deixou cair minha carta. Você, maldita estúpida! Negra imbecil! — E você para que o fez? Se for uma negra imbecil, para que se confia em mim, 30 Pégasus Lançamentos — Porque às vezes Sou tão estúpida como você mesma. E porque estou desesperada, encurralada e perseguida pela má intenção de todos. Ana, Ana, tem que voltar a me servir! — Eu. , Ai, não, minha ama! Se o Batista deu a carta para que o perdoasse, se o amo Renato souber. Ai, minha ama! Eu não quero me colocar em mais confusões. O Batista tem a mão muito larga, e se ele voltar a mandar aqui. — Eu serei a que te esbofeteie se não me serve! — assegura Aimée, impaciente pelos reparos da faxineira. E mudando de tom, oferece: — Darei-te quanto me peça, mas agora mesmo sai daqui. — Por onde. — Pela janela do quarto penteadeira. Cairá no pátio pequeno, onde não há ninguém nunca, e ali te espera miras bem e buscas ao Juan, que não pode estar longe. — E se me vê o amo Renato, — Se te vir, não importa. Ele não sabe que estava aqui. A mim é a quem não pode ver. Procura o Juan e lhe diz que se aproxime justamente pela janela pequena por onde você vais sair. Diga-lhe que lhe estou esperando, que venha em seguida e que não me leve ao desespero, que não me faça enlouquecer porque vai pagar muito caro. Acaso com a vida! Procura o Juan e diga-lhe, Diga-lhe. Com oblíquo olhar depreciativo, Juan percorreu que trecho de piso os quatro ângulos do desmantelado galpão onde Mônica e ele se encontram neste instante. É um quarto anexo às cavalariças, onde se amontoam os sacos de forragem, os fardos de feno, os velhos arnês, as gavetas e os barris vazios, sobre um dos quais, que funge de mesa, está à garrafa de aguardente e alguns copos de áspero vidro, em um dos quais Juan volta a servir o ardente licor para beber o de um só gole. — Não beba mais, Juan. O suplico! — Segue com sua mania de suplicar em vão. Incluso não se convenceu que não atendo pedidos nem súplicas? De que é inútil. Calou olhando-a devagar,como se a olhasse pela primeira vez, acaso surpreso de sua debilitação, do esforço com que respira, das profundas olheiras violáceas que fazem mais fundos e dramáticos seus claros olhos de olhar sombrio, e acaso também surpreso de sua beleza em flor, pálida e ardente como um abajur votiva, daquelas mãos brancas, finas como de lírios, cruzadas sobre o peito para rezar ou para morrer. — Juan. Você vai-se, verdade? — pergunta Mônica com dolorosa voz suplicante. — Veio aqui esperando a ocasião de recuperar um dos cavalos que tinha, de conseguir outro, de ir-se. Verdade? . — E por que vou? — replica Juan com uma serenidade quase insolente. Há ironia em suas palavras quando prossegue: — Não ouviu você ao Renato? Não lhe ouviu dizer que não sairia vivo se tentava partir de Campo Real antes de ter lavado a afronta que lhe fiz, tomando-a por esposa? Renato quer que repare minha falta, que lave a honra dos Molnar manchado por mim, que lhe devolva a honra que lhe 31 Pégasus Lançamentos devo. Que gracioso, verdade? O jovem D'Autremont exige que me leve como um cavalheiro, lhe dando meu sobrenome. Meu sobrenome. Que gracioso é isto. Santa Mônica! Suponho que será você a que tenha que me dar isso. Então me chamarei Juan Molnar. Juan do Molnar! E herdarei com você quatro pergaminhos amarelos e meia casa em ruínas. — Ri, e sua risada encerra em si uma amarga mordacidade, ao prosseguir: — Renato o manda, e terá que obedecê-lo. Ele é como esse Deus que está lá encima, que põe em meio da vida a um moço nu e faminto, sem nome nem família, e lhe diz: "Não minta. não roube. Não mates". Mesmo que para não matar, tenha que morrer. Pois bem, agradaremos ao Renato. A que vem assustar-se agora, quando antes disse sim? — Juan, é que não compreende? — protestou Mônica com voz afogada de dor. — Naturalmente que compreendi! O único importante é que Renato D'Autremont não sofra, que não saiba nada, que não suspeite nada que possa humilhá-lo nem feri-lo. Está sobre as nuvens. Não o disse? — E em um estalo de repentino furor, protesto: — Pois não está sobre as nuvens! É uma bolota de lama podre, é um homem como todos os demais. Pior. Mais desventurado, mais ridículo, porque levou a altar a uma rameira. OH! É obvio isso não terá que dizê-lo. A história já não é essa, é muito distinta agora. Ela foi ao altar casta e pura, e você, você, Santa Mônica, era a que corria pela praia ao encontro do Lucifer. Você era a que me aguardava nua e ardente sobre a fria areia para me jogar ao pescoço o nó de seus braços, para me afogar com o bafo de seus beijos, para me embriagar com seu fôlego e com suas carícias. Você era a que passava a tormenta em meus braços, a que saltava sobre as rochas negras para me despedir, enquanto eu me afastava com o perfume de seus cabelos em minhas mãos e com a sede de voltar presa à garganta como um espinho. Você era a amante do Juan do Diabo, Santa Mônica. — Volta para rir com cáustica ferocidade, e termina com arruda violência: — E agora não cabe voltar atrás. Ele perguntou, e você disse que sim. Que sim! Só cego de desespero poderia um homem falar de modo tão bárbaro à pálida mulher que tem diante e que agora retrocede respirando com esforço, como se lhe faltasse o ar. Toda ela é como uma fibra de palha que girasse atracada pela fúria do vendaval; mas alta a cabeça, crava nele o olhar, sustenta-se lhe enfrentando, como se apoiasse na cruz que escolheu por martírio, estende os braços qual pudesse estendê-los sobre o madeiro para ser crucificada, e confessa total e entristecida. — Disse que sim. É verdade. Que outro caminho ficava? O que outra coisa podia responder às palavras do Renato? Disse que sim, mas você. — Eu também disse sim, claro está. Queria ver até onde chegavam todos você, com sua loucura; Renato, com sua imbecilidade. E essa cadela maldita, essa hipócrita, professora de todas as falsidades, essa cínica que merece ser pisoteada, também quis ver até onde podia chegar. E chegou a tudo. Até a mentir daquela maneira, olhando-me na cara. Por suposto, fez bem. Já estaria segura, já saberia até onde você era capaz de suportar. — Vacila um instante e, com súbita suspeita, pergunta: — Ou acaso foi combinada entre ambas? 32 Pégasus Lançamentos — O que diz Juan? Está louco? Como podia eu? — Saiu muito bem à cena! Tudo estava como ensaiado! Até a oportuna chegada da ilustre senhora D'Autremont. Com que horror e com que asco me olhou à cara! — Juan, por piedade. — Piedade! Conhecem vocês, os felizes, os bem nascidos, os de sangue azul, o significado dessa palavra? Piedade. Pois você aplique-a se souber. Eu não terei piedade de nada, porque de mim ninguém a teve jamais. — Renato teve mais que piedade. Teve amizade, afeto, simpatia, desejos de lhe ajudar contra tudo, contra todos. Se lhe ouvisse você lhe defender, lhe apoiar, lhe justificar, recordar os dias em que lhe conheceu na infância, afirmar sua determinação de lhe tratar como a um irmão. — Como a um irmão! Juan se mordeu os lábios, olhando para outro lado. Por cima de sua cólera e de seu rancor, não pode negar aquela verdade que as palavras da Mônica lhe recordam. Pensa no Renato menino pondo em suas mãos suas economias infantis, disposto a lhe seguir. Pensa no Renato lhe buscando na mesa de um botequim, no fundo de um cárcere. Em seus olhos limpos, em sua mão leal, e pensa também nas últimas palavras do Bertolozi, naquela verdade criada pela metade, no olhar inquisitivo do Francisco D'Autremont, em sua mão apertando-o, sacudindo-o como se pretendesse penetrar em seu coração e em seu sangue, aparecer a sua alma, saber até que ponto podia ser seu filho aquele moço desprezado, condenado a carne de forca pelo insano desejo de vingança daquele Bertolozi a quem algumas vezes chamou pai. Como uma espuma amarga, como uma baforada de asco subiu aos lábios o passado, e o aparta como se espantasse a uma mosca de um brusco tapa: — OH, basta! O que pretende? Que espera por mim? — Vá-se, Juan. Pense que o peço de joelhos, desesperada. Por que levar as coisas até o fim? Por que empenhar-se em que corra o sangue? Eu sei que em sua alma há uma fibra capaz de compaixão. Tem que havê-la; vi-a, apalpei-a. Você não é uma fera; você é um homem, Juan, e como a homem, esta pobre mulher lhe roga, suplica-lhe, e implora. Vá-se, Juan! Diga-me que vai! — Não posso responder ainda. — Não me responda, mas vá-se. Vá-se enquanto dura a noite — Levante ao amanhecer as âncoras, e que quando saia o sol, esteja longe. Não o diga, não o diga se dói seu orgulho dizê-lo, mas faça-o, Juan. Faça-o! Tem cansado de joelhos, estendeu as mãos; logo se inclina para cobrir com elas o rosto, e fica sem soluços, deixando escorregar as lágrimas entre seus dedos. Juan há olha um instante e sai da estadia movendo a cabeça como espantando uma ideia fixa. Vai confundido, transtornado, sentindo que uma quebra de onda estranha de compaixão lhe embarga, como se minuto a minuto perdesse terreno naquela batalha em que as lágrimas da ex-noviça lutam contra seu orgulho, contra seu ciúmes, contra seu rancor e seu amor. 33 Pégasus Lançamentos Deu uns passos sobre a terra úmida. Agora já não chovia, e é pálido e longínquo o resplendor dos relâmpagos que intermitentemente acendem o céu. Seus olhos giram como abrangendo aquela paisagem, e ao divisar ao menino negro que por ali vagabundeia, chama-o: — Colibri. Colibri. — Aqui estou meu amo. Tudo se acha preparado. Entre aquelas árvores, que estão atrás da igreja, escondi os cavalos assim que vi que começava a chuva. Vamos, meu amo? — Sim, Colibri, vamos. Agora mesmo. Interrompe-se ao ouvir um estranho e longínquo assobio, e perplexo indaga: — O que é isso? — Não sei meu amo. Algum nos está assobiando. — Senhor Juan. , senhor Juan. — chama Ana com insistência, mas sem gritar, chegando onde se encontra este. — Sou eu,senhor Juan. Mas não grite. Não grite que andam perto os guardas. — Que guardas? — Os guardas que mandou o senhor Renato para vigiar e não deixar entrar nem sair a ninguém. Eu acredito que é para que você não escape. — O que diz? Escapar eu? — Isso disse o amo. Eu ouvi quando o disse ao senhor notário. Que não queria que você escapasse, porque amanhã tinha que casar-se. Ai, Deus! Assim deviam fazer todos os irmãos: não deixar que escapem os noivos. Não haveria tantas pobres mulheres como deixam plantada. — Vigiar. Vigiar-me. E quem mandou a ti que me dissesse isso? — Que o dissesse a você, ninguém. Mas eu os vi e pensei: É melhor que saiba. E que se ande com cuidado até chegar à janela. — Que janela? — Não lhe disse? Ai, Deus, que não lhe disse! Tenho a cabeça que me dá voltas para todas as partes, com tantos sustos e com o golpe na pedra que me fez dar esse maldito Batista, que assim lhe comam as formigas os pés e as mãos. — Acabará de uma vez? — impacienta-se Juan. — Já vou senhor Juan. Aqui todo mundo está sempre apurado. A senhora Aimée me mandou que o buscasse por toda parte, e me disse. Deixe ver se me lembro. Ah, sim! Disse-me que estava desesperada, chorando a mares, e doente tanto chorar. — Disse-te que me dissesse isso? — Sim, senhor. Isso e muitas coisas mais, que me hão escapado. Mas seriamente que está muito assustada, e tem razão, porque terá que ver como a olha o senhor Renato. Eu o vi quando me escondi atrás da porta. A olha como se o fora a arrancar a cabeça, e ela tem muito medo e quer que você vá. — Que eu vá, aonde? — A vê-la. Pela janela pequena. Por aí me fez sair quase de cabeça para buscá-lo, porque o amo Renato a tem encerrada e disse muitas coisas muito feias. E para meu que se vocês não se casarem, ele mata a alguém, porque está como o amo dom Francisco, que em paz descanse, mandando de verdade. E a senhora Aimée 34 Pégasus Lançamentos espera a você na janela. E me disse que fora. Que fora a lhe falar você esta noite, porque se não ia, matava-se. — Matar-se ela? — sorri Juan depreciativo. — Como se fora possível para ela ir contra si mesmo por nada nem por ninguém. Matar-se ela Um instante, cruzados os braços, Juan contemplou o rosto escuro, de expressão estúpida. Logo, bruscamente, volta às costas e ordena ao Colibri: — Vamos! — Sim, meu amo, vamos. Trago os cavalos? — Vai a cavalo? — pergunta Ana com estranheza. — Até onde? — Até o inferno! Pode dizer-lhe assim a sua ama. — Se for fora do imóvel, digo-lhe que não passa da portaria. São como dão, todos com escopetas. E amo Renato mandou abrir o quarto grande onde estavam as escopetas, e lhe deram um a cada guarda. Eu os vi de dois em dois dando voltas por lá, e os viram todos na casa. — Todos? Então era uma armadilha! — exclama Juan. — Quando Mônica do Molnar me pediu que me partisse, que saísse esta noite de Campo Real, certamente não ignorava que havia homens preparados para me deter. Talvez, para me matar. Claro, depois de tudo, que valia minha vida, que vale minha vida desventurada, comparando-a com a tranquilidade do Renato? Ele, só ele importa. E eu cheguei a acreditar em suas lágrimas, a escutar suas súplicas. — De quem está falando? — pergunta Ana, que não entende nenhuma só palavra. — O que te importa? Corre e lhe diga a sua ama, a sua maldita ama que vou lá! Anda. — Correndo e voando! — afirma Ana afastando-se, ao tempo que murmura: — O que vai se alegrar! Esta vez sim que ganhei o anel, o colar, e toda a prata que me ofereceu a ama. — Juan. É você. É você por fim. Como se não desse crédito a seus olhos, Aimée estende as mãos desde aquela janela, estreita e alta, enquanto frente a ela, no pequeno pátio ladrilhado, Juan se detém cruzando os braços. Uma cólera fria, mais terrível que todos seus arrebatamentos, um rancor gelado e surdo parece encher até a última partícula de seu corpo e aparecer a seus olhos como nunca altivos, como nunca ferozes e penetrantes. Seus olhos a Italianos nos que Aimée do Molnar não lê mais que uma palavra: vingança. E claramente assustada, roga: — Juan. Não me olha dessa maneira. Compreendo o que sente o que te passa. Eu também estou desesperada. Ouça-me, me entenda. Tive que dizer isso tive que mentir tratando de enganar ao Renato, porque ia matar-me naquele instante. Tinha-me jogado as mãos ao pescoço. Tinham-lhe entregue a carta, a maldita carta que Ana se deixou roubar. — Ah. Ana! — Foi me buscar como um louco e me teria matado, Juan, teria-me matado naquele instante. Via-o em seus olhos, senti suas mãos me apertando a garganta e 35 Pégasus Lançamentos gritei o primeiro que me passou pela imaginação. Gritei para me salvar, sem saber nem o que gritava. — Sabendo-o muito bem, estando muito seguro do resultado de suas palavras, tendo preparado antes a farsa, os truques, os recursos. Tendo mandado a sua irmã para que ela me entretivera e ele nos achasse juntos. Que fácil é, que grandiosas, que maravilhosas são suas casualidades. — Juan de minha alma, eu te juro. — Cala, basta, não jure mais! — exalta-se Juan em um arrebato de ira. — Deixa a farsa e acaba de uma vez com o que tens que me dizer. Mandou-me chamar dizendo que se não acudia te mataria. Por que te mataria? — Mandei-te chamar desesperada. Disse o primeiro que me passou pela mente para te obrigar a que te aproximasse. Necessitava verte te ouvir, te falar, estar segura de que não sigas me odiando. — Me afastar? Você também quer que vá? — E o que outra coisa. Pode fazer frente às circunstancia. Ir. Aproveitar as horas de noite que até ficam, tomar um cavalo, chegar até seu navio e. — Aimée se interrompe ante a gargalhada que com amarga ferocidade solta Juan, e com uma mescla de assombro e medo, inquire — Juan, o que tem? Vais te voltar louco. — Não. Não tema. Isso queria você, verdade? Isso queria você e a outra: que me voltasse louco, ou que fora tão inocente para escutar seus conselhos e me abrandar frente a suas lágrimas. Mas não o farei. Não o farei. Fui o bastante estúpido para te querer, o bastante imbecil para pensar que você também me amava, o bastante asno para acreditar até na boa fé de sua irmã. Mas já sei o que querem as duas, já sei o que entre todos me prepararam. Foi você a que aconselhou ao Renato regar escopetas entre os guardas? Ou a ideia foi da Santa Mônica? — O que diz? — desconcerta-se Aimée. — Não entendo nada. Juro-te. — Talvez o combinaram entre as duas. Sabem muito, são iguais. Ardilosas como serpentes. Somente esqueceu um detalhe: que enviava seu recado com uma imbecil, com uma pobre tola incapaz de secundar seus planos, com uma estúpida que teve a ingenuidade de me acautelar de quantos eram e que armas tinham. — Juan. Juan juro-te que eu não sei nada. Nada. — Eu te juro que vou vingar me fazendo as coisas como vocês as fazem, cravando pouco a pouco a adaga. Você e ela. E ela mais que você, porque já te odeio tanto e te desprezo tanto. Mas ela. Ela. — O que fez ela? Juro-te que não sei nada, que não entendo nada! — Entende muito! Falhou-te o último truque, falhou a ambas o plano para desfazer-se de mim, fazendo-me prender ou matar. Melhor matar, verdade? Os mortos não falam! Mas não me moverei desta casa. Não tenho nada que fazer fora de seus jardins. Ao contrário, irei ao escritório para dizer ao Renato quanto lhe agradeço que vá a apadrinhar-me e que contente estou com as bodas que me prepara. Você é a madrinha, verdade? Com quanta alegria vai levá-la até o altar. Como vais desejar lhe felicidades a sua irmã, e que doce viagem de bodas lhe aguarda. 36 Pégasus Lançamentos — Não, não, você não vais casar-te com a Mônica! — Eu sim vou casar-me. Manda-o Renato, que é o rei de Campo Real. Casarei-me amanhã, e a partir de agora vou começar a me preparar, vou pedir lhe a meufuturo cunhado o presente que me faz falta: um barril de aguardente para a viagem! Sem escutar os gritos do Aimée que lhe chama com desespero, sem voltar sequer à cabeça para escutar aquela voz que implora da pequena janela, Juan se afastou cruzando o pátio, com uma só ideia, com uma só obsessão: vingar-se. Vingar-se usando as mesmas armas que acredita usadas contra ele: a astúcia e o engano. Vingar-se ferindo pouco a pouco, destroçar golpe a golpe outras vistas, como uma a uma foram destroçadas suas ilusões. E pela diabólica alquimia daquela intriga em que se agita seu ódio mais ardente não é para a mulher que lhe enganou, não é nem sequer para esse Renato em cujas veias sabe sangue de irmão. É para a Mônica do Molnar, para a frágil mulherzinha que, um instante prostrando-se a seus pés, conseguiu lhe convencer até as vísceras; para a que esteve a ponto de ganhar a batalha apelando a sua compaixão e a sua piedade. Agora, repentinamente, só pensa nela, e com que furor, com que ânsia sonha tê-la a seu desejo e alvedrio sobre a coberta do Lúcifer, como uma bota de cano longo mais em sua carreira de pirata, como uma propriedade de conquista naquela luta desesperada que é, e sempre foi sua vida, em guerra contra todo mundo em que nascesse, contra a sociedade que lhe rechaçasse, contra o teto e o pão que lhe oferecesse em sua infância, contra todos, enfim. Contra tudo e contra todos. Aimée saltou pela estreita janela, golpeando-se ao cair; mas dominando a dor se levanta cambaleante, e mancando a perna dolorida, dá uns passos sem saber que rumo tomar para segui-lo. E é um grito bronco de ansiedade e desespero o que sai de sua garganta: — Juan. Juan! —Aimée! Por que gritas assim? Está louca? — repreende Mônica em voz baixa, aproximando-se de sua irmã. — Juan! Juan! Busca-o, corre atrás dele, Mônica! Detém, chama-o! Vai como um louco. — Como quero ir-se, mas que se vá. Que se vá! — É que não se vai Mônica! Está como louco! Quer vingar-se! — Sua única vingança é cumprir a palavra que me há dado: ir-se para sempre. E esta vez serão inúteis seus gritos e suas lágrimas. Irá-se para sempre! Com lágrimas e súplicas lhe arranquei a promessa, e vai cumprir. — Não seja estúpida! Estou-te dizendo que não se vai. Não me entende? Não se vai Não se vai! Fica para vingar-se. Diz que vai casar se contigo para me castigar, para me voltar louca com o que sabe que pode me machucar mais, sabendo que o que mais pode me ferir no mundo é pensar em você. Que você e ele. Ferozmente, Mônica do Molnar enfrentou a sua irmã. Suas brancas mãos se crispam nos ombros do Aimée. Sujeitando-a, sacudindo-a, obrigando-a a olhá-la cara a cara, os olhos nos seus relampejantes, e ordena indignada: 37 Pégasus Lançamentos — Cala! Cala! Não diga uma palavra mais, porque não respondo de mim! Por quem me tomaste? Pensa que sou de sua mesma carniça, prostituta desprezível? O que é o que chegaste a pensar? Cale-te já! — Você é a que tem que te calar! Não sabe o que acontece, não o quer saber! Ou acaso sim sabe e está muito conforme lhe levando isso — Me levar a quem? O que é o que diz? — Não faz a não ser ir rastreando atrás de meus passos, empenhando-se em me disputar aos que me querem, a mim, a mim sozinha. Primeiro ao Renato, logo ao Juan. — Te cale! — exclama fora de si Mônica, ao tempo o que atira uma, sonora bofetada no rosto do Aimée. — Mônica! Aimée! O que é isto? — surpreende-se Renato, que chegou silenciosamente até o grupo que formam as exaltadas irmãs. — Renato! Já viu. — angustia-se Mônica. — Vi que esbofeteava a sua irmã, e compreenderá que é necessário. — Mônica não me perdoa que tenha tido eu descobri-la — interrompe Aimée dominando a situação. — Está furiosa porque você sabe, porque a obriga a casar-se. E nisso não lhe falta razão, Renato. Nisso acredito que te excede. Se ela não quiser uma reparação, por que tem que impor-lhe Mônica apertou os lábios, baixou as pálpebras, retrocedeu até encontrar o apoio de uma coluna para não desabar-se, e outra vez, depois do momento de imponente cólera em que há sentido ferver seu sangue, sente que é gelo o que lhe corre pelas veias, que são como de chumbo seu corpo e sua alma. E escuta, como através de muitos véus, indiferente já à força de sofrer, as palavras de sua irmã: — Está como louca e por isso lhe perdoo até que me maltrate. Ao fim e ao cabo, este é um assunto que não te concerne diretamente, Renato. O melhor será que deixe em paz ao Juan do Diabo, que envie a mamãe e a Mônica ao Saint-Pierre, e que tenha piedade de mim, que já não posso mais. Que já não posso mais! Há-se arrojado chorando em braços do Renato, mas ele a detém com um gesto frio. Agora só olha a Mônica: seu corpo enfraquecido apoiado na coluna, seus lábios apertados, suas fechados pálpebras, sua cabeça arremesso para trás na mais amarga atitude de supremo desespero. E com gesto sereno e tom moderado, expõe: — Se realmente Juan te dever uma reparação, Mônica, não é possível que não queira aceitá-la. Se realmente teve a debilidade de cair em seus braços, não é possível que uma mulher como você se negue a casar-se. Mau ou, teve que querê-lo para fazer o que fez, e se o que te assusta é sua modesta posição, acaso devo te adiantar que depois das bodas as coisas mudarão. Perdoe-me se insistir, mas tenho a absoluta necessidade de saber que quer ao Juan, que quis ao Juan, que foi dele, você, você. E tendo sido dele, não pode rechaçá-lo que te ofereço que é o único digno, o único decente: ser sua esposa. — Mas se ela não quer. — rebela-se Aimée. — Sim quero Renato. Casarei-me, irei com ele aonde queira me levar. Disse que sim, e é minha última palavra! 38 Pégasus Lançamentos Aimée escutou tremendo as palavras da Mônica, e se diria que, sem logo que trocar, algo se limpa no enfurecido rosto de Renato. Um instante aparta este a vista da pálida mulher recostada na coluna, para cravá-la no rosto de sua esposa. Também Aimée do Molnar está intensamente pálida; como os da Mônica, também tremem seus lábios; mas há um relâmpago sinistro em seus brilhantes olhos de azeviche, e a luz que um momento iluminasse o rosto do Renato parece apagar-se quando de seus lábios destila sutil e dolorosamente a ironia: — Vê? Não era necessário chegar aos extremos de antes para convencê-la do que é justo e natural. Qualquer pode ter um instante de debilidade, mas as gente bem nascidas. Sabem sempre que há necessidade de reparar, e Mônica não desmente a casta. E agora, para ti, Aimée, uma pequena pergunta de ordem pessoal: Por onde saiu do quarto? — Eu? Pois. Bom. Por essa janela. Sua ridicularia de me encerrar obrigou a algo, e aproveito a oportunidade para te dizer que não estou disposta a tolerar a forma em que me trata. — Temo-me que terá que tolerar muitas coisas mais, querida — anuncia Renato com suavidade, mas com um oculto acento detestável. — Voltemos para quarto. Deixa a Mônica em paz. Ela me parece que compreende as coisas melhor que você, e aceita plenamente as consequências de seus atos. Verdade, Mônica? A pálida frente da Mônica se elevou seus claros olhos, limpos, puros, altivos, cravam-se um instante nos do Renato lhe fazendo estremecer-se com uma involuntária sensação de respeito, quando esta assente muito digno: — Em efeito, Renato. Aceito e confronto plenamente as consequências de meus atos. Capitulo 5 — Sente-se e descansa. Amanhã te aguarda um dia de grandes emoções. Um manhã que já é hoje. Os dois, Aimée e Renato, elevaram a cabeça. Pela aberta janela se divisa uma parte de céu que começa a clarear. Nele arde uma estrela, vermelha como uma brasa, como um botão de fogo, como uma ardente gota de sangue. — Tudo estará preparado à hora que faça falta: os papéis, o padre, o juiz. Por fortuna, o notário o temos em casa. Um pouco remisso andava o bom do Noel, mas depois há delegado uma atividade extraordinária, quando se deu contaque de verdade ia nisto a vida ao Juan do Diabo. Sempre teve uma estranha debilidade por meu irmão. — Sim? — assombra-se Aimée. — O que diz Renato? 39 Pégasus Lançamentos — Acredito que ignorava esse detalhe. Sim, Juan do Diabo é meu irmão. Claro que com o elmo do escudo dos D'Autremont virado para a esquerda; pior ainda, porque nem sequer é um simples bastardo. É um filho do adultério, da traição de uma mulher e da deslealdade de um amigo. Dói dizê-lo, mas esse amigo infiel foi meu pai, mas vá à verdade por diante. Aimée baixou mais a cabeça, afundou um instante o rosto nas mãos. O coração lhe pulsa tão forte, que acredita não poder resistir mais. Tudo a seu redor é como um pesadelo, como um torvelinho de loucura, enquanto ásperas, irônicas e geladas, seguem soando, como se flutuassem em um negro infinito, as frases do Renato: — Justamente ontem à noite tive a segurança de que era meu irmão. E olha você o que somos os imbecis, os sentimentais, os de coração brando. Senti uma ternura e uma alegria infinita, saí para lhe buscar para estreitá-lo entre meus braços, para oferecer-lhe o que, segundo meu utópico sentido da vida, pertencia-lhe: a metade de quanto tenho. Para rogar a minha mãe, com lagrimas nos olhos, que me permitisse lhe dar também o nome de meu pai, para lhe fazer completamente igual a mim. Que imbecil sou, verdade? — Por que falas desse modo? Por que destilam assim ódio e amargura suas palavras? — Pergunta-me isso de verdade? Não sabe? Às vezes basta um raio de luz para ver o abismo; basta um minuto para que a vida troque para sempre. — Renato faz uma careta, e é mais intensamente amarga a baforada de veneno que sobe a seus lábios: — Sim. É meu irmão. Meu irmão o perdido, o contrabandista, acaso o pirata. Como Mônica é sua irmã hipócrita e rasteira, cínica e leviana. Verdade? Esperou a resposta um longo momento até que, ao fim, escapou trêmula e molhada de lágrimas dos lábios do Aimée: — É muito severo com ela, Renato. Eu. Eu me atreveria a te suplicar que os olhasse com mais indulgência. Com mais. Calou, afogando-se, e Renato dá um passo mais para a janela aberta, de onde divisa ele amplo panorama do vale, semeado-los, os campos verdes, as cúpulas das altas montanhas que douram já os primeiros raios do sol. Sua vista baixa até mais perto e se estremece ao ver o homem que, cruzados os braços, turvo e carrancudo frente à morada dos D'Autremont, observa também ao sol que nasce. Logo sorri com sorriso de fel e suas mãos baixando até o Aimée, obriga-a a voltar, a olhar por aquela janela, ao tempo que assinala: — Olha a, Juan. Está contemplando sair o sol do dia de suas bodas. O dia em que a vida dos homens muda. O dia de suas bodas! — OH. Juan! . O que faz? — Já o vê, me tomar o café da manhã na moda blusa de marinheiro, com o sobressaia que achei à mão. O serviço nesta casa está deixando bastante que desejar. Onde se foram aquelas filas de lacaios de jaquetas brancas? São acaso os que rondam agora os caminhos com a escopeta ao braço? — Juan, suplico-te que não beba mais. 40 Pégasus Lançamentos A mão do Noel, emagrecida e tremente, apoiou-se no braço do Juan apartando a taça que este vai levar a seus lábios, e os tristes e cansados olhos se fixam comprido momento no rosto do moço, endurecido de rancor e de cólera, fechado como uma noite de tempestade. Estão em um ângulo da amplíssima sala, junto aos armários carregados de baixelas de prata, Juan, revoltos os cabelos, desabotoada a camisa, toscos os gestos de marinheiro, é uma figura tão estranha, tão arruda e anacrônica, como quando de menino pisou pela primeira vez aquela estadia com os pés descalços, com o traje de veludo do Renato como inútil presente. — O que passa contigo, Juan? O que é o que realmente passou? Asseguro-te que tudo isto é como um pesadelo. Ontem à noite te busquei por toda parte e, ao não te encontrar, tive a esperança de que te tivesse ido. Logo vi os guardas. Avisaram- lhe, verdade? Avisou-te ela? — Não sei a que ela pode referir-se neste caso. Avisou-me uma "ela", mas nenhuma das duas nas que certamente você pensou. Essas teriam estado muito satisfeitas se me tivessem detido com uma bala na cabeça ou no coração, mas não saíram às coisas a seu desejo. Minha hora não tinha chegado. Como para outros homens dizem que há uma Previdência, houve sempre um demônio que protegesse ao Juan do Diabo. Um demônio que, para salvá-lo, não lhe pede mais que uma coisa: Que parta adiante pisoteando a quantos fiquem em seu caminho. Que viva sem piedade nem cuidados. Que atropele e ofenda, roube ou mate se for preciso matar. — Filho, é espantoso seu estado de ânimo, como espantosas são também o desespero e a violência do Renato. Tenho a impressão de que enlouqueceu de repente. Como pôde trocar assim em uma hora? O que digo uma hora! Uns minutos nada mais bastaram. E não é possível que o que oficialmente sabe, tenha sido bastante para. — O que é o que oficialmente sabe? — Não acredito que precise perguntá-lo. Seu pretendidos amor com a senhorita Mônica do Molnar. — Pretendidos? Diante de você ela confessou, há afirmado que foi minha amante. — Não pretenderá que cria esse disparate! Comigo pode ser absolutamente franco. — Sou absolutamente franco com todo mundo. Noel. Casarei-me com a Mônica do Molnar, a levarei comigo em meu navio. Será útil uma mulher a bordo para lavar a roupa, fazer a comida dos moços, remendar as velas e esfregar os pratos. — Não pode te casar para isso com a senhorita Molnar! Não lhe pode levar- la a seu navio! Ela tem sua casa no Saint-Pierre. Aí é onde tem que ir e ali irei eu também em seguida para. — Para que, Noel? — interrompe Renato, aproximando-se da mesa onde se acham os dois homens. — Termine a frase. 41 Pégasus Lançamentos — Pois. Para lhes ajudar a instalar-se. Quando as coisas se fazem tão precipitadas como estas bodas, tudo sai mal e há depois mil detalhes que arrumar, e eu. — E você acredita que sua presença pode ser grata a dois recém casados? Não, Noel, vai você a estorvar de um modo lamentável. Juan e Mônica vão casar-se por amor. Não é verdade? — Naturalmente — desafia Juan destilando ironia. — Por amor. Um amor que salva todos os escolhos, que suprime todas as distâncias. Não se preocupe pela Mônica, Noel. Quando for minha mulher, não necessitará de nada, absolutamente de nada. — Não duvido que saberá atender e cuidar de sua esposa — concordou Noel fazendo um esforço. — Tanto como Renato à sua. Não a guardas sob chave, Renato? — Não te dou o direito de me perguntar o que faço! — rechaça Renato furioso. — Nem de entrar na sala de minha casa. Nem de beber conhaque em meus copos. Canalha! — Renato! OH, Juan! — alarma-se Noel ante o torcido que repentinamente tomaram as coisas. — Não se preocupe. Noel, não se assuste — tranquiliza Juan com dolorosa impavidez. — Seus insultos não me farão saltar. Já sei que é o amo, e ao amo todo terá que tolerar-lhe Não em balde lhe respaldam cem homens armados. É um detalhe que dá força e valor a seus mandatos. Magnífico detalhe. — Basta! Não vou tolerar. . — Sou eu quem diz, basta! Não pisarei em sua sala, não beberei em seus malditos copos. Aguardarei à hora de meu matrimonio e irei com minha mulher aonde me dê à vontade levá-la. É o que exigiu, e é o que faço. Nada mais! — cospe Juan com ferocidade incontrolável. E dando as costas a seu rival se afasta com passo precipitado. — Ah, carniça! — insulta Renato acalorado — por que se vai? Por que não responde a minhas injúrias? — Por que te empenha em provocá-lo? Não tem feito já o que quer? A que vem esse ódio repentino e absurdo? Quer me explicar às coisas com calma, acaso eu, com minha boa vontade. Renato apartou a, vista do notário, percorreu com ela a amplíssima estadia para deter-se o fim no dourado marco de um retrato, efígie do FranciscoD'Autremont, contemplando longo momento. A frente altiva, o queixo voluntarioso, a figura arrogante, tragicamente parecido ao Juan. E toda a ira lhe sacode, apaga-se, afoga-se no poça amargo que rebuça sua alma. — Renato. Não te havia sentido entrar. — Suas portas estavam abertas por acaso, mamãe, e pensei que não havia ninguém em seu quarto. — Sim. Aninha está doente, e é natural. A pobre paga pelos pecados de outro. Já sabe que Batista desapareceu da casa sem dizer uma palavra. Eu lhe tinha 42 Pégasus Lançamentos dado um posto de chefe das quadras, mas se foi despedir-se nem sequer de sua sobrinha. A pobre sofre por isso. Já sei que você não tem por ela simpatias de nenhuma classe, mas é uma servidora agradecida e leal. — Sobre tudo, leal. — murmura Renato com certo rancor. — Que tratas de me dizer? — Nada. Falemos de outra coisa. Dentro de duas horas será a cerimônia das bodas, e. — Filho, de todos os modos vais fazer que se casem? Insistes? Pensei que te bastaria sabendo que estavam dispostos a casar-se. — Isso é muito fácil. Também eles puderam pensar o mesmo. Eu preciso vê- lo, final, vê-los partir em alegre viagem de noivos e retornar do braço como um matrimônio bem concorde. Se for como eles dizem, já podem sentir-se satisfeitos. Se não o for. Quero ver estalar o vulcão. Mas o é. Eles o afirma, todo mundo o diz, você mesma opina que devo aceitar a história, tal como me contaram isso. Pois a aceitando, todos temos que ser felizes. Não há razão para caras largas e soluços afogados, a não ser para festa, para uma alegre festa. Dei aos trabalhadores o dia livre, barricas de aguardente, e a ordem de dançar até que caiam. Suponho que não faltarás à igreja, mamãe. Agradará-me assistindo a essas bodas. — Se for por te agradar, terá que ir. Mas queria que me escutasse. — Não escutarei a ninguém. É inútil. — Recusa Renato vê, mas com firmeza. Olha, aqui chega precisamente Ana, oportuna por primeira vez em sua vida. — Mandei-a me trazer razão de como segue Aninha — justifica Sofia. E elevando algo a voz: — Te aproxime, Ana Como está Aninha? — Não sei. Mas seguro que está bem, porque não se achava em seu quarto nem no pátio, onde o Batista estava Armando o grande escândalo. — Retornou Batista? — murmura Renato lentamente. — Trouxeram-no os guardas, e terá que ouvi-lo. Está mais bravo que um escorpião. Não queria vir e o tiveram que amarrar. — Ana ri com divertida estupidez. — Está que se remói sozinho, como um cão com raiva. — Mandou detê-lo ele também, filho? — Mandei deter quantos tentassem cruzar os lindemos de Campo Real. Alegro-me muito de comprovar que minhas ordens foram cumpridas ao pé da letra. Agora mesmo vou falar com ele, e não se preocupe mamãe, porque não vai mal. Assim que você. Ana vá dizer lhe à senhora Aimée que se prepare. A cerimônia das bodas é às três. Deve estar arrumada um pouco antes, já que é ela quem terá que acompanhar ao noivo ao pé do altar. Anda! Prepare-lhe a roupa e ajuda-a a vestir-se. Não me ouve? — Mas, meu amo, como faço para entrar? A senhora Aimée está encerrada. — Aqui tem as chaves do quarto. Anda! Anda logo! — Empurrou a Ana, que se afasta assustada, e voltando-se para a Sofia, aconselha-lhe: — Te arrume você também, mamãe. Eu vou a ordenar que soltem a Batista e a lhe devolver seu 43 Pégasus Lançamentos importante cargo. Estou começando a te dar a razão em tudo, mãe: é o capataz ideal para este inferno florido. — Minha filha, acredito que é à hora. Aí está já Renato, e todos vão a caminho da igreja Catalina se interrompe e balbuciando, adiciona: — Eu não sei o que te dizer Minha filhinha. Eu. — Não há nada que tenha que me dizer mamãe. Mônica se pôs que pé, abandonando o genuflexório onde longamente rezou, e se move como uma sonâmbula através da estadia. Em seus olhos há um brilho estranho, suas mãos ardem, e estão seus lábios também ressecados e ardentes sob o bafo de fogo que respira. Tímida e torpe, a mãe vai atrás dela como se não achasse gestos nem palavras. — Filha, deveria te haver mudado de traje. Vai te casar de negro, de luto como uma viúva? E sem ramo de noiva? — Que falta faz? Dê-me meu livro de orações e meu rosário. — Ai, filhinha, tudo isto me parece horrível! Acredito que até poderia. — tenta persuadir Catalina; mas a interrompem uns golpes discretos jogo de dados na porta. — Não posso nada. Aí está o homem que vai levar-me até o altar. É Renato. Abra-lhe. Catalina franqueou a porta ao Renato e com a maior discrição saiu deixando- os sozinhos. O sim se mudou de traje barbeado e penteado com esmero e esmero. O Marcelino rosto, tenso e pálido, não mostra expressão de nenhuma classe. Na mão sustenta um pequeno ramo de rosas brancas, e parecem de aço suas pupilas azuis, à força de duras e brilhantes, quando interroga: — Já está pronta ? Olhou-a com ânsia, com uma espécie de interrogação se desesperada nos olhos humanizados por um instante, e Mônica sustenta aquele olhar sem responder de momento nem com um gesto nem com uma palavra; logo baixa as pálpebras e dá um passo para ele para lhe responder com um monossílabo que é de uma vez afirmação e pergunta: — Já? — Embora seja faculdade da noiva fazer-se esperar, acredito que não devemos extremar a nota neste caso. Juan está na igreja, há momento. Aqui tem seu ramo de noiva. — Obrigado, Renato — agradece Mônica com amarga ironia. — São as primeiras flores que me dá em sua vida, e tinham que ser estas. Vamos que espera Juan do Diabo! Bruscamente, quase o espremendo, tomou Mônica aquele pequeno ramo de rosas brancas, e um instante o aperta em gesto convulso contra seu peito. Tinha que ser ele tinha que ser o homem a quem tanto amou em vão, a quem até sente junto a si como uma queimadura, quem a levasse do braço ao altar, quem pusesse em suas mãos o ramo de noiva para seus bodas com o Juan do Diabo. Tinha que ser aquele Renato D'Autremont a quem amasse desde menina com o ingênuo amor de seus 44 Pégasus Lançamentos nove anos, e tinha que ser sua vontade a que pedisse a sua vida o sacrifício enorme, maior ainda que o da vida mesma. Agora vai junto a ele, logo que apoiada em seu braço a branca mão leve, enquanto chora seu coração com lágrimas de sangue, porque é aquele com quem sonhasse aquele com quem tecesse os jasmins muito puros do primeiro amor, aquele que visse noivo e marido em seus sonhos de colegial, que a leve agora como um verdugo caminho do cadafalso. Nunca foi tanto trecho de seu braço, nunca recebeu flores de sua mão, nunca lhe viu como agora lhe vê inclinar-se para olhá-la, enquanto avança com uma sombra de inquietação nas claras pupilas. — Mônica, sente-se mau? Sua mão arde. Diria-se que tem febre. — Não tenho nada! Sigamos. — Juan. Não me ouve? Juan! — Cruzando os braços, olhar perdido nas sombras douradas das madeiras do altar, Juan não parece escutar a voz do Aimée, não baixa os olhos, não volta à cabeça para olhá-la, nem um só músculo se move em seu rosto de pedra, e é seu corpo frio e rígido, como se até seu fôlego humano se petrificasse naquele instante. — Juan! Até onde vais chegar? — Juan não responde. Só inclinou um pouco a cabeça para olhar à mulher que fala muita perto, com voz afogada e suplicante; juntas as mãos e aumentadas de angústia as pupilas. Também Aimée acredita sonhar, acredita viver um espantoso pesadelo, revivendo de uma vez as cenas de suas próprias bodas que de repente lhe desejam muito longínquas, como se o torvelinho em que vive durasse há muitos anos atrás ou como se fosse suas próprias bodas a que se realizasse também naquele instante. Mais não suas bodas com o Renato, a não ser com o homem que está a seu lado, junto a ela, duro, desdenhoso e altivo. Mas a igreja não está, como então, coberta de flores. Logo que brilham quatro círios frente ao nu altar,não há tapete, nem abajures, nem sedas, nem brocados, nem uniformes brilhantes, nem aparece no lugar preferencial, à branca cabeça do Governador Geral da Ilha. Lentamente foram chegando sombras escuras, rostos de bronco ou de ébano, peitos nus, largas mãos de peões nas que tremem os chapéus de palma, pés descalços que marcam em barro seu rastro, e também saias de coloridas, Calarias inferiores grossas adornadas com o típico lenço das ilhoas do Martinica, meninos de olhos brilhantes. Toda uma audiência humilde, matizada, impulsionada por gratidão ou por curiosidade. Na porta do templo apareceram os que faltam. Uma noiva pálida, convulsa, enlutada com um xale de seda negro substituindo ao véu e à coroa de flores-de- laranja. Uma noiva com os lábios trêmulos, com os olhos acesos de febre e de espanto, que marcha devagar, como pedindo forças a Deus para cada passo, e um jovem padrinho de face áspera e sombria, de dentes apertados, com uma máscara de gelo sobre o desespero de sua alma. — Não pode ser Juan! Não pode ser, e não será! — murmura decidida Aimée em voz baixa e angustiada. De repente, vê junto a si a seu marido, e se alarma: — OH Renato. — Nossa missão termina frente a este altar, Aimée. Veem — explica Renato. 