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Autor: Prof. Mário Luiz Miranda Colaboradores: Profa. Vanessa Santhiago Prof. Marcel da Rocha Chehuen Lutas: Aspectos Pedagógicos e Aprofundamentos Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Professor conteudista: Mário Luiz Miranda Natural de São Paulo, é mestre em ciências, desde 2012, pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP) e graduado, em 2004, em Educação Física na Universidade Paulista (UNIP), onde atua como coordenador pedagógico, desde 2006, e professor nas disciplinas de Aprendizagem e Desenvolvimento Motor e Lutas: Aspectos Pedagógicos e Aprofundamentos, da qual é o líder acadêmico. Exerce docência para cursos de pós-graduação na disciplina de Teoria de Aprendizagem Motora, por meio de Ensino a Distância (EaD) em Instituição de Ensino Superior (IES): Estácio de Sá, Universidade Municipal de São Caetano do Sul e Grupo Ser Educacional, na Universidade Maurício de Nassau. Seus principais trabalhos publicados versam sobre: A iniciação no Judô: relação com o desenvolvimento infantil; Efeitos do uso da instrução verbal e demonstração por vídeo na aprendizagem de uma habilidade motora do Judô; estudos de prática formalizada de kata (rotinas de aprendizagem de golpes da modalidade de Judô), com título Práctica y caracterización de las katas por profesores y árbitros de Judô experimentados, Psychological, physiological, performance and perceptive responses to Brazilian Jiu-Jitsu combats e livro sobre Respostas psicofisiológicas da arbitragem de Judô: efeitos da experiência dos árbitros e do nível das competições. Também participou da elaboração dos livros-texto do curso de EaD da UNIP nas disciplinas de Crescimento e Desenvolvimento Humano e Aprendizagem e Desenvolvimento Motor. É árbitro internacional de Judô pela Federação Internacional de Judô e atua como coordenador e palestrante de cursos de arbitragem pela Federação Paulista de Judô. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M672e Miranda, Mário Luiz. Lutas: Aspectos Pedagógicos e Aprofundamentos / Mário Luiz Miranda – São Paulo: Editora Sol, 2018. 196 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXIV, n. 2-099/18, ISSN 1517-9230. 1. Lutas na educação física. 2. Fundamentos técnicos. 3. Medidas e avaliação. I. Título. CDU 796.8 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Kleber Nascimento Vitor Andrade Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Sumário Lutas: Aspectos Pedagógicos e Aprofundamentos APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 LUTAS NO ESPORTE EDUCAÇÃO ...................................................................................................................9 1.1 Definições ................................................................................................................................................ 10 1.1.1 Lutas ..............................................................................................................................................................11 1.1.2 Artes Marciais na Antiguidade .......................................................................................................... 12 1.1.3 Defesa Pessoal e as Artes Marciais na atualidade ..................................................................... 15 1.1.4 Modalidades de Esporte de Combate ............................................................................................. 27 2 LUTAS, ARTES MARCIAIS E AS MODALIDADES DE ESPORTE DE COMBATE NA EDUCAÇÃO ATUAL ................................................................................................................. 32 2.1 Contato corporal natural humano: brincadeiras turbulentas ............................................ 32 2.2 Diferenças entre briga e Luta .......................................................................................................... 35 3 FUNDAMENTOS TÉCNICOS DAS LUTAS .................................................................................................. 38 3.1 Princípios de domínio e de confronto ......................................................................................... 45 4 LUTAS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO FÍSICA....................................................................................... 53 4.1 Jogos de Combate ................................................................................................................................ 57 4.2 Bullying e as Lutas ............................................................................................................................... 60 4.3 Lutas e interdisciplinaridade ............................................................................................................ 63 4.4 O papel do profissional de Educação Física e as Lutas.......................................................... 64 4.5 Lutas brasileiras ..................................................................................................................................... 66 4.5.1 A Capoeira .................................................................................................................................................. 66 4.5.2 As Lutas africanas ................................................................................................................................... 78 4.5.3 Outras Lutas indígenas brasileiras .................................................................................................... 79 4.6 Ensino nas Lutas ................................................................................................................................... 82 4.6.1 Aprendizado motor em Lutas ............................................................................................................ 83 4.6.2 Psicomotricidade nas Lutas ................................................................................................................ 86 4.6.3 Classificação das tarefas motoras nas Modalidades de Esportes de Combate e Artes Marciais ................................................................................................ 89 Unidade II 5 LUTAS NO ESPORTE PARTICIPATIVO ........................................................................................................ 97 5.1 Segurança pessoal no uso cotidiano ............................................................................................98 5.2 Segurança pública e a prática participativa nas Lutas .......................................................100 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 5.3 Lutas e a promoção da saúde........................................................................................................102 5.4 Idosos e as Lutas .................................................................................................................................105 5.5 As Lutas virtuais ..................................................................................................................................110 6 LUTAS E RECREAÇÃO ...................................................................................................................................116 6.1 Lutas na recuperação de dependentes químicos ..................................................................122 Unidade III 7 LUTAS NO ESPORTE DE RENDIMENTO ..................................................................................................130 7.1 O estudo da Biomecânica nas Modalidades de Esporte de Combate ...........................132 7.1.1 Os deslocamentos nas Modalidades de Esporte de Combate ........................................... 135 7.1.2 Capacidades motoras condicionantes e suas consequências ............................................ 137 7.1.3 Equilíbrio nas Modalidades de Esporte de Combate ..............................................................141 7.1.4 Torque e alavancas nas Modalidades de Esporte de Combate .......................................... 142 7.2 Aspectos fisiológicos nas Modalidades de Esporte de Combate.....................................148 7.3 Perda deliberada de peso ................................................................................................................154 8 MEDIDAS E AVALIAÇÃO EM MODALIDADE DE ESPORTE DE COMBATE ..................................155 8.1 Medidas fisiológicas ..........................................................................................................................156 8.2 Medidas subjetivas .............................................................................................................................157 8.3 Avaliação de medidas motoras e físicas ...................................................................................158 8.4 Metodologia de treinamento para Modalidades de Esporte de Combate ..................159 8.4.1 Periodização ........................................................................................................................................... 162 8.5 Lesões nas Modalidades de Esporte de Combate ..................................................................163 8.6 Arbitragem nas Modalidades de Esportes de Combate ......................................................165 8.7 Características psicológicas ............................................................................................................167 7 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 APRESENTAÇÃO A disciplina Lutas: Aspectos Pedagógicos e Aprofundamentos tem intenção de ser uma ferramenta valiosa para contribuir com o desenvolvimento do estudante de Educação Física, em especial, apresentar instrumentos que permitam ao futuro professor empregar todos os seus abrangentes recursos pedagógicos, com o intuito de incrementar aspectos físicos, cognitivos e psicossociais de seus praticantes. Desse modo, a disciplina caminhará para introduzir elementos de construção de importantes valores da área da Educação Física e esportes: discorrerá sobre aspectos relacionados às ciências humanas, isto é, entender o comportamento humano diante do aprendizado e exercício das Lutas, e as ciências naturais, ou seja, a compreensão no emprego dos elementos de natureza anatômica, mecânica e fisiológica na prática das Lutas. A disciplina visa dar suporte à formação integral do universitário e versará de modo abrangente a tudo que se relacione ao universo das Lutas. INTRODUÇÃO A humanidade tem se deparado com as Lutas desde os tempos mais remotos. Atualmente elas estão cada vez mais difundidas no contexto social, econômico, político e esportivo. Assim, a disciplina Lutas vem ao encontro da necessidade de o futuro professor se envolver com a aplicação de seus fundamentos nas aulas de Educação Física para iniciação esportiva, lazer, promoção e conscientização da saúde, autoconhecimento e de alto rendimento esportivo, e relacioná-los com elementos sociais, educativos e o progresso individual e coletivo. O conteúdo a ser oferecido nesta publicação transcorrerá por associação com outras áreas do conhecimento humano, pois abordaremos a filosofia e a sociologia das Lutas, a classificação motora e o aprendizado expansivo de seus gestos técnicos, os estudos biomecânicos, a aplicação dos princípios básicos da fisiologia e da metodologia de treinamento para os praticantes de Lutas. O leitor vai encontrar subsídios para formalizar um acervo importante sobre história, origens, metodologias de instrução formativa, preparação generalizada e fundamentos científicos que permitam sua atuação nas áreas de introdução técnica-esportiva das Lutas e, adicionalmente, a captação do universo de informações acadêmicas necessárias para sua futura especialização em aplicação desportiva competitiva. Portanto, é essencial que no Ensino Superior de Educação Física se possa analisar a disciplina de Lutas em um conjunto abrangente de aplicações (DEL VECCHIO; FRANCHINI, 2006). A dimensão e as especialidades das Lutas são tamanhas e exigem adaptações particulares para o seu estudo e compreensão. Logo, vamos direcionar três unidades específicas para nossa apresentação: 1º) as Lutas no contexto do Esporte Educação – formação e iniciação esportiva, vinculada ao princípio do desenvolvimento esportivo e à construção da cidadania; 2º) do Esporte Participativo – recreacional e saúde e, por fim, 3º) do Esporte de Rendimento – competição e preparação esportiva profissional. 8 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Observação Usaremos AEC para nos referir a Antes da Era Comum e EC para Era Comum. A Era Comum se inicia com o ano I do calendário gregoriano. Observação As seguintes palavras serão escritas nesta publicação sempre em maiúsculas: Luta(s), Artes Marciais, Modalidades de Esporte de Combate, Defesa Pessoal, Esporte Educação, Esporte Participativo e Esporte de Rendimento. 9 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Unidade I 1 LUTAS NO ESPORTE EDUCAÇÃO Primeiramente se faz necessário relembrar a definição de Esporte Educação e seus aspectos mais contemporâneos e, para isso, vamos discorrer de forma breve sobre o aparecimento de atividades esportivas humanas. O esporte (ou as atividades pré-esportivas) é um fato real, que aconteceu de modo indispensável na sociedade humana desde os tempos mais remotos. Em especial, o nascimento do esporte combativo decorreu, essencialmente, da necessidade do ser humano em sistematizar os movimentos instintivos da Luta, da espontaneidade corporal, e se fundamentou nas vertentes primitivas da natureza humana relativas à manutenção de sua própria sobrevivência. É fato que para chegarmos aonde chegamos como sociedade organizada, o enfrentamento prévio com predadores foi constante, e graças à manifestação da inteligência o ser humano se sobressaiu de modo incomparável diante de todas as ameaças que o colocavam em risco de se transformar em alimento de animais maiores e carnívoros. Além disso, a organização social e o desenvolvimento de armas auxiliaram bastante no estabelecimento de uma posição mais confortável frente aos seus inimigos mais imediatos. Na verdade, podemos descrever essas manifestações corporais de defesas e ataquescomo atividades pré-esportivas, pois elas não eram estruturadas para servirem aos domínios político, social, econômico e cultural como se fazem presentes na sociedade contemporânea. Adiante vamos ampliar esse tema sobre o esporte e as Lutas relativas às sociedades mais antigas e discorrer sobre as artes e modalidades que se destacavam nas mais distintas civilizações. O importante agora é trazer a compreensão de que, a partir das práticas de atividades pré-desportivas combativas, sempre existiu a prevalência de alguém, por ser o mais forte, aquele muito mais rápido ou ao mesmo tempo o mais competente. Segundo Campbell e Moyers (1990), o ser humano não consegue seguir sozinho as suas aventuras pela vida, ele segue a trilha do herói para encontrar a sua própria experiência. A partir de então, houve condições para práticas organizadas em eventos de modalidades bastante aguerridas, umas muito brutais e outras mais brandas, com intenção de se encontrar sentido na participação do confronto como parte da existência e chegar ao êxtase como exemplo a ser seguido. Desse modo, houve a continuidade da utilização, então sistematizada e direcionada do esporte para o enaltecimento da vitória, do troféu e da diferenciação entre “maiores” – ou vencedores e “menores” – os derrotados. Paralelo a isso, ocorreu a comparação, pela coletividade em geral, de que essas conquistas esportivas eram realizadas por heróis sobre-humanos. Tal fato permaneceu por longo tempo, desde os combates dos Jogos Olímpicos na Grécia Antiga e Clássica. Em seguida, nas disputas dos gladiadores romanos, passando pelas competições cavalariças medievais na Idade Média, os eventos e disputas violentas acontecidas durante a Revolução Industrial, chegando aos tempos modernos, novamente com 10 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I os Jogos Olímpicos da Era Moderna, no fim do século XIX, até os Jogos contemporâneos, nos idos da década de 1970. Lembra Tubino (2010) que é notório que a globalização e o desenvolvimento social e econômico salientaram a importância da prática de atividades físicas para a saúde e, além disso, houve o reconhecimento do esporte como valioso instrumento de fomento social para o ser humano. Essas afirmações se fizeram constantes na Carta Internacional de Educação Física e Esporte (UNESCO, 1976), independente das práticas de rendimento esportivo até então conhecidas e exaltadas na sociedade. No Brasil, essa determinação, aliada à Constituição Brasileira de 1988, a qual estabeleceu o direito às práticas esportivas formais e não formais para todos os cidadãos brasileiros, provocou o entendimento do desporto para além do rendimento competitivo, ampliando seu conceito para o emprego como esporte lazer/saúde – ou Esporte Participativo e também como Esporte Educação, de tal modo que se aflorou o esporte para a concepção socioeducativa, isto é, o de direcionar para a constituição da cidadania, da coeducação, promover a cooperação e solidariedade, além de estar comprometido com o espírito e desenvolvimento esportivo (TUBINO, 2010). Ressalta-se que o esporte educacional volta-se essencialmente para crianças e adolescentes e pode ser exercido por meio de atuação escolar: curricular ou extracurricular, nas comunidades e instituições não governamentais. Ademais, concebe-se e deve-se ter atenção especial por intermédio da iniciação esportiva em clubes e academias, respeitando-se essencialmente de modo acadêmico e científico o espectro desenvolvimentista de promoção cognitiva, psicossocial e física desses indivíduos. Assim sendo, o Esporte Educação faz parte do contexto profissional do qual o professor de Educação Física deve se inteirar. É de sua total responsabilidade colaborar na constituição integral do ser e portanto usar a disciplina de Lutas como mais um excelente instrumento para contribuição na formação infantojuvenil. Como se verá nesta publicação, as Lutas abrangem uma ampla ação motora, incentivam o desenvolvimento afetivo-emocional, a construção da reflexão e juízo de valor e a ascensão para a Educação Física. Iniciaremos fazendo uma distinção importante do uso do termo Lutas, Artes Marciais e Esportes de Combate. Lembrete Esporte Educação é voltado para a área educacional, em especial, à formação de crianças e adolescentes. 1.1 Definições Na nossa sociedade ocorre a utilização bastante ordinária do termo Lutas, mostrando significação de algo, cujo resultado a ser alcançado se deverá ao confronto irracional, gerando violência e causando prejuízo para outrem, além de dar sentido de ação, que requererá o uso de algum poder de imposição e choque com valores desumanos. Além disso, é comum haver uma mistura de significados cujas 11 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS colocações nas descrições literárias, acadêmicas, revistas, blogs, sites e jornais trazem alguma desordem quanto ao seu emprego correto e compreensão, em especial se confundindo com as atividades de Modalidades de Esporte de Combate e das Artes Marciais. Dessa maneira, faremos uma diferenciação e padronização acadêmica para atribuir adequadamente as disposições, as classes e os estudos que serão discutidos nesta publicação. As classificações e categorias sugeridas para distinguir os nomes das atividades exercidas por meio de combates corporais ou com armas auxiliarão extremamente o juízo e o aproveitamento das Lutas na educação, na saúde e no esporte. 1.1.1 Lutas Segundo Mahatma Gandhi (1948), “A alegria está na Luta, na tentativa, no sofrimento envolvido, e não na vitória propriamente dita”. Lutas indicam prontidões que se caracterizam por serem de confronto, seja corporal, seja mesmo de embate da retórica, alcançando até aquelas que visam pretensões sócio-político-profissionais e as que exigem posicionamentos de ideias e sentimentos. Em geral, as Lutas se associam a conquistas eficientes, atingindo objetivos determinados, sem que haja fundamentalmente a preocupação com a derrota do adversário, mas sim em atingir o seu próprio êxito. Os escrúpulos são de ordens restritas ao contexto e nível humano dos participantes da contenda, subjuga-se o oponente e debela-se sua resistência para se atingir o sucesso. O mais importante é vencer, e não necessariamente acabar com seu adversário. Para se dar um exemplo concreto para o uso da palavra Luta com a intenção de se vencer, mas não de abater o oponente, citam-se os animais que Lutam pelo acasalamento, tomadas de liderança e domínio de território para a proteção à prole, exemplo: “Os elefantes mais jovens Lutaram para destronar o animal mais velho do armento” ou “Os hipopótamos Lutam ferozmente contra a invasão de seu território, e nenhum outro animal se atreve a se aproximar quando estão vigilantes”, “Ursos Lutaram pela fêmea, o perdedor abandona a região e vai procurar outra oportunidade de perpetuar seus genes”. Nos jornais e revistas também se encontram repetidamente descrições que mencionam o termo Luta. De acordo com UOL Notícias (2009), coloca-se o vocábulo como procedimento para se atingir determinado sucesso, assim apresentado: “O documento contempla uma série de melhoras na Luta contra a imigração irregular, que buscam aprofundar os instrumentos de prevenção, aumentar a eficácia dos procedimentos de repatriação e a melhora das garantias nas diferentes situações”. Na política, o uso da palavra Luta é muito comum, como no modelo político-educativo citado por Rui Barbosa: “Quem não Luta pelos seus direitos, não é digno deles”. A palavra induz a um significado amplo de buscar e conquistar algo, mas não necessariamente exterminar seu opositor. É comum verificar-se que políticos disputam uma votação e ao fim quem vence diz-se que lutou muito para conquistar os votos da maioria. Outro exemplo que designa com propriedade sua compreensão está contido na seguinte descrição:“Mesmo com condições climáticas desfavoráveis, o piloto lutou para dominar o avião e conseguiu fazer uma aterrissagem segura, salvando todos os tripulantes”. O termo Luta assume a realidade de ser usado como jornada, trabalho, conquista, determinação e atitude. Luta está intimamente ligada ao conceito de alcançar um objetivo, planejado e consciente e ao mesmo tempo, firmemente, conservar a preservação da ética humana essencial, ou seja, minha trajetória na busca desse objetivo, minha decisão e minha conduta têm de ser benéfica para mim, útil ao meu 12 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I oponente direto e proveitosa para a sociedade. Relembrando Aristóteles, descrito por Guthrie (1998), faz-se uma livre associação da definição de Luta compreendendo a utilização do conceito de ethos: caráter moral e identidade de preservação universal da vida, do logos: racionalidade na validade dedutiva e do pathos: emotividade humana como caminho participativo, e não somente como condicionamento. Observação De modo generalizado, todas as ações humanas que envolvem e exigem disputas de contrários – corporais ou não – são Lutas. 1.1.2 Artes Marciais na Antiguidade O emprego corporal na história humana é bastante efetivo, pois nos primórdios da humanidade restava apenas o próprio corpo como dispositivo para práticas e enfrentamento de ameaças à sobrevivência. Devido à evolução humana, à concepção das estruturações sociais, à formação de grupos e ao aparecimento de ferramentas e armas como pedras lascadas, lanças e dos recursos de cordoaria, o ser humano conseguiu se estabelecer com solidez e provar sua eficiência frente aos grandes inimigos e predadores. A prática de afrontar inimigos e ameaças imputaram a necessidade de se organizar os grupos de ações e sistematizar as ações de combate, assim chamadas de guerras. Surgiu então a estratégia de uso dos armamentos e jeitos de se combater. Consequentemente os humanos se estabeleceram e geraram-se exércitos e armadas bastante eficientes e apareceu a metodologia para se guerrear, ou seja, a Arte Marcial. Figura 1 – Pintura rupestre pré-histórica. Homens com armas: caça e guerra Vai-se reforçar e se apresentar a definição de arte marcial em duas etapas bem distintas: a primeira parte desde AEC, que se inicia no conhecimento histórico dos primeiros arranjos das civilizações que visavam as necessidades que se faziam presentes para sobrevivência social, até quase meados do século XIX. Essa indicação continua a partir do fim dessa época para os dias atuais. 