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FLÁVIO HENRIQUE GHILARDI COOPERATIVISMO DE MORADIA EM MONTEVIDÉU E AUTOGESTÃO HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO As bases sociais, políticas e econômicas da produção social do habitat na América Latina Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientadora: Prof. Dra. Luciana Corrêa do Lago RIO DE JANEIRO 2017 FLÁVIO HENRIQUE GHILARDI COOPERATIVISMO DE MORADIA EM MONTEVIDÉU E AUTOGESTÃO HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO As bases sociais, políticas e econômicas da produção social do habitat na América Latina Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Aprovado em: BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Prof. Dra. Luciana Corrêa do Lago - Orientadora Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ ________________________________________ Prof. Dr. Adauto Lucio Cardoso Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ ________________________________________ Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Junior Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ ________________________________________ Prof. Dr. Edson Miagusko Instituto de Ciências Humanas e Sociais – UFRRJ ________________________________________ Prof. Dr. João Farias Rovati Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional – UFRGS AGRADECIMENTOS À professora Luciana Lago, pela dimensão de liberdade na orientação deste trabalho. Aos professores Adauto Cardoso e Edson Miagusko (pelas valiosas considerações na banca de qualificação), assim como aos professores João Rovati e Orlando Júnior, pela atenta leitura e comentários à tese. Aos professores do IPPUR, pela densa formação crítica; aos técnicos do instituto, essenciais nos momentos de apoio, trabalhando com competência e bom humor; e aos colegas discentes, pela amizade intelectual. Àqueles que, sob várias formas, contribuíram para a pesquisa no Rio de Janeiro, em especial aos que atuam junto à Fundação Bento Rubião e à Arché; aos grupos autogestionários, principalmente àqueles com quem mantive contato em Esperança, Ipiíba e Shangri-lá; e aos que militam junto à União por Moradia Popular do Rio de Janeiro. Ao professor Juan Pablo Martí, pelos preciosos encontros em Montevidéu e pela imprescindível orientação de pesquisa durante o estágio sanduíche. Àqueles que, em Montevidéu, aportaram valiosíssimas contribuições – em entrevistas, conversas informais ou cursos de formação – para a pesquisa de campo. Em especial aos que atuam nas seguintes instituições e organizações: Agencia Nacional de Vivienda (ANV), Confederación Uruguaya de Entidades Cooperativas (CUDECOOP), Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo (FADU-UDELAR), Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua (FUCVAM) e Escuela Nacional de Formación (ENFORMA), Federación de Cooperativas de Vivienda por Ahorro Previo (FECOVI), Instituto Nacional de Cooperativismo (INACOOP), Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente (MVOTMA) e Unidad de Estudios Cooperativos (UEC-UDELAR). Aos “cooperativistas de vivienda” que proporcionaram entrevistas e conversas valiosíssimas sobre a trajetória de suas unidades cooperativas, em especial àqueles dos seguintes grupos: Complejo Bulevar, Complejo José Pedro Varela, COVIATU 18, COVICENOVA, COVICIVI, COVICORDÓN, COVIESS 90 II, COVIFAMI II, COVIMT 2, COVISUNCA 2, COVISUR II, COVIUN, COVIUNPRO, COVIVEMA V, El Ladrillo, MESA 1, Puerto Fabini e aqueles do Barrio Inter-cooperativo Zitarrosa, em especial COVICENTELLA, COVIEFE, COVIFU, COVIFAMI e JUCOVIPOSTAL. Aos técnicos dos “Institutos de Asistencia Técnica” que me concederam preciosas entrevistas; e, nominalmente, a Gustavo González e Leonardo Pessina pelos depoimentos individuais, assim como a Daniel Chavez, pela bibliografia disponibilizada. À biblioteca Gino Baratta, pelo suporte à escrita do texto da tese. Aos amigos de vários cantos e aventuras – do Rio, de Sampa, de Brasília, do mundo –, aos quais não agradecerei, nominalmente aqui, por questão de espaço. À minha irmã, pela brodagem compartilhada; e aos meus pais, pelos ensinamentos de dedicação e integridade. RESUMO A produção social do habitat configura-se, a partir de meados do século XX, em um projeto político de estruturação alternativa do ambiente urbano na América Latina. Ao se considerar a constituição desse projeto a partir de um conjunto heterogêneo – e, por vezes, conflitivo – de ações políticas que organizam práticas autogestionárias de produção do habitat, a tese propõe uma abordagem sobre as “bases” sociais, políticas e econômicas de dois casos específicos: o cooperativismo uruguaio de moradia, originado na década de 1960, e as propostas de autogestão habitacional na metrópole do Rio de Janeiro, iniciadas nos anos 1990. Para tanto, analisam-se aspectos da formação social dos contextos onde emergiram essas experiências, de modo a permitir pensar questões específicas postas à trajetória destes dois modelos de produção social do habitat. Sob uma dupla perspectiva, iluminam-se tensões internas que atravessam esse projeto político, considerando-se a vinculação com suas “bases” constitutivas. Nesse sentido, a tese procura explorar os momentos de emergência da política – enquanto ação humana criadora do novo e instituidora do dano na própria constituição da comunidade – que se processam, na estruturação do espaço urbano latino-americano, a partir das inciativas autogestionárias de produção social do habitat. Palavras-chave: Produção social do habitat. Cooperativismo de moradia. Autogestão habitacional. RESUMEN La producción social del hábitat se configura, a partir de mediados del siglo XX, en un proyecto político de estructuración alternativa del ambiente urbano en América Latina. Al considerarse la constitución de ese proyecto desde un conjunto heterogéneo – y, por veces, conflictivo – de acciones políticas que organizan prácticas autogestionarias de producción del hábitat, la tesis propone un abordaje sobre las “bases” sociales, políticas y económicas de dos casos específicos: el cooperativismo uruguayo de vivienda, originado en la década de 1960, y las propuestas de autogestión habitacional en la metrópoli del Rio de Janeiro, empezadas en los años 1990. Por lo tanto, se analizan aspectos de la formación social de los contextos donde surgieron tales experiencias, de manera a permitirse pensar cuestiones específicas acerca de la trayectoria de estos dos modelos de producción social del hábitat. Bajo una doble perspectiva, se iluminan las tensiones internas que cruzan ese proyecto político, considerándose la vinculación con sus “bases” constitutivas. En ese sentido, la tesis intenta explorar los momentos de surgimiento de la política – como acción humana creadora de lo nuevo e instituidora del daño en la propia constitución de la comunidad – que se procesan, en la estructuración del espacio urbano latinoamericano, a partir de las iniciativas autogestionarias de producción social del hábitat. Palabras-claves: Producción social del hábitat. Cooperativismo de vivienda. Autogestión habitacional. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Notícias do primeiro boletim de FUCVAM sobre o início de obra nas cooperativas de moradia por ajuda mútua (Montevidéu, 1971) 47 Figura 2 – Mesa 1, bairro “NuevoAmanecer” (Montevidéu, 2015) 55 Figura 3 – Número de obras de cooperativas de moradia, por ano de início (Uruguai, 1970 – 1978) 59 Figura 4 – Estado de tramitação dos empréstimos às cooperativas de moradia, em unidades habitacionais (Uruguai, 1978) 60 Figura 5 – Empréstimos escriturados pelo Banco Hipotecário do Uruguai, equivalente em quantidade de moradias (Uruguai, 1978 – 1984) 61 Figura 6 – Salão comunal do Complexo José Pedro Varela (Montevidéu, 2015) 63 Figura 7 – Número de obras de cooperativas de moradia, por ano de início (Uruguai, 1985 – 1999) 70 Figura 8 – Prédio destinado à carteira de terras da Intendência de Montevidéu (Montevidéu, 2016) 73 Figura 9 – Número de obras de cooperativas de moradia, por ano de início (Uruguai, 2000 – 2015) 77 Figura 10 – Moradia construída no projeto de Ipiíba (São Gonçalo, 2014) 93 Figura 11 – Moradias do projeto Shangri-lá, Jacarepaguá (Rio de Janeiro, 2014) 97 Figura 12 – Taxa de inflação e salário real (Uruguai, 1957 – 1973) 115 Figura 13 – Sede do Centro Cooperativista Uruguayo (Montevidéu, 2015) 122 Figura 14 – Anúncio da Cooperativa Habitacional nº 1 da Guanabara (Rio de Janeiro, 1965) 127 Figura 15 – Número de cooperativas habitacionais (Brasil, 1978, 1980 e 1983) 129 Figura 16 – Ocupação na indústria (Uruguai, 1936 – 1999) 137 Figura 17 –Taxas de crescimento da população, da população economicamente ativa (PEA) e da ocupação na indústria (Uruguai, 1936 – 1998) 138 Figura 18 – Moradias da cooperativa COVIATU 18 (Montevidéu, 2016) 192 Figura 19 – Obra da cooperativa Puerto Fabini (Montevidéu, 2016) 194 Figura 20 – Pátio superior da cooperativa COVICIVI (Montevidéu, 2015) 201 Figura 21 – Complejo Bulevar (Montevidéu, 2015) 207 Figura 22 – Trabalho de ajuda mútua dos sócios da cooperativa COVIVEMA V (Montevidéu, 2015) 219 Figura 23 – Cooperativa COVICENOVA (Montevidéu, 2016) 228 Figura 24 – 65a. assembleia geral de FUCVAM (Montevidéu, 2016) 236 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Número de sócios e de unidades cooperativas de moradia, por departamento (Uruguai, 1969 e 1978) 56 Tabela 2 – Evolução da estrutura do Gasto Público Social (porcentagem), por décadas (Uruguai, 1910 – 2000) 145 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13 1.1 O plano de análise ............................................................................................. 18 1.2 As questões da pesquisa ................................................................................. 23 1.3 Metodologia de pesquisa .................................................................................. 29 1.4 A estrutura do texto .......................................................................................... 38 2 A PRODUÇÃO SOCIAL DA HABITAT EM MONTEVIDÉU E NO RIO DE JANEIRO .................................................................................................................. 41 2.1 Cooperativismo de moradia no Uruguai ......................................................... 41 2.1.1 Cooperativismo na Lei Nacional de Moradia .................................................... 48 2.1.2 Etapa inicial: ganho de escala .......................................................................... 52 2.1.3 Ditadura militar e sufocamento do sistema ....................................................... 57 2.1.4 Redemocratização e políticas neoliberais ........................................................ 69 2.1.5 Período contemporâneo ................................................................................... 75 2.2 Autogestão habitacional na metrópole do Rio de Janeiro ............................ 79 2.2.1 Primeiras iniciativas em Nova Holanda ............................................................ 80 2.2.2 Proposta pioneira do Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião .. 86 2.2.3 Aporte de recursos da cooperação internacional ............................................. 91 2.2.4 Anos 2000 e acesso a fundos públicos ............................................................ 99 2.3 Uma primeira aproximação entre Montevidéu e Rio de Janeiro ................. 104 3 AS BASES DA PRODUÇÃO SOCIAL DO HABITAT NO URUGUAI ................. 108 3.1 Década de 1960: geopolítica, crise e cooperativismo de moradia .............. 109 3.1.1 Plan CIDE e impacto sobre o planejamento da política habitacional ............. 109 3.1.2 Acúmulo formativo e origem dos projetos piloto ............................................. 117 3.1.3 Contraponto: cooperativismo habitacional no Brasil ....................................... 125 3.2 A formação da classe operária uruguaia ...................................................... 129 3.2.1 Cooperativismo de moradia, classe trabalhadora e sindicalismo ................... 136 3.3 Arquitetura de bem-estar e apoio estatal ...................................................... 141 4 O TERRENO POR ONDE SE MOVIMENTA A AUTOGESTÃO HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO ............................................................................................. 147 4.1 Favela, território de origem ............................................................................ 148 4.1.1 Do associativismo pré-ditadura ao remocionismo autoritário ......................... 149 4.1.2 Abertura democrática e associativismo transformador ................................... 154 4.1.3 Economia política da urbanização do Rio de Janeiro ..................................... 157 4.1.4 Outro contraponto: cooperativismo e associativismo ..................................... 160 4.2 Matriz sindical e autogestão habitacional ..................................................... 170 4.3 Cultura política e violência ............................................................................. 175 4.4 Estado, organizações não-governamentais e cooperação internacional .. 179 5 TENSÕES INTERNAS À PRODUÇÃO SOCIAL DO HABITAT .......................... 187 5.1 Origem social dos grupos .............................................................................. 188 5.2 Os distintos tempos das políticas públicas .................................................. 202 5.3 Dilemas da ajuda mútua e da autogestão ..................................................... 209 5.4 Autogestão: instrumento de opções múltiplas ............................................ 224 5.5 Propriedade coletiva ....................................................................................... 233 5.6 Dimensão singular da experiência ................................................................ 240 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 252 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 263 APÊNDICE A – QUADRO DE COOPERATIVISTAS ENTREVISTADOS EM MONTEVIDÉU ........................................................................................................ 281 APÊNDICE B – SISTEMATIZAÇÃO DAS ENTREVISTAS EM MONTEVIDÉU ..... 282 13 1 INTRODUÇÃO Metrópole do Rio de Janeiro, início da década de 1990. Uma análise panorâmica sobre o processo histórico de urbanização da região apresenta um ambiente urbano estruturado majoritariamente pela precariedade das condições de moradia da maioria da população. Predominam os grandes números que expressam o déficit na qualidade construtiva do parque habitacional, a falta de acesso a elementos básicos da infraestrutura urbana e o gasto excessivo com aluguel que compromete grande parte dos ingressos familiares das camadas populares. No território, constituem-se áreas de precariedade urbana expressas em favelas, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais degradados. Dados do início dessa década (BURGOS,2006, p. 45) mostram que, no ano de 1991, quarenta por cento da população da cidade do Rio de Janeiro vivia em condições precárias de habitat, sendo 962.793 habitantes em favelas, 944.200 em conjuntos habitacionais e outros 381.345 em loteamentos irregulares de baixa renda, um total de mais de dois milhões de pessoas. Nesse mesmo período e cenário, a região metropolitana do Rio de Janeiro testemunha o surgimento de um conjunto de iniciativas que procuraram introduzir novas maneiras de se produzir o habitat das camadas populares residentes nos territórios de precariedade urbana. São organizadas propostas que se centram na ideia de construção do ambiente urbano – com foco na habitação – por meio da própria participação dos futuros moradores. Traduzidas no conceito de “autogestão” do processo produtivo do habitat, de certo modo se colocam como alternativas às formas históricas de produção habitacional no Brasil, seja pela via do mercado imobiliário ou da promoção estatal. Um conjunto de práticas foi constituído e acionado para a execução de alguns processos experimentais. A formação de coletivos organizados e a constituição de metodologias de trabalho consubstanciaram práticas coletivas visando o acesso a recursos financeiros e ao solo urbanizado para a construção de novas moradias. Tais práticas inovadoras se estruturaram apoiando-se em modos de discussão coletiva dos 14 aspectos projetuais e acionando engrenagens de reordenação da relação dos saberes técnicos com os coletivos organizados. Constituíram-se, dessa maneira, metodologias que reformularam processos construtivos tradicionais, por meio de mecanismos de utilização coletiva da mão-de- obra dos próprios moradores na produção de seu habitat. Assentavam-se, desse modo, na organização autogerida do canteiro de obras e da contratação de mão-de- obra especializada, aliada a formas autônomas de gerenciamento dos recursos financeiros destinados principalmente à compra, sem intermediários, de insumos da construção civil. Tais práticas, inéditas no contexto da precariedade urbana do Rio de Janeiro, geraram territórios onde o local de moradia é a concretização, sob formas de autogestão, do próprio processo de produção do habitat. Uruguai, segunda metade da década de 1960. Três experiências piloto são levadas à cabo sob iniciativa de uma organização não governamental – o Centro Cooperativista Uruguayo, conhecido como CCU – visando a produção de moradias através de uma nova modalidade de cooperativismo. O Legislativo uruguaio aprova, no final da década, a Lei Nacional de Moradia, com um capítulo específico instituindo o sistema cooperativo de moradia no país. Já a partir de 1970 este sistema entra em funcionamento e, vertiginosamente, a produção habitacional sob essa modalidade ganha escala. Constituem-se centenas de grupos que produzem milhares de unidades habitacionais. Em menos de uma década a promoção habitacional via cooperativas consolidou um sistema que aportou medidas inovadoras no modo de se produzir o habitat para as camadas populares. No Uruguai, essas inovações se constituíram em propostas tais como a adoção da propriedade coletiva, a criação de modalidades de participação dos usuários no processo construtivo via ajuda mútua ou poupança prévia, a constituição de Institutos de Assistência Técnica, a organização de federações de cooperativas, assim como a construção coletiva de equipamentos urbanos. Com o suporte estatal e o engajamento da classe trabalhadora sindicalizada, a experiência ganhou escala e prestígio com a qualidade urbana alcançada, constituindo um sistema que enfrentou, logo em seguida, os desafios da retirada do apoio estatal com a ditadura a partir de 1973. 15 Foi no começo dos anos 1990 que se cruzam esses dois conjuntos de experiências latino-americanas, duas formas alternativas de produção do habitat popular. O iniciante experimento alçado no Rio de Janeiro foi buscar referências no sistema uruguaio de cooperativas de moradia, naquele momento com mais de duas décadas de instituição. A partir do assessoramento a uma iniciativa embrionária que se desenvolveu na favela de Nova Holanda – com o trabalho de uma cooperativa de construção oriunda de iniciativa da renovada associação de moradores local –, conformava-se, em uma organização não governamental – o então Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião – o esboço de um programa que apoiasse projetos de autogestão habitacional. A inspiração no sistema uruguaio veio por intermédio do eco que se fazia ouvir desse sistema na região metropolitana vizinha de São Paulo. Por ali, desde meados da década anterior ocorria um conjunto de iniciativas que buscavam seguir o modo de fazer uruguaio1. Assim é que a iniciativa carioca viria a materializar projetos piloto, com elementos inspirados no sistema uruguaio, a partir de metade da década de 1990. *** Foi na segunda metade da década de 1980 que surgiu na favela de Nova Holanda – localizada no Complexo da Maré, próxima à Linha Amarela, zona suburbana do Rio de Janeiro – um conjunto de iniciativas para a construção organizada de moradias sob formas de gestão controladas pelos próprios moradores. A partir de um processo de mudança de orientação política na direção da associação de moradores local, constituiu-se a Cooperativa de Moradores e Amigos da Nova Holanda (COOPMAHN). A cooperativa, inicialmente, criou novos mecanismos para a utilização coletiva de recursos públicos federais visando à aquisição de materiais de 1 Nabil Bonduki ao analisar o surgimento, nos anos 1980, das propostas dos mutirões autogeridos pelos movimentos de moradia na região metropolitana de São Paulo, salienta que “a influência do cooperativismo uruguaio no surgimento de propostas autogestionárias na luta por moradia foi enorme” (BONDUKI, 1992, p. 35). A influência uruguaia tinha sua força advinda das concretizações realizadas até então, “tanto pelos excelentes resultados alcançados em termos de qualidade, custos e participação popular como por apontar uma proposta habitacional alternativa numa conjuntura onde se buscava novas soluções” (BONDUKI, 1992, p. 35). 16 construção. Ao final da década tornou-se responsável pela construção de unidades habitacionais que seriam erguidas na favela com recursos do governo federal. Nesse processo, a cooperativa foi assessorada por técnicos que atuavam no Núcleo Arco, ligado à Universidade Santa Úrsula. Já na virada para os anos 1990, a cooperativa se dissolveu e integrantes do núcleo assessor passaram a atuar na estruturação de uma proposta que apoiasse iniciativas de produção de moradia através de mecanismos autogestonários. O programa surgiu sob coordenação de uma organização não governamental, o então Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião. Formado por técnicos que atuaram durante a década de 1980 junto à Pastoral de Favelas do Rio de Janeiro, a nova proposta da entidade constituiu-se a partir da inspiração nas experiências paulistas que miravam o sistema cooperativo uruguaio de produção habitacional. Por meio de um intercâmbio com organizações e movimentos sociais de São Paulo e do Uruguai, a ONG passou a trilhar o caminho de conformar projetos de produção habitacional sob a gestão dos futuros moradores. O sistema uruguaio de cooperativas de moradia – que se tomava como referência em São Paulo e no Rio – baseia-se na formação de grupos que irão se responsabilizar pela gestão da construção coletiva de suas próprias habitações. Uma ideia-mestre do sistema é instituir mecanismos que organizem a autoconstrução isolada da habitação, mecanismo tão característico da formação urbana dos países latino-americanos, como o Uruguai e o Brasil (NAHOUM, 1984). A cooperativa deve constituir-se juridicamente, ter acesso a um terreno urbanizado que permita o desenvolvimentodos elementos projetuais prévios à obra, os quais são elaborados por um grupo técnico contratado pela cooperativa. Esta é responsável por todo o processo de obra, realizando a gestão de um empréstimo estatal (de larga duração, em torno de vinte a trinta anos) para a viabilização do projeto construtivo. As duas principais modalidades de participação dos sócios da cooperativa na obra são a ajuda mútua e a poupança prévia. Na primeira, as cooperativas utilizam o aporte de mão-de-obra dos próprios sócios durante toda a construção coletiva do projeto. Já nas cooperativas por poupança prévia, a participação se realiza através da 17 constituição de uma contrapartida monetária em complemento ao financiamento estatal. A obra se organiza por meio de regulamentos e comissões, sendo o processo de compra de insumos e de prestação de contas planejados e executados de forma coletiva. Ao concluir-se a construção habitacional, o sistema uruguaio prevê a adoção da propriedade coletiva, das unidades de moradia, pela cooperativa. Enquanto uma modalidade de uso e gozo, cada cooperado tem a propriedade de um capital social, o qual lhe dá direito a habitar uma unidade habitacional. A modalidade coletiva da propriedade configura-se, historicamente, enquanto a principal forma de propriedade adotada pelas cooperativas de moradia no Uruguai. A organização social do sistema também se ancora na constituição de federações representantes das cooperativas, as quais desempenham um importante papel enquanto movimento social da sociedade civil. *** Já em meados da década de 1990, a Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião (que naquele momento alterara sua constituição jurídica de Centro para Fundação) empreendeu três experiências piloto que claramente concretizavam a referência ao sistema uruguaio de cooperativas de moradia. Shangri- lá, em Jacarepaguá, Colméia, em Campo Grande, e Pixuna, na Ilha do Governador, foram os primeiros grupos que construíram suas próprias moradias tendo como referência a modalidade de ajuda mútua do cooperativismo de moradia uruguaio. Sem ainda adentrar os detalhes dos projetos levados à cabo no Rio de Janeiro, uma primeira e rápida comparação entre os resultados urbanos do sistema uruguaio e aqueles constituídos no Rio de Janeiro – com referência a este sistema – aponta para algumas diferenças substanciais. Distinções que se sobressaem ao olho do observador quando tomados os princípios referenciados no Rio de Janeiro e as concretizações alcançadas em termos de produção do ambiente urbano. O ganho de escala, por exemplo, não ocorreu como na primeira década no Uruguai. Os projetos 18 coordenados pela Fundação Bento Rubião somavam não mais que uma dezena de grupos assessorados, enquanto que, no país vizinho, em sua primeira década já se conformavam mais de trezentos (PERAZZA, 1978, p. 128). Se o conjunto de experiências no Rio de Janeiro não ganhou escala como no Uruguai, de certa forma aplicou diversos motores do cooperativismo de moradia nos projetos desenvolvidos. Tomando como principal referência a modalidade da ajuda mútua, as formas de organização do canteiro e da mão-de-obra, o princípio da discussão participativa dos projetos arquitetônico e urbanístico, além dos mecanismos de compra de insumos da construção e de gestão de recursos financeiros, sinalizam a clara referência ao contexto uruguaio. É a partir de uma certa inquietação proporcionada por um primeiro cotejamento entre o sistema uruguaio de cooperativas de moradia e a inspiração que se constituiu na região metropolitana do Rio de Janeiro, que se formularam as questões de pesquisa e que moveram o desenvolvimento desta tese. Inquietação que se fez sentir ao se observar a referência aos princípios do sistema uruguaio no contexto carioca e as concretizações em termos de produção do espaço urbano, geradas nas precárias condições de vida na metrópole do Rio de Janeiro. Inquietação, por fim, que fez pensar para além de uma rápida constatação que se ancora nas distinções entre os polos analisados, fazendo emergir indagações que intentaram constituir uma abordagem sob novas perspectivas. 1.1 O plano de análise As iniciativas de organização da produção do ambiente urbano em propostas autogestionárias – como aquelas do Uruguai e do Rio de Janeiro – estão inseridas em um complexo e denso processo de urbanização da América Latina que ocorreu no último século. Na periferia do “sistema mundial moderno” que se formou a partir do século XIX (FIORI, 2008), o fenômeno da urbanização acelerada e massiva dos países dessa periferia caracterizou-se pela conformação de formas precárias de urbanidade para enormes parcelas da população (DAVIS, 2006). Sob diversas 19 especificidades, o acesso a condições inadequadas de infraestrutura urbana e de moradia estruturaram o habitat das cidades latino-americanas. Dentre uma ampla literatura que abordou o intricado processo da urbanização desse continente, um aspecto abordado por Kowarick (1993), acerca das condições de reprodução da força de trabalho nessa região, deve ser retido para a compreensão sobre a constituição do plano onde emergiram as questões de pesquisa. Segundo a argumentação do autor, o trabalhador das cidades latino-americanas, a partir da segunda metade do século XX, encontra-se submetido às condições de exploração capitalista que não se encerram no âmbito das relações de trabalho. Os mecanismos de exploração e de deterioração da vida se processam, também, no meio urbano, configurando-se no que denominou como “espoliação urbana”. A dimensão da exploração capitalista, nesse sentido, também se verifica nas próprias condições de reprodução da força de trabalho. Desse modo, a espoliação urbana configura-se no “somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo [...] e que agudizam ainda mais a dilapidação realizada no âmbito das relações de trabalho” (KOWARICK, 1993, p. 62). As condições de urbanização da periferia do sistema mundial moderno ampliam, nesse sentido, o processo de exploração do trabalhador latino-americano. O ambiente urbano, então, conforma-se em um emaranhado de situações caóticas que desenham a exceção na conformação dos territórios periféricos das grandes cidades desse continente. A autoconstrução das moradias populares, as condições insalubres do aluguel em áreas centrais, a ausência de soluções adequadas de acesso à agua e tratamento de esgoto, por exemplo, são a expressão de determinada produção de urbano que, em quase nada, é residual em relação ao desenvolvimento do sistema capitalista e ao processo de urbanização correlato. Como acena o fenômeno da persistência do processo, após mais de um século de urbanização, a precarização das condições de produção do espaço urbano nas cidades latino-americanas mostra-se funcional à própria expansão do sistema capitalista. Como já apontaram os trabalhos seminais de Francisco de Oliveira (2003), a funcionalidade da precariedade urbana vale-se do barateamento da força de trabalho 20 por meio do seu processo de superexploração. Adotando-se a perspectiva do autor, a existência de uma economia urbana de subsistência (expressa no “inchaço” do setor terciário da economia, por exemplo), ou mesmo práticas de expansão do território periférico (por meio da autoconstrução isolada da moradia), exerceram (e exercem) o papel de rebaixar o custo de reprodução da força de trabalho. Assim é que os mecanismos de superexploração e de espoliação urbana da força de trabalho latino-americana ensejaram práticas de produção do ambiente construído a partir da própria organização popular. Segundo Maricato (1982), a produção periférica dos territórios urbanos é a única saída para grande parte da população, pois se a habitação, a chamada infraestrutura urbana,e os equipamentos constituem mercadorias, se a política habitacional é centralizadora e elitista, e se por outro lado o salário é mantido a um nível abaixo daquele que permitiria a compra desses bens, as necessidades são em grande parte supridas pela prática da autoconstrução ou não são supridas (MARICATO, 1982, p. 82). Desse modo, um vasto espaço urbano foi erigido nas cidades latino-americanas por meio de processos realizados à margem da regulação urbanística e sob o próprio esforço da população superexplorada. Coraggio (1998) discute como, nesses territórios periféricos, subjaz uma lógica econômica específica em que a construção do ambiente urbano (por meio da produção da própria moradia ou de infraestrutura comunais), enseja uma forma específica de acumulação sob a esfera da economia doméstica. Ao distinguir três lógicas econômicas – que atravessam o sistema capitalista de produção de riquezas –, quais sejam, a economia empresarial capitalista, a economia pública e a economia popular, esta última é a que predomina nos territórios periféricos. Pouco compreendida pelos estudos econômicos clássicos, o que caracteriza a economia popular é a presença das unidades domésticas, “que dependen principalmente del ejercicio de su trabajo para lograr su reproducción biológica y cultural” (CORAGGIO, 1998, p. 73). As unidades domésticas, enquanto organizações básicas da economia popular, mantêm seu processo de reprodução por meio da utilização de seu fundo de trabalho, conformado pela própria capacidade de trabalho dos membros da unidade. O fundo de trabalho é utilizado pelas unidades domésticas 21 para diversos fins, sendo que aqueles que visam sua reprodução constituem boa parte do que se produz no ambiente urbano periférico. Ao identificar que o processo de reprodução das unidades domésticas – a qual implica, sob a lógica especifica da economia urbana, a produção social do habitat periférico – a partir de seu caráter ampliado, Coraggio aponta para as possibilidades que se abrem para as diversas formas de organização da economia popular. O caráter ampliado da reprodução das unidades domésticas, portanto, significa que não há um nível básico de necessidades, senão uma busca pela melhora da qualidade de vida sem limites intrínsecos, permeada pela introjeção múltipla de valores e concepções2. Nesse sentido é que pode afirmar que a economia popular inclui não só a utilização do trabalho, como também de “activos fijos -vivienda/local de habitación- [...] e intangibles -conocimientos técnicos, etc.- que han ido acumulándose en función del objetivo de la reproducción de la vida en condiciones tan buenas como sea posible” (CORAGGIO, 1992, p. 10). Desse modo é que a compreensão sobre as especificidades desse processo permite vislumbrar que “la economía popular no es una alternativa pobre para pobres, sino un subsistema orgánico de elementos socialmente heterogéneos, dotado de un dinamismo propio, competitivo y de alta calidad” (CORAGGIO, 1998, p. 11). A partir de tal perspectiva de Coraggio, dentro de uma aposta na organização da economia popular urbana em patamares mais solidários, é possível identificar a emergência de um conjunto de práticas que pretendem promover um novo caráter à autoconstrução periférica do ambiente urbano das cidades latino-americanas. Trata- se de práticas reunidas dentro de que se convencionou denominar como “produção social da moradia e do habitat”, cuja constituição pode ser identificada na segunda metade do século XX3. Distinguindo-se das lógicas de produção habitacional e da 2 Como o próprio autor adverte, esse caráter da reprodução ampliada se dá em grande medida pela introjeção de valores da propaganda mercantil e pela construção social das necessidades pelos movimentos culturais da sociedade. Assim é que se deve ter em consideração, de acordo com sua perspectiva, que não se pode afirmar “que en el interior de la economía popular no haya explotación ni intercambio desigual (por ejemplo sobre bases de género, edad o etnia), pero no se hacen con los mecanismos propios de la explotación capitalista de plusvalor” (CORAGGIO, 1998, p. 77). 3 Como aponta o estudo de Flores (2012), realizado no começo dos anos 2000, a produção social da moradia e do habitat, no contexto latino-americano, fundamenta-se “en múltiples prácticas desarrolladas a lo largo de medio siglo y en algunos documentos que han venido contribuyendo a la conceptualización y orientación operativa de esta forma de producción” (FLORES, 2012, p. 11). 22 cidade por meio da forma privada mercantil e da forma estatal, a produção social, segundo Flores (2012), caracteriza-se pelos seguintes aspectos, quais sejam, produce sin fines de lucro, por iniciativa y bajo el control de autoproductores y desarrolladores sociales, viviendas y conjuntos habitacionales que adjudica a demandantes individuales u organizados (principalmente de bajos ingresos), que en general son identificados y participan activamente desde las primeras fases del proceso habitacional (FLORES, 2012, p. 25). A produção social do habitat, assim, distingue-se dos processos clássicos de autoconstrução, pois envolve não só o aspecto produtivo do ambiente urbano, mas primordialmente o controle sobre todas as suas dimensões de gestão. Desde tal perspectiva é que Flores afirma, dentro dessa distinção, que só se pode falar de produção social do habitat “cuando las tareas de autoconstrucción que asume un grupo organizado son decisión y quedan bajo el control del propio grupo y son contabilizadas como aporte de sus participantes al financiamiento” (FLORES, 2012, p. 27). A produção social do habitat implica, portanto, um conjunto de práticas muito heterogêneas entre si. É possível identificar dimensões distintivas que acionam determinadas formas de participação dos próprios beneficiários, modalidades construtivas e mecanismos institucionais de organização dos variados componentes do processo produtivo. Dessa forma, pode-se compreender a produção social do habitat enquanto um “projeto político” específico na estruturação do ambiente urbano latino-americano, o qual se consubstancia em formas autogestionárias de se constituir a vida na cidade. Ao adotar-se como referência o conceito de projeto político para compreender a heterogeneidade da produção social do habitat, frisa-se um aspecto central posto por Dagnino (2004). Segundo a autora, um projeto político constitui-se nos “conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos” (DAGNINO, 2004, p. 98). Assim, busca-se apontar, por um lado, para a pluralidade de “concepções de mundo” que atravessa o projeto de produção social do habitat. Por outro, salienta como este projeto heterogêneo modula-se em uma forma conjunta de ações políticas sobre a produção dos territórios populares das cidades latino-americanas. Nesse aspecto plural do projeto político da produção social do habitat é que se ancoraram as questões que moveram a pesquisa. 23 1.2 As questões da pesquisa Retomando a atenção sobre os resultados urbanos do sistema uruguaio de cooperativas de moradia e aqueles das experiências de autogestão habitacional empreendidas no Rio de Janeiro, a inquietação que emergiu desde então trouxe à tona uma instigante questão para reflexão. O que poderia explicar resultados – em termos de produção do ambiente urbano – um tanto quanto díspares, se os princípios tomados em consideração eram oriundos de um mesmo embasamento? Em outros termos, se o conjunto de experiências do Rio de Janeiro constituiu-se tendo como referência os princípios do sistema uruguaio de cooperativas de moradia, a indagação ancorou-se em considerar o que levaria a que os resultados urbanos, em termos de escala e de organizaçãoinstitucional, por exemplo, tomassem uma configuração distinta. A partir da inspiração em um sistema que, aparentemente, mostrou-se sólido e exitoso em seu início, como explicar as características tão próprias do que foi desenvolvido no Rio de Janeiro? Uma primeira indicação de caminhos a tentar se trilhar para refletir sobre essas questões poderia se valer de uma espécie de “análise por ausências”. Considerando os elementos modulares que constituem as “chaves” do sistema uruguaio de cooperativas de moradia (NAHOUM, 2013e), seria possível enveredar sobre as ausências a serem evocadas no que se constituiu no Rio de Janeiro. Seja, por exemplo, na adoção da propriedade individual em detrimento da forma coletiva – ou mais especificamente, “de uso e gozo” –, seja no diminuto volume de financiamento estatal disponibilizado. Tais ausências poderiam indicar, desse modo, a escassez de aportes de recursos financeiros compatíveis para o ganho de escala e a falta de uma base organizativa que proporcionasse o surgimento de um movimento social – como as federações de cooperativas, assentadas naquelas sob a forma de propriedade coletiva – que reivindicasse a consolidação desse sistema. Assim também seria possível verificar como, diferentemente do Uruguai, a assunção de uma ONG enquanto promotora das experiências piloto – no caso do Rio de Janeiro, a Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião – assumiu um papel diferente daquela do Uruguai nas experiências piloto – o Centro 24 Cooperativista Uruguayo. Ao justamente desempenhar papéis que não se restringiram àquele de assessoria técnica – ao qual se ateve esta última nos referidos pilotos da década de 1960 –, a iniciativa da entidade carioca levaria à configuração das propostas autogestionárias de produção habitacional a certas especificidades em diversas dimensões dos processos organizativos dos projetos, tais como as formas decisórias sobre compra de insumos e gerenciamento de recursos financeiros, por exemplo. Portanto, adotando como perspectiva uma visada exterior ao conjunto das experiências analisadas, o caminho deste ponto de vista estabeleceria o sistema uruguaio como referência para sublinhar as distinções do caminho adotado no Rio de Janeiro, procedendo, então, a analisar as implicâncias nos resultados auferidos4. Trata-se de um caminho que perseguiria algumas análises que vem sendo trilhadas no sentido de iluminar a influência uruguaia no contexto brasileiro. São diversos e profícuos os trabalhos que abordaram a transposição de determinados elementos desse sistema para a experiência brasileira, reconstituindo, em alguns casos, os modos como algumas formas de organização do canteiro de obra, por exemplo, compartilharam muitas das desenvolvidas no modelo uruguaio5. Porém, essa primeira perspectiva apenas aguçou ainda mais as inquietações provocadas. Por um lado, mostrou-se útil para solidificar a ancoragem da indagação inicial formulada. Por outro, não iluminou um roteiro para se mergulhar no conhecimento sobre a inquietação inicial. Ao manter e observar com maior acuidade o ponto de reflexão em torno da indagação inicial, um segundo conjunto de questões começou, então, a se delinear. Assim é que ao se interrogar mais detidamente as circunstâncias e especificidades que envolviam a adoção – ou ausência desta – de alguns “elementos chave” do sistema uruguaio de cooperativismo de moradia, pelo rastro das experiências desenvolvidas no Rio e Janeiro, um novo campo de reflexão foi se conformando. Nesse sentido, por exemplo, ao tomar mais detidamente o modo como a “forma cooperativa” foi incorporada nos projetos do Rio de Janeiro, uma sequência de 4 Tal seria uma trilha a seguir a partir das indicações da extensa pesquisa de Flores (2012) sobre as variadas conformações do modo como se realiza a produção social do habitat na América Latina e Central. 5 Vide, por exemplo, Baravelli (2006) e Coletivo Usina (2012). 25 indagações se direcionaram para além da abordagem comparativa. Qual configuração do corpo de normas legais marcaria a trajetória do cooperativismo no Brasil? Quais forças sociais e políticas atravessariam o campo do cooperativismo de moradia no momento de instituição da proposta inicial da Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião? Como compreender as escolhas no arranjo institucional adotado que escaparam ao âmbito do cooperativismo? Ou, voltando-se para o contexto uruguaio, quais as especificidades do campo uruguaio em torno ao cooperativismo, que desembocaram na constituição da vertente habitacional nos anos 1960? Outro exemplo do conjunto de questões que emergiu atou-se à própria atenção sobre os atores sociais que empreenderam essas experiências. Ao observar mais detidamente o surgimento do sistema uruguaio, foi possível identificar, ainda embrionariamente, como este foi marcado pela presença de uma classe trabalhadora estável e sindicalizada. Logo em seguida, tomando o Rio de Janeiro, observava-se como as experiências surgiram com atores do campo da “favela”, atravessado por configurações distintas quanto à inserção no mundo do trabalho e às práticas de organização política. Assim, como pensar as implicações das configurações distintivas na conformação social e política, transversal aos atores que protagonizavam todas essas experiências, na organização dos projetos habitacionais autogeridos? Uma grande questão se originou ao indagar em que sentidos a formação dos grupos, os mecanismos da participação nas decisões gestionárias e de aporte de mão-de-obra, por exemplo, modulavam-se desde tais configurações distintas no campo da constituição dos diferentes atores sociais. Desse modo é que tal redirecionamento no enfoque de questões parecia indicar uma abordagem que se assentasse para além da perspectiva comparativa entre os módulos dos casos analisados. De certa forma, esse novo enfoque fazia um convite a se pensar o “exterior” de onde essas experiências emergiam e constantemente se reorganizavam. Tratava-se de refletir sobre as especificidades do terreno onde se movimentam tanto o sistema uruguaio de cooperativas de moradia quanto as experiências de autogestão habitacional no Rio de Janeiro. Compreender a configuração do campo de movimentação desses dois conjuntos de propostas de produção social do habitat envolveria identificar questões que são postas e repostas para a constituição desses projetos. Tensões e dilemas que, sob diversos sentidos, podem ou não ser compartilhados, ser similares ou distintos, em cada um dos casos. 26 Nessa perspectiva, a abordagem desenvolvida pela pesquisa – instigada pelo novo conjunto de indagações – foi configurando um direcionamento que se debruçou sobre o próprio terreno da formação social desses conjuntos de experiências. Tratou- se de analisar o que se passou a denominar, um tanto provisoriamente, como as “bases” da produção social do habitat. Uma abordagem sobre tais “bases” operaria o deslocamento do olhar para além do enfoque comparativo, fazendo pensar algumas das próprias especificidades das configurações sociais, políticas e econômicas de onde emergem os projetos de produção social do habitat em análise. Não se conceberia, portanto, um sistema em formas acabadas, como a se proceder com a eleição do cooperativismo uruguaio enquanto fonte privilegiada de inspiração das experiências do Rio de Janeiro. A análise se deslocou a fixar os embates entre forças sociais e políticas que atravessam o projeto político da produção social do habitat em contextos distintos. Um embate que só poderia ser melhor compreendido quando esquadrinhadas algumas questões essenciais que são postas pelos terrenos onde esses sistemas se movimentam. Assim, compreender as “bases” da produção social do habitat ancorou-se em analisar as características da formação socialonde emergem esses projetos. Correlata a essa perspectiva, a abordagem da pesquisa buscou realizar um segundo movimento analítico. Se, como posto anteriormente, o projeto político é constituído por uma pluralidade de visões de mundo – ou seja, não está ausente de conflitos internos – então a perspectiva também deveria iluminar a própria maquinaria interna desses sistemas. Desse modo é que, para compreender com maior acuidade as formas como se trabalham as questões postas pelas próprias bases, buscou-se considerar o próprio funcionamento interno desse projeto político, em seu atravessamento pelas questões específicas postas por cada contexto. Dessa forma organizou-se uma alternativa possível para se escapar da “análise por ausências”, de modo a iluminar os momentos de inovação, criação e ressignificação de concepções e práticas que envolvem projetos autogestionários de produção do ambiente urbano. Conforma-se, assim, um convite a pensar o sentido da constante busca pela recriação e reformulação que caracterizam os sistemas de produção social do habitat – os quais tem o traço da flexibilidade, como mostra Flores (2012). Visualiza-se, desde tal ângulo de abordagem, a amplitude de sentidos, por 27 exemplo, que se revestem as inúmeras inovações do sistema cooperativo uruguaio, como nas dimensões que se abriram a partir da propriedade coletiva e seu impacto sobre o tecido associativo da sociedade civil. Ou como as experiências do Rio de Janeiro inseriram-se nas reconfigurações da cena política das favelas cariocas durante a abertura democrática, e o seu significado em termos de luta por autonomia e autodeterminação na produção do ambiente construído. Nessa perspectiva é que a pesquisa foi levada justamente a tentar perscrutar os momentos onde emerge a “política” na estruturação do espaço urbano das cidades latino-americanas. Mais especificamente, trata-se de tentar seguir alguns dos instantes em que a ação política do projeto de produção social do habitat torna-se saliente nos embates pela própria produção da cidade. Procurar sinalizar alguns dos instantes em que se identifica a “política” na construção do habitat significa ter em consideração um sentido especial sobre esse conceito de “política”. Refere-se a pensá-la no sentido da produção do novo, de ruptura com o estabelecido, de proposição de novos horizontes em meio à desigualdade e à precariedade na estruturação dos territórios periféricos do sistema mundial moderno. A inspiração aqui se ancora nos escritos de Hannah Arendt sobre o conceito de política6. Esta, na concepção da autora, relaciona-se à dimensão da liberdade, que permite a possibilidade do sempre recomeçar, do que pode nascer e ressurgir. Em um dos seus trabalhos, a autora salienta que o sentido da política é a “liberdade”, sendo que “o milagre da liberdade está contido nesse poder-começar que, por seu lado, está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo” (ARENDT, 1998, p. 43). Como comenta Keinert (2005, p. 27), “a concepção da ação política como ação livre comporta em Hannah Arendt um traço de indeterminação que está na raiz da possibilidade, em princípio, sempre aberta, de criação na história, dos novos começos”. Pois a vida política, para Hannah Arendt, está estritamente conectada a uma atividade humana fundamental: a ação. A ação configura-se como a única que se 6 Não se configura uma operação fácil fazer pensar a ideia de política no pensamento de Hannah Arendt. Como bem coloca o trabalho de Keinert (2005, p. 18) sobre a obra da autora, “compreender o conceito de política em Hannah Arendt não se constitui em uma tarefa simples. Trata-se de uma noção que envolve uma complexidade significativa, sendo, portanto, pouco plausível uma definição categórica do termo”. 