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INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS HISTÓRICOS Caroline Silveira Bauer Nova esquerda inglesa Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Analisar as características da história social inglesa. Identificar a relação entre a nova esquerda inglesa e a teoria marxista. Relacionar as contribuições de Edward Palmer Thompson para a historiografia. Introdução Não foi somente a historiografia francesa que passou por modificações importantes ao longo da segunda metade do século XX. A escrita da história na Inglaterra também foi interpelada pelos acontecimentos so- ciais e políticos, reinventando as suas práticas. Parte dessas inovações é oriunda de um grupo de historiadores que ficou conhecido como “nova esquerda inglesa”, por realizar trabalhos inspirados na história social com uma vertente marxista. Neste capítulo, você vai conhecer melhor a historiografia inglesa, prin- cipalmente a corrente conhecida como “história social inglesa”, analisando suas principais características. Você também vai verificar qual é a relação entre esses historiadores e a teoria marxista. Por fim, você vai conhecer o pensamento de Edward Palmer Thompson e a sua contribuição para a história da historiografia. A história social inglesa O campo historiográfi co denominado “história social inglesa” surgiu em torno dos anos 1960, congregando historiadores e outros profi ssionais que utilizavam a obra de Karl Marx para a compreensão da realidade, distanciando-se das perspectivas dogmáticas que caracterizavam o marxismo vulgar. De acordo com Hobsbawm (1998), o marxismo vulgar é: uma interpretação determinística da sociedade, em que o fator econô- mico é explicativo das demais realidades sociais; um modelo que divide a sociedade em infraestrutura (economia) e superestrutura (ideias); uma ideia de classe construída a priori por definições majoritariamente econômicas; a existência de leis históricas e certas “etapas” de desenvolvimento da sociedade, que rumaria, indefectivelmente, para o comunismo. A renovação da perspectiva marxista de escrita da história se deveu a dois fatores. Primeiramente, no campo historiográfico, o contato com as produções realizadas pelos historiadores vinculados à revista dos Annales e os demais debates internos possibilitaram o questionamento do materialismo histórico como uma “teoria da história”, como reivindicava uma historiografia marxista ortodoxa, orientada pelo stalinismo. Isso permitiu que conceitos como os de alienação, ideologia e luta de classes, bem como a relação entre infraestrutura e superestrutura, fossem ressignificados, principalmente pela interlocução com a empiria. Paralelamente às críticas desenvolvidas no campo historiográfico, a re- novação também ocorreu pelo rompimento de diversos intelectuais com o Partido Comunista da Grã-Bretanha, por sua leitura da sociedade ancorada em um marxismo determinista e economicista. Dessa forma, os estudos sobre a formação das classes e a luta entre elas, as estratégias de poder, as políticas de dominação, as resistências e as disputas entre culturas, tradições e valores são temas que decorrem do investimento conceitual, metodológico e teórico dos autores, bem como de seu engajamento nos debates políticos e sociais de seu tempo. Fizeram parte dessa corrente de autores como Christopher Hill, Edward Thompson, Eric Hobsbawm, Raymond Williams e outros. Como características comuns de seus trabalhos, você pode considerar as listadas a seguir. Rechaço do marxismo dogmático ou ortodoxo, principalmente a de- terminação da superestrutura (a cultura, a ideologia, a consciência social) pela infraestrutura. Em outras palavras, distanciamento de uma interpretação economicista e determinista do marxismo. Atenção especial às noções de classe e luta de classe, repensadas a partir das críticas às vertentes dogmáticas ou ortodoxas, valorizando a importância da cultura e da experiência dos sujeitos enquanto per- tencentes a uma classe social. Nova esquerda inglesa2 Ampliação das noções de luta de classe e relações sociais de produção para além de componentes econômicos, incluindo aspectos culturais, ideológicos, políticos e sociais. Reflexões sobre a inter-relação entre as estruturas e a ação dos sujeitos nas mudanças e transformações históricas. Escrita de uma história comprometida com uma visão dos sujeitos, ou, como ficou conhecida na história da historiografia, com uma “história vista de baixo”. Agora que você já conhece as características comuns