13 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Como já se mencionou, as Artes Marciais eram ações coordenadas para serem usadas na guerra, ou seja, metodologias específicas para organizar, empreender e participar de atividades de combate territorial, corporal e plenamente armamentista, por meio de esquadrões que representavam interesse político, ideais religiosos e econômicos de estados e soberanos. Em geral, os governos e seus executivos procuravam expandir seus domínios para poder prover condições de manutenção de seu poder, liderança, perpetuação monárquica e também oferecer condições de sustentação de seus reinos. Outros objetivos como a cobiça mandatória, a escravatura, o enriquecimento dos monarcas e a defesa da pátria eram motivos bastante usados para se guerrear e organizar movimentos militares. O mais antigo documento histórico já angariado sobre prélios humanos é a “Estela de Abutres”, bloco monolítico de pedra, que se encontra no museu do Louvre em Paris, cujas inscrições retratam a primeira guerra registrada, por volta de 2.525 AEC, no qual constam detalhes de planejamento e disputas ferrenhas. Essa peleja aconteceu na província de Lagash, antiga região da Suméria, que, segundo as inscrições lidas sobre a rocha, travava guerras contra a cidade de Umma, por captação de água e para aquisição de terras cultiváveis (COOPER, 1983; MELLA, 2004). Observação Estela é sinônimo de rocha esculpida. A figura a seguir mostra uma parte da escultura achada, a qual descreve também o tratado de paz acordado depois da vitória do rei Eannatum de Lagash sobre a cidade de Umma. Figura 2 – Estela de abutres: bloco monolítico de pedra retratando a guerra e o acordo entre as cidades de Lagash e Umma. Museu do Louvre, Paris 14 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Muito conhecido e divulgado na atualidade, pode-se ressaltar, para justificar o termo Arte Marcial, o livro A Arte da Guerra, de Sun Tzu, que foi um general chinês que viveu, segundo alguns documentos, nos idos de 500 AEC, junto ao rei Ho Lu, no reinado da era WU (CLAVELL, 1983). Naquela época, esse chefe militar, líder incontestável, deixou registros que davam diretrizes bastante seguras para selecionar e treinar soldados, planejar, deixando bem concebidas as atividades guerreiras e as marchas a serem efetuadas de acordo com as próprias vontades, necessidades estratégicas e disposições inimigas. Conforme assinala Sun Tzu, na paz era preciso se preparar para a guerra e, na guerra, preparar-se para a paz. Desse modo, os estudos bélicos ou a constituição da “Arte Marcial” eram fundamentais para o Estado, para o ser humano e, por fim, questão de vida ou de morte! (CLAVELL, 1983). Portanto, considerando-se essas circunstâncias, o designativo composto Arte Marcial se refere estritamente aos procedimentos aparelhados para se preparar legiões e formar exércitos a fim de combater em batalhas contra inimigos. Mais adiante, na sociedade ocidental, o vocábulo Arte Marcial se relaciona às atividades exercidas com os mesmos propósitos já delineados no parágrafo anterior, e com a mesma epistemologia, isto é, designação de artimanhas específicas para as estratégias bélicas. Contudo, o termo é ainda muito demarcado pela mitologia grega, já que essa crença dispunha especificamente de deuses da guerra – Atena, feminina e estratégica e Ares, masculino e impetuoso, reconhecido principalmente em Esparta. Outras culturas e religiões se manifestaram também cultuando deuses que representavam a incursão guerreira, por exemplo: as divindades Odin e Thor, da mitologia nórdica, o deus Ogum, da mitologia iorubá (vinda da África – dos países da República do Benim e da Nigéria). Do mesmo modo, a divindade Belona, juntamente com o deus Marte, responsáveis pela guerra e pelas armas, aparecem na mitologia romana, os quais surgiram como substitutos dos deuses Atena e Ares, respectivamente, por terem dado sequência natural da mescla de mitologias grega e romana. Do nome do deus Marte deriva o vocábulo Marcial. Portanto, o procedimento técnico e tático para o combate era condição natural e bem estabelecida na sociedade humana. Guerrear significava planejamento, logística, coordenação de movimentos da armada, operações de direcionamento de recursos financeiros, e táticas de posicionamento, ataque e defesa, isto é, estudos muito profundos, conhecimento do inimigo, de seu território, de seus costumes, geografia, número de soldados etc. Obviamente o termo arte tem relação com magnitude, excelência e intensidade, por essa condição o designativo composto Arte Marcial se consolidou, então, em tempos antigos como o sinônimo de a excelência para a guerra. 15 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Figura 3 – Deus Ares, da mitologia Greco-romana: deus da guerra e das armas Embora bem ilustrado e se relacionando com a literalidade, o termo Arte Marcial foi acomodado por outras vertentes sociais e sofreu alterações substanciais em sua acepção e deve-se seguir adiante e explicitar a segunda etapa que altera seu significado relativo ao emprego atual, contribuindo para a melhor categorização do termo. Para isso, faz-seuma colocação referente à Luta como Defesa Pessoal, ou seja, o uso organizado de ações de combate para a própria conservação da vida e segurança física e emocional. 1.1.3 Defesa Pessoal e as Artes Marciais na atualidade O ser humano se defendeu sempre com o uso de suas próprias atribuições e possibilidades. Procurou usar seus membros superiores e inferiores e outras partes corporais, como a boca e a cabeça, de modo a imobilizar, afastar, dominar, refrear e também se proteger de acometimentos que o colocavam em perigo de sobrevivência, detrimento de território, perda de sua prole e ameaça à sua liderança. A essas ações chamamos de Defesa Pessoal. Assim sendo, a Defesa Pessoal se relaciona diretamente com o emprego corporal e ao uso de armas que visam à própria segurança e de seus familiares e amigos, além do grupo ao qual pertence ou ao qual era designado por obrigação ou vontade própria. Como já vimos, práticas sistematizadas de movimentos militares corporativos envolviam a necessidade de contingente humano que manipulavam armas, tais como: lanças, arcos, cavalos, engalfinhando-se corpo a corpo com seus adversários. Obviamente, os esquadrões mais treinados proviam exercícios que visavam à preparação dos guerreiros para esse enfretamento pessoal. Observações militares levam a se acreditar que, no momento desses embates, o soldado se imbuía de grande determinação, pois era a sua vida em nome da nação ou de seu general, ele precisava atacar e se defender e assim protegia a própria vida. Muitos guerreiros se destacavam por terem bastante habilidade e batalhavam com grande destreza e competência. A Defesa Pessoal era fruto de intensos treinamentos e práticas exigentes. 16 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Essas práticas de defesa corporal e uso de armas derivam basicamente de duas vertentes, bem generalizadas, que parecem muito similares, mas que contêm diferenças importantes para que possamos definir a segunda etapa do significado atual do termo Arte Marcial. Essas vertentes de classificam em: Lutas ocidentais e Lutas orientais. As Lutas ocidentais são vastamente documentadas por meio da arqueologia e de seus estudos antropológicos e encontradas em pinturas rupestres e esculturas. Segundo Levinson e Christensen (1999), desde a época dos sumérios na Mesopotâmia, por volta de 3000 AEC, encontram-se em afrescos Lutadores que parecem estar Boxeando. Os egípcios também são relatados por Doberstein (2010) como exímios guerreiros treinados em armas e competências corporais de Lutas desde a época do faraó Djoser, da terceira dinastia, que reinou entre 2737 e 2717 AEC. López (2011) descreve que a civilização dos egeus na antiga Creta usava as Lutas como preparação guerreira e educacional, por meio de Jogos de Combate com os punhos fechados; elas ficaram conhecidas pelos achados do sítio arqueológico de Tera, em Santorini, atual Grécia, nos quais se encontraram várias esculturas e afrescos. A mais divulgada dessas pinturas apresenta a figura de dois meninos se golpeando, remanescente da época compreendida entre 1700 e 1500 AEC, e parecia ter conotação de preparação educativa e também guerreira, pois os meninos usavam luva em apenas uma das mãos; uma delas golpeava e a outra servia apenas para se defender. Figura 4 – Meninos Boxeando com luvas Em seguida, encontram-se os gregos, povo no qual as Lutas eram parte integrante e faziam parte da educação militar para defesa incansável da nação e das comemorações pelas boas colheitas (SCANLON, 2014). Além disso, ressalta-se a importância dos Jogos Olímpicos. Os documentos acerca dos referidos 17 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Jogos gregos citam as Lutas de Boxe, a Luta olímpica e o Pankration Athlima – Pancrácio esportivo – como o auge das competições na Grécia Antiga. Esta modalidade possuía poucas regras (eram proibidas as mordidas e os ataques aos órgãos genitais e aos olhos), no entanto deveriam ser rigorosamente cumpridas, caso contrário o infrator era execrado publicamente e em muitas ocasiões expulso da cidade. Os vencedores eram venerados pela força, pela inteligência e determinação e o público os relacionava aos mitológicos personagens Héracles (Hércules, de força descomunal) e Teseu (personalidade perspicaz, ágil e significativamente potente). Esses deuses e semideuses eram considerados heróis que serviam como modelo da aventura humana, da participação e construção da vida. Figura 5 – Ânfora grega mostrando Héracles e a Luta contra o centauro Nesso entre 625-600 AEC. Museu arqueológico de Atenas Figura 6 – Escultura de mármore do semideus Teseu Lutando contra o Minotauro de Étienne-Jules Ramey – Jadins de Tuileries, Paris, França, 1828 18 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I As Lutas assumiram grande importância na educação grega, em especial na Era de Alexandre III, O Grande (356-323 AEC), no extenso império macedônico, pois, além de fazerem parte do treinamento militar, estendiam-se para o fortalecimento físico, na construção do corpo belo e harmonioso, e propiciava o afloramento da inteligência estratégica, política e tomada de decisões rápidas. Esse conceito se aliava ao ideal de educação clássica baseada na paideia, que visava à formação integral do estudante por meio de disciplinas como ginástica, Lutas e exercícios físicos, matemática, filosofia, história, geografia e gramática. Essa educação fundamentava o ser na sociedade na qual se vivia e as Lutas eram estudadas para que se pudesse verificar especialmente como se podia alcançar a aretê, ou seja, a virtude e a excelência no trato social. Na época era inegável a necessidade de se prover bons cidadãos para o desenvolvimento da pátria, além de que pudessem se estabelecer diante de tantas ameaças vindas de inimigos que constantemente desejam invadir seus territórios. Assim, a Defesa Pessoal era direcionada para a preparação do indivíduo e o estudo das artes da Luta visava o entendimento do uso das suas capacidades físicas e habilidades para se alcançar um estado de prontidão social e guerreira, enfim, a defesa da pátria igualmente. As Lutas constituíam disciplina para fortalecimento do corpo e, ao mesmo tempo, promoviam os estudos do contato físico como meio de compreender as inerentes limitações físicas e potencialidades de seus oponentes. Portanto, naquela época, pelo estudo das Lutas e pela interatividade na sua prática, – surgia a ética no uso dos próprios potenciais corporais–, pois para se Lutar, é necessário ao menos que dois oponentes se coloquem em posições antagônicas. A Defesa Pessoal implicava a justificação do próprio ser humano. Saiba mais A fim de aprofundar seu conhecimento nos temas referidos à educação e aos Jogos Olímpicos gregos, leia: GARCIA, A. B. Educação Grega e Jogos Olímpicos: Período clássico, helenístico e romano. Jundiaí: Paco Editorial, 2012. Dando continuidade ao pensamento para explicar o termo Arte Marcial para a atualidade, trazem- se algumas considerações acerca das Lutas orientais, famosas pela sua eficiência motriz e plasticidade corporal. Essas Lutas provenientes das regiões asiáticas do planeta se destacavam por serem consideradas as precursoras de sistemas de Defesa Pessoal, pois eram vistas como propriedades individuais para a busca da segurança individual. De acordo com Ohlenkamp (2003), compilado pelo comando do exército imperial japonês no ano 720 EC, documentam-se as disputas de Lutas de força do torneio de “Chikara Kurabe”, ocorrido em 230 AEC. Esse documento parece sugerir, por estudiosos e pesquisadores, que essa Luta foi protagonista dos primeiros estágios embrionários como predecessora das resultantes que chamamos de Sumô e de Jujutsu (atualmente chamada de Jiu-Jitsu – técnica suave) e com o emprego estratégico e formativo na preparaçãode soldados. Veja a seguir as figuras que retratam as referidas Lutas. 19 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Figura 7 – A Luta milenar de Sumô Figura 8 – Jiu-Jitsu Por sua vez, é muito divulgado, quase que por unanimidade entre os praticantes de Lutas asiáticas, que as origens das Lutas e Artes Marciais de Defesa Pessoal derivam de estudos, práticas e disseminação promovidas pelo monge chamado Bodhidharma (Damo), tendo sido documentada sua aparição no templo budista Shaolin na China, em 527 EC (ASHRAFIAN, 2014). A lenda ou o fato da criação dessas ações de grande precisão corporal por Bodhidharma se relaciona à ocorrência de muitos saques aos templos budistas, e ataques corporais aos monges, que viviam entre os arredores da Pérsia e da Índia. Assim sendo, ele decidiu que haveria de ter uma maneira de defender os víveres e pertences dos monásticos contra os bandidos e salteadores. Muito provavelmente, cita Ashrafian (2014), Bodhidharma estudou as técnicas da Luta Kalaripayattu – ações sistematizadas de Lutas corporais encontradas na Índia desde o ano 600 AEC (MIGUEL, 2011). Ainda nos lembra Ashrafian (2014) que se dá crédito a Bodhidharma nas documentações encontradas no templo Shaolin à criação de ações corporais de 20 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I combate baseadas em movimentos de ataque e defesa de animais, mais precisamente da serpente, do dragão, do leopardo, do tigre e da garça. Depois esses movimentos contundentes foram profundamente desenvolvidos pelos monges budistas do templo Shaolin, os quais aliaram movimentos de outros animais também às resultantes de forças da natureza. Consequentemente apareceram ações fundamentadas nos movimentos de rotação dos tufões, o sugar dos redemoinhos, o agitamento dos ventos, o empuxo das marés, a flexibilidade e resignação dos galhos leves das plantas frente ao peso da neve etc., incorporadas às atuações humanas com propósitos de Defesa Pessoal. Observe as figuras a seguir e veja a comparação entre a movimentação do redemoinho e o giro do corpo no Sumô. Figura 9 – Redemoinho de vento (tufão) Figura 10 – Giro do corpo no Sumô Portanto, a Defesa Pessoal se estabeleceu como necessidade para se enfrentar a cobiça e a ganância, e é importante lembrar que as Lutas instituídas nessas regiões cultivaram a condição de que a habilidade é fator determinante para se contrapor à força exagerada. Consolidou-se a compreensão de que o uso da força deve ser muito bem aproveitado para não se desperdiçar energia, garantindo o êxito da própria segurança contra ofensivas baseadas em tamanho ou força estúpida. De maneira geral, as práticas de Lutas ocidentais demonstraram que existia um aprendizado sociocultural, que poderia favorecer a construção da ética humana por meio da interatividade corporal. Adicionalmente, o aprofundamento de seus estudos trazia o desenvolvimento da concentração, do raciocínio ágil e de tomada de decisão. Por sua vez, as Lutas orientais proporcionavam ao indivíduo uma maior compreensão da natureza que o rodeava e que o entendimento das atuações das forças naturais e sua aplicação por intermédio das estruturas anatômicas corporais causariam a conquista da habilidade de se preservar e garantir a própria sobrevivência. A integração com a natureza mostrava-se imensamente importante, pois o indivíduo aprendia a usar recursos corporais que o levavam à imaginação e à ponderação e o instigavam a analisar e pesquisar sobre o próprio corpo e seus movimentos, garantindo êxito e grande precisão motriz. É notória a complexidade na execução de movimentos de Defesa Pessoal e a necessidade de se praticar os movimentos repetidamente e com o máximo de exatidão para que as ações sejam eficientes. 21 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Antecipação, agilidade, agudeza, reação instantânea, posicionamento e esquivas corporais são essenciais para permitir que os movimentos humanos se transformem em ações com grande sofisticação anatômica devido à excelência na combinação articular para execução de golpes e técnicas de contundência, projeção e domínio. Ao mesmo tempo, essa prática tão especial desperta reflexões interessantes: Para conseguir desempenho, tenho que enfrentar minhas dificuldades e ainda neutralizar as ações de meu oponente; preciso de um oponente que vai permitir a descoberta de minhas deficiências; necessito descobrir a mim mesmo, saber como posso usar minha corporeidade da melhor maneira possível; preciso compreender meus erros e corrigi-los. Todas essas obrigações levam o indivíduo a uma maior percepção de suas capacidades físicas, motoras, afetivas e intelectuais. Várias especialidades de Lutas criadas para serem usadas por combatentes nas inúmeras batalhas militares da civilização foram sistematizadas em práticas específicas para se atingir a descoberta do próprio ser, favorecer a construção de indivíduos com grande capacidade de autocontrole e concentração, conscientes de seus deveres e promotores dos direitos de todos e atuar de modo cortês e ético. Pode- se citar o Judô, o Karatê, o Aikido, sistematizados no Japão, o Hapkido, na Coreia, o Tai chi chuan, na China, e a Yoga, da Índia, como Lutas que vieram para ajudar seus praticantes a aprender e descobrir a si mesmo, promover a saúde, o desenvolvimento social e psicomotor do indivíduo. Portanto, atualmente, Artes Marciais integram uma significação compreendida por atividades físicas específicas de combate corpóreo e uso de armas com vasta plasticidade física, estratégia de movimentos precisos e contundentes com fins de definição vital, concomitantemente ao fortalecimento espiritual e autodomínio, abalizadas por filosofia própria, isto é, a busca da sabedoria e estímulo à reflexão e ao aprofundamento das relações humanas. O emprego das Artes Marciais e sua aplicação atual são estritamente voltados para: bem-estar, autoconhecimento, formação do caráter, meditação, busca de equilíbrio interior, ampliação das relações sociais e motivação do desenvolvimento cognitivo (MIGUEL, 2011). Chega-se à conclusão que em alguma ocasião, considerando-se os casos mais diversos, existirão vulnerabilidades para o ser humano. Por mais que se adotem meios para se evitá-las, no embate das Lutas os adversários podem colocá-las à prova ou prepararem estratagemas que exponham a natureza falível do ser humano. O exercício das Lutas, em especial das Artes Marciais, consente que se evidenciem demandas e pressões que ponham à mostra essas fragilidades e deixem o indivíduo mais acautelado e mais seguro em si próprio e nas suas relações sociais. As Artes Marciais ensinam a construir os mais distintos valores psicossociais: autocontrole, respeito mútuo, descoberta de potencialidades, aceitação de diferenças, empatia e reconhecimento da importância de seu adversário para o seu progresso. 22 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Figura 11 – Tai chi chuan 1.1.3.1 Influências religiosas e filosóficas na prática de Artes Marciais contemporâneas As Lutas que originaram as Artes Marciais se distinguiram como os ambientes que mais permitiram interferências religiosas, filosóficas e contemplativas, distanciando-se de suas raízes originais, as quais a definiram primeiramente como “Excelência para a Guerra”, para depois tornarem-se processos de autoconhecimento, interação na sociedade e comportar a ampliação do desenvolvimento do ser humano nos aspectos físicos, emocionais e cognitivos. As Artes Marciais sugerem condutas bastante específicas de comportamento e exigem que seus praticantes as sigam com determinado rigor. A sua introdução prática ocorreu, sobretudo, por meio de academias especializadas e por terem em seus comandosinstrutores ou, como preferem ser chamados, mestres. Esses mestres foram direcionados por seus antigos mentores, os quais receberam heranças muito fortes de movimentos filosóficos e religiosos, que envolveram procedimentos bem peculiares. Desse modo, muitos princípios, rituais e valores das Artes Marciais provieram de axiomas fundamentados por pensadores importantes como Buda, Confúcio e Lao-Tsé, cujas máximas foram amplamente aceitas no contexto político-social de determinadas épocas. Os rituais e seus fundamentos estabeleceram comportamentos humanos bastante aprazíveis, cuja importância é inegável na formação do ser (CAMPBELL; MOYERS, 1990). Além da preocupação máxima no emprego apropriado das técnicas de ataques, defesas e esquivas por seus praticantes, a ritualização e os protocolos impostos pelas práticas filosóficas, religiosas e mitológicas, a execução das Artes Marciais envolvia, profundamente, o respeito à ética humana, em especial à vida! De maneira generalizada, aprende-se nas Artes Marciais a Lutar para se evitar o conflito! Portanto, a prática se sistematizou, acima de tudo, nos dogmas de preservação da vida. O indivíduo deve batalhar para dar prosseguimento à racionabilidade sincera e à sua sobrevivência, acolhido por uma educação compassiva, direcionada e austera, que o faça atingir os ideais humanos, isto é, a construção 23 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS da harmonia e sintonia para se evitar o confronto desnecessário entre seus semelhantes; Lutar para evitar a violência própria do caráter animal primitivo e integrar o sujeito ao universo. Assim, as Artes Marciais, devido às mais diversas extensões humanas, organizaram-se para estruturar meios de resguardo da paz, da harmonia e da defesa de alicerces de sobrevivência humana, como o direito à propriedade/território, o bem comum, a organização da convivência social, dos interesses coletivos e o progresso do ser. Países como Índia, China e Japão e regiões como a península coreana foram fortemente influenciados por movimentos religiosos e filosóficos como Hinduísmo, Budismo, Xintoísmo, Confucionismo e Taoísmo. Cada qual desses movimentos afetou, com maior ou menor alcance, o ambiente de organização política e social dessas sociedades e a reformulação das Lutas de guerra comuns naquelas regiões (SUGAI, 2000). Sabe-se que a religião Hindu é muito antiga, registrada por estudiosos a partir de 6000 AEC. Porém, os documentos mais conhecidos provêm das circunscrições deixadas nos Vedas (os mais antigos textos de tradições religiosas da Índia), escritos em 1500 AEC são base do Hinduísmo, formados por mantras, hinos, orações, mágicas, encantos e rituais. Os fundamentos mais sintéticos do Hinduísmo apregoam o uso da Yoga (também conhecida como Ioga), como prática de exercícios físicos que implicavam a meditação e unificação corpo-mente para a busca da iluminação da consciência. Anteriormente, os primeiros monges indianos, conhecidos como ascetas, que já se encontravam estabelecidos em anos mais antigos que esses já mencionados, já proclamavam e exerciam a austeridade do corpo para treinamento de disciplina e autodomínio. Os exercícios deveriam levar ao autoconhecimento, ao controle das emoções, a não violência, à superação de adversidades e concentração mental. Além disso, eram usados como treinamentos de posições que possibilitavam defesas opostas aos ataques de invasores do corpo e da alma, isto é, a constante Luta interna contra seus temores. Figura 12 – Yoga: movimento de ataque lateral O Budismo surgiu na Índia com Siddhartha Gautama (448-368 AEC) e propagou essencialmente ideias de destemor ao perigo, desapego material e desprendimento, isto é, o servir incondicionalmente ao próprio ser humano. 24 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I O Xintoísmo apregoou de maneira relevante o respeito à pátria, à sua terra, a lealdade para com seus antepassados e a consideração aos valores morais como a reverência e a educação nas relações humanas, em especial o respeito à individualidade. Data-se a sua criação no mandato do imperador nipônico Jimmu, em 660 AEC. O Confucionismo foi uma organização filosófica social, com grande repercussão na China, creditada a Confúcio (Kung Fu Tsu, 551-479 AEC), pensador e filósofo chinês. Seus aforismos, e a sua implantação respectiva, resgataram a estruturação da sociedade chinesa e consentiram uma época de amplo progresso para a civilização desse país, avanço nas relações entre as pessoas, fundamentada na educação, formação de conceitos de importância da família, estímulo ao esforço como instrumento para alcançar conquistas e valorização do mérito. Além disso, os procedimentos de organização social de Confúcio inseriram o conceito de hierarquia e respeito aos mais idosos e para aqueles que possuíam maior instrução e eram responsáveis pela educação nas escolas. A alfabetização era obrigatória e os professores eram venerados e reverenciados como denodos imprescindíveis da formação de uma sociedade justa e humana. Valores como benevolência, honradez e honestidade faziam parte da sociedade entusiasmada com os pensamentos gerados por Confúcio. Altruísmo e ritualização dos atos cotidianos canalizavam as afinidades entre todas as classes sociais – “Não faças ao outro aquilo que não queres que façam a ti”, aforismo que pressentia a ética da reciprocidade fundada por esse filósofo chinês. Confúcio teve oportunidade de vivenciar parte da era das Primaveras e Outonos, entre 722-481 AEC, com grande desenvolvimento da instrução matemática, das ciências naturais e humanas, culturais e avanços tecnológicos na China, ainda mais difundidos e fundamentados pelos ensinamentos desse mestre (SUGAI, 2000). A composição do equilíbrio de forças entre o ser humano e o universo foi a doutrina de aprofundamento da sabedoria buscada por Lao-Tsé. Esse filósofo chinês criou o conceito do Zen, ou do encontro do vazio da existência humana, com o axioma: interação com a natureza e o cosmo. A sua sabedoria impôs o preceito de que o ser humano é composto de forças negativas e positivas, que devem continuamente estar equilibradas para evitar as disfunções emocionais, físicas e mentais. Os samurais adotaram normas tais como as preconizadas por Lao-Tsé, descritas nesse ditado: “Uma espada deve ser usada sempre para se conseguir manter a honra, e a maior honra de uma espada é causar o efeito a que se aspira de justiça, mas sem precisar ser desembainhada de seu lugar de repouso” (LAO-TSÉ, 2004, p. 16). Também foi usada a frase de Sun Tzu, tirada do livro A Arte da Guerra: “A suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem Lutar” (CLAVELL, 1983, p. 26). Lao-Tsé também assentou o conceito de que as atividades humanas não podem e não são encaminhadas somente pela lógica racional, e sim pela imprevisibilidade: o ser humano deve de modo imperativo compensar, permanentemente, suas atitudes, em acordo com seus semelhantes. Nas Artes Marciais orientais, transformadas em Modalidades de Esporte de Combate, verifica-se claramente que, por mais que se estude a tática do adversário e tente se prognosticar tudo o que dele poderá surgir, acontecem verdadeiros arranjos surpreendentes, cujas ações e reações serão sucessivamente imprevisíveis, o que transforma esses combates em importantes demonstrações de intensa capacidade de adaptação cognitiva e emocional. 25 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Saiba mais O artigo a seguir faz uma conexão entre as éticas de origem oriental e ocidental: MENDONÇA, S.; ANTUNES, M. M. Ethos e wude como fundamentação da ética marcial: educação de si mesmo. Revista Educação, São Paulo, v. 6, jul./dez., p. 25-52, 2012. Disponível em: <http://www.portal.anchieta.br/ revistas-e-livros/educacao/publicacoes/revista_educacao_06.pdf>.Acesso em: 13 mar. 2018. 