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Propedêutica Lógico-Semântica Ernst Tugendhat Ursula Wolf 1. O que significa Lógica? Começaremos nossa propedêutica lógico-semântica com o conceito de lógica. A relação desta com a semântica será mostrada a partir de si mesma no decorrer dos capítulos seguintes. O que se entende por "lógica"? A palavra foi concebida no decurso da história desta disciplina sob vários aspectos, ora de um modo mais amplo, ora de um modo mais restrito. Com respeito a essa variedade, não é contudo sensato perguntar qual é o significado correto, já que não existe um significado verdadeiro de uma palavra. O que deve ser aqui evitado não é o erro, mas sim a falta de clareza. Por isso é importante que expliquemos em que relações estão uns com os outros os diferentes significados em que a palavra foi usada. Antes de podermos abordar isso, são necessárias algumas observações prévias orientadoras. Pode-se classificar a história da lógica, grosso modo, em três períodos1. O primeiro abrange a lógica antiga, estendendo-se aproximadamente desde seu fundador. Aristóteles, até fins da Idade Média. No segundo, trata-se da lógica moderna, iniciando-se com a chamada Lógica de Port-Royal (1662)2 Este segundo período se caracteriza pela predominância de problemas ligados à teoria do conhecimento e à psicologia, devido aos quais a pesquisa lógica no sentido estrito assim como o esclarecimento de conceitos lógicos básicos passaram a segundo plano. Esta tradição está também ainda defendida esporadicamente em alguns livros mais recentes, como por exemplo na Logik do fenomenólogoPfander (1921)ou na Logik de Freytag-Lóringhoff (1955). Este segundo período foi o mais improdutivo do ponto de vista da lógica3, mas suas concepções influenciaram de modo particularmente forte os sistemas filosóficos, já que os grandes filósofos da modernidade - Kant, p. ex., e Hegel - se encontram nesta tradição. O terceiro período é o da lógica atual. Começando com a Begriffschrift de Frege (1879).Esta lógica é freqüentemente caracterizada como lógica "matemática" ou "simbólica" ou mesmo como "logística". Estas caracterizações referem-se ao desenvolvimento da lógica com base em cálculos. Mais importante contudo é o fato de os lógicos deste terceiro período terem de novo separado nitidamente os problemas especificamente lógicos dos psicológicos e retomado a pesquisa lógica no sentido estrito, conduzindo-a a inesperadas conseqüências, após os defensores do segundo período terem partilhado a opinião de que a lógica no sentido estrito já teria sido completada por Aristóteles4 (tendo as conseqüências mais importantes da lógica estóica e sobretudo escolástica ficado esquecidas neste segundo período). Mas o que se entende então no geral por "lógica"? Não se pode compreender corretamente, quanto à relação que mantêm entre si, as diversas respostas que foram dadas a esta pergunta, se não se diferenciam - por mais paradoxal que isso possa parecer-, antes da delimitação mais exata da temática, três diferentes modos de conceber a lógica. Para tal objetivo é suficiente inicialmente dizer sobre a temática da lógica que ela simplesmente investiga determinadas regras, leis ou relações; e a questão agora é: regras, leis ou relações de quê? Trata-se de leis do ser ou da realidade (chamamos a isso concepção ontológica), deleis do pensamento (concepção psicológica) ou de leis da linguagem (concepção lingüístíca)? Tomemos p. ex. o princípio da contradição. Ele diz, grosso modo, o seguinte: algo não pode ao mesmo tempo ser e não ser o caso. Por que não? Alguns dizem que isso se funda na essência do ser; outros, na essência do pensamento; uns terceiros, na essência da linguagem. Estes três diferentes modos de conceber a lógica influenciaram a questão de como se deve delimitar a temática da lógica. A concepção psicológica é característica do segundo dos três momentos da história da lógica há pouco diferenciados. A Lógica de