às obras desses autores, que tal conhecer um pouco mais sobre a obra e a produção de cada um deles? Christopher Hill (1912–2003) se filiou ao Partido Comunista da Grã- -Bretanha durante a sua juventude, permanecendo vinculado até o ano de 1956, quando houve uma desfiliação coletiva em função da crítica ao stalinismo e às ações desenvolvidas pela União Soviética. Sua obra se concentrou na história da Inglaterra no século XVII, principalmente na Revolução Inglesa. Entre seus livros traduzidos para o português, destacam-se A Revolução Inglesa de 1640, O mundo de ponta-cabeça: ideias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640, O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa e Origens intelectuais da Revolução Inglesa. Edward Thompson (1924–1993) lutou durante a Segunda Guerra Mundial, depois se filiou ao Partido Comunista, que deixou em 1956. Foi professor em diferentes universidades na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sua obra foi dedicada às experiências e às percepções dos trabalhadores. Suas principais obras traduzidas para o português são: A formação da classe operária inglesa, Senhores e caçadores, A miséria da teoria, Costumes em comum e A economia moral revisitada. Eric Hobsbawm (1917–2012), assim como os seus colegas citados anterior- mente, lutou na Segunda Guerra Mundial e se filiou ao Partido Comunista, mas manteve sua filiação até a dissolução da União Soviética. Hobsbawm dedicou-se à história contemporânea e à história dos trabalhadores, tendo inúmeros títulos publicados, destacando-se a coleção sobre história contemporânea (A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios e A Era dos Extremos – o breve século XX), Da revolução industrial inglesa ao imperialismo, Mundos do trabalho e Revolucionários e Bandidos. Raymond Williams (1921–1988) também lutou na Segunda Guerra Mundial e se filiou ao Partido Comunista. Seus trabalhos giraram em torno de temas que envolviam a cultura, a literatura e a política, desde uma perspectiva marxista 3Nova esquerda inglesa de análise. Seu único livro traduzido para o português é Cultura e sociedade, uma referência para os chamados “estudos culturais”. De acordo com Kaye (1984 apud BEZERRA, 1995, p. 121), esses historia- dores constroem uma tradição historiográfica e uma tradição teórica: Enquanto tradição teórica comum, coloca-se a problemática de um afastamento do determinismo econômico e de uma prática construtiva do materialismo histórico. Enquanto tradição historiográfica, acentuaram-se algumas caracte- rísticas básicas: estudo das origens, desenvolvimento e expansão do capitalismo do ponto de vista social; preocupação em desenvolver o marxismo como teoria para a determinação de classes, recolocando-se a luta de classes como sendo de importância capital no processo histórico; a história focalizada de baixo para cima; elaboração da teoria a partir da prática histórica; contribuição à cultura política britânica para uma consciência histórica socialista e democrática. Como você pode notar, os historiadores da história social inglesa se de- dicaram a uma pluralidade de abordagens, enfoques e temas. Porém, todos eles se preocuparam em formular contribuições conceituais a partir de uma perspectiva marxista, elaborando narrativas históricas em que a esfera eco- nômica não seria determinante para a compreensão da cultura, da política e da sociedade, tal como apregoava uma leituraortodoxa da obra de Marx. Esse grupo organizava debates historiográficos e também realizava trabalhos comunitários. Ele ficaria conhecido como “nova esquerda inglesa” e seus trabalhos foram difundidos pelo mundo por meio da revista New Left Review. A nova esquerda inglesa e a teoria marxista Como você já sabe, a nova esquerda inglesa procurou se desvencilhar do dog- matismo e da ortodoxia que permeavam o pensamento marxista em meados do século XX. Para tanto, sugeria um retorno às obras de Karl Marx e Friedrich Engels, em detrimento dos comentadores de seus textos e da instrumentali- zação de suas teorias por diferentes partidos socialistas e comunistas a fi m de orientar a práxis. Nova esquerda inglesa4 Que tal aprender mais sobre o pensamento do filósofo alemão Karl Marx? Acesse o link a seguir para assistir a uma entrevista de Antônio Carlos Mazzeo, doutor em história econômica e professor da Universidade de São Paulo (USP). https://goo.gl/GKEhC4 Após a morte de Engels, em 1895, o pensamento de Marx foi alvo de detur- pações e simplificações feitas por seus comentaristas e por dirigentes