1.1.3.2 Modalidades de inteligência preponderantes nos praticantes de Artes Marciais Segundo Gardner (1995), o ser humano parece dispor de múltiplas inteligências, no caso sete distintas: musical, linguística, corporal-cinestésica, lógica-matemática, espacial, interpessoal e intrapessoal, as quais se manifestam de maneiras diferentes e podem se conjugar por meio das capacidades genéticas próprias associadas aos estímulos ambientais e culturais. Ele propõe também que as inteligências são independentes e os indivíduos podem revelar diferentes capacidades intelectuais, cujas atuações podem se conjugar em uma ou mais dessas inteligências. A inteligência musical decorre de um sistema neural simbólico acessível e lúcido de percepção e interpretação de sons, timbres, escalas e frequências, volumes e composição ou combinação de notas, de modo a compreender e realizar harmonias de sons e significados (GARDNER, 1995; SESSIONS, 1950). A capacidade de inteligência musical implica conseguir decodificar situações em que os sons levam ao arranjo de circunstâncias de sensações específicas, as quais se traduzem em grande harmonia instrumental sendo apreciadas como arte. Além do contexto biológico, as oportunidades para se aprender música derivam dos estímulos para tocar instrumentos, para cantarolar, aprender as notas, avaliar melodias e o estudo frequente e periódico (ZENHAS et al., 2005). A capacidade de agudeza linguística provém da estrutura biológica do ser humano em mostrar algum meio de comunicação inerente da capacidade filogenética humana. Porém, seu aprimoramento depende muito dos estímulos de escrita, leitura, debates, discussões orais, declamativas, retóricas que favoreçam a formação de estrutura de linguagem, sintaxe, semântica e criatividade literária, oral e poética (JOHNSON, 2010). As extensões filosóficas e religiosas citadas anteriormente, aliadas às práticas efetivas nas Artes Marciais, proporcionam abrangentes mecanismos de constituição mental e afetivo-social sobre seus praticantes. Esses mecanismos se apresentam densamente vinculados à formação de múltiplas inteligências, dentre elas as que mais se destacam são: a cinestésica-corporal, a intra e a interpessoal, ou emocional, a inteligência lógica e a de noção de orientação espaçotemporal. A lógica se constitui de raciocínio fundamentado nos cálculos, no estabelecer de relações sequenciais e classificatórias, próprias de movimentos bem estruturados e regulamentados pela eficiência, pelo dar 26 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I certo e evitar as tentativas imaginárias. O avaliar é baseado em experiências já vividas e as reações são bem organizadas e eficientes. A prática de movimentos bem precisos leva em consideração a eficácia da ação e provoca a concepção de séries motrizes bem claras e com grande poder resultante. O estudo anatômico e as posições físicas mais vulneráveis, bem como a utilização da máxima variação nos graus de liberdade musculoarticular provocam a estruturação única de raciocínio coerente e sistemático. As Artes Marciais possuem movimentos complexos, porém fundamentados em combinações corpóreas específicas. Ao mesmo tempo, têm regras de conduta e ritualização sequencial que permitem seguir normas e padrões que incentivam a reflexão de atitudes. A dedução lógica é construída pela reatividade exigida pela proposta de combate corporal e exercício de resolução de problemas instantâneos e imediatos, construindo princípios importantes para aprendizagem da tomada de decisão. Antecipação de movimentos pela dedução de resultantes corporais ao se contextualizar a conjunção de ações do oponente também exerce entusiasmo intelectual e provoca o desenvolvimento de reações predeterminadas que evitam riscos e previnem o fracasso. A inteligência cinestésica-corporal provém do contato físico, cuja característica é sua intensidade animada. O real é a magnitude da expansão corporal do outro, contra seu domínio e resistente à submissão. A interação é corporal, viva e presente. Tocar, agarrar, derrubar, conter o corpo com o corpo. Conforme assinala Gardner (p. 23, 1995): “A evolução dos movimentos especializados do corpo é uma vantagem óbvia para as espécies, e nos seres humanos essa adaptação é ampliada através do uso de ferramentas”. Desse modo, usar uma arma de combate, expressar seu corpo em movimentos estratégicos e disputar espaços corporais e domínio de contraposição física faz parte da inteligência corporal-cinestésica, que passa assinaladamente pela prática ordenada de Artes Marciais. A seguir podem-se observar duas figuras obtidas do livro Judô Kodokan (2008), que mostram princípios da física dinâmica de alavanca, formada pelo contato específico característico do Judô, necessário para a projeção do adversário. Essas ações coordenadas são provocantes oportunidades de formação das inteligências lógica dedutiva e cinestésica-corporal. a) b) Figura 13 – Física dinâmica no Judô 27 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Conseguir manter o autocontrole, mesmo nas condições mais desfavoráveis, por exemplo, recebendo acometimentos ofensivos, de ordem anatômica ou até psicossocial e mostrando capacidade de superação da presença do outro sobre seu campo de conforto e privacidade situacional é uma das qualidades humanas mais admiráveis. O indivíduo que pratica Artes Marciais se distingue na construção do autocontrole, pois alcança capacidade de suportar as mais duras ofensas e ataques, de modo a absorvê-las completamente, recuperar seu centro e equilibrar as forças que o desestabilizaram. Suplanta seus medos, controla seus instintos e evita o conflito desnecessário. Ao ser atacado, não reage intempestivamente, mas acostuma-se a analisar fria e rapidamente a situação e retoma sua posição de equilíbrio, mantém-se lúcido e racional, tomando a decisão mais favorável. Chama-se isso de contenção emocional. Essa inteligência lida com os aspectos internos da própria reorientação mental, isto é, a inteligência intrapessoal e com os aspectos que provêm de atitudes de interatividade pessoal, ou seja, a inteligência interpessoal. Nas Artes Marciais, respeita-se para ser respeitado. Muitas vezes se deve ceder para vencer; controlar impulsos e brandir seus instintos de tal modo a agir para se alcançar o resultado que contemple a preservação da vida, do controle da situação, do domínio emocional e o alcance da harmonia pelo estabelecimento da racionalidade. Finalmente, a capacidade de orientação espaçotemporal é construída por meio da disposição do próprio corpo, do esquema corporal a ser usado, por exemplo, quais segmentos e membros que poderão alcançar os seus objetivos mais intrínsecos e ao mesmo tempo orientar o indivíduo na situação de confronto. Os ajustes são constantes e permitem a localização de espaço, tempo de aproximação e distanciamento entre os participantes e atletas competidores nas modalidades esportivas de combate. Na figura a seguir, uma disputa de Boxe, pode-se conferir a importância de se saber medir distâncias e efetuar as aproximações ou afastamentos próprios para os combates. Figura 14 – Disputa de Boxe, média distância 1.1.4 Modalidades de Esporte de Combate As competições atléticas na Antiguidade sempre tiveram como objetivo celebrar algum acontecimento, perpetuar o nome de antepassados, promoverem a paz entre os povos e agradecer pelas colheitas e condições climáticas que davam segurança e estabilidade social. O maior evento esportivo humano organizado atingiu 28 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I sua máxima realização por meio dos Jogos Olímpicos gregos. Havia as modalidades “leves”: corridas com cavalos, as ginásticas, as corridas atléticas e corridas com o porte de armas e depois as modalidades“pesadas”: as Lutas, “pale”, em grego. Essas Lutas, ou melhor, agora designadas como Modalidades de Esporte de Combate, eram disputadas com grande intensidade e muito apreciadas pela população. Segundo Poliakoff (1987), baseado nas obras literárias do filósofo Lucius Flavius Philostratus (170-250 EC), sofista da época de domínio imperial romano conhecido como Philostratus de Lemnos, a principal competição dos Jogos Olímpicos realizada na Era Antiga e na Grécia Clássica helenística eram as Lutas. Como já mencionado anteriormente, o pugilismo, a Luta livre olímpica e principalmente o Pancrácio – Pankration Athlima, em grego – Modalidades de Esporte de Combate referenciadas nos Jogos Olímpicos a partir de 648 AEC. Essas Modalidades se tornaram o clímax das competições e mostravam ao povo helênico não apenas um vencedor, mas um herói que havia conquistado a glória pelo uso do corpo como instrumento de submissão ao seu adversário. No trabalho chamado Imagines, de Philostratus de Lemnos, e posteriormente complementado por seu sobrinho Philostratus de Atenas, conhecido como o Jovem, a multidão delirava em apupos e aplausos ao vencedor e o aclamava como um super-homem. Ambos os Philostratus afirmam que a vitória na competição dessas Modalidades de Esporte de Combate não era obra do acaso, e sim produto de árduos treinamentos com foco nas habilidades de sujeição física, no uso perspicaz da força, em estratégias de atuação, respeito ao adversário e concentração descomunal em objetivos determinados (POLIAKOFF, 1987). Essas descrições já demonstram a estruturação das Lutas como modalidades organizadas e reconhecidas como atividades de grande interesse público. Obviamente, as contendas eram legitimadas por regulamentos específicos. Apesar de haver poucas regras no Pancrácio, deviam-se respeitar as normas de não morder o oponente, jamais atacar seus olhos e tampouco investir contra os órgãos genitais. No edital de todos os Jogos Olímpicos estava determinado que fosse proibido matar seu adversário e essa regra era muito importante nas Lutas, pois os combates corpóreos eram muito intensos e causavam contusões e lesões extraordinárias (YALOURIS, 2004). Figura 15 – Estátua de Milón de Crotona, cópia da obra de Pierre Puget, São Paulo: seis vezes campeão olímpico de Lutas nos 60º, 62º e 66º Jogos Olímpicos gregos 29 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Devido ao interesse socioeconômico e observando-se a organização das Lutas como modo de competição, várias disputas corporais e com armas tornaram-se realizações esportivas e deixaram simplesmente de serem consideradas Artes Marciais ou Lutas. Estas foram mais e mais se estruturando, estabelecendo-se por meio de federações e se constituindo por intermédio de regras específicas, sendo disputadas com mediação e arbitragem e ganhando participação grandiosa e ativa de espectadores. Pode-se verificar que atualmente muitas Modalidades de Esporte de Combate são acompanhadas por multidões, com amplo destaque da mídia, por exemplo o Boxe e o MMA. Podem-se comparar as figuras a seguir das Modalidades de Esportes de Combate disputadas na Grécia Antiga como o Pancrácio, retratado nas pinturas e afrescos da época, e o MMA, atualmente. Figura 16 – O Pancrácio retratado na cerâmica grega Figura 17 - MMA: as semelhanças entre ambas as Modalidades de Esporte de Combate são bastante evidentes Assim, o conceito de competição, agôn, próprio da cultura grega, que estabelecia a norma de que sempre se pode ser melhor, espalhou-se e formalizou o Esporte de Rendimento, presente em diversas Modalidades de Esporte de Combate. Em suma, Modalidades de Esporte de Combate são atividades de Lutas e de Artes Marciais esportivizadas, comandadas por instituições do esporte, como: federações, confederações e ligas. Essas modalidades fundamentam-se como agonistas ou demonstrativas, com regras escritas e aceitas, moderação por arbitragem, organização esportiva institucionalizada. O fim máximo é de se obter sucesso competitivo, com objetivos profissionais ou, em certos casos, apenas amadores. 30 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Figura 18 – Estátua de pugilista, cópia romana, século I d.C. (Idade Augusta), coleção BNL, Roma Nos Jogos Olímpicos contemporâneos, ainda fazem parte do programa uma parcela considerável de Modalidades de Esporte de Combate. A sua participação envolve 25% do total de medalhas distribuídas nos jogos, mostrando a importância dessas disputas no interesse olímpico. Ilustrando a riqueza de disponibilidades de Lutas ao se pesquisar sobre esse tema, suas origens e aplicação, encontram-se muitos tipos e variações de combates, os quais foram fundamentados em culturas e práticas sociais as mais distintas. A seguir apresentamos dois quadros com algumas Lutas, Artes Marciais e Modalidades de Esporte de Combate, com seus nomes mais comuns no ocidente e no oriente e com suas possíveis origens, sugerindo algumas observações gerais relativas ao seu aparecimento ou documentação arqueológica e/ou histórica: Quadro 1 – Lutas ocidentais Origem/País Denominação Aparição/Observações Etiópia Pugilato 4.000 AEC Argentina Sipalki 1970/mescla de AM orientais Anglo-saxões Boxe mais moderno Séc. XIX e XX Brasil Huka-Huka/Capoeira Brazilian Jiu-Jitsu Kombato Indígenas Família Gracie Policial Bolívia/Colômbia Tinkus/Grima Indígena religiosa Islândia/Escandinávia Glima Vikings, sec. IX Egito Pugilato (Hikuta), Catching e Luta com bastões 2.737 AEC Grécia Pugilato, Pancrácio e Luta livre olímpica (Wrestling) 648 AEC – Jogos Olímpicos Creta Pugilato 1.700-1.500 AEC 31 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Suíça Schwingen Camponeses Suméria Pugilato 3.000 AEC Senegal Laamb Etnia Wolof – tribal ancestral Sudão Luta Nuba Kush-Núbia ~ 2.700 AEC Holanda/França/Bélgica/Itália Luta Greco-romana Exércitos imperiais, séculos XVIII e XIX (Kampfringen de origem romana imperial) Alemanha/Itália/França/Sicília Esgrima Liu - bo Época medieval França Savate Gouren Séc. XVIII – marinheiros Séc. IV – nobres Rússia Sambo/Systema 1920, URSS EUA Full Contact/Jeet Kune Do. MMA. Bruce Lee Espanha Keyse Defesa pessoal – 1950 Portugal e Galícia Jogo do Pau (cajados) Pastores de ovelhas/medieval Turquia Yağli güreğ (Luta turca ou Luta de azeite) Séc. XI – tártaros Quadro 2 – Lutas orientais Origem/País Denominação Aparição/Observações China Wushu (Kung Fu), Sanshou, kempo (quan-shan), Tai chi chuan, Taijiquan Boxe chinês competição Organizador: Chen Wangting, 1644 Japão Kyosho jitsu (pontos vitais), Judô, Kendô, Kenjutsu, Karatê, Sumô, Aikido, Ju-jutsu Do = caminho Jutsu/Jitsu = técnica Ken = espada Ki = energia Tailândia Muay Thai, Krabkrabong, El Lerdrit (militar) Angkor – 900 EC, Império Khmer Luta Bokator pradal Península Coreana Tae kwon do, Hapkidô, Tsangudô General Choi – ano de1955 EC Vietnã/Laos/Camboja Viet vo dao, Quankido, Ving Tsu (Winchun) Sul da China/Vietnã Sra. Yim Wing Chun, após o ano 1733 (destruição do templo Shaolin) Filipinas/Indonésia/Arquipélago Malaio Kali Silat/Arnis de Mano/Eskrima/Dumog Na Indonésia, chama-se Pencat Silat Índia Yoga, Kalaripayattu, Gatka Ano 600 AEC Israel Krav Maga Defesa Pessoal militar Criador Imi Lichtenfeld, 1940 da EC Uzbequistão/Irã/Pérsia Kurashi Ano 1000 EC Mongólia Bayiridax e Bökh Séc XIII, Genghis Khan Nova Zelândia Mau Räkau Maoris – instrumentos de agricultura – mitologia 32 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I 2 LUTAS, ARTES MARCIAIS E AS MODALIDADES DE ESPORTE DE COMBATE NA EDUCAÇÃO ATUAL A Educação Física é área fundamental de orientação e formação de indivíduos para que exerçam atitudes cidadãs, possam ser protagonistasda busca de seu conhecimento em todos os espectros de atividades humanas, sejam elas científicas, filosóficas, culturais ou sociais. Além disso, ela deve servir para que o sujeito tenha condições de entender sua atuação em sociedade, que seja um ator influente no exercício da cidadania e para que possa exigir seus direitos de maneira a alcançar suas demandas por meio da atuação reflexiva, persistente, ponderada e no âmbito da lei e da humanidade. A disciplina de Lutas se interliga diretamente a esses conceitos e por isso é parte primordial complementar para manifestar a gênese educacional essencial para a construção de indivíduos comprometidos com altruísmo, benevolência, bem-estar social, econômico, cultural e principalmente a convivência pacífica. Pelas razões expostas, vai-se considerar, nesse momento, como se fundamenta a aplicação das Lutas por meio da Educação Física no contexto educacional, em qualquer âmbito da sociedade. 2.1 Contato corporal natural humano: brincadeiras turbulentas A essência humana é construída por uma incessante capacidade de Lutar em vários campos de expressão corporal. Como os animais, somos moldados para enfrentar situações que possam determinar nossa sobrevivência. Apesar de dependermos mais de nossos genitores e ascendentes nos primórdios de nossa existência do que a maioria dos animais em geral, determinados atos são constitutivos de nosso crescimento e desenvolvimento. Algumas aproximações corporais frequentes e com contato físico intenso são usuais entre as crianças e parecem divertir e trazer componentes desenvolvimentistas importantes para a socialização e as autodescobertas. Vejam as figuras a seguir que comparam essas atividades entre animais e humanos: Figura 19 – Ursos jovens em brincadeira de Lutar 33 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Figura 20 – Crianças em brincadeiras agitadas Figura 21 – Brincadeiras turbulentas: parece Wrestling infantil Figura 22 – Duas crianças brincando de Lutar (Severin Nilsson, Nordiska Museet, Suécia, entre 1880/1910) 34 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Figura 23 – Gatos brincando de Lutar Figura 24 – Brincadeiras de força entre crianças – cabo de guerra humano Não se pode deixar de destacar que as crianças, espontaneamente, mostram atividades de contato corporal com tentativas de domínio físico, de supremacia corpórea e de agitação corporal com empurrões, agarramentos e até contatos contundentes. Manifestações de jogos de força, desequilíbrios e abarcamentos são bastante comuns. Elas são classificadas como brincadeiras turbulentas, próprias da irrequietude infantojuvenil. A característica principal dessas revelações animadas e de intensidade controlada entre seus participantes apresenta o afloramento do sorriso e da diversão (MORAES; OTTA, 2003). Outro fator importantíssimo é que a brincadeira começa de modo lúdico, isto é, espontâneo e fluente, sem imposições. Deve-se aproveitar dessa característica natural que provém das crianças e púberes, estudantes dos ciclos fundamentais e médios nas escolas, e associar o desenvolvimento dos melhores atributos da disciplina de Lutas como questão para a ampliação e construção de valores psicomotores e psicossociais. Brincadeiras turbulentas são atividades de grande solicitação imediata e promovem vários disparos de impulsos nervosos para se solucionarem problemas advindos da própria situação, não necessariamente esperada, mas que provoca uma instantânea sensação de poder ou de limitação, contudo sem que se possa sentir perdido ou que não se espere a cooperação do companheiro. 35 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS As ações executadas nas brincadeiras são livres de ferramentas, instrumentos ou necessidade de regras rigorosas, mas também são conjuradas de comum acordo em momentos que levam a circunstâncias bastante divertidas e aproveitáveis. O potencial de prejuízo ou possíveis lesões se dilui pelas próprias relações de afinidade. Despontam autolimitações instintivas pelo entendimento mútuo das condições de corporeidade próxima. Por meio das brincadeiras turbulentas acontece o desenvolvimento da coordenação motora generalizada, o aumento de tonicidade muscular e a coordenação visomotora. O aprendizado é mútuo e aparece a regulação de emoções. O contato físico parece melhorar o envolvimento entre os pares participantes e demonstra trazer oportunidades de interação, descobertas corporais e de encorajamento para enfrentar situações de oposição e contrariedade. O brincar é para valer, mas assume conotação de interatividade pelo comportamento físico e psicossocial recíproco (SANTOS; DIAS, 2010). Essa disposição do ser humano em manter contato corporal favorece a compreensão de que se podem diferenciar situações em que não há controle emocional daquele que se estabelece como calculado e lógico. Assim, no próximo item se fará uma distinção essencial entre os conceitos de briga e de Luta, fundamental para a compreensão do emprego das atividades de Lutas no universo educacional esportivo. 2.2 Diferenças entre briga e Luta Muitas situações cotidianas parecem trazer à tona sentimentos exasperados provindos de desgoverno emocional e total falta de racionabilidade. A sociedade atingiu circunstâncias críticas de envolvimento quase que exclusivas para a sobrevivência contemporânea, com o trabalho assumindo papel de intensa pressão e cobrando frequentes resultados dos indivíduos. Além disso, as coletividades cresceram e as cidades comportam quantidades excessivas de pessoas e espaços reduzidos, provocando deslocamentos cada vez mais intensos e congestionados, os quais trazem constantes perdas de tempo de lazer e de convívio reflexivo. Valores e princípios foram alterados e muitos não se acomodam de maneira a enfrentar novas realidades nas composições familiares, inovações tecnológicas, novidades nas mais diversas situações econômicas, no isolamento social, na insegurança urbana, na falta de solidariedade e na correria das necessidades criadas pelo imediatismo e pelo consumismo. Adicionalmente podem-se mencionar as intermináveis falhas nos processos e atuações políticas, nas quais os governos estão demorando muito para responder às demandas sociais e resolver problemas que minimizem as condições de dificuldades para se atingir condições mais igualitárias, mais civilizatórias e com justiça, ocasionando incertezas, precariedades e falta de confiança. Devido às condições descritas, é fato encontrarmos ocorrências frequentes de desencontros emocionais; pessoas são levadas a estresses máximos e agem sem poder racionalizar momentos tão instantâneos, que se transformam em explosões de fúria e impulsividades sem limites. São comuns histórias de indivíduos que se engalfinham em ruas, transportes coletivos, lojas, supermercados etc. Essas ações de se atracar por algo que não se enquadra na faculdade da lógica humana, com total perda de identidade e com investidas primitivas para se solucionar conflitos comuns, são chamadas de brigas. 36 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I As brigas configuram ações tomadas por quem sofreu sequestro emocional, isto é, perdeu a noção de se colocar no lugar do outro e assume uma identidade que toma conta do seu ser, um sentimento impulsivo que domina a razão (GOLEMAN, 1996). Em suma, brigar é uma atitude bruta e incivil, desprovida de coerência e baseada em sentimentos, isto é, aparece por intermédio das perdas racionais; a emoção toma conta do que se faz, sem qualquer justificativa razoável. Usualmente vemos em competições de Jiu-Jitsu painéis e faixas com os seguintes dizeres: “Quem Luta não briga”. Essa máxima de origem pública se estabeleceu até como lema deprojetos sociais por meio da prática de esportes recreativos com professores de Tae kwon do e o Karatê, além de outros esportes de combate e Artes Marciais. Tal pensamento surge da institucionalização da regra de conduta, na qual o respeito ao oponente em qualquer situação deve ser o ponto primordial do relacionamento humano, o domínio dos anseios deve ser permanente e o autocontrole exercido na sua mais profunda empatia. Aqui a regra principal é ceder para vencer, ousar, porém saber dosar, portanto, prevenir o conflito é um modo inteligente de se Lutar. Evitar a desordem e manter a propriedade emocional traz condições de reflexão e tomada de decisão adequada, correspondente ao círculo equitativo da razão. Como nos lembra Aristóteles (1973), “A verdade está no justo meio”. O ser deve se envolver veementemente em seu meio social e buscar a veracidade das relações humanas através da reflexão pura. A Luta é racional, a briga é emocional. Na briga age-se por instinto e obtêm-se resultados desastrosos, em que o indivíduo submerge a si mesmo e se arrasta para atitudes sem precedentes e com total ausência de ponderação, trazendo consequências muitas vezes irrecuperáveis. Brigas por desejos e pensamentos que se formam como dogmas pessoais se transformam em batalhas públicas com consequências desastrosas, como se podem ver nas brigas de torcidas nos estádios. Figura 25 – Brigas de torcida: a paixão supera a razão Em muitas das Modalidades de Esporte de Combate, como no Judô Olímpico e no Tae kwon do, e em todas as Artes Marciais que preservam as tradições mais clássicas, é obrigatória a saudação inicial e final, salientando a ligação de respeito, ética e aceitação das regras estabelecidas entre os combatentes. 37 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Aqui se lembra que não se está Lutando contra alguém, mas se está lutando com alguém. As regras do combate devem ser seguidas à risca para o bom entendimento e desenvolvimento de ambos os Lutadores. O respeito traz a consideração e compreensão de que ambos estão desempenhando suas melhores qualidades, dentro das regras, e sempre nos mais altos valores éticos e humanos. Sabe-se que hoje você pode vencer, porém amanhã poderá ser a vez de seu adversário. O que vale não ter mais ninguém para medir seu desempenho? Como poderei melhorar se não tenho desafios? Figura 26 – Saudação entre os Lutadores nas Artes Marciais: respeito e ética Figura 27 – Regras no Boxe: respeito ao oponente As Lutas têm trazido aos seus praticantes a clara capacidade de se manter e aprender o autocontrole, caso contrário se admitirá enfrentar situações irreversíveis de perda de domínio e desarranjo emocional, sem possibilidade de recuperação. É fácil imaginar que um Lutador de Boxe ou de Tae kwon do aprende 38 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I a suportar constantes percussões sobre suas faces. Caso ajam por instinto e reajam a um soco de maneira estabanada, vão, seguramente, tomar mais um soco decisivo, porque não conseguem visualizar e racionalizar as condições de enfrentamento e, por conseguinte, perderão a Luta. Esses atletas se preparam, não brigam, mas sim Lutam, e procuram refletir sobre todos os abalos sofridos e igualmente acerca de seus costumes. A prática de Lutas ajuda a preparar seus praticantes a suportarem as pressões que provêm do aprendizado das próprias Lutas e suas maneiras de enfrentamento. O estudo de Lima (2000) menciona que a prática do Wushu (Kung Fu) nas escolas provoca maior aproximação nas afinidades sociais, como empatia, sociabilidade e respeito interativo. Outra pesquisa importante que vale a pena referendar aqui é a de Diniz e Del Vecchio (2013), que mostra que a prática do Tae kwon do, no projeto “Quem Luta não briga”, da secretaria municipal da cidade de Pelotas – RS, proporciona comportamentos positivos em relação ao exercício de relacionamento humano como: consideração pelos mais velhos, irmãos, pais, aumenta a tolerância frente às diferenças, melhora a convivência por meio de demonstração de maior solidariedade e a redução significativa da agressividade verbal e física nas escolas. 