28 exerce diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas e, por isso, “o fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (ARENDT, 2007, p. 190). Compreendida a política pelo signo da natalidade, da infinita possibilidade do surgimento do novo pela ação do homem, pode-se ampliar a noção tomada em perspectiva nas indagações deste trabalho. Nesse sentido, “como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político” (ARENDT, 2007, p. 190). E pensar tal sentido específico da política possibilita referir-se, também, às reflexões do filósofo Jacques Rancière sobre a política. Seguindo algumas de suas questões, a política somente poderia ser identificada em raros momentos, muito especiais e específicos. Pois, segundo o filósofo, a política “é a atividade que tem por racionalidade própria a racionalidade do desentendimento” (RANCIÈRE, 1996, p. 14), isto é, enquanto instauradora do dano na sociedade. Assim, ela somente existe naquelas ocasiões em que se rompe a própria organização estabelecida por aqueles que participam de uma ordem desigual de distribuição da riqueza na comunidade. Ou seja, quando a “parcela dos sem parcela” instaura o dano na “partilha do sensível”, considerado enquanto o modo como se distribui a vida em sociedade, adotando-se aqui os termos do próprio autor7. Assim, a política não é vista como resultado, mas como a atividade que “desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho” (RANCIÈRE, 1996, p. 42). Portanto, neste trabalho, tenta-se perseguir aqueles momentos onde a política emerge a partir do projeto político da produção social do habitat, focalizando os instantes de atividade criadora, destarte efêmeros e instituidores do dano na divisão da riqueza da sociedade. 7 Como aponta Rancière, “há política — e não simplesmente dominação — porque há uma conta malfeita nas partes do todo” (RANCIÈRE, 1996, p. 25). Porém, “o dano pelo qual existe política não é nenhum erro pedindo reparação” (RANCIÈRE, 1996, p. 33), ou seja, a política não é a compensação da igualdade na sociedade, senão o momento anterior em que se instaura o próprio questionamento sobre a desigualdade dessa sociedade. 29 1.3 Metodologia de pesquisa Ao adotar a perspectiva da questão de pesquisa, algumas considerações foram realizadas para circunscrever a abordagem metodológica de investigação. Por um lado, abordar as bases da produção social do habitat poderia levar a infinitas escavações sobre o terreno por onde se movimentam o sistema uruguaio de cooperativas de moradia e as experiências de autogestão habitacional no Rio de Janeiro. Assim, por exemplo, ao buscar perscrutar as diferenças entre o campo de constituição dos grupos pioneiros, uma abordagem necessária referia-se ao mundo do trabalho. No Uruguai, o impulso à formação do primeiro ciclo cooperativo foi alimentado por uma classe operária estável e sindicalizada. No Rio de Janeiro, as experiências surgiram do campo de reorganização da vida associativa e das políticas públicas urbanas envolvendo a questão da favela. Uma análise sobre as diferentes constituições do mundo do trabalho entre o Uruguai e o Brasil – tendo como foco o Rio de Janeiro –, poderia levar, assim, a uma investigação quase sem fim. Temas como a constituição das organizações sindicais e suas especificidades na relação com o estado, por exemplo, já poderia ocupar todo o escopo analítico. Adotou-se, então, o partido de abordar os aspectos mais estratégicos que emergiram a partir do cotejamento entre os dois casos. Intentou-se colher e identificar pontos que poderiam ser analisados enquanto questões chave para trazer elementos que fizessem pensara questão de pesquisa. Retornando ao exemplo anterior, procurou-se se ater aos aspectos das diferenças referentes ao mundo do trabalho no que se ativessem ao cooperativismo de moradia, identificando as especificidades da formação sindical uruguaia e em quais dimensões esteve presente na organização embrionária do sistema. Já no Rio de Janeiro, buscou-se compreender as principais linhas da organização sindical no período de emergência das experiências piloto e demarcar a distância que mantiveram em relação ao tema da autogestão habitacional. Desse modo, tentou-se delimitar as especificidades da relação entre a matriz sindical e as propostas de autogestão habitacional na metrópole carioca. Como consequência dessa modelagem metodológica é que se foi constituindo uma pesquisa de caráter experimental (TELLES, 2006), a qual, em seu 30 desenvolvimento foi moldando a delimitação dos âmbitos de análise. Desde tal perspectiva é que a forma de escrita do texto se aproximou da “forma ensaio”, inclinando-se a uma certa liberdade para reflexão que procura escapar da ancoragem em conceitos estáticos, abrindo-se à uma constante exploração de distintos caminhos reflexivos. Seguindo o sentido dado por Adorno (2003, p. 25) à “forma ensaio”, esta “não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva”. Assim, trilhar o caminho de formas mais experimentais de pesquisa levou a que se distanciasse das pretensões de completude e de continuidade na estruturação da escrita do texto. Sem se eximir da perspectiva de criação de conhecimento, “o ensaio deve permitir que a totalidade resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada” (ADORNO, 2003, p. 35). Deve-se ainda ter em consideração que a análise comparativa entre contextos tão distintos colocou graves questões metodológicas para a organização da pesquisa. Ao se propor analisar o conjunto de experiências de produção social do habitat no Rio de Janeiro, sob inspiração no sistema uruguaio de cooperativas de moradia, esta deparou-se com a questão sobre a diferença no número de projetos executados e na organização institucional em relação ao sistema uruguaio. Dados do Censo de Cooperativas do Uruguai de 2009 indicavam que existiam quase seiscentas cooperativas terminadas no país. No Rio de Janeiro, as experiências com inspiração no sistema uruguaio não chegam a uma dezena. Além disso, a propriedade coletiva experimentada em alguns projetos no Rio de Janeiro se assenta em um caráter informal, existindo algumas organizações que persistiram ao final das obras, mas não com o viés sistemático que foi desenvolvido no Uruguai. Dessa maneira, a pesquisa de campo, em cada contexto, foi realizada segundo metodologias específicas, o que não permitiu replicar procedimentos metodológicos em ambas conjunturas. *** No Rio de Janeiro, a pesquisa teve seu início no ano de 2014 e se estendeu até o início de 2016. Uma primeira etapa contou com a aproximação inicial junto ao campo de pesquisa. Por meio de uma revisão bibliográfica sobre experiências de 31 produção social do habitat na região metropolitana do Rio de Janeiro constituiu-se uma dupla sinalização: a constatação do pouco material de análise produzido até então sobre o tema e a identificação dos primeiros caminhos que a pesquisa poderia trilhar8. Após o contato com essa literatura, adotou-se o caminho de seguir aquelas experiências que haviam posto o sistema uruguaio de cooperativas de moradia como referência de suas práticas e concepções. Para tanto, procedeu-se a uma aproximação com técnicos e militantes em torno da Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião e da União por Moradia Popular (UMM) do Rio de Janeiro, que a literatura consultada indicava terem adotado como inspiração o sistema uruguaio de cooperativas de moradia. Deve-se ter em consideração que a pesquisa, nesse momento, realizou uma escolha dentre uma gama de experiências de produção social do habitat que tem como trajetória de efetivação o território a metrópole carioca. Para além das analisadas nessa tese, identificou-se outras como aquelas realizadas junto ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) ou do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), por exemplo9. A pesquisa, portanto, seguiu o rastro de uma parte das experiências de produção social do habitat no Rio de Janeiro, as quais colocavam de forma explícita a referência ao sistema uruguaio. A segunda etapa de pesquisa iniciou-se com a realização de um aprofundamento no contato com as experiências selecionadas. A partir da oportunidade de participação, em meados de 2014, em uma pesquisa junto à Fundação Bento Rubião sobre a experiência recente de produção social da moradia no Brasil10, foi se aprofundando o conhecimento sobre a trajetória dos projetos da 8 Esta primeira revisão bibliográfica mostrou que há uma análise mais ampla e numerosa sobre o processo similar que se iniciou na região metropolitana de São Paulo, a partir da década de 1980. Ao longo do texto serão citadas as principais referências sobre a produção acadêmica acerca do Rio de Janeiro 9 Cujos trabalhos de Mello (2015) e Teixeira (2012) são exemplos de análise das ocupações em áreas centrais da cidade do Rio de Janeiro junto ao MNLM. 10 A pesquisa foi desenvolvida pela Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião, com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP e sob responsabilidade do Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ). 32 entidade. Assim, até o início de 2015 foi possível empreender algumas atividades de campo que foram estratégicas para a pesquisa. Dentre tais atividades, primeiramente destaca-se uma pesquisa de campo exploratória em três projetos desenvolvidos pela Fundação Bento Rubião. Em abril de 2014 em Ipiíba, no município de São Gonçalo, foram acompanhadas as ações preparatórias para um novo projeto em vista de se desenvolver junto ao terreno de uma experiência já executado anteriormente. Em outubro de 2014 empreendeu-se uma visita ao grupo Shangri-lá, cuja obra foi finalizada no começo dos anos 2000, com a realização de conversas informais com os moradores. De forma mais sistemática, houve o acompanhamento, entre o final de 2014 e o começo de 2015, de três assembleias do Grupo Esperança, em Jacarepaguá, naquele momento em término de obras. O acompanhamento das assembleias do grupo permitiu aprofundar o conhecimento sobre a organização do processo de obra e de gestão do projeto, além de proporcionar momentos de conversas informais com os membros do grupo. Além desse trabalho de campo com caráter mais exploratório, foram realizados mais três momentos de entrevistas com viés mais sistemático, a partir de um roteiro de questões previamente elaboradas. Uma primeira ocorreu com o ex-coordenador executivo da Fundação Bento Rubião, levada à cabo em abril de 2015, por meio da qual foi possível obter uma visão panorâmica sobre os projetos desenvolvidos pela entidade. Outras duas entrevistas adotaram uma forma coletiva. A primeira ocorreu com técnicos da Fundação Bento Rubião, em abril de 2015, sobre o histórico dos projetos e sobre aquele em execução no momento. E outra foi realizado com membros da comissão de coordenação do Grupo Esperança, em junho de 2015, abordando-se alguns detalhes do projeto. *** 33 A pesquisa de campo no Uruguai iniciou-se na primeira metade do ano de 201511. A partir de uma revisão bibliográfica sobre o sistema uruguaio de cooperativas de moradia, foi empreendida uma primeira visita exploratória à Montevidéu em março desse ano12. A pesquisa foi realizada em um intenso período de campo, de cinco dias. Essa viagem envolveu uma aproximação de campo exploratória em algumas cooperativas, organizada pelo professor Raul Vallés da Facultad de Arquitecturay Diseño Urbano da Universidad de la Republica. Foram visitadas as seguintes cooperativas: Complejo Bulevar Artigas, VICMAN e Mesa 1, sendo as duas primeiras de poupança prévia e a última de ajuda mútua. Posteriormente foram realizadas entrevistas semiestruturadas com alguns técnicos de instituições consideradas chave para aprofundar determinadas questões identificadas na revisão bibliográfica. Foram entrevistados um assessor da Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua (FUCVAM) e pesquisador da Universidad de la Republica, dois dirigentes da Federación de Cooperativas de Vivienda de Usuarios por Ahorro Previo (FECOVI), uma pesquisadora da Unidad Permanente de Vivienda, que trabalha no campo de cooperativismo de moradia, um arquiteto do Centro Cooperativista Uruguayo (CCU) e um técnico da Agencia Nacional de Vivienda (ANV). Por fim, nessa primeira visita foi possível realizar entrevistas semiestruturadas com representantes de três cooperativas: um sócio fundador do Complejo José Pedro Varela, um membro do conselho diretivo da COVICIVI (uma cooperativa de reciclagem de um prédio histórico) e dois sócios de uma cooperativa em construção, COVIVEMA V13. 11 Deve-se ressaltar, nesse ponto, que a pesquisa da tese tomou uma guinada para firmar-se na direção do aprofundamento sobre o sistema uruguaio de cooperativas de moradia a partir da participação no seminário “A arquitetura, o urbanismo e a moradia popular: o fazer projetual para além do produto”, realizado pelo IPPUR e pelo PROURB da UFRJ, em outubro de 2014. O referido seminário contou com a presença do professor Raul Vallés, da FADU-UDELAR, o qual apresentou um detalhado panorama sobre o sistema uruguaio, permitindo firmar as primeiras bases para a pesquisa de campo no país vizinho. 12 Realizada com recursos próprios em parceria com o arquiteto João Paulo Huguenin, o qual também havia participado da pesquisa junto à Fundação Bento Rubião, citada anteriormente. 13 A sistematização dessa pesquisa de campo permitiu a produção de um artigo científico que discutiu algumas questões embrionárias sobre a inspiração brasileira no caso uruguaio. A feitura desse artigo possibilitou a participação em um seminário de pesquisa em Montevidéu, intitulado “Seminario Movimientos Sociales en Movimiento”, realizado na Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de la Republica, nos dias 11 e 12 de junho de 2015. O artigo foi escrito em parceria com o arquiteto João Paulo Huguenin. 34 Logo após essa primeira visita de campo foram realizadas duas entrevistas com atores chave com larga experiência no cooperativismo de moradia. Considerou-se que esses depoimentos seriam estratégicos para angariar informações aos objetivos da pesquisa, dada a trajetória profissional e pessoal dos entrevistados no campo da produção social do habitat. Em junho de 2015 foi empreendida uma entrevista com Gustavo González, um cooperativista que foi dirigente de FUCVAM e que atualmente trabalha junto ao Centro Cooperativista Sueco para a replicação da experiência uruguaia em outros países da América Latina. Já em outubro desse mesmo ano foi realizada uma entrevista com o arquiteto uruguaio Leonardo Pessina, o qual atuou no Centro Cooperativista Uruguayo durante um dos projetos pilotos dos anos 1960 e no assessoramento a cooperativas de moradia no início do sistema, e que, posteriormente, na década de 1980, trabalhou em projetos de mutirão autogestionários na região metropolitana de São Paulo. A primeira etapa de trabalho de campo no Uruguai proporcionou um conjunto inicial de materiais que possibilitou o aprofundamento sobre o conhecimento do sistema. Porém, ainda pairava no ar uma perspectiva de que o circuito explorado se concentrava naquele realizado para o conhecimento sobre o funcionamento modular do sistema. Para a abordagem das questões específicas da tese, vislumbrava-se ser necessário uma incursão mais aprofundada de campo, a qual permitisse uma abordagem mais próxima aos cooperativistas e uma exploração mais aprofundada de uma literatura existente somente no Uruguai. Assim, ao final de 2015 foi organizada uma proposta de estágio sanduíche no Uruguai, cuja concretização foi realizada entre os meses de junho e setembro de 2016, efetivando-se, desse modo, a segunda etapa de campo no Uruguai14. A pesquisa desenvolveu-se a partir de uma imersão densa, que se articulou desde uma dupla estratégia. Inicialmente, com a realização de uma revisão bibliográfica referente ao acervo disponível no próprio Uruguai. Em seguida, a partir de um conjunto de 14 O estágio sanduíche contou com uma bolsa concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), sendo orientado pelo professor Juan Pablo Martí, da Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de la Republica. Deve-se frisar que a confirmação da realização do estágio, pela entidade de fomento, ocorreu somente quinze dias antes do período de início do estágio. Isso acarretou um forçoso redirecionamento do caminho da pesquisa, que naquele momento já se reconfigurava quanto à abordagem metodológica que se realizava no Rio de Janeiro, a qual teve que ser interrompida para a realização do estágio. Desse modo, dado o cronograma de feitura desta tese, não foi possível retornar ao aprofundamento da pesquisa no Rio de Janeiro. 35 entrevistas semiestruturadas com dois grupos alvo, o primeiro com representantes de instituições consideradas estratégicas para o funcionamento do sistema e o segundo com um conjunto de sócios de cooperativas. Antes de detalhar a metodologia desenvolvida nesta etapa, deve-se ressaltar que, no momento inicial do trabalho de campo, foi possível identificar que a pesquisa no Uruguai estava envolvendo, e envolveria, somente a cidade de Montevidéu. Tomou-se consciência de que as leituras e as análises realizadas até então se concentravam nas experiências de cooperativismo de moradia empreendidas em Montevidéu – e não no país como um todo. Além disso, a adequação da proposta de pesquisa de campo a ser executada indicou que somente seria factível centrar-se nos casos da capital uruguaia. Assim sendo, deve-se ter em consideração que a tese centra sua análise em Montevidéu, não abordando as experiências em outras regiões do país, como o litoral e o interior. Além disso, a tese centra-se somente nas modalidades de ajuda mútua e poupança prévia em regime de propriedade coletiva, não abordando aquelas de autoconstrução e de proprietários, também previstas na Lei Nacional de Moradia15. A realização de entrevistas com atores-chave do sistema cooperativo de moradia no Uruguai teve como objetivo angariar informações complementares àquelas realizadas na primeira ida a campo no ano anterior. As entrevistas foram então empreendidas com profissionais da área de trabalho social de Institutos de Assistência Técnica (IAT), os quais assessoram cooperativas de moradia e cuja atuação laboral poderia aportar informações com maior incidência sobre o perfil dos cooperativistas com os quais trabalham. Além dos técnicos dos IATs, também foram entrevistados contatos de dois órgãos estatais, cujas referências fornecidas indicavam que poderiam aportar informações estratégicas para os objetivos da pesquisa. Foram entrevistados gestores do Departamento de Trabalho Social do Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente (MVOTMA) e do Instituto Nacional del Cooperativismo (INACOOP). Por fim, outra instituição que se decidiu entrevistar um representante foi a Confederación Uruguaya de Cooperativas (CUDECOOP), cujas 15 Deve-se, ainda, ter em consideração os diferentes níveis de análise de escala nos dois contextos abordados. Enquanto o Uruguai conforma-se em um país com uma populaçãode pouco mais de três milhões de habitantes, sendo que um terço habita a cidade de Montevidéu, a região metropolitana do Rio de Janeiro tem mais de onze milhões de habitantes, quase o triplo da população uruguaia. 36 informações sobre o movimento cooperativo no país se agregariam àquelas da entrevista com INACOOP. Para a pesquisa de campo junto às cooperativas de moradia, adotou-se a estratégia metodológica de realização de entrevistas semiestruturadas, com representantes da comissão de direção e sócios que não ocupassem, no momento, cargos de direção na cooperativa16. Decidiu-se pela realização de entrevistas com cooperativas dos dois sistemas construtivos baseados na propriedade coletiva das moradias, ou seja, por ajuda mútua e por poupança prévia. Para cada grupo formularam-se algumas perguntas específicas, devendo-se ter em consideração que há um maior número de experiências de cooperativas por ajuda mútua do que de poupança prévia (o que influenciou, como se constatará à frente, na delimitação do universo de entrevistas)17. Além dessa segmentação, estabeleceu-se uma configuração do universo de entrevistas por períodos históricos que marcam a trajetória do sistema uruguaio de cooperativismo de moradia. A periodização se fundamentou em trabalho Torrelli, Assandri, Marques e Martí (2015), o qual identifica as seguintes etapas, intituladas: a) o estabelecimento das bases e a rápida expansão (1969-1976), b) o desmantelamento do sistema (1977-1984), c) a inércia e mudanças do sistema, a recuperação democrática e a criação do MVOTMA (1985-2004) e d) a recriação das expectativas (2005 até hoje). Considerou-se que os dois primeiros períodos poderiam ser agrupados em um único, já que houve poucas experiências de cooperativismo de moradia com o desmantelamento do sistema a partir da ditadura militar de 1973. Assim, agrupou-se as cooperativas a serem alvo de entrevistas de acordo com os 16 A perspectiva adotada foi realizar um contato inicial com a direção para a organização de uma primeira entrevista sobre o histórico da cooperativa. A partir dessa entrevista se solicitaria o contato de dois sócios para a concretização de uma entrevista distinta sobre suas trajetórias de vida antes e depois da entrada na cooperativa. Pensou-se que um dos sócios a ser entrevistado tivesse uma trajetória de participação mais ativa na cooperativa (que houvesse participado de cargos em comissões em anos anteriores) e outro com participação menos ativa (que somente se engajou no período de obra, por exemplo). Com os dois primeiros sócios entrevistados verificou-se que o roteiro elaborado não proporcionaria a coleta de informações pretendidas. As respostas foram muito breves e pouco se explorou do conteúdo inquirido. Assim, resolveu-se descartar as entrevistas com os sócios, considerando-se, conforme avaliação do material coletado, que as entrevistas com as direções das cooperativas estavam proporcionando informações que superavam o previamente esperado. 17 Dados do Censo de Cooperativas de 2009 indicavam que cerca de 77% das cooperativas de moradia do Uruguai pertenciam à categoria de ajuda mútua e 22% a de poupança prévia (MACHADO, 2016). Como a pesquisa se delimitou à cidade de Montevidéu, considera-se que, como se verificará mais à frente, a relação de três entrevistas em cooperativas de ajuda mútua para uma em poupança prévia segue, em boa medida, a relação existente na realidade. 37 seguintes períodos históricos: o primeiro de 1969 a 1984, o segundo de 1985 a 2004 e o terceiro de 2005 a 2016. Por fim, definiu-se que o número de cooperativas passíveis de se realizar entrevistas dentro do cronograma de pesquisa seriam doze, sendo nove de ajuda mútua (três por cada período histórico) e três de poupança prévia (uma por cada período histórico). O quadro a seguir apresenta as cooperativas com as quais foram efetivamente realizadas entrevistadas, entre os meses de agosto e setembro de 201618. Quadro 1 – Cooperativas de moradia entrevistadas, por período histórico (Montevidéu, 2016) Período Sistema Cooperativa Nº de habitações 1º. (1969 - 1984) Ajuda Mútua COVICENOVA 102 COVIMT 2 43 COVISUNCA 2 71 MESA 1 420 Poupança Prévia COVISUR II 90 COMPLEJO BULEVAR 332 2º. (1985 - 2004) Ajuda Mútua COVIATU 18 26 COVIESS 90 II 37 COVIUNPRO 124 Poupança Prévia EL LADRILLO 10 3º. (2005 - 2016) Ajuda Mútua COVICORDÓN 58 COVIUN 14 COVIFAMI II (em construção) 30 Poupança Prévia PUERTO FABINI (em construção) 50 Fonte: elaboração própria. 18 No caso das cooperativas de ajuda mútua, em COVISUNCA 2 houve uma entrevista com um empregado administrativo da cooperativa, que forneceu valiosas informações sobre o funcionamento atual da cooperativa. No entanto, não se efetivou a entrevista com representantes da direção da cooperativa. Já com as cooperativas de poupança prévia, também se realizou entrevista com representante do conjunto de cooperativas Complejo Bulevar, visto que foi considerada, em outros depoimentos, como uma imprescindível experiência para o histórico do sistema de poupança prévia e para o surgimento de novas cooperativas a partir de filhos de cooperativistas desse complexo. Também houve participação em uma reunião da Comissão Inter-Cooperativas do Bairro Zitarrosa, com a presença de representantes de cinco cooperativas, em um território que desde o ano 2000 comporta a construção de mais de uma dezena de cooperativas. 38 Além das entrevistas estruturadas com as direções de cooperativas, também houve a participação em algumas atividades com cooperativas, que surgiram em virtude de contatos realizados em campo19. As entrevistas em Montevidéu foram transcritas e alguns trechos das falas são citados no texto da tese. Como foi dada a condição de anonimato aos entrevistados, as referências são realizadas por meio da numeração do sócio da cooperativa. Também se identificam as cooperativas por siglas que indicam sua modalidade e o período de construção. Dessa maneira, utiliza-se AM para “ajuda mútua” e PP para “poupança prévia”, conjugadas com o período de obra, quais seja, “1” entre 1969 e 1984, “2” entre 1985 e 2004, e “3” entre 2005 e 2016. Como exemplo de identificação da fala, tem-se o exemplo (Sócio B, COVIMT 2, AM1). Ou seja, trata-se da fala de um sócio da cooperativa COVIMT 2, da modalidade de ajuda mútua da primeira periodização. Desse modo se torna possível ao leitor relacionar a fala com o tipo de cooperativa. No apêndice A há uma lista mais detalhada das cooperativas, das datas de entrevistas e a relação dos entrevistados com falas citadas no texto. Além disso, ao final de cada seção do texto há a tradução dos trechos das entrevistas citadas20. 1.4 A estrutura do texto A escrita da tese estrutura-se a partir de quatro seções, além desta introdutória. A primeira (seção 2) tem o objetivo de apresentar ao leitor as principais características das experiências analisadas, de modo a familiarizá-lo com o modus operandi de cada 19 Também devem ser citadas algumas atividades complementares durante o período de pesquisa, que aportaram valiosos elementos para a investigação em curso, tais como a participação no Seminário Técnico de FUCVAM (30 de junho e 1º de julho de 2016) e na 65ª Assembleia Nacional de FUCVAM (16 e 17 de julho de 2016). Durante o período de pesquisa também foi possível participar de dois cursos de formação no tema do cooperativismo de moradia, o “Curso aberto de Gestão Cooperativa - Escola Nacional de Formação de FUCVAM” (seis encontros entre os meses de julho e setembro de 2016) e o curso "Cooperativismo de vivienda. El asesoramiento técnico: experiencias y nuevos problemas, requisitos y desafíos" (na Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de La Republica, de 22 de julho a 13 de agostode 2016). 20 Considerou-se que, pela utilização frequente do “voseo”, uma variante da língua espanhola praticada na bacia do Rio da Prata, seria de bom tom traduzir os trechos para melhor compreensão do leitor. 39 conjunto de projetos de produção social do habitat abordados. Valendo-se de uma perspectiva histórica, reconstituem-se os principais traços da conformação do sistema cooperativo de moradia no Uruguai e das iniciativas de processos autogestionários de produção habitacional no Rio de Janeiro. No contexto uruguaio são analisados os principais mecanismos de funcionamento do modelo de produção habitacional via cooperativas de moradia, de modo a se constituir uma apreensão dos principais traços distintivos desse sistema ao longo de suas cinco décadas de existência. Já a abordagem sobre o Rio de Janeiro busca iluminar os processos embrionários que permitiram a formulação de iniciativas que postularam a constituição de mecanismos autogestionários na produção do ambiente urbano. A partir dessas iniciativas embrionárias, focaliza-se a trajetória correlata que se formou desde um conjunto de experiências que adotaram o sistema uruguaio como referência. Assentada a compreensão sobre os contextos analisados, adentra-se um conjunto de análises sobre as bases sociais, políticas e econômicas dos projetos de produção social do habitat. A seção 3 trata propriamente de alguns aspectos estratégicos do terreno da formação social do Uruguai, em especial Montevidéu, em sua relação com a estruturação do sistema cooperativo de moradia. Sinteticamente, são analisados três processos considerados cruciais para se fazer mover a próxima seção de análise, configurada na abordagem do contexto das experiências do Rio de Janeiro. Estes três processos envolvem as dimensões do contexto geopolítico, da formação da classe operária uruguaia e da especificidade do estado de bem-estar desse país. As análises da seção 4 foram constituídas a partir do desenvolvimento daquelas da seção anterior, focalizando o Rio de Janeiro, mas sem se limitar a tanto. Em especial, pretende-se fazer pensar, a partir de uma perspectiva comparativa com a análise da seção anterior, algumas singularidades do contexto das experiências de autogestão habitacional na região metropolitana do Rio de Janeiro. A abordagem atravessa temas sobre a especificidade da base de urbanidade prévia sobre a qual se movimentam essas experiências e sobre questões relacionadas às dimensões analíticas relativas à cultura política, à trajetória das intervenções urbanas nas favelas e às transformações do mundo do trabalho. 40 Se, até então, foram empreendidas análises que se estruturaram a partir de um olhar sobre a base da formação social dos modelos de produção social do habitat, a seção seguinte busca mudar o foco e iluminar internamente esses sistemas. Por meio de uma espécie de abordagem das “maquinarias internas” da produção social do habitat, discutem-se questões que emergem, nesse projeto político, a partir do seu próprio funcionamento e das condições cambiantes de suas bases. Por meio de relatos de pesquisas de campo, acompanha-se mais detidamente alguns temas que, sem esgotar a abordagem analítica, apontam para tensões e dilemas que atravessam o sistema cooperativo de moradia no Uruguai e a autogestão habitacional no Rio de Janeiro. Por fim, as considerações finais, mais além do que recolher conclusões e assertivas, abre-se a repassar alguns pontos da análise precedente que instigaram a consecução de momentos de reflexão sobre o próprio projeto político de produção social do habitat. Desse modo, delimitam-se alguns campos de reflexão teórica em que a pesquisa se movimentou. 41 2 A PRODUÇÃO SOCIAL DA HABITAT EM MONTEVIDÉU E NO RIO DE JANEIRO 2.1 Cooperativismo de moradia no Uruguai A constituição do sistema de cooperativas de moradia no Uruguai ocorre na segunda metade da década de 1960. A promoção de três projetos piloto a partir do ano de 1965 – cuja construção das unidades habitacionais se inicia três anos depois – e a aprovação de uma Lei Nacional de Moradia (nº 13.728) no final de 1968, com um capítulo específico sobre o cooperativismo de moradia, podem ser considerados os atos iniciais desse sistema que tomaria corpo na década seguinte1. Logo após esses marcos inaugurais começaram a formar-se unidades cooperativas por todo o país, concentradas na capital Montevidéu. Com a aprovação da lei em 1968, o estado a regulamentou por decreto e, a partir de então, são viabilizados os três elementos chave para o funcionamento do sistema: a concessão de personalidade jurídica às unidades cooperativas, o aporte de solo urbanizado e a outorga de financiamento estatal – conjuntamente com o apoio de assessoria pelos Institutos de Assistência Técnica. Assim é que, desde os projetos pilotos finalizados e a regulamentação da lei, o sistema desenhado normativamente ganha concretude e escala. Como aponta uma passagem clássica do texto de Nahoum (1984), que revisa o processo de constituição das cooperativas de moradia, superadas las dificultades iniciales propias de una modalidad que era prácticamente inédita en el país [...], en 1975 uno de cada dos préstamos que se solicitaban ante el Banco Hipotecario del Uruguay para la construcción de una vivienda correspondían al régimen cooperativo (NAHOUM, 1984, p. 3). A proposta das experiências piloto foi gestada sob iniciativa do Centro Cooperativista Uruguayo (CCU), uma associação civil sem fins lucrativos fundada em 1 Utiliza-se aqui a tradução dos termos originais, em espanhol, “cooperativismo de vivienda” e “Ley Nacional de Vivienda” com algumas ressalvas. Os termos originais carregam uma distinção no modo como se constitui a especificidade do cooperativismo de moradia nesse país, distinta do que historicamente esse campo assumiu no Brasil, por exemplo – como se abordará nas próximas seções. Além disso, a Lei Nacional de Moradia guarda uma consideração especial por muitos comentaristas e militantes uruguaios desse campo, dadas as inovações introduzidas e sua perenidade ao longo de décadas. Como aponta Nahoum (2013e, p. 15), a Lei é “considerada con justicia una de las mejores votadas por el Parlamento uruguayo en los últimos cien años”. 42 1961 e que, até então, desenvolvia projetos com questões rurais (FRENS-STRING, 2001). A iniciativa do CCU, no cooperativismo habitacional, iniciou-se no ano de 1965, conforme aponta informativo de época, ao afirmar que “a fines de 1965, el Centro Cooperativista Uruguayo ante el problema habitacional que afrontaba el país, y en especial los sectores de población de menores ingresos, decide comenzar a trabajar en el campo de la vivienda” (CENTRO COOPERATIVISTA URUGUAYO, 1970, p. 135). A partir do ano seguinte se constituem os três que levarão à cabo as experiências piloto em três localidades do interior do país. Em Isla Mala, no departamento de 25 de mayo, foi organizado um grupo de assalariados rurais; em Fray Bentos, no departamento de Río Negro, um outro com empregados públicos municipais; e em Salto, no departamento de mesmo nome, o coletivo se formou a partir de uma organização de ferroviários (NAHOUM, 1984). No total, foram construídas noventa e cinco moradias pelas três cooperativas. O cerne da proposta nas três experiências piloto concentrava-se na organização dos núcleos familiares constituintes dos grupos para o gerenciamento de todas as dimensões de construção de suas futuras moradias, com a utilização de mão- de-obra própria (a “ajuda mútua”) no processo construtivo. Adotando-se a figura jurídica das cooperativas de consumo (em virtude do quadro normativo vigente, que não previa a formação de cooperativas habitacionais), os grupos se estabeleceram juridicamente com a assessoria do Centro Cooperativista Uruguayo e se tornaram responsáveispor todo o processo de gestão do projeto, desde a aplicação dos recursos financeiros até a organização do canteiro de obras. Pessina (2013, p. 57) comenta, nesse sentido, sobre o projeto de Isla Mala, que “el grupo asumió la autogestión, la ayuda mutua y todo lo que esto implicaba”. O processo de formatação dos projetos iniciou-se no ano 1966 e somente foi ter o início de obras no final de 1968. Como aponta o mesmo informativo do CCU citado anteriormente, “concretar esta aspiración implicó un largo y perseverante esfuerzo de casi 3 años” (CENTRO COOPERATIVISTA URUGUAYO, 1970, p. 136). Enquanto cooperativas de consumo, foram elaborados os estatutos e regulamentos internos, sendo a personalidade jurídica outorgada pela “Inspección de Hacienda del Ministerio de Economía y Finanzas”. 43 O Centro Cooperativista Uruguayo realizou um trabalho de constituição de parcerias para o aporte de recursos financeiros que viabilizaram o acesso ao terreno onde foram construídos os projetos, além do empréstimo para construção. As parcerias envolveram diversos tipos de entidades e instituições. As intendências e departamentos2 locais, o governo nacional, por meio do Instituto Nacional de Viviendas Económicas, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a organização alemã Misereor3 viabilizaram o aporte de solo urbanizado e de recursos financeiros. Como aponta González (2013, p. 50) sobre o apoio da instituição alemã, “el CCU tramita frente a Misereor [...] un préstamo para la compra de terrenos y Misereor coloca como condición que fuera en el interior del país”. Em Isla Mala, segundo Pessina (2013), o CCU também forneceu uma máquina de blocos, adquirida com recursos da mesma entidade alemã. O financiamento estatal foi aportado por meio do Instituto Nacional de Viviendas Económicas (INVE), órgão do governo nacional uruguaio responsável, naquele momento, pelas políticas habitacionais do país. Os recursos eram provenientes de empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento4. Tratava-se de parte dos valores de um empréstimo que o Banco havia disponibilizado ao governo uruguaio, mas que estavam impossibilitados de aplicação por ausência de aporte de contrapartida do gestor uruguaio. Como aponta retrospectivamente um periódico do CCU, “en esos años Uruguay había obtenido un préstamo del BID para construir 3.000 viviendas, pero debía aportar igual monto, unos 8 millones de dólares, suma que no disponía a esos efectos” (CENTRO COOPERATIVISTA URUGUAYO, 2012, p. 21). A proposta dos projetos piloto tornou possível destravar o acesso à parte desses recursos, por meio da utilização da própria mão-de-obra das famílias cooperativistas enquanto contrapartida aos recursos do BID. Assim, continua o trecho citado da publicação, con iniciativa del CCU y el aporte de los cooperativistas como parte de la cuota nacional y gracias a la intermediación del Instituto Nacional de Vivienda Económica (INVE) se accedió a los fondos para las 95 viviendas de esas tres 2 A divisão administrativa no Uruguai envolve o nível inferior das intendências, seguida pelos Departamentos e, então, pelo Governo Nacional. 3 A Misereor é uma organização alemã fundada por bispos católicos no ano de 1958. 4 O Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID foi criado no ano de 1959, com o objetivo de financiar projetos de desenvolvimento regional na América Latina e no Caribe. Sua carteira foi conformada por recursos de países da região, mutuários do banco, e por outros países e instituições, não mutuários do banco. 44 cooperativas pioneras (CENTRO COOPERATIVISTA URUGUAYO, 2012, p. 21). Em março de 1968 a direção do INVE incluiu, por resolução, os projetos piloto no “Plano de Construções a Curto Prazo”. Em outubro e novembro do mesmo ano foram firmados os convênios com as cooperativas. No mês de dezembro iniciaram-se as obras5. *** Simultaneamente à gestação e início das experiências piloto, o governo uruguaio estava organizando medidas para estimular a dinâmica do mercado imobiliário, que naquele momento passava por uma forte desaceleração (TERRA, 1969). O governo, juntamente com o parlamento uruguaio, debatia desde 1967 uma peça legislativa que promovesse a reorganização do setor, impulsionando a retomada de seu crescimento. Como resultado desse processo, a Lei Nacional de Moradia foi promulgada em 17 de dezembro de 1968, sob o número 13.728. Com duzentos e doze artigos e catorze capítulos, a Lei versa sobre a classificação dos beneficiários das políticas habitacionais, as condições e tipos de moradias do país (com a definição de um “mínimo habitacional”6), a organização da oferta de crédito e subsídio, regulamenta os sistemas de crédito, poupança e empréstimo e o sistema público de produção 5 Mais especificamente sobre o projeto de Isla Mala, o arquiteto uruguaio Leonardo Pessina – que foi o coordenador de obra quando recém havia integrado o CCU – assim relembra as características do grupo, formado “fundamentalmente por operários do gado leiteiro, trabalhadores rurais que moravam perto da cidade, mas que ficavam a semana toda dormindo no trabalho” (PESSINA, 2015). Desde tal característica é que nessa obra “a força máxima durante a semana era das mulheres” (PESSINA, 2015). Sobre o projeto, recorda que “o arquiteto Mario Spallanzani fez o projeto mais orgânico, tinha casa de dois, três e quatro dormitórios” (PESSINA, 2015). Do ponto de vista urbanístico, também considera que havia uma perspectiva interessante “onde todos os dormitórios tinham sol, o ‘asoleamiento’ que chamamos em espanhol. As janelas tinham ‘chanfles’ [cortes] na planta e aí ia se mexendo no projeto urbano e todos dormitórios tinham sol pelo menos de manhã” (PESSINA, 2015). 6 O mínimo habitacional instituído na lei também define os parâmetros para o número de dormitórios necessários em cada moradia, de acordo com a composição familiar. 45 habitacional, além de criar a Direção Nacional de Moradia7 como órgão responsável pela política nacional de habitação. No seu capítulo X a Lei institui uma regulamentação específica sobre o cooperativismo de moradia. Ali estão previstas as formas de organização do sistema, com o estabelecimento dos mecanismos de constituição jurídica e estatutária das cooperativas, do respectivo patrimônio social, a previsão das modalidades construtivas e de propriedade, a diferenciação entre as unidades cooperativas e as cooperativas matrizes, além da regulamentação da figura dos Institutos de Assistência Técnica (IATs). A redação da Lei Nacional de Moradia e a concretização das três experiências piloto foram acontecimentos simultâneos que sustentaram o capítulo sobre o cooperativismo de moradia previsto na Lei. Leonardo Pessina – em artigo escrito recentemente – assim aponta para o entrelaçamento entre esses dois acontecimentos, ao comentar que “los parlamentarios visitaron las obras y las autoridades designadas enseguida para poner en marcha el nuevo sistema de vivienda también lo hicieron y se entusiasmaron con la idea” (PESSINA, 2008, p. 31). Documento do Centro Cooperativista Uruguayo ressalta que, mesmo antes da finalização das obras das experiências piloto no interior do país e da aprovação da Lei Nacional de Moradia, grupos cooperativos já começavam a se constituir, principalmente em Montevidéu. O documento destaca que “desde 1967 [...] diversos conjuntos de familias de todo el país solicitan asesoramiento al CCU a los efectos de constituir cooperativas de viviendas” (CENTRO COOPERATIVISTA URUGUAYO, 1970, p. 138). Assim, logo após a aprovação da Lei Nacional em 1968, coletivos já estavam formados aguardando regulamentação, por meio de decreto, para formalizar a constituição jurídica. Em entrevista, o sócio fundador de uma cooperativa pioneira, que se formara nessa época,comenta a espera sobre a regulamentação afirmando que “hasta que no se salió la reglamentación no podíamos funcionar. [...] y cuando se aprueba la reglamentación es donde las cooperativas arrancan con todo” (Sócio B, COVIMT 2, AM1)A. 7 “Dirección Nacional de Vivienda”, cuja sigla é DINAVI. 46 No final do ano de 1969 o decreto 633/69, de 17 de dezembro, aprova a regulamentação do capítulo X da Lei Nacional de Moradia. E seguida a aprovação da regulamentação, as cooperativas já formadas se constituem juridicamente e apresentam seus projetos ao governo nacional. Como resgata o citado documento do CCU, logo após a aprovação da regulamentação ao final de 1969, “ocho unidades cooperativas asesoradas por el Centro Cooperativista Uruguayo presentaron a la Dirección Nacional de Viviendas los proyectos completos de sus respectivos barrios” (CENTRO COOPERATIVISTA URUGUAYO, 1970, p. 138). Desse modo é que o sistema já contava com os projetos de suas primeiras cooperativas, em tramitação, no início de 1970. Entre o começo e o final das obras das experiências piloto, as três cooperativas em obra e aquelas que já haviam se constituído e aguardavam a regulamentação para apresentação de projeto, começaram a realizar encontros, que discutiam questões em comum sobre o sistema em formação. Em especial a modalidade de ajuda mútua, já que os pilotos e a maioria daquelas em formação adotaram esta modalidade8. É nesse processo de obras das três primeiras cooperativas, formação de novos grupos e aprovação e regulamentação da Lei Nacional de Moradia, que ocorrem as reuniões que se constituem no embrião para a formação de uma federação de cooperativas de ajuda mútua. Entre setembro de 1968 e maio de 1970 foram realizados quatro encontros que envolveram as três cooperativas pioneiras e outras que se formaram nas cidades de Paysandú e Montevidéu – as duas de maior população no país. Formou-se então um Conselho Representativo Nacional e um Secretariado Executivo que organizaram o quinto encontro, onde foi concretizada a proposta da Federação. Assim, no mesmo dia da inauguração do projeto piloto de Isla Mala, em 24 de maio de 1970, funda-se a Federação de Cooperativas Uruguaias por Ajuda Mútua (FUCVAM). Como aponta Leonardo Pessina, em depoimento ao autor, “se inaugura a cooperativa de Isla Mala e ao mesmo tempo se funda a FUCVAM no mesmo ano, com as três cooperativas 8 As cooperativas de poupança prévia também passaram a se formar nesse período, como é o exemplo de VICMAN (Cooperativa Matríz de Vivienda Malvín Norte), fundada em 18 de fevereiro de 1968. Há pouco material sobre a constituição da modalidade de poupança prévia no cooperativismo de moradia no Uruguai, por isso atém-se à história da modalidade de ajuda mútua. 47 que estavam construindo e algumas que já tinham sido incentivadas por nós [CCU] e organizadas em Montevidéu” (PESSINA, 2015)9. Com a regulamentação pronta, as cooperativas constituídas necessitavam começar o ciclo inicial de concretização das obras, que passava pela cadeia do apoio técnico via Institutos de Assistência Técnica, aprovação de projetos, acesso ao solo urbanizado e financiamento monetário. Contando com apoio estatal, acessam-se terrenos e os primeiros financiamentos do Banco Hipotecário do Uruguai (BHU) são concedidos em janeiro de 1971. Assim é que o Boletim nº 1 de FUCVAM, de março desse ano, anunciava o início de permissão de obras para quatro cooperativas: después de una larga espera, salió al fin la autorización para comenzar a construir las obras de las cooperativas COVIMT 1, COVIMT 2, COVIMT 3 y COVINE 1. Felicitaciones por la constancia en la espera a los compañeros, a quienes ya vemos en la ardorosa tarea del pico y pala (FUCVAM, 1971, p. 4). Figura 1 – Notícias do primeiro boletim de FUCVAM sobre o início de obra nas cooperativas de moradia por ajuda mútua (Montevidéu, 1971) Fonte: FUCVAM (1971, p. 4). 9 FUCVAM surgiu como uma federação que pretendia representar as cooperativas de ajuda mútua. Sobre o sistema de poupança prévia, não se conseguiu angariar muitas informações sobre a federação que as nucleava, a FENACOVI. Segundo dados do endereço eletrônico da entidade, FENACOVI foi fundada em 1969 e posteriormente dissolvida com a ditadura, a partir de 1973. A federação de cooperativas de poupança prévia ressurgiu com a abertura democrática em 1984. 