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TEOLOGIA SISTEMÁTICA [Clique em ÍNDICE] VOLUME III CHARLES HODGE, D.D. Tradutor e digitador: Carlos Biagini Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 2 ÍNDICE PARTE III – SOTERIOLOGIA (continuação) CAPÍTULO XV REGENERAÇÃO §1. Uso do termo. §2. Natureza da Regeneração Não é uma mudança na substância da alma A regeneração não consiste num ato da alma A postura do doutor Emmons A doutrina do professor Finney A postura do Dr. Taylor Observações A regeneração não é uma mudança em nenhuma faculdade A regeneração não é meramente iluminação Não é uma mudança exclusiva dos mais elevados poderes da alma. Posturas especulativas modernas O corpo e a alma são um Deus e o homem são um Soteriologia destes filósofos Doutrina de Ebrard Doutrina de Delitzsch Doutrina da Igreja latina Doutrina da Igreja Anglicana §3. A doutrina evangélica Exposição da doutrina A regeneração é um ato de Deus Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 3 A regeneração é ato do poder de Deus A regeneração não é um ato no sentido subjetivo do termo Não é uma mudança de substância É uma nova vida É um novo nascimento Um novo coração Toda a alma é objeto desta mudança §4. Objeções à doutrina evangélica A negação do sobrenaturalismo A confiança em falsas teorias psicológicas Objeções baseadas na perfeição divina CAPÍTULO XVI A FÉ §1. Observações preliminares §2. A natureza psicológica da fé. A ideia primária da fé é confiança O sentido mais restringido da palavra A fé não deve ser considerada simplesmente como uma graça cristã Definições da fé baseadas em sua natureza subjetiva A fé é distinguida da opinião e do conhecimento Objeções a esta definição A fé não é uma convicção voluntária Observações a esta definição de fé Definições de fé baseada nos objetos da fé Objeções a esta definição Definições baseadas sobre a classe de evidência em que repousa a fé Observações a esta definição A fé é convicção baseada no testemunho Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 4 Este ponto de vista é quase universalmente mantido O sentido estrito da palavra “fé” Prova com base no uso geral do termo Prova da consciência Prova da Escritura §3. Diferentes classes de fé Fé morta, ou especulativa Fé temporal Fé salvadora O que significa o testemunho do Espírito Prova por meio de declarações expressas das Escrituras 1 Coríntios 2:14 Prova da maneira em que os apóstolos agiram Prova com base na prática na Igreja Prova com base na Analogia §4. Fé e conhecimento É necessária uma Revelação Sobrenatural? Devem as verdades da revelação ser demonstráveis pela razão? É possível que verdades reveladas não sejam filosoficamente reivindicadas? As tentativas para fazer isto são inúteis Pode o que é verdadeiro em Religião ser falso em Filosofia? Os Pais sobre esta questão Ensino Luterano neste ponto Sir William Hamilton A postura dos filósofos especulativos Podem os objetos da fé estar acima da razão, e entretanto, não contra ela? Os objetos da fé são consistentes com a Razão A fé no irracional é impossível O conhecimento, essencial para a fé O conhecimento, a medida da fé Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 5 Prova de que o conhecimento é essencial para a fé A doutrina Romanista a respeito desta questão §5. Fé e sentimentos Fé religiosa mais do que simples assentimento A doutrina protestante Prova da doutrina protestante §6. Fé e amor Os Romanistas fazem com que o amor seja essencial à fé §7. O objeto da fé salvadora Fé geral Fé especial O testemunho de Cristo É dito que somos salvos ao receber a Cristo O ensino dos Apóstolos Cristo nosso Resgate Vivemos em Cristo pela fé Cristo não é recebido só num Papel Especial Requer-se do pecador crer que Deus o ama? Prova desta doutrina Gálatas 2:20 §8. Os efeitos da fé. União com Cristo A justificação, efeito da fé A participação da vida de Cristo, efeito da fé A paz como fruto da fé Certeza A santificação é um fruto da fé A certeza da salvação O oitavo capítulo de Romanos Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 6 CAPÍTULO XVII JUSTIFICAÇÃO §1. Enunciado simbólico da doutrina. Presidente Edwards Pontos incluídos nas anteriores declarações da doutrina §2. A justificação é um ato forense. Prova da doutrina recém-anunciada Pelo uso da Escritura Justificação é o oposto de Condenação Argumento com base em formas equivalentes de expressão Argumento com base no enunciado da doutrina O argumento do Apóstolo na Epístola aos Romanos Argumento derivado da base da justificação A justificação não é mero perdão Argumento com base na imutabilidade da lei Argumento com base na natureza de nossa união com Cristo Argumentos com base nos efeitos adscritos à justificação A doutrina de Calvino §3. As obras não são a base da justificação. A doutrina Romanista A doutrina Remonstrante A doutrina Protestante §4. A justiça de Cristo é a base da justificação. Significado dos termos A justiça de Cristo é a justiça de Deus §5. A imputação de justiça. §6. Prova da doutrina. O argumento do Apóstolo O paralelo entre Adão e Cristo Outras passagens que ensinam a mesma doutrina Argumento com base nos ensinos gerais da Bíblia Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 7 §7. Consequências da imputação da justiça de Cristo §8. Relação da fé com a justificação. A doutrina Romanista A postura Remonstrante A doutrina Protestante §9. Objeções à doutrina Protestante da justificação Diz-se que conduz à libertinagem Inconsistente com a Graça do Evangelho Deus não pode declarar que o Injusto seja Justo A justiça de Cristo é devida a Ele mesmo Os crentes seguem culpados e suscetíveis de castigo Esta teoria refere-se unicamente à aparência externa §10. Afastamentos da doutrina Protestante Osiander Stancarus Piscator Doutrina Arminiana Comparação das diferentes doutrinas §11. Posturas modernas a respeito da justificação. Teorias racionalistas Teorias filosóficas Teólogos especulativos Ebrard de Erlangen Objeções a estas teorias Estas teorias são antibíblicas Estas teorias levam os homens a confiar em si mesmos CAPÍTULO XVIII SANTIFICAÇÃO §1. Sua natureza. É uma obra sobrenatural Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 8 Prova de seu caráter sobrenatural Todos os exercícios de santidade são atribuídos ao Espírito como seu autor Somos ensinados a orar por arrependimento, fé e outras graças Argumento com base na união do crente com Cristo Argumento com base em doutrinas relacionadas §2. Em que consiste a santificação. Despojando-se do Velho Homem, e revestindo-se do Novo Paulo detalha sua própria experiência em Romanos 7:7-25 O ensino de Romanos 7:7-25 Gálatas 5:16-26 Efésios 4:22-24 §3. O método da santificação. A alma é conduzida ao exercício da fé O efeito da união com Cristo A obra interna do Espírito Deus chama ao exercício as graças do Seu povo A igreja e os Sacramentos como meios da Graça O ofício régio de Cristo §4. Os frutos da santificação, ou, as boas obras. Sua natureza A doutrina Romanista a respeito das boas obras As obras de supererrogação Preceitos e conselhos O sentido em que os frutos do Espírito nos crentes são chamados bons §5. A necessidade das boas obras. Antinomianismo §6. A relação das boas obras com a recompensa. A doutrina Romanista Refutação a esta doutrina Romanista Doutrina dos antigos teólogos protestantes Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 9 §7. O perfeccionismo. A doutrina Protestante Argumento com base nas representações gerais da Escritura Passagens que descrevem oconflito entre a carne e o Espírito Argumento com base na Oração do Senhor Argumento com base na experiência dos cristãos §8. Teorias do perfeccionismo. A teoria Pelagiana A teoria Romanista A teoria Arminiana A Lei à qual os crentes estão sujeitos A teoria de Oberlin A relação entre as teorias de perfeição CAPÍTULO XIX A LEI §1. Observações preliminares. A personalidade de Deus está envolvida na ideia da Lei; e, portanto, toda moralidade está baseada na religião Princípios Protestantes limitando a obediência às leis humanas Liberdade cristã em assuntos indiferentes O uso escriturístico da palavra Lei Como a Lei é revelada Diferentes classes de leis Até onde se podem deixar de lado as leis contidas na Bíblia? Quando uma Lei Divina é substituída por outra. A perfeição da Lei O Decálogo Regras de Interpretação §2. A divisão do conteúdo do Decálogo. Argumentos em favor da disposição adotada pelos Reformados Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 10 §3. O prefácio aos Dez Mandamentos. §4. O primeiro mandamento. Este é o principal de todos os mandamentos §5. A invocação dos santos e anjos. Mariolatria §6. O segundo mandamento. A proibição do culto às imagens As razões que se anexam a este mandamento A doutrina e prática da igreja de Roma quanto às imagens A doutrina Tridentina Belarmino Relíquias Observações A doutrina Protestante a respeito desta questão §7. O terceiro mandamento Significado do mandamento Juramentos A legitimidade dos juramentos Quando os juramentos são lícitos A forma de um juramento Normas que regem a interpretação e obrigação de um juramento A doutrina Romanista Votos A legitimidade dos votos Votos monásticos §8. O quarto mandamento. Seu desígnio O sábado foi instituído desde o princípio, e é de obrigação perpétua Evidência direta da instituição do Sábado antes de Moisés Objeções Como o Sábado deve ser santificado? Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 11 As leis dominicais O estado da questão A prova de que esta é uma nação cristã e protestante Esta influência decisiva do cristianismo, é razoável e correta As demandas dos infiéis são injustas Conclusão §9. O quinto mandamento. Seu desígnio A relação filial A promessa Deveres paternos A obediência devida aos magistrados civis Obediência à Igreja §10. O sexto mandamento. Seu desígnio A pena capital O homicídio em autodefesa Guerra Suicídio Duelos §11. O sétimo mandamento. O celibato História O casamento, instituição divina O casamento como instituição civil A monogamia Conclusões Polígamos convertidos O divórcio O divórcio, sua natureza e efeitos Razões para o divórcio A doutrina da Igreja de Roma Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 12 O casamento é um sacramento A leis dos países Protestantes a respeito do divórcio Inglaterra França Alemanha Os Estados Unidos O dever da Igreja e de seus oficiais A prostituição, o mal social Casamentos proibidos A base ou razão de tais proibições A teoria de Agostinho Segue em vigor a lei levítica do casamento? Como se deve interpretar a lei levítica? Graus proibidos Observações finais §12. O oitavo mandamento. A comunidade de bens Comunismo e socialismo Sociedade internacional Violações do Oitavo Mandamento §13. O nono mandamento. A importância da verdade Detrações Falsidade Classes de falsidade Reserva mental Fraudes piedosas Falsificações Falsos milagres Relíquias §14. O décimo mandamento. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 13 CAPÍTULO XX OS MEIOS DA GRAÇA §1. A Palavra. O testemunho da História A que se deve atribuir o poder da Palavra? O papel da Palavra como meio da graça A doutrina Luterana Observações §2. Os sacramentos. Sua natureza. O uso da palavra sacramento O uso teológico e definição da palavra A doutrina Luterana A doutrina Romanista A doutrina Remonstrante §3. Número dos sacramentos. Confirmação Penitência Ordem ou ordenação Casamento Extrema-unção Razões para fixar o número dos Sacramentos em Sete §4. A Eficácia dos sacramentos A doutrina Zwingliana e Remonstrante A doutrina da igreja Reformada A doutrina Luterana A doutrina Romanista Em que sentido os sacramentos contêm a graça? A doutrina «Ex Opere Operato» O Administrador §5. A necessidade dos sacramentos. §6. A validade dos sacramentos. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 14 §7. O Batismo. O modo do batismo O uso da palavra nos clássicos Uso das palavras na Septuaginta e nos Apócrifos O uso do Novo Testamento O uso patrístico A universalidade do Evangelho Argumento com base no desígnio da ordenança §8. A fórmula do batismo §9. Os sujeitos do batismo Qualificações para o batismo de adultos Teoria da Igreja romana Teoria da Igreja puritana A comum teoria Protestante §10. O Batismo de crianças. 1ª Proposição: A Igreja visível é uma instituição divina. 2ª Proposição: A Igreja visível não se compõe exclusivamente dos regenerados. 3ª Proposição: A Comunidade de Israel era a Igreja. 4ª Proposição: A Igreja sob a Nova Dispensação é idêntica àquela sob a Antiga. 5ª Proposição: Os requisitos para a admissão na igreja antes do advento são os mesmos que os requeridos para admissão na igreja cristã. 6ª Proposição: As crianças eram membros da igreja sob a economia do Antigo Testamento. 7ª Proposição: não há nada no Novo Testamento que justifica a exclusão dos filhos dos crentes da membresia na igreja. 8ª Proposição: As crianças necessitam e podem receber os benefícios da redenção. §11. Os filhos de quem têm direito ao batismo? Diferença entre o uso judeu e cristão Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 15 Doutrina da Igreja de Roma sobre o batismo de crianças Teorias com que muitos protestantes mantêm a conveniência do batismo de crianças além daquelas de pais crentes A doutrina puritana sobre este tema Doutrina e usos das Igrejas Reformadas §12. A eficácia do batismo Doutrina das igrejas Reformadas Prova da doutrina reformada O batismo é uma condição de salvação O batismo como um dever O batismo como meio de graça Regeneração batismal Argumentos diretos contra a doutrina da regeneração batismal §13. A doutrina luterana a respeito do batismo. Sua necessidade Seus efeitos A que se refere esta eficácia do batismo? A condição em que a eficácia do batismo foi suspensa §14. Doutrina da Igreja de Roma. §15. A Ceia do Senhor. A Ceia do Senhor é uma ordenança divina de obrigação perpétua. Os elementos a empregar-se na Ceia do Senhor As ações sacramentais O partir do pão A distribuição e recepção dos elementos O desígnio da Ceia do Senhor Requisitos para a Ceia do Senhor §16. A doutrina da Igreja Reformada sobre a Ceia do Senhor. Postura Zwingliana A doutrina de Calvino Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 16 Confissões em que os Zwinglianos e os Calvinistas estão de acordo. O sentido em que Cristo está presente na Ceia do Senhor. Manducação O que se recebe na Ceia do Senhor A eficácia da Ceia do Senhor como um sacramento §17. Pontos de vista modernos a respeito da Ceia do Senhor. A aplicação destes princípios à Ceia do Senhor Observações §18. A doutrina Luterana. A declaração da Doutrina nos Livros Simbólicos Manducação Modo da presença O benefício recebido na Ceia do Senhor §19. A Doutrina da Igreja de Roma. A Transubstanciação Prova da Doutrina A negação do cálice aos leigos A Ceia do Senhor como sacrifício Observações §20. A Oração. O objeto da oração Os requisitos da oração aceitável Diferentes classes de oração Oração Pública A oração como meio da graça O poder da oraçãoTeologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 17 PARTE IV: ESCATOLOGIA CAPÍTULO I O ESTADO DA ALMA DEPOIS DA MORTE §1. A doutrina Protestante A doutrina de uma vida futura no Antigo Testamento O estado intermediário §2. O sono da alma. Refutação da doutrina do sonho da alma §3. Doutrina patrística do estado intermediário. §4. Doutrina da Igreja de Roma. O Limbus Patrum O Limbus Infantum O inferno O céu O purgatório Argumentos empregados em favor da doutrina Argumentos contra a doutrina História da doutrina CAPÍTULO II A RESSURREIÇÃO §1. A doutrina escriturística. Os corpos dos homens ressuscitarão A identidade de nosso corpo futuro com o presente Em que consiste esta identidade? A natureza do corpo da ressurreição §2. História da doutrina. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 18 CAPÍTULO III A SEGUNDA VINDA §1. Observações preliminares. §2. A doutrina comum da Igreja. §3. A vinda pessoal de Cristo. §4. A chamada dos Gentios. §5. A conversão dos judeus. Serão os judeus restaurados à sua própria terra? §6. O Anticristo. O Anticristo de Daniel O Anticristo do Apocalipse Doutrina Católica Romana do Anticristo CAPÍTULO IV OS EVENTOS CONCOMITANTES DA SEGUNDA VINDA §1. A ressurreição geral. O tempo desta Ressurreição Geral §2. O Juízo final. A doutrina da Igreja §3. O fim do mundo. Observações §4. O reino dos céus. A consumação §5. A teoria do advento premilenial. Aguardavam os Apóstolos a segunda vinda em seu tempo? §6. O castigo futuro A duração do castigo futuro Objeções A Bondade de Deus Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 19 PARTE III SOTERIOLOGIA (continuação) Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 20 CAPÍTULO XV REGENERAÇÃO § 1. Uso do termo. A mudança subjetiva operada na alma pela graça de Deus é designada de várias maneiras na Escritura. É chamada um novo nascimento, uma ressurreição, uma nova vida, uma nova criatura, uma renovação da mente, um morrer para o pecado e viver para a justiça, uma translação das trevas à luz, etc. Em linguagem teológica chama-se regeneração, renovação, conversão. Estes termos se empregam frequentemente de maneira intercambiável. Às vezes se empregam para denotar todo o processo de renovação espiritual ou restauração da imagem de Deus, e às vezes para denotar uma etapa determinada deste processo. Assim, Calvino dá a este termo seu sentido mais amplo: «Numa palavra, afirmo que o arrependimento é uma regeneração espiritual, cujo fim não é outro senão restaurar em nós e voltar para sua antiga perfeição à imagem de Deus, que pela transgressão de Adão tinha ficado empanada e quase destruída. ... Mas esta restauração não se verifica num momento, nem num dia, nem num ano; mas Deus vai incessantemente destruindo em Seus escolhidos a corrupção da carne.»1 Para os teólogos do século dezessete, a conversão e a regeneração eram termos sinônimos. Nos atos do Sínodo de Dort, encontramos expressões tais como “Status conversionis aut regenerationis,” e “effecta ad conversionem sive regenerationem prævia”. John Owen, em sua obra sobre o Espírito Santo, segue o mesmo uso. O quinto capítulo do terceiro livro dessa obra se intitula “A natureza da regeneração,” e um dos cabeçalhos debaixo dele é “A conversão não vem só pela persuasão moral.” “Se o Espírito Santo,” diz ele, “não age contrário aos homens na regeneração ou conversão,” então segue por esse diapasão. Turretino, 1 Institución, libro III, cap. III, 9. Edición de FELIRE, Rijswijk, 1968, vol. I pág. 454. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 21 como vimos, distingue entre o que ele chama “conversio habitualis” e “conversio actualis.” “Conversio habitualia seu passiva, fit per habituum supernaturalium infusionem a Spiritu Sancto. Actualis vero seu activa per bonorum istorum exercitium. . . . Per illam homo renovatur et convertitur a Deo. Per istam homo a Deo renovatus et convertus convertit se ad Deum, et actus agit. Illa melius regeneratio dicitur, quia se habet ad modum novæ nativitatis, qua homo reformatur ad imaginem Creatoris sui. Ista vero conversio, quia includit hominis ipsius operationem.”2 Isto é claro e preciso. Porquanto estas duas coisas são distintas, deveriam ser designadas com termos diferentes. As questões se o homem é ativo ou passivo na regeneração e se a regeneração é efetuada pela influência mediata ou imediata do Espírito deve ser respondida de uma maneira se a regeneração incluir a conversão, e de outra se é tomada em seu sentido restringido. Na Bíblia geralmente se preserva a distinção: μετάνοια (metanoia), arrependimento, mudança da mente, volta a Deus, isto é, conversão, é aquilo que o homem é chamado a fazer; ἀναγέννησις (anagénnësis), regeneração, é o ato de Deus. Deus regenera; a alma é regenerada. Na Igreja Romanista a justificação é fazer subjetivamente justo, isto é; livre de pecado e interiormente santo. O mesmo com a regeneração, e o mesmo com a santificação. Portanto, estes termos são, na teologia dessa igreja, constantemente intercambiados. Inclusive entre os Luteranos, na «Apologia da Confissão de Augsburgo», faz-se que a regeneração inclua a justificação. Quer dizer, faz-se para incluir todo o processo pelo qual se transfere ao pecador de um estado de pecado e condenação a um estado de salvação. Na “Fórmula de Concórdia,” diz-se: “Vocabulum regenerationis interdum in eo sensu accipitur, ut simul et remissionem peccatorum (quæ duntaxat propter Christam contingit) et subsequentem renovationem complectatur, quam Spiritus Sanctus in illis, qui per fidem justificati sunt, operatur, quandoque etiam solam remissionem peceatorum, et 2 Locus xv. quæs. iv. 13, edit. Edinburgh, 1847, vol. ii. p. 460. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 22 adoptionem in filios Dei significat. Et in hoc posteriore usu sæpe multumque id vocabulam in Apologia Confessionis ponitur. Verbi gratia, cum dicitur: Justificatio est regeneratio. . . . Quin etiam vivificationis vocabulum interdum ita accipitur, ut remissionem peccatorum notet. Cum enim homo per fidem (quam quidem solus Spiritus Sanctus operatur) justificatur, id ipsum revera est quædam regeneratio, quia ex filio iræ fit filius Dei, et hoc modo e morte in vitam transfertur. . . . Deinde etiam regeneratio sæpe pro sanctificatione et renovatione (quæ fidei justificationem sequitur) usurpatur. In qua significatione D. Lutherus hac voce, tum in libro de ecelesia et conciliis, tum alibi etiam, multum usus est.”3 Embora este uso impreciso dos termos fosse inevitavelmente acompanhado de grande confusão, a própria «Fórmula de Concórdia», e os teólogos Luteranos posteriores, foram mais precisos. Em especial estabeleceram uma clara distinção entre a justificação e tudo o que significasse uma mudança subjetiva no pecador. Na Igreja primitiva o termo regeneração expressava frequentemente não uma mudança moral interior, mas uma mudança externa de estado ou relação. Entre os judeus, quando um pagão vinha a ser prosélito à sua religião, dizia-se que tinha nascido de novo. A mudança de seu estado de fora para dentro da teocracia era chamado regeneração. Este uso passou em certa medida à Igreja Cristã. Quando um homem torna-se membro da Igreja, dizia-se que tinha nascido de novo; e o batismo, que era o rito de iniciação, era chamado regeneração. Este uso da palavra não desapareceu totalmente. Segue-se fazendo às vezes uma distinção entre regeneração e renovação espiritual. A primeira é externa, a segunda interna. Alguns dos defensores da regeneração batismal fazem esta distinção e interpretam a linguagem dasfórmulas da Igreja da Inglaterra em conformidade com ela. A regeneração que tem lugar no batismo, para eles, não é uma 3 III. 19, 20, 21; Hase, Libri Symbolici, 3d edit. p. 686. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 23 mudança espiritual no estado da alma, mas somente um nascimento na Igreja visível. § 2. Natureza da regeneração. Por consentimento quase universal, a palavra regeneração não é usada hoje em dia para designar toda a obra de santificação, nem as primeiras etapas daquela obra incluída na conversão, e muito menos a justificação ou nenhuma mera mudança de estado externo, mas é usada para mudança instantânea da morte espiritual à vida espiritual. Portanto, a regeneração é uma ressurreição espiritual: o começo de uma nova vida. Às vezes a palavra expressa o ato de Deus. Deus regenera. Às vezes designa o efeito subjetivo de Seu ato. O pecador é regenerado. Vem a ser nova criação. É nascido de novo. E isto é sua regeneração. Estas duas aplicações da palavra estão conectadas tão intimamente que não se produz confusão. A natureza da regeneração não recebe mais explicação na Bíblia que a que se dá de seu autor, Deus, no exercício da suprema grandeza de seu poder; seu sujeito, toda a alma; e seus efeitos, vida espiritual, e todos os seus conseguintes atos e estados em santidade. Sua natureza metafísica é deixada como um mistério. Não é a província da filosofia ou da teologia que tem que resolver esse mistério. É, entretanto, o dever do teólogo examinar as diversas teorias sobre a natureza desta mudança salvadora, e rejeitar todos os que sejam inconsistentes com a Palavra de Deus. Não é uma mudança na substância da alma A regeneração não consiste em nenhuma mudança na substância da alma. O único defensor da doutrina oposta entre teólogos protestantes foi Flacius Illyricus, chamado assim pelo lugar de seu nascimento. Foi um dos teólogos luteranos mais proeminentes no que se chama a segunda Reforma na Alemanha. Ele fez um grande serviço à causa da verdade em resistir à sinergia de Melâncton, e as concessões que esse eminente mas Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 24 cedente reformador estava disposto a fazer aos papistas. Ele contribuiu com algumas das obras mais importantes da época em que viveu à reivindicação da fé protestante. Seu “Catalogus Testiam Veritatis,” destinado a provar que a doutrina da Reforma teve suas testemunhas em todas as idades, e sua “Clavis Scripturae Sacræ;” e especialmente a grande obra histórica “The Magdeburg Centuries” (em treze volumes, fólio), da qual foi o iniciador e principal autor, dão fé de sua aprendizagem, talentos, e a indústria incansável. Seu fervente espírito e sem concessões o envolveu em muitas dificuldades e dores. Morreu esgotado pelo sofrimento e o trabalho, diz seu biógrafo, um desses homens de fé dos quais o mundo não era digno. Sempre extremo em suas opiniões, sustentou que o pecado original era uma corrupção da substância da alma, e a regeneração de uma mudança dessa substância quanto a restaurar sua pureza normal. Todos os seus amigos que se tinham aliado a ele em sua controvérsia com os sinergistas e os partidários do interino Leipzig, agora o abandonaram, e ele ficou sozinho. Na “Fórmula de Concórdia,” adotada para resolver todas as controvérsias da época, estes pontos de vista peculiares de Flacius foram condenados como um renascimento virtual da heresia maniqueísta. Insistia-se em que se a substância da alma é pecado, Deus, por quem cada alma é criada, deve ser o autor do pecado; e que Cristo, quem, ao assumir nossa natureza, converteu-se em consubstancial conosco, deve ser um participante do pecado. Nenhuma Igreja cristã assumiu a responsabilidade pela doutrina de Flacius, ou assumiu que a regeneração implica uma mudança da essência da alma. A regeneração não consiste num ato da alma A regeneração não consiste em qualquer ato ou atos da alma. A palavra aqui, é óbvio, deve ser entendida não como incluindo a conversão, e muito menos toda a obra de santificação, mas em seu sentido restringido para o começo da vida espiritual. A opinião oposta, Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 25 que faz a regeneração, inclusive em seu sentido mais estrito, um ato da alma, celebrou-se por classes muito diferentes dos teólogos. Está, é óbvio, envolvido na doutrina de Pelágio, que nega o caráter moral a tudo menos aos atos da vontade. Se “todo pecado é pecado,” e “todo amor é amor,” então cada mudança moral no homem deve ser uma mudança de uma forma de atividade voluntária a outra. Como depois os remonstrantes mantiveram o princípio em questão fizeram a regeneração consistir no próprio ato do pecador na conversão a Deus. A influência exercida sobre ele foi uma influência a que ele poderia ceder ou resistir. Se ele cedeu, foi uma decisão voluntária, e nessa decisão consistiu sua regeneração, ou o início de sua vida religiosa. A postura do doutor Emmons O Dr. Emmons, sustentando que todo pecado e a santidade consiste em atos, que age, quer seja pecaminoso ou santo, são imediatamente criados por Deus, faz a regeneração consistir em dar a Deus o começo de uma série de atos sagrados. Em seu discurso sobre a Regeneração, a primeira proposição que se compromete estabelecer é, “que o Espírito de Deus, na regeneração, não produz nada senão o amor.” Este se mantém em oposição aos que dizem que o Espírito produz uma nova natureza, o princípio, a disposição, ou sabor. “Os que estão no estado de natureza,” diz ele, “não estão em nenhuma necessidade de ter um novo poder, ou faculdade, ou princípio de ação produzido neles, com o fim de que cheguem a ser santos. Eles são tão capazes de amar como de odiar a Deus. . . . Isto é certo para todos os pecadores, que são agentes morais, e os próprios objetos do governo moral, antes como depois da regeneração. Sempre que, portanto, o divino Espírito os renova, regenera, ou santifica, Ele não tem ocasião de produzir qualquer coisa em suas mentes, além de amor.”4 “O amor que o Espírito de Deus produz na regeneração é o amor de benevolência, e não o amor de 4 Sermon 51, Works, edit. Boston, 1842, vol. v. p. 112. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 26 complacência.”5 “Embora não haja uma conexão natural ou necessária entre o primeiro exercício do amor e todos os exercícios futuros da graça entretanto, há uma conexão constituída, que faz exercícios futuros da graça como certos, como se tivessem passado de uma nova natureza, ou um princípio sagrado, como muitos supõem.”6 Sua primeira inferência da doutrina de seu sermão é: “Se o Espírito de Deus produz nada mais que amor na regeneração, então não há motivo para a distinção que se faz com frequência entre a regeneração, a conversão e a santificação. São, em natureza e tipo, precisamente os mesmos frutos do Espírito. Na regeneração, Ele produz santos exercícios, na conversão, Ele produz santos exercícios, e na santificação, Ele produz santos exercícios.”7 Em segundo lugar, “Se o Espírito de Deus na regeneração produz nada mais que amor, então os homens não são mais passivos na regeneração que na conversão ou na santificação. Aqueles que sustentam que o Espírito divino na regeneração produz algo antes do amor como fundamento da mesma, quer dizer, uma nova natureza, ou um novo princípio de santidade, sustentam que os homens são passivos na regeneração, mas ativos na conversão e na santificação. ... Mas se o que se disse neste discurso é verdade, não há uma nova natureza, ou princípio de ação, produzido na regeneração, mas só o amor, que é atividade em si.”8 A doutrina do professor Finney O Professor Finney, em suas “Conferências sobre Teologia Sistemática, ensina: (1.) Que a satisfação, a felicidade, a beatitude, é o único bem absoluto; a virtudeé só relativamente boa, quer dizer, boa quando tende a produzir felicidade. (2.) Que toda virtude descansa na intenção de promover a felicidade do ser, quer dizer, do ser universal. 5 Ibid. p. 114. 6 Sermon 51, Works, edit. Boston, 1842, vol. v. p. 116. 7 Ibid. p. 116. 8 Ibid. pp. 117, 118. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 27 Não há virtude na emoção, sentimento ou qualquer estado da sensibilidade, visto que estes são involuntários. Amar a Deus embora não seja a complacência em sua excelência, mas antes, “o querer-lhe bem.” (3.) Todo pecado é o egoísmo, ou a eleição de nossa própria felicidade em lugar do bem do ser universal. (4.) Todo agente moral é sempre “como algo pecaminoso ou santo bem como com seus conhecimentos possam ser.” (5.) “Como a lei moral é a lei da natureza, é absurdo supor que completa obediência a ela não deveria ser a condição inalterável da salvação.”9 (6.) A regeneração é uma mudança “instantânea” de todo pecado à santidade completa.”10 Trata-se de uma simples mudança de propósito. O sistema do professor Finney é um produto notável da lógica inflexível. É valiosa como uma advertência. Isso mostra até que extremos a mente humana pode transportar-se, quando abandonada à sua própria orientação. Começa com certos axiomas, ou, como ele os chama, verdades da razão, e destes chega a conclusões que de fato são deduções lógicas, mas que abalam o sentido moral, e não provam nada, senão que suas premissas são falsas. Seu princípio fundamental é que a capacidade limita a obrigação. O livre-arbítrio se define como “o poder de escolher, ou negar-se a escolher, em cumprimento da obrigação moral em todos os casos.”11 “A consciência da afirmação da capacidade para cumprir qualquer requerimento, é uma condição necessária da afirmação da obrigação de cumprir esse requerimento.”12 “Falar da incapacidade para obedecer a lei moral, é falar coisas sem sentido.”13 Entretanto, reconhece-se que a capacidade do homem se limita aos atos da vontade, portanto o caráter moral só pode afirmar-se de tais atos. 9 Lectures on Systematic Theology, by Charles G. Finney, edit. Oberlin, Boston, and New York, 1846, p. 364. 10 Ibid. p. 500. 11 Lectures on Systematic Theology, by Charles G. Finney, edit. Oberlin, Boston, and New York, 1846, p. 26. 12 Ibid. p. 33. 13 Ibid. p. 4. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 28 Os atos da vontade são eleições ou vontades. “Por eleição tem-se por objeto a seleção ou eleição de um fim. Por vontade tem-se por objeto os esforços executivos da vontade de assegurar o final previsto.”14 Somos responsáveis, portanto, só por nossas eleições na seleção de um fim último. “Em geral se aceita que a obrigação moral respeita estritamente só a intenção última ou a eleição de um fim por si mesmo.”15 “Tenho que a obrigação moral respeita a intenção última somente. Agora estou preparado para dizer, ainda mais, que esta é uma primeira verdade da razão.”16 “O correto pode afirmar-se só de boa vontade, e o mal só de egoísmo. . . . É adequada para ele [para o homem] a intenção do bem supremo do ser como uma fim. Se honestamente fizer isto, ele não pode, fazendo isto, errar em seu dever, porque ao fazer isto, ele realmente realiza tudo de seu dever.”17 “O caráter moral pertence exclusivamente à intenção última da mente, ou à eleição, diferente da vontade.”18 A finalidade de ser eleito é “o bem supremo do ser.” “O bem pode ser físico ou moral. O bem natural é sinônimo de valor. O bem moral é sinônimo de virtude.”19 Bem moral é só um bem relativo. Cumpre uma demanda de nosso ser, e portanto produz satisfação. Esta satisfação é o bem supremo do ser.”20 “Venho agora a indicar o ponto sobre o qual é o tema central, ou seja: Que alegria, felicidade, ou satisfação mental, é o único bem final.”21 “De que valor é a verdade, o direito, o justo, etc., além do prazer como a satisfação mental derivados dos mesmos às existências sensíveis.”22 14 Ibid. p. 44. 15 Ibid. p. 26. 16 Ibid. p. 36. 17 Ibid. p. 149. 18 Ibid. p. 157. 19 Ibid. p. 45. 20 Ibid. p. 48. 21 Ibid. p. 120. 22 Lectures on Systematic Theology, by Charles G. Finney, edit. Oberlin, Boston, and New York, 1846, p. 122. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 29 Segue-se destes princípios que os homens cumprem seu dever geral, e são perfeitos, se tiverem a intenção da felicidade do ser em geral. Não há moralidade em emoções, sentimentos, ou sentimentos. Estes são estados involuntários da sensibilidade, e são em si mesmos nem bons nem maus. “Se alguma ação externa ou estado de sensação existe, em oposição à intenção ou a eleição da mente, não pode por nenhuma possibilidade ter um caráter moral. O que está além do controle de um agente moral, ele não pode ser responsável”23 “O amor pode, e com frequência existe, como todos sabem, na forma de um mero sentimento ou emoção. . . . Esta emoção ou sentimento, como todos sabemos, é puramente um estado involuntário da mente. Devido ao fato de que é um fenômeno da sensibilidade, e é óbvio, um estado passivo da mente, que não tem em si mesmo caráter moral.”24 A gratidão, “como um mero sentimento ou fenômeno da sensibilidade. . . não tem caráter moral.”25 O mesmo é dito sobre a benevolência, a compaixão, a misericórdia, consciência, etc. A doutrina é: “Nenhum estado da sensibilidade. . . tem caráter moral em si mesmo.”26 O amor que tem a excelência moral, e que é o cumprimento da lei, não é um sentimento de complacência, mas “boa vontade,” desejando o bem ou a felicidade de seu objeto. Deveria um homem, portanto, sob o impulso de um sentimento benévolo, ou um sentido do dever, realizar um ato correto, ele pecaria como de fato se, sob o impulso da malícia e da cobiça, ele realizasse um ato mau. A ilustração é que, pagar uma dívida de um senso de justiça, é tão mau quanto roubar um cavalo de cobiça. Um homem “pode ser prevenido [de cometer] injustiça comercial por uma consciência constitucional ou frenológica ou senso de justiça. Mas isto é só um sentimento da sensibilidade, e se restringido só por isso, ele é tão absolutamente egoísta, como se tivesse roubado um 23 Ibid. p. 164. 24 Ibid. p. 213. 25 Ibid. p. 278. 26 Ibid. p. 521. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 30 cavalo na obediência à cobiça.”27 “Se o homem egoísta fosse pregar o evangelho, seria só porque sobretudo era muito agradável ou gratificante para si mesmo, e não a todos por amor ao bem de ser como um fim. Se ele deve converter-se num pirata, seria exatamente pela mesma razão. ... Seja qual for o curso que toma, ele toma precisamente pela mesma razão; e com o mesmo grau de luz que deve começar com o mesmo grau de culpabilidade.”28 Alimentar os pobres com um sentimento de benevolência, e assassinar um pai com um sentimento de malícia, envolve o mesmo grau de culpabilidade! Tal sacrifício à lógica nunca foi feita antes por qualquer homem. Mas ainda mais maravilhoso, se for possível, é a declaração de que um homem pode “sentir-se profundamente maligno e sentimentos de vingança contra Deus. Mas o pecado não consiste nestes sentimentos, nem necessariamente os implica.”29 A excelência moral não é um objeto de amor. Dizer que estamos obrigados a amar a Deus porque Ele é bom, diz-se que é “mais absurdo. O que é amar a Deus? Por que, como se tem lembrado, não é exercer uma mera emoção da complacência nEle. É à vontade de algo para Ele.”30 “Deve-se dizer que a santidade de Deus é o fundamento de nossa obrigação de amá-Lo, eu pergunto em que sentido pode ser assim? Qual é a natureza ou forma de que o amor, que sua virtude nos põe na obrigação exercitar? Não pode ser uma mera emoção de complacência, por emoções que os estados involuntáriosda mente e simples fenômenos da sensibilidade, aplicam-se sem a fraqueza da legislação e a moralidade.”31 “Estamos na obrigação infinita a amar a Deus, e querer Seu bem com todo nosso poder, porque o valor intrínseco de Seu bem- estar, se Ele é santo ou pecador. A condição de que Ele é santo, estamos 27 Ibid. p. 317, 318. 28 Ibid. p. p. 355. 29 Lectures on Systematic Theology, by Charles G. Finney, edit. Oberlin, Boston, and New York, 1846, p. 296. 30 Ibid. p. 64. 31 Ibid. p. 91. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 31 na obrigação de querer Sua felicidade real, mas certamente estamos na obrigação de querer com não mais que todo nosso coração, e alma, e mente e força. Mas isto é-nos requerido fazer porque o valor intrínseco de Sua bem-aventurança, qualquer que seja Seu caráter.”32 Seguramente tal sistema é um ὑπόδειγμα τῆς ἀπειθείας. A postura do Dr. Taylor O sistema do Dr. Taylor, de New Haven está de acordo com a do professor Finney em fazer com que o livre-arbítrio inclui o poder pleno; em limitar a responsabilidade e o caráter moral dos atos voluntários, com relação à felicidade como o bem supremo; e em fazer a regeneração consistir num mudança de propósito. Os dois sistemas diferem, entretanto, no essencial quanto ao fundamento da obrigação moral ou natureza da virtude; e quanto à natureza dessa mudança de finalidade em que consiste a regeneração. O Professor Finney adota a teoria comum eudemonística que faz a felicidade do ser, quer dizer, do universo, o bem supremo; e portanto faz com que a virtude consista no propósito de governo promover essa felicidade, e todo pecado no propósito de buscar nossa própria felicidade, em vez da alegria de ser; consequentemente, a regeneração é uma mudança desse propósito, quer dizer, é uma mudança do egoísmo à benevolência. O Dr. Taylor, por sua vez, reconheceu o fato de que como o desejo da felicidade é um elemento constitutivo de nossa natureza, ou a lei de nosso ser, deve ser inocente, pelo que não deve confundir-se com o egoísmo. Ele portanto, deduziu que este desejo de felicidade é justamente o princípio de ação no controle de todas as criaturas sensíveis e racionais. O pecado consiste em buscar a felicidade na criatura; a santidade na busca da felicidade em Deus; a regeneração é o propósito ou a decisão de um pecador em busca de sua felicidade em Deus e não no mundo. Esta mudança de objetivo, ele às vezes chama uma “mudança 32 Ibid. p. 99. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 32 de coração,” às vezes “dar o coração a Deus,” às vezes “amar a Deus.” Como a regeneração é a eleição de Deus como nosso bom chefe, é um ato inteligente, voluntário da alma, e portanto deve efetuar-se de acordo com as leis estabelecidas da ação mental. Supõe os atos preliminares de consideração, avaliação e comparação. O pecador contempla a Deus como fonte de felicidade, estima que sua adequação às necessidades de sua natureza. Compara-O com outros objetos de eleição, e decide escolher a Deus como sua porção. Às vezes a palavra regeneração é utilizada num sentido amplo, incluindo todo o processo de exame e decisão; às vezes num sentido restringido, pela própria decisão. Sendo tal a natureza da regeneração, é certamente provocada pela influência da verdade. A Bíblia revela a natureza de Deus, e Sua capacidade e vontade para fazer felizes Suas criaturas; exibe todos os motivos que devem determinar a alma para tomar Deus como porção. Como a regeneração é um ato racional e voluntário, é inconcebível que esta teria lugar, salvo em vista de considerações racionais. Não se nega a influência do Espírito neste processo. Admite-se o fato de que todas as considerações que deveriam determinar o pecador para fazer a eleição de Deus, fique sem efeito salvador, a menos que o Espírito o faça eficaz. Estas opiniões se apresentam em detalhe no “Christian Spectator” (uma revista trimestral) ao redor de 1829. Sobre a natureza da modificação em questão, o Dr. Taylor diz: “A regeneração, considerada como uma mudança moral da qual o homem é o tema — dando a Deus o coração — fazendo um novo coração — amando a Deus supremamente, etc., são termos e frases que, em uso popular, denota um ato complexo. . . . Estas palavras, em todo falar e escritura comum, usa-se para designar um ato, e entretanto, este ato inclui um processo de atividades mentais, que consistem na percepção e a comparação de motivos, a estimativa de seu valor relativo, e a eleição ou querer da ação exterior.” “Quando falamos dos meios de regeneração, usaremos a palavra regeneração num sentido mais limitado que seu conteúdo popular comum; e o confinaremos, principalmente por amor da fraseologia conveniente, ao Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 33 ato da vontade ou do coração, diferente de outros atos mentais relacionadas com ela; ou a esse ato da vontade ou do coração que consiste numa preferência de Deus a todos os outros objetos; ou a essa disposição do coração, ou que regula o afeto ou a finalidade do homem, que o consagra a serviço e glória de Deus.”33 “O amor ou o desejo da felicidade, é a principal causa ou razão de todos os atos preferivelmente ou eleição que fixa soberanamente sobre qualquer objeto. Em cada ser moral que forma um caráter moral, deve haver um primeiro ato moral preferivelmente ou eleição. Isto deve respeitar um único objeto, a Deus ou ao dinheiro, como o bom chefe, ou como um objeto de afeto supremo. Agora de onde vem essa opção ou preferência? Não de uma eleição prévia ou preferência do mesmo objeto, pois falamos da primeira eleição do objeto. A resposta que a consciência humana dá, é que o ser constituído com capacidade para a felicidade deseja ser feliz; e sabendo que ele é capaz de obter satisfação de diferentes objetos, considera que a maior felicidade pode ser derivada, e como neste respeito ele julga ou estima seu valor relativo, então ele escolhe ou prefere um ou outro como seu bem supremo. Embora isto deva ser o processo mediante o qual um ser moral forma a sua primeira preferência moral, substancialmente o mesmo processo é indispensável para uma mudança desta preferência. A mudança consiste na preferência de um novo objeto como o bem supremo; uma preferência que a preferência anterior não tem tendência a produzir, mas uma tendência direta a prevenir; uma preferência, portanto, não são resultado de, ou em qualquer maneira por uma prévia preferência de um objeto dado, mas resultam dos atos de considerar e comparar as fontes de felicidade, que são ditadas pelo desejo da felicidade ou o amor próprio.”34 Sendo a Regeneração uma mudança de finalidade, o modo em que se produz se explica assim. “Se o homem sem a graça divina é um agente 33 Christian Spectator, vol. i. New Haven, 1829, pp. 16-19. 34 Ibid. p. 21. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 34 moral, então ele está qualificado a examinar, comparar e estimar os objetos de eleição como meio de felicidade, e capaz também de tal entusiasmo constitucional à vista do bem e o mal posto antes que ele, como poderia resultar em seu dar seu coração a Deus, sem a graça. ... O ato de dar a Deus o coração tem que produzir-se em perfeito acordo com as leis do livre-arbítrio e da ação voluntária. Se a graça que interpõe infringe essas leis, o efeito não pode ser a ação moral; e devem violar estas leis, se é que prescinde da classe de atividades intelectuais que agora se examina. O que quer que seja, portanto, a influência que assegura uma mudança de coração no pecador, a mudança em si é uma mudança moral, e implica o exercício de todas as faculdades e capacidades do agente moral, que na natureza das coisas são essenciais para uma ato moral.”35 Na página anterior se havia dito: “As Escrituras nos autorizama afirmar, em geral, que o modo de influência divina é consistente com a natureza moral desta mudança como um ato voluntário do homem; e, também, que é através da verdade, e implica a atenção à verdade da parte do homem.”36 “Não pode,” o Dr. Taylor pergunta: “Aquele que formou a mente do homem, chegar a ela com uma influência de seu Espírito, que concordará com todas as leis da ação voluntária e moral? Porque motivos, sem uma interposição divina, não assegurará esta mudança moral no homem pecador, e porque não têm a eficácia positiva em sua produção, deve Deus em sua produção dispensar os motivos por completo? Devem as conexões adequadas entre os motivos e os atos de vontade, ou entre o exercício dos afetos e a percepção de seus objetos, ser dissolvidas, e não têm lugar? Deve Deus, se por Sua graça Ele leva os pecadores a dar-Lhe seu coração em santo amor, obter a mudança de tal maneira que eles não terão a percepção prévia ou a vista do objeto de seu amor; e não sabem o que queiram ou a quem amam, em lugar de seus ídolos antigos? Limita assim uma teologia 35 Christian Spectator, 1829, p. 223. 36 Ibid. p. 17. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 35 consistente ao Único Santo, e o obriga a obter o mais perfeito do impossível, na transformação do caráter moral do homem pecador?”37 Isto pode ser uma explicação correta do processo de conversão, com a que este sistema confunde a regeneração. A conversão é certamente um voltar voluntário da alma do pecado para Deus. Pela natureza do caso que se produz aproximadamente por motivos adaptados, ou não seria nem racional nem santo. Mas isto não prova nada quanto à natureza da regeneração. A análise mais precisa das leis da visão não pode lançar luz sobre a forma em que Cristo abriu os olhos dos cegos. Observações É evidente que estes pontos de vista da regeneração são meras teorias filosóficas. O Dr. Emmons assume que é tal a dependência de uma criatura ao Criador, que não pode agir. Nenhuma criatura pode ser uma causa. Não há eficiência nas segundas causas. Logo, é óbvio, a primeira causa deve produzir todos os efeitos. Deus cria tudo, até volições. Na alma só há atos ou exercícios. A regeneração, portanto, é um ato ou volição criado por Deus; ou, é o nome dado à abertura de uma nova série de exercícios que são santos em lugar de pecaminosos. O professor Finney assume que a capacidade plenária é essencial para a atividade moral; que um homem, pelo que respeita à sua vida interna, tem um poder só sobre suas eleições e volições; tudo, portanto, ao que é responsável, tudo o que constitui o caráter moral, deve cair sob a categoria de eleição, a seleção de um fim último. Assumindo, além disso, que a felicidade é o único bem absoluto, todo pecado consiste no exercício indevido de nossa própria felicidade, e toda virtude na benevolência ou na finalidade de buscar a felicidade do ser. A regeneração, portanto, consiste na mudança da finalidade de buscar nossa própria felicidade, com o fim de buscar como nosso fim último a felicidade do universo. 