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Faculdade de Letras da UFRJ Morfologia do Português – Código: LEV200 Carlos Alexandre V. Gonçalves 1ª avaliação 1) Explique o constituinte não-morfêmico que se depreende das comutações efetuadas em cada um dos grupos de palavras abaixo. (A) bananal matagal coqueiral canavial cipoal laranjal (B) mar corpo copo maré corpanzil copázio (C) descascadeira iogurteira leiteira frangueira frigideira omeleteira 2) Utilizando o método da comutação, identifique: a) os elementos morfológicos das palavras abaixo, representando-os em árvore; b) os alomorfes (se houver); c) a distribuição e o condicionamento desses alomorfes. i) cantaríeis (P5 - Fut. Pret. Ind.) ii) cantastes (P5 - Pret. Perf. Ind.) iii) cantardes (P5 – Fut. Subj.) 3) Na música “Lágrimas de diamantes”, de Paulinho Moska, canta-se o seguinte refrão: À noite lágrimas de dia amantes De dia lágrimas, à noite amantes Lágrimas de diamantes Com base em Mattoso Câmara Jr., diferencie as estruturas acima grifadas. 4) Mostre que algumas das palavras abaixo podem ser interpretadas de diferentes maneiras em relação à estrutura de constituintes morfológicos. Explique essas interpretações, evidenciando, para tanto, os dispositivos analíticos relevantes em cada uma: (A) casa – casas vez – vezes o lápis – os lápis canal – canais (B) coqueiro abacateiro caquizeiro tomateiro ingazeiro jambeiro Questão 1: No grupo A, o constituinte em jogo é o morfe supérfluo: a isolabilidade do elemento recorrente ‑al como unidade morfológica que manifesta a ideia de “local de plantio” (ou simplesmente “local de crescimento de X”, em que X é um vegetal) possibilita reconhecer as sequências ‑avi, em ‘canavial’, e ‑ag, em ‘matagal’, para as quais não é possível estabelecer qualquer significado ou função. Esses elementos não-recorrentes são não-morfêmicos justamente pela falta de significado, característica essencial das unidades morfológicas. Resta destacar, por fim, que essas partículas são supérfluas não porque podem ser descartadas e não precisem constar das estruturas morfológicas das palavras; são supérfluas porque não são contabilizadas na interpretação composicional dos itens de que participam. Em B, o elemento não-morfêmico depreendido é denominado de sequência não-recorrente (falso sufixo): há uma clara relação de significado entre as formas, sendo possível, inclusive, atribuir significado às formas –é, de ‘maré’, -anzil, de ‘corpanzil’, e –ázio, de ‘copazio’; tais unidades, no entanto, são únicas e, por isso mesmo, não participam da estrutura de nenhuma outra palavra – são formas que não se aplicam a várias palavras para ter estatuto de sufixo. Por fim, no grupo C, é possível isolar uma consoante, /d/, que, embora seja recorrente, não porta significado algum. Esse elemento, que pode ser chamado de morfe relacional (consoante de ligação), surge para desfazer o hiato que se criaria com o encadeamento morfológico: o sufixo inicia em vogal e a base, o tema do verbo, termina em vogal. A consoante em questão tem, portanto, importante função (fonológica), apesar de ser inteiramente desprovida de significado. Além disso, esse elemento sinaliza uma construção deverbal, aparecendo sempre como elo de ligação em formas que partem de bases verbais. Questão 2: Com a comutação, isto é, a partir da comparação dessas formas verbais com outras, é possível reconhecer as seguintes segmentações: cantaríeis partíeis cantaria ::: isolabilidade de ‑is, como marca de P5 cantaríeis cantásseis :: isolabilidade de ‑rie como marca de imperfeito do indicativo (alomorfia de –ria, que aparece em todas as demais pessoas) cantaríeis canto cantes :: isolabilidade de cant- como morfe lexical (raiz) cant/a/rie/is :: identificação do –a como marcador de primeira conjugação (C1) Representação arbórea: ω Tema Flexão Rd VT DMTA DNP | | | | cant a rie is cantastes Como o tempo em questão é o pretérito perfeito, o zero, ∅, é marca modo-tempo-aspectual (DMTA) – ela aparece na P4, ‘cantamos’, que é a mais completa. Portanto, ‑stes a marca de P5. segmentação: cant/a/∅/stes Representação arbórea: ω Tema Flexão Rd VT DMTA DNP | | | | cant a ∅ stes cantardes O tempo em questão é o futuro do subjuntivo, a marca modo-tempo-aspectual é o –r, sendo –des a marca de P5: cant/a/r/des Representação arbórea: ω Tema Flexão Rd VT DMTA DNP | | | | cant a r des Em se tratando de alomorfia, verifica-se, nos dados, uma