político- -partidários. A leitura realizada das obras de Marx acabou por transformar o marxismo em um corpus teórico fechado e definitivo. Nessa “teoria”, o âmbito econômico, em detrimento de outros aspectos considerados nas obras de Marx, teria uma primazia nas análises das sociedades. Diversas correntes internas contes- taram as deturpações e simplificações a que o pensamento de Marx foi submetido. Contudo, Stalin, ao assumir a direção do Partido Comunista na União Soviética, acabou por eclipsar as críticas e consolidar uma leitura deturpada e dogmática, cujas principais características eram: a utilização estrita de análises de Marx como uma “teoria” para a leitura dos processos históricos; e uma falsificação de determinados fatos históricos com finalidades políticas. Foi contra esse contexto intelectual dentro do marxismo que a nova esquerda inglesa se posicionou. A história social inglesa teve a formação do capitalismo e a análise das classes sociais como temáticas de predileção. Para desenvolver essas análises, foram necessários dois caminhos de atuação: recuperar algumas análises de Marx, como o Contribuição à Crítica da Economia Política; e enfrentar o determinismo econômico da historiografia marxista. Nesse sentido, os historiadores dessa corrente precisaram romper com uma visão ortodoxa entre infraestrutura (estrutura econômica) e superestrutura (ideologia). Eles se dedicaram a abordagens que recuperam experiências, ações e lutas das classes populares, daí a preocupação com as práticas culturais e as tradições. Nos debates internos existentes na esquerda inglesa, mais especificamente no Partido Comunista da Grã-Bretanha, havia uma oposição entre duas correntes historiográficas: de um lado, os marxistas estruturalistas e ortodoxos; de outro, aqueles que apresentavam uma versão crítica dessa leitura da sociedade. Esse conflito ocorria, por exemplo, em relação à compreensão do que seria classe social: 5Nova esquerda inglesa Thompson dirigiu severas críticas à corrente estruturalista marxista e em par- ticular a Perry Anderson e Ton Nairn, propagadores das teorias althusserianas na Inglaterra. O cerne do debate apoiava-se nas noções de classe e luta de clas- ses. Os dois primeiros historiadores advogavam classe social como elemento componente indissociável das categorias de infraestrutura e superestrutura. Em outras palavras, concebiam a formação da classe social e de sua consciência como derivação do processo da base produtiva. Por seu turno, Thompson manifestava claramente suas objeções e oposições a essa visão marcadamente estrutural e estática sobre classe social. De acordo com suas indagações, o conceito de classe social não podia ser apreendido como um simples produto do desenvolvimento estrutural das forças produtivas. Todavia, procurou demonstrar que o termo “classe social” é dinâmico e guarda em seu interior diferentes interpretações e significados (MELO JR., 2013, documento on-line ). Uma das principais diferenças em relação à linha que propôs uma revisão do marxismo ortodoxo foi a utilização da teoria para a leitura da sociedade. Enquanto os ortodoxos buscavam na realidade exemplos que comprovassem a teoria, os marxistas mais “arejados” procuravam pensar a teoria como parte do processo de formulação da pesquisa, em uma interação com a empiria. Isso evitaria o engessamento das análises e o emprego de conceitos hermeticamente estabelecidos pelas obras de Marx. Leia o artigo de Freitas (1994) “Thompson e a tradição marxista”, disponível no link a seguir. https://goo.gl/mogq5A Thompson explicitou boa parte de suas críticas à historiografia ortodoxa marxista britânica, principalmente a Louis Althusser, na obra A miséria da teoria: O discurso histórico disciplinado da prova consiste num diálogo entre conceito e evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa empírica, do outro. O interrogador é a lógica histórica; o conteúdo da interrogação é uma hipótese (por exemplo, quanto à maneira pela qual os diferentes fenômenos agiram uns sobre os outros); o interrogado é a evidência, com suas propriedades determinadas. Mencionar essa lógica não é, de certo, proclamar que ela esteja sempre evidente na prática de todo historiador, ou na prática de qualquer historiador durante todo o tempo (THOMPSON, 1981, p. 49). Nova esquerda inglesa6 A forma como esses historiadores passaram a considerar a dimensão do trabalho, inserindo em suas análises as noções de cultura e experiência, per- mitiu um deslocamento para outros interesses, como as vivências das