37 Ibid. p. 433. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 36 O Dr. Taylor, está de acordo com o Professor Finney da natureza da atividade livre, e na doutrina de que a felicidade é o bem supremo, mantém com ele em que todo pecado e santidade consistem na ação voluntária. Mas assumindo que o amor próprio, diferente do egoísmo, é o motivo em toda ação moral racional, ele faz com que a regeneração consista na eleição de Deus como a fonte de nossa própria felicidade. Todas estas especulações estão fora da Bíblia. Não têm autoridade ou valor porque não se derivam de sua verdade inerente, e qualquer homem está em liberdade para controvertê-las, se não se encomendarem a sua própria razão e consciência. Mas além disso, o caráter puramente filosófico destes pontos de vista, seria fácil demonstrar, não só que não têm nenhuma base válida em que descansar, mas também em que são inconsistentes com os ensinos da Escritura e com a genuína experiência cristã. Isto será tratado quando o relato bíblico da regeneração for considerado. A regeneração não é uma mudança em nenhuma faculdade A regeneração não consiste numa mudança em qualquer dá faculdades dá alma, se na sensibilidade, ou a vontade ou ou intelecto. Segundo alguns teólogos, vos sentimentos ou ou coração, não sentido restringido dá palavra, É a sede exclusiva dou pecado original. A corrupção hereditária, em outras palavras, face-se consistir na aversão dou coração dá coisas divinas, e uma preferência corta coisas dou mundo. Ou fim a ser efetuado na regeneração, portanto, É simplesmente corrigir esta aversão. A compreensão, insiste--se, quanto À verdade moral e religiosa refere--se, entende corretamente e aprecia ou que se ama; e de igual maneira, não mesmo âmbito, cremos que ou entendemos como correto e bom. Portanto, se vos sentimentos forem atos ou que devem ser, todas ás demais operações dá mente, ou ou homem interior, terá razão. Esta teoria se baseia em parte numa visão errônea dou significado dá palavra “coração” usada nas Escrituras. Numa multidão de casos, e Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 37 em todos vos casos em que se fala dá regeneração, significa a alma inteira; quer dizer, inclui ou intelecto, a vontade e a consciência, assim como todos vos afetos. Daí a Bíblia fala dois olhos, dois pensamentos, dois propósitos, dois projetos, assim como dois sentimentos ou afetos dou coração. Na linguagem dá Escrituras, portanto, um “novo coração” não significa simplesmente um novo estado de sentimento, mas uma mudança radical na estado de toda a alma ou dou homem interior. Além disso, esta teoria passa por alto ou que a Bíblia constantemente assume: a unidade de nossa vida interior. Ás Escritura não contemplam ou intelecto, a vontade e vos afetos, como independentes, elementos separáveis de um todo. Estas faculdades São só diferentes formas de atividade em uma e a mesma subsistência. Nenhuma execução dá afetos pode ocorrer Sem um exercício dou intelecto, e, se ou objeto É moral ou religioso, Sem incluir um exercício te correspondam de nossa natureza moral. A regeneração não é meramente iluminação Outra teoria antagônica igualmente unilateral, é que o intelecto só está em falta, e que a regeneração reduz-se na iluminação. Este ponto de vista é muito mais plausível que o anterior. A Bíblia faz a vida eterna consistir no conhecimento; pecado é cegueira ou escuridão; a transição de um estado de pecado a um estado de santidade é uma translação da escuridão à luz; diz-se que os homens devem ser renovados até o conhecimento, quer dizer, o conhecimento é o efeito da regeneração, a conversão diz-se que é efetuada pela revelação de Cristo; o rechaço dEle como o Filho de Deus e Salvador dos homens refere-se ao fato de que os olhos dos que não creem estão cegados pelo deus deste mundo. Estas representações bíblicas provam muito. Demonstram que o conhecimento é essencial para todos os santos exercícios; que a verdade como objeto de conhecimento, é de vital importância, e que o erro é sempre mau e com frequência fatal; e que o efeito da regeneração, à medida que se manifesta em nossa consciência, consiste principalmente em Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 38 compreensão ou discernimento espiritual das coisas divinas. Estas representações também provam que na ordem da natureza, o conhecimento ou discernimento espiritual, é antecedente e causativo relativamente a todos os santos exercícios dos sentimentos ou afetos. É a compreensão da verdade espiritual que desperta o amor, a fé e alegria; e não o amor que produz o discernimento espiritual. Foi a visão que Paulo tinha da glória divina de Cristo que o fez imediatamente e para sempre seu adorador e servidor. As Escrituras, entretanto, não ensinam que a regeneraçãoconsiste exclusivamente na iluminação, ou que as faculdades cognitivas são exclusivamente o tema da força renovadora do Espírito. É a alma como tal a que está espiritualmente morta; e deve ser a alma um novo princípio de vida controlador de todos os seus exercícios, quer seja da inteligência, da sensibilidade, da consciência ou da vontade que se comunica. Não é uma mudança exclusiva dos mais elevados poderes da alma. Há outro ponto de vista do sujeito, que cai dentro deste cabeçalho do que pode chamá-la regeneração parcial. que se baseia em tricotomia, ou a assunção de três elementos na constituição do homem, ou seja, o corpo, a alma e o espírito (o σῶμα, ψυχή y πνεῦμα), o primeiro material, o segundo animal, o terceiro espiritual. Para o segundo, quer dizer, para a alma ou ψυχή, faz-se referência ao que o homem tem em comum com os animais inferiores, vida, sensibilidade, vontade e compreensão; para o espírito o que é peculiar a nós como seres racionais, morais, religiosos, ou seja, de consciência e razão. Este terceiro elemento, o πνεῦμα, ou razão, é com frequência chamada divina; às vezes em sentido literal, e às vezes num sentido figurado. Em qualquer caso, de acordo com a teoria em questão, não é a sede do pecado, e está corrompida pela Queda. Continua sendo, embora nublada e pervertida pela desordem nos departamentos mais baixos de nossa natureza, o ponto de contato e a conexão entre o homem e Deus. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 39 Isto ao menos é um ponto de vista do assunto. Segundo outra opinião, nem o corpo nem a alma (que não sejam σῶμα nem ψυχή), tem um caráter moral. A sede da vida moral e divina é exclusivamente o πνεῦμα ou espírito. Diz-se que esta está paralisado pela Queda. É morto em sentido figurado, não suscetível de impressão das coisas divinas. Há tantas teorias sobre a natureza da regeneração entre os defensores desta tríplice divisão na constituição do homem, como há sistemas da antropologia. A ideia comum a todas, ou a uma maioria delas, é que a regeneração consiste na restauração do πνεῦμα ou o espírito à sua normal influência controladora de todo o homem. Segundo alguns, este é um processo natural em que um homem animal, quer dizer, um homem governado pela ψυχή, chega a ser razoável, ou pneumático, quer dizer, regido pelo πνεῦμα ou poderes superiores de sua natureza. Segundo outros, é um efeito sobrenatural devido à ação do Espírito (Πνεῦμα) divino sobre o πνεῦμα humano ou o espírito. Em qualquer caso, entretanto, o πνεῦματικός, ou o homem espiritual, não é alguém em quem habita o Espírito Santo como um princípio de uma nova vida, espiritual, mas que está governada por seu próprio πνεῦμα ou espírito. Segundo outros mais, o πνεῦμα ou razão no homem é Deus, a consciência de Deus, o Logos, e a regeneração é a ascendência adquirida gradualmente deste elemento divino de nossa natureza. Com referência a estes pontos de vista da regeneração é suficiente observar: (1.) Que a tríplice divisão de nossa natureza nos quais se fundou é antibíblica, como já tratamos de demonstrar. (2.) Admitindo que existe uma base para tal distinção, não é de classe assumida nestas teorias. A alma e o espírito não são distintas substâncias ou essências, uma das quais pode ser santa e a outra profana, ou negativa. Isto é incompatível com a unidade de nossa vida interior, que as Escrituras constantemente assumem. (3.) Subverte a doutrina escriturística da regeneração e a santificação para fazer o princípio que rege no novo ser seu próprio πνεῦμα ou espírito, e não o Espírito Santo. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 40 Posturas especulativas modernas A filosofia especulativa moderna introduziu uma mudança tão radical nas opiniões entretidas da natureza de Deus, de Sua relação com o mundo, da natureza do homem e de sua relação com Deus, da pessoa e obra de Cristo e da aplicação de Sua redenção para a salvação dos homens, para que todas as antigas, e, pode-se dizer com segurança, formas das Escrituras destas doutrinas foram superadas, e outras que foram apresentadas, que são ininteligíveis sem a luz dessa filosofia, e que em grande medida reduzem as verdades da Bíblia à forma de dogmas filosóficos. Deixamos de ouvir do Espírito Santo como a terceira pessoa da Trindade, aplicando aos homens a redenção comprada por Cristo; da regeneração por Sua onipotência, ou de Sua morada nos corações dos crentes. As formas desta nova teologia são muito diferentes. Todos elas são talvez compreendidas sob três categorias: em primeiro lugar, as que são abertamente panteístas, apesar de que afirma ser cristã; em segundo lugar, as que são teístas, mas não admitem a doutrina da Trindade; e em terceiro lugar, os que tratarão de acomodar a teologia como um a filosofia nas formas da doutrina cristã. Ao todo, não obstante, a antropologia, a cristologia, a soteriologia, a eclesiologia defendidas, são tão mudadas que se tornam impossíveis de reter em sua exposição os termos e fórmulas com as quais a Igreja desde o princípio foi familiar. A regeneração, a justificação e a santificação são termos quase antiquados; e o que resta das verdades desses termos se utilizam para expressar, combinam-se na ideia de um desenvolvimento de uma nova vida divina na alma. Quanto à antropologia, estas modernas especulativas, ou como com frequência se chamam, e são chamados por outros, místicas, os teólogos ensinam: (1.) Que não há dualismo no homem entre a alma e o corpo. não há mais que uma vida. O corpo é a alma projetando-se para o exterior. Sem um corpo não há alma. (2.) Que não há verdadeiro dualismo entre Deus e o homem. A identidade entre Deus e o homem é o último resultado da especulação moderna; e é a ideia fundamental do cristianismo. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 41 O corpo e a alma são um Quanto ao primeiro destes pontos, Schleiermacher 38 diz: “não há um ser espiritual e um mundo físico, corporal e uma existência espiritual do homem. Estas representações não conduzem a nada, mas o mecanismo morto de uma harmonia restabelecida. Corpo e espírito são reais só em e com o outro, de modo que a ação corporal e espiritual só pode ser relativamente distinta.” O falecido Presidente Rauch39 diz: “Um dualismo admite dois princípios para um único ser, oferece muitas dificuldades, e a maior é que não pode dizer como os princípios podem unir-se num terceiro. Um rio pode ter sua origem em duas fontes, mas uma ciência não pode, e muito menos a vida individual.” “Seria um erro dizer que o homem compõe-se de duas substâncias essencialmente diferentes, de terra e alma; mas ele é só a alma, e não pode ser outra coisa. Esta alma, entretanto, desdobra-se na vida externa do corpo, e internamente na vida da mente.” Assim Olshausen 40 ensina que a alma não tem subsistência, senão no corpo. O Dr. J. W. Nevin 41 diz: “Não temos direito de pensar no corpo de maneira nenhuma como uma forma de existência e por si mesmo, em que a alma como outra forma de existência é empurrada de uma maneira mecânica. Ambos formam uma vida. A alma para ser completa, para desenvolver-se absolutamente como uma alma, deve exteriorizar-se, lançar-se no espaço, e esta exteriorização é o corpo.” Deus e o homem são um Quanto ao segundo ponto, ou a unidade de Deus e o homem, como a alma se exterioriza no corpo, “dividindo a si mesmo, unicamente que sua unidade pode chegar a ser, portanto, mais livre e completa 38 Dialektik, sect. 290-295; Works, Berlin, 1839, 3d div. vol. iv. part 2. pp. 245-255. 39 Psychology, New York, 1840, pp. 169, 173. 40 Commentary, 1 Cor. xv. 20. 41 Mystical Presence, edit Philadelphia, 1846, p. 171. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 42 intensamente,”42 desta maneira o próprio Deus Se exterioriza no mundo. Schleiermacherdiz, é em vão tratar de conceber a Deus como existente, quer seja antes ou fora do mundo. Podem distinguir-se no pensamento, mas são só “zwei Werthe pieles dieselbe Förderung, dois valores do mesmo postulado.” De acordo com esta filosofia, é igualmente verdadeiro: “não há mundo, não há Deus,” como “não há corpo, não há alma.” “O mundo,43 em seu ponto de vista inferior, não é simplesmente um teatro ou cenário em que o homem deve atuar sua parte como candidato para o céu. Em meio de todas as suas diferentes formas de existência, tudo está impregnado com o poder de uma só vida, que vem em última instância, a seu sentido pleno e a força só na pessoa humana.” O mundo, portanto, está impregnado pelo poder de uma só vida;” a forma mais alta dessa vida (na terra) é o homem. O que é essa vida? Qual é este princípio impregnante que se revela em formas múltiplas da existência, e culmina no homem? É, certamente, Deus. O homem, portanto, como Schleiermacher, diz, é “a forma existencial” de Deus na terra.44 Ullmann45 indica que os místicos alemães na Idade Média ensinaram “a unidade da Deidade e a humanidade.” Os resultados alcançados pelos místicos sob a guia dos sentimentos, diz ele, a filosofia moderna chegou pela especulação. Esta doutrina da unidade essencial de Deus e o homem, os teólogos especulativos adotam como ideia fundamental do cristianismo. Trabalhar essa ideia numa forma compatível com o teísmo e o Evangelho, é o problema que os teólogos trataram de resolver. Estes intentos deram lugar em alguns casos, ao panteísmo declarado cristão, como é chamado; em outros, em formas de doutrina tão perto de ser panteísta que dificilmente se distingue do próprio panteísmo; e em todos, numa 42 Mystical Presence, edit. Philadelphia, 1846, p. 172. 43 Mercersburg Review, 1850, vol. ii. p. 550. 44 Dorner’s Christologie, 1st edit., Stuttgart, 1839, p. 488. 45 “Charakter des Christenthums,” Studien und Kritiken, 1845, erstes Heft, p. 59. Veja-se também uma tradução deste artigo no princípio de The Mystical Presence, by J. W. Nevin, D. D. Philadelphia, 1846. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 43 modificação radical, não só da teologia da Igreja como se expressa em suas normas recebidas, mas também da forma bíblica das doutrinas cristãs, se não de sua essência. Isto é visto como verdade na antropologia deste sistema, que destrói a diferença essencial entre o Criador e Suas criaturas, entre Deus e o homem. A cristologia desta teologia moderna já se apresentou em seus aspectos essenciais. Não há dualismo em Cristo como entre a alma e o corpo. Os duas são uma vida. Tampouco há dualismo entre a divindade e a humanidade nEle. O divino e o humano em Sua pessoa são uma vida. Ao ser o homem ideal ou perfeito, Ele é o Deus verdadeiro. A deificação que a humanidade tinha chegado em Cristo, não é um ato sobrenatural da parte de Deus; é alcançado por um processo de desenvolvimento natural em Seu povo, quer dizer, a Igreja. Soteriologia destes filósofos A soteriologia deste sistema é simples. A alma se projeta no corpo. Eles são uma vida, mas o corpo pode ser muito para a alma. O desenvolvimento desta única vida em sua forma dupla, para dentro e para fora, não pode ser simétrica. Portanto a humanidade como uma vida genérica, uma forma da vida de Deus, tal como se projeta externamente no mundo de Adão em diante, não se desenvolveu corretamente. Se fosse deixado sem ajuda não chegaria à meta, ou se desenvolve a si mesma como divina. Um novo começo, portanto, deve ser dado à mesma, um começo novo criado. Isto se faz mediante uma intervenção sobrenatural que resulta na produção da pessoa de Cristo. NEle a divindade assume a forma de um homem, — a forma de existência de homem, — Deus faz- se homem, e o homem é Deus. Esta entrada renovada, por assim dizer, de Deus ao mundo, esta forma especial de vida divino-humana, é o cristianismo, que é constantemente declarada “a vida de Cristo,” “uma nova vida teantrópica.” “Os homens fazem-se cristãos por ser partícipes desta vida. Convertem-se em partícipes desta vida pela união com a Igreja e a recepção dos sacramentos. A encarnação de Deus continua na Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 44 Igreja, e este novo princípio da “vida divino-humana” desce de Cristo aos membros de sua Igreja, tão naturalmente e tanto por um processo de desenvolvimento orgânico, como a humanidade, derivada de Adão, desdobra em si mesmo seus descendentes. Cristo, portanto, salva-nos, não tanto pelo que fez, como pelo que Ele é. Ele não fez nenhuma satisfação à justiça divina; nenhuma expiação pelo pecado; nenhum cumprimento da lei. Não há, portanto, realmente nenhuma justificação, nem verdadeiro perdão, inclusive, no sentido comum da palavra. Há uma cura da alma, e com essa cura a eliminação dos males incidentes à doença. Os que se fazem partícipes deste novo princípio de vida, que é verdadeiramente humano e verdadeiramente divino, fazem-se um com Cristo. Todo o mérito, justiça, excelência, e o poder, inerente à vida “divino-humana,” é óbvio, pertencem àqueles que participam dessa vida. Esta justiça, excelência, etc., são nossas. Elas são subjetivos em nós, e formam nosso caráter, assim como a natureza derivada de Adão era a nossa, com todas as suas corrupções e fraquezas. Se for perguntado o que é a regeneração, de acordo com este sistema, a resposta provavelmente seria, que é um termo obsoleto. Não há espaço para o que geralmente era significado pela palavra, e não há razão para manter a própria palavra. A regeneração é uma obra do Espírito Santo. Mas este sistema em sua integridade não reconhece o Espírito Santo como uma pessoa distinta ou agente. E os que se veem obrigados a fazer o reconhecimento de Sua personalidade, são evidentemente envergonhados pela admissão. O que as Escrituras e o atributo da Igreja ao Espírito, operando com a liberdade de um agente pessoal, quando e onde lhe pareça, este sistema atribui à “a vida teantrópica” de Cristo, operando como uma nova força, de acordo com as leis naturais do desenvolvimento.46 A impressão feita sobre os leitores dos teólogos modernos desta escola, é a realizada por qualquer outra forma de disquisição filosófica. 46 Mystical Presence, edit. Philadelphia, 1846, pp. 225-229. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 45 Não tem, e de sua própria natureza não pode ter nada mais que a autoridade humana. Este sistema pode ser adotado como uma questão de opinião, mas não pode ser um objeto de fé. E portanto não pode apoiar as esperanças de uma alma consciente da culpa. Na volta de tais escrituras à Palavra de Deus, a transição que estes teólogos nos querem fazer crer, é de culpa à fé, mas a consciência do cristão, é como a transição da confusão de línguas em Babel, onde ninguém entende a seus companheiros, à enunciação harmoniosa daqueles “que falaram sendo inspirados pelo Espírito Santo.” Doutrina de Ebrard Dos escritores que pertencem à classe geral de teólogos “especulativos”, alguns se aderem muito mais perto das Escrituras que outros. O Dr. J. H. A. Ebrard, de Erlangen, já tem sido reiteradamente referido como afeito à fé reformada; e em que conscientemente se aparta dela, ele se considera como único a cumprir seus princípios legítimos. Seu “Dogmatik,” de fato, tem um caráter muito mais bíblico que a maioria dos sistemas modernos da Alemanha. Em Ebrard, como em outros, encontramos um compromisso entre a doutrina da Igreja da regeneração e a moderna teoria da encarnação de Deus na raça humana. Não só é uma distinção que faz entre o arrependimento, a conversão, e a regeneração; mas também verdadeiro arrependimento e a conversão autêntica são feitos preceder à regeneração. Os dois anteriores tomam lugar na esfera da consciência. Em todos os estados e exercícios relacionados com o arrependimento e a conversão, a almaé ativa e cooperativa; e a única influência exercida por Deus ou Seu Espírito, é mediata e moral. Não é até que o pecador obedeceu à ordem de arrepender-se, crer em Cristo, e a voltar a Deus, que Deus dá à alma esse algo divino que a torna uma nova criatura, e sua união vital orgânica com Cristo. Neste último processo a alma é simplesmente passiva. Deus é o único agente. O que se diz que é comunicada à alma é Cristo, a pessoa de Cristo, a vida de Cristo, Sua Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 46 substância, ou uma nova substância. Uma distinção, entretanto, faz-se entre essência e substância. Ebrard insiste47 em que o mais oculto, o germe substancial de nosso ser é nascer de novo na regeneração — não meramente mudado, mas recém-nascido. Entretanto, diz que a “essentia animæ humanae” não se muda, e assente à declaração de Bucan: “Renovatio fit non quoad essentiam ut deliravit Illyricus, sed quoad qualitates inhærentes.” O que ele afirma,48 com frequência em outras partes, quer dizer, “Que Cristo, real e substancial, nasce em nós.” Mas acrescenta que as palavras “real e substancial” se utilizam para proteger- se contra a hipótese de que a regeneração consiste simplesmente num pouco de exercício interior, ou estado transitório da consciência. É, como ele ensina realmente, muito mais; algo menor que a consciência; uma mudança no estado da alma, que determina os atos e exercícios que se manifestam na consciência, e se manifestam na vida. Encontra sua doutrina da regeneração, não no que Calvino e alguns poucos dos teólogos reformados ensinaram sob esta divisão, mas no que eles ensinam da Ceia do Senhor, e da união mística. Calvino49 diz: “Sunt qui manducare Christi carnem, et sanguinem ejus bibere, uno verbo definiunt, nihil esse aliud, quam in Christum ipsum credere. Sed mihi expressius quiddam ac sublimius videtur voluisse docere Christus . . . . nempe vera sui participatione nos vivificari. . . .Quemadmodum enim non aspectus sed esus panis corpori alimentum sufficit, ita vere ac penitus participem Christi animam fieri convenit, ut ipsius virtute in vitam spiritualem vegetetur.” “Temos aqui sem dúvida,” diz Ebrard,50 “a doutrina de uma comunicação secreta, mística da substância de Cristo ao centro importante no homem (a ‘alma’), que se desenvolve por um lado, no físico, e por outro, na vida puramente intelectual.” 47 Dogmatik, edit. Königsberg, 1852, vol. ii. p. 320. 48 Ibid. p. 300. 49 Institutio, IV. xvii. 5, edit. Berlin, 1834, vol. ii. p. 403. 50 Dogmatik, vol. ii. p. 310. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 47 Estes escritores estão corretos em negar que a regeneração é uma mera mudança nos propósitos, ou sentimentos, ou estados de consciência de alguma classe no homem; e também em afirmar que se trata da comunicação de um novo e permanente princípio da vida à alma. Mas se apartam da Escritura e da fé da Igreja universal na substituição da natureza teantrópica de Cristo,” “sua vida divino-humana,” “a humanidade genérica curada e elevada à potência de uma vida divina” (quer dizer, deificada), pelo Espírito Santo. Esta substituição faz-se abertamente na obediência à ciência moderna, à nova filosofia que tem descoberto uma verdadeira antropologia e revelou “a verdadeira unidade de Deus e o homem.” Como já se comentou, supõe-se que a transmissão da natureza “teantrópica de Cristo” levava consigo seus méritos, assim como sua bênção e poder. Tudo o que temos de Cristo, temos dentro de nós. E se podemos descobrir pouco de Deus, e pouco como Deus em nossas almas, tão pior. É tudo o que temos que esperar, até que nossa vida interior se desenvolva. O Cristo interior (como alguns dos Amigos [Quakeres] também ensinam), é, segundo este sistema, todo o Cristo que temos. Ebrard, portanto, segundo uma opinião identifica a regeneração e a justificação. “Regeneração,” diz,51 “como o ato de Cristo, é a causa (‘causa efficiens’) da justificação; Ele comunica Sua vida a nós, e desperta uma nova vida em nós. Esta é a justificação, uma mudança interior subjetiva, o que implica mérito, assim como a santidade. Este fator de confusão a obra do Espírito Santo na regeneração, com o ato judicial, objetivo da justificação, pertence ao sistema. Ao menos, é só no terreno da vida infundida que se pronunciam justos aos olhos de Deus. O que recebemos é “a verdadeira vida divino-humana de Cristo,” e “o que pode ser de mérito, virtude, eficácia ou valor moral de qualquer maneira, na obra mediadora de Cristo, tudo é apresentado na vida, pelo poder de que solo este trabalho se obteve, e na presença dos que só pode- se ter a realidade ou a estabilidade. A imaginação de que os méritos da 51 Ibid. p. 315. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 48 vida de Cristo pode ser separado de sua própria vida, e transmitidos sobre seu povo nesta forma de resumo, no terreno de uma constituição jurídica meramente externa, não é bíblico e contrário a toda razão, ao mesmo tempo.”52 A regeneração consiste na comunicação da vida de Cristo, sua substância, à alma, e esta vida divino-humana compreendendo todo o mérito, virtude, ou eficácia que pertence a Cristo e sua obra, — regeneração consiste na justificação, da que é a base e a causa. Doutrina de Delitzsch Delitzsch dedica uma divisão de sua “Biblical Psychology” ao tema da regeneração. Começa o debate com um discurso sobre a pessoa de Cristo. “Quando se deseja examinar a nova vida espiritual do homem redimido, partimos do divino arquétipo humano, a pessoa do Redentor.”53 O homem foi, quanto ao seu espírito e sua alma, sua composição originária, a imagem de Deus, e o espírito era a “imagem de Sua natureza triúna e a última [a alma] de Sua sétupla ‘doxa.’ O homem estava em liberdade para conformar sua vida com o espírito, ou o princípio divino dentro dele, ou permitir o controle de sua vida a ser assumida pela alma. A ruína era a consequência da Queda. Isto pode ser corrigido e o homem redimido só por “um novo começo da intensidade criativa similar.”54 Este novo início foi efetuado na encarnação. O Filho de Deus fez-Se homem, não por assumir nossa natureza, no sentido comum dessas palavras, mas por deixar de ser todo-poderoso, onisciente e onipresente, e encolhendo para Si mesmo os limites da humanidade. Era uma vida humana em que Ele assim entrou, uma vida como um espírito, alma e corpo. Não há dualismo na pessoa de Cristo, como entre o corpóreo e o espiritual, ou entre o humano e o divino. É a natureza 52 Mystical Presence, by J. W. Nevin, D. D., Philadelphia, 1846, p. 191. 53 A System of Biblical Psychology, by Franz Delitzsch, D. D., translated by R. R. Wallis, Ph. D.; Edinburgh, 1867, p. 381. 54 Ibid. p. 382. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 49 divina em forma humana, ou esta natureza divino-humana, que é pura e simples, embora perfeitamente humana, que se comunica ao povo de Deus em sua regeneração. Para esta comunhão na vida de Cristo, a fé é indispensável, e portanto, diz Ebrard, os bebês não podem ser objeto de regeneração, conquanto Delitzsch, luterano, sustenta que os crianças são capazes de exercer a fé, e, portanto são suscetíveis de ser regeneradas. O que se recebe de Cristo, ou a de Seu povo, que são feitos partícipes, é “o Espírito, a alma, o corpo de Cristo”55 O novo homem, ou o segundo Adão, fez-se um “espírito que dá vida,” e pouco a pouco submete o velho homem, ou nossa natureza de Adão, e traz todo o homem (πνεῦμα, ψυχή y σῶμα), espírito, alma e corpo, à altura da vida de Cristo, em quem o divino e o humano se fundem num, ou antes, aparecem em sua unidade original. A comunicação da vida teantrópica à alma é um ato do Espírito divino em que não temos nem a atividadenem a consciência. Delitzsch deduz do que nosso Senhor disse a Nicodemos, João 3, que “A operação do Espírito da regeneração é, portanto, (1.) Uma operação livre, retirada do poder da vontade humana, da atividade humana especial. (2.) Uma operação misteriosa, está além da consciência humana, e só deve ser reconhecida por seus efeitos.56 “É próprio de todas as agências criativas de Deus, que a criatura que com ela foi trazida à existência, ou em que tal ou qual é trazido à existência, não tem consciência do que está ocorrendo.”57 Diversas como são as modificações desta doutrina tal como apresentada por diferentes escritores desta escola em geral, a regeneração é por todos eles entendida ser a comunicação da vida de Cristo à alma. Pela vida de Cristo é significado Seu valor, Sua natureza humana, que era ao mesmo tempo divina, e portanto é teantrópica. Pode 55 A System of Biblical Psychology, by Franz Delitzsch, D. D., translated by R. R. Wallis, Ph. D.; Edinburgh, 1867, p. 398. 56 Ibid. p. 402. 57 Ibid. p. 403. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 50 ser chamada humana, e pode ser chamada divina, pois apesar de ser uma, uma vida, é verdadeiramente divina por ser perfeitamente humana. Todos somos partícipes da humanidade como contaminados e degradados pela apostasia de Adão. Cristo, ou antes, o Filho eterno de Deus, assumiu a natureza humana, em que Ele Se fez homem, e sendo Deus, a humanidade nEle se encheu dos tesouros da sabedoria e conhecimento e graça e poder; dessa humanidade devemos participar com o fim a tomar parte na salvação de Cristo. A comunicação desta vida a nós, que é nossa regeneração, é através da Igreja, que é Seu corpo, por causa de sua animada vida humana. Como derivamos nossa humanidade deteriorada pela descendência de Adão, somos feitos partícipes desta humanidade renovada, divina pela união com a Igreja, em que Cristo como homem, e Deus-homem, vive e habita. E como a comunicação da humanidade tal como existia em Adão caído a seus descendentes é um processo natural de desenvolvimento orgânico, de modo que a comunicação da humanidade renovada, tal como existe em Cristo, a Seu povo, e através do mundo, é também um processo natural. Isto não supõe nenhuma interferência ou intervenção especial da parte de Deus, não mais que qualquer outro desenvolvimento orgânico no mundo vegetal ou animal. A única coisa sobrenatural é o ponto de partida em Cristo. Doutrina da Igreja latina Na posterior Igreja latina a palavra regeneração utiliza-se como sinônimo de justificação, e se toma num sentido amplo que inclui tudo o que é relacionado na translação da alma do reino das trevas ao reino do amado Filho de Deus. Na regeneração o pecador converte-se num filho de Deus. É, por tanto, levado a incluir: (1.) A remoção da “reatus” ou culpa do pecado. (2.) A purificação da corrupção moral inerente. (3.) A infusão “de novos hábitos da graça;” e (4.) Adoção ou reconhecimento Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 51 da nova como filhos de Deus. O Concílio de Trento diz:58 “Justificatio ... non est sola peccatorum remissio, sed et sanctificatio, et renovatio interioris hominis per voluntariam susceptionem gratiæ, et donorum, unde homo ex injusto fit justus, et ex inimico amicus, ut sit heres secundum spem vitæ æternæ.” A causa fundamental da justificação neste sentido, declara-se ser: “sacramentum baptismi, quod est sacramentum fidei, sine qua nulli umquam contigit justificatio.” Quanto ao efeito do batismo, ensina-se59 que tira não só a culpa, mas também tudo da natureza do pecado, e se comunica uma nova vida. “Si quis per Jesu Christi Domini gratiam; quæ in baptismate confertur, reatum originalis peccati remitti negat, aut etiam asserit, non tolli totum id, quod veram, et propriam peccati rationem habet; sed illud dicit tantum radi, aut non imputari: anathema sit. In renatis enim nihil odit Deus, quia nihil est damnationis iis qui vere consepulti sunt cum Christo per baptisma in mortem: qui non secundum carnem ambulant, sed veterem hominem exuentes, et novum, qui secundum Deum creatus est, induentes, innocentes, immaculati, puri, innoxii, ac Deo dilecti effecti sunt, heredes quidem Dei, coheredes autem Christi, ita ut nihil prorsus eos ab ingressu coeli remoretur.”60 A Regeneração, portanto, como feita no batismo, é a remoção da culpa e da poluição do pecado, a infusão de novos hábitos de graça, e a introdução na família de Deus. É no batismo que todos os benefícios da redenção de Cristo são encaminhados para a alma, e esta é a sua regeneração ou nascimento no reino de Deus. 58 Sessio. VI. cap. 7. 59 Ibid. v. 5. 60 Streitwolf, Libri Symbolici, Göttingen, 1846, pp. 24, 25, 28. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 52 Doutrina da Igreja Anglicana 1. Sempre foi uma classe dos teólogos da Igreja Anglicana que têm a teologia da Igreja de Roma em suas mais importantes características. Eles aceitam, portanto, a definição de regeneração, ou de justificação, como a chamam, conforme dado pelo Concílio de Trento, e citadas anteriormente. 2. Outros fazem uma distinção entre a conversão e a regeneração. A último é que a graça que atende o batismo, e como esse sacramento sem sacrilégio não se pode repetir, pelo que a regeneração pode-se experimentar só uma vez. A conversão é “uma mudança de coração e vida do pecado à santidade.” “Para os pagãos e infiéis a conversão é absolutamente e sempre necessária para a salvação.” Para os cristãos batizados a conversão nem sempre é necessária. “Algumas pessoas têm confundido conversão com regeneração, e têm ensinado que todos os homens, os batizados, e portanto, de fato, regenerados, devem ser regenerados depois, ou não podem ser salvos. Agora, isto é em muitos aspectos falso: porque a regeneração, que o Senhor Jesus Cristo mesmo conectou com o santo batismo, não se pode repetir. Além disso, nem todos os homens (embora na realidade a maioria dos homens) estão compreendidos em tal pecado depois do batismo, essa conversão, ou como eles o definem, a regeneração, é necessária para sua salvação; e se uma regeneração foi necessária para eles, só se pode obter través da repetição do batismo, que era um ato de sacrilégio.” “Eles que se opõem à expressão regeneração batismal, significam por regeneração, em sua maior parte, o primeiro influxo da graça irresistível e indefectível; graça que não pode ser rejeitada por seu objeto, e que deve emitir em sua salvação final. Agora, de tal graça nossa Igreja não sabe nada, e é óbvio, portanto, significa não a regeneração no batismo, o primeiro influxo de tal graça. Que os pecados, originais e atuais, dos recipientes fiéis do batismo, vão desaparecendo, ela crê; e também a graça que se dá a ele pelo agente imediato do Espírito Santo; entretanto, para que a consciência assim purificada possa ser mais uma Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 53 vez contaminada, e que o batizado pode, e com frequência cai, por sua própria culpa, de novo no pecado, em que se ele morrer, sem dúvida perecerá eternamente; sua condenação não sendo evitada, mas bastante aumentada, por seu privilégio batismal.”61 3. Uma terceira forma da doutrina sobre este tema, sustentada por alguns teólogos desta igreja, é que a regeneração corretamente expressa uma mudança externa da relação, e não uma mudança interna do estado da alma e de sua relação com Deus. Como um prosélito foi regenerado quando se professava um judeu, assim qualquer um iniciado na Igreja visível é com isso regenerado. Isto se considera totalmente diferente da renovação espiritual. A Regeneração, neste sentido rumo ao exterior, é admitida pelo batismo; a renovação é pelo Espírito. 4. Uma grande classe de teólogos ingleses permaneceram sempre fiel à doutrina evangélica sobreeste tema, de acordo com as opiniões dos reformadores em sua Igreja, que se encontravam em plena simpatia tanto na doutrina e na comunhão eclesiástica e cristã com outras igrejas protestantes. § 3. A doutrina evangélica. Nos símbolos da doutrina luterana da Regeneração, que se faz para incluir a conversão, é assim expresso: “Conversio hominis talis est immutatio, per operationem Spiritus Sancti, in hominis intellectu, voluntate et corde, qua homo (operatione videlicet Spiritus Sancti) potest oblatam gratiam apprehendere.”62 “Hominis autem nondum renati intellectus et voluntas tantum sunt subjectum convertendum, sunt enim hominis spiritualiter mortui intellectus et voluntas, in quo homine Spiritus Sanctus conversionem et renovationem operatur, ad quod opus hominis convertendi voluntas nihil 61 A Church Dictionary, by Walter Farquhar Hook, D. D., Vicar of Leeds, article, “Conversion”; 6th edit., Philadelphia, 1854. 62 Form of Concord, II. 83. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 54 confert, sed patitur, ut Deus in ipsa operetur, donec regeneretur. Postea vero in aliis sequentibus bonis operibus Spiritui Sancto cooperatur, ea faciens, quæ Deo grata sunt.”63 “Sicut igitur homo, qui corporaliter mortuus est, seipsum propriis viribus præparare aut accommodare non potest, ut vitam externam recipiat: ita homo spiritualiter in peccatis mortuus, seipsum propriis viribus ad consequendam spiritualem et coelestem justitiam et vitam præparare, applicare, aut vertere non potest, nisi per Filium Dei a morte peccati liberetur et vivificetur.”64 “Rejicimus errorem eorum qui fingunt, Deum in conversione et regeneratione hominis substantiam et essentiam veteris Adami, et præcipue animam rationalem penitus abolere, novamque anima essentiam ex nihilo, in illa conversione et regeneratione creare.”65 Com estas declarações as doutrinas ensinadas nos símbolos e pelos teólogos das igrejas reformadas, estão perfeitamente de acordo. Com efeito, é suficiente citar as normas de nossa própria Igreja. A “Confissão de Westminster,” diz: «O homem, por sua queda em estado de pecado, perdeu totalmente toda a capacidade de querer todo bem espiritual acompanhando a salvação; de maneira que como homem natural totalmente adverso ao que é bom, e morto em pecado, não pode, por seu próprio poder, converter-se a si mesmo, nem preparar-se para isso.» «Quando Deus converte um pecador e o traslada ao estado de graça, liberta-o de sua escravidão natural sob pecado, e por sua única graça o capacita livremente para querer e fazer o que é espiritualmente bom.» «Deus Se agrada em chamar eficazmente, em seu tempo assinalado e aceito, a todos aqueles a quem Deus predestinou para a vida, e só àqueles, mediante Sua palavra e Espírito, fosse daquele estado de pecado e de morte em que por natureza estão, à graça e salvação por Jesus Cristo; iluminando suas mentes, espiritual e salvadoramente, para 63 Ibid. 91. 64 Ibid. 71. 65 Ibid. 14; Hase, Libri Symbolici, 3d edit. Leipzig, 1836, pp. 679, 681, 658, 581. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 55 compreender as coisas de Deus, tirando seus corações de pedra, e lhes dando coração de carne; renovando suas vontades, e por Seu poder onipotente, determinando-os para o bem, e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo; mas isso de maneira que vêm da maneira mais livre, tendo sido feitos bem dispostos por Sua graça». «Esta chamada eficaz é somente pela livre e especial graça de Deus, não por nada absolutamente previsto no homem, que é nisso totalmente passivo, até que, sendo vivificado e renovado pelo Espírito Santo, é por isso capaz de responder a esta chamada, e abraçar a graça oferecida e comunicada nele».66 O Catecismo Maior 67 diz: “O que é a chamada eficaz? Chamada eficaz é o trabalho da graça e onipotência de Deus e, segundo o qual (de seu amor gratuito e especial a seus escolhidos, e do nada em que se movam nele) Ele o dispõe em seu tempo aceitável convidar e atraí-los a Jesus Cristo por meio de Sua palavra e do Espírito; salvadoramente iluminando suas mentes, renovando e poderosamente determinando suas vontades, assim como (embora em si mesmos mortos em pecado), são por esse meio feitos dispostos e capacitados, livremente para responder a sua chamada, e aceitar e abraçar a graça oferecida e transmitida no mesmo.” Exposição da doutrina. A regeneração é um ato de Deus. 1. A regeneração é um ato de Deus. Não se lhe atribui simplesmente a Ele como doador, e, neste sentido como Seu autor, como Ele é o doador da fé e do arrependimento. Não é um ato que, por argumento ou persuasão, ou por poder moral, induz o pecador a executar. É um ato do qual Ele é o agente. É Deus quem regenera. Neste sentido a alma é regenerada. A alma é passiva na regeneração, a qual (considerada 66 IX. 3, 4; x. 1, 2. 67 Question 67. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 56 subjetivamente) é uma mudança operada em nós, e não um ato efetuado por nós. A regeneração é um ato do poder de Deus. A regeneração é ato do poder de Deus 2. A regeneração não é só um ato de Deus, mas também um ato de Seu poder onipotente. Segundo as declarações expressas das Escrituras, é assim apresentado nos Símbolos das igrejas protestantes. Como ato da onipotência, é certamente eficaz, porque nada pode resistir ao poder onipotente. Os Luteranos de fato o negam. Mas o mais ortodoxo deles significam simplesmente que o pecador pode manter-se à margem dos meios através dos quais, ou melhor dizendo, com relação ao que agrada a Deus para exercer Seu poder. Ele pode ausentar-se do lugar da pregação da Palavra, e do uso dos sacramentos. Ou pode pôr-se voluntariamente neste tipo de postura interior da resistência como determina Deus que não exercem seu poder em sua regeneração. A asserção de que a regeneração é um ato de onipotência é, e deve ser, uma negação de que seja um ato de persuasão moral. É uma afirmação de que é «físico» no antigo sentido daquela palavra, como oposto a moral; e que é imediato, em oposição a mediato, ou mediante ou pela verdade. Quando quer na Escritura quer nas obras teológicas se toma a palavra regeneração em seu sentido mais amplo, incluindo a conversão ou o retomo voluntário da alma a Deus, então se diz certamente que é pela Palavra. A restauração da vista ao cego por ordem de Cristo foi um ato de onipotência. Foi imediata. Nada interveio como influência instrumental ou cooperadora entre a volição divina e o efeito. Mas todos os exercícios da faculdade restaurada tiveram lugar mediante e pela luz. E sem luz é impossível a visão. A ressurreição de Lázaro dentre os mortos foi um ato de onipotência. Nada interveio entre a volição e o efeito. O ato de vivificar foi o ato de Deus. Nisto Lázaro foi passivo. Mas em todos os atos de sua restaurada vitalidade ele foi ativo e livre. Segundo o sistema evangélico, é neste sentido que a regeneração é o ato do poder onipotente de Deus. Nada intervém entre Sua volição de que a alma, espiritualmente morta, Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 57 viva, e o efeito desejado. Mas em tudo o que pertence à consciência, a tudo o que precede ou segue à repartição desta nova vida, a alma é ativa e está influenciada pela verdade que age segundo as leis de nossa constituição mental. A regeneração não é um ato no sentido subjetivo do termo. 3. A regeneração, considerada subjetivamente ou vista como um efeito ou mudança produzida na alma, não é um ato. Não é um novo propósito criado por Deus (se essa linguagem for inteligível), ou formado pelo pecador sob sua influência. Tampouco é algum exercício consciente de nenhuma classe. É algo que está por baixo da consciência. Não é uma mudança de substância. 