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18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 1/54 1988 MANET: O ENIGMA DO OLHAR por Resumo Edouard Manet esteve no centro dos debates artísticos nos anos de 1860, que culminaram na origem da moderna, “selvagem e desordenada”. Daí “O almoço na relva” participar da exposição no “Salon de Refu Com Ingres e Delacroix, a tensão entre Classicismo e Romantismo envelheceu. Era a nova arte, “explosiv endiabrada”. E, com ela, o fim também do que se pode chamar de olhar coerente e coeso, ou seja, imbu parâmetros culturais e coletivos que permitiam cumprir as fases de apreensão, interpretação e contextua que ainda assumirá a forma do olhar reduzido a si mesmo – a visualidade pura -, quando do abstracioni enquanto, o embate será entre a pintura histórica e literária e a pessoal e vanguardista – que só deve a s próprios. Reflexos, transparências, atmosferas saturadas, tons que variam segundo a luminosidade do d Mesmo moderno, não é esse o olhar de Manet, ainda atrelado às obras do passado, uma vez que assíduo de museus, relativamente recentes. Não que se deixe subjugar pelos clássicos. Deles, Manet captura frag modos de compor e, assim, escolhe seu passado, a partir do qual constrói o futuro. Mas não. Não se trata de apropriação pura e simples. Mas de análises, associações e sínteses, de modo q incorporar velhas soluções postas pelas representações, Manet engendra o novo, de que se destacam o u tom nuançado pelo cinza, o rigor estrutural, o vigor do detalhe, o traço sumário, o todo expressivo etc. Nem clássico, nem romântico, Manet não é também propriamente moderno. Não, pelo menos, como o q é – note-se a sutileza – o pintor do moderno ou, nas palavras de Baudelaire, “o pintor da vida moderna” testemunhos seus cafés, bares, nus, garotos, galanteadores, bêbados, barcos, passeios, bichos domestica Dedicado à memória de Alexandre Eulálio 1863 Jorge Coli https://artepensamento.com.br/autor/jorge-coli/ 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 2/54 Manet se encontra no centro das grandes manifestações culturais ligadas à modern passado. Suas intervenções — notórias e ruidosas — nos debates então levantados, nos anos 1860, momento particularmente nevrálgico desse processo de mudanças. consagrou um livro fundamental ao ano de 1863, dele datando o nascimento da Realmente, nesse ano a distinção entre o “novo” e o “arcaico”, entre a arte reconhe oficiais e uma outra, que parecia selvagem, desordenada, e cujos critérios de julgam haviam sido encontrados, é institucionalizada em Paris com a criação do “Salon des explode o escândalo do quadro O almoço na relva, de Manet. Neste período se evidencia também a liquidação das duas correntes — classicismo e relações conflituais haviam alimentado criação e pensamento durante a primeira m Alguns acontecimentos representativos podem adquirir aqui o papel de marco dessa Ingres termina o Banho Turco, a última de suas obras-primas, onde, significativame que o mestre idoso reivindicava e pela qual se batia, sofrera, no interior de sua próp processo de metamorfose que se tornara quase irreconhecível. Mas os funerais irreversíveis do velho classicismo se fazem mesmo ao som da músic jamais composta, música que Offenbach inventara para suas óperas-bufas de tema Infernos, de 1858 e A bela Helena, de 1864. A sociedade moderna do Segundo Impé definitivamente do fundamento cultural greco-romano que havia sido o ponto de re para o Ocidente desde pelo menos a Renascença; ela só podia tolerar então a cultur ironia e da paródia, e os deuses do Olimpo que descem aos Infernos para dançar o mesmo tempo, um sintoma e um símbolo. Por outro lado, o fim do percurso romântico é assinalado, ainda em 1863, pela mor Delacroix. Com a capela dos Santos Anjos, na Igreja de Saint-Sulpice, em Paris, que decorar pouco antes de morrer, a pintura do romantismo se concluía por um soberb mas se concluía. O OLHAR DESAMPARADO A extinção dos universos clássico e romântico trouxe, para a pintura, a perda dos co coesos dos quais ela derivava e se alimentava. O Olhar — que possuíra parâmetros carregado de saber coletivo, olhar que apreende, interpreta e situa — encontrou-se novas, para as quais não mais possuía referências seguras. A história das artes most poderá chegar ao ponto extremo de se reduzir a si mesmo, e de recusar assim tudo exclusivo ato de ver, a pura visualidade: são as formas diversas das abstrações que início do nosso século. [1] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 3/54 Ou então, se o olhar não é mais nutrido por uma cultura coletiva, pode tomar outro próprio conjunto de relações culturais capaz de lhe conferir um sentido específico. A do mundo se constituirão em sistemas simbólicos que substituem as antigas e coleti culturais. São, portanto, duas atitudes diferentes que significam o mesmo ataque fr História, à pintura literária: uma que anula pura e simplesmente toda referência se substitui o antigo repertório de temas por um novo e pessoal, cujo simbolismo é cri artista. Num quadro realizado em 1855 encontram-se emblematicamente associadas as dua pedia aos pintores modernos “o olhar da infância”, um olhar virgem, espontâneo, d do conhecimento, livre das tradições culturais trazidas pelas histórias das imagens. figurou, através de um simbolismo altamente pessoal, em sua imensa tela intitulada alegoria real determinando uma fase de sete anos de minha vida artística. Nele se vê, pintor em ação, executando uma paisagem, um garotinho que contempla seu traba e ideal espectador. Figura 1 – Gustave Courbet, O ateliê do pintor. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 4/54 A escolha por Courbet de uma paisagem para figurar o quadro dentro do quadro — pintura das pinturas — não é casual. Ela se torna aqui símbolo “moderno”, de um a “inculto” e se mostra, ao mesmo tempo, como o terreno ideal para as experiências d então. Gênero por excelência dos impressionistas, ela parece anunciá-los. Vinte ano Renoir, Pissarro, Sisley farão surgir uma arte que se quer definitivamente fundamen que rompe com a história das imagens, pois se preocupa, antes de mais nada, com reflexos, transparência e saturação da atmosfera, variação de tons segundo as mud do dia, e assim por diante. Não é este exatamente o olhar de Manet. Se ele se separa, por um lado, da tradição outro, precisa delas para estabelecer um diálogo voluntário: sua obra necessita das Isto repousa sobre os princípios de uma nova pedagogia instaurada — embora não completamente intencional — durante o século XIX, pedagogia que foi capaz de ab tradições e que se desenvolve através de uma recente instituição, paradoxalmente c endereçada exclusivamente ao olhar: os museus. Com a invenção dos museus, imen capazes de dispor diante do observador exemplos artísticos de todas as épocas e de aspirante a pintor se exercita na cópia daquilo que pode escolher. E aqui está o novo multiplicidade das imagens, com suas naturezas diversas e contraditórias, faz com q não seja mais possível. Pintores como Delacroix e Courbet enriqueceram o seu méti diversidade dos museus modernos. É verdade que o jovem artista pode ser subjugado pelo poder dessas variadas forma epígono atardado, ou um eclético que se dispersa. Couture, por exemplo, pintor ofi metade do século, professor de Manet durante seis anos, pintara uma tela celebérri romanos da decadência, inteiramente constituída por citações. