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TÓPICOS AVANÇADOS DA TEORIA LITERÁRIA Alessandra Bittencourt Flach Teoria do conto Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Recordar a teoria do conto. Reconhecer os tipos de contos produzidos ao longo da história da literatura. Identificar os principais teóricos e autores relacionados ao gênero conto. Introdução Neste capítulo, você vai aprofundar seus conhecimentos teóricos sobre o conto. Esse gênero literário é bastante popular e, ao longo da história da literatura, vem mostrando suas potencialidades em diferentes manifestações. Talvez o conto seja, juntamente ao poema, uma das preferências dos escri- tores quando iniciam sua produção. Apesar de sua forma curta e sintética, engana-se quem pensa que o conto é simples. Justamente pela capacidade de síntese desse gênero é que o escritor precisa recorrer aos seus melhores artifícios se quiser conquistar o leitor e mostrar que domina a técnica. Aqui, você vai estudar a teoria do conto, a sua definição e os tipos de composição. Também vai conhecer os principais teóricos e contistas para perceber o lugar que o conto ocupa na história da literatura. Para apro- fundar os seus estudos, você vai ainda analisar alguns contos notáveis e entender por que esse é um gênero que encanta tanto e há tanto tempo. O conto Em seu famoso texto Instinto de nacionalidade, Machado de Assis — aliás, o maior contista brasileiro, provavelmente um dos maiores do mundo em todos os tempos — assim se refere ao conto: “É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade [...]” (ASSIS, 2013, p. 436). Isso mostra a consciência do autor em relação ao domínio da técnica. Sem dúvida, por ser um gênero curto, potencializam-se as habilidades do escritor em relação à técnica. É difícil porque, diferentemente do romance, que tem a extensão a seu favor e maior espaço para apresentar uma ideia e seus desdobramentos, o conto não tem espaço para nada que não esteja diretamente relacionado ao efeito pretendido. Em linhas gerais, o conto é uma narrativa curta em torno de aconteci- mentos que despertam interesse no público leitor pela problematização de questões e situações. A teoria parece simples, mas revela uma complexidade própria desse gênero. Veja: por se tratar de uma narrativa, pressupõe-se, então, a presença de acontecimentos que se desenvolvem no tempo e no espaço. Isso implica considerar personagens, narrador, composição do enredo, discurso, descrições. Além disso, o adjetivo “curta” remete ao fato de que essa composição, envolvendo a conjunção desses elementos todos, deve se dar de forma abreviada. Ou seja, o conto, ao contrário do romance, por exemplo, centra-se em uma unidade de ação. E tal aspecto é definidor desse gênero. Todos os elementos narrativos devem convergir para um único ponto, para uma única situação. Edgar Allan Poe — outro grande contista e pioneiro na teorização dos con- tos, como você vai ver mais adiante — apresenta a ideia de que o efeito do conto deriva de sua “unidade de impressão” (POE, 1950). Para que o conto se constitua como tal, é preciso que seu sentido seja construído de forma a não exigir do leitor mais de uma “sentada” para a leitura. Do contrário, a tensão do conto (essencial para impactar o leitor) perderia sua intensidade e, assim, o próprio texto perderia sua razão de ser. O último ponto relacionado à definição aqui proposta envolve o interesse despertado no leitor. Por um lado, esse interesse se dá pela construção narrativa, pelas escolhas do autor em relação à história em si, ao suspense, ao tom (mais humorado, mais sério, mais reflexivo, mais estereotipado e assim por diante). Por outro lado, despertar o interesse do leitor envolve criar nele a necessidade de buscar a novidade da história. Isso não quer dizer que o conto sempre tenha de lidar com a originalidade e a fantasia. Não. O conto deve apresentar uma situação, que pode ser até bastante trivial, de um modo que faça o leitor percebê-la como diferente, como algo curioso, com um ponto de vista inusitado. A partir dessa definição bastante abrangente do conto, fica mais evidente a dificuldade de composição a que se referia Machado de Assis, não é? Apesar de essa definição ser limitada, as possibilidades de colocar em prática a “unidade de ação” são inúmeras. Conseguir captar um flagrante da realidade e recriá-lo de forma ficcional é um trabalho árduo, sem dúvida. E essa potencialidade é