45 Pégasus Lançamentos Retrocedeu, obrigando ao Aimée a fazê-lo com ele, de uma vez sustentando- a e sujeitando-a, cravada nela seu olhar relampagueante. Mas a expressão do Aimée mudou: juntas as mãos e baixos as pálpebras. E uma careta de brincadeira dilaceradora cruza pelos lábios do Juan enquanto se aproxima da pálida enlutada para lhe sussurrar em tom desdenhoso: — Bem Agora o padre dirá. O que acontece. Santa Mônica? Parece que fora a deprimir-se. — Volte-se para o sacerdote! — ordena imperiosa e irada, Mônica. O velho sacerdote se aproximou, e no silêncio das respirações contidas poderia escutar o golpear daqueles corações que pulsam como marteladas. — Mônica do Molnar e Bizet-Villiers, quer por esposo ao Juan, sem sobrenome, conhecido pelo Juan do Diabo? — Sim quero. — Juan, sem sobrenome, conhecido pelo Juan do Diabo, quer por esposa a Mónica do Molnar e Bizet-Villiers? — Se quiser. Já brilha o aro de desposada na mão tremente de Mônica; e caíram os treze penhor de ouro sobre a bandeja de prata; já a mão do sacerdote se eleva para benzer a aliança, e seus cansados olhos se detêm na cabeça baixa, como de sonâmbula, da Mônica, e no rosto doloroso e altivo, rude e descuidado, do Juan. — Unidos para sempre ficam, meus filhos, com o laço do matrimônio, forte e santo. Como em um torvelinho de loucura, cruzou Mônica a igreja, do braço do Juan. Sem ver, sem ouvir, como o ramo arrancado de uma árvore que o vendaval arrasta, salvaram a distância do pórtico da igreja até o centro daquela praça aberta nos floridos jardins dos D'Autremont. Mônica não vê a matizada multidão de colonos que lhes rodeia por toda a parte. Não olha o rosto triste e severo da Sofia D'Autremont. Apagam-se para ela as formas do Aimée e do Renato, não distingue sequer a pálida face de sua mãe, que trata de segui-la, banhada em pranto. É como se a terra se afundasse sob seus pés, como se as nuvens girassem, e dançassem as árvores subindo e descendo na trágica dança de um terremoto. Como se seus olhos deslumbrados logo que vissem sozinha perto, muito perto, muito perto, o duro e amargo perfil do Juan do Diabo, que grita autoritária: — Colibri. Logo. Os cavalos! — Um momento, Juan! — adverte Renato. — Aguarda! Há um carro disposto para vocês; mas temos que falar antes. Escute-me! — Não temos nada que falar nem nada tenho que escutar! É minha mulher e a levo agora! De um salto está Juan sobre o cavalo. Com rápido e violento gesto que ninguém pôde prever nem impedir, eleva a Mônica sobrei à cela do cavalo que subida, encabritando-o ao golpe brutal de seus talões. Imediatamente se arma uma barafunda de vozes, movimento e confusão, e é a voz do Aimeé a que se eleva em um grito que é súplica e desespero: 46 Pégasus Lançamentos — Que não a leve! Que não se vão. — Que não se vão! Faz algo, Renato, não o deixe. Não deixe que a leve assim! Que vão atrás deles, que lhe corram atrás, que o detenham! Não me ouve? Não compreende? Renato! Renato! Não te dá conta? É capaz de matá-la! Tem cansado quase de joelhos, puxa ao braço do Renato, sincera e desesperada em um momento, mas a expressão feroz do rosto de seu marido apaga o grito e a súplica em seus lábios. — Por que te volta louca? — revolve-se Renato em um arranque de ira. — Minha irmã. Minha pobre irmã! — Casou-se com o homem a quem quis, com o selvagem que preferiu sobre todos outros, pelo que manchou seu nome, pelo que insultou a sociedade em que nasceu pelo que não lhe importou desafiá-lo tudo e encará-lo tudo. Casou-se com seu Juan, com seu Juan do Diabo, e sem dúvida lhe agradam suas maneiras quando passou por cima de tudo para dar-lhe seu amor! É isso verdade? É verdade ou não é verdade? — É verdade, Renato. — murmura Aimée impotente e vencida. — Pois então, adiante — rubrica Renato. E com voz autoritária, ordena: — Fora daqui todos! Aos barracos, aos barris de aguardente, a cantar, a dançar, a celebrar as bodas do Juan do Diabo! Como se voasse sobre o atalho pedregoso, marcha o cavalo que leva a Mônica e ao Juan. Sobre o duro cela de arreios, apanhada, triturada quase pelo braço robusto que de uma vez a sujeita e a sustenta, sente Mônica, mais que ver como as terras dos D'Autremont vão ficando atrás. Já saíram que vale já o brioso animal, sentindo o peso da nobre carrega, clava os cascos nas levantadas ladeiras do desfiladeiro que é entrada e saída para vale grande de Campo Real. Abaixo ficou tudo: a morada suntuosa, os jardins magníficos, os pomares de frutíferos, os campos semeados, os barracos onde já soam os roucos tambores e vão emano em mão as xícaras de rum. Mônica elevou a cabeça. Não sabe o tempo que passou, não sabe as léguas que sentou ao cavalo galopar, mas agora este marcha devagar, atravessando o campo sem a caminhos, onde as pedras lhe fazem escorregar-se, onde às vezes os ramos lhes açoitam ao passar e os tombos a obrigam a agarrar-se aos largos ombros do homem que a leva consigo. — Aonde vamos? Este não é o caminho do Saint Pierre. Aonde me leva? — Este é o caminho por onde eu quero levá-la. — Me levar aonde? — Que mais dá? Não ouviu o que lhe disse no altar seu padre? Levo-a aonde queira levá-la! — Esse não foi o convênio! Basta de brincadeiras, Juan. Se o que quer é me assustar. — Assuste-se ou não, para mim é igual. Casou-se comigo; não? Então, é minha mulher e a levo onde me dê à vontade. — Não! Isso não! Juro-lhe! 47 Pégasus Lançamentos — Quieta! E não jure nada, porque jurará em falso A larga mão do Juan aprisionou as duas da Mônica e a obriga a voltar-se para olhar à frente, às nuvens espessas onde já afundou o sol seu último raio. — Olha o que é o que tem diante? — O mar. E um navio. — Um veleiro. O Lúcifer. Minha única propriedade, além de você. Minha casa. Nossa casa. — Está louco? — Possivelmente. Provavelmente há que estar louco para ter aceitado toda esta farsa. E você também deve estar louca de arremate. — Eu não vou consentir! Me leve ao Saint-Pierre, ou me deixe aqui se não querer me levar! Irei sozinha, a pé, como é, ou me deixarei cair em qualquer parte. Não lhe importa o que eu faça. Pode me deixar em paz. — Não, por minha desgraça. Disse que sim a queria por esposa. Não recorda já as obrigações dos casados? Tão pouco valem para você, nobre e crente, os juramentos que os dois emprestamos? Viver juntos, nos servir, nos ajudar. "Ame e proteja o marido à mulher como a si mesmo, como a carne de sua carne; tema respeite e obedeça a mulher a seu marido.” Não se lembra já? Foi faz umas horas apenas. Estamos no dia de nossas bodas, e para a noite das bodas há no Lúcifer uma larga câmara nupcial— burla-se Juan com uma risada impregnada de amargura. Saltou a terra, arrastando a Mônica com ele sem solta-la, os dedos, como de ferro, obstinados às brancas convoca, cravando-se nelas, enquanto há nos lábios uma careta feroz que em nada se parece com um sorriso, ao comentar com amargo sarcasmo: — Assusta-te a noite de bodas, pomba branca? — Me solte! Bruto, canalha! — luta Mônica tentando inutilmente escapar das mãos do Juan. — Não tente morder, porque ficará sem dentes e seria uma lástima. Não tinha reparado, mas são muito lindos, tão bonitos como os de sua irmã. Aimée é maravilhosa, sabes? E essas coisas revistam ser de família. Depois de tudo, acredito que não fiz tão mal. — Basta me deixe em paz! — exaspera-se Mônica. — O que quer é zombar, me assustar, me desesperar, me enlouquecer, vingar-se em mim, que é a única vítima que tem a seu alcance. — Em todo caso, vítima voluntária. Eu não inventei que te casasse comigo, abadessa. Inventou-o seu Renato. — Juan se interrompe para ouvir um ruído de remos que vai aproximando-se, e elevando a voz ordena: — Aproxima a este lado. Segundo e em voz baixa diz a Mônica: — Levarei-te nos braços para que não te molha os pezinhos. — Basta de estupidez! Deixe-me, vá-se, tome seu bote e acabe de embarcar- se! — Que graciosa é, Santa Mônica! Faria-me rir se não me entrassem vontades de te esmagar a murros. Pensou seriamente que tudo era tão fácil? Pensou que bastaria me dizer: deixe-me em paz, tome seu navio e largue-se, para que eu 48 Pégasus Lançamentos obedecesse como um cão? Mas até onde pode chegar seu egoísmo e sua soberba? — E com furiosa exasperação, exclama: — Basta! Já me mordeu também o cão das súplicas, e sei o que significam o que valem e para o que servem. Já sei o que costa comover-se por suas súplicas e suas lágrimas. Significa cair em uma armadilha, pagar com a vida um momento de debilidade. Uma vez o obteve, mas não vais comover mais. Não terei piedade de ninguém, e de ti menos que de ninguém! Ao bote ao navio! Casou-te comigo, e nem você nem sua irmã vão seguir burlando-se. Levarei-te embora nem que seja arrastando! De um salto, triturada por aquelas mãos de falanges como de aço, arrastada por aquele braço que rodeia imperioso sua frágil cintura, afogada a voz em sua garganta, Mônica se viu obrigada a salvar a pequena distância que vai da terra ao bote. Autoritário, Juan ordena a seu segundo: — Proa ao Lúcifer, e rema com todas suas forças. Logo! — Não esperamos ao moço? — Vacila o segundo, assombrado. — Vai deixá-lo em terra? — Que venha a nado, para que aprenda outra vez a não atrasar-se! Dê-lhe aos remos! Vamos! — Não! Não! — suplica Mônica angustiada. — Você, senhor marinheiro me ouça. — Esse não ouça nada, nem vê nada, nem faz mais que o que eu lhe mando. Entendeu? — E dirigindo-se a seu segundo, — Apura e chega logo! Pede que lhe joguem um cabo. — Mas, patrão. — resmunga o segundo. — Não te meta no que não te importa nem procure o que não te perdeu, porque o encontrará! — E voltando-se para Mônica, recalca-lhe em voz baixa: — Vê como tudo é inútil? Tenho de minha parte a força da lei e a razão da força. Assim é como mandam os que mandam. Chegamos! — Nesse momento se deixa ouvir o estampido de um trovão longínquo, que pressagia a próxima tormenta, e sarcástico, Juan comenta: — E como sempre, do céu me saúdam com salvas — Logo grita a seu segundo: — Pede a escala, imbecil! — E dirigindo-se de novo a Mônica, explica-lhe irônico: — Não é de mármore, mas sim de cordas. Mas não importa, subirei-te nos braços. É a moda na Dominica e na Jamaica. A noiva vai aos braços. Um instante bastou ao Juan, e já seus pés, fortes e largos, afirmam-se na estreita coberta. A noite tem cansado totalmente. Junto as gávea, os três tripulantes do Lúcifer olham com surpresa a estranha cena. Segundo dá uns passos como se não pudesse conter-se mais, e intercede: — Patrão, um momento. Essa mulher. — Está-me pedindo contas? — se violenta Juan. — Afaste-se. Aparte-te. De um chute há totalmente aberto a porta da única cabine da nave, e um instante depois a fecha atrás deles. — Não! Não! — clama Mônica no paroxismo do espanto. — É você um canalha, um perfeito canalha, e não é possível que esses homens não vão a meu auxílio! Por favor. Socorro! 49 Pégasus Lançamentos — Te cale! — Atalha Juan, iracundo, lutando e tampando a boca. — Não vai vir ninguém, e se houver um que se atreva tocar a essa porta, o Mato! Não há perigo que cheguem, porque muito sabem. Arrojou a que um empurrão violento sobre a dura Litera de pranchas, e ela fica imóvel, fechados os olhos, entreabertos os lábios, como se as forças a abandonassem, afundada no mundo da inconsciência, enquanto corre por suas veias o sangue aceso e o delírio da febre finge nuvens vermelhas sobre suas pálpebras fechadas. — Ao fim decidiu te estar aquieta, ao fim decidiu calar. — Juan faz uma breve pausa e observando-a um momento, surpreende-se: — Mônica! Mônica! O que tem? O que te passa? Estas te fazendo à doente? Acredita que vais me enganar? Pois não. Não! Ouviu? Será minha, pertencerá-me, tratarei-te pior que a uma escrava! Não terei compaixão, não voltarei a ter compaixão de suas lágrimas, não voltará a me comover, embora te veja morrer e agonizar. Ouviste? Basta de farsas! Levante-te! Levante-te! Sacudiu-a inutilmente, deixando-a cair outra vez, olhando-a com impotente raiva. Não, não é fingido seu mau. Seu corpo enfraquecido exala um bafo estranho, um suor de agonia a banha, e em suas bochechas, antes tão pálidas, acendem-se duas rosetas de febre. Com mão audaz desabotoa Juan o negro sutiã e um instante fica olhando o pescoço branco, sem que haja nela um protesto, um gesto. Torpemente procura com seus dedos o pulso e apalpa nele o golpear do sangue que pulsa acesa por aquela febre que a queima. Com suavidade deixa cair àquela mão e dá uns passos pela desmantelada cabine, quando, de repente, uns golpes discretos soam na porta e a voz do segundo, chama: — Patrão. Patrão. — Que raios passa? — enfurece-se Juan, abrindo a porta. — Como te atreve? — Me perdoe patrão, mas o moço está na praia gritando. Seriamente vai você a deixá-lo em terra? A segunda fala, observando com curiosidade o rosto do Juan. Logo se levanta tratando de olhar por cima de seu ombro, mas a mão robusta do patrão do Lúcifer lhe separa de um tranco brutal, enquanto lhe recrimina: — Que olhas estúpido? Largue-te a procurar o moço. Traz-o e, logo que esteja a bordo, levantamos âncoras rumo a onde sopre o vento mais forte. — Pelo Nordeste há sinais de tormenta, patrão. — Pois rumo à tormenta, e a toda vela! Vete já! Fechou a porta, voltando para o nu beliche de taboas. Ali está Mônica, imóvel, a respiração fatigante, entreabertos os lábios. Os loiros cabelos, que na resistência se destrançaram, são agora como um ninho dourado ao redor da cabeça que se agita de quando em quando. As mãos se movem fracamente, sobe e baixa o peito com o ritmo descompassado do coração que queima a febre. Um momento a contempla assim Juan, e logo se afasta em um brusco endurecimento de rancor e de cólera, exclamando: 50 Pégasus Lançamentos — Mônica do Molnar. Lixo e farsa! Capitulo 6 — Aonde vai? Ou melhor, dizendo, aonde foi? Porque não vais cruzar essa porta. — Não ia a nenhuma parte. Não sábia que dar uns passos fora um crime. Sua atitude é insuportável, Renato! — Volta a te sentar onde estava. Quer um plantador? Ou prefere o suco de abacaxi com champanha? É delicioso, sabes? Por algo batizei com seu nome esta bebida. Hei dito que se sente Trêmula de raiva, Aimée se deixou cair, mais que sentar-se no divã de raso. A noite cai já, e desde que horas antes terminasse a cerimônia das bodas estão sozinhas naquelas habitações adornadas com tanto esmero para a lua de mel do amo de Campo Real. Junto ao Renato, sobre a mesinha dourada,há copos e garrafas: o melhor conhaque da França, o mais velho rum da Jamaica, o mais famoso vinho Xerez da Espanha, e de um cubo de gelo emerge o pescoço dourado de duas garrafas de champanha. Há também uma fresca jarra de suco de dente com o que enche dois copos que acaba de mediar de champanha. — Faz o favor de me acompanhar com a bebida de seu nome: Aimée. "M"; amada. Belo significado o de seu nome, verdade? Amada. Eu gostava tanto, tanto, que pensei que se tratava de um desses acertos cegos do destino o que assim te chamasse. Amada. Toma seu Aimée. Bebamos. — Não quero beber! 51 Pégasus Lançamentos — Não quer? Que estranho! Sempre me disse que adoravas o champanha. Ainda me lembro da noite de nossas bodas. Quantas taças de champanha levou a meus lábios, quantas. — E em tom imperioso, ordena: — Bebe agora. Bebe! — Me deixe em paz! — rebela-se Aimée em forma violenta — Está louco. Louco ou bêbado. — Bêbado — repete Renato em tom caustico. — Isso ocorre quando se bebe muito champanha: está um bêbado, e por mais que se empenha não pode recordar os detalhes. É um recurso maravilhoso fazer beber as gente, envolver nas nuvens douradas do champanha certas horas, para que apenas possam recordar-se. — Que tratas de dizer? Não entendo nada, nem quero entender. Até onde vais chegar Renato? Enlouqueceste-me, atormentaste-me, leva horas bebendo como um estúpido sem me permitir que me mova de seu lado! — É seu lugar, junto a mim. Não é minha esposa? Pois a meu lado é onde deve estar. E que melhor lugar para estar a meu lado que este preciosa quarto? A sucursal do paraíso. O ninho de amor que nos prepararam. As rosadas paredes que me viram de joelhos frente a sua beleza. E frente a seu pureza. — Renato ri com uma risada breve e cruel. — Renato. Está louco de verdade. — está pior que louco! — espanta-se Aimée. Confusa e amedrontada. — Sim, pior que louco: bêbado. Bêbado, como quis uma vez que o estivesse; bêbado, mas com a mente mais clara como não a tive jamais. Tão clara, que nela as ideias queimam a força de brilhar; bêbado e feliz de poder celebrar contigo a sós, dignamente, as bodas de nossos irmãos. Bebe comigo. Bebamos juntos pela felicidade da Mônica e do Juan! Que perto esteve para o Renato D'Autremont, o céu do inferno, a felicidade da desgraça, a divina embriaguez de seu amor com esta dúvida cada vez mais cruel, cada momento mais amarga. Nó de espinhos aceso em sua garganta, flecha envenenada que de um só golpe ferisse seu orgulho. Sua dignidade, seu amor e sua confiança. Como por um instinto defensa rechaça a verdade, mas a verdade ricocheteia como planta daninha a que não foi possível arrancar as raízes. A suspeita aparece em cada gesto, em cada palavra, em cada detalhe. E com a verdade, uma como necessidade se desespera para lavar honra . Coração, um desejo insensato de destruir tudo, e mais que tudo, aquela beleza cálida, tentadora e lhe traguem, aquela mulher a quem desesperadamente ama, mas a cujos lábios não pode aproximar-se porque a dúvida e o temor são demasiado grandes, porque seu amor tem já cós de ódio, porque ama muito para perdoar. E ao ver que Aimée, impávida, conserva a taça na mão, apressa imperioso: — disse que bebesse! — Me deixe em paz! Vete. Deixe-me! — Não tem mais desejo que o de me afastar. — Não tenho mais desejo. — Que qual? Acaba, diga-o de uma vez, diga que quer morrer, que está se desesperando, que a consciência não te deixa viver com suas recriminações. Acaso 52 Pégasus Lançamentos te estou incomodando com minha curiosidade, mas não é em mim em quem pensa ao te desesperar. Pensa no Juan, verdade? — Naturalmente que tenho que pensar! — salta Aimée vivamente. — É um bruto, um selvagem, a que você entregaste a minha irmã — Eu, ou você? — Você. Você! Eu não queria, mas sim esse homem se afastasse, que se fora para sempre, que nos deixasse em paz. Isso é o que deveste lhe mandar. Que se fora! Porque esse homem. — Esse homem é meu irmão. Esqueceste-o já? Meu irmão — Mas é certa essa história horrível? — Parecem-lhe horríveis as histórias de traições e de adultérios? Diga o que sente. Grita o de uma vez. Estala na Santa indignação se for inocente! Outra vez as mãos do Renato se fecharam sobre o colo do Aimée. Outra vez seus olhos relampagueantes a olham muito de perto como querendo lhe penetrar a alma, e ela treme, gelada de espanto, esquivando aquele gesto que lhe causa horror, ao protestar: — Renato! Está louco? Quer me obrigar a pedir auxílio? Quer? — Quero que confesse que fale que grite para salvar a Mônica, se for uma inocente a quem sacrificaste! — Não o é. Não o é! Mas é minha irmã. Juan não terá piedade! — Não precisa ter piedade se a ama. — Ele não sabe amar! — Como sabe? De onde lhe conhece? Até onde lhe conhece? Responde! — Me deixe! Machuca-me, faz-me mal! Solte-me, Renato! Vou pedir socorro! Vou dar um escândalo! — Já o deste! Grita se quiser; pede auxílio, chama. Ninguém vai acudir. Ninguém! Está sozinha comigo, e tem que dizer a verdade, toda a verdade, e me pagar depois o preço de sua infâmia. — Socorro! — grita Aimée. Desesperando-se. — Vais matar-me! Socorro! Alguém se aproximou indo à chamada de auxilio, e golpeia a porta premente. Fora de si, Renato expulsa ao intruso, gritando: — Não passa nada! Largue o que seja! — Abre Renato! Logo! Abra-me! — Ouça-se a voz autoritária da Sofia através da fechada porta. As mãos do Renato soltaram ao Aimée, que se desfalece sobre o divã de raso. Logo, com passo incerto, vai para a porta, faz girar a chave e deixa o passo franco a sua mãe, que indaga: — O que é isto, Renato? Foi para seu filho, lhe olhando com ânsia, com uma interrogação ardente nos olhos, que não nos acham de seu filho a não ser a dúvida cruel, a incerteza lhe torturem, desespera-a do que luta em vão por encontrar a verdade. E o nobre rosto da dama se volta severo, enquanto Renato retrocede esquivando olhá-lo. Captando 53 Pégasus Lançamentos no ar aquela tensão, aferrando-se a sua única taboa de salvação, eleva-se Aimée, correndo para a mãe de seu marido: — Renato bebeu toda à tarde. Está como louco! Empenha-se em me fazer confessar não sei o que. Insulta-me, me maltrata, diz-me coisas, que não entendo. Empenha- se em que eu fale em que eu fale, e eu não tenho nada que falar. Nada. Nada. Eu não tenho nada que falar! Acolheu aos braços da dama, que não a rechaça; afunda o rosto em seu peito, soluçando. Por sobre o jovem corpo tremente, cruzam-se as olhadas do filho e da mãe. A da Sofia inquire, pergunta outra vez ofegante, mas um amargo gesto de vencido é toda a resposta do Renato, e Sofia suspira como aliviada, com gesto sereno: — Temo-me que todos estejamos um pouco fora de nós mesmos. Passaram coisas muito desagradáveis. Soube Também que Catalina, sem despedir-se de ninguém, saiu para o Saint-Pierre. Tomou o carro que estava preparado para levar aos recém casados, e partiu quase atrás deles. Até certo ponto, a ideia não foi má. Suponho que isso te tranquilizará, Aimée, e a ti também, Renato. A pobre não podia estar tranquila atrás de entregar sua filha ao Juan do Diabo. — Foi ela mesma quem se entregou! — retifica Renato com vivacidade. — Certamente, filho, mas é natural a inquietação de uma mãe. Até a de uma irmã. Sofia tornou a olhar longamente a seu filho; seus olhos recorrem também à larga estadia agora desordenada e revolta, detêm-se um momento na mesa dos licores e se voltam para rosto sombrio do jovem D'Autremont, com uma recriminação: — Vejo que, efetivamente, estiveste bebendo muito, Renato. Melhor será que procure te limpar e te serenar, e que você também te acalme, Aimée. Não chore mais. Não será para tanto. Não há rosas sem espinhos, nem céus sem tormentas. Não terá que lhe dar muita importância a estas escaramuças de recém casados. Temo-me que sejam coisas inevitáveis. Veem meu quarto,Aimée. O Lúcifer virou quase em redondo, enfiando a estreita saída da enseada, tomando imediatamente rapidez incrível, saltando entre os escolhos, desafiando uma vez mais os elementos desencadeados. Como nunca seguras, as largas mãos do Juan empunham o leme, e a luz de um relâmpago lhe ilumina de pés a cabeça. A tormenta vai amainando e uma costa longínqua fica já atrás. Entre as gáveas se agita uma figura miúda e escura, que balança inclinando-se com esforço entre os tombos da nave. — Patrão, está trancada a nova ama? — Sim, Colibri, está trancada — Assente Juan com manifesto mal humor. — As mulheres estorvam na coberta quando há tempestade. Bom, estorvam sempre, e quando há tormenta, mais. Aprende-o para quando tiver que navegar. — Mas a ama, patrão. O Segundo disse que estava doente. — Lhe diga ao Segundo que se guarde a língua para quando lhe fizer falta! 54 Pégasus Lançamentos — Não me deixa entrar a vê-la, patrão? A cuidá-la? Sim, patrãozinho, deixe ir. Por sua mãe. Suplicante, Colibri se abraçou à perna do Juan, e um instante a varonil cabeça se inclina para olhar ao menino, em cujos grandes olhos brilham as lágrimas. Logo, outra vez contempla o horizonte espesso, escuro, as nuvens baixas, o mar elevando-se em montanhas, a chuva que cai furiosamente, todo o bárbaro espetáculo da tempestade que logo que ilumina o lívido resplendor dos agora longínquos relâmpagos. A frágil embarcação range, estremecida desde sua quilha blusa de marinheiro ate o batente do pau de mesana. É uma vontade contra a tormenta, uma faca que se afunda na carne salgada do mar. Do mesmo modo, sente pulsar em seu peito seu próprio coração Juan do Diabo. Contra os elementos, contra o sociedade, contra a vida. Como a espuma amarga que lhe açoita os lábios, é o gotejar de sua alma; como o tenso vibrar da nave em perigo, vibram tensos seu pensamento e sua vontade. Odeia e quer odiar mais; afoga-lhe o rancor, e até quer que esse rancor se afunde, como as águas do oceano. Quer fazê-lo infinito, quer elevá-lo tão alto como o mundo que lhe rechaça, mas em seus joelhos sente o fôlego quente do menino negro, a voz cândida e suplicante chega até ele, assim como também a imagem da mulher branca, tendida como morta sobre as taboas de seu beliche, tão indefesa, tão desventurada como aquele menino de cuja vida pode dispor com uma palavra, e metade compadecido, metade zangado, diz: — Toma a chave, entra, e me deixe em paz! As pequenas mãos escuras tocam com primeiro acanhamento, trêmulas de angústia depois, aquelas mãos brancas, ardidas de febre, enfraquecidas com o passar do corpo imóvel. Os olhos de Colibri percorrem a grácil figura deprimida. Os grandes olhos estão fechados e se afunda mais a sombra das olheiras violáceas sob as espessas pestanas. Dos lábios entreabertos, ressecados, escapa a respiração fatigante com ritmo desigual. — Ama. Patroa. Senhorita Mônica. Sente-se mau? Muito mal? Dói-lhe a cabeça, verdade? — Não. Não me toque. Mate-me. Mate-me! — Delira Mônica em um girar de vagos e contínuos gemidos. — Isso não. Isso não! Solte. Solte. Deixe-me. — O débil corpo se agita desesperado e as mãos se estendem no ar como rechaçando um corpo imaginário. — Primeiro morta. Primeiro morta! Terá que me matar antes! Não. Não! Não! OH. Toda ela se retorce como em uma luta; sua próprias mãos, no lutar desesperado, rasgam o escuro vestido. Colibri, tremendo, vai para a porta onde uma robusta figura masculina acaba de chegar, e angustiado explica: — Está doente, patrão. Tem o mal. Sim, patrão, sim. Isso mesmo. A febre, a peste, o mal. Que lhe dava lá nos barracos aos que cortavam o cano. O mal que ela curava! — O que está dizendo? 55 Pégasus Lançamentos — Tem-no, patrão, está igual aos doentes de lá. Assim se moviam, assim gritavam. E vai se morrer, como morriam os homens lá abaixo, quando estavam assim. O médico disse que a febre lhes queimava o sangue. — O que sabe você, enganador? — Rechaça Juan em um arrebatamento de mau humor. — Sei patrão, sei! Eu ia com ela e a ajudava. Ficavam assim mesmo, com essa cara, e falavam como loucos. E esse tremor. Olha-a! Olha-a! Juan se aproximou muito devagar. Franzido cenho, contempla o belo corpo de mulher, convulso, trêmulo; o rosto cada instante mais desfigurado; os lábios, dos que escapam as palavras daquele delírio que além da inconsciência parece obcecá- la: — Não. Não. Não serei tua. Não serei tua sem que me tenha matado! Mate-me. Mate-me primeiro. Mate-me. Mata-me de uma vez, Juan do Diabo! Malvado. Deus lhe castigará. Tem que te castigar! — Vete Colibri, me deixe! — Sim, patrão. Mas, não vai lhe dar nada? Medicina, remédio. Dava aos homens colheradas de uns frascos com pacote brancos que traziam da cidade, e umas bolinhas brancas que vinham em umas caixas, e lhes punha na frente. Ah, sim, já sei! Panos de vinagre. E também vinha: o médico e os olhava, patrão. A ela, quem vai olhar? Juan foi até a porta da estreita cabine, há olhar, por sobre a amurada, a massa escura, fervente, do oceano encrespado sob o golpe do vento; logo, volta-se vivamente para perceber uma sombra que se aproxima sem ruído, os largos pés descalços sobre a coberta molhada, É indaga: — Quem vai? O que acontece? — Sou eu: Segundo. Deixei à Enguia no leme. É a hora de seu guarda, e a tormenta está amainando. — Que rumo tomou por fim? — O Noroeste, patrão, e faz momento deixamos atrás à costa da Dominica. Dentro de uma hora passaremos a vinte milhas da Maria Galante. — Pois lhe diga à Enguia que, dentro de uma hora, torça o rumo a estibordo. Ancoraremos na Maria Galante. . Outra vez, Juan se aproximou do duro leito que é a Liteira da única cabine do Lúcifer rincão nu, habitação desmantelada, estreita e miserável, quase como a toca de uma fera. Não tem mais móveis que aqueles dois beliches nus, um tosco armário embutido nas pranchas, uma mesa, banquetas, e sobre o rebordo do que pudesse ser uma prateleira, algumas cartas de navegação, plumas, tinteiro e o livro de registros. Nunca, até esse instante, tinha reparado Juan na nudez, na sordidez daquela estadia. Acaso a compara, com sorriso amarga, com as suntuosas habitações do palácio do campo Real. — Agora está quieta e calada, patrão — adverte Colibri. — Traz água, vinagre e um trapo limpo. Anda, corre! — Vou voando — obedece ao menino negro, saindo pressuroso. 56 Pégasus Lançamentos Com os braços cruzados, Juan contempla a Mônica, agora imóvel, calada, o perfil de medalha entre o nimbo dourado dos cabelos soltos, nu o pescoço branco e suave. Por um comprido momento a olha, e a encontra formosa, extraordinariamente formosa. — Juan do Diabo. Juan do Diabo. — sussurra Mônica em voz baixa, a impulsos do delírio lhe obcequem. — Por que não me chama agora Juan de Deus. Santa Mônica? — Juan tomou as mãos da ex-noviça, que ardem; procurou o pulso, que pulsa desbocado, e a contempla com uma estranha, com uma indefinível expressão nos profundos olhos italianos, ao murmurar como para si mesmo: — Mônica do Molnar. Minha esposa. Quis rir, mas não o conseguiu. Elevou a cabeça altiva, e sobre sua frente torrada, curtida pelo mar, rompe-se a primeira luz do dia que nasce. — Deus meu O que é isto? Aimée se ergueu subitamente sobressaltada, e quase com espanto olha a todas as partes. Não está em seu quarto. Há despertado em um leito de bronze, largo e alto, sobre cuja colcha dormiu totalmente vestida. Com olhar de angústia percorre a estância, reconhecendo a habitação de dona Sofia, com a luxuosa chaminé de mármore em que jamais se acendesse fogo algum, mas sobre cujo suporte um pequeno relógio de porcelana marca as sete depois do musical repique de sinos que a despertou. Com a consciência chega à lembrança; e com a lembrança, a angustia. Vagamente tem noção das últimas cenas passadas: sua violenta disputa como Renato, as mãos dele apertando sua garganta, a intervenção de dona Sofia, suas palavras quentes e amáveis, a amargo sabor do calmante que lhe fizesse beber, e logo o sonho turvo espesso, pesado, do que pouco a pouco vai voltando à realidade. E ao ouvir um cantarolo próximo, chama gratamente surpreendida: — Ana. Ana. , está aí? — Sim, senhora Aimée, por aqui ando. — Baixa a voz. Onde está minha sogra? — A senhora Sofia? Ah, caramba! Você vá, ou seja, donde foi dar. Saiu bem cedo. Acredito que ainda não clareava, e no carro grande, com o melhor tronco de cavalos. Levou com ela a Aninha para que a acompanhasse, e ao notário o mandou também a não sei que parte. — E Renato? — O senhor Renato segue tomando. Uma garrafa inteira de conhaque mandou que lhe levassem a escritório, e para ele sozinho, porque no escritório não havia ninguém. Depois fechou a porta e atirou ao chão livros e tinteiros, e acredito que até quebrou o abajur. — O Senhor me ampare! Tenho que fazer algo. Tenho que inventar algo. Estou sozinha frente a esse burro bêbado. Diz que se foi até o notário? Diz que? — Quão única pode ampará-la a você é a senhora Sofia. — É verdade. Dona Sofia pode me amparar. Tenho que fazer algo para ganhar seu coração, seu apoio, sua confiança. Com o Renato todo é inútil já, mas ela pode me salvar. O que faço para que me ajude, para que me salve? 57 Pégasus Lançamentos — Se você a agradasse no que ela está desejando mais. — Que deseja minha sogra, Ana? Você sabe? — Acredito que sim. O que a senhora Sofia anda desejando, desde que se foi de viagem sendo moço o senhor Renato, é outro menino pequeno, outro menino em fraldas, que seja como dele; mas como seu não pode ser já, teria que ser do senhor Renato. — O que diz estúpida? — Se você lhe der um neto, a senhora Sofia a ampara. Como um raio de luz muito vivo penetrando as trevas de sua alma, como a única porta de escapamento, como o único caminho possível de salvação, a ideia que trazem as palavras da Ana cruzou pela mente se desesperada para a Aimeé do Molnar, mas imediatamente a rechaça com gesto de desgosto e chateio: — Naturalmente que se lhe desse um neto teria que amparar-me. Mas como posso dar um neto de repente e por arte de magia? — Por arte de magia? Que não é você a esposa do senhor Renato, senhora Aimée? Não tem já mais de um mês de casada? Ao melhor não tem nem que inventá-lo. Ao melhor sai verdade. — Inventá-lo? Disse inventá-lo? — Bom. Digo eu. Se estiver em um apuro. Dizem que o que se está afogando se agarra até de um prego ardendo, e você, senhora Aimée, como que se está afogando. Ao melhor, quem sabe. É o que eu digo. Já dizendo que vai vir é o bastante. — Talvez fora bastante — murmura Aimée pensativa. — Pois claro. Quando o senhor Renato estava na França, todos os dias chorava por ele a senhora Sofia, e algumas vezes estava tão triste que até a meu falava, e suspirava olhando as montanhas, e me dizia: "Ai, Ana. Meu menino, quando voltará?” E quando o senhor Renato voltou já não era seu menino, e então a ama suspirou mais e ficou muito contente quando o senhor Renato lhe disse que ia casar se. E por que você acredita que ficou contente? Porque ia ter uma nora? O que vai! Porque ia ter logo outro menino. Outro menino que fora como se seu menino Renato nascesse outra vez. — Acaso tenha razão. — O senhor Renato está que remói de raiva. Mas saber, saber de verdade, não sabe nada. O pobre. Saber, saber, não sabe nada. Com súbita desconfiança, Aimée olhou à donzela nativa; logo, aproxima-se decidida a jogar o tudo pelo tudo: — Não sabe nada, nem tem nada que saber! — Está bem — assente Ana calmosa e complacente. — Não se sufoque tanto. De todos os modos, eu não vou dizer nada, e quanto ao conselho que lhe dei. — Não me deste nenhum conselho! Não te escutei, nem tenho por que te escutar! Vete a suas obrigações e me deixe em paz! Se puser contra mim, vais passar mal! 58 Pégasus Lançamentos — Ai, senhora Aimeé Eu não me ponho contra ninguém. Você sabe que eu a sirvo de joelhos, e se me dá esses cravos e esse colar de que me falou antes. — Darei-te dinheiro para que compre «o colar e os brincos mais lindos que encontre. Anda a ver o que está fazendo Renato, recolha todas as notícias que circulem pela casa, e volta em seguida a me contar isso Vete já! Só na enorme estadia de luxuosos móveis antiquados, revolve-se Aimée de uma vez aterrada e furiosa, uma ideia cravada na mente, uma esperança se desesperada lhe enchendo a alma: — Um filho. Sim. Um filho poderia me salvar! Cheias as velas, inclinado o casco branco, cortando as águas azuis com a proa afiada, marcha o Lúcifer bordeando a cadeia de ilhas que é como um colar de gigantescas mesaraldas Ilhas de sotavento, ásperas e ferozes. Tomado, Granada, São Vicente, Santa Luzia, Martinica, Dominica. Já ficaram atrás, com suas montanhas elevadas, com seus bosques espessos, com seus escarpados de rocha negra, com suas estreitas prainhas ferozmente batidas pelo mar. Agora, o Lúcifer detém um pouco a marcha, vira quase em redonda fada estibordo e tende outra vez as velas brancas, proa às rochosas ladeiras da Maria Galante. Em seu leito de pranchas, até se agita a fina cabeça da Mônica, o perfil mais estilizado, mais puro, as têmporas molhadas de suor, os loiros cabelos como um matagal de seda, os pálpebras apertadas mostrando só as espessas pestanas, e os ardente lábios ressecados, de onde escapam as palavras como em uma oração lhe obcequem: — Não. Não. Primeiro me mate. Mate-me, Juan do Diabo. Mate-me. Tua nunca. Tua nunca. Mate-me. . Mate-me e joga ao mar meu cadáver. Mate-me, Juan do Diabo. Com gesto de impaciência, Juan se pôs que pé; logo, muito devagar, volta a sentar- se. Ante ele, em um pequeno recipiente, estão os panos de água com vinagre, que com paciência de enfermeiro vai aplicando sobre a frente atormentada. Um áspero gesto faz sombrio o rosto do Juan do Diabo; endurece-lhe o cenho que junta suas sobrancelhas, a careta amarga com que se distendem seus lábios. Só nos olhos escuros e profundos há uma luz estranha, como de compaixão, como de angústia, acaso como de remorso. — Patrão, já estamos no canal — avisa Segundo aproximando-se ao Juan. — Para que entra desse modo? Por que chega até aqui? Sal deste quarto! — Tua nunca.Tua nunca, Juan do Diabo. — continuou Mônica em seu cantoria. Juan avançou com raiva para o marinheiro, que retrocede dando um salto até ficar do outro lado da porta, olhando cara a cara a seu patrão, quase como se lhe desafiasse, e Juan inquire: — O que te passa, imbecil? 