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Soraia da Rosa Mendes 
Professora 
Segunda-feira, 4 de setembro de 2017 
Foi constrangedor, foi violento e foi estupro 
Certa vez, na audiência de Sancho, entrou uma mulher que, trazendo um homem pela gola, bradava: “Justiça! 
Justiça, senhor governador! Se não na encontro na “terra, irei buscá-la no céu. Êste mau homem surpreendeu-me 
em pleno campo e abusou da minha fraqueza.” Negada formalmente a acusação, Sancho tomou ao acusado sua 
recheada bôlsa de dinheiro e, a pretexto de reparação do mal, passou-a à querelante. Foi-se esta em grande 
satisfação, mas Sancho ordenou ao acusado que seguisse no seu encalço, para retomar a bôlsa. Em vão, porém, 
tentou o homem reaver o seu dinheiro, e voltou com o rosto agatanhado e a sangrar, confessando-se vencido. 
Então, fazendo a mulher restituir a bolsa, disse-lhe Sancho: “Se tivesses defendido tua honra tão 
empenhadamente como vens de defender essa bolsa, jamais a terias perdido. Não passas de uma “audaciosa 
ladra”.[1] 
A passagem acima está descrita na obra de Nelson Hungria como “uma das mais sensatas 
decisões de Sancho-Pança, na ilha de Barataria”. Como dizia o autor: “Realmente, se não há 
uma excepcional desproporção de fôrças em favor do homem, ou se mulher não vem a 
perder o sentidos, ou prostar-se de fadiga, poderá sempre esquivar-se ao coito pelo recurso 
do movimento dos flancos.”[2] 
A referência literária é citada por Hungria para exemplificar a conhecida tese de que a 
violação só é possível se a mulher não resistiu, se ela de algum modo assentiu com o ato, ou se 
não houve de parte de dela um não inequívoco[3]. Em termos criminológicos, duas décadas 
mais tarde, Benjamin Mendelsohn em Origin of The Doctrine of Victimology (1963), por sua 
vez, também iria dizer, nos marcos da teoria da estrutura de oportunidades, que a violação era 
impossível se a mulher não permitisse. 
O que assombra, entretanto, é que criminológica ou dogmaticamente, a compreensão de 
constrangimento, violência ou ameaça, que os textos revelam claramente nos idos dos anos 
40 e 60 do século passado, é o que subliminarmente permeia a forma como o núcleo do tipo 
do estupro e suas elementares ainda são pensados nos dias atuais. 
Muito se tem dito nos últimos dias que a violência no caso de estupro deve ser “real”, e que 
constranger é “tolher a liberdade”, tudo conforme assentou a doutrina e a jurisprudência ao 
longo de anos. 
Pois bem, a pergunta que fica, todavia, é: a quem coube (e ainda cabe) a hermenêutica do que 
é constrangimento ou violência em um caso de estupro? 
Acaso ainda caberia a Hungria por meio de suas citações em francês de anedotas de Voltaire 
sobre espadas e bainhas?[4] Ou será que a “melhor hermenêutica” (posto que majoritária) do 
art. 213 do CP, cabe aos nove entre dez juristas (juízes, advogados, promotores e acadêmicos) 
que até os dias atuais reverberam, ainda que sem dizê-lo diretamente, postulados dogmáticos 
do século passado que não só jogam sobre a vítima a responsabilidade pela agressão, mas que 
também, como agora é o caso, interpretam como não violenta a conduta se esta consiste em 
“somente” ejacular no pescoço de uma mulher em um ônibus? 
Entre as doutrinas dos que viveram no século passado, e as posições públicas dos que delas 
ainda se alimentam em pleno 2017, sugiro seguirmos um caminho mais crítico e pensar que a 
interpretação do que é um crime de estupro centra-se mais no que os homens definem como o 
que é sexualidade do que na experiência das mulheres com o que é uma violação.[5] 
Obviamente que não se trata aqui de defender o tipo penal do art. 213, que à toda vista é 
desproporcional e, por suposto, eivado de inconstitucionalidade que salta aos olhos de 
minimalistas a abolicionistas. 
Ou, ainda, de considerar que o direito penal seja a alternativa única (ou sequer prioritária) 
para erradicar a violência sexual contra as mulheres. Precisamos, é claro, de políticas públicas 
efetivas de proteção às mulheres e, principalmente, de promoção de uma cultura igualitária 
que se sobreponha à machista que vigora em nossa sociedade. 
Tampouco é de aqui rechaçar-se a proposta de que é preciso pressionar o legislativo para que 
haja uma modificação da norma com a proposição de um tipo intermediário no qual deveriam 
estar enquadradas as condutas concernentes aos atos libidinosos. 
 
Não se trata aqui de uma defesa punitivista. E com isso estou dizendo, sem meias 
palavras, que o rótulo de “esquerda punitiva” está no limite de tornar-se um 
“mimimi” de quem se compraz com posts de fundo colorido nas redes sociais. A 
questão é séria. Precisamos debate-la com seriedade. Mas com quem se propõe a 
um debate sério. 