4. Tampouco é, segundo a doutrina da Igreja, uma mudança na substânciada alma. Isto é rejeitado universalmente como maniqueísmo, e incompatível com a natureza do pecado e da santidade. Na verdade, frequentemente se supõe que nada há na alma mais que sua substância e suas ações; e por isso que se a regeneração não é uma mudança nas ações, deve ser uma mudança da substância da alma. Mas esta hipótese não só é arbitrária, mas também está oposta às íntimas convicções de todos os homens. Isto é, dos homens em seu estado normal, quando não estão especulando nem teorizando. Quer dizer, na sentença comum dos homens já foi provado sob as divisões da justiça original e do pecado original. Todos reconhecem, em primeiro lugar, que princípios constitucionais como o amor paterno, os afetos sociais, um sentido da justiça, da piedade, etc., são estados imanentes da alma que não podem ser separados em sua essência nem em suas ações. O mesmo sucede com as disposições, sejam amistosas ou inamistosas. O refinamento do gosto e do sentimento devido à educação e à cultura, não é uma mudança na essência da mente. Não se pode razoavelmente negar que um estado de ânimo produzido pela cultura, pode ser produzido pela vontade de Deus. O que é verdade em todos os outros departamentos de nossa vida Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 58 interior, é verdade de nossa natureza moral e religiosa. Além das ações e estados que se revelam na consciência, há estados permanentes, ou disposições, princípios ou hábitos como são chamados distintamente, que constituem o caráter e lhe dão estabilidade, e que são a causa próxima e determinante de por que nossos exercícios voluntários e estados conscientes são o que são. Isto é o que a Bíblia chama coração, que tem a mesma relação com todos os nossos atos que a natureza de uma árvore, como boa ou má, com o caráter de seu fruto. Uma boa árvore é conhecida como boa se o fruto for bom. Mas a bondade do fruto não determina a bondade da árvore, mas o contrário. Da mesma maneira, não são as boas ações as que fazem bom o homem; a bondade do homem decide o caráter de seus atos. É uma nova vida. 5. Os cristãos evangélicos, se bem que negam que a regeneração seja uma mudança na essência ou nos atos da alma, declaram que é, na linguagem da Escritura, «uma vivificação», uma ζωοποιεῖν (zöopoiein), uma comunicação de um novo princípio de vida. É difícil, talvez impossível, definir o que é a vida. Mas cada homem está familiarizado com suas manifestações. Ele vê e conhece a diferença entre morte e vida, entre uma planta morta e uma planta ou animal vivo. E, portanto, quando a Bíblia nos diz que na regeneração, Deus dá uma nova forma de vida para a alma, a linguagem é tão inteligível como a linguagem humana pode ser com relação a tal assunto. Sabemos que quando um homem está morto quanto a seu corpo, nem vê, nem sente, nem age. Os objetos suscetíveis de operar nos sentidos dos viventes não fazem impressão alguma nele. Não despertam nenhum sentimento correspondente, nem suscitam atividade alguma. Os mortos são insensíveis e impotentes. Quando as Escrituras afirmam que os homens estão espiritualmente mortos, não negam que tenham vida física, intelectual, social ou moral. Admitem que os objetos dos sentidos, as verdades da razão, nossas relações sociais e obrigações morais, são assimiladas mais ou menos Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 59 corretamente; não deixam de despertar os sentimentos e de estimular à ação. Mas há uma classe mais alta de objetos que esta, e que a Bíblia chama «As coisas de Deus», «As coisas do Espírito», «As coisas que pertencem a salvação». Estas coisas, embora intelectualmente apreendidas tal como se apresentam a nossas faculdades cognitivas, não são espiritualmente discernidas pelo homem irregenerado. Um objeto belo na natureza na arte pode ser apropriadamente apreendido como objeto da visão por um homem não cultivado, que não tem percepção de sua excelência estética, nem sentimento correspondente de deleite em sua contemplação. O mesmo sucede com o homem irregenerado. Ele pode ter um conhecimento intelectual dos fatos e das doutrinas da Bíblia, mas nenhum discernimento espiritual de sua excelência, nem deleite nisso. O próprio Cristo, tal como é apresentado nas Escrituras, é para um sem beleza nem atrativo para que O desejemos; para outro Ele é distinguido entre dez mil e o supremamente atraente; «Deus manifestado em carne», a Quem é impossível não adorar, amar e obedecer. Assim, esta nova vida se manifesta em novas concepções de Deus, de Cristo, do pecado, da santidade, do mundo, do evangelho, e da vida vindoura; em resumo, de todas aquelas verdades que Deus revelou como necessárias para a salvação. Esta iluminação espiritual é tão importante e tão necessária e um efeito tão imediato da regeneração, que o conhecimento espiritual não é só exibido na Bíblia como o fim da regeneração (Col 3:10; 1Tim 2:4), mas toda a conversão (que é efeito da regeneração) é resumida em conhecimento. Paulo descreve sua conversão como consistente em Cristo revelar-Se a ele (Gl 1:16); e as Escrituras fazem com que toda religião, e inclusive a vida eterna, seja uma forma de conhecimento. Paulo renunciou a tudo pela excelência do conhecimento de Cristo (Fp 3:8), e nosso Senhor diz que o conhecimento de Si mesmo e do Pai é a vida eterna. (Jo 17:8). Todo o processo da salvação é descrito como uma translação do reino das trevas ao reino da luz. Por isso, não devemos nos assombrar de que os antigos chamassem à regeneração φωτισμός (phötismos), iluminação. Se um cego de Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 60 nascimento fosse repentinamente restaurado à vista, sobrevir-lhe-ia tal inundação de conhecimento e deleite, que bem poderia pensar que a vida consiste em ver. Assim os escritores do Novo Testamento expõem a mudança conseguinte à regeneração, a abertura dos olhos à certeza, glória e excelência das coisas divinas, e especialmente da revelação de Deus na pessoa de Seu Filho, como incluindo quase tudo o que pertence à vida espiritual. Relacionada de maneira inseparável com este conhecimento e incluída no mesmo está a fé, em todas as formas e exercícios nos quais as verdades espirituais são seus objetos. O deleite nas coisas assim reveladas é a necessária consequência da iluminação espiritual; e com o deleite vêm a satisfação e a paz, a elevação acima do mundo, ou uma mentalidade espiritual, e tal senso da importância das coisas que não se veem e eternas, que todas as energias da alma renovada se dedicam (ou se sabe que deveriam dedicar-se) alcançá-las para si e para outros. Esta é uma das formas em que a Bíblia expõe a doutrina da regeneração. É ressuscitar a alma morta à vida espiritual. E esta vida espiritual se desenvolve ou manifesta justo como qualquer outra forma de vida, em todos os exercícios apropriados à sua natureza. É um novo nascimento. A mesma doutrina a respeito deste tema é ensinada em outras palavras quando se diz que a regeneração é um novo nascimento. Ao nascer, a criança entra num novo estado de existência. O nascimento não é seu próprio ato. É dado à luz. Vem de um estado de escuridão, na qual os objetos adaptados à sua própria natureza não podem agir sobre o mesmo ou despertar suas atividades. Logo que entra no mundo todas as suas faculdades despertam; vê, sente e ouve, e pouco a pouco se desdobra todas as suas faculdades como ser racional e moral, assim como ser físico. As Escrituras ensinam que é assim na regeneração. A alma entra num novo estado. Introduz-se num mundo novo. Uma classe inteira de objetos antes desconhecidos ou infravalorizados lhe são Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 61 revelados, e exerce sobre ele sua adequada influência. As “coisas do Espírito” se convertem nos principais objetos de desejo e busca, e todas as energias da alma recém-nascida se dirigem para o espiritual, diferente do visível e temporal.Esta representação está de acordo com a doutrina evangélica sobre este tema. Não é compatível com qualquer das falsas teorias da regeneração, que o que se refere a regenerar-se como próprio ato do pecador, como uma mera mudança de objeto, ou como um processo gradual da cultura moral. Um novo coração. Outro modo em que se expõe esta doutrina encontra-se naquelas passagens em que se mostra a Deus dando um novo coração a Seu povo. Na escritura o coração é aquilo que pensa, sente, quer e age. É a alma, o eu. Um novo coração, portanto, é um novo eu, um novo homem. Implica uma mudança de todo o caráter. É uma nova natureza. Do coração procedem todos os exercícios conscientes, voluntários, morais. Por isso, uma mudança de coração é uma mudança que precede aqueles exercícios e determina o caráter dos mesmos. Um novo coração é o que é a bondade da árvore na parábola de nosso Senhor. Portanto, na regeneração há a comunicação de uma nova vida à alma; o homem é sujeito de um novo nascimento; recebe uma nova natureza ou um novo coração, e vem a ser nova criação. Porquanto a mudança não tem lugar nem na substância nem nos meros exercícios da alma, mas naquelas disposições, princípios, gostos ou hábitos imanentes que subjazem a todos os exercícios conscientes, e que determinam o caráter do homem e de todas as suas ações. Toda a alma é objeto desta mudança 6. De acordo com a doutrina evangélica não é pela exclusão do intelecto nem é só pela vontade, quer seja em sua mais ampla mudança em questão. Isto é evidente: Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 62 (1.) Porque a alma é uma unidade, e é assim reconhecida na Escritura. Suas faculdades não são tão dissociadas que uma pode ser boa e outra má, uma salva e outra perdida, uma ativa na esfera da moral e a religião e a outra inativa. Em todos os exercícios como a inteligência, os sentimentos, a vontade e a consciência, ou consciência moral, são necessariamente envolvidos. (2.) Na descrição desta obra todas as faculdades da alma se representam como afetadas. A mente se ilumina, os olhos do entendimento se abrem, o coração se renova, a vontade é vencida, ou, o homem é feito disposto. (3.) Quando Lázaro voltou à vida, não era um membro do corpo, ou uma faculdade que recebeu a influência vivificante. Não foi o coração que se pôs em marcha, o cérebro e os pulmões sendo restaurados por sua ação. Era o homem inteiro que se fez com vida. E é a alma inteira que é regenerada. (4.) Isto é uma questão adicional dos efeitos atribuídos à regeneração. Estes efeitos não se limitam a um departamento de nossa natureza. A regeneração assegura conhecimento correto, assim como sentir-se bem; e o correto sentimento não é o efeito do conhecimento correto, nem é correto conhecimento do efeito de sentir-se correto. Os dois são inseparáveis dos efeitos de uma obra que afeta a toda a alma. (5). Quando nosso Senhor ensina que a árvore deve ser boa para que a fruta seja boa, não foi uma só parte da árvore que deve ser mudado, mas toda a árvore. Da mesma maneira é a alma, no centro e unidade de sua vida, que é o objeto desse poder vivificante do Espírito Santo, pelo qual se converte numa nova criatura. A doutrina de que a regeneração é uma mudança que afeta só uma das faculdades da alma tem seu fundamento completamente fora das Escrituras. É simplesmente uma inferência a partir de uma teoria psicológica particular, e não tem autoridade em teologia. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 63 § 4. Objeções à doutrina evangélica. As mesmas objeções que se enfatizam contra as outras doutrinas da graça se apressam contra a perspectiva Agostiniana da natureza da regeneração. Estas objeções são de três classes. A negação do sobrenaturalismo. 1. A primeira classe de objeções se baseia na negação do Teísmo, ou ao menos na negação da doutrina escriturística da relação de Deus com o mundo. É uma hipótese comum a maior parte das formas da moderna filosofia que a única atividade do Ser Supremo (se a pessoal ou impessoal) é segundo a lei. É ordenada, uniforme, e em, com e por meio de segundas causas, se são admitidas tais causas. Tudo é natural e nada sobrenatural, seja no mundo exterior ou na esfera das coisas espirituais. Não pode haver criação ex-nihilo, nenhum milagre, nenhuma revelação imediata, nem inspiração no sentido da igreja desse termo; nenhuma obra sobrenatural no coração, e, portanto, não há regeneração no sentido de uma operação imediata de um poder onipotente na alma. Aqueles que se separam de seus princípios até o ponto de admitir que a pessoa de Cristo é sobrenatural em sua origem sustentam que o sobrenatural torna-se natural nEle, e que dEle em diante a difusão da vida espiritual é um processo regular de desenvolvimento, como uma simplicidade natural como o desenvolvimento da humanidade desde Adão através de toda sua posteridade. Trata-se de uma teoria filosófica. Não tem autoridade para os cristãos. E como é contrária ao ensino expresso das Escrituras, não pode ser adotada por aqueles que as reconhecem como a norma infalível de fé e prática. Porquanto contradiz as convicções morais e religiosas que surgem da constituição de nossa natureza, tem que ser de uma em todas suas tendências, e pode ser adotada só por aqueles que sacrificam sua vida interior à especulação. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 64 A confiança em falsas teorias psicológicas. 2. Uma segunda classe de objeções se baseiam em certas teorias psicológicas do livre-arbítrio, da natureza da alma e das condições da obrigação moral. Nenhuma teoria a respeito desta nem de outra questão tem autoridade, exceto aquelas que subjazem aos fatos e doutrinas da Escritura e que estão necessariamente assumidas nelas. Se qualquer teoria ensinar que a capacidade plenária é essencial para o livre-arbítrio, que Deus não pode controlar com segurança os atos dos agentes livres sem destruir sua liberdade, ou que os atos livres não se podem prever, predizer, ou predestinar, então tal teoria deve ser falsa se a Escrituras afirmarem fatos que implicam o contrário. Se uma teoria ensina que os homens são responsáveis unicamente dos atos da vontade, sob seu próprio controle, essa teoria deve ser rejeitada se a Bíblia ensina que somos responsáveis pelos estados da mente sobre os quais a vontade não tem poder direto. Os fatos da doutrina evangélica da regeneração, como se tem dito, contradizem as teorias em que os argumentos dos Remonstrantes, Pelagianos, e outros contra essa doutrina repousam, e portanto as teorias devem compartilhar o destino de toda doutrina que se contradiz com os fatos estabelecidos. Isto foi demonstrado vez após vez em diferentes épocas da Igreja. Os princípios envolvidos em tais objeções se discutiram nas páginas anteriores, e não precisam ser novamente considerados. Objeções baseadas na perfeição divina. 3. Uma terceira classe de objeções se baseia na suposta inconsistência desta doutrina com a perfeição moral de Deus. Se todos os homens estão mortos em pecado, carentes da capacidade de restaurar-se a si mesmos à vida, então não só é injusto que sejam condenados, mas também incompatível com a divina retidão que Deus exerça Seu poder onipotente na regeneração de alguns, conquanto deixa outros perecerem. Diz-se que a justiça demanda que todos tenham a mesma oportunidade; Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 65 que todos tenham, por natureza ou por graça, a capacidade de obter sua própria salvação. É evidente que estas objeções não militam de maneira peculiar contra o sistema Agostiniano. São enfatizadas pelos ateus contra o Teísmo. Se há um Deus pessoal de poder infinito, por que permite que o pecado e a desgraça tenham tal supremacia sobre a terra; por que o bem e o mal estão tão desigualmente distribuídos, e por que é a distribuição tão arbitrária? Os deístasfazem a mesma objeção contra a autoridade da Bíblia. Não podem recebê-la como a Palavra de Deus, visto que representa o Criador e Governador do mundo como colocando homens em circunstâncias que garantam de algum modo a universalidade do pecado, e logo os castiga com severidade inexorável até por suas palavras ociosas. Também está claro que os diferentes sistemas antiagostinianos não oferecem um verdadeiro alívio perante estas dificuldades. Admitindo que a regeneração fosse a ação própria do pecador; admitindo que cada homem tivesse todo o conhecimento e toda a capacidade necessária para alcançar sua salvação, continua sendo certo que poucos se salvam, e que Deus não Se interpõe para impedir que a grande maioria de adultos no atual estado do mundo pereçam em seus pecados. Os Agostinianos não negam estas dificuldades. Só mantêm que não são peculiares de seu sistema; e repousam satisfeitos com a solução que lhes dá a Escritura. Esta solução concorda com todos os fatos da consciência e da experiência, até onde alcançam a consciência e a experiência. A Bíblia ensina que o homem foi criado santo; que por sua transgressão voluntária da lei divina ele apostatou de Deus; que como consequência desta apostasia todos os homens vêm ao mundo num estado de morte espiritual, tão culpados e contaminados; que Deus não exerce influência para levá-los ao pecado, mas pelo contrário, mediante Sua verdade, Sua providência, e por Seu Espírito exerce toda influência sobre eles que deve mover os seres racionais a arrepender-se e buscar a Sua misericórdia perdoadora e a graça santificante; que todos aqueles Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 66 que sincera e fielmente buscam a reconciliação com Deus no caminho de Seu mandato Ele realmente salva; que de Sua graça soberana Ele, no exercício de Seu grande poder, renova e santifica uma multidão que nenhum homem pode contar, aqueles que de outro modo teriam seguido em seus pecados. Com estas representações da Escritura tudo dentro da esfera de nosso conhecimento está de acordo. A consciência e a experiência dão testemunho do fato que somos uma raça apóstata; que todos os homens são pecadores, e que, sendo pecadores, perdemos todo direito ao favor de Deus; que, ao continuar no pecado e na rejeição às propostas da misericórdia os homens agem voluntariamente, seguindo os desejos de seus corações. A consciência de cada homem, além disso, ensina-lhe que ele nunca procurou a salvação de sua alma com a sinceridade e a perseverança com que os homens procuram as coisas do mundo, e contudo falhou em seus esforços. Cada homem que deixa de alcançar a vida eterna sabe que a responsabilidade é dele. Pelo contrário, a experiência de cada crente é um testemunho para ele que é de Deus e não de si mesmo que está em Cristo (1Co 1:30); cada crente sabe que se Deus o tivesse deixado a si mesmo, teria permanecido em incredulidade e pecado. Por que Deus intervém para salvar a um, e não a outro, quando todos são igualmente imerecedores; por que as coisas de Deus são reveladas aos Filhos, e escondidas dos sábios e prudentes, só pode receber resposta na linguagem de nosso Senhor: «Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado» (Mt 11:26). As mais populares e comuns objeções de que a doutrina agostiniana da regeneração leva negligenciar os meios da graça, «a esperar o tempo de Deus, à indiferença ou ao desespero; que é inconsequente com as exortações e mandamentos dirigidos aos pecadores a que se arrependam e creiam, e incompatível com a responsabilidade moral, já foram consideradas várias vezes. Será suficiente repetir mais uma vez que estas objeções estão baseadas sobre a hipótese de que a incapacidade, inclusive quando surge de nossa própria pecaminosidade, é incompatível com a obrigação. Além disso, a tendência natural e real da sensação de Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 67 impotência sob uma carga de mal é a de levar a uma fervorosa e importuna solicitude de alívio perante Aquele que é capaz de outorgá-la, e cuja outorga oferece. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 68 CAPÍTULO XVI A FÉ § 1. Observações preliminares. O primeiro exercício consciente da alma renovada é a fé; assim como o primeiro exercício consciente de um cego de nascimento cujos olhos foram abertos é a visão. O exercício da visão de um homem é sem dúvida a participação de novas sensações e tantas emoções que ele não pode determinar que parte desta nova experiência vem através dos olhos, e a quantidade de outras fontes. Assim é com o crente. Logo que seus olhos são abertos pela renovação do Espírito Santo, está num mundo novo. As coisas velhas passaram, eis que todas são feitas novas. A apreensão das «coisas de Deus» como verdadeiras encontra-se na base de todos os exercícios da alma renovada. A discussão quanto a se a fé precede ao arrependimento, ou o arrependimento à fé não pode dar-se se está de acordo no significado das palavras. A não ser que a fé se limite a alguns de seus exercícios especiais, não se pode duvidar de que na ordem natural deve preceder ao arrependimento. O arrependimento é o voltar-se da alma do pecado para Deus, e a não ser que seja produzido por uma apreensão crente da verdade não é sequer um ato racional. Porquanto nas Escrituras se atribui tanta importância à fé, porquanto todas as promessas de Deus se dirigem aos crentes, e porquanto todos os exercícios conscientes da vida espiritual envolvem o exercício da fé, sem a qual são impossíveis, não se pode sobrevalorizar a importância desta graça. Para o teólogo e para o cristão prático é indispensável ter ideias claras e corretas sobre esta questão, de especial dificuldade. Dificuldade que surge em parte pela natureza da questão; em parte pelo fato de que o uso deu ao termo fé tantos significados diferentes; em parte pelas definições arbitrárias que lhe deram filósofos e teólogos; e em parte pela grande diversidade de aspectos sob a qual é apresentada na Palavra de Deus. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 69 A pergunta O que é a Fé?, é muito ampla. Num ponto de vista é uma questão metafísica. Qual é o nome psicológico do ato ou estado da mente que designamos fé, ou crença? Neste aspecto, a discussão concerne ao filósofo tanto como ao teólogo. Em segundo lugar, a fé pode ser vista quanto ao seu exercício em todo o âmbito da religião e a moralidade. Em terceiro lugar, pode-se considerar como uma graça cristã, o fruto do Espírito, quer dizer, os exercícios da fé que são próprios ao regenerado povo de Deus. Isto é o que se entende pela fé salvadora. Em quarto lugar, pode ser visto em sua relação com a justificação, santificação e vida santa, ou, quanto aos exercícios especiais da fé que se requer como condições necessárias da aceitação do pecador para com Deus, ou essenciais à santidade de coração e vida. § 2. A natureza psicológica da fé. A fé, no sentido mais amplo do termo, é assentimento à verdade, ou a persuasão da mente de que algo é certo. Em linguagem popular comum dizemos que cremos naquilo que consideramos certo. O elemento primário da fé é confiança. A palavra hebraica אָמַן significa sustentar, manter. No Nifal,* ser firme, e, num sentido moral, ser digno de confiança. No Hifil,* considerar como sólido, ou de confiança, depositar confiança ou confiar em. De igual maneira a palavra grega πιστεύω [pisteo] (de πίστις [pistis] e essa de πείθω [peito], persuadir), significa confiar, quer dizer, ser convencido de que uma pessoa ou coisa é de confiança. Daí o epíteto πιστός [pistos] aplica-se a todo aquele que é e que mostra a si mesmo ser digno de confiança. Em latim credere (de ahí nuestra palabra crédito) tiene el mismo significado. En asuntos mercantiles significa prestar, confiar en; y entonces, en general,ejercer confianza en. “Crede mihi,” confia em mim, confia em minha palavra. * Forma do verbo hebraico que tem sentido reflexo e, muito frequentemente, passivo. (N. do T.) * O Hifil em geral expressa a ação “causativa” do Qal. (N. do T.) Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 70 Fides (de fido, e este de πείθω [peito]), é também a confiança, a confiança exercida com relação a qualquer pessoa ou coisa, e logo a disposição, ou a virtude que motiva a confiança; logo da promessa, declaração, ou compromisso que é a base interior da confiança. Em palavras afins, fidens, fidelis, fiducia, a mesma ideia é proeminente. A palavra alemã “Glaube” tem o mesmo significado geral. É definida por Heinsius (Wörterbuch): “der Zustand des Gemüthes, da man eine Sache für wahr hält und sich darauf verlässt,” quer dizer, “esse estado de ânimo em que um homem recebe e se baseia numa coisa como a verdade.” A palavra inglesa “faith” diz-se que é do anglo-saxão “fægan” à aliança. É esse estado de ânimo que requer uma aliança ou supõe, quer dizer, é a confiança numa pessoa ou coisa de confiança. “Crer,” é definida pelo latim “credere, fidem dare sive habere.” “Os etimologistas,” diz Richardson, “não tentam levar em conta esta palavra importante: é, sem dúvida, formado em Dut. Leven; Ger. Leben; A.-S. Lif-ian; Goth. Liban, viver ou estar vivo, habitar. Live ou leve, ser-o bi-live ou leve, são utilizados indistintamente pelos escritores antigos, quer seja para denotar vivere o credere. . . . . Crer, então, é viver por ou de acordo com, ficar fiel a; guiar, dirigir, regular, governar ou dirigir a vida por; tomar, aceitar, assumir ou adotar como regra de vida; e, em consequência, pensar, considerar, ou julgar correto; estar firmemente convencido de, dar crédito a; confiar, ou crer digno de confiança; ter ou dar fé ou confiança; entregar em confiança, pensar ou considerar fiel.” A ideia primária da fé é confiança De tudo isto se desprende que a ideia principal da fé é confiança. A ideia primária de fato é aquilo que é digno de confiança; aquilo que sustenta nossas expectativas, que não frustra, porque realmente é aquilo que se supõe ou que se declara ser. Opõe-se ao enganoso, o falso, o irreal, o vazio e o carente de valor. Considerar algo como verdadeiro é Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 71 considerá-lo como digno de confiança, como sendo o que declara ser. Portanto, fé, no sentido global e legítimo da palavra, é confiança. De acordo com esta ideia geral da fé, Agostinho68 diz: “Credere, aliud est nihil, quam cogitare cum assensione.” Assim, também, Reid69 diz: “A crença admite todos os graus, do menor indício à maior segurança. . . . . Há muitas operações da mente nas quais. . . . encontramo-nos com a crença de ser um ingrediente essencial. . . . . A crença é um ingrediente na consciência, na percepção, e na lembrança. . . . . Damos o nome da evidência a tudo o que é um motivo de crença.. . . . O que esta evidência é, é mais fácil sentir que descrever. . . . . As ocasiões comuns da vida nos levam a distinguir evidência em diferentes tipos. . . . tais como a evidência dos sentidos, a evidência da memória, a evidência da consciência, a evidência do testemunho, a evidência dos axiomas, a evidência do raciocínio. . . . . Parecem-me estar de acordo somente nisso, que estão dotadas pela natureza para produzir a crença na mente humana.” O sentido mais restringido da palavra. Há, entretanto, na maioria dos casos uma grande diferença entre o significado geral de uma palavra e seu significado especial e característico. Embora, portanto, haja um elemento de crença em todos os nossos conhecimentos, não há uma diferença importante entre o que é estrita e propriamente chamado fé, e os estados ou os atos da mente que designamos como vista ou percepção, intuição, opiniões, conclusões, ou juízos apodícticos. O que essa diferença característica é, é o ponto a ser determinado. Há modos de declaração sobre este tema atual entre uma certa classe de filósofos e teólogos, que dificilmente se pode considerar como a definição da fé. Tomam a palavra fora de seu significado comum e estabelecido, ou arbitrariamente o limitam a uma esfera especial de 68 De Prædestinatioe Sanctorum [II.], 5; Works, edit. Benedictines, Paris, 1838, vol. x. p. 1849 b. 69 On the Intellectual Powers, Essay II. ch. xx.; Works, Edinburgh, 1849, pp. 237 b, 328 a, b. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 72 nossas operações mentais. Assim Morell70 diz: “A fé é a intuição de verdades eternas.” Mas verdades eternas, não são os únicos objetos da fé, nem é a intuição a única forma de compreender a verdade que é da natureza da crença. As mesmas objeções têm contra a afirmação de que “A fé é o órgão do sobrenatural e divino;” ou, como o expressa Eschenmayer:71 “Ein vom Denken, Fühlen und Wollen verschiedenes, eigenthümliches Organ für das Ewige und Heilige; a special organ for the eternal and the holy.” O sobrenatural e o divino, entretanto, não são os objetos exclusivos, inclusive da fé religiosa. É pela fé que sabemos que o universo foi feito pela palavra de Deus; foi pela fé que Noé preparou a arca, e Abraão, sendo chamado por Deus, saiu sem saber aonde ia. Os objetos da fé nestes casos não são o que se entende por “verdades eternas.” É, além disso, uma hipótese arbitrária que a fé é “um órgão especial,” inclusive quando as coisas sobrenaturais e divinas são seu objeto. Nossa natureza se adapta à recepção de todas as classes de verdades das quais podemos ter alguma ideia. Mas não é necessário assumir um órgão especial para as verdades históricas, um órgão especial para as verdades científicas, e outro para as verdades da revelação geral, e outro para “o eterno e o sagrado.” Deus nos constituiu capazes de crer, e o complexo estado da mente participar no ato de fé é, é óbvio, diferentes segundo a natureza da verdade crida, e a natureza das provas em que se fundamenta nossa fé. Mas isto não implica necessariamente a assunção de um órgão distinto para cada tipo de verdade. 70 Philosophy of Religion. 71 Die einfachste Dogmatik, Sec. 338; Tübingen, 1826, p. 376. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 73 A fé não deve ser considerada simplesmente como uma graça cristã. Não menos insatisfatórias são aquelas descrições da fé que a consideram só em seu caráter de graça cristã e salvadora. Delitzsch, por exemplo,72 descreve a fé como o ato mais central de nosso ser; o retorno a Deus, o sair de nossa vida interior para Ele. “Este anelo de Deus é gratuito, misericordioso, como sua própria Palavra o declara, um anelo, estendendo-se, e captando-o; este anelo despido, desinteressado, sente-se satisfeito com nada mais que a graça prometida por Deus; este afã, absorvendo cada raio de luz que procede do reconciliador amor de Deus; esta convincente apropriação de segurança e o apego à palavra de graça; isto é fé. De acordo com sua natureza, é a pura e correlata receptividade da palavra da promessa, um meio de chegar-se mais a Deus, que, como a própria palavra, é estabelecida através da distância de Deus como consequência do pecado; porque a fé deve confiar na palavra, apesar de toda falta de compreensão, falta de visão, falta de experiência. Nenhum actus reflexi experimental pertence à natureza da fé. É, de acordo com sua natureza, actia directa, ou seja, fiducia supplex.” Tudo isto, sem dúvida, é verdade do crente. Ele faz assim muito tempo depois de Deus, e seu caso, o testemunho de seu amor, e se agarra a Suas promessas da graça; mas a fé tem um alcance mais amplo que este. Há exercícios da fé não incluídos nesta descrição, registrados na Escritura, e especialmente no décimo primeiro capítulo da Epístola aos Hebreus.Erdmann73 diz que a fé religiosa, a fé em que as Escrituras fazem tanta insistência, é, “Bewusstseyn der Versöhnung mit Gott, a consciência de reconciliação com Deus”. Insiste em que a fé não se pode separar de seu conteúdo. Não é o homem que mantém tal ou qual como sendo verdade, que é um crente; mas o homem que está convencido de uma verdade específica, ou seja, que se reconciliou com Deus. Chamar a 72 Biblical Psychology, p. 174. 73 Vorlesungen über Glauben und Wissen, von Johann Eduard Erdmann, Berlin, 1837, p. 30. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 74 fé uma consciência não é uma definição de sua natureza. E limitá-la a uma consciência da reconciliação com Deus é contrária ao uso da Escritura e a teologia. Definições da fé baseadas em sua natureza subjetiva. As mais comuns e geralmente recebidas definições da fé, talvez poderão ser reduzidas a três classes, todas com a ideia geral da persuasão da verdade. Entretanto, alguns buscam o caráter distintivo da fé em seu caráter subjetivo, outros, na natureza de seu objeto; outros, na natureza da evidência, ou na base sobre a qual descansa. A fé é distinguida da opinião e do conhecimento. À primeira destas classes pertencem as seguintes definições: A fé ou crença diz-se que é uma convicção da verdade mais forte que a opinião, e mais fraca que o conhecimento. Os metafísicos dividem os objetos de nossos conhecimentos em: o possível, o real e o necessário. Quanto ao meramente possível podemos formar só conjetura ou opiniões, mais ou menos plausíveis ou prováveis. Com relação às coisas que a mente com maior ou menos confiança considera como certas, embora não possa justificar que a confiança a si mesmo ou a outros, quer dizer, não podem demonstrar a certeza do objeto, diz-se crer. O que é perfeitamente seguro e pode demonstrar que é verdade com o fim de coagir à convicção, diz-se saber. Assim, Locke define a fé como o assentimento da mente às proposições que são provavelmente, mas certamente não é verdade. Bailey74 diz: “Proponho confinar à crença [ou] à fé em primeiro lugar, ao efeito sobre a mente das premissas no que se denomina raciocínio provável, ou o que chamei o raciocínio dos contingentes — numa palavra as premissas em todo raciocínio, mas o que é demonstrativo; e em segundo lugar, o estado de manter verdade quando esse estado, longe de ser o efeito de todos as premissas 74 Letters on the Philosophy of the Human Mind, London, 1855, pp. 75, 76. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 75 discernidas pela mente, é dissociado de todas as provas.” Crer é admitir uma coisa como verdade, segundo Kant, em bases suficientes subjetivamente, insuficientes objetivamente. Ou, como mais amplamente dito: “Manter como verdade, ou a validade subjetiva de um juízo com relação à convicção (que é, ao mesmo tempo, objetivamente válida) tem os três graus seguintes: opinião, crença e conhecimento. A opinião é um juízo consciente insuficiente, subjetivamente assim como objetivamente. A crença é subjetivamente suficiente, mas é reconhecido como objetivamente insuficiente. O conhecimento é tão subjetivo como objetivamente suficiente. A suficiência subjetiva chama-se convicção (para mim); a suficiência objetiva se denomina certeza (para todos).”75 Erdmann76 diz: “Man versteht unter Glauben eine jede Gewissheit, die geringer ist als das Wissen, und etwa stärker ist als ein blesses Meinen oder Fürmöglichhalten (z. B. ich glaube, dass es heute regnen wird).” “Pela fé se entende qualquer persuasão que é mais fraca que o conhecimento, mas um pouco mais forte que uma simples consideração possível ou provável como, por exemplo, creio que vai chover hoje.” Isto ele dá como significado usualmente aceito da palavra, embora totalmente repudia como uma definição da fé religiosa. Insiste-se em apoio desta definição de fé que com relação a tudo o que não estamos absolutamente seguros, e entretanto, estamos persuadidos ou convencidos de sua verdade, nós dizemos que cremos. Assim, com relação às coisas lembradas, se a lembrança for confusa e incerta, dizemos o que pensamos, por exemplo, pensamos que vimos uma determinada pessoa num momento e lugar determinados; não estamos seguros, mas tal é nossa impressão. Se nossa persuasão do fato for mais forte, dizemos que cremos. Se tivermos, e podemos ter, sem dúvida, dizemos que conhecemos. De igual maneira o testemunho de nossos sentidos pode ser tão fraco quanto a produzir só uma 75 Meiklejohn’s Translation of Critic of Pure Reason, London, 1855, p. 498. 76 Glauben und Wissen, Berlin, 1837, p. 29. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 76 probabilidade de que a coisa é tal como aparece; se mais clara, produz uma crença mais ou menos decidida; e se tão clara quanto a evitar toda dúvida, o efeito é conhecimento. Se vemos uma pessoa à distância, e estamos completamente incertos de quem é, só podemos dizer que pensamos que é alguém a quem conhecemos. Se essa persuasão faz-se mais forte, dizemos, cremos que é ele. Se perfeitamente certos, dizemos, o sabemos. Em todos estes casos a única diferença entre opinião, crença e conhecimento, é sua força relativa. Os objetos são os mesmos, sua relação com a mente é a mesma, e a base ou evidência em que separadamente descansam é da própria natureza. Diz-se que seria incorreto afirmar: “Cremos que dormíamos em nossa casa ontem à noite;” se completamente seguros disso. Se uma testemunha num tribunal de justiça simplesmente diz, “creio que eu estava num lugar determinado num momento dado,” seu testemunho não teria nenhum valor. Ele deve ser capaz de dizer que está seguro do fato — que ele sabe. Objeções a esta definição. Desta definição da fé, pode-se notar: 1. Que o significado que se atribui à palavra é, sem dúvida legítimo, sustentado pelo uso estabelecido. A estados de ânimo expressos pelas palavras, creio que uma coisa é verdade; eu acredito; sei, distinguem-se uns de outros, simplesmente pelos distintos graus de certeza que entra neles, respectivamente. A base provável deste uso da palavra crer, é que há mais do elemento de confiança (ou um dar voluntariamente evidência a uma maior influência na mente que da necessidade que lhe pertence), que se manifesta em nossa consciência, que se expressa dizendo que pensamos, ou, que o sabemos. Seja como for, não se pode negar que a palavra crença com frequência expressa um grau de convicção maior que a opinião e menos que o conhecimento. 2. Mas isto não é a característica distintiva da fé, ou sua diferença. Há exercícios de fé em que esta incerteza não entra. Algumas das mais Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 77 fortes convicções de que a mente é capaz são crenças. Inclusive nosso testemunho da veracidade de consciência, o fundamento de todas as outras convicções, é da natureza da fé. Assim as verdades primitivas que são, e devem ser assumidas em todas as nossas investigações e argumentos, são crenças. São tomadas na confiança. Não podem ser provadas. Se ninguém as negar, não há nada mais que dizer. Ele não pode ser convencido. Sir William Hamilton 77 diz: “Santo Agostinho diz com precisão: ‘Sabemos o que se apoia na razão; cremos o que se baseia na autoridade.’ Mas a própria razão deve repousar enfim na autoridade; porque os dados originais da razão não descansam na razão, mas são necessariamente aceitas em razão da autoridade do que está além de si mesmo. Estes dados são, portanto, em rígida propriedade, crenças ou confianças. Assim é que, em última instância, devemos, forçosamente admitir filosoficamente, que a crença é a condição primordial da razão, e não a razão o fundamento último da crença. Vemo-nos obrigados a render o soberbo Intellige ut credas de Abelardo, que nos contentar como humilde Crede ut intelligas de Anselmo.” O mesmo ocorre em outras esferas. O efeito sobre a mente produzida pelo testemunho humano se reconhece universalmente como fé. Se esse testemunho for insuficiente não se opõe à dúvida; mas pode ser tão forte para fazer impossível toda dúvida. Nenhum homem são duvida da existência de cidades como Londres e Paris. Mas à maioria dos homens essa existência não é uma questão de conhecimento quer seja intuitivo ou discursivo. É algo que se dá em confiança, sobre a autoridade de outros; o que tomando em confiança é admitido pelos filósofos, teólogos, e a massa dos homens, como uma forma de fé. Mais uma vez, em alguns estados da mente a convicção moral de um homem da realidade de um estado futuro da recompensa e o castigo é tão forte como sua crença em sua própria existência, e muito mais forte que sua confiança no testemunho de seus sentidos. E entretanto, um estado futuro 77 Reid’s Works; edit. Edinburgh, 1849, note A, § 5, p. 760 b. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 78 de existência não é uma questão de conhecimento. É um objeto de fé, ou uma coisa que se crê. Encontramo-nos em consequência que as Escrituras ensinam que há plena certeza de fé; uma fé que se opõe à possibilidade da dúvida. Paulo diz: “Eu sei em quem tenho crido e estou certo que é poderoso para guardar meu depósito até aquele dia.” (2Tm. 1:12). Como Jó havia dito antes das idades: “Eu sei que o meu Redentor vive.” O apóstolo declara, Hebreus 10:1, fé é um ὑπόστασις e ἐλεγχος, que nenhum termo mais forte poderia ser selecionado para expressar convicção assegurada. O poder, também, que a Bíblia atribui à fé como o princípio controlador de vida, como vencendo o mundo, submetendo reinos, tapando a boca de leões, atenuando a violência do fogo, pondo em fuga os exércitos de estrangeiros, é prova suficiente que não é fraca a persuasão da verdade. Esta definição, portanto, que faz a característica da fé como uma medida de maior confiança que a opinião, mas menos que o conhecimento, não pode considerar-se satisfatória. A fé não é uma convicção voluntária. Uma segunda definição de fé, fundada em sua natureza, é a que faz com que seja “uma convicção voluntária ou persuasão da verdade.” Esta é uma visão muito antiga da questão. Segundo Teodoreto,78 πίστις ἐστὶν ἑκούσιος τῆς ψυχῆς συγκατάθειτις, quer dizer, “um consentimento voluntário da mente.” E Tomás de Aquino diz:79 “Credere est actus intellectus assentientis veritati divinæ ex imperio voluntatis a Deo motæ per gratiam.”80 Ele distingue entre conhecimento e fé mediante a representação do primeiro como a convicção produzida pelo próprio objeto visto intuitiva ou discursivamente (“sicut patet in principiis primis, . . . . vel . . . . sicut patet de conclusionibus”) ser verdade; enquanto no segundo a mente não é o suficientemente movido a assentir 78 Græcarum Affectionum Curatio, sermo. i. edit. Commelinus, Heidelberg(?) 1592, p. 16, lines 11, 12. 79 Summa, II. ii. quæst. ii. art. 9, edit. Cologne, 1640, p. 8 b, of third set. 80 Ibid. quæst. i. art. 4, pp. 3 b, 4 a, of third set. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 79 “ab objecto proprio, sed per quandam electionem, voluntarie declinans in unam partem magis quam in alteram. Et siquidem hæc sit cum dubitatione et formidine alterius partis, erit opinio. Si autem sit cum certitudine absque tali formidine, erit fides.” Esta definição admite distintas explicações. A palavra “voluntário,” se seu significado for determinado pelo amplo sentido da palavra “vontade,” inclui todas as operações da mente não puramente intelectuais. E, portanto, dizer que a fé é um consentimento voluntário quer dizer que a fé não é mais que um assentimento especulativo, um ato da sentença pronunciando uma coisa como verdade, mas inclui o sentimento. Nitsch, portanto, define a fé como um “gefühlsmassiges Erkennen.” “Die Einheit des Gefühls und der Erkenntniss;81 um conhecimento ou a persuasão da verdade junto com o sentimento, — a unidade de sentimento e conhecimento.” Mas se a palavra “vontade for tomada no sentido de poder de livre determinação, então nada é voluntário, que não impliquem o exercício desse poder. Se, neste sentido a fé é voluntária, então devemos ter o poder de crer ou não crer à vontade. Se cremos na verdade, é porque nós mesmos escolhemos ou determinamos recebê-la, e se a rejeitamos, é porque não queremos crer nela. A decisão não está determinada nem pela natureza do objeto, nem pela natureza ou grau da evidência. Às vezes, estes dois significados da palavra voluntário parecem estar combinados pelos que definem a fé como um consentimento voluntário da mente, ou um assentimento do intelecto determinado pela vontade. Isto se desprende do que Tomás de Aquino, por exemplo, diz quando fala da questão quanto a se a fé é uma virtude. Ele argumenta que se a fé é uma virtude, que ele admite que seja, deve incluir o amor, porque o amor é a forma ou princípio de todas as virtudes; e é preciso determinar por si mesmos, porque não pode haver virtude na fé se é o efeito inevitável da evidência ou testemunho. Se for 81 System der Christlichen Lehre, Einl. II. A. § 8. 3, 5th edit. Bonn, 1844, p. 18. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 80 uma virtude, deve incluir um ato de livre determinação; temos que decidir fazer o que temos não o poder para fazê-lo. Observações a esta definição de fé. Esta definição de fé contém muitos elementos de verdade. Em primeiro lugar: é verdade que fé e sentimento com frequência são inseparáveis. Juntos constituem esse estado de ânimo aos que a fé é dada. A percepção de beleza é necessariamente relacionada com a sensação de prazer. Consentimento à verdade moral implica o sentimento de aprovação moral. Da mesma maneira discernimento espiritual (fé como fruto do Espírito) inclui deleite nas coisas do Espírito, não só como verdadeiras, mas também como belas e boas. Esta é a diferença entre uma fé viva e fé morta. Esta é a porção da verdade envolvida na doutrina romana de uma fé formada e sem forma. Fé (assentimento à verdade) relacionados com o amor é fides formata; fé sem amor é fides informis. No entanto, se bem que seja verdade que a fé é com frequência necessariamente relacionada com o sentimento, e, portanto, num sentido do termo, é um assentimento voluntário, entretanto, isto nem sempre é o caso. Se sentimento atende e entra no exercício da fé, depende de seu objeto (ou a coisa que se crê) e a evidência em que está fundada. Quando o objeto da fé é a verdade especulativa, ou algum acontecimento histórico passado ou futuro; ou quando a evidência ou testemunho em que a fé se baseia dirige-se só à compreensão e não à consciência ou à nossa natureza emocional ou religiosa, então a fé não implica sentimento. Cremos que a grande massa dos fatos históricos aos quais assentimos como verdadeiros, simplesmente sobre o testemunho histórico, e sem nenhuma sensação de entrar em, ou necessariamente vinculados a ela. O mesmo é verdade com relação a uma grande parte do conteúdo da Bíblia. Eles, em grande medida, são históricos, ou as predições dos acontecimentos históricos. Quando cremos o que as Escrituras registram a respeito sobre a criação, o dilúvio, a vocação de Abraão, a derrocada das cidades da planície, a Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 81 história de José, e similares, nossa fé não inclui o sentimento. Não é um exercício da vontade em um ou outro sentido dessa palavra. É simplesmente uma convicção racional fundada em evidência suficiente. Pode-se dizer, como diz Tomás de Aquino, que é o amor ou reverência para com Deus que inclina a vontade a crer em tais atos sob a autoridade de Sua palavra. Mas os homens ímpios creem, e não podem deixar de crer neles. Um homem dificilmentepode encontrar que não crê que os israelitas que habitaram no Egito, escaparam da escravidão, e tomaram posse da terra de Canaã. Em segundo lugar, é certo não só que a fé é, em muitos casos, inseparável do sentimento, mas também que o sentimento tem muita influência na determinação de nossa fé. Isto é especialmente verdade quando as verdades morais e religiosas são os objetos da fé. A falta de congenialidade com a verdade produz insensibilidade à evidência pela qual se admite. Nosso Senhor disse aos judeus: “Vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas.” (Jo 10:26). E em outro lugar: “Se alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus.” (Jo 7:17). E o Apóstolo diz daqueles que estão perdidos: “O deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus.” (2Co. 4:4). A verdade estava presente, testificando dela as provas adequadas e abundantes, mas não havia nenhuma suscetibilidade. O defeito foi no órgão da visão, não na falta de luz. As Escrituras se referem de maneira uniforme à incredulidade daqueles que rejeitam o evangelho ao estado de seus corações. Não há dúvida de que todos os verdadeiros filhos de Deus receberam a Cristo como seu Deus e Salvador pela evidência que Ele deu de Seu divino caráter e missão, e que Ele foi rejeitado só pelos não renovados e pelos ímpios, e por causa de sua maldade. Daí a incredulidade é um pecado tão grande. Os homens são condenados porquanto não creem no unigênito Filho de Deus. (Jo 3:18). Tudo isto é verdade. É verdade da fé salvadora. Mas não é certo de todos os tipos inclusive da fé religiosa; quer dizer, da fé que tem a Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 82 verdade religiosa por seu objeto. E, portanto, não pode contribuir para a diferença ou critério para distinguir a fé de outras formas de assentimento à verdade. Há estados de ânimo não só popularmente, mas também corretamente chamado crença, de que não é verdade que o amor ou a congenialidade, é um elemento. Não há tal coisa como a fé morta, ou a ortodoxia. Não há tal coisa como a fé especulativa. Simão o Mago creu. Até os demônios creem. E se nos voltamos a outras que as verdades religiosas, é ainda mais evidente que a fé não é necessariamente um assentimento voluntário da mente. Um homem pode ouvir falar de algo mais repugnante a seus sentimentos, como, por exemplo, do triunfo de um rival. Ele pode em princípio negar-se a crê-lo, mas o testemunho pode ser tão forte para forçar a convicção. Esta convicção é, de comum acordo, a fé ou crença. Não é a vista; não é a intuição; não é uma dedução; é a crença, uma convicção fundada no testemunho. Este tema, quer dizer, a conexão entre fé e sentimento, virá novamente na consideração de outras definições. Em terceiro lugar, se tomarmos a palavra voluntário no sentido de que implica a volição ou a autodeterminação, é ainda mais evidente que a fé não se pode definir como assentimento voluntário. É, de fato, um refrão que um homem convencido, contra sua vontade permanece sem ser convencido. Mas isto é só uma forma popular de expressar a verdade recém-admitida, ou seja, que os sentimentos têm, em muitos casos, grande influência na determinação de nossa fé. Mas, como já se comentou, um homem pode ser obrigado a crer contra sua vontade. Ele pode lutar contra a convicção; ele poderá determinar que não vai crer, e entretanto, a convicção pode ser forçada sobre ele. Napoleão, na batalha de Waterloo, ouve que Grouchy está se aproximando. Ele com prazer o crê. Logo lhe chega o relatório de que o avanço das colunas são prussianos. Isto ele não vai crer. Logo, entretanto, como mensageiro após mensageiro confirma o fato lamentável, vê-se obrigado a crer. Não é certo, portanto, que na fé como fé sempre há, como diz Tomás de Aquino, uma eleição “voluntarie declinans in unam partem magis quam Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 83 in alteram.” Há outra experiência frequente. Com frequência ouvimos os homens dizerem que dariam o mundo se pudessem crer. O moribundo Grócio disse que daria toda a sua aprendizagem pela fé simples de seu servo iletrado. Dizer a um homem que ele pode crer se ele quer é contradizer sua consciência. Ele trata de crer. Ele sinceramente ora por fé, mas não pode exercê-la. É verdade, quanto aos pecadores com relação ao evangelho, que esta incapacidade de crer surge do estado de sua mente. Mas este estado da mente descansa sob a vontade. Não se pode determinar ou mudar o exercício de qualquer poder voluntário. Por estas razões, a definição da fé, quer seja como genérica ou religiosa, como um assentimento voluntário à verdade, deve ser considerado insatisfatório. Definições de fé baseada nos objetos da fé. As definições anteriores se baseiam na natureza assumida subjetiva da fé. A seguinte definição é de um tipo diferente. Baseia-se na natureza de seu objeto. A fé diz-se que é a persuasão da verdade das coisas que não se veem. Esta é uma definição muito antiga e familiar. “Quid est fides,” pergunta Agostinho,82 “nisi credere quod non vides.” E diz Lombard:83 “Fides est virtus qua creduntur quæ non videntur.” Assim, a fé diz-se que é absorvida na visão; e uma fica em contraste com a outra, como quando o apóstolo diz: “Caminhamos por fé, não por vista.” E em Hebreus, capítulo onze, todos os objetos da fé sob o aspecto em que se considera nesse capítulo, incluem-se nas categorias de τὰ ἐλπιζόμενα e τὰ οὐ βλεπόμενα, “o que se espera, e as coisas não se veem.” Esta última inclui a primeira. “Esperamos,” diz o Apóstolo, “o que não vemos.” (Rm 8:25). A palavra ver, neste sentido, pode-se tomar em três sentidos. Em primeiro lugar, em seu sentido literal. Não se diz que cremos no que vemos com nossos olhos. O que vemos sabemos que é verdade. Cremos 82 In Joannis Evangelium Tractatus, XL. 9; Works, edit. Benedictines, Paris, 1837, vol. iii. p. 2088 b. 83 Liber Sententiarum, III. xxiii. B., edit. 1472(?). Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 84 que o planeta Saturno está rodeado por um cinturão, e que Júpiter tem quatro satélites, no testemunho unânime dos astrônomos. Mas se olharmos através de um telescópio e vemos o cinturão de um e os satélites do outro, nossa fé acaba em conhecimento. Cremos que há uma cidade como Roma, e que contém o Coliseu, o Arco de Trajano, e outros monumentos da antiguidade. Se visitarmos essa cidade e vemos estas coisas por nós mesmos, nossa fé converte-se em conhecimento. A convicção não é mais forte num caso que no outro. Estamos tão seguros de que é uma cidade antes de tê-la visto, como se tivéssemos estado ali centenas de vezes. Mas a convicção é de um tipo diferente. Em segundo lugar, a mente diz-se que vê quando percebe um objeto do pensamento como sendo verdade em sua própria luz, ou por seu próprio resplendor. Esta visão mental pode ser imediata ou mediata — quer seja intuitiva ou mediante um processo de prova. Uma criança pode crer que os ângulos de um triângulo juntos equivalem a dois ângulos retos, pela autoridade de seu mestre. Quando ele entende a demonstração desta tese, sua fé converte-se em conhecimento. Ele vê que é verdade. Os objetos da percepção sensorial, os objetos da intuição, e o que reconhecemos como verdade num processo de prova, não o são, de acordo com esta definição do termo, os objetos da fé. Sabemos o que vemos que é verdade; cremos quando reconhecemos como verdade o que não vemos. É verdade que o mesmo pode ser um objeto de fé e um objeto de conhecimento, mas não ao mesmo tempo. Podemos reconhecer como verdadeira a existência de Deus ou a imortalidade da alma, porque as proposições, “Deus existe,” “a alma é imortal,” são suscetíveis de prova. Os argumentos em apoio destas propostas podem satisfazer por completo nossas mentes.Mas elas são verdades da revelação que se crê pela autoridade de Deus. Estes estados de mente que chamamos conhecimento e fé, não são idênticos, tampouco coexistem estritamente. O efeito produzido pela demonstração é uma coisa. O efeito produzido pelo testemunho da Palavra de Deus, é outra coisa. Ambos incluem uma persuasão da verdade. Mas essa persuasão é, em sua natureza, diferente num caso do que em outro, visto Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 85 que descansa sobre bases diferentes. Quando os argumentos estão perante a mente, a convicção de que produzem é o conhecimento. Quando o testemunho de Deus está perante a mente, a convicção que o produz é a fé. Neste sentido Tomás de Aquino diz:84 “Necessarium est homini accipere per modum fidei non solum ea, quæ sunt supra rationem: sed etiam ea, quæ per rationem cognosci possunt. Et hoc propter tria, Primo quidem, ut citius homo ad veritatis divinæ cognitionem perveniat. . . . . Secundo, ut cognitio Dei sit communior. Multi enim in studio scientiæ proficere non possunt. . . . . Tertio modo proptor certitudinem. Ratio enim humana in rebus divinis est multum deficiens.” Em terceiro lugar, em virtude das “coisas que não se veem,” alguns incluem todas as coisas que não estão presentes à mente. Faz-se uma distinção entre o conhecimento presentativo* e representativo. No primeiro caso o objeto está presente no momento; nós o percebemos, somos conscientes disso. No conhecimento representativo há um objeto presente agora, representando um objeto ausente. Assim temos a concepção de uma pessoa ou coisa. Esta concepção está presente, mas a coisa representada está ausente. Não está perante a mente. Pertence à categoria das coisas que não se veem. A concepção que está presente é o objeto do conhecimento; a coisa representada é um objeto de fé. Quer dizer, sabemos que temos a concepção, cremos que na coisa que isso representa, faz ou existia. Se visitarmos um lugar determinado, conquanto presente aos nossos sentidos, sabemos que existe; quando chegamos longe e formamos uma ideia ou concepção dela, quer dizer, quando a recuperamos por um esforço de memória, então cremos em sua existência. “Sempre que passamos além do conhecimento representativo, e nos asseguramos da realidade de um objeto ausente, há fé. . . . entrou como um elemento.”85 84 Summa, II. ii. quæst. ii. art. 4, edit. Cologne, 1636, pp. 6 b, 7 a, of third set. * Conhecimento presentativo é o das qualidades primárias. - História da filosofia contemporânea, 149. 85 McCosh, Intuitions of the Mind, part II. book ii. ch. 1, edit. New York, 1860, p. 197. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 86 Sir William Hamilton86 diz: “Falando corretamente, conhecemos só o atual e o presente, e todo conhecimento verdadeiro é um conhecimento imediato. O que se diz ser mediatamente conhecido, é, na verdade, não conhecido ser, mas só se crê que é.” Isto, pode-se notar, de passagem, aplicar-se-ia a todas as proposições de Euclides. Porque são “conhecidas mediatamente,” quer dizer, que resulta ser verdadeira por meio de um processo de prova. Falando da memória, diz Hamilton: “Não é um conhecimento do passado absolutamente, mas um conhecimento do presente e uma crença do passado.” Segundo o Dr. McCosh: “Diz-se que conhecer-nos a nós mesmos, e os objetos apresentados aos sentidos e as representações (mas sempre como apresentações) na mente; mas crer nos objetos que vimos no tempo passado, mas que não estão presentes, e nos objetos que nunca vimos, e muito especialmente em objetos que nunca se pode saber, como um Deus infinito.”87 Objeções a esta definição. De acordo com este ponto de vista, sabemos o que está presente na mente, e cremos no que está ausente. A primeira objeção a esta representação é a ambiguidade das palavras presentes e ausentes, tal como utilizada. Quando um objeto está presente? e quando está ausente? É fácil responder a esta pergunta quando o objeto é algo material ou um evento externo. Estes objetos estão presentes (“præsensibus”) quando afetam os sentidos, e ausentes quando não o fazem. Uma cidade ou um edifício está presente quando na realidade o vemos; ausente, quando deixamos o lugar onde está, e lembramos a imagem do mesmo. Mas o que acontece nas proposições? A Bíblia diz que todos os homens são pecadores. A verdade assim anunciada está presente na mente. Não o sabemos. Não a podemos provar. Mas cremos a partir da autoridade de Deus. As Escrituras ensinam que Cristo morreu como resgate por 86 Lectures on Metaphysics and Logic, vol. i. “Metaphysics,” lect. xii. sub fin., edit. Boston, 1859, pp. 152, 153. 87 Intuitions of the Mind, p. 198. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 87 muitos. Aqui, não só o fato histórico de que Ele morreu é anunciado, mas também a finalidade pela qual Ele morreu. Mais uma vez, temos uma verdade presente na mente, que é um objeto de fé. A segunda objeção está envolta na primeira. Os termos presentes e ausentes não só são ambíguos neste sentido, mas também não é verdade, como se acaba de dizer, que um objeto deve estar ausente o fim de ser um objeto de fé. Em outras palavras, a característica diferencial entre o conhecimento e a fé, não se encontra na presença ou ausência de seus objetos. Podemos saber o que está ausente, e podemos crer no que está presente. A terceira objeção é, que a convicção que temos da realidade ou verdade do que lembramos claramente é o conhecimento, e não de forma muito particular a fé, a menos que decidamos estabelecer uma nova e arbitrária definição da palavra conhecimento. Sabemos o que é recebido pelos sentidos; sabemos o que a mente vê, quer seja intuitiva ou discursivamente, é e deve ser verdade; e sabemos o que lembramos claramente. A convicção é em todos estes casos da própria natureza. Em tudo isso se transforma em confiança na veracidade da consciência. Somos conscientes de que percebemos os objetos sensíveis. Somos conscientes de que percebemos certas verdades. Somos conscientes de que nos lembramos de certos eventos. Em todos estes casos, essa consciência implica a convicção da realidade ou a verdade do que se vê, mentalmente compreendido ou lembrado. Esta convicção é, ou pode ser, tão forte num destes casos, como em qualquer dos outros; e tudo isso descansa em último termo na mesma base. Não existe, portanto, razão para chamar um, conhecimento e a outro, crença. A memória é tanto um conhecimento do passado, como outras formas de consciência são o conhecimento do presente. A quarta objeção é que negar que a memória nos dá o conhecimento do passado, é contrário ao uso estabelecido. É verdade que somos ditos para crer que lembramos tais e tais eventos, quando não estamos seguros disso. Mas isto se deve a que em um dos significados estabelecidos da Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 88 palavra, a crença expressa um menor grau de certeza que o conhecimento. Mas os homens nunca falam de crer nos acontecimentos passados em sua experiência da qual eles são absolutamente certos. Sabemos que estávamos vivos ontem. Ninguém diz que crê que viu o seu pai ou mãe, ou algum amigo íntimo, a quem tinha conhecido por anos. As coisas lembradas claramente se conhecem, e não só se crêem. A definição que faz da fé a persuasão da verdade das coisas que não se veem, é, entretanto, correta, se pelas “coisas não se veem” se significam coisas que não são nem objetos dos sentidos, nem da intuição, nem da prova demonstrativa. Mas não parece ser correto incluir entre as “coisas que não se veem,” que são os objetos especiais da fé, as coisas lembradas e não agora presentes na mente. Esta definição da fé, embora correta na limitação quanto a seus objetos às coisas que não se veem, no sentido antes indicado,não obstante, é defeituosa em não atribuir o fundamento de nossa convicção de sua verdade. Por que cremos ser verdade coisas que nunca vimos e que não podemos provar? Dão-se diferentes respostas a essa pergunta; e, portanto, a definição que não dá resposta a ela, deve ser considerada defeituosa. Definições baseadas sobre a classe de evidência em que repousa a fé. Algumas das definições da fé, como vimos, fundamentam-se em seu caráter subjetivo, conquanto outras em seus objetos. Além destes há outros que buscam sua característica distintiva na base sobre a qual descansa a convicção de que o inclui. A primeira delas é a que faz a fé ser uma convicção ou a persuasão da verdade fundada no sentimento. Isto é considerado por muitos como a mais geralmente recebida. Hase88 diz: “Toda linguagem cultivada tem uma palavra para essa forma de convicção que, em oposição aos autoevidentes e demonstráveis, por razões morais e emocionais.” Essa palavra em grego é πίστις [pistis]; em 88 Dogmatik, 3d edit. Leipzig, 1842, p. 307. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 89 português “fé.” Em seu “Hutterus Redivivus,”89 diz ele: “A ideia comum da fé é: unmittelbar Fürwahrhalten, ohne Vermittelung Schlussbeweises eines, durch Neigung Bedürfniss und,” quer dizer, “Uma persuasão da verdade, sem a intervenção da argumentação, determinada por inclinação e necessidade interior.” Ele cita a definição da fé de Twesten, como “uma persuasão ou convicção da verdade produzida pelo sentimento;” e a de Nitzsch, tendo em conta o anterior, “a unidade do conhecimento e do sentimento.” Strauss90 diz: “A forma em que um homem se apropria dos conteúdos de uma revelação, a escalada interior que ele cede aos conteúdos das Escrituras e a doutrina da Igreja, não por causa da investigação crítica ou filosófica, mas com frequência em oposição a elas dominado por um sentimento que a Igreja Evangélica pede o testemunho do Espírito, mas que na realidade é só a percepção da identidade de sua própria vida religiosa com a que retratou a Escritura e em que prevalece na Igreja, — o assentimento determinado por sentimento — na linguagem eclesiástica, chama-se Fé.” Mais uma vez,91 diz ele: “O homem piedoso recebe a verdade religiosa porque ele sente sua realidade, e porque satisfaz suas necessidades religiosas,” e, portanto, acrescenta, “Nenhuma religião jamais grassou por meio de argumentos dirigidos à compreensão, ou de provas históricas ou filosóficas, e isto é a verdade inegável do cristianismo.” Todo pregador de uma nova religião assume naqueles a quem a apresenta, uma necessidade religiosa insatisfeita, e tudo o que tem que fazer é fazê-los sentir que tal necessidade se satisfaz pela religião que ele propõe. Celso, diz-nos ele, convertido num motivo de recriminação contra os cristãos que criam cegamente, que não podiam justificar as doutrinas que celebraram no tribunal da razão. A isto Orígenes respondeu que isto era certo só do povo; que com a educação, a fé foi elevada em conhecimento, e o cristianismo transformado numa filosofia. 89 Sixth edit. Leipzig, 1845, p. 4. 90 Dogmatik, § 20, edit. Tübingen and Stuttgart, 1840, vol. i. p. 282. 91 Dogmatik, edit. Tübingen and Stuttgart, 1840, vol. i. p. 298. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 90 A Igreja se dividiu entre crentes e conhecedores. A relação entre fé e conhecimento, entre religião e filosofia, foi objeto de controvérsia desde aquele dia até hoje. Alguns tomaram a base de Orígenes e da escola de Alexandria em geral, que corresponde aos cristãos educados para justificar suas doutrinas no tribunal da razão, e demonstrá-las ser verdade pelos motivos filosóficos. Outros sustentavam que as verdades da revelação foram, ao menos em muitos casos, do tipo que não admite demonstração filosófica, embora não fossem por essa razão consideradas como contrárias à razão, mas só como além de sua esfera. Outros, de novo, ensinaram que há um conflito direto entre fé e conhecimento; que o que o cristão crente mantém como verdade, pode ser demonstrado pelo filósofo que é falso. Esta é a própria doutrina de Strauss, e, portanto, ele conclui sua longa discussão sobre este ponto dizendo: “O crente deve permitir que o conhecedor siga seu próprio caminho em paz, bem como o conhecedor permitir ao crente. Nós lhes deixamos sua fé, que nos deixem nossa filosofia. . . . . Não foram suficientes os intentos dos falsos irônicos. A partir de então só a separação de princípios opostos pode conduzir a qualquer bem.”92 Na mesma página, admite a grande verdade, “Essa natureza humana tem uma característica excelente: o que qualquer homem sente é para ele uma necessidade espiritual, que não permite a nenhum homem tomar dele.” Observações a esta definição. Quanto à definição da fé que a torna uma convicção baseada no sentimento, pode-se notar: Em primeiro lugar, que há formas de fé de que isto não é verdade. Como assinalado anteriormente, quando se trata da definição cognata de fé como um assentimento voluntário da mente, não é verdade da fé em geral. Com frequência cremos a contragosto, e isso é absolutamente repugnante aos nossos sentimentos. 92 Ibid. p. 356. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 91 Em segundo lugar, não é verdade inclusive da fé religiosa, ou a fé que tem a verdade religiosa como seu objeto. Porque pode haver fé sem amor, quer dizer, uma especulação, ou fé morta. Em terceiro lugar, não é verdade de muitos dos exercícios da fé em homens bons. Isaque creu que Jacó seria preferível a Esaú, muito contra sua vontade. Jacó creu que seus descendentes seriam escravos no Egito. Os profetas criam nos setenta anos de cativeiro de seus compatriotas. Os apóstolos criam que uma grande apostasia na Igreja ia ocorrer entre sua época e a segunda vinda do Senhor. A resposta de Tomás de Aquino a isto, quer dizer, que um homem vê-se limitado por sua vontade (quer dizer, seus sentimentos) a crer nas Escrituras, e logo ele crê o que todas as Escrituras contêm. De modo que sua fé, inclusive na classe de verdades que acabamos de nos referir, recai definitivamente sobre o sentimento. Mas esta resposta é insatisfatória. Porque se for feita a pergunta Por que os profetas creem no cativeiro, e os Apóstolos na apostasia?, a resposta seria, não pelo efeito destas verdades sobre seus sentimentos, mas a partir da autoridade de Deus. E se for perguntado Por que crer no testemunho de Deus?, a resposta pode ser devido ao fato de que o testemunho de Deus leva à convicção. Ele pode fazer ouvir sua voz, inclusive pelos surdos ou pelos mortos. Ou, a resposta pode ser, porque eram homens de bem. Mas em qualquer caso, a questão nos leva para além da razão de sua fé. Eles criam porque Deus lhes havia revelado os fatos mencionados. Sua bondade pode havê-los feito suscetíveis à evidência oferecida, mas não constituem tal evidência. Em quarto lugar, admite-se que o exercício da fé salvadora, quer dizer, dessa fé que é o fruto do Espírito e o produto da regeneração, é atendida por um sentimento adequado a seu objeto. Mas isto se refere à natureza do objeto. Se cremos num bom relatório, o efeito é alegria; se num relatório mau, o efeito é a dor. A percepção da beleza produz prazer; da excelência moral, um resplendor de aprovação, das coisas espirituais, em muitos casos, uma alegria que é inefável e cheia de glória. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 92 Em quinto lugar, também é verdade que todas estas verdades, se não toda verdade, têm uma luz autoevidente, que não podem ser compreendidas sem uma convicção de que realmente é o que é compreendido como ser. Também se pode admitir que à medida em que se refere à consciência dos verdadeiros crentes, a evidência da verdade é a própria verdade;em outras palavras, que a base de sua fé é, em certo sentido, subjetiva. Eles veem a glória de Deus na face de Jesus Cristo, e portanto, creem que Ele é Deus manifestado na carne. Eles veem que as observações apresentadas pelas Escrituras sobre o pecado, a culpa e a impotência do homem caído, correspondem com sua própria experiência interna, e por isso são obrigados a receber estas representações como verdadeiras. Eles veem que o plano de salvação proposto na Bíblia se adapta a suas necessidades, seus juízos morais e as aspirações religiosas, portanto, abraçam-no. Tudo isto é certo, mas não prova a fé como uma convicção fundada no sentimento, porque há muitas formas de fé que confessadamente não se baseiam no sentimento; e mesmo no caso dos verdadeiros crentes, seus sentimentos não são o fundamento último da fé. Eles sempre recorrem à autoridade de Deus, quem é considerado como o autor destes sentimentos, através do qual o testemunho do Espírito se revela à consciência. “Podemos ser movidos e induzidos,” diz a “Confissão de Westminster,”93 “pelo testemunho da Igreja a uma grande e reverencial estima pela Sagrada Escritura; e a divindade da questão, a eficácia da doutrina, a majestade do estilo, o consentimento de todas as partes, o alcance da totalidade (que é dar toda a glória a Deus), a plena descoberta que faz do único caminho de salvação do homem, as muitas outras incomparáveis excelências, e a completa perfeição disso, são argumentos com que se faz abundante evidência a si mesmo na Palavra de Deus; entretanto, não obstante, nossa plena persuasão e garantia da verdade infalível e divina autoridade da mesma é da obra 93 Chapter I. § 5. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 93 interna do Espírito Santo, dando testemunho pela palavra e com ela em nossos corações.” O fundamento último da fé, portanto, é a testemunha do Espírito. A fé é uma convicção baseada no testemunho. A única outra definição da fé a ser considerada, é a que a faz uma convicção da verdade fundada no testemunho. Já vimos que Agostinho diz: «Conhecemos o que descansa sobre a razão; cremos o que descansa sobre a autoridade». Uma definição a que Sir William Hamilton dá sua adesão.94 Na escola de Alexandria também, a πίστις cristã, era Auctoritäts-Glaube, uma fé fundada na autoridade, oposta, por um lado, à pagã ἐπιστήμη, e por outro lado, a γνῶσις cristã, ou uma explicação filosófica e a prova das verdades cridas. Entre os escolásticos, esta era a ideia prevalecente. Quando definiram a fé como a persuasão de coisas que não se veem, referiam-se àquelas coisas que recebemos como certas com base na autoridade, e não porque podemos conhecê-las ou demonstrá-las. Por isso, dizia-se constantemente: a fé é humana quando repousa no testemunho dos homens; divina quando repousa no testemunho de Deus. Tomás de Aquino diz:95 «A fé de que falamos não assente a nada exceto porque seja revelado por Deus». Cremos com base na autoridade de Deus, e não porque vejamos, conheçamos ou sintamos que algo seja certo. Este é o sentido do ensino do grande corpo de teólogos escolásticos. Esta foi também a doutrina dos Reformadores e dos teólogos posteriores, tanto Luteranos como Reformados. Falando de assentimento, que considera como o segundo ato ou elemento da fé, Tomás de Aquino diz: “Hic actus fidei non rerum evidentia aut causarum et proprietatum notitia, sed Dei dicentis infallibili auctoritate.” Turretino96 diz: “Non quæritur, An fides sit scientia, quæ 94 See page 46. 95 Summa, II. II, quæst. I, art. 1, edición de Colonia, 1640, pág. 2, a, del tercer juego: «Non fides, de qua loquimur, assenti alicui, nisi quia est a Deo revelatum.» 96 Institutio, XV. ix. 3, edit. Edinburgh, 1847, vol. ii. p. 497. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 94 riado de fé ou de crença.» habeat evidentiam: Sic enim distinguitur a scientia, quæ habet assensum certum et evidentem, qui nititur ratione clara et certa, et ab opinione, quæ nititur ratione tantum probabili; ubi fides notat assensum certum quidem, sed inevidentem, qui non ratione, sed testimonio divino nititur.” De Moor97 diz: “Fides subjectiva est persuasio de veritate rei, alterius testimonio nixa, quomodo fides illa generatim descripta, scientiæ et conjecturæ opponitur. . . . . Dividitur . . . . in fidem divinam, quæ nititur testimonio divino, et humanam, quæ fundata est in testimonio humano fide accepto.” Owen:98 «Toda fé é assentimento a um testemunho; e a fé divina é o assentimento a um testemunho divino». John Howe 99 pergunta: «Por que creio que Jesus é o Cristo? Porque o Deus eterno deu Seu testemunho a respeito dEle que o é.» «A crença de um homem chega a não ser nada sem isto, que há um testemunho divino.» Mais uma vez:100 «Creio naquilo tal como Deus o revela, porque me foi dada por autoridade de Deus.» O Bispo Pearson101 diz: «Quando nos é proposto algo que não é nem evidente aos nossos sentidos, nem ao nosso entendimento, em e por si mesmo, nem que possamos conseguir de nenhuma clara e necessária conexão com a causa da que procede, ou dos efeitos que naturalmente produz, nem é aceito com base em verdadeiros argumentos nem por referência a outras verdades reconhecidas, e entretanto nos aparece como verdadeiro, não por uma manifestação, mas por testemunho da verdade, e assim nos leva a assentimento não por si mesmo, mas em virtude do testemunho que se dá dele; disto se diz propriamente que é acreditável; e o assentimento a isto, com base em tal credibilidade, é o conceito aprop 97 Commentarius in Johannis Marckii Compendium, cap. xxii. § 4, Leyden, 1766, vol. iv. p. 299. 98 Doctrine of Justification, cap. I, edición de Philadelphia, 1841, pág. 84. 99 Works, vol. II, pág. 885, edición de Carter, New York, 1869. 100 Ibid, pág. 1170. 101 An Exposition of the Creed, 7a. edición, Londres, 1701, pág. 3. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 95 Este ponto de vista é quase universalmente mantido. Esta postura a respeito da natureza da fé é recebida quase universalmente não só por teólogos, mas por filósofos e pela massa do povo cristão. A grande questão foi sempre se temos que receber a verdade com base na autoridade, ou com base na evidência racional. Leibnitz começa seu «Discours de la Conformité de la Foi avec la Raison» dizendo: «Suponho eu que duas verdades não se vão contradizer; que o objeto da fé é a verdade que Deus revelou de uma maneira extraordinária, e que a razão é o encadeamento de verdades, mais particularmente (uma vez comparadas com a fé) daquelas que o espírito humano pode alcançar naturalmente, sem ajuda da luz da fé».102 Já se admitiu que o elemento essencial da fé é confiança. Fé é a dependência da mente em algo como verdade e digno de confiança. Neste amplo sentido da palavra, não importa quais possam ser os objetos, ou quais as bases desta confiança. A palavra, entretanto, é usualmente empregada com referência às verdades que recebemos em confiança sem ser capaz de demonstrá-las. Assim, nos é dito para crer em nossa própria existência, na realidade do mundo externo, e em todas as verdades primárias da razão. Estas, de comum acordo, chamam-se crenças. A razão começa com a crença, quer dizer, tomando em confiança o que nem compreende nem demonstra. De novo se admitiu que a palavra crença é com frequência e legitimamente utilizada para expressar um grau de certeza menos forte que o conhecimento e que a probabilidade; como quando dizemos, não estamos seguros, mas cremos que uma certa coisa sucedeu. 102 Théodiceé, Works, edición de Berlín, 1840, 1839, part. III, pág. 479: «Je suppose, que deux vérités ne sauroient se contredire; que l’objet de la foi est la vérité que Dieu a révélée d’une manière extraordinaire, et que Ia raison est l’enchainmentdes vérités, mais particuli]érement (lorsqu’ele est comparés avec la foi) de celles où l’esperit humain peut atteindre naturellement, sans être aidé des lumières de la foi.» Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 96 O sentido estrito da palavra “fé”. Mas no sentido estrito e especial da palavra, como distinta de conhecimento e opinião, a fé significa a crença de coisas não vistas, sobre a base de testemunho. Mas por testemunho não se significa meramente a afirmação de uma testemunha inteligente. Há outros métodos pelos quais se pode dar um testemunho além de uma afirmação. Um selo é uma forma de testemunho; assim como um sinal. Da mesma maneira é tudo aquilo que compromete a autoridade da testemunha da verdade a estabelecer. Quando Elias declarou que Jeová era Deus e Baal uma mentira, disse: «O Deus que responder por fogo esse é que é Deus» [1Rs 18:24]. A descida do fogo foi o testemunho de Deus em favor da verdade da declaração do profeta. Assim, é dito no Novo Testamento que Deus deu testemunho da verdade do Evangelho tanto com sinais como com prodígios e diversos milagres e dons distribuídos pelo Espírito Santo (Hb 2:4); e é dito do Espírito de Deus que dá testemunho com nossos espíritos de que somos filhos de Deus (Rm 8:16). A palavra, nestes casos, é marturo, testificar. Este não é um uso negligente ou inadequado da palavra testemunho, porque uma afirmação é um testemunho único, visto que compromete a autoridade daquele que o faz à verdade. E, portanto, o que promete essa autoridade, é como verdadeiramente da natureza do testemunho, como uma afirmação. Assim, quando se diz que a fé se baseia em testemunho, significa-se que não se baseia nos sentidos, nem na razão nem nos sentimentos, mas na autoridade daquele por quem é autenticada. Prova com base no uso geral do termo. Pode-se argumentar que esta é a base e a característica distintiva da fé: 1. Com base no uso geral do termo. Diz-se que conhecemos o que vemos ou podemos demonstrar; e que cremos no que consideramos verdadeiro sobre a base da autoridade de outros. Isto se admite certo do que se chama fé histórica. E isto inclui o bastante; tudo o que está Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 97 registrado a respeito do passado; tudo o que é certo de coisas atuais que não caem dentro da esfera de nossa observação pessoal; todos os fatos da ciência tal como os recebem as massas; e quase todo o conteúdo da Bíblia, seja do Antigo ou do Novo Testamento. As Escrituras constituem o registro da história da Criação, da Queda, da Redenção. O Antigo Testamento é a história dos passos preparatórios desta redenção. O Novo Testamento é uma história do cumprimento das promessas e dos tipos do Antigo na encarnação, vida, sofrimentos, morte e ressurreição do Filho de Deus. Todo aquele que crê neste registro certifica que Deus é verdadeiro, e é filho de Deus. Prova da consciência. 2. Em segundo lugar, a consciência nos ensina que esta é a natureza da fé não só quando seus objetos são fatos históricos, mas também quando as coisas em que crer são proposições. Ambas as coisas são certamente com frequência inseparáveis. Que Deus seja o Criador do mundo é, ao mesmo tempo, um fato e uma doutrina. É, como diz o Apóstolo, questão de fé. Cremos com base na autoridade das Escrituras, as quais declaram que «No princípio Deus criou os céus e a terra». Que Deus enviou o Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados é uma doutrina. Repousa unicamente sobre a autoridade de Deus. Recebemo-lo com base em Seu testemunho. Assim é com todas as grandes doutrinas da graça; da regeneração; da justificação; da santificação, e de uma vida futura. Como sabemos que Deus aceitará a todos os que creem em Cristo? Quem pode conhecer as coisas de Deus, exceto o Espírito de Deus, e aquele a quem o Espírito as revelar? (1Co 2:10, 11). Pela natureza do caso, «as coisas do Espírito», os pensamentos e propósitos de Deus, podem ser conhecidos só por revelação, e podem ser recebidos só com base na autoridade de Deus. Não são objetos nem dos sentidos nem da razão. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 98 Prova da Escritura. 3. É o uniforme ensino da Bíblia que a fé se baseia no testemunho ou autoridade de Deus. A primeira prova disso é o fato de que as Escrituras nos vêm sob a forma de uma revelação de coisas que não poderíamos saber de outra maneira. Os profetas do Antigo Testamento foram mensageiros, a boca de Deus, para declarar o que o povo devia crer, e o que deviam fazer. O Novo Testamento é chamado «O testemunho de Jesus». Cristo veio, não como filósofo, e sim como testemunha. Disse a Nicodemos: «Nós dizemos o que sabemos e testificamos do que temos visto; contudo não aceitais o nosso testemunho» (Jo 3:11). «Quem vem das alturas certamente está acima de todos; quem vem da terra é terreno e fala da terra; quem veio do céu está acima de todos e testifica o que tem visto e ouvido; contudo, ninguém aceita o seu testemunho. Quem, todavia, lhe aceita o testemunho, por sua vez, certifica que Deus é verdadeiro» (vv. 31-33). Da mesma maneira os Apóstolos foram testemunhas. Como tais foram designados (Lc 24:48). Depois de Sua ressurreição e imediatamente depois de Sua ascensão, nosso Senhor lhes disse: «Recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra» (At 1:8). Quando declaravam a morte e ressurreição de Cristo como fatos que deviam ser cridos, diziam: «Do que todos nós somos testemunhas» (At 2:32; 3:15; 5:32). Nesta última passagem os Apóstolos dizem que foram testemunhas não só do fato da ressurreição de Cristo, mas também de que Deus «com a sua destra, o exaltou a Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão de pecados». Veja-se Atos 10:39-43, onde se diz: «E nos mandou pregar ao povo e testificar que ele é quem foi constituído por Deus Juiz de vivos e de mortos. Dele todos os profetas dão testemunho de que, por meio de seu nome, todo aquele que nele crê recebe remissão de pecados.» Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 99 A grande queixa contra os Apóstolos, especialmente nas cidades da Grécia, era que não apresentavam suas doutrinas como proposições para serem demonstradas; nem sequer declaravam as bases filosóficas sobre as quais repousavam nem tratavam das sustentar perante o tribunal da razão. A resposta que Paulo dá a esta objeção é dupla: Primeiro, que a filosofia, a sabedoria dos homens, tinha demonstrado ser absolutamente incompetente para resolver os grandes problemas de Deus e do universo, do pecado e da redenção. De fato, não era nem mais nem menos insensatez, no concerne a todas as suas especulações a respeito das coisas de Deus. Segundo, que as doutrinas que ele ensinava não eram verdades da razão, mas assuntos de revelação; que se devia receber não sobre uma base racional ou filosófica, mas com base na autoridade de Deus; que eles, os Apóstolos, não eram filósofos, mas sim testemunhas; que eles não argumentavam empregando as palavras da sabedoria humana, mas simplesmente expunham os conselhos de Deus, e que a fé nas doutrinas deles não devia repousar na sabedoria dos homens, mas no poderoso testemunho de Deus. A segunda prova de que as Escrituras ensinam que a fé é a recepção da verdade sobre a base do testemunho ou sobre a autoridade de Deus, é que o que nos é ordenado fazer é receber o registro que Deus deu de Seu Filho. Isto é fé: receber como certo o que Deus testificou, e porque Ele o testificou. «Aquele que não dá crédito a Deus o faz mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus dá acerca do seu Filho.» Aqui o texto grego é οὑ πεπίστευκεν εἰς τὴν μαρτυρίαν ἣν μεμαρτύρηκεν ὁ Θεὸς περὶ τοῦ υἱοῦ αὑτοῦ (ou pepisteuken eis tën marturian hën memarturëken ho Theos peri tou huiou hautou), «nãocrê no testemunho que Deus deu a respeito de seu Filho». «E este é o testemunho (hë marturia): que Deus nos deu vida eterna; e esta vida está em seu Filho» (1Jo 5:10, 11). Dificilmente poderia haver uma declaração mais clara da doutrina escriturística quanto à natureza da fé. Seu objeto é o que Deus revelou. Sua base é o testemunho de Deus. Receber este testemunho é certificar que Deus é verdadeiro. Rejeitá-lo é fazer a Deus mentiroso. «Se Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 100 recebermos o testemunho dos homens, maior é o testemunho de Deus; porque este é o testemunho de Deus, que testificou a respeito de seu Filho.» Este é o constante ensino da Escritura. A base sobre a qual estamos autorizados e ordenados a crer é não a conformidade da verdade revelada com nossa razão, nem seu efeito sobre nossos sentimentos, nem que supre às necessidades de nossa natureza e condição, mas simplesmente: «Assim diz o Senhor.» As verdades da revelação, sim são recomendadas à nossa razão; sim, poderosa e legitimamente afetam os nossos sentimentos; sim, elas suprem as nossas necessidades como criaturas e pecadores; e estas considerações podem inclinar-nos a crer, podem fortalecer nossa fé, levar-nos a abrigá-la e a fazê-la prazerosa e eficaz. Mas não constituem sua base. Cremos com base no testemunho ou autoridade de Deus. Objeta-se diante desta postura que cremos na Bíblia como a Palavra de Deus sobre outra base que a do testemunho. O cumprimento de profecias, os milagres de seus autores, seu conteúdo, e os efeitos que produz, são razões racionais para crer que é de Deus. A esta objeção podem-se dar duas respostas: Primeira, que os acontecimentos sobrenaturais, como as profecias e os milagres, são algumas das maneiras em que se dá o testemunho divino. Paulo diz que Deus deu «sinais, prodígios e vários milagres» (Hb 2:4). E segundo, que o fim imediato destas manifestações de previsão divina e poder era autenticar a missão divina dos mensageiros de Deus. Ficando esta missão estabelecida, o povo era chamado a receber sua mensagem e a crer com base na autoridade de Deus, por quem tinham sido enviados. A terceira prova de que as Escrituras ensinam que a fé é uma recepção da verdade sobre a base do testemunho encontra-se nos exemplos e ilustrações da fé que são dados nas Escrituras. Imediatamente depois da Queda, foi dada a promessa a nossos primeiros pais que a semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente. Sobre que outra possível base podia repousar a fé nesta promessa, exceto sobre a Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 101 autoridade de Deus? Quando Noé foi advertido por Deus a respeito do dilúvio que se aproximava, e foi ordenado a preparar a arca, creu, não porque viu sinais do dilúvio que se aproximava, nem porque seu juízo moral lhe assegurasse que Deus vingaria daquela maneira Sua lei violada; mas simplesmente com base no testemunho de Deus. Igualmente quando Deus prometeu a Abraão a posse da terra de Canaã, que ele, um ancião sem filhos, viria a ser pai de muitas nações, que por meio de sua semente seriam benditas todas as nações da terra, sua fé não pôde ter outra base que a autoridade de Deus. O mesmo sucede com cada ilustração de fé dada pelo Apóstolo no capítulo onze de sua Epístola aos Hebreus. E o mesmo temos em toda a Bíblia. Não temos base para nossa fé num mundo espiritual, no céu e o inferno descritos na Escritura, na doutrina da redenção, na segurança e triunfo definitivo da Igreja, além do testemunho de Deus. Se a fé não descansar no testemunho, não tem nada onde descansar. Paulo nos diz que todo o evangelho repousa sobre o fato da ressurreição de Cristo dentre os mortos. Se Cristo não ressuscitou, vã é nossa fé, e estamos ainda em nossos pecados. Mas nossa certeza de que Cristo ressuscitou ao terceiro dia repousa só sobre o testemunho que Deus deu de várias maneiras a este fato. Este é um ponto de grande importância prática. Se a fé, ou nossa persuasão das verdades da Bíblia, repousa sobre bases filosóficas, então fica aberta a porta ao racionalismo; se repousa sobre sentimentos, então fica aberta ao misticismo. O único fundamento seguro e satisfatório é o testemunho de Deus, que não pode errar, e que não enganará. Por isso, a fé pode ser definida como a persuasão da verdade baseada no testemunho. A fé do cristão é a persuasão da verdade dos fatos e doutrinas registrados nas Escrituras com base no testemunho de Deus. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 102 § 3. Diferentes classes de fé. Embora se admita a definição anterior, deve-se admitir que há diferentes classes de fé. Em outras palavras, o estado mental que designa a palavra é muito diferente num caso do que é em outros. Esta diferença surge em parte da natureza de seus objetos, e em parte da natureza ou forma do testemunho em que se baseia. Uma coisa é fé num fato histórico ou numa verdade especulativa; outra coisa é fé na verdade estética; outra coisa é fé numa verdade moral; outra coisa é fé na verdade espiritual, e especialmente fé na promessa da salvação que nos é dada. Isto é, o estado de mente chamado fé é muito diferente em qualquer destes casos do que é nos demais. Também o testemunho que Deus dá da verdade é de diferentes classes. Numa de suas formas é dirigido especialmente ao entendimento; em outro à consciência; em outro à nossa natureza regenerada. Esta é a causa da diferença entre fé especulativa, fé temporal e fé salvadora. Fé morta, ou especulativa. Há muitos que creem que a Bíblia é a Palavra de Deus; que recebem tudo o que ensina; e que são perfeitamente ortodoxos em suas crenças doutrinais. Se lhes for perguntado por que creem, pode ser que não saibam o que responder. A reflexão poderia levá-los a dizer que creem porque outros creem. Recebem sua fé por herança. Foram ensinados a crer assim desde seus mais tenros anos. A Igreja a que pertencem inculca esta fé, e lhes é ensinada como verdadeira e necessária. Outros de maior cultura podem dizer que a evidência da origem divina da Bíblia, tanto externa como interna, dá satisfação a suas mentes, e lhes produz a convicção racional de que as Escrituras são uma revelação de Deus, e recebem seu conteúdo com base em sua autoridade. Esta fé, tal como ensina a experiência, é perfeitamente compatível com uma vida mundana ou ímpia. Isto é o que a Bíblia chama uma fé morta. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 103 Fé temporal. Por outro lado, não há nada mais comum que o fato de que o Evangelho produza uma impressão temporal, mais ou menos profunda e duradoura. Os que receberam esta impressão creem. Mas, ao não ter raiz em si mesmos, bem logo ou mais tarde se apartam. É também uma experiência comum que homens totalmente indiferentes, ou inclusive céticos, num tempo de perigo, ou ao aproximar-se a morte, ficam profundamente convencidos da certeza daquelas verdades religiosas previamente conhecidas, mas até agora descuidadas ou rejeitadas. Esta fé temporal é devido à graça comum; isto é, àquelas influências do Espírito comuns em maior ou menor medida a todos os homens, que operam na alma sem renová-la, e que revelam a verdade à consciência, e fazem com que produza convicção. Fé salvadora. A fé que assegura a vida eterna; que nos une a Cristo como membros vivos de Seu corpo; que nos torna filhos de Deus; que nos faz partícipes de todos os benefícios da redenção; que opera pelo amor, e é frutífera em boas obras, baseia-se não na evidência externa ou moral da verdade, mas no testemunho do Espírito com e mediante a verdade à alma renovada. O que significa o testemunho do Espírito. É necessário, antes de ir mais adiante, determinar o que se significa pelo testemunho do Espírito, do qual é dito ser a base da fé salvadora. Deus, ou o Espírito de Deus, dá testemunho da verdade das Escrituras e das doutrinas que contêm.Este testemunho, como se viu, é em parte externo, consistindo em profecias e milagres, e em parte na natureza das mesmas verdades na relação que têm com os elementos intelectuais e morais da alma, e em parte é específico e sobrenatural. Os homens irregenerados podem sentir o poder das duas primeiras classes de testemunho, e crer com uma fé meramente intelectual e especulativa, Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 104 ou, tal como pode ser denominada por sua base, com uma fé moral, só temporal. A forma espiritual do testemunho está limitada aos regenerados. Naturalmente, é inescrutável. As operações do Espírito não se revelam na consciência de outra maneira que por seus efeitos. Sabemos que os homens nascem pelo Espírito, que o Espírito habita no povo de Deus e que influencia continuamente os seus pensamentos, sentimentos e ações. Mas sabemos isto só pelo ensino da Bíblia, não porque tenhamos consciência de Suas operações. «O vento sopra onde quer, e ouve seu som; mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito» (Jo 3:8). Este testemunho do Espírito não é uma afirmação de que a Bíblia é a Palavra de Deus. Tampouco é produto de uma convicção cega e ininteligente deste feito. Não se dirige, como sucede com o testemunho humano, desde fora à mente, mas está dentro da própria mente. É uma influência destinada a produzir fé. Chama-se um testemunho porque recebe este nome na Escritura; e porque tem a natureza essencial de um testemunho, porquanto é o objeto da autoridade de Deus em apoio da verdade. Os efeitos deste testemunho interior são: (1) O que as Escrituras chamam «discernimento espiritual». Isto significa duas coisas: Um discernimento devido à influência do Espírito; e um discernimento não só da verdade, mas também da santidade, excelência e glória das coisas que se discernem. A palavra espiritual significa, neste sentido, conformado à natureza do Espírito. Por isto é que se diz que a lei é espiritual, isto é, santa, justa e boa. (2) Um segundo efeito necessariamente derivado do recém-mencionado é deleite e complacência, ou amor. (3) A apreensão do apropriado das verdades reveladas à nossa natureza e às nossas necessidades. (4) A firme convicção de que estas coisas não só são verdadeiras, mas também divinas. (5) Os frutos desta convicção, isto é, da fé assim produzida, são as boas obras: santidade de coração e de vida. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 105 Por isso, quando se pergunta a um cristão por que crê nas Escrituras e nas doutrinas nela contidas, sua simples resposta é: Com base no testemunho ou autoridade de Deus. De que outra maneira poderia ele saber que o universo foi criado por Deus, que nossa raça apostatou de Deus, que Ele enviou o Seu Filho para nossa redenção, que a fé nEle obterá a salvação? A fé nestas verdades não pode ter outra base mais que o testemunho de Deus. Se for perguntado como testifica Deus da verdade da Bíblia, e a pessoa a quem se fez a pergunta, responderá: De todas as maneiras concebíveis: mediante sinais, maravilhas e milagres; mediante a exibição que faz a Bíblia de conhecimento divino, de excelência, de autoridade e de poder. Se for uma pessoa sem conhecimentos, pode ser que simplesmente diga: «Porque antes eu era cego, agora vejo.» Este homem, e na verdade cada cristão, passa de um estado de incredulidade a um de fé salvadora não por algum processo de investigação ou de argumentação, mas de experiência interior. A mudança pode ter lugar, e com frequência sucede, num momento. A fé de um cristão na Bíblia é, como já se observou antes, análoga à que todos os homens têm na lei moral, que reconhecem não só como verdade, e sim como possuindo a autoridade de Deus. O que o homem natural percebe com relação à lei moral, o homem renovado é capacitado a percebê-lo com relação «às coisas do Espírito», mediante o testemunho do Espírito com e mediante a verdade a seu coração. Prova por meio de declarações expressas das Escrituras. 1. Que esta é a doutrina bíblica sobre o tema se desprende das declarações expressas das Escrituras. Nosso Senhor prometeu enviar o Espírito com este preciso propósito. «Ele convencerá o mundo do pecado», especialmente do pecado de não crer em Cristo; «da justiça», isto é, da justiça dEle, da justiça de Suas demandas de ser considerado e recebido como o Filho de Deus, Deus manifestado em carne, e o Salvador do mundo; «e do juízo», isto é, da demolição final do reino das trevas e do triunfo definitivo do reino da luz. (Jo 16:8). Assim, a fé é Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 106 sempre exposta na Escritura como um dos frutos do Espírito, como dom de Deus, como produto de Sua energia (πίστις τῆς ἐνεργείας τοῦ Θεοῦ [pistis tës energeias tou Theou]) (Col 2:12). Diz-se que os homens creem em virtude do mesmo poder que operou em Cristo quando Deus O ressuscitou dentre os mortos (Ef 1:19, 20). O Apóstolo Paulo estabelece de maneira elaborada a base da fé no segundo capítulo de Primeira aos Coríntios. Declara que para seu apoio não se baseava nas palavras atrativas da sabedoria humana, mas em demonstração do Espírito, a fim de que a fé dos ouvintes não descansasse na sabedoria dos homens, e sim no poder de Deus. A fé não devia repousar na argumentação; em provas históricas ou filosóficas, mas no testemunho do Espírito. O Espírito demonstra a verdade à mente, isto é, produz a convicção de sua veracidade, e leva a alma a abraçá-la com certeza e deleite. Já se citaram passagens que ensinam que a fé repousa no testemunho de Deus, e que a incredulidade consiste na rejeição deste testemunho. O testemunho de Deus é dado por meio do Espírito, cuja função é tomar as coisas de Cristo, e nos mostrá-las. O Apóstolo João diz a seus leitores: «E vós possuís unção que vem do Santo e todos tendes conhecimento. ... a unção que dele recebestes permanece em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção vos ensina a respeito de todas as coisas, e é verdadeira, e não é falsa, permanecei nele, como também ela vos ensinou» (1Jo 2:20, 27). Esta passagem ensina: (1) Que os verdadeiros crentes recebem de Cristo (o Santo) uma unção. (2) Que esta unção é o Espírito Santo. (3) Que assegura o conhecimento e a convicção da verdade. (4) Que este ensino interior que as torna crentes é permanente, e que os assegura contra a apostasia. 