59 Pégasus Lançamentos — Se quiser que lhe fale francamente — decide-se Segundo — como sempre lhe falei, eu não gosto de nada do que está passando. Essa senhora que você trouxe. — Essa senhora é minha esposa! — O que? Como? — exclama Segundo no cúmulo do assombro. — É minha esposa, casei-me com ela ontem pela tarde, e os malditos papéis que o creditam devem estar em qualquer parte. Pode ir buscá-los se lhe interessam tanto! — É que não pode ser patrão! Você, casado! — Sim. Eu, casado. Não posso eu me casar como outros? Parece-te muito estranho? Entretanto, pareceria-te natural te casar você; casaria-te em qualquer momento que te desse a vontade, levaria a sua mulher a sua casa, deixaria-a junto a sua mãe quando saísse a navegar, e a chamaria por seu sobrenome, marcaria-a com seu nome como se marca uma potranca. Seria a esposa de Segundo Duelos. A senhora Duelos, verdade? E neste momento está pensando que eu não tenho casa, nem mãe, nem nome que lhe dar. Pensa isso, verdade? Responde! Responde que isso imprensas, para te esmagar! — Está louco, patrão? Com esforço escapou Segundo daquelas mãos como ganchos de ferro que rasgam sua velha blusa. Retrocedeu até dar com o batente da amurada, e de ali acha de novo valor para falar com o grande homem que parece disposto a despedaçá-lo:— Não fique dessa maneira, patrão. Eu não estou ofendendo a ninguém, nem pensando todas essas coisas. Só queria dizer-lhe que essa senhora. Sua senhora está doente. Que você a meteu no veleiro quase a arrastando, e que alguém é homem, que demônios! E quando vê uma mulher nessa forma, tratada como você a trata. — O que? O que? — enfurece-se Juan. — Quer chegar à terra a nado? Quer que te jogue de cabeça ao canal? — Quero que a trate melhor, patrão. E se for sua esposa. — A trato como me dá a vontade. Faço o que quero, na terra e no mar, e você faz o que vou mandar-te: Que perfileem para chegar ao forte, chega ao Grand Bourg e busca o melhor médico que haja. O melhor que encontre! E traz-o, sabe? Traz-o, peça o que peça para chegar até este navio. Anda! O Lúcifer avança já muito perto da costa fértil e plaina da Maria Galante. Sobre a costa se divisam os muros brancos dos quartéis, as pedras negras da velha fortaleza, as asas chaminés fumegantes das fábricas de açúcar e os vermelhos trechos planos da pequena cidade do Grand Bourg, capital da pequena ilha francesa. Um homem alto, magro, de pele cítrica e cabelos muito brancos, cerimoniosamente vestido de negro, está na cabine do Lúcifer, junto ao beliche de nuas pranchas onde, aturdida pela febre, afundada ainda na inconsciência, enfraquecido o corpo e ausente a alma, parece que Mônica do Molnar agonizara. O médico inclinou-se para escultá-la, para examiná-la com gesto grave: logo, aparta- se um passo e fica olhando-a. O olhar do médico percorre depois a estadia e faz um 60 Pégasus Lançamentos gesto ao homem que lhe segue até a porta para ficar frente a ele, cruzados os braços, com a barba enchente, as roupas em desordem, mais rude e selvagem do que pareceu jamais. — Não conheço um lugar menos apropriado para uma enferma — assegura o doutor. — Aqui falta até o mais necessário, e me perdoe que lhe fale com esta franqueza, mas necessito salvar minha responsabilidade. — Quer me dizer que não vai atendê-la? — Quero lhe dizer que farei o possível, mas que seria preferível que tratássemos de desembarcá-la. No Grand Bourg temos um bom hospital. Poderiam deixá-la nele se é que tem que seguir viagem. — Não vou deixá-la em nenhuma parte. Terá você o bote preparado para lhe trazer e lhe levar sempre que quiser, e lhe pagarei o que me peça por seus serviços. — Já. Já me disse isso o moço que foi me buscar. Mas não se trata só de dinheiro, meu senhor. O marinheiro que chegou a minha casa, disse-me que a doente era a esposa do patrão. — O patrão o tem você diante, e estou esperando que me diga o que tem e como a encontra. O moço que esteve cuidando-a supõe que é um mal contagioso que adquiriu atendendo doentes de uma epidemia que se desenvolveu por lá abaixo, na Martinica. — Já. Vêm vocês da Martinica. Lá são frequentes essas epidemias. Muito bem pode tratar-se de uma febre infecciosa, efetivamente, sobre tudo se tiver estado em contato com doentes dessa classe. Mas, seja o que seja seu mal está agravado por um terrível estado de ânimo. Se tiver que lhe falar claro, direi-lhe que sua esposa se encontra sob um verdadeiro ataque de terror. Sem o antecedente desse possível contágio, digo o que se tratava de uma febre cerebral. De qualquer modo, o que seja está agravado pelo terror, pelo espanto, pelo impacto indiscutível de um muito grave golpe moral. — Muito delicada a senhora, verdade? — comenta Juan com um sotaque de ironia. — Opino, pelo contrário, que muito valorosa e resistente — refuta o doutor com gesto grave. — Estava já doente quando empreenderam esta viagem? Se for assim, foi uma verdadeira loucura embarcá-la. A verdade é que eu não compreendo. O doutor se mordeu os lábios, sob o olhar duro, fria, cortante, do Juan. Deu uns passos dentro da cabina, para olhar a Mônica, e retorna logo aonde lhe aguarda imóvel, com os braços cruzados. — Insisto em que deve você desembarcá-la. — E se não me fora possível? — Faríamos aqui o que facilmente pudéssemos. Mas primeiro que necessita uma doente é uma cama, uma cama com colchões e lençóis. Quanto tempo faz que estão vocês casados? — Importa muito isso para determinar a enfermidade de minha esposa? — Embora pareça mentira, importa o bastante. — Dias nada mais. O que vai fazer para lhe baixar a febre? 61 Pégasus Lançamentos — Em seguida vou receitar. Sua senhora se chama. — Mônica do Molnar. — Não é a primeira vez que ouço esse nome. Se não recordar mau, uma das primeiras famílias da Martinica. Não me enganei ao olhar a sua esposa. Trata-se de uma verdadeira dama. — tornou a calar frente a aqueles olhos escuros que relampejam. Procurou, com mão insegura, lápis e receituário, e aconselha: — Que tragam isto quanto antes. Seu nome é? — Com o dela não basta? — Suponho que sim. Perdoe-me se lhe parecer indiscreto. Um médico tem às vezes a necessidade de aparecer um pouco às almas dos que pretende curar. Da porta, o olhar do médico percorre pela terceira vez a desolada estadia, detém-se com franco compaixão na doente, e se crava logo, curiosa e sagaz, no torrado rosto do Juan, para observá-lo enquanto deixa cair cada palavra: — A senhora Molnar está muito grave. Tem muito poucas probabilidades de sobreviver. Para que estas poucas não se anulem, precisa cuidados e considerações excepcionais. Até tendo-os, será muito difícil salvá-la. — Faça o possível, doutor. — Já estou nisso. Mas o possível é pouco em realidade. No momento ficarei a seu lado. Tornou a entrar na cabine. Juan fica fora, imóvel, com os braços cruzados. Junto ao leito, os olhos do médico veem a pequena figura do menino negro, que fixa no rosto da Mônica os grandes olhos cheios de lágrimas. Muito pálida endurecido com um gesto severo o branco rosto, Sofia D'Autremont apareceu entre as cortinas de engaje, e sua só presença estremece ao Aimée. Há toda uma acusação naqueles lábios apertados, naqueles olhos claros e brilhantes, que escorregam sobre a esposa do filho único, como em uma penetrante recriminação sem palavras. Depois dela, como uma sombra infausta, a acobreada figura da Aninha, em cujas mãos põe a dama o xale que cobrisse seus ombros, enquanto lhe dá uma ordem sem olhá-la: — Nos deixe sós e fecha a porta. Cuida de que não chegue a interrompemos ninguém. Esperou ver fechá-la a porta atrás da donzela, para aproximar-se mais à linda moça que treme a pesar dele. — Sabe de onde venho, Aimée? — Não, dona Sofia, não tenho o dom de adivinhar. — Não é necessário tanto. Bastaria-te com que escutasse a voz de sua consciência, se é que há algo em ti que consciência possa chamar-se. — Dona Sofia. — protesto Aimée, alarmada; mas sua sogra a atalha com firmeza: — Venho de seguir em vão os rastros desse bárbaro, em cujas mãos não vacilou em pôr a sua irmã inocente, pagando por ti, sacrificando-se por sua infâmia, aceitando-o tudo para te salvar, afundando sua vida para salvar a tua. —Por que diz isso? De onde o tira? Asseguro-lhe que não entendo. 62 Pégasus Lançamentos — Entende muito. Eu sou a que quase não posso compreender, a que cara a cara olho seu rosto de anjo e me pergunto como pode esconder uma máscara assim tanto cinismo, tanta hipocrisia, tanta maldade. E você é a esposa de meu filho, você é a víbora a quem permiti que se atasse para sempre a vida de meu Renato! Você. Você. Eu soube muito tarde. — O que soube? Não é possível que nem você nem ninguém saiba nada! — Nem o notário Noel? Ah, troca de cor! Pois bem, sim, falei com o Noel, obriguei-lhe a me dizer quanto sabe, atei os cabos necessários. — Mas estão todos loucos? — pretende defender-se Aimée com a angústia apropriando-se de todo seu ser. — Cegos estivemos. Agora, por desgraça, se feito para mim a luz, embora já muito tarde. Agora compreendo a atitude de sua irmã, o desespero de sua mãe, a insolência desse maldito que ousou te seguir até aqui, até a própria casa do Renato. Nãopode negá-lo. Você, e só você, é a amante do Juan do Diabo! Como se a cuspisse, como se a esbofeteasse, saíram às palavras de lábios da Sofia, e a seu terrível impacto se dobram joelhos de Aimée, estendem-se suas mãos e uma angústia sem igual lhe sobe à garganta. De repente, fazendo um supremo esforço, ergue-se vibrante, como a víbora encurralada que se levanta para atacar. Elevou a cabeça vendo brilhar uma nova esperança, uma fresta por onde escapar, uma possibilidade a que agarrar-se. — O que pode saber Noel? O que pode lhe haver dito? — Sua atitude e a desse canalha, acredita que não bastam? A forma em que te aproximou dele. A forma em que lhe falou. Tratou-te corno a qualquer. — Tratou-me mau, mas por culpa de minha irmã. Eu lutava por defendê-la a ela, queria convencê-lo de que partiram. Renato foi o culpado. — Caia! Não manche o nome de meu filho; já manchaste bastante. Aos pés do Noel se deprimiu sua mãe, espantada, tremendo, ao supor, com razão, que meu Renato ia matar-te. E até me falou mais, até me contou mais. Sei que esteve a vê-lo antes de te casar, que esteve em sua casa lhe perguntando por esse homem, por esse maldito Juan do Diabo que é pesadelo de minha vida desde dia desgraçado em que nasceu. E tinha que ser ele. Ele tinha que ser com ele e por ele, que traísse a meu Renato. Confessa. Confessa. Declara-o? — Não confesso nada nem declaro nada — nega Aimée refazendo-se de sua confusão. — Para que quer me obrigar a falar? Para ir dizer ao Renato? — Ao Renato? Não, muito sabe que não tenho que dizer-lhe ao Renato. Não finja que está bem segura de que não vou delatar-te. Ou é que quer que te prometa a cumplicidade de meu silêncio? — Renato me matará. E não serei eu sozinha a pagar um momento de debilidade e de loucura, quando incluso não era sua esposa. Não serei eu sozinha a pagá-lo. Pagá-lo-ia também o filho do Renato, a inocente criatura que levo nas vísceras. — O que? Como? — sobressalta-se Sofia, sumida em uma completa confusão. 63 Pégasus Lançamentos — Que é carne de minha carne e que é também o sangue do Renato! Por ele calei por ele me defendi, por ele aceitei o sacrifício de minha irmã, e ela quis fazê- lo, quis sacrificar-se por amor ao Renato. — Mas, o que está dizendo? — interrompe-a Sofia cada vez mais surpreendida. — Sim, sim, essa é a verdade! Se quiser você sabê-la toda, toda inteira, tenho que gritá-la. Mônica estava apaixonada pela Renato, disputava-me ao que era já meu prometido. Impulsionada pelo ciúmes, encurralada pelas circunstâncias, cometi uma loucura. Depois me arrependi e chorei muito. Só ao Renato quero com toda minha alma. Só a ele quis sempre, e agora morro porque perdi seu amor e sua confiança! Sofia D'Autremont retrocedeu querendo rechaçar aquelas palavras pérfidas e venenosas, compreendendo pela metade, de uma vez surpreendida e espantada; enquanto vendo que ganhava terreno, Aimée se eleva para correr a ela, jogando tudo em um golpe de audácia: — Mas não posso mais. Não suporto mais. Vou dizer tudo ao Renato, vou confessar-lhe a horrível verdade, vou a que me mate de uma vez, a que termine; juntos minha vida e de meu filho. — Quieta! — detém-na Sofia em tom imperioso. — Não abra essa porta. Não dê um só passo! Não seguirá fazendo quanto te deseje muito, não seguirá ferindo e destroçando a quantos têm a desgraça de estar a seu lado. Não converterá a meu filho em homicida, acabando de lhe destroçar e lhe desonrar! Pensa que não lhe tem feito já bastante mal? Acredita que não tenho já motivos de sobra para te amaldiçoar? — Pagarei com minha vida e ninguém terá que me amaldiçoar! Por isso vou levar se ao Renato. Que dela disponha que aperte de uma vez esta garganta. Por que não deixou você que me matasse? — Porque não é você quem tem que julgar o castigo que merece sua falta, a não ser eu que é a quem mais ofendeste. Eu, que te dei meu filho ditoso, feliz, cheio de ilusões: eu, que acreditava, entregando-lhe a velar por sua felicidade, enquanto você o banhavas de lama; eu, que agora te ordeno que cale. Que cales como calarão todos! — Não! — tenta protestar Aimée hipocritamente. — Sim! Bem sei que a metade de suas palavras são falsas; sei que, apesar de seu desplante, não tem que procurar a morte. Quem foi capaz de calar frente ao que você calaste, tem que ser muito egoísta para deixar-se matar. Bom, ia a obrigar-te a sair desta casa, a fazer que fugisse, que lhe afastasse sem que meu filho pudesse verte nem te alcançar. Entrei disposta a proteger sua vida, não por ti, que não a merece, mas sim por ele, que é o único que me importa já na terra. Mas agora não vou deixar-te partir, agora ficará. Faz umas horas, se eu não tivesse entrado na quarto de vocês, acaso teria pagado já sua dívida. Salvei-te uma vez e te salvarei definitivamente; mas vais dizer o que eu te ordene, vais fazer o que eu te mande. 64 Pégasus Lançamentos Condeno-te a viver, condeno-te a calar, te condeno a expiar seu pecado, sendo para meu filho não uma esposa, a não ser uma escrava. Repentinamente, deixam-se ouvir na porta uns golpes violentos, e é a voz do Renato a que chama: — Mamãe, mamãe, me abra em seguida! Abra-me! — Algo novo passou — assinala Sofia. — Mas não trema, prometi te defender e eu sei cumprir minha palavra, Aimée. — Mamãe!Não me ouve?— volta a chamar Renato, golpeando já violentamente a porta fechada. — Entra nesse quarto — aconselha Sofia ao Aimée. — Não saias, a menos que seja eu quem te chame. Anda! Sofia a viu obedecer, levando-se logo as mãos ao peito, aí onde o coração pulsa sobressaltado. Ela também treme, também está pálida, mas tomou uma resolução heroica, decidiu em um instante sua atitude e sua conduta futuras, e enquanto vai franquear a porta, um pouco parecido a uma oração se eleva de sua alma. Uma oração para o homem que a chama impaciente. — O que ocorria? Temi ter que jogar a porta abaixo. Com olhar de franca desconfiança, Renato D'Autremont percorreu a larga estadia que é o quarto de sua mãe. Busca, com raivosa impaciência, o grácil figura do Aimée do Molnar, escorrega o olhar sobre a porta fechada que dá ao quarto de dona Sofia, e a volta para sua mãe, interrogadora e ardente: — Onde está? Onde se escondeu? Por que não me abria? — Porque se achava no outro quarto. Não tinha escutado que tocasse. Pediu-te que te acalme. Está fora de si. É indigna a atitude que tomaste. Sei bem que é um homem, dono e senhor de todos seus atos, mas como mãe tenho ainda alguns direitos, e não acredito que me pretenda negar isso — Não se trata disso. Onde está Aimée? Antes a liberou de minhas mãos, mas agora não poderá. Agora terá que responder satisfatoriamente, ou sua traição ficará provada. E se tiver a verdade na mão, se me traiu, se me enganou. — Basta! Não tem nenhuma evidência, posto que até falas desse modo. Verá-a quando você e eu tenhamos falado. Exijo-te que te acalme, Renato. O que é o que te passa? — Acharam o segundo cavalo perto da praia, na costa do segundo vale. Morto de fadiga, suado, arranhado pelas sarças, quase arrebentado? Depois da corrida desumana que foi obrigado a dar. — Bom — aceita Sofia com falsa serenidade. — Se Juan do Diabo saiu daqui levando-se dois cavalos, é lógico que sejam os que apareçam cedo ou tarde. — Encontraram-no muito perto do lugar, em que alguém, a toda pressa, tinha improvisado um pequeno mole de pranchas, para dar acesso certamente a um bote. Isso quer dizer que Juan o tinha preparado tudo para uma fuga, para um escapamento. Os melhores cavalos da casa escondidos na maleza, o barco há duas horas daqui, o mole preparado para que ele pudesse levar comodamente uma dama. Saída franco para uma fuga. 65 Pégasus Lançamentos — Ou para uma viagem de noivos. Quem sabe! — tenta Sofia subtrair importância. — Não há tal viagem de noivos, pois Juan não sabia que eu ia obrigá-lo a casar-secom a Mônica. Juan o tinha todo disposto para levar-se a outra, a que seriamente amava a que de verdade era seu amante. — Não é suficiente o que viu, para estar seguro disso, Renato! — rechaça Sofia com enérgica determinação. — Não pode ter a certeza. — Não, não a tenho, mãe — vacila Renato — Mas isto é quase a certeza. Por isso procuro o Aimée, e te peço que me deixe com ela, que não intervenha. Esta vez terá que me dizer a verdade. Toda a verdade! — Me ouça, Renato, é de urgência o que tenho que te dizer: Consta-me, estou segura de que sua mulher não te enganou. Estive horas junto a ela; acossei-a, enlouqueci-a, a e obriguei a falar com absoluta sinceridade. Me há contado tudo. — O que te contou? —Toda esta história. Contou-me chorando isso, contou-me isso se desesperada, e a mim não mentiu. Não tinha por que me mentir. Você a humilhaste ofendeste-a profundamente com sua violência, com seus maus entendimentos. — Não tenho feito a não ser querer saber algo ao que tenho perfeito direito! — Transpassaste os limites, os procedimentos que um homem decente deve empregar. Agora mesmo, quanto tem bebido? — Não estou bêbado! Se ela te houver dito. Mas, é que não compreende? Estive louco, desesperado; procurei algo que me ajude a me conter, a não ferir como cego, a não matar. Que quanto bebi…! O que importa quanto bebi? Nenhuma só gota desse álcool está em meu cérebro. Nada conseguiu me acalmar; todo o tragou esta angústia, este desespero, esta raiva, este desejo furioso de encontrar a verdade. Ela tem que me dizer isso — Ela não te enganou. Como esposa, não te há enganado. Se acaso, como irmã da Mônica do Molnar. — O que quer dizer isso? — Renato, filho, me escute e me entenda. Aimée não te traiu como esposa, viveu para ti e é a ti a quem ama. Está desesperada por sua desconfiança, pela forma brutal como a tratou. Tão desesperada, que chegou a preferir a morte. — Se fosse inocente, não teria mais que um desejo! Prová-lo! — Não se considera inocente, porque te ocultou algo. Sim, toda essa triste historia de sua irmã, sentimentos que você ignoras e que ela não podia decorosamente te participar. Coisas íntimas, delicadas… — Não há nada que minha mulher não possa me dizer. Se me amar, se me tivesse amado. — Amou-te e te ama. Se confiar em mim, saberá que sou tão ciumenta de sua honra como você mesmo possa sê-lo. — Sempre acreditei desse modo, e é por isso que sua atitude me estranha. — Sente-se e me escute. Não é coisa que possa te dizer em duas palavras. Entretanto, há algo que, embora não sou a indicada a lhe dizer isso não posso 66 Pégasus Lançamentos ocultar isso mais. Ela, humilhada por sua atitude, não falará, e você deve sabê-lo no ato. Renato, Aimée vai te dar um filho. — O que? O que? Um filho! Lentamente, Renato se sentou, jogou para trás a cabeça, fechando as pálpebras, apertando os lábios, e sobre o tumulto de seu rancor, de seu ciúmes, de seu ódio, de seu amor frustrado, vão caindo lentas e suaves as trêmulas palavras de sua mãe: — Seria terrível que pela violência de seu ciúmes cometesse uma injustiça. Não te peço que o aceite tudo, não te digo que corra a estreitá-la em seus braços, mas sim que modere sua caráter. Ela, como esposa, não te enganou. Bem pode ser que seus pecados sejam veniais, e há algo que tem a obrigação de considerar: Vai te dar um filho! Vai ser mãe! CAPITULO 7 Os olhos da Mônica se abriu devagar, muito devagar, voltando a fechar-se quase no mesmo instante, como se a luz os ferisse, e tornaram a olhar por entre as pálpebras, semi entreabertas, como reconhecendo o estranho lugar em que se acha. Os grandes olhos claros da ex-noviça se abrem totalmente para olhar o rosto desconhecido, de expressão nobre e grave, daquele homem vestido de negro que inclina a cabeça, como consultando várias folhas de apontamentos. Está estendida em um daqueles beliches, sobre um grosso colchão de lã. Sob a cabeça dolorida, em que as ideias parecem vibrar sair e entrar inseguras e vagas havia travesseiros, e finos lençóis de linho cobrindo seu corpo vestido com um roupão liso e branco. As débil mãos rechaçam um pouco os lençóis. A cabeça de loiros cabelos emaranhados se levanta ligeiramente, com esforço. Trata de levantar-se, quando. — Caramba, despertou você! Como se sente? O homem vestido de negro chegou até ela, levantou de uma banqueta com a absoluta naturalidade de quem está acostumado a mover-se naquela estadia, e procurou o pulsou da doente olhando-a com olhos bondosos e cansados ao que aparece a esperança, enquanto aconselha: — Não se mova nem fale; não faça nenhum esforço. Está melhor, sabe? Está muito melhor, mas é preciso que não faça a menor imprudência. Agora mesmo vou enviar por algo que precisa tomar. A loira cabeça da Mônica estremece-se querendo em vão fixar as imagens que agora passam como em um torvelinho. Quem é aquele homem? Em que lugar se encontra? Está viva ou morta? Sonha ou perdeu a razão? Não recorda haver visto jamais aquela estadia, não recorda haver-se deitado nunca em um leito semelhante, e o ar fresco que penetra pelas janelas tem um áspero aroma de salitre e a iodo. É o 67 Pégasus Lançamentos ar do mar muito próximo. Está em um navio. Sim, está em um navio, e doente, gravemente doente. Mas, como está ali? Por aonde chegou até aquele navio? As imagens se fazem mais precisas. Recorda. Recorda o vale de Campo Real, a luxuosa mansão dos D'Autremont. Sofia, Renato, Catalina. Aimée, Juan. Juan do Diabo! E ao tomar neste corpo a verdade em sua mente, irrompe em um soluço: — Meu deus. Meu deus! — O que lhe passa? — perguntou o doutor. — Sente alguma dor, alguma moléstia especial? Diga-me isso filha, diga-me isso sem afligir-se. Trate de me explicar o que sente. Sou o doutor Faber, seu médico, e levo três dias junto a você, embora não recorde, me haver visto antes. Esteve com febre muito alta e fora do mundo, mas o pior já passou. — OH. Jesus! — exclama Mônica contem o espanto refletido em seu pálido rosto. — O que tem? O que lhe passa? Acalme-se. Por que se assusta desse modo? Não vai passar-lhe nada, o asseguro. — O doutor Faber tratou em vão de acalmá-la, mas ao desabar-se Mônica desvanecida, com tom quase áspero, reprova: — Ah, caramba! Apareceu você de repente, e temo que ao lhe ver se assustou. Você a olha de forma tão parva que acaba de desmaiar. O homem cuja presença provocou o desmaio da Mônica se aproxima muito devagar, sereno e triste, e fica imóvel, olhando-a. Agora, sem as rosetas da febre, as bochechas da Mônica são mais brancas que os brancos lençóis em que se envolta. A olha e a acha formosa, extraordinariamente formosa, apesar de seu aspecto débil, doentio, com uma beleza enfermo que a faz mais menina. — Está melhor, verdade, doutor? — Imensamente melhor. Mas este desmaio. Este desmaio. Vá, menos mal, acredito que já volta em si! — Quer me deixar com ela, doutor? — Não, doutor, não se vá! — suplica Mônica francamente angustiada, proprietária já de suas faculdades. — Sim? — surpreende-se o doutor. — Seu marido quer falar-lhe a sós, minha filha — E voltando-se para o Juan, recomenda: — cavalheiro, ao que parece se trata de um capricho de doente, mas me atrevo a lhe rogar. — Não se preocupe doutor — interrompe-lhe Juan com serena amabilidade — eu sou o que se vai. Lentamente, o rumor dos passos do Juan foi apagando, enquanto Mônica volta a entreabrir as pálpebras, sentido que outra vez desfalecem corpo e alma. Já sabe onde está já recorda com verdadeiro horror quanto passou: é a cabina do Lúcifer e está casada com o Juan do Diabo. As lívidas imagens daquele pesadelo que foram suas últimas horas em Campo Real dançam em sua razão até consumi-la. Depois, a espantosa carreira sobre os campos, a luta ao bordo da praia, as mãos daquele homem atendendo-a, arrastando-a ao bote, arrojando-a ao fundo daquela toca imunda, e logo a sombra, a escuridão,as nuvens vermelhas da febre. Não recorda mais. Não pode recordar mais. O que outra coisa pôde passar? Nem os 68 Pégasus Lançamentos covardes marinheiros incapazes de ampará-la, nem o Deus a quem invocou desesperada, evitaram-no. — Quantos dias faz que estou neste navio, doutor? Quando chegamos ao Saint-Pierre? Quando lhe chamaram? — Ao Saint-Pierre? — Sim, doutor, ao Saint-Pierre. O navio está ancorado. Ou não? Não estamos em porto? Não estamos no Saint-Pierre? — Estamos ancorados no canal, frente à Grand Bourg, capital da Maria Galante. Seu Saint-Pierre está a muitas centenas de milhas mais ao sul. — Então, estou sozinha. Abandonada. — espanta-se Mônica. — Não acredito que "abandono" seja a palavra exata. Seu esposo é um moço forte e áspero como bom marinheiro, mas, se tiver que lhe ser franco, direi que pelo menos nos quatro dias que levam vocês frente à Mara Galante, não pôde portar-se melhor. Transformou, no possível, esta pequena cabana. E não omitiu nenhum gasto para lhe proporcionar as maiores comodidades. Claro que o sensato teria sido desembarcá-la, levá-la ao hospital. Eu até insinuei a seu marido a possibilidade de deixá-la enquanto ele termina sua viagem, mas não acessou. Parece-me razoável. Depois do que lhe vi atendê-la e cuidá-la, considero que seria para ele muito duro separar-se de você. — Ele me atendeu? O me cuidou? Mônica calou de repente. Sob o embuço das Savanas se mordeu as mãos para não gritar, porque a ideia horrível brilhou mais clara. Por que tinha que atendê- la Juan do Diabo? Por que tinha que mostrar-se com ela generoso e humano? Por que tinha que gastar esforço e dinheiro em conservar sua vida, mas sim porque aquele horrendo matrimônio se consumou já, porque era em realidade sua esposa, porque contra toda sua vontade, em sua estado de inconsciência, havia-lhe pertencido, porque era plena e totalmente a esposa do Juan do Diabo? — Não queria ser indiscreto, senhora. Humm. Molnar é seu sobrenome; senhora Mônica do Molnar, não é assim? Bem, digo que não quero ser indiscreto, mas sim desejo lhe assegurar que em mim pode você ter um amigo disposto a lhe servir no que você necessite se chegar o caso. Sou o doutor Alejandro Faber, médico titular do hospital do Grand Bourg, cidadão francês, viúvo e maior de idade, como indicam meus papeis. Não tenho família e você me recorda de um modo extraordinário a minha única filha, que tive a desgraça de perder faz cinco anos. Além disso, a simpatia é uma coisa espontânea, e lhe asseguro que comigo pode ser franca. Tem algo que me pedir, minha filha? Deseja algo? Há algo que eu pudesse fazer por você? Com o que desesperado impulso tivesse gritado Mônica pedindo ajuda, amparo, amparo contra Juan do Diabo! Com que ânsia dolorosa o tivesse rogado a aquele ancião que rompesse suas cadeias, que a resgatasse, sair daquela toca, deixar aquele navio, não ver mais o rosto que a aterra, o duro e feroz rosto do Juan do Diabo! Mas há um pudor invencível que paralisa sua língua e suas mãos, como uma grande vergonha sem nome, como um último refúgio de sua dignidade. Ao fim e ao 69 Pégasus Lançamentos cabo, o que tem feito Juan do Diabo mais que aquilo ao que seu matrimônio lhe dá direito? Como pedir ajuda contra ele, sem denunciar a horrível circunstância que a obrigou a entregar-se a todo risco? Como um tremor de febre, sacode-a o protesto de seu corpo e de sua alma, mas para sem chegar a brotar. — Atreveria-me a lhe rogar. Queria você escrever a minha mãe, doutor Faber? — Certamente. Não faltaria mais. O que devo lhe dizer? — Que estou viva e que não sofra por mim, que não se trabalhe em excesso. Minha mãe é Catalina do Molnar, Campo Real, Na Martinica. Não acredito poder lhe escrever eu diretamente, mas suas letras a tranquilizaram. O agradecerei muito, doutor. — Não haverá razão. Trata-se de um serviço insignificante. Farei-o hoje mesmo com o maior gosto. Que mais devo lhe dizer? — Nada mais. E por favor, que fique entre nós. — Certamente. E agora, minha filha, devo deixá-la. É a hora de minha visita ao hospital. Se quiser que chame a seu marido. — Não chame a ninguém. Sim alguém pergunta, diga que estou dormindo. — Como você o deseje. Até a tarde. Com passo moderado, o doutor Faber deixou a cabine do Lúcifer, cruzando devagar a escala. Junto à proa, sentados no chão, cochichando em voz baixa, estão seus quatro tripulantes. Longe de todos, sobre o cilindro de cordas da popa, cruzados os braços, o olhar longínquo perdido no mar, Juan do Diabo. Um instante desvia o médico seus passos para acercar-se a ele, que ao lhe ver se levanta com brusco movimento, perguntando: — Já se vai doutor? — Por umas horas nada mais. Acredito que posso fazê-lo sem risco. Sua esposa melhorou notavelmente. Tanto, que se não sobrevir uma recaída, quase poderia lhe dizer que já não tem perigo de morrer. — Me alegro muito, doutor— Desmentindo o tom seco e cortante, os olhos escuros do Juan se iluminaram. Há sentido como se seu peito se afrouxasse, como se pudesse respirar melhor, mas rechaça aquele alívio que a ele mesmo surpreende, e angustia: — Suponho que lhe terá feito depositário de seus queixa. Não lhe pediu ajuda, amparo, auxílio? Claro que você me viu vai repetir isso. Você, naturalmente, há-se sentido seu cavalheiro andante, seu amigo incondicional. Pelo que vá fazer se é que vai fazer algo, inteirarei-me quando surgir o escândalo. — Não diga coisas absurdas. Ninguém vai escandalizar. Ela não se queixou. — Outra vez, os escuros olhos do Juan se iluminaram; outra vez, aquele resplendor que não quer deixar brotar, aparece a suas pupilas, e o velho médico, ao adverti-lo, arrisca uma espécie de pergunta: — Não sei se tem você algo que reprovar-se. — Eu não me reprovo nunca nada, doutor Faber. — Melhor então. Tinha chegado a temer, mas já vejo que me enganei, e me agrada. Agrada-me extraordinariamente haver-me equivocado o primeiro dia. Não leve a mal, mas me pareceu você uma espécie de pirata. Cheguei até a temer que a que nomeavam sua esposa, fora só uma dama sequestrada por você e sua gente. 70 Pégasus Lançamentos Assim como faziam em outros séculos, verdade? A culpa é das muitas lendas que se cobriram ao redor destas ilhas, tão belas como selvagens. Sua esposa é francesa, verdade? — Nasceu como eu, na Martinica; mas só faz seis meses que retornou da França, aonde a levaram de menina. — Já. De qualquer modo, sua esposa está tranquila no momento, e é quão único necessita: uma absoluta tranquilidade, a segurança de que ninguém vai contrariá-la nem a exercer violência sobre ela. Agora dorme, e, como lhe disse, seu melhor receita é o descanso. Até a tarde, meu senhor. Estendeu a mão fina e cuidada de cavalheiro, mas Juan finge não advertir o gesto amistoso. Mordendo-se levemente os lábios, dissimula também o médico, embora troquem seu tom e seu olhar, ao comentar: — Sua esposa é uma dama, uma grande dama. Compreendi-o ao olhá-la. Logo, atei cabos, e agora há um nome que me soa: Campo Real. É um lugar famoso em todas as Antillas, unido ao sobrenome D'Autremont, o dos mais ricos e importantes latifundiários da Martinica. Não faz muito, o jovem D'Autremont casou com uma Molnar. Molnar é o sobrenome de sua esposa, não o seu. Perdoe- me se for indiscreto. Você se chama. — me chamam Juan do Diablo! O doutor Faber ficou imóvel, olhando frente a frente ao Juan, muito surpreso para poder falar, mas o áspero e fechado rosto de seu interlocutor é bastante eloquente em sua expressão dura gelada. Limita-se, pois, a inclinar a cabeça em um ambíguo gesto de despedida, cruzando rapidamente a coberta rumo ao flanco de que pende a escala. — Segundo, te prepare a ir a terra. Pode ir você sozinho ao remo. No bote grande, que vão Francisco e Julián. — Aonde, patrão? — A trazer duas pipas de água. O Enguia que fique de guarda na proa. Eles, água; e você, as provisõesnecessárias para zarpar logo que tenham retornado. Mas não diga uma palavra a ninguém. Dá as ordens precisas, e basta. Aqui tem o dinheiro, te esteja atento e sai quanto antes ao que te mandei. Aguarda! Compra também frutas, uma cesta grande. Quão melhores encontre. E, além disso, alguma roupa de mulher. — Roupa de mulher? — Não sabe comprá-la? Vestidos, blusas, saias. Alguma vez comprou roupa de mulher? Traz também um xale de seda. Pelas noites está refrescando. E uma manta para a cama. Ah! E compra um espelho grande. Date pressa! — Voando, patrão. Segundo correu para obedecer às ordens do Juan. Um instante, o patrão do Lúcifer contempla o panorama da cidade, frente à que seu navio está ancorado. Aspira com fruição o ar carregado de salitre, enchendo-se com ele o peito, como se reunisse as forças necessárias para uma determinação definitiva, e logo, passo a passo, dirige-se para a cabine. — Já está acordada ? 71 Pégasus Lançamentos Mônica não responde, porque não vão a seus lábios as palavra. Agora sua mente está maravilhosamente clara, diáfana. Como se tivessem arrancado de seus olhos os véus de névoa que lhe ocultavam a realidade, contempla sua triste situação cara a cara. Aquele homem é seu dono, é o marido que há aceitado de que em vão pretendeu fugir. Até lhe inspira terror pensar que certamente pertenceu-lhe, até arde em suas bochechas à labareda do rubor, considerando que aquele rude marinheiro, a quem só pode olhar como a um estranho, tem o segredo de sua intimidade. — Suponho que não perdeste o tempo, e que há encontrado no doutor Faber um mensageiro serviçal. — Não compreendo o que quer me dizer. — Compreende muito. Até eu compreendo. O doutor Faber é de sua classe, de sua casta. Bastou-lhe escutar o sobrenome Molnar, para associá-lo a D'Autremont. Não é alheio à fama de Campo Real e, naturalmente, surpreende-se, fica pasmado, não acerta a explicar-se por que razão estamos casados. Temperando que o precipitado da viagem me tenha impedido de trazer certificados e papéis, esses importantes papéis sem os que não pode viver a gente de certa classe. Tivesse- me gostado de lhe ver abrir a boca de assombro quando lesse: "Eu, Pai Vivier, cura pároco de Campo Real, declaro ter unido em legítimo matrimonio a Mônica do Molnar com o Juan, sem sobrenome, conhecido pelo Juan do Diabo”. Terei que ver sua cara de espanto. Só por isso, sinto não ter trazido os papéis; mas podemos mandá-los procurar. Pensa que Renato será o bastante amável para mandá-los? — Não penso nada, e aproximou-se de mim só para me atormentar. — Justamente o contrário. Antes lhe quis dizer isso, mas o pediste ao médico que ficasse em meu lugar, suponho que para lhe pedir amparo e ajuda. Por isso tomei minhas precauções. Eu não sou dos que se deixam apanhar, nem dos que servem de brinquedo ao capricho das mulheres. Espiou o rosto da Mônica, ficou aguardando seu protesto, suas súplicas, acaso suas lágrimas, mas nada trocou no pálido rosto da doente. Nenhuma frase, nem um gesto, nenhuma palavra. E recorda: — Os navios se fizeram para navegar, não para estar ancorados. — Opino igual: os navios se fizeram para navegar. — E nós vivemos em um navio Juan tornou a ficar silencioso, olhando-a, aguardando suas palavras, e a tranquila mansidão da Mônica pareceu lhe inquietar: — Não lhe eleva seguir viagem? — Mudariam em algo seus projetos que me importasse? Mônica entreabriu as pálpebras. Parece ausente e triste. Sem poder conter-se, Juan chega até o bordo do leito, e se detém a vê-la tremer. — Não tenha medo, que não vou fazer-te nada. — Não tenho medo. Quão único poderia me fazer, é me matar, e isso não me importa. O roguei tantas vezes em vão! — Tomaste-me, como seu doutor Faber, por um pirata, por um assassino profissional? Mas, o que te passa? Por que está chorando? — Viu rodar uma lágrima pela pálida bochecha da Mônica; uma lágrima que escapa furiosa das pálpebras entreabertas. — Não chore. Faz-te mal. Não tem por que chorar nem por que te 72 Pégasus Lançamentos assustar — Não vai passar nada, absolutamente nada. Não basta que eu lhe digo isso? Se necessitar outro médico mais adiante, terá-o. — O doutor Faber era meu amigo — aponta Mônica sem poder se conter. — Agora não tenho a ninguém. — Amigos não lhe faltam no Lúcifer. Quanto a mim. — Não me toque Juan! — Naturalmente que não a toco. Não se preocupe, não tenho nenhum interesse em tocá-la. Fique em paz. Profundamente sentido pela atitude da Mônica, Juan abandonou a cabine, subindo a coberta onde quase se tropeça com seu Segundo que parece seriamente agitado, e volta com frequência à cabeça para olhar para a costa próxima, por cima da amurada. Intrigado, Juan pergunta: — O que tem? O que te passa? — Por fim! Aí estão já os moços com as pipas de água. Também comprei um barril de bolacha e um pouco de carne salgada. Seus outros encargos estão aí: as frutas, a roupa e o espelho. Acabava de pô-los no bote, saltei outra vez para procurar aguardente e tabaco, quando. — Quer acabar de me dizer o que acontece? — impacienta-se Juan. — O doutor, patrão. O doutor, com o chefe da guarda do porto, em um carro, por aquele lado. Vi-o muito bem. Falava como acalorado e duas vezes assinalou com a mão ao Lúcifer. Não compreende? Dizia-lhe algo de nós.Você sabe que ancoramos sem permissão, sem haver mau tempo nem tempestade. — Trazíamos um doente a bordo. — Uma doente, patrão, uma doente que. Bom, você é quem sabe. Mas para mim o médico nos estava denunciando. Algo terá que denunciar. Você saberá se tem algo que denunciar. Mas me deixo cortar a cabeça sim antes de uma hora não temos aqui a visita do capitão do porto com seus guardas. — Antes de uma hora, estaremos fora do canal. — Por isso mandei subir os botes e correr aos moços. Eu poderei lhe fazer cara a você como homem, patrão, mas à hora que os do outro lado queiram nos fechar o passo, sou o Segundo do Lúcifer, e nada mais. — Não temos por que fugir de ninguém. Zarparemos porque chegou a hora de zarpar e há bom vento. Que a gente se prepare. Agarra o leme você mesmo, e ponha proa ao norte até que eu te dê ordem do contrário. Uma brusca sacudida estremece ao Lúcifer, virando no canal. Dois violentos inclinações bruscas indicam que o vento sopra já sobre as velas grandes, e rangem a seu impulso os cabos e as gavetas. Um carro coberto de pó se deteve frente à escalinata lateral da opulenta residência dos D'Autremont. Sem dar tempo a que o lacaio trate de ajudá-la, baixa dele Catalina do Molnar, salva os breves degraus com passo incerto, e vai tomar a larga galeria quando, surgindo da porta da biblioteca, dirige-se para ela o notário Noel, com um esforço a flor da pele: 73 Pégasus Lançamentos — Senhora do Molnar. Mas, é você? — retornei o quanto puderam correr os cavalos. Necessito ver o Renato, falar com ele imediatamente. Ai, Noel! O navio desse homem maldito não está no porto e, conforme me informaram, nem sequer passou por ali. Onde está Renato? Preciso lhe falar lhe dizer. Sim, dizer-lhe tudo. Não calarei mais! Estou morrendo por ter calado, por ter feito caso de todos, por ter obedecido à própria Mônica quando mandou calar. Deixe ir onde está Renato. Deixe-me lhe dizer. — Catalina se detém um momento ao ver acercar-se a Sofia, e exclama: — Ah, senhora D'Autremont! — Catalina, acabo de ver o carro. Disseram- me que você chegava do Saint-Pierre. — Cheguei desesperada. Preciso falar com o Renato agora. Estava com você? Onde está? Por favor. Noel busque-o, chame-o. Veja que me faltam as forças. Afligida, sentindo que se dobram seus joelhos. Catalina do Molnar se desabou em uma poltrona daquele, escritório onde o notário a conduziu, e enquanto correm as lágrimas da triste mãe, Sofia D'Autremont parece dispor-se a dar outra batalha, ao recomendar ao ancião notário: — Fecha essa porta, Noel. E você. Catalina tenha um momento de calma. — É impossívelesperar mais. É preciso que as autoridades intervenham que se avise aos portos, que se busque por toda parte. É necessário salvar a minha filha Mônica! Eu sou a culpada! Devia ter gritado. Não devia ter calado jamais. — Sim, Catalina, devia você ter falado antes, muito antes. Não devia ter deixado jamais que Aimée se casasse com Renato, mas já aconteceu. O delito de calar se há realizado, e agora é preciso seguir discretamente. Vocês fizeram todo isto: Você, Aimée, Mônica. Mentiram, enganaram, montaram um alpendre de mentira e de farsa. Agora está em jogo o coração, a honra, a vida inteira de meu filho, e não vai você a cravar outra adaga em sua alma já rasgada. Não vai você a destruir com uma palavra a obra de minha luta titânica! — O que pretende você, Sofia? Minha filha está em mãos desse pirata! — Ela escolheu seu caminho; ela aceitou todo o risco, para salvar a vida de sua irmã e a felicidade do Renato. Mônica sabia o que lhe aguardava. — Não sabia nada. Como podia sabê-lo? Ela e eu pensávamos, esperávamos que esse homem a deixaria voltar para seu convento, e ali fui eu diretamente ao chegar à capital. Mas em seu convento nada sabem dela. Corri depois a nossa velha casa, tratei de indagar entre os amigos e conhecidos. Ninguém sabe nada. Então fui aos escritórios do porto, mas nada puderam me dizer do navio desse homem, mas sim não lhe viram há muitos dias. Compreende você o que isso significa? Esse homem arrastou a minha filha a seu navio, obrigou-a a segui-lo. — Talvez não foi obrigada. Tinha-lhe aceito como legítimo marido. — Ela se deixará matar antes de ser dele, e esse infame a arrastou à força para consumar sua vingança. Acredito-lhe capaz de tudo. — Mas, entretanto, não foi você capaz de impedir que chegasse até suas filhas. Sofreu sua presença, tolerou sua amizade. 