definidora dos tipos de contos e dos grandes talentos da literatura. Teoria do conto2 A palavra conto, utilizada para designar o gênero literário, vem do termo latino computu. Isso remete à ideia de que o conto, em sua origem, estava restrito a elencar, citar, enumerar uma série de acontecimentos. Depois é que foi adquirindo particularidades e se desdobrando em outras formas: fábula, anedota, novela e propriamente conto. O que persiste nessa ideia de “contar” é justamente o foco em uma ação dramática, a exploração de um fato ou de uma personagem em um momento único, captando-se um instante, como um flash. Se um conto, por definição, possui todas as características de outros gê- neros narrativos, sua condensação implica uma redução ou limitação dessas características. Do ponto de vista do narrador, este precisa direcionar-se a um momento ou acontecimento, o que leva a um número reduzido de personagens e a uma concisão em termos de aprofundamento destas. Por extensão, as noções de tempo e espaço condicionam-se a essa mesma prerrogativa. São apresentadas em número reduzido, com economia de descrição e eliminação de aspectos acessórios. Como você vai ver na próxima seção, se há, para o conto, limitação de extensão e de construção dramática, é ampla a capacidade de composição. Cada conto é uma novidade em termos de construção estética, ainda que ligado a uma tradição narrativa que lhe confere um estilo próprio. O conto e as suas variações O conto literário como você conhece hoje, em todas as suas variações, tem origem na oralidade, na fi gura do contador de histórias. Desde sua consoli- dação até agora, tem evoluído de muitas formas. Independentemente disso, é um gênero literário que recebe grande apreciação do público leitor, que pode escolher o estilo de conto que mais o agrada. Há uma imensa variedade de tipologias de contos, mas aqui você verá as mais signifi cativas, aquelas que, de certa forma, são referência para a criação nesse gênero. O que importa mesmo é a criatividade do autor ao contar a sua história. Conto de tradição oral O conto de tradição oral, também chamado de conto popular, constitui as bases do conto como gênero literário. Primeiramente, é preciso fazer uma distinção entre os contos orais propriamente e os contos escritos que têm forte relação com a oralidade, tanto em sua origem quanto em sua estrutura. 3Teoria do conto O conto oral é, segundo a terminologia de Jolles (1976), uma “forma sim- ples”, no sentido de que se desenvolve oralmente, sem a participação direta de um autor que fixe ou registre na escrita a forma do conto. Como forma simples, o conto adquire algumas estruturas que se mantêm e alguns temas próprios. No entanto, por seu caráter oral, cada vez que alguém conta um conto, faz isso com as próprias palavras. Ou seja, a oralidade incute no conto uma possibilidade de reelaboração constante. Ao mesmo tempo, essa reelaboração está condicionada a uma forte ligação entre quem conta e seus interlocutores, de modo que compartilham aspectos culturais e ideológicos que se expressam no conto. Dois elementos são essenciais ao conto oral: a presença de uma moral (e, por extensão, de personagens exemplares do que é certo e do que é errado) e certa ordenação da narrativa, a fim de que as coisas aconteçam como deveriam acontecer (com a punição do mal e a premiação do bem). No conto oral, há o predomínio do maravilhoso, ou seja, de manifestações da ordem do sobrenatural no plano do real, sem, contudo, que hajaqualquer estranhamento em relação a isso. Por exemplo, os animais que falam, os objetos mágicos, os superpoderes, as fadas — todos esses elementos existem no conto para ajudar o herói (personagem principal) a resolver seus conflitos e a triunfar sobre os inimigos. No entanto, é muito difícil fazer o registro de um conto oral se você quiser apreendê-lo em sua totalidade, já que se trata de uma realização única. Pense que, se o conto é contado com as próprias palavras do contador de histórias, cada vez que conta, há uma apresentação diferente, ainda que os elementos essenciais em termos de enredo e estrutura se mantenham. Por conta disso, só é possível acessar os contos de tradição oral que são fixados na forma escrita (e que, assim, não podem mudar mais), que notadamente se relacionam com a moral e a estrutura do conto oral. Nesse segundo caso, há, sem dúvida, a intervenção de um autor, que cris- taliza, na escrita, determinado conto. Aí