48 Em menos de três anos de aprovação da Lei Nacional de Moradia, as primeiras cooperativas já iniciavam sua etapa de obra. A partir de então o sistema cooperativo de moradia no Uruguai adentra um período de ganho de escala. Antes de analisar os detalhes sobre como o sistema se expandiu, pontuam-se algumas características essenciais para a compreensão sobre o funcionamento do sistema. 2.1.1 Cooperativismo na Lei Nacional de Moradia A Lei Nacional de Moradia, em seu capítulo X, e posteriormente sua regulamentação por meio de decreto 633/969, constituíram-se nas peças jurídicas que formataram, inicialmente, todo o sistema cooperativo de moradia10. As três principais modalidades de construção a serem adotadas pelas cooperativas são a “ajuda mútua”, a “poupança prévia” e a “autoconstrução”11. O regime de ajuda mútua conta com o aporte da própria mão-de-obra dos sócios da cooperativa, assim como naquele de autoconstrução, com a distinção de que na primeira a forma é coletiva, na qual todos os sócios trabalham em todas as unidades habitacionais da cooperativa. A mão- de-obra própria em uma cooperativa de ajuda mútua é considerada enquanto o rendimento mais básico do setor construção, devendo ser calculado monetariamente para a composição de seu capital social12. O aporte de ajuda mútua é complementado por trabalhos especializados contratados pela cooperativa. No regime de poupança prévia os sócios da cooperativa constituem um fundo monetário prévio à etapa de obra, sendo esta a responsável pela gestão do processo construtivo. A realização da obra é delegada a uma organização externa ao grupo, adotando-se várias formas de gestão (desde a delegação total a uma empresa construtora até a contratação de serviços especializados, por exemplo). 10 A Lei sofreu várias alterações ao longo do tempo. Nesta sessão se repassa o caráter mais geral do sistema, a partir dos principais traços identificados na legislação original. 11 Cada cooperativa deve criar seu regimento interno que disciplina todo o funcionamento quanto ao regime de construção e de propriedade. A lei também define a forma de organização das cooperativas para a construção do empreendimento, a partir de constituição de diretorias e comissões específicas. 12 Toma-se como referência o rendimento do trabalho equivalente ao de um peão da construção civil, descontados os aportes de seguridade social. Uma discussão mais detalhada sobre a formação do capital social e o trabalho de ajuda mútua é realizada na seção 5. 49 Historicamente, a modalidade de ajuda mútua angariou o maior número de cooperativas. De acordo com dados do Censo Cooperativo Uruguaio de 2009, 76,9% das cooperativas de moradia foram construídas por ajuda mutua, 22% via poupança prévia e 1% por autoconstrução (MACHADO, 2016, p. 34) O sistema também prevê duas modalidades de propriedade: aquela que é individualizada aos sócios, conhecida como “de proprietários”, e a de propriedade coletiva, conhecida como “de uso e gozo”. Na primeira, as unidades habitacionais, após o término da obra ou do financiamento, tornam-se propriedade individual do sócio13, e na segunda, quando finalizada a construção, as unidades habitacionais permanecem como propriedade da cooperativa, tornando-se os sócios “usuários” de uma moradia. Neste regime os cooperativistas detêm um capitalsocial que lhes dá o direito à unidade de residência, regulada por um contrato de uso e gozo. A modalidade de usuários é a que, historicamente, contabiliza o maior número de cooperativas, 72,3% do total, segundo dados do Censo Cooperativo Uruguaio de 2009 (MACHADO, 2016, p. 34). Nas cooperativas com regime de propriedade coletiva, caso o cooperado resolva se retirar – a lei prevê as condições em que isso pode ocorrer –, terá direito à restituição do valor monetário de seu capital social, descontados os encargos previstos para a cooperativa (os quais variam segundo a regulamentação, referindo- se ao tempo de permanência, motivação para saída e estruturação do empréstimo). O novo sócio, que é admitido pela cooperativa, deve aportar o valor do capital social do sócio egresso. A transferência do capital social é prevista para os herdeiros em caso de falecimento do sócio e, também, nos casos de divórcio do núcleo familiar. Portanto, as cooperativas podem conformar-se em distintas configurações que variam segundo a combinação das modalidades de construção e de propriedade da moradia. As cooperativas de usuários podem ser construídas por ajuda mútua, poupança prévia ou autoconstrução, assim como as cooperativas de proprietários podem ser construídas por esses mesmos sistemas construtivos. 13 A lei prevê que a cooperativa de proprietários poderá reter a propriedade das unidades habitacionais até o fim da quitação do empréstimo pelos sócios, sendo que a estes é facultado continuar integrando a cooperativa. 50 Cada grupo é considerado enquanto uma “unidade cooperativa”, a qual se constitui a partir da concessão de uma figura jurídica reconhecida pelos órgãos governamentais14. A lei também prevê as “cooperativas matrizes”, as quais se formam com o intuito de organizar as unidades cooperativas em formação. Podem ter origem gremial ou sindical e prestar serviços às unidades cooperativas, tais como de assistência técnica, compra de terrenos e projetos de urbanização. Está prevista, legalmente, a constituição de comissões e fundos para o funcionamento das cooperativas. As comissões obrigatórias são a assembleia geral (órgão máximo da cooperativa), o conselho diretivo (eleito entre os sócios e encarregada pelo cumprimento das decisões em assembleia), a comissão fiscal (de caráter fiscalizador da gestão cooperativa) e a comissão de fomento (responsável pela promoção dos valores cooperativos entre os sócios). Durante toda a existência da cooperativa15 podem ser criadas outras comissões – como no período de obras, por exemplo, quando são organizadas as comissões de obra, trabalho e compras para o gerenciamento de todo o processo construtivo. Para o suporte à existência das cooperativas é exigida, legalmente, a constituição de fundos monetários para o desempenho de suas atividades. Os fundos previstos na lei são: fomento (para promoção dos valores cooperativos), socorro (para cobrir eventuais dificuldades de pagamento das obrigações junto à cooperativa), manutenção (para cobrir os desgastes das moradias) e serviços comuns (aqueles decorrentes da manutenção das condições comuns da cooperativa). As cooperativas contam com estatutos, regulamentos de obra e de convivência, os quais definem as formas de composição e de renovação dos órgãos diretivos. Para a constituição da cooperativa, os sócios devem realizar um aporte inicial para a composição de seu capital social, sendo um mínimo estipulado em lei16. Após a concessão da figura jurídica, a cooperativa basicamente deverá contratar um Instituto de Assistência Técnica para assessorá-la, garantir o acesso ao solo 14 A lei estipula um número mínimo de dez de sócios e um máximo de duzentos. A partir dos anos 1990 foi prevista a exceção de um número mínimo de seis sócios para as cooperativas de reciclagem de imóveis já construídos. 15 No caso das cooperativas de regime de uso e gozo, seu período de existência é ilimitado. 16 De duas “unidades reajustáveis”, uma unidade de referência monetária criada pela Lei Nacional com o objetivo de indexar os valores dos financiamentos habitacionais. 51 urbanizado (ou outra solução habitacional, como a reforma de um edifico ou de um prédio histórico17), elaborar os planos construtivos e acessar o financiamento. O empréstimo imobiliário às cooperativas é realizado majoritariamente por aporte estatal. A Lei Nacional de Moradia instituiu um Fundo Nacional de Moradia, para o qual previu-se o aporte de 2% da remuneração dos trabalhadores assalariados: 1% como contribuição dos empregadores e outro 1% dos aportes realizados à seguridade social18. O Fundo tem a previsão de uma conta destinada aos empréstimos, sendo que o financiamento ao sistema cooperativo tem um caráter rotativo, ou seja, as unidades cooperativas devolvem todo o valor tomado do fundo. E, também, uma conta de subsídio, o qual, segundo a Lei Nacional, poderá ocorrer sob diversas formas, dentre elas a possibilidade de subsídio à unidade habitacional ou, então, à família19. O acesso à terra para a construção dos projetos habitacionais comumente é realizado por meio de compra de privado. Durante diversos momentos houve o acesso a uma carteira de terras organizada pelo estado, mas sempre ocorrendo a compra pela cooperativa. A lei também prevê que as cooperativas devem ser assessoradas por Institutos de Assistências Técnica. Os institutos são regulados pelo estado e tem que atuar de forma interdisciplinar (nos campos da arquitetura, urbanismo, contabilidade, jurídico e social), não ter objetivos de lucro e obter uma personalidade jurídica para funcionamento. O Instituto presta serviços à cooperativa, sendo remunerado pelos parâmetros do financiamento estatal e conforme percentual do valor de financiamento20. Assim, serviços complementares de assessoria devem ser arcados com recursos da própria cooperativa. 17 No sistema uruguaio, o cooperativismo de moradia sempre se destina à construção de novas unidades habitacionais. Assim, difere, por exemplo, do modelo dinamarquês (Andel), onde inquilinos de um prédio podem organizar-se para adquiri-lo junto ao proprietário e, então, realizar a administração de forma cooperativa. Sobre o modelo dinamarquês, ver Larsen e Hansen (2015). 18 Durante a ditadura esse sistema de aporte ao Fundo foi suprimido e, a partir de então, passou a depender de destinação orçamentária pelo governo. 19 O subsídio aos valores de empréstimo retornável ao fundo tem variado no tocante às taxas de juros e de administração. 20 Contemporaneamente definido em 7% dentro valor do financiamento concedido, acrescido dos devidos impostos que incidem nas atividades do Instituto. 52 2.1.2 Etapa inicial: ganho de escala Ao se ler o informativo da recém-criada Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua (FUCVAM) de março de 1971, as metas de construção habitacional por cooperativas, junto ao Plano Nacional de Moradia do Governo Nacional, apontam para o objetivo de ganho de escala do sistema nos três primeiros anos após a regulamentação da Lei Nacional. Os números exibem a perspectiva de um crescimento acelerado: para o ano de 1970 se estabelece a construção de cento e trinta unidades habitacionais, em 1971 são projetadas mil oitocentas e vinte e, para 1972, tem-se a perspectiva de conclusão de duas mil unidades habitacionais através do sistema por ajuda mútua (FUCVAM, 1971, p. 3). A proposta do plano de metas de FUCVAM encontrou ressonância do lado estatal. A Lei Nacional de Moradia havia criado a Direção Nacional de Moradia (a Dirección Nacional de Vivienda, cuja sigla é DINAVI) na estrutura do Ministério de Obras Públicas, enquanto órgão coordenador das ações no campo habitacional dentro das competências do Governo Nacional.Os gestores, que passaram a integrar a DINAVI, levaram à frente a proposta de constituir o sistema de cooperativas de moradia, previsto em lei e que deveria ser tirado do papel. González (2013) comenta que o órgão contava com poucos recursos para seus trabalhos diários, mas afirma que “aquella dirección de la DINAVI fue quien también impulsa el modelo cooperativo” (GONZÁLEZ, 2013, p. 51)21. Ao tomarem contato com as três experiências piloto, em plena fase de obra naquele primeiro ano após a aprovação da Lei Nacional de Moradia, os novos gestores da DINAVI parecem ter se entusiasmado com o que viram como perspectiva de estruturação desse novo sistema. O arquiteto Leonardo Pessina, que naquele momento trabalhava no CCU assessorando a obra de Isla Mala, comenta, em um tom tanto informal sobre esses gestores, que “os caras que foram para a Direção Nacional de Habitação eram caras legais e se encantaram com a proposta de ajuda mútua e 21 Deve-se ter em consideração que o governo eleito de então, sob a presidência de Jorge Pacheco Areco, do Partido Colorado, tinha um perfil conservador, como indica o próprio González (2013, p. 51), ao caracterizá-lo como “un gobierno de neto corte de derecha y autoritario, en un momento de gran polarización de la lucha de clases”. 53 propriedade coletiva” (PESSINA, 2015). Esse encanto se fez muito sobre as visitas que foram realizadas aos três projetos piloto. Como continua Pessina ao falar sobre o diretor da DINAVI, “nós tínhamos um Ministro e o [Gustavo] Nicolichi, que era da Direção Nacional de Habitação, que era aquele baixinho maluco. O Nicolichi se encantou com a proposta, foi a Isla Mala, Salto e Fray Bentos, convenceu o Ministro e foi tudo apoiado” (PESSINA, 2015). Com o apoio da DINAVI e, no bojo, da estrutura do Governo Nacional22, conformou-se um circuito que se mostrou virtuoso para o ganho de escala do sistema cooperativo de moradia. Em um primeiro momento emergem as três experiências piloto e aprova-se a Lei Nacional de Moradia, seguido pela conformação dos primeiros grupos cooperativos – que concomitantemente passavam a se federar – consolidando-se com o assessoramento provido pelos Institutos de Assistência Técnica – dentre os quais tinha proeminência o Centro Cooperativista Uruguayo. Por fim, a aposta do recém-criado órgão de governo – a DINAVI – levou água ao moinho do circuito de viabilização das cooperativas, basicamente alavancando a cadeia necessária à maquinaria do sistema cooperativo, conformada pelo circuito de reconhecimento da personalidade jurídica, acesso ao solo urbanizado e financiamento estatal23. Além disso, o financiamento se fazia sustentar gradativamente pelo aporte de recursos ao Fundo Nacional de Moradia, por meio de mecanismo previsto em lei, com a contribuição de 2% de todos os salários do país. Apesar de não existir muitas referências sobre a forma como se acessavam os terrenos pelas cooperativas nesse período, observa-se, em diversos relatos coletados em campo, o formato de acesso pela compra de privados. Um fato bem ventilado entre os cooperativistas de Montevidéu é que, naquele momento, a DINAVI conformara uma espécie de carteira de terras, a partir de ativos de bancos que estavam em crise. Dado o período de recessão que vivia o país, a forma que os bancos solucionavam dívidas com o governo uruguaio se fazia por meio da transferência de terrenos sob sua posse. 22 Que envolvia não só a referida diretoria, mas também outros órgãos, como na concessão de empréstimos de outro ente governamental, o Banco Hipotecário do Uruguai. 23 Evidente que não se tratou de um processo linear, sendo perpassado por conflitos e pela criação paulatina de aprendizado institucional. Como bem pode-se constatar nesse informe de FUCVAM, sobre o processo de trâmite de análise do terreno da cooperativa COVIMT 9, ao comentar que “el pedido que fue presentado el 12/6/1972 se perdió en la DINAVI, siendo encontrado por funcionarios del CCU la semana pasada, por lo que recién le dieron entrada” (FUCVAM, 1972a, p. 8). 54 Assim é que esses terrenos foram postos à disposição para aquisição pelas cooperativas em formação. Nesse período inicial, a oferta de terra conformou-se, para boa parte dos projetos, em terrenos com localização periférica e de grandes dimensões. É a partir dessa configuração que vão se constituir as Mesas Intercooperativas. Estas agregavam diversas cooperativas em um mesmo projeto, de forma a aproveitar as dimensões dos grandes terrenos. O depoimento de um sócio da Mesa 1 (figura 2) expõe um pouco como ocorria esse processo. Segundo ele, sua cooperativa foi formada por vinte e cinco sócios, “por el año sesenta y ocho, setenta y no encontrábamos un terreno adecuado a nuestras necesidades” (Sócio A, MESA 1, AM1). Tratava-se de uma cooperativa de caráter territorial, constituída por vizinhos de um bairro de Montevidéu. Nessa procura, então, prossegue o cooperativista, “a través del instituto asesor – el Centro Cooperativista Uruguayo –, nos propusieron integrar junto con otras cooperativas un predio más grande, formando lo que se denomina Mesa, por qué reúne varias cooperativas” (Sócio A, MESA 1, AM1)B. A Mesa 1 então se conformou com quatro cooperativas de origem sindical e uma de origem territorial, totalizando quatrocentos e vinte unidades habitacionais24. As Mesas contam com os próprios organismos de deliberação interna e, também, de própria coordenação entre as cooperativas constituintes. Assim, a cidade de Montevidéu – e algumas outras do interior do país, como Paysandú – transformaram determinadas áreas urbanas em canteiros de construção dos primeiros conjuntos habitacionais cooperativos. Como algumas análises indicam (NAHOUM, 1984), em cinco anos o sistema cooperativo tornou-se o principal item de investimento dentro do Plano Nacional de Moradia do governo nacional. De projeto experimental à capitulo da Lei Nacional, o sistema cooperativo tornava-se a principal modalidade de investimento do plano 24 O projeto urbanístico da Mesa 1 foi elaborado promovendo a mescla dos sócios das cooperativas entre as unidades habitacionais de todo o complexo, pois sua setorização adotou o partido do número de dormitórios por unidade habitacional. 55 habitacional estatal. O que se observa nesse período inicial, portanto, é o ganho de escala de um sistema novo na forma de produção de moradia via cooperativas. Figura 2 – Mesa 1, bairro “Nuevo Amanecer” (Montevidéu, 2015) Fonte: acervo do autor. Os dados da tabela a seguir (tabela 1) permitem visualizar como, em uma década, há a multiplicação das unidades do sistema e de sua produção habitacional. Entre 1969 (ano da regulamentação) e 1978 (já no período da ditadura, quando decai drasticamente o apoio estatal – como se verá mais à frente), multiplica-se em quase vinte e cinco vezes o número de cooperativas e em quase trinta e duas vezes o número de sócios. O montante de unidades cooperativas salta de treze para trezentos e catorze e o de sócios sai de quatrocentos e sessenta e seis para mais de catorze mil. Para além dos três departamentos onde foram realizadas os projetos piloto e a capital Montevidéu, todos os departamentos do país passam a contar com cooperativas de moradia em uma década. 56 Tabela 1 – Número de sócios e de unidades cooperativas de moradia, por departamento (Uruguai, 1969 e 1978) Departamento 1969 1978 Cooperativas Sócios Cooperativas Sócios Artigas - - 1 50 Canelones - - 8 323 Cerro Largo - - 9 329 Colonia - - 13 446 Durazno - - 2 94 Flores - - 3 115 Florida 1 25 3 117 Lavalleja - - 1 92 Maldonado - - 8 290 Montevideo 7 277 218 10.920 Paysandú 3 92 15 622 Rio Negro 1 30 3 97 Rivera - - 6 91 Rocha - - 1 60 Salto 1 42 8 305 SanJose - - 6 224 Soriano - - 2 106 Tacuarembo - - 4 215 Treinta y Tres - - 3 91 TOTAL 13 466 314 14.587 Fonte: Departamento de Administración de Programas de Vivienda del Banco Hipotecario del Uruguay apud Perazza (1978). Nesse interim, FUCVAM vai se consolidando enquanto a federação que representa as cooperativas de ajuda mútua e algumas experiências são realizadas no tema da gestão de obra. Dentre algumas delas, a partir do paulatino início das obras cooperativas cria-se a Central de Compras (“Central de Suministros”). Segundo depoimento do cooperativista Domingo Mendivil, então secretário de FUCVAM em 1970, “la Federación surge [...] en mayo de 1970, en diciembre del mismo año ya había comenzado a funcionar la Central de Suministros” (CENTRO COOPERATIVISTA URUGAYO, 1982, p. 37). A Central de Compras buscava, desse modo, centralizar o processo de aquisição dos insumos da construção de todas as cooperativas em construção, de maneira a baratear os preços adquiridos junto aos fornecedores. Em entrevista para a publicação de FUCVAM do ano de 1975 (FUCVAM, 1975a, p. 9), o cooperativista Julio C. Briano, então integrante da Comissão 57 Administradora da Central de Compras, explica que esta “nace con finalidad de abaratar costos de producción y obtener mejores condiciones de compras para las cooperativas”. E complementa afirmando que a central tem como objetivo coordenar os trabalhos das diversas obras em execução, pois “busca fundamentalmente canalizar esfuerzos comunes de las cooperativas, evitando la competencia entre las mismas” (FUCVAM, 1975a, p. 9). Desse modo, segundo ele, “con la complementación se podía obtener mejores condiciones en precios, calidades y formas de pago (FUCVAM, 1975a, p. 9). A Central se expandiu e, na época da entrevista, com cinco anos de existência, atendia outras modalidades de produção habitacional, como remarca Bianco ao explicar que “no se reduce a servir a cooperativas de ayuda mutua, sino que han recurrido a ella muchas cooperativas de ahorro previo, y hasta otras instituciones, como el Fondo Social de Empleados y Obreros de CUTCSA, por ejemplo” (FUCVAM, 1975a, p. 9). Além disso, a Central atuava não só na capital uruguaia, senão que “ha servido y sirve a cooperativas de todo el país, y no solamente de Montevideo” (FUCVAM, 1975a, p. 9). Mecanismos de autogestão do consumo, em escala, de insumos da construção para um sistema que ganha escala, o cooperativismo de moradia estava em franca expansão. Porém, em 1973, o golpe militar foi perpetrado no Uruguai. O complexo cooperativo adentrou o estado de exceção construindo suas unidades habitacionais, mas não por muito tempo. Os bons ventos deixariam de impulsionar o sistema. 2.1.3 Ditadura militar e sufocamento do sistema No começo da década de 1970, simultaneamente ao ganho de escala da produção cooperativa de moradia, a crise econômica e política se aprofundava no Uruguai. O governo de Jorge Pacheco Areco (1967 – 1972) endurecia cada vez mais as medidas repressivas às organizações do campo da esquerda no país25. O 25 Vale ter em perspectiva, nesse contexto de convulsão social, as ações de guerrilhas configuradas na formação do Movimento de Liberação Nacional – Tupamaros e as respectivas ações de repressão 58 presidente eleito para o mandato seguinte, Juan M. Bordaberry, assumindo em março de 1972, deu continuidade às medidas repressivas de Areco. As Forças Armadas há algum tempo organizavam-se para um possível golpe de estado, em alinhamento com uma tendência que já se concretizara no cone sul da América Latina, com os golpes militares nos países vizinhos, Brasil e Argentina, nos anos de 1964 e 1966, respectivamente (CAETANO; RILLA, 1987). Em 27 de junho de 1973 foi dado o golpe de estado militar no Uruguai, com o apoio do presidente eleito. As Câmaras Legislativas e as Juntas Departamentais foram dissolvidas e um Conselho de Estado foi instituído (NAHUM, 2014). O golpe foi impetrado, mas encontrou uma intensa resistência da sociedade civil uruguaia. Uma greve geral tomou o país logo após a notícia do golpe. Durante quinze dias o Uruguai viveu uma paralização geral levada à cabo pelos trabalhadores, via central sindical, a Confederación Nacional de Trabajadores (CNT), e pelos estudantes, via Federación de Estudiantes Universitarios del Uruguay (FEUU). No âmbito da CNT há tempos se vinha discutindo a possibilidade da intervenção militar e se havia aprovado uma resolução em que, caso ocorresse o golpe, a greve geral imediatamente deveria ser deflagrada26. Instituída a ditadura militar, a repressão contra a sociedade uruguaia generalizou-se. Perseguição, tortura e assassinato de lideranças de esquerda, intervenção na Universidad de la Republica, destituição do presidente eleito e substituição por militar, dissolução do Poder Judiciário, dos partidos políticos e de organizações gremiais (FEUU e CNT) foram a tônica desses anos pós-1973. O sistema cooperativo de moradia, nesse momento, estava em sua “fase de obras”. A maioria dos contratos que foram assinados com o governo nacional, no período democrático, adentraram a ditadura de 1973 a iniciar a etapa de construção das moradias ou, então, a concluí-las, muitas das quais com grande número de unidades habitacionais27. Como aponta González (2013, p. 39), “los grandes complejos habitacionales del movimiento estaban en su período de obra, es decir promovidas, muitas clandestinamente, pelo governo de Jorge Pacheco Areco (GATTO, 2004 e ALDRIGHI, 2001). 26 O documentário “A las 5 en punto”, de José Pedro Charlo, reconstitui todo esse processo da greve geral deflagrada com o golpe militar de 1973. 27 O complexo José Pedro Varela, por exemplo, começou suas obras em 1972, com mais de oitocentas unidades, sendo construídas por ajuda mútua na periferia de Montevidéu. 59 cuando en el 73 se concreta el golpe, los barrios ya estaban construyendo, la inversión ya estaba realizada y se tenían que terminar”. Nesse momento inicial do regime militar, as cooperativas de moradia não foram consideradas como um perigo para o estado de exceção imposto. Ou seja, não se constituíram, perante a ditadura, enquanto uma organização inimiga a ser reprimida. Possivelmente essa possibilidade de continuidade dos projetos já contratados se deva ao volume de moradias com obras iniciadas. Como apontam os dados do trabalho de Machado (2016), após a regulamentação do sistema pelo decreto 633/69, as primeiras cooperativas iniciaram suas obras a partir de 1970, atingindo um pico em 1972. Já com a ditadura, em 1973, há um menor ritmo de início de obras, mas este se mantém até o ano de 1975. O gráfico a seguir detalha tais dados por ano. Figura 3 – Número de obras de cooperativas de moradia, por ano de início (Uruguai, 1970 – 1978) Fonte: INE – Censo de Cooperativas y Sociedades de Fomento Rural (2009) e Agencia Nacional de Vivienda (2016) apud Machado (2016, p. 37). Dados de 1978 (conforme detalha o próximo gráfico) mostram que, após o período inicial de cinco anos onde houve a maior escalada do sistema cooperativo (1970 a 1975), existiam 8.272 unidades habitacionais concluídas ou em construção, 2.373 em espera para a liberação de empréstimo, e mais 3.942 unidades em cooperativas que já haviam se constituído juridicamente, mas que aguardavam o início dos trâmites para solicitação de empréstimo junto ao governo (PERAZZA, 1978). Segundo Font (1995), a partir de informações do Boletim Estatístico do Banco Hipotecário do Uruguai, nesse ano de 1978 das catorze mil unidades em construção e das dezesseis mil unidades em trâmite de todo o sistema público de produção 5 8 45 37 22 20 - - 7 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 60 habitacional, metade era financiado pelo sistema cooperativo, ou seja,quinze mil unidades. Figura 4 – Estado de tramitação dos empréstimos às cooperativas de moradia, em unidades habitacionais (Uruguai, 1978) Fonte: Departamento de Administración de Programas de Vivienda del Banco Hipotecario del Uruguay apud Perazza (1978). No período de dois anos, entre 1975 e 1977, não foram concedidos novos empréstimos pela ditadura, sendo os processos somente retomados no final de 1977 para as cooperativas que já haviam iniciado o trâmite junto ao governo (FONT, 1995). A partir do ano seguinte não são mais concedidas figuras jurídicas pelo governo nacional às cooperativas formadas, cuja retomada se dará somente onze anos depois. Tomam corpo, então, as iniciativas de sufocamento pela ditadura, marcando o declínio de um sistema que se encontrava em franca expansão. O que se verifica nesse período é a escalada de iniciativas para refrear o sistema cooperativo de moradia (FONT, 1995 e NAHOUM, 1984). Em 1978 são criadas as Sociedades Civis de Propriedade Horizontal, as quais se caracterizavam pelo regime de propriedade privada e que passam a ter prioridade nos investimentos estatais. Em 1979, a Ordem de Serviço 7.000 do Banco Hipotecário do Uruguai (BHU) altera diversas operativas do sistema cooperativo. Exige poupança prévia para o sistema de ajuda mútua, aumenta a taxa de juros para seis por cento (ao invés de dois a quatro praticado anteriormente) e define o limite de cinquenta unidades 2.356 868 927 5.916 1.505 3.015 TERMINADAS E EM CONSTRUÇÃO EM TRÂMITE DE EMPRÉSTIMO COM CONSTITUIÇÃO JURÍDICA, MAS SEM TRÂMITE DE EMPRÉSTIMO Ajuda Mútua Poupança Prévia 61 habitacionais para financiamento às unidades cooperativas (em contraste com o limite de duzentas estabelecido na Lei, não mais se permitindo a formação dos grandes conjuntos como as Mesas Intercooperativas). Agregam-se, a essas medidas, a transferência da carteira de terras do BHU para o setor privado. O gráfico a seguir mostra como o sistema cooperativo perdeu prioridade entre os sistemas de produção habitacional no período de 1978 até o final da ditadura. Figura 5 – Empréstimos escriturados pelo Banco Hipotecário do Uruguai, equivalente em quantidade de moradias (Uruguai, 1978 – 1984) Fuente: Banco Hipotecario del Uruguay apud Terra (1985). Somente para se pontuar a diferença na regulamentação das Sociedades Civis, criadas pela ditadura militar, em relação às condições do sistema cooperativo, vale repassar algumas informações de uma matéria do jornal Opción, de 14 de setembro de 1982. A reportagem intitulada “Cooperativas de vivienda: quitar las trabas”, informava que “para el sistema de Sociedades Civiles Categoría II A no se exige ahorro previo, se acuerdan intereses del 4 por ciento”, além de se prever o aporte, precedente ao financiamento, de “materiales, mano de obra y auto construcción previa a la escrituración del préstamo”, que poderiam integrar a contrapartida necessária para completar o custo do financiamento com a aquisição do terreno. Muito diferente das condições postas para as cooperativas de moradia, que passaram a ter uma taxa de financiamento de seis por cento e a necessidade de aportar um fundo de poupança - 1.000 2.000 3.000 4.000 5.000 6.000 7.000 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 (ATÉ OUT. ) Sistema Público Cooperativas Sociedades Civis Promotores Privados Construções Individuais 62 prévia. Assim a reportagem conclui afirmando que o cooperativismo de moradia por ajuda mútua, “luego de haber participado en un 30 por ciento de las inversiones del Plan Nacional de Vivienda, la misma se ha visto reducida en los últimos años a un 3 por ciento para cooperativas de más de 8 años de espera”. *** Conforme começou a se viver a escalada das ações repressivas pela ditadura, as cooperativas de moradia foram se configurando enquanto um lugar de “refúgio” para aqueles militantes que não se exilaram no exterior e continuaram a viver – muitos clandestinamente – no Uruguai. Nesse sentido, a própria história de Gustavo González – apresentada em seu livro “A história de FUCVAM” – é ilustrativa desse processo. Militante em diversas organizações de esquerda desde a juventude, entrou na construção, por ajuda mútua, do Complejo José Pedro Varela (figura 6) no ano de 1972. Com o golpe militar no ano seguinte, continuou no país e no trabalho de obra. Na cooperativa, percebeu que ali poderia emergir um espaço para escapar à repressão da ditadura militar. Em suas palavras, "los que nos quedamos [en Uruguay] decidimos seguir viéndonos como se pudiera, aunque muchos se bajan y fundamentalmente quedamos los que ya estábamos integrados a las cooperativas de vivienda” (GONZÁLEZ, 2013, p. 31). Ele, então, afirma que, nesse período de acirramento na repressão ditatorial, “la vida en las cooperativas era muy relevante, se respiraba otro aire y estábamos convencidos de que por allí algo interesante estaba pasando" (GONZÁLEZ, 2013, p. 31). Desse modo é que se conformou uma conhecida descrição das cooperativas enquanto “ilhas de liberdade” em meio aos anos de chumbo do regime militar. González (2013, p. 40) atenta que, nas cooperativas, “su funcionamiento siguió teniendo una práctica que no existía en otras zonas territoriales tradicionales, es decir los otros barrios, por ello es que aquella famosa frase de que las cooperativas fuimos 'islas de libertad' tiene gran parte de razón". 63 Figura 6 – Salão comunal do Complexo José Pedro Varela (Montevidéu, 2015) Fonte: acervo do autor. A construção dos equipamentos coletivos pelas cooperativas também permitiu que muitos militantes, que eram procurados pela ditadura, pudessem se engajar em comissões que não eram vigiadas pelo estado. Ou seja, naquelas comissões que não eram previstas na regulamentação da Lei Nacional de Moradia e que, por isso, não tinham uma fiscalização sistemática do estado. De acordo com González (2013, p. 74), “esto permitió a su vez la integración de mucha más gente a comisiones puntuales, [...] las que permitieron que una cantidad de 'tachados' funcionaran sin mayores dificultades en estas subcomisiones"28. Como visto anteriormente, uma característica marcante do início do sistema, em Montevidéu foi a configuração de grandes conjuntos formados pela reunião de várias cooperativas, dado o tamanho dos terrenos, que se combinava à localização periférica com baixo nível de urbanização. Tal configuração colocava a necessidade de construção de novos bairros para esses conjuntos. Por estarem localizadas em 28 Os “tachados” a que se refere Gustavo González são os perseguidos pela ditadura militar. Para a constituição das comissões dos projetos (aquelas oficialmente previstas em contrato), o governo exigia o envio da lista dos participantes. Estes eram checados com os registros do governo. 64 zonas de urbanização rarefeita, demandavam a construção de equipamentos urbanos de saúde, educação, lazer etc. Assim é que as próprias cooperativas promoveram a construção autogestionária de muitos serviços complementares às próprias unidades habitacionais. Novamente segundo González (2013, p. 74), é possível afirmar que “no será casualidad que la inmensa mayoría de guarderías, policlínicas, locales comerciales, bibliotecas, pequeñas cooperativas de consumo se generarán en el período comprendido entre 1975 y 1982”. Como aponta o testemunho de um sócio da Mesa 1 – conhecida como bairro Novo Amanhecer, constituída por cinco cooperativas e 422 unidades habitacionais e construída nesse período –, “el hecho de tener este complejo acá le dio vida a toda la zona. Porque mejoró el transporte y las condiciones, vino el agua corriente, vino la luz eléctrica, pavimento en las calles, saneamiento” (Sócio A, MESA 1, AM1)C. Esse processo permitiu, também, a constituição de laços de solidariedadeentre as cooperativas e os bairros no entorno dos projetos. O trabalho de Castro, Menéndez, Sosa e Zibechi (2013) resgata como diversas cooperativas de moradia, construídas no período militar, conseguiram transpor, para a prestação de serviços urbanos, a autogestão do processo de obra. Como resgatam em um caso analisado, no início dos anos 1980 uma menina havia falecido por falta de assistência médica na cooperativa Mesa 2, no bairro de Peñarol, em Montevidéu. A partir daí, resolveu-se construir uma policlínica, uma das primeiras do movimento cooperativo. Além da construção autogestionada, os serviços prestados passaram a ser organizados pelos próprios cooperativistas. Como apontam os autores, com “la organización sanitaria mínima en diferentes barrios cooperativos se fue forjando un nucleamiento de policlínicas cooperativas y barriales, favoreciendo el permanente intercambio de recursos entre cooperativas” (CASTRO; MENÉNDEZ; SOSA; ZIBECHI, 2013, p. 28). Essa espécie de “rede cooperativa de policlínicas” passou a se constituir, também, enquanto espaço de promoção de ações de resistência à ditadura. Dessa maneira, “eran un espacio más de autogobierno, de creación de conciencia e inteligencia colectiva, que germinaba en lo territorial y en el marco de las 65 diversas acciones de resistencia que se llevaban adelante en las cooperativas” (CASTRO; MENÉNDEZ; SOSA; ZIBECHI, 2013, p. 27)29. Além dos equipamentos urbanos, as cooperativas de moradia, em regime de propriedade coletiva, também demandavam mecanismos de apoio ao processo de gestão coletiva que se estabelecia ao final da obra. No final do ano de 1975, FUCVAM firmou um convênio com a Associação Cristiana de Jovens (ACJ) de Winnipeg, no Canadá, para um projeto com as cooperativas filiadas que já tivessem terminado suas obras. O objetivo do convênio era fornecer assessoria às cooperativas para o desenvolvimento de atividades comunitárias. Como explica o informe de janeiro de 1976 da ACJ (CENTROS DE ACCIÓN DE EDUCACIÓN PARA EL DESAROLLO, 1976), o convênio atuaria na organização de grupos em atividades esportivas e recreativas, formação de bibliotecas, capacitação em artesanato, cursos de enfermagem e para organização de creche, entre outros. A questão posta nesse convênio era como dar continuidade às atividades organizativas nas cooperativas de moradia por ajuda mútua em propriedade coletiva. Após o duro período de obra, estas ainda deveriam continuar as atividades administravas e de integração comunitária. Como aponta Juan Carlos Moreno, então secretário de FUCVAM em 1975, (CENTRO COOPERATIVISTA URUGAYO, 1982, p. 37), “las cooperativas que habían terminado la construcción y habían pasado a vivir comenzaron a quedarse, aparentemente la meta de la casa propia estaba cumplida, también se entró en el período de desgaste de directivos, etc.”. Assim, o convênio entre FUCVAM e a ACJ “buscó, entre otras cosas, incentivar las actividades de recreaciones: fútbol, básquetbol, vóleibol, etc., que entendemos fue importante y las cooperativas que supieron aprovechar el convenio lo hicieron bien” (CENTRO COOPERATIVISTA URUGAYO, 1982, p. 37). Outra iniciativa de FUCVAM, durante a ditadura, foi a criação da central de pré- fabricados. O projeto contou com o apoio de recursos de cooperação internacional, 29 O depoimento de um sócio da cooperativa COVICENOVA, cuja obra terminou em 1982, mostra que a construção da policlínica na própria cooperativa se deu, também, por um infortúnio que enfrentaram logo após a inauguração. Segundo ele, "la movida fue interna a la cooperativa, porque pasaron insucesos, que se perdieron vidas, por malas atenciones. Porque hace tiempo no era como lo mismo como hoy día cuando hay servicio de emergencia móvil” (Sócio A, COVICENOVA, AM1). O prédio da policlínica foi construído pela cooperativa e cedido para a administração do governo nacional. Os serviços prestados atendem tanto à cooperativa quanto ao bairro. 66 por meio de uma entidade governamental holandesa. Como assinala o depoimento de Vicente Addiego, cooperativista de BANREP e membro da diretoria de FUCVAM a partir de 1976, “se presentó el proyecto a Holanda, a la agencia Cebemo30, el cual fue aprobado” (FONT, 1995, p. 9). Previamente à constituição da iniciativa da Federação, outros conjuntos cooperativos – principalmente os de maior escala, como as Mesas – haviam constituído plantas de pré-fabricação de elementos construtivos. Tal é o caso das obras da Mesa 1, cuja planta de pré-fabricação surgira como proposta do instituto assessor, o CCU. O Informe de FUCVAM de 1972 assim comenta o caso de Mesa 1, a 3 meses de obra algo nuevo pasaba a ser la “vedette” del terreno: la planta de prefabricado. La estructura metálica del galpón fue entretejiendo un nuevo elemento de trabajo. Conjunción de equipos, maquinarias, motores, polipastos, hormigoneras, transportadores, para producir elementos económicos y adecuadamente estéticos – marcos, losas, viguetas – que irán en las viviendas. Y entre todo ese andamiaje mecánico y motorizado, el hombre: la máquina con más altibajos, pero quizás por eso mismo, la más completa (FUCVAM, 1972b, p. 8). No entanto, com o corte na concessão de empréstimos pelo governo, a partir de 1977, a Central de Pré-fabricados de FUCVAM começou a se inviabilizar, até ser desativada nos anos 1980. *** Nos primeiros anos da ditadura militar, FUCVAM não foi considerada como uma organização a ser reprimida pelo regime, assim como o eram a Confederación Nacional de Trabajadores (CNT) e a Federación de Estudiantes Universitarios del Uruguay (FEUU), ambas postas na ilegalidade pelo estado de exceção. Isso ocorreu muito pelo fato de que era uma organização de origem muito recente (1970) e se concentrava em reivindicações que se circunscreviam aos interesses de suas cooperativas filiadas. A entidade, portanto, nesse período inicial da ditadura não estava na linha de frente de oposição ao regime, pois tinha uma pauta corporativista segundo González (2013), ou seja, centrada nas demandas estritas das próprias cooperativas filiadas. Além do mais, angariava um certo aval por manter relações com 30 CEBEMO é uma organização não governamental holandesa criada em 1965, com origem cristã. 67 organizações internacionais, como a ACJ do Canadá e com a cooperação holandesa para a implantação de uma planta de pré-fabricados e da central de compras (GONZÁLEZ, 2013, p. 72)31. A direção de FUCVAM, no início dos anos 1980, no entanto, passou por um período de renovação, com a eleição de integrantes oriundos das cooperativas recém finalizadas. Esse novo grupo, então, começou a adotar uma posição de confronto à ditadura. Sobre essa renovação para a direção de FUCVAM, González (2013) comenta que “era una nueva camada de dirigentes jóvenes y sin duda de distintas fuerzas de la izquierda”. Desde tal mudança, colocou-se em perspectiva uma reorientação política da atuação da entidade. Segundo o autor, “en el fondo del debate era una nueva conducción política de la Federación que dejaba de lado la plataforma meramente reivindicativa” (GONZÁLEZ, 2013, p. 87). Assim é que a agenda política da entidade se redireciona, começando a atuar em um confronto mais direto contra as medidas do regime ditatorial. Emblemático nesse sentido, em resposta à repressão da ditadura militar ao sistema cooperativo de moradia, FUCVAM organiza, a partir de agosto de 1983, uma paralização geral nos pagamentos aos financiamentos do governo nacional. As cooperativas filiadas à entidade decidiram deixar de pagar, oficialmente, as prestações do financiamento estatal como noticiou o jornal El Día, de 9 de outubro de 1983. De acordo com o periódico, “la decisión fue tomada ante la imposibilidad económica de hacer frente al incremento del 15%anunciado por el presidente del BHU”. A deliberação da entidade significou depositar os recursos em uma conta paralela, reivindicando-se a baixa na taxa de juros, conforme explica a reportagem ao comentar que as unidades cooperativas “consignarán el equivalente a las cuotas vigentes a agosto de 1983 en una cuenta especial, mientras se aguarda el resultado de los planteamientos formulados a nivel oficial”. A reação do regime militar foi elaborar um projeto de lei que propunha transformar o regime de propriedade coletiva, das cooperativas de moradia, em individual. No final do ano de 1983 foi então apresentado o projeto de lei que 31 Por outro lado, vale destacar que a federação representante das cooperativas de moradia por poupança prévia (FENACOVI) foi posta na ilegalidade pela ditadura. 68 individualizava o financiamento coletivo das cooperativas para seus sócios, transformando o regime de propriedade de uso e gozo, a maioria do sistema. Como resposta à proposta de lei, FUCVAM avançou com uma contraproposta de realização de um referendum popular. Para tanto, valeu-se de um dispositivo constitucional de iniciativa popular, com a coleta de assinaturas para a proposição do referendum. Em um único dia foram coletadas trezentas mil assinaturas, chegando- se, logo em seguida, a seiscentas mil, equivalente a mais de um terço da população do país. Essa estratégia alçou FUCVAM a mudar seu status político perante à sociedade civil uruguaia. Como afirma González (2013, p. 3), “fue esta medida la que catapultó de una vez y para siempre a FUCVAM como un movimiento social con fuerte presencia a nivel nacional no solamente en el tema de la vivienda sino en el conjunto de intereses de los sectores populares”. A ditadura então recuou com a proposta do projeto de lei. Assim, a entidade reinventou sua luta política32, deixando de ser uma organização secundária na resistência à ditadura e passando à linha de frente na luta pela queda do regime, que ocorre no final de 1984. Como aponta Gustavo González, em depoimento ao autor (GONZÁLEZ, 2015), ao se reestruturar a organização sindical dos trabalhadores – no então Plenario Intersindical de Trabajadores (PIT) –, a maioria dirigentes sindicais eram cooperativistas de moradia. Nesse sentido, ele afirma que “la resistencia a la dictadura [...] nace en las cooperativas de vivienda y no es casualidad que cuando se reconstruye PIT – en dictadura era PIT y después PIT- CNT – de siete dirigentes del PIT cinco eran cooperativistas de vivienda” (GONZÁLEZ, 2015). Portanto, apesar do rebaixamento dos horizontes de concretização de cooperativas de moradia – seu objetivo imediato –, dado o fechamento das fontes de financiamento estatal, FUCVAM conseguiu se reinventar politicamente ao se colocar na linha de frente da resistência à ditadura militar uruguaia. Com o cenário da 32 Pensa-se essa reinvenção política de FUCVAM a partir do próprio conceito de política em Hannah Arendt. Pois, “como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político” (ARENDT, 2007, p. 16). Desse modo, “o fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (ARENDT, 2007, p. 190). 69 redemocratização, em meados dos anos 1980, a entidade conforma-se em um movimento social de envergadura na sociedade civil uruguaia, apesar da persistência na ausência de suporte estatal ao sistema cooperativo de moradia. 2.1.4 Redemocratização e políticas neoliberais Um dos principais legados do regime militar para o povo uruguaio foi a introdução e desenvolvimento de políticas econômicas neoliberais no país (YAFFÉ, 2009). Com o fim da ditadura em 1984, nos governos nacionais que se seguiram após a redemocratização o receituário neoliberal não deixou de ser seguido e o crescimento econômico não foi retomado. A recessão marcou o ritmo da economia e um novo Uruguai se apresentou como cenário para a produção cooperativa de moradia. Montevidéu, nesse contexto, passa por um processo de “destituição cidadã” que a transforma de uma “cidade integrada” a uma “cidade segmentada”, segundo Filgueira e Errandonea (2014, p. 19). O fim da ditadura militar também não significou a retomada dos investimentos do governo nacional no sistema cooperativista de moradia33. O que se observa, adentrando os anos 1990, é o acanhado volume de recursos públicos disponibilizados, que se traduziu no escasso número de obras iniciadas por cooperativas nesse período, conforme se verifica no gráfico a seguir. Além disso, houve a focalização dos empréstimos e a concessão dos financiamentos habitacionais segundo os níveis de rendimento familiar, com a estipulação de um patamar mínimo de renda para se entrar no sistema (MACHADO, 2002). 33 Apesar das medidas pactuadas entre partidos políticos e movimentos sociais e sindicatos, na virada da ditadura para a redemocratização, o governo eleito em 1984 não cumpriu as medidas para o setor (FONT, 1995). 