74 Pégasus Lançamentos — Não, não, esse homem não pisou jamais em minha casa! Juro-o! A verdade é que eu nada sábia. Temia, suspeitava. Aimeé era só uma menina caprichosa, amalucada. Sua culpa. Catalina calou desesperada, como detida entre os dois abismos a que podem lhe levar suas palavras, e ferozmente Sofia D'Autremont se impõe: — Quero pensar que não houve em Aimée verdadeira culpa, quero acreditar que se tratou de uma loucura sem importância, de um estúpido e caprichoso devaneio. Acredito e julgo que toda a culpa é desse canalha, desse pirata. — Não quero desgostá-la, mas não é essa minha opinião, dona Sofia — intervém Noel, que esteve observando a cena guardando um discreto mutismo — Juan estava transfigurado de felicidade pelo amor da que julgava lhe era fiel. — Não interessam aqui os sentimentos desse bastardo a quem não acredito capaz de amar como você pretende. Noel — despreza Sofia com ódio e rancor na voz. — Tenho que pensar que ele, e só ele, foi culpado, ou não poderia perdoar a esposa de meu filho. Forço-me à indulgência para a que é já uma D'Autremont, porque leva o nome de minha casa e porque será mãe de um D'Autremont. Defendo meus, aos que levam meu sangue, e, por esse sangue e esse nome, hei defendido a Aimeé contra meu próprio filho. Salvei-a de uma morte certa, porque eu sei que meu filho Renato é capaz de matar, e sei também que teria tido toda a razão e todo o direito! — Mas é que eu. — pretendeu protestar timidamente a angustiada Catalina. — Você calou quando devia ter falado. Agora quer falar, quando é necessário que cale. Não pude impedir o primeiro engano, mas não permitirei que se produza o segundo. — Obriga-me então a abandonar a Mônica? Renato tem influencia, amizades. Ele pode fazer que detenham esse navio. . — Faremos o possível, mas sem que intervenha Renato. Que meu filho não saiba que não suspeite, que nenhum de vocês dois diga uma só palavra que possa dar motivo a que renasçam suas suspeitas. Entendeu, Noel? Noel inclinou a cabeça Sem responder. Catalina junta às mãos, olhando-a com ânsia, e é Sofia quem dispõe decidida e rápida: — Você volte para o Saint-Pierre, Catalina, e me aguarde em sua casa. Dentro de umas horas estarei nela. Iremos juntas ver o Governador, solicitaremos toda a ajuda das autoridades, faremos quanto seja preciso, mas que nenhuma só gota desta lama alcance a meu filho. Você acompanhe-a, Noel, e não duvide minhas palavras. O único culpado de tudo isto é Juan do Diabo, e nada importará se for necessário fazê-lo enforcar! — Boa marcha levamos patrão. Quinze nós desde que saímos da Maria Galante. Se virássemos a estibordo amanheceríamos em Monserralhe, poderíamos nos deter comprar o que nos faz falta. — Não vire para nenhuma parte. Disse proa ao norte. Passaram dois dias. Com as velas cheias, inclinado para estibordo tensos pela força da rápida marcha os 75 Pégasus Lançamentos cordames e as toalhas sobre a arboaldura elástica, cruzamento o Lúcifer como se voasse. Mais que um navio se diria uma gaivota que passa arrastando sobre a espuma as branquíssimas asas, uma seta que vai a um ponto fixo com um só propósito: afastar-se, pôr léguas e léguas de mar entre a frágil nave e tudo que deixaram lá abaixo. — Logo vão faltar provisões, patrão — insiste segundo. — Aprovisionaremo-nos mais adiante, jogaremos um bote em qualquer costa deserta, mas hoje não. Nem amanhã. Entendeu? — Sim, patrão, você não quer que nos alcancem. — Nem que nos vejam de longe. Não quero lhe dar o gosto a ninguém de saber onde estamos. Proa ao norte até que eu te mande virar. Segundo. — Mônica despertou estremecida, como sempre que seus olhos percorrem o reduzido panorama daquela cabine semi deserta. É como se olhasse as paredes de seu cárcere, como se voltasse para a consciência daquela estranha escravidão em que até a esperança de escapar apaga. Mas ao voltar-se com gesto doloroso, os grandes olhos doces, tristes e cândidos do menino negro lhe chegam à alma como um quente fôlego de ternura. — Está melhor, verdade, minha ama? Já não tem febre. Seguro que já não lhe dói a cabeça. — Não, já não me dói. Colibri. — Não vai comer? O amo me disse que lhe perguntasse. Aqui tem que tudo: chá, bolachas, açúcar e uma cesta de frutas grande, grande. O amo disse que eram para você e que não as tocasse ninguém. Para você só mandou o Segundo que as buscasse por água o médico disse que isso era o que tinha que tomar. Antes, quando você estava pior, o amo mesmo a fazia tomar suco de dente e de laranja, e chá com muito açúcar, e me mandava que o preparasse. Eu sei prepará-lo, minha ama. Quer que lhe faça uma taça? Se não comer nada vai morrer de fome, minha ama. — Suponho que é o melhor que pode me acontecer. — Ai, não, minha ama, você não vai morrer! O que eu tenho chorado e rezado para que não morra. Eu e os outros; todos no navio queríamos que você se curasse. O Enguia, o Francisco, o Julián. E o Segundo, que é o que manda mais depois do amo, estava que mordia e que dava patadas, porque dizia que o amo ia deixar que morresse, e que se o patrão fazia isso era para matá-lo. — O segundo. O segundo disse? — Segundo se chama, e é o segundo no Lúcifer. Que gracioso, verdade? Entre os travesseiros, Mônica se incorporou com um pouco parecido a um sorriso nos pálidos lábios, e a seu sorriso responde a de Colibri mostrando a dobro fileira de seus dentes branquíssimos, aproveitando o gesto para insistir: — Faço-lhe o chá, minha ama? — Se te empenhar faz-o. Ouça Colibri, onde estamos? — Deus sabe! Eu não vejo a não ser mar por toda parte. — Não sabe tampouco aonde vamos chegar? 76 Pégasus Lançamentos — Nem eu nem ninguém. O navio leva o amo, e quando o Segundo ou o Enguia agarram o leme, vão por onde ele os manda. — Não lhes interessa saber aonde os leva? Muito confiam nele! — O patrão sabe. — Sabe…? — repete Mônica com estranheza. — Ao que parece, duvida-o, e não há razão para duvidá-lo. Quatorze anos levo percorrendo este mar do Norte ao Sul, de cima abaixo, do Monserrateaté a Jamaica, das costas de QBA até as da Guayana. Quatorze anos! Juan chegou até o centro da cabine, olhando a Mônica que ao lhe ver troca; aperta os lábios, volta a deixar cair à cabeça sobre os travesseiros e fica outra vez imóvel, enquanto ele a contempla dolorido um instante, para sorrir logo com gesto de sarcasmo, ao dizer: — Parece que minha presença te aumenta à febre. . — A ama já não tem febre — indica Colibri com ingenuidade. — Boa notícia. Vamos ter que celebrá-la, e como não há aguardente a bordo, será com chá. Traz outra taça para mim, Colibri. Anda… A mão da Mônica, estendida um instante como para impedir a saída da estadia de Colibri, tem cansado sobre as Satanás, e seu olhar foge a do Juan, enquanto o coração parece apressar seus batimentos do coração. É uma angústia, é um segredo espanto o que lhe produz a presença, agora serena e grave, do Juan. Entretanto, olhando-o devagar, quanto mudou. Já não viu suas roupas de cavalheiro; diria-se um marinheiro mais, a grosa camiseta de largas raias, a branca calça descuidada, a gorra de viseira escura arremesso para trás mostrando a frente despejada e uma mecha de rebeldes cabelos. Agora, com as bochechas raspadas, sem a chama do álcool nos olhos escuros, parece mais jovem, sua voz não soa a cólera nem há um fermento tão amargo em suas palavras: — Já vejo que está melhor. Não sabe quanto o celebro. Ao não necessitar outra vez de médicos nos economiza uma escala. É uma positiva vantagem. — Não compreendo por que se preocupa tanto. O que importa minha saúde? Deixando morrer bastava. — Vá! Ao fim te dignaste falar em minha presença. Algo vamos ganhando. — Para que me atormenta? — Não quero te atormentar, a menos que sejam para ti um tortura minha presença e minhas palavras mais vulgares. É muito difícil evitar-se em um navio tão pequeno, tendo um só quarto e muitas léguas de mar por diante. — Aonde vamos? — Não vamos a nenhuma parte. Esta é nossa casa, aqui habitamos. Espero que algum dia será o bastante razoável para te levar a terra sem perigo de que me delate. — Mas, o que se propõe com tudo isto? — Eu? Nada. Vivemos. Este é meu trabalho, esta é minha casa. Poderia ser uma cabana, ou um palácio. Como pensou que poderia ser sua vida casada com um marinheiro? Queria que te deixasse no porto? Não, já tive uma experiência e me 77 Pégasus Lançamentos custou muito cara: quem deixa uma mulher no porto corre o perigo de não encontrá- la, ou de encontrá-la junto a outro. — OH, basta, basta de brincadeiras e de sarcasmos! Até onde vai levar esta horrível farsa? Não se vingou o suficiente já? Não cobrou de mim o mal que pôde lhe fazer minha irmã? Não está já satisfeito? — Satisfeito, do que? Isto não é uma farsa. Tenho entendido que nos casaram de verdade, eu e você. Mônica levantou-se violentamente, sentindo que suas bochechas ardem. Não poderia suportar nenhuma palavra mais, não poderia sofrer a alusão que lhe espanta nos lábios de Juan. Enlouquecida se pôs de pé, quis andar, fugir, mas seus joelhos se dobram. Impedindo-a de cair, Juan sustento-a nos braços. Um instante treme em suas mãos o corpo frágil, quase enfraquecido. Elevou-a como a uma criatura semi desmaiada tornou a pô-la meigamente sobre a liteira, e fica contemplando o pálido rosto por onde outra vez correm as lágrimas. — Ia deixar-te na Maria Galante, ia entregar-te ao doutor Faber para que devolvesse a sua casa, aos teus. Isso foi o que quis te dizer, para isso lhe pedi ao doutor que nos deixasse falar a sós, mas não quis me escutar. Preferiu falar com ele, te congraçar para que me delatasse; preferiu caluniar-me, me trair, te burlar outra vez de meus sentimentos, de meus estúpidos sentimentos. . — Não, Juan, não. — protestou Mônica confusa. — Sim! Quis que me acossassem como a uma fera, abusar de que sou Juan sem nome, te apoiando nos de sua casta, nos de sua classe. Quis me vencer, e não me vencerá com essas armas! Juro-lhe isso! Não voltarei a ter piedade! — Juan! Eu não disse ao doutor Faber que lhe delatasse. Só lhe pedi que escrevesse a minha mãe, que lhe dissesse que estou viva. Juro-o! Juro-o! Só quis tranquilizá-la, acalmar sua horrível angustia. É que não compreende Juan? Juan se inclinou mais, sujeitando-a pelos braços, e outra vez as mãos largas a oprimem, embora não com impulso brutal. Pelo contrário, há naquela força contida, como uma espécie de doçura cálida e selvagem, algo que estranhamente acalma a horrível angustia da Mônica, algo que apaga a amargura em seus lábios, e um vivo desejo de justiça sacode para o sincero protesto: — Eu não pedi isso ao doutor Faber. O juro, Juan! Não minto, não menti jamais, a não ser na horrível circunstância que você conhece. E não mentia por mim. Por mim não vale a pena mentir. Juro-lhe que não pedi ajuda ao doutor Faber. Você acredita? Acredita-me? — Suponho que devo acreditá-la — aceita Juan dando-se por vencido. Meigamente tornou a deixá-la sobre os travesseiros, e fica de pé separando uns passos do beliche. — Mas neste caso, uma vez mais pagou você pelas culpas alheias. Afastou-se com o passo silencioso e elástico de seus pés descalços, e Mônica o olha através de suas lágrimas, quebrado de novo o dique de seu pranto, mas quebrado também o nó horrível de seu terror, sentindo que respira, considerando, pela primeira vez, que o homem que se afasta não é uma fera, não é um bárbaro, 78 Pégasus Lançamentos não é um selvagem. Que acaso pulse um coração humano sob o duro peito do Juan do Diabo. Muito devagar, tornou a incorporar-se, ensaiou dar uns passos agarrando-se às paredes, aos móveis. Há chegado até a pequena janela redonda, quando um violento tombo da nave a faz vacilar, quase cair. E o negro menino que se deslizou sigilosamente ao interior da cabine, acode solícito em seu auxílio, com um angustiado: — Ama. Ama. — Colibri, o que passou? — Nada, minha ama, que o amo agarrou o leme e mudou de rumo para estibordo. O amo está contente; deu de presente a Segundo o tabaco que ficava, e Segundo disse que íamos para a ilha de Saiba. É uma ilha pequena, mas os marinheiros estão muito contentes, porque ali vamos comprar queijo, tabaco e carne. É muito bonito ver a terra depois de tanto olhar o mar, verdade, minha ama? — Eu nem sequer tinha visto o mar. Pela redonda janela, Mônica fica olhando o mar e aspira com ânsia aquele ar impregnado de salitre e de iodo, sentindo que corre mais de pressa por suas veias o sangue, que volta a vida, essa vida que foi para ela tão dura, tão cruel, tão amarga, mas a que se aterra sua juventude com uma estranha força, depois de haver-se sentido agonizar, e profetiza: — Acredito que eu gostarei de ver a ilha de Saiba. CAPITULO 8 Fechando a suave curva elástica que formam as Antilhas Menores, das ilhas Virgens até as costas venezuelana, broche de ouro e esmeralda no magnífico colar das ilhas de Sotavento, eleva-se Saiba verde como que emerge das águas azuis do Caribe com sua redonda costa de rocha viva, com a apertado matagal de seu bosque florescido de ata, hibiscos e poincianas, perfumada do aroma penetrante da noz moscada, cujas árvores crescem nas estreitas gretas que são como pequenos vales alargados. E acima, no alto, perto do que fora em outro tempo a cratera de um vulcão, a pequena cidade holandesa do Botton, com suas poucas ruas em escada, de limpíssimas casa do mais puro estilo flamenco, seus pequenos jardins bem 79 Pégasus Lançamentos cuidados, suas calçadas de azulejos brilhantes e suas gente plácidas e lentas, que parecem viver ao passo rítmico de um clima sempre igual, no êxtase de seu maravilhosa paisagem. — Fica muito bem esse traje, minha ama. — Colibri, por que entra sem chamar? — repreende Mônica, levemente sobressaltada. — Perdoe minha ama, mas vi pela fresta que já estava vestida. Fica muito bem esse traje. Mônica fez um esforço para contero sorriso inevitável que as ingênuas palavras de Colibri levaram a seus lábios. Frente a aquele espelho que sem uma palavra pendurou Juan na única cabine do Lúcifer, acaba de olhar-se embelezada com o vestido que trouxesse Segundo da Marra Galante, e sente a impressão de estar quase nua. O fino pescoço emagrecido emerge do encaixe que borda o decote, as mangas chegam apenas na metade do braço. Em troca, a saia é larga, mas rodeada na cintura, mostrando o fino talhe flexível. Penteou em duas suas tranças dourados cabelos que caem sobre as costas, nimbo loiro de sua beleza agora mais frágil, mais delicada que nunca. . Com movimento de pudor instintivo, amassa-se no cai de seda vermelha e a viva cor dá vida nova a suas pálidas bochechas. Entretanto, retrocede vacilante, com um protesto: — Não posso sair assim. Necessito minha roupa, meu traje negro. Onde está? Quando me tiraram isso? — Não sei minha ama. Mas saia, saia que já estamos chegando. Olha a montanha! Saia, minha ama, saia. Mônica se aproximou do redondo guichê. Em efeito, estão muito perto já de terra. Ali, como ao alcance da mão, está à praia loira, com o verde cinturão de palmeiras sombreando suas areias douradas, e um sol quente banha toda a paisagem. É o sol de outro mundo, de outra vida. Como eletrizada, vai Mônica para a porta do camarote, que se abre de par em par para lhe deixar passo. — Já estamos em Saiba, patroa! Não quer você baixar? Não é a galharda figura do Juan do Diabo a que está frente a ela. Um instante se estremeceu pensando que era ele quem se aproximava, mas o homem que se apressou a franquear a porta é ele segundo do Lúcifer mais baixo, menos robusto, menos arrogante, tem os olhos claros, os cabelos castanhos, e há em seu rosto juvenil, hoje raspado, um gesto de uma vez solícito e curioso. Seu peito é largo, suas mãos calosas, mas seus pés não estão descalços nem viu a áspera camiseta blusa de marinheiro de todos os dias, a não ser as frescas roupas claras, típicas dos habitantes da Martinica e Guadalupe. Porte e traje fazem perfeito jogo com os da muito lindo moça que um instante ficá- la na porta da cabine, como deslumbrada, e que balbucia: — Baixar? Eu? — Há um bote preparado para jogá-lo à água. Sente-se melhor, verdade? Colibri disse que já estava curada e não sabe quanto nos alegramos todos. 80 Pégasus Lançamentos Estendeu a mão assinalando aos outros três tripulantes do Lúcifer, que agora parecem totalmente esquecidos de seu trabalho, imóveis junto à amurada, fixos nela as olhos, tensos pela emoção invencível que aquela presencia feminina traz para suas mentes arrudas e cândidas. Com pudor instintivo, Mônica se tem envolvida mais no xale vermelho. — O amo disse que todos podíamos baixar. Não vai baixar você também, patroa? — insiste Segundo. — Não vai baixar contigo. Acaba de cumprir meus encargos e retorna com eles no término da distância se não querer passá-lo mau. Todos aqui de volta dentro de uma hora! Acabem de largar-se! Ainda acesos de ira tornaram para Mônica os olhos de Juan, e trocam de expressão para encher-se de surpresa. Mônica é quase outra mulher: uma doce e delicada mulher, inferno que treme a seu pesar, que se estremece de rubor e de angústia tão somente ao sentir perto ao Juan do Diabo, feridas suas pupilas pelo sol brilhante que em tantos dias não contemplasse, enjoada pelo golpe da brisa do mar que chega despenteando-a. E Juan troca de voz, de expressão e de tom depois dos largos minutos que leva olhando-a, para assegurar: — Eu impedirei que esses idiotas lhe incomodem mais da conta. — Esse jovem não estava me incomodando. Aproximou-se amável e respeitoso, e não havia nenhuma razão para tratá-lo mau. — Opina então que devo lhe apresentar minhas desculpas? — declara Juan em tom zombador. — Não opino nada. Suponho que neste navio todos, e eu a primeira, estamos submetidos a seu capricho e a sua vontade. — A minha vontade, que estranha vez se move por caprichos. Não quero que na larga fila de suas queixas do Juan do Diabo inclua a de te haver obrigado a familiarizar com os marinheiros de meu navio. Além disso, oficialmente é minha esposa. Casamo-nos, verdade? Não acredito que te ocorra duvidá-lo, como ao doutor Faber. Não acredito que queira negá-lo. Muito Segundo atrevido em te falar da forma em que o fez, em ficar atrás da porta esperando que aparecesse. Mas se todo isso te agradou, não há mais que falar. Pelo resto, sua ideia não foi má. Quer baixar a terra? — Agora? Mas eles já se foram. — Há outro bote e outros braços que remam melhor que os de Segundo. Colibri ficará cuidando o navio, e eu te levarei até terra. . Sentada no pequeno bote, amassada em seu xale de seda vermelha, sentindo que de pés a cabeça o banho aquele sol espesso como mel dourado, Mônica olha aproximar-se, a cada golpe de remo, a costa de Saiba. Incluso no compreende por que se deixou levar, suave e mansa, agradecida quase, naquele bote que tão leve parece para os robustos braços do Juan. Este soltou um instante o remo para dizer adeus com a mão ao menino escuro que ficou no veleiro, e Mônica volta também à cabeça para olhá-lo, correspondendo a seus gestos de despedida. Logo, seus olhos, até temerosos, voltam-se para o Juan: 81 Pégasus Lançamentos — Não tem medo o menino de ficar sozinho a bordo? — Colibri? Ora! Em piores lugares ficou sozinho. Não tem medo; ao contrário, alegra-se de que lhe dê importância. Além disso, será por pouco momento. Vou lhe dar um pouco mais ao remo para chegar por uma praia mais fácil. A mãe Holanda ainda não lhe deu de presente um porto a Saiba nem acredito que lhes faça falta. Recebem poucas visitas por cá, e estão melhor que se chegassem muitas. — Nunca vi nada mais belo que esta ilha. — Vista daqui, parece o Paraíso, verdade? Mas já tenha rincões de inferno. Onde há mais de cem homens, já se sabe: há pobres e ricos, nobres e plebeus, amos e escravos, raças privilegiadas. Remou, bordeando ao longo da costa de rocha vivi, até encontrar o dourado leque de uma praia. Uvas as impregne e coqueiros a sombreiam, chegando quase até as mesmas águas do mar. Com a agilidade de um grumete, saltou; de um viu lento puxão arrasta pela areia o bote, praia dentro, e, antes que caia sobre um de seus flancos, levanta como uma pluma o corpo da Mônica e a leva em braços até a sombra das Palmas. — Aja já tomamos posse da terra de Saiba. Boa vista, verdade? Há um silêncio religioso que baixa do céu azul ao ar morno e perfumado. Aroma de pimenta, de prego, de noz moscada, velho aroma das ilhas da especiaria com que sonharam Colombo e os visionários navegantes do século XV. Aroma que Mônica aspira com uma ânsia impensada, bebendo dele como uma força nova que sua juventude necessita, como um sentido distinto do amor, das coisas, da vida. Como se a mulher que há nela fosse saindo de um fundo profundo de coisas falsas para gozar de um modo novo das coisas comuns: a luz, o ar, a saúde que volta e o vibrar de seu sangue de vinte anos. — Já não estamos muito longe de "The Botton", "O Fundo", em nosso idioma. Assim se chama a principal população de Saiba, melhor dizendo, a única população, pois o resto são um par de aldeias de pescadores. Botton está perto do que foi a cratera de um vulcão hoje apagado. Construíram-na os velhos marinheiros holandeses. Tem casas amplas, sólidas, limpíssimas, casa como as do Curazao e Bonaire. Não viu alguma vez essas ilhas, Mônica? — Não, Juan. — Já as verá. Valem à pena. Em outro estilo, são tão bonitas como Sei. — Que homem tão distinto lhe parece agora Juan sem o duro cenho autoritário, sem a amarga careta de sarcasmo que endurece seu rosto, agora sereno, juvenil e franco! Seus negros olhos olham de frente, ardentes e leais. Sua boca, gulosa e sensual, poderia ser branda sem o quadrado queixo voluntarioso, sem a firmeza das largas mandíbulas que enquadram no pescoço robusto. Ele não se vestiu defesta, como os outros marinheiros. Leva os fortes pés descalços indiferentes às pedras e aos espinhos. É formoso, viril e robusto, com a formosura bárbara daquela ilha de Saiba que é um vulcão em meio dos mares. Sobre essas terras semi virgens, assim como sobre a coberta do Lúcifer, não é o mesmo homem 82 Pégasus Lançamentos amargo, cruel, selvagem, atormentado, com que chocasse Mônica no vale dos D'Autremont. Não tem o olhar insolente nem o sorriso procaz com que se aproximasse das janelas da velha casa do Saint-Pierre. E Mônica o olha perguntando-se por que mudou tanto, até que ele fala como respondendo a seu pensamento: — Que estranho corre às vezes o tempo, verdade? Parece que fazia cem anos que deixamos a Martinica, e são apenas quatro semanas. Quer que cheguemos até a cidade? Já não falta muito; um só lance. Isso sim, costa acima. Mas pesos o bastante pouco para que eu possa te levar nos braços. — Não, Por Deus! Como vai incomodar-se? — Aqui não se conhecem os carros, nem sequer os cavalos. Mulos ou burros é o mais que pode encontrar-se. As mulheres dos colonizadores holandeses estavam acostumados a fazer-se levar em beliches ou nos braços de um escravo. — Não é possível! Usavam como besta a um ser humano? — Eram gente distinguidas — assinala Juan em tom zombador. — Aqui se trouxeram muitos escravos da África, e também do Europa. Recentemente mais de cem anos ainda se vendiam nestas ilhas as cadeias, de presidiários. Lhes recolhia em grandes cidades da Inglaterra, França, Holanda. Eram ladrões, piratas, ladrões, vagabundos sem ofício, ou pobres diabos sem nome nem fortuna. No mole se leiloavam, vendiam-se por um ano, por cinco, por dez, e neste clima morriam ou trocavam. Gracioso, verdade? — Não, não tem graça. É muito cruel. — Sobre que coisas tem feito o homem seu mundo, a não ser sobre crueldades? Os alicerces dos castelos e dos palácios se endurecem com lágrimas, com sangue, com o suor da agonia de milhares de infelizes que arrebentaram de fadiga. Graças a essas coisas somos civilizados. Se o mundo fora bom, não seria mundo. Santa Mônica, séria o paraíso terrestre. — Santa Mônica. — murmura esta lentamente. — Fazia tempo que não me chamava desse modo. — Sim — concorda Juan em tom jovial. — Segundo nosso novo calendário, uns cem anos. Você, em troca, não tornaste a me chamar Juan de Deus. — Nunca como agora poderia chamar-lhe e se aquela ideia que teve de me deixar na Maria Galante foi verdade. — Sim, foi verdade — declara Juan com gesto sombrio. — Mas alguém se encarregou de frustrá-la e, como disse , está condenada a pagar pelas culpas alheias. — Quer dizer que desprezou você esse bom pensamento de uma maneira absoluta, total? — angustia-se Mônica. Juan esquivou o olhar ansioso, sacudiu a cabeça como espantando o negro pensamento que repentinamente tornou a invadi-lo. Logo, com rápida determinação, eleva a Mônica em braços, fazendo-a protestar assustada: — OH, Por Deus! O que faz? — Levá-la à cidade. Não falta mais que um lance. Com a incrível agilidade de um tigre que salta monte acima entre as pedras, pôs-se a andar quase correndo. 83 Pégasus Lançamentos Nada parece pesar Mônica em seus fortes braços, mas ela se agarra com angústia de seu pescoço. Outra vez sente que não é proprietária de nada, nem de sua própria vida, e entorna as pálpebras, entregando-se. Como poderia lutar contra essa força cega? Seria tão inútil, tão insensato, como opor-se à força de um torrente, como querer sujeitar com as mãos o bufo de um ciclone. Pertence-lhe, é daquele homem, e ele a leva nos braços monte acima, igual a, se quisesse, poderia arrojá-la ao fundo de uma daquelas sarjetas que se abrem como abismos aos flancos do estreito caminho, igual a tivesse podido atirá-la ao mar ou deixá-la morrer na cabine do Lúcifer. Vive da misericórdia daquele bárbaro que jurou não ter misericórdia, não sentir mais piedade. Que protetor e quente é o fôlego que a envolve que estranha e ardente doçura destila gota a gota sobre sua alma, sem que ela se atreva a saboreá- lo! Entretanto, lá encima, ele se detém para depositá-la de pé no chão com absoluta suavidade. — Aí a tem: Botton. A cidade mais importante de Saiba. Há um pouco parecido a um hotel nesta rua. Podemos comer algo distinto e dar logo uma volta pelas lojas. Esse traje fica muito bem. Precisa comprar alguns mais. — OH, não, não, de maneira nenhuma! Está louco? Não necessito nada, não quero nada, e se você tivesse piedade, deixaria-me em liberdade de voltar. Me confie às autoridades em qualquer parte. Deixe retornar a meu convento, Juan! — Seu convento? O que pode haver nele que tanto te agrade? — Há paz, Juan, há silêncio, solidão e paz. — Também há paz no sepulcro! E por que morrer se inclusive nem viveste? É que não te dá conta de que tudo em ti é absurdo? Veem para cá, te olha. Tornou a levá-la, como se a arrastasse, até o bocal de pedra de uma fonte próxima. É um quadrado e pequeno tanque, sobre o que gota a gota se vai derramando um manancial, e nele, como em um espelho, as duas imagens se retratam: fera e robusta a do Juan; frágil, trêmula e deliciosa a de Mônica do Molnar. — Te olha, Mônica, te olha bem. Te olha cara a cara, sem toucas, sem hábitos, sem trapos negros que lhe cubram até não deixar aparecer de ti nem o corpo nem a alma. Te tire esse xale! Ele mesmo o arrancou, obrigando-a a inclinar-se sobre a água, cuja tersa superfície devolve sua imagem. Ali vê Mônica seus lábios entreabertos, seus olhos brilhantes; seus loiros cabelos levemente despenteados, sobre o fundo impoluto do céu azul. Vê seu pescoço nu, seu peito, seus braços, suas mãos frágeis e brancas como dois lírios, que se unem trêmulas para ficar depois imóveis, enquanto os olhos extasiados se olham, vendo-se distintos. — Quantos anos faz que não olhava a um espelho? — Não. Não sei. — duvida Mônica turvada. — Em realidade, olhei-me muito recentemente, no navio. Vi-me com este traje absurdo, impróprio de mim. — Com este traje de mulher do povo, de mulher simples, saudável, que vive que ama que sabe olhar ao sol e sentir seu beijo na carne. Te olha, não é formosa? Não é bela? Não é tão linda como sua irmã? Entende que não é uma ofensa 84 Pégasus Lançamentos reconhecer que é formosa, apetecível e desejável para qualquer homem cabal. Não é uma ofensa; ao contrário. — OH, cale! Me deixe Juan! — Não vou deixar-te; mas não tenha medo, porque de ti não quero nada, mas sim ache a ti mesma. Por que quer morrer? Que razão há? Pensa que não pode viver sem o Renato? Eu não acredito. Não acredito que possa amá-lo tanto. Sempre viveu sem ele, nunca foi teu jamais esteve em seus braços. — Tinha uma esperança. — confessa Mônica debatendo-se entre o pudor e a angústia. — O que pouca coisa é uma esperança! Sua paixão não existe, é falsa. Só se ama com loucura, com desespero, com ânsia, o que já tivemos o que já foi nosso, o que nos tiraram das mãos. Isso se doer, isso sim sentimos que ao arrancar-se, arrancam-nos a alma. Uma esperança! Uma esperança, um sonho! Falso, Mônica, falso. Não é mais que uma atadura que te cobre os olhos, que lhe sufoca os sentidos. Ao principio te odiei, acreditei que de verdade foi isso: uma imagem de seda, algo bom para adornar os altares, fria, sem coração, sem alma, sem sangue. Acreditava-te uma espécie da Santa. Não era brincadeira meu apelido. Santa Mônica. Agora vejo que debaixo de seus hábitos e, debaixo de suas roupas negras e de seus sentimentos falsos, há um coração que é capaz de sofrer e de amar. Ficaram imóveis ao bordo da fonte. Mônica entrecerra as pálpebras. Logo que vê a escura silhueta das duas imagens, e move com gesto doloroso a loira cabeça: — Por que me atormenta com essas coisas, Juan? Para que? — Para te curar. Antes que seu corpo adoecesse, estavajá doente sua alma. Doente de ideias velhas, de prejuízos estúpidos. Não foi a não ser uma múmia envolta em faixas, e eu quero que vivas, que olha ao sol uma vez cara a cara, e se depois de haver sentido como mulher de verdade, segue pensando que o mundo inteiro se chama Renato, acreditarei que tem razão e que mais te vale morrer ou te matar. Os grandes olhos claros da Mônica se elevam até ele em algo que parece uma súplica, uma súplica branda e dolorosa de menina doente e desgraçada: — Juan! Juan! — Por que não lhe esquece? — rebela-se Juan. — O que fez para que lhe amasse assim? — Nada. O que faz em realidade ninguém para que lhe amem? Juan fechou os punhos, evocando. O que fez Aimée para que ele a amasse com aquela paixão violenta e furiosa? O que fez para acender sua carne e sua alma, lhe levando até o bordo daquela espécie de loucura se desesperada? Recorda seu perfume, o calor de sua carne e o nó morno, brando e suave daqueles braços, aceso de seu pescoço como uma nogueira que escravizasse sua vontade. Recorda sua boca úmida e sensual, doce e amarga, e, apesar dele, estremece-se, mas aparta a imagem como de um tapa, e reagindo, convida: 85 Pégasus Lançamentos — Vamos conhecer a ilha de Saiba. Ah, olha, aí estão os moços! — E elevando a voz, chama: — Para cá. Para cá! — Chama-os? — surpreende-se Mônica — Claro. Pareceu-me entender que Segundo Duelos te resulta simpático. Talvez com ele, o passeio te pareça mais agradável. É bom moço e simpático. Salvo a roupa e certos detalhes, pode resultar tão fino tão distinto como o próprio Renato D'Autremont, flor e nata de nossa aristocracia, e é até melhor parecido que o senhor de Campo Real. — O que lhe passa? A que vem essa brincadeira? — Não é brincadeira, a não ser o afã de ir ensinando um pouco a verdade. Os homens se parecem entre si muito para que valha a pena de morrer por nenhum. Tudo o troca a ver detalhes sem importância. Ou o que, ao menos, assim o parece. Um papel, uma assinatura, um anel, umas quantas palavras legais em latim ou em outro idioma qualquer, e o mesmo pai pode engendrar um anjo como Renato D'Autremont, ou um escorpião envenenado como Juan do Diabo. Vivamente vai responder Mônica, mas não chega a escapar palavra alguma de seus lábios. Frente a ela, na mão o sombreiro de palma, está o segundo do Lúcifer, olhando-a com olhos extasiados. E é Juan o que propõe: — Lhe dê o braço a minha esposa e acompanha-a. Segundo. Mostre-lhe Botton. Logo, vão me buscar lá abaixo. Conhece o botequim do "Tulipa Azul"? Vendem a melhor genebra da Holanda. Com suco de laranja, pode prová-la, Mônica. É muito saudável. E ajuda a esquecer. — Juan. Juan! Mônica deu alguns passos inseguros, nos que seus pés escorregam sobre as largas e polidas lajes que são o pavimento das pitorescas ruas daquela população pequena e ensolarada. Mas Juan não parece escutá-la, e ela se detém com gesto de desalento lhe vendo afastar-se entre a dobro fila de brancas casas. . — Não se apure por ele, patroa, não vai passar lhe nada — intenta acalmar Segundo. — Mas ele vai a esse botequim para beber até embebedar-se. — Não, senhora, não tenha medo. O patrão jamais se emborracha nem deixa que o façam outros. No Lúcifer a aguardente não se leva se não ser de contrabando. O patrão é todo um homem, patroa. E você saberá melhor que ninguém. Mônica se há sentido avermelhar, e esquiva o olhar sincera, cândida à força de franqueza, com que Segundo Duelos lhe fala. Logo que suporta aquela fórmula terminante com a que outros a atam ao Juan como a uma besta marcada com seu ferro, como a algo de sua exclusiva propriedade. Mas não, não é essa a ideia exata. Nos lábios de Segundo Duelos há um sorriso, há um sorriso companheiro, quase cúmplice, e um tom amistoso de desculpa: A senhora sabe também perfeitamente que o patrão é melhor que o pão. — É bom Juan? Quis dizer, com outros. Com vocês. . — É duro sempre que faz falta, mas nenhum homem pode lhe jogar na cara que Juan do Diabo lhe tenha pedido fazer algo que ele mesmo não seja capaz de fazer melhor e mais depressa. A seu lado, todos nos sentimos seguros. Quando ele 86 Pégasus Lançamentos ordena algo, não perguntamos por que nem para que. Pensamos: "Saberá". E ele sempre sabe. Só quando a trouxe para você. Bom. Me perdoe, sempre tive o defeito de falar de mais. — Queria que me falasse francamente. — Pois, francamente, acredito que coloquei a pata. A senhora saberá me perdoar, como o patrão me perdoou. Mas como nunca tinha passado no Lúcifer uma coisa parecida. Claro que até agora, tampouco o patrão se casou, nem tinha deixado que subisse nenhuma mulher ao Lúcifer. O patrão estava desesperado porque você se adoeceu na viagem de noivos. Estava fora de mim, e como eu cometi a estupidez de incomodá-lo. Mas agora você está bem, e todos nos sentimos muito contentes. Sorriu com seu sorriso franco. Há algo ingênuo e cândido que aparece nesse sorriso e, repentinamente, Mônica se sente consolada, segura, tranquila, e busca o apoio de seu braço. — Quer que lhe mostre o povo, patroa? — Não estou um pouco cansada. Por que não vamos diretamente a esse lugar em que nos aguarda Juan? O botequim. Está muito longe? — Lá abaixo. E não é propriamente um botequim. É como uma hospedaria, muito bonita e muito limpa. Fica lá, entre as últimas árvores. — Vamos procurar ao Juan. — Quer que a leve em braços? Temos que caminhar um pouco mais que os outros para chegar à praia. Te lembre que foi lá onde deixamos nosso bote. — Não. Não. Sinto-me bem. Não faz falta. . — Pois então, em marcha. Devagar, apoiando a branca mão no ombro do Juan, deixando-se levar por atalho abaixo, pelo estreito caminho pedregoso, descende Mônica da cúpula de Saiba enquanto cai à tarde. Bebeu uma taça de vinho generoso e há um novo calor correndo por seu sangue, uma nova luz assomando-se a seus olhos claros. É uma estranha e profunda sensação que quase se parece com a alegria, uma sensação não sentida pela a muitos anos, acaso não sentida jamais. Sim, aquele veio quente, aromado de canela e prego, tem o poder secreto de uma bebida mágica. Já não sente o rubor de seus braços de nós, nem de sua saia de coloreis, nem de seus loiros cabelos soltos sobre as costas. É como se flutuasse e até o chão que pisa tivesse uma brandura especial. — Que linda é esta ilha! Os que vivem aqui parecem felizes. Parece como se aqui não houvessem ódios nem ambições. — Claro que os haverá. Aonde irá o homem que não leve seus maus? — Pensa você que os homens são maus? — Sim. E as mulheres não ficam atrás. Uns são maus porque sofrem, porque são desgraçados. Outros, porque são egoístas e não querem sofrer por nada nem por ninguém. Outros, porque gostam do mal, porque se gozam no dano e vão semeando a amargura por onde passam. 