pessoas comuns e suas reações a tais vivências. De acordo com Castro (1997), essa mudança de perspectiva implicou um reordenamento metodológico muito importante em relação ao tratamento dado às fontes: Que fontes utilizar para dar voz às pessoas comuns? A prática e o debate metodológico em relação ao uso da técnica de história oral neste campo têm sido intensos nos últimos vinte anos, mapeando seus avanços e limitações. Um intenso intercâmbio com a antropologia permitiu transformar mitos, rituais e imagens em fontes históricas. O uso antropológico de fontes ligadas à repressão, como os processos da inquisição, inquéritos policiais e processos judiciais, tem se mostrado extremamente fértil. O contínuo questionamento em relação a até que ponto as fontes oriundas da repressão nos podem revelar algo sobre a experiência daqueles que interrogam, para além da lógica dos interrogadores, tem produzido análises progressivamente menos ingênuas e mais criativas (CASTRO, 1997, p. 51). O marxismo proposto pela nova esquerda inglesa, principalmente por Thompson, chamou a atenção para o diálogo necessário entre teoria e empiria, numa relação dialética. A seguir, você vai conhecer outras contribuições do historiador inglês para a historiografia. As contribuições de Thompson para a historiografia Edward Thompson foi um historiador inglês, membro durante um longo período do grupo da New Left Review, que congregava investigadores com- prometidos com uma visão crítica e renovada do marxismo. Ele também militou politicamente em diferentes movimentos pacifi stas, engajando-se em lutas do seu tempo. Segundo o próprio Thompson, suas experiências pessoais foram muito importantes para conceitos-chave de sua obra, como o de luta popular coletiva: “[...] durante a Segunda Grande Guerra foi ofi cial do exército britânico, lutando na Itália e na França. Após a guerra, passa algum tempo da Iugoslávia e na Bulgária, como voluntário na reconstrução de estradas e de outras obras [...]” (BEZERRA, 1995, p. 119). Entre seus inúmeros artigos e livros publicados, destacam-se William Morris, de romântico a revolucionário, um estudo biográfico (1955), A for- 7Nova esquerda inglesa mação da classe trabalhadora inglesa (1790–1830) (1963), A miséria da teoria (1978)e Tradição, revolta e consciência de classe (1979). Anderson (1985, apud BEZERRA, 1995, p. 119), crítico interlocutor de Thompson, afirmou que “[...] todos estes textos [de Thompson] foram, a seu modo, tanto uma intervenção militante no presente como uma recuperação profissional do passado [...]”. Nesse sentido, torna-se impossível desvencilhar a militância da prática profissional, o que em nada desabona as sugestões metodológicas e teóricas de escrita de história propostas por Thompson. Sua obra exerceu e ainda exerce forte influência no campo historiográfico, sendo difícil sintetizar todas as suas contribuições que perpassam as discus- sões sobre a ideia de agência e experiência, sobre os conceitos de classe e de consciência de classe e sobre as ideias de cultura e tradições. Por isso, muitas vezes, há referências à sua preocupação com “a história que vem de baixo” — uma história social de todos aqueles que fizeram a história, mas não a escreveram, entre os quais camponeses, trabalhadores urbanos, gente comum. Em A formação da classe operária inglesa, um livro publicado em três volumes, Thompson critica as interpretações realizadas a partir de um viés determinista e economicista do marxismo, que, para o autor, não são adequadas para descrever o surgimento da classe operária na Inglaterra. O desenvolvimento da consciência de classe não teria sido oriundo unicamente da exploração do trabalho durante a Revolução Industrial, mas devido a uma série de outros fatores vinculados à cultura e às experiências anteriores ao trabalho nas indústrias. Veja: A formação da classe operária inglesa buscou em seus três volumes destacar a autoformação e a organização do operariado inglês no século XVIII. Pensar a classe operária inglesa no ato de sua formação levou o ainda quase desco- nhecido professor de cursos básicos de educação popular para o centro do debate acadêmico, tornando o livro uma das principais referências dos anos de 1960, 1970 e 1980 (MELO JR., 2013, documento on-line). Posteriormente, Thompson se afastou dessas noções, especialmente da concepção de que a classe operária somente se forma totalmente, tornando- -se então uma “classe para si” (e não apenas “em si”), quando atinge plena consciência de sua exploração no processo capitalista de