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 5/54 Figura 2 – Thomas Couture, Os romanos da decadência. Um academismo derivado da pluridade das referências pode, dessa forma, ser instit modo, a variada origem das telas reunidas nos museus facultou a ruptura com uma enquanto dado prévio e indiscutível.A ideia de uma continuidade orgânica, ininter formais e semânticas no interior da história da pintura se abala, na medida em que virtualmente, escolher seu próprio passado. E Manet, com o auxílio das imagens do sua modernidade. SÍNTESE E INCORPORAÇÃO Certa história formalista das artes caracterizou Manet como um artista preocupado e formas, e as abstrações do século XX puderam buscar nele um ilustre precursor. E interpretações, a perspectiva de Malraux. Ei-la aqui, num texto célebre do Museu im Manet não sabe pintar um centímetro de pele, e que Olímpia é desenhada com aram que antes de querer desenhar Olímpia ou pintar a carne, ele quer pintar quadros[… Olímpia, o balcão cor de framboesa do pequeno Bar, o tecido azul do Almoço na rel manifesto, manchas de cor, e cuja matéria é uma matéria pictural, não uma matéria 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 6/54 Figura 3 – Édouard Manet, Olímpia. Essa interpretação traz consigo a carga de um formalismo teleológico que teve a vid falsa. Pois Manet trabalha com imagens culturalmente muito marcadas. E, nem epí constrói seus quadros através de um olhar dotado de surpreendente poder de síntes da maneira mais inesperada, imagens de origem diversa, inteiramente renovadas p tratamento. A síntese de Manet é poderosa: não a que tenta harmonizar elementos equilíbrio banal — mas a que engendra o novo em relação àquilo que a precede. As Giorgiorre, Rafael, Ticiano, presidirão ao nascimento do Almoço na relva e da Olímp também que nenhum desses dois quadros são obras à maneira de Giorgione, Rafael Do mesmo modo como Manet sabe encontrar imagens para reintegrá-las numa solu também o extraordinário talento para incorporar, no seu próprio fazer pictural, solu Encontramos, por exemplo, num primeiro tempo, muito marcante, de sua pintura, contribuições trazidas pela arte espanhola e holandesa. Ele retoma imagens e motiv Murillo, Velásquez ou Hals, mas além disso absorve também a técnica desses mestre obsessivo emprego dos negros e dos cinzas. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 7/54 NEGRORES Henri Focillon sublinhara a filiação: “A descoberta de Velásquez por Manet foi tard influência considerável pela capacidade de abreviação, pela síntese expressiva, pela cinzas e negros” e se referiu, mais adiante, “aos belos negros, untuosos e fumaren da Olímpia. Mas coube a Paul Valéry a evocação definitiva e célebre no Triunfo d Retrato de Berthe Morisot, exclama: “Antes de tudo, o negro, o negro absoluto, o neg possui, tomou conta de mim.” Manet é capaz de infinitas variações sobre o negro, e com muita frequência, em seu cores — rosas, azuis, verdes ou brancos — estão comprometidas com o cinza. Tome exemplo: uma tela de 1869, intitulada O molhe em Boulogne. Curiosa marinha, ond habitual tratamento das águas, a fluidez dos elementos, a vastidão ilimitada e incer deixou de ser um extraordinário construtor, como que instintivamente, suas compo ossatura original e inabalável. [4] [5] [6] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 8/54 Figura 4 – Édouard Manet, O molhe de Boulogne. Nesta tela, a organização é estrita. Ela se faz pela afirmação forte de uma larga faix propriamente dito, com os ritmos rigorosos dos pilotis e dos parapeitos, mais o trec precede), próxima ao espectador, cortada de um lado e de outro pelos limites da te linha vertical (o mastro), plantada no interior do duplo quebra-mar, seccionada no verticalizadas, menos exatas e nítidas, respondem, no fundo, como um eco fantasm perpendicular do primeiro plano. A geometria severa se alia a um emprego muito econômico dos tons. Mas no interio redução emerge a riqueza das nuanças. Manet pinta com cuidado as estacas embeb desfilam sob o molhe: motivo evidentemente pouco pitoresco, mas que lhe permite densidade, o brilho, a natureza e todos os matizes que esse negro oleoso contiver. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 9/54 Ele poderia ter tratado o belo tema das grandes velas brancas, límpidas, luminosas. macular a alvura dos panos com a presença dos cinzas. O próprio amarelo do parap uma nota viva nesse mundo austero, rigoroso e griséu, é atenuado pela presença do acinzentados. Um detalhe bastante aproximado de uma outra tela poderá nos auxiliar, de modo m compreensão desse emprego característico do negro. O recorte mostra a mão que se saia colorida de Lola de Valência. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 10/54 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 11/54 Figura 5 – Édouard Manet, Lola de Valência. A tela, de 1862, é célebre e entusiasmara Baudelaire, que a ela consagrou os quatro décimo quinto poema das Flores do mal e onde justamente se encontra a celebração negro que se associam: Entre tant de beautés que partout on peut voir, Je comprends bien, amis, que le désir balance; Mais on voit scintiller en Lola de Valence Le charme inattendu d’un bijou rose et noir.(*) (*) Entre tantas belezas que se pode ver em torno, / Compreendo bem, amigos, que se vê cintilar, em Lola de Valência / O encanto inesperado de uma joia rosa e negra Um pormenor do quadro nos mostra as manchas vermelhas, amarelas e verdes que da saia. Todos esses tons, em pinceladas rápidas, são colocados sobre um fundo neg isso: os vermelhos, amarelos e verdes se tingem de negro. O leque possui uma gama cinza. No bracelete, o ouro se sombreia e emoldura uma pedra escura como o ônix, dourados. Vista de perto, a pintura de Manet nos revela como o negro se constitui e inequívoco. Na parte esquerda da tela intitulada A música nas Tulherias, igualmente de 1862, é próprio Manet, de pé, com sua barba castanha e sua bengala, e Baudelaire, meio na chapéu azul da figura feminina no primeiro plano. Nos paletós escuros dos fraques intensidades diferentes, nas cartolas, ele toma reflexos e brilha. Emergem, de perm escuras, o cinza das calças, o branco dos colarinhos, sobre os quais as sombras pare fuliginosos. . [7] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 12/54 Figura 6 – Édouard Manet, A música nas Tulherias. Os personagens femininos sentados criam uma grande mancha amarela, feita de rit que se contrapõe à perpendicularidade masculina. É, no entanto, um amarelo ma n inteiramente por sombras acinzentadas que parecem prolongar, de um modo atenu percorre a parte inferior do guarda-pó. A cadeira leve, transparente, introduz um g elegante logo no primeiro plano, ela possui um tom amarelo-dourado, mas constan por pinceladas negras. Sobre ela, contrastando com o fundo mais claro, um cãozinh absolutamente cor de carvão. A COR DA MODERNIDADE O negro toma, portanto, no colorismo de Manet, o papel de um princípio unificado empregado na sua função de figurar a sombra, como o era, por exemplo, nos claros XVII. Está presente como o elemento constitutivo comum de todas as cores, é tratad através de nuanças incontáveis de brilho e de densidade. De maneira extremament Manet nos ensina a ver o negro. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 13/54 O negro está presente no mundo da modernidade e esta presença foi sublinhada po particularmente num texto onde a questão da cor é objeto de um longo desenvolvim 1846. O trecho que se segue foi extraído da última parte desse escrito, intitulada “D moderna”. “E entretanto, não possui ela sua beleza e seu encanto indígena, essa roupa tão crit roupa necessária de nossa época, sofredora e carregando até nos seus magros ombr luto perpétuo? Notem bem que a roupa negra e a redingote tem não apenas sua be expressãode sua igualdade universal, mas ainda sua expressão poética, que é a exp — um imenso desfile de papa-defuntos, papa-defuntos políticos, papa-defuntos ena defuntos burgueses. Todos nós celebramos algum enterro.” Roupas que serviam para todas as atividades, para o baile como para o enterro, seg Theóphile Gautier e que traduziam essa presença do negro no mundo contempor admiravelmente, Henri Focillon evocou: “A vida moderna, trepidante, nervosa, dra com seus prazeres baixos e noturnos, com o luto eterno de nossas névoas que as ch com a tristeza monótona do asfalto, o esplendor, à noite, das portas se entreabrindo ardentes, o brilho teatral das joias falsas, o colorido bizantino das maquiagens”. Esta passagem de Focillon é de derivação nitidamente baudelairiana. Ela se aplica p me, ao quadro de Manet intitulado Baile de máscaras na Opera. [8] [9] [10] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 14/54 Figura 7 – Édouard Manet, Baile de máscaras na Ópera. O tema poderia ter despertado no pintor a ideia de figurar uma grande sala onde a num espaço de grande respira que permitisse as evoluções mais vastas, a fluidez, a personagens ao movimento. Ao contrário, existe aqui um certo modo de apresentar põe, de modo irrecusável, diante dela. Manet determina um suporte sólido para sua robustamente geométrica, com as verticais e horizontais largas das estruturas arqui no fundo, limitando a profundidade e enclausurando os seres, que surgem disposto Não há nenhum ponto de fuga, nenhuma perspectiva, a frontalidade espacial é abso um conjunto de pessoas amontoadas, apertadas por estruturas que as constrangem personagens na parte superior do quadro, pendurados no parapeito, são seccionado enquadramento fotográfico. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 15/54 O negro se evidencia, caracterizando essas roupas da modernidade. O conjunto hum fundido numa grande massa escura, animado por alguns tons de cinza. As cartolas, criam um extraordinário ritmo pelas leves inclinações diferentes dos cilindros, subli reflexos lustrosos e oblíquos. Algumas cores mais vivas, poucas, sobressaem nas rar Texier descreveu esses bailes da Opera, nos quais o salão, cheio de trajes colorid onde “senhores graves como escreventes de cartório e sombrios como papa-defunto horas, em busca de uma intriga”. Está claro que é este o retrato proposto por Mane impressão que as relações sociais são definidas pelas cores; podemos imaginar que preto são compradores do prazer oferecido pelas mulheres de braços nus e vestes br negócio está presente, com muita frequência e em momentos cruciais, no erotism quadros de Manet. Estamos habituados a considerar a luminosidade e a clareza como traços da moder aqui, ao contrário, neste tratamento que faz do negro o instrumento da unidade cro particularmente adequado para traduzir o negror que invadia o mundo da moderni verdade que, a partir de 1874, quando Manet entra em contato com as experiência clareia, de maneira notável, sua paleta. Mas então já havia realizado seus quadros m que incidiram, de modo definitivo, sobre a história da pintura. E com esses quadros surgiu em suas gamas de mais ricas variações. SIMPLIFICAÇÃO Nos quadros de Manet, através do negro, as cores se irmanam numa unidade const fazer parte de um processo rigoroso de construção. Construção: eis uma palavra-chave para se compreender o olhar de Manet. As cores a arquitetura da composição. Esta se faz, no entanto, por meio dos volumes e do m simplifica radicalmente. Dizia-se que ele pintava suas figuras como as das cartas de baralho, isto é, em duas bastante pertinente. O pífaro, de 1866, é provavelmente a melhor ilustração desse a [11] [12] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 16/54 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 17/54 Figura 8 – Édouard Manet, O pífaro. A economia de meios nesse quadro é prodigiosa; o espaço foi abolido, tudo o que é acidente, foi eliminado, e tudo se concentra no garotinho que toca seu instrumento O personagem é inabalável; ele se afirma por contrastes de cor, numa gama, aliás, vermelho, amarelo e branco, sobre um fundo acinzentado, mas luminoso. Nada de colocado ao lado do outro sem hesitação, de modo a se exacerbarem no mútuo con A firmeza é ainda mais acentuada pois o personagem se reduz quase a uma silhueta exemplo, o modelado está praticamente ausente: descobrimos ali alguma coisa de a calças também é reduzido ao mínimo. Existe, realmente, ideia do recorte. O empreg cores e o aspecto da silhueta determinam uma construção sem falha. A TENTAÇÃO IMPRESSIONISTA As formas simplificadas reforçam uma relação estrutural onde a ideia de composiçã Manet tende a anular os volumes, tratando o modelado de modo sumário, as figura estrutura vigorosa e pelo contraste das cores — passam a adquirir firmeza e podero no período em que sua obra é afetada pelas novidades impressionistas, para as qua parece se dissolver sob reflexos e brumas coloridas, tornando-se suporte para os fen Manet conserva intactos os volumes simples e o princípio da complexidade constru telas. Nem o rigor da composição, nem a palpabilidade do mundo desaparecem, e o moti enquanto relação da natureza com a atmosfera, privilegiadamente tratada pelos im temas aquáticos — jamais se impõe enquanto preponderante a Manet. Para ele, a p o humano se encontra, e o ser humano é, em toda sua obra, o tema que lhe interess dominar uma técnica que lhe parece útil — como a dos impressionistas —, ele a em — quando e naquilo que pensa ser necessário. Não faz dela, jamais, um instrument com os impressionistas do mesmo modo que o fizera em relação aos mestres do pas deles o que sua síntese formal pedia. Tomemos dois quadros de 1874 — momento da eclosão impressionista, em que Ma invadir pela nova técnica. O primeiro deles retrata Claude Monet no seu atelier flut Argenteuil. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 18/54 Figura 9 – Édouard Manet, Claude Monet em seu ateliê. Monet, nesses primórdios das experiências impressionistas, havia inventado um mo ao ar livre: alugara um barco e nele podia trazer telas, tintas, o material que lhe fos realização das obras. E Manet presta uma homenagem ao amigo mais jovem, ao cri 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 19/54 A pincelada nunca foi tão livre e rápida: o tratamento da camisa, da calça, por exem maneira muito mais desenvolta do que nos quadros precedentes. É verdade que o t aparece, mas as águas, elas, são mostradas de modo relativamente restrito. O que c seu casco em forma de concha, sua estrutura superior, que define uma composição também, nos planos intermediários e últimos, as caídas oblíquas dos telhados, as ve das chaminés de fábricas ao longe. Isto é, contam os elementos de uma composição firmemente: muito mais, é claro, do que para os quadros do próprio Monet. E se ob veremos que, embora diminuídos, Manet não deixa de empregar os tons de negro q dos azuis, amarelos e verdes predominantes. Argenteuil é o título do segundo quadro. [13] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 20/54 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 21/54 Figura 10 – Édouard Manet, Argenteuil. Novamente, a complexidade das estruturas é muito mais importante do que o tema águas. O fundo azul, aliás, é pintado de um modo sistemático: não existe, portanto as variações possíveis do espelho aquático. Em compensação, o homem e a mulher próximos de nós, sentados sobre um rebordo paralelo à linha do horizonte, diante d penetramno interior da tela, de verticais que assinalam o equilíbrio do todo, como balança, banhados por uma luminosidade feliz, possuem a eternidade dos monume O PINTOR DA MODERNIDADE Princípio de síntese a partir de imagens do passado; o negro como cor constitutiva simplificação dos volumes para que se afirmem numa composição ao mesmo tempo inabalável: eis alguns elementos mais característicos dos aspectos visuais da arte de distinguem tanto de tudo que o precedera, quanto do Impressionismo e de outros m sucederam. Como escreveu FocilIon, “Manet não é o lugar geométrico das influênci Manet”. É possível, algumas vezes, encontrar-se, em certas histórias da arte, Ma espécie de elo entre um passado e um futuro, entre Courbet e os impressionistas, po realidade, sua situação é muito menos simples. E ele é, sobretudo, muito mais singu Não sendo pura experiência visual, a pintura de Manet coloca a questão de seu sen referências. O mundo do pintor, evidentemente, não é mais o da cultura clássica: d Olimpo de Offenbach a degringolada fora fatal. Manet não pertence também à cultura romântica, embora os espanholismos freque de sua carreira o aproximasse do amor pelo exótico que aquele imaginário cultivav Nem clássico, nem romântico — nem moderno, no sentido das experiências formai posteriores —, Manet é o pintor da modernidade. Como Zola e Baudelaire, Manet t modernidade. Mas é preciso evitar equívocos. Pois é possível perguntar se Manet teria sido o equiv romancista e do poeta que, como é sabido, mantiveram com o pintor relações estre Manet esse pintor do heroísmo da vida moderna, que Baudelaire desejava? Seria M visual do mundo contemporâneo, réplica pictural do