87 Pégasus Lançamentos — Mas você não é de esses. Juan — nega Mônica vivamente. — Não é de esses, verdade? — Eu? Quem sabe! Detiveram-se no meio do atalho. Perto, muito perto já, está a praia solitária por onde têm que embarcar. Suavemente, Mônica se separa uns passos dele, volta à cabeça para olhá-lo com o último raio de sol sobre a frente, e não pode menos que perguntar: — Sofreu você muito de menino, Juan? — Mais vale não falar disso. — Por quê? Ainda lhe faz mal? Foi muito cruel, verdade? Não quer recordá- lo? — Recordo-o muito. Recordei-o cada dia, menos hoje. Não sei por que, mas é melhor assim. — É melhor, sim, já o vejo. Sempre pensei que sua simpatia e compaixão por Colibri se apoiavam nisso. Uma triste historia parecida com a sua. Antes fez uma alusão tão estranha. Disse algo que. Não sei, não devo perguntar, mas você falou bem claro. Por muito claro, não atrevo a entendê-lo tal como o disse. Entendi que você e Renato. Mas se for você filho. — De ninguém. Sou Juan sem sobrenome, somente. Não siga perguntando, não danifiquemos este dia bom. Para que? SouJuan do Diabo, Juan sem sobrenome, Juan do Juan, como também me dizem alguns. Nem de Deus nem do Diabo. Meu somente. Ao fim e ao cabo, o que importa ninguém de onde nasce cada homem? Pergunta-lhe você acaso a cada um destas árvores de onde veio à semente que lhe fez nascer? Não, não o pergunta, nem a ninguém interessa. Não são novelo de jardim, não são rosa de estufa, crescem selvagem e livremente, e não por isso são menos fortes, menos belos. Não por isso deixa de beneficiar o que chega sob sua sombra. Verdade? — Verdade, Juan. É muito formoso isso que há dito você. Nunca o tinha pensado, mas é muito belo. — Voltamos para o Lúcifer, Santa Mônica? Sulca o bote no espelho das águas claras, podas, azuis, douradas apenas pela longínqua labareda do crepúsculo. Mas Mônica não olha ao mar nem ao céu. Olha aquele rosto masculino, agora outra vez sombrio, aqueles negros olhos profundos e ardentes. Contempla ao filho da Gina Bertolozi como se lhe olhasse pela primeira vez. CAPITULO 9 88 Pégasus Lançamentos — Sofia com quanto prazer volto a vê-la, e em que momento tão oportuno chega. Sua Excelência, o Governador Geral da Martinica, foi ao encontro da senhora D'Autremont e se inclina cerimoniosamente para beijar a mão que ela estende. É uma das amplas salas da casa de Governo do Saint-Pierre, e pelos balcões que dominam parte da cidade, e do porto, veem-se o mar e o céu. Depois de responder com sorriso forçado ao personagem, Sofia olha inquieta a porta que comunica com a sala de espera, e o cavalheiro que a observa parece adivinhar seu pensamento: — Vem alguém com você? — Catalina do Molnar. Mas quisesse antes, se for possível, falar eu a sós com você. — Como gosto. Mas repito que as casualidades se encadernam. Dispunha- me a enviar um correio especial a Campo Real encomendando a você uma carta para a senhora Molnar, de um doutor Faber, a quem acredito recordar ter conhecido na Guadalupe. Mas tome assento e me diga primeiro a causa de seu visita. Acredito que levava você vinte anos sem vir ao Saint-Pierre. — Alguns menos. Vim para ver embarcar a meu Renato para a França. — Em efeito. Foi nos dias em que chegava eu ao Saint-Pierre a me fazer carrego do posto que justamente deixasse um parente dos Molnar. O me recomendou em forma muito especial a sua prima política e até agora não tive oportunidade de fazer nada por ela. — Agora a terá, Governador. Não venho por mim, mas sim por essa mãe afligida. Mas é tão pessoal, tão delicadamente reservado o assunto que a atormenta. — É referente à sua filha Mônica? Desgraçadamente, até mim chegaram rumores que tomei por falatórios, como é natural, e não tivesse acreditado neles sem a muito interessante carta do doutor Faber. — Como? É a propósito de. — O doutor Faber escreve a sua mãe, em nome da Mônica. A moça está gravemente doente. Segundo o médico me conta, tratava-se de uma febre maligna. — OH, não, não! — se indigna Sofia. — Quem sabe o que haverá feito com ela esse selvagem, esse pirata. — O doutor Faber fala bem dele. E me perdoe Sofia, mas me asseguraram que as bodas foi em Campo Real precisamente, e que o filho de você foi padrinho dessas bodas desigual. — É certo. Meu filho o fez por sua esposa. O que outra coisa podia fazer? Mas nunca pensamos que esse homem procedesse da maneira que o tem feito. Catalina do Molnar está desesperada. Em nome de nossa antiga amizade, é preciso que eu lhe rogue que se façam as coisas de maneira que não se prejudique o nome de meu filho, que não seja gasto e levado a causa, do parentesco. O peço. Quero salvar do escândalo a meu filho, e também ao Aimée. Ela é já uma D'Autremont. Você compreende? Não quero que, por nenhum motivo, por nenhuma razão, os comentários mal-intencionados possam mesclá-la em nada disto. Catalina do 89 Pégasus Lançamentos Molnar vai pedir lhe que você faça deter o veleiro do Juan do Diabo. “Sabe Deus aonde chegará a sua pena e em seu desespero de mãe ''. sabe Deus a que extremo chegue para obter de você o que deseja. — Mas, Sofia, em realidade não a compreendo. Vem você a me pedir que ajude a Catalina do Molnar, e ao mesmo tempo me roga que desdiga suas súplicas. — Tudo parece um contra senso, compreendo-o muito bem, mas eu também sou mãe, e se nossa amizade pode me dar alguma validez, alguma força, sirva esta para deter o escândalo que mancharia a meu filho sem remédio, a menos que esse homem seja castigado por outros delitos. Não acredito que faltem motivos para isso, até omitindo os destas desventuradas bodas. — É um delito haver-se casado com a senhorita do Molnar? — comenta irônico o Governador. — Por favor, me entenda! Prometa-me. — Sim, Sofia, entendo-a, embora o que me pede você é bastante complexo. E antes de pedir que prometa nada, permita-me que faça passar a essa mãe que espera. O Governador se aproximou da porta e convidou a passar a Catalina do Molnar, lhe oferecendo galante uma dos luxuosos poltronas, ao tempo que lhe explica: — Senhora do Molnar, tenho uma missão que cumprir com você. Trata-se de uma carta que me foi recomendada fazer chegar a seu conhecimento. Hei aqui seu conteúdo: "Excelência, dirijo a você, em vez de fazê-lo diretamente à senhora Catalina do Molnar, por ser um assunto delicado e grave no que sentiria pecar de indiscreto. Junto com estas linhas vai uma carta que lhe pedido ponha nas mãos dessa dama, cumprindo a súplica de sua filha Mônica, que chegou a estas costas no veleiro nomeado O Lúcifer, doente de verdadeira gravidade.” — Meu deus. Meu deus. Catalina do Molnar baixou a frente, como afligida por aquela dor que as palavras escutadas reavivam e incendeia, e o Governador detém um instante a leitura para olhá-la com sincera pena, alta logo o olhar inteligente, buscando o rosto da senhora D'Autremont, mas Sofia se apartou deles e parece olhar pelo balcão aberto que domina a cidade do Saint-Pierre. Por isso o Governador prossegue a leitura: "Extraordinária me pareceu à presença em um navio como esse, de uma dama como a jovem senhora Molnar, cuja distinção e beleza formavam um rude contraste com a pobreza do ambiente, com o desconforto e à estreiteza da cabine de um veleiro de cabotagem como é o Lúcifer, e tentado estive de dar parte às autoridades imediatamente. Mas o estado da doente era muito delicado para me permitir outra coisa que tratar de salvar sua vida, e a isso pus com o maior empenho, embora com muito poucas esperanças. "Ao ir me buscar, haviam-me dito que se tratava da esposa do patrão do veleiro, um moço rude e descortês, a quem ofereci no ato transladá-la ao bom 90 Pégasus Lançamentos hospital que temos nesta, ele se negou rotundamente, ganhando com isso minha imediata antipatia; mas, depois, devo confessar que sua atitude modificou minhas primeiras ideias. — Como? Como? O que diz? — indaga Catalina. — Você siga escutando — aconselha o Governador: — "Mostrou-se com ela solícito, carinhoso e atento, não omitindo gasto nem esforço para lhe proporcionar comodidades, e não se separou um instante de sua cabeceira enquanto a vida de sua jovem esposa esteve realmente em perigo.” — É incrível! Seriamente diz isso? — Por você mesma pode lê-lo, dona Catalina. E diz algo mais. . "Quando ela pôde falar normalmente, em sua plena razão, quis fazê-lo a sós comigo, e ele se afastou com absoluta discrição. Aproveitei o momento para lhe oferecer minha ajuda assim que necessitasse de mim, mas ela me pediu tão somente que escrevesse à senhora Do Molnar tranquilizando-a com respeito ao estado de sua saúde e de sua sorte. "Com toda classe de reservas cumpro este encarrego na carta que lhe anexo. Tranquilizo, ou trato de tranquilizar, à senhora Do Molnar na forma que ela me pediu que o fizesse. A você quero lhe dizer que um pouco muito estranho ocorre entre esse desigual casal.Decidido a não abandonar a uma compatriota em situação tão crítica, quis abusar de minha influência pedindo a sua Excelência o Governador do Guadalupe, casualmente de passagem na Maria Galante, que usasse de toda sua autoridade para lhes fazer desembarcar e passar uns dias em terra, mas alguém deveu dar aviso ao patrão do Lúcifer.” — E se foram, verdade? — interrompe Catalina em um arranque de ansiedade. — Foram-se, ou esse médico, a quem Deus Bendiga, obteve? — Um momento, escute. "Não sei se por causa de uma conversação com ele, em que acaso fui indiscreto, ou pelo aviso que suponho, o veleiro levantou âncoras imediatamente empreendendo repentina fuga. Em vão tratamos de detê-la, comunicando-nos por cabo com as ilhas vizinhas. Só soubemos que tinham posto proa ao Noroeste, aproveitando o bom vento para desaparecer. "Acreditei um dever pôr isto em conhecimento de você e dos familiares dessa jovem, criatura deliciosa a que me uniu muito vivo simpatia do primeiro momento. Não tenho autoridade nem meios de fazer nada mais que o que tenho feito. Se algo quiserem ou podem fazer por ela, estou incondicionalmente à disposição de vocês. Doutor Emílio Faber, Diretor Geral do Hospital do Grand Bourg, na Maria Galante, Antilhas Francesas". — É preciso ir atrás deles! — salta Catalina com desespero. — É preciso deter esse navio. É preciso salvar a minha Filha. Você pode fazê-lo. Governador. Você pode dar ordens contra ele, fazer que os detenham no primeiro porto. — Não sei até que ponto, senhora Molnar. Em nada do que diz esta carta há motivo para deter ninguém. Todos sabemos que sua filha aceitou livremente a esse homem por marido. Digo, é o que tenho entendido, as bodas foi em Campo Real e 91 Pégasus Lançamentos você mesma consentiu nela. Compreendo que para uma mãe deve ser um vivo sofrimento uma união desigual, mas não existindo um delito. — Não poderia você achá-lo revolvendo os arquivos do porto? — aponta Sofia, abandonando a janela e aproximando-se do Governador. — Não acredito que faltem delitos ao Juan do Diabo! Se pode lhe fazer deter sem mencionar para nada o assunto destas bodas. — Ou mencionando-o, se for preciso. É a vida de minha filha a que está em jogo. Farei algo para salvar a Mônica! — Por que não pensa também em salvar ao Aimée? Você cale, Catalina. Que a pena não a faça desvairar. Dubitativamente olhou o Governador às duas damas; logo, oprime o botão de um timbre e vai para a porta franqueando a entrada a um regulamento, ao que recomenda: — Faça procurar cuidadosamente todos os dados referentes ao veleiro Lúcifer e ao patrão o que a manda, e volte no ato para me trazer isso — Procurará você outro delito? — indaga vivamente Sofia. — Juan do Diabo não merece considerações de nenhuma espécie! Sobram delitos e testemunhas contra ele. — Salve a minha filha como é. Governador! — suplica Catalina. — Como é não! — rechaça Sofia com decisão. — Meu filho Renato é vítima inocente de tudo isto, e não deve segui-lo sendo. Você faça o que possa. Governador, sem que uma só gota de lama salpique a meu filho, porque me porei contra todos com tal de defendê-lo. — Preparados para zarpar! Cada um a seu posto! Sobre a nua coberta já se movem, à voz do Juan, os tripulantes do Lúcifer. Um ar fresco torcedor brandamente as velas que pouco a pouco vão subindo o foque, a maior, o te trinque. Já a âncora está fora; já o Enguia, com as duas mãos no leme, aguarda as ordens do rumo novo; mas Juan se detém, vacila um momento e entra na cabine empurrando a porta. — Não quer se despedir de Saiba da coberta? Ah, caramba. Mônica está frente ao espelho. Atou a sua cabeça um desses lenços de coloridos que usam as mulheres do povo na Martinica e Guadalupe, mas ao ver o Juan o tira jogando-o. Sobre a mesa há várias saias, blusas, colares, um frasco de perfume, um espelho de mão. Vencendo o rubor, sorri Mônica ao homem que se aproxima, com uma estranha risada que está muito perto das lágrimas: — Suponho que se voltou você louco quando mandou comprar todo isto. — É de seu gosto? Fica bem? Sei que é a roupa, que não te corresponde, mas é quão única pudemos encontrar feita. — Não era preciso comprar nada. É absurdo que me obrigue a aceitar seus presentes dessa maneira. — Posto que te aceitasse por esposa, é o menos que posso fazer. Com mais razão não te havendo dado tempo para recolher sua bagagem. 92 Pégasus Lançamentos — Não devo aceitá-los, não posso, não quero. Por. Por. Não acha a palavra que consiga expressar seus sentimentos, porque logo que acerta a compreender ela mesma o que sente: é alegria e pena, emoção e vergonha, rubor e gratidão. Não pode ignorar que todo aquilo representa a maior parte das economias do rude capitão do Lúcifer, e, entretanto, ele o oferece com uma desculpa nos lábios: — Peço-te que os use. Não são dignos de uma Molnar, mas lhe sintam bem. Muito melhor que seu eterno traje negro. E agora, se quer lhe dizer adeus a Saiba, aparece imediatamente porque já quase não se vê. — Deixamos já a terra? Aonde vamos agora, Juan? — Rumo ao sul! Contra tudo, contra todos, assim parece navegar o Lúcifer pelas azuis águas do Caribe, cheias as velas, ágeis os flancos, cortante a proa, todo ele nervo, rapidez, tensão vibrante. É como uma flecha branca cujo arco temperado é à roda daquele leme que agora empunham as mãos do Juan, largas e fortes, e que pergunta a Mônica, como brincando: — Atrever-te-ia a levar o leme? — Tanto como isso. Parece-me o mais difícil. — Não o cria. Aproxime-te, ponha aqui. Aqui, em meu posto. Assim. Agora, toma o leme com as duas mãos. É muito suave quando o mar está bom. Bastar-te-á fazer girar esta roda a um lado ou a outro para que o navio troque seu rumo. Perfeitamente. Muito bem. Claro que terá que manter o rumo indicado, recordar onde estão os baixos, os bancos, algo em que possamos chocar ou encalhar. Cuidado, que nos fará dar voltas em redondo! Está te torcendo a estibordo; mantém a roda mais direita, assim, vê? Também terá que olhar as velas, pois dependemos do vento. Se ele se negar a soprar, podemos passar semanas inteiras nos olhando uns aos outros. — Por que deixamos tão logo a ilha de Saiba? — Só que fizemos o que tínhamos que fazer nela. Para que ficamos mais tempo do necessário, nos expondo? — Nos expondo, a que? Juan não responde. Suas largas mãos cálidas se puseram sobre as da Mônica no leme e vão guiando, como através delas, a fina embarcação cujo rumo se torce a estibordo, e Mónica comenta: — Torceu você o rumo à esquerda. — Sim, agora fui eu. Nós dizemos a estibordo. — Aonde chegaríamos se seguíssemos navegando para estibordo? — Chegaríamos a São Eustáquio, uma ilha holandesa não muito maior que Saiba. Não há ali nenhum porto que valha a pena, mas se continuássemos cairíamos em São Cristóbal, e ali sim teremos uma cidade de dez mil habitantes pelo menos: Basseterre. Está também o Forte do Tyson, em fantásticas ruínas; a famosa colina do enxofre, tudo ao pé do monte Meusery, uma elevação de quatro mil e pico de pés. A ilha se entende logo em uma larga franja de terra, terminando em uma 93 Pégasus Lançamentos península em cujo centro há uma lacuna, e, a menos de uma milha, a ilhota conhecida por Neve, que é como Sei: um cone em meio dos mares. — Conhece você muito bem tudo isto. — Como estas mãos me conheço as Antilhas. Tem-nas aberto frente a ela: largas, duras, robustas e, entretanto, cheias de calor e de vida. Mônica não recorda ter visto nunca umas mãos como aquelas. Falam de lutas, de trabalhos, de energia e vontade. Sobre a palma da esquerda está à linha branca e fina de uma antiga cicatriz, o bastante profunda para calcular que foi grande a ferida que deixasse esse rastro, e, curiosa, Mônica pergunta: — O leme lhe fez isto? — Não, nem o leme nem o remo. O fio de uma faca,Santa Mônica. Tomei pela folha com todas minhas forças. — É absurdo! Por quê? — Imagino que por instinto de conservação, por uma ânsia absolutamente insensata de prolongar a agonia que era então minha miserável existência. — Teria eu dez anos. — É incrível! E lhe atacaram com uma adaga? Na mão de um menino, essa ferida deve ser. — Pôde me deixar inútil, mas o sangue que brotou dela acalmou no momento o rancor daquele para quem minha vida era uma ofensa. — Feriu-lhe você um homem? — Que era marido de minha mãe. Vivi junto a ele o que foi minha primeira dúzia de anos. Tenho entendido que minha mãe convocou ao me dar a luz, ou muito pouco tempo depois. Ele, naturalmente, odiava-me. Muitas vezes quis acabar de uma vez, me matando de repente. Esta foi uma delas. Outras se contentava com lombriga agonizar de fome ou de medo. — E não havia ninguém que amparasse a você? — Não havia ninguém, e embora o tivesse havido, a quem podia lhe importar aquilo? Não tínhamos vizinhos. Era na cabana que até se eleva sobre o penhasco do Diabo, onde só entrava pouco pão e muito aguardente. Às vezes, eu fugia daquele inferno, desaparecia durante semanas inteiras, vivia entre os penhascos ou entre os matagais, me alimentando de raízes, dos moluscos que arrancava às rochas da praia. O que sei eu. — E não se aproximou de ninguém a lhe pedir amparo? — Quem a oferece a um moço guia de ruas, selvagem, perverso, trombadinha, que não conhece mais que as piores palavras e os piores sentimentos? Depois de vagar um pouco, voltava nu, extenuado, faminto. — E aquele homem. — Bertolozi o tirava de distintas maneiras. — Bertolozi. — interessa-se Mônica. — Não é a primeira vez que escuto esse nome. Ouvi comentários a respeito dele, recordo-o perfeitamente. Esse foi o homem que envenenou seu coração? 94 Pégasus Lançamentos — Sim — confirma Juan indiferente. — Um deles, acaso o pior de todos, porque é o que se mescla a minhas primeiras lembranças. Ensinou-me a odiar a compaixão; só sendo como ele, cruel e perverso, obtinha que sua fúria se aplacasse um tanto. Foi meu professor em todas as artes de má lei: ensinou-me a beber, a jogar com vantagem, a arrebatar as coisas pela força aos mais débeis, a mentir, a roubar, a viver sobre aviso como uma fera encurralada, e me ensinou algo mais: a amaldiçoar o nome da mulher que me tinha levado em seu seio. Como a maldizia ele. — OH, não. É monstruoso! Não é possível que um ser humano chegue a esse extremo. Como pôde enfurecer-se assim? — Eu era a lembrança viva, insultante, da traição que tinha destroçado sua existência. Todo o ódio feroz que lhe inspiravam os que me deram a vida caía sobre mim há todas as horas, em todos os momentos. E se for ser justo, não é a ele a quem mais devo aborrecer, a não ser ao que me deixou em suas mãos, ao que mau e tarde quis me recolher, só pelo horror de que seu sangue acabasse no cadafalso: o pai do Renato D'Autremont, que foi o meu também. — Assim foi à história. — exclama consternada Mônica. — Sim. Já sabe inteira, ou, quando menos, em sua maior parte. E agora que sua curiosidade está satisfeita, joga-a a um lado como eu a jogo. Soltou bruscamente sua mão esquerda das da Mônica que a aprisionavam, e afirma as duas sobre a roda do leme, variando com rapidez o rumo da nave. O tombo violento faz vacilar a Mônica em seus pés, e ele a sujeita obrigando a voltar- se. — Olha lá. É São Eustáquio. Passaremos de comprimento frente a ele, e amanhã jogaremos a âncora no Basseterre. Já verá, é uma formosa terra. Prometo-te um bom passeio nela. — Juan, queria lhe dizer uma só coisa: Que começo a entendê-lo. Acredito que deveria dizer melhor: que lhe compreendo plenamente… Sobre o céu de um azul escuro profundo, coberto de estrelas, veem já os olhos da Mônica a silhueta gigante do Monte Misery. O ar é morno e suave, o mar sereno, como se fosse uma lacuna suas inquietas águas, uma lacuna sobre a que borda encaixes de prata a lua nova. Mônica deixou cair sobre os ombros o xale de seda que um instante cobrisse sua cabeça, e se estremece ao sentir fixa nela o olhar do Juan, que lhe diz: — Que branca te vê sob a lua! Branca e brilhante, como se você também fosse uma estrela. E algo disso tem. É como uma estrela refletida em um atoleiro. Parece que está perto, mas só se vê o reflexo. Em realidade, está muito longínqua, a milhões de milhas. — Que ocorre! — ruboriza-se Mônica sentindo-se puxada. — por que diz você isso? Não acredito que seja uma afirmação justa. Quando esta tarde lhe assegurei que lhe compreendia. — Quis dizer que me compadecia. Entendi-o muito bem. 95 Pégasus Lançamentos — Não. Disse compreender, porque compreendi de repente muitas coisas. Compadecer é distinto. Compadece-se, às vezes, até o que não entendemos bem; compadece-se a todos os que sofrem pena. E quem não sofre nesse mundo? Todos sofrem, todos sofremos. Geralmente, cada um se vê e sente em seus próprios sofrimentos, mas é formoso esse momento em que o coração nos rompe, nos transborda para outro coração que sofreu mais, que por torturado tem direito a mais ternura, a mais amor do nosso. Tomou a mão esquerda do Juan com rápido movimento, tornou para cima a palma dura e larga, e como empurrada por um impulso irresistível beijou, com beijo tremulo, a larga cicatriz que o cruzamento. — Mônica. — comove-se Juan profundamente — o que faz? — Para sua dor de menino, Juan, para essa pena que ninguém pode compadecer, e que a você ainda lhe fere. Olhou aos olhos, com um anseia nova, repentina, de aparecer a seu coração, e ele empalidece, fugindo aquele olhar. Sob sua branca pele como de raso, corre com novo ardor o vermelho sangue tropical. Por um instante, tudo se apagou: o passado, os sonhos, a lembrança lhe queimem de outros olhos e de outros lábios. Em meio de seu navio, Juan do Diabo se eleva como se todo o enchesse, como se o mundo inteirou fosse seus cabelos encrespados, seus braços robustos, seus lábios sensual, seus grandes olhos italianos. Treme Mônica quando aquela mão larga aprisiona as suas, em uma pressão de carícia, quando o braço rodeia seu frágil cintura, levando-a devagar até a porta só entreaberta da única cabine do Lúcifer. Sente-se como penetrada de uma força desconhecida, e, ao mesmo tempo, débil, entregue. Não seria capaz de resistir, de protestar. É como a espuma daquelas ondas que o mar leva e traz, como algo que pertence ao Juan do Diabo. — Boa noite, Mônica, que descanse. Dorme bem, pois amanhã teremos um dia muito agitado. Há muito que ver em São Cristóbal. Você gostará. Afastou-se sem ruído, com o passo silencioso e firme de seus pés descalços, e ela fica imóvel e estremecida, com o nome do Juan atado na garganta e o calor daquelas mãos largas lhe ardendo na pele de raso. Por que a deixa neste instante? Por que não se aproxima dela, como sem dúvida se aproximasse a primeira noite? Sem ele, é como se de repente o mundo se esvaziou; sem ele, sente-se sozinha, e tem frio. E não pode chamá-lo. Uma quebra de onda de rubor lhe acende as bochechas e se transborda por seus olhos em estranhas lágrimas. Pensa em tantas mulheres que sem dúvida estiveram em seus braços. Nas perdidas do porto, nas prostitutas de botequim que certamente o disputaram. Pensa em Aimée, e uma quebra de onda candente, de indefiníveis sentimentos, embarga-a: ira, rancor, vergonha, acaso ciúmes. Bruscamente entra na cabina, fechando atrás de si as portas, com raiva. — Ana, Ana! Acaba de despertar, estúpida! — Ah, caramba! Há todas as horas me tem que insultar. 96 Pégasus Lançamentos — Há todas as horas tem que me desesperar; há todas as horas tens que estar dormindo. Sai a dar uma volta pela casa. Anda a ver onde estão outros e o que fazem. — Agora? Ai, minha ama, se forem as três da madrugada, sem vê-lo o que posso contar. Nem a ama Sofia nem a senhora Catalina tornaram da capital. Quantoao notário e ao senhor Renato. — Seguiu bebendo Renato? — Como que já não, minha ama. Anda como uma sombra dando voltas, às vezes se atira no sofá do escritório e fica como dormindo. Logo se levanta, e outra vez a beber, outra vez a passear. Mas desde ontem pela tarde não pediu nada. — Onde diz que está? — No portal do frente da casa, olha que lhe olha para o caminho e para o desfiladeiro. Para mim que está desesperado porque volte à senhora Sofia e a senhora Catalina. Mas é o que eu digo, por que não o agarra um cavalo e vai as buscar? — Está segura que já não está bêbado? — Digo eu. Se desde ontem não bebeu nada, seguro que lhe aconteceu já. — Me dê um xale. — Um xale? Vai sair daqui? A senhora Sofia lhe disse bem claro que não se movesse destes quartos. Vai se colocar você mesma na boca do lobo. Lembre-se dê como voltou a outra tarde, depois que a mandou chamar e você foi para lá. — Me traga o xale e te tire do meio idiota. Sim, ali está Renato de pé junto ao corrimão, cruzados os braços, os olhos acesos de álcool e de febre. Mudou o bastante para parecer outro homem: revoltos os cabelos, enchente a barba, aberta a camisa que mostra o peito branco, o olhar sombrio, amargo a dobra dos lábios. Dir- se-ia envelhecido em dez anos, e agora, com esse gesto e esse traçado que lhe fazem trágica sombra de si mesmo, estranhamente parecido ao Francisco D'Autremont, indubitável irmão do Juan do Diabo. — Renato, meu Renato. Quer me ouvir? Quer que falemos? — roga Aimée em tom suplicante. — Falar? Falar? — duvida Renato com grande amargura. — Agora quer falar? — Sim, Renato, agora quero falar, porque agora me parece que não está bêbado. Perdoe-me, mas é a palavra exata. Leva muitos dias bebendo como um louco e te comportando como um selvagem. Agora me parece que está em seu julgamento, e tenho a esperança de que possamos falar como dois seres Civilizados. — Pois não a tenha! Os D'Autremont não somos civilizados! Nem foi meu pai, nem o é meu irmão, nem eu tampouco o era em realidade, embora chegasse a aparentá-lo. Temos no sangue o fogo desta terra bárbara, os sentimentos cru, as paixões selvagens. Somos primitivos no rancor, no amor e no ódio! Não quero que ignore isto. Quero te dar a última oportunidade de te salvar. — Foge se for culpada, Aimée, foge antes que eu tenha a absoluta segurança de que é culpada, te salve 97 Pégasus Lançamentos agora, aproveita este momento em que um resto do homem que fui sobe aos lábios. Depois será muito tarde! Aimée tremeu um calafrio lhe percorre as costas, mas há também uma explosão de raiva, de amor próprio, de ânsia infinita de jogar e ganhar, e, apoiando- se nela, crava os dedos trêmulos no braço do Renato: — Não tenho por que fugir, nem do que me salvar! Ouça-me se quer saber a verdade. Toda a verdade! Não tenho nada que me reprovar! Ser sua esposa era meu único e verdadeiro sonho. — Olha bem as palavras que está pronunciando! Como juramento sagrado vou tomar-te cada uma delas, e se voltares a mentir seria de verdade sua última mentira, porque seriam suas últimas palavras. Fala! — Tenho que tomar as coisas desde muito longe. Esse homem me cortejava. — Juan do Diabo? Onde? Quando? Como? Foi já minha noiva! Foi já minha noiva quando chegou da França. E se foi já minha noiva, e me pertencia espiritualmente, como foi possível que. Fala de uma vez! — Antes, Renato. Antes. — Antes, do que? Antes de voltar para as Antilhas não podia conhecer o Juan! — Para que possa me compreender, tenho que começar desde antes. Eu era ainda uma menina; Mônica e você adolescentes já. — Só dois anos Mônica é mais velha que você. Dois escassos anos. — Sim, já sei. Mas por sua forma de ser, por seu caráter, você estava sempre com ela, apenas me fazia conta, e eu começava já te querer. Você não compreende o que sofre o coração de uma menina que começa a ser mulher. Eu queria a ti, e você parecia querer a Mônica. Eu sofria muito de ciúmes e de raiva, e Mônica estava segura de que você casaria com ela. Para ti se penteava, para ti se arrumava, para ti punha flores na mesa, por ti passava as noites e os dias estudando, para poder falar contigo de tudo o que você queria falar, enquanto que eu era uma pobre ignorante. — O que está dizendo? — sobressalta-se Renato, surpreso e interessado a pesar dele. — Mônica estava loucamente apaixonada por ti, Renato, não pensava mais que em ti, não falava mais que de ti. Tinha a absoluta segurança de que um dia teria que te casar com ela. As mãos do Renato se afrouxaram, seu rosto reflete — agora perplexidade, desconcerto, surpresa profunda, e algo assim como a dor de ter causado involuntariamente um mal. E reagindo, inquire: — Mônica, Mônica me amava? Uma vez me disse algo parecido. Não reparei nisso, não quis me fixar, foram desculpas tuas, mentiras, enganos. — Não, Renato, Mônica te amava, estava louca por ti, e por ti, ao ver que ao fim me preferia , tomou os hábitos, quis professar, foi ao Convento da Marselha. Não recorda sua estranha atitude, sua mudança radical, suas meias palavras? Parecia te odiar. Você chegou a pensar que te aborrecia, e era porque te amava. Estava loucamente apaixonada por ti, e eu tinha ciúmes, ciúmes selvagens que me acendiam o sangue. 98 Pégasus Lançamentos — OH, não. . Impossível. — Juro-te que é verdade! Juro-lhe isso pelo mais santo, pelo mais sagrado. Pela própria vida de minha mãe! Mônica te adorava, e me considerava muita amalucada, muito infantil, muito ignorante, muito pouca coisa para te fazer feliz. Ela sempre foi mais inteligente que eu, sempre teve mais força de caráter. Aproveitando-se de todo isso, me obrigou a lhe jurar. — O que? — apressa Renato ao ver que Aimée se detém duvidando. — Que minha vida a seu lado seria só de abnegação e sacrifício, que te adoraria como a um deus, que te obedeceria como uma escrava. Exigia-me que, para te agradar, renunciasse a tudo: a meus menores caprichos, às mais irrefreáveis manifestações de meu caráter. Reprovava-me como um crime a menor paquera, a menor vaidade. Era um guardião de todos meus atos, fiscalizava até meus sorrisos e meus suspiros, criava a meu redor uma atmosfera densa de repressão, de vigilância, que me asfixiava, e eu era um menina, uma menina, Renato. Às vezes, por fazê-la irritar-se, só por fazê-la irritar-se, paquerava. — Como? — Paquerava, mas só querendo a ti, pensando só em ti. Era uma forma de me vingar de sua tirania insuportável. Ela queria que eu falhasse, queria me agarrar em falta, ameaçava a todas as horas fazendo que me aborrecesse, dizia, que lhe bastaria uma palavra para obtê-lo. Acendia-me o amor próprio, afligia-me com suas contínuos repreensões, até que um dia, farta de todo isso. — Farta de todo isso, o que? Faltou, enganou-me, verdade? — Não. Não! Não fiz nada que tivesse importância. Foram criancices, bobagens. E por culpa dela. Por um momento soluçou Aimée, o rosto entre as mãos, inclinada sobre o corrimão de pedra, enquanto Renato a contempla sem que vão a seus lábios palavras, sem que poça sequer ordenar os pensamentos que em louco torvelinho sacodem sua alma. Logo, Aimée se levanta muito devagar, e seca suas lágrimas. — O que fez por culpa dela? Fala! — Eu. Pois. Não fiz nada grave, Renato. Juan do Diabo começou a rondar nossa casa. Por isso te disse antes que me cortejava. — A ti, ou a ela? —Em realidade, a mim, Renato. Começou a me cortejar a mim. Ela tinha vindo do convento, vestia de hábito. Ele, como compreenderá, dirigiu-se para mim. Não sabia nada, absolutamente nada de nosso noivado. Um dia se fixou na Mônica, e eu lhe disse que ainda não tinha professado que podia deixar os hábitos, que era formosa e que necessitava um amor. Foi uma ligeireza, uma criancice. Nunca pensei que ele ia tomar a sério, nem que ela ia zangar-se se tanto. Mas ele mudou de rumo, e eu, por travessura, sem mediro alcance do que fazia, animava-o, dava-lhe a entender que Mônica ia corresponder lhe, que só se estava fazendo a esquiva para interessá-lo mais, e ele. — E ele, o que? Segue. Segue. 99 Pégasus Lançamentos — Eu tive a culpa de que ele se enganasse. Esse é meu pecado, Renato, o pecado que não queria te confessar. Eu, em nome dela, escrevi-lhe uma carta lhe dizendo que viesse a procurá-la em Campo Real. Joguei com os sentimentos de ambos, e quando ele veio e ela o rechaçou, ficou furioso, jurou vingar-se, e então foi inútil que eu queria afastar o daqui. — Quer dizer que Mônica não lhe tinha correspondido? Que, em realidade, não lhe quis jamais? Que alguma vez se entregou a ele nem foi seu amante? — Isso, Renato. Enredaram-se as coisas. Eu disse a Mônica que você iria matar-me, e ela aceitou o sacrifício. Por isso era minha angústia, meu desespero quando a obrigou a casar-se, quando ele a levou tão longe. Por ligeireza fui má, cruel e péssima irmã. Essa é a verdade. Esse é meu único pecado. Perdoe-me isso Renato! Perdoe-me isso você, já que ela não poderá me perdoar jamais! Quase sem forças já, perdida ela mesma no matagal de suas falsidades, enlouquecida de angústia, mas decidida a não fraquejar, chora Aimée atrás daquelas palavras em que uma vez mais há. Mentido. Mentiu jogando o tudo pelo tudo, escudando-se definitivamente em um novo engano, encurralada pelas circunstâncias nas que mentir é seu único caminho, acumulando, uma sobre outra, calúnias, falsidades, com a violenta audácia de quem vai a uma brutal luta de vida ou morte. E ao mesmo tempo chorando com lágrimas de espanto, assustada do novo abismo em que acaba de lançar-se, espiando com ânsia infinita a expressão daquele rosto mudado, também como o seu pálido de espanto. — Não pode ser! É impossível! Se for verdade o que diz, condenaste a sua irmã inocente! A entregaste indefesa a um homem brutal! — É horrível, verdade? Você te empenhou. — Mas, por que não me disse a verdade? — exaspera-se Renato. — Por que não falou então, como falas agora? Por que calou ela, suportando uma coisa semelhante? — Por me salvar. Jurou que me mataria. E também por salvar a ti. Não esqueça que te amava. Você a obrigou ameaçando matar ao Juan. E o teria feito! — Talvez. Mas não tivesse cometido uma horrenda injustiça. Se você me houvesse dito a verdade. — Houve um momento em que lhe fui dizer isso a lhe confessar isso me jogando o tudo pelo tudo, mas me disse que esse homem era seu irmão. Como podia eu pô-los frente a frente? Te converter em seu assassino ou em sua vítima? Não, Renato, não, porque você é meu amor e minha vida, e porque vou te dar um filho! Renato retrocedeu sentindo que enlouquece, mas Aimée respira, afirma-se, afiança-se. Sabe que ele acreditou. Está livre da única mancha que sabe irremediável. Jogou redobrando a audácia, corre a seus braços: — Meu Renato, é o único homem a quem amei! Por ti sou e fui capaz de tudo. Sacrifiquei a meu irmã, afundei no desespero a minha mãe, menti, caluniei, fui egoísta, cruel, desumana: mas foi só por conservar seu amor, por defender sua 100 Pégasus Lançamentos vida, porque não te manchasse de sangue quis te salvar embora se acabasse o mundo! — Me salvar. Me salvar. — despreza Renato com infinita amargura. — Você não o permitiu. Seguiste duvidando, acreditaste no meu pior, converteste nossa vida em um inferno. Renegas e amaldiçoa até o filho teu que levo nas vísceras, e por dura que seja a verdade tive que lhe dizer isso por nas mãos... Mereço-o tudo, já sei: o ódio de minha irmã, a maldição de minha mãe, o desprezo das gente honradas. Mereço tudo, menos que você me rechace, porque todo o fiz por ti, por defender seu amor. Tem cansado de joelhos, juntas as mãos nas que afunda a frente, e fica imóvel, aguardando, pendente das palavras que ao brotar dos lábios de Renato assinalarão seu caminho para sempre. Mas Renato não vai para ela, não a levanta do chão, não a estreita em seus braços, mas sim olha a todas as partes com os olhos de demente, e ao fim grita a uma sombra que passa: — Esteban. Logo, me sele um cavalo! — Renato, aonde vai? — sobressalta-se Aimée. — Onde tenho que ir a não ser a procurar a nossas mães? Sei que estão no Saint-Pierre, que foram a ver o Governador para lhe rogar que detenha esse navio. . Estou seguro que estão lutando com todas suas forças para salvar a Mônica, que o fazem a minhas costas porque, como eu até faz um momento, acreditam culpado, acaso porque acreditam que têm que pôr em uma balança sua vida contra a tua, acaso porque têm escrúpulo, porque temem ao escândalo, possivelmente porque temem a minha violência. Mas tudo vai trocar. Agora sou eu, eu, quem vai fazer deter esse navio. Eu, quem resgatarei a Mônica, aconteça o que acontecer. Capitulo 10 101 Pégasus Lançamentos — Esta é a colina do enxofre. Brimstone Hill, que dizem os britânicos. Neste velho Forte se livraram grandes batalhas. Um pouco além do Basseterre há outro Forte com ruínas tão importantes como estas: Forte Tyson... Juan estendeu o braço assinalando ao longe, sobre a ferrugenta muralha em que rematam os altos terraços do velho Forte da colina do enxofre. “Estão sobre a terra de São Cristóbal, outra dê aquelas ilhas vulcânicas de alta montanha, tem bosque férteis, escarpados imponente e praias isoladas; um novo rincão daquele múltiplo paraíso de terra e mar que os olhos da Mônica foram pouco a pouco contemplando, primeiro com assombro, com trêmula admiração mais tarde, agora quase como um êxtase. Apoiada no braço do Juan, levada por ele, ouvindo sua voz cálida, sente que as horas passam tão meigamente como a brisa que agora despenteia seu dourados cabelos, tão brandamente como o mar que estende lá abaixo, sobre a praia loira, seu lenço de espumas. — Quando tiver apetite, baixaremos a almoçar. Junto a aquelas palmeiras nos está esperando um bom assado. E a tripulação, vestida de ornamento, pediu-me como um favor especial a grande honra de nos acompanhar à mesa. Eles lhe adoram, olham-lhe como à estrela da manhã. Querem te obsequiar. Alguns foram até o Charles Tow em busca de vinhos, doces e outras guloseimas. Ficarão muito felizes aceitando seus obséquios. — Eles me fazem muito feliz me demonstrando um afeto que não fiz nada por ganhar. — Talvez não fizesse mais do que pensa. Nossa vida mudou para fazer-se imensamente melhor. — Também a de você, Juan? — A minha a primeira, certamente. Mas não fale se for para recordá-lo. Hoje não quero voltar atrás à cabeça, não quero pensar no passado, nem no mais próximo nem no mais longínquo. Vinte e quatro horas em São Cristóbal é o único ato de nosso programa. Agrada-te? Sorriu olhando-a ao fundo das pupilas claras, e ela não acha resposta, porque a voz não soa em sua garganta. É muito profundo o que sente, é muito cálida a emoção que a embarga, acreditai viver um sonho ou sonhar outra vida. Como se não pudesse retê-la mais tempo, a pergunta do Juan sobe tímida e ofegante a seus lábios: — Não se sente mal, Mônica, verdade? — Não sei como se chama o que sinto, Juan, Acaso. Acaso estou perto da felicidade. Juan se ergueu jogando para trás a cabeça. Logo que pode acreditar o que escutou. É realmente essa estranha palavra, que logo que tem sentido em suas vidas turbulentas e atormentadas? Felicidade. Mônica há dito felicidade. Como se acreditasse sonhar olha para todas as partes. Mas se. É ela a que fala, e ele quem está frente a ela, baixo aquele céu, ante aquele mar, que agora parecem diferentes, como se uma luz distinta e radiante os banhasse. Ela tornou a ruborizar-se, a sentir 102 Pégasus Lançamentos que suas bochechas se acendem como uma flor, e que não há palavras em seus lábios. Timidamente estende a mão que ele toma entre as suas, e, sem uma palavra, baixam juntos pela estreita escada enquanto seus corações pulsam com ritmo igual. — Obrigadopor me haver recebido no ato. Governador. — Passe, meu jovem amigo, passe e me faça o favor de sentar-se. — Gentil e plano, o Governador da Martinica estendeu a mão assinalando uma cadeira próxima a seu amplo escritório. São mais das dez da noite e o ar do mar entra pelas abertas janelas movendo as cortinas de encaixe. — Suponho que lhe traz o mesmo desventurado assunto que fez a dona Sofia me honrar com sua presença. — Efetivamente, Governador. Não tenho a absoluta segurança, mas tudo parece indicar que se trata do mesmo assunto. Sei que minha mãe tinha um empenho especial. — Respeito a isso, não sei o que lhe dizer, meu jovem amigo. Dona Sofia desejava, e não desejava ao mesmo tempo, que fosse detido o Lúcifer. Acredito que lutava entre dois sentimentos encontrados. Desejava que ajudássemos a sua protegida, a senhora do Molnar. Essa sim desesperadamente empenhada no resgate de sua filha. Mas, por outra parte, acredito que sua mamãe, zelosamente, teme muito ao escândalo, Renato. — Pois eu não temo ao escândalo nem a ninguém! — É uma atitude que não sei se lhe elogiar. Vivemos uns dos outros, o bom julgamento de outros pode ser definitivo, e um nome como o de vocês. Calou, observando o rosto do Renato, duro, tenso, contraído, em luta feroz consegue mesmo. Que extraordinariamente trocado lhe acha desde aquela manhã de seus bodas! Parece envelhecido em dez anos. Sua expressão é, de uma vez, dolorosa e feral, e há algo em suas palavras, áspero, impaciente, quase cortante: — Eu devo pedir algo que é de justiça, Governador. — Devo começar por lhe dizer algo que já disse à senhora do Molnar. Há justiça legal e justiça moral. Não sempre pode fazê-la segunda em nome da primeira. Legalmente, eu não tenho nenhum motivo para deter o Juan do Diabo. Por isso, com toda a dor de minha alma, recusei à petição da senhora do Molnar. Não devo, não posso deter esse Juan por haver-se casado legalmente e levar-se a sua esposa em um navio de sua propriedade. — Mas sim pode você fazer voltar para o Saint-Pierre a um navio que ilegalmente deixou o porto. Sim pode deter um homem cuja pessoa e propriedades estão embargadas por uma dívida denunciada e comprovada. Há uma montanha de papéis legais nos que lhe acusa por rixa tumultuaria, desacato à autoridade e feridas a um homem que incluso no está completamente curado. — Esse homem recebeu uma indenização. Em metálico. Alguém pagou pelo Juan do Diabo, saindo depois fiador para que ficasse em liberdade. Fiz trazer os arquivos do porto e esse alguém. 