produção. Ele passou a questionar o sistema com perspectivas revolucionárias e socialistas. Thomp- son considera que é no processo de luta que se forja a identidade social das classes populares, e não pela difusão dogmática de qualquer doutrina. Assim, a “classe operária” pode perfeitamente adquirir uma dimensão própria de sua identidade social oposta à ordem burguesa, sem que tal identidade assuma necessariamente um caráter revolucionário. Nova esquerda inglesa8 Na introdução do primeiro volume de A formação da classe operária in- glesa, Thompson apresenta sua definição de classe social e pontua as diferenças em relação a Marx e Engels, ressaltando o papel da experiência: Não vejo a classe como estrutura, nem mesmo como uma categoria, mas como algo que ocorre efetivamente e cuja ocorrência pode ser demonstrada nas relações humanas [...] a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica [...]. A classe acontece quando alguns homens, como resultado de ex- periências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus (THOMPSON, 1987, p. 9-10). Em outro texto, Thompson amplia essa definição: Classe é uma formação social e cultural (frequentemente adquirindo ex- pressão institucional) que não pode ser definida abstrata ou isoladamente, mas apenas em termos de relação com outras classes; e, em última análise, a definição só pode ser feita através do tempo, isto é, ação, reação, mudança e conflito. Quando falamos de uma classe, estamos pensando em um corpo de pessoas, definido sem grande precisão, compartilhando a mesma catego- ria de interesses, experiências sociais, tradição e sistemas de valores, que tem disposição para se comportar como classe, para definir a si próprio em suas ações e em sua consciência em relação a outros grupos de pessoas, em termos classistas. Mas classe, mesmo, não é uma coisa, é um acontecimento (THOMPSON, 1998a, p. 102). É nesse sentido que Thompson se lançou ao estudo das resistências das classes subalternas, procurando valorizar atitudes e comportamentos que, aparentemente insignificantes ou imediatistas, eram no fundo reveladores de uma identidade social em construção. A classe não estava pronta a priori, ela se fazia. Outra grande contribuição de Thompson em seus trabalhos sobre a historici- dade das experiências sociais foi o estudo do tempo como produto das relações sociais. Em um de seus escritos, intitulado Tempo, disciplina e trabalho, o autor analisa como o tempo do trabalho, do ócio e do lazer foram modificados com o desenvolvimento do capitalismo, exigindo formas inéditas de organização da vida em função das novas rotinas produtivas. Veja: O pequeno instrumento que regulava os novos ritmos da vida industrial era ao mesmo tempo uma das mais urgentes dentre as novas necessidades que o capitalismo industrial exigia para impulsionar o seu avanço. Um relógio não 9Nova esquerda inglesa era apenas útil; conferia prestígio ao seu dono, e um homem podia se dispor a fazer economia para comprar um. [...] Sempre que um grupo de trabalhadores entrava numa fase de melhoria do padrão de vida, a aquisição de relógios era uma das primeiras mudanças notadas pelos observadores. [...] Por meio de tudo isso — pela divisão de trabalho, supervisão do trabalho, multas, sinos e relógios, incentivos em dinheiro, pregações e ensino, supressão das feiras e dos esportes — formaram-se novos hábitos de trabalho e impôs-se uma nova disciplina de tempo. A mudança levou às vezes várias gerações para se concretizar [...] sendo possível duvidar até que ponto foi plenamente realizada: ritmos de trabalho irregulares foram perpetuados (e até institucionalizados) no século atual, especialmente em Londres e nos grandes portos. [...] As evidências são abundantes e nos lembram, pelo método do contraste, até que ponto nos habituamos a diferentes disciplinas. Sociedades industriais maduras de todos os tipos são marcadas pela administração do tempo e por uma clara demarcação entre o “trabalho” e a “vida”. Mas, depois de levarmos tão longe o exame do problema, podemos nos permitir, à maneira do século XVIII, um pouco de moralização sobre nós mesmos. O ponto em discussão não é o do “padrão de vida”. Se os teóricos do crescimento querem de nós essa afirmação, podemos aceitar que a cultura popular mais antiga era sob muitos aspectos ociosa, intelectualmente vazia, desprovida de espírito e, na verdade, terrivelmente pobre. Sem a disciplina do tempo, não teríamos as energias persis- tentes do homem industrial; e adotando as formas do metodismo, do stalinismo ou do