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RACHELS, J. Os elementos da Filosofia da Moral. Lisboa: Gradiva, 2004.
Capítulo 1
O que é a moralidade?
“Não estamos a discutir um tema sem importância, mas sim como devemos viver.”
SÓCRATES, A República, de Platão (ca. 390 a. C.)
1.1 O problema da definição
A filosofia moral é a tentativa de ganhar uma compreensão sistemática da natureza da
moralidade e do que esta requer de nós - ou, nas palavras de Sócrates, de "como devemos viver",
e porquê. Seria útil se pudéssemos começar com uma definição simples e incontroversa de
moralidade, mas isso é impossível. Há muitas teorias rivais, cada uma expondo uma concepção
diferente do que significa viver moralmente, e qualquer definição que vá além da formulação
simples de Sócrates é susceptível de ofender uma ou outra dessas teorias. Isto deve colocar-nos
de sobreaviso, mas não temos de ficar paralisados. Neste capítulo vou descrever a "concepção
mínima" de moralidade. Como o nome sugere, a concepção mínima é um núcleo que qualquer
teoria moral deveria aceitar, pelo menos como ponto de partida. Vamos começar por examinar
algumas controvérsias morais recentes, todas relacionadas com crianças deficientes. As
características da concepção mínima emergirão da nossa consideração destes exemplos.
1.2 Primeiro exemplo: a bebê Teresa
Theresa Ann Campo Pearson, conhecida publicamente como "Bebé Teresa", é uma criança
com anencefalia nascida na Florida em 1992. A anencefalia é uma das mais graves deformidades
congénitas. Os bebés anencefálicos são por vezes referidos como "bebés sem cérebro", e isto dá
basicamente ideia do problema, mas não é uma imagem inteiramente correcta. Partes
importantes do encéfalo - cérebro e cerebelo - estão em falta, bem como o topo do crânio. Estes
bebés têm, no entanto, o tronco cerebral e por isso as funções autónomas como a respiração e os
batimentos cardíacos são possíveis. Nos EUA, a maior parte dos casos de anencefalia são
detectados durante a gravidez e abortados. Dos não abortados, metade nascem mortos. Cerca de
trezentos em cada ano nascem vivos e em geral morrem em poucos dias.
A história da bebé Teresa nada teria de notável não fosse o pedido invulgar feito pelos
seus pais. Sabendo que a bebé não poderia viver por muito tempo e, mesmo que pudesse
sobreviver, nunca iria ter uma vida consciente, os pais da bebé Teresa ofereceram os seus
órgãospara transplante. Pensaram que os seus rins, fígado, coração, pulmões e olhos deveriam ir
para crianças que pudessem beneficiar deles. Os médicos acharam uma boa ideia. Pelo menos
duas mil crianças em cada ano necessitam de transplantes e nunca há órgãos disponíveis
suficientes. Mas os órgãos não foram retirados, porque na Florida a lei não permite a remoção de
órgãos até o dador estar morto. Quando,nove dias depois, a bebé Teresa morreu, era demasiado
tarde para as outras crianças – os órgãos não podiam ser transplantados por se terem deteriorado
excessivamente.
As histórias dos jornais sobre a bebé Teresa suscitaram uma onda de debates públicos.
Teria sido correcto remover os órgãos da criança, causando-lhe dessa forma morte imediata, para
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ajudar outras crianças? Vários eticistas profissionais - pessoas empregadas por universidades,
hospitais, e escolas de direito, cujo trabalho consiste em pensar nestas coisas - foram solicitados
pela imprensa para comentar o tema. Surpreendentemente, poucos concordaram com os pais e
os médicos. Apelaram, ao invés, para princípios filosóficos consagrados para se oporem à
remoção dos órgãos. "Parece simplesmente demasiado horrível usar pessoas como meio para os
objectivos de outras pessoas", afirmou um desses peritos. Outro explicou: "É imoral matar para
salvar. É imoral matar a pessoa A para salvar a pessoa B." Um terceiro acrescentou: "O que os pais
estão realmente a pedir é: matem este bebé moribundo para que os seus órgãos possam ser
usados por outra pessoa. Bom, isso é de facto uma proposta horrenda."
Era realmente horrendo? As opiniões dividiram-se. Os eticistas pensavam que sim,
enquanto os pais da bebé e os médicos pensavam que não. Mas não estamos apenas interessados
no que as pessoas pensam. Queremos conhecer a verdade da questão. Teriam os pais razão ou
não, de facto, ao oferecerem os órgãos da bebé para transplante? Se queremos descobrir a
verdade temos de perguntar que razões, ou argumentos, podem ser concedidos a cada uma das
partes. O que poderá dizer-se para justificar o pedido dos pais ou para justificar a ideia
de que o pedido estava errado?