3 FUNDAMENTOS TÉCNICOS DAS LUTAS Cada Modalidade de Esporte de Combate, Arte Marcial ou Lutas em geral demonstram movimentos corporais bastantes variados e próprios. Eles são chamados de fundamentos técnicos, gestos técnicos ou técnicas de combate. As técnicas de combate mudaram de acordo com os objetivos a serem alcançados e se basearam em situações estudadas, treinadas e utilizadas ao longo da história humana, e foram se aprimorando conforme as necessidades de cada povo, civilização ou sociedade. Os gestos de combate são tantos quantos se podem empregar na combinação articular do corpo humano e que tenham por finalidade atingir, dominar, envolver, imobilizar, recuperar-se no confronto, bater, golpear, constringir, segurar e limitar a ação do adversário. Esses fundamentos incluem o uso de todas as partes do corpo por si, sejam membros superiores, inferiores à cabeça e tronco ou aliadas com implementos – armas que produzam efeitos extensivos que venham ao encontro dos objetivos da modalidade ou da Luta. Em resumo, os gestos técnicos devem levar à função primordial buscada nas Artes Marciais e modalidades esportivas de combate: tirar o equilíbrio do oponente e manter o próprio equilíbrio durante toda a disputa. Por meio da construção de categorias de movimentos, pode-se compreender melhor a grande variedade de golpes e fundamentos técnicos existentes nos mais diversos confrontos corporais para Defesa Pessoal e disputas competitivas. Assim, podemos relacionar algumas técnicas empregadas em Lutas corporais em geral: quedas controladas, socos, chutes, esquivas, cotoveladas, cuteladas, pegadas, estocadas, joelhadas, cabeçadas, abraçadas, restrições articulares, estrangulamentos, imobilizações corporais, projeções, rasteiras, pontapés etc. As quedas controladas são práticas de aterrissagens específicas, que têm como objetivo principal a proteção dos órgãos vitais. Seus três princípios fundamentais são: • O posicionamento das articulações e os movimentos respectivos, os quais têm como característica favorecer a fluidez dos movimentos. 39 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS • A ampliação da área de contato corporal com o local de queda, cuja ação visa minimizar a pressão e o impacto e, assim, distribuir a energia da projeção recebida pelo corpo. • A recuperação do equilíbrio para aprumar o corpo perante o oponente a fim de trazer a melhor posição de defesa ou contra-ataque e, desse modo, retomar sua posição na Luta. Observe algumas quedas controladas nas figuras a seguir, verifique que elas podem ser variadas à frente, de maneira direta ou por meio de rolamentos, lateralmente ou para trás. Serão mostrados exemplos de prática de quedas controladas comumente treinadas no Judô, no Jiu-Jitsu e no Aikido. No primeiro quadro, mostram-se somente quedas controladas efetuadas para trás, iniciando-se com as práticas a partir da posição sentada, depois agachada e por fim em posição totalmente ereta em pé. No segundo quadro, apresentam-se as quedas de modo lateral e frontal direta e com o rolamento do corpo; tais quedas devem ser feitas com ambos os lados, aumentando o domínio corporal do praticante e ampliando sua segurança e confiança. Figura 28 – Quedas controladas para trás 40 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Figura 29 – Quedas controladas lateralmente e para frente As Modalidades de Combate e Artes Marciais que mais se utilizam das quedas controladas são: Judô, Jiu-Jitsu, Aikidô, Luta Greco-romana, Luta Livre Olímpica – Wrestling, Karatê, Sumô, Sambo, Schwingen – Luta suíça,Kurashi, Glima (Islândia e países nórdicos), Bayiridax (Mongólia) e Luta Turca. Socos, cuteladas e dedadas são ataques efetuados com as mãos, ou parte final da extremidade superior do braço, sobre seu adversário, ou até mesmo o cúbito, no caso das cotoveladas. Usa-se a parte hipótenar, o punho cerrado, isto é, a flexão total de todas as falanges proximais, médias e distais, as partes internas ou externas laterais da mão com o dorso estendido, a parte frontal dos dedos também com o dorso distendido e com as falanges médias e distais flexionadas. A força do soco provém da somação de energia cinética desde o movimento de flexão dos tornozelos, rotação do quadril e tronco, circundução do ombro e extensão do braço. A rotação do tronco soma maior eficiência do soco, aumentando em até 40% a sua potência. A musculatura que concentra essa energia cinética é a do tríceps. 41 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS As cuteladas efetivadas pelo contato súbito e incisivo da parte exterior da mão produzem efeitos devastadores na região da cabeça e do pescoço, como se fosse uma faca cortante, bem como as joelhadas e cotoveladas. Veja a seguir figuras que demonstram alguns dos fundamentos aqui mencionados. Figura 30 – Soco direto no Boxe Figura 31 – Joelhada no Muay Thai 42 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Figura 32 – Cotovelada no rosto, golpe da Defesa Pessoal israelense – Krav Maga Os chutes e pontapés são acometimentos efetuados com os pés e também as pernas. Podem ser de modo frontal, lateral, semicircular, por detrás (coice) e com saltos. Executa-se com o calcanhar, com o dorso do pé, com a região plantar, ou mesmo com os ossos da tíbia e fíbula. Consta a seguir um exemplo de chute lateral com a região plantar, na Modalidade Tae kwon do. Figura 33 – Chute lateral Tae kwon do Pegadas e abraçadas são técnicas de segurar o corpo ou o uniforme do oponente para que se estabeleça a Luta em si. No Judô e no Jiu-Jitsu, é obrigatória a pegada para que se caracterize a Luta. Na Luta Greco-romana e no Wrestling, as pegadas são efetuadas corporalmente. A seguir constam algumas outras ações técnicas das Lutas: a pegada pelas mãos no corpo do Lutador de Luta Greco-romana com abraçada simultânea, a imobilização do Judô, a pegada no judogi, uniforme de Judô, e a simultânea projeção no Judô, além do estrangulamento no Jiu-Jitsu. 43 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Figura 34 – Pegada/abraçada na Luta Greco-romana Figura 35 – Imobilização no Judô Figura 36 – Pegada e projeção no Judô 44 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Lembrete Queda controlada é aquela efetuada por quem é projetado/arremessado, de modo a dominar os efeitos que se sucederiam sobre o corpo. Figura 37 – Estrangulamento no Jiu-Jitsu Esquivas e fugas são desvios corporais para afastar, evitar ou aproveitar-se dos golpes adversários. A ginga da Capoeira é considerada um modo de preparação de escape dinâmico dos ataques do oponente. Os movimentos pendulares dos Lutadores de Boxe, os giros corporais no Judô, do Wrestling e do Sumô são exemplos de esquivas eficientes e que se configuram em uma maneira de enfrentamento bastante hábil e de alta qualidade técnica corporal. A háptica é a capacidade de percepção e responsividade tátil por meio de implementos, equipamentos, uniformes etc. Os praticantes de Lutas que exigem a empunhadura de armas, como a Esgrima, o Nunchaku, o Wushu e o Kendô procuram, com extrema destreza, perceber como serão os próximos movimentos de seu oponente, por meio de sensações transmitidas pelos instrumentos de Luta. Em modalidades como o Judô, por causa do uso do judogi, do Jiu-Jitsu, também por causa do uniforme, e do Sumô, devido ao uso do mawashi – sunga de seda que permite ser a causa de captura corporal de um oponente em contato com o outro lutador, existe a háptica. A háptica é a responsividade tátil do corpo por meio da vestimenta de combate, isto é, uniforme, equipamento obrigatório da Luta, que se transforma em transmissor de informações. Essas condições então favorecem a condução de informações, por intermédio das pegadas realizadas nessas vestimentas, para que se possam tomar decisões respectivas aos golpes, defesas e contra-ataques, seja pelo atacante, seja pelo defensor. Ainda nas modalidades cujo uso de armas é permitido, verificam-se fundamentos técnicos como o possível corte, a perfuração e as estocadas, porém não mais efetivas no sentido de serem causas para letalidade, pois se empregam uniformes e equipamentos de proteção bastante eficientes. Esportes como a Esgrima e o Kendô apresentam essas técnicas de toques por implementos. 45 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS 3.1 Princípios de domínio e de confronto Como se percebe, com certa facilidade de compreensão, há as mais distintas Lutas praticadas no mundo todo. Cada qual possui muitos elementos próprios de ações de contundência, de constrição, de supressão ou eliminação, desse modo fica difícil estabelecer uma metodologia de ensino que possa ser tão densa e tão técnica no âmbito da Educação Física e da iniciação esportiva. O aprofundamento técnico é muito abrangente, devido à grande complexidade de movimentos e combinações que se estabelecem para o exercício das Lutas, de tal maneira que se possam aprender todos os pormenores de cada uma. Desse modo, ressalva-se que o aprimoramento técnico exige muitos anos de prática e dedicação, precisando de capacitação física e motora aliada às habilidades necessárias para cada modalidade esportiva de Lutas. O refinamento na execução e autonomia de movimentos exige grande dedicação, muitas horas de prática, repetição, aperfeiçoamento, estudos, conhecimento intenso e experiência. Assim, desponta a questão: como ensinar Lutas no âmbito da Educação Física? Sabe-se e fica evidente que nas grades curriculares dos cursos de Educação Física não há tempo suficiente para se examinar todas as Lutas, praticá-las a fundo e com a determinação que exigem para obter o seu requinte. Por essa razão, organizaram-se alguns conjuntos de estudo para que se pudesse atender uma gama compreensiva de Lutas, sem a necessidade de se concentrar em uma única modalidade. Sugere-se a primeira divisão de estudos pelo agrupamento de fundamentos ou categorias, titulado como princípio de domínio. Depois, o segundo grupo de observações refere-se aos estudos técnicos que procuram compreender como se efetuam os enfrentamentos de cada modalidade, e é designado como princípio de confronto. Os princípios de domínio são categorizados no campo do controle de ações, fundamentos técnicos e gestos específicos das modalidades de Lutas que efetivamente produzam resultados nos quais se determinem pontuação eficaz, triunfo ou superioridade absoluta no combate, conforme compatível e aceito no âmbito que cabem nas regras de cada modalidade. Os princípios de domínio classificados para fim de estudo na disciplina de Lutas são três: o agarre, o toque – com ou sem armas – e, por fim, a varredura. O agarre demonstra o envolvimento corpóreo entre os lutadores de modo que se tomem para si os segmentos corporais, imobilizando e restringindo sua atuação natural, fazendo com que o oponente não possa se livrar do controle imposto pela atuação segura e imponente. Os fundamentos que se alinham a esse princípio são: as pegadas, as puxadas, as empunhaduras, os empurrões, as abraçadas, as projeções, os arremessos, os estrangulamentos, as restrições articulares (torções), as imobilizações, os aprisionamentos, os apertos e os enlaces. Ele é executado tanto com os membros superiorescomo com os inferiores, além do tronco, e também por intermédio de suas possíveis combinações. O uso de implementos é raro, mas podemos citar cordas e faixas como possíveis elementos para enrolar partes corporais e causar efeitos de enlaces, aprisionamentos e estrangulamentos. O toque é constituído por fundamentos técnicos bastante intensos, porque procuram desestabilizar o lutador antagonista, efetuando-se movimentos incisivos contra o corpo do adversário. Os toques visam percutir com tamanha dimensão, causando choque ou uma colisão efetiva contra quem se está 46 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Lutando. Mãos, dedos, pés, pernas, joelhos, cabeça, cotovelos e ombros são protagonistas de ações de toques, bem como o uso de espadas, facas, clavas, lanças, chicotes e outros implementos. Varreduras, por sua vez, são gestos técnicos particulares efetuados com as mãos, os braços, os pés e as pernas e procuram colocar os adversários no solo de tal maneira que eles sejam disseminados ao chão, sendo arrematados, perdendo seu equilíbrio rapidamente. Nelas observa-se que a caída do lutador, em geral, é em decúbito dorsal, como se fosse cortado por uma foice de um trabalhador rural e, assim, assolado de costas, a exemplo dos lavradores, que ceifam a cana-de-açúcar e os caules caem subitamente. Os lutadores que recebem uma varredura eficiente perdem o equilíbrio tão rapidamente sem poder saber como caíram, apenas percebendo que foram lançados ao solo de modo imediato e sem mais tempo suficiente para se restabelecer. As rasteiras, as ceifadas e os arrastes são os golpes mais característicos desse princípio de domínio. A seguir pode-se ver uma rasteira em pé, da Capoeira e uma ceifada com as mãos, usada no Judô, Karatê, Jiu-Jitsu, MMA e Luta Livre Olímpica – Wrestling, fundamentos técnicos que se caracterizam por meio do princípio de domínio da varredura. Figura 38 – Rasteira em pé na Capoeira Figura 39 – Arraste das pernas com emprego das mãos 47 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Observe o quadro a seguir que relaciona os princípios de domínio, suas características, os fundamentos mais comuns e alguns exemplos de Modalidades de Combate que as utilizam. Quadro 3 – Princípios de domínio, fundamentos, características e modalidades respectivas Domínio Fundamentos/Aplicações Características MEC/AM/Lutas Agarre Pegada Projeção Estrangulamento Restrição articular Arremesso Imobilização Empunhadura etc. Tomar para si Envolver Segurar Aprisionar Restringir Torcer Apertar Judô Sumô Sambo Luta Greco-romana Jiu-Jitsu Wrestling Glima Luta turca Kurashi MMA Toque sem armas Cutelada Soco Dedada Chute Pontapé Cotovelada Cabeçada Joelhada Ombrada Coice Choque Percussão Contundir Colisão Pancada Contato Batida Karatê Tae kwon do Muay Thai Boxe Savate Capoeira Sanshou Kickboxing Kali Silat Krav Maga MMA Toque com armas Estocada Perfuração Corte Açoite Bater Trespassar Furar Dividir Fender Desfigurar Dilacerar Esgrima Kendô Nunchaku Wushu Jogo do pau Maculelê Varreduras Rasteiras Arrastes Varridas Navalhadas Raspagem Assolar Deitar ao solo Derrubar Derruir Ceifar Varrer Capoeira Sambo Judô Karatê Jiu-Jitsu MMA Ao se enfrentar um oponente e de acordo com as regras instituídas, os Lutadores procuram essencialmente, e isso ocorre em todas as Lutas, manter seu equilíbrio e tirar o de seu adversário, por meio dos fundamentos técnicos de ataques, golpes, defesas, bloqueios, esquivas e, ao mesmo tempo, salvaguardar sua posição, com o uso de estratégias de combate e adaptabilidade. 48 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Durante uma confrontação, sabe-se que seu oponente deve ser atingido ou dominado, mas ao mesmo tempo seu adversário está procurando o mesmo contra você. Portanto, durante o embate medem-se habilidades para o correto emprego de forças, técnicas, posicionamentos e muda-se a maneira de se opor às dificuldades enfrentadas. Nas Lutas, Modalidades de Esporte de Combate, Artes Marciais e Defesa Pessoal os combatentes podem se valer de recursos corporais próprios ou instrumentais específicos para a disputa. A propriedade agonística dos combates pode ser realizada de maneira a enfrentar oposição corporal direta – uso do próprio corpo como instrumento de ofensiva e defensiva, ou oposição indireta – por meio de dispositivos e instrumentos próprios da modalidade (espadas, bastões, nunchaku, varas, lanças, cordas etc.). São exemplos de modalidades de enfrentamento por meio de oposição corporal direta: Judô, Karatê, Wrestling, Sumô, Tae kwon do, Muay Thai, Savate, Boxe, Jiu-Jitsu etc. Já a Esgrima, o Kendô, o Nunchaku e a Luta de bastões são alguns gêneros que envolvem o enfrentamento por intermédio da oposição corporal indireta. O enfrentamento nas disputas corporais é fundamentado em três pilares competitivos, que são utilizados de acordo com as características de cada Lutador e da tática e adequabilidade a ser executada durante o combate, os quais determinam atitudes bastante evidentes para quem observa a contenda. O primeiro são os ataques ou acometimentos, assinalados por golpes decisivos e com intenção de se obter imediato sucesso competitivo. Competidores que preferem investir contra o oponente possuem estratégia de Luta associada à sua agressividade contundente; creem que unicamente empregar o golpear intenso é a melhor maneira de causar dissabores ao opositor e acabar com o confronto rapidamente. Exemplos de Lutadores que possuíam esse jeito de afrontar seus adversários eram o americano Mike Tyson, campeão mundial no Boxe, o turco Servet Tazegul, medalhista olímpico do Tae kwon do, o holandês Ramon Dekkers, campeão mundial do Muay Thai e o judoca brasileiro, medalhista olímpico, Tiago Camilo, que se lançavam veementemente contra seu adversário, deferindo com sucesso uma quantidade de golpes abundantemente elevada. O segundo alicerce do enfrentamento são as defesas e os bloqueios, os quais são atos de proteção contra as agressões recebidas, pois interpõem a continuidade da ação de ataque, evitando que atinjam sua finalidade. Os bloqueios objetivam descontinuar a ação do opositor e assim proteger e possibilitar o próprio resguardo físico. Os bloqueios inutilizam os ataques. Lutadores que se valem dessa prática de defender e bloquear se apropriam de uma estratégia de cautela adequada às suas possibilidades físicas e técnicas, preferindo causar dificuldades aos atacantes ao impedir suas ações, até que percebam alguma falha e por meio de contra-ataques consigam executar um golpe crucial. Lembramos do judoca brasileiro, bicampeão mundial de Judô, João Derly, o qual se utilizava de bloqueios e defesas primeiramente para depois aplicar um golpe fulminante no adversário. Também o americano Muhammad Ali, campeão mundial dos pesos-pesados do Boxe, cujos bloqueios extremamente precisos contra seus adversários ficaram marcados na história, como na Luta contra Joe Frazier, em 1975, em Manila, nas Filipinas. Ainda acentuamos Natália Falavigna, competidora brasileira 49 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS de Tae kwon do medalhista mundial e olímpica, que usava com muita propriedade as defesas para depois desferir o contra-ataque. Por fim, destacamos uma propriedade competitiva de combate excepcionalmente perspicaz, a pedra angular das Lutas, Artes Marciais, das Modalidades de Esporte de Combate e da Defesa Pessoal, o enfrentamento por meio das esquivas, fundamento técnico que possibilita apresentar as principais capacidades dos maiores Lutadores do mundo, pois exige excepcional aptidão motora de antecipação corporal. A esquiva não é umadefesa, pois não propõe o bloqueio da ação do oponente, mas faz com que os seus ataques sejam desperdiçados. A ação e energia executadas pelo atacante são dissipadas. Consequentemente, o atacante, em seu ímpeto de aplicação do golpe, fica propenso a perder seu equilíbrio corporal, ao desgaste físico e emocional, e desse modo vai tendo a potência e autoestima consumidas. Ao não conseguir incidir sobre seu antagonista, nota que não acertará seu oponente de maneira absoluta, percebendo a ruína de seus planos de vitória e perdendo a concentração, quando então se expõe mais facilmente aos contra-ataques do adversário. Lutadores que se utilizaram com grande competência da esquiva em seus combates foram: o brasileiro Éder Jofre, bicampeão mundial de Boxe, campeão mundial de Boxe, o americano Evander Holyfield e o brasileiro Lyoto Machida, campeão mundial do Ultimate Fighting Championship. Ainda citamos o americano Bruce Lee, do Jeet Kune Do, que usava as esquivas com grandiosa velocidade para derrotar seus adversários, e o russo Alexey Yakimenko, Esgrimista de sabre, que usa a esquiva para propiciar posições e circunstâncias excelentes para seu contra-ataque fulminante. Enfim, Lutar é enfrentar pressões imediatas e contínuas. Para tal, é preciso grande capacidade motora física condicionante, competência motora coordenativa de movimentos, preparação psicológica, estratégica e o poder de adaptabilidade instantânea. Todas essas características, considerando-se aspectos táticos, foram assumidas de modo a se configurar como princípios de confronto. Então, foram determinados estudos de enfrentamento ou, como já titulamos anteriormente, os princípios de confronto; eles foram sistematizados respectivamente de acordo com as condições de emprego e características da modalidade e os temperamentos dos atletas, pois uns preferem Lutar mais próximos e outros estarem mais distantes. Os princípios de confronto visam instituir condições de adaptabilidade posicional, de distanciamento e de temporalidade a partir de antecipação de movimentos, esquema corporal (tamanho de segmentos articulares), grau de liberdade articular e probabilidades e disponibilidades de movimentação nas Lutas. Observação Grau de liberdade corporal, segundo Bernstein (1967), refere-se às possibilidades de combinações de movimentos entre o tamanho dos segmentos ósseos e as angulações das articulações. São princípios de confronto: o distanciamento corporal e as estratégias de Luta. O espaço sugerido para se propor a melhor distância entre os combatentes depende muito das características da Luta a ser 50 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I realizada, pois a aproximação ou o afastamento entre os Lutadores está sujeito aos golpes que podem ser efetuados, às regras da modalidade e às defesas e esquivas possíveis de serem efetuadas. Lutas, Modalidades de Esporte de Combate, Defesa Pessoal e Artes Marciais nas quais o envolvimento corporal exige muita proximidade entre os combatentes, por exemplo, as de agarre, caracterizam-se pelo princípio de confronto como de curta distância. Já as modalidades que empregam os toques com os segmentos corporais, como mãos, braços, pés e pernas se distinguem por serem designadas pelo princípio de confronto de média distância e, ao se empregarem armas e implementos como uma extensão corporal, para atingir seu oponente, trazem a marca do princípio de confronto de longa distância. Veja a seguir algumas figuras com exemplos dos princípios e as modalidades respectivas. Figura 40 – Judô: Luta de aproximação (curta distância) Figura 41 – Karatê: uso de segmentos corporais como precursores (média distância) 51 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Figura 42 – Kendô: emprego de implementos (longa distância) Figura 43 – As espadas conferem maior distanciamento entre os esgrimistas Obviamente um Lutador treina e se dedica para aprimorar suas qualidades mais proeminentes e procura diminuir suas deficiências em algumas das condições de enfrentamento aqui descritas. Com a finalidade de oferecer uma organização didática para se compreender a utilização e as especificidades dos princípios de confronto, mostra-se na tabela a seguir a relação desses aspectos de enfrentamento com exemplos de Lutas, Artes Marciais, Modalidades de Esporte de Combate e Defesas Pessoais: 52 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Quadro 4 – Princípios de confronto, especificidades e exemplos de Modalidades de Esporte de Combate, Defesas Pessoais, Artes Marciais e Lutas em geral Distância Característica Especificidade Exemplos de Lutas, DP, AM e MEC Curta Oponentes muito perto um do outro. Aproximação. Ajuntamento. Lutas de agarre ou com muita proximidade corporal. Oponentes enganchados. Esquivas por giros e afastamentos corporais. Bloqueios com quadril e tronco. Jiu-Jitsu Judô Sumô Luta Greco-romana Wrestling Glima Schwingen Sambo Yağli güres Krav Maga Ving Tsu Kurashi Bayiridax Média Adversários mais distantes, usando como medida o tamanho de seus segmentos corporais envolvidos nas ações de ataques. Golpes e afastamentos relativos a acertar e não ser acertado. Bloqueios com os próprios segmentos corporais. Esquivas: giros, aproximação, afastamento e háptica. Boxe Muay Thai Tae kwon do Karatê Savate Capoeira Longa Lutadores mais distantes, atuando pelo alcance dos utensílios de ataque. Ataques por meio de implementos e armas. Esquivas corporais e por meio da háptica. Bloqueios com os instrumentos da Luta. Esgrima Kendô Nunchaku etc. Constam a seguir imagens que mostram esquivas e bloqueios que foram bem-sucedidos. Figura 44 – Esquiva para trás – escape do chute no Muay Thai 53 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Figura 45 – Bloqueio de chute no MMA Considera-se que a utilização dos princípios de domínio e de confronto das Lutas, Artes Marciais e Modalidade de Esporte de Combate constituem uma gama bem variada de fundamentos técnicos e o seu emprego no esporte exige grande responsabilidade, porque podem causar danos importantes naqueles que recebem seus ataques e são atingidos. Sabe-se que no esporte de hoje as competições são conduzidas por regras muito rígidas e as lesões e prejuízos são circunscritos às situações mais acidentais e à falta de preparo esportivo do que pela atividade em si. Vamos discutir isso mais adiante ao apresentarmos a terceira unidade relativa ao esporte competitivo, pois lembramos que nesta primeira unidade deste livro-texto se está preconizando as Lutas no Esporte Educação. Assim, chegamos a um ponto de questionamento: como usar todo esse vasto espectro de possibilidades motrizes, psicossociais, cognitivas e suas combinações a fim de proporcionar a compreensão dos elementos das Lutas para a educação e formação aos seus aprendizes e iniciantes? A seguir serão apresentados dados para direcionar o profissional da Educação Física a examinar possibilidades da utilização de elementos das Lutas, Artes Marciais e Modalidades de Esporte de Combate e Defesas Pessoais para contribuir na construção educacional. 4 LUTAS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO FÍSICA O esporte escolar brasileiro aponta para ser importante instrumento de ativação a fim de intervir a favor do desenvolvimento humano. Veja a declaração contida no portal do ministério do esporte brasileiro: A finalidade do esporte escolar é o desenvolvimento integral do homem como ser autônomo, democrático e participante. Embora resguardando seu significado educativo, e os objetivos do projeto político-pedagógico de cada instituição, deve ter tratamento diferenciado dependendo de sua especificidade como objeto de estudo da Educação Físicaou como atividade complementar da escola. Caracterizado como espaço de intervenção e de direito social, o esporte escolar deve enriquecer e ampliar o currículo, 54 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I garantindo a gestão democrática e participativa e a elevação da qualidade de ensino. Precisa abranger a educação básica, pública e privada, e tratar seu conteúdo sob a perspectiva da inclusão. O foco é a elevação dos índices de frequência, o compromisso com a qualidade e a universalização do acesso às práticas do acervo popular e erudito da cultura corporal (MINISTÉRIO DO ESPORTE, [s.d.]). Valores como o mérito obtido pelo esforço, respeito pelos seus próximos, criação de autonomia, a construção do conhecimento e exercício da cidadania, com plena consciência de seus deveres e consumação de seus direitos são qualidades do ser humano que devem ser, permanentemente, praticadas na aplicação da disciplina de Educação Física, trabalhando o corpo pelo movimento (BRASIL, 1997). Como é possível usar as Lutas como meio educacional no mundo atual? Veja a descrição contida no PCN da Educação Física: As Lutas são disputas em que o(s) oponente(s) deve(m) ser subjugado(s), mediante técnicas e estratégias de desequilíbrio, contusão, imobilização ou exclusão de um determinado espaço na combinação de ações de ataque e defesa. Caracterizam-se por uma regulamentação específica, a fim de punir atitudes de violência e de deslealdade. Podem ser citados como exemplo de Lutas desde as brincadeiras de cabo de guerra e braço de ferro até as práticas mais complexas da Capoeira, do Judô e do Karatê (BRASIL, 1997). Figura 46 – Cabo de guerra: combate coletivo para tirar o equilíbrio da equipe adversária O criador do Judô, mestre Jigoro Kano, teve por norma que as Lutas consistiam a melhor maneira de realizar uma atividade física educacional, se devidamente organizadas e com elementos que permitissem a seus praticantes as executarem sempre em segurança, sobretudo por trazerem noções essenciais ao desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial (MIRANDA, 2004). 