emprega traços do conto oral, mas também as marcas de sua autoria. Em termos de leitura e efeitos de sentido, já não se trata mais de uma recepção compartilhada (já que o conto oral destina- -se a uma plateia, é coletivo), mas de uma leitura individual e silenciosa, cujos efeitos dizem respeito ao leitor como indivíduo. Sob essa perspectiva, que aqui é a mais relevante, pois inaugura uma tradição literária de contos, você deve considerar o trabalho pioneiro dos irmãos Grimm (1812), que pesquisaram e registraram contos da tradição oral e os fixaram na escrita, incutindo-lhes suas marcas. Histórias como A Bela Adormecida, O príncipe e o sapo, Branca de Neve e A gata borralheira fazem Teoria do conto4 parte dessa coletânea. Embora muito conhecidas e adaptadas para desenhos e filmes, essas narrativas não são contos infantis. Basta ler a versão dos irmãos Grimm para perceber que a moral se destina a um público adulto (GRIMM; GRIMM, 2008). Tendo como referência os contos de Grimm e de outros autores, os pesquisadores Antti Aarne e Stith Thompson perceberam que havia características comuns nesses contos em termos de temática e estilo narrativo. Em 1910, publicaram uma tipologia com essas categorias, entre elas contos de animais, contos de fadas, contos de encantamento e contos cumulativos. Mais tarde, Vladimir Propp questionou essa divisão, propondo que o foco fossem as funções das personagens e seus papéis nos contos. Em 1928, ele publicou Morfologia do conto maravilhoso, em que apresenta sua teoria sob o viés do formalismo russo. O que esses contos têm em comum? Como já referido, todos apresentam uma moral ou um exemplo. São histórias com pouca intervenção do narrador e pouco aprofun- damento psicológico. As personagens são tipos. Em termos de estrutura, parte-se de uma situação inicial (uma moça perdeu a mãe e foi criada por uma madrasta má, por exemplo), há um elemento complicador e um conflito (como um baile no reino, ao qual a moça é proibida de ir) e surge uma ajuda mágica (fada madrinha, abóbora transformada em carruagem, sapatinho de cristal) que contribui para o desfecho feliz e a compensação do sofrimento (o príncipe se apaixona pela moça, casam-se e vivem felizes para sempre). Muitas coletâneas, na história da literatura, contribuíram para o desenvolvimento do conto, como os Contos e histórias de proveito e exemplo (1575), de Gonçalo Trancoso, o Decamerão (1351), de Boccaccio, Os Contos de Canterbury (1390), de Chaucer, os Contos da mamãe gansa (1697), de Charles Perrault, e As mil e uma noites (coletânea de origem oriental traduzida para o francês em 1708 e popularizada desde então). No entanto, foi mesmo a partir dos Grimm, no século XIX, que esse gênero literário não só ganhou popularidade como passou a ser explorado em novas configurações, já desvinculadas da tradição oral. Conto clássico A partir do século XIX, o conto se consolida como uma forma literária de ampla aceitação (em especial pela popularização da leitura, garantida pelo desenvolvimento da imprensa e dos jornais) e, ao mesmo tempo, como referido por Machado de Assis, de difícil composição. O conto clássico é aquele de- senvolvido principalmente a partir do século XIX e que possui uma estrutura 5Teoria do conto composta a partir de um princípio de concentração. Pela extensão curta, o enredo se desdobra a partir de um episódio único, o que potencializa a tensão e reforça a ideia de uma expectativa. Nessa categoria, estão os contos de suspense, os contos policiais (que envolvem a solução de crimes e mistérios) e os contos fantásticos. Você sabe qual é a diferença entre conto maravilhoso e conto fantástico? No conto maravilhoso, o sobrenatural participa do cotidiano de modo natural, sem questio- namentos, como quando um dragão fala ou alguém tem uma varinha mágica. No conto fantástico, a presença do sobrenatural é vista com estranhamento, como algo que desafia a lógica e as relações possíveis. A história fantástica se desenvolve justamente a partir dessa tensão, como no conto O gato preto, de Edgar Allan Poe, em que o personagem principal quase enlouquece por pensar que é perseguido por um gato amaldiçoado, embora ele próprio duvide de que isso seja possível. Para reforçar a tensão, a narrativa é construída com vistas a atingir seu clímax, que seria o ponto alto, de maior tensão na história. A situação inicial leva a um crescente de expectativa, a uma complicação, até atingir o clímax; na