alternância na desinência número-pessoal, já que a informação de P5 nem sempre se manifesta da mesma maneira – ora assume a forma –is (mais usual), ora –stes (no pretérito perfeito), ora –des (futuro do subjuntivo). A alomorfia em questão tem, portanto, condicionamento morfológico, pois diferentes classes formais (nesse caso, as próprias marcas de tempo-modo-aspecto) justificam a seleção do alomorfe correto. Outra alomorfia encontrada nos dados envolve a marca de imperfeito do indicativo, -rie, que deve ser considerada alomorfe de -ria. A justificativa para essa alternância, no entanto, é de outra natureza: nas formas verbais do português, a presença de /i/, vogal alta anterior, no morfema vizinho faz com que a vogal /a/ precedente sempre se realize como /e/, seja ela parte do morfema modo-tempo-aspectual, seja ela a vogal temática: cantava :: cantáveis; encontrará :: encontrarei amar :: amei Questão 3: Na música em questão, as sequencias em negrito sinalizam para a oposição entre vocábulo formal e vocábulo fonológico, fazendo com que os dois grupos de força se aproximem bastante do ponto de vista sonoro, embora sejam bem diferentes numa perspectiva formal. Em ‘de dia amantes’, temos dois vocábulos fonológico porque há duas formas livres, ‘dia’ e ‘amantes’, unidades que se caracterizam por portar acento (têm mais de uma sílaba e, portanto, projetam uma oposição forte/fraco). A preposição ‘de’ é uma forma dependente (um clítico, portanto) e se subordina ao acento de ‘dia’, formando, com essa forma livre, um único vocábulo fonológico em que funciona como uma sílaba pretônica. Do ponto de vista formal (mórfico), há, no entanto, três unidades, ‘de’, ‘dia’ e ‘amantes’, pois as formas dependentes, palavras funcionais, constituem vocábulos formais em português. A pauta acentual dessa sequência é a seguinte: de di(a) amantes 1 2 0 1 3 0 1 2 1 3 0 Em ‘de diamantes’, há um único vocábulo fonológico, apesar de haver dois vocábulos formais, a preposição e o substantivo. A preposição cliticiza à direita e forma, com o hospedeiro, uma única palavra fonológica, funcionando como uma pretônica: de diamantes 1 1 1 3 0 Pela representação da pauta acentual, verifica-se que as duas seqüências diferem apenas no grau de acento da sílaba ‘di’, que é subtônica no primeiro caso, por ser a tônica do vocábulo fonológico ‘dia’. Questão 4: As diferentes interpretações estruturais para os casos em A e B dependem diretamente da concepção de morfema assumida em cada caso. No modelo item-e-arranjo (IA), o morfema é interpretado como “coisa”, isto é, como uma unidade que necessariamente se reveste em forma, ainda que para isso haja necessidade de recorrer a “tipos especiais” de unidades morfológicas. Além disso, uma palavra é exaustivamente dividida em morfemas, cujos morfes devem ser dispostos num molde previamente estruturado. A abordagem alternativa, item-e-processo (IP) prevê a atuação de processos fonológicos regulares sobre as formas morfológicas, de modo que o morfema também pode ser concebido simplesmente como uma operação sobrebases. Desse modo, aparentes irregularidades na morfologia são deslocadas para o componentes fonológico, pois derivam do encadeamento de peças morfológicas. No caso de A, o IA recorreria à alomorfia para explicar as diferentes realizações do morfema de plural, chegando a postular um alomorfe zero para os casos de não-realização dessa categoria, como no caso das palavras anoxítonas terminadas em –s. formas como ‘lápis’ teriam um zero para representar o plural, embora o estatuto desse zero (alomorfe) seja diferente no singular (morfe). O modelo IP postular que a regra morfológica é uma só e as diferenças derivam da atuação de processos fonológicos regulares após a aplicação da regra geral. No caso de ‘lápis’ (pl.), uma análise via IP pode postular a existência de um /s/ entre parênteses como artifício representacional de uma regra de apagamento (degeminação) no caso das palavras terminadas em –s que não são oxítonas. No segundo caso, a abordagem IA postularia novamente uma alomorfia para justificar a alternância entre -eiro e ‑zeiro. Na abordagem processual, resguarda-se a idéia de que o sufixo não sofre qualquer tipo de modificação, resultando o /z/, morfe relacional, de uma regra fonológica de epêntese consonantal como estratégia para evitar o hiato resultante da concatenação do sufixo (iniciado por vogal) com bases terminadas em vogal tônica.