 
Continuando: ainda que a posição aqui defendida seja crítica ao direito penal e ao sistema de 
justiça criminal, nada disso retira o fato de que o ato praticado é típico, e que a decisão 
judicial proferida revitimizou a ofendida. 
A conduta não passa nem perto da tipificação do ato obsceno (que, no máximo (!), o seria pela 
exposição da genitália, jamais com a violência real que a ejaculação representou) ou, menos 
ainda, da perturbação ofensiva ao pudor, contravenção penal recorrentemente defendida pela 
doutrina e utilizada pelo Judiciário. 
É preciso que se diga que não há heresia dogmática alguma em compreender que há violência, 
sim, na ação de auto-realização que aniquila a necessária liberdade de escolha do vítima e, 
com isso, a reduz à condição de não-humana, coisificando-a como descartável. 
Um ato como esse sequer de sexualidade pode ser denominado. Só há sexualidade na 
liberdade. Não há, portanto, sexualidade na violência, em qualquer uma de suas acepções: 
real, moral ou simbólica. Um regime de violência é antagônico a um sistema de relações 
sexuais não marcados por qualquer espécie de coerção. Isto é, ante a existência de uma 
violação aniquila-se a própria sexualidade. Sexualidade e violência excluem-se 
mutuamente.[6] 
Ainda que nem sempre esteja claro em qual ordem de precedência encontra-se a violência 
reveladora da falta de consentimento, ou a falta de consentimento definidora uma relação 
violenta (e daí não sexual), a íntima correspondência entre violência e falta de consentimento, 
em qualquer uma das hipóteses, é o que demonstra o limite da autonomia do indivíduo. Não 
há consentimento genuíno, autonomamente definido, quando as preferências e as escolhas se 
definem em contextos assimétricos, em meio a relações de opressão e dominação[7]. 
Em uma situação na qual as relações de gênero pautam-se pela violência (física, moral ou 
simbólica), um ato de constrangimento não pode significar senão um efeito da inexistência de 
alternativas. 
E a pergunta agora é: que alternativa foi dada a essa mulher? 
Estranhamente do tanto que se fala da necessidade de que a violência seja “real”, pouco se diz 
que “não é o estupro senão uma forma especial do constrangimento ilegal (art. 146)…”[8], e 
que constrangimento é “… o impedimento da liberdade de ação ou inação que vai da livre 
autodeterminação por motivos próprios (autonomia da íntima formação da vontade, 
liberdade psíquica ou interna)…”[9]. 
Constranger é coagir, é tolher a liberdade, é aniquilar a autonomia. E, em uma situação de 
dominação, compreendida como a impossibilidade de escolha, NÃO há consentimento 
voluntário. Há coação, há violência. 
Que liberdade de escolha foi dada a essa mulher enquanto sentada em um banco de ônibus?! 
De fato, o que o debate até aqui travado demonstra é que a definição do que será considerado 
um crime contra a liberdade sexual e, por suposto, o constrangimento, toma como referência 
o que os homens definem como condição essencial do que deva existir em uma relação sexual. 
Ou seja, do que é violência ounão em uma relação considerada sexual. E o gozo, para os 
homens, por si só não é violência, ainda que sobre o corpo de quem não teve escolha de ser ou 
não seu “repositório”. 
Não pretendo discutir o acerto ou erro da decisão judicial, como se fosse um jogo de tudo ou 
nada. Contudo, os termos da audiência de custódia são estes: “na espécie entendo que não 
houve constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada 
em um banco de ônibus, quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado”. 
Essas palavras não refletem mero excesso de linguagem do magistrado. Ele avançou no 
mérito. E, com isso, trouxe à baila uma concepção do que é violência compartilhada, como 
dito acima, por 9 entre 10 juristas que, independentemente de suas posições no tabuleiro 
político criminal brasileiro, respiram e transpiram perspectivas de direito androcêntricas, 
machistas e, em algumas hipóteses, misóginas. 
Não me alinho (é preciso sempre repetir) ao discurso punitivista de que o agressor deva ser 
submetido às piores penas. Por outro lado, o feminismo garantista também não pode alinhar-
se a construções discursivas criminológicas e/ou dogmáticas que esteticamente apresentam-
se em redes sociais como progressistas, mas cheiram às folhas amareladas dos livros daqueles 
para os quais as mulheres desde sempre precisaram mostrar serem “merecedoras” da 
proteção penal qualquer que seja ela. 
Para os que tanto falam em seletividade penal criminalizante (com o que concordo em gênero, 
número e grau, tal como reiteradamente meus textos mostram), é bom sempre lembrar que a 
seletividade também é vitimizante. Ou seja, o sistema escolhe quem merece ser vítima e quem 
não. E as mulheres nunca são vistas como vítimas. Foi o que aconteceu neste caso, pois para 
boa parcela do meio jurídico se não há violência ou constrangimento na conduta não há uma 
vítima de estupro. 
*** 
Em nosso país, em 2015, foram registrados 45.460 casos de estupro. Considerando somente 
os boletins de ocorrência registrados é possível dizer que, por dia, 125 pessoas foram vítimas 
do crime de estupro, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2016). 