Port-Royal define a lógica como "a arte de bem guiar a razão (raison)". Encontramos uma delimitação mais nítida em Kant: lógica é a "ciência das leis necessárias do entendimento e da razão em geral ou, o que é o mesmo, da mera forma do pensamento em geral"5. Kant enfatiza com efeito que isso não deve ser entendido psicologicamente: a lógica é a "ciência do uso correto do entendimento e da razão em geral. mas não é subjetiva, isto é, não se pauta por princípios empíricos [psicológicos] de como o entendimento pensa, mas sim objetiva, isto é, se pauta por princípios a priori de como ele deve pensar”. 6 1 Sobre a história da lógica, cf. Kneale, The Development of Logic. 2 Arnauld/Nicole, La Logique ou l’art de penser. 3 Na obra de Kneale só é dedicado a ele um capítulo; ao primeiro período quatro; ao terceiro período, sete. 4 Cf. Kant, Crítica da razão pura [citada aqui como CRP], B VIII. – Sobre o modo como um lógico moderno avalia a situação, cf. a primeira frase de Methods os Logic de Quine: “A lógica é uma antiga região e desde 1879 ela se tornou uma grande região”. 5 Kant, Logik, p. 13. 6 Ibid., p. 16. Num sentido amplo, porém, a concepção de Kant é psicológica, na medida em que ela parte justamente do conceito de entendimento, isto é, de algumas realizações do pensamento (mesmo que sejam acessíveis a priori). Face a isto a tradição mais antiga - e também, novamente, a concepção moderna - se orienta, antes, pela linguagem, respectivamente pelo ser, pautando-se a concepção moderna primariamente pela linguagem. Não há contudo na tradição mais antiga nem na lógica atual definições conceituais de lógica que sejam abrangentes, semelhantes às há pouco mencionadas. Isto se deve ao fato de a concepção de lógica como teoria do pensamento correto ser demasiado indeterminada. A partir dela apenas, não se pode extrair a temática específica da lógica. A concepção comum é a de que a lógica tem a ver com "os princípios da inferência válida"7; para ser mais exato, ter -se- ia que complementar: "na medida em que essa inferênciase baseia na mera forma dos enunciados (ou juízos)". Com isso estão mencionados dois conceitos que só mais tarde iremos esclarecer de modo mais exato: o de inferência e o de forma lógica. Por agora é suficiente mencionar a explicação de Kant: "Por inferir deve-se entender aquela função do pensamento através da qual um juízo é deduzidoa partir de um outro"8. Certamente a questão será o que nessa explicação significa "deduzir". Por agora, apenas mais um exemplo: (A) "Todos os homens são mortais", (B) "Sócrates é um homem"; (portanto) (C) "Sócrates é mortal". Estes três enunciados juntos formam uma inferência; (A) e (B) constituem as premissas, (C), a conclusão. A primeira teoria da inferência formal válida foi desenvolvida por Aristóteles no escrito Analytica Priara; mas apenas com Frege ela se tornou uma disciplina abrangente. (Mais tarde veremos em parte como Frege pôde ampliá-Ia desta maneira.) Nossa questão agora é a seguinte: deve-se limitar a lógica à teoria da inferência formal válida? Aqui esbarramos em uma segunda diferença conteudística quanto ao modo como a lógica é hoje concebida e o modo como ela foi entendida no segundo período. Para os lógicos modernos a lógica é a teoria da inferência válida; para os lógicos do segundo período, ela é a teoria do pensamento correto, e esta abrange: 1. a lógica do conceito, 2. a lógica do juízo, 3. a lógica da inferência, 4. uma doutrina do método. Encontramos isso pela primeira vez na Lógica de Port-Royal. Deixemos de lado inicialmente a doutrina do método; também Kant, na verdade, ainda se mantinha preso a ela, mas a concepção que se tornou clássica é a que contém a tríade conceito-juízo-inferência. Será que esta concepção triádica é uma conseqüência da interpretação psicológica da lógica no segundo período ou é independente dela? Qual era a situação, no primeiro período? Aristóteles não possuía nenhum conceito unitário de lógica. A lógica tradicionaldo primeiro período se orientou pelos escritos tidos como escritos lógicos de Aristóteles e reunidos sob o nome de "Organon". São eles: 1) Categorias, 2) De Interpretatione (Peri Hermeneias) 3) Analytica Priara, 4) Analytica Posteriora, 5) Topica, 6) De Sophisticis Elenchiis. 