55 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS As Lutas seriam a base da Educação Física, em sua concepção primeira como atividade física para tornar o corpo saudável. Ao se exigir de cada combatente a manutenção de seu equilíbrio e a tentativa de se tirar o equilíbrio do adversário, constroem-se condições para o desenvolvimento de capacidades motoras coordenativas, cognitivas e psicossociais. As capacidades motoras coordenativas são formadas pelo desempenho do sistema nervoso central (SNC) no controle de ações e na coordenação motora que envolve a recepção sensorial, a sua análise e o emprego efetivo por meio das respostas motoras necessárias para sua atuação, tais como: o próprio equilíbrio, o ritmo, a agilidade, a competência visomotora, a capacidade tátil-motora, a noção espacial, o esquema corporal, a lateralidade e a ambidesteridade, a orientação dimensional e a disposição espaçotemporal. Ao se buscar a adaptabilidade frente aos desequilíbrios que são infligidos ao Lutador e nas mais variadas tentativas motrizes de combinações de movimentos e gestos específicos e complexos, deve-se de modo muito eficaz propiciar a integração dos sistemas visual, auditivo, tátil e proprioceptivo de tal modo a disparar impulsos nervosos que ajustem a seleção e o mecanismo de resposta motora. Dessa maneira, será criada a melhor combinação musculoarticular, a qual fará frente aos desafios motores e responderá de modo eficaz ao que se deseja alcançar. Já no domínio cognitivo, e ao mesmo tempo em que age nas áreas motoras e emocionais, se provocam, na perspectiva intelectual, as seguintes qualidades na prática das Lutas: favorecimento do treinamento da mente para a reflexão, a antecipação e respectiva tomada de decisões, a ampliação da percepção e atenção, além de promover a manutenção e o aprofundamento da concentração. Essas propriedades são obtidas pelos desafios impostos concomitantemente pelos Lutadores entre si e também ao dualismo ação e reação corporal para a manutenção de sua estabilidade corporal e autoestima, aliadas aos desejos de enfrentamento de situações peculiares como mostrar ao adversário sua faculdade de manter sua posição de igualdade. Por fim, simultaneamente, no campo psicossocial, e devido à intensa interatividade corporal e troca constante de estímulos físicos imediatos e contundentes por meio dos gestos técnicos específicos das Lutas, começa-se a propiciar a construção de conduta de respeito ao seu opositor. De forma adicional se aprendem os limites de atuação corporal, em especial pela experiência de ser desafiado a superar resistências ou ataques imprevisíveis e impostos instantaneamente pelo seu confrontante. A vivência corporal integrativa agrega a corporeidade própria e conjunta, aplica e recebe uma diversidade de informações corpóreas que estimulam a percepção do outro, da sua importância e dos limites de atuação quanto ao autocontrole e aprendizado da contenção social (MIRANDA, 2004). Obviamente, o papel do professor deve ser intenso, participativo e atuante, convidando o aprendiz a compreender sua função de ator importante na construção dessas capacidades motoras coordenativas, cognitivas e psicossociais. O docente deve manter-se bem atento, pois Lutas e Modalidades de Esporte de Combate expostas pela mídia fantasiosa, sensacionalista e exagerada, exercem fascínio pela plástica visual e pela exposição de certo domínio corporal, pelo qual determinado indivíduo, em situações específicas, subjuga a outro ser. Não se deve considerar o sentido da vida imposto somente por representações nas quais se 56 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I deturpam as atribuições das Lutas, propagando que somente os mais fortes podem mais e que o fim seja o de causar dano deliberado, pois assim seria o mesmo que briga, incitando à violência. O intercâmbio corporal, a combinação de gestos técnicos, as descobertas das próprias limitações e potencialidades precisa ser o pensamento de orientação do professor aos seus aprendizes de Lutas. As Lutas, no seu argumento mais denso, são instrumentos de excelência para o desenvolvimento integral do ser humano, a partir do fato de que devem ser mostradas como significado da conjunção equilibrada entre o uso da máxima eficiência, com a maior habilidade de execução e o mínimo dispêndio de energia física. Dominar, conter ou sobrepujar seu opositor, não significa eliminá-lo, mas momentaneamente, e em determinada ocasião, a demonstração singular de superação de resistências circunstanciais. Muitas Artes Marciais evoluíram, destacando que o adversário que se contrapõe às suas ideias, o qual resiste aos seus ataques e impõe limites em sua atuação física ou psicossocial, não deve ser desprezado nunca. Contudo, ao mesmo tempo, deve ter reconhecida a sua importância, pois seus estímulos corporais serão essenciais para se obter o próprio aprendizado. Adicionalmente, chama-se a atenção para o fato da mistificação da aplicação dos fundamentos das Lutas nas aulas de Educação Física. Existe certo esoterismo nas relações dos instrutores e praticantes de Lutas, com o mundo da educação, na tentativa de preservar uma aura de complexidade acima da realidade. O professor de Educação Física deve se aprofundar nas pesquisas e estudar os elementos de construção das capacidades coordenativas e psicomotoras inerentes das técnicas usadas nas mais variadas Lutas e, desse modo, adaptar os conteúdos para os objetivos de estruturação da vivência corporal que permita a plena identificação com as distinções dos aspectos cognitivos, psicossociais, físicos e motrizes. Chama-se a atenção para o fato de que a utilização de especialistas ficaria mais bem reservada à complementaçãoespecífica de informações apropriadas à cultura de particularização ao rendimento esportivo, e não à área educacional. Um olhar abrangente sobre a metodologia de ensino recomenda que se aproveite de sequências pedagógicas, após análises das modalidades cujas ações motoras mais proeminentes sejam demasiadamente complexas. Deve-se primeiramente pesquisar e compreender seus componentes em separado, efetuando plano de ensino que molde o aprendizado por encadeamento progressivo e avaliações respectivas, sempre em consonância com os objetivos pretendidos e estipulados pelo plano de aula e de estudo. Saiba mais Para mais informações relacionadas ao princípio da aprendizagem do Judô, leia: MIRANDA, M. L. A iniciação no Judô: relação com o desenvolvimento infantil. 2004. Monografia (Graduação em Educação Física). Instituto da Saúde, Universidade Paulista, São Paulo, 2004. 57 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Além disso, como as Lutas possuem o componente de concepção do pensamento dedutível e hipotético, com fundamentos de estratégias e táticas, para atender os parâmetros de diferenciação e demonstração de contestações esportivo-culturais, ou mesmo competitivas, recomenda-se o emprego dos Jogos de Combate. As disputas por meio dos Jogos de Combate vão além do tradicional cabo de guerra e devem permitir a influência corporal mútua e implicar aprendizado efetivo. Chegamos, então, na proposta de execução prática a qual auxilia o profissional da Educação Física a propiciar atividades que constroem caminhos seguros e bastante fáceis de serem empregados para o desenvolvimento inicial das Lutas. Essas atividades se associam às práticas mais indicadas pelos profissionais acadêmico-científicos para estabelecer parâmetros de consolidação de elementos físicos e habilidades motoras que ajudam no processo de construção do aprendizado das Lutas e ao mesmo tempo evitam a especialização precoce. Como já mencionamos, tais práticas são designadas de Jogos de Combate, cujas características descreveremos a seguir. 4.1 Jogos de Combate Os Jogos de Combate são organizados por contendas nas quais o uso do corpo é instrumento de oposição e são extremamente úteis para a descoberta de potencialidades físicas e interação com o outro (CARTAXO, 2010). Essas contraposições agonísticas estabelecem regras de respeito, compreensão das próprias restrições físicas e, especialmente, incitação ao juízo de valor para tomar decisões imediatas, e ainda, o mais importante, de modo preciso e exercendo o exercício do cumprimento dos princípios de conduta frente ao seu próximo e de contenção. As atividades praticadas na execução dos Jogos de Combate se caracterizam por interposição de elementos adquiridos das modalidades esportivas de combate, Artes Marciais e Defesa Pessoal, mas não são usados com seus fins últimos, os quais primeiramente visariam atingir efeitos mais contundentes, implicando resultados que poderiam causar desconfortos mais acentuados. No momento, procuram-se elementos por meio das Lutas para formar cidadãos e propiciar descobertas educativas. Ou seja, contrariamente aos alcances mais categóricos, utilizar-se-ão de aspectos relativos, que serão aproveitados para construir um acervo motor variado e propiciarão experiências interativas muito positivas e de caráter prático para o emprego na vida em sociedade. Os Jogos de Combate exigem a edificação de capacidades físicas como força, flexibilidade, resistência e velocidade e geram condições para o exercício das capacidades motoras coordenativas já citadas. Destacam-se várias dessas capacidades coordenativas que são desenvolvidas pelos Jogos de Combate. Inicialmente, coloca-se como a principal competência coordenativa o equilíbrio, que exerce função primordial no controle de atos motores humanos e, em seguida, a agilidade, possibilitando apreender os conhecimentos sobre como dominar a rapidez na execução das ações corporais e mudá- las instantaneamente. Depois chamamos a atenção para a disposição de noção espaçotemporal, adquirindo a ciência dos controles motores e julgamentos de deslocamentos corporais em relação ao espaço e tempo de realização. Incorpora-se à ambidesteridade, que determina o emprego igualitário e com qualidade idêntica das ações motoras pelos membros posicionados nos hemisférios anatômicos: 58 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I esquerdo e direito. Por fim, as aptidões viso, tátil e perceptivo-motora, cujas características provêm de reações a partir da recepção de estímulos enviados e analisados pelo respectivo sistema sensório-motor. No aspecto cognitivo, ressaltamos que a necessidade de se avaliar continuamente as ações às quais somos submetidos pelos adversários provoca intensificação das respostas baseadas no tempo de reação e da capacidade de antecipação, intensificando o raciocínio rápido para adotar deliberações e determinar escolhas momentâneas. No campo emocional, os Jogos de Combate, sutilmente, possibilitam que as pessoas sofram ínfimas pressões de perdas súbitas e suportem condições de inferioridade, de detrimentos dissimulados e ausência da condição de se sentirem superiores. Durante os Jogos cada momento é uma história, pode-se estar vencendo e no instante seguinte ser derrotado. Descobre-se que a habilidade de um suplanta a força de outrem. A ansiedade na realização de ações sem as devidas precauções, e tecnicamente mal executadas, pode levar a condições cada vez mais instáveis e deixar o indivíduo em situação progressivamente mais delicada e sujeito a sofrer mais desequilíbrios e perdas. Portanto, vão se estabelecendo parâmetros mais importantes para se aferir a necessidade de autocontrole e contenção emocional, a fim de que se possa alcançar objetivos e obter sucesso na coletividade. Ainda no aspecto psicossocial, nos Jogos de Combate percebe-se que as superioridades corporais podem ser incertas e mutáveis. Em uma Luta compreende- se que nunca estamos no controle absoluto do momento, que as mudanças são variáveis e constantes. Isso possibilita a formação de indivíduos mais conscientes para serem precavidos, que tenham um trato mais entusiástico e cordial diante das condições familiares, profissionais e sociais. O indivíduo vai se descobrindo e compreendendo suas potencialidades, aprende que na vida existem limitações as quais deve se inteirar e precisa tentar superar ou, então, evitá-las para que não tomem conta de sua existência. A seguir serão disponibilizadas fotos com alguns exemplos de Jogos de Combate de fácil execução e compreensão, os quais estimulam bastante a interatividade corporal, excitam a tomada de decisão imediata e incitam a aproximação física. Figura 47 – Luta do sapo: tentativa de desequilíbrio dinâmico em posição agachada 59 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Figura 48 – Luta do saci: tentativa de desequilíbrio apoiada em um pé só Figura 49 – Jogo do tocar no ombro dinamicamente 60 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Figura 50 – Jogo do desentoca o tatu Figura 51 – Jogo do empurra-empurra de costas 4.2 Bullying e as Lutas Percebe-se pelas descrições anteriores a importância da prática das Lutas no contexto do Esporte Educação. Valores sociais e cognitivos, além dos físicos-motores, são disponibilizados pela riqueza da interatividade corporal, dos desafios a serem superados quando nos achamos diante de demandas decisivas, as quais envolvem a manutenção de nossa modéstia, autoestima e da posição de avaliação de nosso progresso e desempenho das habilidades motoras e da capacidade de inteligência. 61 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOSE APROFUNDAMENTOS Os grupos adolescentes e infantojuvenis se espelham em costumes e códigos que acontecem ao seu redor. Dessa maneira, é de suma importância promover tais valores nessas faixas etárias para construção de seres mais afinados com a convivência igualitária, respeitosa e que gere o sucesso cordial e do bem- estar dos indivíduos. No entanto, nem sempre nos deparamos com crianças e jovens de temperamento afável e tampouco cujas condições de educação familiar ou que envolvem sua vizinhança tragam ou despertem esses valores e, por conseguinte, agem de maneira a realizar, imitar, perpetuar e praticar atos, os quais se desvirtuam da convivência afetivo-social aceitável. Assim sendo, nas escolas e no dia a dia de adolescentes e no universo infantojuvenil, existem práticas de constantes afrontas, que são relativas ao emprego de imposições, as quais surgem de características das mais diversas da índole humana não domada e incoerente com a vida em sociedade, tais como: liderança exacerbada, ordenação de constrangimento para cumprir atividades que sirvam a interesses imperiosos próprios, autoritarismo e coação e sujeitar seus pares a efetuar práticas e tarefas não condizentes com o bem-estar e a paz de espírito. Surge o intimidador, que impede que seu semelhante, visto como subalterno, possa agir com naturalidade e atingir o seu próprio progresso e disposição na coletividade. É comum saber-se que, rotineiramente, em escolas e quaisquer outras comunidades, existam obras de repressão, opressão, agressões, atos de violência, supressão de liberdade, retirada de valores e coação nos aspectos: físico, moral, social e psicológico. Essas ações são chamadas de bullying, termo que derivou da literatura inglesa, o qual se pode traduzir com bastante conveniência para abranger tamanha capacidade negativa de atuação social com a palavra em português: intimidação. A intimidação é realizada por indivíduos que primam pelo desprezo aos seus próximos e acreditam serem superiores, agindo de maneira arrogante, impositiva, violenta e causando distúrbios. Usualmente, atuam intimidando indivíduos que não estão preparados para enfrentar situações de chantagens, extorsões, ameaças e bravatas, pessoas que não sabem lidar com pressões sociais e são de natureza mais compassiva e introvertida. Equivocadamente, diretores de escolas, professores e a mídia em geral acreditam que a prática de Lutas na escola ou nas sociedades poderia trazer mais incitação a atos violentos, mas já mencionamos trabalhos acadêmicos anteriormente nos quais o exercício das Lutas aumenta as qualidades de integração social e de solidariedade. A causa principal é a compreensão de que somos todos potencializados para exercer movimentos que possam trazer condições de enfretamento a qualquer ação intimidante cujo objetivo seja nos colocar em posição inferior. Simplesmente, para enfrentar os intimidadores, pode-se fazer o uso de habilidades físicas, baseadas em técnicas específicas, as quais não possuem características ou a necessidade de que haja o emprego da força física. Como já citado, um dos fundamentos básicos de enfrentamento, utilizado nas Lutas, é a esquiva, que se baseia em possibilitar a saída do raio de ação de ataque do adversário. Com isso, o opositor exerce uma ação na qual desperdiçará sua energia e concentração. Caso a ação seja realizada de modo exasperado, comum nas ações de bullying físico, a esquiva deixará o executor em posição de perda de equilíbrio, pois sua energia será perdida. 62 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Ela é executada em todas as modalidades de Lutas, assim todos os seus praticantes terão necessariamente de passar pelo seu aprendizado durante a prática. Os praticantes adquirem a esperteza de seu uso no aspecto físico e vão além, aplicando-a no trato social, pois conseguem se desvencilhar de afrontas e abusos verbais ou morais e encarar seus insultantes, ignorando os ultrajes e deixando-os em posição grotesca. O praticante de Lutas e dos Jogos de Combate facilmente não liga para palavras fúteis e de baixo calão, injúrias ou ofensas, pois não o atingem, sabedor que esses insultos não têm sentido, uma vez que possui uma vida correta e honesta, e assim age de modo a deixar passar a energia negativa provinda de indivíduos despreparados para o convívio coletivo. Ao agir assim, o agressor se torna impotente e fica totalmente sem ação, pois não houve reação e suas falácias foram jogadas ao vento, sem significação alguma. Portanto, acostumado a lidar com as pressões das Lutas e agir com racionalidade no aspecto físico, o praticante de Lutas, e em especial dos Jogos de Combate, fortalece vínculos com uma condição de seres mais centrados e dispostos ao diálogo e de solução de problemas por meio do consenso e da harmonia. Esses praticantes são bastante determinados e psicologicamente fortes e decididos, não hesitam em tomar atitudes definitivas e categóricas. Observação Bullying é a intimidação exercida por sujeito opressor por meio de agressões violentas ou sutis, físicas e psicológicas, praticando coerção e tratando os outros como subalternos. Por outro lado, os indivíduos que exercem a intimidação e não possuem controle emocional e os quais partem para a agressão de seus pares, ao começarem a prática de Lutas, veem-se diante de praticantes mais avançados e precisam aprender a lidar com a superioridade desses agentes interativos. Destarte, eles precisam de maior necessidade de se precaver, de tomar decisões mais racionais e intuem que sempre existirá a possibilidade de alguém lhe ser superior e impor decisões e posições desconfortáveis. Também, ao se depararem com praticantes mais avançados, não poderão agir de modo exasperado e partir para ações súbitas e ataques inconsequentes, sem levar em conta que existe alguém que tem mais poderes e habilidades desenvolvidas. Por um lado, o praticante mais avançado se utilizará de recursos, como a própria esquiva e habilidades mais complexas, sobrepujando e fazendo seu oponente se render ao seu domínio. Por sua vez, o intimidador vai aprendendo a se conter e a tomar ciência de sua posição social, controlando seus impulsos e agindo de modo mais refreado e compreensivo, de acordo com as regras da boa convivência. Percebe-se que os Jogos de Combate são instrumentos muito úteis na construção de hábitos de conduta e formação de uma pessoa com caráter dinâmico, proativo, respeitoso e ciente de seus deveres e direitos. Consequentemente, as Lutas são ferramentas educativas de grande valor humano e que podem trazer vantagens e benefícios que minimizam a manifestação do bullying nas escolas e comunidades. 63 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS 4.3 Lutas e interdisciplinaridade De acordo com Klein (1990), interdisciplinaridade vem a ser genericamente a unificação das ciências, integração do conhecimento e também a junção de saberes disciplinares. Nota-se que o conceito está intimamente ligado à cultura e às vivências sociais e necessidades humanas. O ser humano se vê diante das mais variadas oportunidades de autorrealização, mas deixa escapar possibilidades de compreensão e conexão com a sua vizinhança e de participar ativamente de seu mundo. Isso ocorre não por sua culpa exclusiva. Ordinariamente a família, a política, as comunidades e o setor educacional têm apresentado muitas deficiências na formação do caráter pessoal e social. Mais nitidamente, adverte-se para o insuficiente aprofundamento das vinculações racionais que façam as crianças e os adolescentes se envolverem em maior participação social, política e construção de seu conhecimento e sua autonomia. Ou seja, não se estão dando condições para os jovens inteirarem elementos em seus estudos que os façam conter uma maior compreensão da realização humana nos aspectos individuais e coletivos.Daí a importância da interdisciplinaridade na Educação Física e, como temos chamado a atenção, no Esporte Educação. A partir da atuação do profissional da educação e da saúde, ou seja, o profissional da Educação Física, o conceito de interdisciplinaridade deve ser imensamente usado na edificação de seres mais cientes de sua importância na sociedade e o mais saliente: tomar consciência de seus deveres e direitos. Como já citamos, as Lutas fizeram e fazem parte do cotidiano humano desde a sua existência, desde os primórdios da civilização, e se atrelam com a cultura de modo intenso e interagente. Repete-se aqui que cada civilização possui uma maneira de Lutar própria baseada em seus costumes e tradição corporal e instrumental. Fica evidente e significante ressaltar que o ensino de Lutas propicia e estimula a ampliação de estudos interdisciplinares. Pode-se usufruir da riqueza de informações, aspectos culturais como costumes, mitologia, vestimentas e movimentos próprios, práticas que abrangem crenças associando deuses, atividades marciais e implementos de combate, significados dos movimentos e o que pretendiam alcançar, ritualização de caracteres: saudações, sentido da honra, coragem e obediência. A abundância de palavreados empregados em academias, competições, arbitragem e seus significados também é expressiva, pois se veem relacionados com idiomas dos quais partiram sua sistematização mais proeminente. Como exemplo, pode-se citar: Judô (japonês), Kung Fu (chinês), Esgrima (francês), Wrestling (inglês americano), Capoeira (tupi-guarani), Boxe (inglês), Muay Thai (tailandês) etc. Adicionalmente, por meio dos estudos sobre a prática de Lutas, pode-se fazer associação com a política e os momentos específicos de diversos povos, tais como: estratégias de combate na defesa de território, busca de víveres e valores comerciais e de sobrevivência, além de mostrar seu emprego pelos imperadores e reis para festivais de Lutas que visavam celebrações, entretenimento e cerceamento de manifestações coletivas. 64 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I As pesquisas sobre participação competitiva, atuação motivacional e ansiedade também se relacionam com as Modalidades de Esporte de Combate e com as Artes Marciais e seus praticantes. Como se pode notar, as Lutas têm íntima ligação com as ciências humanas, como a Geografia, Sociologia, História, Filosofia, Psicologia, Logística, Teologia e Linguagem. No campo das ciências naturais, ressaltamos: organização das características de funcionamento do corpo, alterações hormonais, angulações articulares e rapidez de execução motriz, posicionamento corporal, controle do corpo, uso da força e da velocidade, combinação de capacidades condicionantes e coordenativas, deslocamentos, amplitudes corporais, lesões no esporte e treinamentos. Além disso, estudos e práticas para a formalização dos aprendizados na iniciação esportiva em relação ao desenvolvimento físico, motor, cognitivo e afetivo-emocional. Portanto, percebe-se que a disciplina de Lutas se alia de modo bastante próximo às disciplinas de Matemática, Física, Química, Biologia, Anatomia, Biomecânica, Fisiologia, Medidas e Avaliações, Aprendizagem Motora etc. A troca entre a disciplina de Lutas e as outras áreas educacionais deve ser mútua e fartamente aproveitada no âmbito educacional. A coexistência precisa ser atraente e proporcionar a conglobação dos desempenhos humanos em sociedade. A referida disciplina se constitui, enfim, em uma ferramenta imprescindível para aplicação nas aulas de Educação Física, trazendo bases de formação indispensáveis para que o indivíduo possa compreender mais intimamente o porquê de a Luta ser um atributo intrínseco da condição humana. Consequentemente observa-se que o profissional de Educação Física necessita se incorporar aos conceitos, princípios e características das Lutas de modo a unificar com outras disciplinas formativas os extraordinários valores das ciências naturais e humanas. Aproveita-se o ensejo para discutir como tal profissional pode se preparar para inserir o conteúdo de Lutas por meio do Esporte Educação. 