103 Pégasus Lançamentos — Esse alguém sou eu. Governador, diga-o claro, não dê mais voltas. Vim para pôr as coisas em seu lugar. Eu fui seu fiador, devo retirar a fiança, e exijo que o processo detido siga em marcha. — Para lhe condenar em ausência, em rebeldia? É extraordinário, e me atrevo a dizer mais: é desumano. Teria você que apresentar uma denúncia assinada, que fazer-se totalmente responsável. — Assinarei essa denúncia aceitando toda a responsabilidade. Pode você pedir informe caligráficos às ilhas. Corre de minha conta toda a investigação que seja necessária. — Se estiver você decidido a fazer as coisas dessa maneira, direi-lhe que, por acaso, informe dessa classe não me faltam. O Lúcifer ancorou na ilha de Saiba. Ancorou também no Basseterre. São Cristóbal. Passou pela Antiga e seguiu via ao sul, ontem pela tarde. Por razões óbvias, não é fácil que se detenham no Guadalupe nem na Maria Galante, mas podemos pôr sobre aviso às autoridades da Dominica, Granada, São Vicente e Tobago. Não acredito que possam ir mais à frente sem repor as provisões. E se você insistir. — Faça-o, Governador, faça-o! Proa ao sul, cheias as velas, inclinado a estibordo, cortando meigamente as águas azuis do Caribe, segue o Lúcifer sua rota ensolarada. Juan do Diabo vai agora ao leme, enquanto cai à tarde. As montanhas do Guadalupe ficaram atrás, assim como também o largo canal da Maria Galante. Outra ilha recortada no céu a linha altiva de suas montanhas. Outra ilha sobre a que sonda a bandeira britânica. — Mônica, olha lá. O que vê? — Terra! Outra ilha. — A mais bela de todas. Quer guiar até lá você mesma ao Lúcifer? Veem para cá. Toma o leme. Não perca de vista as velas. Mantém o rumo. Meia volta a bombordo. Bem. Já vamos endireitando. Amanhã ancoraremos na Baía do Príncipe Roberto, e você mesma mandará jogar a âncora. Mônica entreabriu as pálpebras e tremem as mãos brancas sobre a roda do leme, enquanto Juan sorri de um modo estranho, quando indaga: O que te passa? Pensa que deixei atrás ao Guadalupe e Maria Galante para não voltar a ver a, tu doutor Faber? — Não penso nada. — Pois o pensa se te dá à vontade. Não quis voltar a vê-lo. É-me profundamente antipático. É natural que você não comparte meus sentimentos. — Acredito que me salvou a vida. Por ingrata que seja não posso esquecê-lo. — É proprietária de sentir por ele toda a gratidão que queira; mas eu, em seu lugar, não sentiria tanta. Ao fim e ao cabo, fez-te mais mal que bem. — Nisso não acredito que é você justo Juan. — Talvez não seja justo em nada, mas me guio pelo instinto. E esse doutor Faber esse doutor Faber. Por culpa dele tomei uma resolução definitiva. Não 104 Pégasus Lançamentos jogaremos a âncora em nenhum porto francês! — Bruscamente expressou Juan seu pensamento, e, afastando-se um pouco, chama elevando a voz Segundo. Segundo. Faça-te cargo do navio. Afastou-se com ar tão sombrio, que Mônica lhe segue com olhos angustiados, soltando com viveza o leme que ainda sustenta, quando a juvenil figura de Segundo Duelos chega até ela com passo apressado: — Sentiu-se mau, patroa? O que lhe passa? Você está triste, e estava tão contente em dias passados. — Sim, Segundo, mas há ares que só de aproximar-se deles, fazem mal. Segundo olhou a todas as partes, seguiu depois a figura alta e robusta que se afasta ao longo da coberta, para deter-se na mesma proa, contra um mastro, cruzados os braços, e comenta como ao azar: — O patrão tem medo de tocar terra francesa, e é natural. Se eu estivesse em seu lugar, também teria medo de perdê-la. Perdoe-me. Quero dizer que teria medo de perdê-la, mas que não a reteria contra sua vontade. OH, me desculpe! Mordeu-se os lábios, esquivou o olhar de angustia com que Mônica pretende aparecer a seu pensamento, mas ela se aproxima mais, acesas já suas ânsias de saber: — Segundo, foi você quem lhe deu o aviso — que nos fez fugir da Maria Galante? — Sim, patroa, fui eu. Sinto-o se fiz mal, mas como segundo do Lúcifer. — Cumpriu com seu dever, já sei. Mas tanto você como ele se equivocaram. O doutor Faber não ia fazer nada mau contra o Lúcifer. Eu só lhe pedi que escrevesse uma carta a minha mãe para lhe dar tranquilidade sobre o estado de minha saúde. Compreende? — Só isso? E o patrão sabe? — É difícil para eu falar com o Juan de certas coisas. Não quero desgostá- lo. — Ele mudou! É outro homem desde que está você no navio, patroa. Mas sem desgostá-lo, se você ainda quer lhe mandar uma carta a sua senhora mãe, conte com Segundo Duelos para pô-la no correio. — Seria capaz? — Pois, claro. E não é por me elogiar, pois qualquer dos moços fariam o mesmo. Damos a vida pelo Juan, mas tratando-se de você. — interrompeu-se para ficar olhand o-a, como breve luta com sua consciência. Ao fim, inclina-se para lhe falar muito baixo: — O amo é desconfiado. O traíram todos desde que era menino, e vê traições até onde não as há. Eu sei que você é muito boa, patrã, que não vai fazer lhe nenhum dano. E se esta noite escreve uma carta para sua senhora mãe, amanhã a ponho eu no correio do Portsmouth. Quer escrevê-la? Quer-me dar isso — Não sei ainda — duvida Mônica; mas ao fim parece reagir bruscamente: — Está bem. Segundo, confiarei em sua promessa. Escreverei essa carta a minha mãe. 105 Pégasus Lançamentos E deixandoa Segundo com as mãos sobre o leme, dirige-se para a cabine do navio, onde, apenas transposto à soleira, divisa a Colibri e lhe interpela carinhosamente: — Como estava aqui? O que nasce? — Esperá-la, minha ama. O menino negro, a flor de lábios o sorriso branco, responde à pergunta da Mônica inclinando levemente a frisada cabeça. Leva muito momento aguardando no centro daquela cabine, como se aguardasse, qual um milagre, a doce aparição daquela a quem a devoção de todos envolve como em uma atmosfera brilhante e cálida sem que ela nem sequer tenha chegado a adverti-lo. — Vai ficar aqui dentro, patroa? — Sim, Colibri, vou ficar-me, mas preciso ficar sozinha, entende? Devo estar sozinha, preciso fazer algo íntimo, pessoal. — olhou a todas as partes como procurando. Não pensou antes na dificuldade material. Não dispõe de nada do necessário para escrever. Entretanto, recorda ter visto escrever alguma vez ao Juan, e rapidamente toma em suas mãos o livro de registros — Conhece este livro. Colibri? — Como não, minha ama! É o livro no que o patrão escreve tudo o que acontece o navio. — Escreve. Com o que escreve? Sabe você? — Com pluma e tinta que estão nesse armário. Aí é onde guarda o amo todas as coisas que não quer que se percam. — Aqui há pluma, um tinteiro, papel. Bandeiras! Há bandeiras de vários países, assim como pequenas bandeiras de sinais, e entre ela um pequeno pacote de pano negro que as mãos da Mônica desdobram com impaciência. É o traje inutilmente procurado. Tem o sutiã esmigalhado, arrancados os broches. É o triste tecido que delata uma luta feroz, a que sem dúvida sustentou aquela noite defendendo seu pudor contra Juan do Diabo. Comprido momento reteve o rasgado vestido entre suas mãos. Logo, como se tomasse uma resolução repentina, joga-o no fundo do armário, toma o necessário para escrever e fecha bruscamente a porta do rústico móvel, como se queria elevar uma bar rir a, afastar-se desesperadamente da dor do passado. — Mas uma lágrima rebelde roda por sua pálida bochecha, e, apenado e ingênuo, indaga Colibri: — Que lhe passa patroa, está chorando? — Sim, Colibri, não pude evitá-lo. Chorei minhas últimas lágrimas pela Mônica do Molnar! Entreabertos os lábios de assombro. Noel se deteve na soleira daquela porta que franqueia uma de tantas habitações do hotel. Ambiente frio, móveis escassos, uma mesa central coberta com uma velho toalha de mesa, e sobre ela, em uma bandeja, uma garrafa, uma jarra de suco de abacaxi, vários copos. — Passe, Noel. Adiante — convida Renato ao velho notário. — Ao fim se recebeu uma notícia concreta: o Lúcifer está no Dominica, frente à Portsmouth, e 106 Pégasus Lançamentos aceitou carga para São José e Roseau. Mas, suponho que vem você para me buscar por embargo de minha mãe, não? — Foi grande sua angústia ao não lhe encontrar em Campo Real, ao saber que tinha saído daquela maneira, sem dar apenas tempo a que lhe selassem um cavalo. Por que fez isso? Pensa que sua pobre mãe não sofreu bastante já? — Penso que todos sofremos o suficiente para lamentar. Mas, o que vamos fazer? Parece ser que isto é a vida. Senta-se e bebe, ou ao menos aceite um charuto. Eu, como você vê, estou aguardando. Olhou uma vez mais o relógio de bolso, colocado sobre o toalha de mesa escuro. Logo se afasta até chegar à janela que abre sobre a rua. Há vários navios mercantes ancorados na enseada do Saint-Pierre, e os passageiros, em escala obrigada de sua viagem da Europa, invadem a rica e populosa capital do Martinica, saboreando nela os mil detalhes do mundo tropical. A brisa que vem desde mar não alcança a refrescar as ardentes ruas e há no céu um sentiu saudades tom avermelhado, como se gravitasse sobre a cidade o resplendor de um fogo misterioso, como se um pressentimento cósmico flutuasse sobre os jardins floridos e as luxuosas moradas. — Falemos seriamente, Renato. O que se tem proposto? O que veio a fazer ao Saint-Pierre? Com o que relaciona a notícia de que o Lúcifer está na Dominica e tenha tomado carga para um porto ou para outro? — O Lúcifer será detido logo que ancore frente a Roseau, e seu patrão apressado em nome das leis da França. Pode voltar para Campo Real e dizer-lhe a minha mãe: vou resgatar a Mônica custe o que custar e aconteça o que acontecer. — Resgatar a Mônica? Então, é verdade o que me informaram? Você retirou sua fiança ao Juan e encabeçou uma acusação em forma contra ele. — Não ficou outro caminho para que o Governador consentisse em pedi-lo, por extradição, como fugitivo sob processo. — Mas o trarão preso, expropriarão-se do navio. Um momento. Um momento, porque às vezes me parece que eu também estou transtornado. Quando Juan chegou de sua última viagem, trazia suficiente dinheiro para pagar a você. É mais, assegurou-me que o faria, e tenho entendido que, pelo menos, tratou de fazê- lo. E até juraria ter visto uma bolsa com moedas sobre a mesa de seu escritório. Isso. Recolhi-a a mim mesmo. Guardei-a na caixa principal. Juan cumpriu fielmente seus compromissos! — Não pode prová-lo — rechaça Renato com dureza. — E, além disso, não é seu dinheiro o que persigo. — Já sei, já sei. Mas acusar o dessa maneira, Fazê-lo voltar assim, é, por dura que seja a palavra, uma infâmia. Uma infâmia! — Piores cometeu Juan do Diabo! — revolve-se Renato irado. — Qualquer caminho é bom quando nos leva aonde terá que chegar a toda costa. Não compreende. Noel? Mônica é inocente, não tem nada que reprovar-se. Eu tenho que deter esse navio, tenho que arrancar a das mãos do bárbaro a quem a entreguei, 107 Pégasus Lançamentos louco de ciúmes, cego de desespero e de raiva, sem mais direito que o que me dava minha cólera. — E quem disse a você? — Quem sabe melhor que ninguém. As dez! É a hora que esperava. O Governador está me aguardando para combinar os últimos detalhes. Tenho que lhe deixar. Noel, e me parece muito boa hora para que tome seu carro se quer retornar esta mesma noite a Campo Real. Não fique no Saint-Pierre. Serão inúteis seus esforços por defender ao Juan do Diabo — Chegou à comprovação. Governador? — Pode ler por si mesmo o cabograma, amigo D'Autremont. O veleiro Lúcifer tomou carga de rum, cacau e carne salgada no Portsmouth, parte para o porto de São José, e outra para o Roseau, onde já as autoridades estão avisadas. Como primeira formalidade deve levar a Capitania do Porto à matrícula do navio para poder desembarcar a carne, e nesse momento será detido. — Bem; só me subtrai esclarece um ponto que ficou pendente esta tarde: a sorte que correrá em tudo isto Mônica do Molnar. — Bom, legalmente é a esposa do patrão apressado. De todos os modos, confio em que as autoridades inglesas da Dominica não esqueçam o cavalheirismo. Tudo depende da atitude que ela adote. — Sua atitude só pode ser a de uma prisioneira resgatada. — Tenho minhas dúvidas, quanto mais leio e releio a carta desse doutor Faber. — Muito respeitável a opinião do Faber, e a sua própria, Governador, mas me perdoe que me atinge só a minhas próprias seguranças. Quando sairá o guarda costa? — Dentro de vinte minutos exatos. Meu carro aguarda abaixo. Tal como lhe prometi, farei-lhe conduzir a você aos moles com as facilidades de falar com o capitão. — Não desejo a não ser uma facilidade. Governador: ir eu nesse navio. — Você? Você pessoalmente? — surpreende-se o Governador. — Nenhum civil deve viajar em um navio de guerra. — O peço como um grande favor. São circunstâncias muito especiais. — Por elas me será preciso lhe agradar, me pregando a sua vontade absolutamente. Estender-lhe-ei um salvo conduto. Uma vez mais lhe recomendo prudência e sangue frio. Os últimos informe que me deram que o Juan do Diabo, creditam-lhe como homem muito perigoso. — Uma razão mais para que não me detenha nada. Governador! O Lúcifer está ancorado frente àvila inglesa do Portsmouth, um semicírculo de pequenas casas multicoloridos, estendido ao longo da aberta baía de Príncipe Roberto. São as primeiras horas de uma noite estrelada, e, aproximadas ao flanco do veleiro, três barcaças vertem sua carga no casco fino, forte e estreito, daquele navio boêmio e pirata que, por uma vez, cumpre a missão para a que foi matriculado. — Tudo em ordem. Segundo? 108 Pégasus Lançamentos — Tudo em ordem, patrão. A carga está na adega, perfeitamente resguardada. Juan se afastou com firme passo, e Segundo o observa curioso, vendo-o deter um instante frente à fechada porta da cabine. Aí está ela, depois daquela débil bar rir a de pranchas, indefesa, dela, posta em suas mãos pelas leis e a sociedade, dócil e branda naquela vida nova e estranha. Pensa Juan que acaso Mônica do Molnar não lhe rechace agora, pensa que acaso nela também toda mudou. Mas é só uma chispada de luz entre as sombras, e muito devagar volta à vida para ficar olhando a aquelas estrelas que se refletem na água, tão altas, tão puras, tão longínquas como aquela com quem sem querer as compara, e murmura: — Não. Não é minha. Não o será jamais. — Sou dela. Sua para sempre. Estremecida, tremente, exaltada, Mônica deixou escapar estas palavras que ante sua própria consciência despem a verdade de sua alma. Durante comprido momento olhou também aquela débil porta, com o temor e o anseia de que se abra, com a esperança inconfessável de que atrás dela aguarde Juan. Nela chocam os pensamentos; contra ela vão à estelar se, depois da busca inútil de suas almas perdidas. Bastariam uns passos, uma palavra, um despir o coração sem rubor. Mas nenhum dos dois dá aqueles passos, nenhum deles pronuncia aquela palavra, e, como Juan, ela tornou as costas, há apoiado a frente atormentada no redondo cerco dos estreitos guichês blusas de marinheiro, — olhou o tremor das estrelas sobre o mar. Se ele a olhasse de outro modo, se chegasse até ela tenro ou apaixonado, se pudesse pronunciar em seu ouvido aquele nome que inutilmente repetem seus lábios: — Juan, Juan. Se você me amasse. — A procurar a Mônica? Pessoalmente a procurar a Mônica? Mas; está você seguro. Noel? — Com estes olhos o vi abordar o navio. Ele tinha rechaçado minha companhia, me ordenando que retornasse, sem me ocupar mais de seus assuntos, coisa que, como você compreenderá, não foi possível fazer. Fui com ele até a casa do Governador, aguardei-lhe na sala de espera, segui depois o carro que o conduziu até os moles, vi-o embarcar no guarda costeira e me informei com plenitude das diligências feitas e da absoluta cooperação do Governador. Renato obteve o que a vocês lhes tinha negado, e até mais: a ordem de extradição imediata. Sofia D'Autremont se passou pelas têmporas o lenço de encaixes e estende a mão para tomar o frasco de sais que, silenciosa e diligente, acaba Aninha de lhe proporcionar. Meia já a cálida amanhã de maio quando, com ar consternado, faz seu relato o velho notário: "Disse que sua cunhada era totalmente inocente e que tênia que arrancá-la, a costa do que fosse das mãos daquele bárbaro a quem em um momento de loucura e de ciúmes a tinha entregue. 109 Pégasus Lançamentos — Inocente? Totalmente inocente? Com quem falou meu filho antes de tomar essa resolução? O que puderam lhe dizer? E como, quando? Quem? Aninha, com quem falou meu filho ontem pela tarde? Pode-me dizer isso — Falou com a senhora Aimée, dona Sofia, durante comprido momento. Falaram muito no corredor do frente. O senhor Renato olhava com impaciência para o caminhou, sem dúvida esperando vê-la retornar a você. Ao final, a conversação pareceu adquirir um tom violento. — Onde está Aimée? Não a encontrei nestas habitações, não a vi o chegar. — se inquieta vivamente Sofia. — O que foi dela? — Isso justamente ia perguntar eu — aponta Noel — porque seu desaparecimento coincide. — A senhora Aimée não desapareceu — afirma Aninha em tom depreciativo. — Está em seu departamento. Ordenou que o limpassem e o arrumassem de um modo especial, e mandou a Ana que pusesse flores nos vasos. Ali se fez servir ontem à noite o jantar, e o café da manhã esta manhã. Permito-me dizer-lhe ao senhor notário para que não pense em tragédias que não aconteceram. Nem provavelmente acontecerão. Sofia D'Autremont se pôs que pé, contendo-se. Apertando as mãos sobre o fino lenço de encaixe, um momento parece vacilar, e ao fim vai para a porta, voltando à cabeça da soleira para advertir: — Tenha a bondade de me esperar na biblioteca. Noel. Vou falar com minha nora agora. Com as velas cheias, levemente inclinadas, sulcando as águas ao impulso forte e quente da brisa de maio, chega já o Lúcifer à vista da capital da Dominica. Aparando do espelho, aproxima-se Mônica até a porta que a mão nervosa de Segundo Duelos acaba de golpear, mas não a abre repentinamente, contém seu primeiro impulso de abri-la, e volta à cabeça para contemplar-se no espelho que a retrata. — O que acontece, Segundo? — Estamos entrando no Roseau. O patrão me mandou que a chamasse. De pés a cabeça, Mônica tornou a contemplar-se e pensa ante o reflexo de sua imagem, como tremesse aquela primeira vez que Juan a obrigou a olhar-se nas águas. Sim, é bela, é desejável. Olha com ânsia de interrogação seus olhos profundos, seus trêmulos e acesos lábios. Com uma profunda satisfação, até agora desconhecida, pensa que Juan vai a achá-la formosa, assente o desejo intenso, irresistível, de olhar-se naqueles olhos escuros e ardentes que são a razão de sua vida, goze e tortura de sua alma — E onde está Juan? — Parte naquele bote. — Foi sem me esperar? — Foi procurar a permissão para desembarcar a carga. Disse que o aguardasse que ia voltar com uma surpresa. Que colocasse seu melhor traje! 110 Pégasus Lançamentos Reprimiu com esforço o gesto de desgosto, a irrefreável sensação de despeito que a invade. Reprova-se ter demorado tanto, haver-se entretido largas horas naquele meio doido que ele não tem agora ocasião de ver. Apertando os lábios se inclina sobre a amurada e olha a barco que se afasta rapidamente ao golpe dos remos. Junto ao Juan se agita uma figurinha escura que alta as duas mãos como se de longe a tivesse divisado. — Foi Colibri com o Juan? — Sim, senhora, conseguiu que o levasse. Ia mais contente que umas páscoas. Não sei como se as acerta o diabo de moço para sair-se sempre com a sua. — Juan o quer mais que a ninguém. — Quê-lo, é verdade; mas não acredito que seja mais que a ninguém. Digo, a menos que esteja louco. E veias de loucura tem. — Veias de loucura? — Sim, rajadas. Ontem à noite estava como um tigre; não havia quem lhe aproximasse. Horas e horas esteve passeando coberta acima e abaixo. De repente mudou, foi me buscar para que fizéssemos conta do ganho que ia lhe dar a carga. Mais de vinte libras ficam livres. E então foi e me disse: "Haverá no Roseau um anel de noiva? Alcançarão vinte libras para comprar um anel de ouro fino, com uma pedra branca que brilhe como o sol?" E eu vou e lhe digo: "Claro que alcança. Conheço um joalheiro que vende brilhantes bem baratos. Como que os trazem do Transvaal, de contrabando!" E vai e me pede os gestos desse joalheiro. Eu as dou como é natural, e então me pergunta me ensinando seu dedo pequeno: "Será assim o dedo da Mônica?" — O que é o que está dizendo. Segundo? — ruboriza-se Mônica gratamente emocionada. — Palavra por palavra o que me disse o patrão esta madrugada. Acredito que estou falando de mais. Mas já sabe qual é a surpresa. Diz que se casaram vocês muito depressa, e que não pôde comprar o anel, mas que mais vale Fazê-lo tarde que não Fazê-lo nunca. E eu penso igual. Mônica cala. É muito grande sua emoção para que possa pronunciar uma só palavra. É muito íntimo o sentimento que a embarga para mostrá-loassim, frente a um estranho. Mas suas mãos se aterram a tosco corrimão e seus olhos percebem, sobre a azul superfície das águas, o rastro daquele bote que se afasta veloz ao golpe dos remos que impulsionam as mãos do Juan, aquele bote que arrima já no embarcadoiro do Roseau. — Olha, Colibri, gosta deste anel? Vale vinte e dois libras, mas não me importa. Deixarei-o afastado e passaremos a recolhê-lo quando tomar a carga. — Que lindo é. E que pedra tão grande! É para a ama? — Claro que é para a ama! Como brilha, verdade? É igual a uma estrela. E como uma estrela tremerá em sua mão. Brilhando os olhos de entusiasmo, contempla Juan aquele anel de brilhantes através do minguado cristal da pequena cristaleira que se abre sobre uma das 111 Pégasus Lançamentos estreitas ruelas do Roseau. Quis acontecer por ali antes de chegar à Capitania do Porto, desejando quanto antes ver convertido em realidade o desejo daquele desejo. — Note bem onde é. Colibri, porque temos que voltar aqui mais tarde. — A procurar o anel? Você sempre lhe anda comprando coisas à ama, patrão. Mas a ama não fica contente, a não ser triste. Algumas vezes até chora olhando as coisas que você lhe traz. — O que chora? Não tem por que chorar. Uma vez me disse que era feliz, que sentia algo que podia chamar-se felicidade. Disse-me isso a mim mesmo, disse- me isso bem claro, e não faz muitos dias. . — Sim, eu sei quando o disse; mas depois disso, anteontem mesmo, esteve chorando. Eu a vi com estes olhos. E lhe corriam as lágrimas. Primeiro com o vestido negro, esse tudo quebrado que você tem guardado no armário. Encontrou-o, e esteve olhando-o e chorando. — Chorou? Chorou olhando esse horrível hábito, esse trapo negro que parece a roupa de um justiçado? Sinto muito não havê-lo arrojado ao mar! Por que chorava? Não lhe disse isso, Colibri? — Falou alguma coisa. Mas eu não lhe entendi muito bem. Disse algo assim como que chorava pela Mônica Molnar. E atirou outra vez o vestido quebrado ao fundo do armário, e ficou a escrever. E enquanto escrevia, chora que te chora. — Escrevia? Escreveu Mônica? — Sim, meu amo, e é o que ia dizer lhe. Se você for lhe dar de presente algo, ela seguro que quer papel e sobre. Essa noite esteve procurando e rebuscando, e ao fim, para escrever a carta, arrancou-lhe duas folhas de atrás ao livro de registros. — Uma carta? Há dito uma carta? — Bom, digo eu que seria uma carta, porque, o que outra coisa ia fazer meu amo? Escreveu as duas folhas pelos dois lados, dobrou-as em quatro e logo as deu a Segundo e lhe pediu que lhe comprasse sobre e selo para poder jogá-la no correio. Por isso digo eu que seria uma carta. Ai, meu amo! Colibri esquivou a mão do Juan que se aperta sobre seu braço com brutal movimento instintivo. Logo, olha com espanto o rosto sombrio cujas sobrancelhas se juntam com raiva, e suplica sobressaltado: ."Não fique bravo, patrão, ao melhor fiz uma confusão e não é verdade nada do que estou contando. Tudo é verdade! — afirma Juan com ira concentrada. — É incapaz de mentir nem de inventar nada. Além disso, é perfeitamente lógico. Mônica escreveu uma carta e Segundo Duelos se encarregou de pô-la no correio. Em que ilha? Em que porto? — Não me lembro. Não sei nada. Não fique bravo com a ama, patrão, nem vá dizer lhe que eu lhe vim contando. Eu não sabia que ia dar raiva. Eu... — Te cale! No Portsmouth, Segundo jogou uma carta. Disse-me que era para sua irmã 112 Pégasus Lançamentos Olhou a todas as partes, transfigurado o rosto de raiva, amarga a boca de desconfiança, e acaba de salvar a estreita ruela partindo; com passo incerto de sonâmbulo. — Meu amo. Meu amo, não fique bravo! Eu não sei nada. Seriamente que eu não sei nada. Pergunte-lhe a ela, patrão. Seguro que lhe diz a verdade. A ama é melhor que o pão. Bruscamente se deteve Juan. Outra vez aquele chispaste de vida e de esperança se acende em sua imaginação exaltada. Sim. Ela é boa, é sincera, é generosa, é leal. E acaso lhe ama. Recorda seu olhar, seu sorriso, as palavras nas que sua voz tremeu sua muda emoção ante a beleza da paisagem, o lento renascer à vida. Pouco a pouco sua amargura repentina se calma. — Talvez tenha razão. Não posso julgar sem lhe haver perguntado. Falarei- lhe mais tarde. Temos que ir à Capitania Geral. Tenho que me ocupar da carga, de vinte coisas mais, que não são caprichos nem cartas de mulheres. Anda, vamos! Juan e Colibri chegaram à Capitania e um oficial lhes aproxima, perguntando: — É você o capitão do Lúcifer! — Para lhe servir, oficial. — Passe, passe ao escritório. Precisamente o estávamos esperando. Adiante. Com gesto de estranheza cruzou Juan a soleira daquele escritório. Frente ao largo escritório há quatro soldados guardando as portas laterais, um escrivão, um ajudante, e o oficial que, ficando atrás dele, fecha-lhe o passo. — O que ocorre? Aqui está a matrícula de meu navio. Tenho em ordem todos meus papéis. Trago carga do Portsmouth e. . Fica você detido em nome do Governo do França! Como o potente tigre da selva que se revolve ao cair nas malhas da armadilha, como a fera que lança seu rugido ao cair apanhada, deu um salto Juan, enfrentando-se ao oficial que acaba de lhe falar. Mas também este se apartou de um salto, brilha uma arma em sua mão, e os quatro soldados avançam, ameaçando-o com a negra boca de seus fuzis, ao tempo que o oficial ordena: — Quieto! Quieto! Não se mova! Levante as mãos, ou disparo! — Ao que me toque lhe custa à vida!! — revolve-se Juan enfurecido; mas um dos soldados, com um rápido movimento, atirou-lhe um golpe traidor que o faz derrubar-se ao chão. — Lhe amarrem! Algemem-lhe! — ordena o oficial. — O parte diz bem claro que é homem muito perigoso. Logo, a corda! Cotovelo com cotovelo as mãos às costas. E que se as entendam com ele seus patrícios! Capitulo 11 113 Pégasus Lançamentos Tremendo-lhe a alma, como se não fosse possível assimilar a horrível verdade, trêmula e espantada como se escutasse o relato de um pesadelo, ouviu Mônica as palavras do pequeno Colibri, só com ele na coberta do veleiro abandonada. — Não pode ser! Não pode ser! O que tinha feito ele? O que passou antes? — Nada, minha ama, nada. Ia com seus papéis para cobrar a carga e logo comprar uma coisa que queria comprar. Pisou no portal e o colocaram dentro, e me fecharam a porta na cara e jogaram a patadas, minha ama. Mas não fui e ouvi gritar ao amo: "Ao que me toque lhe custa à vida". Quase seguro que lhe deram um golpe na cabeça, por atrás, porque já não disse nada mais, e quando o tiraram pela outra porta ia como desacordado. Eu quis ir correndo, mas um soldado me deu aqui com a arma larga. Aqui, patroa, olha. Não, não é um pesadelo, não é um sonho. Colibri lhe mostrou os rastros de um golpe brutal, umas manchas de sangue sobre seu camisa branca, e as pequenas mãos negras se juntam tremendo, enquanto parecem lhe pedir auxílio os grandes e ingênuos olhos espantados: — Terá que fazer algo, minha ama! — Naturalmente que terá que fazer algo! Onde estão outros? Segundo, Martín, Julián. Onde estão? Onde estavam? — No botequim, minha ama. Todos têm medo de cair em cadeia. Ali não dão aos pobres a não ser calabouço e paus. Todos vão esconder se. Mas você, você e eu, que não tenho medo de nada, embora me matem. — Pois veem comigo! — Aonde você me mande! Ao pé da escala está o bote. Seguro que a têm que deixar entrar. Seguro que a você têm que lhe dizer. Até patroa. — O que acontece? Correram juntos à amurada. Quatro botes, carregados de soldados, chegam, esparramando-se para rodear ao Lúcifer. O maior se deteve sob a mesma escala. Não leva como os outros, soldados coloniais ingleses, a não ser marinhos do guarda costeira, e ondeia em sua popa a bandeira da França. — Logo. Vamos! — ordena a voz autoritária do oficial — Assegurem a âncora.Tomem imediatamente posse da goleta. Joguem mão a todos os tripulantes! Que não escape ninguém! — Um momento, senhor oficial — Mônica avançou incendiada de uma ira repentina, de uma violenta indignação que lhe arde no sangue — O que significa isto? — Caramba! — exclama o oficial, contemplando-a com olhar surpreso, em que arde uma espécie de franco admiração — É você a mulher do Juan do Diabo? — Sou a esposa do Juan de Deus, capitão e dono deste veleiro! Sei que lhe detiveram e capturou sem provocação nenhuma de sua parte, e agora. 114 Pégasus Lançamentos — Ponham mão em tudo com cuidado, moços! Olham se não houver na adega explosivos ou armas! — recomenda o oficial, ignorando o protesto da Mônica. E dirigindo-se logo a esta, explica-lhe: — São as precauções de costume, senhora. Sou responsável pela vida de meus soldados. — De quem vem à ordem de capturar Á Juan e apoderar-se de seu navio? — trata de saber Mônica — O que tem feito para. — O que tem feito não sei nem me importa — interrompe-a altivo o oficial. E dirigindo-se de novo a seus ajudantes, ordena: — Detenham todo tripulante amarrem cotovelo com cotovelo ao que resista! Levem-se a moço esse. — Deus livre a ninguém de tocar a este menino! — salta Mônica furiosa. — Basta já! Todo mundo vai detido, e você também, senhora de Deus, ou do Diabo, que não me interessa como se chame. — Talvez devesse lhe interessar pela honra de seu uniforme! — rebate Mônica com a maior dignidade. — Mônica! Mônica. Minha pobre Mônica. — Renato. — exclama Mônica no cúmulo da surpresa. Sim, é Renato D'Autremont o que acaba de aparecer, salvando de um salto a amurada do Lúcifer, correndo para a Mônica, estreitando-a entre seus braços, e por um instante apoia ela a cabeça naquele peito, aceitando o amparo, a quente adulação daquela amizade inesperada. A um imperioso gesto do jovem oficial, um soldado arrasta a Colibri, que mudo de assombro não acerta a gritar, mas a atitude da Mônica só dura um instante. Rechaçando os braços do Renato, ergue-se desafiadora e decidida: — O que é isto? O que significa este horror, este atropelo? — Suplico-te que te acalme, Mônica. Não está acontecendo nada, não vai passar nada. — Como que não passa nada? Este assalto ao navio. Detiveram ao Juan. Deve haver um equívoco horrível. Quem tem feito isto? — Eu. — confessa Renato com serenidade. — Você, você? — surpreende-se Mônica cheia de indignação — NÃO pode ser! Tem que estar louco! O que têm feito do Juan? Onde está Juan? — Veem comigo. Saberá tudo com tempo e com calma. Juan está onde deve estar! — Patrão. Patrão. Como se sente? Como vai? Pouco a pouco, voltando com esforço do profundo e doloroso letargia, abre Juan os olhos tratando de olhar na obscuridade que lhe rodeia. É quase completa naquela espécie de cova, logo que ventilada por um pequeno olho de boi, redondo e alto. O estou acostumado a é úmido e viscoso, das paredes penduram cadeias ferrugentas, maços de cordas, e se amontoam nos rincões os refugos da carga. O ar é fétido e espesso, carregado de salitre e de mofo. — Segundo, é você? — Sim, patrão. Pescaram a todos. A você na Capitania Geral. A nós, ali mesmo, no botequim do Gascão, jogaram-nos a luva. 115 Pégasus Lançamentos — E agora, onde estamos? — Na baía do Galión. — O Galión! Mas, por que estamos no Galión! — Parece que o mandaram para nos buscar desde o Saint-Pierre, e bem carregado de policiais. — Onde estão outros? — Em outra adega, digo eu que estarão. A você e a mim, como resistimos. — Não me deram tempo de nada: nem de resistir! Mas se estiverem todos aqui, o que é do Lúcifer! Que é da Mônica? Ah, canalhas! A ela não vai passar lhe nada. — Como? O que sabe imbecil? Bons são estes! Tenho que gritar, que protestar, tenho que saber aonde levaram a Mônica Se acreditarem que vão poder tratá-la como a uma mulher qualquer. — No Galión chegou um que já lhes dirá como têm que tratá-la: dom Renato D'Autremont e Valois. Enquanto nos traziam, ouvi dizer que esse senhor era seu cunhado. Juan se pôs que pé com esforço gigante, apesar de suas ligaduras. A corda que atava seus pés saltou, deixando nos tornozelos seu rastro carmim. Agitando a cabeça como um tigre, ergue-se e balbuciai fora de si: — Renato? Malhaya! Foi Renato quem. — Eu não digo que fora Dom Renato. Digo que ele chego neste guarda costeira, e que ia para o Lúcifer quando nos jogaram a garra. — EU sim ! Foi ele. Ele. — Chegam patrão! — adverte Segundo. — Cuidado! Em efeito, há um rumor de passos depois da porta, que é aberta de repente, e alguém empurra violentamente um pequeno corpo que Juan reconhece imediatamente e que obriga a exclamar imperioso, uma vez que a pesada porta de ferro tornou a fechar-se: — Colibri, onde está sua ama? Onde está? — Ficou no navio, patrão… Ficou com o senhor Renato. — Com o senhor Renato? — Chegou quando a ama estava discutindo com os soldados. Chegou correndo e se abraçaram. — Abraçaram-se! — repete Juan mordendo as palavras. — Sim, patrão. Ele disse: "Ao fim, minha pobre Mônica", E ela lhe abraçou chorando. — Não! Não pode ser! — rechaça Juan como se lhe rasgassem a alma. — Já lhe disse patrão — comenta Segundo com amarga calma. — Pela ama não passe cuidado. A ela não vão a maltratar. — Quer acabar de me explicar, Renato, por que tem feito isto? O que significa? Onde está Juan? — Mônica querida, um momento. Explicarei-lhe isso tudo, mas te acalme. 116 Pégasus Lançamentos — Não posso mais! Leva horas sem acabar de me falar claro. Cem vezes te pedi que me explicasse. Disse que foi você quem tinha feito isto. Por quê? Quero saber por que o tem feito! Quero saber por que me trouxeste aqui! E sobre tudo, quero saber onde está Juan! Quer acabar de me explicar isso — Explicarei-lhe isso tudo, mas me deixe falar. Não posso responder-te a dez perguntas ao mesmo tempo. Quer te sentar e me escutar? Mônica se mordeu os lábios, sussurra, e um instante cala. Estão em uma ampla habitação de paredes caiadas, reja; de lavrada madeira e brilhantes pisos de tijolo vermelho. É uma casa isolada entre jardins, nos subúrbios do Rosean, maciça construção que se levanta como tantas outras, nas estribasses da montanha, e desde cujas janelas abertas se divisa o magnífico espetáculo do porto, a baía e o mar. — Tem-te proposto me enlouquecer, Renato? — Tenho-me proposto, enlouquecido, remediar as consequências de meu pecado dê incompreensão, de egoísmo, de ira, de crueldade. É curioso e lamentável. Eu, que não me acreditava capaz de ser cruel, fui desumano, e o fui contigo, minha pobre Mônica. — Se não me falar mais claro. — impacienta-se Mônica. — O que te estou dizendo é diáfano. Já sei que pretenderás não me entender, que mentirá e fingirá heroicamente, como até agora o fez. Já sei que sustentará a farsa e que tomarás, a conta dela, a defesa se desesperada para o Juan do Diabo. Já sei que tem madeira da Santa ou de mártir. — Equivoca-te totalmente, Renato. Eu. Eu. — Você foste à vítima inocente. Eu cometi o crime de te jogar nos braços do Juan; mas eu, eu sozinho, contra ti mesma se for preciso, liberarei— te desse canalha. Renato falou, tremendo a paixão em sua voz, mesmo que seu olhar azul seja limpo e suave. Quis em um momento arrancar a daquele ambiente para ele horrível, começar a obra de reparação de seu mau; mas Mônica lhe rechaça, relampagueantes de ira os olhos: — Juan não é um canalha! Nem você nem ninguém dirá dele uma coisa semelhante diante de mim. Onde está e o que lhe têm feito? — Não corre nenhum risco nem lhe tem feito ainda nenhum mal. Por outra parte, quero começar por te dizer que te desculpo do esforço de representar o papel de esposa preocupada. — Não estou representando nenhum papel! Não tenho nenhuma queixa do Juan! — Se pudesse acreditar que diz a verdade, acredito que lhe daria as graças a Deus por mehaver escutado. Não sabe como hei rogado do fundo de minha alma, que horas de angústia vivi desde que soube a verdade! Sim, Mônica. Aimée me disse ao fim toda a verdade — Jesus! Mas você. Você. Tiveste calma? — se surpreende Mônica, desabando-se aniquilada na próxima poltrona. 