1) trata dos componentes simples das frases enunciativas e pôde ser concebido portanto como uma lógica do conceito; 2) trata das frases enunciativas e pôde ser concebido portanto como a teoria aristotélica do juízo; 3) contém a teoria da inferência formalmente válida; 4) trata da prova científica; 5) das inferências de probabilidade - a chamada "dialética"; 6) dos sofismas. Embora o próprio Aristóteles não houvesse reunido os três primeiros escritos de modo a formarem uma unidade, a concepção posterior da tríade pôde contudo se basear em tal combinação. Partindo da concepção usual moderna de lógica, que se limita à inferência formalmente válida, pode- se também incluir nesta concepção o que se entende por lógica do juízo e lógica do conceito. Se na lógica se trata dos "princípios da inferência válida na medida em que essa inferência se baseia na mera forma dos enunciados", a lógica da inferência é dependente de um esclarecimento da forma dos enunciados e conseqüentemente de uma lógica do juízo. E pode-se, ademais, dizer o seguinte: o esclarecimento da forma lógica dos enunciados não é de modo algum possível sem um esclarecimento simultâneo dos elementos da frase, relevantes para a forma lógica, e isso corresponderia à lógica do conceito. Vista deste modo, a inferência está, na verdade, no centro (e isso vale certamente também para o primeiro período da lógica). O esclarecimento das formas dos enunciados é apenas uma condição para a teoria da inferência formalmente válida. Finalmente, se os conceitos a partir da linguagem são vistos como elementos não autônomos da frase, a lógica do conceito não é uma disciplina autônoma, mas pertence diretamente à teoria das formas do enunciado. Este último ponto, com efeito, não é mais evidente; ele depende da concepção lingüística ao invés da psicológica. Faz-se aqui necessária uma outra diferenciação. Partindo-se do conceito moderno de lógica como lógica da inferência, deve-se diferenciar entre a lógica como investigação sistemática de todas as inferências formalmente válidas e a filosofia da lógica como análise dos conceitos básicos relevantes na lógica. Para a lógica em si. o esclarecimento das formas da frase enunciativa é apenas algo preliminar a ser executado 7 “Logic is concerned with the principles of valid inference”, Kneale, The Developmente of Logic, p. 1. 8 Kant, Logik, p. 114. rapidamente, mas, para a filosofia da lógica, ele é central. Nossa propedêutica permanecerá, no essencial, no âmbito dessa "lógica do juízo". Mas o que dizer da doutrina do método que a Lógica de Port-Royal incluiu adicionalmente na lógica pela primeira vez? Essa concepção remonta ao Discours de la Méthode, de Descartes; trata-se aqui de "la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la vérité dans les sciences", isto é, do "método para bem guiar sua razão e buscar a verdade nas ciências" (Esse "e" não é aditivo, mas sim explicativo). Os autores da Lógica de Port-Royal tomaram, para sua definição de lógica, diretamente de Descartes o conceito "para bem guiar sua razão" (cf. p. 11). Com o desenvolvimento das ciências empíricas no século XVII exigiu-se que, no lugar da lógica escolástica pretensamente estéril - lógica esta que (isso está na essência da inferência lógica) extrai as conseqüências apenas daquilo que já é sabido, se desenvolvessem métodos para encontrar a verdade (chercher la verité). Contudo, havia aqui um equívoco. É que se deve diferenciar entre a ars inveniendi e a ars demonstrandi, entre o encontrar a verdade e a fundamentação da verdade. É verdade que a lógica (no sentido da lógica da inferência) não contribui muito para se encontrar a verdade, mas ela