4.4 O papel do profissional de Educação Física e as Lutas A mídia sensacionalista criou uma imagem de esoterismo e inacessibilidade acerca das modalidades de combate, Artes Marciais e Lutas, enfatizando-as como atividades fechadas, de grande dificuldade motriz e impenetrável. Destaca-se nos meios de comunicação que as práticas de Artes Marciais sempre são versadas apenas por alguns excepcionais personagens e que os resultados são sangrentos e devastadores. Ressalta-se a impressão tortuosa de que Lutadores e artistas marciais possuem habilidades consagradas, e tão desenvolvidas, que podem se apoderar de quaisquer ações e reações humanas, sendo seres intransponíveis, inacessíveis ou até verdadeiras divindades. Por esses motivos midiáticos, a população em geral acabou intitulando uma conotação equivocada das Lutas, impressionando-se deveras com a complexidade dos movimentos executados e a sensação de estarem a anos-luz de sua concepção. Não se pode negar que os golpes e as ofensivas nos combates são realmente muito rápidos e decisivos, dando a impressão que muitos não seriam capazes de realizá-los. 65 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Obviamente isso ocorre, como se sabe, acadêmica e cientificamente, pois nossas crianças e jovens não têm tido oportunidades motoras e acesso ao exercício combativo corporal planejado, tampouco têm sido estimulados e motivados para seu aprendizado e entendimento. Adicionalmente, a metodologia específica e aprofundada das Lutas exige a sua prática em espaços mais exclusivos. Esses lugares são apresentados, e até considerados como sagrados, verdadeiros santuários ou templos e recintos restritos. Lembra-se também que as competições são efetuadas sobre tatames, tapetes especiais, ringues, tablados de Luta e estrados protegidos. Por outro lado, os aprendizados de elementos fundamentais das Lutas e da prática dos Jogos de Combate não exigem especializações tão densas assim, como já se mencionou anteriormente. Enfim, essas condições incabíveis parecem distanciar e afetar as pessoas comuns que se sentem temerosas em terem de se deslocar para ambientes nos quais poderiam se sentir mais inseguras diante do desconhecido legendário. Por mais incrível que possa parecer, os profissionais de Educação Física estão bastante coligados às considerações descritas de como veem as Artes Marciais e Lutas. Sentem-se despreparados, sem confiança e hesitantes na aplicação da disciplina de Lutas como Esporte Educação. A razão para isso é a falta de envolvimento que professores de Educação Física têm nas fundamentações das práticas corporais de Lutas. Essa é uma deficiência remota das aulas de Educação Física dentro da educação no Brasil, pois infelizmente muitos docentes, por questão de conveniência e acomodamento profissional, não se dão ao interesse de promover as práticas corporais de combate. Usam desculpas de falta de espaço, falta de material e desconhecimento técnico. Tudo isso tampouco se justifica, conforme se tem exposto até o momento. Faz-se relevante que as grades curriculares dos cursos da área desmistifiquem essas condições de falta de vontade e acomodação e promovam o conhecimento extraordinário das práticas corporais de combate, em especial por meio de Jogos de Combate e interdisciplinaridade educacional. A disciplina de Lutas deve ser abrangente e direcionar o estudante de nível superior, moldando as concepções mais contemporâneas da educação e incorporadas com os aprendizados corpóreos da Educação Física. Esses aprendizados estão diretamente relacionados à promoção e ao aumento das habilidades motoras e capacidades físicas para a saúde e o bem-estar, o entendimento do movimento como instrumento de motivaçãopara a inteligência e a interatividade social e afetiva. É preciso se preocupar em ampliar sua ciência acerca das Lutas e sua aplicação na Educação Física. Obviamente, um profissional de Educação Física deve possuir uma boa base dos fundamentos usados nas Lutas e aprofundá-los por meio de estudos e pesquisas. Durante os estudos universitários, é impossível ao estudante adquirir a técnica apurada de cada Luta, pois já vimos que são centenas, talvez milhares, espalhadas nas mais diversas culturas. Já realçamos que para ser um expert, ou seja, perito em uma Luta específica ou quaisquer outras atividades esportivas particulares, precisa-se muito treinamento e dedicação exclusiva. O acadêmico, por outro lado, pode incrementar os seus saberes por meio de visitas a academias de Artes Marciais e clubes que promovem as 66 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I modalidades esportivas de combate, assistir competições, acessar livros e artigos científicos. O estudante universitário pode ainda debater as características que circundam o mundo formidável das Lutas como a violência, o contato corporal, o respeito, a tolerância, o autocontrole etc., apresentar trabalhos, práticas como componente curricular, planejando e disponibilizando aulas com elementos sobre as Lutas. Um profissional de Educação Física deve esquematizar as aulas de Lutas por meio de literatura apropriada, aliada à criatividade e a elevados objetivos educacionais, provocando questionamentos e argumentações. Os instrumentos contidos na disciplina de Lutas são muito abrangentes. Eles têm sido constantemente confundidos como atividades violentas e pouco usadas na educação escolar e como Esporte Educação. O profissional de Educação Física tem obrigação de desmistificar esses conceitos e aplicar a riqueza das características das práticas de Lutas para o bem comum. Faz-se necessário que o profissional se complete e preencha esse espaço na educação brasileira. Os PCN foram um marco importante para ampliação do emprego das Lutas na Educação Física e os professores de Educação Física devem se apropriar das Lutas como instrumentos importantes para a ampliação educacional infantojuvenil. Basta ver as recomendações sobre atividades de oposição e a Luta da Capoeira, a qual possui uma variedade de subsídios que se associam a história e cultura corporal no Brasil. A seguir, aproveita-se dessa indicação e vai-se explorar o aparecimento e a manifestação dessa Luta brasileira e de outras atividades corporais de combate indígenas nativas da terra brasilis. 4.5 Lutas brasileiras Não podemos perder as origens e as Lutas que fizeram parte do cotidiano indígena e das linhagens de combates que prosperaram e se perpetuaram na nossa cultura. O Brasil atualmente possui cadastrado pelo Censo realizado em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 305 etnias indígenas, alcançando aproximadamente 897 mil indivíduos (IBGE, 2012). Muitos prélios foram praticados em nosso território, e tinham alegorias próprias e distintas, das quais podemos apresentar um pouco de suas expressões. Lutas entre tribos e contra invasores externos europeus – portugueses, franceses e holandeses – principalmente, foram relatadas por alguns historiadores, artistas e mercenários que habitaram nossas terras desde o descobrimento pelos portugueses, em 1500 EC. 4.5.1 A Capoeira A Capoeira é a Luta mais conhecida do Brasil. Hoje é considerada patrimônio cultural imaterial da humanidade, conforme se certifica pela citação da Unesco. A Roda de Capoeira foi inscrita na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco. O anúncio foi feito hoje (25/11/2014), na 9ª Sessão do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, comandado por José Manuel Rodríguez 67 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Cuadros (Peru) e aberta no último dia 24/11 na sede da Organização em Paris, França (UNESCO, 2014). A palavra Capoeira, é consenso entre os etnólogos, pertence à origem tupi-guarani. O Padre José de Anchieta cita no livro original A Arte da Gramática da Língua mais Usada na Costa do Brasil, editado em 1595, as palavras kaá (mato) e poêra (o que foi). O vocábulo também se associa à outra designação guarani caápuéra, que significa “mato ralo” ou “mato renascido”, conforme descreve Frederico G. Edelweiss, no livro de Teodoro Sampaio, O Tupi na Geographia Nacional, de 1901. Saiba mais Para obter um aprofundamento em relação aos vocábulos, recomenda- se a leitura integral da obra: SAMPAIO, T. O Tupi na geographia nacional. São Paulo: Typ. da Casa Eclectica, 1901. Disponível em: <http://www.etnolinguistica.org/ biblio:sampaio-1901-tupi>. Acesso em: 2 abr. 2018. Antenor de Veras Nascentes (1886-1992) diz que a ave de nome Capoeira está ligada à origem da Luta. A ave uru (odontophorus capueira – spix), cujo macho é muito ciumento, trava Lutas violentas com o rival que ousa entrar em seus domínios e ataca com muita agilidade (os movimentos se assemelham aos da Capoeira) (NASCENTES, 1935). Há também outra proposta que provém do termo português mais antigo relativo ao nome de um cesto para guardar capões (galináceos castrados e aves novas): chamado de capoeyra, atualmente capoeira mesmo, encontrado em todos os dicionários de língua portuguesa, que eram usados em barcas, mercados e fazendas. O vocábulo então passou do objeto para a atividade realizada pelos capões, que batiam cabeça e brigavam, ou seja, “brigavam ou divertiam-se” dando cabeçadas, divertiam-se na Capoeira. Para vários outros autores, a adesão do nome provém da designação dos cestos de taquara fechado para engaiolar pássaros capões e aves, chamado de Capoeira. Diziam os escravos: “vamos sair da Capoeira”. Assim como a origem do termo é bastante discutida, a procedência da Luta segue os mesmos padrões e existem vertentes diferenciadas para se determinar sua ascendência. A origem da Luta Capoeira é largamente debatida e conflitos de autenticidade têm sido levantados frequentemente. Ela indiscutivelmente ficou conhecida devido à sua atuação preponderante pelos escravos negros como um combate afrodescendente. 68 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Vejamos a seguir o que diz Hahner: A Capoeira começou como um tipo diferente de defesa e diversão entre os escravos africanos no Brasil, já que eram proibidos de usar armas de fogo e espadas (armas de seus senhores), para se defender e dar chutes em seus adversários. Tornou-se mais tarde uma forma de Luta organizada e mortal nos maiores centros urbanos do século XIX, especialmente no Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Durante todo o século XIX e início do século XX, apesar de ser ilegal a prática da Capoeira, os grupos Capoeiras foram frequentemente utilizados por chefes políticos locais para assegurar vitória nas eleições: dissolviam comícios de adversários, criavam desordens e intimidavam os eleitores. Na primeira metade do século XX, a Capoeira se transformou em um esporte com aparência de dança, tornando-se uma importante expressão de nosso folclore (HAHNER, 1993). Porém, outros autores têm indicado que a Capoeira já era praticada pelos nativos aqui presentes, em especial os da etnia tupi-guarani. Vários relatos de Lutas ferozes travadas entre europeus e os aborígines brasileiros mencionam que estes efetuavam movimentos bastantes mirabolantes com alegorias físicas que estendiam o corpo e dificultavam as tentativas de dominação. Eram muito ágeis e inacreditavelmente ligeiros. Algumas narrativas sugerem extrema flexibilidade e movimentação em forma de esquivas muito eficientes em confrontos corporais. No livro de Guilherme Theodoro Pereira de Mello (1908) sobre a música no Brasil, Música no Brasil: Desde os Tempos Coloniaisaté o Primeiro Decênio da República, há menção sobre a Capoeira ter raízes indígenas, dos autóctones que aqui habitavam o nosso solo, a terra brasilis. A descrição está contida na página 108: “é o jogo da Capoeira, arte da Esgrima de origem indígena, em que estuda a ofensiva e defensiva na briga [...]”. Também se apresentam no livro de Léry (1961), missionário francês, descrições acerca das manifestações corporais indígenas contendo colocações que os indígenas brasileiros das etnias Uetacás e Tupis-guaranis, em confrontos contra outras tribos e invasores europeus, usavam de artimanhas estranhas. O autor ainda cita as ações como “furibundas cambalhotas” e movimentos rápidos e coléricos, muito velozes e que os índios não se deixavam acertar nos conflitos corpo a corpo, pelo emprego de estrepolias, saltos, meneios e circulações ao redor do oponente (LÉRY, 1961). Corrobora com esses escritos as declarações de Nieuhoff (1988), que relatava as Lutas dos nativos brasileiros nas regiões potiguares e pernambucanas. Seus descritos dispunham que os índios se reuniam em círculos e moviam os corpos como animais, batendo as mãos e percutindo os pés no chão, aproximando-se com ataques por golpes de pernas e cotoveladas e se afastando rapidamente com saltos e giros. Uma das referências mais contundentes sobre a origem indígena da Capoeira é a descrição dada pelo teólogo e historiador holandês Gaspar Barléu (Caspar van Baerle) no livro Rerum per Octennium in Brasilia (BARLÉU, 1940), o qual conta sobre a passagem de oito anos do governador Maurício de 69 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Nassau e alerta sobre as Lutas dos índios Tapúias. Seus relatos mencionam que as Lutas se davam por meio de uma roda de autóctones em que dois participantes se enfrentavam com pernadas, cotoveladas, cabeçadas e movimentos que lembravam animais em combate. Outra referência acerca da origem das Lutas indígenas brasileiras é a exposição de Soares (2001) citando Plácido de Abreu, que afirma, em 1866, ser a Capoeira uma Luta que se criou entre nós e dificilmente pertence ao universo africano, que não conhecia os movimentos da Capoeiragem. Essa afirmação contemporiza com as do antropólogo austríaco Gerhard Kubik (1994), especialista em movimentos musicais, linguagens e manifestações corporais africanas e suas influências na cultura brasileira, que estranha a conotação Capoeira de Angola, pois alega que não existem Lutas ou danças que se pareçam com os movimentos da Capoeira nesse país. O luso Martim Afonso de Souza, nos idos de 1532, atracou pelas costas brasileiras para efetivar as distribuições das capitanias hereditárias e em sua armada estava o seu irmão e escrivão, Pero Lopez, que menciona assistirem a Lutas dos indígenas nas praias, com movimentos de grande agitação, lépidos, e que se pareciam com tentativas, antes de tudo, de enganar o adversário. Ao mesmo tempo lembramos as referências mais atuais sobre a arte dos índios da etnia Guarani, chamada de xondaro, também conhecido como jogo da esquiva, a armadilha, a artimanha enganadora, como cita Santos (2017), em sua dissertação acerca dos movimentos Guaranis. Nessa obra, ele traz à baila que vários outros autores, estudiosos da cultura Guarani, fazem comparações e equalizam as esquivas do xondaro com as da Capoeira. A esquiva dos Guaranis incita o adversário a se equivocar, a errar, a provocar o erro, assim como a ginga da Capoeira. Um dos fatos mais relevantes é que uma comissão de brasileiros esteve em 24 de abril de 1966, com a participação atuante do mestre Pastinha, no Primeiro Festival de Artes Negras no Dakar, no Senegal, e este voltou afirmando de modo convicto que a Capoeira não tinha origens africanas. O próprio mestre Pastinha declarou: “Pastinha foi à África pra mostrar Capoeira do Brasil”, como cita Vidal de Souza Reis (2004, p. 203). O mestre Pastinha é bastante contraditório, pois muitas vezes afirmou que a Capoeira era de origem africana. Quando se certificava que essa afirmação não era autenticada corretamente, trocava de opinião, em seguida afirmava que a Luta teria vindo de Angola, e depois logo se contestava, afiançando ser brasileira. Saiba mais Recomenda-se assistir o vídeo que se relaciona com o mestre Pastinha e a Capoeira. PASTINHA! Uma vida pela capoeira. Dir. Antônio Carlos Muricy, 1998. 52 minutos. 70 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Aparentemente, como lembra Rego (1968), em um dos maiores ensaios sobre a Capoeira Angola, não tem como haver consistência em se afirmar que a Luta veio da África. Esse autor alega que a Capoeira havia sido idealizada nas terras brasileiras e a partir da chegada dos escravos negros se misturou aos movimentos corporais que daqui precediam de origens afras. Dão-se, então, como mais certa e segura, as constatações de que a Capoeira foi apresentada aos escravos negros que aqui chegaram, recepcionaram-na, aceitaram-na e a mestiçaram, e criou-se um novo órgão vivo que fez e participa da história brasileira. Ela se incorporou à realidade dos negros escravos, foi assim tomando forma e se expandiu nessa comunidade como ferramenta de manifestação e de identidade contra a opressão escravagista. 4.5.1.1 Origem da escravatura africana A vinda de negros escravos ao Brasil decorreu da facilidade com que os portugueses encontraram tribos inteiras escravizadas pelas guerras internas nas nações africanas e das conquistas muçulmanas na África. Os indivíduos aprisionados dos grupos nativos vencidos em guerras contra outras tribos também afras eram sistematicamente usados como escravos. A própria África escravizava os filhos de suas terras. Infelizmente essa foi uma prática comum desde os primórdios das civilizações e os grandes impérios sempre se pautaram por haverem tido marcadamente condescendido ao adestramento escravo em suas histórias (LOVEJOY, 2012; COSTA E SILVA, 2011). Veja na figura grafitada, esculpida há aproximadamente 4 mil anos, a seguir, que os norte-africanos egípcios já escravizavam os núbios africanos. Figura 52 – Mercado de escravos – Museu Arqueológico de Bologna, Itália O agenciamento de homens e mulheres escravos estava densamente propagado pelo continente africano e assim permaneceu por vários séculos. Desde os egípcios, que escravizaram os núbios e os povos Yorubá, da Nigéria e do Benim, e os Ashanti, de Gana, Togo e Costa do Marfim; eram exemplos de nações de etnias negras especializadas em comercialização de escravos e sua economia era voltada e comandada para esse fim (COSTA E SILVA, 2011). 71 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Mesmo antes de serem comercializados, os povos subjugados de todo o continente africano de quaisquer etnias tornavam-se cativos por vários motivos: • Aprisionado após guerras entre tribos desse continente. • Pena pela condenação por roubo, homicídio, bruxaria e infidelidade. • Confisco de pessoas: elas eram apreendidas como garantia para o pagamento de dívidas. • Sequestro individual ou de um pequeno grupo nos assaltos às pequenas aldeias. • Barganha de um membro do grupo por alimentos e comida. • Remuneração a outro líder tribal. • Captação de mulheres para servirem como esposas. 4.5.1.2 O tráfico escravagista Os portugueses organizaram o contato com mercados escravagistas africanos a partir da finalização das Cruzadas. O objetivo era obter mão de obra barata para fornecer aos empregadores portugueses e enviar às suas colônias e dominações. Eles encontraram um vasto mercado de escravos largamente praticado e bastante amplo. Catarina de Médici (1507-1578), rainha de Portugal, autorizou o tráfico de escravos oriundos da África e isso estimulou sua comercialização para além dos limites do continente africano, com maior participaçãoe dominação dos europeus, em especial, dos próprios portugueses, pois se tornaram exímios navegadores e donos de frota naval bem armada e com grande conhecimento geopolítico da época. Com o tráfego de escravos extremamente ativo, na condução de mão de obra sem custos elevados, tornou-se comum as tribos africanas e os conquistadores islâmicos venderem seus prisioneiros aos portugueses, ingleses e demais representantes de nações colonizadoras como franceses, espanhóis, belgas e holandeses. Tais povos deram continuidade a esse pernicioso tirocínio para aumentar a presença de trabalhadores que servissem aos seus interesses colonizadores e exploradores. A princípio, os escravos eram levados sempre por via marítima para Portugal e outros países europeus e, em seguida, igualmente ao Brasil e às ilhas colonizadas. Várias pátrias africanas foram representadas na chegada dos escravos ao Brasil, dentre as quais se destacaram as que vinham da costa atlântica africana. Os Bantus trazidos para cá vieram de regiões que atualmente são: Angola, República do Congo, República Democrática do Congo, Moçambique e Tanzânia. Eles povoaram massivamente os estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, além da zona da mata, no Nordeste. Adicionalmente, Nagôs, Jejes e Malês e indivíduos de outros países do oeste africano foram incorporados como populações escravizadas que aportaram nas cidades brasileiras. Esses trabalhadores escravos eram essencialmente designados para as culturas: canavieira, cafeeira, cacaueira, 72 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I do tabaco e da extração da madeira (pau-brasil). Com um pouco de “sorte”, as mulheres negras afras, em geral, podiam ser direcionadas a afazeres caseiros e de mucamas. 4.5.1.3 Palmares e a prática guerreira da época escravagista O uso de escravos no Brasil se tornou prática comum entre líderes, fazendeiros e políticos. Sabe-se que até Zumbi dos Palmares, chefe negro quilombola, o qual se localizou em Alagoas, em 1675, possuía grande liderança na organização do maior dos Quilombos, tinha grande poder e possuía grande número de serviçais afros e seus descentes escravos, os quais eram capturados nas saídas das fazendas canavieiras. Estes trabalhavam como cativos na sociedade dos Palmares. Somente os negros que chegassem livres e sozinhos ao Quilombo não eram escravizados. Um dado curioso e importante (porém não totalmente referenciado pela literatura) salienta que Zumbi havia, possivelmente, estudado português e era distinto combatente corporal, possuindo bons conhecimentos de Lutas e com muita experiência em estratégias militares. Esse dado parece ter proporcionado a construção de grandes guerreiros nas Lutas contra a dominação portuguesa e a tentativa de se invadir o Quilombo dos Palmares. Talvez daí tenha se organizado essa Luta, específica de resistência e de confronto às dominações lesivas e humilhantes que se imputavam aos negros que por aqui ancoraram. Desde os tempos mais remotos da história brasileira e a partir da presença dos indivíduos negros africanos que aqui aportaram, compreende-se que o povo negro teve de Lutar arduamente pela sua liberdade e conquistar seus direitos como cidadão na sociedade brasileira. Sem equívocos, as práticas de guerras tribais e suas atividades corporais no exercício da liberdade e aquisições civis foram mescladas pelas diversidades corporais e tão ricas em elementos físicos e motores. Forjaram-se de maneira a constituir uma identidade comum aos cativos e daí, com a mistura de povos autóctones também escravizados, os quais possuíam formas de combates peculiares, encaixaram- se elementos motrizes e houve a apropriação à Capoeira. Uma Luta para Defesa Pessoal, defesa da liberdade, defesa da dignidade para se adotar como ser e certificar sua posição humana. Figura 53 – Capoeira (Augustos Earle, 1824) 73 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS A Capoeira se instituiu de valores corporais múltiplos e se identificou com movimentos amoldados e bem precisos, com grande ordem no aspecto de choque anatômico (por meio de chutes, cuteladas e cabeças) e, portanto, pôde empreender a possibilidade de êxito no enfrentamento com os capatazes dos engenhos e fazendas, para ganharem as fugas dos cativeiros. Os compassos frenéticos de percussão, ora batucados, ora tocados no berimbau, provocavam seus praticantes a realizarem saltos mirabolantes e movimentos ágeis e embutiam grande mobilidade de braços e pernas, além de movimentos rápidos com a cabeça e molejo do tronco. Adicionalmente, oscilavam o corpo, alternando a base de apoio dos pés, jogando uma das pernas para trás, trocando de direção e posição, constantemente, caracterizando a ginga. Grande desenvoltura e velocidade eram marcas da realização dos chutes saltados e das rasteiras sagazes. Praticar nas senzalas era proibido e, invariavelmente, os escravos eram vigiados pelos capatazes. Para não parecer que estavam treinando para a Luta, disfarçavam a sua prática em ritmos dançantes, do mesmo modo provenientes das danças tribais afras, e que ainda se encontravam resguardados e transmitidos de geração em geração. Os negros africanos cativos costumavam usar roupas brancas e, quanto maior a habilidade do praticante, menos sujeira se adquiria na vestimenta, dando a entender que o praticante estava bem adaptado aos movimentos de ordem de Luta. Dotada de grande diversidade de movimentos, o mestre Pastinha (1988) afirma que “sem dúvida a Capoeira Angola se parece a uma galante dança na qual a ginga provocante mostra a formidável flexibilidade dos capoeiristas”. Ainda, segundo ele (1988, p. 21), “A Capoeira Angola é, antes de tudo, Luta e Luta violenta”. Portanto, sabemos que se trata de Luta e disso não se duvida ou se questiona, apenas se constata. Segue ainda lembrando que, apesar de violenta, a Capoeira é perfeitamente controlada e isso a diferencia: o capoeirista deve ser pacífico e previdente. A característica principal se funde com a de outras Lutas, a Capoeira é para ser treinada, interiorizada e seu praticante deve se distinguir pelo domínio e autocontrole. Além desses apontamentos sobre a Capoeira e seu emprego adequado pela sociedade, houve tempos instáveis e desordem de valores na prática dessa modalidade de Luta. A libertação dos escravos atirou ao relento milhares de negros que se viram abruptamente sem condições de vida e estabilidade social, como se vai professar adiante. 4.5.1.4 O período imperial e a prática da capoeira – delinquência e militarismo. Capoeira – Luta marcial brasileira A Capoeira como prática delinquente e irresponsável seguiu com certa frequência dentro das malhas urbanas policiais a partir de 1850, por esse motivo ficou proibida como manifestação pública desde o código penal de 1890. Deve-se lembrar que a libertação dos escravos se deu em 13 de maio de 1888. Vários ex-escravos não tinham emprego e aumentaram a massa de pessoas sem abrigo e sem condições de sobrevivência (TONINI, 2008). 