117 Pégasus Lançamentos — Minha dor e minha desilusão acharam a serenidade necessária. E não é mérito. Tinha sofrido tanto, tinha chegado a imaginar o pior com tanta força, com tão vivas cores acreditava ter entre as mãos o horror de um engano. De um engano de outra índole, me compreenda. Sim, Mônica, estive louco, cego, desesperado. Só demente pude acreditar que você, tão pura, tão altiva, tinha sido capaz de te entregar assim. Perdoe-me, Mônica, fui um insensato. Se te acossei, se me revolvi contra ti sem piedade, se me converti em uma fera, foi porque acreditei que Aimée era a culpado. A única culpado. . — Mas, Renato. — tenta protestar Mônica totalmente confusa. — E não culpado como é, em realidade, de um pecado de egoísmo, de ligeireza imperdoável. Não culpado como o foi. Como uma menina muito mimada, capaz de jogar sobre ti o fardo de todas as responsabilidades, a não ser culpado de outro, como uma verdadeira mulher adúltera e leviana. Sofria tanto eu mesmo, que me era impossível medir o sofrimento de outros. Por isso te precipitei ao abismo, por isso te joguei em braços desse selvagem. — Me ouça, Renato! — trata de deter Mônica aquela corrente de explicações que ainda não alcança a compreender em seu verdadeiro sentido. — Ouvirei-te em seguida, mas me deixe acabar. Fui mais que injusto, cheguei a ser desumano. E contigo. Contigo, que é o que me dói mais fundo, que é o que me reprovo mais. Contigo, para quem só devesse eu ter gratidão, reverência. OH, não direi nenhuma palavra que não deva escutar; mas sei tudo e não quero nem lhe devo ocultar isso Sei tudo, e me poria de joelhos para te pedir que não te envergonhasse, porque o amor não pode envergonhar a ninguém, e não houve sobre minha vida nada mais formoso que esse amor que você soube me dar. — Cala Renato, cala. Levantou-se, acesas as bochechas, trêmulos os lábios, sentindo que a terra vacila sob seus pés, que giram as paredes enquanto golpeia em suas têmporas o sangue. É uma indescritível mescla de horror, de vergonha, de angústia. Um anseia de morrer para logo ressuscitar sem aquele passado, enquanto ele sorri como se recolhesse uma flor: — Obrigado, Mônica. Obrigado e perdão. São as duas únicas palavras que frente a ti devo pronunciar. — Aimée. Aimée. Aimée te há dito. — gagueja Mônica como obcecada. — Há-me dito toda a verdade, já lhe disse isso antes. — Ela não é capaz de dizer a verdade! — estala Mônica sem poder se conter. — É uma hipócrita, uma embusteira, uma infame! É a mais vil e mais covarde. — É possivelmente todo isso, mas me há dito a verdade. A verdade que te limpa e te salva, enquanto a obriga a baixar a cabeça frente a ti e frente a mim mesmo. Porque compreenderá que não posso vê-la igual, que não posso apreciá-la igual, e ela sabe. Minha ilusão por ela morreu, minha fé na diafaneidade de sua alma se quebrou em pedaços embora vá me dar um. Filho. 118 Pégasus Lançamentos Mônica se mordeu a língua, mordeu-se os lábios, calou destroçando-se, como se para calar tivesse o que cravá-las unhas na consciência e nas vísceras. Mas calou. Calou detida pelo impacto daquela palavra. Calou trêmula ante aquela outra vida que se anuncia, e tornou a cair cobrindo o rosto com as mãos. Quer ouvir até o final o que sabe Renato, pois esteja bem segura de que Aimée só falou pela metade. À força de sofrer, já quase não pode pensar, e ouça, como através de muitos véus, aquelas palavras do Renato, que lhe soam estúpidas, ingênuas, tragicamente RIDÍCULAS, na emoção daquela alma outra vez enganada. E ao fim, apressa: — Fala Renato, fala! O que te há dito Aimée? — Não repetirei coisas que sabe coisas que eu havia esquecido. Fui torpe e cego, mas quero que saiba que durante as horas desta viagem, com o olhar fixo nas estrelas, não pensei a não ser em ti, com a alma rasgada pela dor do mal que te tinha feito. Que me perdoe seu pudor de mulher honesta, de mulher muito digno de mulher imaculada. Sua irmã me contou isso tudo: seu ciúmes, seu medo, a forma infantil, mas infame, inconsciente, mas baixa, com que urdiu ao redor teu os supostos amores do Juan do Diabo. Como iludiu a essa pobre besta. — Não fale assim do Juan! — aviva-se Mônica ante o insulto. — Não sabe o que diz! Cale-te! — Tem direito a te enfurecer, a me insultar. Tem ate o dever de defendê-lo, já que por minha culpa, por meu enorme culpa, e pela culpa lamentável do Aimée, esse homem é seu marido, é seu marido ante Deus e ante os homens, é seu dono e companheiro da alma. Para romper o laço que ata ao Juan seria necessário que o matrimônio não houvesse se realizado. — Cala! Cala! — desespera-se Mônica. — Me perdoe, mas é indispensável que eu saiba. Como resistir? Para poder te liberar dele. — Não tem que me liberar! Não tem que te colocar em minha vida! Não tem que fazer nada! Devolva-me ao Juan, Renato, me devolva ao Juan! Grito do coração, estalo da alma, corrente selvagem de um sentimento real, oculto até para ela mesma, são aquelas palavras que brotaram que os lábios da Mônica, e um instante, Renato D'Autremont retrocede desconcertado, para serenar- se quase em seguida acreditando compreender. — Talvez não tenha já direito a te pedir que confie em mim, mas de todos os modos, por seu próprio bem, peço-te que o faça. Tudo que tenho feito é por ti, para ti, para te liberar, para te liberar, para te resgatar. Que não te cegue o rancor neste momento. — Não é rancor, está completamente equivocado. Mas Juan não é o homem que imagina. Além disso, é meu marido e não há nada mais que averiguar. — Está tratando de me dizer que tem por ele o sentimento normal de uma esposa? — Não estou tratando de te dizer a não ser o que nos deixe em paz! — Teria graça se fosse verdade — apostila Renato com certa amargura; mas reagindo imediatamente, rechaça: — Não, Mônica, não pode me enganar. Aimée 119 Pégasus Lançamentos me disse a verdade a verdade que você não negaste: Juan do Diabo não era para ti mais que um estranho. Agora, sua ferida é muito profunda, sei, e você é de madeira heroica. De outro modo, não tivesse resistido nem por amor a sua irmã nem por amor a mim. — Não fale mais disso! — repudia Mônica com ira. — Também compreendo que seu amor tenha adquirido tinturas de ódio. Fomos desumanos, mas, por que acessou a essas bodas? Nenhuma mulher no mundo tivesse suportado tanto! Como é possível que chegasse. — Foste matar ao Juan, a minha irmã. Suas razões eram a fio de faca. — Eu não queria a não ser arrancar a verdade a quem soubesse! Por que não falou? Procedi como um louco, mas foi porque as circunstâncias me enlouqueceram. Quando te vi aceitar ao Juan, tive que pensar que a amava que o tinha amado ou que tinha cometido um pecado de amor, e, nesse caso, talvez não fosse eu o que podia te impor o castigo desse matrimônio desigual, mas era justo. Ao menos, compreende minha boa intenção, não te revolva contra mim dessa maneira. — Bom, mas, em realidade, não responde jamais a minha pergunta: onde está Juan? — Veem aqui, a esta janela. Olha lá, no porto, no mar, perto do Forte. O que vê? — Um guarda costeira. Um guarda costeira com a bandeira da França. — O Galión, primeiro sentinela das costas da Martinica para combater o contrabando e outras atividades nas que Juan não tem muito limpa as mãos. São pecados veniais, mas deles tive que me valer. Aí está Juan. — No Galión? Detido? Preso? — Reclamado pelo Governador da Martinica para ir ao Saint-Pierre a dar conta de várias — acusações pelas que se pediu sua extradição ao Governo Colonial Britânicoda Dominica. — Denunciaste você? Você? Acusaste-o que? — Do único que podia acusá-lo. Fiz o possível e o impossível por te resgatar quando soube a verdade, agravada pela circunstância de uma enfermidade que, segundo certo doutor Faber, estava sofrendo. — Renato, esse navio se vai. Vai levando ao Juan! — angustia-se Mônica. — Naturalmente. Ao Juan e a todos os tripulantes de seu barco. — Mas isso não é possível! Lhe levam lá, e eu. Eu! — Nós sairemos amanhã ou passado, em um navio que reúna para ti as comodidades necessárias. — OH, não, não! Sem lhe ver? Sem lhe falar? Faz que detenham esse navio! Nós saiamos também imediatamente! — Imediatamente não é possível. Disse-te amanhã ou passado, porque é quando se espera aqui um navio dê passageiros e. — O Lúcifer está preparado. 120 Pégasus Lançamentos — Já vejo que é implacável. Enfim, se te empenhar regressaremos no Lúcifer logo que consiga tripulação com o que Fazê-lo ao mar — Onde estão os moços do Juan? Segundo pode guiá-lo. E Colibri. Por que me arrancaram isso das mãos? Por que permitiu que esses homens o levassem? — Não lhe têm feito nada. A tripulação inteira do Lúcifer foi capturada e viaja com seu patrão no guarda costeira que viu afastar-se. O menino era grumete do Lúcifer, e a piores costure estará acostumado. Não vais dizer-me que sendo servente do Juan. — Juan é bondoso com esse menino, generoso e humano com quantos dependem dele — defende Mônica vivamente. — No Lúcifer não presenciei uma só crueldade, enquanto que em suas terras de Campo Real. Melhor é que me cale, Renato, mas, em realidade, você não sabe nada, não pode compreender nada. Quem é Juan. Como é Juan. — Admirável verdade? — aponta Renato com fina ironia. — Sim. Embora não possa acreditá-lo, embora não queira compreende-lo, há dito a palavra justa: admirável. — Não lhe conhecia como atriz, Mônica. Encontro muito sutil e muito feminina sua forma de vingança. Sua apologia das virtudes desse canalha, desse selvagem. — Juan não é um canalha nem um selvagem! — encrespa-se Mônica francamente irada — Juan é o melhor homem que hei conhecido! — Mônica, até onde vais chegar? Entendo que deve estar louca, transtornada. É outra, sim. É outra, de pés a cabeça mudaste. Tudo mudou em ti, até esse traje de coloridos, absurdo, impróprio em uma mulher de você, linhagem, mesmo que com ele te veja formosa, como se com seu desdém e sua beleza queria me castigar. Faz-o, pode Fazê-lo. MEREÇO-O por não ter compreendido seu amor, por não te haver sabido, amar! Renato D'Autremont se aproximou da Mônica com gesto apaixonado, mas ela retrocede, e a luz que um instante ardesse nos olhos dele, dilui-se, como se apaga uma ilusão fugaz. E depois de olhá-la, move a cabeça, como frente a uma verdade que lhe desconcertasse: "Mônica, posso te perguntar se amas ao Juan?” — Lhe amar. Não sei. Mas é igual. Ele não me quer não me quererá jamais. — O que está dizendo? — indaga Renato surpreso e confuso — Então, quanto fez. Por que o fez? Por que o fez? Mônica tornou a apertar os lábios, entreabriu que novo as pálpebras, e um instante seu rosto recorda ao daquela outra Mônica sofrida, resignada, encadeada a sua obrigação de calar. Mas é só um instante. A mulher nova volta a aparecer e há uma careta ambígua em seus frescos lábios, ao comentar: — O que pode te importar o que ele e eu sintamos? A verdade é que não tenho nenhuma queixa contra Juan. Bem ou mau, deu-me isso, impor-me isso como marido. Por uma ou outra razão, jurei-lhe lealdade ao pé do altar, e eu ainda concedo valor a meus juramentos. 121 Pégasus Lançamentos — Está bem. Tudo o que tenho feito foi por reparar uma falta, por te tirar do inferno em que acreditei te haver sepultado, e agora resulta que seu inferno te agrada. — Quando me jogou nele, tivesse preferido a morte cem vezes a aquele me sentir arrebatada pelos braços do Juan recorda Mônica apaixonada. — O pior dos supridos, a mais terrível das agonias eram para mim mais desejáveis que aquele homem que me arrastava, através dos caminhos e através dos mares, como pode arrastar sua conquista um vândalo. Entre as quatro paredes da cabine do Lúcifer, chorei e supliquei me rasgando o corpo e a alma, lhe pedindo a Deus que me enviasse a morte repentina. Se então tivesse deslocado atrás de mim, se um verdadeiro sentimento de justiça e de piedade humana te tivesse feito seguimos nos deter, teria beijado os rastros de seus passos. Mas tudo tem neste mundo seu momento, sua hora, sua oportunidade. — O que quer dizer? — lamenta-se Renato. — Devemos pensar no mal que fazemos, antes de fazê-lo. As reparações revistam chegar, como esta tua, muito tarde e fazendo ainda mais danifico de que fez o próprio mal. Compreende agora? — Tenho que compreender. Falaste muito claro — aceita Renato doído. E em tom de fina ironia, observa: — Suponho que não te servirá de nada que lhe presente minhas desculpas, que te diga que sinto com toda minha alma ter interrompido seu idílio primitivo com o Juan nessa imundície de barquinho. — Muitas vezes a imundície está nos palácios, e há luz de sol até nas humildes pranchas do Lúcifer — reprova Mônica com altivez. — Graças a Deus, sou outra, Renato. Sou a mulher do Juan do Diabo, ou do Juan de Deus como eu o chamo. E como sou sua esposa e sei que lhe acusaste com crueldade, de pecados veniais, quando ele poderia acusar a outros de pecados mais graves, e não o faz. Como lhe suponho açoitado e maltratado injustamente uma vez mais, não tenho mais que um desejo: estar junto a ele, voar a seu lado, lhe defender das acusações que lhe façam lutar a seu lado por sua vida e por sua liberdade. Se seriamente quer fazer algo por mim, contrata tripulantes e deixe ir. Imediatamente onde ele está. — Será agradada! — acessa Renato com ofendida dignidade. — vou realizar essas diligências que reclama. Nos iremos ao mar em seu maravilhoso navio, e procurarei que seja quanto antes. — É o único que te agradecerei com toda minha alma! Da porta, tornou-se Renato, olhou de novo a Mônica, — sentindo que sua repentina raiva se derrete em dor, em angústia, na sutil amargura do fracasso, e transborda em uma breve flor de ironia: — Obrigado, por me recordar uma vez mais que fui inoportuno e torpe. A seus pés, Mônica! — Cuidado, Colibri! Veem o meu lado. Te tire de no meio. Se te apanhar uma dessas caixas, não vais fazer o conto. — O que é isto, patrão? — pergunta Segundo consternado. 122 Pégasus Lançamentos — Que quer que seja mais que uma tormenta? Varrido pelo vento, sacudido pelas gigantes cheire de um mar espesso, envolto no violento açoite de um repentino temporal, range o Galión, estremecido da quilha até a ponta do pau de mesana. — Mas que classe de temporário! Claro que piores os baralhamos, mas não neste velho balde de lata. Segundo Duelos fala olhando ao Juan, aguardando com ânsia mau dissimulada sua opinião, sua resposta, mas o patrão do Lúcifer não parece ter intenção de lhe responder. Visivelmente inquieto. Segundo comenta: Já não ouço nem as máquinas deste maldito cubo! Você ouça patrão? — Não; faz momento que pararam. Parece que estamos ao grelhe. E também que nos tivéssemos desviado, pois se houvéssemos ido à linha reta, já estaríamos frente a Saint-Pierre. — Quer dizer que perdemos o rumo? — Nesse momento, um violento golpe de mar inclina o casco de navio e, espantado, Segundo inquire: — Ouviu patrão? O que foi isso? — A hélice fora da água. — explica Juan com impassível calma. — Estamos ao garete! Podemos nos afundar! Não me ouça, patrão? Podemos nos afundar! — Oxalá! Depois de tudo, seria um modo como outro qualquer de acabar. — Não! Não! — Segundo protesto espantado. — Eu não sou um covarde, você sabe que nãosou covarde, patrão, mas não quero morrer aqui apanhado, enjaulado como um rato! Se formos afundamos, que nos soltem ao menos! Abram! Abram! Nos tire desta ratoeira! Não nos deixem morrer aqui! Abram! Enlouquecido por um pânico que é também desespero e raiva, acudiu Segundo a porta da adega empurrando-a, golpeando-a com os pés, enquanto, verde de espanto, Colibri se abraça ao Juan que, mudo e imóvel, contempla a seu companheiro com amargo gesto. Dois homens apareceram na porta. O marinheiro que faz às vezes de guardião e um jovem oficial que olha duramente aos capturados, e interpela: — Quem grita aqui — Eu! Não queremos morrer esmagados, encerrados em uma ratoeira! — Perfeitamente. Desata-o, leva-o acima e ponha a trabalhar. E você? — O oficial se encarou com o Juan, e no ar se cruzam como dois aços, os dois duros olhares. — Você não grita? Não protesta? Não tem medo de morrer aqui como um rato? — Não tenho medo de nada. Me deixe, se quiser! — Posso te cruzar a cara como insolente! Mas não, desata-o. É uma lástima que se percam esses braços, quando fazem tanta falta acima. Faz-o trabalhar até que arrebente, e se revira contra ti, lhe dispare e cuida você mesmo de vigiá-lo, porque me responde com sua vida do que ele faça. Têm cansado ao fim as cordas que sujeitam ao Juan. Um insistente esfrega isso os braços intumescidos, os pulsos arroxeadas. De repente, um violento golpe de 123 Pégasus Lançamentos mar entra pelas escotilhas, banhando as adegas. O Galión tremeu como se fosse partir se em dois, correm todos enlouquecidos, escorregando pelas estreitas escadas de ferro, alagadas a cada golpe de mar. Levando a Colibri como um fardo, sobe Juan o último. Respirou a pleno pulmão; a água enfurecida lhe açoita o rosto, envolve-lhe, banha-lhe. Agarrado a uma escotilha, pode olhar ao fim sobre a coberta varrida pelas ondas. O mar se torcedor em marejadas como montanhas, sopra o vento com fúria de furacão, negro está o céu, e apenas se vê a luz dos faróis furiosamente bamboleados. — Outro homem à água! — grita a voz patética de um marinheiro. — Capitão... Capitão! — O capitão está ferido! — adverte o oficial. E elevando a voz, chama: — Timoneiro. Timoneiro! — Timoneiro à água! — avisa uma voz longínqua. Juan avançou arrastando-se entre a fúria dos lamentos, agarrando-se aos salientes, aos cabos, às pranchas, protegendo ao moço que treme abraçado a ele, resistindo o açoite das ondas que a cada instante ameaçam lhe arrastando. Guiado por um instinto mais forte que sua vontade, chegou até a ponte de mando. .Um homem, com a cabeça rota, jaz ao pé do leme cuja roda gira ao garete. O oficial se inclina sobre o ferido, e logo se eleva olhando ao homem que acaba de chegar, para lhe perguntar: — O que faz aqui? — E você, o que faz? Agarre o leme. Há rochas perto. Vamos estrelamos! Não o vê? Vamos naufragar! — Já sei, mas não sou piloto! — desespera-se o oficial — Você tome o leme! Faça algo! — O que ponham-se às andar máquinas! — Não funcionam já. Há água nas caldeiras! — E as velas? — Não sou marinheiro, não sei nada. Os que sabem caíram. Eu nem sequer sei onde estamos! As mãos do Juan se obstinado ao leme, desviando o choque iminente. Seus olhos percorre o horizonte escuro, elevam-se logo até a bitácora que sobre sua cabeça se balança, e se ergue como tomando uma determinação foto instantânea: — Junte aos homem que possam trabalhar! Que fechem as escotilhas, que esgotem a água! — E elevando a voz entre o estrondo da tempestade, grita: — Segundo. Enguia. Martín. Onde estão? Aqui. Logo! — Aqui estamos patrão! — responde Segundo, aproximando-se. — Levantem uma vela pequena a proa! Sustentem-na esquivando o ar! Terá que tomar outro rumo, embora seja investindo a tempestade! Segundo, toma o mando dos que vão à vela. Martín, às bombas. Faz esgotar a água! Como um golfinho, salta o Gallón sobre as ondas; como um escalo, esquiva o golpe dos ventos, desviando-se das afiadas rochas ameaçadoras. O vento impetuoso se forma redemoinhos sobre sua única vela de proa, lhe dando forças de 124 Pégasus Lançamentos gigante, e um relâmpago rasga as nuvens escuras, iluminando ao homem que vai ao leme, com a luz do raio. — Sinto-o na alma, Mônica, mas o porto está fechado pela tempestade e não há permissão de saída para nenhum barco. — OH! E o navio em que foi Juan? — indaga Mônica com visível ansiedade. — Bom. Figure-te. Se tiverem apurado a marcha, pode que se livraram do temporal. — E se não terem podido chegar a Martinica, se essa tormenta de que falas lhes açoitou no mar? — Séria lamentável, mas não acredito que deva te desesperar até esse extremo. Suponho que Juan não terá medo de um temporal. — Juan não tem medo de nada nem de ninguém! — exalta-se Mônica. — Está bem, louvemos ao Juan! — apostila Renato impaciente. — Uma razão mais para que te tranquilize. Ao fim e ao cabo, tudo se reduz a um par de dias de atraso. — Que serão de cárcere para o Juan, verdade? — Naturalmente que estará detido, posto que vá submetido a um processo, mas não te sufoque tanto. Tampouco é a primeira vez que Juan está no cárcere. Eu mesmo o tirei dela, e esses dias de fechamento que lhe economizei em forma gratuita, só por boa vontade, não é nada do outro mundo que agora me pague isso. — Tirou-você do cárcere? — Sim. Por que estranhas tanto? Eu tive um formoso sentimento para o Juan. Qui-lo desde menino, contra toda a vontade de minha mãe, contra todas as circunstâncias adversas, e naquela famosa viagem que fizemos juntos a França, enquanto apoiado no corrimão da amurada contemplava a terra que me viu nascer, afastando-se até perder-se na distância, não tinha mais que um pensamento: Juan. Não tinha mais que um desejo: voltar para procurar o Juan. Não tinha mais que uma determinação inquebrável: achar ao Juan à volta para compartilhar com ele quanto tinha, para Fazê-lo realmente meu irmão. — Isso queria Renato? — Queria-o e o procurei com toda minha alma. Se recordar um pouco os primeiros dias que passou ele em Campo Real, achará a corroboração de minhas palavras. Com que alegria, com que ilusão, com que puro sentimento de justiça e de fraternidade quis então estreitá-lo em meus braços e lhe dar quanto à vida lhe tinha negado! Mas foi como lhe dar calor a uma serpente, como acariciar com a mão nua a um escorpião, porque nele não havia mais que ódio, rancor, veneno, e tive que reconhecer que tinha razão minha mãe quando tantas vezes me disse temendo por mim: "te guarde do Juan, Renato, dele têm que te vir todos os males”. — Todos os males? A palavra tremeu nos lábios da Mônica. Acaso, por um instante, compreende ao Renato, aproxima-se de seu coração atormentado, e possivelmente também procurar surpreendida, no fundo de sua própria alma, aquele sentimento que durante 125 Pégasus Lançamentos anos inteiros a enchesse, aquele sentimento estranhamente desvanecido que é agora um sorvete montão de cinzas: seu amor, seu louco amor pelo Renato D'Autremont, em cujos lábios soam agora as palavras destilando fel de uma amargura antes desconhecida: — Pensa que Juan não me tem feito bastante mal? — Não acredito que te tenha feito nenhum mal voluntário. Não acredito que te odeie. Você, em troca. — Odiou-me sempre, Mônica — corta cortante Renato. — Odiou-me sempre, embora eu não quisesse compreendê-lo, embora fechasse os olhos para não ver em suas pupilas o rancor, por um dano que em realidade eu não lhe tinha causado. Odeia-me por rico, por ditoso, por mimado, por ter uma mãe amorosa e um lar feliz! Odeia-me por bem nascido, e sempre me odiará, eu faça o que faça. Essa é a amarga verdade da que eu não queria me inteirar. — Que injusto é com o Juan! Que injusto e que cego! Com ele, todos estávamos equivocados, Renato. É bom, énobre, é generoso. — Cala! Você sim que está cega. O que pôde fazer para te deslumbrar, ou por que finge e memore como o faz? Com que sortilégio, com que beberagem, com que filtro pôde te roubar ele alma? — Por que não pensa que foi só com sua bondade? — Bondade, Juan? Não diga disparates. Se tivesse visto o que eu vi. Como pensa que fiz para acusá-lo? Eu não inventei os cargos, achei-os com apenas procurar um pouco, e tem que tudo em sua desventurada carreira: pirataria, contrabando, brigue tumultuarias, homens feridos ou golpeados. Acusa-lhe de jogador, de briguento, de bêbado. Na Jamaica sequestrou a um menino. — O que? — alarma-se Mônica. E como compreendendo: — Colibri! — Colibri. Logo é verdade. É um dos cargos que não tinha podido provar- se! Por isso ficou livre, mas as acusações chegaram até a Martinica. Levou-se um moço da cabana de seus parentes, ferindo e golpeando a quantos quiseram impedir que o levasse. — Seus verdugos! — salta Mônica sem poder se conter. — Se tivesse escutado a Colibri, se tivesse visto e ouvido de seus lábios a história dilaceradora de sua infância, saberia que Juan não fez a não ser resgatá-lo, liberá-lo, e bem pouco castigo deu a quão miseráveis o exploravam. Se forem como essa todas suas infâmias, se esses forem todos os crimes de que lhe acusam. — Já vejo que não lhe faltará à melhor advogada, a que olha o mundo através de seus olhos. — Acaso disse mais verdade da que pensa Renato. Juan me ensinou a olhar o mundo com outros olhos. — E, em troca, fechou os teus, os verdadeiros, os olhos que me amavam. Por que se acendem suas bochechas como se o só pensamento te envergonhasse? Por quê? Mônica, minha vida! — Não me fale desse modo, Renato! Não me olha dessa maneira! — Já sei o que pensa: que sou o marido de sua irmã. 126 Pégasus Lançamentos — Embora só isso pensasse, seria o bastante. — Seriamente? .Ditosa você que, com uma consideração, pode apagar um sentimento! — Vencendo sua resistência, Renato tomou as mãos da Mônica, obrigou-a a lhe olhar cara a cara, procurando com inútil desejo uma chispada de amor naqueles grandes olhos claros. — Sei que nunca me mostrará seus verdadeiros sentimentos, sei que nunca deixará falar com seu coração. — Só com o coração te estive falando! — Não lute mais, não te esforce. Diga o que diga, não vais convencer-me. Frente a minha estupidez, calou dez anos. E seguirá discretamente. — Com gesto de vencido, Renato vai para a janela, olha através dos cristais e se volta logo para olhar a Mônica, enquanto deixa cair, como em um trêmula dê angústia, as palavras: — A tempestade está amainando. O ciclone deveu desviar-se. — Havia um ciclone? Um ciclone que sem dúvida açoitou ao guarda costas! — Confio em que tenha podido escapar. Vou passar um cabo a Martinica perguntando. Se o tempo segue melhorando sairemos esta noite ou amanhã, e terá ampla ocasião de demonstrar-lhe ao Juan que é uma esposa fiel e exemplar. — É o menos que posso fazer, depois de havê-lo jurado ao pé do altar! — ergue-se Mônica altiva. Logo, trocando a um tom suplicante, murmura: — Renato, e se eu te suplicasse, se eu te pedisse de joelhos que retirasse essa acusação? — Já não está em minhas mãos retirá-la, Mônica — explica Renato com tristeza. — Pedi estrita justiça, apertei os parafusos, movi até o fundo a alavanca da lei, e a lei está em marcha. Mas não se preocupe, pois se Juan for como você diz, sairá bem sacado. Por fortuna, não sou eu quem tem o que julgá-lo, mas pode estar segura de que estamos em paz. Danifico por dano! Agora vou agradar-te, Mônica, vou tratar de ultimar nossa viajem. Capitulo 12 Desviado em cem quilômetros da rota que devessem seguir para chegar ao Saint-Pierré, sacudido ainda pelas robustas marejadas em que as rajadas secundárias de um ciclone o têm envolvido durante muitas horas, leva o Galión sua infeliz marcha pelos escuros mares encrespados. Quebrado, desarvorado, com as adegas ainda meias de água, com a maquinaria inútil, navega, não obstante, com estranha precisão, impulsionado por sua única vela de proa, guiado pelas robustas e peritas mãos daquele que aos vinte e seis anos é o mais audaz navegante do Caribe. Atento ao ruído, elevando de quando em quando a cabeça para olhar a bitácora que se balança sobre a roda do leme, duro e alerta como se feito de pedra para as horas da arruda batalha, Juan do Diabo parece só atento à marcha do navio. Pela coberta que 127 Pégasus Lançamentos até banham as ondas, agarrando-se às paredes, aproxima-se um homem até seu lado, e Juan interpela: — O que acontece. Segundo, por que deixou a vela? — Está em boas mãos, patrão. O Enguia e Martín estão com ela, e como a tormenta vai amainando, pensei que você podia necessitar substituição. Sabe que o capitão está mal ferido? Que o timoneiro e o primeiro piloto se foram à água? Que o único que manda a bordo é o oficial esse que veio a prender-nos, que de marinheiro não tem nada? — Sim, Segundo, sei perfeitamente tudo isso. — O navio está como quem diz, em nossas mãos, patrão. E se não ser por nós, ontem à noite naufragamos, tivéssemos nos estrelado contra as rochas do Granadinas, teríamos encalhado em um baixo, ou possivelmente tivéssemos cansado no centro do furacão. — Sim, Segundo, sei isso. Vá atender a seu trabalho. Segundo vacilou. Sobre os Montes da ilha de Granada, o vento varreu as nuvens, e aparece com tom rosado a primeira luz do alvorada. Juan consulta de novo a bússola, e depois ordena: — Dentro de meia hora trocará o vento. Olha a ver se podem elevar outra vela no pau que fica intacto, para que viremos quando o tempo troque. — E poderemos ir até o fim do mundo! — alvoroça-se Segundo com a esperança com muita dificuldade contida. — Se você me autorizar, patrão, eu me encarrego de limpar o guarda costeira dos poucos que nos estão estorvando. Com eles não podemos chegar muito longe. Denunciarão-nos! — Não, Segundo, não vamos matar a ninguém. — Patrão, esta é a oportunidade, a única oportunidade que tem você e que temos todos. Ponha proa ao continente, desembarcamos na Guayana, e aí que nos busquem! — Não, Segundo, não vamos escapar — E em tom autoritário, ordena: — Levanta a outra vela. Segundo, faz o que te mando! — Está bem, patrão. Por você, não por mim o dizia. Eu não tenho julgamentos nem cargos, a mim não podem me fazer nada, mas você é muito parvo voltando a meter-se na boca do lobo. — Vá ao que te mandei. Segundo. Vamos virar. No Saint-Pierre deve me estar esperando uma dama a que quero voltar a ver, pague por isso o preço que pague! Contendo o gesto rebelde, obedece Segundo a voz do Juan. Sua figura se encolhe, afasta-se se desvanecendo na estreita coberta molhada, enquanto por ele lado contrário do barraco do leme outro homem aparece, os olhos como braças, o rosto pálido e mudado. De uma olhada parece medir de pés a cabeça ao robusto homem que agora só parece atento a levar o navio. No chão, a seu lado, envolto em sua jaqueta de marinheiro, um menino negro dorme como um anjo e o rosto do jovem oficial se crispam de estranheza olhando-o, para voltar logo para contemplar com temor e curiosidade ao que chegou ao Galion prisioneiro e cansado. Por um longo momento vacila como se escolhesse cuidadosamente as palavras que vai 128 Pégasus Lançamentos dirigir lhe, como se lutasse entre dois temores, contendo com esforço sua ansiedade. Até que força ao fim um sorriso diplomático: — Saímos do apuro, verdade? Amainou a tormenta, e se não vejo mal, o que há à frente de nós são montanhas. — O Santa Catalina, o Montain, o Maiclán. Conhece você a ilha de Granada? — Neste caso, o único importante é que você a conhece. A capital se chama São Jorge. Tenho entendido que é um porto importante. Você saberá como nos aproximamos — rápido, o oficial troca seu tom lisonjeador, e com certo alarme, entrecorta: — Ouça, por que se desvia? Por quevolta assim o navio? O que é o que se proposto? Se pensar que vai burlar se de mim! — Acalme-se, oficial, e estorvo a mão do revólver. Tire-o, ou soltarei o leme e iremos todos ao inferno. — Já está tirada. Abusa você da situação. Não vai levar o navio a São Jorge? — Que eu saiba não nos perdeu enchente por lá. — Você escute — parece decidir o oficial — eu não sei do que está acusado nem que cargos há em seu contrário. Limitei-me a cumprir as ordens de meus superiores tomando-o preso e encarregando-me de sua custódia neste navio até entregá-lo às autoridades da Martinica. Já sei que as coisas há trocado. Não ignoro que lhe devemos um favor enorme. — Mas isso é o de menos, verdade? — observa Juan com fina ironia. — Já passou a tormenta, já não tem você medo… e já temos vista de uma ilha britânica. Que comodamente cumpriria você sua missão desembarcando, referindo o que aconteceu e fazendo transladar ao cárcere de São Jorge! Pensa que vou a, ter a ingenuidade de me entregar de novo a seus desmandos, para sofrer toda classe de vexames e brutalidades? — Prendemos-lhe na forma usual. Tinha você ficha de ser homem muito perigoso — pretende desculpar o oficial, um pouco apurado. — Lamento seriamente o que passou. Eu não tive intenção de me mostrar particularmente duro com vocês. — Particularmente, não, claro. Tampouco era preciso. Bastava com a forma usual de tratar aos que caem entre as malhas de suas leis sem ter influências, brasões ou fortuna. Pobres gente, pobres diabos! Para que guardamos considerações? Vale tão pouco a vida de um homem em desgraça! A de você mesmo, oficial, que vale agora que o navio está em minhas mãos? Vê você? Viramos. Proa ao norte. Sua ilha britânica fica atrás. Agora os papéis se trocaram. Basta-me fazer um gesto a um de meus homens para que lhe jogassem em você de cabeça ao mar. — O que diz? Joga comigo? O que é o que se há proposto? — Nada. Ao mais, lhe oferecer uma lição que não vai você a aproveitar. O que pouco vale a vaidade de uns galões, de um título de oficial, quando um homem está frente à desgraça! 129 Pégasus Lançamentos — O que vai fazer comigo? — Nada. Vamos rumo à Martinica. Cumprirá seu missão, só com umas horas de atraso. — A Martinica? Mas estamos muito longe, as máquinas não funcionam! Não poderemos chegar! — O vento se encarregará de empurramos. Chegaremos navegando a vela, que é quão único entende Juan do Diabo. — Realmente, não encontro palavra — declara o oficial surpreso, agradecido, e incluso no reposto do susto. — A Martinica. Quando pensa você que podemos chegar? — Estaremos no Saint-Pierre amanhã pela tarde, se o vento não trocar, — Se for assim, contará com nossa gratidão mais completa, e se posso fazer algo por você. — Sim. Encher minha pipa de tabaco e ordenar que lhe deem algo de comer a meus homens. Juan tornou a olhar a bitácora, desviou levemente a estibordo e estendeu o ardente olhar de seus olhos escuros pelo largo mar que lentamente vai aplacando-se, enquanto o sol rasga as nuvens e banha com luz dourada sua frente altiva, seu peito largo e alto, seus braços de bíceps poderosos, sua negra cabeça frisada. Lábios que se apertam como se não queriam deixar escapar a chave dolorosa de sua alma, a que vai, sobre os ventos e os mares, até a Mônica do Molnar. — Sim, aqui adoeci. Aqui estive a ponto de morrer. Aqui agonizei, e seus cuidados me salvaram. Cruzados os braços, o rosto com a expressão incrédula de quem escuta um inverossímil relato, ouve Renato as palavras da Mônica naquela mesma cabine do Lúcifer onde a vida da Mônica mudou. Toda a dor e toda a esperança das horas vividas entre aquelas paredes parecem renascer neste instante em que, juntas as mãos, revive a ex noviça as horas passadas. — Um triste lugar, Mônica. Dói-me a alma de considerar que por mim, por minha culpa. — Não é triste para mim este lugar, Renato. — Se tiver que julgar por seu aspecto, terei que te dar a razão. Mas não, não posso acreditar o que afirma. Há coisas que não cabem na razão, e a razão não pode as aceitar. Já sei que quer defendê-lo, que eleva entre você e eu sua reserva como um muro de gelo, e acredito adivinhar por que o faz. Não preciso pensar muito para calcular o que deveste sofrer entre estas paredes, o horror de viver aqui o compartilhando tudo com um homem que tão longe está de sua educação e de seus costumes. A mulher que você é, Mônica. — A mulher que eu fui, Renato, talvez, como supõe, não era capaz de compreender ao Juan. A que atualmente sou. — Basta! — curta Renato impulsionado pela ira. — Não mudam desse modo os corações nem as consciências. Sua transformação é física, exterior nada mais. Está mais formosa, mais desejável, é como uma flor capaz de fazer arder os 130 Pégasus Lançamentos sentidos do homem com apenas te contemplar. Mas, a que preço obtiveste isso? Que sofrimento, que sacrifício tiveste que dar em troca de que obtiveste? O que é em realidade esse homem para ti, Mônica? — Meu marido. Já sabe. — Compartilhava com ele esta cabine? . — Não. Bom. Quero dizer. — vacila Mônica. — Por Deus te peço que me fale claro! Enquanto esteve doente o viu seu lado; mas, depois? Diga-me a verdade; não minta Mônica. Por Deus vivo, não minta! — Eu estava sozinha aqui. — balbucia Mônica. — O foi para mim o melhor, o mais amável e respeitoso dos amigos. — Ah! — prorrompe Renato em uma exclamação de triunfo. — Nada mais? — __Bom, depois que estive doente, nada mais. __E antes? Diga-me isso tudo, Mônica. Peço-lhe isso de joelhos, suplico-lhe isso como um irmão, e te juro que nada do que me diga tenho que usá-lo contra Juan, se você não quiser que o faça. Mas há em suas relações com ele algo estranho, incompreensível, algo de que preciso estar seguro, e você não vai negar-me. É Juan seu marido em realidade? Foi dela? —Não sei Renato,duvida Mônica fazendo um esforço. — Minha vida se partiu, bifurcou-se. Tudo foi distinto desde aquela noite. Há um parêntese de sombra e de horror que inutilmente tratei que recordar. Foi como se morrera, como se caísse ao fundo do inferno. Depois foi como um lento ressuscitar. A mulher que fui até aquela noite odiava ao Juan do Diabo; a outra, a que voltou para a vida entre estas paredes, a que se olhou pela primeira vez a si mesmo como mulher na água clara de uma fonte, quando as mãos do Juan me inclinaram sobre aquela água, a que aprendeu de seus lábios o sorriso e de seus olhos a olhar ao sol, essa mulher. Essa mulher ama ao Juan, e lhe pertence. É a verdade, Renato, toda a verdade! Mônica terminou chorando, inclinou a frente, há-se coberto o rosto com as mãos, e permanece imóvel, deixando escorregar aquele pranto que produz no Renato inquietação e tortura. — Por que chora Mônica? Por quem chora? Diga-me por quem são essas lágrimas! — Que mais te dá? Não estamos preparados para partir já? Pois partamos! — Como manda. Somente estava esperando o parte da Capitania do Porto. Mandou-se fazer uma investigação sobre a sorte do guarda costeira. — O que quer dizer? O navio em que levaram ao Juan não chegou ainda a Martinica? — Faz uma hora não tinha chegado. Mas não há motivo major para alarmar- se. Esse, e todos os navios que estavam na rota do Sul, desviaram-se pelo temporal. Já irão aparecendo, já aparecerá o Gallón. 