1 Coríntios 2:14 Igualmente explícita é a passagem em 1 Coríntios 2:14-15: “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Porém o homem espiritual julga todas as coisas, mas ele Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 107 mesmo não é julgado por ninguém” As coisas do Espírito, são as coisas que o Espírito revelou. Quanto a estas coisas, ensina-se: (1.) Que o homem natural ou não renovado não as recebem. (2.) Que o homem espiritual, quer dizer, o homem em quem habita o Espírito, sim as recebem. (3.) Que a razão desta diferença é que o primeiro não tem, e que este último tem, o discernimento espiritual. (4.) Este discernimento espiritual é a compreensão da verdade e da excelência das coisas discernidas. (5.) É espiritual, como se acaba de dizer, tanto porque devido à operação do Espírito, e devido à conformidade das verdades discernidas da natureza do Espírito, é compreendido. Quando Pedro confessou que Jesus era o Cristo, o Filho do Deus vivo, nosso Senhor disse: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus.” (Mt 16:17). Outros homens tinham a mesma evidência externa da divindade de Cristo que Pedro tinha. Sua fé não se deveu só às provas, mas ao testemunho interno de Deus. Nosso Senhor deu graças que Deus tinha escondido os mistérios de Seu reino dos sábios e prudentese os revelou às crianças. (Mt 11:25). A revelação externa foi feita a ambas as classes. Além desta revelação externa, os chamados crianças receberam um testemunho interior que os tornou crentes. Daí nosso Senhor disse: Ninguém pode vir a Mim a menos que seja trazido ou ensinado por Deus. (Jo 6:44, 45). O Apóstolo nos diz que o mesmo Evangelho, as mesmas verdades objetivas, com a mesma evidência externa e racional, que era uma ofensa para os judeus e loucura para os gregos, era chamado de sabedoria e poder de Deus. Por que esta diferença? Não é o conhecimento superior ou maior excelência da chamada, mas a interior influência divina, o κλῆσις, dos quais eles eram os temas. A conversão instantânea de Paulo não se refere a qualquer processo racional de argumentação; nem à sua suscetibilidade moral da verdade; nem à manifestação visível de Cristo, porque nenhum milagre, nenhuma luz exterior ou esplendor poderia mudar o coração e transformar todo o caráter num momento. Era, como o próprio Apóstolo diz (Gl 1:15, 16), a Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 108 revelação interior de Cristo para com ele pela graça especial de Deus. Foi o testemunho do Espírito, que é interior e sobrenatural, capacitou-o a ver a glória de Deus na face de Jesus Cristo. O salmista orou para que Deus lhe abrisse os olhos para que pudesse ver as maravilhas de Sua lei. O apóstolo orava pelos Efésios para que Deus lhes desse o Espírito Santo, que os olhos de suas almas pudessem ser abertos, para que soubessem as coisas gratuitas que Deus lhes dá. (Ef 1:17, 18). Por todas as partes na Bíblia, o fato de que alguém crê que não se refira ao seu estado subjetivo, mas à obra do Espírito em seu coração. Prova da maneira em que os apóstolos agiram 2. Como as Escrituras ensinam assim expressamente que a base da verdade ou fé salvadora é o testemunho interior do Espírito, os apóstolos sempre agiam sobre esse princípio. Anunciaram a verdade e exigiram sua imediata recepção, sob a dor da morte eterna. Nosso Senhor fez o mesmo. “Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.” (Jo 3:18). Exigia-se fé imediata. Sendo exigida por Cristo, e em Sua ordem pelos Apóstolos, essa demanda deve ser justa e razoável. Poderia, entretanto, ser não menos que a evidência da verdade a que assistiram. Esta prova não pode ser as provas externas da divindade de Cristo e Seu Evangelho, porque essas provas se fizeram presentes para a mente dos relativamente poucos dos ouvintes do Evangelho; nem podia ser a prova racional ou argumentos filosóficos, porque ainda pouco se podia apreciar tais provas, e se pudessem seria nada recorrer à produção da fé salvadora. A evidência da verdade, a que o assentimento é exigido por Deus no momento em que se anuncia, deve estar na própria verdade. E se o assentimento é obrigatório e o dissentimento ou a incredulidade um pecado, então a evidência deve ser de natureza a que um estado corrupto da alma torna um homem insensível. Diz o Apóstolo: “Se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 109 cegou o entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus. … Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo.” (2Co. 4:3-6). Aqui se ensinou: (1.) Que em qualquer lugar e sempre que se prega a Cristo, a evidência de Sua divindade é apresentada. A glória de Deus resplandece em Seu rosto. (2.) Que se alguém falha em ver, é porque o Deus deste século cegou os seus olhos. (3.) Que se alguém percebe e nele crê, é por causa de uma iluminação interior produzida por Aquele que primeiro ordenou que a luz resplandecesse nas trevas. Prova com base na prática na Igreja 3. Como Cristo e os Apóstolos agiram com base neste princípio, também o têm feito todos os ministros fiéis e missionários daquele tempo até hoje. Não esperam convencer e converter os homens pela evidência histórica ou por argumentos filosóficos. Eles dependem da manifestação do Espírito. Prova com base na Analogia 4. Esta doutrina, que a base real e imediata da fé nas coisas do Espírito é o testemunho do Espírito, produzindo discernimento espiritual, é sustentada por analogia. Se um homem não pode ver o esplendor do sol, é porque está cego. Se ele não pode perceber as belezas da natureza e da arte, é porque não tem bom gosto. Se não puder compreender “a harmonia dos doces sons,” é porque não tem um ouvido musical. Se não puder ver a beleza da virtude, ou a autoridade divina da lei moral, é porque seu sentido moral está entorpecido. Se ele não pode ver a glória de Deus em Suas obras e em Sua palavra, é porque sua natureza religiosa está pervertida. E de igual maneira, se ele não pode ver a glória de Deus na face de Jesus Cristo, é porque o deus deste mundo cegou os seus olhos. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 110 Ninguém desculpa o homem que não vê a excelência na virtude, e que rechaça a autoridade da lei moral. A Bíblia e o juízo instintivo dos homens, condenam o ateu. Da mesma maneira as Escrituras pronunciam malditos a todos os que não creem que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo. Esta é a negação da suprema excelência; o rechaço da manifestação mais clara de Deus jamais feito ao homem. O juízo solene de Deus é: “Se alguém não ama ao Senhor, seja anátema. Maranata!” (1Co 16:22). Nesta sentença, o universo inteligente todo, em última instância, estará de acordo. Desta maneira, nas Escrituras a fé está baseada no testemunho de Deus. Como já se tem dito, por testemunho se significa atestado, tudo aquilo que certifica a autoridade da testemunha em favor da verdade a estabelecer. Como este testemunho é de distintas formas, também a fé que produz é diferente. Até onde o testemunho é meramente externo, a fé que produz é simplesmente histórica ou especulativa. Até onde o testemunho é moral, consistindo no poder que o Espírito dá à verdade sobre a consciência natural, a fé é temporal, dependendo do estado mental que é sua causa imediata. Além destes, temos o testemunho interior do Espírito, que é de tal natureza e poder que produz uma perfeita revolução na alma, comparado na Escritura com o efetuado pela abertura dos olhos de um cego à realidade, às maravilhas e às glórias da criação. Assim, existe entre uma fé repousando sobre este testemunho interior do Espírito e uma mera fé especulativa toda aquela diferença que existe entre a convicção que tem um cego das maravilhas da natureza antes e depois de que lhe sejam abertos os olhos. Porquanto este testemunho é informativo, capacitando a alma para ver a verdade e a excelência das «coisas do Espírito» até onde está envolvida a consciência do crente, sua fé é uma forma de conhecimento. Vê que é certo o que o Espírito revela e referenda. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 111 § 4. Fé e conhecimento. A relação da fé com o conhecimento é um campo amplo. As discussões a respeito desta questão foram variadas e intermináveis. É pouco provável que as questões sob discussão sejam jamais resolvidas para satisfação de todas as partes. A base da fé é a autoridade. A base do conhecimento são os sentidos ou a razão. Aqui só nos corresponde a fé cristã, isto é, a fé que recebe as Escrituras como a Palavra de Deus e tudo o que ensinam como certas com base em sua autoridade. É necessária uma Revelação Sobrenatural? A primeira questão é: Se há alguma necessidade de uma revelação sobrenatural, se a razão humana não é competente para conhecer e autenticar toda a verdade necessária. Esta pergunta já foi examinada sob o racionalismo, em que se mostrou:(1.) Que a consciência de todo homem lhe diz que tem perguntas sobre Deus e sua própria origem e destino, que sua razão não pode responder. (2.) Que ele conhece a priori, que a razão de que nenhum outro homem pode respondê-las de maneira satisfatória. (3.) Que ele sabe por experiência que nunca foram respondidas pela sabedoria dos homens, e (4.) Que Escrituras declaram que o mundo pela sabedoria não conhece a Deus, que a sabedoria do mundo é loucura em sua estimativa, e que Deus deu a conhecer tanto a Si mesmo as verdades indecifráveis pela razão, para a salvação do homem. Devem as verdades da revelação ser demonstráveis pela razão? Uma segunda questão é: Se as verdades, sobrenaturalmente reveladas, devem ser capazes de autenticar-se no tribunal da razão antes de poderem ser racionalmente recebidas, de modo que se recebem, não sobre a base da autoridade, mas de uma prova racional. Isto também foi previamente discutido. Demonstrou-se que a hipótese de que Deus não pode revelar nada do que a razão humana não pode, quando conhecido, Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 112 demonstrar que é verdade, supõe que a razão humana é a medida de toda verdade; que não há inteligência no universo superior à do homem; e que Deus não pode ter propósitos e planos, os fundamentos ou motivos de que somos competentes para descobrir e apreciar. Emancipa-se da autoridade de Deus, negando-se a crer outra coisa exceto a autoridade da razão. Por que não podemos crer no testemunho de Deus que há um mundo espiritual, assim como crer que há uma nação como os chineses com base no testemunho dos homens? Nenhum homem age sobre o princípio de crer só o que ele pode entender e demonstrar, em qualquer outra área de interesse. Há multidões de verdades que todo homem são recebe em confiança, sem ser capaz de poder as provar ou as compreender. Se podemos crer só no que podemos provar no tribunal da razão como verdade, então o reino dos céus seria fechado para todos exceto para os sábios. Não poderia haver um cristão que não fosse também um filósofo. Na realidade ninguém age sobre este princípio. Assume-se no orgulho da razão, ou como uma desculpa para rejeitar as verdades desagradáveis, mas os homens creem em Deus, no pecado, na liberdade da vontade, na responsabilidade, sem a capacidade de compreender ou conciliar estas verdades com eles ou com outros fatos da consciência ou experiência. É possível que verdades reveladas não sejam filosoficamente reivindicadas? Uma terceira questão é: Se, admitindo uma revelação sobrenatural, e, além disso, admitindo a obrigação de receber com base na autoridade de Deus a revelação cujas doutrinas dá a conhecer, as doutrinas reveladas não podem ser filosoficamente justificadas, a fim de recomendá-las à aceitação dos que negam a revelação. As doutrinas das Escrituras a respeito de Deus, a criação, a providência, a trindade, a encarnação, o pecado, a redenção e o estado futuro, não podem ser declaradas expressamente e sustentadas filosoficamente quanto a forçar a conformidade para com elas como verdades da razão. Esta foi a base Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 113 tomada na Igreja primitiva pelos teólogos da Escola de Alexandria, aqueles que se comprometeram a elevar a πίστις [pistis] do povo numa γνῶσις [gnosis] para os filósofos. Assim, os escritores sagrados se fizeram platônicos, e o cristianismo foi transmutado no platonismo. Uma grande parte da atividade mental da Escola-homem, durante a Idade Média, foi gasta da mesma maneira. Eles receberam a Bíblia como uma revelação sobrenatural de Deus. Eles receberam a interpretação da Igreja de seus ensinos. Eles admitiram sua obrigação de crer em suas doutrinas sobre a autoridade de Deus e da Igreja. Entretanto, eles mantinham que todas estas doutrinas podem ser filosoficamente provadas. Em épocas posteriores Wolf se comprometeu a demonstrar todas as doutrinas do cristianismo nos princípios da filosofia leibnitziana. Em nossos dias este princípio e os intentos se levaram mais longe que nunca. Sistemas de teologia, construídos sobre a filosofia de Hegel, de Schelling, e de Schleiermacher, quase substituíram os antigos sistemas bíblicos. Se algum homem de cultura e inteligência comum tomasse um volume do que se chama “Teologia Especulativa,” (quer dizer, a teologia presente nas formas da filosofia especulativa), ele não entenderia uma página e dificilmente poderia entender uma frase. Ele não podia dizer se a teologia que tinha a intenção de apresentar era cristianismo ou budismo. Ou, quando muito, ia encontrar umas quantas gotas da verdade bíblica tão diluída pelas inundações da especulação humana que os mais delicados testes químicos não detectariam o elemento divino. As tentativas para fazer isto são inúteis. Todos estes intentos são inúteis. A prova empírica disto é que nenhum destes intentos teve êxito. O experimento fez-se centenas de vezes, e sempre com o mesmo resultado. Onde estão agora as colocações filosóficas e reivindicações das doutrinas da Escritura pelos Pais platonizantes, pelos escolásticos, pelos cartesianos, pelos leibnitzianos? Que poder sobre a razão, a consciência, ou a vida, tem qualquer dos sistemas especulativos de nossos dias? Quem, além dos devotos dos Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 114 sistemas que representam, compreendem ou adotam a teologia de Daub, de Marheinecke, de Lange, e outros? Strauss, portanto, tem razão quando rejeita todos estes vãos intentos para conciliar o cristianismo com a filosofia, ou para dar uma forma à doutrina cristã que satisfaça ao pensador filosófico.103 Mas à parte deste argumento da experiência, a suposição é absurda de que o frágil intelecto do homem possa explicar, e com seus próprios recursos, reivindicar e demonstrar as coisas profundas de Deus. Um bebê poderia também comprometer-se a explicar o “Princípio de Newton.” Se há mistérios na natureza, em cada folha de erva, no inseto, no corpo e na alma do homem, deve haver mistérios na religião. A Bíblia e nossa consciência nos ensinam que Deus é incompreensível, e Seus caminhos inescrutáveis; que não podemos explicar nem Sua natureza ou Seus atos; não sabemos como Ele cria, mantém e governa sem interferir com a natureza de Suas criaturas, como pode haver três pessoas na Deidade; como na pessoa de Cristo pode haver duas inteligências e duas vontades; como o Espírito motiva, renova, santifica, ou consola. Pertence à classe “autodivinização” de filósofos o presumir conhecer tudo o que Deus sabe, e desterrar o incompreensível da religião que Ele revelou. “Na escola de Hegel,” diz Bretschneider, “há mistérios na religião só para os que não se elevaram à categoria hegeliana do conhecimento. Neste último caso tudo está claro, tudo é conhecimento; e o cristianismo é a solução, e portanto a revelação de todos os mistérios.”104 Isto pode ser consistente nos que sustentam que o homem é Deus na forma mais alta de sua existência, e o filósofo o mais alto estilo de homem. Tal afirmação, entretanto, por quem quer que possa ser feita, é a loucura da presunção. 103 See above, p. 58. 104 Systematische Entwickelung, § 29, 4th edit. Leipzig, 1841, p. 163. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 115 Pode o que é verdadeiro em Religião ser falso em Filosofia? Uma quarta questão incluída neste tema general é: Há ou pode haver um conflito real entre as verdades da razão e as da revelação? Ou o que é verdade em religião pode ser falso em filosofia? A esta pergunta foram dadas diferentes respostas. Os Pais sobre esta questão. Em primeiro lugar, conquanto os Pais gregos estavam dispostos a levara religião e a filosofia em harmonia, dando uma forma filosófica às doutrinas cristãs, os latinos estavam dispostos a representaros dois como irreconciliáveis. Tertuliano pergunta: “O que tem que ver Atenas com Jerusalém? A academia com a Igreja? O que têm hereges que ver com cristãos? Nossa instrução é do alpendre de Salomão, que se ensina que o Senhor devia buscar na simplicidade do coração. . . . . Não precisamos buscar a verdade depois de Cristo, nenhuma investigação depois do Evangelho. Quando cremos, desejamos nada além da fé, porque cremos que não há nada mais que devemos fazer. . . . . Conhecer nada além de conhecer todas as coisas.” 105 Ele chegou inclusive a dizer: “Prorsus credibile est, quia ineptum est; . . . . certum est, quia impossibile est.”106 Sem chegar a este extremo, os teólogos da Igreja latina, aqueles dentre eles ao menos, mais zelosos de doutrinas da Igreja, inclinavam-se a negar-se a raciocinar inclusive a prerrogativa de um judicium 105 De Præscriptionibus adversus Hæreticos, cap. 7, 8, 14, Works, Paris, 1608, (t. III), p. 331: “Quid ergo Athenis et Hierosolymis? quid Academiæ et Ecelesiæ? quid hæreticis et Christianis? Nostra institutio de portica Solomonis est, qui et ipse tradiderat: Dominum in simplicitate cordis esse quærendum. Viderint qui Stoicum, et Platonicum, et Dialecticum, Christianissimum protulerunt. Nobis curiositate opus non est post Christum Jesum, nec inquisitione post Evangelium. Cum credimus, nihil desideramus ultra credere. Hoc enim prius credimus, non esse quod ultra credere debeamus. . . . . Cedat curiositas fidei, cedat gloria saluti. Certe aut non obstrepant, aut quiescant adversus regulam. Nihil ulta scire, omnia scire est.” 106 De Carne Christi, cap. 5, Works, (t. III), p. 555: “Natus est Dei filius: non pudet quia pudendum est. Et mortuus est Dei filius: prorsus credibile est, quia ineptum est. Et sepultus, resurrexit: certum est, quia impossibile est.” Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 116 contradictionis. Eles se viram obrigados a tomar este terreno porque foram chamados a defender doutrinas que contradizem não só a razão, mas também os sentidos. Quando foi objetada a doutrina de que a hóstia consagrada é o corpo real de Cristo, que nossos sentidos a pronunciam como pão, e que é impossível que um corpo humano deva estar no céu e em todas as partes da terra ao mesmo tempo, o que podiam dizer, senão que se pode confiar nos sentidos e a razão no âmbito da fé? O que é falso à razão e aos sentidos pode ser verdade na religião? Ensino Luterano neste ponto. Os luteranos estavam sob a mesma necessidade. Sua doutrina da pessoa de Cristo implica a negação da verdade primária, que os atributos não podem ser separados da substância da qual são a manifestação. Sua doutrina sobre a Ceia do Senhor implica a assunção da ubiquidade do corpo de Cristo, que parece ser uma contradição de termos. As declarações de Lutero sobre este tema não são muito consistentes. Quando argumentando contra a obrigação contínua dos votos monásticos, não hesitou em dizer que o que era contrário à razão é contrário a Deus. “Was nun der Vernunft entgegen ist, ist gewiss dass es Gott viehmehr entgegen ist. Denn wie sollte es nicht wider die göttliche Wahrheit seyn, das wider Vernunft und menschliche Wahrheit ist.”107 Mas na controvérsia sacramental ele não permitirá que a razão seja ouvida. “Nas coisas de Deus,” diz, a razão ou a natureza é um estoque cego de estrela e pedra. “É, de fato,” acrescenta ele, “o suficientemente audaz afundar e tropeçar como um cavalo cego; mas tudo o que explica ou conclui que é, sem dúvida, falsa e errônea como Deus vive.”108 Em outro lugar ele diz que a razão, quando trata de especular sobre as coisas divinas, torna-se insensata, o que, de fato, é muito do que diz Paulo. (Rm. 1:22; 1Co. 1:18-31). 107 Works, edit. Walch, vol. xix. p. 1940. 108 Ibid. vol. xii. pp. 399, 400. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 117 Os teólogos luteranos fizeram uma distinção entre a razão no abstrato, ou razão como havia no homem antes da Queda, e a razão como o é agora. Admitem que nenhuma verdade da revelação pode contradizer a razão como tal; mas pode contradizer-se a razão de todos os homens de cujas faculdades se nublaram e se deterioraram pelo pecado. Por isso não se entende simplesmente que o homem não regenerado opõe-se à verdade de Deus; que “as coisas do Espírito” são loucura para ele, que lhe parece absurdo que Deus Se encontra na condição de homem; que Ele deve exigir uma satisfação pelo pecado; ou salva um homem e outro não, segundo Sua boa vontade. Isto a Bíblia ensina claramente e todos os cristãos creem. Em tudo isto não há contradição entre razão e religião. O ser de Deus é loucura para o ateu; e a imortalidade pessoal é uma loucura para o panteísta. Entretanto, quem admitiria que estas doutrinas são contrárias à razão? Os teólogos luteranos destinados a ensinar, não só que os mistérios da Bíblia estão acima da razão, que não podem ser compreendidos nem demonstrados; e não só que “as coisas do Espírito” são loucura para o homem natural, mas também estão realmente em conflito com a compreensão humana; que por um correto processo de raciocínio podem demonstrar-se como falsas; de modo que no sentido estrito dos termos o que é verdade na religião é falso em filosofia. “A Sorbonne,” diz Lutero, “pronunciou uma decisão mais abominável ao dizer que o que é verdade em religião também é verdade em filosofia, e além disso condena como hereges a todos os que afirmam o contrário. Mediante esta doutrina horrível deu a entender claramente que as doutrinas da fé têm que ser submetidas ao jugo da razão humana.”109 109 Works, edit. Walch, vol. x. p. 1399. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 118 Sir William Hamilton. Em segundo lugar, a base tirada do Sir William Hamilton sobre este tema não é precisamente a mesma que a adotada pelos luteranos. Estão de acordo, de fato, nisto, que estamos obrigados a crer o que (no tribunal da razão) podemos demonstrar que é falso, mas diferem completamente quanto à causa e natureza deste conflito entre a razão e a fé. De acordo com os luteranos, surge da corrupção e a deterioração de nossa natureza pela Queda. Elimina-se, em parte, neste mundo pela regeneração, e dali em diante em sua totalidade pela perfeição de nossa santificação. Segundo Hamilton, este conflito surge da necessária limitação do pensamento humano. Deus nos tem feito essa razão, agindo de acordo com suas próprias leis, por necessidade chega a conclusões diretamente opostas às doutrinas da religião natural e revelada. Podemos demonstrar que o Ser absoluto não pode saber, não pode ser uma causa, não pode ser consciente. Poderá provar-se com igual clareza que o Infinito não pode ser uma pessoa, ou possuir atributos morais. Aqui, então, o que é verdade em religião, o que estamos obrigados a crer, e o que na realidade todos os homens, em virtude da constituição de sua própria natureza, creem, pode-se provar que é falso. Por conseguinte, existe um conflito irreconciliável entre nossa natureza intelectual e moral. Mas como, segundo o idealista, a razão nos obriga à conclusão de que o mundo exterior não existe, ao mesmo tempo, entretanto, é seguro e adequado agir no suposto de que o é, e é o que aparenta ser; assim, segundo Hamilton, é não só seguro, mas também obrigatório em nós agir no suposto de que Deus é uma pessoa, embora infinito, conquanto nossa razão demonstra que uma pessoa infinita é uma contradição. O conflito entre a razão e a fé é reconhecido, enquanto a obrigação da fé no testemunho de nossa natureza moral e religiosa e da Palavra de Deus afirma-se. Este ponto foi já discutido. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 119 A postura dos filósofos especulativos. Em terceiro lugar, tomamos nota da postura defendida pelos filósofos especulativos.Eles também sustentam que a razão demonstra as doutrinas da revelação e inclusive da religião natural que é falsa. Mas eles não reconhecem sua obrigação de recebê-las como objeto de fé. Sendo contrário à razão, essas doutrinas são falsas, e sendo falsas, devem, de ser rejeitadas por homens ilustrados. Se qualquer se apegar a elas como um assunto de sentimento, pode fazê-lo, mas deve renunciar a toda pretensão de conhecimento filosófico. Podem os objetos da fé estar acima da razão, e entretanto, não contra ela? Uma quinta questão é: Podem os objetos da fé estar acima, e entretanto, não ser contrários à razão? A resposta a esta pergunta deve ser afirmativa, porque a distinção implícita é sólida e admitida quase universalmente. O que está acima da razão é simplesmente incompreensível. O que é contra a razão é impossível. É contrário à razão que as contradições devam ser verdade; que uma parte deva ser maior que o todo; que uma coisa deva ser e não ser ao mesmo tempo; que o correto deva ser errado e o errado correto. É incompreensível como matéria atrai matéria, como a mente age sobre o corpo e o corpo sobre a mente. A distinção entre o incompreensível e o impossível, é portanto, claro e admitido. E a distinção entre o que está acima da razão, e o que é contra a razão, é igualmente óbvio e justo. O grande corpo de teólogos cristãos tomaram por base que as doutrinas da Bíblia não são contrárias à razão, embora acima dela. Quer dizer, são assuntos de fé a ser recebidos pela autoridade de Deus, e não porque pode ser compreendido nem demonstrado. Como não se compreende como uma alma e corpo podem estar unidos numa vida consciente; pelo que é incompreensível como uma natureza divina e humana podem-se unir numa só pessoa em Cristo. Tampouco é impossível, e portanto, não é contrário à razão. Conhecemos um fato pela consciência; cremos no Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 120 outro pelo testemunho de Deus. É impossível, e portanto contrário à razão, que três devam ser um. Mas não é impossível que a mesma essência numérica devia subsistir em três pessoas distintas. Os realistas nos dizem que a humanidade, como uma só essência numérica, subsista em todos os milhões de seres humanos. Tomás de Aquino toma o verdadeiro fundamento, quando diz: “Ea quæ sunt supra naturam, sola fide tenemus. Quod autem credimus, auctoritati debemus. Unde in omnibus asserendis sequi debemus naturam rerum, præter ea, quæ auctoritate divina traduntur, quæ sunt supra naturam.”110 “Quæ igitur fidei sunt, non sunt tentanda probare nisi per auctoritates his, qui auctoritates suscipiunt. Apud alios vero sufficit defendere non esse impossibile quod prædicat fides.”111 “Quidquid in aliis scientiis invenitur veritati hujus scientiæ [sacræ doctrinæ] repugnans, totum condemnatur ut falsum.”112 Os objetos da fé são consistentes com a Razão. Enquanto isso, os objetos da fé revelados na Bíblia, não são verdades da razão, quer dizer, que a razão humana pode descobrir ou compreender, ou demonstrar, são, entretanto, perfeitamente consistentes com a razão. Eles não implicam contradições ou absurdos; nada impossível, nada inconsistente com as intuições ou do intelecto ou da consciência; nada inconsistente com alguma verdade bem estabelecida, quer seja do mundo exterior ou do mundo da mente. Pelo contrário, o conteúdo da Bíblia, na medida em que se referem às coisas dentro do domínio legítimo do conhecimento humano, encontra-se consistente, e deve ser consistente com tudo o que sem dúvida sabemos por outras fontes distintas de uma revelação divina. Tudo o que as Escrituras ensinam a respeito do mundo exterior está de acordo com os fatos da experiência. Não ensinam que a terra é um 110 Summa, I. quest. xcix. art 1, edit. Cologne, 1640, p. 185, a. 111 Ibid. quæst. xxxii. art. 1, p. 64, a. 112 Ibid. quæst. i. art. 6, p. 2, b. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 121 plano, que está estacionada no espaço; que o sol gira ao redor dela. Por outro lado, ensinam que Deus fez todas as plantas e os animais, cada um segundo sua própria espécie; e, em consequência, toda experiência demonstra que as espécies são imutáveis. Todas as doutrinas antropológicas da Bíblia estão de acordo com o que sabemos do homem com base na consciência e na observação. A Bíblia ensina que Deus fez de um sangue todas as nações que habitam sobre a face da terra. Encontramos, em consequência, que todas as variedades de nossa raça têm a mesma estrutura anatômica; a própria natureza física; as mesmas faculdades racionais e morais. A Bíblia ensina que o homem é um agente livre, responsável; que todos os homens são pecadores; que todos necessitam redenção, e que nenhum homem pode redimir-se, ou encontrar um resgate como seu irmão. Com estes ensinos a consciência de todos os homens está de acordo. Tudo o que as Escrituras revelam sobre a natureza e atributos de Deus corresponde com nossa natureza religiosa, satisfazendo, elevando e santificando todas as nossas faculdades e cumprindo todas as nossas necessidades. Se o conteúdo da Bíblia não correspondesse com as verdades que Deus revelou em Suas obras exteriores e a constituição de nossa natureza, não podia ser recebida como proveniente dEle, porque Deus não pode contradizer-se. Nada, portanto, pode ser mais depreciativo à Bíblia que a afirmação de que suas doutrinas são contrárias à razão. A fé no irracional é impossível. A hipótese de que a razão e a fé são incompatíveis; de que temos que saltar à irracionalidade a fim de chegar a ser crentes, é, seja qual for sua intenção, a linguagem da incredulidade; porque a fé no irracional é, ela mesma, necessariamente irracional. É impossível crer que seja certo aquilo que a mente contempla como falso. Isto seria crer e descrer o mesmo ao mesmo tempo. Assim, se fosse certo o que afirmam os modernos filósofos, que é impossível que um ser infinito possa ser uma pessoa, então a fé na personalidade de Deus seria impossível. Então não Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 122 poderia haver religião, nem pecado, nem responsabilidade, nem imortalidade. A fé não é uma convicção cega, irracional. A fim de crer temos que saber o que cremos, e a base sobre a qual repousa nossa fé. E por esta razão o refúgio que alguns buscam na fé, fugindo do cepticismo universal ao que, segundo eles, leva necessariamente à razão, é um refúgio inseguro e sem valor. Embora admitindo que as verdades da revelação devam ser recebidas com base na autoridade de Deus; que a razão humana não pode nem abrangê-las nem demonstrá-las; que um homem tem que ser transformado e convertido e como uma criança antes que possa verdadeiramente receber as doutrinas da Bíblia; e admitindo, além disso, que estas doutrinas são irreconciliáveis com qualquer dos sistemas filosóficos, sempre construídos por aqueles que recusam ser ensinados por Deus, ou que ignoravam Sua palavra, entretanto deve manter-se que estas doutrinas são inexpugnáveis; que nenhum intelecto criado pode demonstrar que são impossíveis ou irracionais. Paulo, rejeitando como rejeitava a sabedoria do mundo, mantinha com tudo que ele ensinava uma mais alta sabedoria, a sabedoria de Deus (1Co 2:6, 7). E quem ousará dizer que a sabedoria de Deus é irracional? O conhecimento, essencial para a fé. Uma sexta questão, incluída sob a divisão da relação da fé com o conhecimento é: É o conhecimento essencial à fé? Quer dizer, deve uma verdade ser conhecida para que se creia nela? Isto os Protestantes afirmam e os Romanistas negam. Os Protestantes admitem naturalmente que os mistérios, ou verdades que somos incapazes de compreender, podem ser, e são, objetos legítimos da fé. Repudiam a doutrina racionalista de que podemos crer só naquilo que podemos compreender e que podemos demonstrar, ou ao menos elucidar, de maneira que se vejacerto sob sua própria luz. O que os Protestantes mantêm é que o conhecimento, isto é, a cognição do sentido da proposição a ser crida, é essencial para a fé, e, Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 123 por conseguinte, que a fé está limitada pelo conhecimento. Só podemos crer naquilo que conhecemos, isto é, aquilo de que temos uma apreensão inteligente. Se nos for anunciada uma proposição numa língua desconhecida, não podemos afirmar nada a respeito da mesma. Não podemos nem crer nela nem descrê-la. Se a pessoa que fizer a declaração afirmasse que é verdadeira, se tivermos confiança em sua competência e integridade, podemos crer que diz a verdade, mas a proposição em si não faz parte de nossa fé. O Apóstolo reconhece esta verdade evidente quando diz: «Assim também vós, se com a língua não disserdes palavra bem compreensível (εὔσημον λόγον [eusëmon logon]), como se entenderá o que dizeis? Porque estareis como se falásseis ao ar.. ... Se eu ignorar o sentido da voz, serei bárbaro para aquele a quem falo, e o que fala será bárbaro para mim ... Se tu bendisseres com o espírito, como dirá o que ocupa o lugar de indouto o Amém sobre a tua ação de graças, visto que não sabe o que dizes?» (1Co 14:9-16). Dizer Amém é assentir a algo, tomá-lo como próprio. Por isso, segundo o Apóstolo o conhecimento, ou a compreensão inteligente do significado do que se propõe, é essencial para a fé. Se a proposição «Deus é Espírito» se anuncia aos não conhecedores em hebraico ou em grego, é impossível que possam assentir a esta verdade. Se compreenderem a linguagem, se souberem qual é o significado da palavra «Deus», e o que significa a palavra «Espírito», então poderão receber ou rejeitar a verdade que afirma aquela proposição. A declaração «Jesus é o Filho de Deus» admite interpretações diferentes. Uns dizem que o termo Filho é um título oficial, e por isso que a proposição «Jesus é o Filho de Deus» significa que Jesus é um governante. Outros dizem que é um termo afetuoso, e então a proposição significa que Jesus era o especial objeto do amor de Deus. Outros dizem que Jesus tem a própria natureza com Deus; que Ele é uma pessoa divina. Se este é o significado do Espírito ao declarar que Jesus é o Filho de Deus, então os que não atribuem este sentido às palavras não creem na verdade que se quer ensinar. Quando se diz que Deus pôs a Cristo como propiciação pelos nossos pecados, se Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 124 não compreendermos o que significa a palavra propiciação, a proposição então não significa nada para nós, e nada não pode ser um objeto de fé. O conhecimento, a medida da fé. Desprende-se do dito, ou antes, está incluído nisso, que sendo o conhecimento essencial para a fé, tem que ser a medida da mesma. O que se encontra além da esfera do conhecimento encontra-se além da esfera da fé. Do invisível e eterno podemos crer só no que Deus revelou; e do que Deus revelou podemos crer só no que conhecemos. Tem-se dito que pode-se dizer corretamente daquele que crê que a Bíblia é a Palavra de Deus que crê em tudo o que ensina, embora muitas de suas instruções lhe sejam desconhecidas. Mas esta não é uma proposição correta. Aquele que crê na Bíblia está disposto a crer com base em sua autoridade tudo o que declare certo. Mas não se pode dizer corretamente que creia mais de seu conteúdo que aquilo que ele conhece. Se lhe for perguntado se crê que alguns homens mordidos por serpentes venenosas foram jamais curados olhando uma serpente de metal, poderia, se ignorar o Pentateuco, responder com um honrado «não». Mas se chegar a ler e a compreender o registro da cura dos israelitas moribundos, tal como se encontra na Bíblia, responderia de maneira racional e sincera: «sim». Esta disposição a crer em tudo o que a Bíblia ensina logo que sabemos o que se ensina pode receber o nome de fé implícita, mas não é fé real. Não tem nenhuma de suas características nem nada de seu poder. Prova de que o conhecimento é essencial para a fé. Que conhecimento, no sentido antes dito, é essencial à fé é evidente: 1. Pela própria natureza da fé. Inclui a convicção da verdade de seu objeto. É uma afirmação da mente que uma coisa é verdade ou confiável, mas a mente não pode afirmar nada daquilo do que não sabe nada. 2. A Bíblia em todas as partes ensina que sem conhecimento não pode haver fé. Isto, como se acaba de dizer, é a doutrina do apóstolo Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 125 Paulo. Ele condenou o falar numa língua desconhecida numa assembleia heterogênea, porque os ouvintes não podiam compreender o que se disse; e se não conhecerem o significado das palavras pronunciadas, poderiam não assentir a elas, nem se aproveitar delas. Em outro lugar (Rm 10:14) ele pergunta, “Como crerão naquele de quem não ouviram?” «A fé», diz o Apóstolo, «vem pelo ouvir». O mandamento de Cristo foi o de ensinar o evangelho a toda criatura; ensinar todas as nações. Os que recebessem as instruções dadas desta maneira, seriam salvos, assegurou Ele aos Seus discípulos. Os que as rejeitassem, seriam condenados. Isto dá por sentado que sem o conhecimento do Evangelho não pode haver fé. É com base neste princípio que os Apóstolos agiram em todas as partes. Foram por todo lugar pregando a Cristo, demonstrando pelas Escrituras que Ele era o Filho de Deus e o Salvador do mundo. A comunicação de conhecimento precedeu sempre à demanda de fé. 3. Tal é a íntima conexão entre fé e conhecimento, que nas Escrituras um termo é usado, com frequência, pelo outro. Conhecer Cristo é crer nEle. Conhecer a verdade, é capturá-la de modo inteligente e crente e apropriar-se dela. A conversão tem lugar mediante conhecimento. Paulo diz que foi convertido em crente pela revelação de Cristo dentro dele. Diz-se do Espírito que abre os olhos do entendimento. Dos homens afirma-se que são renovados para que conheçam. Somos trasladados do reino das trevas ao reino da luz. Os crentes são filhos da luz. Do povo é dito que perece por falta de conhecimento. Nada é mais característico da Bíblia que a importância que se dá ao conhecimento da verdade. Diz-se que somos gerados por meio da verdade; que somos santificados pela verdade; e dos ministros e mestres afirma-se que todo o seu dever é manter a palavra de vida. É por esta crença dos Protestantes no essencial do conhecimento para a fé que insistem tão energicamente na circulação das Escrituras e na instrução do povo. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 126 A doutrina Romanista a respeito desta questão. Os Romanistas estabelecem uma distinção entre fé explícita e implícita. Pelo primeiro se significa fé numa verdade conhecida; pelo último, fé na verdades não conhecidas. Ensinam eles que só é necessário conhecer umas poucas verdades primárias da religião, e que a fé sem conhecimento quanto a todas as outras verdades é genuína e suficiente. A respeito disto diz Tomás de Aquino: «Quantum ad prima credibilia, quæ sunt articuli fidei, tenetur homo explicite credere, sed solum implicite, vel in præparatione animi, in quantum paratus est credere quidquid divina Scriptura continet».113 A fé implícita é definida como: «Assensus, qui omnia, quamvis ignota, quæ ab ecclesia probantur, amplectitur».114 Belarmino115 diz: “In eo qui credit, duo sunt, apprehensio et judicium, sive assensus: sed apprehensio non est fides, sed aliud fidem præcedens. Possunt enim infideles apprehendere mysteria fidei. Præterea, apprehensio non dicitur proprie notitia. . . . . Mysteria fidei, quæ rationem superant, credimus, non intelligimus, ac per hoc fides distingintur contra scientiam, et melius per ignorantiam, quam per notitiam definitur.” A fé que se demanda do povo é simplesmente «Uma intenção geral de crer tudo aquilo que crê a Igreja».116 A Igreja ensina que há sete sacramentos. De umhomem que não tenha nem ideia do que significa a palavra sacramento, nem que ritos são os que a Igreja considera como de caráter sacramental, diz-se que crê que a ordem sacerdotal, a penitência, o casamento e a extrema-unção são sacramentos. E o mesmo com todas as outras doutrinas da Igreja. Diz-se que a verdadeira fé é congruente com a total ignorância. Segundo esta doutrina, um homem pode ser um verdadeiro cristão, se ele se submete à Igreja, embora por suas 113 Summa, II. II, quræt II, art. 5, edición de Colonia, 1640, pág. 7 a, del tercer juego. 114 Hutterus Redivivus. §108, 6 . Edición, Leipzig, 1845, pág. 271. 115 De Justificatione, lib. i. cap. 7, Disputationes, edit. Paris, 1608, vol. iv. 714, a, c. 116 Strauss, Dogmatik, Die Christliche Glaubenslehre. Tübingen and Stuttgart, 1840, vol. i. p. 284. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 127 convicções internas e modos de pensamento possa ser panteísta ou pagão. É a este grave erro a respeito da natureza da fé que se deve atribuir muito do caráter e das práticas da Igreja Romanista: 1. Esta é a razão pela qual as Escrituras são negados ao povo. Se o conhecimento não é necessário para a fé, não há necessidade de que o povo conheça o que ensina a Bíblia.* 2. Pela mesma razão os serviços de culto público são efetuados numa linguagem desconhecida.* 3. Daí também o simbolismo que caracteriza o seu culto. O fim a conseguir é uma cega reverência e maravilha. Para este fim não é necessário que estes símbolos sejam compreendidos. É suficiente que afetem à imaginação. 4. A este mesmo princípio deve atribuir-se a prática da reserva na oração. A verdade pode ser retida ou oculta. A cruz é exposta perante o povo, mas não é necessário ensinar a doutrina do sacrifício pelo pecado ofertado nela. É suficiente que o povo fique impressionado; importa pouco se creem que o sinal, ou o material, ou a doutrina simbolizada, é o que assegura a salvação. Mais ainda, quanto mais obscurecida a mente, quanto mais vago e misterioso for o sentimento estimulado, e tanto mais cega a submissão prestada, tanto mais genuíno será o exercício da fé. «A fé religiosa», diz Newman, «é treva intelectual.»117 5. É sobre este mesmo princípio que sempre se efetuaram as missões católico-romanas. A pessoa é convertida não por meio da verdade, nem por meio de um curso de instrução, mas pelo batismo. São feitos cristãos aos milhares, não por sua inteligente adoção do * É só em época relativamente recente que a Igreja de Roma retirou a proibição da leitura da Bíblia pelo povo, que antes estava submetido a muito severas restrições. De toda maneira, a Igreja de Roma não alenta de maneira aberta e sem restrições os seus fiéis à leitura particular e estudo pessoal das Escrituras. (N. do T.) * Prática que teve lugar até o Concílio Vaticano II, a partir do qual se impôs a Missa na língua do povo. (N. do T.) 117 Sermons, vol. I, pág. 124. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 128 cristianismo como sistema de doutrina, do qual podem estar profundamente ignorantes, mas por sua simples submissão à igreja e a seus ritos prescritos. A consequência disso foi que as missões católicas, embora continuadas em alguns casos durante mais de cem anos, não impregnam no povo, mas quase uniformemente se desvanecem logo que se corte o fornecimento de missionários forâneos. § 5. Fé e sentimentos. Já se viu: 1. Que a fé, o ato de crer, não se pode definir como o assentimento favorável da compreensão determinado pela vontade. Sem dúvida, há muitos casos em que um homem crê contra a sua vontade. 2. Também se sustentou que não é correto dizer que a fé é assentimento fundado no sentimento. A este respeito, admitiu-se que os sentimentos de um homem têm uma grande influência sobre sua fé; que é relativamente fácil crer no que é agradável, e difícil de crer no que é desagradável. Admitiu-se também que na fé salvadora, o dom de Deus, apoiando-se no iluminador testemunho interior do Espírito Santo, há um discernimento, não só da verdade, mas também da excelência divina das coisas do Espírito, que está inseparavelmente conectada com o sentimento adequado. Reconheceu-se, além disso, que, no que se refere à consciência do crente, ele parece receber a verdade sobre seu próprio testemunho, por sua excelência e poder sobre seu coração e sua consciência. Isto, entretanto, é análogo a outros fatos em sua experiência. Quando alguém se arrepende e crê, ele está consciente só de seus próprios exercícios e não das influências sobrenaturais do Espírito, ao qual os exercícios devem sua origem e natureza. Assim também no exercício da fé, a consciência não alcança o testemunho interior do Espírito em que se funda a fé. Entretanto, apesar destas admissões, ainda é incorreto dizer que a fé se baseia no sentimento, porque é só de certas formas ou exercícios de fé que isto inclusive pode dizer-se plausível; e Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 129 porque há muitos exercícios de inclusive fé salvadora (quer dizer, de fé num verdadeiro crente,) que não são atendidos pelo sentimento. Este é o caso quando o objeto da fé é um fato histórico. Além disso, as Escrituras ensinam claramente que a base da fé é o testemunho de Deus, ou a demonstração do Espírito. Ele revelou certas verdades, e atende com tal quantidade e tipo de evidência, como produz convicção, e os recebemos sob sua autoridade. 3. A fé não está necessariamente conectada com o sentimento. Às vezes sim, às vezes não. Que o esteja ou não depende: (a) Da natureza do objeto da fé. A crença em boas notícias é necessariamente acompanhada de alegria; em más notícias, por dor. A crença na excelência moral envolve um sentimento de aprovação. A crença de que um certo ato seja criminoso envolve um sentimento de desaprovação. (b) Da base imediata da fé. Se alguém crê que uma pintura é bela com base no testemunho de juízes competentes, não há um sentimento estético relacionado com sua fé. Mas se percebe pessoalmente a beleza do objeto, então o deleite é inseparável da convicção de que é belo. Da mesma maneira, se alguém crê que Jesus é Deus manifestado em carne com base no mero testemunho externo da Bíblia, não experimenta uma devida impressão desta verdade. Mas se sua fé está baseada no testemunho interno do Espírito; mediante o qual lhe é revelada a glória de Deus na face de Jesus Cristo, então fica cheio de admiração e amor reverente. Fé religiosa mais do que simples assentimento. 4. Outra questão agitada sobre este tema é: Se a fé é um exercício puramente intelectual, ou se é também um exercício dos afetos. Isto é quase aliado à questão anterior, e deve receber substancialmente a mesma resposta. Belarmino118 diz: “Tribus in rebus ab hæreticis Catholici dissentiunt; Primum, in objecto fidei justificantis, quod hæretici 118 De Justificatione, lib. i. cap. 4, Disputationes, edit. Paris, 1608, vol. iv. p. 706, d, e. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 130 restringunt ad solam promissionem misericordiæ specialis, Catholici tam late patere volunt, quam late patet verbam. . . . Deinde in facultate et potentia animi quæ sedes est fidei. Siquidem illi fidem collocant in voluntate [seu in corde] cum fiduciam esse definiunt; ac per hoc eam cum spe confundunt. Fiducia enim nihil est aliud, nisi spes roborata. . . . Catholici fidem in intellectu sedem habere docent. Denique, in ipso actu intellectus. Ipsi enim per notitiam fidem definiunt, nos per assensum. Assentimur enim Deo, quamvis ea nobis credenda proponat, quæ non intelligimus.” Quanto à fé como um mero ato intelectual ou especulativo, eles negam consistentemente que está necessariamente relacionado com a salvação. De acordo com sua doutrina, um homem pode ter féverdadeira, quer dizer, a fé que as Escrituras demandam, e, entretanto perecer. Neste ponto, o Concílio de Trento diz: “Si quis dixerit, amissa per peccatum gratia, simul et fidem semper amitti, aut fidem, quæ remanet, non esse veram fidem, licet non sit viva; aut eum, qui fidem sine caritate habet, non esse Christianum; anathema sit.”119 A doutrina protestante. Por outro lado os protestantes com uma só voz mantêm que a fé que se conecta com a salvação, não é um mero exercício intelectual. Calvino diz:120 “Verum observemus, fidei sedem non in cerebro esse, sed in corde: neque vero de eo contenderim, qua in parte corporis sita sit fides: sed quoniam cordis nomen pro serio et sincero affectu fere capitur, dico firmam esse et efficacem fiduciam, non nudam tantum notionem.” Ele também diz:121 “Quodsi expenderent illud Pauli, Corde creditur ad justitiam (Rm. 10:10): fingere desinerent frigidam illam qualitatem. Si una hæc nobis suppeteret ratio, valere deberet ad litem finiendam: assensionem scilicet ipsam sicuti ex parte attigi, et fusius 119 Session vi., Canon 28; Streitwolf, Libri Symbolici, Göttingen, 1846, vol. i. p. 37. 120 On Romans x. 10; Commentaries, edit. Berlin, 1831, vol. v. p. 139. 121 Institutio, III. ii. 8; edit. Berlin, 1834, vol. i. p. 358. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 131 iterum repetam, cordis esse magis quam cerebri, et affectus magis quam intelligentiæ.” A resposta no Catecismo do Heidelberg, a pergunta: O que é a Fé? é: “Não é simplesmente um conhecimento certo, em que eu recebo como verdade tudo o que Deus nos revelou em Sua palavra, mas também uma confiança cordial, que o Espírito Santo opera em mim pelo Evangelho, que não só para outros, senão para mim também, o perdão do pecado, a justiça e a vida eterna são dados por Deus, por pura graça, e só por meio dos méritos de Cristo.”122 Que a fé salvadora não é um mero assentimento especulativo do entendimento, é a doutrina uniforme dos símbolos protestantes. Neste ponto, entretanto, pode-se notar, em primeiro lugar, que, como se indicou antes, as Escrituras não fazem a distinção terminante entre o entendimento, os sentimentos, e a vontade, que é comum em nossos dias. Uma grande classe de nossos atos e estados interiores são tão complexos quanto a ser os atos de toda a alma, e não exclusivamente de qualquer de suas faculdades. No arrependimento há necessariamente uma percepção intelectual de nós mesmos como pecadores, da santidade de Deus, de sua lei a que falhamos em ser conformados e de Sua misericórdia em Cristo; há uma desaprovação moral de nosso caráter e comportamento; um sentimento de dor, vergonha e remorso; e um propósito de abandonar o pecado e levar uma vida santa. Dificilmente menos complexo é o estado de mente expresso pela palavra fé, tal como existe num verdadeiro crente. Em segundo lugar, há uma distinção a ser feita entre a fé em geral e a fé salvadora. Se tomarmos esse elemento da fé que é comum a todo ato de crer; se entendermos por ela a compreensão de uma coisa como verdadeira e digna de confiança, se um fato da história ou da ciência, então pode-se dizer que a fé em sua natureza essencial é intelectual, ou assentimento inteligente. Mas se a questão é: O que é esse ato ou estado de mente que 122 Pergunta 21. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 132 se requer no Evangelho, quando somos ordenados a crer; a resposta é muito diferente. Crer que Cristo é “Deus manifestado em carne,” não é a mera convicção intelectual que ninguém, nem verdadeiramente divino, pode ser e fazer o que Cristo foi e fez, porque esta convicção declarada demoníaca; mas deve-se recebê-lo como nosso Deus. Isto inclui a detenção e convicção de sua glória divina, e a reverência em adoração, amor, confiança, e submissão, que se devem só a Deus. Quando somos ordenados a crer em Cristo como o Salvador dos homens, não estamos obrigados simplesmente a assentir à proposição de que Ele salva os pecadores, mas também a receber e descansar nEle somente para nossa própria salvação. O que, portanto, as Escrituras significam por fé, neste sentido, a fé que se requer para a salvação, é um ato de toda a alma, do entendimento, do coração e da vontade. Prova da doutrina protestante. A doutrina protestante de que a fé salvadora inclui conhecimento, consentimento, e confiança, e não é, como ensinam os romanistas, mero assentimento, numa atenção contínua por provas abundantes. 1. Em primeiro lugar, prova-se pela natureza do objeto da fé salvadora. Esse objeto não é mais que a verdade geral da Escritura, não o fato de que o Evangelho revela o plano de Deus de salvar os pecadores; mas é o próprio Cristo, Sua pessoa e obra, e a oferta da salvação a nós pessoal e individualmente. Pela natureza do caso não podemos, como já se comentou, crer em Cristo pelo testemunho interior do Espírito que revela Sua glória e Seu amor, sem os sentimentos de reverência, amor e confiança misturando com o ato e constituindo o seu caráter. Tampouco é possível que uma alma oprimida com um sentido do pecado deve receber a promessa de libertação de sua culpa e poder, sem nenhum sentimento de gratidão e confiança. O ato de fé nessa promessa é em sua natureza um ato de apropriação e confiança. 2. Encontramos, em consequência, que em muitos casos na Bíblia a palavra confiança utiliza-se em lugar de fé. O mesmo ato ou estado de Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 133 mente que num lugar se expressa mediante uma palavra, em outro se expressa por outra. As mesmas promessas fazem-se para a confiança como são feitas à fé. Os mesmos efeitos se atribuem a uma, que se atribuem à outra. 3. O uso de outras palavras e formas de expressão como explicação do ato de fé, e substituída por essa palavra, mostra que inclui a confiança como um elemento essencial da sua natureza. Somos ordenados olhar a Cristo, como os agonizantes israelitas olharam à serpente de bronze. Este olhar envolvia confiança; e olhar se declara crer. Os pecadores são exortados a fugir para Cristo como um refúgio. O assassino fugia à cidade de refúgio, porque ele confiou nela como um lugar seguro. Somos induzidos a receber a Cristo, descansar nEle, apoderar-se dEle. Todos estes, e outros modos de expressão que nos ensinam o que devemos fazer quando nos ordenados a crer, mostram que a confiança é um elemento essencial no ato da fé salvadora. 4. A ordem para crer é expressa pela palavra pisteo, não só quando seguida pelo acusativo, mas também quando é seguida pelo dativo e pelas preposições, ἐπί, εἰς, ἐν. Mas o significado literal de πιστεύειν εἰς ou ἐπί ou ἐν, não é simplesmente crer, mas crer em, confiar em, fiar-se em. A fé numa promessa feita a nós mesmos, pela natureza do caso, é um ato de confiança naquele que faz a promessa. 5. A incredulidade é, portanto, expressa pela dúvida, o medo, a desconfiança e o desespero. 6. O crente sabe por experiência própria que quando ele crê que ele recebe e se apoia em Jesus Cristo para a salvação, como Ele Se oferece gratuitamente a nós no Evangelho. A controvérsia entre Romanistas e Protestantes a respeito desta questão gira em torno do ponto de vista tirado do plano de salvação. Se, como mantêm os Protestantes, cada homem, para ser salvo, deve receber o registro que Deus deu de Seu Filho; deve crer que Ele é Deus manifestado em carne, a propiciação por nossos pecados, o profeta, sacerdote e rei de Seu povo, então se deve admitir que a fé envolve Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 134 confiar em Cristo como fonte de sabedoria, justiça, santificação e redenção. Mas se, como ensinam os Romanistas, os benefícios da redenção são comunicados só por meio dos sacramentos, efetivos ex opere operato, então a fé é o oposto à incredulidade em seu sentido popular. Se um homem não é crente, é incrédulo, isto é,alguém que rechaça o cristianismo. O objeto da fé é a revelação divina tal como está contida na Bíblia. É um simples assentimento ao fato de que as Escrituras procedem de Deus, e que a Igreja é a instituição divinamente constituída e sobrenaturalmente dotada para a salvação dos homens. Crendo nisso, o pecador vem à Igreja e recebe através de seu ministério, em sua medida, todos os benefícios da redenção. De acordo com este sistema da natureza e do papel da fé são totalmente diferentes das que estão de acordo com a teoria protestante do Evangelho. § 6. Fé e amor. Quanto à relação entre a fé e o amor há três posturas diferentes: 1. Que o amor é a base da fé. Que os homens creem na verdade porque a amam. A fé está baseada no sentimento. Este ponto de vista já foi suficientemente discutido. 2. Que o amor é o acompanhante invariável e necessário e consequente à fé salvadora. Assim como ninguém pode ver nem crer numa coisa como moralmente boa sem um sentimento de aprovação, assim tampouco ninguém pode ver e crer na glória de Deus como está revelada nas Escrituras sem que se desperte em sua alma uma reverência cheia de adoração; ninguém pode crer para salvação que Cristo é o Filho de Deus e o Filho do Homem, que nos amou e deu-se a Si mesmo por nós, e que nos faz reis e sacerdotes para Deus, sem amor e adoração em proporção à clareza e fortaleza desta fé, enchendo o coração e controlando a vida. Por isto se diz que a fé opera pelo amor e purifica o coração. Os Romanistas, de fato, traduzem πίστις δι᾽ ἀγάπης ἐνεργουμένη nesta passagem (Gl. 5:6): “a fé aperfeiçoada ou completada Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 135 pelo amor.” Mas isto é contrário ao uso constante da palavra ἐνεργεῖσθαι no Novo Testamento, que é sempre utilizada num sentido médio “vim suam exserere.” Segundo o ensino do Apóstolo em Rm 7:4-6, o amor, sem fé, ou anterior a ela, é impossível. Até que cheguemos a crer, estamos sob a condenação da lei. Enquanto durar a condenação, estamos em inimizade com Deus. Enquanto em inimizade com Deus, produzimos fruto para morte. Só quando reconciliados com Deus e unidos a Cristo, que produzimos fruto para Deus. Crendo que Deus nos ama, nós O amamos. Crendo que Cristo Se entregou por nós, nós dedicamos nossas vidas a Ele. Os que creem que a aparência deste mundo passa, que as coisas invisíveis são eternas, os que têm esta fé que é a substância do que se espera, e a evidência do que não se vê, põem seus afetos nas coisas de cima, onde Cristo está sentado à destra de Deus. Já se insistiu o suficiente nesta conexão necessária entre a fé e o amor. Os Romanistas fazem com que o amor seja essencial à fé. 3. O terceiro ponto de vista doutrinal sobre este tema é o dos romanistas, que fazem do amor a essência da fé. Em outras palavras, o amor para eles é a forma (no sentido escolástico da palavra) da fé; é o que lhe dá a vida ou o caráter como uma virtude cristã ou graça. Conquanto por um lado ensinam, como vimos com o Concílio de Trento, que a fé é em si mesmo mero assentimento intelectual, sem qualquer virtude moral, e que pode ser exercida pelos não renovados ou por aqueles num estado de pecado mortal; por outro lado, sustentam que há uma graça cristã como a fé; mas nesse caso, fé é mais outro nome para amor. Esta não é a distinção entre uma fé viva e uma fé morta, que as Escrituras e todos os cristãos evangélicos reconhecem. Para os romanistas a fides informis é a fé verdadeira, e a fides formata é o amor. Sobre este ponto, Pedro Lombardo123 diz: “Fides qua dicitur [creditur?], 123 Liber Sententiarum, III. xxiii. C. edit. 1472(?). Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 136 si cum caritate sit, virtus est, quia caritas ut ait Ambrosius mater est omnium virtutum, quæ omnes informat, sine qua nulla vera virtus est.” Tomás de Aquino124 diz: “Actus fidei ordinatur ad objectum voluntatis, quod est bonum, sicut ad finem. Hoc autem bonum quod est finis fidei, scilicet bonum divinum, est proprium objectum charitatis: et ideo charitas dicitur forma fidei, in quantum per charitatem actus fidei perficitur et formatur.” Belarmino125 diz: “Quod si charitas est forma fidei, et fides non justificat formaliter, nisi ab ipsa caritate formata certe multo magis charitas ipsa justificat. . . . . Fides quæ agitur, ac movetur, formatur, et quasi animatur per dilectionem. . . . . Apostolus Paulus . . . . explicat dilectionem formam esse extrinsecam fidei non intrinsecam, quæ det illi, non ut sit, sed ut moveatur.” Tudo isto é inteligível e razoável, sempre e quando admitimos a justificação subjetiva, e o mérito das boas obras. Se a justificação for a santificação, então pode admitir-se que o amor tem mais que ver com a fabricação de homens santos, que a fé considerada como mero assentimento intelectual. E se for admitido que somos aceitos por Deus na base de nossa própria virtude, então pode considerar-se que o amor é mais valioso que qualquer mero exercício do intelecto. Os romanistas argumentam: “Maxima virtus maxime justificat. Dilectio est maxima virtus. Ergo maxime justificat.” Foi devido a esta distinção entre uma “fé formada e não formada” que se apresentou no interesse da justificação com base em nosso próprio caráter e méritos, que Lutero, com seu poder veemente habitual, diz: “Ipsi duplicem faciunt fidem, informem et formatam, hanc pestilentissimam et satanicam glossam non possum non vehementer detestari.” É só quando relacionada a posturas falsas de justificação que esta questão tem uma importância real. Porque é admitido por todos os protestantes que a fé salvadora e o amor estão inseparavelmente 124 Summa, II. ii. quæst. iv. art. 3, edit. Cologne, 1640, p. 11, a, of third set. 125 De Justificatione, lib. ii. cap. 4; Disputationes, edit. Paris, 1608, vol. iv. pp. 789, a, b, 790, c. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 137 conectados; que a fé sem amor, quer dizer, que uma fé que não produz amor e boas obras, está morta. Mas os protestantes são extenuantes em negar que somos justificados em razão do amor, que é o verdadeiro significado dos romanistas quando dizem “fides non justificat formaliter, nisi ab ipsa caritate formata.” § 7. O objeto da fé salvadora. Fé geral. Admite-se que todos os cristãos são obrigados a crer, e que todos creem em tudo o que se ensina na Palavra de Deus, até onde conhecem o conteúdo da Escritura. Por isso, é correto dizer que o objeto da fé é toda a revelação de Deus contida em Sua palavra. Como a Bíblia é para os Protestantes a única regra infalível de fé e prática, não se pode impor nada ao povo de Deus, como artigo de fé, nada que não se ensine de maneira expressa nas Escrituras, ou que não se deduza da mesma por inferência necessária. Esta é «a liberdade com que Cristo nos libertou», e na qual somos chamados a nos manter firmes. Esta é nossa proteção, por um lado, contra as usurpações da Igreja. Os Romanistas pretendem para a Igreja a prerrogativa de um ensino infalível e autoritativo. O povo está obrigado a crer o que a Igreja, quer dizer, seus órgãos aos bispos, declara ser uma parte da revelação de Deus. De fato, eles não se assumem o direito de “fazer” novos artigos de fé. Mas reclamam a autoridade para decidir, de tal maneira quanto a obrigar a consciência do povo, o que a Bíblia ensina; e o que por tradição a Igreja sabe que deve incluir-se no ensino de Cristo e Seus Apóstolos. Isto lhes dá margem suficiente para ensinar como doutrinas mandamentos de homens. Belarmino126 diz: “Omnium dogmatum firmitas pendet ab auctoritate præsentis ecclesiæ.” Por outro lado, entretanto, não é só contra as usurpações da Igreja, que o princípio acima mencionado é nossa segurança, mas também 126 De Sacram. lib. ii. c. 2. (?) TeologiaSistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 138 contra a tirania da opinião pública. Os homens são tão impacientes de contradição agora como sempre foram. Manifestam o mesmo desejo de ter suas próprias opiniões nas leis promulgadas e aplicadas pela autoridade divina. E são tão feroz em suas denúncias de todos os que se aventuram a opor-se a elas. Daí que se reúnem em convenções ou outras assembleias, eclesiásticos ou voluntários, e decidem o que é verdadeiro e o que é falso na doutrina, e o que está certo e o que está errado na moral. Contra todas as apropriações indevidas de autoridade, os verdadeiros Protestantes se mantêm firmes em dois grandes princípios: o direito ao juízo particular, e que as Escrituras são a única norma infalível de fé e prática. Por isso, o objeto da fé são todas as verdades reveladas na Palavra de Deus. Tudo o que Deus declara na Bíblia como certo estamos obrigados a crer. Isto é o que os teólogos chamam fides generalis. Fé especial. Mas além desta há uma fé especial (fides specialis) necessária para a salvação. No conteúdo geral da Escritura há certas doutrinas a respeito de Cristo e de Sua obra, e certas promessas de salvação feitas por meio dEle a homens pecadores, que estamos obrigados a receber e sobre as que temos que depositar nossa confiança. Assim, o objeto especial da fé é Cristo, e a promessa da salvação por meio dEle. E o ato especial e concreto de fé que assegura nossa salvação é o ato de recebê-Lo e de repousar nEle tal como Ele nos é oferecido no Evangelho. Isto é ensinado de maneira tão clara e diversa nas Escrituras que dificilmente admite dúvida alguma. O testemunho de Cristo. Em primeiro lugar, nosso Senhor declara em repetidas ocasiões que o que se demanda dos homens, e que sua condenação por não cumprir esta demanda, a qual é que creiam nEle. Ele foi levantado, «para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3:16). «Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado, Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 139 porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus» (v. 18, RC). «Quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus» (v. 36). “A vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia.” (Jo. 6:40). “Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. . . . Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente.” (vv. 47-51). Em outro lugar nosso Senhor diz: «A obra de Deus é esta: que creiais naquele que por ele foi enviado» (Jo 6:29). Entretanto, as passagens nas quais se demanda a fé em Cristo de maneira expressa como a condição para a salvação são muito numerosas para podê-las citar. É dito que somos salvos ao receber a Cristo. Que Cristo é o objeto imediato da fé que salva se ensina também em todas aquelas passagens nas quais se diz que recebemos a Cristo, ou o testemunho de Deus a respeito de Cristo, e nas quais se diz deste ato de recepção que assegura nossa salvação. Por exemplo, em João 1:12: «A todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome». «Eu vim em nome de meu Pai, e não me recebeis» (Jo 5:43). «Se admitimos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior; ora, este é o testemunho de Deus, que ele dá acerca do seu Filho. Aquele que crê no Filho de Deus tem, em si, o testemunho. Aquele que não dá crédito a Deus o faz mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus dá acerca do seu Filho» (1Jo 5:9, 10). «Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida» (1Jo 5:12). «Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus» (1Jo 5:1). Por isso, é a recepção de Cristo, a recepção do testemunho que Deus deu de Seu Filho; crer que Ele é o Cristo, o Filho do Deus vivo, o ato específico que nos demanda para a salvação. Por isso, é Cristo o objeto imediato destes exercícios da Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 140 fé que asseguram a salvação. E por isso a fé se expressa como olhando a Cristo; acudindo a Cristo; lhe encomendando a ele a alma, etc. O ensino dos Apóstolos. Segundo o ensino apostólico, somos justificados «mediante a fé em Jesus Cristo» (Rm 3:22). Não se trata da fé como disposição piedosa da mente; nem da fé como confiança geral em Deus; nem da fé na verdade da revelação divina; e muito menos da fé «nas verdades eternas», nem nos princípios gerais de verdade e dever, e sim aquela fé da qual o objeto é Cristo. Romanos 3:22 [NVI]: «Justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que creem.» Gálatas 2:16 - «Sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei.» Gálatas 3:24 - «De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé.» Gálatas 3:26 - «Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus». Gálatas 2:20: «Vivo na fé do Filho de Deus», etc., etc. ... Cristo nosso Resgate. Cristo declara que Ele mesmo deu a Sua vida como resgate por muitos; Ele foi posto como propiciação pelos nossos pecados, Ele Se ofereceu como sacrifício a Deus. É pelo mérito de Sua justiça e morte que os homens são salvos. Todas estas representações, que impregnam as Escrituras necessariamente supõem que a fé que assegura a salvação deve ter especial referência a Ele. Se Ele é nosso Redentor, devemos recebê-Lo e confiar nEle como tal. Se Ele é a propiciação pelos pecados, é através da fé em Seu sangue que somos reconciliados com Deus. Todo o plano de salvação, como se indica no Evangelho, supõe que Cristo em Sua pessoa e obra é o objeto da fé e o fundamento da confiança. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 141 Vivemos em Cristo pela fé. O mesmo segue das descrições dadas da relação do crente com Cristo. Estamos nEle pela fé. Ele habita em nós. Ele é a cabeça da qual nós, como membros de seu corpo, derivamos nossa vida. Ele é a videira, nós somos os ramos. Estas e outras descrições são absolutamente inconsistentes com a doutrina de que uma vaga fé geral em Deus ou nas Escrituras nos assegura a salvação. É uma fé que tem que ver diretamente com Cristo, que O aceita como nosso Deus e Salvador. Deus enviou o seu Filho ao mundo, vestido de nossa natureza, para revelar a Sua vontade, morrer pelos nossos pecados e ressuscitar para nossa justificação. NEle habita corporalmente a plenitude da divindade, de Sua plenitude estamos cheios. Ele é para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção. Os que recebem este Salvador como tudo o que Ele dizia ser, e encomendam suas almas em Suas mãos para ser utilizadas em Seu serviço e salvas para Sua glória, são, no sentido bíblico do termo, crentes. Cristo não é só o objeto de sua fé, e sim seu todo interior, a vida espiritual termina nEle. Nada, pois, pode ser mais alheio à doutrina Romanista, substancialmente avivada pela moderna filosofia, que aparta a mente do Cristo histórico, realmente existente, objetivo, fixando-a na obra dentro de nós; não nos deixando nada para amar e confiar mais que o que tenhamos em nossos próprios miseráveis corações. Cristo não é recebido só num Papel Especial. Admitindo que Cristo é o objeto especial e imediato dos atos de fé que assegura a salvação, pergunta-se: É Cristo em todos os Seus papéis, ou Cristo em Seu ofício sacerdotal, sobretudo, que é o objeto da fé justificadora? Isto parece uma pergunta desnecessária. Não se expõe na Bíblia, nem tampouco se sugere ao crente. Ele recebe a Cristo. Ele não se pergunta para que função especial de Sua obrasalvadora que assim O aceita. Ele toma como um Salvador, como um libertador da culpa e do poder do pecado, do domínio de Satanás, e de todos os males de sua apostasia de Deus. Ele toma como sua sabedoria, justiça, santificação e Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 142 redenção. Ele toma como seu Deus e Salvador, como porção da alma plena, completa e satisfatória, doadora de vida. Se este ato complexo de compreensão e entrega foram analisados, sem dúvida, encontra-se a incluir a submissão a todo o Seu ensino, a confiança em Sua justiça e em Sua intercessão, a submissão à Sua vontade, a confiança em Sua proteção, e a devoção ao Seu serviço. Como Ele nos é oferecido como profeta, sacerdote e rei, como tal Ele é aceito. E como Ele nos é oferecido como fonte de vida, e glória e bem-aventurança, como o objeto supremo de adoração e amor, como tal Ele é prazerosamente aceito. Requer-se do pecador crer que Deus o ama? De novo se questiona: O objeto da fé salvadora é que Deus Se reconciliou conosco, que nossos pecados são perdoados, que somos os objetos do amor salvífico de Deus? Esta não é a pergunta antes considerada, ou seja, se, como dizem os romanistas, o objeto da fé é a completa revelação de Deus, ou, como sustentam os protestantes, Cristo e a promessa da redenção por meio dEle, embora muitos dos argumentos dos romanistas se dirigem contra a forma especial da doutrina que acabamos de expor. Eles argumentam que é contraditório dizer que somos perdoados porque cremos; e, no mesmo alento, dizer que o que se crê é que nossos pecados foram já perdoados. Mais uma vez, sustentam que o único objeto próprio da fé é uma revelação de Deus, mas não está em parte alguma revelado que individualmente somos reconciliados com Deus, ou que nossos pecados são perdoados, ou que somos objeto desse amor especial que Deus tem para com o Seu próprio povo. Em resposta à primeira destas objeções, os teólogos reformados costumavam dizer, que se estabelece uma distinção que se deve fazer entre a remissão do pecado de jure já obtido através da morte de Cristo, e a remissão de fato mediante a aplicação eficaz da mesma a nós. No primeiro sentido, “remissio peccatorum jam impetrata” é o objeto da fé. Neste último sentido, é “remissio impetranda,” porque a fé é a causa instrumental da justificação, e deve precedê-la. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 143 Turretino diz:127 “Unde ad obtinendam remissionem peccatorum, non debeo credere peccata mihi jam remissa, ut perperam nobis impingunt; sed debeo credere peccata mihi credenti et poenitenti, juxta promissionem factam credentibus et poenitentibus, remissum iri certissime, quæ postea actu secundari et reflexo ex sensu fidei credo mihi esse remissa.” A segunda objeção foi respondida por distinguir entre o ato direto e o ato reflexo da fé. No ato direto da fé aceitamos a Cristo como nosso Salvador, pelo ato reflexo, que se derivem da consciência de crer, cremos que Ele nos amou e morreu por nós, e que nada nos pode separar de Seu amor. Estes dois atos são inseparáveis, não só como causa e efeito, antecedente e consequente, mas não estão separados no tempo, ou na consciência do crente. Só são diferentes elementos do ato complexo de aceitar a Cristo como Ele é oferecido no Evangelho. Não podemos separar a alegria e a gratidão com a qual se aceita um grande favor. Embora uma análise psicológica poderia resolver estas emoções nos efeitos do ato de aceitação, pertencem, tal como se revela na consciência, a própria natureza do ato. Trata-se de uma aceitação cordial e agradecida de uma promessa feita a todos os que a abraçam. Se a promessa geral de perdão é feita aos delinquentes com a condição da confissão de culpa, cada um deles que faz a confissão sabe ou crê que a promessa é feita a ele. Sobre este ponto, os primeiros teólogos luteranos e reformados estiveram de acordo em ensinar isso quando o pecador exerce a fé salvadora. Ele crê que pelo amor de Cristo ele é perdoado e aceito por Deus. Em outras palavras, que Cristo o ama e Se entregou por ele. Já vimos que o “Catecismo do Heidelberg,”128 o livro simbólico de uma porção tão grande da Igreja Reformada, declarou a fé salvadora ser “Certa fiducia, a Spiritu Sancto per evangelium in corde meo accensa, qua in Deo acquiesco, certo statuens, non solum aliis, sed mihi quoque 127 Institutio, XV. xii. 6; Works, edit. Edinburgh, 1847, vol. ii. p. 508. 128 XXI.; Niemeyer, Collectio Confessionum, Leipzig, 1840, p. 434. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 144 remissionem peccatorum æternam, justitiam et vitam donatam esse idque gratis, ex Dei misericordia, propter unius Christi meritum.” Na “Apologia da Confissão de Augsburgo da Igreja Luterana,” diz- se:129 “Nos præter illam fidem [fidem generalem] requirimus, ut credat sibi quisque remitti peccata.” Calvino diz:130 “Gratiæ promissione opus est, qua nobis testificetur se propitium esse Patrem: quando nec aliter ad eum appropinquare possumus, et in eam solam reclinare cor hominis potest. . . . . Nunc justa fidei definitio nobis constabit, si dicamus esse divinæ erga nos benevolentiæ firmam certamque cognitionem, quæ gratuitæ in Christo promissionis veritate fundata, per Spiritum Sanctum et revelatur mentibus nostris et cordibus obsignatur.” “Hic præcipuus fidei cardo vertitur, ne quas Dominus offert misericordiæ promissiones, extra nos tantum veras esse arbitremur, in nobis minime: sed ut potius eas intus complectendo nostras faciamus. . . . . In summa, vere fidelis non est nisi qui solida persuasione Deum sibi propitium benevolumque patrem esse persuasus, de ejus benignitate omnia sibi pollicetur: nisi qui divinæ erga se benevolentiæ promissionibus fretus, indubitatam salutis expectationem præsumit.” Esta é uma linguagem forte. A doutrina, entretanto, não é que fé implica confiança. A pergunta refere-se à natureza do objeto visto, não a clareza da visão; o que é que crê a alma, não a força de sua fé. Calvino mesmo em outros lugares expressa maravilhosamente, dizendo: “Quando a menor gota de fé é inculcada em nossas mentes, começamos a ver a face serena e plácida de nosso Pai reconciliado; longe e no alto, pode ser, mas ainda é visto.” Um homem num calabouço pode ver só um raio de luz que entrava por uma greta. Isto é muito diferente da plena luz do dia. Entretanto, o que ele vê é a luz. Assim o que o pecador arrependido crê é que Deus pelo amor de Cristo se reconciliou com ele. Pode ser com uma 129 V. 60; Hase, Libri Symbolici, Leipzig, 1846, p. 172. 130 Institutio, lib. III. ii. 7, 16; edit. Berlin, 1834, vol. i. pp. 357, 364. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 145 visão muito obscura e duvidosa, ele compreende essa verdade, mas essa é a verdade na qual sua confiança está baseada. Prova desta doutrina. Isto está implicado na apropriação da promessa geral do Evangelho. As Escrituras declaram que Deus é amor; que Ele expôs o Seu Filho como propiciação pelo pecado; que nEle se reconcilia, que receberá todos os que vêm a Ele por meio de Cristo. Apropriar-se destas declarações gerais, é crer que são certas, não só com relação aos outros, mas também com relação nós mesmos, porque Deus Se reconciliou conosco. Não temos direito de excluir a nós mesmos. Esta auto-exclusão é incredulidade. É negar-se a tirar das águas da vida, oferecida gratuitamente a todos. Gálatas 2:20. Em consequência, o Apóstolo em Gálatas 2:20, diz: “Esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim.” O objeto da fé do Apóstolo, portanto, as verdades em que ele cria, e a fé que deu vida à sua alma, eram: (1.) Que Cristo é o Filho de Deus, (2.) Que Ele o amava, (3.) Que Ele Se entregou por ele. A fé pela qual um crente vive, nãoé especificamente diferente em sua natureza ou objeto da fé que se requer de cada homem para sua salvação. A vida de fé é só a repetição contínua, pode ser cada vez com mais força e clareza, desses exercícios pelos quais podemos receber a Cristo primeiro, em toda a sua plenitude e em todos os suas papéis, como nosso Deus e Salvador. “Qui fit ut vivamus Christi fide? Quia nos dilexit, et se ipsum tradidit pro nobis. Amor, inquam, quo nos complexus est Christus, fecit ut se nobis coadunaret. Id implevit morte sua nam se ipsum tradendo pro nobis, non secus atque in persona nostra passus est. . . . . Neque parum energiæ habet pro me: quia non satis fuerit Christum pro mundi salute Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 146 mortuum reputare, nisi sibi quisque effectum ac possessionem hujus gratiæ privatim vindicet.”131 Objeta-se este ponto de vista do caso pelo “amor de Deus,” ou “de Cristo,” na declaração anterior, não se significa a benevolência geral ou a filantropia de Deus, mas o Seu amor especial, eletivo e salvador. Quando Paulo disse que vivia pela fé de Cristo, quem o amou e Se entregou a Si mesmo por ele, significava algo mais que Cristo amou a todos os homens e, portanto, a ele entre o resto. Ele evidentemente cria ser um objeto especial do amor do Salvador. Foi esta convicção que deu o poder à sua fé. E uma tal convicção entra na fé de todo verdadeiro crente. Mas a isto se objeta que a fé deve ter uma revelação divina por seu objeto. Mas não há revelação do amor especial de Deus às pessoas, e, portanto, nenhum indivíduo tem base bíblica para crer que Cristo o amou e Se entregou a Si mesmo por ele. Seja qual for a força que pode haver nesta objeção, ela se apoia contra a declaração de Paulo e a experiência. Ele certamente creu que Cristo o amou e morreu por ele. Não vale dizer que se tratava de uma conclusão tirada de sua própria experiência, ou assumir que o Apóstolo se sustentou na convicção de que Cristo o amou. Cristo ama especialmente a todos os que creem nEle. Creio nEle. Por isso, Cristo me ama de modo especial. Mas uma conclusão alcançada por argumento não é um objeto de fé. A fé deve basear-se no testemunho de Deus. Deve ser, portanto, que Deus de algum modo testifica à alma que é o objeto de Seu amor. Isto o faz de duas maneiras. Em primeiro lugar, pelos convites gerais e as promessas do Evangelho. O ato de apropriação, ou da aceitação destas promessas, é crer que nos pertencem, assim como a outros. Em segundo lugar, pelo testemunho interior do Espírito. Paulo diz (Rm 5:5): “O amor de Deus foi derramado em nosso coração Espírito Santo, que nos foi outorgado.” Quer dizer, o Espírito Santo nos convence de que somos objetos do amor de Deus. Isto se faz, não só pelas diversas 131 Calvin in loco. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 147 manifestações de Seu amor na providência e na redenção, mas por Seu tratos interiores com a alma. “Aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele.” (Jo 14:21). Esta manifestação não é exterior através da palavra. É interior. Deus tem comunhão ou relação com as almas de Seu povo. O Espírito suscita nosso amor a Deus, e revela Seu amor a nós. Novamente, em Romanos 8:16, o apóstolo diz: “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus.” Isto não quer dizer que o Espírito suscita em nós sentimentos filiais para com Deus, de onde inferimos que somos Seus filhos. O Apóstolo refere-se a duas fontes distintas da evidência de nossa adoção. Uma é que podemos chamar a Deus Pai, e a outra, o testemunho do Espírito. Este último une-se com o primeiro. A palavra é συμμαρτυρεῖ, une-se ao testificar. Daí que é dito que estamos selados, não só marcados e garantidos, mas assegurados pelo Espírito; e o Espírito é uma promessa, uma garantia, de que somos, e sempre seremos, o objeto do amor salvífico de Deus. (Ef 1:13, 14; 4:30; 2Co 1:22). Isto não quer dizer que um homem deve crer que ele é um dos escolhidos. A eleição é um propósito secreto de Deus. A eleição de qualquer pessoa em particular não se revela, e, portanto, não é um objeto da fé. É uma coisa a ser provada, ou feita segura, como o apóstolo Pedro diz, pelos frutos do Espírito. Tudo o que a doutrina dos reformadores sobre este tema inclui, é que a alma ao comprometer-se com Cristo, o faz como a quem o amou e morreu por sua salvação. A mulher curada ao tocar o vestido de nosso Salvador, creu que ela era um objeto de Seu amor compassivo, porque todos os que O tocaram com fé foram incluídos nesse número. A fé dela inclui essa convicção. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 148 § 8. Os efeitos da fé. União com Cristo. O primeiro efeito, segundo as Escrituras, é a união com Cristo. Estamos nEle pela fé. Há certamente uma união federal entre Cristo e o Seu povo fundamentada na aliança da redenção entre o Pai e o Filho nos conselhos da eternidade. Por isso, diz-se de nós que estávamos nEle antes da fundação do mundo. É uma das promessas desta aliança que todos aqueles que o Pai deu ao Filho irão a Ele; que Seu povo se faria querer no dia de Seu poder. Cristo, pois, foi exaltado à destra de Deus, para dar arrependimento e o perdão de pecados. Mas também estava incluído nos termos da aliança, como lemos na Escritura, que Seu povo, pelo que respeita aos adultos, não receberiam os benefícios salvadores desta aliança até que se unissem a Ele mediante o ato voluntário da fé. São «por natureza filhos da ira, como também os demais» (Ef 2:3). Permanecem neste estado de condenação até que creiam. Sua união é consumada pela fé. Assim, estar em Cristo e crer em Cristo são, nas Escrituras, formas conversíveis de expressão. Eles significam substancialmente a mesma coisa, e, por isso, atribuem-se os mesmos efeitos à fé que à união com Cristo. A justificação, efeito da fé. O efeito imediato desta união, e por isso o segundo efeito da fé, é a justificação. Somos «justificados pela fé em Cristo» (Gl 2:16). “Agora pois, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.” (Rm 8:1). “Aquele que crê nele não é condenado.” (Jo 3:18, RC). A fé é a condição sobre a qual Deus promete na aliança da redenção imputar aos homens a justiça de Cristo. Por isso, logo que creem não podem ser condenados. Ficam revestidos com uma justiça que responde a todas as demandas da justiça. «Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 149 quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós» (Rm 8:33, 34). A participação da vida de Cristo, efeito da fé. O terceiro efeito da fé, ou união com Cristo, é a participação de Sua vida. Aqueles que estão em união com Cristo, ensina-nos o Apóstolo (Rm 6:4-10), de modo que são participem de Sua morte, são partícipes também de Sua vida. «Porque eu vivo, vós também vivereis» (Jo 14:19). Cristo habita pela fé em nossos corações (Ef 3:17). Cristo está em nós (Rm 8:10). Já não vivemos nós, mas é Cristo que vive em nós (Gl 2:20). A ilustração que dá nosso Senhor desta vital união se deriva de uma videira e de seus ramos (Jo 15:1-6). Assim como a vida da videira se difunde através de seus ramos, e porquanto vivem só enquanto estão conectadas à videira, assim a vida de Cristo é difundida através de Seu povo, e eles são partícipes da vida espiritual e eterna só em virtude de sua união com Ele. Outra ilustração familiar deste tema se deriva do corpo humano. Os membros derivam sua vida da cabeça, e perecem se ficam separados da mesma (Ef 1:22; 1Co 12:12-27, e frequentemente). Em Efésios 4:15, 16 o Apóstolo dá esta ilustração de maneira detalhada: «A cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio detoda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor». Assim como o princípio da vida animal situado na cabeça, por meio do complicado mas ordenado sistema nervoso que se estende a cada membro, difunde vida e energia por todo o corpo, da mesma maneira o Espírito Santo, dado sem medida a Cristo, a cabeça da Igreja, que é Seu corpo, difunde vida e força a cada membro. Por isso, segundo a Escritura, a morada de Cristo em nós se explica como a morada do Espírito em nós. A morada do Espírito é a morada de Cristo. Se Deus estiver em vós; se Cristo estiver em vós; se o Espírito estiver em vós: tudo isto significa a mesma coisa. Veja-se Romanos 8:9-11. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 150 Explicar esta união vital e mística entre Cristo e Seu povo como uma mera união de pensamento e sentimento é totalmente inadmissível. (1) Em primeiro lugar, é contrário ao claro sentido das palavras. Ninguém jamais fala de Platão habitando nos homens; de que ele seja a vida deles, de maneira que sem ele, eles não possam fazer nada; e muito menos de que a santidade, a felicidade e a vida eterna dependam desta união. (2) Esta interpretação supõe que nossa relação com Cristo é análoga à relação de um homem com outro. Porquanto esta é uma relação entre homens e uma pessoa divina, que tem vida em Si mesmo, e que dá vida aos que Ele quer. (3) Ignora tudo o que ensinam as Escrituras da obra do Espírito Santo e de Sua morada nos corações dos homens. (4) Passa por alto o caráter sobrenatural do cristianismo, e o reduziria a um mero sistema filosófico e ético. A paz como fruto da fé. O quarto efeito da fé é paz. «Justificados, pois, pela fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo» (Rm 5:1). A paz brota de um sentimento de reconciliação. Deus promete perdoar, receber em Seu favor, e finalmente salvar a todos os que creem no testemunho que Ele deu a respeito de Seu Filho. Assim, crer é crer nesta promessa; e apropriar-nos desta promessa para nós é crer que Deus está reconciliado conosco. Esta fé pode ser fraca ou forte. E a paz que emana dela pode ser trêmula e intermitente, ou pode ser constante e segura. Certeza. Fazer da certeza da salvação pessoal algo essencial para a fé é contrário às Escrituras e à experiência do povo de Deus. A Bíblia refere- se a uma fé fraca. É abundante em consolações destinadas aos dúbios e aos desalentados. Deus aceita àqueles que só podem dizer: «Senhor, creio: Ajuda a minha incredulidade!» Os que fazem da certeza a essência da fé em geral reduzem a fé a um mero assentimento intelectual. Às Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 151 vezes são rigidamente severos, recusando reconhecer como irmãos os que não estão de acordo com eles; e às vezes são antinomianos. Ao mesmo tempo, a Escritura e a experiência ensinam que a certeza não é só algo que possa ser alcançado, mas é um privilégio e um dever. Certamente, pode existir certeza onde não há absolutamente verdadeira fé; mas onde há verdadeira fé, a carência de certeza deve ser atribuída quer à fraqueza da fé, quer aos conceitos errôneos do plano da salvação. Muitos crentes sinceros são muito introspectivos. Olham muito exclusivamente dentro deles, e assim a esperança dos tais é proporcional ao grau de evidência de regeneração que encontram em sua própria experiência. Isto, exceto em contadas ocasiões, não pode conduzir à certeza da esperança. Podemos examinar nossos corações com todo o cuidado microscópico prescrito pelo Presidente Edwards em sua obra sobre «Os Afetos Religiosos», e nunca ficar satisfeitos de que tenhamos eliminado toda razão para a inquietação e as dúvidas. A base da certeza não se encontra tanto dentro de nós como fora. São, segundo as Escrituras: (1) A promessa universal e incondicional de Deus que aos que vão a ele em Cristo não os lançará fora de maneira nenhuma; que todo aquele que quiser, pode tomar livremente a água da vida sem dinheiro e sem preço. Estamos obrigados a ter a certeza de que Deus é fiel, e que certamente salvará os que creem. (2) O infinito, imutável e gratuito amor de Deus. Nos primeiros dez versículos do quinto capítulo da Epístola aos Romanos, e no oitavo capítulo da mesma epístola do versículo 31 até o fim, o Apóstolo discorre a respeito destas características do amor de Deus, como dando um fundamento inamovível da esperança do crente. (3) O mérito infinito da satisfação de Cristo, e a prevalência de sua contínua intercessão. Paulo, em Romanos 8:34, enfatiza estes pontos de maneira especial. (4) A aliança da redenção em que se promete que todos os que foram dados pelo Pai ao Filho irão a Ele, e que nenhum deles se perderá. (5) Pelo testemunho do Espírito, diz Paulo, «gloriamo-nos na esperança da glória de Deus», porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações por meio do Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 152 Espírito Santo que foi dado. Isto é, o Espírito Santo nos assegura de que somos os objetos daquele amor que ele passa a descrever como infinito, imutável e gratuito (Rm 5:3-5). E outra vez: «O Espírito mesmo dá juntamente testemunho a nosso espírito, de que somos filhos de Deus». Portanto, se qualquer crente carecer da certeza da fé, a falta está nele mesmo, não no plano de salvação nem nas promessas de Deus. A santificação é um fruto da fé. O quinto efeito da fé é a santificação. «Os que são santificados», diz nosso Senhor, «pela fé em mim». Embora neste versículo (At 26:18), as palavras «pela fé» não qualificam somente a cláusula anterior, «são santificados», mas devem ser aplicadas a todos os pontos precedentes, a iluminação, libertação de Satanás, perdão dos pecados, e a herança eterna, entretanto não se deve omitir o antecedente imediato. Que somos santificados pela fé é claramente ensinado em outras passagens. «A fé que atua pelo amor e mediante a qual se purifica o coração» (Gl 5:6 e At 15:9). A relação da fé com a santificação é, pois, estabelecida nas Escrituras: 1. Somos justificados pela fé. Enquanto estamos debaixo da lei, estamos debaixo da maldição, e produzimos fruto para morte. Não há, nem pode haver amor a Deus, e nenhuma vida santa até que somos libertados de Sua ira devido a nós pelo pecado. Estamos livres da lei, libertados de sua condenação, pelo corpo ou a morte de Cristo. É pela fé nEle como o fim da lei para justiça, que pessoalmente somos libertados da condenação e restaurados ao favor de Deus. Veja-se tudo isto claramente ensinado em Romanos 6, e nos primeiros seis versículos do capítulo sete. Portanto, pela fé passamos da morte judicial à vida judicial, ou justificação. Este é o primeiro e indispensável passo de santificação até onde se revela na consciência do crente. 2. É pela fé que recebemos a habitação do Espírito. Cristo (ou o Espírito de Cristo) habita em nossos corações pela fé. A fé é a condição Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 153 indispensável (com referência aos adultos) desta morada do Espírito. E a habitação do Espírito é a fonte de toda vida espiritual. A fé é certamente o fruto do Espírito, e portanto o dom do Espírito deve preceder o exercício da fé. É, não obstante, verdade que a fé é a condição da habitação do Espírito, e, por conseguinte, da vida espiritual. A vida deve preceder a respiração, e entretanto, a respiração é a condição necessária da vida. 3. A fé não é só a condição da habitação do Espírito em nós como a fonte da vida espiritual, mas nós vivemos pela fé. Quer dizer, a continuidade e o exercício da vida espiritual implica e supõe o exercício constante da fé. Vivemos pelo exercício da fé em Deus, em Seus atributos, em Sua providência, em Suas promessas, e em todas as verdades que Ele revelou. Sobretudo esta é vida sustentada pelos exercícios de fé da qual Cristo é o objeto; Sua divina e misteriosa pessoaconstituída, como Deus manifestado na carne de Sua obra terminada por nossa redenção; Sua constante intercessão; Sua íntima relação conosco não só como nosso profeta, sacerdote e rei, e sim como nossa cabeça em Quem nossa vida está escondida em Deus, e de Quem flui a nossas almas. De modo que, somos santificados pela fé, porque é pela fé que todos os afetos religiosos e todas as atividades da vida espiritual ficam em exercício. 4. Somos santificados pela fé, visto que é a substância das coisas que se esperam e a evidência das coisas não se veem. “As coisas de Deus,” as verdades que Ele revelou sobre o mundo espiritual e eterno existe para nós, embora neste mundo, só como objeto de fé. Mas a fé é para a alma o que o olho é para o corpo. Permite-nos ver as coisas invisíveis e eternas. Dá-lhes substância, realidade, e portanto poder, — o poder em alguma medida pouco em proporção ao seu valor. Assim as coisas visíveis e temporais perdem seu poder dominante sobre a alma. Não são dignos de ser comparadas com as coisas que Deus preparou para os que O amam. O crente, — o ideal, e às vezes o crente real, como sabemos pela Escritura e pela História, levanta-se sobre as coisas do Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 154 tempo e o sentido, vence o mundo, e converte-se em mente celestial. Ele vive no céu, respira sua atmosfera, está impregnado de seu espírito, e tem uma antecipação de suas alegrias. Isto o representa puro, espiritual, humilde e abnegado, laborioso, humilde, amável, perdoador, assim como firme e valente. Todo o décimo primeiro capítulo da Epístola aos Hebreus dedica-se à ilustração do poder da fé, especialmente neste aspecto. O Apóstolo mostra que em tempos passados, inclusive sob a tênue luz da dispensação anterior, capacitou-se a Noé a permanecer só contra o mundo, a Abraão a oferecer o seu único filho, a Moisés a preferir o vitupério de Cristo que os tesouros do Egito; que outros através da fé submeteram reinos, praticaram a justiça, taparam a boca de leões, apagaram a violência do fogo; que outros pela fé da fraqueza tiraram forças, foram valentes na luta; que outros se submeteram à prova de vitupérios e açoites; que outros pela fé suportaram ser apedrejados, serrados ao meio, ou mortos à espada; e que entretanto, outros através da fé consentiram a vagar em peles de ovelhas e de cabras, pobres, angustiados e atormentados. Todos estes, é-nos dito, através da fé obtiveram bom testemunho. 