sequência, ao encaminhar-se para o desfecho, vai se reduzindo a tensão. As personagens se desenvolvem no tempo e no espaço com vistas a esse caminho de tensão. Daí que suas atitudes e pensamentos são apresentados na medida em que atendem a esses princípios. Tome como exemplo o conto O gato preto, referido há pouco. A narrativa é feita em primeira pessoa. A personagem principal escreve seu relato (e esse relato é a matéria do conto) sobre as experiências que o tornaram um prisio- neiro e o condenaram à morte. O motivo dessa condenação, segundo ele, não está em sua culpa, mas na influência de um ser sobrenatural que assumiu a forma de um gato. Sua história começa com uma referência ao seu caráter (homem bom, amigo dos animais, bom marido). De repente, aparece um gato preto em sua casa e seu caráter muda (complicador). O personagem torna-se violento a ponto de matar o próprio gato. Algum tempo depois, aparece outro gato, inexplicavelmente com as marcas de tortura que o homem havia imposto ao primeiro gato (aumento da tensão). Isso leva a um aumento da violência, de modo que ele mata a esposa. Decide enterrá-la atrás de uma parede. Seu Teoria do conto6 crime, no entanto, é denunciado pelo próprio gato, enterrado junto com a mulher (clímax). O homem é preso e condenado à morte. Julga-se vítima de influência sobrenatural (desfecho). A história termina sem que o leitor tenha certeza se o homem era mesmo vítima ou se usou o gato como desculpa para seus atos cruéis (o que reforça o suspense). Conto moderno O conto moderno possui múltiplas facetas. Dele desdobram-se os vários tipos de conto contemporâneos. Ao mesmo tempo, o conto moderno mantém uma estrutura semelhante à do conto clássico: unidade narrativa em torno de uma ou poucas personagens. O conto, em toda a sua evolução, refl ete as características e demandas de sua época. Assim é que, na medida em que a modernidade vai desconstruindo o absolutismo e as visões totalizantes, substituindo-as por um olhar mais fragmentado, o conto segue essa tendência. O conto moderno, então, apresenta uma “diluição” da ação. O conflito e o clímax não são mais o alvo pretendido, e a tensão e a expectativa cedem espaço a uma análise mais psicológica ou a uma visão mais intimista da realidade. O conflito que dá início à narrativa é resultado do conflito entre o eu e o mundo, não está em fatores externos. Daí que a história passa a acompanhar esse conflito entre as forças internas do protagonista e a ordem externa. Ou, sob outra perspectiva, um evento externo (mesmo queaparentemente secundário) exerce sobre o sujeito um impacto muito grande. O conto é desenvolvido a partir dessa relação. Se Edgar Allan Poe é referência para o conto clássico, o conto moderno tem suas raízes em Anton Tchekhov, que apresenta o afrouxamento da tensão. Em seus contos, parece que nada acontece, as ações externas são secundárias ao que se passa na cabeça da personagem. Tome como exemplo o seu conto A morte do funcionário. Há uma situação inicial de aparente irrelevância. Um funcionário público, durante um espetáculo teatral, espirra e tem a impressão de que seu espirro atingiu um de seus superiores. A partir daí, entra em de- sespero, abala-se tanto com esse ato a ponto de morrer. A ação propriamente é reduzida, o espaço também. Basicamente, há dois momentos: quando o funcionário espirra (teatro) e quando ele pede desculpas (sala do general). A tensão é emocional, e a ação é psicológica. A mente da personagem trabalha em um ritmo muito mais acelerado do que o da ação externa. A nomenclatura “clássico” e “moderno” atende a um critério cronoló- gico. É bom que você tenha em mente que uma forma não substitui a outra. Tampouco elas se opõem. Pelo contrário, o que se tem percebido atualmente 7Teoria do conto é a coexistência das duas formas, inclusive traços de uma e outra tipologia no mesmo conto. Também seria possível organizar os contos por categorias temáticas, o que implicaria várias subdivisões. Vale, ainda, como registro, a referência a contos que, tendo um enredo mais voltado para a tensão ou mais voltado para a psicologia do sujeito, utilizam uma linguagem mais poética. Neles, as imagens, o ritmo e a musicalidade também são explorados, mesmo na prosa. Um exemplo são os contos de Guimarães Rosa. Principais teóricos e autores No processo de evolução dos contos, muitos autores e teóricos têm apresentado suas contribuições. Nesta seção, você vai conhecer contistas