70 Figura 7 – Número de obras de cooperativas de moradia, por ano de início (Uruguai, 1985 – 1999) Fonte: INE – Censo de Cooperativas y Sociedades de Fomento Rural (2009) e Agencia Nacional de Vivienda (2016) apud Machado (2016, p. 37). Uma emblemática medida adotada no período é a alteração da Lei Nacional de Moradia, com o rebaixamento nos patamares aceitáveis de moradia adequada. A modificação na Lei se fez para permitir a construção dos Núcleos Básicos Evolutivos, habitações de pequena metragem para posterior ampliação dos moradores, sob construção de empresas privadas34. O sistema cooperativo também tentou politizar o rebaixamento dos níveis de habitabilidade proporcionado pelos Núcleos Básicos Evolutivos. Nessa perspectiva é que se produziram novas obras cooperativas com o mesmo valor disponibilizado para os tais Núcleos, alcançando-se uma qualidade construtiva superior (ALONSO; SARACHU; VALLÉS, 2016). Outra medida emblemática adotada foi o sistema de franjas, instituído por uma regulamentação de 1993. O foco do subsídio aos empréstimos direcionou-se para as unidades habitacionais, sendo concedido para o financiamento como um todo e não ao núcleo familiar nos momentos em que necessitasse de atendimento. Os sócios de cada cooperativa eram classificados conforme seus rendimentos, sendo que cada unidade cooperativa poderia construir um determinado padrão habitacional segundo o nível médio de rendimento familiar. De acordo com Alonso, Sarachu e Vallés (2016, p. 16), nesse sistema “el financiamiento era diferente según los ingresos de los cooperativistas. Se distinguían seis franjas de ingreso, que tenían el mismo subsidio de capital [...], pero los 34 Nesse período também é criado o Ministerio de Vivienda, Ordenamento Territorial y Medio Ambiente (MVOTMA), sendo que a DINAVI passou a ser uma diretoria do Ministério (MAGRI, 2010). - 3 - 2 8 7 8 9 6 16 33 18 15 21 12 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 71 préstamos eran diferentes, ajustándose a la capacidad de devolución de cada grupo”. Dessa maneira disponibilizavam-se valores de financiamento menores para as cooperativas compostas por sócios de baixa renda e valores maiores para cooperativas com ingressos médios maiores. Isso levava a construção de padrões construtivos piores para as cooperativas formadas por trabalhadores com renda diminuta, justamente em um período de crise econômica no país. *** Com a reabertura democrática e o contexto neoliberal, FUCVAM novamente reinventa sua ação política. Basicamente destacam-se três linhas pela qual atuaráa organização adentrando os anos 1990. A primeira é a luta pela terra. No final da década de 1980, a entidade contava com diversas cooperativas que se formaram após a abertura democrática, a partir de grupos que se entusiasmaram com a luta da entidade, mas que não conseguiam concretizar a proposta da moradia cooperativa. Segundo González (2013, p. 111), “fue así que iniciada la democracia, FUCVAM contaba con más de setenta grupos nuevos nacidos mayoritariamente del rebrote del nuevo movimiento sindical”. O governo pós- ditadura, do colorado Julio María Sanguinetti, não retomou a concessão de novas personalidades jurídicas às cooperativas de moradia, descumprindo o pacto estabelecido na mesa interssetorial de movimentos sociais e partidos políticos na transição ao final da ditadura. Promoveu, ademais, novas ofensivas contra a figura da propriedade coletiva. Concomitantemente a isso, já no final dos anos 1980 começou a ocorrer uma escalada de despejos em Montevidéu. Entre 1986 e 1989 foram quase trinta e cinco mil na capital uruguaia (GONZÁLEZ; ALAGGIA, 2004). Exemplo marcante disso foram os desalojamentos de diversas famílias de hotéis abandonados na Ciudad Vieja, centro histórico. Diante dessa conjuntura, FUCVAM percebeu que a questão da terra era uma estratégia nevrálgica a ser levada à discussão pública, não bastando só a retomada 72 dos financiamentos e da concessão das figuras jurídicas para as cooperativas. A entidade constatou, segundo González (2013, p. 120), que para que o modelo de cooperativismo de moradia se desenvolva é necessário “que se cumpla la cadena de personería, tierra, financiamiento para construir y asesoramiento técnico. El éxito del modelo solo se construye si estos cuatro elementos están articulados”. Buscou-se, desse modo, reunir aqueles grupos que haviam se dissolvido pela falta de perspectivas de financiamento – de setenta restavam nove em 1989 – constituindo-se uma comissão específica para as cooperativas em formação. Dentro desse grupo emergiu, entre debates durante os meses de maio a julho de 1989, a proposta de ocupação de terras enquanto uma forma de luta política (GONZÁLEZ; ALAGGIA, 2004). Deve-se frisar que FUCVAM detinha em sua trajetória um histórico de experiências em ocupação de terras urbanas, como algumas realizadas nos anos 197035. Assim é que novamente a luta política da entidade se reinventa e, no final de 1989, iniciam-se as ocupações de terras por diversas cooperativas em formação36. Apesar das dificuldades de negociação com o governo nacional, a estratégia de acesso à terra se concretizou a partir da eleição do partido Frente Amplio para a Intendência de Montevidéu, em 1989. Desde então a Intendência começou a estruturar uma carteira de terras para os projetos de cooperativas de moradia, a qual é instituída em setembro de 1990 pelo decreto 24.654 (MENDIVE, 2013)37. 35 Como em 1971 na região de Cerro Norte em Montevidéu, onde ocorrem as “primeras ocupaciones comunitarias en reivindicación de tierras y préstamos para construir” (FONT, 1995, p. 7). 36 Como resultado desse processo, pode-se identificar que FUCVAM amplia seu raio de ação e passa a discutir o tema da reforma urbana. Assim, de acordo com González (2013, p. 133), será com a luta pela terra urbana que FUCVAM começa “a hablar de reforma urbana, de ciudad democrática, en definitiva se amplía la visión del movimiento mucho más allá de la vivienda”. 37 Mendive (2013, p. 11) explica que “la adjudicación de los terrenos a cooperativas se ha realizado a través de convenios entre la Intendencia y las dos federaciones de cooperativas, FUCVAM y FECOVI. Los terrenos son ofrecidos a las federaciones, quienes deciden, en función de un procedimiento aprobado por la Intendencia, a que cooperativa, dentro de sus afiliadas, asignan el predio”. 73 Figura 8 – Prédio destinado à carteira de terras da Intendência de Montevidéu (Montevidéu, 2016) Fonte: acervo do autor. A segunda linha de atuação de FUCVAM que se destaca nesse período é a que se realiza com os trabalhadores de baixa renda. O modelo neoliberal adotado no Uruguai trouxe uma intensa reconfiguração no mundo do trabalho, marcado pelo trabalho flexível e de baixo rendimento (FILGUEIRA; ERRANDONEA, 2014). Conformava-se, assim, uma base de trabalhadores com a qual FUCVAM nunca havia atuado, o que instala um debate dentro da entidade, sobre se deveria se trabalhar com esse setor no sistema cooperativo de moradia. Em meio a um intenso debate, a entidade decidiu por atuar com esse grupo, criando a Comisión de Vivienda Alternativa e apoiando um primeiro projeto piloto, o qual geraria a cooperativa COVIITU 78, com desalojados da Ciudad Vieja. Desse modo, segundo González (2013, p. 140), nesses projetos “ya no serán trabajadores organizados desde sus sindicatos ni tendrán trabajo ni salario estable y seguro. Serán sectores empobrecidos producto de la crisis”. A partir da COVIITU 78 surgiram diversos outros grupos com esse mesmo perfil. Como característica, de acordo com Filippini (2008), estes tem uma inconstância no cumprimento dos compromissos de horas de ajuda mútua e dificuldades para trabalhar organizadamente em grupos e com pessoal contratado. 74 Assim, “si bien la emergencia surge por la falta de vivienda, existe otra urgencia anterior y más fuerte, que actúa como una condicionante de cualquier solución de ésta y otras problemáticas sociales” (FILIPPINI, 2008, p. 37). Ou seja, a urgência por trabalho, que repõe o projeto cooperativo a um segundo plano. A terceira linha de ação adotada por FUCVAM, no pós-ditadura, foi a promoção de cooperativas para a reabilitação de habitação na área central de Montevidéu. Segundo Vallés (2008), a Intendência de Montevidéu eleita em 1990 começou a promover programas pilotos que procuravam estender a experiência das cooperativas de moradia por ajuda mútua para as operações de reabilitação de moradias na área central da cidade38. Assim é que foram desenvolvidas quatro experiências piloto na primeira metade da década de 1990. Tais forma o programa “Mujefa”, integrado por mulheres chefes de família, em uma propriedade adquirida pela Intendência de Montevidéu, o programa “Las Bóvedas”, em um prédio histórico desenvolvido pela cooperativa COVICIVI, o programa “Pretyl”, sob responsabilidade da associação civil de mesmo nome e o programa “Goes”, a cargo da cooperativa COVIGOES I. A partir dessas experiências pioneiras diversas outras são, nos anos seguintes, desenvolvidas na área central de Montevidéu39. Desde tais linhas de ação impetradas por FUCVAM no Uruguai neoliberal da década de 1990, verifica-se como a entidade novamente se reinventa politicamente, em meio ao cenário de crise social que toma o país. Apesar do recrudescimento desta, abre-se a possiblidade de um novo cenário político no governo nacional que se elege após a virada da década do novo século. Como resume Nahoum (2010), sobre o sistema cooperativo de moradia nesse período, “de más del 50% de los préstamos 38 Couriel e Menéndez (2014, p. 46 e 47) comentam que, desde 1986, havia uma articulação entre a Intendência de Montevidéu – com disposições regulamentárias – e o Banco Hipotecário do Uruguai – com linhas de crédito – visando à promoção de reciclagem do estoque construtivo histórico da cidade. 39 O depoimento de um membro fundador de COVICIVI explica um pouco do surgimento da experiência de reciclagem de um prédio histórico em área central naquele início dos anos 1990. Segundo ele, “la consigna que tenía la cooperativa es por el derecho de los vecinos de vivir en su barrio. La gran cantidad de los fundadores vivíamos en la Ciudad Vieja, entonces queríamos seguir viviendo en la Ciudad Vieja. [...] ¿Entonces, en aquel momento, qué decidimos? [...] Dijimos: ‘bueno, no nosdan nada, los ocupamos el espacio’”. Assim é que o grupo realiza um levantamento de prédios ociosos no centro histórico de Montevidéu e – segue o depoimento – “a los dos días antes de que ocupáramos el espacio, la Intendencia nos dice: no, no ocupen que les vamos a dar un predio. [...] Y a la semana, más o menos, ahí nos ofrecen esto” (Sócio A, COVICIVI, AM2)D. 75 tramitados en 1973 y 1974 (cinco mil viviendas o más), se pasó a cero en 1987, menos de 700 en 1998-2001 y menos de 400 en el cuatrienio siguiente, hasta 2005” (NAHOUM, 2010, p. 14). 2.1.5 Período contemporâneo Depois da abertura democrática, o Uruguai testemunhara o regime neoliberal se aprofundar e a perder de vista os bons momentos em sua economia. A crise desse período tem seu ápice no ano de 2002, com a quebra bancária do país. Como aponta Moreira (2007, p. 16), há “una primera fase recesiva, correspondiente al período 1999- 2001, una agudización de esta fase en el año 2002, y la tercera fase, que corresponde a la crisis bancaria que es, a menudo, identificada con la crisis en su conjunto”. Nahoum (2010, p. 13) assim elenca os elementos da crise com que se deparou o novo governo nacional em 2005: entre 2001 e 2003 brutal queda do salário real em 26%, duplicação da população em condição de pobreza e triplicação na condição de indigência, queda do PIB em 10% no ano 2000, seguido de mais quatro anos de quedas consecutivas, desocupação empregatícia de quase 17% da população, além do aumento vertiginoso da inflação, de 4% em 2001 para 20% em 2003. Toda a história do Poder Executivo uruguaio foi atravessada pelo bipartidarismo colorado-blanco, com amplo predomínio do primeiro. Porém, com a eleição do partido Frente Amplo para a Intendência de Montevidéu em 1990, abriu-se a perspectiva de quebra desse predomínio no âmbito do governo nacional40. Apesar de ir para o segundo turno na eleição de 199941, somente em 2004 o partido angariou 50,4% dos votos válidos, elegendo em primeiro turno Tabaré Vázquez, e colocando-se como o terceiro partido a chegar ao governo nacional. O governo do Frente Amplio trazia, então, a perspectiva de mudança no cenário político uruguaio, ao constituir-se de 40 Como aponta Moreira (2000, p. 24), “o Frente Ampla surge em 1971 como uma coalizão de grupos e partidos de esquerda para disputar as eleições nacionais daquele ano”. Assim, “a crise dos anos 60, o surgimento da guerrilha e a derrubada do modelo industrialista caminharam junto com o surgimento de um terceiro ator: a Frente Ampla” (MOREIRA, 2000, p. 31). 41 Chavez (2005) atenta para a manobra de contenção dos Partidos Colorado e Nacional contra o crescimento eleitoral do Frente Amplia. Como nunca ocorrera na história do Uruguai, os partidos selaram uma aliança para o segundo turno nas eleições de 1999. 76 forças de esquerda sem a coligação com grupos de direita, diferentemente de outros contextos na América Latina, onde nesse mesmo momento diversos governos de esquerda eram eleitos (CHAVEZ, 2005, p. 181). Com os dois governos do Frente Amplo a partir de 2005 (Tabaré até 2009 e José Mujica entre 2010 e 2014), observa-se dois períodos distintos quanto ao tratamento do sistema cooperativo de moradia. O primeiro de reorganização institucional e, o segundo, de aporte de recursos financeiros. O governo de Tabaré Vázquez concentrou-se em mudanças institucionais no setor, disponibilizando um pequeno volume de recursos orçamentários para a política habitacional. Segundo Magri (2010, p. 69), “para el gobierno del Dr. Tabaré Vázquez la provisión de vivienda no fue un objetivo principal en su agenda política, aunque su gestión dada la crisis del sector asumió el saneamiento institucional del BHU y la reforma del área en general”. Nessa perspectiva, de acordo com Nahoum (2010, p. 15), a administração tomou a decisão de que os investimentos habitacionais não seriam uma prioridade, devendo dedicar-se à reconstrução do aparato institucional do setor. Institucionalmente, o governo reforçou o papel do Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente (MVOTMA) como coordenador da política habitacional e redefiniu o papel do Banco Hipotecario del Uruguay, com a criação da Agencia Nacional de Vivienda (ANV) (NAHOUM, 2010)42. Assim, a ANV transformou- se no centro executivo da política habitacional uruguaia, conformando-se no órgão “que concentra la decisión y gestión operativa de los recursos institucionales y la gestión de deudores asumiendo un rol principal en materia de planificación y ejecución de planes de acceso a la vivienda” (MAGRI, 2010, p. 72). Um conjunto de novas regulamentações também foi aprovado, reconfigurando os mecanismos operativos do sistema cooperativo de moradia. Dentre as medidas adotadas destacam-se a eliminação do rendimento mínimo para participação no sistema cooperativo, a criação de um sistema de subsídios diferenciais conforme o rendimento familiar (no lugar do subsídio à unidade habitacional), a aprovação de novas normas construtivas, o abandono dos Núcleos Básicos Evolutivos e a criação 42 De acordo com Magri (2010, p. 71), “la ANV fue diseñada por un programa financiado por el PNUD y fue propuesta como proyecto de ley desde el ejecutivo nacional”. 77 da Cartera de Inmuebles para Vivienda de Interés Social (CIVIS), pelo governo nacional, nos moldes da experiência da Intendência de Montevidéu43. Com a administração de Pepe Mujica (2011-2015) e a continuidade do Frente Amplio no Executivo nacional, as mudanças no cooperativismo de moradia foram implementadas com a disponibilização de recursos orçamentários. Iniciou-se a realização de sorteios semestrais (previstos em regulamentação de 200844), nos quais os projetos – quando tecnicamente aprovados – não podem passar por mais de quatro sorteios para serem contemplados. Ou seja, há a perspectiva de que, quando aprovado tecnicamente o projeto, a cooperativa de moradia esperará no máximo dois anos (se não for contemplada em três sorteios) para ter o financiamento do governo nacional. Desse modo, o gráfico a seguir mostra como houve um aumento no número de obras por cooperativas de moradia a partir desse período. Figura 9 – Número de obras de cooperativas de moradia, por ano de início (Uruguai, 2000 – 2015) Fonte: INE – Censo de Cooperativas y Sociedades de Fomento Rural (2009) e Agencia Nacional de Vivienda (2016) apud Machado (2016, p. 37). Portanto, observa-se no período contemporâneo a modificação na regulamentação, com aporte de recursos e diminuição no tempo de acesso das cooperativas de moradia ao financiamento estatal. Os dados de balanço do governo 43 A carteira de terras do Governo Nacional, porém, parece não ter angariado a disponibilidade que se pretendia, como mostra Mendive (2013, p. 20) ao comentar que, “sin embargo, de acuerdo al trabajo realizado durante los dos últimos años en la DINAVI, se constata que de los terrenos analizados a octubre del 2012, que suman 270 hectáreas, tan sólo 16 hectáreas son hoy aptas para los programas de la CIVIS, casi el 6%”. 44 Regulamento do MVOTMA aprovado pela Resolução Ministerial 540 de 2009, que estabelece as condições e os procedimentos para obtenção dos empréstimos e subsídios para as cooperativas, através de dois chamados anuais. Estes chamados são publicizados com um ano de antecipação, indicando a quantidade de moradias a se financiar e o valor máximo da unidade habitacional segundo o número de dormitórios. 6 13 12 15 18 20 10 9 5 10 29 46 35 49 46 64 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 78 nacional para o Plano Quinquenal de 2010 a 2014 (DIRECCIÓN NACIONAL DE VIVIENDA - DINAVI, 2015), indica que foram outorgados empréstimos para 305 cooperativas,visando à construção de 9.913 moradias45. O programa de apoio às cooperativas correspondia, no Plano de Reabilitação e Consolidação Urbano- Habitacional, a quase 29% das unidades terminadas no período 2010-2014, sendo 48% das unidades em execução, ou seja, 37,5% do total. Assim, seguido o período de escassez de investimentos iniciado com a ditadura, após o período neoliberal o sistema recentemente passa por uma nova fase com maiores possibilidades de acesso a financiamento e apoio estatal. 45 Para se ter uma ideia de grandeza desse volume da produção uruguaia por cooperativas de moradia, no Brasil o programa similar de apoio à produção social do habitat (Minha Casa Minha Vida – Entidades) havia contratado entre 2009 e 2014 o volume de 52.912 unidades, segundo dados de janeiro de 2015 do agente operador do programa, a Caixa Econômica Federal (BURGUIERE; GHILARDI; HUGUENIN; KOKUDAI; SILVA, 2016, p. 19). O programa brasileiro contratou 5,3 vezes o volume uruguaio, porém sua população é quase 60 vezes maior que o país vizinho. 79 2.2 Autogestão habitacional na metrópole do Rio de Janeiro A partir da década de 1980 constituiu-se, na região metropolitana do Rio de Janeiro, um conjunto de experiências de organização de coletivos que propuseram a produção de moradias e do ambiente urbano por meio de processos que contavam com a própria gestão de todo o processo construtivo. Após o período de iniciativas embrionárias em uma favela da região suburbana da cidade do Rio de Janeiro, experiências nessa perspectiva foram desenvolvidas adotando como referência direta a inspiração no sistema uruguaio de cooperativas de moradia. Tal referência centrou- se na modalidade da ajuda mútua sob o regime de propriedade coletiva. Foi na virada para a segunda metade dos anos 1980 que a favela de Nova Holanda (no Complexo da Maré) se constituiu no território onde emergiram iniciativas para a organização de novas práticas de autoconstrução de moradias locais. Sendo marcante a precariedade das condições habitacionais de boa parte da favela, mudanças na diretoria da associação de moradores local trouxe a perspectiva de conformação de uma cooperativa de construção, a qual passou a ofertar serviços da construção civil. A cooperativa, nesse processo, foi assessorada por um núcleo de técnicos ligados a uma universidade local e, ao final da década, conseguiu promover a construção de um conjunto de moradias na própria favela. Tratava-se de uma experiência inovadora para o panorama da região, como aponta o texto de época escrito pelo presidente da cooperativa e o arquiteto assessor, ressaltando que “é a primeira vez que temos notícia de que ocorre o repasse concreto de recursos do poder público para uma comunidade numa experiência habitacional no Rio de Janeiro” (SOUZA; CORRÊA, 1993, p. 164). Após essa experiência pioneira, a cooperativa acabou se dissolvendo. Os assessores do grupo ligado à universidade, no entanto, começaram a atuar em uma organização não-governamental (ONG), que ao final da década anterior fora fundada por técnicos que atuavam junto à Pastoral de Favelas do Rio de Janeiro. A ONG, com os novos integrantes, começou a estruturar um programa de apoio a iniciativas 80 similares ao que fora experimentado em Nova Holanda, tomando então como referência o sistema uruguaio de cooperativas de moradia. Desse modo é que, no começo da década de 1990, a organização iniciou um programa de intercâmbio com experiências de produção social do habitat, que primeiramente passou por São Paulo e depois foi desembocar em Montevidéu, no Uruguai. A partir de então configura-se, por meio dessa ONG, um conjunto de projetos em torno do que se concebe como “autogestão habitacional” – denominação que se adotará para diferenciar esse conjunto de experiências em relação ao cooperativismo de moradia no Uruguai, salientando-se, dessa forma, algumas distinções entre ambos –, sobre a qual busca-se reconstituir os principais elementos constitutivos nas próximas páginas. 2.2.1 Primeiras iniciativas em Nova Holanda No final da década de 1980 a comunidade da Nova Holanda passou por um processo de mudança política interna, que culminou na renovação da direção de sua Associação de Moradores e na promoção de novos projetos visando à alteração na lógica de provimento de serviços urbanos, de modo a melhorar as precárias condições de vida local. Um dos projetos desenvolvidos atendeu às questões de habitabilidade e de geração de renda, por meio da constituição de uma cooperativa mista. Para se situar geograficamente, a comunidade Nova Holanda está localizada no conjunto de favelas conhecido como Complexo da Maré, na cidade do Rio de Janeiro. O Complexo abrange mais de vinte favelas e se formou na zona suburbana da cidade entre a Linha Vermelha e a Avenida Brasil. Segundo dados do começo da década de 1990, o Complexo da Maré tinha uma população de cento e noventa e seis mil habitantes, sendo quinze mil deles em Nova Holanda (SOUZA; CORRÊA, 1993, p. 155). O surgimento de Nova Holanda está relacionado às ações do poder público, na década de 1960, para a promoção da erradicação de favelas no Rio de Janeiro (CARDOSO; ARAUJO, 2007). Construído enquanto um Centro de Habitação 81 Provisória (CHP), criado pelo governador Carlos Lacerda, abrigou moradores removidos de diversas favelas das zonas sul e norte da cidade (NÓBREGA JÚNIOR, BELFORT; RIBEIRO, 2012, p. 83). O nome Nova Holanda tem origem, segundo depoimento de Ernani Alcides Alexandre da Conceição – o “Ernani da Maré”, um ex-seminarista ligado à teologia da libertação que nos anos 1980 foi morar na Maré e participou da criação da Associação de Moradores de Nova Holanda –, a partir da visita que Carlos Lacerda realizara à Holanda no mesmo período em que o CHP fora criado. De acordo com depoimento de Ernani, “as casas eram todas de madeira e se pareciam com as casas de madeira da Holanda [...]. Dizem que o então governador Carlos Lacerda estava em viagem à Holanda e inspirou-se lá para dar esse nome” (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2003, p. 115). As transferências de moradores das favelas removidas para esse CHP ocorreram entre os anos de 1962 e 197146. Apesar do fornecimento de toda a infraestrutura básica para as habitações construídas pelo governo, conforme o Complexo da Maré crescia e diversas favelas sem infraestrutura formavam-se ao lado de Nova Holanda, as condições de habitabilidade se precarizavam. Além do mais, de um centro de habitação provisória o local, com o tempo, foi se tornando território de residência definitiva. O governo também mantinha uma forte influência sobre as condições de organização política, com o controle da associação de moradores pela Fundação Leão XIII47, órgão do governo estadual. Entre o final de 1970 e início da década de 1980, porém, há um processo de mudança na dinâmica política de Nova Holanda, com a promoção de diversas lutas por melhorias urbanas. Segundo Nóbrega Júnior, Belfort e Ribeiro (2012, p. 90), as precárias condições de vida no local, dada “a ausência de 46 Segundo Nóbrega Júnior, Belfort e Ribeiro (2012, p. 84) vieram moradores das favelas do Esqueleto, Morro da Formiga, Morro do Querosene, Praia do Pinto e Macedo Sobrinho, além de alguns, em menor número, de favelas da zona norte. 47 A Fundação Leão XIII foi criada em 1946, a partir da articulação entre a Prefeitura do Distrito Federal, a Ação Social Arquidiocesana e a Fundação Cristo Redentor, com a finalidade, conforme seu estatuto, “de prestar assistência moral, material e religiosa aos habitantes dos morros e favelas do Rio de Janeiro”. Segundo Burgos (2006), em seu surgimento enquanto entidade vinculada à Igreja, “tinha por finalidade principal oferecer uma alternativa à pedagogia populista estado-novista” (BURGOS,2006, p. 29). Em 1963, porém, passa a ser uma autarquia do estado, tendo a prerrogativa de reconhecimento oficial das associações de moradores e a função de fiscalizar as eleições de suas diretorias (BURGOS, 2006, p. 32). 82 esgoto sanitário, água potável, escolas e postos de saúde e a insegurança quanto à propriedade das casas devido ao permanente fantasma da remoção” e os conflitos com a política de coerção exercida pela Fundação Leão XIII, levaram à reorganização dos moradores. Essas iniciativas constituíram-se na construção do posto de saúde, creche e escola comunitária, a criação do grupo jovem da Igreja Católica e a participação crítica no projeto Pró-Morar promovido pela ditadura miliar48 (SOUZA; CORRÊA, 1993 e NÓBREGA JÚNIOR; BELFORT; RIBEIRO, 2012). Assim é que no ano de 1984 ocorreu a eleição para a associação de moradores de Nova Holanda e foi eleita a chapa de oposição àquela controlada pela Fundação Leão XIII. Assumiu a direção a primeira mulher presidente de uma associação de moradores de favelas no Rio de Janeiro, Eliana Souza Silva. Nas palavras de Nóbrega Júnior, Belfort e Ribeiro (2012, p. 98), “nessa nova direção firmava-se uma concepção de movimento combativo, crítico ao Estado e agressivo em relação às políticas clientelistas, o que distinguia a Nova Holanda no cenário do movimento popular do Rio de Janeiro”. Novas formas de gestão foram encampadas, com a mobilização em reuniões de rua que chegavam a contar com quinhentas pessoas e ações coletivas de impacto como atos públicos que fechavam a Avenida Brasil. Uma iniciativa emblemática desenvolvida pela nova direção envolveu o trabalho com as precárias condições de moradia de alguns setores desse território. Focando cerca de duzentos e vinte barracos, em uma das localidades mais pobres de Nova Holanda, a associação propôs uma forma coletiva de utilização de recursos públicos recebidos do programa Fala Favela, durante o governo Sarney (1985 – 1990), para a compra de materiais-de-construção (que eram disponibilizados para a aquisição individual pelas famílias contempladas). Em outubro de 1988 foi então fundada a Cooperativa Mista e de Consumo dos Moradores de Nova Holanda (COOPAMNH)49, 48 De acordo com Burgos (2006, p. 56), o estado do Rio de Janeiro foi escolhido como o primeiro a ser palco do programa executado pelo Promorar em seis favelas da Maré, próximas ao aeroporto internacional. De acordo com Nóbrega Júnior, Belfort e Ribeiro (2012, p. 94), “a crítica à postura autoritária no encaminhamento do projeto e o desejo de intervir no processo de forma efetiva para evitar, definitivamente, o fantasma da remoção fizeram as lideranças comunitárias locais se organizar e criar a Comissão de Defesa das Favelas da Maré (Codefam) a fim de buscar a interlocução com o governo federal e defender os interesses dos moradores”. 49 De acordo com o depoimento do Ernani da Maré, nessa época ocorria um intercâmbio de lideranças da Maré com o movimento cooperativista na cidade do Rio de Janeiro, incluindo a presença de uruguaios. Como ele testemunha, “fui ao Uruguai financiado pelo Movimento de Justiça e Paz e tive contato com a experiência de cooperativa deles. Depois, voltando ao Rio de Janeiro, descobrimos que 83 passando-se a utilizar, de modo coletivo, o recurso recebido do programa para o empréstimo àquelas duzentos e vinte famílias visando à melhoria das condições de moradia. Segundo informações de Souza e Corrêa (1993), em 1985, das três mil famílias de Nova Holanda, dois terços já haviam feito melhorias em suas casas, sendo que as mil famílias restantes moravam ainda em péssimas condições. Como analisam, “em mais de 15 anos no local, esses moradores não conseguiram, com seus próprios recursos, transformar seus barracos, muitos deles desabando” (SOUZA; CORRÊA, 1993, p. 158). Após decisão em assembleia, os recursos do programa Fala Favela foram utilizados para compor o capital de giro da cooperativa, a qual realizou a compra coletiva nas lojas conveniadas do programa. No lugar de se utilizar o limitado recurso, destinado a fundo perdido, sob a forma individual, foram selecionadas as sessenta moradias em condições mais precárias, cujos residentes receberam o material para construção das fundações e estruturas (pilares e vigas) de suas casas (SOUZA; CORRÊA, 1993). A partir desse projeto inicial, a cooperativa se abriu, de acordo com Souza e Corrêa (1993, p. 159), “para qualquer morador da Nova Holanda, membro da Associação de Moradores e em dia com a sua cota-parte (cerca de 2% do salário mínimo, por mês), como reza o princípio do cooperativismo”. A COOPMAHN passou então a funcionar como uma cooperativa de consumo. Comprava o material no atacado – conseguindo melhor preço do que a compra isolada pelos seus sócios –, acrescido de um percentual para cobrir as despesas administrativas. Em quatro anos de existência, o balanço foi de que seiscentas e vinte famílias retiraram material de construção na cooperativa, realizando reformas ou ampliações, algumas até com a reconstrução total das residências (SOUZA; CORRÊA, 1993). Porém, segundo Nóbrega Júnior, Belfort e Ribeiro (2012), a cooperativa viu que não poderia perdurar por muito tempo o projeto de venda de material de construção a preço subsidiado. Como explicam, “os preços conseguidos com os fornecedores não havia um pessoal do Uruguai aqui, fazendo cooperativas. Fomos à Associação de Cooperativas do Rio de Janeiro e começamos a fazer esse intercâmbio” (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2003, p. 159). 84 permitiam uma margem de lucro que garantisse capital de giro ao reaquecimento da COOPMANH” (NÓBREGA JÚNIOR; BELFORT; RIBEIRO, 2012, p. 102). Começou- se, assim, a buscar projetos alternativos que garantissem sua sustentabilidade. A cooperativa de Nova Holanda, nesse período, era assessorada por um grupo de técnicos vinculados à Universidade Santa Úrsula, uma instituição de ensino privado criada em 1939 por uma entidade ligada à igreja católica. Trata-se do grupo Arquitetura e Comunidade – ARCO, o qual contava com técnicos vinculados à essa universidade. Segundo Bastos (2013, p. 61), o núcleo “era mantido por recursos da vice-reitoria comunitária da Universidade Santa Úrsula, na forma de espaço físico, instalações e carga horária dos envolvidos (que também eram do quadro da universidade)”. Antes de assessorar Nova Holanda, o núcleo desenvolvia projetos no campo da urbanização de favelas, produzindo principalmente o desenho de equipamentos comunitários (BASTOS, 2013, p. 61). Assessorando a cooperativa, os técnicos formularam um novo projeto, de forma a promover a sustentabilidade da iniciativa. Foi proposta, então, a implementação de uma fábrica de materiais-de-construção. O valor da venda dos materiais sustentaria as atividades da cooperativa e, sendo realizado à baixo custo, poderia alavancar as melhorias nas condições habitacionais dos moradores da favela (NÓBREGA JÚNIOR; BELFORT; RIBEIRO, 2012, p. 102). De cooperativa de consumo, a COOPMAHN se transformava em uma espécie de cooperativa de produção. Outro projeto desenvolvido nesse período foi a implantação de uma fábrica de artefatos de concreto. Alavancada com recursos a fundo perdido do programa Prodec da Caixa Econômica Federal, a fábrica tinha à disposição uma máquina elétrica para produção de blocos de concreto, trinta e quatro formas e mesa vibratória para confecção de vigotas de lajes pré-moldadas, betoneira e tanque de imersão para a cura das vigotas. Segundo Souza e Corrêa (1993, p. 161), no ano de 1991 a produção foi de cento e cinquenta mil blocos e de setecentos e cinquenta metros quadrados de laje, suficiente para construção de cento e cinquenta moradias de cinquenta metros quadrados. Todo o material foi escoado dentro da própria comunidade. Logo após essaexperiência, no início dos anos 1990 a cooperativa ampliou sua área de atuação e conseguiu se responsabilizar pela construção de quarenta e 85 seis unidades habitacionais que começariam a ser erigidas em Nova Holanda. Os recursos eram provenientes da Caixa Econômica Federal, banco público federal, naquele momento sendo executados pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos – CEDAE, autarquia do governo do estado do Rio de Janeiro. Nesse contrato estava prevista a reconstrução de duzentos e cinquenta e três barracos sob regime de empreitada global (na qual o poder público delega a execução de toda obra a uma empresa contratada) na área mais pobre do bairro, onde se localizavam os chamados “duplex”50. A cooperativa reivindicou a execução de parte desse projeto, sendo então atendida e continuando a ser assessorada pelo grupo ARCO (NÓBREGA JÚNIOR; BELFORT; RIBEIRO, 2012, p. 129 e BASTOS, 2013, p. 60). A cooperativa executou a construção das quarenta e seis unidades habitacionais que foram concluídas em junho de 1992. O projeto, porém, sofreu inúmeros atrasos e interrupções na liberação dos recursos por parte do gestor governamental. Ao comentar esses atrasos, Souza e Corrêa (1993, p. 163) apontam que os problemas foram causados por “mudança de governo e diretoria da CEDAE, dívidas não amortizadas do estado com a União e consequente congelamento das contas/convênios entre ambos, morosidade burocrática”. Conforme relatam, a cooperativa nunca havia deixado de pagar os salários semanais à mão-de-obra e, eventualmente, comprava material para não paralisar a obra. Porém, essa prioridade acabou por levar a cooperativa a buscar empréstimos com moradores, amigos e no mercado, os quais se fizeram a juros elevados. Tal situação colocou a cooperativa em uma problemática situação financeira. Como comentam os mesmos, isso fez por “repercutir negativamente na saúde financeira das demais atividades da cooperativa” e “na alteração do custo final da unidade construída” (SOUZA; CORRÊA, 1993, p. 163)51. Desse modo, apesar das iniciativas inovadoras da COOPMANH, logo depois da construção das unidades habitacionais sua diretoria acabou se dissolvendo e a 50 De acordo com a descrição de Nóbrega Júnior, Belfort e Ribeiro (2012, p. 86), em Nova Holanda as “habitações eram uniformes e distribuídas em lotes de cinco metros de largura e dez metros de comprimento”. Construídas de madeira – e de forma semelhante, por isso a referência à Holanda – eram de dois modelos, sendo que “uma parte era de casas baixas e outra de dois andares, conhecidas como duplex”. Todas possuíam uma sala, dois quartos, uma cozinha, um banheiro, um quintal e uma varanda. 51 Bastos (2013, p. 62) afirma que “houve a necessidade da inserção de uma empresa de construção civil na cadeia de produção para a finalização da obra”. 86 cooperativa deixou de existir52. Segundo Souza e Corrêa (1993), a cooperativa contava com dezesseis funcionários, sendo quatro no escritório, cinco no processo de entrega de materiais e sete na fábrica, além daqueles empregados na construção das casas. Já o núcleo ARCO, da Universidade Santa Úrsula, valeu-se da experiência junto à Nova Holanda para levar à frente propostas de produção cooperativa de moradias. É a partir desse momento que vai se entrecruzar a trajetória dos assessores do núcleo Arco com aquela do Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião, que se formou no final dos anos 1980 com técnicos que atuaram na Pastoral de Favelas do Rio de Janeiro. 2.2.2 Proposta pioneira do Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião O Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião foi fundado em novembro de 1986 no Rio de Janeiro. Enquanto uma organização não-governamental constituída a partir da defesa de direitos de moradores de favelas, a instituição, no início da década de 1990, abria um novo campo de atuação na produção cooperativa de moradias53. Foi assim que quatro de sete técnicos do Núcleo Arco, que participaram da experiência de assessoramento à COOPMAHN, vão se integrar à essa ONG (BASTOS, 2013, p. 60). 52 Sobre o fim da cooperativa, Nóbrega Júnior, Belfort e Ribeiro (2012, p. 105) detalham que “houve uma cisão da diretoria por conta de divergências na condução dos processos administrativos internos e, principalmente, porque surgiram grupos que defendiam lógicas antagônicas de funcionamento e da função da instituição. De um lado, um grupo pretendia privilegiar a questão da eficiência em detrimento do processo formativo e de participação popular na gestão da cooperativa; do outro, um grupo via a instituição como mais uma oportunidade para afirmar o processo democrático interno, em que a participação popular na gestão coletiva era mais importante que a eficiência econômica e o lucro”. 53 Bento Rubião foi um advogado militante na defesa de direito de favelados durante a ditadura. O Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião (posteriormente no final dos anos 1990 vindo a se definir enquanto uma Fundação) foi constituído enquanto um centro de defesa de direitos humanos. A partir da atuação de advogados na defesa de remoções de favelas no Rio de Janeiro, no seio da Pastoral de Favelas, formou-se enquanto organização não-governamental referindo-se ao advogado Bento Rubião, que havia atuado emblematicamente nessas atividades e falecido recentemente. Desde então atua com regularização fundiária, defesa de direitos de crianças e adolescentes e com a produção social da moradia. 87 O então Centro54 originou-se a partir das inciativas de técnicos que atuavam no Setor Jurídico da Pastoral de Favelas do Rio de Janeiro (BRUM, 2005). A Pastoral iniciou seu trabalho de assessoria às favelas em processo de remoção no final da década de 1970. O primeiro caso, mais emblemático, foi o apoio dado à favela do Vidigal, no final de 1977, a partir a possibilidade de remoção para o conjunto Antares, em Santa Cruz. Com o apoio da Pastoral, obteve-se a contenção do processo. No ano seguinte foi criado o Serviço de Assistência Jurídica, contando com operadores de direito para permitir o apoio às favelas sob risco de remoção. Entre os anos de 1981 e 1986 o projeto foi mantido com recursos da Fundação Ford. Porém, com o fim desses recursos, os técnicos atuantes criaram o Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião, adotando o nome do advogado falecido anteriormente que atuava na Pastoral (BRUM, 2005). No começo da década de 1990, a entidade, que até então atuava na questão da regularização fundiária de favelas e na defesa de direitos de crianças e adolescentes, passa a estruturar um programa direcionado à produção habitacional sob a forma da autogestão pelos futuros moradores. A iniciativa teve início a partir do aporte financeiro de uma agência de fomento holandesa55. Como coloca documento da própria entidade, “em 1992, a partir de um apoio financeiro da agência Novib da Holanda, forma-se uma equipe interdisciplinar, com arquitetos, agentes sociais e advogados” (FUNDAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS BENTO RUBIÃO, 2007). A entidade, conformada por esses recém integrados técnicos, egressos do Núcleo Arco, começaram a articular intercâmbios para formar o corpo da proposta de um programa de autogestão habitacional. Por um lado, ampliam o contato com a experiência dos “mutirões autogeridos” que se desenvolvia na região metropolitana de São Paulo desde meados dos anos 1980. Na capital paulista, a partir de 1989 o governo da prefeita Luiza Erundina desenvolve o programa FUNAPS-Comunitário 54 Em 1996 o Centro viria alterar a configuração de sua pessoa jurídica, vindo a conformar-se enquanto fundação. 55 A Netherlands Organisation for International Assistance (Novib) é uma organização holandesa fundada em 1956 a partir da iniciativade grupo de padres e pastores, que se propuseram a atuar na cooperação internacional depois de uma grave inundação que assolou o país em 1953, vitimando mais de mil e oitocentas pessoas, a qual recebeu um grande apoio internacional. 88 para apoio à produção autogestionária de moradias por movimentos sociais56. Como Bastos (2013, p. 56) detalha, esse contato com a experiência de São Paulo já ocorria desde a atuação dos técnicos no Núcleo Arco, quando em 1989 “dois estudantes de arquitetura da Universidade Santa Úrsula que possuíam vínculos com o núcleo Arco realizaram uma viagem a São Paulo, travando contato com Leonardo Pessina”. O arquiteto Leonardo Pessina havia atuado nas experiências piloto do cooperativismo uruguaio de moradia da década de 1960 e no começo do sistema até 1975, quando, dada a ditadura militar, exila-se na Europa57. Após o exílio, volta ao Brasil e, no final da década de 1980, vai atuar na região metropolitana de São Paulo, junto às experiências dos mutirões autogeridos (BONDUKI, 1992). Inicialmente Pessina trabalha em projetos na cidade de São Bernardo do Campo58, quando também “técnicos do núcleo [ARCO] visitam o mutirão da Vila Comunitária de São Bernardo em São Paulo e conhecem o Funaps-comunitário” (BASTOS, 2013, p. 56). Como comenta Bonduki (1992, p. 35) sobre o caso paulista dos anos 1980, “a influência do cooperativismo uruguaio no surgimento de propostas autogestionárias 56 A experiência de produção social de moradia na cidade de São Paulo tem sua origem no início dos anos 1980, com forte influência do cooperativismo habitacional uruguaio. Ela se consolida enquanto política pública no final dos anos 1980, com a eleição da prefeita Luiza Erundina pelo Partido dos Trabalhadores e com o desenvolvimento do programa “Mutirões” com recursos do FUNAPS- Comunitário (um fundo historicamente destinado a políticas de assistência social). Para reconstituição desse longo processo, vide, dentre outros, Baravelli (2006), Bonduki (1992), Lopes (2011) e Muçouçah e Almeida (1991). 57 Como Leonardo Pessina coloca em depoimento ao autor, “eu fui para a Holanda, em 1977. Tive que sair porque deram um golpe na minha organização de esquerda. [...] Eu consegui militar quatro anos sem ser descoberto. [...] Cruzei a fronteira no Chuí, aqui no sul do Brasil, fiquei um tempo em Camboriú com um arquiteto amigo meu que tinha trabalhado em uma das Mesas e já tinha saído também por precaução. Até que o pessoal da minha força política me localizou e me indicaram que eu fosse para São Paulo e de lá para o Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro eu me apresentei no ACNUR [Alto Comissariado da ONU para Refugiados]” (PESSINA, 2015). 58 Após a volta do exílio na Europa, Leonardo Pessina vai residir no Rio de Janeiro, sendo que depois de contato com militantes de São Paulo passa a estruturar uma proposta similar ao cooperativismo uruguaio em São Bernardo do Campo. Como ele comenta em depoimento ao autor, “no Rio eu morei até 1985, três anos no Rio de Janeiro. [...] Aí um colega do INOCOOP conhecia um pessoal de São Bernardo do Campo que estava com uma ideia de mutirão, assim bem no ar. Ele estava trabalhando numa favela grande e tinha um contato com a igreja progressista e mais vinculada com os pobres, da Teologia da Libertação. Uma liderança muito forte que era operário metalúrgico, era do início do PT”. Após esse contato com a liderança de São Bernardo do Campo, Pessina comenta que “na semana seguinte eu estava indo para São Bernardo, para começar a bolar alguma proposta. Eu viajava de ônibus do Rio para São Paulo de noite, ficava dois ou três dias a cada quinze dias e fomos montando a proposta” (PESSINA, 2015). Sobre o surgimento das experiências dos mutirões autogestionários em São Bernardo do Campo, vide Vaz (2000). 89 na luta por moradia foi enorme”59. Assim é que, no início dos anos 1990, os técnicos do Centro Bento Rubião foram à própria fonte de inspiração do caso paulistano, o Uruguai. Valendo-se de recursos de cooperação internacional, por meio do programa FICONG60, inicia-se o contato com o Centro Cooperativista Uruguayo (CCU) e a Federación Uruguaya de Cooperativas de Viviendas por Ayuda Mutua (FUCVAM) visando aprofundar o conhecimento sobre o sistema daquele país. Já no início da configuração da iniciativa da ONG, conformam-se os grupos iniciais que se interessam no desenvolvimento da proposta. Dessa maneira é que “se articulam três grupos em demanda por moradia, dando-se início à formulação da metodologia de intervenção e da busca de parcerias” (FUNDAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS BENTO RUBIÃO, 2007). Os três grupos se organizam em três localidades da cidade do Rio de Janeiro, quais sejam, Shangri-lá em Jacarepaguá, Colmeia em Campo Grande e Pixuna na Ilha do Governador. Foi assim que no ano de 1993 ocorreu o programa de intercâmbio com as instituições do Uruguai. Participaram os técnicos da ONG, os representantes dos grupos assessorados e um representante da Prefeitura, com a qual se negociava um apoio para a constituição de um programa público à época. Segundo documento da entidade sobre essa visita, esse grupo “passou uma semana em oficina com representantes e técnicos do CCU e da FUCVAM, bem como em visita a cooperativas consolidadas e em construção” (FUNDAÇÃO BENTO RUBIÃO, 2007: 27). Logo em seguida, representantes uruguaios vieram ao Rio de Janeiro. Assim, “meses depois, uma segunda etapa do intercâmbio se deu a partir da presença de uma delegação uruguaia no Rio de Janeiro, adotando-se formato e agenda semelhante à missão realizada em Montevidéu” (FUNDAÇÃO BENTO RUBIÃO, 2007: 27). Inicia-se, desse modo, a incorporação da referência uruguaia nos projetos do Rio de Janeiro, sendo diversas perspectivas adotadas, conforme se desenvolverá nos próximos anos de concretização das experiências. Como aponta o próprio documento, “o modelo de intervenção formulado em sequência nasceu, portanto, sob forte 59 Não caberia nesta tese realizar uma análise da influência uruguaia no caso paulistano. Toma-se somente a referência para a compreensão do caminho empreendido pela constituição da referência do Rio de Janeiro ao Uruguai. 60 No caso, o programa Políticas e Projetos Destinados à Redução da Pobreza Urbana na América Latina / Programa de Fortalecimento Institucional e Capacitação de Organizações Não Governamentais. 90 influência da experiência uruguaia, sendo adaptado à realidade brasileira ao longo dos anos” (FUNDAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS BENTO RUBIÃO, 2007, p. 17). O Centro também já havia procurado estabelecer parceria com o poder público para apoiar os três projetos que iam se definindo com os grupos que se formaram. Promoveu-se, inicialmente, uma primeira tratativa junto ao governo federal de então, a qual se mostrou infrutífera. Passou-se, a partir daí, a uma negociação com a prefeitura do Rio de Janeiro. Como resume um comentário de documento da entidade, “após uma primeira tentativa junto ao governo federal de então, que formulava um novo programa habitacional, abandonado em seguida, buscou-se o envolvimento da Prefeitura do Rio de Janeiro, que acabara de criar uma Secretaria de Habitação” (FUNDAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS BENTO RUBIÃO, 2007, p. 27). As conversas começaram a ser realizadas com a equipe da Secretaria de Urbanismo do prefeito eleito em 1993, César Maia, cuja pasta era titular o arquiteto Luis Paulo Conde. Constituindo um novo modelo de intervenção urbana baseado no planejamento estratégico (SARTOR, 2000 e RIBEIRO, 2009), junto à secretaria de Urbanismo se organizava um conjunto de intervenções urbanas na cidade, sendo então negociado a estruturação de um programa da Prefeitura em apoio à iniciativa do Centro Bento Rubião. Bastos (2013) afirma que, nesse ano de 1993, formou-se “um grupo que envolvia o Centro de Defesa, representantesdos três grupos de luta por moradia e técnicos da prefeitura, na consolidação desse modelo de intervenção que seria materializado a partir das três experiências piloto” (BASTOS, 2013, p. 67). A tentativa de angariar suporte da Prefeitura do Rio de Janeiro se realizou por meio da Secretaria de Habitação, que se constituiu em 1994. A participação de técnicos e gestores da Prefeitura no intercâmbio com o Uruguai, no grupo de trabalho e nas negociações para a instituição do programa, porém, não constituíram um programa de apoio da Prefeitura. Os aportes desta foram pontuais aos projetos. Como aponta documento da entidade, após mais de um ano de negociações, com o projeto já quase aprovado em sua globalidade (através da disponibilização de terrenos, da implantação de infraestrutura e da concessão de financiamento para construção das moradias), houve um recuo da participação municipal (FUNDAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS BENTO RUBIÃO, 2007, p. 27). 