nacionalismo, essa disciplina chegará ao mundo em desenvolvimento (THOMPSON, 1998b, p.). A grande contribuição de Thompson com essa obra foi chamar a atenção para a historicidade da experiência social do tempo, refletindo sobre a forma de “controle” e organização do tempo, que é voltado para a lógica do trabalho. Além disso, ele permitiu uma revitalização das análises históricas de cunho marxista, compreendendo as manifestações culturais como um espaço social de conflito, resistência e disputa, o que criou uma alternativa consistente para a abordagem funcionalista da cultura. O impacto de Thompson na historiografia brasileira O historiador britânico Edward Thompson possui uma infl uência muito grande na historiografi a brasileira, impacto que antecede a tradução de suas obras para o português. Ainda na década de 1970, os estudos sobre o movimento operário republicano foram novamente impulsionados pelas ideias de Thomp- son. Posteriormente, nos anos 1980, foi a historiografi a da escravidãoe do pós-abolição que se benefi ciou de suas refl exões, que geraram uma série de discussões sobre a história social do trabalho. Nova esquerda inglesa10 De acordo com Cord (2014, p. 126): Desde meados dos anos 1980, a obra de E. P. Thompson conquistou significa- tiva ressonância na historiografia brasileira. Nos debates sobre o centenário da abolição do trabalho escravo, em 1988, jovens e então promissores historiadores publicaram importantes textos baseados em substancial pesquisa empírica. Eles relativizaram alguns pressupostos defendidos pela Escola Sociológica Paulista, que, desde os anos 1960, afirmavam a anomia do escravo e a incapacidade do negro de se integrar à sociedade de classes. Por meio de novas fontes, como, por exemplo, processos criminais e cíveis, aqueles profissionais perceberam que os cativos tinham expectativas próprias, sendo que todas elas estavam solidamente ancoradas em suas experiências e visões de mundo. Marcada por costumes comuns e noções de direito vindas de baixo, essa economia moral fazia dos africanos escravizados senhores de suas vidas, sujeitos de suas histórias. Independentemente das críticas ao uso da perspectiva de Thompson para a compreensão do movimento operário e da história da escravidão e do pós-abolição, os historiadores parecem unânimes ao afirmar que as obras do autor britânico modificaram significativamente a forma como se deveriam olhar as fontes e o modo como os sujeitos históricos se referiam a si mesmos e liam o seu entorno. Conforme avalia Cord (2014, p. 141): O legado historiográfico de E. P. Thompson é fundamental para valorizarmos as experiências dos trabalhadores do passado. A história vista de baixo legitima as expectativas dos sujeitos que viveram em outras épocas, permitindo que os deixemos falar por meio das fontes disponíveis. Aprendemos a compreendê- -los considerando seus valores, sem julgá-los aprioristicamente como típicos ou atípicos, de acordo com nossos dogmas teóricos. Entretanto, não menos importantes foram as vivências do marxista inglês enquanto docente envol- vido com as classes subalternas. Com os de baixo, ele exercitou uma boa interlocução por meio de democráticos processos político-pedagógicos — o que permitiu que trocasse conhecimentos com os trabalhadores de seu tempo. Essa mudança de perspectiva revela uma assimilação da ideia de Thompson de não enquadrar os achados nas fontes primárias em conceitos ou modelos apriorísticos. Ele buscava estabelecer uma relação dialética entre as fontes primárias e os referenciais conceituais e teóricos. Por exemplo: em vez de enquadrar determinados setores do movimento operário brasileiro como “classe”, era necessário compreender a classe como um processo moldado pelas percepções que homens e mulheres tinham de sua realidade. Em resumo, para Löwy (1997), foi a renovação do marxismo ao longo do século XX, para a qual as contribuições de Thompson são inestimáveis, que 11Nova esquerda inglesa permitiu conferir inteligibilidade aos fenômenos inéditos que atravessaram o século, tais como “[...] o imperialismo e o fascismo, o stalinismo e a sociedade do espetáculo, as revoluções sociais nos países periféricos e as novas formas de capitalismo [...]” (LÖWY, 1997, p. 21–22). BEZERRA, H. G. E. P. Thompson e a teoria na história. Projeto História, São Paulo, v. 12, p. 119-127, out. 1995. CASTRO, H. História social. In: CARDOSO, C.; VAINFAS, R. (org.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CORD, M. E. P. 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