131 Pégasus Lançamentos — Se é que não naufragou! — augura Mônica com exaltação e angústia. — Se algo ocorreu ao Juan nesse maldito guarda costeira, se tiver perdido aí a vida, não poderia perdoar jamais aos culpados! — Confio em que não tenha sido a coisa tão grave, ao menos para me liberar da ameaça de que não me perdoe jamais — comenta Renato com forçada calma. E trocando de repente, exclama: — OH! Acredito que está aí a lancha com os pães. Foi para a amurada, e Mônica atrás dele, tensa e se desesperada.Mas o rápido passo do Renato se adianta. Um momento fala marinheiro que acaba de subir a escala do Lúcifer, da uma olhada lê o papel que este pôs em sua mão, e se volta para a Mônica, que chega ofegante. — Seu Juan do Diabo está a salvo. Este é um escritório caligráfico do Tenente Britton, que foi o encarregado de capturar ao Juan e de levá-lo custodiado até entregá-lo às autoridades da Martinica. — O que diz? O que diz esse escritório? — "Galión chegou ao Saint-Pierre atrás capear temporário no Granadinas. Capitão ferido e cinco baixas tripulantes. Salvou situação, perícia Juan do Diabo. Pedido pedir sejam tidos em conta serviços especiais". E assina Charles Britton, Tenente de Regulares Coloniais Britânicos na Ilha da Dominica. — Renato tem lido o escrito e logo, com suave ironia, comenta: — Um comprido cabograma e uma boa notícia para ti, verdade? — Não o é para ti? Acaso desejava que Juan? — Não, Mônica — assegura Renato nobremente. — Contra tudo que desejei, Juan é meu inimigo, mais inimigo a cada instante, mas não desejo para ele uma desgraça. Não posso desejá-la, porque o mais amargo de tudo isto é que nunca se aborrece por completo a um irmão. Não podemos abominar de nosso próprio sangue, sem nos abominar nós mesmos um pouco, e sem sentir também a dor que causamos. — Faz uma pausa, e repondo-se oferece: — E agora sim, vou cumprir seu desejo e a dar as ordens para zarpar. — Como? Você? Sozinha? — Sim, Governador, totalmente sozinha. Minha pobre sogra está extenuada. — Recebi umas linhas dela, me rogando. — Uma audiência mais. Mas demorou você tanto em responder. Ela estava rendida. Obtive que descansasse, e tomei seu lugar. Suponho que para você é igual — Suave, comedida, um gentil sorriso nos frescos lábios, responde Aimée às inquietas perguntas do governador da Martinica, voltando-se logo para seu única acompanhante: — Me aguarde aqui. Ana. Seguramente o senhor Governador me fará passar a seu escritório para que falemos um pouco mais. O velho governador vacilou. São mais das sete da noite, e um silencioso criado negro acendeu os grandes abajures do escritório, a cuja luz dourada, Aimée do Molnar parece mais bela que nunca. Sem esperar outro convite, cruza pela porta entreaberta, deixando ao outro lado à escura donzela acompanhante. 132 Pégasus Lançamentos — Realmente, minha jovem senhora, muito me temo que tenhamos esgotado o tema esta manhã — tenta desculpar o governador, um pouco turbado. — Falei com dona Sofia com absoluta sinceridade, pus as cartas de barriga para cima, mas este assunto vai complicando— se mais e mais até chegar a ser desesperador. Além disso, tudo parece acontecer de acordo para lhe dar um tom espetacular. — Então, é verdade o que contam? Comportou-se Juan heroicamente? Salvou o navio? — Se tivermos que acreditar no Charles Britton, haveria para condecorar ao tal Juan do Diabo. — E por que não temos que acreditá-lo? — Não reúne essa atitude com os cargos que lhe fazem, mas basta um pouco de fantasia para que a imaginação popular se transborde e a opinião pública comece a voltar-se contra nós, especialmente contra Renato e de sua irmã de você. — Mas o nome da Mônica não figura nesse processo para nada. — Quem ignora que é ela a chave de todo este enredo? Juízes e testemunhas estão desejando atirar da manta. Por algo não queria eu fazer caso das acusações, por algo resisti tanto ao empenho do Renato D'Autremont. Mas este pôs as coisas em um terreno que não pude me negar, e agora. Agora você vá, ou seja, até onde chegará à lama! — E se eu pedisse a você um enorme favor pessoal? — Estou ao seu dispor, mas lhe suplico. — Queria falar a sós com o Juan do Diabo. Certamente, uma entrevista absolutamente privada. Por que não me dá a oportunidade? — A você? A você, precisamente? Não seria acender os falatórios ainda mais? — Mas sim não se inteira ninguém. — Essas coisas, por muito que queiram ocultar-se. Uma mulher como você não passa inadvertida. — Posso trocar de roupa com minha donzela, aproveitar a escuridão da noite, me tampar totalmente a cara com este xale. Eu me encarrego de fazer as coisas com uma discrição absoluta. Se você me der o salvo conduto, corre de minha conta todo o resto. Ninguém saberá nada. Ficará entre você e eu, e os dois sabemos calar — aproximou-se dele sorridente, insinuante, lhe envolvendo na baforada de perfumes que sua pessoa exala, e sorri vendo tremer as mãos enrugadas. — O agradecerei toda a vida. Governador. Estou absolutamente segura de conseguir que as coisas mudem. Um salvo-conduto, quatro linhas suas assinaturas com seu selo. — Está bem. Aguarde. O governador assinou. Ainda vacilante olha ao Aimée, que sorri triunfadora, lhe arrebatando quase o papel de sua mão. — Saint-Pierre. Saint-Pierre? — Sim, Mônica, estamos chegando. Mas se ainda tenho direito a te dar um bom conselho, se até posso te suplicar algo, peço-te, peço-te que siga caminho para 133 Pégasus Lançamentos Campo Real. Sua mãe te aguarda lá. Sua irmã ficou muito angustiada. Minha própria mãe... Tomando as mãos da Mônica, como em um repentino arranque, falou Renato, e treme a súplica em sua voz que se quebra de angústia. Mas Mônica retrocede, esquivando daquelas mãos e rechaçando com decisão: — Não me moverei do Saint-Pierre; não me afastarei do Juan. E se houver algo que seriamente queira fazer por mim, se for eu a que ainda posso te rogar, te suplicar, te implorar algo, é justamente que me ajude a me aproximar dele esta mesma noite. É preciso que eu lhe veja que eu lhe fale que saiba o que pensa e o que fará. Você pode Fazê-lo, para mim é indispensável. Acredito que me voltaria louca se me negasse isso! — Está bem, Mônica, te acalme. Não precisa me suplicar dessa maneira. Farei o possível. Acredito que, como esposa legal do Juan do Diabo, tem direito a chegar até ele. E se for preciso, eu mesmo tenho que te levar. Arrastando a sua donzela, envolvendo-se no amplo xale de seda para ocultar o mais possível seu rosto e seu talhe, baixa Aimée a toda pressa as largas escadas da casa de Governo até sair por aquela porta lateral, um pouco dissimulada, que esquiva os grupos de curiosos e a vigilância oficial da entrada do frente. Ali está parado o carro que a trouxesse; rapidamente, ama e faxineira sobem a ele, e Aimée ordena ao chofer: — Me ouça, Cirilo. Vai dar a volta muito devagar. Vais levar-nos a passo por atrás do Hospital e te aproximar do Forte de São Pedro pelo flanco. Quando estivermos ali, direi-te o que faz. Anda arranca. — Ai, minha ama! — lamenta-se a assustada Ana. — Você como que vai meter se em uma confusão muito grande. — Baixa as cortinas e te dispa — recomenda Aimée excitada. — vamos trocar-nos de roupa. Me dê sua blusa e sua saia. Vais pôr-te meu vestido, e a te envolver em meu xale. Dará-me seu lenço. Não, espera! Com o xale vou ficar-me eu, para me tampar a cara se fizer falta. Toma este véu. — Ai, minha ama, minha ama. — queixa-se Ana. — Você como que se tornou ta rumba com tanto susto. — Faz tudo o que te digo, sem replicar, estúpida! Temos os minutos contados. Quando passarmos junto ao Forte, vou baixar-me. Ao ficar sozinha, levanta as cortinas para que lhe vejam. Tampa-te bem a cara com o véu, esconde as mãos. Melhor ainda, ponha estas luvas. Vai dar uma volta pelas ruas principais: pelo Passeio do Porto, pela Avenida Víctor Hugo. Quero que lhe vejam muitos e que todos criam que sou eu a que estou passeando. — Mas, minha ama. — Saint-Pierre é uma colmeia de intrigas. Não faltarão os comentários. Todo ele mundo conhece os carros dos D'Autremont. Bom, já chegamos. Dentro de meia hora passarão para me buscar por este lugar e elevando a voz, representa a comedia: — Cirilo, para um momento. Vou deixar a Ana fazendo. Uns encargos. Inteira-se bem da direção dessa costureira, Ana. Dentro de meia hora voltaremos por ti — 134 Pégasus Lançamentossaltou a terra, e ordena: — Segue Cirilo! Pelo centro e sem parar em nenhuma parte. Apura um pouco aos cavalos agora. Aimée ficou sozinha juntou à sombria fortaleza. Ninguém se vê ao longo da deserta cale. Um sentinela faz o guarda junto às grades, à luz tremente de um acendedor de gás. Rodeando mais o xale a sua cabeça e a seu corpo estatuário, Aimée do Molnar vai para aquele homem, ao que informa imperiosamente: — Trago uma permissão do senhor Governador para ver em seguida ao detido Juan do Diabo! — O Governador não está na cidade, Mônica. Saiu para o Fort do France fará uma hora escassa, e provavelmente permanecerá ali vários dias. Acabo de falar com o secretário. — E a quem deixou encarregado de seus assuntos? — Pelo visto, a ninguém. Seus assuntos partem sozinhos, e somente com uma permissão assinada por ele se pode visitar no cárcere a um detido, em vésperas de processo. Sinto muito, Mônica, sinto-o com toda minha alma. — Então, quer dizer que te dá por vencido? — Não me ocorre o que posso fazer. Fecham-me os caminhos legais. —E você, naturalmente, não sabe outros. Está bem, Renato. Obrigado por tudo. Então, me deixe. Renato se pôs que pé lhe fechando o passo, detendo seu gesto de fuga. Estão já no Saint-Pierre, na sala de espera daquela pequena casa, muito perto dos moles, onde por tantos anos habitasse o notário Pedro Noel. É ali aonde Renato levou a Mônica procurando para ela um lugar afastado dos hotéis, um lugar familiar onde libera-la da curiosidade que já rodeia seu nome. Pela única janela aberta penetra o ruído da pequena e populosa dividem, e na porta da vasta estadia aparece à figura familiar do Pedro Noel, com uma expressão de profunda surpresa nos olhos cansados: — Mônica. Renato. Mas quanto honra! — Nos perdoe por ter tomado sua casa por assalto, mais Mônica pretende um impossível. Seu único desejo é ver o Juan esta mesma noite, mas o Governador saiu para o Fort do France e só ele pode dar o salvo conduto necessário. — Me perdoe se me custar trabalho compreender o que você me diz, Renato. — Não me surpreende seu assombro. Noel. Mas isto não é nada. Mônica reserva a todos grandes surpresas. — Já o vejo. Sua atitude é verdadeiramente admirável. Acredito que posso ajudá-la, minha filha. Quem fez a lei, fez a armadilha. Eu conseguirei que você fale esta noite com o Juan. — Noel. Mônica foi para o notário, lhe estreitando as mãos, tensa de gratidão a alma, enquanto o velho servidor dos D'Autremont deixa transbordar a corrente de sua sinceridade: 135 Pégasus Lançamentos — Conte comigo para tudo. Para tudo! Também eu, a meu pesar, sofro e tremo pela sorte do homem, como também pela do moço. Também eu penso que, no fundo, Juan. — Basta! — atalha Renato com Brutalidade. — Não necessita você fazer o panegírico. Com que cumpra a Mônica a palavra que deu, será o bastante. Suas declarações são absolutamente extemporâneas. Noel. — Me desculpe Renato, não sempre pode calar-se — recorda Noel com dignidade e fazendo esforços por não perder o gesto equânime e afável. — Mas, enfim, me desculpe, e mãos à obra. Na porta está o carro. Você venha comigo, Mônica, terá que aproveitar a oportunidade no instante em que se presente. — Vou eu também — indica Renato. — Não é necessário — recusa Mônica. — Irei embora não deseje minha companhia. Não tenho feito o que tenho feito para te negar o apoio no momento em que mais possa necessitá-lo. — Não quero forçar seus sentimentos! — Você tem um plano, e eu outro, Mônica. Não estou estorvando o teu, nem estou te fechando o passo, como supõe. Ao contrário, quero que livremente faça o que te dite sua consciência. Permita-me a eu satisfazer à minha em troca. Se Noel fizer o milagre de conseguir a entrada ao Forte de São Pedro, deixarei-te a sós com seu Juan. — Meu amo. Meu amo. Olha para lá. Ao chamado de Colibri, Juan se elevou devagar no escuro rincão onde deixa seu corpo repousar. É uma das enormes galeras semi-subterrâneas, abertas no mesmo coração das rochas, base e entranha do velho castelo de São Pedro, uma de tantas fortalezas que, como bandeiras de conquista, cravaram os governos coloniais sobre as ilhas do Caribe. O teto é muito baixo, as paredes jorram umidade, mas através da larga grade que fica justamente à altura da cabeça do moço, vê-se o piso de granito do largo pátio, o arco da entrada interior, o farol, e, a sua luz vacilante, a silhueta de uma mulher que parece discutir com o sentinela, mostrar uma vez mais o papel que traz rodear logo com mais força, ao corpo fechando, o xale de seda, e seguir, a um gesto do sentinela, os passados do guardião carregado de chaves. . — É a ama. — assinala Colibri. — Mônica? Mônica aqui? — Seguro que vem a tiramos, patrão. Ela não queria que os soldados me levassem. Ela é muito boa. — Cala! O coração do Juan tremeu. Com um esforço de sua vista de águia pôde perceber as coisas mais claras apesar da escuridão. A mulher que se aproxima alta, magra, flexível, de andar sensual, tem algo no ar que não concorda com a saia colorida, com o típico traje das mulheres mais humildes que parece levar como um disfarce. Um raio de insensata esperança banhou sua alma. Cada um daqueles passos que sente aproximar-se é como um golpe de seu coração, estremecendo-o, despertando-o, fazendo-o pulsar de novo ao influxo quente do sangue. Como um 136 Pégasus Lançamentos lanzazo de ouro, com ferida luminosa, sente que ama a aquela mulher, que treme por ela, que por ela aguarda, que a si mesmo se apresenta já cem explicações, cem desculpas. Contendo o fôlego vê abrir as grades, elevar-se a mão do carcereiro para pôr um tocha aceso no gancho de ferro da entrada, e retroceder, dando passo à mulher que se aproxima da luz avermelhada e fumegante daquela iluminação primitiva. — Juan. Meu Juan. Aimée se arrojou nos braços, que não a rechaçam que a sustentam sem estreitá-la, que a oprimem tensos de uma emoção sem nome, enquanto a alma inteira do Juan, um instante aparecida na luz do dia, treme antes de sepultar-se, caindo até o fundo do mais profundo abismo de sua vida, enquanto murmura surpreso: — Você. Você. Foi você. — Quem a não ser eu podia vir a te buscar onde esteja como está por cima de tudo? Quem a não ser eu te quer com toda a alma, Juan? Com toda a alma! — Por aqui, com cuidado — recomenda o velho Noel — Me dê você à mão, Mônica, o piso está muito escorregadio, mas é precisamente neste pátio onde temos que aguardar. — Não lhe deu esse homem nenhum papel? — pergunta Renato em voz baixa e mal humorada. — Não me pode dar isso Como alcaide da fortaleza, é sua toda a responsabilidade do que ocorra com os detentos, mas não tem autoridade para assinar salvo condutos. Nem sequer em um caso tão delicado como este se atreve a dar uma ordem verbal, mas nos proporciona a oportunidade de que aproveitemos a mudança de guarda. Agora falarei com o cuidador destas galerias, que é o homem das chaves. Durante quase quinze minutos está este pátio sem guarda de soldados, e é o tempo em, que Mônica pode entrar na galera do Juan e lhe falar sem testemunhas, enquanto você e eu a esperamos. — Sim, se, o agradecerei toda minha vida! — assegura Mõnica. — Espere — adverte Noel. — Acredito que nosso detento tem um visitante. Através do muito largo pátio viram a luz avermelhada do tocha que ilumina a galera. Estão no ângulo que formam dois grossos muros, e sobre suas cabeças, pelos estreitos passadiços dos muros, cruzam os sentinelas montando guarda. Assim que deixem de cruzar esses bisbilhoteiros, aproximamo-nos, e entra você na cela, Mônica — indica o notário. — Tenho entendido que o encerraram sozinho com o moço que era grumete de seu navio. Outros estão no outro pátio. — Por favor, cala Mônica acreditou ouvir uma voz, uma palavra, uma frase que o ar leva até seus ouvidos, e contém a respiração para escutar, mas sóchega o passo monótono dos sentinelas, só veem seus olhos ofegantes aquela grade iluminada depois da que se movem formas confusas. 137 Pégasus Lançamentos Bruscamente, Juan retrocedeu, cortando de um puxão o nó daqueles braços rodeados a seu pescoço, como se ao arrancá-los queria arrancar-se também a angústia que lhe afoga que lhe atende a garganta, como se toda esta angústia estalasse em um impulso brutal contra aquela que empalidece frente a sua rudeza. . — Para que vieste? O que deves busca aqui? Quem te mandou para mim? Sua irmã? Seu marido? — Basta, Juan! Nunca fui a ti mandada, vim por minha própria conta, porque estou de sua parte, porque não quero fazer-me cúmplice da infâmia tramada contra ti. Vim já lhe disse isso, já o gritei ao entrar: vim porque te quero. Quero-te, embora cem vezes me tenha desprezado, embora rechace minhas carícias, embora responda com insultos às palavras com as que te entrego a alma. Vim me expondo a tudo, e essa é a gratidão que me demonstra? Se você soubesse o que sofri, o que chorei por não ter tido o valor de ir contigo! Fiz mal. Sei o que fiz mal. Mereço seus insultos, mas não seu ódio; mereço seu rancor, mas não seu desconfiança. Por que estou aqui, mas sim porque te quero, porque não posso viver sem ti? —E sua irmã? Onde está sua irmã? Juan deteve o gesto com que Aimée vai jogar se em seus braços, acreditando no fim vencida sua resistência. E mais que seu gesto, é terminante cerca daquela ferro pergunta que escapou que seus lábios com força brutal, e que outra vez estala imperiosamente: — Onde está sua irmã? O que faz? Está de acordo com o Renato, verdade? Foi coisa sua tudo isto? Foi coisa dela? — É tudo que te ocorre me responder? — reclama Aimée ofendida. — Não estou respondendo, a não ser perguntando! O que sabe da Mônica? Foi você com o Renato a a Dominica? Foi ele sozinho a procurá-la? O que moveu tudo isto? Uma carta da Mônica, verdade? Por Deus vivo, fala! — É isso tudo o que te interessa? — reprova Aimée indignada. — Meu amor, minha loucura, minha presença aqui, me expondo a quanto me exponho, não significam para ti absolutamente nada? É um miserável um ingrato, e eu a única estúpida em tudo isto! O que me importa que lhe acusem do que queiram que lhe julguem juízes comprados e que lhe afundem para sempre em um cárcere? O que me importa que acabem contigo se você não for mais que um ingrato? — O que está dizendo, Aimée? — pergunta Juan visivelmente aniquilado. — O que é o que há dito? — Que é um estúpido, um iludido, um menino a quem qualquer engana! Interessa-te Mônica, importa-te o que ela possa pensar de ti, está tratando de averiguar comigo se for ela quem te denunciou verdade? Pois bem, só um parvo faria semelhante pergunta. — Por que um parvo? Eu não fiz nada contra ela! O que diz ela que fiz? — Ah, não sei! Provavelmente horrores, quando Renato toma a atitude que tomou. Renato e todos. Dona Sofia, até minha pobre mãe, que não se mete em nada, quase se voltou louca quando lhe levaram a carta da Mônica. — A carta da Mônica? Escreveu Mônica a sua mãe? 138 Pégasus Lançamentos — É que não sabe? — Tinha a suspeita, mas não houve tempo material de que chegasse a carta que eu pensei pudesse ser a sua. Para que isto tenha sido provocado por uma carta da Mônica, teve que escrever desde antes, desde muito antes. Mas, quando? Como? — Ouvi dizer algo de um médico. — Aí O doutor Faber! Escreveu o doutor Faber, né? — Quando eu digo que é um parvo, que confia em primeiro que chega. — Eu não confio em ninguém, e de ti menos que de ninguém. Provavelmente memore para fazer me odiar isso! Quer que a aborreça que a julgue traidora! Não é a primeira vez que tenta fazer me pensar isso. Quer que a odeie que vá contra ela! — Penso que é ela a que tem que te odiar. E você, como homem, vingaste. — Não me vinguei! Dela não tênia por que me vingar. Não me fez nenhum dano voluntário. Foi uma vítima das circunstâncias. Vítima de sua maldade e de suas intrigas; vítima do egoísmo e do ciúmes do Renato. Fui contra ela em um momento de cegueira, mas nem é culpado, nem. — Juan se interrompe de repente e com grande ira, pergunta: — por que te sorri desse modo? — Me perdoe. Juan — desculpa-se hipócrita mente Aimée, dissimulando sua satisfação. — Te acalme. É um verdadeiro tigre. Não terá que tomar assim as coisas. Se tivesse um pouco mais de mundologia, não te surpreenderia por nada. Já vejo que Mônica te interessa extraordinariamente. É o mais imbecil dos homens, o mais cego e o mais estúpido! Não te dá conta de que, em realidade, as únicas vítimas são você e eu? — Você? Você vítima? — Você e eu! Refiro aos fatos. Onde está? — Detido, certamente. Mas não me podem acusar de nada. Demonstrei quem sou durante o temporal, e agora lhe farei frente ao que venha, e minha inocência ficará provada. Não fiz nada contra Mônica. Tenho testemunhas. — Que ingênuo é! Pensa que vão te acusar de havê-la maltratado? Não! Há mil coisas das que lhe acusam. Mil coisas que têm um fundo de verdade. Mil coisas com as que vão afundar-te sem remédio. Já o verá. Mônica não te acusa. Ela fica à margem. Provavelmente, se a chamarem a declarar, fará-o em teu favor. Pode que até te dê publicamente as obrigado por suas cuidados quando esteve doente. O que importa isso se estiver bem segura que não vais escapar, porque lhe tenderam um laço do que ninguém se salva? — O que diz Aimée? — Quando soube, não pude suportá-lo. Joguei-me o tudo pelo tudo. Com enganos obtive que minha sogra me trouxesse para a capital. A costas delas, embora usando sua influência e seu dinheiro, levo três dias lutando para que as coisas não sejam tão malotes para ti. Movi influências, vali-me de minhas antigas amizades, chorei e suplicou aos pés do Governador. — Não. Não é possível! Não é verdade o que diz! 139 Pégasus Lançamentos — Como acredita que entrei? Olha: um salvo conduto firmado por sua mão. Obtive-o, lhe prometendo em seu nome, lhe jurando, que seria comedido em suas declarações de amanhã. Querem te esmagar, mas lhe têm medo ao escândalo, sobre tudo minha sogra. Já sabe. Odeia-te, aborrece-te. — Essa se! — E também outros — desliza Aimée, suave e pérfida. — Acredita que não conheço o sistema monge de minha irmã? Só contigo, entregue a seu arbítrio, certamente ficou tenra, carinhosa e suave. Até te faria acreditar que gostava. — Jamais! Nunca perdeu a dignidade! Nunca deixou de ser a mulher alta e pura que... — O que é isso? O que é isso, Juan? — interrompe Aimée um pouco assustada ao escutar o toque de uma corneta longínqua. — Não sei. Provavelmente a mudança de guarda. — OH, que louca sou! Tenho que ir tenho os minutos contados. — Não irá me haver enlouquecido! Não irá acabar de falar! — Pois bem, não me interrompa e me ouça até o final. Tudo isto veio pelas cartas ou pelas notícias da Mônica. A mim não me informou mais que pela metade, mas estou absolutamente segura de que essa é a verdade. Já sabe que ela quer ao Renato, que o quis sempre, e eu tive a ingenuidade de dizer-lhe a ele. Adulado em sua vaidade de homem, está agora completamente de parte da Mônica, e lhe quer tirar isso por todos os meios e sem lhe importar nada. — Canalha. — revolta-se Juan mordendo as palavras. — Mas, e ela? — Ela é cera branda em suas mãos. — Não! Recordo! Ela me disse que sua vida tinha trocado, que ao lado meu tudo era distinto. Que era feliz. Sim. Disse-me que sentia algo o que podia chamar-se felicidade. Disse-me isso bem claro! — Mônica é professora nas artes da dissimulação. Não esqueça nunca esse pequeno detalhe. Renato quer desfazer-se de mim, e algo que você diga de nosso passado a usará contra mim para obtê-lo. — De nosso passado? — Tem que te calar isso, Juan. Calar aconteça o que acontecer! Acusarão-lhe de contrabandista, de pirata, por dívidas,por embargos, por rixas. Amontoarão cargos contra ti. A Mônica não a nomearão, não querem que você dela fale, querem evitar o escândalo, já lhe disse isso antes. E se você não o provoca, o Governador me prometeu que os juízes serão benévolos. Se não provocar um escândalo, posso te salvar, e te salvarei Juan, salvar-te. Serei eu quem lhe salve. — Mônica, agora é o momento — assinala o velho notário ao ouvir o toque longínquo de uma cometa. — Vamos — convida Renato. — Não, Renato, seria uma imprudência — adverte Noel. — você e eu aguardamos. Mônica sabe perfeitamente o que tem que fazer verdade? Dê a volta, caminhe sem deixar a sombra do muro. O homem das chaves lhe abrirá, deixará-a 140 Pégasus Lançamentos passar. Quando soar de novo a corneta, despeça-se e volte aqui pelo outro lado. Sairemos do Forte sem ser vistos, e do que você fale esta noite com ele dependerá certamente o julgamento de amanhã. Com passo rápido e silencioso lhe deu Mônica a volta ao largo pátio. Já está perto, muito perto, a só um passo da larga grade. À altura de seus joelhos, saindo da galera semi-subterrânea, o resplendor avermelhado do tocha. Tremendo, inclinou-se para olhar um momento. Sim, ali se encontra Juan, mas não está sozinho. Uma mulher está junto a ele. Uma mulher de costas à grade, e os olhos da Mônica se aumentam de surpresa, de espanto. Não pode lhe ver ainda a cara, mas treme como se um grito de seu próprio sangue denunciasse o sangue irmã que há baixo aquele disfarce. Seus joelhos se dobraram, suas mãos se enchumaçam a grade, a seu ouvido chega, como o veneno mais sutilmente destilado, uma voz muito familiar, a voz trêmula de desejos e de ânsias do Aimée: — Não tem que me agradecer nada. Sou tua para sempre, como você é meu, e ninguém te arrancará de meu coração porque te quero e sou tua, Juan, só tua, embora não possamos proclamar-lo, embora nos seja preciso fingir e calar. Pelo menos até que consiga te salvar, até que se abram para ti as portas deste cárcere, até que vença todos os obstáculos. Então irei aonde me leve e te pertencerei em corpo e alma, embora já te pertença desse modo. Mônica fechou os olhos, mordeu-se os lábios até sentir neles o sabor amargo do sangue. Logo, como impulsionada por uma força irresistível, arrancou-se daquela grade e pôs-se a andar como uma sonâmbula. — Mônica, de volta já? — surpreende-se Noel. — Mas, todavia não soou a mudança dê guarda. — Tão logo? Por quê? O que passou? — indaga Renato também surpreso. — Nada — proclama Mônica com voz afogada. — Mas, por que acaso o carcereiro. Havia-me prometido abrir a grade. — A grade não está fechada, mas Juan não se encontra sozinho. Suponho o que se trata de seu advogado. Alguém que promete salvá-lo. — Então, não quer você lhe ver? — pergunta Noel. — Verei-lhe no julgamento. — No julgamento não tem por que te apresentar — refuta Renato, — As acusações que há contra ele não lhe concernem, e nem sequer como testemunha está citada. — De todos os modos, irei. Amanhã estarei no julgamento cumprindo com meu dever de dizer a verdade. Esta noite não tenho nada que fazer junto a ele. Me leve a casa, Renato, me leve a casa. — Cristo! — silencia Noel. — Acredito que já sai o visitante. Sim, como você supõe, é o advogado, eu gostaria de lhe falar. — Não, não! Vamos, vamos!Me leve em seguida, Renato! Quanto antes! — Deixa-me ir sem uma palavra, sem um consolo, sem uma esperança. 141 Pégasus Lançamentos Aimée chegou até o Juan, lhe cravando no braço os finos dedos nervosos, e procurou com ânsia suas pupilas à luz avermelhada do fumegante tocha que já se apaga. O nada responde nada respondeu durante muito momento no que a ouviu sem escutá-la ausente a alma e amargas os lábios. Não, não pensa nela, não a vê frente a ele. Sua imaginação lhe leva longe, muito longe, percorrendo hora por hora, dia por dia, etapa por etapa, aquela estranha viagem em que o Lúcifer sulcou os mares levando-a Mônica do Molnar. Acredita vê-la, acredita escutá-la, e murmura como para si: — Mônica. Mônica capaz de fingir, de mentir, de enganar. Mônica como todas: hipócrita e leviana. — Como todas disse? — ofende-se Aimée, e com perfídia adiciona: — Hipócrita, sim; mas não a culpe, pois é natural. É fiel a seu amor pelo Renato, como eu o sou ao meu. As Molnar são fies, embora você pense o contrário. — Me deixe! — revolve-se Juan irado. — Naturalmente que tenho que te deixar. Já vem o carcereiro. Acaso quando ficar sozinho pense em quanto arrisquei por me aproximar de ti e em todo o amor que despreza ao me desprezar. É cruel, Juan, cruel e ingrato, mas na vida essas dívidas se pagam! Vim em são de paz, mas não esqueça que quem pode te salvar pode também te perder, que sua liberdade, e acaso sua vida, estão em minhas mãos. — Se for assim, pode fazer delas o que queira! — Não te importa? Não te importa mais que Mônica, verdade? Pois se tiver que te falar com franqueza, não te acredito. Está fingindo para me enlouquecer, para me torturar. Sempre teve um prazer selvagem em me fazer chorar! Vais arrepender- te. Juro-te que vais arrepender-se te! Se chegar a obter que eu me converta em sua inimizade, desejará não ter nascido, Juan! Capitulo 13 — Mônica. Mônica. Não me ouve? Como retornando com uma sacudida, Mônica tornou levemente a cabeça para olhar ao Renato sentado junto a ela, na carruagem detida frente à entrada principal do Forte de São Pedro, e Pedro Noel contempla com inquietação e desconfiança a aquele esplêndido casal que parece 142 Pégasus Lançamentos ignorá-lo: ela, como afundada em seus pensamentos; ele, miserável a ela como por uma força superior a sua vontade. — Deste uma grande prova de sentido comum não entrando nessa cela em que ia verte um estranho. Entretanto, tivesse-me gostado de saber que classe de advogado vai defender ao Juan do Diabo. Renato observou com ânsia o rosto da Mônica, que permanece imóvel, impassível, fechado em um mistério que é para ele insuportável. Só um reflexo de angústia aparece às azuis pupilas da Mônica, quando percorrem a larga praça, para voltar-se logo a ele, interrogadora: — O que esperamos aqui? Por que não vamos? — Quando gostar. Se quiser ser absolutamente razoável e me permitisse te levar até Campo Real. Ali estão todos. — Me perdoe Renato — intervém Noel. — Esqueci lhe dizer que donas Sofia e Aimée estão no Saint-Pierre desde ontem pela tarde. Em vão lhes adverti que provavelmente você se desgostaria, mas dona Sofia respondeu que tampouco se cuidava você muito de não as desgostar a elas. — Fazia mais de vinte anos que minha mãe não visitava Saint-Pierre — adverte Renato visivelmente molesto. — Sempre se negou a acompanhar a meu pai. Odiava a cidade, o caminho, a carruagem por largas horas. Em que lugar está? Não terão ido a um hotel! — Dona Sofia se instalou na velha casa de vocês, fechada da última vez que dom Francisco esteve no Saint-Pierre, faz mais de quinze anos. Trouxe servidão, e parece decidida a passar uma temporada. — Farei-as desistir desse capricho absurdo. Nada têm que procurar na capital, nem você tampouco, Mônica. Vamos lá. Acredito poder as convencer. O único razoável que podem fazer é seguir caminho esta mesma noite. — Não me leve a sua casa, Renato. Peço-lhe isso, o exigirei se for preciso! Não irei a não ser a minha casa. — A sua casa? A sua casa de perto da praia? Mas é absurdo! Ali nem sequer tem serviçal. — Quero estar sozinha, quero proceder livremente como o que sou: a legítima esposa do Juan. E sua adversária no julgamento contra ele. É o lugar que me corresponde, e saberei enchê-lo apesar de tudo. — Apesar de tudo? É uma forma de confessar que deve ofensas ao Juan! Entretanto — Entretanto, cumprirei com meu dever, Renato. Me leve a minha casa, ou me descerei do carro e irei eu sozinha por meus passos. — Não pode ficar reveste em um lugar como esse. —Só tenho que estar a partir de agora em adiante. Entende o de uma vez por todas, Renato. Devo estar sozinha, quero estar sozinho, preciso estar sozinha. Tremeu em seus olhos o fulgor de uma lágrima, e Renato D'Autremont se remói os lábios para conter a frase raivosa a ponto de escapar, e acata: 143 Pégasus Lançamentos — Está bem. Como quer. — E elevando a voz, ordena ao chofer: — Esteban toma o caminho da praia. Vamos à casa dos Molnar. Como uma sombra cruzou Mônica as largas habitações fechadas. Não se deteve nem sequer para abrir as janelas; como se uma rajada de desespero a impulsionasse corre para o largo pátio, chega até o arvoredo do fundo, afunda-se entre a folhagem, abre a porta da grade que dá sobre os escarpados, e um instante fica imóvel sobre a negra rocha, frente ao mar agora banhado por uma lua cheia de prata. Uma fina chuva salobre a banha a cada golpe de mar, mas ela avança sobre as rochas escorregadias até o mesmo bordo no que bruscamente a terra se acaba. Lá está o Lúcifer. Vê balançar-se seus nus mastros, e uma dor queimante, que tem amargura de ciúmes, transborda-se em lágrimas que chegam a seus lábios mais amargas que a espuma salobre que arroja o mar: — Juan. Juan. Até é dela, até lhe pertence. Para sempre lhe pertencerá. É mendigo de seus beijos, escravo de sua carne. Não é certo que te queira com toda sua alma. Acaso tem alma? Não, não a tem nem vale a pena de te-la! Que feliz será com ela nessas ilhas selvagens! Com quanta ânsia a amará sobre as praias desertas. E eu serei só uma sombra de quem um dia teve piedade. — Mônica. Mônica. Mas, está louca? Vai escorregar, vai cair ao abismo! Por favor, venha. Venha. Pedro Noel se aproximou da Mônica e a arrastou, quase à força, do bordo do escarpado, e clava nela sua angustiada olhar interrogadora: — Mônica, que fazia você ali? Não iria você A? — Não, Noel, sou cristã. — Mas, por que mudou que esse modo? O que pôde fazer que você trocasse assim? Quem estava com o Juan? — O que importa um nome? — evade Mônica com profunda desilusão. — Eu cumprirei com meu dever amanhã. Nada mais. E agora. Noel. Sobrepondo-se ao soluço que sufoca sua garganta, Mônica estendeu o braço com significativo gesto que assinala ao Noel o caminho da deserta cale. — Não posso deixá-la sozinha, Mônica. Roguei ao Renato que me deixasse retornar, com a esperança de que minha presença não lhe desagradasse, que minha companhia fosse passível. Mas. — Me perdoe Noel, mas neste instante. — recusa Mônica contendo com muita dificuldade sua impaciência. — Dou-me conta que neste instante não está você para cortesias, e não é isso o que espero, a não ser realmente não incomodá-la. Além disso, tinha um interesse, uma esperança que você há desvanecido. Não era um advogado quem estava na cela do Juan, a não ser uma mulher, verdade? — Sim, Noel. Não, não era um advogado. Mas, Por Deus, cala! — Calarei. Quem o duvida! Certamente que tenho que calar. Mas, quer que lhe diga o que faria eu em seu lugar? Dizê-lo a gritos, não guardar considerações de nenhuma classe. Já basta, sabe você? Já basta! — Roguei-lhe que cale! E também que me deixe. Noel. Não vai ocorrer me nada. Só preciso estar sozinha, me achar a mim mesma. 144 Pégasus Lançamentos — Me perdoe Mônica. Só estava calculando seus sentimentos, tratando de ver e de apalpar até o final o que de repente me pareceu um impossível. Você, minha pobre menina, ama ao Juan. — Não. Não. Por que tenho que amá-lo? — protesto Mônica sem convicção. — Guardo para o Juan um pouco de gratidão, isso é tudo. — Mônica, por que não falamos com franqueza? — decide-se Noel. — Não me olha como um inimigo do Juan. Não fui nunca. Não me olha como um empregado da casa D'Autremont. Fui e, provavelmente, sê-lo-ei até que morra. Mas os sentimentos são à parte. Bom, a verdade é que não devo seguir falando. Seria indiscreto. — Não, Noel, não é indiscreto. Sei perfeitamente quem é Juan, e por que seguiria você servindo à casa D'Autremont até pondo-se de sua parte. Além disso, isso é um segredo a vozes, que acredito não o ignora ninguém. Sabem esses juízes, que verão de que lado se inclina a balança; sabe o povo, que já murmura; sabe a aristocracia, que finge ignorar o que em certo modo a mancha; e, certamente, saberá esse governador que foge para esquivar responsabilidades. — Vai você muito longe, Mônica. — Não, Noel. Quis ir muito longe, mas foi só depois de um sonho impossível. Outra vez estou na realidade, despertei, e são estas pedras, é esta praia, é este mar, quem me impõe a verdade que o coração rechaça. O sonho ficou longe. Nas praias de São Cristóbal, nas velhas ruas da ilha de Saiba, na fonte onde apareceram juntos nossos rostos, nos buscando a alma. O sonho só viveu em mim, só esteve em minha mente, só eu lhe dava calor humano. Era uma ilusão, e se desvaneceu; um castelo de naipes que o primeiro sopro derrubou. Juan é o que sempre foi que sempre será só que se hão perdido as rotas, enredaram-se os caminhos. Ele é o que foi sempre, e eu não sou nada, não sou ninguém. — Equivoca-se. Você é quão única pode tirar o Juan do abismo em que está. Não se deixe levar por um sentimento de violência. — Não, Noel, já não. Isso foi antes, quando meus olhos estavam deslumbrados. Foi um momento de luz muito vivo, foi à única hora de sol de minha vida, mas o sol se apagou e agora parto outra vez a provas pelo túnel de sombras. Mas não se preocupe, conheço muito os caminhos da dor e do abandono. Conheço- os tanto, e me são tão familiares, que não tenho, mas sim me deixar levar por eles. No caminho de minha vida, a única intrusa é a esperança. E agora, me deixe. Noel, e vá-se tranqüilo. . Veremo-nos amanhã nos tribunais — Aceita minha companhia? Posso vir a procurá-la? — Não ficaria bem. Noel. Você é o notário dos D'Autremont, e eu a esposa do acusado. — Tenho que confessar que não lhe falta razão, Mas, prescindindo de certas formalidades. Bom, não há nada que possa fazer por você? — Acredito que sim. Junto ao Juan está encerrado o menino, contra o que não pode haver nenhum cargo. Faça que o ponham em liberdade. 145 Pégasus Lançamentos — Ocuparei-me disso com todo meu empenho. E, cumprindo seus desejos, devo lhe dizer: até manhã. — Até manhã. Noel. Com a cabeça baixa se afastou o ancião, mas Mônica não contempla sua figura imprecisa. A lua se escondeu entre as nuvens, e o vento traz aquele longínquo chamado de sinos que é para a Mônica como a ressurreição de seu passado. Acredita viver meses atrás; as brancas mãos procuram inutilmente, por instinto, o rosário que outro tempo pendurou em sua cintura; logo, caem com gesto de supremo cansaço, e outra vez passa aquele pensamento golpeando sua frente como uma asa ao passar: — Tudo foi um sonho. Um sonho, e nada mais. — Renato. Renato de minha vida. Aimée chegou junto ao Renato. Vai trêmula, convulsa, sem que as ânsias e inquietações que finge lhe tenham impedido de atender ao último detalhe de seu meio doido: pálidas as bochechas, incendiados os lábios, sombreados os grandes olhos escuros, morna, suave e perfumada, quando se joga em braços do Renato, em quem aquele contato não provoca o efeito desejado. Grave e frio detém-na, retrocedendo um passo, ao tempo que a interpela: — Quer me fazer o favor de recuperar a calma? Quero… que me diga por que te encontro em outro lugar de onde te deixei. — Não foi minha culpa. Dona Sofia se empenhou em que os esperáramos para cá. Eu não queria vir. Ela me trouxe. — Então, será ela quem me diga isso. — Não, não, Renato! Aguarda! — Acaba de me dizer que foi ela. Além disso, não quero discutir contigo nem te pedir contas de nada. Já que minha mãe se empenhou em jogar sobre si toda a responsabilidade, já que puseste a sua vontade e a seu amparo. — Eu não me pus ao amparo de ninguém! É sua mãe, e admito as coisas