91 Bastos (2013, p. 67) indica que a Prefeitura forneceu “cooperação em relação a aspectos pontuais dos projetos”, tais como a desafetação do terreno do projeto em Campo Grande, que era uma praça, e a doação de manilhas necessárias para o projeto de esgotamento sanitário dos grupos. Se, no Uruguai, as primeiras experiências piloto contaram com o aporte do estado por meio, principalmente, de recursos de financiamento, no Rio de Janeiro essa parceria se consolidou em aspectos pontuais. Assim é que o então Centro Bento Rubião teve que constituir uma alternativa própria para viabilizar os recursos financeiros em outros moldes. 2.2.3 Aporte de recursos da cooperação internacional A perspectiva que se constituiu para o financiamento aos projetos dos três grupos iniciais se formou acionando redes de cooperação internacional61. Assim, a concretização da iniciativa da entidade tomou forma ao se conformar a proposta de um Fundo Rotativo que apoiaria a construção de moradias para os grupos organizados. Os recursos do Fundo foram compostos pelo aporte que se conseguiu com a entidade alemã Misereor62, no ano de 1995. A proposta era de que o Fundo fosse administrado pela entidade e gerido por um conselho gestor formado por representantes dos grupos apoiados (BASTOS, 2013, p. 69). O projeto aprovado pela Misereor permitiu o financiamento de oitenta e duas unidades habitacionais em sua primeira etapa, prevendo-se que houvesse o retorno do aporte de investimento conforme as famílias atendidas pagassem as cotas mensais, de modo a possibilitar que novas experiências fossem apoiadas pelo fundo. Esse primeiro conjunto de recursos permitiu a construção das vinte e nove unidades 61 A própria COOPMAHN havia contado com apoio de financiamento externo para a estruturação de seu capital de giro. Souza e Corrêa (1993, p. 160) lembram que, além dos recursos do programa Fala Favela, foram aportados outros da Legião da Boa Vontade, do Núcleo Arco da Universidade Santa Úrsula, da Caixa Econômica Federal e da organização norte-americana Low Income Housing. 62 A mesma entidade que apoiara as três experiências piloto no Uruguai em 1967. 92 do grupo Shangri-lá, em Jacarepaguá, trinta do grupo Colméia, em Campo Grande, e vinte e três do grupo Pixuna, na Ilha do Governador63. A proposta de organização do fundo adotou configuração similar ao sistema uruguaio de financiamento coletivo, buscando-se que os grupos se constituíssem em cooperativas. Como aponta documento da entidade para uma publicação em espanhol, nesses projetos “se firman contratos entre la Fundación, gestora del Fondo Rotativo, y la cooperativa, que a su vez realiza contratos con cada uno de los cooperativistas” (FUNDAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS BENTO RUBIÃO, 2004, p. 78). Além disso, como no Uruguai, adotou-se a elaboração de um regimento de obra para organização do aporte de trabalho dos próprios membros dos grupos. As obras se iniciaram no ano de 1996 e foram concluídas em 1999. Após a conclusão das mesmas não havia como o Fundo financiar novas unidades, já que recém se iniciava a devolução dos empréstimos. Como aponta depoimento da entidade – que a partir de 1996 muda sua figura jurídica para Fundação64 –, “los recursos existentes eran los de las prestaciones, insuficientes para tal fin, promoviéndose entonces una capitalización de los mismos y la búsqueda de nuevas fuentes de financiamiento” (FUNDAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS BENTO RUBIÃO, 2004, p. 74). Após a busca de parcerias, no ano de 2001 houve um segundo aporte de recursos de cooperação internacional ao Fundo Rotativo, a partir da Inter-American Foudation65, os quais, juntamente com a primeira devolução dos empréstimos, permitiram a construção de mais sessenta e uma unidades. Mais três grupos foram apoiados, no caso Herbert de Souza, em Jacarepaguá, e Ipiíba e Jóquei, no município de São Gonçalo. O primeiro coletivo foi formado a partir de uma lista de espera que surgiu quando o projeto de Shangri-lá estava em execução. Já o grupo de Ipiíba (figura 10) 63 Como aponta Bastos (2013, p. 65) sobre o grupo Pixuna, “este conjunto não foi autogerido, segundo os envolvidos, devido a uma conjuntura política interna própria na qual a autogestão não foi apropriada pelo grupo, sendo a gestão em grande parte delegada à assessoria técnica”, no caso a própria Fundação Bento Rubião. 64 Passando a se denominar Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião. 65 A Inter-American Foundation é uma agência governamental independente, criada pelo Congresso dos Estados Unidos em 1969. Apoia projetos na América Latina e no Caribe. 93 se conformou a partir da atuação de uma organização da Igreja Católica no bairro de Alcântara, em São Gonçalo. Como aponta Lima (2011, p. 36), o pároco da igreja tomou a iniciativa de mobilizar as famílias, que “souberam da proposta do padre por meio dos avisos emitidos durante estas missas das quais participavam. A maioria delas vivia de aluguel e muitas em imóveis bastante precários”. Logo em seguida a igreja decidiu comprar um terreno no bairro, tomando um empréstimo bancário e financiando-o, a um custo acessível, às famílias interessadas. O terreno comporta duzentas e vinte moradias, sendo que as primeiras 37 famílias a construir conformaram o grupo Ipiíba, sendo então assessoras pela Fundação Bento Rubião66. Figura 10 – Moradia construída no projeto de Ipiíba (São Gonçalo, 2014) Fonte: acervo do autor. Assim, diferentemente de São Paulo e do Uruguai, no Rio de Janeiro não houve a estruturação de um programa com fundos públicos que alavancasse a consolidação de projetos de autogestão habitacional. Se, no Uruguai, as experiências piloto contaram com um aporte de recursos de agências internacionais (Misereor e BID) e, 66 Pouca informação foi angariada sobre o grupo Jóquei, de São Gonçalo, somente se sabendo que foi formado em sua maioria por população idosa. 94 também, do governo nacional (INVE) – como visto na primeira parte da seção –, no Rio os projetos piloto foram viabilizados essencialmente por recursos de agências internacionais. De modo a perseguir os momentos de inspiração da experiência carioca seguindo a influência uruguaia, analisa-se um pouco da trajetória do projeto de Shangri-lá. Isso permitirá compreender como a trajetória do Rio de Janeiro adentra outra configuração a partir da década de 2000. *** No bojo das experiências piloto do início dos anos 1990 no Rio de Janeiro, o grupo Shangri-lá constituiu-se no primeiro a empreender um projeto de produção social do habitat na região de Jacarepaguá. No começo dessa década, treze famílias moradoras de um cortiço se organizaram para repensar suas péssimas condições de vida e de habitação na favela conhecida como Jardim Shangri-lá. Esta se originouno início da década de 1970 a partir de um loteamento irregular. Como aponta Huguenin (2013, p. 105), “a Favela Jardim Shangri-lá surgiu por volta de 1971, quando uma grande chácara foi loteada e um ocupante vendeu irregularmente a Área de Preservação Permanente do Rio Grande”. Logo em seguida ao loteamento ocorreram ocupações em áreas destinadas ao uso coletivo e aos equipamentos urbanos, observando-se que “até mesmo lotes formais, previstos no loteamento, também foram favelizados, não pela ocupação da área ou pela venda, mas pelo aluguel de barracos” (HUGUENIN, 2013, p. 105). Enquanto território de precárias condições de moradia e de vida na cidade, a favela Jardim Shangri-lá consolidou-se em uma das expressões do processo de urbanização da região de Jacarepaguá, na porção oeste do município do Rio de Janeiro67. 67 A introdução mais intensa de Jacarepaguá na urbanização do Rio de Janeiro está ligada à abertura do vetor de crescimento da cidade para a área da Barra da Tijuca, na década de 1960. Segundo Pérez (2014, p. 39), a região “conformou-se a partir de um crescimento intricado de poucos loteamentos formais e organizados, sobrepostos por urbanizações irregulares (loteamentos e favelas) e conjuntos promovidos pelo poder público”. Constituída enquanto um mosaico de ocupações do solo urbano pouco 95 No início dos anos 1990, algumas famílias que moravam em um cortiço da favela começaram a frequentar atividades que um grupo católico, ligado às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), passou a desenvolver no local, principalmente com os denominados ciclos bíblicos. Huguenin (2013, p. 109) aponta que as CEBs promoviam diversas atividades na região, sendo que “foram feitas várias iniciativas em diferentes áreas de Jacarepaguá, como estímulo a fábricas populares e até mesmo às ocupações organizadas de terra, com a formação de associações de moradores”. Foi então que a CEB Padre Josino, em parceria com a Campanha da Fome contra a Miséria e pela Vida, iniciou algumas discussões com os moradores da favela Shangri-lá para repensar as condições de vida em que se encontravam. O cortiço constituía-se basicamente no fornecimento de um espaço privado para a moradia e outro coletivo para o asseio e a limpeza dos moradores, os quais pagavam um aluguel ao “faveleiro”. Sobre as condições de moradia, Huguenin (2013: 106) coloca que esse espaço “era constituído por dois corredores de cômodos que abriam para um acesso comum. Esses cômodos não contavam com qualquer instalação hidrossanitária, seu uso restringia-se a um local para dormir e para a preparação dos alimentos”. Um único banheiro e um único tanque atendiam as famílias no fundo do lote. Naquele cortiço, então, passaram a ocorrer as reuniões da CEB com as dezesseis famílias, a partir de uma metodologia que procurou construir metas para a mudança nas condições de vida do grupo. As duas principais metas definidas foram a geração de trabalho e renda e a melhoria da situação de moradia. Para a transformação das condições de habitabilidade do lugar, o grupo decidiu negociar a compra do terreno do cortiço junto ao faveleiro. A partir daí descobriu-se a existência de uma proprietária do local, com a qual foi feito um acordo para a compra da terra. A Igreja Católica aportou parte do dinheiro e o restante foi levantado com recursos mobilizados por atividades do próprio grupo, tais como rifas, bingos, almoços etc. Para atingir a meta de geração de trabalho e renda, o grupo conseguiu um aporte financeiro de uma entidade ligada à Igreja Católica para o investimento em produção de material de construção. O Centro de Estatística Religiosa e Investigações conectadas entre si, o território é conformado historicamente por inúmeras formas irregulares de ocupação. 96 Sociais - CERIS68 forneceu dois mil dólares que permitiram a criação de uma fábrica de blocos de concreto e vigotas para laje pré-moldada, oferecendo trabalho para oito pessoas da comunidade (HUGUENIN, 2013). Foi no ano de 1993 que o grupo começou a contar com a assessoria da Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião. No ano seguinte conseguiu-se o aporte do Fundo Inter-Religioso Contra a Fome e pela Vida69 para o investimento de sete mil dólares na fábrica de blocos de concreto, que passaram a produzir seiscentos blocos por dia. O aumento na escala de produção da fábrica comunitária possibilitou que o grupo empregasse o material produzido na construção das duas primeiras casas no terreno do cortiço, que recentemente haviam adquirido. Findada a construção das casas e, também, a verba do Fundo, o grupo buscou por novas fontes de financiamento, escassas naquele momento. Vislumbrou-se, então, que o aporte de organizações não-governamentais (nacionais e internacionais), que atuavam no Rio de Janeiro, seria a saída possível para a garantia de suporte financeiro e da continuidade do projeto. Assim, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais (IBASE) juntamente com a Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE) se encarregaram de promover atividades formativas para o grupo; o Centro de Ação Comunitária (CEDAC) atuou nas relações de grupos interpessoais; a organização holandesa Novib contribuiu para o projeto de uma cozinha industrial; e a Associação de Grupos de Produção (AGP) interveio na área de geração de renda (HUGUENIN, 2013, p. 115). Portanto, na ausência de acesso aos fundos públicos, um conjunto de organizações sociais foi acionado como único caminho disponível para a continuidade do projeto em Shangri-lá. A partir desse momento, o grupo se constitui enquanto uma “cooperativa habitacional e mista”. Integraram-se mais treze famílias, totalizando um grupo de vinte 68 O CERIS foi fundado no ano de 1962 em um ato conjunto entre a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a Conferência dos Religiosos do Brasil, atendendo a uma exigência das ações pastorais e sociais da Igreja Católica no país. O CERIS tem o objetivo de dar suporte técnico e de pesquisa aos trabalhos da Igreja, realizando a avaliação de projetos, investigações e monitoramento de experiências populares e pastorais, além de assessoria a movimentos sociais e eclesiais, financiamento e apoio a pequenas iniciativas populares. 69 O fundo foi constituído pelo Movimento Inter-Religioso – MIR (criado pelo Instituto de Estudos da Religião) a partir de 1993 dentro da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida (fundada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, a partir do Movimento pela Ética na Política), promovendo campanhas de arrecadação de recursos e selecionando pequenos projetos de geração de renda para serem apoiados, responsabilizando-se pela distribuição dos recursos e acompanhamento dos projetos. 97 e nove. Os treze novos núcleos provinham de uma área que sofria com intensos alagamentos, tendo urgência para conseguir melhores condições de moradia. Além disso, para se conformar enquanto uma cooperativa, o grupo deveria contar com mais de vinte associados, conforme exigência da lei de cooperativas brasileira – Lei 5.764 de 1971 (HUGUENIN, 2013 e BASTOS, 2013). Após a construção das duas primeiras casas com materiais da fábrica de tijolos, foram erguidas as demais vinte e sete com recursos do Fundo Rotativo por meio de recursos da entidade alemã Misereor, como analisado anteriormente. O processo foi realizado com aporte de mutirão com mão-de-obra das famílias e a contratação de trabalho especializado. Um centro comunitário também foi edificado, servindo para reuniões locais e que posteriormente também foi utilizado para a realização de atividades da CEB, do Partido dos Trabalhadores e para a conformação da União por Moradia Popular do Rio de Janeiro. Figura 11 – Moradias do projeto Shangri-lá,Jacarepaguá (Rio de Janeiro, 2014) Fonte: acervo do autor. Quanto à gestão do projeto, o regimento interno da cooperativa prevê a propriedade coletiva das moradias. Ou seja, inspirando-se no sistema uruguaio, caso algum cooperado venha a deixar o grupo, será feito o ressarcimento do valor de sua 98 quota-parte, sem a contabilização de qualquer valorização no imóvel, e o novo cooperado será recrutado pela direção da cooperativa, o qual terá que pagar o valor da referida quota-parte70. *** A partir da experiência da cooperativa Shangri-lá emergiu um outro grupo de famílias em Jacarepaguá que decidiu enveredar pelo mesmo caminho da autogestão habitacional. Assim surgiu a cooperativa habitacional e mista Herbert de Souza, que entre 1997 e 1999 construiu dezenove casas com apoio do mesmo Fundo Rotativo que financiou Shangri-lá, agora com recursos da Inter American Foudation (IAF). Durante a construção da cooperativa Herbert de Souza estruturou-se uma espécie de “lista de espera” composta por famílias da região que também estavam interessadas em empreender um projeto como aquele, mas que não puderam entrar no grupo final. Dessa forma constitui-se o grupo que se autodenominaria “Esperança”. Conforme Bastos (2013, p. 102) explica, “ainda no ano 2000, a cooperativa Herbert de Souza fecharia seu número de famílias a serem atendidas, mas as que não entraram para a listagem final se organizariam em outro grupo, dando origem ao grupo Esperança”. Além da formação desses grupos em Jacarepaguá, constituiu-se, no início dessa década, a União por Moradia Popular do Rio de Janeiro. Com o objetivo de organizar a luta política em torno das iniciativas de autogestão habitacional na metrópole carioca, a iniciativa, de certa forma, desempenha papeis similares às federações de cooperativas no Uruguai. A partir da conexão com a organização de caráter nacional, a União Nacional por Moradia Popular, surgiu com o apoio da Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião. No entanto, como aponta documento da entidade nesse sentido, “otra gama de obstáculos se refiere al hecho de que no existe en la región un movimiento social estructurado, orgánico y 70 Vale destacar que, após o fim do projeto formou–se a cooperativa Constrói Fácil, a partir da iniciativa de um dos organizadores da CEB Padre Josino, sendo que a cooperativa passou a executar serviços da construção civil na região de Jacarepaguá. 99 amplio en el rubro de la vivienda”. (FUNDAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS BENTO RUBIÃO, 2004, p. 79) 2.2.4 Anos 2000 e acesso a fundos públicos O grupo Esperança formou-se a partir de 2000 no bojo das experiências de Shangri-lá e Herbert de Souza. Desde então iniciou a luta política pela procura por fontes de financiamento e pelo terreno para a execução do projeto. Essa intensa busca trilhou áridos caminhos em um contexto de continuidade na escassez de fontes de financiamento público para as políticas habitacionais no país e, também, de ausência nos aportes de agências de cooperação internacional para a produção habitacional – como ocorrera anteriormente com os recursos disponibilizados pela Misereor e pela AFI no Fundo Rotativo. Como afirma Cardoso (2001, p. 109), na virada da década de 1990 para 2000 os empréstimos habitacionais estavam “limitados à atuação do setor privado ou aos empréstimos individuais [...]. Em ambos os casos, não se atinge o objetivo principal de atender às populações de menor renda”. Assim, o grupo Esperança será marcado pelo longo e árido caminho para angariar a execução de suas unidades habitacionais, como se o próprio nome do grupo tivesse que ser provado por sua trajetória. Foi a partir do ano de 2003, com a eleição de Luiz Inácio “Lula” da Silva para o governo federal, que as perspectivas de financiamento se abriram para o grupo. Uma primeira reestruturação institucional da política habitacional e urbana no nível federal, a partir da criação do Ministério das Cidades e a retomada gradual dos investimentos orçamentários da União em programas habitacionais, formou-se a perspectiva de acesso a fundos públicos federais com a criação do Programa Crédito Solidário, em 2004 (MOREIRA, 2009 e PEREIRA, 2006). Trata-se do único programa público, na política habitacional federal, criado pelo governo Lula, já que para os demais ocorreu uma remodelação de programas já existentes. Constituído a partir do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), instituído em 1993 e que estava, até então, com baixa utilização, o programa permitia o financiamento habitacional às organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, a juros zero. 100 No Rio de Janeiro ampliou-se a perspectiva de apoio aos diversos grupos que passaram a se organizar no campo da produção social do habitat. Se a iniciativa capitaneada pela Fundação Centro de Defesas de Direitos Humanos Bento Rubião, na primeira metade dos anos 1990, em estruturar o apoio dos níveis locais de governo (estado e município) para um programa público não havia logrado êxito até então, uma década depois uma nova perspectiva emergiu com o cenário desenhado pela nova administração no governo federal. Diversas entidades do campo da reforma urbana – sindicatos, entidades de classe, movimentos sociais – se organizaram para estruturar projetos a serem apresentados para seleção no novo programa. Como testemunha, em entrevista ao autor, o coordenador da Fundação Bento Rubião à época, quando saiu o Crédito Solidário, veio o pessoal do Ministério [das Cidades] aqui [no Rio de Janeiro]. A gente fez todo um trabalho de articulação de entidades, assessorias, articulamos sindicato dos arquitetos, sindicato dos engenheiros, FASE [Federação de Órgãos para Assistência Social e Educação], grupos que a gente conhecia. Aí fizemos uma plenária, dali saíram vinte projetos se eu não me engano, ou trinta (CORRÊA, 2015). Porém, o novo horizonte mostrou-se muito mais estreito do que as expectativas, e todo esse processo, segundo o coordenador, “foi minguando, minguando, minguando e ficou Esperança” (CORRÊA, 2015). O grupo Esperança foi o único a conseguir levar à frente seu projeto junto ao Crédito Solidário, enfrentando as grandes dificuldades com a Caixa Econômica Federal, um novo ator com o qual as organizações locais tiveram que travar diálogo. A Caixa Econômica Federal constitui-se no agente operador dos programas habitacionais e urbanos do governo federal. Desde 1986, após a extinção do Banco Nacional de Habitação, herdou o papel de gestão de todos esses programas (AZEVEDO; ANDRADE, 2011). Assim é que a representação da Caixa, no Rio de Janeiro, tornou-se um grande impeditivo para o desenvolvimento de projetos no âmbito do Programa Crédito Solidário. Bastos (2013, p. 103), nesse sentido, aponta para a “situação particular da Caixa Econômica do Estado do Rio de Janeiro, já que dos quarenta empreendimentos aprovados pelo PCS [Programa Crédito Solidário] no 101 ano de 2004, nenhuma unidade habitacional sequer foi construída até à ‘extinção prática’ do programa no ano de 2009”71. Com a possibilidade de acessar os recursos do Crédito Solidário, o grupo Esperança passou, dessa forma, a procurar pelo terreno para execução do projeto. Dado que os valores de financiamento do programa eram muito baixos, praticamente apoiando somente a construção da unidade habitacional, a alternativa de compra de uma área no mercado foi descartada. Bastos (2013, p. 103) relembra que “a opção pela compra coletiva foi a primeira alternativa de acesso à terra que o grupo possuía, uma vez que essa foi a estratégia das experiências que a precederam diretamente, ou seja, Shangri-lá e Herbert de Souza”. Não contando com recursos próprios para adquirir um terreno, o grupo e a Fundação Bento Rubião decidiram enveredar pela estratégia de tentar o acesso aosolo público para viabilizar o projeto. A alternativa mais factível que se constituiu foi a negociação de terras com o governo federal, justamente pela parceria que era construída desde o novo cenário político nacional que se abriu em 2003. A partir do ano de 2005 o grupo passou a negociar com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), por meio de sua gerência regional no Rio de Janeiro, o acesso à terra pública do governo federal. Segundo Bastos (2013, p. 105) “a intenção do grupo era de permanecer em um local próximo às suas moradias, em Jacarepaguá e imediações. No entanto, foram oferecidos, inicialmente, terrenos distantes, em locais pouco providos de infraestrutura, como o bairro de Santa Cruz [distante quarenta quilômetros]”. Finalmente, no ano de 2007, apareceu a oferta de desenvolvimento do projeto em um terreno na antiga Colônia Juliana Moreira. A Colônia Juliana Moreira está localizada na região sul de Jacarepaguá, entre as áreas do Maciço da Pedra Branca. O termo colônia refere-se ao novo modelo de tratamento psiquiátrico que foi instaurado no Brasil a partir do começo do século XX72. 71 A “extinção prática” do Programa Crédito Solidário ocorreu com o lançamento do programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades no ano de 2009, pois apesar de não existir o fim do primeiro, o segundo oferecia condições de financiamento mais interessantes, monopolizando a apresentação de projetos. 72 Baseado em dois pilares, a praxisterapia e a assistência hetero-familiar, defendidos pelo médico Juliano Moreira. No ano de 1924 foi inaugurada a Colônia Juliana Moreira e, a partir de então, passaram a se desenvolver trabalhos terapêuticos com cerca de mil e seiscentos doentes, em atividades de lavoura, pecuária e pequenas indústrias, como artefatos de vime e de colchões. Além da população hospitalar, diversos servidores públicos trabalhavam e moravam na Colônia, cujas famílias também viviam no local e serviam à normalização do convívio dos internos (PORTOCARRERO, 2002) 102 A atual área da antiga colônia Juliana Moreira tem aproximadamente sete milhões e oitocentos mil metros quadrados, com uma população de quase vinte e dois mil habitantes (PÉREZ, 2014, p. 52). A partir da década de 1980, com a luta antimanicomial, a utilização da área entrou em decadência. Desse modo é que se iniciou um processo, a partir do final dessa década, de transferência dessas terras da União para o Município. Porém o processo de municipalização demorou mais do que o previsto e uma parte da Colônia foi transferida para a Fundação Oswaldo Cruz, órgão de pesquisa do Governo Federal vinculado ao Ministério da Saúde. Foram dois anos de negociação para o acesso ao terreno na Colônia Juliano Moreira. Ao conseguir a destinação da terra, restava ao grupo acessar o financiamento habitacional para a execução do projeto. Deve-se destacar que, para acessar os recursos do fundo público federal, a Fundação Bento Rubião é que se tornou a “entidade organizadora” do grupo, ou seja, a responsável jurídica por todo o contrato. Justamente por dois motivos: primeiro, pelo processo de “habilitação” do programa do Governo Federal, que exigia a comprovação de experiência prévia e uma diversificada gama de documentação, às quais somente a Fundação poderia cumprir, e não o grupo cooperado73. Depois, pelo fato da União por Moradia Popular (UMM- RJ), movimento social ao qual o grupo encontrava-se ligado, estar em recente processo de constituição e não contar com uma figura jurídica habilitada para a seleção no âmbito do programa. Assim é que a Fundação Bento Rubião se constituiu não só como a assessoria técnica do projeto, senão como a própria entidade organizadora, responsável por toda a gestão do projeto. A jornada do grupo ainda seria longa até o início das obras. Durante dois anos, entre 2005 e 2007, esbarrou em pendências com a Caixa Econômica Federal para aprovar seus projetos no programa Crédito Solidário. Em 2007, após a assinatura de contrato, o grupo não pôde dar prosseguimento para o início das obras devido à ausência de transferência do terreno da SPU para a Secretaria Municipal de 73 Nesse momento, o período de habilitação da entidade era realizado pelo Ministério das Cidades para os programas habitacionais do Governo Federal. O processo de habilitação ocorria em momentos descontínuos, ou seja, era necessário esperar a abertura do processo pelo Ministério, sendo que a entidade deveria entregar os documentos aos escritórios da Caixa Econômica Federal (agente operador). Basicamente havia exigências de regularidade da entidade e de qualificação técnica. Assim, a entidade deveria estar conformada há mais de três anos e cumprir uma série de critérios avaliativos sobre sua experiência acumulada em programas habitacionais e em políticas urbanas, que habilitavam a entidade à construção de um determinado volume de unidades habitacionais. 103 Habitação, a qual só foi concluída em outubro de 2008. Já nos preparativos para o início da obra, no terreno originalmente destinado ocorreu um conflito fundiário, em que moradores da Colônia reivindicam a área como de lazer, por meio de abaixo assinado pedindo a construção de uma praça no local do terreno. A prefeitura acata o pedido e o grupo tem que mudar de área dentro da Colônia. Porém, essa mudança não ocorre sem que se exijam algumas garantias, que são aceitos pela Prefeitura. Segundo Bastos (2013, p. 108), trata-se de três pontos exigidos, quais sejam, a execução pela Prefeitura dos projetos de infraestrutura e urbanização, a construção de uma área de lazer e a doação de recursos para a execução do centro comunitário. No final de 2008 o grupo tem acesso ao novo terreno, mas surgem novos obstáculos, com a readequação dos projetos desenvolvidos para o terreno antigo e a necessidade de nova aprovação da documentação junto à Caixa Econômica Federal. Todo esse processo durou até o final do ano de 2009, quando, então, é lançado o programa Minha Casa, Minha Vida pelo governo federal74. O programa conta com a linha Entidades, a qual oferecia mais vantagens para o grupo, principalmente quanto ao maior valor de financiamento e tempo de pagamento. Em 2010, então, o grupo sai do Programa Crédito Solidário e entra no processo de acesso ao Minha Casa Minha Vida – Entidades. Passando por todo o fluxo burocrático junto à Caixa Econômica Federal, assina o contrato somente no ano seguinte, em vinte de fevereiro. Porém, esse não será o último ato. Após a assinatura do contrato, o cartório do 9º ofício do Rio de Janeiro não compreendeu as especificidades do programa e assim demorou-se quase um ano para que o contrato fosse registrado em cartório. Somente em março de 2012, doze anos depois de constituído o Grupo Esperança, é que se iniciaram as obras na Colônia Juliano Moreira. As obras tomaram mais três anos do grupo, sendo inauguradas parcialmente em maio de 2015. 74 O programa Minha Casa Minha Vida foi lançado no começo do ano de 2009 como resposta à crise imobiliária de 2008. Também foi criada a modalidade Entidades, com o aporte de recursos no Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), que financiava o Crédito Solidário, mas com uma nova regulamentação, ampliando os valores de contratação e subsidiando as prestações de todos os beneficiários. A modalidade Entidades, no entanto, contava como menos de 5% do total de recursos do programa. 104 2.3 Uma primeira aproximação entre Montevidéu e Rio de Janeiro O sistema uruguaio de cooperativas de moradia foi conformado a partir da confluência de um contexto de iniciativa de três projetos piloto pelo Centro Cooperativista Uruguayo e de aprovação de uma Lei Nacional de Moradia. A partir da 1970, com a regulamentação da Lei, a finalização dos três pilotos e a conformaçãode novos grupos cooperativos, o estado passa a apoiar o sistema com três medidas essenciais: concessão de personalidade jurídica, terra e financiamento. Assessoradas pelos Institutos de Assistência Técnica, as cooperativas de moradia (muitas oriundas de suas matrizes gremiais, principalmente em Montevidéu) terão uma expansão forte até o ano de 1975, quando o estado, mesmo sob o início da ditadura (1973), apoia fortemente o sistema. As cooperativas se federam, principalmente em FUCVAM (e também em FENACOVI), mostrando que a novidade da modalidade de propriedade coletiva foi a mais incentivada e aceita dentro do sistema. Em uma década consolida-se um mecanismo de produção social do habitat assentado no tripé de formação das cooperativas – e sua representação federativa enquanto movimento social –, de assessoramento por meio de Institutos de Assistência Técnica e de apoio estatal via regulamentação do sistema, concessão de figura jurídica, aporte de solo urbanizado e financiamento estatal. A partir da segunda metade de 1970 a ditadura militar vai aos poucos cessando os mecanismos de suporte ao sistema, sendo que, no início da década seguinte, propõe medidas que tentam sufocá-lo de vez. A partir de então as cooperativas de moradia enfrentarão quase três decênios de parcos recursos para sua efetivação. Porém, nessa mesma década de 1980, FUCVAM reinventa-se politicamente e consolida-se em um poderoso movimento social na estrutura da sociedade civil, a partir da assunção do papel de luta contra a ditadura. Com a abertura democrática, o cooperativismo de moradia passa pelas vicissitudes das políticas neoliberais. Apesar da retomada da concessão de figuras jurídicas, os parcos investimentos estatais disponibilizados fazem com que o acesso aos empréstimos estatais levasse a anos de espera para a concretização de obras cooperativas. Novos experimentos surgiram nesse cenário, como a atuação com 105 grupos de baixos ingressos e a reciclagem de prédios históricos. O sistema tem o aporte de maiores investimentos a partir de 2005, com a reorganização institucional da política habitacional do primeiro governo nacional do Frente Amplo e com o aporte de recursos no segundo governo. O resultado foi a diminuição do tempo de acesso ao financiamento estatal e o aumento no volume de obras cooperativas. A metrópole do Rio de Janeiro conta com um conjunto de experiências de produção social do habitat que se iniciam na década de 1990 e que tomam como referência o lastro do cooperativismo uruguaio de moradia. A proposta finca sua raiz na iniciativa de uma cooperativa de consumo que se origina na favela de Nova Holanda, na esteira da constituição de uma nova diretoria na associação de moradores local, em meados da década de 1980. Ao final dessa década a cooperativa propõe-se a atuar no campo da produção de unidades habitacionais, sendo assessorada por um grupo de técnicos ligados à uma universidade local, que antes trabalhavam com urbanização de favelas. Após duas experiências de produção habitacional pela cooperativa, esta se dissolve e os técnicos se integram a uma organização não-governamental oriunda da iniciativa de técnicos que assessoravam a Pastoral das Favelas, a qual na década anterior atuava contra a política remocionista das favelas cariocas. Os técnicos da organização entram em contato com a experiência de autogestão habitacional de São Paulo, que se inspirava no cooperativismo de moradia do Uruguai. Realizam, então, um projeto de intercâmbio com entidades de São Paulo e do Uruguai, buscando logo em seguida organizar três grupos para a realização de projetos pilotos com inspiração no sistema uruguaio. A experiência do Rio de Janeiro, em um primeiro momento, não conseguiu angariar apoio do estado nos moldes do que fora realizado no país vizinho. A partir de recursos de cooperação internacional, concretizaram-se alguns projetos além dos três pilotos, os quais incorporaram diversos elementos do cooperativismo de moradia uruguaio. A ajuda mútua, a propriedade coletiva, a forma cooperativa, a autogestão na compra de insumos e o modelo federativo foram alguns dos elementos do sistema de referência incorporados – sob diversas especificidades – ao conjunto de experiências do Rio de Janeiro. 106 Ao adentrar a década de 2000, o acesso a recursos públicos se efetivou via esfera federal, por meio do projeto do grupo Esperança. A especificidade da configuração na forma de acesso aos recursos do fundo público instituiu uma longa espera para efetivação das obras e constituiu um modelo de gestão onde a assessoria técnica exerce, simultaneamente, o papel de assessora e de entidade organizadora do projeto – de forma distinta em relação ao sistema uruguaio. Portanto, pode-se constatar como, em variados aspectos, o projeto da produção social do habitat trilhou caminhos distintos no Rio de Janeiro e em Montevidéu. Considerando-se os princípios comuns que se adotaram como referência no Rio de Janeiro, a partir do intercâmbio com cooperativismo de moradia uruguaio, os resultados em termos de produção do ambiente construído e de constituição de mecanismos de sua autogestão, mostraram-se, em diversos sentidos, muito distintos. Para compreender tais especificidades, para além da constatação de dissimetrias e similitudes, mostra-se profícuo acompanhar alguns elementos que marcam a formação social de cada contexto onde emergiram esses conjuntos de experiências. 107 Tradução dos depoimentos da seção 2 A “até que não saiu a regulamentação não podíamos funcionar [...] e quando se aprova a regulamentação é onde as cooperativas arrancam com tudo”. B “pelo ano sessenta e oito, setenta e não encontrávamos um terreno adequado às nossas necessidades” [...] “através do instituto assessor – o Centro Cooperativista Uruguayo – nos propuseram integrar junto com outras cooperativas um terreno maior, formando o que se denomina Mesa, porque reúne várias cooperativas”. C “o fato de ter este complexo aqui deu vida a toda a zona. Por que melhorou o transporte e as condições, veio a água corrente, veio a luz elétrica, pavimento nas ruas, saneamento”. D “o lema que tinha a cooperativa é por direito dos vizinhos a viver em seu bairro. A grande quantidade dos fundadores vivia na Ciudad Vieja, então queríamos seguir vivendo na Ciudad Vieja. [...] Então, naquele momento, o que decidimos? [...] Dissemos: ‘bom, não nos dão nada, ocupamos o espaço’. [...] dois dias antes de que ocupássemos o espaço, a Intendência nos disse: não, não ocupem que lhes vamos dar um terreno. [...] E em uma semana, mais ou menos, aí nos oferecem isto”. 108 3 AS BASES DA PRODUÇÃO SOCIAL DO HABITAT NO URUGUAI Ao se observar detidamente o contexto de surgimento do cooperativismo de moradia no Uruguai, é possível constatar a aparente contradição entre a aprovação de uma lei que apoiava esse sistema em um contexto político de corte conservador e de crise econômica. O governo de época começava a empreender algumas medidas de repressão à sociedade civil, tais como a utilização de força policial na coibição de manifestações populares. Além disso, após mais de duas décadas de crescimento econômico sustentado no modelo de substituição de importações, o Uruguai via sua arquitetura de bem-estar social entrar em crise. Nessa conjuntura é que, no início da década de 1960, o setor imobiliário do país também enfrentava uma grave crise de rentabilidade. Foi no começo dessa década que o país sediou, na cidade de Punta del Este, o encontro entre o governo norte-americano e os países da América Latina e Central para a constituição da Aliança para o Progresso. Uma estratégia geopolítica começava a ser estruturada pelo governo norte-americano para ganhar influência na região, em um xadrez político mundial de início da Guerra Fria. Posteriormente,em 1964, os Estados Unidos financiam um importante diagnóstico da crise uruguaia, que originaria um complexo plano de desenvolvimento econômico, o “Plan CIDE”. Nesse processo, também se elaborou uma densa análise da problemática habitacional que envolvia o colapso do setor imobiliário no país. No ano seguinte, em 1965, o Centro Cooperativista Uruguaio levou adiante a proposta das experiências piloto em cooperativismo de moradia. Valendo-se de um conjunto de concepções e práticas que gravitam em torno do cooperativismo em diversos países do mundo, a entidade uruguaia cria uma forma inovadora de organização da produção cooperativa de soluções habitacionais. Desse modo, essas duas iniciativas – o Plan CIDE e as experiências piloto – se entrecruzam, então, na aprovação da Lei Nacional de Moradia, a qual, buscando trazer elementos para a resolução da crise imobiliária no país, institui os elementos de sustentação para a constituição de um sistema cooperativo de moradia. Esse sistema só se colocará em marcha a partir da aposta decisiva de dois elementos chave 109 naquele momento: a classe operária sindicalizada e o apoio estatal. Somente compreendendo meio século de constituição da formação dessa classe operária e das especificidades do estado de bem-estar uruguaio é que se pode ter em consideração a singularidade do contexto em que se erigiu o cooperativismo de moradia no Uruguai. 3.1 Década de 1960: geopolítica, crise e cooperativismo de moradia 3.1.1 Plan CIDE e impacto sobre o planejamento da política habitacional Ao comentar o conteúdo da Lei Nacional de Moradia, Couriel e Menéndez (2014) indicam que sua constituição se imbrica aos trabalhos desenvolvidos pelo governo nacional que compuseram o “Plan CIDE” (Comisión de Inversiones y Desarrollo Económico). Segundo a afirmação dos autores, “los contenidos de la ley solo se explican por los trabajos rigurosos previamente realizados en el marco del plan de la CIDE” (COURIEL; MENÉNDEZ, 2014, p. 35). A vinculação entre o conteúdo da Lei Nacional de Moradia e a elaboração desse plano de desenvolvimento econômico aponta para a especificidade do contexto geopolítico que envolvia a constituição do cooperativismo de moradia no Uruguai. O Plan CIDE foi confeccionado pelo governo nacional daquele país entre os anos de 1961 e 1966, com duas fases: um primeira de diagnóstico e uma segunda de elaboração de planos setoriais. O trabalho ficou à cargo de uma comissão constituída por gestores do governo e técnicos universitários. A questão habitacional foi uma das áreas de diagnóstico e alvo da elaboração de um plano setorial. O financiamento de todo o diagnóstico do Plan CIDE esteve vinculado ao apoio que o governo uruguaio recebeu dos Estados Unidos, no âmbito do programa da Aliança para o Progresso. Ao final da segunda guerra mundial, os Estados Unidos, sob a administração de Harry Truman (1945-1953), lançaram a política de apoiar a reconstrução da Europa, concretizando-se na iniciativa do Plano Marshall (oficialmente conhecido como Plano de Recuperação Europeia). Nessa política, a América Latina não foi alvo 110 do apoio americano, sob a perspectiva de que se beneficiou do período entre guerras por meio de processos de substituição de importações acarretados pela paralização das trocas comerciais com os países do norte (SCHERMA, 2007). Na década de 1950, o presidente brasileiro Juscelino Kubitschek iniciou uma série de iniciativas junto ao governo americano de Eisenhower (1953-1961), com o objetivo de angariar o apoio financeiro para o desenvolvimento da região latino- americana. Buscando o suporte na esteira do que se testemunhara com a implementação do Plano Marshall, a iniciativa de Kubitschek viria a ser conhecida como “Operação Panamericana” (SCHERMA, 2007). A abertura de Eisenhower para essa proposta, ao final de sua administração, veio a concretizar a constituição de um programa de ajuda à América Latina, lançado logo no início do governo de John Kennedy (1961-1963). Assim é que, no ano de 1961, constitui-se a Aliança para o Progresso, após a visita de embaixadores latino-americanos aos Estados Unidos, em março, e a realização de um congresso em Punta del Este, no Uruguai, em agosto, com representantes de todos os países da América Latina e Central. O programa durou cerca de uma década e disponibilizou em torno de vinte bilhões de dólares (em valores da época) para os países do continente. No Uruguai, o governo nacional, no começo de 1961, instaurou a Comisión de Inversiones y Desarrollo Económico (CIDE) no mês de janeiro e, em maio, já buscou uma articulação com o governo dos Estados Unidos para acessar os recursos do novo programa. Após a hegemonia do Partido Colorado de quase um século na presidência do país, o Partido Nacional ganhara a eleição de 1958 e buscava, de acordo com Garcé (2002), criar mecanismos de planejamento na esteira do apoio americano que se criava em torno da Aliança para o Progresso. Em maio de 1961 representantes do governo uruguaio realizaram gestões diretamente em Washington para o envio de uma missão técnica ao país. Segundo Garcé (2002, p. 50), “esta misión debería [...] colaborar en la preparación de un plan decenal, en consonancia con las ideas del nuevo presidente estadounidense quien, en marzo de ese año, había lanzado su plan Alianza para el Progreso”1. Com a 1 A agilidade do Partido Nacional é anterior à realização do encontro de Punta del Este, que só viria a ocorrer em agosto daquele ano. Como aponta Garcé (2002, p. 50), “al Partido Nacional no se le escapaba que para poder conservar el gobierno debía hacer una gestión extraordinaria. La coincidencia 111 realização do encontro de Punta del Este, em agosto, o principal apoio norte- americano ao Uruguai, no âmbito da Aliança para o Progresso, concretizou-se por meio da elaboração de um plano de desenvolvimento econômico. A formação da comissão que realizou os trabalhos do Plan CIDE angariou um amplo quadro de técnicos, especialistas e de gestores do governo. Este designou a liderança do grupo ao professor Enrique Iglesias, da Faculdade de Economia da Universidad de la Republica, que coordenou uma equipe conformada por mais de trezentos técnicos, entre uruguaios e estrangeiros. Dois aspectos devem ser considerados na conformação dessa equipe. Primeiro, a relação entre universidade e governo, que se estabelece de forma inédita após a autonomia universitária de 1958. Em segundo, a conformação de uma equipe plural, independente de visões políticas e ideológicas (GARCÉ, 2002, p. 51). Assim foi que o coordenador, professor Enrique Iglesias, “convocó técnicos rigurosos en diversas materias para la concreción de los ‘planes de desarrollo’, sin considerar las ideologías políticas partidarias de los portadores del conocimiento experto” (COURIEL; MENÉNDEZ, 2014, p. 35). O primeiro período dos trabalhos da CIDE ocorreu entre 1962 e 1963, com a elaboração de um amplo diagnóstico do país. Formaram-se em torno de vinte grupos de trabalho. A atividade que mais tomou a dedicação dos técnicos foi a preparação da estimativa do Produto Interno Bruto (PIB) do país e a confecção das primeiras contas nacionais, assim como a realização de um censo de população e moradia2. Após um primeiro momento de finalização dos trabalhos técnicos em 1962, logo em seguida foi feita uma ampla divulgação dos resultados e a promoção de debates com diversos atores institucionais. Como coloca Garcé (2002, p. 59), “durante el segundo semestre del año 1963 se realizaron numerosos ciclos en los canales de televisión, en las radios, reuniones con empresarios y dirigentes sindicales”. A segunda fase de trabalhos da CIDE foi empreendida durante o ano de 1964 e em parte de 1965. Consistiu na elaboração propriamente do Plan CIDE, sendo propostos um plano trienal(1964-1966) e um plano decenal (1964-1973). Produziu-se um documento de seis volumosos tomos que pesava onze quilos. Desse modo é que temporal del giro panamericanista en Washington y de la rotación de partidos en el poder en Uruguay, constituía una oportunidad excepcional y, por qué no decirlo, un insólito golpe de suerte”. 2 Naquele período o Uruguai não contava com uma estimativa de suas contas nacionais e o último Censo realizado datava de 1908. 112 se produziu o Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (1965-1974), cujo caráter do conteúdo vale uma longa citação do trabalho de Garcé (2002): El Plan Nacional de Desarrollo Económico y Social (1965-1974) proponía una ambiciosa propuesta de cambios estructurales a tono con las ideas primordiales de la Alianza para el Progreso: reforma agraria (tendiendo a erradicar latifundios y minifundios, para permitir un aumento en la productividad), reforma tributaria (fortaleciendo el impuesto a la renta), reforma administrativa (incrementando la capacidad técnica del Estado), reforma financiera (creando el Banco Central y regulando cuidadosamente el crédito), reforma industrial (pasando de la promoción “indiscriminada” a la promoción “selectiva”), reforma comercial (apuntando a “crecer hacia afuera”), reforma educativa (extendiendo y calificando la enseñanza, planificando y coordinando la política educativa), etcétera (GARCÉ, 2002, p. 77). A proposta para a área de moradia ficou à cargo do arquiteto Juan Pablo Terra3. Redator do diagnóstico e do plano setorial, o arquiteto uruguaio era uma figura de destaque na área, ligado ao Partido Demócrata Cristiano. O plano desenvolvido para a questão habitacional tinha dois princípios básicos, segundo Terra (1969), sendo que “el primero era que toda familia, cualesquiera sean sus recursos económicos, debe poder 'acceder realmente a una vivienda adecuada’”, e o segundo determinava “que el esfuerzo en el campo de la vivienda debe estar proporcionado a la capacidad económica total y que para eso la política de vivienda debe ser planteada y administrada como una pieza inseparable del desarrollo económico en general" (TERRA, 1969, p. 37)4. Assim, buscava-se aliar a universalização de soluções habitacionais, a serem garantidas por meio de políticas públicas, às especificidades das condições econômicas da população. Em 1966, após o trabalho na CIDE, Juan Pablo Terra foi eleito deputado para o parlamento uruguaio, encarregando-se da redação do projeto que viria a ser aprovado como a Lei Nacional de Moradia. Em 1967, a Câmara de Deputados instalou uma comissão especial, com todos os setores políticos de sua composição, para redação da proposta de lei. Os deputados a aprovaram nos primeiros dias de 1968 e o projeto então passou para tramitação no Senado, sendo aprovado ao final do ano. 3 Antes de atuar no Plan CIDE, Juan Pablo Terra era professor de Sociologia e Metodologia de Pesquisa na Faculdade de Arquitetura da Universidad de la Republica. 