74 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Vale salientar que por interesse regido pelo militarismo, necessário para o embate na guerra contra o Paraguai de 1866 até 1871, recrutaram-se diversos negros para as fileiras do exército de Duque de Caixas. Esses indivíduos foram reconhecidos como Lutadores aguerridos, pois usavam sua experiência como capoeiristas, logrando êxito e domínio sobre seus adversários na confrontação corporal. Após o término da guerra, os soldados brasileiros foram reconhecidos como bravos defensores da nação. Esses mesmos soldados negros, os quais possuíam habilidades da Capoeira, foram distinguidos como heróis e receberam diversas honrarias militares. Passaram da alcunha de ameaçadores urbanos para defensores da pátria (SOARES, 2001). No entanto, aqueles libertos cujasqualificações foram desprezadas e que tinham domínio da Capoeira tinham-na como único instrumento de valor para alcançar posicionamento social. Alforriados, não conseguiram se estabelecer às novas restrições econômicas, de ocupação laboral, condições e possibilidades existentes, acabaram procurando alternativas marginais, formando facções de assaltantes, guarda-costas de políticos, grupos de intimidação e malandragem (LUNA; KLEIN, 2006). Capoeiristas contratados, em geral ex-escravos, e os mesmos que Lutaram nas fileiras do exército brasileiro na Guerra do Paraguai, com grande habilidade na prática dessa Luta, serviram aos políticos conservadores (monarquistas) contra os liberais e seguidores dos ideais republicanos. Pode-se comparar sua atuação com a dos samurais japoneses, que por vários séculos conviveram fielmente com os senhores feudais e governantes no Japão, usando suas técnicas de Luta para protegê-los de ataques de inimigos e adversários, mediante pagamento e recebimento de comodidades políticas e sociais. A partir da Proclamação da República, então, a prática da Capoeira sofreu declínio substancial por servir como escudo de proteção aos políticos conservadores. Os liberais viam seus praticantes como seguidores das ideias mais conservadoras. Desse modo, esses políticos provocaram o surgimento da repressão, colocando em voga leis que limitavam a manifestação da Capoeira e motivaram novamente o conceito de que capoeiristas eram agentes turbulentos, causadores de desordem e cujas habilidades eram válidas para intimidarem, causarem tumulto e gerarem desordem. O que em alguns casos não era totalmente absoluto, mas serviram de propósito para a coibição de sua prática, expansão e exercício público (SOARES, 2001). Vandalismo e tumultos provocados por meio da Capoeira foram associados às maltas (bandos de arruaceiros e navalhistas), que agiam como capangas públicos e sem medo de manifestar suas atuações e atitudes, deixando claro sua disposição e o que estavam fazendo, isto é, agirem em favor de seus senhores políticos, os quais serviram desde 1850 até os idos de 1930. Arrastões ou andar em grupos causando desordem e baderna eram continuamente coligadas aos capoeiristas delituosos, o que acabou por criar imagem desprezível e antipatia contra seus praticantes (TONINI, 2008). A transformação social das grandes cidades brasileiras, na metade do século XIX e início do século XX, em especial naquelas onde se concentraram os capoeiristas, Rio de Janeiro, Salvador e Recife, acabou por intimidar as práticas motoras e culturais advindas da prática da Capoeira. 75 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS A Capoeira só deixou de ser ilícito penal em 1941, por meio do Decreto nº 3.199, no governo de Getúlio Vargas. A lei instituía normas para a organização desportiva no Brasil e estabelecia a Confederação Brasileira de Pugilismo, com o Departamento Nacional de Luta Brasileira (Capoeiragem). Figura 54 – Johann Moritz Rugendas, Danse de la Guerre, 1835 Mesmo que não organizada especificamente para o fim militar, não se pode afirmar que tenha sido criada nos Palmares para servir de preparação bélica. Muitos alegam que ela foi largamente usada nos confrontos da guerra contra o Paraguai, e a Capoeira tornou-se oficialmente arte marcial brasileira. O reconhecimento nacional de que a Capoeira pode ser designada como Luta marcial brasileira foi proclamado em 1973, quando o presidente militar Emílio Garrastazu Médici liberou o registro da Capoeira como arte marcial. 4.5.1.5 Aspectos gerais da Luta da Capoeira e características de sua transformação a partir do século XX A Capoeira se caracteriza por grande astúcia motora, aliada à necessidade de tomada de decisão momentânea e eficaz. Seu exercício é impetuoso, ela se modifica de modo instantâneo, ação e reação num constante vaivém defensivo e ofensivo. Os tipos de Capoeira são Angola, do Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha, 1889-1981) e Regional, do mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado 1899-1974). Recentemente também se fala em Capoeira contemporânea. A Angola é mais habitual na Bahia, com movimentos mais lentos, ritmados e rasteiros, enquanto a Regional prevaleceu em Goiás, onde surgiu; atualmente é a mais praticada no sul e sudeste do Brasil, com movimentos super-rápidos, incisivos, impetuosos e agudos, com acrobacias e saltos. A Capoeira Regional possui mesclas com elementos de Lutas ocidentais, como as pernadas do savate e golpes provindos da Luta Greco-romana, do Judô e do Jiu-Jitsu. 76 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Saiba mais Para mais informações a respeito da Capoeira e do mestre Bimba, veja: MESTRE BIMBA, a capoeira iluminada. Dir. Luiz Fernando Goulart, 2005. 78 minutos. Os fundamentos mais comuns são: ginga, cabeçada, rabo de arraia, chapa de costas e de frente, rasteira, cutelada de mão e meia-lua. Além desses citados, na Capoeira de Angola, também há: armada, aú, benção, tapona, cabeçada, negativa (esquiva abaixada), tesoura, queixada, armada e martelo, mais comumente encontrados na Capoeira Regional e com forte contundência. Acredita-se que a Capoeira Regional possui mais de 120 golpes. A ginga se parece com uma dança, mas não é. Na Capoeira, ela é a malícia, a esperteza no enfrentamento. Essa maneira inteligente de enganar o oponente se fundamenta na permuta constante das bases dos pés, com o molejo corporal. Pode-se então preparar golpes, mudar de direção rapidamente e ludibriar o oponente e enfim conduzir a Luta para melhor desferir a contundência apropriada. Figura 55 – Ginga na Capoeira 77 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Figura 56 – Golpe armada pulada Figura 57 – Movimento do aú Várias descrições têm trazido à tona Lutas africanas que se misturaram às raízes indígenas da Capoeira. O continente africano teve civilizações importantes, como Kush-Núbia, Kemet e o Egito dos faraós, os quais possuíram determinadas formas de batalhas e movimentações corporais correspondentes. Provavelmente trouxeram contornos ao que se chama de Capoeira atualmente. 78 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I 4.5.2 As Lutas africanas Várias Lutas originadas das danças tribais guerreiras africanas parecem ter trazido algum alcance às ações técnicas da Capoeira de modo generalizado, obtendo-se uma miscigenação extraordinária, que culminou no surgimento de uma Luta organizada e que se fez eficaz na defesa da liberdade e da dignidade humana. Obviamente, os escravos carreados aqui tiveram oportunidades de trazer tradições de movimentos, danças e brincadeiras de Lutas de suas infâncias. Além disso, muitos escravos afros haviam sido treinados em prélios de preparativos guerreiros para enfrentar disputas tribais, educados para desafios de afirmativas masculinas e mostrar virilidade, ajuntados a ritos de passagem da adolescência em direção à vida adulta e aprovação para contrair o casamento. Apresentaremos a seguir algumas das Lutas que possivelmente afetaram a formação da Capoeira como a conhecemos na atualidade. • Luta Bate-coxa: era um duelo no qual especialmente negros fortes e altos disputavam a supremacia masculina, por meio de golpes desferidos sobre as coxas e com intuito de derrubar o adversário ao solo. Os choques inevitavelmente aconteciam além das coxas, mais usualmente nas partes inferiores das pernas, nos joelhos, causando bastante prejuízo aos participantes. O objetivo era assolar o oponente, que, uma vez caído ao chão, perdia o combate. • Luta Batuque: o pai de mestre Bimba, Luiz Cândido Machado, era exímio Lutador de batuque e essa talvez seja uma das Lutas que afetaram a criação da Capoeira, pois era muito usada pelos africanos, os quaispor aqui desembarcaram e conseguiram passar algumas influências motrizes que nela derivaram. O batuque tinha “orquestra” composta de: berimbau, pandeiro, ganzá, tambores e outros instrumentos. A Luta era uma demonstração de equilíbrio por parte de um dos Lutadores, que recebia os ataques efetuados também com as coxas de seu adversário. Era primordial a colocação das mãos sobre os órgãos genitais para a sua proteção. Essas pancadas e baques nas coxas tinham por finalidade tirar o equilíbrio do oponente. Os golpes mais usados eram baú, raspa ou rapa, que consistia em bater frontalmente com suas coxas nas do Lutador obstante. Outros ataques eram chamados de banda armada e encruzilhada, em que o atacante se jogava com as duas pernas em direção às pernas do adversário fazendo uma cruz de carreira ou tesoura. Os defensores mais hábeis conseguiam se conservar em uma perna só, trocando rapidamente de apoio para manutenção do equilíbrio. • Luta de Kamangula: de origem africana do Sudão, era Luta com socos, mãos abertas e aplicações de pancadas com os braços. Porém, poucos indivíduos dessa área do continente africano atracaram por estas localidades. • Luta Bassula: praticada nos países com mar e praias, em geral sobre as areias, com objetivo de derrubar e imobilizar o rival. Parecer ter sido pouco executada no Brasil, somente pelos primeiros escravos que chegaram aqui provenientes de Luanda, Angola. É uma Luta com a finalidade de agarrar e derrubar seu oponente por meio de varreduras (semelhante ao Judô e Sambo). 79 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS • Luta Dança das Zebras ou N’Golo: disputa ritualística das nações Bantu e Mucope para poder receber uma jovem em casamento – as garotas eram escolhidas para casar com idade entre 12 e 15 anos e os pretendentes precisavam combater e vencer para conseguir matrimoniar a noiva oferecida pelos pais. Eram usadas cabeçadas e chutes. Os pontapés e solavancos eram desferidos com um ou dois pés, apoiando-se as mãos no solo. O concorrente que caísse primeiro ou desistisse seria eliminado da contenda e o vencedor desposava a jovem. • Luta do Bode: Luta muito antiga afrontada entre homens que se dispunham a dar cabeçadas, para atacar e tentar abater seu opositor, assim como fazem os bodes nas disputas entre machos pelas fêmeas. Era muito violenta e sua prática levava frequentemente à morte de um ou dos dois competidores. Os ferimentos igualmente eram bastante graves e sua prática foi caindo em desuso. Sua origem parece vir das Lutas de animais como girafas, que geralmente dão pescoçadas para disputar as fêmeas, e os gnus, os quais se batem com as cabeças e os chifres, assim como os bodes, muito comuns na África. Dado um panorama geral sobre a Capoeira e seus contornos, não se pode deixar de citar outras Lutas de silvícolas brasileiros, que estão ganhando mais notoriedade em nossa educação e cultura atuais. 4.5.3 Outras Lutas indígenas brasileiras Os povos indígenas brasileiros são designados por suas características idênticas às dos povos encontrados pelos europeus, durante suas incursões na Ásia. Acredita-se que é plausível que os primeiros nativos brasileiros vieram desses mesmos povos que emigraram para o continente americano por volta de 12,5 a 11 mil anos atrás, pelo istmo do Panamá. De modo geral, e como todos os povos humanos, possuíam suas práticas guerreiras que visavam à proteção de seus indivíduos, sua existência e seus territórios. Aqui no Brasil, a Fundação Nacional do Índio (Funai) catalogou alguns tipos de Lutas que são disputadas pelos indígenas brasileiros. Combates corporais fazem parte da cultura habitual dos povos aborígines brasileiros em diversas manifestações e práticas específicas a cada um dos povos, apresentando semelhança e distinções de acordo com suas tradições. Os festivais mais agregadores e amplos nos quais se verificam as práticas de Lutas são os jogos indígenas e o Festival Quarup. Em 2015, houve a concretização dos Jogos Mundiais Indígenas realizados no Brasil, com participação de povos de vinte países distintos. O Festival Quarup visa festejar as tradições indígenas e integrar os povos índios. Tem como base celebrar os antepassados e fortalecer experiências nativas, políticas e sociais. Nesses contatos as Lutas fazem parte de cerimônias que exaltam os ascendentes e os mortos, além de salientar a capacidade varonil dos jovens combatentes. Nos jogos indígenas ocorrem disputas de cabo de guerra e combates corporais bastante acirrados, em especial pode-se citar com destaque a Huka-Huka. A Huka-Huka se constitui de um combate corporal entre dois Lutadores, que permeia, antes de tudo, a condição de celebração, respeito ao oponente e conscientização da superioridade de outrem na disputa. Eventualmente possui um árbitro, ou melhor, o dono ou chefe da Luta, que pouco interfere, geralmente se 80 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I limita a dar início à contenda e chamar os batalhantes. Os oponentes se posicionam frente a frente, fazem movimentos circulares em sentido horário, vão se aproximando, entreolham-se e ficam imediatamente de joelhos, agarrando seus corpos mutuamente e tentando derrubar o adversário de costas. Observe a seguir a foto do contato corporal já efetivado na Luta Huka-Huka: Figura 58 – Luta de Huka-Huka no Quarup Uma das características importantes que se nota em suas disputas é que aquele que derruba o oponente não se sente vencedor, mas responsável em ter atingido a condição de ter reverenciado seus ancestrais. Os Lutadores, após o término do combate, saem abraçados e sorrindo, sem manifestação de vitória ou triunfo sobre o opositor. Não parece existir o sentimento de inferioridade pelo derrotado, nem de dominação pelo vencedor. Parece haver a sensação, análogo ao que acontece em todas as Lutas de que “Hoje posso ter vencido, mas amanhã meu adversário poderá me vencer”. Na Huka-Huka destaca-se outro aspecto muito significante. A aceitação do melhor, como em um jogo de xadrez. Quando um enxadrista percebe que não terá mais condição de continuar o enfrentamento, por estar em posição totalmente desfavorável e já definitivamente derradeira, abandona o jogo, derrubando o seu rei. Aqui, o competidor que consegue pegar a perna de trás do opositor demonstra conseguir uma vantagem extrema e o apreendido já desiste de continuar o combate. A Huka-Huka é muito encontrada comumente como sendo de origem da região norte, adjunta ao centro-oeste brasileiro. Outra Luta a ser referenciada é a Luta Marajoara, praticada em alguns estados do nordeste e norte do Brasil, em especial pela maioria da população indígena do Maranhão, Piauí e principalmente na Ilha do Marajó, no Amapá, onde atualmente é exercida por vaqueiros e fazendeiros. A Luta Marajoara é uma peleja corporal, a qual se disputa sobre solo de argila ou terra batida molhada, assim reduzindo o risco de lesões. Seu objetivo é levantar o adversário, derrubá-lo e mantê-lo 81 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS deitado de costas sobre o solo. Abraçadas com envolvimento de todo o corpo são as bases do combate, com a consequente derrubada dos competidores. Não se tem dados concretos para determinar a origem exata desta Luta, mas ela provavelmente surgiu da mistura entre as Lutas de agarre indígenas com as Lutas africanas baseadas nas “marradas”, isto é, naquelas praticadas com intuito de se prenderem os corpos e lançá-los ao solo. A história tem se referenciado pela atuação mais precedente da tribo Aruá, como precursora da cultura Marajoara e consequentemente dessa Luta, além da participação da cultura indígena dos Nheengaíbas. Adicionalmente, as influências de europeus, judeus, fenícios e andinos que habitaram a região parecem ter afetadoa cultura Marajoara, transformando os costumes e essa Luta em uma propriedade multicultural (GABBAY, 2009; SCHAAN, 2015). Atualmente a Luta Marajoara está regulamentada e tornada competitiva entre caboclos ou mamelucos (miscigenação provinda de um índio com um branco), cafuzos (mistura entre um índio e um negro africano), mulatos (miscigenação entre europeu branco e um africano negro), descendentes brancos, negros e indígenas. Outra Luta a ser mencionada é a Idjassú, um estilo de combate que provém dos índios Karajá do Tocantins. Ela tem início com os Lutadores se enfrentando em pé, diferentemente do que ocorre na Huka-Huka, e exige técnicas de abraçadas completas pela cintura, que devem levar o adversário ao solo. Um fator marcante é que após derrotar seu oponente, o vencedor sai cantando, dança e abre os braços imitando uma ave. Ainda apresenta-se a Aipenkuit, mais uma Luta de agarre na cintura, iniciada em pé, na qual se deve derrubar o opositor por meio dos arremessos corporais. Ela é protagonizada pelo povo indígena Parakáteye-Gavião, da região do Pará, e dos Tapirapé e Xavante, do Mato Grosso. Não existe um juiz tradicional para essa modalidade, e sim um observador/orientador indígena que seria chamado de dono da Luta, cabendo aos atletas reconhecer a derrota, a vitória ou o empate. Não há prêmio para o vencedor da Luta em todas as etnias praticantes deste esporte. Há reconhecimento e respeito. Xondaro é a Luta da esquiva e da malícia, tem por intuito provocar o participante para que não seja atingido. A sua concepção procede dos Guaranis e já a citamos como uma Luta muito observada por vários estudiosos como a precursora principal da Capoeira. Seu objetivo é desviar de ataques e não se deixar atingir, mais do que atingir ou abordar ataques diretos ao seu oposto. Muitas demonstrações dos Guaranis apresentam um ator principal no centro de um círculo de participantes que provoca a todos a escaparem dos golpes. Narrativas de seus descendentes descrevem que o xondaro era praticado para formação guerreira e vão além, dizendo que os mais hábeis desviavam do lançamento de flechas e lanças com extrema destreza. Outra modalidade indígena de combate que se assemelha com a Capoeira é o Maraná, natural dos nativos potiguares, os quais fazem combates entre os jovens em torno de uma roda. Os Lutadores podem ou não empregarem armas e usam de saltos e rodopios, além de agredirem seu antagonista com cotoveladas e pernadas e imitarem animais; os derrotados, em geral caídos ou nocauteados, são zombados com gritos e giros pelo vencedor. Esses mesmos íncolas também se enfrentam com tacapes e 82 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I aquele que acertar primeiro o opositor ganha a Luta. Às vezes, os ferimentos são de raspão e mais leves, em outras oportunidades causam maiores danos, com sangramentos e fraturas. Também há a Briga de galo, Luta primitiva da tribo Manchineri, do Acre. Os oponentes se colocam com o tronco um pouco inclinado até a cintura, semiflexionam os joelhos e se dão as mãos por trás das coxas. A partir dessa posição, devem empurrar seu opositor somente com o corpo, tentando colocá-lo para fora de um círculo. Aplicada aos adolescentes para desenvolverem equilíbrio e força. Por fim, do povo Pataxó, temos a Luta Derruba toco, realizada em festividades. É executada em um espaço bem amplo, um círculo de 8 metros de diâmetro. Existe um toco posicionado ao centro do círculo e os adversários devem realizar pegadas nos braços e, abraçados, tentar puxar, empurrar e movimentar seu oponente de modo a direcioná-lo para que derrube o toco com seu corpo. É uma Luta muito extenuante. Como regras gerais somente se podem usar dois empurrões e puxadas até que se derrube o toco. Não se pode largar subitamente o adversário em cima do toco, levantá-lo, estrangular, passar rasteiras ou usar outro artifício qualquer para obter êxito. Vimos uma variedade bastante ampla de Lutas, sejam brasileiras, ou sejam de outras civilizações, e as riquezas culturais e corporais que as envolvem. Percebe-se uma abundância de elementos motrizes que se destacam e trazem o admirável que as Lutas possuem: a complexidade e as habilidades respectivas. A seguir propõem-se dados balizares para que possam ser exercidas em sua plenitude e satisfação de acordo com suas características. 4.6 Ensino nas Lutas Basicamente permanecem algumas maneiras tradicionais de se ensinar Lutas e elas se enfatizam em meios e conceitos mais ou menos parecidos, são eles: a demonstração do mestre de gestos técnicos e fundamentos, golpes e técnicas usados na modalidade, sem explicações de quando ou como será regida na Luta; ocorre em seguida a repetição desses gestos de modo sistemático, sem haver compreensão prática do uso do fundamento, isto é, exercita-se sua execução simples e sem a problemática da Luta em si. Depois, dá-se a inicialização gradativa dos combates; geralmente se treina com vários companheiros de níveis diferenciados. Por fim, acontece a compreensão das formas sequenciais e rotinas de execução pré-determinadas. Ressalta-se que tarefas motoras em Lutas não são de simples aproximação inicial e exigem do principiante uma necessária fundamentação motora apropriada à complexidade da prática de Modalidades de Esporte de Combate e Artes Marciais. Lembrete Gesto técnico e fundamento esportivo se definem como sendo habilidades motoras combinadas com alto grau de especificidade de determinada modalidade. 83 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS 4.6.1 Aprendizado motor em Lutas Ao se dar início ao aprendizado motor, cada gesto novo é uma nova experiência motriz (MAGILL, 2000). O aprendiz deve já ter tido experiências motoras apropriadas de acordo com o seu desenvolvimento, isto é, precisa estar preparado para desenvolver e adquirir as habilidades de Lutas apropriadamente. Faz-se importante chamar atenção ao fato de que Modalidades de Esporte de Combate, Lutas e Artes Marciais exigem combinação de movimentos com elevada carga de sincronia e sinergia motriz. As ações de combate, a serem impetradas para a conquista com êxito nos confrontos e práticas de Lutas, partem de princípios de ativação musculoesquelética combinatória com elevado grau de complexidade e precisão motora. Também são necessárias condições para combinar movimentos associados com percepção ambiental, execução de práticas de ação e reação instantâneas, bem como o entendimento direto da justaposição corporal agonística entre dois seres humanos e as consequências de seus atos efetivados sobre o corpo de seu oponente. Observação Sincronia: sequência harmônica e precisa de movimentos. Sinergia motriz: ação cooperativa e concisa entre segmentos articulares, o encéfalo e suas aptidões respectivas. As informações sobre os aspectos de iniciação esportiva baseiam-se em diversas teorias, que de forma geral descrevem as idades mais apropriadas para a realização de movimentos locomotores, manipulativos e estabilizadores, suas combinações e posteriormente os mais específicos e complexos. Como afirma Weineck (1999, p. 113), “cada faixa etária pode ser utilizada para uma função didática específica e para o desenvolvimento de aptidões próprias”. Considerando as propostas de desenvolvimento perpetradas por muitos estudiosos, em especial do desenvolvimento motor, como as de Gallahue (2003), Edson de Jesus Manoel (1994) e Von Hofsten (2004), o desenvolvimento apresenta etapas distintas que são caracterizadas por aquisição de propriedades motoras associadas a cabimentos cognitivos e conformidades afetivo-sociais. Conforme lembra Hofsten (2004), o desenvolvimento motor vai tomando espaço, combinando-se aos elementos de ativação da percepção e do ambiente que cerca o indivíduo, isto é, há um engate de situações orgânicas e circunstanciais que possibilitam o aumentodas múltiplas coordenações corporais. As ações apropriadas possibilitam as conquistas motrizes e trazem mais oportunidades ao crescimento do repertório motor. As crianças e os jovens precisam de atividades físicas e movimentar-se para o bem de seu desenvolvimento psíquico e físico. Dessa maneira, a educação física é uma necessidade para o desenvolvimento integral, portanto o Esporte Educação é uma ferramenta imprescindível ao progresso físico, motor, psicossocial e cognitivo do ser humano. Atividades físicas na infância e na juventude (e sempre) são altamente recomendáveis. Porém, deve-se levar em consideração que crianças e púberes ainda se encontram em crescimento, submetidos a alterações físicas, psíquicas e sociais muito significativas. 