naturalismo, como Zola espera [14] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 22/54 A resposta teria que ser um ambíguo sim e não. Porque ele não é nem o Zola nem B mas indiscutivelmente se interessa, como eles, pelo mundo que envolve — o que fe da vida moderna no século XIX. Toma seus assuntos apenas no mundo que lhe é contemporâneo, retrata seres que p modernidade urbana do século XIX, não se refugia na paisagem ou natureza morta arcaico do campo — “ninguém”, disse Zola, “poderia sustentar que, depois das obra Manet e de Courbet, o tempo presente não é digno do pincel”, e chama o pintor da Mas as afinidades com o Naturalismo terminam aqui: não está interessado em prod todas as facetas da vida moderna; ignora o retrato do mundo dos sofredores, dos p por exemplo, que uma pintura naturalista, muito abundante no final do século pass Adler, de voh Menzel, de Sorolla, de Morbelli, de Geoffroy, entre muitos outros), ilu de réplica visual dos Rougon-Macquart . As afinidades entre Manet e Baudelaire são mais profundas, embora não se trate de equivalências. Manet não possui nenhuma das perversões feitas de romantismo neg exacerbado dos vícios que habitam as Flores do mal. Sua obra não incorpora a “mén vices”, e em sua pintura não se inclui, de modo algum, a eloquência de “ces maledi ces plaintes, ces extases, ces cris, ces pleurs […]”, caracterizadores da arte amada p segundo o poema Les phares [Os faróis]. A estética do horror que se compraz na rep nas Flores do mal, cujo mais terrível exemplo é certamente Une charogne [Uma carn tanto os decadentistas, também não interessa a Manet. Os cadáveres sedutores, as p as belezas medúsicas, o simbolismo escuro e poderoso de Les sept vieillards [Os sete [O cisne], estão ausentes da obra do pintor. O Balcão de Baudelaire, feito de perfum infinitos, não é, de modo algum, o Balcão de Manet. Não existe, no autor da Lola de Valência, essa dilaceração violenta e auto-inflingida febrilidade modernas, que condena o ser sensível a existir num mundo que é o dele incapaz de se inserir inteiramente — como testemunham os versos de L’Héautontim Ne suis-je pas un faux accord Dans la divine symphonic, Grâce à la vorace Ironie Qui me secoue et qui me mord? […] Je suis la plaie et le couteau! 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 23/54 Je suis le soufflet et la joue! Je suis les membres et la roue, Et la victime et le bourreau!* (*) Não sou um acorde desafinado / Na divina sinfonia, / Graças à voraz Ironia / Q me morde? [… ] Eu sou a ferida e a faca! / Eu sou a bofetada e a face! / Eu sou os vítima e o carrasco! A esta situação de desespero, Manet opõe uma obra de imperturbável tranquilidade paisagem do mundo contemporâneo tal como é vista por Baudelaire através de um romantismo. E não é precisamente em Manet que Baudelaire encontra o seu Pintor da vida mode título do longo ensaio publicado em dezembro desse ano crucial de 1863, mas — c Constantin Guys. Hábil ilustrador e aquarelista, Guys não possuía os projetos ambiciosos de telas vas definitivas. Sua obra realizou-se sobre o papel e seus raros óleos possuem as caract O traço era rápido como o movimento das multidões e lhe permitia apreender a me transfigurando o cotidiano, extraindo dele uma atmosfera mágica — que Baudelair acentuar em seus comentários. Guys era o artista do transitório, da mobilidade efêm cidades. Foram certamente essas características que exerceram uma sedução fulmin A obra de Guys intitulada Na rua nos dá uma excelente ideia da arte desse “repórte chamou Focillon. É a multidão: sobressaem, no primeiro plano, personagens femini enormes. Essas mulheres não têm rosto e, portanto, não possuem identidade indivi caracterizadas pelas roupas que vestem. Muito perceptível é a agilidade da pincelad devir incessante dos seres urbanos. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 24/54 Figura 11 – Constantin Guys, Na rua. Mas imediatamente se percebe também os limites que Guys não ultrapassa: a crôni cotidiano exclui as obras ambiciosas, construídas, pensadas, destinadas aos museus arte ganhou uma dimensão inesperada com as análises de O pintor da vida moderna perceber hoje sua produção sem a palavra de Baudelaire que a envolve. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 25/54 Manet não possui o brio da execução nem a rapidez do traço. Ambicionava uma ob seu lugar reservado ao lado das mais ilustres. Como já assinalei, estava também dis viciosas, tão características das Flores do mal. Mas se considerarmos o que poderia s estética da criação artística em Baudelaire, descobriremos que, de algum modo, ou pode ser articulada com a arte de Manet. A LAMA E O OURO Há uma dualidade em Baudelaire. De um lado, a recusa violenta do mundo modern corruptor do espírito — de lá vem seu horror pela fotografia, vista por ele apenas c mecânico de reproduzir a imagem do mundo. Mas por outro lado, existe a ideia de está ancorado no presente e não pode escapar dele. O artista possui, no entanto, o partir desse dado primeiro, uma espécie de sobre-realidade. Para empregar os term realidade espiritualizada, uma contemporaneidade heroica. Essa visão sobre a gênese da criação artística se encontra admiravelmente evocada incompleto, o esboço de um epílogo para a segunda edição das Flores do Mal. Eis aq desse Epílogo, relativamente mal conhecido: Tranquille comme un sage et doux comme un maudit, j’ai dit: Je t’aime, ô ma très belle, ô ma charmante… Que de fois… Tes débauches sans soif et tes amours sans âme, Ton goút de l’infini, Qui partout, dans le mal lui-même se proclaine, Tes bombes, tes poignards, tes victoires, tes fêtes, Tes faubourgs mélancoliques, Tes hôtels garnis, Tes jardins pleins de soupirs et d’intrigues, Tes temples vomissant la prière en musique, 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 26/54 Tes désespoirs d’enfant, tes jeux de vieille Tes découragements; Et tes feux d’artifice, éruptions de joie, Qui font rire le ciel, muet et ténébreux. Ton vice vénérable étalédans la soie, Et ta vertu risible, au regard malheureux, Douce, s’extasiant au luxe qu’il déploie… Tes principes sauvés et tes lois conspuées, Tes monuments hautains ou s’accrochent les brumes. Tes dômes de métal qu’enflamme le soleil, Tes reines de théâtre aux voix enchanteresses, Tes tocsins, tes canons, orchestre assourdissant, Tes magiques pavés dressés en forteresses, Tes petits orateurs, aux enflures baroques, Prêchant l’amour, et puis tes égouts pleins de sang, S’engoufrant dans l’Enfer comme des Orénoques, Tes anges, tes bouffons neufs aux vieilles défroques Anges revêtus d’or, de pourpre et d’hyacinthe, O vous, soyez témoins que j’ai fait mon devoir Comme un parfait chimiste et comme une âme sainte. Car j’ai de chaque chose extrait la quintessence, Tu m’as donné ta boue et j’en ai fait de l’or.” 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 27/54 (*) Tranquilo como um sábio e suave como um maldito,… / eu disse: / Eu te amo, oh! minha encantadora… / Quantas vezes… / Tuas devassidões sem sede e teus am gosto do infinito / Que em todos os lugares, no próprio mal, se proclama, / Tuas bo tuas vitórias, tuas festas, / Teus arrabaldes melancólicos, / Tuas casas de cômodos, de suspiros e de intrigas, / Teus templos vomitando a prece musicada, / Teus deses brinquedos de velha louca, / Teus desânimos; / E teus fogos de artifícios, erupções fazem o céu rir, mudo e tenebroso, / Teu vício venerável exposto sobre a seda, / E olhar infeliz, / Doce, se extasiando diante do luxo por ele desdobrado… / Teus prin leis conspurcadas, / Teus monumentos altivos onde as brumas se agarram, / Tuas c sol incendeia, / Tuas rainhas de teatro com vozes sedutoras, / Teus sinos que tocam canhões, orquestra ensurdecedora, / Teus calçamentos mágicos que se erguem qua oradorezinhos, com empolações barrocas, / Pregando o amor, e depois, teus esgoto Se engolfando no Inferno como Orenocos, / Teus anjos, teus bufões novos com velh vestidos de ouro, de púrpura e de jacinto, / Oh! vós, sede testemunha de que cump um químico perfeito e como uma alma santa. / Pois de cada coisa extraí a quintessê tua lama e eu a transformei em ouro. Este poema concentra, de modo notável, a relação que Baudelaire mantinha com a particular, com a modernidade urbana. As invocações reiteradas dos versos fazem s interpretada de modo precioso pelo poeta, e a enumeração que precede o enunciad já é a transfiguração alquímica que esse enunciado contém. E não podia ser de outr própria poesia que se diz processo poético. Ela nos diz transformar a lama em ouro mostrar a lama transformada, isto é, o ouro. Assim, a criação poética é aqui também da criação poética. Nesta volta sobre si, Baudelaire se distancia do romantismo, do modo, oriundo. Porque não propõe uma fuga do mundo presente, daquilo que pode vagamente de real (fuga para tempos recuados ou países exóticos — se a “Invitatio um nirvana perfeito, desejável mas impossível, o “Voyage à Cythere” nos traz ao ho nosso próprio corpo e de nossos prazeres), mas uma transformação desse real pela criação artística. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 28/54 De fato, há aqui a ideia de que o mundo é transfigurado pela presença do criador n frase extraída do texto “Notes sur l’art philosophique” de 1866: “O que é a arte pur moderna? É criar uma sugestiva magia contendo ao mesmo tempo o objeto e o suje ao artista e o próprio artista”. Sartre, no seu estudo admirável sobre Baudelaire, poderia desenvolver um discurso sobre a pouca “realidade” do mundo exterior: “Pr os objetos nunca valem por si próprios e só têm a missão de dar-lhe a oportunidade enquanto os vê. Há uma distância original de Baudelaire em relação ao mundo que ele e os objetos se insere sempre uma translucidez um pouco embaçada, um pouco como uma lufada de vento quente no verão”. E ainda: “Não há nele consciência ime trespassada por um olhar acerado. Para nós, basta ver a árvore ou a casa; completa contemplá-las, esquecemo-nos de nós próprios. Baudelaire é o homem que não esqu olha ver, olha para se ver olhar; é sua consciência da árvore, da casa que contempla aparecem através dela, mais pálidas, menores, menos tocantes, como se ele as perc luneta”. Distância e aproximação, mundo banal e mundo sublimado pela criação poética. De para Baudelaire, do jogo de olhares e do jogo de espelhos — eles significam consciê da consciência de si no mundo: lucidez inspirada que cria, ao mesmo tempo, a iden imediatas. Baudelaire não impõe seu mundo ao mundo. Para ele, sem a lama, o our lama é, ela própria, o produto do homem no mundo. Sartre nota que isto é a causa que se. encontra a questão do artificio em Baudelaire, do papel essencial que ele ad pensamento, porque o artifício é a marca do homem no mundo, que lhe permite o r nas aparências. De lá vem a importância da maquiagem, do dândi — enquanto ser criação perpétua do humano. Para o criador é necessária, no entanto, a capacidade de apreensão da modernidad capacidade é eminentemente sensorial: ela se faz pelos olhos, pela língua, pelos ou mãos — mas tudo aquilo que recebem os sentidos está filtrado pelos estados segun isso surge a necessidade dos paraísos artificiais: as drogas, o enfraquecimento físico música de Wagner, própria a produzir a mais prodigiosa embriaguês. Magia poética acaba se situando além dos instrumentos sensíveis, de onde entretanto ela se origin fascinação da modernidade se encontra na lama — a “normalidade” da lama só se e lama. Isto é, se Baudelaire afirma a fascinação contida na modernidade, ele afirma de uma consciência superior mergulhada na banalidade, dessa relação nascendo a d mundo. Duas vertentes complementares: de um lado, a modernidade banal que eng outro, a modernidade que, por transfiguração nela operada pela arte, é fonte de fas que se encontra na imagem do albatroz: o poeta tem asas de gigante que o impedem [15] [16] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 29/54 Manet não tem nada dos brilhos metafóricos que iluminam a obra de Baudelaire. T como já foi observado — o amor pelo vício e pelas perversões, nem o fascínio pelo a modernidade é vista como um conjunto (não há, por exemplo, a visão da cidade c como uma relação tecida entre objetos, situações, atitudes, pois Manet se concentra vistos, aliás, de bem perto. Não investe as coisas dessa “translucidez um pouco ador referia Sartre. Sua relação não é de acréscimo (como o heroísmo de Baudelaire), m embora seja justamente desse modo que a banalidade se transfigura pelo enigma qu Assim, o poeta e o pintor partem de um olhar sobre o que está à volta deles para no apreendem carregado de uma interrogação sobre seus fundamentos e sobre a relaç que se pode estabelecer com ele. Com suas obras, Manet e Baudelaire fazem o mun construir através de uma linguagem que se encontra além dele próprio. TELAS BAUDELAIRIANAS Algumas telas de Manet são francamente baudelairianas. Telas que se embebem da das belezas circunstanciais, da alta espiritualidade da toilette, que Baudelaire encon Guys. Elas são, no entanto, amplamente ambiciosas, rigorosamente compostas, ond termos da própria análise baudelairiana, a parte de eterno e invariável do belo é tã época, a moda, a moral, a paixão. Um dos mais estupendos exemplos desse tipo de de 1875, pertencente ao acervo do MASP. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 30/54 Figura 12. Édouard Manet, A amazona. Baudelairiana é também A música nas Tulherias, de 1860-62, (Fig. 6) pelo retrato d seu lazer, muito diferente dos grupos humanos exaltados, populares, lutando politi de Delacroix e Daumier haviam retratado. Há uma certa rapidez de execução nesta da pincelada ágil, celebrada por Baudelaire. O próprio pintor é, num certo sentido, multidões”, pois ele próprio se representano canto esquerdo, visível no primeiro pl discretamente integrado no grupo masculino. Há, no entanto, alguma coisa de particular. Vemos um conjunto de pessoas no jard dividindo o espaço com os troncos das árvores (troncos de sustentação rítmica da o construtora), ocupando a parte inferior da tela, bem limitada pelo verde das copas. Porém, o quadro é intitulado A música nas Tulherias . Dentre os personagens que al o retrato de Offenbach. Mas não é, evidentemente, a presença do compositor que ju 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 31/54 Manet nos está mostrando a multidão ouvindo música nas Tulherias. Os músicos, e figurados. A orquestra se encontra sobre um palanque, apenas o pintor se colocou — nos colocou — na posição dos músicos. Ele dá, portanto, ao observador, o lugar do olhares distraídos, lançados pelas pessoas finas num momento de ócio mundano, em sobre nós. Desse modo, se, por um lado, as imagens que figuram no quadro são constituídas d evidência incisiva ao nosso olhar, por outro, elas incorporam o espectador à obra. A toma como personagem e testemunha, é armadilha que define o lugar de nosso olh cumplicidade à qual não pode se furtar. Nesta pintura da modernidade, nós, espect escapatória, condenados a sermos “modernos”. Esta implicação do público na obra, Manet a deve, creio, à frequentação que tinha d do século XVII. A arte barroca é feita para o espectador, determina o lugar dele, tra obra que contempla. Isto permite jogos sutilíssimos, como em As meninas de Velásq Foucault evidenciou na conhecida análise que precede Les mots et les choses. Nesta t pintor que realiza um quadro do qual só percebemos o verso. Os modelos são o rei entretanto, nós não os vemos, pois nos encontramos no lugar deles. Diante de nós, nos observam e um espelho, ao fundo, assinala a ambiguidade: não é nosso rosto q mas os do régio casal. Mais adiante, veremos que não é apenas em A música nas Tu emprega um tal processo. UM NU MODERNO Afinidades baudelairianas aparecem também num outro quadro de Manet, a celebé no salão de 1865. O motivo deriva da Vênus de Urbino, de Ticiano, tela da qual Man uma cópia em 1856. Tema “clássico”, portanto, legitimado pela Renascença. Tema abandono, tema do erotismo feminino, de tradição ininterrompida, que o século XI inúmeras vezes retratado. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 32/54 Figura 13. Manet, Vênus de Urbino. Figura 14 – Ticiano, Vênus de Urbino. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 33/54 Consideremos, justamente, duas obras da mesma linhagem, ambas temporalmente primeira delas é O sono de Courbet, também conhecido como A preguiça e a volúpia ligeiramente posterior à Olímpia. Figura 15 – Gustave Courbet, O sono (ou A preguiça e a Volúpia) Courbet retoma o tema da beleza das carnes femininas numa perspectiva que é a d particular, das mulheres. Os seres femininos o fascinam, mas como que o deixam en por pertencerem a um outro mundo, incompreensível aos homens. Courbet nos mo desprovidas de ação ou de racionalidade. Inacessíveis, ele só pode apreendê-las nos inteligência não se revela. As mulheres de Courbet nunca pensam, nunca são ativas e são sempre opulentas, isto é, o organismo se dá num extraordinário esplendor de 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 34/54 As relações tecidas pelas mulheres entre si constituem um domínio ao qual o home somente pode percebê-las com o olhar do voyeur, como alguém de fora e não partic O sono demonstra esta situação na sua mais perfeita configuração, pois é evidente q prazer puramente feminino, porque homossexual, do qual, consequentemente, o ho ele é permitido apenas contemplar. Seres misteriosos, de misteriosa organicidade, a algo de irredutível à percepção masculina; na sua cumplicidade amorosa, A preguiç de vertigem pela atração que exercem, são também, pela sua natureza sempre secre compreensão — e, se se quiser, ao pleno domínio — dos homens. Courbet teve, de modo manifesto, um enorme prazer em trabalhar as carnações, os da pele clara, as matérias das magníficas cabeleiras. Quadro vasto, possui ampla co pela diagonal dos personagens, perfeitamente equilibrada pelas duas mesinhas, um com flores. Essa organização larga, essa redução dos acessórios rejeita o episódico, propor uma visão da natureza feminina — não se trata de duas mulheres, muito me contemporâneas, mas da Preguiça, da Volúpia, concebidas no forte erotismo das fo contatos de pele, do roçar dos cabelos, do sono profundo, das faculdades dormente genérico, insituado, fora do tempo. Os especialistas vêem, com muita razão, no quadro de Ingres A odalisca com a escra da Olímpia, um dos elos que vão da Vênus de Ticiano ao quadro de Manet. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 35/54 Figura 16 – Jean-Dominique Ingres, A odalisca com a escrava. Ingres procede de maneira evidentemente diversa de Courbet ao tratar as formas fe lugar, o erotismo não é franco, ele se esconde por trás de um pretexto. No quadro d encontra diante de sedução erótica indisfarçável. Ingres introduz um álibi cultural: odalisca, mulher projetada num Oriente de fantasia, impreciso e longínquo. O exot erotismo, a distância geográfica e antropológica permite a boa consciência. Além disso, Ingres traça os contornos ao seu modo extraordinariamente preciso e fl limites curvilíneos do corpo feminino, ele engendra uma poética linear que transcen celebrando uma sensualidade idealizada. Do pé que aparece sob o tecido, passando das ancas, pela suave modulação do seio, a linha se dilata ligeiramente na região d sobre si. Ali se desenha o perfil admirável e dali parte a queda da cabeleira soberba sinuosidades descendentes. A pele imaculada se escurece por um ligeiro sombreado arco onde se inscreve um corpo que perdeu angulosidades e ossatura, cujo poder de uma puríssima quintessência das formas ondulantes. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 36/54 Num esboço de Manet para a Olímpia existe também uma linha contínua e flexível arredondadas do corpo feminino através de um percurso amorosamente traçado pe Sinuosidade do dorso, da nádega direita, da perna generosa. Pureza e rigor nos tra compõem uma cabeça onde o rosto não se configurou para que as formas guardass estritas. Figura 17 – Édouard Manet, estudo para Olímpia. O quadro definitivo (Fig. 3), entretanto, nos mostra um personagem anguloso e ma duramente sobre um fundo escuro. As linhas se interrompem, se fraturam — foram sinuosidades curvilíneas. Foi-se também o modelado que se arredonda, traduzindo formas: as pernas de Olímpia são superfícies achatadas, seu rosto, como o do Pífaro assemelha estranhamente, é quase sem relevo. Isto é, aquilo que existiu desde semp feminino — a sedução erótica das formas curvas — desapareceu. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 37/54 O que resta, então? Este personagem que, ao contrário da Odalisca de Ingres e das pode ser perfeitamente datado através de seus adereços, penteado, a fita no pescoç elementos da modernidade. Um nu que se despojou desuas roupas, mas que conser para que não nos possamos enganar. Resta o olhar firme, sem pudor, que nos fita s sentimentos, sem langor, sem sedução. Resta o gesto da mão esquerda que se coloc escondê-lo. Na Vênus de Urbino a mão pousa, elegantemente, como quem não quer dissimular o púbis; aqui, a atitude é decidida, de modo algum se disfarça: a mão es profissionalmente, diríamos — claramente tapa aquilo que, num dado instante, não Olímpia é uma demi-mondaine, uma cortesã, prostituta de luxo dos tempos modern senhora de boaclientela. Ao contrário das mulheres de Courbet, cujo prazer expuls ela se dirige para algo que está fora da tela, isto é, para o observador que se transfo em cliente. Cliente que ela fixa calmamente, cliente de quem recebe as flores, clien alvoroço no gato, eriçado aos pés da Vênus moderna, estranhando o intruso. Este c pressuposto, e do qual tomamos o lugar, foi perfeitamente detectado por Cézanne e obra Uma moderna Olímpia, pintada dez anos depois do quadro de Manet: careca e não é muito díficil reconhecer o próprio Cézanne — ei-lo sentado num sofá, no prim as costas.[18] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 38/54 Figura 18 – Paul Cézanne, Uma moderna Olímpia. O erotismo de Olímpia se encontra nessa relação fundada no negócio, no dinheiro, contemporânea da prostituta, e não no nu, concebido como revelação de belas form imposta de maneira fria e precisa pelo pintor, entre sua imagem e seu público, não grande escândalo que a tela provocou. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 39/54 Enfim, nestes jogos de olhares e neste mundo baudelairiano, se impõe uma grande vida de Manet: Um bar nas Folies-Bergère, que data de 1881. Estamos numa casa de parte de uma multidão reunida para o divertimento ao mesmo tempo frívolo e mod apreendemos no espelho ao fundo e que, por conseguinte, se encontra atrás de nós Figura 19 – Édouard Manet, Um bar no Folies-Bergère. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 40/54 Neste quadro temos uma boa ilustração do emprego, por Manet, das técnicas que e próprio fazer — ali, quando e onde elas lhe interessam. No espelho um pouco emba rapidamente, sem muito. definir a imagem, deixando seres e objetos visualmente in na bruma artificial e interior —, nisto há alguma coisa herdada dos impressionistas constrói da maneira mais sólida possível a garçonete diante do balcão, arquiteturad Personagem anônimo, com o olhar um pouco entediado e um pouco cansado, sua f poderosa e se impõe inabalavelmente. O jogo que inclui o espectador na obra é aqui claríssimo. Descobrimos o reflexo da cabelo loiro no espelho, à direita. Diante dela, lá se encontra o cliente do bar, de ca é, nós próprios, que estamos ao mesmo tempo diante do quadro e diante do bar, pr frente do balcão horizontal pontuado pela sublime natureza morta, em frente da ar que o espelho reflete (mas que, em realidade, se encontra atrás de nós), diante des esfinge, enigmática, mas sem segredo. Em Um bar nas Folies-Bergère acham-se os efeitos de olhares, de espelhos, os interio modernidade, tão caros a Baudelaire. Encontra-se também, no entanto, essa indifer seres, misteriosa e vazia, própria a Manet ou, segundo ele, a uma atualidade moder sentimentalismo, sem memória, sem história. A MORTE Esse enigma sem chave se explicita no tratamento que o pintor confere à morte. Co poesia de Baudelaire a morte é o cadáver, a carniça, o verme, a podridão, que aind fascinam e são capazes de provocar o desejo. Manet, ao contrário, tratando da mor frieza surpreendente. Disto, o exemplo por excelência é A execução de Maximiliano, composição de Goya, As execuções do 3 de maio de 1808. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 41/54 Figura 20 – Édouard Manet, A execução de Maximiliano. Em ambos, o pelotão se encontra do lado direito dando-nos as costas, e os fuzilado voltados para nós. As duas telas possuem aliás proporções e dimensões parecidas. O 3 de maio nos apresenta os soldados alinhados em atitudes repetidas, numa suce chapéus, mochilas, uniformes que se recortam contra a luz. Emblematicamente, tem que se perfila e que esmaga. Em frente, as vítimas, os mártires, numa desordem sig são massacrados. [1 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 42/54 Figura 21 – Goya, Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808. A luz, que constrói a espacialidade do quadro, se concentra nos que morrem. No pr um cadáver banhado em poça de sangue; no meio do grupo, braços e pernas aberto Santo André, com calças amarelas, camisa branca, que vibram luminosamente dian destaca um personagem, numa última e exaltada eloquência. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 43/54 Na Execução de Maximiliano, a ordem dos soldados desapareceu, e em realidade nã bem de que modo eles se encontram dispostos: em todo caso, o rigor das botas e da repetição, desapareceu, deixando no lugar um conjunto de formas que se recortam arredondado. A atitude dos personagens é também esvaziada de qualquer efeito pa muito longe da gesticulação do quadro de Goya. Mesmo no que concerne luz e cor, some: a cena é iluminada de modo homogêneo e neutro, os tons são acinzentados e si, sem contrastes. Nada de grandes manchas vermelhas: a morte de Manet é limpa sangue em seu fuzilamento. O terror, aqui, mudou. Não é altamente proclamado como no quadro de Goya. Mas de Manet, à direita. Sequer presta atenção à cena: completamente indiferente, de u profissional, está ocupado com o gatilho de seu fuzil. Se Olímpia era uma profission agora um profissional da morte. O horror não se encontra no excepcional, na situaç surgem quando percebemos que ele foi submergido pelo costumeiro. Evidentemente, toda retórica desapareceu. Os próprios espectadores, figurados por sem grande comoção à cena (apenas um deles levanta o braço, como que assustado se confirma na sua banalização. Georges Bataille, no seu Manet, lembrou: “A priori, a morte, dada metodicamen soldados, é desfavorável à indiferença: é um assunto carregado de sentido, de onde violento, mas Manet parece tê-la pintada como insensível; o espectador o segue nes Este quadro lembra estranhamente a insensibilização do nervo de um dente: dele e de entorpecimento gradativo, como se um profissional habilidoso, como de seu cos conscienciosamente este preceito primeiro: ‘Pegue a eloquência e torça-lhe o pescoç pessoas posarem, umas tomaram a atitude dos que morrem, outras dos que matam insignificante, como se estivessem comprando ‘um maço de rabanetes’. Todo fator d verdaderia ou falsa, é eliminado. Restam as manchas de diferentes cores e a impres sentimento deveria ter nascido do assunto: é a estranha impressão de uma ausência Torcer o pescoço à eloquência é esvaziar o quadro de toda sua carga sentimental. É princípio de mistério, pois, em fim de contas, qual é a razão de se pintar um quadro “impressão de uma ausência”? Qualquer veleidade idealizadora, nobre ou cruenta, é impossível. O trágico, o patét determinariam as razões da obra, foram eliminados. É que neste mundo moderno, tudo aquilo que dá sentido aos atos desapareceu — não que os atos não tenham for apenas, ele se encontra fora do nosso alcançe, rodando numa galáxia inatingível e e [20] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 44/54 Tudo se passa como se a sociedade moderna tivesse posto de lado o sentido da rela embora essas relações não desapareçam. Como se fôssemos levados ao anonimato e ser. As efígies de Mallet, pelo modo como ele as trata, possuem uma grandeza grav completamente ausente a ideia de heroísmo — mesmo o da vida moderna, como qu Heroísmo é uma palavra que não pode existir na modernidade, ela é por demais ex impossível porque nunca possui motivos convincentes e se confunde com o ato gran OS SERES E SEUS MISTÉRIOS Nessa mesma perspectiva, os dramas, as paixões, as relações felizes ou conflituais s temas pífios. Pois o olhar se reduz não à visualidade pura, visualidade do esplendor à impossibilidade de compreensão, o enigma. O olhar da modernidade de Mallet fa de atribuir sentido sua interrogação primordial. É verdade que nesse enigma há um encanto:o fascínio do inalcançável. Mas esta é a única recompensa. Manet pintava de uma natureza morta, no misterioso espetáculo das presenças contíguas. Um de seus célebres quadros é o Balcão de 1868. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 45/54 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 46/54 Figura 22 – Édouard Manet, O balcão. Nele, alguns personagens estão frontalmente encerrados pelos limites da tela, pelas grade verde, pelo tom escuro do fundo que anula o espaço e os projeta para a frent aprisionados numa mesma cela, reunidos numa proximidade inevitável, encontram indiferentes uns aos outros. O pintor sequer se esforçou em uni-los pelo mesmo trat sentada possui olhos fundos, cavados pelas sombras, sobrancelhas afirmadas, que e uma ave de rapina; o rosto da que está de pé é desenhado por um oval puro e trata uma máscara oriental; atrás o personagem masculino nos mostra o branco da cami recortado pelo paletó escuro, gravata e colarinho formando um estranho suporte pa olhares são indiferentes, perdidos numa contemplação própria e isolada, sem revela ou movimento qualquer, o menor indício de expressão da alma. Estão ali reunidos objetos que compõem uma natureza morta. O ALMOÇO NA RELVA As fontes do Almoço na relva são, ao mesmo tempo, próximas e remotas. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 47/54 Figura 23 – Édouard Manet, O almoço na relva. Próximo é o tema: um piquenique no campo, como Zola e Maupassant narrarão, co no seu As senhoritas da beira do Sena, que aconteciam nos domingos, nos feriados, estudantes ou caixeiros — convidavam mocinhas — operárias, costureiras, as cham lorettes — para uma partie de campagne que, via de regra, se terminava por uma pa 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 48/54 Figura 24 – Gustave Courbet, As senhoritas da beira do Sena (verão). No quadro de Courbet, o tema da refeição no campo, que se completa pelo prazer e Como sempre, as mulheres que Courbet escolhe parecem impossibilitadas de ação, próximo ao sono. A robustez dos corpos acentua ainda a ideia de imobilidade e de moça do primeiro plano cedem, inertemente, à gravidade, a cabeça da outra se apo o braço esquerdo. Ainda uma vez, Courbet excluiu os homens; mostra apenas as mu preguiça orgânica. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 49/54 Se o tema é portanto contemporâneo, o quadro de Manet possui uma origem forma Ele provém de uma obra de Rafael — O julgamento de Páris — ou antes, de um det reúne algumas figuras alegóricas representando dois rios e uma ninfa. Manet conhe de Marco Antonio Raimondi, feita a partir de Rafael. Foi dela que o Almoço na relva Figura 25 – Marco Antonio Raimondi, O julgamento de Páris. Na gravura, um dos homens estende o braço diante de si, para se apoiar numa espé se volta para olhar o espectador. O Almoço retoma os personagens exatamente na m Rafael. Surge mais uma jovem no fundo, e o remo sobre o qual a mão se apoiava de atitude do braço continue. 