4 Um resumo do diagnóstico da área de moradia do Plan CIDE e das propostas que se converteram na Lei Nacional de Moradia encontra-se nessa publicação de 1969 do próprio Juan Pablo Terra (TERRA, 1969) 113 Portanto, a participação de Juan Pablo Terra, por quatro anos, no Plan CIDE, mostra como o desenvolvimento desse trabalho teve importante influência para a constituição das propostas da Lei Nacional de Moradia. Como ele próprio coloca, em uma publicação de época, sobre a importância do referido plano, sua “difusión amplia contribuyó a crear conciencia global del problema y de sus soluciones” (TERRA, 1969, p. 38). O diagnóstico e as propostas do plano permitiram compreender com mais acuidade o caráter da crise imobiliária que tomava o setor, e “la controversia, que al principio del decenio era caótica y fragmentaria, fue convirtiéndose en un debate mucho más concreto y fecundo, que preludiaba la adopción de decisiones” (TERRA, 1969, p. 38). Assim é que Garcé (2002) anota que não só o próprio Juan Pablo Terra, quanto o próprio governo nacional – de composição distinta naquele momento, formado pelos colorados eleitos em 1966 – propuseram um projeto de lei nacional de moradia com conteúdo similar ao da CIDE. Como recorda o autor, “ambos proyectos eran prácticamente idénticos: los dos recogían los aspectos medulares del Plan de Vivienda de la CIDE” (GARCÉ, 2002, p. 127). Nesse aspecto é que se pode compreender como a proposta de uma Lei Nacional de Moradia pode ser aprovada por um governo de corte conservador, que se constituiu com o colorado Pacheco Areco, que assumiu em 19675. O país vivia uma crise imobiliária e a elaboração de uma Lei Nacional de Moradia se configurava em um trunfo para o governo. A crise, que emergira em decorrência de um estancamento do modelo de industrialização por substituição de importações que marcou o Uruguai entre as décadas de 1930 e 1950, exigia medidas urgentes que deveriam se reverter em sustentação política ao governo. Como mostra París (2014) sobre a economia uruguaia, uma primeira etapa de abertura externa do país (1870 a 1930) se fez a partir de uma abundante presença de recursos naturais e uma demanda externa de produtos agropecuários com preços favoráveis ao país. Uma segunda etapa de maior protagonismo do mercado interno, 5 Nahum (2014, p. 267) assim elenca a primeiras medidas repressivas adotadas pelo governo: "a la semana de asumir la Presidencia, un decreto de 12 de diciembre de 1967 adelantó la modalidad de lo que sería su mandato: dispuso la disolución del Partido Socialista, Federación Anarquista Uruguaya, Movimiento Revolucionario Oriental, Movimiento de Acción Popular Uruguaya, Movimiento de Izquierda Revolucionaria y los periódicos 'Época' y 'el Sol', acusándolos de estar vinculados con las acciones armadas que la guerrilla urbana estaba desplegando desde fines de 1966 en el país". 114 a partir de 1930, constituiu-se com o fechamento da economia internacional em guerra, proporcionando uma política de industrialização por substituição de importações. Esse modelo, porém, esgotou-se ao final de três décadas de encerramento da economia uruguaia ao exterior, levando a um estancamento do crescimento do país de quase dez anos (1958 a 1968). Assim, “la falta de crecimiento estuvo acompañada de una elevada y persistente tasa de inflación, lo que favoreció un escenario de fuerte convulsión social y política que terminó con la democracia en 1973” (PARÍS, 2014, p. 14). Sobre a gravidade dessa crise, Frens-String (2001, p. 28) destaca que “Uruguay and Haiti –two nations that rarely appear next to one another in the economic statistics of the region– were the only two countries whose per capita income declined during the 1960s”. Nesse mesmo sentido, segundo Nahum (2014, p. 258), “la industria también mostraba signos de estancamiento. En 1963 sólo funcionaba a la mitad de su capacidad instalada, con la consiguiente disminución del empleo y del consumo interno que debía abastecer”. A inflação adentrou níveis galopantes na década de 1960, corroendo o poder de compra da sociedade uruguaia, conforme se verifica nos patamares do salário real de acordo com os dados do gráfico a seguir (figura 12). Como apontam Bértola e Bertoni (2014, p. 66), a crise da década de 1950 foi diferente no Uruguai por conta de sua prolongada duração, dado que “en lugar de una profunda caída tuvimos un prolongado estancamiento, durante el cual se fueron acumulando importantes conflictos económicos, sociales y políticos, que se expresaron con creciente violencia”. O setor imobiliário foi, então, arrastado por essa crise econômica. Segundo dados de Terra (1969, p. 5), antes de 1910 o Uruguai construía quase quatro mil moradias por ano, cifra que foise incrementando até chegar a vinte e seis mil anuais entre 1955 e 1960. A crise da imobiliária fez baixar esse número para a média anual de vinte e uma mil moradias entre 1960 e 1963, oscilando entre um patamar de quinze a vinte mil até o final da década6. No ano de 1959 o país havia destinado à construção habitacional cerca de 7,6% do Produto Interno Bruto; em 1963, esse volume caiu a 6 Como destaca o próprio autor, esse vertiginoso crescimento da produção imobiliária se fez majoritariamente pela presença da construção privada, com diminuta participação da produção pública. Nos melhores anos, uma em cada vinte e cinco moradias era construída por organismos públicos, sendo o restante pela iniciativa privada (TERRA, 1969, p. 8). 115 4% do PIB. Assim, como apontam Couriel e Menéndez (2014, p. 34) “entre 1957 y 1967, inflación mediante, la curva es descendente tanto en los préstamos escriturados como en los títulos emitidos que financiaban los préstamos”. Figura 12 – Taxa de inflação e salário real (Uruguai, 1957 – 1973) Fonte: Nahum (2014). Se, entre os anos 1940 e 1950, o Uruguai crescera fortemente, adentrou a década seguinte em uma crise econômica para a qual a CIDE elaborou um amplo diagnóstico do país e apresentou um plano de ação para superação da crise, incluindo o setor imobiliário. Desse modo é que a aprovação da Lei Nacional de Moradia configurou-se como um mecanismo que se tornava conveniente ao enfrentamento da crise imobiliária. Após o trabalho de quatro anos no Plan CIDE (1961 a 1965) e as eleições de 1966, o novo parlamento – contando com a figura central de Juan Pablo Terra como deputado, que trabalhara na CIDE – e o novo governo que assumem em 1967 tomam a iniciativa de propor um projeto de lei que concretize as medidas contidas no plano. Além da proposta que já havia sido consolidada na CIDE, o estímulo ao setor imobiliário era uma proposta que angariava o apoio de diversos interesses da sociedade uruguaia de então. Como comentam Couriel e Menéndez (2014), por um lado a medida gerava crescimento econômico e atendia aos interesses do setor da 100 97 90 90 85 90 88 85 81 81 86 73 82 81 85 71 69 1957 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% 110% 120% 130% 140% 150% Salário real Inflação 116 construção, já que, segundo os autores, “el gobierno debía ofrecer a los poderosos empresarios de la construcción alguna viabilidad económica, en sus dos vertientes: a las empresas constructoras de edificios y a las empresas productoras de materiales de construcción” (COURIEL; MENÉNDEZ, 2014, p. 34). Por outro lado, a medida gerava crescimento do emprego e atendia aos interesses das camadas populares, dado que “estas ramas de la industria generan empleo con facilidad reactivando la economía, lo que es saludable para la sociedad y rentable desde el punto de vista electoral” (COURIEL; MENÉNDEZ, 2014, p. 34). Desde tal perspectiva é que se pode compreender como um governo, de caráter conservador, pode aprovar uma lei de caráter tão progressista como a Lei Nacional de Moradia. Constata-se, portanto, como a referida lei se conformou a partir do legado do Plan CIDE e se compreende como se valeu de um amplo processo de planejamento de vários setores do país, com um aprofundado diagnóstico habitacional, fruto da conformação de uma equipe especializada e multidisciplinar. É possível afirmar que o plano constituiu um campo interpretativo sobre a questão habitacional no Uruguai, dando compreensão à essa problemática e conformando os instrumentos de planejamento que foram adotados na Lei Nacional. A elaboração da lei ancorou-se em um processo que se iniciou no começo dos anos 1960, oriunda a partir de um contexto geopolítico internacional de conformação da Aliança para o Progresso e da correlata estratégia de influência americana na região. A partir do apoio viabilizado pelos Estados Unidos – mudando sua orientação geopolítica sobre a América Latina –, o governo uruguaio organizou a proposta de elaboração de um amplo instrumento de planejamento para o país. Assim é possível entender como um governo com orientação repressiva sobre a sociedade civil pode aprovar tal Lei Nacional de Moradia, considerando-se o contexto de crise que em uma de suas vertentes tomava o ramo imobiliário e as consequências políticas que se angariavam com as propostas contidas na Lei – estímulo à indústria da construção, ganhos políticos junto a um poderoso grupo de pressão, geração de emprego e provimento de solução habitacional para a população de baixa renda7. 7 Nesse ponto deve-se atentar sobre esse campo de possibilidades que foi se constituindo em torno da Lei Nacional de Moradia. Esta configurou um conjunto de iniciativas que se acumularam e que se tornaram quase a única possibilidade para atuação do governo. Como lembram Couriel e Menéndez 117 3.1.2 Acúmulo formativo e origem dos projetos piloto O Centro Cooperativista Uruguayo, fundado em 1961 enquanto uma organização social de raízes cristãs (FRENS-STRING, 2001), surgiu em um contexto em que Igreja Católica, a partir do II Concílio do Vaticano, emanava um determinado tipo de orientação política sobre o cooperativismo. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a bipolarização provocada pela Guerra Fria e com a Revolução Cubana no continente americano, algumas orientações da cúpula da Igreja se alteraram a partir de uma certa preocupação em se contrapor ao avanço do comunismo entre as camadas populares. Assim é que o incentivo aos empreendimentos cooperativos era compreendido enquanto uma forma da igreja assegurar sua presença e doutrina entre os mais pobres, principalmente na população rural. O trabalho de Amaro (2012) – ao reconstituir o contexto de surgimento de projetos cooperativistas no departamento de Lara, na Venezuela – aponta que tal concepção da Igreja Católica, na década de 1960, teve certa ressonância pela América Latina. Segundo o autor, a hierarquia eclesiástica latino-americana assumiu as orientações do Episcopado da Igreja Católica, a qual desde o papado de Pío XII (1939 – 1958) se pronunciou a favor do cooperativismo. Nas décadas de 1950 e 1960 o Papa João XXIII, o Concilio Vaticano II e a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, realizada em Medelín em 1968, também se colocaram abertamente favoráveis ao apoio ao cooperativismo. Segundo o autor, “se establece la coincidencia de los valores y la acción cooperativa con los postulados de la doctrina social de la Iglesia, al promover y crear condiciones para la solidaridad y la unión entre los seres humanos” (AMARO, 2012, p. 16). Essa orientação, como frisado anteriormente, estava imbuída de uma intenção de barrar as influências do comunismo no continente. Como o mesmo continua, “en distintos países latino-americanos la Iglesia Católica actuó en vinculación con las iniciativas promotoras de cooperativismo de los gobiernos (2014, p. 35), “en esta coyuntura no existía otra propuesta que compitiera con la ley: por tanto la mayoría del sistema político la votó”. 118 ó de los organismos internacionales, sobre todo a partir de los años 60 del siglo pasado” (AMARO, 2012, p. 16 e 17)8. O início das atividades do CCU esteve ligado à atuação no campo das questões rurais e do cooperativismo (FRENS-STRING, 2001). Assim é possível constatar como o surgimento do CCU acompanha esse contexto de orientação da Igreja Católica. O documento final da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, realizada em Medelín em 1968, assim mais explicitamente se pronunciava acerca da promoção do cooperativismo rural. No item III sobre as projeções de atuação da Pastoral Social, há uma preocupaçãodestacada com a “transformação do campo” no continente, para a qual o cooperativismo parece ter uma função importante. Segundo o documento havia a necessidade urgente de “promoção humana” das populações campesinas e indígenas na América Latina, o que demandaria não só políticas de distribuição de terras, como também a organização dessas populações “bajo determinadas condiciones que legitimen su ocupación y aseguren su rendimiento, tanto en beneficio de las familias campesinas cuanto de la economía del país” (CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO, 1980, p. 80). O cooperativismo então é acionado como uma das formas que permitiria a organização de populações rurais e indígenas para uma necessária política de distribuição de terras. Textualmente, o documento coloca que “esto exigirá, además de aspectos jurídicos y técnicos, [...] la organización de los campesinos en estructuras intermedias eficaces, principalmente en formas cooperativas” (CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO, 1980, p. 80). Pode-se, desse modo, compreender a vinculação das primeiras iniciativas do Centro Cooperativista Uruguayo, de raiz católica, no âmbito do cooperativismo rural, às orientações da Igreja Católica no período. Após quatro anos de constituição da organização, esta passa a atuar no âmbito urbano, com as cooperativas de moradia. 8 A referência à revolução cubana e à ameaça do comunismo era uma tônica do período. Assim também se pode compreender a atuação do Plan CIDE, dando origem à Lei Nacional de Moradia, como visto na seção anterior. Como coloca o próprio coordenador, Enrique Iglesias, “hace cincuenta años, respondiendo a los impulsos políticos del presidente Kennedy de los Estados Unidos, se inició en la mayoría de los países de América Latina un esfuerzo de programación a mediano plazo para promover el estancado desarrollo económico y social de la región, en respuesta a las expectativas creadas por la revolución cubana” (IGLESIAS, 2014, p. 5). Mas deve-se ter em conta as mediações e sutilezas que constituíam essa relação no período. Vale destacar que Cuba participou da Conferência de Punta del Leste para criação da Aliança para o Progresso, com a presença de Che Guevara (porém não assinou o documento final). Contradições internas também perpassavam a própria Igreja Católica, como o surgimento da Teologia da Libertação após o Concílio de Medellín. 119 As propostas de atuação da entidade, neste específico, vão se valer dessa experiência prévia com as questões rurais. Como coloca o depoimento de um sócio de uma cooperativa de moradia, “hubo personas, intelectuales [...], que plantearon a partir de experiencias de reforma agraria, de gente que tenía su tierra y después la vendía a terratenientes por las razones que fueran, qué lo que más convenía era la propiedad colectiva” (Sócio B, COVICORDÓN, AM2)A. Como exemplo, pode-se localizar, na proposta de propriedade coletiva das cooperativas de moradia levadas à cabo pelo CCU, uma certa referência às experiências anteriores constituídas no campo do cooperativismo rural. *** Se é possível localizar a atuação do Centro Cooperativista Uruguayo nas especificidades do campo das doutrinas da Igreja Católica em relação ao cooperativismo, não se deve circunscrevê-la a tanto. Ao se analisar mais detidamente a formação da atuação técnica da entidade, constata-se um amplo processo de formação prévia. Na questão urbana, a consolidação das propostas de ação da organização se deram a partir de uma peculiar formação do grupo de técnicos. Nesse particular, um intenso processo de troca de experiências com outros países conformou a trajetória dos pioneiros que atuaram na instituição. Como aponta Frens-String (2001, p. 25), alguns membros da entidade, em 1965, “embarked on trips to Scandinavia, as well as to a handful of experiments in other Latin American countries like Colombia, Chile, and Venezuela, studying in each how cooperative housing models might be adapted to the Uruguay’s own realities”. No agitado meio da sociedade civil uruguaia da década de 1960 – cujos conflitos de classes se acirravam por conta da crise econômica que atravessava o país –, o Congresso do Povo, em 1965, promovia, no seio da classe trabalhadora, um intenso debate sobre a conjuntura nacional, em meio a um processo que levou à sua unificação sindical (PORRINI, 2014). Assim, enquanto alguns membros do CCU participavam do Congresso, outros empreenderam visitas a diversas experiências 120 cooperativas fora do país. Visitaram-se várias experiências na América Latina, Europa e até em Israel, conhecendo-se os Kibutz (FRENS-STRING, 2001). Tais visitas se desdobraram em cursos sobre cooperativismo, desenvolvidos pelo CCU no Uruguai, os quais contaram com participantes de diversos países da América Latina. Como aponta González (2013, p. 48) "es en el año 1964 que el CCU realiza cursos de desarrollo del cooperativismo en general. A los mismos asisten más de 200 participantes de distintos países”. O intenso intercâmbio de experiências, vivências e formação parecem ter impactado os técnicos da organização, influenciando as propostas posteriores das cooperativas de moradia. González (2013) aponta para a importância desse processo de intercâmbio e destaca um personagem influente em todo esse processo: o contador Juan José Sarachu, um dos fundadores do CCU. González destaca que a visita de campo a uma comunidade boliviana impressionara o fundador da organização, marcando sua visão de mundo sobre o cooperativismo. Conforme depoimento pessoal à González, Sarachu “quedó fuertemente impresionado con una experiencia en Bolivia, concretamente con una cooperativa de pescadores del lago Titicaca, donde observa por primera vez el llamado AYNI” (GONZÁLEZ, 2013, p. 48). O funcionamento do AYNI, uma espécie de moeda local dos pescadores do Lago Tititaca, marcou Sarachu pois neste sistema há um compromisso comunitário de trabalho recíproco, “donde varios miembros de la comunidad siembran las tierras de un compañero y este debe pagar su AYNI sembrando las tierras de las personas que trabajaron junto a él sembrando las suyas” (GONZÁLEZ, 2013, p. 48). Assim, pode-se vislumbrar como as propostas da ajuda mútua e da propriedade coletiva (o caráter de usuário das cooperativas de moradia) vão se consubstanciando a partir de um intenso processo de pesquisa e formação empreendidos pelo CCU, cujo exemplo de contato com a experiência do AYNI salienta a intensa proximidade com essas propostas. Exemplar, nesse sentido, é que a visita à Venezuela também se mostrou crucial para algumas propostas futuras do grupo, na qual se “encuentra también otra interesante experiencia de ayuda mutua y con carácter también de usuarios en la localidad de Maracay (Venezuela)" (GONZÁLEZ, 2013, p. 49). Como bem sublinha Frens-String (2001, p. 25), "Sarachu, a co-founder of the CCU, places particular emphasis on how the Venezuelan model, studied during a 1964 CCU visit to 121 that country, framed some of the initial pilot projects in Salto, Fray Bentos, and Isla Mala". Ao se seguir a trajetória biográfica de Juan José Sarachu, esta ilumina a compreensão sobre o contexto de formação do conteúdo da proposta do cooperativismo de moradia. Sarachu havia realizado uma pós-graduação na Europa, entre maio e agosto de 1961, sobre desenvolvimento cooperativo e comunitário, na Universidade Católica de Lovaina (Bélgica). Como o próprio declara em entrevista recente, durante essa pós-graduação ocorreram algumas visitas a cinco países europeus (Bélgica, Holanda, Alemanha, França e Itália). Dessa maneira, “en la Universidad de LEUVEN [...] tuvimos la suerte de compartir con líderes latinos [...] y líderes africanos diversos, al mismo tiempo que con algunos estudiantes jesuitas [...] con quienes compartimos luego algunos trabajos del CCU” (SARACHU,2011, p. 4). É possível verificar que o período pela Europa e o compartilhamento de experiências comunitárias, de cunho católico, foram marcantes para o fundador do CCU. A partir da constituição do CCU, o intercâmbio internacional proporcionado pelos cursos de formação cooperativa no Uruguai também foi relevante para Sarachu, como o próprio relembra ao dizer que uma das atividades principais fueran los Cursos Internacionales de Cooperativismo (CICs) que realizamos en Floresta y Atlantida [cidades próximas a Montevidéu] – en corta temporada – y con una duración de unas 700 horas totales aproximadamente, entre cursos y visitas programadas a experiencias diversas y algunas turísticas aplicadas (SARACHU, 2011, p. 4). Nestes cursos houve a presença de cerca de duzentos e cinquenta participantes de várias nacionalidades, dentre as quais argentinos, belgas, brasileiros, chilenos, peruanos e uruguaios. Esses cursos de formação contaram com o suporte de recursos financeiros da cooperação internacional, como Sarachu comenta salientando que foi “un verdadero esfuerzo de formación de formadores, con la cooperación internacional alemana, durante 1962 y 1965” (SARACHU, 2011, p. 4). Portanto, o circuito de formação das propostas de cooperativismo de moradia, pelo CCU, conformara-se no contexto geopolítico da década de 1960, mas não se circunscrevia a ele. Um denso processo formativo se valeu de um percurso por diversas experiências internacionais e de formação no tema do cooperativismo, as 122 quais acabaram por alargar a base de conformação das práticas e concepções da entidade. Figura 13 – Sede do Centro Cooperativista Uruguayo (Montevidéu, 2015) Fonte: acervo do autor. *** As experiências de acúmulo de planejamento prévio do Plan CIDE e de formação do CCU se juntam, então, na elaboração da Lei Nacional de Moradia no ano de 1967. Como aponta próprio documento do CCU, a entidade se envolveu diretamente nas atividades de elaboração do projeto lei. Segundo documento de época, “a partir de 1967 [CCU] participó activamente en todas las iniciativas tendientes a estructurar una ley de vivienda que contempla con justicia las exigencias de las 123 cooperativas” (CENTRO COOPERATIVISTA URUGUAYO, 1970, p. 138). E se envolveu não só na elaboração do projeto que era discutido no legislativo (sob a coordenação do então deputado Juan Pablo Terra), como naquele que era proposto pelo poder executivo. A organização, assim, “colaboró con la Oficina de Planeamiento y Presupuesto en la formación de las primeras bases de redacción y asesoró activamente a la Comisión Especial de la Cámara de Diputados que redactó el proyecto de ley que luego se aprobó con ligeras modificaciones” (CENTRO COOPERATIVISTA URUGUAYO, 1970, p. 138). Desse modo é que se torna compreensível como o capítulo sobre cooperativismo foi se inserindo dentro da Lei Nacional de Moradia, valendo-se do acúmulo de planejamento na temática habitacional que se constituiu no Plan CIDE e da formação prévia do CCU, que se consolidava na promoção das três experiências piloto. E em perspectiva, conformava-se o contexto geopolítico onde se constituiu o cooperativismo de moradia no Uruguai da década de 1960. O cooperativismo em geral – mas principalmente em sua vertente agrária – consolidava-se, nos diversos planos de acordos de cooperação internacional, como uma forma de organização a ser estimulada, tanto pela Aliança para o Progresso quanto pelas orientações da Igreja Católica. No Uruguai, a proposta da Aliança apoiou um amplo processo de planejamento econômico que consolidou as bases para a aprovação da Lei Nacional de Moradia, em um contexto de crise imobiliária. As raízes católicas do CCU, originando-se em torno ao cooperativismo e seu amplo processo de formação e referência a outros contextos, constituem um viés formativo que se concretizaria na proposição das três experiências piloto. Além disso, como visto anteriormente, o acesso a fontes de cooperação internacional já era uma forma de trabalho do CCU, muito antes da formatação da parceria com o governo nacional que permitiu o aporte de recursos do BID nas experiências piloto9. Nesses projetos, o aporte desses recursos valeu-se de um 9 A constituição do Banco Interamericano de Desenvolvimento de certa forma se insere em continuidade a recorte geopolítico traçado aqui. Trata-se de uma iniciativa que buscava a criação de um “banco multilateral americano” alternativo ao Banco Mundial, “já que este havia negligenciado a região quando do fim da Segunda Guerra, concentrando esforços em outras áreas” (SCHERMA, 2007, p. 50). A iniciativa toma forma a partir de 1954, a partir da realização da Conferência Econômica Interamericana, com ministros da área econômica dos governos nacionais da América Latina, e a criação de um anteprojeto em 1955. O BID foi instituído em 1959, sendo a primeira experiência de banco de desenvolvimento regional no mundo. Adotava a ideia de que os próprios mutuários detêm o poder votante, de modo a “garantir que os interesses dos latino-americanos nesta instituição fossem 124 arranjo institucional que permitiu o acesso a um empréstimo que não estava em utilização pelo governo nacional. Deve-se ressaltar que, de certa forma, a possibilidade de utilização do empréstimo do BID se deu pelo próprio contexto de crise econômica. Como aponta Terra (1969, p. 10), o empréstimo do BID equivalia a 8 milhões de dólares e necessitava de uma contrapartida de igual montante do governo uruguaio, o que permitiria a construção de quatro mil moradias. Porém, não se conseguiu honrar essa contrapartida, dado que os recursos dos fundos nacionais eram “devorados por la inflación y por los déficit presupuestarios, el programa fue postergado una y otra vez y hubo que enviar sucesivas misiones a realizar gestiones para renovar o prolongar plazos” (TERRA, 1969, p. 11). Desse modo é que o acordo entre o governo nacional e o CCU possibilitou acessar uma pequena parte desse empréstimo para a construção das noventa e cinco unidades dos projetos piloto. Por fim, o aporte de recursos de cooperação internacional, no contexto embrionário do cooperativismo de moradia no Uruguai, permite lançar luz sobre a compreensão do contexto geopolítico que envolvia o campo do cooperativismo nos anos 1960. Como coloca Coque (2002, p. 152) especificamente sobre o surgimento das experiências de cooperativismo agrário no continente, tratava-se de um momento em que “con el Programa de la Alianza para el Progreso varias reformas agrarias en América Latina mediante las que casi todos los gobiernos adjudicaron tierras colectivas o individuales, lo que generó diferentes formas cooperativas en el ámbito rural”. Um estudo da CEPAL datado dos anos 1980 sobre o cooperativismo na América Latina também salienta esse aspecto. No caso do surgimento do cooperativismo no Equador – que, segundo o estudo, aponta uma tendência para todo o continente –, a década de 1960 viu o alinhamento do governo militar do país com os Estados Unidos e a explosão de várias experiências de cooperativismo, principalmente agrário. De acordo com a análise do estudo, o cooperativismo era considerado um “instrumento particularmente idôneo” para levar à cabo as propostas da Aliança para o Progresso. Pois a forma cooperativa, “como organización ouvidos, já que, à época, estes países se consideravam marginalizados nas instituições de Bretton Woods” (SCHERMA, 2007, p. 50). 125 eminentemente de base, satisfacía la necesidad de asegurar que los fondos de la asistencia técnica efectivamente llegaran al pueblo” (MILLS, 1989, p. 204). Além disso, enquadrava-se nas estratégias geopolíticas dos Estados Unidos, dado que “la cooperativa constituía una respuesta cabal al colectivismo socialista que pudierantratar de instaurar los movimientos comunistas de inspiración cubana [...] estarían menos expuestas a ser conquistadas por el comunismo” (MILLS, 1989, p. 204). Assim é que o cooperativismo transitava em um contexto em que este que se constituía em uma aposta da cooperação internacional mediada pelos Estados Unidos. 3.1.3 Contraponto: cooperativismo habitacional no Brasil Pode-se afirmar que o cooperativismo era uma forma de organização social muito fomentada nos anos 1960 no Uruguai, sendo que processo se inseria em um contexto de diversos interesses geopolíticos sobre a América Latina. Porém, deve-se relevar, nessa consideração, que o sistema cooperativo de moradia no Uruguai não surgiu como uma reprodução direta desse contexto. Em realidade, a partir de tal configuração geopolítica se fez sob uma forma muito específica. A própria trajetória de formação dos técnicos do CCU, valendo-se de várias experiências de cooperativismo pelo mundo, e a formatação de uma iniciativa no campo da moradia, foram constituídas a partir de uma referência multifacetada em relação a diversos modelos em voga à época. Como o próprio decreto 644/69 que regulamenta a Lei Nacional de Moradia coloca em seu preâmbulo, al dictarse el Plan Nacional de Vivienda (Ley No. 13.728) el derecho positivo nacional recoge un conjunto orgánico de normas, que si bien reconoce su origen en las legislaciones de los países escandinavos y de Chile ha recibido los correctivos imprescindibles para asegurar su aplicación en la realidad nacional (URUGUAI, 1969, p. 723). Somente para finalizar essa consideração preambular, em outro estudo do período ressalta-se como a organização da assessoria técnica se inspirou no modelo que era praticado nos Estados Unidos, pois “la Ley Nº 13.728 creó los Institutos de Asistencia Técnica, presumiblemente inspirada en los Organismos de Servicios Técnicos norteamericanos” (NICOLICH; PORRO, 1975, p. 154). Desse modo é possível 126 vislumbrar como o cooperativismo uruguaio instituiu uma forma inovadora e original de organização do ramo da produção habitacional. Vale salientar, ainda, a especificidade desse sistema ao ter em consideração que o contexto de promoção do cooperativismo, na América Latina, também fora empreendido no Brasil em sua vertente habitacional. Quando há o golpe militar no Brasil, em 1964, e se cria o Banco Nacional de Habitação, institui-se o apoio às cooperativas habitacionais enquanto modalidade da política pública federal. Em depoimento datado do ano de 2002, a primeira presidente do Banco Nacional de Habitação (BNH) entre setembro de 1964 e dezembro de 1965, Sandra Cavalcanti10 afirma ter criado um sistema de cooperativas em que “cada interessado ingressava num grupo, escolhia o terreno, escolhia o engenheiro, acompanhava a obra e fiscalizava tudo” (FREIRE; LIPPI, 2002, p. 93). O Rio de Janeiro é citado como caso exemplar, com a experiência da “Cooperativa nº 1” (figura 14), a qual, segundo Sandra Cavalcanti, “construiu 10.200 apartamentos em 60 condomínios, em nove meses” (FREIRE; LIPPI, 2002, p. 94). Porém, a conjuntura política no desenrolar do ano de 1965 não foi favorável à Sandra Cavalcanti e seus projetos na presidência do BNH. Com a promulgação do Ato Institucional número 2 e o adiamento das eleições presidenciais, em dezembro pediu demissão do cargo. A partir de então, com a mudança de comando no BNH foram criados os Institutos de Orientação às Cooperativas Habitacionais, conhecidos como INOCOOPs11. Antes da criação desses institutos, como aponta Castro Filho, “no início do Plano Nacional de Habitação, as cooperativas habitacionais recebiam os recursos diretamente do BNH, sendo elas próprias responsáveis pela captação de associados, 10 Sandra Martins Cavalcanti de Albuquerque, educadora e política, foi vereadora pelo Distrito Federal, deputada estadual pela Guanabara e secretária de Serviços Sociais do governo de Carlos Lacerda. Assumiu a presidência do Banco Nacional de Habitação (BNH) de 1964 a 1965 no governo Castelo Branco. 11 Segundo Sandra Cavalcanti, sobre esse processo, “o novo diretor da Carteira de Cooperativas, o empresário João Fortes, resolveu mexer no sistema, criando o mal afamado INOCOOP (Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais). [...] A função dele era, supostamente, a de orientar as Cooperativas Habitacionais, mas, na realidade, ele passou a ter o direito de fazer aquilo que era responsabilidade das próprias cooperativas. Com o correr do tempo, montaram-se dezenas de esquemas lá dentro. Escolhas de terrenos, de construtoras, de engenheiros, de arquitetos, de fornecedores, de materiais de construção. Só que eles não sugeriam, impunham. [...] Parece que muita gente saiu de lá milionária” (FREIRE; LIPPI, 2002, p. 96). 127 elaboração do projeto construtivo e orçamento das obras” (CASTRO FILHO, 2011, p. 1). O Decreto 58.377/66, no entanto, restringiu o acesso ao crédito do BNH somente às cooperativas operárias12, as quais dependiam de autorização do estado para funcionar. Com a criação dos INOCOOPs, pelo mesmo decreto, estes se configuraram em uma espécie de intermediadores entre as cooperativas e o estado. Como resultado, segundo Castro Filho (2011, p. 1), “os INOCOOPs foram minguando, progressivamente, o poder das cooperativas sobre a própria decisão dos projetos a serem desenvolvidos, o custo envolvido nas obras e a taxa de administração a elas devida”. Assim, segundo o autor, o BNH passou a ofertar financiamento às cooperativas em obras de larga escala e de péssima qualidade, “numa matemática que favorecia unicamente o alcance do maior número possível de unidades por projetos” (CASTRO FILHO, 2011, p. 1). Figura 14 – Anúncio da Cooperativa Habitacional nº 1 da Guanabara (Rio de Janeiro, 1965) Fonte: Jornal Correio da Manhã, 7 de fevereiro de 1965. 12 Definidas como organizações mutualistas, do tipo fechado, sem fins de lucro, com número pré-fixado de associados, constituídas apenas de trabalhadores sindicalizados ou filiados às associações de classe (CASTRO FILHO, 2011). 128 Em 1971 foi promulgada a Lei 5.764, que regula o sistema cooperativo no Brasil, vigente até a atualidade13. Sem detalhar as especificidades do ramo habitacional, as cooperativas eram subordinadas à regulação do Banco Nacional de Habitação. Deve-se destacar que estas necessitavam de autorização de funcionamento, pois, “como órgano cumbre de las cooperativas de vivienda, la ley cooperativa subordina al Banco la autorización de funcionamiento de estas cooperativas” (SCHNEIDER; LAUSCHNER, 1989, p. 132)14. Além disso, instituía-se a representação por meio de órgão definido em lei, a Organização de Cooperativas Brasileiras (OCB). Foi então que se instituiu um determinado campo organizacional e institucional do cooperativismo habitacional no Brasil, nesse mesmo período de formatação do cooperativismo de moradia no Uruguai e de fomento ao cooperativismo a partir das forças políticas na geopolítica latino-americana. Como forma de salientar a especificidade da constituição do sistema uruguaio, deve-se ter em consideração que uma das características principais das cooperativas habitacionais brasileiras era seu caráter de prestadoras de serviços aos seus sócios, sob a modalidade da propriedade individual. Como comentam Azevedo e Andrade (2011, p. 47), “essas associações não possuem fins lucrativos e formam uma espécie de condomínio, dissolvendo-se normalmente após a concretização das obras”. Baseadas, assim, na propriedade individual, com a crise do BNH, no início da década de 1980, observa-se também o decréscimo no número de cooperativas habitacionais constituídas, como se verifica no gráfico a seguir (figura 15). De certa forma pode-se compreender como as configurações da experiência do cooperativismohabitacional se concretizam em formas organizativas específicas nos contextos nacionais, pois como a própria ex-presidente do BNH, Sandra Cavalcanti, coloca sobre sua proposta, “esse modelo é praticado no mundo inteiro. Nunca inventei a roda” (FREIRE; LIPPI, 2002, p. 95). No entanto, as especificidades do modelo brasileiro marcam a constituição de um cooperativismo habitacional atravessado por formas hierarquizadas e centralizadoras, como apontam Schneider e Lauschner (1989, p. 132) ao comentar as características do sistema criado pelo BNH, 13 À exceção das cooperativas de trabalho, que passaram a ter um novo marco legal com a Lei 12.690 de 2012. 14 Ponto que se tornou ineficaz pela Constituição de 1988 (CASTELO, 1999). 129 afirmando que “esta estructura jerárquica rompe el tradicional proceso de creación de las cooperativas, que debe ser confiado a la libre iniciativa de la población, para la defensa y la organización de sus intereses”. Figura 15 – Número de cooperativas habitacionais (Brasil, 1978, 1980 e 1983) Fonte: Schneider e Lauschner (1989, p. 130). 3.2 A formação da classe operária uruguaia Em entrevista a um periódico do Centro Cooperativista Urguayo, no ano de 1972, Armando Guerra – então presidente da Cooperativa de Vivienda Matriz Textil e futuro dirigente de FUCVAM – assim comenta a relação entre seu sindicato têxtil e a matriz cooperativa, la razón fundamental del éxito de las cooperativas, especialmente en Montevideo, su eficacia para las conquistas (unirse, instrumentarse, conseguir terrenos, estatutos, etc.), es la base gremial. En la formación elemental de cooperativista, por ejemplo la solidaridad, se adquiere en el sindicato (CUADERNOS COOPERATIVOS, 1972, p. 12). Por meio de sua assertiva, pode-se constatar que a origem social e econômica dos grupos que conformaram as experiências iniciais da produção cooperativa da moradia no Uruguai, principalmente em Montevidéu, encontra-se em uma classe trabalhadora que se organizava previamente em formas sindicais. Como assinala Nahoum (1984, 1978 1980 1983 Centro-Oeste 66 71 36 Norte 25 31 21 Nordeste 112 122 44 Sudeste 164 175 152 Sul 85 97 36 452 496 289 130 p. 4) "la extracción obrera de buena parte de los integrantes de los grupos [cooperativos de vivienda] ha sido, además, un poderoso factor de organización, de disciplina y de concientización". Filippini (2008, p. 135) também argumenta que a história da construção de moradias por cooperativas, em Montevidéu, esteve, em sua origem, vinculada “a sectores de extracción económica media o medio-baja, muchas veces de extracción sindical [...] y generalmente con experiencias organizativas previas”. Portanto, existe una relação muito próxima entre a formação do sistema cooperativo de moradia no Uruguai e a classe trabalhadora sindicalizada desse país. Para compreender a especificidade da formação desse processo é necessário ter em consideração o largo histórico de industrialização do Uruguai no século XX. No último quarto do século anterior, a economia uruguaia concentrava-se no setor primário, principalmente com a criação de gado (“ganadería”) e uma considerável produção de ovinos (introduzidos na segunda metade do dezenove) destinados à exportação. A agricultura era pouco desenvolvida e o país importava quase todos os bens de consumo de que necessitava. Um pequeno circuito industrial começava a se constituir e uma leva de migrantes europeus chegava principalmente a Montevidéu (NAHUM, 2014). Nesse período, a chegada, principalmente de italianos e espanhóis, era intensa. Na capital do país, entre 1875 e 1879 entraram seis mil imigrantes, entre 1880 e 1884 outros vinte mil e, no período de 1885 a 1889, foram mais cinquenta mil (PELLEGRINO, 2013). Em Montevidéu, no ano de 1889, os estrangeiros contabilizavam cerca de cem mil habitantes em um universo de duzentos e quinze mil, ou seja, quarenta e seis por cento da população15. Tal chegada de migrantes europeus aportou características muito específicas para a formação da recente nação, como aponta Pellegrino (2013, p. 189), dentre as quais “obreros con experiencia sindical y militantes políticos socialistas o anarquistas, cuyo pensamiento se difundió en los sindicatos, en la prensa militante y de las organizaciones de inmigrantes”. A chegada destes migrantes europeus também contribuiu fortemente para o processo 15 De acordo com Pellegrino (2014, p. 6) sobre a imigração para a América do Sul no século XIX, “de los 12 millones de personas cuyo destino fue América Latina, la mitad se dirigió a la Argentina, 36% al Brasil, 6% al Uruguay y 7% a Cuba. El pequeño saldo restante se distribuyó en cantidades menores entre otros países latinoamericanos”. O que aponta para o relativo elevado número de imigrantes que chegaram ao Uruguai, considerando sua pequena população quando comparada aos países vizinhos. 131 de formação das primeiras organizações sindicais da vida operária na virada do século (PELLEGRINO, 2014, p. 14). Assim, foi no final do século XIX que se consubstanciaram as primeiras iniciativas de organização sindical de trabalhadores no Uruguai. De caráter embrionário e com pouca continuidade, são a primeira experiência de coordenação dos trabalhadores na história da nação. Como aponta Porrini (2002, p. 18), nessa época “actuaron los ‘internacionalistas’ [...], las organizaciones ‘protosindicales’ como las ‘sociedades de ayuda mutua’ y las de ‘mutuo y mejoramiento’16, y las ‘sociedades de resistencia’”. De acordo com a historiografia do movimento operário uruguaio, esse momento é considerado como “pré-sindicalismo” ou “sindicalismo disperso”, e tem seu encerramento em 1905. Deve-se destacar que a especificidade da legislação desse país, sobre o tema da imigração, carrega uma característica distinta em relação às nações vizinhas. Se, no início do século XIX, a concepção do estado uruguaio era de que a migração seria um fator determinante para o povoamento do território e constituição da nova nação, o diferencial na regulação sobre a migração, no começo do século seguinte, se assentava no modo como se tratou a questão da deportação e do asilo político (na contramão de como o fizeram Brasil e Argentina). Pois, justamente, o Uruguai abriu- se à recepção de deportados dos países vizinhos e não aplicou esta prática em seu território. Nesse processo, no começo do século, o país conformou-se em um território de recepção de exilados – principalmente anarquistas – das nações contíguas, e “se convirtió en un lugar de asilo y refugio para los integrantes de los movimientos políticos que sacudían la región con sus acciones. Pronto, los anarquistas se constituirán en el grupo principal de dicha protección” (DECESARI, 2014, p. 2), principalmente aqueles oriundos da Argentina17. A partir de então, um específico aporte de ideias e de 16 As associações mutualistas desempenharam um importante papel de apoio aos trabalhadores e, também, à sociedade uruguaia em geral, com um considerável rol de atividades desenvolvidas adentrando todo o século XX. Solà I Gussinyer (2003) destaca que “en Uruguay las organizaciones de socorros mutuos [...] favorecían inicialmente al proletariado de origen europeo, los pequeños comerciantes y los trabajadores por cuenta propia del mismo origen”. 17 A perseguição aos anarquistas na Argentina se fazia desde a década de 1870 e teve sua consolidação legal com a promulgação da Lei de Residência em 1902, que autorizava a expulsão do país por mero decreto policial (DECESARI, 2014). Nahum (2014, p. 17) afirma que “la ley de residencia argentina provocaba la huida hacia Montevideo de numerosos sindicalistas anarquistas que mantenían 132 sindicalistas configurou-se na conformação do mundo do trabalho dessepaís, principalmente quanto à constituição de suas organizações sindicais. *** Com a presidência de José Batlle y Ordóñez, que se inicia em 1903, implementam-se as primeiras medidas de modernização e industrialização do Uruguai18. O setor assalariado ainda conformava somente vinte e cinco por cento da população ativa. Configuravam “talleres o pequeñas empresas [...] que recién empezaban a usar alguna maquinaria, y a una minoría de establecimientos más grandes donde ya se producía la clásica concentración de obreros y máquinas, tales como textiles, refinerías, destilerías” (NAHUM, 2014, p. 116). Nesse começo do século XX emergiram organizações sindicais que agregavam uma massa mais ampla de trabalhadores e que começavam a desenhar um horizonte utópico para a luta política. Segundo Porrini (2002, p. 18), "se crearon instituciones y organizaciones de los trabajadores que desarrollaron prácticas culturales y educativas y luchas de ‘resistencia’ aspirando a una sociedad distinta, en un horizonte de ‘utopías’”. Portanto, a política das reformas sociais batllistas e a atuação dos sindicatos, ainda que minoritários, levaram às primeiras ações redistributivas e de justiça social no mundo do trabalho uruguaio. A eleição de Feliciano Viera, em 1914, significou uma quebra no ritmo das reformas sociais impulsionadas pelo batllismo. A intensidade das reformas sociais e o impulso à industrialização incomodavam muitos setores, como a classe rural pecuarista e aqueles ligados à igreja. Apesar do freio às reformas sociais, aumentaram as mobilizações dos trabalhadores, com a ampliação de greves, sendo una constante prédica en los gremios locales y lograban la adhesión de nuevos obreros a las reivindicaciones generales”. 18 O “batllismo” estende-se até 1915, com as duas presidências do próprio José Batlle (1903 – 1906 e 1911-1914) e, também, de Claudio Williman (1907-1910). 133 que o bom momento econômico pelo qual passava o país permitiu a realização de vários acordos trabalhistas no período (NAHUM, 2014, p. 84). Após os anos 1920 de política conservadora, a crise mundial de 1929 reconfigurou o mundo do trabalho uruguaio. O país teve uma queda brutal das exportações, uma forte desocupação em vários setores da economia e o estado promoveu diversas repressões anti-sindicais (NAHUM, 2014). No entanto, valendo-se de condições prévias de acumulação econômica, o Uruguai conseguiu empreender, a partir da recuperação da crise de 1929, um período de intensa substituição de importações, desenvolvendo uma indústria de caráter ainda leve. A força de trabalho industrial passa, então, a aumentar. Assim é que, segundo Porrini (2002, p. 18), entre 1930 e 1936 o Uruguai tem um incremento de dezesseis mil novos trabalhadores e entre 1936 e 1948 são mais sessenta e três mil. Depois de 1943 há o retorno da corrente batllista ao governo nacional e o país também começa a viver um período de bonança econômica. Pode-se afirmar que a partir de então é que se forma uma classe operária com estabilidade e constitui-se um movimento sindical forte no Uruguai (PORRINI, 2002b). Além disso, o estado retoma o ritmo mais intenso de aprovação de novas políticas de proteção ao mundo do trabalho. Vale destacar que a nação uruguaia já contava com importantes medidas nessa área. Aprovara em 1915 a cobertura por acidentes de trabalho para boa parte dos assalariados, a jornada de oito horas diárias e o descanso semanal obrigatório de um dia. A responsabilidade patronal sobre acidentes foi aprovada em 1920 e em 1923 o salário mínimo para trabalhadores rurais. A Constituição de 1934 reconheceu o direito de greve e, também, a classe trabalhadora enquanto interlocutora em mecanismos de prevenção de conflitos em tribunais de conciliação e arbitragem (inclusive envolvendo definição de bases salariais e limitação de jornada de trabalho). No contexto do “neobatllismo” constitui-se um importante mecanismo institucional de mediação entre capital e trabalho que irá marcar a história das relações laborais no país. Em 1943 é aprovada, pelo legislativo nacional, a instituição dos "Conselhos de Salários". Trata-se de conselhos tripartites formados por trabalhadores, 134 empregadores e pelo estado, os quais regulam as relações de trabalho nos diversos ramos da atividade produtiva19. Instituíram-se conselhos para vinte atividades laborais, sendo tripartites e compostos por representantes eleitos dos trabalhadores e dos empresários, além de membros indicados pelo estado20. Porrini (2002) indica que essa inovação institucional marcou de forma profunda a conformação do mundo do trabalho uruguaio, pois possibilitou aumentos salariais importantes, ordenou as lutas por salário, instituiu a prática de votação entre os trabalhadores, além de impulsar a formação de novos sindicatos. Assim, “los Consejos de Salarios fueron un instrumento de integración social de los trabajadores (incluyó una ‘electoralización’ en sus prácticas), a la vez que un espacio de confrontación de poderes en que aquellos mantuvieron cierta autonomía” (PORRINI, 2002b, p. 18). *** Nos anos 1950 passa a se conformar, no Uruguai, um sindicalismo de massas, que não se caracteriza mais pela confrontação e oposição diretas, mas pela constituição de uma franja diretiva que desenvolve estratégias mais mediadas de relação com o estado e com os patrões (PORRINI, 2002b). Na vida sindical surgem os grêmios por setores de atividade (indústria da construção, metalúrgicos, têxteis, bancários e funcionários públicos). Apesar de diversas tentativas de unificação sindical, ainda permaneciam as várias centrais e seus grupos21. 