Por outro lado, estima-se que ocorreram, em realidade, entre 129,9 mil e 454,6 mil estupros 
no Brasil em 2015, pois como apontam estudos internacionais, apenas 35% das vítimas desse 
tipo de crime costumam prestar queixas. De acordo com o estudo “Estupro no Brasil: uma 
radiografia segundo os dados da Saúde”, realizado pelo Ipea, no país, apenas 10% dos casos 
de estupro chegam ao conhecimento da polícia. 
O índice de subnotificação é, portanto, altíssimo. Isto é, o silêncio sobre este crime é 
aterrador. Talvez porque, segundo recente pesquisa do Datafolha, cerca de um terço dos 
brasileiros ainda responsabilize a vítima pelo estupro. E daí porque, também, não ser à toa 
que pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP registre que 
85% das mulheres brasileiras têm medo de ser vítima de agressão sexual. 
Nada disso é à toa. 
*** 
O fato de, ainda hoje, preponderar a crença masculina de que o corpo feminino deve estar ao 
dispor de seus desejos, como se mero objeto fosse, existe e persiste a partir de um substrato 
cultural de vitimização (ou revitimização) para o qual o aparato estatal contribui 
decisivamente. 
Por fim, assombra o quanto se tem ventilado sobre a capacidade mental do acusado e que este 
seria o motivador de sua conduta, como já visto, reiterada. 
Ora, para isso existe o incidente de sanidade mental que, a confirmar a hipótese que vem 
sendo alardeada, há de sujeitá-lo ao que lhe garante a lei, nos termos de um paradigma 
antimanicomial. Ou seja, não se pretende, mais uma vez é preciso dizer, que o acusado seja 
jogado em uma instituição de internação destinada às pessoas com sofrimento psíquico 
sabidamente pior do que qualquer masmorra brasileira. 
Contudo, é bom alertar que, não é incomum encontrarmos em discursos patologizantes 
explicações para a agressão sexual. O que por sinal também tem raízes em teorias 
criminológicas conhecidas. Mais uma vez vale lembrar Benjamin Mendelsohn para quem os 
violadores eram psicopatas, homens com problemas sexuais, normalmente com mães ou 
mulheres repressoras. 
Se o acusado é imputável ou não, é um fato importante que deve a seu tempo ser verificado. 
Entretanto, há de se ter muito cuidado quando argumentos, digo eu, míticos como esse, são 
trazidos ao debate público. Afinal, não estamos falando de quase meio milhão de homens com 
sofrimento psíquico que cometem atos de abuso sexual contra mulheres. O que há na maioria 
esmagadora dos casos é o constrangimento por meio de violência física, moral e/ou simbólica 
caracterizadora de um estrutura de dominação e subjugação machista. 
Enfim, como feminista e garantista me coloco na primeira fileira de defesa de todos os 
direitos e garantias penais e processuais penais deste acusado, como de todos os demais. 
Contudo, foi um ato de constrangimento violento e não reconhece-lo é revitimizar a ofendida. 
Foi constrangedor. Foi violento. Foi estupro. 
(E podem acender a fogueira!) 
Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela 
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, doutora em Direito, Estado e 
Constituição pela Universidade de Brasília – UnB e pós-doutoranda em Teorias Jurídicas 
Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. 
 
[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. VIII. Rio de Janeiro: Forense, 1959. 
[2] Ibidem. 
[3] Recomendo a leitura do artigo MENDES, Soraia da Rosa. XIMENES, Júlia Maurmann. CHIA, Rodrigo. E 
quando a vítima é a mulher? Uma análise crítica do discurso das principais obras de direito penal e a violência 
simbólica no tratamento das mulheres vítimas de crimes contra a dignidade sexual. Revista Brasileira de 
Ciências Criminais. Vol. 130. Ano 25. p. 349-367. São Paulo: Ed. RT, abr. 2017. 
[4] Segundo Hungria “É objeto de dúvida se uma mulher, adulta (ou já desenvolvida) e normal, pode ser 
fisicamente coagida por um só homem à conjunção carnal. Argumenta-se que bastam alguns movimentos da 
bacia para impedir a intromissão da vêrga. É bem conhecida, a propósito, a anedota contada por Voltaire: “Pour 
les filles atidicieuses et qui se plaignent d’avoir été violées, il faudra bein conter comment une reine rejeta autrefois 
l’accusation d’une plaignante… Elle prit un fourreau et, le mettant sans cesse en movement, elle fit voir à la dame 
qui tenait une épée qu’il lui était impossible de la replacer dans la gaine de cette arme”. 
[5] MACKINNON, Catherine. Feminism Unmodified: discourses on life and law. Cambridge: Harvard University 
Press, 1987. Pp. 87. 
[6] PITCH, Tamar. Un Derecho para Dos: la construcción jurídica de género, sexo y sexualidad. Madrid: 
Editorial Trotta, 1998. 
[7] MACKINNON, Catherine. Feminism Unmodified: discourses on life and law. Cambridge: Harvard University 
Press, 1987. 
[8] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. VIII. Rio de Janeiro: Forense, 1959. 
[9] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. VI. Rio de Janeiro: Forense, 1959.

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