5. A fé santifica porque é a condição necessária para a eficácia dos meios da graça. É por meio da Palavra, dos sacramentos e da oração que Deus comunica constantes fornecimentos de graça. São os meios de chamar à atividade os exercícios da vida espiritual. Mas estes meios da graça são inoperantes a não ser que sejam recebidos e empregados pela fé. E não é a fé certamente a que lhes dá seu poder, mas é a condição pela qual o Espírito de Deus os faz eficazes. O fato de que as boas obras são o efeito necessário da fé é incluído na doutrina de que somos santificados pela fé. Porque é impossível que haja santidade interior, amor, espiritualidade, amor fraternal e zelo sem uma manifestação externa destas graças em toda a vida exterior. Portanto, a fé sem obras está morta. Somos salvos pela fé. Mas a salvação inclui a libertação do pecado. Por isso, se nossa fé não nos Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 155 livrar do pecado, não nos salva. O antinomianismo envolve uma contradição lógica. A certeza da salvação. Um sexto efeito atribuído à fé nas Escrituras é a segurança ou a certeza da salvação. «Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3:16). «Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em juízo, mas passou da morte para a vida» (Jo 5:24). “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente.” (Jo 6:51). «Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora. ... a vontade de meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nele crer tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia» (Jo 6:37, 40). «As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão» (Jo 10:27, 28). O oitavo capítulo de Romanos. Todo o oitavo capítulo da Epístola aos Romanos tem como propósito demonstrar a segura salvação de todos os que creem. A proposição a estabelecer é que «Nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus». Isto é, que nunca podem perecer; nunca podem ficar separados de tal maneira de Cristo que possam cair em condenação. O primeiro argumento do Apóstolo para estabelecer sua proposição é que os crentes são libertados da lei mediante o sacrifício de Cristo. Por isso, o crente não está debaixo da lei que condena, como Paulo havia dito antes (Rm 6:14, RC). «Não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça.» Mas se não sob a lei, não pode ser condenado. A lei teve seu curso, e encontrou plena satisfação na obra de Cristo, que é o fim da lei, para justiça a todo aquele que crê. Ele faz a cada um justo, à vista da lei, que Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 156 nEle crê. Esta é a primeira razão que o Apóstolo dá de por que os que estão em Cristo jamais serão condenados. Seu segundo argumento é que já têm dentro deles o princípio da vida eterna. Este princípio é o Espírito de Deus, “aquele que dá a vida” como Ele foi designado pela antiga Igreja. O ocupar-se da carne é morte; o ocupar do Espírito é vida e paz. O pecado é morte, a santidade é vida. É uma contradição dizer que aqueles em quem habita o Espírito da vida, devem morrer. E, portanto, diz o Apóstolo, embora o corpo morre, a alma vive. E se o Espírito dAquele que levantou Cristo dentre os mortos mora em vós, Aquele que ressuscitou a Cristo dos mortos também vivificará até vossos corpos mortais pelo Seu Espírito que mora em vós. Por isso, a morada do Espírito assegura não só a vida da alma, mas também a definitiva e gloriosa vida do corpo. O terceiro argumento para a segurança dos crentes é que são filhos de Deus. Aqueles que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Isto é, são partícipes de Sua natureza, os objetos especiais de Seu amor, e com título à herança que Ele dá. Se filhos, então herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo. Para a maneira de pensar do Apóstolo, é impossível que pereça algum dos filhos de Deus. Se filhos, então certamente serão salvos. O quarto argumento é com base no propósito de Deus. Aqueles que Ele predestinou para ser feitos conforme à imagem de Seu Filho os chama Ele a exercitar a fé e o arrependimento; e aqueles a quem Ele chama os justifica, provê para eles e lhes imputa uma justiça que dá satisfação às demandas da lei, e que lhes dá título em Cristo, e por causa dEle, à vida eterna; e aos que Ele justifica, glorifica-os. Não há sentença nesta cadeia. Se os homens tivessem sido predestinados à vida eterna com base em seu arrependimento e crer por meio de suas próprias forças, ou por meio de uma cooperação com a graça de Deus que outros não chegam a exercer, então sua continuação num estado de graça poderia depender deles. Mas se a fé e o arrependimento são dons de Deus, os resultados de Sua chamada eficaz, então a outorga destes dons é uma Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 157 revelação do propósito de Deus de salvar àqueles a quem lhes são dados. É uma evidência de que Deus os predestinou a ser feitos conforme à imagem de Seu Filho, isto é, a ser como Ele em caráter, destino e glória, e de que Ele levará a cabo o Seu propósito de maneira indefectível. Ninguém os pode arrebatar de Suas mãos.O quinto argumento de Paulo é do amor de Deus. Como se indicou anteriormente,132 Paulo argui com base na grandeza, gratuidade e imutabilidade deste amor que seus objetos nunca podem perder-se. «Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?» Se tiver feito o maior, não fará também o menor? Se deu o Seu próprio Filho, não nos dará fé para receber e constância para seguir até o fim? Um amor tão grande como o amor de Deus para com o Seu povo não pode deixar de alcançar o Seu objetivo. Este amor é também gratuito. Não se baseia no atrativo de seus objetos. Amou-nos «sendo nós ainda pecadores»; «quando inimigos»; «muito mais, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque, se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida». O amor de Deus neste aspecto é comparado ao amor dos pais. Uma mãe não ama o seu filho porque seja atrativo. Seu amor a leva a fazer tudo o que possa para fazê-lo atrativo e para mantê-lo assim. Assim o amor de Deus, sendo de maneira semelhante misterioso, não devido a nada em Seus objetos, leva a que adorne os Seus filhos com as graças do Espírito, vestindo-os com toda a beleza da santidade. É só o lamentável erro de pensar que Deus nos ama por nossa própria bondade que pode levar a ninguém a supor que Seu amor depende de nosso atrativo auto-sustentado, quando deveríamos contemplar Seu amor paterno como a fonte de toda bondade e como a base da certeza de que Ele não permitirá a Satanás nem a nossos, 132 Page 107. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 158 próprios ímpios corações que destruam os aspectos da semelhança com Ele que Ele mesmo imprimiu sobre nossas almas. Tendo amado aos Seus, amou-os até o fim. E Cristo ora por eles para que sua fé não desfaleça. Deve-se lembrar aqui que o Apóstolo não argumenta para demonstrar meramente a certeza da salvação dos que creem; e sim sua segura perseverança na santidade. Segundo o sistema de Paulo, a salvação em pecado é uma contradição lógica. Esta perseverança em santidade é assegurada em parte mediante a secreta influência interior do Espírito, e em parte por todos os meios adaptados para obter este fim: instruções, admoestações, exortações, advertências, os meios da graça, e as dispensações de Sua providência. Tendo, em Seu amor, determinado a respeito do fim, determinou também os meios para o seu cumprimento. O sexto argumento do Apóstolo é que assim como o amor de Deus é imensamente grande e totalmente gratuito, é também imutável, e que por isso os crentes serão certamente salvos. Daí a conclusão: «Eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.» Poder-se-á ver que o Apóstolo não descansa a perseverança dos santos sobre a natureza indestrutível da fé, nem sobre a natureza imperecível do princípio da graça no coração, nem na constância da vontade do crente, mas unicamente no que está fora de nós mesmos. A perseverança, ensina-nos ele, deve-se ao propósito de Deus, à obra de Cristo, à morada do Espírito Santo, e à fonte primária de tudo, o infinito, misterioso e imutável amor de Deus. Não nos guardamos a nós mesmos: somos guardados pelo poder de Deus, por meio da fé, para a salvação (1Pe 1:5). Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 159 CAPÍTULO XVII JUSTIFICAÇÃO § 1. Enunciado simbólico da doutrina. A JUSTIFICAÇÃO é definida no Catecismo de Westminster como «Um ato da livre graça de Deus, pelo qual nos perdoa todos os nossos pecados, e nos aceita como justos diante de Seus olhos, só pela justiça de Cristo imputada a nós e recebida pela fé somente». O Catecismo de Heidelberg, como resposta à pergunta «Como te tornas justo diante de Deus?» responde: «Só pela verdadeira fé em Jesus Cristo, de tal sorte que, embora minha consciência me acuse de haver pecado gravemente contra todos os mandamentos de Deus, não havendo jamais guardado nenhum deles, e estando sempre inclinado a todo mal, sem merecimento algum meu, só por Sua graça, Deus me imputa e dá a perfeita satisfação, justiça e santidade de Cristo como se eu não houvesse tido nem cometido pecado algum, antes, como se eu mesmo tivesse cumprido aquela obediência que Cristo cumpriu por mim, contanto que eu abrace estas graças e benefícios com verdadeira fé.» E como resposta à pergunta: «Por que afirmas ser justo somente pela fé?», diz: «Não porque agrade a Deus pela dignidade de minha fé, mas porque só a satisfação, justiça e santidade de Cristo são minha própria justiça diante de Deus, pois eu não posso recebê-la y aplicá-la a mim de outro modo senão pela fé.» Estas são as normas mais geralmente recebidas e autoritativas das Igrejas Reformadas, com os quais concordam todos os outros símbolos Reformados. A Segunda Confissão Helvética,133 diz: “Justificare significat Apostolo in disputatione de justificatione, peccata remittere, a culpa et poena absolvere, in gratiam recipere, et justum pronunciare. Etenim ad Romanos dicit apostolus, ‘Deus est, qui justificat, quis ille, qui 133 Los principales pasajes son La Confesión de Augsburgo. parte I. artículo IV, la Apología de Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 160 condemnet?’ opponuntur justificare et condemnare. . . . . Etenim Christus peccata mundi in se recepit et sustulit, divinæque justitiæ satisfecit. Deus ergo propter solum Christum passum et resuscitatum, propitius est peccatis nostris, nec illa nobis imputat, imputat autem justitiam Christi pro nostra: ita ut jam simus non solum mundati a peccatis et purgati, vel sancti, sed etiam donati justitia Christi, adeoque absoluti a peccatis, morte vel condemnatione, justi denique ac hæredes vitæ æternæ. Proprie ergo loquendo, Deus solus nos justificat, et duntaxat propter Christum justificat, non imputans nobis peccata, sed imputans ejus nobis justitiam.”134 Estes são as mais geralmente recebidas normas de autoridade das Igrejas Reformadas, com as quais todos os outros símbolos reformados estão de acordo. As confissões Luteranas ensinam exatamente a mesma doutrina a respeito desta questão.135 “Unanimi consensu, docemus et confitemur. . . . . quod homo peccator coram Deo justificetur, hoc est, absolvatur ab omnibus suis peccatis et a judicio justissimæ condemnationis, et adoptetur in numerum filiorum Dei atque hæres æternæ vitæ scribatur, sine ullis nostris meritis, aut dignitate, et absque ullis præcedentibus, præsentibus, aut sequentibus nostris operibus, ex mera gratia, tantummodo propter unicum meritum, perfectissimam obedientiam, passionem acerbissimam, mortem et resurrectionem Domini nostri, Jesu Christi, cujus obedientia nobis ad justitiam imputatur.”136 Novamente: “Credimus, docemus, et confitemur, hoc ipsum nostram esse coram Deo justitiam, quod Dominus nobis peccata remittit, ex mera gratia, absque ullo respectu præcedentium, præsentium, aut consequentium nostrorum operum, dignitatis, aut meriti. Ille enim donat atque imputat nobis justitiam obedientiæ Christi; propter eam justitiam a 134 See Niemeyer, Collectio Confessionum, Leipzig, 1840. 135 As passagens principais são Confissão de Augsburgo, parte I; o artigo IV.; A Apologia para essa Confissão, Artigo III.; e a Fórmula de Concórdia, o artigo III. 136 Form of Concord, III. 9. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 161 Deo in gratiam recipimur et justi reputamur.”137 “Justificari significathic non ex impio justum effici, sed usu forensi justum pronuntiari.” And “Justificare hoc loco (Rom. 5.1) forensi cousuetudine significat reum absolvere et pronuntiare justum, sed propter alienam justitiam, videlicet Christi, quæ aliena justitia communicatur nobis per fidem.”138 Assim também “Vocabulum justificationis in hoc negotio significat justum pronuntiare, a peccatis et æternis peccatorum suppliciis absolvere, propter justitiam Christi, quæ a Deo fidei imputatur.”139 Hase,140 afirma concisamente a doutrina luterana sobre este tema com estas palavras: “Justificatio est actus forensis, quo Deus, sola gratia ductus, peccatori, propter Christi meritum fide apprehensum, justitiam Christi imputat, peccata remittit, eumque sibi reconciliat.” A “Fórmula da Concórdia” diz: “Hic articulus, de justitia fidei, præcipuus est (ut Apologia loquitur) in tota doctrina Christiana, sine quo conscientiæ perturbatæ nullam veram et firmam consolationem habere, aut divitias gratiæ Christi recte agnoscere possunt. Id D. Lutherus suo etiam testimonio confirmavit, cum inquit: Si unicus his articulus sincerus permanserit, etiam Christiana Ecclesia sincera, concors et sine omnibus sectis permanet: sin vero corrumpitur, impossibile est, ut uni errori aut fanatico spiritui recte obviam iri possit.”141 Os teólogos luteranos, portanto, falam dela como a “ἀκρόπολις totius Christianæ religionis, ac nexus, quo omnia corporis doctrinæ Christianæ membra continentur, quoque rupto solvuntur.”142 137 Ibid. Epitome, III. 4. 138 Apology for the Augsburg Confession, Art. III. 131, 184. 139 Form of Concord, III. 17. See Hase, Libri Symbolici, 3d edit., Leipzig, 1836. 140 Hutterus Redivivus, § 109, 6th edit. Leipzig, 1845, p. 274. 141 III. 6. 142 Quenstedt. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 162 Presidente Edwards Esta declaração da doutrina da justificação conservou a autoridade simbólica nas igrejas luteranas e reformadas, até a atualidade. O Presidente Edwards, quem é considerado como tendo iniciado algumas saídas desde alguns pontos da fé reformada, mantinha-se firme em sua adesão a este ponto de vista da justificação, que ele considera de vital importância. Em seu discurso sobre a “Justificação pela Fé Somente,” ele define assim a justificação: “Diz-se que uma pessoa é justificada quando é aprovada por Deus como livre da culpa do pecado e de seu castigo merecido; e como tendo essa justiça de sua propriedade que dá direito à recompensa da vida. Que devemos tomar a palavra em tal sentido e entendimento como a aceitação do juiz de uma pessoa como tendo uma justiça negativa e positiva de sua propriedade, e olhando a ele portanto como não só tirado ou livre de toda obrigação ao castigo, mas também como justo e reto, e assim com direito a uma recompensa positiva, não só é mais agradável à etimologia e a importação natural da palavra, que significa fazer justo, ou passar alguém como justo no juízo, mas também manifestamente agradável à força da palavra como utilizada na Escritura.” Ele então mostra como é, ou por que somente a fé justifica. Não é por causa de qualquer virtude ou bondade na fé, mas como ela nos une a Cristo, e implica a aceitação dEle como nossa justiça. Por isso, é que somos justificados “pela fé somente, sem nenhum tipo de virtude ou bondade do nossa parte.” A base da justificação é a justiça de Cristo imputada ao crente. “Por essa justiça que se imputa a nós,” diz Edwards, “quer dizer nada menos que isto, que esta justiça de Cristo é aceita por nós, e admitida em lugar dessa justiça perfeita inerente que devia estar em nós mesmos: a perfeita obediência de Cristo será considerada a nossa conta, de modo que vamos ter o benefício dela, como se tivéssemos realizado nós mesmos, e assim supõe-se que um título à vida eterna nos é dado como a recompensa desta justiça. . . . Os opositores desta doutrina supõem que é um absurdo nisso: dizem que supor que Deus imputa a obediência de Cristo a nós, é Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 163 supor que Deus está errado, e crê que realizamos essa obediência que Cristo realizou. Mas por que não pode essa justiça ser computada à nossa conta, e ser aceito por nós, sem qualquer tipo de tal absurdo? Por que há mais absurdo nisso, que na transferência da dívida de um comerciante ou crédito da conta de um homem a outro, quando um homem paga um preço por outro, de modo que se aceitará, como se esse outro o tinha pago? Por que há mais absurdo ao supor que a obediência de Cristo é imputada a nós, que sua satisfação é imputada? Se Cristo sofreu o castigo da lei por nós e em nosso lugar, então se segue, que seu sofrimento, que a penalidade é imputada a nós, quer dizer, que é aceita por nós, e em nosso lugar, e é contado para nossa conta, como se o tivéssemos sofrido. Mas por que não pode Sua obediência à lei de Deus ser como racionalmente contada à nossa conta, como seu sofrer a penalidade da lei?”143 Pontos incluídos nas anteriores declarações da doutrina Segundo as anteriores declarações, a justificação é: 1. Um ato, e não, como a santificação, uma obra continuada e progressiva. 2. É um ato de graça para com o pecador. Nele mesmo, merece condenação quando Deus o justifica. 3. Quanto à natureza do ato, não é, em primeiro lugar, um ato eficaz nem um ato de poder. Não produz nenhuma mudança subjetiva na pessoa justificada. Não efetua nenhuma mudança de caráter, fazendo bons os que eram maus, nem santos os que eram ímpios. Isto se faz na regeneração e na santificação. Em segundo lugar, não se trata de um mero ato executivo, como quando um soberano perdoa um criminoso, e o restaura com isso aos seus direitos civis, ou à sua anterior posição na comunidade. Em terceiro lugar, é um ato legal ou judicial, o ato de um juiz, não de um soberano. Isto é, no caso do pecador, ou, in foro Dei, 143 Works of President Edwards, New York, 1868, vol. iv. pp. 66, 91, 92. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 164 trata-se de um ato de Deus não em Seu caráter de Soberano, mas em Seu caráter de Juiz. É um ato declarativo em que Deus pronuncia justo ou reto o pecador, isto é, declara que as demandas da justiça estão satisfeitas até onde a ele lhe corresponde, de maneira que não pode ser justamente condenado, mas em justiça tem direito à recompensa prometida ou devida à perfeita justiça. 4. A base meritória para a justificação não é a fé; não somos justificados em base de nossa fé, considerada como um ato ou estado mental santo ou virtuoso. Nem são nossas obras de nenhum tipo a base da justificação. Nada feito por nós nem operado em nós dá satisfação às demandas da justiça nem pode ser a base nem a razão da declaração de que a justiça é satisfeita no que respeita a nós. A base para a justificação é a justiça de Cristo, ativa e passiva, isto é, incluindo Sua perfeita obediência à lei como aliança, e que suportou a pena da lei em nosso lugar e em nosso favor. 5. A justiça de Cristo é imputada ao crente na justificação. Isto é, é posta em sua conta, de maneira que tem direito a alegá-la perante o tribunal de Deus, como se fosse pessoal e inerentemente sua própria. 6. A fé é a condição da justificação. Isto é, quanto aos adultos concerne, Deus não imputa a justiça de Cristo ao pecador até que e a não ser que ele (por meio da graça) a receba e repouse em Cristo somente para sua salvação. É indiscutível que esta é a doutrina das igrejas Reformada e Luterana a respeito desta importante questão. As declarações das normas destas igrejas são tão numerosas, explícitas e escrutinadoras que impedem toda dúvida razoável a respeito desta questão. E que esta é a doutrina da Palavra de Deus aparece das seguintes considerações. Não será necessário tratar todos os pontos anteriormente, visto que alguns são necessariamente incluídos em outros. As seguintesproposições incluem todos os pontos essenciais da doutrina. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 165 § 2. A justificação é um ato forense. Com isto os Reformadores queriam, em primeiro lugar, negar a doutrina Romanista de justificação subjetiva. Isto é, que a justificação consiste num ato ou atividade de Deus fazendo o pecador subjetivamente santo. Os Romanistas confundem ou unem a justificação com a santificação. Definem a justificação como «a remissão do pecado e a infusão de novos hábitos de graça». Por remissão de pecado se referem não simplesmente ao perdão, e sim à eliminação de tudo o que seja de natureza de pecado da alma. Por isso, a justificação, para eles, é puramente subjetiva, consistindo na destruição do pecado e na infusão de santidade. Em oposição a esta doutrina, os Reformadores mantiveram que por justificação as Escrituras se referem a algo diferente da santificação. Que os dois dons, embora inseparáveis, são distintos, e que a justificação, em lugar de ser um ato eficaz mudando o caráter interior do pecador, é um ato declarativo, anunciando e determinando sua relação com a lei e com a justiça de Deus. Em segundo lugar, os Símbolos da Reforma ensinam de maneira não menos explícita que a justificação não é simplesmente o perdão e a restauração. Inclui o perdão, mas inclui também uma declaração de que o crente é justo diante da lei. Tem direito a alegar uma justiça que dá completa satisfação a suas demandas. E por isso, em terceiro lugar, de maneira afirmativa, estes Símbolos ensinam que a justificação é um ato judicial ou forense, isto é, um ato de Deus como juiz procedendo com base na lei, declarando que o pecador é justo, isto é, que a lei já não o condena mais, mas o absolve e o declara com direito à vida eterna. Aqui, como em tantas outras ocasiões, a ambiguidade das palavras pode ocasionar uma situação problemática. A palavra grega δίκαιος (dikaios) e a palavra em português justo têm dois sentidos distintos. Às vezes expressam caráter moral. Quando dizemos que Deus é justo, referimo-nos ao fato de que Ele é reto. Está livre de toda imperfeição Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 166 moral. De maneira que quando dizemos que um homem é justo, geralmente nos referimos a que é reto e honesto. Que é e faz o que deve ser e fazer. Neste sentido, a palavra expressa a relação que uma pessoa sustenta perante a norma da conduta moral. Mas em outras ocasiões estas palavras expressam não o caráter moral, mas a relação que alguém tem quanto à justiça. Neste sentido, é justo aquele homem com relação a quem a justiça está satisfeita; ou aquele para com quem a justiça não tem demandas. Por isso, os léxicos nos dizem que δίκαιος (dikaios) significa às vezes leges observans; em outras ocasiões insons, culpa vacans (livre de culpa ou de pena) – judicio Dei insons. Pilatos (Mt 27:24) disse: «Sou inocente do sangue deste justo», isto é, desta pessoa livre de culpa; livre de tudo que justifique sua condenação à morte. «Também Cristo», diz o Apóstolo, «padeceu uma só vez pelos pecados, o justo pelos injustos», isto é, o inocente pelos culpados. Veja-se Romanos 2:13; 5:19. «Porque assim como pela desobediência de um homem, os muitos foram constituídos pecadores, assim também pela obediência de um, os muitos serão constituídos justos». «Como afirmado de judicandus em sua relação com o juiz, “justiça” expressa não uma virtude positiva, mas sim uma carência negativa de reatus. Na presença de seu juiz é צִַרּיק (tsadoq) aquele que está livre de culpa e de merecimento de castigo, seja porque não contraiu culpa alguma (como, por ex., Cristo), ou porque expiou a culpa contraída da maneira exigida pelo Juiz (no Antigo Testamento mediante um sacrifício expiatório)».144 Por isso, se tomarmos a palavra justo no primeiro dos dois sentidos mencionados, quando expressa caráter moral, seria uma contradição dizer que Deus pronuncia justo o pecador. Isto seria equivalente a dizer que Deus declara que o pecador não é pecador, que o ímpio é bom, que o ímpio é santo. Mas se tomarmos a palavra no sentido em que as Escrituras o empregam tão frequentemente, expressando relação com a justiça, então 144 2. Christliche Dogmatik, von Johannes Heinrich August Ebrard, §402. edición Königsberg. 1852, Vol. II. pág. 163. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 167 quando Deus declara justo o pecador declara simplesmente que sua culpa está expiada, que a justiça está satisfeita, que tem a justiça que demanda a equidade. Isto é precisamente o que Paulo diz, quando afirma que Deus «justifica o ímpio» (Rm 4:5). Deus não declara pio o ímpio; mas declara que, apesar de sua pecaminosidade e indignidade pessoais, é aceito como justo sobre a base do que Cristo fez por ele. Prova da doutrina recém-anunciada. O fato de que justificar não significa nem perdoar nem fazer inerentemente justo ou bom, fica demonstrado: Pelo uso da Escritura. 1. Pelo uso uniforme do termo justificar nas Escrituras. Nunca se emprega em nenhum destes dois sentidos, mas sempre de declarar ou pronunciar justo. É desnecessário citar passagens como prova de um uso que é uniforme. Os seguintes exemplos serão suficientes. Deuteronômio 25:1 [NKJV]: «Se houver contenda entre dois homens, e vierem a juízo, para que os juízes os julguem, justificarão o justo e condenarão o culpado.» Êxodo 23:7 - «Eu não justificarei o ímpio.» Isaías 5:23 [RC]: «Ai dos que justificam o ímpio por presentes.» Provérbios 17:15 [RC]: «O que justifica o ímpio e o que condena o justo abomináveis são para o SENHOR, tanto um como o outro.» Lucas 10:29 - «Ele, porém, querendo justificar-se.» Lucas 16:15 - «Vós sois os que os justificais a vós mesmos diante dos homens.» Mateus 11:19 - «A sabedoria é justificada por suas obras.» Gálatas 2:16 [RC]: «Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei.» Gálatas 5:4 [RC]: «Vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído.» Também desta maneira diz-se dos homens que justificam a Deus. Jó 32:2 [RC]: «Porque se justificava a si mesmo, mais do que a Deus.» Salmo 51:4 - «De maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar» Lucas 7:29 - «Todo o povo que o ouviu e até os publicanos reconheceram a justiça de Deus.» Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 168 A única passagem no Novo Testamento onde a palavra δικαιόω é usada num sentido diferente é Apocalipse 22:11, 6, ὁ δίκαιος, δικαιωθήτω ἔτι, “Quem é justo faça justiça ainda.” Aqui, o primeiro aoristo passivo parece ser utilizado num sentido médio, ‘Deixa-o mostrar-se justo, ou seguir justo.’ Inclusive se a leitura desta passagem fosse indubitável, este único caso não teria a força contra o uso estabelecido da palavra. A leitura, entretanto, não é meramente duvidosa, mas ela, na opinião da maioria dos editores críticos, Tischendorf entre os restantes, é incorreta. Eles dão, como texto verdadeiro, δικαιοσύνην ποιησάτω ἔτι. Ainda, como Wette pensa, se esta última leitura for uma glosa, isso mostra que ὁ δίκαιος δικαιωθήτω ἔτι era tão intolerável para um ouvido grego como a expressão: ‘Aquele que é justo, deixa-o justificar-se ainda,’ seria para nós. O uso da vida comum quanto a esta palavra é igualmente uniforme como o da Bíblia. Seria um solecismo absoluto dizer que um criminoso perdoado pelo governo está justificado; ou que um bêbado ou ladrão reformados estão justificados. A palavra expressa sempre um juízo, seja da mente, como quando um homem justifica a outro por sua conduta, ou oficialmente de um juiz. Se este é o sentido estabelecido do termo, deveria resolver toda controvérsia quanto à natureza da justificação. Estamos obrigados a tomar as palavras da Escritura em seu verdadeiro e estabelecido significado. E, por isso, quando a Bíblia diz que «Deus justifica o que crê», não temos direitoa dizer que significa que perdoa, ou que o santifica. Significa, e só pode significar, que o declara justo. Justificação é o oposto de Condenação. 2. O anterior faz-se mais evidente pela antítese entre condenação e justificação. A condenação não é o contrário nem do perdão nem da reforma. Condenar é declarar culpado; ou digno de castigo. Justificar é declarar não culpado; ou que a justiça não demanda castigo; ou que a pessoa interessada não pode ser em justiça condenada. Assim, quando o Apóstolo diz (Rm 8:1): «Agora, pois, já nenhuma condenação há para os Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 169 que estão em Cristo Jesus», está declarando que estão absolvidos de culpa; que a pena da lei não pode lhes ser em justiça infligida. «Quem», pergunta ele, «intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu» (vv. 33,34). Não se pode apresentar razão alguma de condenação contra os escolhidos de Cristo. Deus os declara justos, e por isso ninguém pode declará-los culpados. Esta passagem é certamente decisiva contra a doutrina da justificação subjetiva em qualquer de suas formas. Esta oposição entre a condenação e a justificação é familiar tanto na Escritura e na vida comum. Jó 9:20 [RC]: “Se eu me justificar, a minha boca me condenará.” Jó 34:17 - “Quererás tu condenar aquele que é justo e poderoso?” Se condenar não significa fazer o mal, justificar não significa fazer o bem. E se a condenação é uma condenação judicial, em lugar de um ato executivo, assim o é a justificação. Na condenação é um juiz quem dita sentença ao culpado. Na justificação é um juiz quem pronuncia ou quem declara a pessoa processada livre de culpa e com direito a ser tratada como justa. Argumento com base em formas equivalentes de expressão. 3. As formas de expressão que se empregam como equivalentes da palavra «justificar» determinam de maneira clara a natureza do ato. Assim, Paulo refere-se a «bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as obras» (Rm 4:6, RC). Imputar justiça não é perdoar; nem santificar. Significa justificar, isto é, atribuir justiça. A forma negativa em que se descreve a justificação é igualmente significativa: «Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos; bem-aventurado o homem a quem o Senhor jamais imputará pecado» (Rm 4:7,8). Porquanto «imputar pecado» nunca significa nem pode significar fazer ímpio; tampouco a declaração negativa «não imputar nenhum pecado» pode significar santificar. E como «imputar pecado» significa pôr o pecado à Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 170 conta de alguém e tratá-lo de maneira lembre, igualmente justificar significa pôr a justiça à conta de alguém, e tratá-lo desta maneira. «Deus enviou o seu Filho ao mundo não para que condenasse o mundo ... Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado» (Jo 3:17, 18, RC). Porque «como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida» (Rm 5:18). Foi κρῖμα (krima), uma sentença judicial, o que veio sobre os homens pela ofensa de Adão, e é uma sentença judicial (justificação, uma δικαίωσις [dikaiösis]) o que vem pela justiça de Cristo, ou, como é dito no v. 16 do mesmo capítulo, foi uma κρῖμα εἰς κατάκριμα (krima eis katakrima), uma sentença condenatória a qual veio por um uma transgressão; e uma χάρισμα εἰς δικαίωμα (charisma eis dikaiöma), uma sentença de justificação gratuita de muitas transgressões. A linguagem não pode ser mais clara. Se uma sentença de condenação é um ato judicial, então a justificação é um ato judicial. Argumento com base no enunciado da doutrina. 4. O caráter judicial da justificação está envolvido na maneira em que a doutrina é apresentada na Bíblia. As Escrituras falam da lei, de suas demandas, de sua pena, de pecadores levados a comparecer perante o tribunal de Deus, do dia do juízo. A pergunta é: Como se justificará o homem diante de Deus? A resposta a esta pergunta determina o método de salvação. A pergunta não é: como pode o homem fazer-se santo, mas sim, como pode chegar a ser justo? Como pode dar satisfação às demandas da justiça contra ele? É evidente que se em Deus não existisse o atributo de justiça, que se o que chamamos justiça fosse apenas benevolência, então esta pergunta não teria base. Não se demandaria que o homem fosse justo para poder ser salvo. Não haveria demandas da justiça que satisfazer. O arrependimento seria tudo o que é necessário como condição para ser restaurado ao favor de Deus. Ou qualquer Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 171 declaração ou exibição didática do desagrado de Deus com relação ao pecado abriria o caminho para o seguro perdão dos pecadores. Ou, se as exigências da justiça fossem facilmente satisfeitas; se uma obediência parcial e imperfeita e algumas disciplinas paternas, ou penitências autoinfligidas, fossem suficientes para dar satisfação a suas demandas, então um pecador não teria que ser justo para com Deus para poder ser salvo. Mas a alma humana sabe intuitivamente que estes são refúgios de mentiras. Sabe que existe o atributo da justiça. Sabe que as demandas da justiça são inexoráveis porque são retas. Sabe que não pode ser salvo a não ser que seja justificado, e sabe que não pode ser declarado justo a não ser que as demandas da justiça sejam plenamente satisfeitas. Perspectivas deficientes a respeito do mal do pecado e da justiça de Deus encontram-se na base de todas as perspectivas falsas desta grande doutrina. O argumento do Apóstolo na Epístola aos Romanos. O Apóstolo começa a discussão deste tema assumindo que a justiça de Deus, Seu propósito de castigar todo pecado, de demandar uma perfeita conformidade com a lei, é revelada do céu, isto é, revelada de tal maneira que ninguém – judeu ou gentio – pode negá-la (Rm 1:18). Os homens, inclusive o mais degradado dos pagãos, conhecem o justo juízo de Deus, de que os que pecam merecem a morte (v. 32). Logo demonstra que todos os homens são pecadores, e que, sendo pecadores, estão sob condenação. Todo mundo está «sob o juízo de Deus» (Rm 3:19, TB). Desta infere como intuitivamente certo (porque é sinceramente incluído nas premissas), que nenhum ser humano pode justificar-se diante de Deus «pelas obras da lei», isto é, sobre a base de seu próprio caráter e conduta. Se é culpado, não pode ser declarado não culpado, ou justo. No argumento de Paulo, justificar é declarar justo. Δίκαιος (Dikaios) é o oposto de ὑπόδικος (hupodikos, quer dizer, “reus, satisfactionem alteri debens”). Isto é, justo é oposto de culpado. Declarar culpado é condenar. Declarar justo, isto é, não culpado, é justificar. Se alguém nega a Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 172 autoridade da Escritura, ou se sente-se livre para rejeitar a forma da doutrina, conquanto mantém o que considera sua substância, é concebível que possa negar que a justificação é um ato judicial; mas parece impossível que alguém possa negar que assim esteja apresentada na Bíblia. Alguns homens que professam crer na Bíblia, negam que há algo sobrenatural na obra da regeneração e da santificação. ‘Nascer do Espírito;’ ‘vivificado pelo grande poder de Deus,’ ‘criado de novo em Cristo Jesus,’ são só, dizem eles, fortes expressões orientais para uma reforma autoforjada. Mediante um processo similar é fácil livrar-se não só da doutrina da justificação como ato judicial, mas de todas as outras doutrinas distintivas das Escrituras. Entretanto, isto não é interpretar, e sim perverter. O Apóstolo, tendo ensinado que Deus é justo, isto é, que Ele demanda a satisfação da justiça, e que os homens são pecadores e que não podem dar tal satisfação eles mesmos, anuncia que estajustiça é provida, e que está revelada no Evangelho. Não é nossa própria justiça, que é da lei, mas a justiça de Cristo, e por isso, a justiça de Deus, em virtude da qual, e sobre cuja base, Deus pode ser justo e, entretanto, justificar o pecador que crê em Cristo. Embora a Bíblia se mantenha, esta deve manter-se como uma simples declaração da qual Paulo ensina quanto ao método da salvação. Os homens podem disputar quanto ao que quer dizer, mas é isto certamente o que ele diz. Argumento derivado da base da justificação. 5. A natureza da justificação é determinada por sua base. Esta, certamente, é uma antecipação de outra parte do tema, mas é oportuno aqui. Se a Bíblia ensina que a base da justificação, a razão pela qual Deus nos redime da pena da lei e nos aceita como justos diante dEle, é algo fora de nós, algo feito por nós, e não o que fazemos nem experimentamos, então, segue-se necessariamente que a justificação não é subjetiva. Não consiste na infusão de justiça, nem em fazer a pessoa Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 173 justificada pessoalmente santa. Se a «causa formal» de nossa justificação fosse nossa bondade, então somos justificados pelo que somos. Mas a Bíblia ensina que nenhum ser humano pode ser justificado pelo que é. Está condenado pelo que é e pelo que faz. Está justificado pelo que Cristo fez por ele. A justificação não é mero perdão. Pela mesma razão, a justificação não pode ser mero perdão. O perdão não procede sobre a base de uma satisfação. Um detento libertado por um resgate não foi perdoado. Um devedor cujas obrigações foram canceladas por um amigo tem direito à liberdade das demandas de seu credor. Quando um soberano perdoa um criminoso, não é um ato de justiça. Não é com base na satisfação da lei. Por isso, a Bíblia, ao ensinar que a justificação é sobre a base de uma expiação ou satisfação; que a culpa do pecador é expiada; que foi redimido pelo precioso sangue de Cristo; e que se emitiu sobre ele a declaração judicial de que é justo, ensina-nos com isso que a justificação não é nem perdão nem infusão de justiça. Argumento com base na imutabilidade da lei. 6. A doutrina de que a justificação consiste simplesmente no perdão e na conseguinte restauração pressupõe que a lei divina é imperfeita e mutável. Entre os governos humanos é, com frequência, conveniente e correto que homens justamente condenados a sofrer a pena da lei sejam perdoados. As leis humanas devem ser gerais. Não podem entrar em todas as circunstâncias de cada caso particular. Sua execução com frequência resultaria em dificuldades ou injustiças. Por isso, os juízos humanos podem ser, com frequência, deixados de lado. Não é assim com a lei divina. A lei do Senhor é perfeita. E nada perfeito pode ser descuidado. Não demanda nada que não deva ser demandado. Não ameaça com nada que não deva ser infligido. De fato, é seu próprio executor. O pagamento do pecado é a morte (Rm 8:6). A justiça de Deus Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 174 faz o castigo tão inseparável como a vida a é da santidade. A pena da lei é imutável, e tão pouco suscetível de ser lançada de lado como o preceito. Por isso, as Escrituras ensinam em todo lugar que na justificação do pecador não há relaxação da pena. As demandas da lei não são deixadas de lado nem descuidadas. Somos libertados da lei não por sua ab-rogação, mas por sua execução (Gl 2:19). Somos libertados da lei pelo corpo de Cristo (Rm 7:4). Cristo, ao tomar nosso lugar, levou nossos pecados em Seu próprio corpo sobre o madeiro (1Pe 2:24). O documento de dívida contra nós Ele o cancelou, cravando-o em Sua cruz (Col 2:14). Por isso é que não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça (Rm 7:14). Estas descrições são incompatíveis com a teoria que supõe que a lei pode ser passada por alto; que a restauração dos pecadores ao favor e à comunhão de Deus não demandam a satisfação de suas exigências, que o crente é perdoado e restaurado à comunhão com Deus da mesma maneira em que um ladrão ou falsificador são perdoados e restaurados aos seus direitos civis por um governante humano. Isto está contra as Escrituras. Deus é justo ao justificar o pecador. Ele age de acordo com a justiça. Observar-se-á que tudo nesta discussão gira sobre a questão quanto a se em Deus existe o atributo da justiça. Se a justiça fosse apenas «benevolência conduzida por sabedoria», então não há justificação. O que os cristãos evangélicos consideram como tal seria só o perdão ou a santificação. Mas se Deus, como nos ensinam as Escrituras e a consciência, é um Deus justo, tão imutável em Sua justiça como em Sua bondade e verdade, então não pode haver remissão da pena do pecado, exceto sobre a base da satisfação da justiça; e, por isso, a justificação tem que ser um ato judicial, e não um mero perdão ou infusão de justiça: estas doutrinas se sustentam umas às outras. O que a Bíblia ensina da justiça de Deus demonstra que a justificação é uma declaração judicial de que a justiça ficou satisfeita. E o que a Bíblia ensina a respeito da natureza da justificação demonstra que a justiça em Deus é algo mais Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 175 que benevolência. Assim é que estão concatenadas todas as grandes doutrinas da Bíblia. Argumento com base na natureza de nossa união com Cristo. 7. A teoria que reduz a justificação ao perdão e a suas consequências não é consequente com a que se revela a respeito de nossa união com Cristo. Esta união é mística, sobrenatural, representativa e vital. Estávamos nEle antes da fundação do mundo (Ef 1:4); estamos nEle como estivemos em Adão (Rm 5:12, 21; 1Co 15:22); estamos nEle como os membros do corpo estão na cabeça (Ef 1:23; 4:16; 1Co 12:12,27; e em muitas passagens); estamos nEle como os ramos estão na videira (Jo 15:1-12). Estamos nEle em tal sentido que Sua morte é nossa morte, fomos crucificados com Ele (Gl 2:20; Rm 6:1-8); estamos unidos com Ele de tal maneira que ressuscitamos com Ele, e com Ele estamos assentados nos lugares celestiais (Ef 2:1-6). Em virtude desta união somos (em nossa medida) o que Ele é. Somos nEle filhos de Deus. E o que Ele fez, nós fizemos. Sua exaltação é nossa exaltação. Esta é a descrição que satura as Escrituras. Tudo isto é passado por alto pelos proponentes da teoria oposta. Segundo este ponto de vista, Cristo não está mais unido a Seu povo, exceto em sentimento, que a outros homens. Simplesmente tem feito aquilo que faz consistente com o caráter de Deus e com os interesses de Seu reino o perdoar a qualquer e todo homem que se arrependa e creia. Sua relação é puramente externa. Não está unido de tal maneira a Seu povo que Seu mérito venha a ser o mérito deles e Sua vida a vida deles. Cristo não é neles a esperança da glória (Col 1:27). Ele não foi feito por Deus para eles sabedoria, justiça, santificação e redenção (1Co 1:30). Não estão nEle de maneira que em virtude desta união, estejam cheios de toda a plenitude de Deus (Col 2:10 e Ef 3:19). Por outro lado, a doutrina Protestante da justificação harmoniza com todas estas descrições. Se estamos unidos com Cristo de tal maneira que somos feitos partícipes de Sua vida, somos também partícipes de Sua Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 176 justiça. O que Ele fez ao obedecer e sofrer, Ele o fez pelo Seu povo. Um elemento essencial de Sua obra redentora foi satisfazer as demandas da justiça em favor deles, de maneira que nEle e por causa dEle têm título ao perdão e à vida eterna. Argumentos com base nos efeitos adscritos à justificação. 8. As consequências atribuídas à justificação são inconsequentes com a pressuposição de que consista quer no perdão, quer na infusão de justiça. Estas consequências são a paz, a reconciliação, e o direito à vida eterna. «Justificados, pois, pela fé,» diz o Apóstolo, «temos paz com Deus» (Rm 5:1). Mas o perdãonão produz paz. Deixa a consciência insatisfeita. Um criminoso perdoado não é só tão criminoso como era antes, mas o seu sentimento de culpa e de remorso de consciência não ficam diminuídos em grau algum. O perdão só pode eliminar a pena externa e arbitrária. O aguilhão do pecado permanece. Não pode haver paz da mente até que a justiça seja satisfeita. A justificação obtém a paz não só porque inclui o perdão, mas porque este perdão é dado sobre a base de uma plena satisfação da justiça. O que dá satisfação à justiça de Deus dá satisfação à consciência do pecador. O sangue de Jesus Cristo purifica de todo pecado (1Jo 1:7), tirando a culpa, e produzindo assim uma paz que sobrepuja a todo entendimento. Quando a alma vê que Cristo levou seus pecados sobre a cruz, suportando a pena em que ela tinha incorrido; que todas as demandas da lei são plenamente satisfeitas; que Deus é mais honrado em Seu perdão que em Sua condenação; que todos os fins do castigo são consumados pela obra de Cristo num grau muito mais elevado que poderiam ser com a morte do pecador; e que tem direito a alegar o infinito mérito do Filho de Deus perante o tribunal da justiça divina, então é satisfeita. Então tem paz. É humilde. Não perde o sentimento de seu demérito pessoal, mas a consciência deixa de pedir satisfação. Sabe-se que, com frequência, os criminosos se entregam à justiça. Não podem descansar até que não recebam o castigo. A inflição da pena em que tinham incorrido lhes dá paz. Este é um elemento na Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 177 experiência do cristão. O pecador sentenciado nunca pode encontrar a paz até que deixa sua carga de pecado sobre o Cordeiro de Deus; até que é consciente de que seus pecados foram castigados, como o diz o Apóstolo (Rm 8:3), em Cristo. Também é dito que somos reconciliados com Deus mediante a morte de Seu Filho (Rm 5:10). Mas o perdão não obtém a reconciliação. Um criminoso perdoado pode ser restaurado aos seus direitos civis, até onde a pena aplicada envolvia a perda dos mesmos, mas não é reconciliado com a sociedade. Não é restaurado ao favor da mesma. Entretanto, a justificação obtém uma restauração ao favor e à comunhão de Deus. Somos feitos filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo (Gl 3:26). Ninguém pode ler o oitavo capítulo da Epístola aos Romanos sem chegar à convicção de que no pensamento de Paulo um crente justificado é algo mais que um criminoso perdoado. É um homem cuja salvação está assegurada porque está livre da lei e de todas as suas demandas; porque a justiça da lei (isto é, todos os seus justos requerimentos) foi cumprida nele; porque está unido de tal maneira a Cristo que vem a ser partícipe de Sua vida; porque ninguém pode acusar de nada aqueles pelos quais Cristo morreu e aos quais Deus justificou; e porque tais crentes, ao ser justificados, são revelados como os objetos do misterioso, imutável e infinito amor de Deus. Também, a justificação inclui ou comunica um título à vida eterna. O perdão é puramente negativo. Simplesmente remove uma penalidade. Não confere nenhum título a benefícios não desfrutados previamente. Entretanto, a vida eterna suporta a condição de uma obediência perfeita. O pecador meramente perdoado não tem tal obediência. Está destituído daquilo que, pelos imutáveis princípios do governo divino, é a condição indispensável para a vida eterna. Não tem direito à herança prometida aos justos. Não é esta a condição do crente. O mérito de Cristo tem direito à recompensa. E o crente, ao ser partícipe deste mérito compartilha este título. Isto está constantemente reconhecido nas Escrituras. Pela fé em Cristo viemos a ser filhos de Deus. Mas a filiação Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 178 envolve a condição de herdeiros, e a condição de herdeiros implica um título à herança. «Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo» (Rm 8:17). Esta é a doutrina que se ensina em Romanos 5:12-21. Pela transgressão de um, passou o juízo sobre todos os homens para condenação. Pela justiça de um, passou sobre todos os veredictos de justificação de vida; isto é, de uma justificação que dá título à vida. Assim como o pecado de Adão foi a base judicial para nossa condenação (isto é, foi a base sobre a qual a justiça demandava condenação), assim a justiça de Cristo é a base judicial para a justificação. Isto é, é a base sobre a qual a vida prometida aos justos deve ser em justiça concedida ao crente. A Igreja, em todas as idades, reconheceu esta verdade. Os crentes sempre creram que tinham título à vida eterna. Por isso têm louvado a Deus com os cânticos mais sublimes. Sempre têm considerado como intuitivamente certo que o céu tem que ser merecido. A única questão era: Se o mérito está neles, ou em Cristo. Estando em Cristo, era-lhes um dom gratuito para eles; e assim a justiça e a paz se beijaram. A graça e a justiça se unem em pôr a coroa de justiça sobre a cabeça do crente. Não é menos certo que as consequências atribuídas à justificação não resultam da infusão de justiça. A quantidade de santidade possuída pelo crente não lhe dá paz. Nem a santidade perfeita eliminaria a culpa. O arrependimento não expia o crime do assassinato. Não faz calar a consciência do assassino. Não dá satisfação ao sentimento de justiça na mente do público. É o πρῶτον ψεῦδος (pröton pseudos) do Romanismo e de todas as teorias de justificação subjetiva o fato de que nada fazem da culpa ou a reduzem a um mínimo. Se não existisse a culpa, então a infusão da justiça seria tudo o que é necessário para a salvação. Mas se há justiça em Deus, então nenhuma quantidade de santidade pode expiar o pecado, e a justificação não pode consistir em fazer santo o pecador. Além disso, inclusive admitindo que se pudesse ignorar o passado, que a culpa que gravita sobre a alma pudesse ser passada por alto tão facilmente ou tão facilmente removida, a justiça subjetiva, ou a Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 179 santidade, é tão imperfeita que nunca daria paz ao crente. Que o mais santo dos homens olhe ao seu interior, e que diga se o que vê ali dá satisfação à sua consciência. Se não, como pode dar satisfação a Deus? Ele é maior que nossos corações e conhece todas as coisas. Por isso, ninguém pode ter paz com Deus com base no que ele é ou do que faz. Os Romanistas admitem que só a perfeição da santidade justifica ou dá paz à alma. Em resposta ao argumento protestante fundado nessa admissão, Belarmino diz:145 “Hoc argumentum, si quid probat, probat justitiam actualem non esse perfectam: non autem probat, justitiam habitualem, qua formaliter justi sumus, . . . . non esse ita perfectam, ut absolute, simpliciter, et proprie justi nominemur, et simus. Non enim formaliter justi sumus opere nostro, sed opere Dei, qui simul maculas peccatorum tergit, et habitum fidei, spei, et caritatis infundit. Dei autem perfecta sunt opera. . . . . Unde parvuli baptizati, vere justi sunt, quamvis nihil operis fecerint.” Novamente: “Justitia enim actualis, quamvis aliquo modo sit imperfecta, propter admixtionem venalium delictorum, et egeat quotidiana remissione peccati, tamen non propterea desinit esse vera justitia, et suo etiam quodam modo perfecta.” Nenhuma provisão faz-se neste sistema para a culpa. Se a alma é feita santa pela infusão de hábitos ou de princípios, da graça, isso é justo aos olhos de Deus. Nenhuma culpa ou merecimento da pena permanece. Diz Belarmino:146 “Reatus est relatio,” mas se a coisa da qual uma relação é tirada, onde está a relação. É impossível que esse ponto de vista da justificação possa dar paz. Não faz nenhuma provisão para a satisfação da justiça, e coloca todas as nossas esperanças no que está dentro, que nossa consciência testifica que não pode satisfazer as justas exigências de Deus. Tampouco pode a teoria da justificaçãosubjetiva considerar a reconciliação com Deus, e pelas mesmas razões. O que é infundido, o 145 De Justificatione, ii. 14; Disputationes, edit. Paris, 1608, vol. iv. p. 819, a, b. 146 De Amissione Gratiæ et Statu Peccati, v. 7; Ibid. p. 287. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 180 grau de santidade comunicada, não nos dão os objetos da complacência e amor divinos. Seu amor por nós é da natureza da graça, o amor ao desagradável. Somos reconciliados com Deus pela morte de Seu Filho. Isto remove o obstáculo resultante da justiça ao fluir para conosco do misterioso, imerecido amor de Deus. Somos aceitos no Amado. Não estamos em nós mesmos aptos para a comunhão com Deus. E se dirigidos a depender do que está dentro, em nossa justiça subjetiva, em lugar de paz devemos ter desespero. De novo, a justificação segundo as Escrituras dá um título à vida eterna. Porque esta nossa justiça própria é totalmente inadequada. Bem longe de que nada em nós seja meritório, ou com direito a recompensa, o estado interior e os exercícios dos mais santos dos homens chegam a estar tão longe da perfeição que merecem a condenação. Em nós não habita o bem. Quando queremos fazer o bem, o mal está presente conosco. Há sempre uma lei em nossos membros que guerreia contra a lei da mente. O pecado que habita em nós, permanece. Inclusive levou a Paulo a clamar: «Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?» (Rm 7:24.) «Jamais se achou obra nenhuma, por mais santo que fosse aquele que a realizou, que examinada com o rigor do juízo divino, não resultasse digna de condenação.»147 Ignorando esta clara verdade da Escritura e da experiência divina que se expressa a si mesma em confissão, humilhação e orações diárias e frequentes pelo perdão, a doutrina da justificação subjetiva supõe que não há pecado no crente, nem pecado que mereça a condenação de Deus, mas pelo contrário que nele há aquilo que merece a vida eterna. Os Romanistas fazem uma distinção entre uma primeira e uma segunda justificação. A primeira admitem que é gratuita, e que se baseia no mérito de Cristo, ou antes, que é outorgada gratuitamente por causa de Cristo. Esta consiste na infusão da graça habitual (isto é, a 147 Calvino, Institución de la Religión Cristiana, Libro III, cap. XIV, 11; FELIRE, Rijswijk 1968, Vol.1, pág. 601. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 181 regeneração). Justifica fazendo a alma subjetivamente justa ou santa. A segunda justificação não é assunto da graça. Está baseada no mérito das boas obras, os frutos da regeneração. Mas se estes frutos estão, como o testifica nossa consciência, contaminados pelo pecado, como podem merecer a vida eterna? Como podem cancelar o documento de dívida contra nós? Como podem ser a base da confiante provocação de Paulo: «Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus?» A base de nossa confiança e nosso título à vida eterna não é o que está dentro de nós, senão fora; não o que somos ou fazemos, mas o que Cristo é e tem feito. Esta é a doutrina admitida da Reforma Protestante. «Apud theologos Augustanæ confessionis extra controversiam positum est», diz a «Fórmula de Concórdia»,148 «totam justitiam nostram extra nos, et extra omnium hominum merita, opera, virtutes dignitatem quærendam, eamque in solo Domino nostro, Jesu Christo consistere». Assim como os céus estão mais altos do que a terra, assim é alta a esperança baseada na obra de Cristo por nós, acima de uma esperança baseada no mérito de nada que tenha sido operado em nós. Calvino ensina a mesma doutrina que Lutero.149 Ele cita Lombardo, dizendo que nossa justificação em Cristo pode ser interpretada de duas maneiras: “Primum, mors Christi nos justificat, dum per eam excitatur caritas in cordibus nostris, qua justi efficimur: deinde quod per eandem exstinctum est peccatum; quo nos captivos distinebat diabolus, ut jam non habeat unde nos damnet.” Ao que Calvino responde: “Scriptura autem, quem de fidei justitia loquitur, longe alio nos ducit: nempe ut ab intuitu operum nostrorum aversi, in Dei misericordiam ac Christi perfectionem, tantum respiciamus. . . . . Hic est fidei sensus, per quem peccator in possessionem venit suæ salutis, dum ex Evangeli doctrina agnoscit Deo se reconciliatum: quod intercedente Christi justitia, impetrata peccatorum remissione, 148 Solida Declaratio, III. 55; Hase, Libri Symbolici, 3d edit. Leipzig, 1846, p. 695. 149 Ibíd., Libro III, cap. XI, 15, 16. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 182 justificatus sit: et quanquam Spiritu Dei regeneratus, non in bonis operibus, quibus incumbit, sed sola Christi justitia repositam sibi perpetuam justitiam cogitat.” O fato de que a justificação não é meramente o perdão, e que não é uma infusão de justiça mediante a qual o pecador seja feito inerentemente justo ou santo, mas um juízo que Deus emite de que as demandas da lei e com relação ao crente estão satisfeitas, e que tem título a uma justiça que lhe dá direito à vida eterna, foi argumentado: (1) Com base no uso uniforme do termo na Escritura tanto no Antigo como no Novo Testamento. (2) Com base na constante oposição entre justificação e condenação. (3) Com base nas equivalentes formas de expressão. (4) Com base em todo o desígnio e corrente do argumento do Apóstolo em Suas epístolas aos Romanos e aos Gálatas. (5) Com base na justificação, isto é, a justiça de Cristo. (6) Com base na imutabilidade da lei e da justiça de Deus. (7) Com base na natureza de nossa união com Cristo. (8) Com base no fato de que a paz, a reconciliação com Deus e o título à vida eterna que, segundo as Escrituras, são as consequências da justificação, não surgem nem do mero perdão, nem da justiça subjetiva, nem da santificação. E não se pode duvidar de que esta seja a doutrina Protestante tanto a Luterana como a Reformada. A doutrina de Calvino. É certamente coisa certa que da parte dos primeiros Reformadores, e especialmente da parte de Calvino, diz-se com frequência que a justificação consiste no perdão dos pecados. Mas é evidente que isto não tem a intenção de negar o caráter judicial da justificação, nem excluir a imputação da justiça de Cristo, é óbvio: 1. Pela qual o crente é considerado justo à vista da lei, pela própria natureza da controvérsia na que estavam imersos estes Reformadores. A questão entre eles e os Romanistas era: Consiste a justificação no ato pelo qual Deus faz o pecador inerentemente justo ou santo? Ou expressa o veredicto de Deus pelo qual o crente é declarado justo? O que Calvino Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 183 negava era que a justificação seja a santificação. O que ele afirmava era que era livrar o crente da condenação da lei, introduzindo-o a um estado de favor para com Deus. Os Romanistas expressaram sua doutrina, dizendo que a justificação consiste na remissão do pecado e na infusão da caridade ou justiça. Mas por remissão do pecado significavam a erradicação do pecado; o tirar o velho homem. Em outras palavras, para eles a justificação consistia (para empregar a linguagem escolástica então em voga) na remoção dos hábitos de pecado e na infusão de hábitos de graça. Assim, naqueles justificados não havia pecado, e, portanto, nada que castigar. Por isso, o perdão seguia como consequência necessária. Era um mero acessório. Esta perspectiva deixa a culpa em nada; deixa em nada as demandas da justiça. Portanto, Calvino insistiu em que além da renovação subjetiva conectada com a conversão do pecador, sua justificação tinha que ver com a remoção da culpa, a satisfação da justiça, que na ordem natural, embora não na temporal, tem que preceder à comunicação da vida de Deus à alma. O fato de que Calvino não diferia a respeito desta questão dos outros Reformadores e de todo o corpo da IgrejaReformada aparece em suas próprias e explícitas declarações, e nos enunciados perfeitamente precisos das Confissões às quais deu seu assentimento. Assim, ele diz: «E para que não tropecemos do primeiro passo (como sucederia se começássemos a disputar sobre uma coisa incerta e desconhecida) convém que primeiro declaremos o que querem dizer expressões como o homem é justificado diante de Deus; que é justificado pela fé, ou pelas obras. «Diz-se que é justificado diante de Deus aquele que é reputado por justo diante do juízo divino e aceito a sua justiça. Porque como Deus abomina a iniquidade, o pecador não pode achar graça em sua presença assim que é pecador, e enquanto é tido como tal. Por isso, onde quer que há pecado, ali se mostra a ira e o castigo de Deus. De modo que, chama- se justificado aquele que não é tido por pecador, mas por justo, e com este título aparece diante do tribunal de Deus, perante o qual todos os pecadores são confundidos e não se atrevem a comparecer. Como Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 184 quando um homem inocente é acusado perante um juiz justo, depois de ser julgado conforme a sua inocência, diz-se que o juiz o justificou; do mesmo modo diremos que é justificado diante de Deus o homem que separado do número dos pecadores, tem a Deus como testemunha de sua justiça e encontra nele aprovação. «Deste modo diremos de um homem que é justificado pelas obras, quando em sua vida há tal pureza e santidade que merece o título de justiça diante do tribunal de Deus; ou que ele com a integridade de suas obras pode responder e satisfazer a critério do juízo de Deus. «Ao contrário, será justificado pela fé aquele que, excluído das obras, alcança a justiça da fé, revestido com a qual, apresenta-se perante a majestade divina, não como pecador mas como justo. Desta maneira afirmamos nós em resumo, que nossa justificação é a aceitação com que Deus nos recebe em sua graça e nos tem por justos. E dizemos que consiste na remissão dos pecados e na imputação da justiça de Cristo.»150 Esta passagem é decisiva quanto à postura de Calvino, porque é expressamente uma declaração formal do estado da questão, dada com a maior clareza e precisão. A justificação consiste «na remissão de pecados e a imputação da justiça de Cristo.» «Está justificado diante de Deus aquele que é tirado da classe de pecadores, e que tem a Deus por testemunha e declarante de sua justiça.» § 3. As obras não são a base da justificação. Com referência aos homens desde a Queda, é tão explícita e repetida a declaração de que a justificação não é pelas obras, que nunca esta proposição foi posta em tela de juízo da parte daqueles que professam receber as Escrituras como a Palavra de Deus. Ao ser expressamente declarado que todo mundo é culpado diante de Deus, que pelas obras da lei nenhum ser humano se justificará diante de Deus, o 150 Institución de la Religión Cristiana. Libro III, cap. XI, 2; FELIRE, Rijswijk 1968, págs. 557,558. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 185 único ponto que fica aberto à discussão é: O que se significa por obras da lei? A esta pergunta deram-se as seguintes respostas: Primeiro, que por obras da lei se significam as obras prescritas na lei judaica. Supõe-se que como a controvérsia de Paulo era com os que ensinavam que a não ser que os conversos se circuncidassem e guardassem a lei de Moisés não podiam ser salvos (At 15:1,24), que tudo o que ele queria ensinar era o inverso desta proposição. Deve-se entendê-lo como dizendo que a observância dos ritos e cerimônias dos judeus não são essenciais para a salvação; que os homens não são feitos justos ou bons mediante obras cerimoniais externas, mas por obras moralmente boas. Este é o terreno assumido pelos Pelagianos e pela maioria dos modernos Racionalistas. É só uma modificação deste ponto de vista que os homens não são justificados, quer dizer, que seu caráter diante de Deus não é determinado tanto por seus atos particulares ou as obras, como por sua disposição e pelos princípios gerais de controle. Ser justificado pela fé, portanto, é ser justificado sobre a base de nossa confiança, ou pela confiança em Deus piedoso e a verdade. Assim Wegscheider151 diz: “Homines non singulis quibusdam recte factis operibusque operatis, nec propter meritum quoddam iis attribuendum, sed sola vera fide, i.e., animo ad Christi exemplum ejusdemque præcepta composito et ad Deum et sanctissimum et benignissimum converso, ita, ut omnia cogitata et facta ad Deum ejusque voluntatem sanctissimam pie referant, Deo vere probantur et benevolentiæ Dei confisi spe beatitatis futuræ pro dignitate ipsorum morali iis concedendæ certissima imbuuntur.” Steudlin152 expressa a mesma posição: «Toda verdadeira reforma, toda boa ação», diz ele, «deve brotar da fé, sempre que por fé compreendamos a convicção de que algo é correto, uma convicção de 151 Institiones Theologiæ, III. iii. § 155, 5th edit. Halle, 1826, p. 476. 152 Dogmatik, 2ter Theil, §134, B, g, h; Gottingen, 1800, págs. 783, 784. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 186 princípios morais generais e religiosos». Kant diz que Cristo num aspecto religioso é o ideal da humanidade. Quando um homem o considera de tal maneira e trata de conformar seu coração e vida a este ideal, é justificado pela fé.153 Segundo todas estas posturas, as meras obras cerimoniais são excluídas, e a base da justificação vem a ser nosso próprio caráter natural moral e nossa conduta. A doutrina Romanista. Segundo: A doutrina dos Romanistas a respeito deste ponto é muito mais elevada. O Romanismo retém o elemento sobrenatural do cristianismo em sua totalidade. Na verdade, é motivo de devota gratidão a Deus que por baixo dos numerosos, graves e destrutivos erros da Igreja Romanista, são preservadas as grandes verdades do Evangelho. A Trindade, a verdadeira divindade de Cristo, a verdadeira doutrina a respeito de Sua pessoa como Deus e homem em duas naturezas distintas e uma pessoa para sempre; a salvação por Seu sangue, a regeneração e a santificação por meio do onipotente poder do Espírito; a ressurreição do corpo, e a vida eterna, são doutrinas sob as quais vive o povo de Deus nesta comunhão, e que produziram homens tão santos como São Bernardo, Fénélon, e indubitavelmente milhares de outros que pertencem ao número dos escolhidos de Deus. Cada verdadeiro adorador de Deus deve reconhecer em seu coração como irmão em Cristo, seja onde for que se encontra, a qualquer que ama, adora e confia no Senhor Jesus Cristo como Deus manifestado em carne e o único Salvador dos homens. A respeito da questão da justificação, os Romanistas desfiguraram e deformaram a verdade como têm feito com quase todas as outras doutrinas que tocam à maneira em que os méritos de Cristo são postos à disposição para nossa salvação. Admitem, certamente, que não há bem algum no homem caído; que não pode merecer nada nem nada alegar sobre a base de nada que ele seja ou possa fazer por si mesmo. Por 153 Véase Strauss, Dogmatik, Tubingen y Stuttgart, 1841, vol. II, págs. 493, 494. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 187 natureza, está morto em pecado; e até que seja feito partícipe de uma nova vida pelo poder sobrenatural do Espírito Santo, não pode fazer mais que pecar. Por causa de Cristo, e só por Seus méritos, como questão de graça, esta nova vida lhe é comunicada na alma na regeneração (isto é, tal como ensinam os Romanistas, no batismo). Assim como a vida expulsa a morte; assim como a luz expulsa as trevas, assim a entrada desta nova vida divina na alma expulsa o pecado (isto é, os hábitos pecaminosos), e produz frutos de justiça. As obras feitas depois da regeneração têm verdadeiro mérito, «meritum condigni»,e são a base para a segunda justificação; a primeira justificação consiste em fazer a alma inerentemente justa pela infusão da justiça. Segundo este ponto de vista, não somos justificados por obras feitas antes da regeneração, e sim somos justificados para obras de graça, isto é, para obras que brotam do princípio da vida divina infundida no coração. Toda a base de nossa aceitação para com Deus, portanto, vem a ser o que somos e o que fazemos. A doutrina Remonstrante. Terceiro. Segundo os Remonstrantes ou Arminianos, as obras excluídas de nossa justificação são as obras da lei em distinção às obras do Evangelho. Na aliança feita com Adão, Deus exigiu perfeita obediência como condição de vida. Por causa de Cristo, no Evangelho Deus entrou numa nova aliança com os homens, prometendo-lhes a salvação sob a condição de obediência evangélica. Isto se expressa de diferentes maneiras. Às vezes diz-se que estamos justificados sobre a base da fé. A fé é aceita em lugar daquela perfeita justiça demandada pela lei Adâmica. Mas por fé não se significa o ato de receber a Cristo e de repousar só nEle para salvação. É considerada como um estado da mente permanente e controlador. E por isso diz-se frequentemente que somos justificados por uma «fides obsequiosa», uma fé obediente; uma fé que inclui obediência. Em outras ocasiões, diz-se que somos justificados pela obediência evangélica, isto é, aquela classe e medida de Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 188 obediência que demanda o Evangelho, e que os homens podem dar, desde a Queda, mediante o emprego apropriado da «graça suficiente», que se admite a todos os homens. Limborch diz: “Sciendum, quando dicimus, nos fide justificari, nos non excludere opera, quæ fides exigit et tanquam foecunda mater producit; sed ea includere.” E novamente: “Est itaque [fides] talis actus, qui, licet in se spectatus perfectus nequaquam sit, sed in multis deficiens, tamen a Deo, gratiosa et liberrima voluntate, pro pleno et perfecto acceptatur, et propter quem Deus homini gratiose remissionem peccatoram et vitæ æternæ premium conferre vult.” Novamente,154 Deus, diz ele, exige “obedientiam fidei, hoc est, non rigidam et ab omnibus æqualem, prout exigebat lex; sed tantam, quantam fides, id est, certa de divinis promissionibus persuasio, in unoquoque efficere potest.” Portanto, justificação, diz ele:155 “Est gratiosa æstimatio, seu potius acceptatio justitiæ nostræ imperfectæ pro perfecta, propter Jesum Christum.” A doutrina Protestante. Quarto. Segundo a doutrina dos Luteranos e dos Reformados, as obras excluídas da base de nossa justificação são não só as obras rituais ou cerimoniais, nem tampouco meramente obras feitas antes da regeneração nem a obediência perfeita demandada pela lei dada a Adão, mas obras de todo tipo, tudo feito por nós ou operado em nós. Que esta é a doutrina da Bíblia é claro: 1. Porque a linguagem da Escritura é ilimitada. A declaração é que não somos justificados «pelas obras». Não se designa nenhuma classe específica de obras com exclusão de todas as demais. Mas é «obras», o que nós fazemos; qualquer coisa e tudo aquilo que façamos. Por isso, é 154 Theologia Christiana, VI. iv. 32, 31, 37; edit. Amsterdam, 1725, pp. 705, b, a, 706 a. 155 Limborch, VI. iv. 18; ut supra, p. 703, a. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 189 sem autoridade alguma que ninguém limite estas declarações gerais a nenhuma classe particular de obras. 2. A palavra lei emprega-se num sentido global. Inclui todas as revelações da vontade de Deus como regra da obediência humana, e, por isso, por «obras da lei» se devem entender todo tipo de obras. Como νόμος (nomos) significa tudo aquilo que obriga, emprega-se da lei da natureza, da lei escrita no coração (Rm 2:14), do Decálogo, da Lei de Moisés, da totalidade das Escrituras do Antigo Testamento (Rm 3:19). Às vezes faz-se referência a um, às vezes a outro destes aspectos da lei de maneira específica. Paulo assegura aos judeus que não podiam ser justificados pelas obras da lei, que era especialmente obrigatória para eles. Assegura aos gentios que não podiam ser justificados pela lei escrita em seus corações. Assegura aos crentes sob o Evangelho que não podem ser justificados mediante obras da lei que lhes sejam obrigatórias. A razão que dá inclui todas as possíveis obras. Esta razão é que toda obediência humana é imperfeita, e que a lei exige completa obediência (Gl 3:10). É por isso que «pelas obras da lei nenhum ser humano será justificado diante dele» (Rm 3:20). 3. A lei da qual Paulo fala é a lei que diz: «Não cobiçará» (Rm 7:7); a lei que é espiritual (v. 14); que é «santa, justa e boa» (v. 12); a lei cujo grande mandamento é: Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e a teu próximo como a ti mesmo. Além disso, as que são chamadas obras da lei são chamadas, em Tt 3:5, «obras de justiça». E não pode haver obras maiores que estas. O Apóstolo repudia toda base de confiança em sua «própria justiça» (Fp 3:9), isto é, em sua própria excelência, seja habitual, seja presente. Censura os judeus porque procuravam estabelecer sua própria justiça, não submetendo-se à justiça de Deus (Rm 10:3). Com base nesta e outras passagens similares está claro que não são uma ou mais classes específicas de obras as que ficam excluídas da base da justificação, mas todas as obras, toda a excelência pessoal de todo tipo. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 190 4. Isto é ainda mais evidente com base no contraste constantemente apresentado entre a fé e as obras. Não somos justificados pelas obras, mas pela fé em Cristo Jesus (Gl 2:16, e com frequência em outras partes). Não se trata de uma classe de obras em oposição a outra; legais em oposição a obras evangélicas; naturais em oposição a obras de graça; morais em oposição a obras rituais; e sim obras de todo tipo em oposição à fé. 5. O mesmo é evidente com base no que se ensina da natureza gratuita de nossa justificação. A graça e as obras são antitéticas. «Ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e sim como dívida» (Rm 4:4). «Se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça» (Rm 11:6). A graça necessariamente exclui as obras de todo tipo, e mais especialmente as do tipo mais elevado, que pudessem ter alguma aparência de mérito. Mas o mérito é necessariamente excluído, no grau que seja, se nossa salvação é pela graça. 6. Quando se enuncia a base positiva da justificação, sempre se declara que nada é feito por nós nem operado em nós, e sim o que tem feito por nós. Apresenta-se sempre como algo externo a nós. Somos justificados pelo sangue de Cristo (Rm 5 :9); por Sua obediência (Rm 5:19); por Sua justiça (v. 18). Isto é envolvido em todo o método de salvação. Cristo nos salva como sacerdote; mas um sacerdote não salva fazendo bons àqueles que vão a ele. Não opera neles, mas por eles. Cristo nos salva mediante um sacrifício; mas um sacrifício é efetivo não devido a seu efeito subjetivo sobre o ofertante, mas sim como expiação, ou satisfação da justiça. Cristo é nosso Redentor; deu-Se a Si mesmo como resgate por muitos. Mas um resgate não infunde justiça. É o pagamento de um preço. É a satisfação das demandas do cativante sobre o cativo. Por isso, todo o plano da salvação tal como se apresenta na Bíblia e como é a vida da Igreja, resulta mudado se for mudada a base de nossa aceitação diante de Deus daquilo que Cristo fez por nós a aquilo que é operado em nós ou feito por nós. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 191 ustificação. Os teólogos romanos não estão de acordo exatamente quanto a se a justiça habitual ou real é a base da justificação. Belarmino diz que é a primeira.156 Ele diz: “Solam esse habitualem justitiam, per quamformaliter justi nominamur, et sumus: justitiam vero actualem, id est, opera vere justa justificare quidem, ut sanctus Jacobus loquitur, cum ait cap. 2 ex operibus hominem justificari, sed meritorie, non formaliter.” Isto que ele diz é claramente a doutrina do Concílio de Trento, que ensina:157 “Causam formalem justificationis esse justitiam, sive caritatem, quam Deus unicuique propriam infundit, secundum mensuram dispositionum, et quæ in cordibus justificatorum innæret.” Isto segue também, ele argumenta, do fato de que os sacramentos justificam,158 “per modum instrumenti ad infusionem justitiæ habitualis.” Isto, entretanto, consiste só na distinção, já mencionada, entre a primeira e segunda justificação. A infusão da justiça faz a alma intrinsecamente justa; então boas obras merecem a salvação. Uma é formal, a outra a causa meritória da justificação do pecador. Mas, segundo as Escrituras, tanto a justiça habitual e a atual, tanto a graça inerente e seus frutos são excluídos de toda participação no fundamento de nossa j 7. Isso aparece adicionalmente e ainda de maneira mais decisiva pela grande objeção à sua doutrina que Paulo tinha que responder vez após vez. Esta objeção é que se nossa bondade pessoal ou excelência moral não é a base de nossa aceitação para com Deus, então se nega toda necessidade de ser bom, e se elimina toda motivação para as boas obras. Podemos continuar em pecado para que a graça abunde. Esta objeção foi alterada mil vezes desde que foi instigada contra os Apóstolos. Parece tão irrazoável e desmoralizador dizer, como diz Paulo em Romanos 3:22, que pelo que à justificação concerne não há diferença entre judeu e gentio, entre um adorador do Deus verdadeiro e o adorador de demônios; entre o maior dos pecadores e o homem mais moral do mundo, que 156 De Justificatione, II. 15; Disputationes, edit. Paris, 1608, vol. iv. p. 820, a. 157 See Session vi. cap. 7. 158 Bellarmin, ut supra, p. 820, b. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 192 sempre houve os que têm sentido que faziam serviço a Deus, denunciando esta doutrina como uma heresia destruidora da alma. Se Paulo tivesse ensinado que os homens são justificados por suas boas obras morais, como dizem os Pelagianos e os Racionalistas; ou por sua obediência evangélica, como dizem os Remonstrantes; ou por sua justiça inerente e posteriores boas obras, como dizem os Romanistas, não teria havido lugar para esta formidável objeção. Ou, se por algum mal- entendido em seu ensino se tivesse enfatizado a objeção, quão fácil teria sido para o Apóstolo deixá-la de lado! O quão evidente teria sido a resposta: “Não nego de fato que as obras realmente boas são a base de nossa aceitação diante de Deus. Só digo que as obras rituais não têm valor alguma diante de Deus, que Ele olhe para o coração; ou, que as obras feitas antes da regeneração não têm nenhuma verdadeira excelência nem mérito; ou, que Deus é mais indulgente agora que em Seus procedimentos com Adão; que não demanda perfeita obediência, mas aceita nossos imperfeitos esforços de boa vontade por guardar Seus santos mandamentos”. Quão razoável e satisfatória teria sido esta resposta! Mas Paulo não a dá. Apega-se à sua doutrina de que nossa própria excelência pessoal não tem, nada que ver com nossa justificação; que Deus justifica os ímpios, que Ele recebe o primeiro dos pecadores. Responde certamente à Objeção, e a responde de maneira efetiva; mas sua resposta supõe que está ensinando o que ensinam os Protestantes, que somos justificados sem obras, não por nossa própria justiça, mas gratuitamente sem dinheiro e sem preço, só sobre a base do que Cristo fez por nós. Sua resposta é que longe de ser certo que temos que ser bons antes de ser justificados, temos que ser justificados antes de ser bons; que enquanto estamos sob a maldição da lei, produzimos fruto para morte; que não é até que somos reconciliados com Deus mediante a morte de Seu Filho que podemos produzir fruto para justiça; que quando somos justificados pela justiça de Cristo, somos feitos partícipes de Seu Espírito; sendo justificados, somos santificados; esta união com Cristo pela fé assegura não só a imputação de Sua justiça para nossa Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 193 justificação, mas também a participação de Sua vida para nossa santificação; de maneira que com tanta certeza que Ele vive e que vive para Deus, assim os que vivem nEle viverão para Deus; e que ninguém é partícipe dos méritos de Sua morte que chegue a ser partícipe do poder de Sua vida. Por isso, diz ele, não anulamos a lei de Deus. Antes, estabelecemos a lei. Ensinamos a única verdadeira maneira de chegar a ser santos; embora este caminho pareça insensatez aos sábios deste mundo, cuja sabedoria é estultícia diante de Deus. § 4 A justiça de Cristo é a base da justificação. Permanece a imperativa pergunta: Como se justificará o homem diante de Deus? Se nossa excelência moral não é a base sobre a qual Deus nos declara justos, qual é? A grande razão pela qual se dão tantas respostas diferentes a esta pergunta é que se entende em diferentes sentidos. A reposta Escriturística e Protestante seria absurda se a pergunta significasse o que os Romanistas e outros compreendem que significa. Se «justo» significasse bom, isto é, se a palavra se tomar em seu sentido moral e não judicial, então é absurdo dizer que um homem pode ser bom com a bondade de outro; ou dizer que Deus pode declarar bom um homem que não é bom. Belarmino diz que um etíope vestido numa túnica branca continua sendo não branco. Curculleo, o Remonstrante, diz: «Um homem não pode ser mais justo com a justiça de outro que branco com a brancura de outro.» Moehler diz159 que é impossível que nada apareça perante Deus que de outra maneira em que realmente é; que um homem injusto aparece perante Ele ou que seja declarado por Ele como justo. Tudo isto é certo no sentido que estes escritores o dan. «O juízo de Deus é segundo verdade» (Rm 2:2). Cada homem a quem Ele justifica ou declara justo é verdadeiramente justo. É em vão discutir até que se determine claramente o «status questione». A 159 Symbolik, §14. 6a. ed. Mainz. 1843. pág. 139. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 194 palavra δίκαιος (dikaios), «justo», tem dois sentidos distintos, como já se tratou anteriormente. Tem um sentido moral e também um sentido legal, forense ou judicial. Às vezes expressa caráter moral, às vezes simplesmente uma relação com a lei e com a justiça. Num sentido, declarar justo um homem é declarar que é moralmente bom. Em outro sentido é declarar que as demandas da justiça contra ele estão satisfeitas, E que tem direito à recompensa prometida aos justos. Quando Deus justifica o ímpio, não está declarando que é piedoso, mas que seus pecados foram expiados, e que tem título baseado na justiça à vida eterna. Nisto não há contradição nem absurdo. Se um homem sob sentença de morte civil comparece perante o tribunal apropriado, e mostra a causa pela qual esta sentença deve ser revogada em justiça, e que o deve declarar com direito à sua posição, títulos e propriedades, uma decisão em favor dele seria uma justificação. Seria declarado justo aos olhos da lei, mas nada se declararia e nada se faria a respeito de seu caráter moral. Da mesma maneira, quando o pecado comparece perante o tribunal de Deus, pode mostrar boas razões pelas quais não pode ser condenado em justiça, e pelas quais deve ser declarado com direito à vida eterna. Agora, a pergunta é: «Sobre que base pode Deus declarar o pecador como justo neste sentido legal ou judicial?» Mostrou-se que justificar, segundo o uso escriturístico normal, é pronunciar justiça no sentido declarado, que não se trata meramente de perdoar, e que não é fazer inerentemente justo ou santo. Mostrou-se também que é a doutrina da Escritura o que na verdadeé intuitivamente certo para a consciência, que nossa excelência moral, habitual ou atual, não é nem pode ser a base de tal declaração judicial. Qual é, então, a base? A Bíblia e o povo de Deus respondem unanimemente: «A justiça de Cristo». A ambiguidade das palavras, as especulações dos teólogos, e os mal-entendidos, podem levar a muitos do povo de Deus a negar em palavras que tal seja a resposta verdadeira, mas não obstante é a resposta dada pelo coração de cada crente. Para sua aceitação repousa em Deus, não em si mesmo mas Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 195 em Cristo, não no que é ou tem feito, mas no que Cristo é e tem feito por ele. Significado dos termos. Pela expressão justiça de Cristo se significa tudo o que Ele veio a ser, fez e sofreu para dar satisfação às demandas da justiça divina, e mereceu para Seu povo o perdão dos pecados e o dom da vida eterna. A justiça de Cristo é usualmente descrita como incluindo Sua obediência ativa e passiva. Esta distinção é, quanto à ideia, escriturística. A Bíblia ensina que Cristo obedeceu a lei em todos os seus preceitos, e que sofreu sua penalidade, e que isto foi feito em tal sentido pelo Seu povo que se diz que eles o fizeram. Eles morreram nEle. Foram crucificados juntamente com Ele. Foram libertados da maldição da lei ao ser feito maldição por eles. Ele foi feito sujeito à lei para poder redimir os que estavam debaixo da lei. Somos libertados da lei pelo corpo de Cristo. Ele foi feito pecado para que nós pudéssemos ser feitos justiça de Deus nEle. Ele é o fim da lei para justiça a todo aquele que crê. É por Sua obediência que muitos são feitos justos (Rm 5:19). Nós obedecemos nEle, segundo o ensino do Apóstolo, em Romanos 5:12-21, no mesmo sentido em que pecamos em Adão. Mas a obediência ativa e passiva de Cristo são só diferentes fases ou aspectos da mesma coisa. Ele obedeceu ao sofrer. Seus mais altos atos de obediência foram feitos no jardim, e na cruz. Por isso, esta distinção não se apresenta na Escritura como se a obediência de Cristo obedecesse a um propósito, e Seus sofrimentos a outro e distinto. Somos justificados por Seu sangue. Somos reconciliados para com Deus por meio de Sua morte, e somos libertados de todas as demandas da lei mediante o Seu corpo (Rm 7:4), e somos libertados da lei porquanto Ele foi feito debaixo ela e obedecendo-a em nosso lugar (Gl 4:4, 5). Assim, o mesmo efeito é adscrito à morte ou sofrimentos de Cristo, e a Sua obediência, porque ambas as coisas formam parte de Sua obediência ou justiça pela qual nós somos justificados. Em outras Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 196 palavras, a obediência de Cristo inclui tudo o que Ele fez para dar satisfação às demandas da lei. A justiça de Cristo é a justiça de Deus. A justiça de Cristo, sobre cuja base o crente é justificado, é a justiça de Deus. É designada assim na Escritura não só porque foi provida é aceita por Ele; não é só a justiça que vale diante de Deus, e sim é a justiça de uma pessoa divina; de Deus manifestado em carne. Deus comprou a Igreja com Seu próprio sangue (At 20:28). Foi o Senhor da glória quem foi crucificado (1Co 2:8). Aquele que era em forma de Deus e que não considerou usurpação ser igual a Deus, fez-se obediente até a morte, e morte de cruz (Fp 2:6-8); Aquele que é o resplendor da glória do Pai, e a expressa imagem de Sua pessoa, que sustenta todas as coisas com a palavra do Seu poder; a quem os anjos adoram; que é chamado Deus, que no princípio pôs os fundamentos da terra, e de cujas mãos são obra os céus que é eterno e imutável; Aquele que destruiu mediante a morte, diz o Apóstolo, àquele que tinha o poder da morte, libertando àqueles que por temor à morte (isto é, à ira de Deus) estavam todas suas vidas sujeitos à servidão (Hb 2:15). Aquele a quem Tomé reconheceu e confessou como seu Senhor e Deus era a pessoa em cujo lado ferido pôs sua mão. Aquele a quem João viu, contemplou e tocou, declara-o como o verdadeiro Deus e a vida eterna. A alma, na qual reside a personalidade, não morre quando morre o homem, mas é a alma a que dá a dignidade ao homem, e que faz sua vida de um valor indizivelmente maior aos olhos de Deus e do homem, que a vida de qualquer criatura irracional. Assim não foi a natureza divina em Cristo na qual reside Sua personalidade, o Logos eterno, que morreu quando Cristo morreu. Entretanto, a união hipostática entre o Logos e a natureza humana de Cristo faz certo que a justiça de Cristo (Sua obediência e sofrimentos) era a justiça de Deus. Esta é a razão pela qual vale diante de Deus para a salvação de todo o mundo. Esta é a razão pela qual o crente, quando está revestido desta justiça, não tem por que temer nem a morte nem o inferno. Esta é a razão Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 197 pela qual Paulo desafia o universo a intentar acusação aos escolhidos de Deus. § 5. A imputação de justiça. A justiça de Cristo é imputada ao crente para sua justificação. A palavra imputar é conhecida e sem ambivalências. Imputar é atribuir a, considerar a, pôr a conta de alguém. Quando dizemos que lhe imputamos um bom ou mau motivo a alguém, ou que se lhe imputa uma boa ou má ação, ninguém compreende mal nosso significado. Filemom não tinha dúvidas de nenhum tipo a respeito do que era o que Paulo queria dizer quando lhe disse que imputasse a dívida de Onésimo. «Jamais impute o rei coisa nenhuma a seu servo» (1Sm 22:15). «Não me imputes, senhor, a minha culpa» (2Sm 19:19). «Aquele que a ofereceu ... nem lhe será atribuído» (Lv 7:18). «A tal homem será imputada a culpa do sangue; derramou sangue» (Lv 17:4). «Bem-aventurado o homem a quem o SENHOR não atribui iniquidade» (Sl 32:2). «O homem o homem a quem Deus atribui justiça, independentemente de obras» (Rm 4:6). Deus estava «em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões» (2Co 5:19). O sentido destas passagens da Escritura e similares nunca foi rebatido. Todos os compreendem. Empregamos a palavra imputar em seu sentido admitido simples, quando dizemos que a justiça de Cristo é imputada ao crente para sua justificação. Parece desnecessário observar que isto não significa nem pode significar que a justiça de Cristo seja infundida no crente, nem comunicada de tal maneira que mude ou constitua seu caráter moral. A imputação nunca muda o estado interno, subjetivo da pessoa a quem se fez a imputação. Quando o pecado é imputado a um homem, não é feito pecador; quando o zelo de Fineias foi imputado, não foi feito zeloso por isso. Quando alguém imputa um roubo a alguém, não o faz ladrão. Assim, quando se imputa justiça ao crente, nem por isso ele vem a ser Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 198 subjetivamente justo. Se a justiça for adequada, e se a imputação tiver sido feita sobre bases adequadas e por uma autoridade competente, a pessoa a quem se fez a imputação tem direito a ser tratada como justa. E, por isso, no sentido forense, embora não no sentido moral ou subjetivo, a imputação da justiça de Cristo faz justo o pecador. Isto é, dá-lhe direito ao pleno perdão de todos os seus pecados e título em justiça à vida eterna. Já foi suficientemente demonstrado, mediante extratos dos Símbolos Luteranos e Reformados, que esta é a simples perspectiva doutrinal, e universalmente aceita, tal como a mantinham todos os Protestantes no momento da Reforma e considerada por eles como a pedra angular do Evangelho e isto nunca foi discutido por nenhuma autoridade íntegra ou competente. Esta seguiu sendo a doutrina de ambas os grandes ramos da Igreja Protestante, até onde pretendem aderir-se a seus símbolos. Schmid160 demonstra-o por um conjunto de citações quanto à Igreja luterana refere-se. Schweizer 161 faz o mesmo com a Igreja Reformada. Poucas citações, portanto, deautores de reconhecido caráter representativo será suficiente quanto a este ponto. Turretino com sua precisão característica diz: “Cum dicimus Christi justitiam ad justificationem nobis imputari, et nos per justitiam illam imputatam justos esse coram Deo, et non per justitiam ullam quæ nobis inhæreat; Nihil aliud volumus, quam obedientiam Christi Deo Patri nomine nostro præstitam, ita nobis a Deo donari, ut vere nostra censeatur, eamque esse unicam et solam illam justitiam propter quam, et cujus merito, absolvamur a reatu peccatorum nostrum, et jus ad vitam obtinemus; nec ullam in nobis esse justitiam, aut ulla bona opera, quibus beneficia tanta promereamur, quæ ferre possint severum judicii divini examen, si Deus 160 Die Dogmatik der evangelisch-lutherischen Kirche, dargestellt und aus den Quellen belegt, 3d edit. Frankfort and Erlangen, 1853. 161 Die Glaubenslehre der evangelisch-reformirten Kirche dargestellt und aus den Quellen belegt, Zurich, 1844, 1847. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 199 juxta legis suæ rigorem nobiscum agere vellet nihil nos illi posse opponere, nisi Christi meritum et satisfactionem, in qua sola, peccatorum conscientia territi, tutum adversus iram divinam perfugium, et animarum nostrarum pacem invenire possumus.”162 Na página seguinte ele se refere a Belarmino,163 quem diz: “Si [Protestantes hoc] solum vellent, nobis imputari Christi merita, quia [a Deo] nobis donata sunt, et possumus ea [Deo] Patri offere pro peccatis nostris, quoniam Christus suscepit super se onus satisfaciendi pro nobis, nosque Deo Patri reconciliandi, recta esset eorum sententia.” Acerca disso Turretino observa: “Atqui nihil aliud volumus; Nam quod addit, nos velle ‘ita imputari nobis Christi justitiam, ut per eam formaliter justi nominemur et simus,’ hoc gratis et falso supponit, ex perversa et præpostera sua hypothesi de justificatione morali. Sed quæritur, Ad quid imputatio ista fiat? An ad justificationem et vitam, ut nos pertendimus, An vero tantum ad gratiæ internæ et justitiæ inhærentis infusionem, ut illi volunt; Id est, an ita imputentur et communicentur nobis merita Christi, ut sint causa meritoria sola nostræ justificationis, nec ulla alia detur justitia propter quam absolvamur in conspectu Dei; quod volumus; An vero ita imputentur, ut sint conditiones causæ formalis, id. justitiæ inhærentis, ut ea homo donari possit, vel causæ extrinsecæ, quæ mereantur infusionem justitiæ, per quam justificatur homo; ut ita non meritum Christi proprie, sed justitia inhærens per meritum Christi acquisita, sic causa propria et vera, propter quam homo justificatur; quod illi statuunt.” Pode observar-se de passagem que, segundo a doutrina protestante, não há corretamente “causa formal” da justificação. A justiça de Cristo é o mérito, mas não a causa formal do pecador sendo pronunciado justo. Uma causa formal é a que constitui a natureza inerente e subjetiva de uma pessoa ou coisa. A causa formal de um homem ser bom, é a 162 Institutio, loc. XVI. iii. 9, edit. Edinburgh, 1847, vol. ii. p. 570. 163 De Justificatione, ii. 7; Disputationes, Paris, 1608, p. 801, b. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 200 bondade, de seu ser santo, a santidade; de seu ser ímpio, a maldade. A causa formal de uma rosa ser vermelha, é o vermelhidão; e de uma parede ser de cor branca, é a brancura. Como não somos representados inerentemente justos pela justiça de Cristo, não é correto dizer que Sua justiça é a causa formal de nosso ser justos. Owen, e outros escritores eminentes realmente utilizam com frequência a expressão referente, mas eles têm a palavra “formal” de seu sentido escolástico comum. Campegius Vitringa164 diz: “Tenendum est certissimum hoc fundamentum, quod justificare sit vocabulum forense, notetque in Scriptura actum judicis, quo causam alicujus in judicio justam esse declarat; sive eum a crimine, cujus postulatus est, absolvat (quæ est genuina, et maxime propria vocis significatio), sive etiam jus ad hanc, vel illam rem ei sententia addicat, et adjudicet.” “17. Per justificationem peccatoris intelligimus actum Dei Patris, ut judicis, quo peccatorem credentem, natura filium iræ, neque ullum jus ex se habentem bona coelestia petendi, declarat immunem esse ab omni reatu, et condemnatione, adoptat in filium, et in eum ex gratia confert jus ad suam communionem, cum salute æterna, bonisque omnibus cum ea conjunctis, postulandi.” “27. Teneamus nullam carnem in se posse reperire et ex se producere causam, et fundamentum justificationis. 29. Quærendum igitur id, propter quod peccator justificatur, extra peccatorem in obedientia Filli Dei, quam præstitit Patri in humana natura ad mortem, imo ad mortem crucis, et ad quam præstandam se obstrinxerat in sponsione. (Rom. v. 19.)” “32. Hæc [obedientia] imputatur peccatori a Deo judice ex gratia juxta jus sponsionis, de quo ante dictum.” Em sua elaborada obra a respeito da justificação, Owen165 demonstra que a palavra justificar, «tanto se o que se expressa por ela é o ato de Deus para com os homens, ou dos homens para com Deus, ou dos 164 Doctrina Christianæ Religionis, III. xvi. 2; Leyden, 1764, vol. iii. p. 254, ff. 165 Justification. Cap. 4, edición de Philadelphia, 1841, pág. 144. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 201 homens entre eles mesmos, ou de um para com outro, sempre se emprega num sentido "forense", e não denota uma operação, transfusão ou transmutação físicas». E conclui assim a discussão: «Portanto, assim como a condenação não é a infusão de um hábito de maldade naquele que é condenado, nem fazer inerentemente ímpio a quem antes era justo, mas pronunciar sentença sobre alguém devido à sua maldade, tampouco a justificação é a mudança de uma pessoa de uma injustiça inerente a uma justiça inerente mediante a infusão de um princípio de graça, e sim uma declaração judicial de que é justo.»166 A base desta justificação no caso do pecador crente é a imputação da justiça de Cristo. Isto é exposto extensamente.167 «O juízo das Igrejas Reformadas nisto», diz ele, «é conhecido por todos e se deve confessar, a não ser que queiramos mediante vãs reflexões incrementar e perpetuar as contendas. Especialmente a Igreja da Inglaterra é explícita em sua doutrina quanto à imputação da justiça de Cristo, tanto ativa como passiva, tal como geralmente se distingue. Isto foi ultimamente tão plenamente manifestado com base em seus escritos autênticos, isto é, os "Artigos de Religião" e "Livros de Homilias" e outros escritos publicamente autorizados, que é totalmente desnecessário dar alguma adicional demonstração da mesma.» O Presidente Edwards em seu sermão sobre justificação168 estabelece a doutrina protestante em toda sua plenitude. “Supor,” diz, “que um homem é justificado por sua própria virtude ou obediência, deprecia a honra do mediador, e atribui ao homem a virtude que pertence unicamente à justiça de Cristo. Isto põe o homem no lugar de Cristo, e o faz o seu próprio salvador, num aspecto em que só Cristo é o Salvador: pelo que é uma doutrina contrária à natureza e o desígnio do Evangelho, que deve humilhar o homem, e atribuir toda a glória de nossa salvação a Cristo o Redentor. É inconsistente com a doutrina da imputação da 166 Ibid, pág. 154. 167 Ibid, cap. 7, pág. 187. 168 Sermon IV. Works, edit. N. Y. 1868, vol. iv. pp. 91, 92. Teologia Sistemática (Charles Hodge) – Volumes I, II, III 202 justiça de Cristo, que é uma doutrina do Evangelho. Aqui eu devo (1.) Explicar o que se entende pela imputação da justiça de Cristo. (2.) Demonstrar o previsto por isso como verdade. (3.) Demonstrar que esta doutrina é totalmente inconsistente com a doutrina de nosso ser justificado por nossa própria virtude ou obediência sincera. “Primeiro.