19 A primeira iniciativa de criação dos Conselhos de Salários data de 1912, a partir de proposta do deputado socialista Emiglio Frugoni. Já no começo da década de 1940 um grupo de deputados empreendeu um estudo sobre as condições de vida da classe operária uruguaia de então. Os resultados apontaram as péssimas condições de trabalho em diversos setores da economia, o que impulsionou a proposição e aprovação dos Conselhos de Salários (NOTARO; CAETANO, 2012). 20 Notaro e Caetano (2012, p. 174) mostram que, nas primeiras eleições para os Conselhos de Salários, votaram quarenta e dois mil dos noventa e sete mil trabalhadores habilitados (43% do total), com alta participação em setores como dos gráficos (79%), transporte (76%) e metalurgia (63%). 21 No caso, a Unión General de Trabajadores (UGT), criada em março 1942, a coordenação do Comité de Relaciones Sindicales (1943), além da Federación Obrera Regional Uruguaya (FORU) e da Unión Sindical Uruguaya (USU), assim como vários sindicatos de origem católica e “autônomos”. 135 Somente a partir da segunda metade da década de 1950 é que se toma o impulso para a unificação da luta sindical no Uruguai. De acordo com Porrini (2002, p. 12), “la división comenzó a revertirse desde mediados de los años cincuenta, en medio del reconocimiento general de la ‘crisis’ en todos los renglones de la actividad económica”. O ritmo de crescimento do país começava a dar sinais de debilidade e numerosas lutas sindicais emergiram em diversos setores da atividade econômica. Greves rurais, lutas contra o congelamento de salários, marchas pela terra e por leis laborais, ao mesmo tempo em que o governo iniciava o endurecimento na repressão ao mundo do trabalho. Em 1956, a partir de uma greve de trabalhadores dos frigoríficos cria-se a “Comisión Coordinadora pro Central Única” que buscou unificar as forças sindicais e coordenar ações conjuntas até o ano de 1958, quando é dissolvida. Nesse período, até o ano de 1961, discute-se a criação da Central de Trabajadores del Uruguay (CTU), a qual é instituída nesse último ano. Porém, somente em 1964 é que se concretiza a iniciativa de unificaçãosindical. Durante os meses de junho a setembro de 1964 conformou-se a Convención Nacional de Trabajadores que irá coordenar, gradativamente, todas as ações sindicais no Uruguai. No início de 1965 a Convención organizou uma grande paralização geral que impactou fortemente a população uruguaia. E em agosto desse mesmo ano convocou o “Congresso do Povo”. O Congresso foi a base para a constituição da Central Nacional de Trabajadores (CNT), e se consolidou em um amplo espaço de discussão e aprovação de um programa de medidas para a enfrentar a grave crise que tomava o país à época. De acordo com Porrini (2014, p. 19) o Congresso do Povo “había reunido a un conjunto de sectores perjudicados por la crisis y elaborado un vasto ‘programa de soluciones’, que incluía la reforma agraria, industrial, del comercio exterior, entre otras transformaciones". Em 1966 consolida-se a CNT (dissolvendo-se a CTU) a partir do Congreso de Unificación Sindical realizado entre vinte e oito de setembro e primeiro de outubro. Estava, então, conformado o processo de unificação sindical que se buscou desde mediados da primeira metade do século XX e que irá se constituir em um forte instrumento de luta dos trabalhadores durante todo o restante desse século e até os dias atuais. 136 *** A história da conformação do "modelo" sindical uruguaio permite averiguar uma característica intrínseca desse modelo que agrega um tom muito específico às relações de trabalho nesse país. Supervielle e Pucci (2008) ressaltam a atitude não intervencionista do estado na formação sindical uruguaia, consolidada a partir da relação que o batllismo manteve com a classe trabalhadora. Desse modo, “la subordinación del movimiento sindical al Estado, que se expresó en forma nítida en el peronismo en Argentina y en el varguismo en Brasil, no tuvo su correlato en las formas populistas uruguayas, que se mantuvieron fieles a la tradición liberal que las inspiró” (SUPERVIELLE; PUCCI, 2008, p. 45). Portanto, constituiu-se um modelo sindical bastante peculiar no Uruguai, marcado fortemente pela autonomia do movimento sindical frente ao estado. E ao final da década de 1960 consolida-se um sindicalismo uruguaio com uma “cultura” gremial bem definida e trabalhadores protegidos por regulamentações estatais instituídas sobre o mundo do trabalho. Um contexto de grande tensão social configurou-se com a consolidação da unificação sindical e a emergência de propostas de cooperativismo habitacional em meio à crise econômica e de crescimento da repressão violenta do estado. Nesse cenário social tensionado é que se formou a base social e política de onde emergiram os protagonistas das primeiras cooperativas de moradia no Uruguai. 3.2.1 Cooperativismo de moradia, classe trabalhadora e sindicalismo Na história de formação da classe operária uruguaia é interessante notar que, entre as décadas de 1950 e 1960, constata-se um grande crescimento da força de trabalho assalariada e da ocupação no setor industrial. Como aponta Porrini (2002, p. 23), o Censo Geral de População de 1963 apresentava um país de quase dois milhões e seiscentos mil pessoas, sendo que "había una población activa de casi 1 millón y de éstos los asalariados representaban casi el 74%. Tal vez haya sido ese el momento 137 de máxima cuantía de la clase obrera industrial". O gráfico a seguir (figura 16), apresentado no trabalho de Martí (2006), dá a noção exata sobre o ápice de constituição da conformação industrial da classe operária uruguaia. Figura 16 – Ocupação na indústria (Uruguai, 1936 – 1999) Fonte: Martí (2006). Os dados da ocupação operária entre 1936 e 1999 mostram que o pico no volume de trabalhadores no setor industrial ocorreu na virada da década de 1950 para 1960. O próximo gráfico (figura 17) também permite verificar como foi justamente entre os anos de 1955 e 1960 que a ocupação na indústria apresentou uma das maiores taxas de crescimento na história do país – somente superada pelo período de 1983 a 1989, que, em realidade, reflete a recuperação da grave crise do período anterior. Aproveitando-se de um contexto macroeconômico proporcionado pelo ambiente internacional após a crise de 1929 e com a Segunda Guerra Mundial, o Uruguai desenvolveu um modelo de substituição de importações que lhe permitiu, alavancado principalmente no neobatllismo da década de 1940, a constituição de um certo circuito industrial que fez emergir uma classe operária que desenvolveu um forte senso de união sindical. Como sintetiza Nahum (2014, p. 209) “entre 1945 y 1954 la producción creció 8,5% anual, con las ramas tradicionales (textiles, bebidas, ropas, alimentos) llegando al 5,6% y las dinámicas (derivadas del petróleo, electrotécnicas, metalúrgicas) al 15%”. Assim, o efeito correlato foi o crescimento da mão-de-obra 138 empregada na indústria e em atividades afins, como bancária, administração e serviços. Figura 17 –Taxas de crescimento da população, da população economicamente ativa (PEA) e da ocupação na indústria (Uruguai, 1936 – 1998) Fonte: Nahum (2014). Desse modo, a base das primeiras experiências de cooperativas de moradia no Uruguai seria angariada dessa classe operária. Forjada em um contexto econômico de industrialização via substituição de importações e de garantias trabalhistas advindas das reformas sociais de herança batllista, a estabilidade dessa classe proporcionaria o terreno para a formação de um certo “ethos” subjacente a esses trabalhadores, que seria galvanizado pela disciplina de sua organização sindical. Uma determinada “cultura de classe” havia se plasmado em meio a esses trabalhadores uruguaios de meados do século XX, a qual permitiu que se engajassem nas primeiras experiências de produção cooperativa de moradia22. A transformação da prosperidade econômica em acordos de classe capital- trabalho por meio dos Conselhos de Salário, aliados à centralização sindical e à 22 A análise realizada sobre a formação da classe operária no Uruguai se inspira na perspectiva de análise de Thompson (1987) sobre a constituição histórica da classe operária imbricada à conformação de sua consciência a partir da sua própria experiência – portanto, não anterior à sua tomada de consciência, mas em seu próprio “fazer-se” histórico. Assim é que uma determinada cultura de classe se constitui desde a própria experiência histórica operária, conformando um determinado “ethos”, cujas práticas foram, de certa forma, compartilhadas nos projetos de produção cooperativa da moradia. 1, 36 0, 69 0, 46 0, 81 0, 7 0, 31 0, 35 0, 74 -0 ,2 2 0, 35 5, 06 -2 ,3 6 -6 ,1 7 6, 56 -4 ,7 8 1955-1960 1960-1978 1978-1983 1983-1989 1989-1998 População População Economicamente Ativa - PEA Ocupação na indústria 139 ausência histórica de intervenção estatal nos sindicatos, permitiram constituir uma cultura de classe operária que vislumbrou, na proposta da ajuda mútua e da propriedade coletiva, uma forma de construção da moradia e um mecanismo viável de solução da crise habitacional que o país enfrentava na segunda metade dos anos 1960. *** A relação entre organizações sindicais da classe trabalhadora com o movimento cooperativista de moradia, porém, não ocorreu de forma automática ou ausente de conflitos. Diferentemente do que se passou com a base dos trabalhadores, suas organizações representativas – incluindo sindicatos e partidos – não irão apoiar a iniciativa em seus primeiros momentos. Organizações de esquerda, como o Partido Comunista Uruguaio, se posicionaram criticamente à Lei Nacional de Moradia aprovada em 1968. O Partido Comunista foi contrário a lei e ao cooperativismo de moradias por três motivos. Primeiro, retirariam empregos do setor da construção civil, depois, dariam uma propriedade aos trabalhadores no sistema capitalista e, por último,desviariam o foco da luta política da classe trabalhadora23 (FRENS-STRING, 2001, p. 26). Como aponta González (2013, p. 45), "no fueron los líderes de primera línea del movimiento sindical los que se pusieron a la cabeza de este movimiento, salvo honrosas excepciones". Portanto, pode-se afirmar que a “base” do cooperativismo de moradia uruguaio foi a classe trabalhadora sindicalizada. No entanto, não se deve afirmar que a origem do cooperativismo de moradia uruguaio é sindical. Retomando o trabalho de Gonzáles (2013), assim é possível colocar em melhor assertiva tal relação entre operários sindicalizados e cooperativas de moradia, quando o autor afirma que el modelo cooperativo no nace como fruto de una batalla librada por el movimiento obrero en su conjunto, pero hay que tener claro, que es cuando los trabajadores fundamentalmente comienzan a estructurar sus cooperativas 23 Como analisado anteriormente, também se deve ter em mente que o contexto internacional na América Latina, após a Segunda Guerra Mundial, era de investida ideológica norte-americana sobre a região, para garantia de seu domínio geopolítico. 140 desde las fábricas, que efectivamente el movimiento crecerá. Lo que no es igual a decir que el movimiento sindical lo impulsara (GONZÁLEZ, 2013, p. 46). Mas como se realizará a unificação entre o nascente movimento cooperativista de moradia com as organizações políticas e sindicais de representação da classe trabalhadora? Segundo González, o próprio crescimento da adesão dos trabalhadores operários a esse sistema é que trará o apoio dessas organizações. De acordo com sua interpretação, a unificação com o movimento sindical ocorreu nos três primeiros anos de fundação de FUCVAM – entre 1970 e 1973 –, pois “las cooperativas crecían en el seno mismo del movimiento obrero, es decir independientemente del debate teórico la gente quería resolver el problema a través de esta alternativa” (GONZÁLEZ, 2013, p. 65)24. Além da adesão ao movimento cooperativista de moradia, a classe operária aportou um substancial “modo de vida” a esse movimento, em que a “cultura de classe” do movimento operário influenciou muitas dimensões no campo da produção cooperativa de moradia. Constituídas em meio século de formação de sua organização sindical, algumas práticas como a disciplina, as discussões em assembleia, o respeito ao centralismo democrático, a unificação sindical e as reivindicações perante o estado, por exemplo, foram incorporadas nas práticas das cooperativas. A disciplina do trabalho em ajuda mútua, a divisão de tarefas em comissões e a participação e acatamento das decisões das assembleias eram práticas aceitas e bem desenvolvidas pelos trabalhadores que se tornavam cooperativistas. As táticas de luta política do movimento sindical uruguaio também foram acionadas para influenciar a organização do movimento de cooperativas que recém se criara. Como aponta o depoimento de um sócio de uma cooperativa da década de 1990, “yo creo que hay una característica en Uruguay, que no es de todos los países, que por cada gremio hay una sola organización, un sentido de unidad muy grande” (Sócio C, COVIUNPRO, AM2). O que, segundo ele, trasladou-se para o cooperativismo de moradia, pois “en el cooperativismo de vivienda hay varias formas de construir, pero cooperativas de ayuda mutua hay una sola organización en 24 Sintomático da posterior adesão das organizações dos trabalhadores é que as cooperativas de matriz sindical tiveram a predominância de sua assessoria técnica pelo Instituto CEDAS, que tinha forte influência do Partido Comunista. 141 FUCVAM. Entonces cuando vos te organizás ya no pensás en otra cosa, es FUCVAM” (Sócio C, COVIUNPRO, AM2)B. Portanto, a especificidade das condições da classe operária uruguaia, em meados do século XX, abriu um espectro também muito específico de condições sociais e políticas a partir das quais emergiu o movimento cooperativo de produção de moradia. Nesse trecho, Gustavo González comenta tais condições e suas especificidades, a partir de um distanciamento de quase quarenta anos, afirmando que “todos estos trabajadores contaban además con trabajos e ingresos estables, [...] Con un movimiento sindical pujante donde la ocupación, el salario estable, eran parte sustantiva del disciplinamiento obrero” (GONZÁLEZ, 2013, p. 45). Assim, como ele conclui, “fueron así capaces de plasmar, en el diseño y el proyecto de su barrio, todo cuanto albergaba en ellos de esa reserva moral de clase” (GONZÁLEZ, 2013, p. 45). Porém, para que esse aporte da classe operária se concretizasse, era necessário que o estado apoiasse fortemente a implementação da Lei Nacional de Moradia recém aprovada. É o que ocorre logo nos primeiros anos do sistema cooperativo de moradia, apontando para as especificidades da conformação da arquitetura de bem-estar no Uruguai da primeira metade do século XX. 3.3 Arquitetura de bem-estar e apoio estatal Como analisado na seção 2, o estado desempenhou importante papel para o ganho de escala do sistema cooperativo de moradia. Como aponta González (2013, p. 51) sobre o apoio do recém-criado órgão gestor da política habitacional, pela Lei Nacional de Moradia, “aquella dirección de la DINAVI fue quien también impulsa el modelo cooperativo, en un gobierno de neto corte de derecha y autoritario, en un momento de gran polarización de la lucha de clases”. Esse apoio estatal teve muita especificidade ao priorizar a modalidade das cooperativas de uso e gozo, em detrimento daquelas de proprietários. Como postula o testemunho de um fundador de FUCVAM, Isaac Moreira, ao próprio González citado acima, sobre a atuação do então diretor da DINAVI, este “me contó con claridad que en 142 una reunión [...] en la DINAVI, él les dijo ‘muchachos si los obreros construyen como ustedes seguramente lo van a hacer, es fundamental que sean usuarios, para preservar a las familias de entrar en el mercado inmobiliario’” (GONZÁLEZ, 2013, p. 51; grifo nosso). Assim também o próprio acompanhamento dos gestores do governo nas experiências piloto mostrou-se fundamental para a aprovação da Lei Nacional de Moradia. Como aponta Leonardo Pessina, em depoimento ao autor, desde o início das experiências os técnicos já se apresentavam convencidos sobre o apoio ao modelo cooperativo. Segundo ele, que trabalhava no Centro Cooperativo Uruguayo à época, “nós [CCU] levamos o Diretor [da DINAVI] para visitar Isla Mala e as outras cooperativas pioneiras. Então foi-se criando, digamos, condições para aprovar a Lei Nacional de Habitação, que se aprova em 1968” (PESSINA, 2015). Somente para fechar essas considerações mais gerais, o próprio apoio estatal se concretizava nas práticas dos primeiros cooperativistas de moradia. Como descreve o documento de uma cooperativa pioneira (COVIMT 2), com obras no início dos anos 1970, os técnicos do agente financeiro, o Banco Hipotecário do Uruguai, compartilhavam da solidariedade dos cooperativistas ao visitar as obras para medição do seu avanço e liberação das parcelas de financiamento. Como coloca um documento retrospectivo da cooperativa, ao receberem os técnicos do banco na obra, decidimos agasajar con un buen asado a la gente del B.H.U. que nos trataban de maravilla, para recibir su visión de la obra, saber cómo evaluaban el adelanto de obra, cuánto deberíamos avanzar mensualmente, cuáles son los avances que más cuota nos proporcionaría (COVIMT 2, s/d, p. 10). Assim é que, após a promulgação da Lei Nacional de Moradia, teve grande importância o apoio conferido pelo estado às primeiras cooperativas, levando ao ganho de escala do sistema. Deve-se destacar quatro pontos desse processo referentes à atuação do estado: os gestores governamentais que se engajaram na proposta, o aporte derecursos financeiros, a formação de uma carteira de terras e a concessão de figura jurídica às cooperativas em formação. Para além do engajamento individual dos gestores estatais, vale ter em consideração a própria especificidade da formação do estado uruguaio e da configuração correlata de suas políticas sociais. Assim, quais seriam os elementos históricos que conferiam a especificidade da formação do estado uruguaio nesse período? Compreender o traço distintivo da 143 arquitetura de bem-estar que se conformou no Uruguai, durante o começo do século XX, permite iluminar algumas dessas especificidades. *** Acerca do surgimento do estado uruguaio, Bértola e Bertoni (2014, p. 89) apontam que o país “alcanzó en las últimas décadas del siglo XIX un nivel de ingreso per cápita relativamente alto, como resultado de una exitosa inserción en la economía mundial con base en una especialización primario exportadora complementaria de los centros dinámicos del capitalismo". Assim, o relativo alto grau de desenvolvimento econômico do país foi revertido em políticas sociais, por meio da consolidação de um estado de bem-estar no início do século XX. Nesse processo é que se constituem as bases para o desenvolvimento do caráter pioneiro do país na conformação de suas políticas de bem-estar social. Continuando com a palavra dos autores, pode-se constatar que “hacia 1950 un muy importante crecimiento del gasto público social contribuyó a la configuración del régimen de universalismo estratificado característico de la ‘Suiza de América’” (BÉRTOLA; BERTONI, 2014, p. 77). Nesse período, o país se consolidou como um dos pioneiros na provisão de serviços sociais no continente latino-americano. As precursoras medidas de regulação social do batllismo foram adotadas em meio a uma mudança na estrutura de classes da sociedade uruguaia. O que se observa nesse começo de século é a consolidação política e econômica das classes médias e a debilitação daquelas que viviam da criação de gado (“clase ganadera”). Estas apresentavam uma posição de classe mais conservadora e sua perda de força abriu caminho para a consolidação dos avanços democráticos do país. É o que permite a Moreira (2007) afirmar que, na história do Uruguai, a inexistência de classes dominantes nativas que se contrapusessem aos avanços democráticos, foi o que tornou possível instituir políticas sociais de cunho mais distributivo e igualitário. Nas palavras da autora, “el tipo de explotación imperante y la inexistencia de comunidades políticas nativas previas, así como la falta de una 144 aristocracia autóctona (ligada a la debilidad de la Iglesia y el Ejército), generaron una sociedad donde las desigualdades fueron difícilmente legitimables” (MOREIRA, 2007, p. 13). Pode-se, desse modo, compreender como o aumento no desenvolvimento econômico uruguaio da virada do século XIX para XX permitiu engendrar a acumulação de riqueza pelo país e, ao mesmo tempo, sua distribuição social por meio da intervenção estatal redistributiva, impedindo uma extrema concentração da renda. E foi a partir dos anos 1940 que o Uruguai conseguiu constituir um cenário econômico, social e político que constituiu um consistente aparato de bem-estar social para seus cidadãos. Crescimento econômico, classe trabalhadora estável e políticas públicas de suporte social abriram um terreno de onde emergiu uma sólida forma para o tratamento do “risco social”25 durante as duas décadas seguintes. Emergindo na segunda metade da década de 1960, a iniciativa de produção social do habitat, por meio do cooperativismo, valeu-se desse contexto de bem-estar social para se firmar enquanto política social para promover soluções habitacionais dignas aos cidadãos uruguaios. Durante as três décadas de maior intensidade (1940 a 1970), esse sistema de bem-estar contou com características bem definidas, assentadas na baixa fecundidade em famílias predominantemente nucleares, na relativa heterogeneidade na composição social dos bairros, em uma economia próxima ao pleno emprego formal e em uma boa base fiscal oriunda de uma situação econômica estável (FILGUEIRA; RODRÍGUEZ; RAFANIELLO; LIJTENSTEIN; ALEGRE, 2005, p. 19). E pelo lado das políticas estatais se verifica um constante gasto em áreas sociais, dentre as quais, no período da virada da década de 1950 para 1960, nota-se um aumento naquelas do setor de moradia e serviços sociais. A tabela 2 mostra que os investimentos nesse setor tem pico justamente no período entre 1955 e 1968, 25 A referência posta assenta-se na teorização de Esping-Andersen (1990) sobre a conformação da arquitetura do bem-estar social e a relação entre estado, comunidade, família e mercado de trabalho no suporte aos “riscos sociais”. Para o Uruguai, adotam-se as ideias contidas no trabalho de Filgueira, Rodríguez, Rafaniello, Lijtenstein e Alegre (2005). 145 justamente aquele em que se aprova a Lei Nacional de Moradia e se constitui o cooperativismo de moradia. Tabela 2 – Evolução da estrutura do Gasto Público Social (porcentagem), por décadas (Uruguai, 1910 – 2000) Área do Gasto Público Social Média 1910-1921 Média 1935-1947 Média 1955-1968 Média 1974-1989 Média 1990-2000 Educação 37,2% 20,6% 17,23% 15,5% 12,3% Saúde 20,2% 12,6% 10,5% 13,1% 16,3% Seguridade e Assistência Social 38,6% 64,4% 65,6% 66,0% 65,4% Moradia e Serviços Comunitários 0,4% 1,0% 4,9% 3,6% 4,6% Gasto social não convencional 3,6% 1,4% 1,8% 1,7% 1,4% Fonte: Bértola e Bertoni (2014). Como resultado desse processo, Filgueira, Rodríguez, Rafaniello, Lijtenstein e Alegre (2005, p. 07) apontam que “Uruguay posee el gasto social per cápita más alto de América Latina y también uno de los gastos más altos como porcentaje del PBI y como porción del gasto público total”. Portanto, um modelo de estado de bem-estar social estava conformado no Uruguai a partir da década de 1940, estendendo-se até quase fim dos anos 1970. Desse terreno emergiu a proposta do cooperativismo de moradia e analisando-o é possível compreender como o estado uruguaio pôde aportar investimentos e apoio institucional, apesar do contexto de crise política e econômica que atravessava o país ao final dos anos 1950. 146 Tradução dos depoimentos da seção 3 A “houve pessoas, intelectuais [...] que colocaram que a partir de experiências de reforma agrária, de gente que tinha sua terra e depois a vendia a proprietários de terras pelas razões que sejam, que o que mais convinha era a propriedade coletiva”. B “eu creio que há uma característica no Uruguai, que não é de todos os países, que por cada sindicato há uma só organização, um sentido de unidade muito grande” [...] “no cooperativismo de moradia há várias formas de construir, mas cooperativas de ajuda mútua há só uma organização em FUCVAM. Então quando você se organiza, já não pensa em outra coisa, é FUCVAM”. 147 4 O TERRENO POR ONDE SE MOVIMENTA A AUTOGESTÃO HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO Nesta seção se apresentam algumas considerações sobre determinadas questões estratégicas que se delinearam na conformação das bases das experiências de autogestão habitacional no Rio de Janeiro. Tomando uma perspectiva distintiva em relação à analise empreendida anteriormente sobre Montevidéu, são postas em relevo algumas especificidades acerca do terreno onde emergiu o projeto de produção social do habitat na metrópole do Rio de Janeiro. Um primeiro conjunto de elementos a considerar é a distinção em relação à base urbana a partir da qual se constituíram as iniciativas pioneiras. Focando-se a questão da favela no Rio de Janeiro, adentram-se algumas análises em torno do associativismo popular e das intervenções urbanas que atravessam esses territórios. Desse modo são exploradas algumas implicaçõesquanto à cultura política e à economia política da urbanização que aportam elementos distintivos em relação ao contexto uruguaio. Um segundo movimento da análise explora a relação entre a matriz sindical e o projeto da produção social do habitat no Rio de Janeiro, de modo a pensar a especificidade histórica em relação ao que ocorrera em Montevidéu. Em seguida, analisa-se a relação entre cultura política e violência, que reconfigura o associativismo no Rio de Janeiro a partir da década de 1990, iluminando seu impacto nas experiências de autogestão habitacional. Por fim, abordam-se alguns aspectos em torno do modelo institucional das experiências de produção social do habitat na metrópole carioca, seguindo a trajetória da Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião. A partir desses elementos pretende-se refletir sobre alguns desafios postos pela base política, econômica e social que atravessam a autogestão habitacional no Rio de Janeiro. 148 4.1 Favela, território de origem Como a análise na seção 2 permitiu constatar, a emergência das experiências de produção social do habitat no Rio de Janeiro, que se referenciam ao modelo de cooperativas de moradia uruguaias, estruturou-se a partir de territórios e da questão da favela no Rio de Janeiro da década de 1980. O projeto da COOPMAHN se erige na favela de Nova Holanda, a constituição da Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião se faz a partir da atuação da Pastoral de Favelas, assim como os projetos piloto se organizam em alguns territórios com tal configuração, como no caso de Shangri-lá. Portanto, compreender as mutações que atravessaram o tema do tratamento da questão das favelas, no período fundacional dessas experiências, permite iluminar o terreno sobre o qual foi referenciada a inspiração uruguaia. Dois aspectos sobre a questão da favela no Rio de Janeiro, durante a virada da década de 1970 para 1980, devem ser postos em relevo. Primeiramente, a mudança na configuração da própria política de urbanização desses territórios. Após o período da ditadura marcado por iniciativas remocionistas, passou-se a tornar hegemônica a concepção de que as favelas poderiam permanecer no tecido urbano e serem objeto de urbanização. Por fim, uma substancial modificação na dinâmica da organização associativa, desde uma renovação na cultura política que passa a ser vivenciada no seio das associações de moradores. A partir do arrefecimento da intervenção direta do estado na dinâmica política dessas organizações, foi possível constituir-se uma cultura política renovada no associativismo das favelas cariocas. Desse modo, um conjunto de condições sociais, políticas e econômicas envolvendo a questão das favelas no Rio de Janeiro configurou um terreno diferenciado em relação àquele onde emergiu o cooperativismo de moradia em Montevidéu, no Uruguai. Nesta seção, portanto, busca-se pontuar algumas destas distinções. 149 4.1.1 Do associativismo pré-ditadura ao remocionismo autoritário O surgimento das favelas no Rio de Janeiro data do final do século XIX. Ao longo do século seguinte constata-se um conjunto de modulações em torno das formas de configuração das intervenções físicas e de organização política do universo desses territórios. É por volta da década de 1940, segundo Burgos (2006, p. 25), que as favelas começam a ser alvo de ações do estado, com intervenções urbanas pontuais e desarticuladas. A principal linha de ação nesse período se traduz em levantamentos sistemáticos sobre a constituição urbana de alguns núcleos (ABREU, 1994, p. 35) e iniciativas de transferência de outros para “parques proletários”, os quais, de situação provisória, acabaram se tornando solução definitiva (CARDOSO; ARAUJO, 2007, p. 279). De acordo com Silva (2002, p. 226), “até por volta dos anos 40 [...] a intervenção pública foi basicamente repressiva, orientando-se para a ‘solução’ do problema das favelas [...] através da erradicação física”. As intervenções nas favelas, durante esse período inicial, não se assentavam somente nos aspectos de erradicação do ambiente construído. Algumas buscaram se direcionar para o melhoramento da infraestrutura urbana e, também, à promoção de formas associativas de organização dos seus moradores. Em 1946 é criada, por meio de uma articulação entre a Arquidiocese do Rio de Janeiro e a prefeitura da cidade, a Fundação Leão XIII. Segundo Burgos (2006), a Fundação passa a atuar em ações de melhoria nas condições de moradia juntamente à promoção de formas organizativas sob sua tutela, “motivo pelo qual não se exime de incentivar a vida associativa nas favelas” (BURGOS, 2006, p. 28)1. Assim é que se constata que, desde o início da intervenção nesses territórios, as ações do poder público não se restringem aos aspectos de melhoramento da infraestrutura ou erradicação da moradia. A vida organizativa dos moradores também é alvo de diversos mecanismos de controle e tutela. 1 Em sete anos de trabalho após sua criação, a Fundação Leão XII atuou em trinta e quatro favelas com implantação de serviços básicos (água, esgoto, luz) e manutenção de centros sociais em oito grandes favelas (Jacarezinho, Rocinha, Telégrafos, Barreira do Vasco, São Carlos, Salgueiro, Praia do Pinto e Cantagalo) (BURGOS, 2006). 150 A atuação sobre as favelas, adentrando a década de 1950, segundo Silva (2002), deixa de tomar partido da solução de sua eliminação do tecido urbano, “em favor de um objetivo mais modesto [...] de controle e regulamentação” (SILVA, 2002, p. 227). Porém, apesar dessa transformação, a ação do estado se reveste de caráter repressivo e disciplinador, pois “tomavam-se os espaços em questão e seus moradores como simples objetos, com pouca ou nenhuma voz ativa” (SILVA, 2002, p. 227). É a partir dessa década, como aponta Burgos (2006, p. 29), que se nota “o estabelecimento de ligações mais consistentes entre a favela e política, inclusive com o surgimento de lideranças que estabelecem vínculos orgânicos com os partidos”. Como expressão disso, no período democrático após a ditadura de Getúlio Vargas é criada, em 1957, a Coligação dos Trabalhadores Favelados do Distrito Federal (GUEDES, 2013). Nesse período, no entanto, algumas iniciativas são emblemáticas formas de incentivo e de tutela às organizações dos moradores, sendo aliadas a intervenções urbanas nesses territórios. Tal é o caso da criação da Cruzada São Sebastião, em 1955, “que buscaria reunir de forma mais concreta urbanização e pedagogia cristã, vendo nisso a condição mínima de vivência humana e elevação moral, intelectual, social e econômica” (BURGOS, 2006, p. 30). No ano seguinte, a constituição, pela prefeitura do Rio de Janeiro, do Serviço Especial de Recuperação das Favelas e Habitações Anti-higiênicas (Serfha) insere-se nessa tendência, sendo que, “em ambos os casos, estão em jogo iniciativas que procuram articular o controle político a uma pauta mínima de direitos sociais referente a problemas de infra-estrutura” (BURGOS, 2006, p. 30). A Serfha desempenhou um papel de destaque na questão das favelas somente quando passou a fazer parte da Coordenação de Serviços Sociais do governo do Estado, em 1960, sob o comando do sociólogo José Arthur Rios. Entre 1961 e 1962, sob a gestão de Rios, a Serfha tentou aproximar-se da organização política desses territórios, passando a estimular a formação de associações de moradores. Segundo Pandolfi e Grynszpan (2002, p. 243), “a intenção era transformá-las em um instrumento de controle político e de barganha eleitoral. Não foi por acaso que, num curto espaço de tempo, entre 1961 e 1962, a Serfha, [...] criou mais de 75 151 associações”. Como avalia Burgos (2006, p. 32), na atuação da Serfha prevaleceu a tendência a subordinar politicamente os moradores da favela às decisõeshierárquicas da burocracia estatal. Porém, a vida associativa nas favelas do Rio de Janeiro começava a fervilhar. Assim é que em 1963 surge a Federação das Associações das Favelas do Estado da Guanabara, a FAFEG, a qual congregava mais de setenta associações de moradores. A FAFEG “tinha como dois de seus objetivos fundamentais resistir à política de remoções e lutar pela implementação de serviços públicos básicos nas favelas” (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2002, p. 244)2. Como posto na citação anterior, já se vislumbra como, nos anos 1960, conforma-se um contexto de organização das favelas cariocas, ao mesmo tempo em que se constata uma certa preocupação com ameaças de novas intervenções remocionistas. O que se visualiza é a constituição de uma tendência à organização das favelas em associações de moradores e a atuação do poder público sob formas de intervenção urbana não tão diretas. Como coloca Silva (2002), as favelas nesse momento passam por um período de “controle negociado”, pois “ao mesmo tempo que as agências estatais e os demais atores políticos desistem de impor uma solução final de cima para baixo, associações de favelados despontam como atores coletivos, em uma interação com as grandes forças sociais do período” (SILVA, 2002, p. 228). Porém, com o governo de Carlos Lacerda (1961 a 1965)3 emerge o princípio de uma onda remocionista na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Cardoso e Araujo (2007, p. 279) “só nos anos 1960 configurou-se um projeto mais ambicioso de erradicação [de favelas], com o processo de remoção encetado durante o governo Carlos Lacerda”. É expressiva, dessa época, a remoção de famílias de diversas favelas para os conjuntos habitacionais Villa Kennedy e Vila Aliança4. No entanto, como aponta Burgos (2006, p. 34), “diante do que estava por vir, pode-se dizer que a escala das remoções realizadas até 1965 foi modesta, embora tenha atingido cerca de 30 mil pessoas”. 2 Para detalhes sobre o surgimento da FAFEG, vide Brum (2006, p. 66-74) e Mello (2014). 3 Do então estado da Guanabara, que se originou da fusão entre o Distrito Federal e a Prefeitura do Rio de Janeiro, após a transferência da capital do país para Brasília. 4 Os dois conjuntos, por sinal, foram construídos com recursos da Aliança para o Progresso, que havia financiando, no Uruguai, o Plan CIDE – como abordado na seção 3. 152 Deve-se destacar que, nesse período, houve a criação de uma proposta alternativa de intervenção urbana junto às favelas do Rio de Janeiro, com a atuação da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco) no governo de Negrão e Lima (1965-1971). Desse modo, é no final da década de 1960, segundo Cardoso e Araujo (2007, p. 279), “que o modelo de remoção é contraposto à proposta de urbanização, [...]. Instaura-se, desse momento em diante, uma polarização no debate (urbanização versus remoção)”. Deve-se reter desse período, justamente, tal polarização do debate sobre a questão da favela no Rio de Janeiro, que irá dominar a conjuntura política nas próximas décadas. Com a ditadura militar a partir de 1964, inicia-se, no Rio de Janeiro, um conjunto de ações que vão instaurar um período denominado como “remocionismo autoritário” (BURGOS, 2006, p. 34). Em 1968 o governo federal cria a Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam), a qual se configurou como uma entidade que buscou orientar uma política única de urbanização para as favelas do Rio de Janeiro. O Banco Nacional de Habitação (BNH), a partir de 1967, passou a contar com recursos do Fundo de Garantida do Tempo de Serviço (FGTS), ampliando a capacidade de ação da política habitacional. Na esteira dessa ampliação, a Chisam instaurou uma política de atuação nas favelas marcadas pelo remocionismo direcionado aos conjuntos habitacionais construídos pelo Banco. Como aponta Burgos (2006, p. 37) “consta que o objetivo da Chisam era remover 100 famílias por dia”5. Quanto ao tratamento das associações de moradores, o processo foi de crescente intervenção direta. Já em 1963 é reformulado o papel da Fundação Leão XIII, transformando-se de órgão vinculado à igreja em autarquia do estado. Assim é que “a experiência acumulada em favelas pela Leão XIII seria de grande valia para que se pudesse exercer uma vigilância mais estreita da vida política das favelas” (BURGOS, 2006, p. 365). A Fundação passou a deter o papel de reconhecimento oficial das organizações de moradores e de acompanhar e sancionar todo o processo 5 Como aponta Abreu (1994), essa política remocionista instaurada após 1968 ia ao encontro dos interesses imobiliários da metrópole. Pois, segundo o autor, “fortalecidos agora pela mudança do regime político, decorrente do golpe militar de 1964, os interesses imobiliários da cidade acabarão por impor uma mudança radical no comportamento do governo, que patrocinará então uma campanha maciça de erradicação de diversas favelas da cidade, notadamente daquelas que se localizavam em suas zonas mais privilegiadas” (ABREU, 1994, p. 42). 153 eleitoral de constituição de suas diretorias. Em 1967, o governador do estado da Guanabara, Negrão de Lima, instituiu o Decreto 870 que colocou as associações de moradores sob controle do estado. Segundo Brum (2006, p. 369), o decreto implicou um modo do governo manter a “influência efetiva nas favelas [...] e também como uma forma de exercer vigilância política num lugar que sempre foi visto como foco de subversão”. A partir de 1964, com a ditadura militar, muitas associações de moradores sofrem intervenção do estado, com o controle, pela Secretaria de Serviços Sociais do governo da Guanabara, de seus estatutos, orçamento e processo eleitoral, além dos candidatos a cargos eletivos terem que apresentar atestado de antecedentes expedidos pela Secretaria de Segurança (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2002, p. 244). Emblemático desse período foi a cassação da diretoria da FAFEG, que, após dois grandes congressos em 1967 e 1968, teve seu presidente preso e morto logo em seguida. Uma nova eleição, sob exame da Secretaria de Segurança, colocou uma diretoria na Federação formada por membros que passaram a colaborar com as políticas remocionistas do governo (BURGOS, 2006, p. 38). O sumiço de muitas lideranças de moradores das favelas, o atrelamento das associações ao Estado e os impactos causados pela perspectiva de remoção fizeram com que muitas associações passassem a atuar colaborando com as políticas de remoção. Essa colaboração, segundo Pandolfi e Grynszpan (2002, p. 245) envolveu, ao mesmo tempo, por parte das associações, a gestão dos “serviços de água, esgotos e coleta de lixo e foram encarregadas de fiscalizar reformas e construções de novas habitações, evitando a expansão das áreas favelizadas”. Nesse sentido é que “por essa via, alguns dirigentes de associações, em contato direto com o poder público, centralizando poder e recursos financeiros, passaram a compactuar com a política remocionista” (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2002, p. 245). A partir deste breve panorama sobre as intervenções nas favelas no pré-1964 e durante a ditadura militar, deve-se reter para a análise dois pontos essenciais sobre o tratamento da favela até o fim período autoritário. Primeiro, a oscilação entre propostas de intervenção física que se faziam entre um “controle negociado” e um “remocionismo autoritário”. Em seguida, a constituição das formas organizativas das associações de moradoras das favelas e o impacto sobre a cultura política com o 154 intervencionismo de instituições externas, como a Fundação Leão XIII e o cerceamento ditatorial. Como aponta Silva (2002, p. 230) sobre o contexto pré-1964, “a organização dos favelados, que se havia intensificado e adquirido significativo poder político [...], passa a desenvolveruma luta em dois planos: o retorno à democracia e a resistência à remoção”. Porém, com o remocionismo autoritário instaurado pela ditadura, o impacto sobre o tecido associativo das favelas foi dilacerante. Nesse sentido, Burgos (2006) retrospectivamente comenta acerca da dimensão do saldo político desse impacto, que “ainda hoje estamos computando, sendo difícil subestimar a profundidade do trauma por ela criado, além das consequências produzidas pelo aborto do processo de organização e participação dos excluídos na vida política da cidade” (BURGOS, 2006, p. 38). 4.1.2 Abertura democrática e associativismo transformador O balanço da política remocionista da ditadura impressiona pelos números. Segundo Brum (2012, p. 371), a Chisan removeu “mais de 175 mil moradores de 62 favelas (remoção total ou parcial), transferindo-os para novas 35.517 unidades habitacionais em conjuntos, estando a maioria destes nas zonas Norte e Oeste”. De acordo com Cardoso e Araujo (2007), o impacto da política praticada na ditadura militar fez repensar as próprias práticas habitacionais realizadas, sendo que em 1973 a CHISAN é extinta. As variadas críticas que emergiram em diversos meios quanto a essa política e as mudanças no debate internacional sobre a questão da moradia – como a realização da primeira Conferência Internacional do Habitat, em 1976 – incidiram no arrefecimento da política remocionista. No início da década de 1980, então, o governo federal passa a ensaiar algumas propostas alternativas quanto à questão das favelas, sendo que “o próprio BNH desenvolverá um programa de urbanização da favela da Maré, como parte da campanha do então ministro do Interior Mario Andreazza à presidência da República” (CARDOSO; ARAUJO, 2007, p. 280). 155 Ao final da década de 1970 o tratamento das favelas no Rio de Janeiro envereda por uma transformação, em um duplo sentido. Por um lado, a escalada no remocionismo dá lugar a práticas que vão priorizar a urbanização desses territórios, procurando levar melhorias urbanas ao próprio local de moradia. Por outro, há uma modificação na configuração da cultura política envolvendo as organizações associativas de moradores, em um contexto de abertura política do regime militar. A eleição de Leonel Brizola, em 1982, para o governo do estado, constituiu-se em um marco diferencial no tratamento das favelas no Rio de Janeiro. Como apontam Cardoso e Araujo (2007, p. 280), “na esfera da habitação, desenvolveram-se dois projetos-piloto de urbanização das favelas do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho [...] estabelecendo as bases de uma metodologia de intervenção que viria a ser aperfeiçoada nos anos seguintes”. O tratamento das favelas no governo de Brizola significou buscar garantias de manutenção do local de moradia dos favelados. Para isso foram adotadas medidas tais como a instalação de serviços urbanos e de provimento de vias de acesso, por exemplo. Já no final da década de 1980 foi instituído um programa para a utilização de mão-de-obra de mutirão para a concretização de serviços urbanos em algumas favelas. Desse modo é que são “criados diversos programas voltados para a urbanização das favelas, o que significava sepultar de vez as propostas remocionistas, passando-se a investir na sua consolidação” (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2002, p. 247). Com a abertura democrática dos anos 1980 há uma virada na vida associativa desses territórios. Como aponta Burgos (2006, p. 38), “a partir de 1979, refletindo a abertura do regime, ocorre uma retomada do dinamismo da vida associativa no país, e nesse momento as associações de moradores adquirem especial relevância”. Um caso emblemático, nesse sentido, é o surgimento de uma dissidência da FAFERJ (antiga FAFEG), propondo desvincular-se das posições de apoio ao remocionismo. Brum (2011, p. 245) coloca que “importante na contenção da política remocionista foi a reativação do movimento dos moradores de favelas, rearticulando-se antigas entidades e mesmo criando-se novas”. 156 Visualiza-se, então, como se entrelaça a atuação da Pastoral de Favelas, que posteriormente por meio de seu núcleo jurídico conformaria o Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião, com a renovação do associativismo nas favelas do Rio de Janeiro. Nesse processo é que é possível ler a trajetória da Pastoral, que iniciou sua atuação marcante no ano de 1979, com o apoio à luta contra a remoção no Vidigal e com a posterior criação do Serviço de Assistência Jurídica. Este se estruturava a partir de um serviço de “pronto-socorro” – o qual se pautava pela ajuda emergencial aos casos de tentativa de remoção – e outro “preventivo”, que promovia atividades formativas e de mobilização das comunidades onde atuava. Dessa maneira é que foi incentivada a formação de comissões jurídicas onde a Pastoral trabalhava com ações preventivas, sendo que “estas comissões eram compostas pelos favelados e funcionariam como embriões de organizações comunitárias” (BRUM, 2005, p. 12). Durante três anos a Pastoral organizou comissões jurídicas em trinta e três favelas. As experiências em torno da cooperativa habitacional de Nova Holanda também podem ser analisadas nesse contexto. Na Maré, já em 1979, organizou-se a Comissão de Defesa das Favelas da Maré (Codefam), como forma de se contrapor à execução do Projeto Rio, o qual se constituía em “uma iniciativa do governo federal que visava a erradicar as favelas que compunham o complexo da Maré e construir no local indústrias e parques habitacionais” (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2002, p. 246). A própria renovação da associação de moradores de Nova Holanda foi uma contraposição à tutela política da Fundação Leão XIII na vida associativa da favela. Assim é que se pode constatar, nesse período, o “(re)surgimento de um associativismo transformador” no seio das favelas do Rio de Janeiro, caracterizado pelo “caráter militante e transformador, oposto ao tipo de associativismo então vigente: atrelado ao Estado, às políticas clientelistas e que não buscava uma transformação efetiva da realidade do favelado” (BRUM, 2011, p. 69)6. Portanto, nesse período observa-se que o terreno onde transitou o embrião das iniciativas de produção social do habitat, com referência ao cooperativismo uruguaio 6 A renovação do associativismo das favelas nos anos 1980 foi tensionado pelo clientelismo que se instituiu com as políticas brizolistas. Pandolfi e Grynszpan (2002, p. 247) salientam que, a partir da eleição de Brizola, “as associações de moradores passaram a se constituir em um interlocutor freqüente”. Diversas associações se viram responsáveis pela execução de vários projetos de provimento de infraestrutura e serviços urbanos. Assim, “diferentemente dos anos 70, as associações de moradores se relacionavam diretamente com os órgãos governamentais, sem a intermediação dos parlamentares” (PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2002, p. 248). 