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Bourdieu Arbitrário Cultural O que é conhecimento útil em prova do ENEM? O arbitrário cultural Você já ouviu o conceito de arbitrário cultural? Já se deparou com alguém que questionava que algo era ou não conhecimento útil a ser ensinado na escola? O presidente eleito Jair Bolsonaro trouxe essa questão à tona um dia após a realização da primeira parte da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O questionamento teve origem em um texto presente no exame sobre “pajubá, o dialeto secreto dos gays e travestis” seguido do questionamento quanto aos motivos que faziam a linguagem se caracterizar como “elemento de patrimônio linguístico”. Desconsiderando o objetivo da questão presente no ENEM, Bolsonaro afirmou que: “uma questão de prova que entra na dialética, na linguagem secreta de travesti, não tem nada a ver, não mede conhecimento nenhum. A não ser obrigar para que no futuro a garotada se interesse pelo assunto” (sic) (Jair Bolsonaro, 05/11/2018). Aproveitando a fala do presidente eleito, buscamos aqui apresentar o conceito de arbitrário cultural usado por Bourdieu e Passeron (2013), o que nos possibilita a pensar essa questão de definição do que é ou não útil a ser ensinado na escola. A definição do que é ou não útil é um princípio simbólico arbitrário, uma vez que não se assenta numa realidade dada como natural. Esse processo de classificação Bourdieu e Passeron (2013) chamam de arbitrário cultural. Trata-se de uma construção social fundamental para a perpetuação de uma determinada sociedade e dominação de um dado grupo, pois promove uma cultura como sendo melhor e/ou verdadeira em detrimento a negação e inferiorização das demais. Na prática, olhando para nossa história, esse arbitrário cultural foi responsável pela exclusão das minorias e dos menos privilegiados da História do Brasil. Fizemos, por muito tempo, uma história de “Heróis Nacionais” brancos, políticos e ricos. Para Bourdieu e Passeron (2013) o arbitrário cultural é marcado pela aceitação e legitimidade social das classificações definidas pela classe dominante. Por isso é comum o conceito ser apresentado acompanhado do adjetivo “dominante”. As raízes dessa interpretação encontramos em Marx, no conceito de ideologia, porém avançando no sentido de compreender que não necessariamente são falsas verdades criadas com o objetivo de manipular, uma vez que os próprios produtores acreditam e legitimam a classificação realizada a partir do arbitrário cultural dominante. Contudo, o alcance e a eficácia da imposição do arbitrário cultural dominante dependem do desconhecimento dos processos e das relações que envolvem sua produção, reprodução, inculcação e legitimação. Os sociólogos franceses, Bourdieu e Passeron (2013) nos ajudam a compreender como se dá a dominação de uns grupos sobre outros no uso “legítimo” da definição do que é ou não cultura, do que é ou não importante no currículo escolar. Dar voz e vez aos esquecidos é fundamental para desconstruir uma “História única” que de longe não é brasileira. Bourdieu Habitus Reprodução Social Violência Simbólica Bourdieu é um dos principais sociólogos a analisar a educação contemporânea sob a influência do modelo de Durkheim. O estruturalismo se conecta à sociologia de Durkheim na medida em que pretende desvendar o peso das estruturas sociais por trás das ações dos sujeitos. (O pensamento de Bourdieu é uma versão mais radical do modelo de Durkheim). Para o estruturalismo (pensamento de Bourdieu na 1ª fase de sua produção, 1960): os sujeitos são uma espécie de marionetes das estruturas dominantes. Os agentes sociais, mesmo aqueles que pensam estar liberados das determinações sociais, são movidos por forças ocultas, que os estimulam a agir, mesmo que não tenham consciência disso. (“condições objetivas” que o investigador deve desvendar, pois é nelas que residem as explicações) Bourdieu compreende que: a teoria de Durkheim e o estruturalismo permitem demonstrar como os indivíduos, em sua ação, apenas reproduzem as orientações determinadas pela estrutura social vigente. Para Bourdieu: Os