que teorizaram sobre esse gênero. Edgar Allan Poe (1809–1849) É considerado não só um dos mais importantes contistas de todos os tempos como também o primeiro a teorizar sobre o conto literário de modo mais aprofundado. Os contos de Poe destacam-se por seu caráter fantástico e de suspense, muito provavelmente pela tensão narrativa apresentada. As perso- nagens veem-se em confl ito com o sobrenatural, que passa a ameaçar suas certezas lógicas, como em O gato preto, já referido. Um dos seus maiores sucessores foi Howard Phillips Lovecraft, notório por seus contos de horror e pelo sucesso das adaptações de suas obras para o cinema, com personagens como Cthulhu, um monstro marinho cheio de tentáculos. Em um ensaio denominado Review of twice-told tales (1842), Edgar Allan Poe analisa a obra de Hawthorne e apresenta as ideias já referidas aqui de tensão narrativa e concisão. Esta é considerada a primeira teoria do conto: Não deve existir, em toda a composição, uma única palavra cuja tendência, direta ou indireta, não seja para o desígnio preestabelecido. Desse modo, com tal cuidado e habilidade, pinta-se afinal um quadro que deixa na mente de quem o contempla com afinidade artística uma sensação da mais plena euforia (POE, 1950, documento on-line). Do mesmo modo, Tchekhov (2005) reforça a manutenção do suspense pelo efeito único da narrativa. Juntamente a essa ideia de condensar a tensão e prender o leitor, não se pode deixar de mencionar as teorias de Piglia (1986), Teoria do conto8 escritor e ensaísta. Ele afirma que um conto sempre encerra duas histórias, as quais estão relacionadas por um jogo que revela outra história, subjacente a uma aparente condensação. Machado de Assis (1839–1908) O grande escritor Machado de Assis, imortalizado por seus romances célebres, como Dom Casmurro, deixou não só alguns escritos sobre o conto como também um grande legado de obras desse gênero. Seus contos realistas têm a sociedade burguesa como tema. Em geral, ele utiliza bastante o recurso referido por Piglia (1986) de encaixar uma narrativa em outra. As personagens são, em geral, pessoas muito bem adaptadas a seus contextos sociais e que, por isso, são representativas de sua época e de seus pares. Um dos seus contos mais famosos é “A cartomante”, que mostra bem a unidade dramática. O tempo do conto é de poucos minutos, suficiente para construir a tensão e a expectativa. O personagem principal recebe um bilhete, sendo chamado para uma conversa. Como está envolvido com a mulher do emissário, questiona-se (assim como o leitor) se o marido descobrirá algo. Há uma aparente solução quando decide encontrar uma cartomante. Esta o tranquiliza, garantindo a supremacia do amor. Para surpresa de todos, o marido recebe o amante da mulher e o mata, mesmo destino dado à esposa. O final é tão impactante, que dispensa comentários do narrador. Observe a concisão: A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela. — Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão (ASSIS, 1989, p. 23). Machado também se valeu de contos alegóricos, como Um apólogo, que traz o diálogo entre a linha e a agulha, discutindo qual das duas teria maior importância, numa clara alusão aos papéis sociais e à hipocrisia humana. 9Teoria do conto A prosa machadiana desenvolve-se em um período de consolidação da literatura brasileira. E o próprio autor reclama da falta de uma crítica literária nacional. Para minimizar essa lacuna, Machado, ocupando o espaço que tinha disponível em jornais da época, vai desenvolvendo algumas teorias interessantes. Aí é que, como já referido, em Instinto de nacionalidade, ele caracteriza o conto como gênero difícil. Nos prefácios de suas coletâneas de contos, Machado emprega um discurso de aparente menosprezo em relação aos próprios textos. Note, por exemplo, as escolhas dos títulos dessas coletâneas: Papéis avulsos, Histórias da meia-noite, Várias histórias, Páginas recolhidas, Histórias sem data. Parecem textos sem valor, recolhidos de forma improvisada, páginas soltas. Na verdade, há muita técnica e maestria por trás dessa aparente rejeição. No prefácio de Várias histórias, Machado provoca acerca da quantidade de contos: É um modo de passar o tempo. Não pretendem sobreviver como os do filósofo. Não são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre os primeiros escritos da América. O tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos (ASSIS, 1989, p. 13). Julio Cortázar (1914–1984) O escritor argentino também é considerado um dos grandes nomes da con- tística moderna. Juntamente com seu contemporâneo e compatriota Jorge Luis Borges (1899–1986), dedicou-se ao realismo fantástico em seus contos. Trata-se de contos em que, mais do que o elemento sobrenatural propriamente, é a percepção do indivíduo a respeito do extraordinário (e sua reação a ele) o que importa. Isso se expressa pela fragmentação do discurso, e a tensão se dá pelo aumento do estranhamento em relação ao que acontece. No conto A casa tomada, um casal de irmãos é submetido a uma invasão silenciosa.O leitor não sabe exatamente o que está acontecendo, porque o narrador (em primeira pessoa) atém-se à reação dos irmãos à casa que vai sendo ocupada aos poucos por “eles”. Mais tarde, os irmãos fogem sem ques- tionar, sem reagir. A aparente serenidade do relato feito pelo irmão (narrador) contrasta com a angústia e a violência que a situação impõe. E esse choque causa o estranhamento pretendido. Teoria do conto10 — Tomaram esta parte — disse Irene. O tricô descia de suas mãos e os fios iam até a porta e se perdiam por debaixo dela. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, ela largou o tricô sem ao menos olhá-lo. — Você teve tempo de trazer alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente. — Não, nada. Estávamos com o que tínhamos no corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no guarda-roupa do meu quarto. Agora era tarde. Como me sobrava o relógio de pulso, vi que eram onze horas da noite. Cingi com meu braço a cintura de Irene (eu acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de nos afastarmos senti tristeza, fechei bem a porta de entrada e joguei a chave no bueiro. Não fosse algum pobre- -diabo resolver roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada (CORTÁZAR, 2013, p. 7). Como contista, Cortázar também deixou vários escritos sobre o gênero em si. Reunidos na obra Valise de cronópio, seus estudos dão conta de aspectos definidores desse gênero. Para ele, há alguns elementos que se aplicam a todos os contos, sejam eles realistas ou fantásticos, dramáticos ou humorísticos. E isso está relacionado à profundidade e à síntese com que o autor precisa trabalhar a história. Ao comparar o conto a uma fotografia (e o romance ao filme), Cortázar indica a importância de considerar o leitor nesse processo. O contista precisa levar o leitor a buscar o que está além do conto (assim como o fotógrafo usa a imagem para remeter o espectador a algo que está além dela). E o único modo de se poder conseguir esse sequestro momentâneo do leitor é mediante um estilo baseado na intensidade e na tensão, um estilo no qual os elementos formais e expressivos se ajustem, sem a menor concessão, à índole do tema, lhe deem a forma visual e a auditiva mais penetrante e original, o tornem único, inesquecível, o fixem para sempre no seu tempo, no seu ambiente e no seu sentido primordial. O que chamo intensidade num conto consiste na eliminação de todas as ideias ou situações intermédias, de todos os recheios ou fases de transição que o romance permite e mesmo exige. (CORTÁZAR, 1993, p. 157) Assim, o que se pode perceber é que, paralelamente à produção literária, há a necessidade de os próprios escritores definirem as bases de sua composição e, a partir delas, criarem os seus textos. Talvez tão ou mais relevante do que entender esses contos do ponto de vista teórico seja perceber as transformações por que passam ao longo do tempo e identificar nessas novas formas os traços que definem o gênero. 11Teoria do conto ASSIS, M. Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade. In: AZEVEDO, S. M.; DUSILEK, A.; CALLIPO, D. M. (Org.). Machado de Assis: crítica literária e textos diversos. São Paulo: UNESP, 2013. ASSIS, M. Várias histórias. 3. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1989. CORTÁZAR, J. A casa tomada. In: CORTÁZAR, J. Bestiário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. CORTÁZAR, J. Valise de cronópio. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. (Coleção Debates). GRIMM, J.; GRIMM, W. Contos de Grimm. Porto Alegre: L&PM, 2008. 2 v. JOLLES, A. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976. PIGLIA, R. Tesis sobre el cuento. In: PIGLIA, R. Formas breves. Barcelona: Editorial Ana- grama, 1986. POE, E. A. Nathaniel Hawthorne. In: POE, E. A. et al. 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