157 de moradia, esteve atravessado pelas mutações no tratamento da questão da favela. Por um lado, reconfigurações no debate sobre a urbanização desses territórios, anteriormente atravessados pela proposta remocionista. Por outro, uma cultura política que se reinventava em meio à tutela e ao intervencionismo estatal. 4.1.3 Economia política da urbanização do Rio de Janeiro Ao se ter em consideração o contexto urbano em que emergiram as experiências de autogestão habitacional no Rio de Janeiro, constata-se a precariedade das condições de urbanidade em torno da qual os projetos autogestionários se constituíram. Como mostram os dados do Cadastro Geral das Favelas da Cidade do Rio de Janeiro, elaborado no início dos anos 1980 pelo governo Brizola, de 364 favelas cadastradas apenas 1% contava com rede oficial de esgoto sanitário completa, somente 6% possuía rede de água e o serviço de coleta de lixo atendia unicamente 17% delas(PANDOLFI; GRYNSZPAN, 2002, p. 248). A eclosão das iniciativas embrionárias a partir desse contexto urbano das favelas – como a experiência cooperativa em Nova Holanda, a atuação da Pastoral das Favelas e os projetos piloto do então Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião, como analisado em Shangri-lá, por exemplo – apontam para a precariedade da “base urbana prévia” sobre a qual se erigiu o projeto de produção social do habitat no Rio de Janeiro. Tomando em consideração a origem do cooperativismo de moradia em Montevidéu, as condições prévias de urbanidade eram distintas, indicando as especificidades das questões enfrentadas pela autogestão habitacional no Rio de Janeiro. A crise imobiliária, que atravessava o Uruguai no momento de elaboração da Lei Nacional de Moradia, não significou a presença de condições precárias de urbanização, como ilustram os dados para o contexto das favelas no Rio de Janeiro. A argumentação do trabalho de Terra (1969), sobre a crise imobiliária daquele país nas décadas de 1950 e 1960, assinala como o conjunto de capitais que promoveram a produção habitacional até então, e que se desmobilizaram com o 158 colapso econômico, conseguiram constituir um importante legado social para a sociedade uruguaia. Segundo o autor, foi “todo ese stock de viviendas existente hacia 1960, que ha permitido a Uruguay subsistir sin la miseria habitacional de otras naciones latinoamericanas a lo largo de esta lenta degradación del período de crisis” (TERRA, 1969, p. 7). A crise habitacional, à qual o cooperativismo de moradia veio a se constituir enquanto uma alternativa para as classes populares em Montevidéu, referia-se a um horizonte de desmanche de um parque habitacional que permitiu, até então, soluções minimamente dignas de habitat à essas classes. Horizonte um tanto distinto em relação ao Rio de Janeiro dos anos 1980 e 1990. Nesse sentido, Nahoum (2008) nota que, na capital uruguaia, o processo de autoconstrução urbana, diferentemente da maioria das grandes cidades da América Latina – como pode-se inferir sobre o Rio de Janeiro –, não ocorreu de forma explosiva, mas gradual. Em suas palavras, essa característica se configurou de tal modo dada “la prosperidad económica relativa [...], el reducido crecimiento demográfico, y una legislación que abrió canales de crédito e instrumentó [...] la construcción de la casa propia por parte de las capas medias y de [...] los asalariados urbanos” (NAHOUM, 2008, p. 26). Exemplar nesse sentido é o fato de que o parque de moradias se quadruplica entre 1920 e 1960, enquanto que a população só se duplica no mesmo período. No entanto, como no Rio de Janeiro, o Uruguai também contava com uma longa tradição de autoconstrução da habitação para as camadas populares. Assim, deve-se atentar que a possibilidade de aposta na ajuda mútua, enquanto forma de produção habitacional, carrega muito de sua aceitação pela tradição de autoconstrução dos uruguaios. Como comenta Nahoum (2008, p. 26), o Uruguai é um país de autoconstrutores, “de gente dispuesta a construir su vivienda con sus propias manos, contando apenas con el auxilio de algún familiar o amigo y del apoyo que podría darle un albañil o constructor en las etapas más difíciles”. González (2015) também explica – em depoimento ao autor – que a autoconstrução urbana dos trabalhadores assenta raiz na tradição da “gauchada”, que por sua vez se inspira em práticas rurais. Segundo González (2015), “cuando un obrero había juntado algo de plata y empezaba a hacer su casa por autoconstrucción, [...] llamaba compañeros de trabajo de él para que domingo vinieran a darle una mana en el trabajo. [...] Eso se le llama en nuestro país ‘la gauchada’, que viene de la tradición de gaucho, nuestros campesinos”. 159 Portanto, a ajuda mútua, no sistema cooperativo uruguaio de produção de moradias, surge, de certa forma, como maneira de sistematizar a autoconstrução, a “gauchada”, que era parte da tradição construtiva da classe operária, herdada dos trabalhadores rurais. Nesse aspecto é que possivelmente se possa compreender como a referência ao sistema uruguaio das cooperativas de moradia por ajuda mútua desenvolveu-se com certa fertilidade no contexto brasileiro. Ao compartilhar a mesma tradição autoconstrutiva – no Rio de Janeiro expressa na formação urbana das favelas –, vislumbrou-se uma interessante oportunidade para sistematizar essa prática em outros patamares. Porém, a magnitude da questão da autoconstrução, e da produção de urbano correlata, configurava-se de forma distinta em relação ao contexto de referência. Assim é que uma base urbana precária não se colocava enquanto em uma questão candente para o cooperativismo de moradia em sua constituição originária. Segundo Couriel e Menéndez (2014), as favelas em Montevidéu – conhecidas como “cantegrilles” – só vão ser uma questão urbana candente a partir da década de 1990. Pois “hasta el impacto del Nuevo Modelo Económico en los años 90, no se percibe en Montevideo la ‘periferización’ masiva de los sectores pobres y excluidos” (COURIEL; MENÉNDEZ, 2014, p. 33). Como bem exemplifica a fala de um cooperativista da época fundacional do sistema, sobre o terreno onde foi construída sua cooperativa nos anos 1970, “ese terreno era el terreno de dios, nadie se metía acá. O que te sacaban de la oreja para fuera. No es como ahora, ahora hay barrios que hacen asentamientos” (Sócio A, Mesa 1, AM1)A. Assim é possível entender como a “questão da habitação”7 não se apresentava de forma eloquente na capital uruguaia daquele período. Trata-se, portanto, de um contexto distinto em relação ao Rio de Janeiro da década de 1980. Como resgata Ribeiro (2015, p. 22), a “década perdida” dos anos 1980 “produziu efeitos desproporcionais no Rio de Janeiro, manifestados na forma de uma crise social [...] e urbano-metropolitana – crise habitacional, mobilidade urbana, 7 Como afirma Magri (2010, p. 138), “la vivienda social no fue un estigma entre 1921 y 1960, sino que respondió a arreglos en los cuales primaba la pertenencia política —sindicatos y gremios— o social — cooperativas de ayuda mutua—, dando cuenta de un estado de demanda organizada con capacidad de generar arreglos entre Estado, mercado y sociedad corporativizada”. Portanto, antes de se tornar uma questão eloquente, o “risco social” da questão da habitação, na sociedade uruguaia de meados do século XX, já se fazia resolver pela arquitetura de bem-estar social complexamente forjada em período anterior. 160 crescimento das favelas, entre outros”. Nesse sentido, pode-se considerar que a “questão da habitação” se conformava em uma questão mais ampla em que se constituía a “questão urbana” na metrópole do Rio de Janeiro. Porém, como o mesmo autor remarca, foi nessa década perdida que houve um intenso movimento de especulação imobiliária na metrópole do Rio de Janeiro, com a criação de uma nova frente de expansão urbana, através da incorporação da área da Barra da Tijuca. Esse acentuado predomínio da esfera imobiliária no circuito da acumulação urbana do Rio de Janeiro aponta para a especificidade da economia política da urbanização dessa região. Desse modo é que, na economia política da metrópole carioca, predomina “o poder dos interesses configurados historicamente em torno da acumulação urbana, na qual têm fundamental peso político os interesses das frações do capital imobiliário, empreiteiro e concessionário de serviços coletivos” (RIBEIRO, 2015, p. 25). Pode-se lançar luz, desde tal perspectiva, sobre a especificidade de questões postas ao projeto de produção social do habitat nas experiências de autogestão habitacional no Rio de Janeiro. Por um lado, as tensões lançadas por uma base urbana prévia constituída a partir da precariedade habitacional e de infraestrutura consolidadas exemplarmenteno ambiente urbano da favela. Por outro, a especificidade do circuito de acumulação urbana com a prevalência do capital imobiliário, configurando um terreno onde a questão do acesso à terra se apresenta exemplarmente como um dilema vivenciado na concretização dos projetos habitacionais – como se analisou no caso do grupo Esperança, por exemplo. 4.1.4 Outro contraponto: cooperativismo e associativismo A mudança na cultura política que atravessa as favelas no Rio de Janeiro, entre o final dos anos 1970 e toda a década de 1980, está marcada pela renovação das práticas do associativismo popular. As associações de moradores desses territórios, como visto, refundam suas práticas em contraposição à intervenção estatal remocionista que ocorria desde o período pré-1964 e que se intensificou durante a 161 ditadura militar. Portanto, a partir de meados da década de 1970, quando há uma quebra dessa política remocionista, verifica-se um aumento na constituição de associações de moradores. Segundo Brum (2005, p. 10), essa nova configuração “fez com que este período (1976-1980) seja o que tenha sido criado o maior número de associações de moradores até então, superando inclusive a época de José Arthur Rios à frente do Serfha”. Ao analisar o processo de organização da Federação de Associações de Moradores do Rio de Janeiro (FAMERJ), nessa mesma época, Grazia (1993) aponta para o fato de que a figura jurídica da “associação” passou a se constituir em uma das principais formas de atuação do campo dos movimentos populares no Rio de Janeiro. De acordo com a autora, a unificação política, obtida pela FAMERJ a partir de 1982 e institucionalizada em seu Primeiro Congresso, “promove uma ampla legalização das comissões de bairros que ainda eram numerosas na Zona Oeste e na Baixada Fluminense, transformando-as em associações de moradores” (GRAZIA, 1993, p. 104). A visão da diretoria da FAMERJ, àquela época, era de que a adesão das associações não poderia ser só política, mas necessitava de uma consolidação ao nível jurídico, como forma de angariar legitimidade em suas lutas políticas. Desse modo, segundo a análise da autora, “apesar das divergências no tocante à legalização dos movimentos nos bairros, o formato AMA torna-se uma realidade no seio da esquerda do Rio de Janeiro, reconhecido pela maioria dos movimentos” (GRAZIA, 1993, p. 104). Com a abertura democrática ao final do regime militar, as associações de moradores configuraram-se no principal formato organizacional de atuação política dos movimentos sociais no Rio de Janeiro. Como visto no caso das primeiras iniciativas embrionárias de autogestão habitacional na cidade, foi no processo de mudança na diretoria da Associação de Moradores de Nova Holanda que emergiu a experiência da cooperativa de construção, a COOPMAHN. Contrapondo-se às práticas intervencionistas na organização popular que se consubstanciavam na atuação da Fundação Leão XIII, a associação local é reorganizada politicamente por seus moradores e conformam-se iniciativas que buscam por autonomia na luta por melhoria das condições urbanas locais. 162 Foi, então, a partir do terreno das práticas políticas das associações de moradores que se configurou a emergência de ações inovadoras no âmbito da produção social do habitat no Rio de Janeiro. Práticas que carregam uma especificidade territorial quanto à conformação de sua cultura política. Como aponta um estudo sobre o associativismo no Rio de Janeiro do começo da década de 1990 (RIBEIRO; SANTOS JÚNIOR, 1996), o tipo de participação sociopolítica apresentava traços bem distintivos entre as regiões da metrópole. Nas áreas mais centrais – Zona Sul e Norte da cidade do Rio de Janeiro e Niterói –, segundo o estudo, predominavam “elevados índices de adesão dos moradores ao padrão corporativo (sindicato, associação profissional e partido)” (RIBEIRO; SANTOS JÚNIOR, 1996, p. 37). Por outro lado, “na periferia metropolitana prevalece o padrão comunitário-popular (entidades filantrópicas e religiosas e associação de moradores)” (RIBEIRO; SANTOS JÚNIOR, 1996, p. 37). Portanto, as novas práticas políticas das associações de moradores se consubstanciavam nos territórios populares da região metropolitana do Rio de Janeiro. E foi no caldo da cultura política dessas renovadas associações da década de 1990 que emergiram as experiências de autogestão habitacional na metrópole carioca. No Uruguai, diferentemente do Rio de Janeiro, o campo no qual circularam as primeiras experiências de produção social do habitat estavam mais próximas da tradição de cooperativismo no país. Dentro do quadro normativo e da organização cooperativa é que as experiências piloto foram forjadas. Portanto, no Rio de Janeiro constituía-se um outro caldo de cultura política pelo qual transitaram as referências postas no cooperativismo de moradia uruguaio. Assim, vale especificar algumas distinções entre os campos que deram forma às duas experiências de produção social do habitat, ou seja, entre aquele associativismo no Rio de Janeiro da abertura democrática, e aquele da tradição cooperativa que se constituía no Uruguai da década de 1960. *** 163 A origem formal das primeiras cooperativas no Uruguai data da década de quarenta do século XX. Porém, as raízes dessa origem remontam ao final do século XIX, a partir da imigração europeia que trouxe trabalhadores que estavam inseridos no movimento sindical e que participavam das primeiras iniciativas de cooperativas de produção e trabalho no velho continente. Empreendimentos embrionários de trabalho associado foram crescendo paralelos ao proto-sindicalismo que se conformava nesse período8 (BERTULLO; ISOLA; CASTRO; SILVEIRA, 2002). A partir de 1920 é que surgiram com maior amplitude as cooperativas no Uruguai, encabeçadas pelas de consumo (como são os casos das organizações dos funcionários ferroviários e dos funcionários das Usinas Elétricas do Estado – UTE). E foi na década de 1940 que se começou a legislar especificamente sobre o setor cooperativo. No ano de 1941 criou-se a legislação para as Cooperativas Agropecuárias e em 1946 para as cooperativas de consumo. Somente duas décadas depois, em 1966, promulgou-se a lei para as cooperativas de produção (trabalho). Em 1968, como visto, aprovou-se a legislação para as cooperativas de moradia e em 1971 formou-se o quadro legal para as cooperativas de poupança e crédito. Experiências de cooperativas de trabalho se desenvolveram com maior impulso a partir da década de 1950. Estas apresentam uma tradição histórica de pouco visibilidade no Uruguai contemporâneo9, segundo Martí (2015), mas foi na década de 1960 que o movimento das cooperativas de trabalho teve seu maior nível de atividade política, quando “se desarrollaron asambleas, encuentros y jornadas, buscando apoyar a las cooperativas, para favorecer la superación de sus limitaciones y dificultades” (MARTÍ, 2015, p. 60). Fato marcante foi a fundação, em 1962, da 8 Exemplos dessas primeiras cooperativas de trabalho são a Sociedad Cooperativa de Mucamos y Cocineros, de 1877, a Sociedad Tipográfica Cooperativa La Capital, de 1878, a Cooperativa de Peluqueros y Barberos El Arco Iris, de 1880, a Sociedad Cooperativa de Construcción de Casas, de 1883, a Sociedad Humanitaria, Agrícola, Pastoril y Obrera de Paysandú, de 1884, a Sociedad Cooperativa de Zapateros e a Cooperativa de Cartoneros, ambas de 1901 (BERTULLO; ISOLA; CASTRO; SILVEIRA, 2002, p. 3). 9 Pesquisa recente de Martí, Thul e Cancela (2014) procurou recuperar sua trajetória histórica, ao analisar diversos documentos sobre a presença das cooperativas de trabalho no país, as quais quase sempre estiveram vinculadas à recuperação de empresas falidas. Foram identificadas três fases distintas na formação de cooperativas de trabalho para recuperaçãode empresas. A primeira se inicia na década de 1950 e vai até o final dos anos 1970 e se vinculava à crise do modelo de industrialização por substituição de importações. A segunda etapa vai do começo dos anos 1980 até o início da década de 1990 e está relacionada à crise da dívida externa e à posterior política de abertura econômica. A última se dá a partir do fim dos anos 1990, marcada pela crise do modelo neoliberal. 164 Federación de Cooperativas de Producción del Uruguay (FCPU), fortemente atuante até os dias atuais. Ao se analisar o movimento cooperativo uruguaio em sua totalidade, algumas características fundamentais marcam sua constituição e, de alguma forma, permitem compreender algumas conexões com o campo da produção cooperativa da moradia (BERTULLO; ISOLA; CASTRO; SILVEIRA, 2002). A primeira é a de que o movimento cooperativo se vincula, em sua origem, evolução e desenvolvimento com movimentos sociais, principalmente sindicatos e diversas organizações gremiais. Nesse sentido, Terra (1988) aponta para a importância do “motor extracooperativo” na trajetória do cooperativismo uruguaio. Em muitos casos de formação de cooperativas, ocorre que “el motor [...] ha sido una organización no lucrativa, pero no cooperativa ella misma, de alta competencia técnica y, normalmente, con fuerte carga ideológica, social o al menos estrictamente cooperativa” (TERRA, 1988, p. 159). O caso mais destacado é o Centro Cooperativista Uruguayo, o qual, além do cooperativismo de moradia, impulsou várias iniciativas nas áreas de trabalho, crédito e agropecuária. Outro importante traço do movimento cooperativista naquele país é o papel desempenhado pelas organizações de segundo grau. As federações de cooperativas exercem uma importante função ao promover o surgimento de cooperativas filiais. Como indica novamente Terra (1988, p. 169), “son las cooperativas de segundo grado o las federaciones las que asumen el papel promotor y de asistencia, tarea que han cumplido o están cumpliendo, en distinta medida, gran parte de los organismos de ese tipo”. Nesse sentido, no caso das cooperativas de moradia, as matrizes cooperativas e as federações tiveram importante papel de apoio à constituição de unidades cooperativas logo nos anos iniciais de aprovação da Lei Nacional de Moradia. Uma característica fundamental do movimento cooperativo uruguaio é sua forma específica de relação com o estado. A constituição histórica das experiências de cooperativismo está imbricada com as ações desenvolvidas pelo aparato estatal. Como aponta o trabalho de Bertullo, Isola, Castro e Silveira (2002), “el surgimiento, expansión y crecimiento [del cooperativismo], ha estado ligado a la acción del Estado que por medio de leyes, normas, o diversas disposiciones ha manifestado su apoyo o no a este desarrollo”. 165 Trata-se, porém, de uma relação que carrega certa especificidade. Martí (2015) salienta que esta peculiaridade se encontra no caráter de autonomia do movimento cooperativo em sua relação com o estado. Assim, de acordo com o autor, quanto ao “movimiento cooperativo uruguayo, a diferencia de otros de la región, [...] su desarrollo ha sido facilitado u obstaculizado por el accionar del Estado pero conservando siempre su autonomía” (MARTÍ, 2015, p. 12). Portanto, uma relação histórica entre cooperativismo e estado nem sempre constante, mas que mantém traços característicos de autonomia e independência10. A partir dessa perspectiva é que Terra (1988) elenca algumas considerações sobre o cooperativismo uruguaio a partir de sua forma específica de relação com o aparato estatal. Primeiro, a necessidade de uma fonte de financiamento com recursos financeiros e modalidades adequados, dada a dificuldade do sistema cooperativo em captar capital. Em segundo, as profundas transformações do movimento cooperativo de acordo com as políticas públicas e a vontade política de se canalizar os processos econômicos e sociais através delas. Portanto, constata-se que existia um intenso acúmulo de experiências e de legislação no campo do cooperativismo no Uruguai até os anos 1960, quando tem início as experiências piloto levadas à cabo pelo Centro Cooperativista Uruguayo (CCU). Institucionalizadas a partir da figura jurídica de cooperativas de consumo, foi com a Lei Nacional de Moradia, promulgada no final de 1968, que se constituiu o arcabouço legal para a conformação do cooperativismo de moradia. *** 10 A atuação do estado junto ao movimento cooperativista pode ser visualizada em um caso um tanto emblemático na história do Uruguai, qual seja, a criação da Cooperativa Nacional de Productores de Leche (CONAPROLE), na década de 1930. Trata-se de uma cooperativa criada pelo estado para cumprir uma atividade considerada estratégica e de interesse nacional, a produção e distribuição de leite. De acordo com Nahum (2014, p. 160) "buscando asegurar la producción, higiene y amplia distribución de un alimento de primera necesidad, y estimular a la vez a pequeños productores rurales, el Poder ejecutivo presentó en 1935 un proyecto de ley que instituía la empresa. Con capital proporcionado por el Estado se la instalaba, pero su dirección quedaba en manos de los productores remitentes de leche a usina, como cooperativistas”. Assim, a constituição da cooperativa foi estatal, mas se delegou à gestão cooperativa seu funcionamento. CONAPROLE funciona até os dias de hoje, sendo a maior produtora e distribuidora de leite do país. 166 Até o Código Civil que entrou em vigor no ano de 2003, não existia, no Brasil, uma definição jurídica clara para a figura da “associação”, como aquelas de moradores de favelas. Uma análise jurídica publicada em 1999, sobre cooperativas habitacionais e associações, tendo como autoria uma Promotora de Justiça da área de defesa do consumidor, indica que o Código Civil então vigente, de 1916, “não conceitua Associação, e nem a distingue de sociedade civil (art.16, I, do Código Civil [de 1916]). Na Doutrina, não é pacífico o seu conceito” (CASTELO, 1999, p. 5)11. O novo Código Civil que passou a vigorar a partir de 2003 (Lei 10.406/2002), porém, definiu as cooperativas enquanto “sociedades”, um tipo de pessoa jurídica de direito privado distinto em relação às associações. De acordo com o artigo 981, as sociedades são formadas por “pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”, sendo que a cooperativa é um tipo de “sociedade simples”12. Já as associações, segundo o artigo 53, constituem-se “pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos”. A partir do comentário de um manual jurídico sobre o Código Civil de 2003, as associações, “da mesma forma que as sociedades, constituem um agrupamento de pessoas, com uma finalidade comum. No entanto, as associações perseguem a defesa de determinados interesses, sem ter o lucro como objetivo” (INSTITUTO PRO BONO, 2005, p. 8). Como se vê, a figura jurídica da associação não se centraria no objetivo de prestar uma atividade econômica aos seus membros, como é o caso das cooperativas13. Ainda assim, às associações não está vedada a realização de atividades econômicas, como ressalta o mesmo manual, sendo que “a associação 11 Assim é que, ao abordar a diferença entre Associações e Cooperativas Habitacionais, a Promotora, com base no inciso XVIII do artigo 5º da Constituição Federal, define que as Cooperativas Habitacionais seriam uma espécie de Associação. Em suas palavras, “a Cooperativa Habitacional é uma espécie do gênero Cooperativa. Esta última, por sua vez, consubstancia-se em uma espécie do gênero Associação de pessoas” (CASTELO, 1999, p. 5). Portanto, a legislação brasileira, até 2003, não delimitava grandes distinçõesentre uma Cooperativa Habitacional e uma Associação que tivesse fins habitacionais, por exemplo. 12 Conforme comentário de manual do Instituto Pro Bono (2005, p. 8), “as sociedades constituem um agrupamento de pessoas que visam a um fim econômico ou lucrativo, não se valendo de atividade mercantil, mas de prestação de serviços ou do exercício de profissão. Os resultados são partilhados entre as pessoas que fazem parte da sociedade”. 13 De acordo com o Art. 1.093 do Código Civil de 2002, “a sociedade cooperativa reger-se-á pelo disposto no presente Capítulo, ressalvada a legislação especial”. Assim, segundo o artigo 3º da Lei nº 5.764 de 1971, que define a Política Nacional de Cooperativismo, “celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro”. 167 precisa prever expressamente em seu estatuto a possibilidade de realizar estas atividades, bem como reverter integralmente o produto gerado na consecução do objetivo social da associação” (INSTITUTO PRO BONO, 2005, p. 9). Desse modo, as associações de caráter habitacional podem realizar atividades econômicas como a produção de moradias, desde que não objetivando o lucro. Como se abordou anteriormente, antes de 2003 havia um limbo na definição jurídica das associações. Também como visto na seção 3, o marco jurídico de regulamentação das cooperativas habitacionais estava circunscrito à lei federal formulada em 1971 e à atuação do Banco Nacional de Habitação. Se a legislação brasileira dos anos 1980 não permitia marcar distinções claras entre associações e cooperativas, adota-se aqui algumas características do cooperativismo uruguaio como referência para traçar algumas reflexões sobre elementos distintivos do associativismo, enquanto campo de práticas da autogestão habitacional no Rio de Janeiro14. Primeiro, deve-se ter em consideração que o surgimento das associações de moradores carrega a predominância de um caráter territorial, que se distingui do fim eminentemente econômico de uma cooperativa. A constituição de uma associação de moradores se realiza comumente a partir de uma organização que reivindica a representação de uma certa base territorial. É a partir de então que se propõe a prestar serviços para essa territorialidade. Tem-se, assim, um processo distinto em relação à cooperativa, a qual tem uma motivação econômica, de satisfazer a necessidade seus sócios15. Portanto, a associação de moradores, quando desenvolve atividades econômicas, presta um serviço para um grupo organizado a partir de seu território de 14 Uma questão de fundo, a ser objeto de investigação mais sistemática, refere-se à questão sobre a ausência de modificações na legislação sobre o cooperativismo habitacional no Brasil, após o fim do BNH e com o desenvolvimento das experiências de autogestão habitacional inspiradas no Uruguai. Bonduki (1992) assim comenta a questão em São Paulo: “a proposta inicial – criar uma cooperativa de habitação, autônoma e autogerida – logo se verificou inviável face à legislação brasileira da época. Mesmo assim resolveram ir em frente. A ideia era desenvolver um projeto que tivesse grande repercussão e, com isso, gerar condições para propor alterações da legislação, de modo a garantir a formação de cooperativas habitacionais autogeridas” (BONDUKI, 1992, p. 36). Porém, as aspirações de alterações na legislação não se concretizaram. 15 Não se deve confundir tal afirmação com o princípio constituidor das cooperativas de moradia, que também pode ser territorial. Mas, após formada a cooperativa, esta tem um fim eminentemente econômico. 168 representação. Mesmo o modelo da COOPMAHN, oriundo da iniciativa de uma associação de moradores, é diferente do modelo do cooperativismo habitacional no Uruguai. Inicialmente enquanto uma cooperativa de consumo e, posteriormente, como uma cooperativa de trabalho, promovia serviços na área habitacional para uma determinada territorialidade. Dessa maneira, os sócios da cooperativa não eram os beneficiários de seus serviços habitacionais, como ocorre no cooperativismo de moradia uruguaio. Um segundo aspecto a destacar refere-se à cultura política que se constitui a partir das especificidades de formação das associações de moradores. Se não necessariamente a associação deverá prestar serviços para seus afiliados, as associações de moradores muitas vezes desenvolvem práticas que consubstanciam uma cultura política de caráter reivindicativo16. Como aponta estudo de Ribeiro e Santos Júnior (1996, p. 24) sobre o associativismo na metrópole do Rio de Janeiro, “no ano de 1988, nas AMs [Associações de Moradores] [...] as formas de luta eram bastante diversificadas, compreendendo manifestações de rua (38%), ofícios e abaixo-assinados (24%), encontros com órgãos de Governo (20%), reuniões e debates (18%)”. O ponto a salientar nessas formas de luta é o caráter reivindicativo das práticas políticas em contraposição àquelas de prestação de serviços, características do cooperativismo. Este é um ponto cuja análise merece ser matizada. Não se deve ter em consideração que as associações de moradores tenham um caráter unicamente reivindicativo. No entanto, enquanto organizações reivindicativas, também podem prestar serviços ou exercer atividades econômicas. Como se constata em uma prática que se organizou no campo da urbanização de favelas durante o governo Brizola, quando diversas associações passaram a receber recursos para o provimento de serviços urbanos. Como coloca Burgos (2006), em diversas localidades foram firmados convênios entre empresas estatais e associações de moradores, sendo que “enquanto aquelas forneciam os projetos e davam assistência técnica, essas recebiam verbas para contratação da mão-de-obra e ficavam, ainda, com uma taxa de 16 Deve-se ter em consideração que a argumentação em questão se atém às estratégias de luta política desenvolvidas pelas associações de moradores, distanciando-se das análises que implicam a constituição do associativismo às práticas reivindicativas, como expresso em um debate clássico da década de 1980 que pode ser acompanhado nos textos de Evers (1984) e Durham (1984). 169 administração de 5% que deveria ser aplicada em obras que beneficiassem a comunidade” (BURGOS, 2006, p. 43) Em contraponto, uma unidade cooperativa, no Uruguai, não é constituída para reivindicar o acesso à moradia para um bairro ou uma região da cidade. Uma cooperativa surge enquanto organização produtiva, a qual irá servir à produção de uma habitação para seus sócios. O caráter reivindicativo, porém, é desempenhado pelas organizações de segundo grau. É a federação de cooperativas que levará à frente as ações reivindicativas das unidades afiliadas. Por isso a configuração de movimento social das federações e seu impacto na cultura política da sociedade civil uruguaia. O movimento cooperativista de moradia, no Uruguai, também conseguiu manter estratégias de manutenção financeira (fundos legais das cooperativas e constituição das federações) que permitem a sustentação perene de suas atividades. As federações se mantêm com a contribuição monetária das unidades afiliadas, sendo que a propriedade coletiva permitiu que a continuidade na constituição das cooperativas promovesse um suporte perene às atividades políticas das federações. As cooperativas de moradia, antes de acessar um empréstimo estatal, dependem da militância de seus sócios para completar o circuito de acesso ao crédito. Porém, ao mesmo tempo, tem garantida a atuação reivindicativa de sua federação através do aporte de todas as unidades, de uso e gozo, que não se desligam do sistema mesmo após a finalização da etapa de obras. Assim, um últimoponto a ser destacado é que, diferentemente das cooperativas, que constituem, obrigatoriamente, fundos de manutenção previstos em lei, e das federações que se mantêm financeiramente com as contribuições das unidades cooperativas afiliadas, as associações de moradores e as federações de associações não tem estabelecido mecanismos estáveis que garantam o suporte material de suas atividades. Como aponta Grazia (1993), para o caso da FAMERJ nos anos 1980, a federação conseguiu subsistir com os serviços prestados na luta dos mutuários do Banco Nacional de Habitação contra os reajustes das prestações. Durante um período, os recursos permitiram comprar “uma sede própria e montar uma infraestrutura que dava suporte ao conjunto das atividades desenvolvidas pela Federação” (GRAZIA, 1993, p. 113). Mas esse mecanismo não se tornou perene, 170 cessando após a diminuição dos processos judiciais, o que, segundo a autora “fez com que a Federação não evoluísse na construção de uma política de captação de recursos adequada às AMAs” (GRAZIA, 1993, p. 113)17. 4.2 Matriz sindical e autogestão habitacional Como apontam inúmeros trabalhos sobre a dinâmica industrial do Rio de Janeiro, a partir da década de 1950 houve uma constante perda de seu dinamismo para a região metropolitana de São Paulo18. Desde tal perspectiva, segundo Ribeiro (2015, p. 21) observa-se, na metrópole do Rio de Janeiro, “os efeitos de um intenso processo de uma urbanização dissociada da constituição de uma base industrial correspondente, ou seja, uma base com capacidade de gerar um mercado de trabalho capaz de sustentar o grau de metropolização alcançado”. Os dados elencados por Mattos (1998) mostram que, nos anos 1980 – ou seja, no período inicial das experiências de autogestão habitacional no Rio de Janeiro – a precariedade era a marca do mercado de trabalho da região. Entre 1982 e 1984, a proporção da população economicamente ativa desocupada, ocupada que não teve rendimento e ocupada recebendo menos de um salário mínimo, oscilou entre 21% e 32%, a mais alta entre as capitais do sudeste. A proporção de população ocupada e sem carteira de trabalho assinada esteve sempre em torno dos 22% a 25% entre os anos de 1982 e 1988, também mais alta do que nas demais capitais do sudeste. Esses dados permitem ao autor afirmar que “a precariedade é um dado estrutural do mercado de trabalho carioca, cuja explicação não depende apenas de um período recessivo específico” (MATTOS, 1998, p. 109). 17 Nesse sentido, o trabalho de campo permitiu presenciar alguns relatos sobre a dificuldade de manutenção das atividades da União por Moradia Popular do Rio de Janeiro, a qual por muito tempo recebeu apoio da Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião. Porém, com a crise da entidade a partir da quebra de recursos de cooperação internacional, esta passava por dificuldades para exercer as atividades de militância. 18 As análises sobre o dinamismo industrial do Rio de Janeiro envolvem uma questão com muitas peculiaridades e contradições, não tão simples de se compreender, como aponta o trabalho de revisão bibliográfica de Gomes e Ferreira (1988). 171 No entanto, se o dinamismo econômico do Rio de Janeiro não possibilitou criar as condições para a constituição de uma classe operária numerosa, como no Uruguai da década de 1960, não se pode constatar a mesma condição quanto às organizações sindicais dos trabalhadores. Seguindo o trabalho de Mattos (1998), pode-se inferir como, na metrópole carioca, constituiu-se um conjunto de práticas sindicais consistentes no período que vai de meados do século XX até a abertura democrática da década de 198019. Como aponta o texto de apresentação da coletânea de Abreu e Pessanha (1995), o Rio de Janeiro consolidou um processo de industrialização que se desenvolveu vinculado ao comércio (principalmente importador) e ao capital financeiro, diferentemente da região paulista associada ao complexo exportador cafeeiro. Além disso, enquanto capital da República até meados do século XX, angariou-se traços peculiares a esse processo de industrialização dada a proximidade com órgãos burocráticos do governo federal. Desse modo, segundo os autores, formou-se o “trabalhismo à carioca”, constituído por “uma classe trabalhadora altamente reivindicativa e com amplos setores capazes de explorar positivamente os espaços existentes de negociação com os demais setores da sociedade” (ABREU; PESSANHA, 1995, p. 8). O trabalho de Mattos (1998) ilumina um denso conjunto de práticas sindicais que se constituíam na metrópole do Rio de Janeiro no período pré-ditadura. Dados de 1960, detalhados pelo autor, mostram que o percentual de sindicalizados em relação à população economicamente ativa (PEA) em atividades urbanas, era de 14,45% em São Paulo, enquanto que, no estado da Guanabara, era de 27,99%. Eram índices baixos se comparados com os valores de países centrais, mas, considerando-se a perda de dinamismo industrial da região fluminense, mostra-se surpreendente que o então estado da Guanabara destacava-se entre um dos mais altos em relação às 19 Não são muitos os estudos sobre o sindicalismo no Rio de Janeiro, como indica o comentário de Abreu e Pessanha (1995, p. 7) ao afirmar que “desde os estudos mais clássicos sobre sindicalismo até os mais recentes sobre condições e processo de trabalho, a produção científica tem sido significativa e relevante. Existe, no entanto, uma concentração marcada desses estudos na análise do caso paulista”. Além dessa coletânea de Abreu e Pessanha (1995) e do trabalho de Mattos (1998), também deve-se ter como referência de estudos, sobre o sindicalismo no Rio de Janeiro, a pesquisa do último autor sobre a relação entre escravismo e formação da classe trabalhadora carioca (MATTOS, 2008), a coletânea de Lobo (1992) abordando as condições de vida operária entre 1930 e 1970, a coletânea de Ramalho e Santana (2001) sobre a trajetória dos trabalhadores metalúrgicos e a dissertação de Ladosky (1995) acerca da formação da CUT e do novo sindicalismo no Rio de Janeiro. 172 demais regiões do país. Havia, ainda, percentuais de sindicalização que superavam em muito a média, como no caso dos bancários, com um índice de aproximadamente 75% às vésperas do golpe militar (25.929 sócios em aproximadamente 35 mil bancários), dos ferroviários da Leopoldina, que chegava a 85% (17 mil sindicalizados para 20 mil trabalhadores na base) e dos metalúrgicos, onde o nível atingia metade da categoria em 1961 (MATTOS, 1998, p. 123). Desse modo, a partir de meados da década de 1950 havia um conjunto de práticas sindicais que se consubstanciaram na metrópole do Rio de Janeiro. Alguns sindicatos tornaram-se referência para o sindicalismo na região, como era o caso dos metalúrgicos e dos bancários. Estes constituíram entidades bastante poderosas, com fortes organizações de base que contavam com o controle de recursos financeiros de grande porte. Desse modo, “embora fossem exceções entre um domínio de pequenas e médias entidades, os sindicatos de bancários e metalúrgicos constituíam-se em referência e suporte para todo o sindicalismo carioca, inclusive pela estrutura material de que dispunham” (MATTOS, 1998, p. 129). Com a ditadura militar a partir de 1964, no entanto, a repressão às organizações sindicais foi brutal. No Rio de Janeiro contabilizaram-se 433 intervenções logo após o golpe, com dirigentes sindicais inclusos nas principais listas de cassações e de perseguição política (MATTOS, 1998, p. 133). Além da repressão, a ditadura colocou diversos interventores – muitos dos quais sindicalistas – em inúmeras entidades. Mas não só pelo viés repressivo, a ditadura também passou a atuar junto aos sindicatos por meio da concessão de apoio aos serviços assistenciais queeram prestados pelos sindicatos. A intervenção da ditadura passava, também, “pela revalorização do sindicato como órgão auxiliar do Estado junto aos trabalhadores. [...] De concreto, os sindicatos eram revalorizados como serviços assistenciais”. (MATTOS, 1998, p. 141). Tal direcionamento teve como efeito correlato o crescimento da máquina sindical, alimentada pelas verbas assistencialistas do governo e pelo imposto sindical compulsório. Como exemplifica Mattos (1998, p. 143), um sindicato pequeno, como o dos Ferroviários da Central nos anos 1960, já na década seguinte possuía sede própria, colônia de férias, vários veículos, serviços médios, odontológicos e jurídicos, além de representações espalhadas por uma extensa base territorial. 173 Porém, já no final da década de 1970 a intervenção sindical da ditadura deu sinais de exaustão, com a chegada de diretorias oposicionistas em grandes entidades, como a dos metalúrgicos e a dos bancários. Na virada dessa década, as organizações sindicais do Rio de Janeiro acompanham o paulatino crescimento de uma nova fase do sindicalismo brasileiro. Novamente segundo Mattos (1998, p. 145), “embaladas pelo ressurgimento dos sindicatos no cenário político nacional, lideranças que se identificavam como oposições às diretorias herdeiras dos interventores começam a ganhar espaço nas principais entidades sindicais cariocas”. Renovações de diretoriais e deflagração de vários momentos de greve vão marcar esse contexto. É a partir de um caminho próprio, permeado por disputas e contradições, que o Rio de Janeiro adentra o circuito do “novo sindicalismo” que se fazia pulsar a partir do ABC paulista (LADOSKY, 1995). Seguindo o trabalho de Mattos (1998), constata-se como, na década de 1980, existia no Rio de Janeiro um conjunto de práticas sindicais que se consolidaram em um período de quase três décadas de tradição. Essas práticas conformaram sindicatos que, nesse período, desenvolveram um caráter de forte presença nas lutas políticas do período. Apesar da perda de dinamismo na produção industrial do Rio de Janeiro, a partir de meados do século XX, a tradição sindical constituiu um patrimônio de práticas de referência para a organização dos trabalhadores. Como o autor aponta (MATTOS, 1998, p. 181), formaram-se instâncias de organização dos trabalhadores nos locais de trabalho, órgãos intersindicais, mobilizações com forte participação das bases, altos índices de sindicalização e encaminhamento de novas demandas como contrato coletivo de trabalho, dentre outras práticas sindicais. Porém, a matriz sindical e o projeto político da produção social do habitat, no Rio de Janeiro, não se entrecruzaram como ocorrera no Uruguai. Na metrópole carioca as práticas de prestação de serviços pelos sindicatos, às suas bases, não fizeram internalizar a questão do acesso a soluções habitacionais via projetos autogestionários20. Portanto, pode-se constatar como a autogestão habitacional, na 20 Seria necessário, ainda, perscrutar os caminhos que levaram o sindicalismo, no Rio de Janeiro, a não desenvolver iniciativas na área da produção habitacional. Fontes de recursos estavam disponíveis mesmo nos períodos de crise, para um público de mais alta renda, o qual possivelmente poderia ser aquele dos sindicalizados. Assim, mesmo ao final dos anos 1990, período de forte recessão econômica, havia recursos habitacionais disponíveis, pois existia “uma expansão relativa das metas estabelecidas para a utilização de recursos para financiamento direto ao adquirente, através dos programas Carta de Crédito (FGTS e Recursos CEF), que atendem a parcelas das camadas de renda média e média baixa” 174 metrópole carioca, trilhou um determinado caminho na vertente de atuação com os coletivos organizados. Trabalhar com uma base, oriunda de experiências urbanas da favela, constituiu-se em um caminho diferente daquele dos trabalhadores estáveis e sindicalizados do Uruguai – cuja matriz, como visto, também estava presente no Rio de Janeiro. Nessa perspectiva pode-se lançar luz sobre uma série de questões que a trajetória carioca teve que enfrentar, distintas em relação ao contexto uruguaio. Uma primeira refere-se a trabalhar com uma base social que não angariava experiências prévias de organização sindical, tão consolidadas como aquelas do contexto do país vizinho. Como comenta um documento da Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião, sobre sua trajetória de organização dos coletivos com os quais trabalha, nossa experiência demonstra, com clareza, uma relação direta entre as famílias com maiores dificuldades de participação, de um lado, e situações de desemprego/ emprego precário por outro, demonstrando a óbvia repercussão “interna”, no dia-a-dia da Cooperativa, das condições socioeconômicas externas vividas por estas famílias (FUNDAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS BENTO RUBIÃO, 2007, p. 49). Uma segunda questão refere-se a que, na experiência do Rio de Janeiro, a questão da habitação tendeu, de certa forma, a se autonomizar da questão social – salarial, portanto, nos termos de Castel (2003). Trata-se de uma configuração distinta, por exemplo, do que coloca a assertiva do cooperativista uruguaio Armando Guerra, trabalhador uruguaio do ramo têxtil, ao afirmar que “como cooperativistas somos un movimiento popular de trabajadores textiles que buscamos consolidar una reivindicación: la vivienda. No desconocemos que para poderla pagar necesitamos trabajo y salario decoroso” (CUADERNOS COOPERATIVOS, 1972, p. 12). Ao trilhar o caminho de atuação com a base da favela, a autogestão habitacional no Rio de Janeiro movimentou-se por um território onde um ator político – o favelado – instituiu-se, segundo Silva (2002), a partir da separação de sua condição de moradia dos demais tipos de moradias da cidade, assim como do apartamento de sua luta política da relação entre produção e reprodução social (CARDOSO, 2003, p. 13). Para uma análise sobre a utilização de recursos do FGTS, nesse período, no modelo de cooperativas habitacionais, ver o caso de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, abordado por Hansen (2015). 175 mediada pelo salário. Como salienta o autor, a luta dos favelados, a partir de meados do século XX, distanciou-se da luta operária, conformando-se “moradores de favelas com suas associações, operários com seus sindicatos — estes últimos não discutiam o acesso à moradia na cidade, nem as primeiras, a remuneração do trabalho. (SILVA, 2002, p. 229). Portanto, caminho distinto do que trilhou o cooperativismo de moradia no Uruguai. 4.3 Cultura política e violência De forma mais marcante, alguns eventos chave do grupo Esperança acentuam como uma determinada “sociabilidade violenta” tem se infiltrado nas formas do associativismo de base na sociedade carioca. O grupo teve que enfrentar, durante toda a execução do projeto, a concretude de relações sociais violentas, oriundas, em alguns casos mais específicos, a partir da interferência das “milícias” que atuam na zona oeste do Rio de Janeiro. Assim é que o grupo, quando da procura por terreno para a viabilização de seu projeto, mostrou-se reticente ao surgir a possibilidade de ir para a Colônia Juliano Moreira. Ali o território era conhecido como área de milícia. Após o largo período de negociação para garantir o local de realização do projeto habitacional, alguns fatos marcam o desenvolvimento da obra com o enfrentamento de diversas tentativas de intervenção da milícia que atua na região. Somente de modo a ilustrar a concretude desse dilema, apresenta-se um fato que atravessaram a etapa de pré-obra do projeto. Uma das primeiras iniciativas, após a confirmação do terreno a ser destinado para o projeto, foi delimitá-lo com a colocação de uma cerca de arame farpado. Porém, como