nunca pretendeu isso. Não parece sensato colocar em concorrência as instruções vagas para se encontrar a verdade e as regras exatas de fundamentação da verdade. Mas, poder-se-ia perguntar, por que não se deve, como feza Lógica de Port-Royal, aceitar adicionalmente na lógica, como um apêndice, regras para se encontrar a verdade? Pode-se fazer isso e definir correspondente mente de modo amplo a palavra "lógica". "Lógica" neste sentido corresponderia então, sobretudo, àquilo que hoje é chamado teoria da ciência. Nessa direção apontam também determinadas expressões em uso hoje em dia - quando se fala p. ex. de "lógica das ciências sociais". Para contrastar a concepção restrita de "lógica" com essas concepções mais abrangentes, surgiu também a expressão lógica formal (existente apenas a partir de Kant). No sentido da lógica tradicional (e também no da lógica moderna), toda lógica é formal. Ainda uma última diferenciação faz-se necessária. A lógica enquanto doutrina do método foi conectada à descoberta da verdade; a lógica no sentido estrito, à fundamentação da verdade. Mas nem toda fundamentação da verdade se realiza sob a forma de inferências formais. Podem-se fazer as seguintes distinções: toda fundamentação da verdade de um enunciado se dá diretamente (pela percepção) ou indiretamente (através de outros enunciados). A fundamentação indireta tem sempre a forma: "Porque (ou: se) isso e isso e isso, daí (ou: então) isso". Mas nem toda a inferência é formalmente válida (vemos de novo quão importante será o esclarecimento do conceito "formal"e do conceito "validade formal"). Diferencia-se portanto da inferência formalmente válida (a dedutiva) a chamada inferência indutiva. Por inferência indutiva entende-se tradicionalmente (ela já é entendida deste modo em Aristóteles, Tópicos 105a13) a inferência do particular para o universal. Dado o caso, estamos justificados a inferir que "todos os F são G", a partir de "isso é F e é G" e "aquilo é F e é G" etc. Evidentemente uma tal inferência não é válida do ponto de vista formal; e o problema de indução é então o seguinte: sob que circunstâncias uma tal inferência é, contudo, legítima. Sendo assim, mesmo que a lógica se limitasse à inferência e às regras de fundamentação da verdade, ela seria mais abrangente do que o modo como ela é concebida pela visão moderna corrente. Isso explica por que muitos autores consideram como lógica também uma lógica indutiva. O texto clássico para essa concepção é A System of Logic (1843), de Mill. Sobretudo aqui não se trata de questão substancial. mas de mera questão definitória, se queremos entender lógica no sentido mais restrito ou no sentido mais amplo. Uma vez que nossa propedêutica será totalmente centrada na problemática da forma lógica, esse significado mais amplo de lógica, mencionado por último, não nos dirá respeito. À concepção moderna de lógica corresponde, ao contrário, o fato de se ter em vista uma ampliação em outra direção: a orientação para a frase enunciativa, ao invés de para o juízo, faz surgir a questão de se não haveria "deduções" de ordens a partir de ordens, de desejos a partir de desejos, deduções estas análogas às deduções de enunciados a partir de enunciados9. 9 Cf. sobre esse ponto Rescher, The Logic of Commands; Kenny, “Practical Inference”; Hare, Practical Inferences, cap. 4 ATIVIDADE EXTRA (Vale até 1 ponto na média) Faça uma resenha do texto: “O que significa Lógica?” de Ernst Tugendhat e Úrsula Wolff, com no mínimo 1 página. Seu texto deve contemplar as seguintes questões: 1. Qual o conceito de Lógica apresentado pelos autores? 2. Explique o que são: a) Enunciados, juízos e frases. b) Princípios. c) Inferências. d) Forma. 3. Como os autores dividem a história da Lógica? 4. Quais as concepções de lógica apresentadas pelos autores? Explique-as. e-mail para entrega: gabriel.scardueli007@beta.sed.sc.gov.brprazo: até as 23:55h do dia 02/05/2018. mailto:gabriel.scardueli007@beta.sed.sc.gov.br