84 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Pode-se notar que o treinamento intensivo e abrangente, como o de muitas modalidades esportivas, e aqui se ressaltam as das Modalidades de Esporte de Combate e Artes Marciais, é capaz de provocar distúrbios no desenvolvimento do organismo infantil e uma consequente redução de tolerância aos estímulos. As pausas para recuperação na infância e juventude são de grande importância. Weineck (1999, p. 355) afirma que “a adaptação dos músculos é realizada em um período relativamente rápido”, enquanto cartilagens, tendões e ligamentos requerem muitas semanas. Complementando essa explicação, Foss e Keteyian (2000) advertem para o fato de que em crescimento, a maturação da placa epifásica (local nos ossos longos, onde se processa o crescimento ósseo) deve ser respeitada, já que extremos de atividade física (lesões, uso excessivo, fratura por contato induzido, entre outros) podem vir a resultar em interrupção do crescimento, devido à possibilidade de calcificação precoce. A intensidade deve ser controlada e, além disso, movimentos motores complicados em sua execução, característicos das Lutas, tampouco serão compreendidos pelas crianças. A maturação dos movimentos é conseguida pela maior maturidade biológica. Observa-se que dominando os movimentos de forma mais precisa, a criança poderá executar uma especialização mais profunda; entretanto, pode-se afirmar que ainda não se deve partir para gestos técnicos muito complexos, sobretudo como se observam claramente no contexto das Modalidades Esportivas de Combate. Os estágios do desenvolvimento motor, estudados cientificamente, permitem estruturar planos em longo prazo, respeitando a cada momento a adaptação do organismo da criança de forma saudável, para que possam mais adiante estar preparadas para as competições. Gomes (2002, p. 171) lembra que “frequentemente, os treinadores não consideram a faixa etária ótima para atingir resultados e inadmissivelmente forçam a preparação de seus atletas”, sem pensar na maturidade de seu desenvolvimento motor, sua saúde e seu futuro como atleta. Ao lado das preocupações com tipo, intensidade e frequência do treinamento, levando-se em consideração a idade do praticante, Weineck (1999, p. 109) propõe que “a melhor idade para o aprendizado mais especializado inicia-se por volta dos 10 anos de idade”, baseado no fato que o desenvolvimento adquirido possibilita às crianças um maior domínio sobre o seu corpo. Movimentos complexos já podem ser apresentados, treinados de modo a vivenciar e experimentar novas composições motoras, e então aprendidos e mais bem julgados nessa idade. A capacidade de aprendizado deve ser gradativamente observada e instigada, possibilitando as máximas atribuições e os desafios motores a serem realizados pelos principiantes de acordo com sua faixa etária e desenvolvimento. Sugere-se ao professor a tarefa de estar atento para aquilo que a literatura científica descreve como importante para a realização de um programa de iniciação esportiva, de forma a respeitar os limites de desenvolvimento infantil e proporcionar a formação integral da criança para o seu pleno desenvolvimento motor, afetivo, social e cognitivo. O docente deve ter em mente que é um mentor, orientador e direcionador de atividades que visem o desenvolvimento global do indivíduo. Nas Modalidades de Esportes de Combate e Artes Marciais e iniciação esportiva em Lutas, seja dentro ou fora da academia, clube ou escola, a função primordial de um profissional 85 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS de Educação Física é que a criança seja preservada para poder cumprir com a sua respectiva formação e transformar-se em um adulto saudável e virtuoso. As Lutas, consequentemente, serão constituídas em componentes importantes para a formação da cultura corporal do jovem e do adulto. As atividades motoras mais diferenciadas e intricadas, com os fundamentos técnicos esportivos especializados, são largamente encontradas nas Modalidades de Esporte de Combate e nas Artes Marciais. Em geral, esses gestos técnicos são mais bem compreendidos e construídos a partir de 13 ou 14 anos, no início da adolescência, quando já existe uma formação motora bastante abrangente, com especialização de movimentos e consequentes ajustes motores para ações mais emaranhadas. Além disso, o indivíduo possui capacidade de pensamento hipotético e de probabilidade associadas à maior faculdade de empatia e interatividade psicossocial, fatores iniciais importantíssimos na prática desportiva. É óbvio que muitos principiantes começam a praticar modalidades de Lutas bem antes da idade inicial adolescente, e o professor deve estar muito bem preparado para não pular etapas de formação motora, provocar especialização precoce e tampouco causar danos físicos motores, emocionais e intelectuais. Atividades de iniciação na especialização esportiva podem ser aproveitadas, com o emprego de estratégias justas e apropriadas. Por exemplo, crianças de 7 e 8 anos podem receber estímulos que os levem a efetuar exercícios os quais poderão ser posteriormente usados para a prática desportiva em esportes de combate. Sugere-se a imitação de movimentos de animais, que os levem a realizar arrastes corporais, giros, mergulhos à frente com rolamentos, ações de pegar, puxar, empurrar, quadrupedar, equilibrarem-se e moverem-se com variação de direção. A seguir destacamos crianças imitando o andar de ursos, uma prática de grande importância no universo da coordenação motora geral, e depois outras figuras mostrando atividades conjuntas e individuais de arraste sobre a grama. Figura 59 – Crianças imitando o andar de ursos: coordenação motora geral 86 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Figura 60 – Arrastando-se sobre a grama Figura 61 – Rastejamento junto ao solo O profissional de Educação Física inserido no universo das Lutas e preocupando-se em ampliar o acervo motor de seus educandos pode também provocar a execução de gestos fundamentais, usando de estímulos unilaterais e ambidestros. Adicionalmente, gerar descobertas dos esquemas corporais, da noção espacial e orientação diretiva, sem a necessidade de absoluta precisão, e ainda promover deslocamentos circulares, retilíneos, em arcos, saltitos nas pontas dos pés, rastejamentos, agarres e pegadas. Também pode utilizar de deslocamentos para alcançar e bater em bexigas com membros superiores e inferiores, pular sobre cordas, fazer quedas controladas de modo mais simples e sem intensidade de excessivo impacto e promover exercícios de tentativas para segurar o colega e, por sua vez, tentar escapar, torcer panos e cordas etc. A combinação motora surge naturalmente e a particularização dos fundamentos das Lutas vai se construindo de modo espontâneo. 4.6.2 Psicomotricidade nas Lutas Como anteriormente mencionado, as Artes Marciais e as Modalidades de Esportes de Combate possuem sofisticação de ações coordenativas, com combinação decisiva de movimentos articulares, que permitem explorarde maneira proeminente capacidades de atuação motora, as quais proporcionam ampla plasticidade de execução e necessitam de tenacidade nos treinamentos e grande concentração mental, exigindo controles motores de diversos graus de liberdade musculoarticulares. 87 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Devido a essa complexidade de movimentos, o ensino das técnicas e habilidades nas Lutas necessita de aprofundamento teórico-prático, muito estudo e vivência permanente. O mais importante é que se compreenda que as ações são possíveis e requerem determinação de quem deseja obter elevado nível de habilidade. Observação Psicomotricidade é expressão de um pensamento por intermédio de ato motor preciso, econômico e harmonioso (AJURIAGUERRA, 1983). A psicomotricidade pressupõe o indivíduo na busca de eficiência motriz, com domínio de todos os elementos constituintes da ação. As Lutas se relacionam com diversos aspectos psicomotores, como: disponibilidade corporal, simplicidade biomecânica articular, aptidão para as diversas características da coordenação motora, energia interior e noção do esquema corpóreo. A disponibilidade corporal é a presteza/agilidade que se necessita para agregar as tensões musculares ao comportamento motor desejado. O controle da necessidade de força, contenção e conservação de posicionamento é essencial para que se atinja a ação indispensável. A simplicidade biomecânica exige a eficácia de atuação motora; com o mínimo de dispêndio de energia e desempenho decisivo da técnica de movimento; não se pode permitir que haja reação do adversário ao se efetivar um confronto, pois golpes precisos e finalização imediata são as tônicas capitais nas Modalidades de Esporte de Combate e das Artes Marciais. Por sua vez, as capacidades coordenativas são demandas de reação proporcionadas pelos estímulos sensoriais exteroceptivas: visão, tato, olfato, audição, paladar e háptica. Marcantemente, nas Lutas pode-se notar que capacidades coordenativas como reação visomotora e tátil-motora e a háptica são comumente usadas para se tomar decisões ao se enfrentar um oponente que queira lhe atingir, arremessar ou derrubar. A condição de orientação e a noção de espaço são essenciais ao aprendizado de Lutas, pois são requeridos deslocamentos ágeis e precisos, tanto em relação ao opositor, quanto à área de combate na qual se disputa a Luta. A orientação espacial se associa ao tempo de execução e análise de se aproximar ou se afastar de seu oponente. Essas capacidades coordenativas são essenciais nas decisões relativas aos princípios de confronto, pela obrigação em postar-se diante do concorrente de modo a controlar a extensão de seu desempenho ou dos implementos usados na disputa como espadas, bastões, lanças etc. O equilíbrio dá consistência à postura de enfrentamento e possibilita a melhor alocação corporal para efetivar golpes, contragolpes e recuperar o domínio do contexto de uma disputa. Além disso, outra capacidade coordenativa importante é a velocidade de reação motora, associada à antecipação. Essas características coordenativo-motoras são pautadas em estratégias de ação que sustentam os princípios de confronto organizados pela execução das esquivas e desvios. Adicionalmente, após um ataque desferido pelo opositor, essas competências arranjam caminhos para favorecer a tomada de 88 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I decisão mais válida à efetivação ofensiva, sempre nas condições mais favoráveis, porque desestabiliza o conjunto de atos pretendidos pelo adversário. O controle de energia interior relaciona-se com a conveniência das emoções provocadas pela ingerência do Lutador sobre o domínio corpóreo diante de seu adversário, decorrente das tentativas contínuas de tentar a submissão ou desestabilizar sua harmonia e equilíbrio físicos, psicomotriz e também emocional. O praticante de Artes Marciais aprende a reprimir ansiedades ou a se deixar enfraquecer diante do sucesso do adversário. Pode-se comparar a energia interior ao autocontrole corporal, não consentindo que reações psicoemocionais interfiram em seu plano de ação ou em sua capacidade de reação. A noção da extensão física ou esquema corporal é uma característica significante, porquanto dá competência ao praticante de Modalidades de Esporte de Combate e de Artes Marciais para perceber seus contornos anatômicos, conferir sua medida de força, ajustar as dimensões do confronto, adaptar planos e estratégias de Luta. Nota-se que no aprendizado de movimentos característicos das Lutas estimula-se a construção de aspectos de relação com os sentidos, de maneira especial, o acréscimo da compreensão perceptivo- motora e sensitivo-motora. A captação perceptivo-motora provém das excitações recebidas e decodificadas pelo cérebro a partir dos estímulos exteriores, já mencionados. Esses estímulos ambientais criam as sensações, que, devidamente interpretadas pelo centro nervoso humano, tornam-se percepções. As se efetuar uma técnica de Artes Marciais, constroem-se caminhos de impressões que levam à formação de fatores de movimento e que se relacionam aos fatores psicomotores. Desse modo, organizam-se dois planos de ação motora, chamados de planos de adaptação. Inicialmente aparece o plano de adaptação perceptivo-motor, o qual prepara a tomada de consciência do corpo em relação ao movimento específico das técnicas e golpes das Artes Marciais. Com a prática e a repetição contumaz das técnicas ao longo do tempo, surge o plano de adaptação sensitivo-motor, que manifesta as adaptações inconscientes, todavia rápidas e precisas, dispondo-as de modo preciso, harmonioso e eficaz. Lembrete Capacidades coordenativas são potencialidades motoras que podem ser desempenhadas, pela relação direta das sensações recepcionadas e processadas pelo SNC, e o controle motor ordenado para realizar uma ação. Portanto, as Artes Marciais e as Modalidades de Esporte de Combate, ao se valerem de atos que induzem à psicomotricidade, permitem a propriedade completa da disposição corporal, do tempo de reação e controle tônico. O ser atinge um determinado estado de integração com as obrigações impostas pelo seu oponente, pela constituição da atividade motora ativa, reacional e 89 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS psicossocial atribuídas pelas circunstâncias do embate e pela condição repetitiva do gesto técnico que proporciona autonomia motriz. No mundo das Modalidades de Esporte de Combate e das Artes Marciais, podem-se verificar todos esses acondicionamentos coordenativos, de dois jeitos diferentes. O primeiro exige a exclusiva demonstração de gestos técnicos por meio individual ou com companheiros, com ou sem a utilização de armas e implementos. São rotinas e configurações executadas dinamicamente e estruturadas para se manter tradições das modalidades e suportar suas características mais representativas. O segundo modo são os combates em si, o enfrentamento corpo a corpo decisivo para se obter pontos e condições decisivas. Assim, faz-se necessário classificar essas maneiras de se exercer as Modalidades de Esporte de Combate e as Artes Marciais em tipos de tarefas para a melhor aplicação da metodologia de prática e do aprendizado. A classificação dessas tarefas é condicionada ao ambiente no qual são realizadas e a previsibilidade de tomada de decisão. 4.6.3 Classificação das tarefas motoras nas Modalidades de Esportes de Combate e Artes Marciais O Lutador deve entender que em um confronto se toma a forma do combate e desenvolvem-se características respectivas ao modelo de realização das Lutas: o combate propriamente dito, o qual envolve um concorrente. Esse modelo permite se mostrar um ambiente mutável, inconstante e incerto (FRANCHINI, 2010).Figura 62 – Luta de Wrestling: o que vou fazer? O que meu adversário vai fazer? Observa-se que as Modalidades Esportivas de Combate, as Artes Marciais e as Lutas em geral, provocam demandas específicas de respostas. Cada Lutador vai em busca de seus objetivos e toda ação gera uma reação contrária. Qualquer gesto que vise desestabilizar, golpear e derrubar seu adversário 90 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I poderá implicar respostas distintas, tais como: tentativa de resistir ao empuxe ou aproximação, desvios e escapes, contra-ataques e contragolpes, aproveitamento da ação executada e da força empregada para aplicar uma técnica de decisão. A metodologia de ensino é mais livre, com a prática da Luta em si, e assim os principiantes vão construindo bases de posicionamento motriz, mental e emocional de modo a provocar a arquitetura de uma maior autonomia e aumento nas decisões motoras. Essas tarefas motoras constantes das práticas de Lutas, em geral, são jogos de oposição corporais extremamente dinâmicos, que possibilitam permanente imprevisibilidade motora. Desse modo, caracterizam-se como tarefas motoras abertas, pois não se pode com precisão absoluta determinar, integralmente, as ações humanas que procedem de seu adversário em todos os momentos da disputa competitiva. Tampouco saber se ataques, defesas e esquivas realizados surtirão o efeito desejado naquela situação. Na iniciação esportiva e na Educação Física escolar, é importante que se empreguem as atividades de Lutas como Jogos de Combate, proporcionando a concepção de enfrentar situações de confrontação e possibilitar o exercício de adaptação instantânea e formação de atitudes confiantes e determinantes. Aqui a prática indica efetuar a Luta e assim poder se Lutar. Por outro lado, apresentam-se possibilidades no exercício demonstrativo das Lutas que são efetivadas sem que haja considerações impostas por opositores. Nesse caso, o indivíduo mostra suas capacidades de entendimento e profundidade na realização motora de movimentos motrizes de ataques e defesas, sem que exista um oponente. Faz-se a apresentação com precisão e rigorosidade motriz. Esse modelo é circunscrito a um padrão de execução, é seguro, sequencial e predeterminado. Eles são destacados como tarefas motoras fechadas. Essas tarefas não recorrem a decisões a serem tomadas de modo reativo, pois são demonstrações combinadas ou treinadas com movimentos predeterminados, com ou sem parceiros, por exemplo, as rotinas de execuções denominadas katas, poomses e katis, do Judô e Karatê, Tae kwon do e Wushu, respectivamente. Podem e devem ser usadas para se desenvolver conceitos de posicionamento, de habilitação de ações mais complexas de modo sequencial e sincronismo pedagógico, de estruturação de movimentos rítmicos, formação de esquema corporal, coordenação motora, controle de energia e fundamentação do equilíbrio anatômico e compreensão das posturas corporais e essência de cada Luta. Essa metodologia é mais analítica e sequencial. Nessa condição, a Luta é imaginária e os movimentos são produzidos em séries ordenadas e possuem grande plasticidade motora. Observe na sequência as figuras mostrando as quebradeiras do Tae kwon do coreano, uma tarefa motora fechada; e depois um movimento do kati, do Wushu chinês, outra tarefa totalmente previsível, isto é, em ambiente estável de realização. 91 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Figura 63 – Quebradeira Tae kwon do – tarefa motora fechada Figura 64 – Kati do Wushu com armas e em grupo A classificação das tarefas motoras em abertas e fechadas permite estruturar e organizar as práticas das atividades, além de direcioná-las de acordo com os interesses do praticante e as percepções do professor para iniciação e prosseguimento de aulas e respectivos objetivos a serem alcançados. As instruções iniciais à introdução de modalidades de combate devem seguir os parâmetros indicados pela ciência da aprendizagem motora, assim os primeiros contatos com os principiantes acontecem por meio de demonstrações de golpes e técnicas. Os principiantes inicialmente tentam captar a imagem e o conceito geral do movimento. Com a reprodução sistemática, fixam a técnica de modo estável. Com as atividades de minicombates diversificam-na ao enfrentarem ambientes instáveis e variantes. 92 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Saiba mais Veja o artigo sobre aprendizagem de uma técnica de Judô, realizada por meio da demonstração do professor, e as instruções verbais comparadas ao efeito durante o uso do vídeo. MIRANDA, M. L. Efeito do uso da instrução verbal e demonstração por vídeo na aprendizagem de uma habilidade motora do Judô, cap. 11, p. 100-109, 2009. In: TEIXEIRA, et al. (Orgs.) Especialização em aprendizagem motora. São Paulo: Departamento de Biodinâmica do Movimento do Corpo Humano da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, v. 2, 2009. Disponível em: <http://citrus.uspnet.usp.br/labsis/livro_ ceam_2008.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2018. Aqui se reforçam os necessários cuidados para que se respeitem as etapas do desenvolvimento motor e se sigam as sequências pedagógicas apropriadas. Movimentos complexos podem ser divididos em partes e criativamente treinados separadamente, considerando sua conjunção posterior ao domínio de cada componente integrante da técnica. Parte-se da intenção de se começar pelos elementos mais simples e ir até os mais complexos, construindo fases apropriadas. Exemplo de aplicação Partindo-se do conteúdo apresentado, que tal fazer uma reflexão e propor atividades baseadas em Modalidades de Esporte de Combate para a promoção do aprendizado de fundamentos técnicos das Lutas? Como usar os elementos de enfretamento da prática de Lutas para se preparar contra as adversidades sociais, políticas e profissionais? Resumo O esporte é o meio de instrução que apresenta larga utilidade educacional formativa. O Esporte Educação foi criado com intuito de atender às mudanças mais ativas que acontecem sistematicamente na sociedade e visa incentivar o desenvolvimento de crianças e adolescentes, por meio dos elementos motores provindos das mais variadas modalidades esportivas. Ele se introduz categoricamente por meio da Educação Física e se apresenta como promotor da coeducação e inclusão social. Dentre os mais variados ramos do conhecimento universitário a serem debatidos pelos estudantes de Educação Física, destaca-se a disciplina de Lutas: Aspectos Pedagógicos e Aprofundamento. 93 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS O termo Luta está inerentemente coligado à condição humana. Lutas são desafios ancestrais e atuais, pois se relacionam à própria sobrevivência, busca territorial, procriação, proteção de sua prole e liderança social. Elas aparecem de modo genérico na mídia e são amplamente noticiadas no esporte, em especial pelas modalidades do MMA, Boxe profissional e das modalidades olímpicas: Judô, Tae kwon do, Karatê, Luta Greco-romana, Wrestling, Boxe amador e Esgrima. O vocábulo passa a ter interpretações diferenciadas quando o colocamos em diferentes contextos. No conteúdo social, Luta torna-se sinônimo de conquista a ser alcançada, seja no âmbito corporal, político ou socioeconômico, lembrando que somente se legitima pelo exercício da ética essencial humana. Desse modo, é uma atividade consciente e planejada, caso contrário se intitularia como briga, isto é, atividade irracional, baseada necessariamente no descontrole emocional. Também se apresenta como Defesa Pessoal, relacionada à propriedade corporal e tática para se enfrentar ações e acometimentos referentes à segurança pessoal. No plano das atividades militares,as Lutas se tornaram Artes Marciais, pois derivam de estratégias e excelência de ações corporais e com armas, voltadas para as guerras, exaustivamente utilizadas na Antiguidade. Atualmente, Artes Marciais também sofreram mudanças de interpretação, devido à evolução social humana, às influências filosóficas e religiosas e, portanto, transformaram-se em atividades físicas corporais de combate, direcionadas ao autoconhecimento e à elevação pessoal. No Esporte de Rendimento, Luta se converte em Modalidade de Esporte de Combate, isto é, atividades com ênfase no alto rendimento esportivo profissional. Existe uma gama muito grande de modalidades singulares de Lutas, derivadas de civilizações e povos distintos. Para serem mais bem compreendidas e atenderem à formação universitária, usou-se de classificações acadêmicas que facilitam a compreensão, o estudo e a aplicação da riqueza de elementos coordenativos corporais, dos muitos valores para o desenvolvimento cognitivo, como as inteligências múltiplas e dos meios significativos de interatividade afetivo-social. Apresentam-se, primeiramente, as categorizações quanto ao princípio de domínio. O inicial é o agarre, por meio de gestos técnicos da pegada, dos estrangulamentos, das restrições articulares, imobilizações, projeções etc. O segundo princípio de domínio é o toque, baseado em fundamentos de ataques com os próprios segmentos corporais, tais como: socos, chutes, cotoveladas, cuteladas etc., e os golpes com armas, como estocadas, cortes, perfurações etc. Por fim, o último princípio: a varredura, com suas respectivas rasteiras e arrastes com pernas e mãos. 94 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Outra classificação empregada está relacionada como princípio de confronto. Sua primeira categoria é chamada de ajuste de distância; seus consequentes distanciamentos são: curto, médio e longo. A segunda classe é denominada modo de enfrentamento, ela é composta de ataques, defesas e esquivas. O ser humano sempre perpetra aproximações e disputas corporais: procura-se manter seu equilíbrio e ao mesmo tempo retirar o do seu adversário. Em uma analogia com animais, os homens em seu universo infantojuvenil se pautam pela interatuação corporal, comumente chamada de brincadeira turbulenta. A partir desse conceito, desde as civilizações mais antigas, as Lutas fazem parte da sua natureza educativa. Além das competições nos Jogos Olímpicos, as Lutas eram voltadas para a preparação guerreira, ética, política e defesa dos templos, assim exigiam bastante de seus praticantes. Atualmente, respeitando-se as etapas cientificamente propostas do desenvolvimento físico, cognitivo e psicossocial, empregam-se atividades correlatas que promovem princípios e valores educacionais de maneira extremamente eficaz: os Jogos de Combate, os quais envolvem os enfrentamentos, a conscientização física, o aprendizado pelo movimento, a disposição empática no trato pessoal, a perspicácia e a tomada de decisão. Jogos de Combate são ricos em variantes de desafios motores, auxiliam para que se evite a especialização precoce, divertem e promovem as potencialidades individuais. A riqueza cultural que envolve a prática das Lutas possibilita sua ampla atuação na Educação Física e, por conseguinte, no Esporte Educação, proporcionando ilimitadas ações de interdisciplinaridade. Basta verificar os componentes lendários, históricos, anatômicos e biomecânicos para se perceber sua empregabilidade educacional. Desde as Lutas mais remanescentes, que se têm ciência do mundo ocidental e oriental, passando pela evolução das Artes Marciais e do interesse e sucesso nas modalidades esportivas de combate, sabe-se que o universo das Lutas é deveras global. Tomando-se por conta a nossa história, as Lutas indígenas brasileiras como a Huka-Huka e a Capoeira possuem uma extensa diversidade de elementos para promover reflexão sociocultural e instrução corporal, além de, consequentemente, trazer vasto conhecimento sobre nossos costumes e tradições e favorecer a interdisciplinaridade. 95 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 LUTAS: ASPECTOS PEDAGÓGICOS E APROFUNDAMENTOS Exercícios Questão 1. (Enade 2016, adaptada) Ao analisar o planejamento pedagógico das modalidades Karatê e Judô de uma escola de esportes, o coordenador esportivo que supervisiona a equipe de professores verificou que, nas turmas de 6 a 10 anos, o processo de ensino-aprendizagem era voltado prioritariamente para o aprimoramento das técnicas que fazem parte dessas modalidades através de programas essencialmente especializados. Com base nessa situação, avalie as afirmativas a seguir e a relação proposta entre elas. I – O coordenador esportivo deverá convocar uma reunião com os professores da equipe para discutir o processo de ensino-aprendizagem dos alunos e propor a reestruturação do planejamento pedagógico das referidas modalidades Porque II – As crianças submetidas precocemente a treinamentos especializados podem vir a apresentar transtornos psicológicos, lesões e esgotamento prematuro. A respeito dessas afirmativas, assinale a alternativa correta. A) As afirmativas I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I. B) As afirmativas I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta da I. C) A afirmativa I é uma proposição verdadeira, e a II é uma proposição falsa. D) A afirmativa I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira. E) As afirmativas I e II são proposições falsas. Resposta correta: alternativa A. Análise das afirmativas Justificativa: a afirmativa I é correta, pois o coordenador esportivo tem um papel importante na montagem da metodologia de ensino em conjunto com os professores e na supervisão da execução destas atividades propostas nas diferentes faixas etárias. A afirmativa II é correta, pois nesta faixa etária (6 a 10 anos) o treinamento especializado pode trazer diversos prejuízos físicos, psicológicos e sociais aos respectivos alunos. Adicionalmente, a afirmativa II é uma justificativa da I, pois caso não ocorra uma reestruturação do planejamento, os alunos podem apresentar os prejuízos supracitados. 96 Re vi sã o: K le be r - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 0 6/ 04 /1 8 Unidade I Questão 2. (Enade 2004, adaptada) As Lutas são um conteúdo da Educação Física a ser desenvolvido pelos profissionais nas suas atividades em diferentes locais, como academias, clubes, escolas etc. Embora não sejam um objeto de estudo exclusivo da Educação Física, têm sido elemento constante de tal campo de atuação. Por outro lado, as Lutas têm sido alvo de severas críticas, especialmente em virtude do desenvolvimento dos chamados pit boys (rapazes que se utilizam do aspecto físico e técnico das artes marciais para praticarem atos de violência). Neste sentido, aulas e treinamentos podem ser um espaço de contribuição para formação educacional e físico-técnica do aluno, cabendo ao professor: A) Estimular a tolerância e a convivência, mantendo a exclusividade do direito de ministrar aulas de artes marciais. B) Permitir à população, embora restritamente, conforme o desempenho atlético, o acesso às aulas de artes marciais. C) Traçar um perfil sociométrico e psicológico de seus alunos para aferir a possibilidade de um deles tornar-se um pit boy. D) Facilitar a inserção social da população, estimulando-a a praticar artes marciais para aprender a se defender quando sofrer um ato de violência. E) Facilitar a inserção social dos excluídos, inclusive os que têm comportamento agressivo, e utilizar suas aulas para estimular, além do desempenho atlético, a sociabilidade. Resolução desta questão na plataforma.