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 50/54 Como se sabe, o escândalo foi causado pela presença de personagens femininos nus inteiramente vestidos. Manet podia invocar, defendendo essa mistura de nus e vest tradição da história da pintura que remonta a, pelo menos, o Concerto campestre de indisfarçável o fato de que, no seu quadro, os personagens masculinos estavam vest modernas, numa situação contemporânea. Mas chocou também o caráter enigmático das imagens. “Busco em vão o que pode logogrifo pouco decente”, exclamava L. Etienne. “Não adivinho como pode fazer um distinto uma composição tão absurda”, se interrogava Théophile Thoré. De fato, o quadro nos revela muito pouco. Podemos descobrir a gênese de diversos entanto, se isto nos esclarece sobre as origens, em nada nos informa sobre a signific Como compreender esses homens vestidos, essas mulheres nuas, pintados a partir d nenhum disfarce; este gesto na direção de pessoas que voltam o olhar para nós? Co erótico onde erotismo não existe, nem por uma carícia, nem por um abandono, por desejo ou de volúpia? A própria técnica empregada, como já sentiam os próprios co desirmana objetos e seres: assim se exprimia Paul Mantz em 1884: “Manet suprime amizades que aproximam as coisas sem limitar suas individualidades: no Almoço na rude doutrina do contato brusco e cortante; não crê na reconciliação das cores na a Manet não reconcilia nada, não explica nada, não instaura relações significantes: n se situam do outro lado do sentido. Ninguém melhor do que Bataille exprimiu o mi resoluta dureza com a qual Manet destruiu que escandalizou; é também essa rigide arte busca o supremo valor (ou o charme supremo), substituído à majestade dos sen convencionais, que fazia outrora a grandeza das figuras soberanas. É a humanidade dos liames que a amarram a múltiplas convenções: essas convenções que enunciam quanto a prosa, tanto a tagarelice quanto o sermão. O que domina se olhamos a Ol de uma supressão, é a precisão de um encanto no estado puro, a da existência que, silenciosamente, cortou a ligação que a unia às mentiras que a eloquência havia cri […] A intenção de um escorregar onde se perde o sentido imediato não é a negligência coisa: é como no sacrifício, que altera, que destrói a vítima, que a mata, sem neglige assunto das telas de Manet é menos destruído do que ultrapassado, é menos anulad pintura nua do que transfigurado na nudez dessa pintura. Manet inscreveu um mun na singularidade dos assuntos. Manet está na origem do Impressionismo? Possível. profundidade estranha ao Impressionismo. Ninguém carregou mais o assunto: se nã que, sendo apenas o além do sentido, é mais do que ele”. [21] [22] [23] 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 51/54 Notas 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 52/54 1. Gaetan Picon, 1863: naissance de la peinture Moderne, Genebra, Skira, 1974. ↑ 2. Os “salões” eram exposições periódicas, anuais ou bienais, de obras de artistas v Paris desde o século XVII, sob os auspícios da Académie Royale de Peinture et S repercussão cultural dos salões atinge seu apogeu no século XIX. Os critérios de radicalizam seu conservadorismo na segunda metade do século. Em 1863, de 5 apresentadas, mais de 3 mil foram recusadas. Nessa maioria se encontravam al representativos da modernidade, entre eles Courbet, Jongkind, Pissarro, Whistl imperador Napoleão III decide pela abertura do “Salon des Refusés” [Salão dos a que o público pudesse julgar de per si. É no Salão dos Recusados que Manet e l’herbe [O almoço na relva]. ↑ 3. André Malraux, Le musée imaginaire, Paris, Gallimard, 1965, (col. Idées/ Arts) 4. Henri Focillon, La peinture aux XIXe. et XXe. siécles, vol. II, Paris, Renouard et ↑ 5. Idem, ibidem, p. 172. ↑ 6. Paul Valéry, Pieces sur l’art, Paris, Gallirnard, 1962, p. 172. Eis a análise do qua integralidade:“Je ne mets rien, dans l’oeuvre de Manet, au-dessus d’un certain p Morisot, daté de 1872.Sur le fond neutre et clair d’un rideau gris, cette figure e petite que nature.Avant toute chose, le Noir, le noir absolu, le noir d’un chapea de ce petit chapeau mêlées de meches de cheveux châtains, à reflets roses, le no a Manet, m’a saisi. Il s’y rattache un enrubannement large et noir, qui déborde l’oreille gauche, ent cou; et le noir mantelet qui couvre les épaules, laisse paraître un peu de claire c d’un col de linge blanc. Ces places éclatantes de noir intense encadrent et proposent un visage aux trop d’expression distraite et comme lointaine. La peintureen est fluide, et venue, fa souplesse de la brosse; et les ombres de ce visage sont si transparentes, les lum songe à la substance tendre et précieuse de cette tête de jeune femme par Verm de La Haye. Mais ici, l’exécution semble plus prompte, plus libre, plus immédiate. Le moder avant la mort de l’impression”. ↑ 7. In Charles Baudelaire, Œuvres complètes, Paris, Robert Laffon, 1980, p. 115. ↑ 8. Charles Baudelaire, op. cit., p. 688. Sobre a questão da roupa, ver também Gild espírito das roupas — a moda no século dezenove, São Paulo, Companhia das L particularmente p. 69 “A moda do preto só começará em 1840 mais ou menos, Lytton e aos escritores românticos. Ela vai alastrar-se mesmo pela gravata, e o h luto até o advento do esporte, que de novo introduz as cores claras”. Cf. també de Walter Benjamin, associando a cor escura das roupas masculinas no século p 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 53/54 Estética História Linguagem Percepção Outros itens da coleção O olhar VISÕES DO INFERNO OU O RETORNO DA AURA por Na passagem do Inferno ao Purgatório, e antes de alcançar a bem-aventurança do Paraíso, Dante vê Lúcifer “de... A ATIVIDADE DO ESPECTADOR por A divergência de olhares é o tema de Roma de Fellini (1971), filme que mistura imagens contraditórias e satiriza as... A EMANCIPAÇÃO DA COR por No seu Trattado de Pittura (1390), Cennini aponta que o fundamento da arte é o desenho e o colorir. Alguns anos mais... OS AMANTES CONTRA O PODER por O primeiro olhar recíproco e fulminante de dois apaixonados: encontro que parece a garantia de um mundo limpo, belo,... OS OLHOS DO PODER por Flavio Aguiar Luiz Renato Martins Leon Kossovitch Renato Janine Ribeiro Katia Muricy suicida que seria inerente ao homem diante da modernidade: dessa perspectiva luto de si mesmo. Cerceado em seu “impulso produtivo natural” pela “resistênc homem é “atingido pela paralisia, e se refugia na morte”. E o suicídio surgiria, p o ato heroico permitido às “multidões doentias”. E o autor conclui: “No que con oferecia sua paleta”. Walter Benjamin, Charles Baudelaire — un poète lyrique à capitalisme, trad. de Jean Lacoste, Paris, Payot, 1974, pp. 110 e ss. ↑ 9. Trata-se de um prólogo escrito para a peça Henriette Maréchal, dos irmãos Gon o desaparecimento das fantasias brilhantes, próprias aos bailes românticos:Bien pendre au dou dans l’armoireCes costumes brillants de velours ou de moireLe c pour déguisement L’habit qui sert au bal comme à l’enterrement” Citado no número 138 do catálogo Manet, exposição do Grand Palais, Paris, Ed Nacionais, 1983,352. ↑ 10. Henri Focillon, op. cit., p. 156. A citação faz referência a Constantin Guys. ↑ 11. E. Texier, Tableaux de Paris, 1852, p. 47, apud catálogo Manet, op. cit., p.352. 12. Jean Béraud, pintor que traçou a crônica dos costumes parisienses do final do s mais explícita desta relação, desta vez pondo em cena os burgueses ricos — nat negro — que fazem suas “escolhas” entre as bailarinas com seus saiotes claros, teatro. ↑ 13. Manet, por ser mais velho que seus amigos impressionistas, e também mais céle próprios contemporâneos como o chefe do movimento, que era conhecido com https://artepensamento.com.br/acervo/?_sft_category=estetica https://artepensamento.com.br/acervo/?_sft_category=historia https://artepensamento.com.br/acervo/?_sft_category=linguagem https://artepensamento.com.br/acervo/?_sft_category=percepcao https://artepensamento.com.br/colecao/o-olhar/ https://artepensamento.com.br/item/visoes-do-inferno-ou-o-retorno-da-aura/ https://artepensamento.com.br/item/a-atividade-do-espectador/ https://artepensamento.com.br/item/a-emancipacao-da-cor/ https://artepensamento.com.br/item/os-amantes-contra-o-poder/ https://artepensamento.com.br/item/os-olhos-do-poder/ https://artepensamento.com.br/autor/flavio-aguiar/ https://artepensamento.com.br/autor/luiz-renato-martins/ https://artepensamento.com.br/autor/leon-kossovitch/ https://artepensamento.com.br/autor/renato-janine-ribeiro/ https://artepensamento.com.br/autor/katia-muricy/ 18/09/2020 Manet: o enigma do olhar - Artepensamento https://artepensamento.com.br/item/manet-o-enigma-do-olhar/ 54/54 A cultura francesa tem um fascínio pela visualidade, tanto que inventou o termo voyeur. 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