sujeitos da ação estão ausentes daquele nível da sociedade em que são objetivamente determinadas as suas ações. O sujeito não existe. O que chamamos de ação, é o processo pelo qual as estruturas se reproduzem. O sujeito está submetido aos desígnios da sociedade, faz o que as estruturas determinam, não sabe disso e ainda é iludido pelos discursos dominantes, que o fazem pensar que sua ação é resultante de vontade própria. A escola para Bourdieu Discordam do discurso dominante segundo o qual a conquista de uma “escola para todos”, de caráter igualitário, tornaria possível a realização das potencialidades humanas. Compreendem que a instituição escolar dissimula por trás de sua aparente neutralidade a reprodução das relações sociais e de poder vigentes: encobertos sob as aparências de critérios puramente escolares, estão critérios sociais de triagem e de seleção dos indivíduos para ocupar determinados postos na vida. Nesta 1ª fase eles entendem que não há qualquer possibilidade de romper com as estruturas de reprodução e afirmam que as teorias pedagógicas são uma cortina de fumaça que procura ocultar o poder reprodutor do sistema que está nas mãos dos educadores. (Para os autores não há saída: o sistema de ensino filtra os alunos sem que eles se dêem conta e, com isso, reproduz as relações vigentes. Não há possibilidade de mudança). 1970: Bourdieu e Passeron refinam suas ideias, incorporando sistematicamente as ideias e Marx e Max Weber, publicando o livro “A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”. Tese central do referido livro: toda ação pedagógica é, objetivamente, uma violência simbólica. Violência simbólica = imposição arbitrária que, no entanto, é apresentada àquele que sofre a violência de modo dissimulado, que oculta as relações de força que estão na base de seu poder. Ação pedagógica = é uma violência simbólica porque impõe, por um poder arbitrário, um determinado arbitrário cultural. Arbitrário cultural = concepção cultural dos grupos e classes dominantes, que é imposta a toda a sociedade por meio do sistema de ensino. Tal imposição não aparece jamais em sua verdade inteira e a pedagogia nunca se realiza enquanto pedagogia, pois se limita à inculcação de valores e normas. A ação pedagógica implica o trabalho pedagógico (trabalho de inculcação daquele referido “arbitrário” que deve durar o bastante para que o educando “naturalize” seu conteúdo, encare-o como natural, como evidentemente correto em si mesmo, o bastante para produzir uma “formação durável”). (…) Na media em que o educando interioriza os princípios culturais que lhe são impostos pelo sistema de ensino – de tal modo que, mesmo depois de terminada sua fase de formação escolar, ele os tenha incorporado aos seus próprios valores e seja capaz de reproduzi-los na vida e transmiti-los aos outros – Bourdieu diz que ele adquire um habitus. Uma vez que o arbitrário cultural a ser imposto é incorporado ao habitus do professor, o trabalho pedagógico tende a reproduzir as mesmas condições sociais (de dominação de determinados grupos sobre outros) que deram origem àqueles valores dominantes. (p.74). O que explica, no pensamento de Bourdieu, a desigualdade que está na base do processo de seleção escolar? A compreensão de que todo sistema de ensino institucionalizado visa em alguma media realizar de modo organizado e sistemático a inculcação dos valores dominantes e reproduzir as condições de dominação social que estão por trás de sua ação pedagógica. (…) Os autores, valendo-se de dados empíricos, demonstram que as “condições de classe de origem” dos alunos que entram no sistema de ensino francês determinam tanto a probabilidade de passagem ao nível escolar seguinte, quanto, ainda, o tipo de estabelecimento de ensino ao qual ele tem acesso (se de melhor ou pior qualidade). Tal situação se reproduz, do ensino básico ao médio e ao superior e determina também, no finaldas contas, a “condição de classe de chagada”, deste aluno, isto é, o tipo de habitus que adquiriu, o “capital social” ao qual teve acesso e, em especial, a posição na hierarquia econômica e social a que chegou. (P.74).