O argumento do benefício. A sugestão dos pais baseava-se na ideia de que, uma vez que
Teresa ia morrer em breve, os seus órgãos de nada lhe serviam. As outras crianças, no entanto,
poderiam beneficiar deles. Assim, o raciocínio parece ter sido o seguinte: Se podemos beneficiar
alguém sem fazer mal a outra pessoa, devemos fazê-lo. Transplantar os órgãos beneficia as outras
crianças sem prejudicar a bebé Teresa. Logo, devemos transplantar os órgãos.
Será isto correcto? Nem todos os argumentos são sólidos; por isso, não queremos apenas
saber que argumentos podem ser aduzidos em defesa de uma dada posição, mas também se
esses argumentos são bons. Em geral, um argumento é sólido se as suas premissas são
verdadeiras e a conclusão resulta logicamente delas. Neste caso, poderíamos interrogar-nos
sobre a proposição segundo a qual Teresa não seria prejudicada. Afinal de contas, ela morreria;
isso não é mau para ela? Mas, se reflectirmos, parece claro que nestas circunstâncias trágicas os
pais tinham razão - estar viva não lhe servia de nada. Estar vivo só é um benefício quando permite
a alguém realizar actividades e ter pensamentos, sentimentos, e relações com outras pessoas- por
outras palavras, se permite a alguém ter uma vida. Na ausência destas condições, a mera
existência biológica não tem valor algum. Por isso, mesmo que Teresa pudesse continuar viva por
mais alguns dias, isso nada lhe traria de bom. (Podemos imaginar circunstâncias nas quais outras
pessoas beneficiariam em mante-la viva, mas isso não é o mesmo que ser ela a beneficiar disso.)
O argumento do benefício fornece, pois, uma poderosa razão para o transplante dos
órgãos. Quais são os argumentos do lado contrário?
O argumento de que as pessoas não devem ser usadas como meios. Os eticistas que se
opuseram aos transplantes usaram dois argumentos. O primeiro baseava-se na ideia de que é
errado usar pessoas como meio para os fins de outras pessoas. Retirar os órgãos de Teresa teria
sido usá-la em benefício de outras crianças; portanto, não se deve fazê-lo. Será este um
argumento sólido? A ideia de que não devemos "usar" pessoas é obviamente apelativa, mas trata-
se de uma noção vaga que tem de ser esclarecida. O que significa ao certo? "Usar pessoas" implica
geralmente violar a sua autonomia - a capacidade de decidirem por si mesmas como viver as suas
próprias vidas, segundo os seus próprios desejos e valores. A autonomia de uma pessoa pode ser
violada por meio de manipulação, impostura ou fraude. Por exemplo, posso fingir ser amigo de
alguém, quando na verdade estou apenas interessado em conhecer a sua irmã; ou posso mentir a
alguém para conseguir um empréstimo; ou posso tentar convencer alguém de que gostará de
assistir a um concerto noutra cidade, quando quero apenas que me leve até lá. Em todos estes
casos estou a manipular alguém de modo a obter algo para mim próprio. A autonomia é
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igualmente violada quando as pessoas são forçadas a fazer coisas contra a sua vontade. Isto
explica por que razão é errado "usar pessoas"; é errado porque a impostura, a coerção e o engano
são errados.
Retirar os órgãos à bebé Teresa não envolveria engano, impostura ou coerção. Será que
estaríamos a "usá-la" num outro sentido moralmente significativo? Iríamos,é claro, usar os seus
órgãos em benefício de outra pessoa. Mas fazemos isso sempre que realizamos um transplante.
Neste caso, no entanto, iríamos fazê-lo sem a sua permissão. Esse facto tornaria o acto errado? Se
estivéssemos a fazê-lo "contra" os seus desejos, isso poderia justificar a nossa oposição; seria uma
violação da sua autonomia. Mas a bebé Teresa não é um ser autónomo: não tem desejos e é
incapaz de tomar quaisquer decisões.
Quando as pessoas são incapazes de tomar decisões, e outros têm que o fazer em seu
lugar, podem adoptar duas linhas de orientação razoáveis. Primeiro, podemos perguntar-nos: O
que serviria melhor os seus interesses? Se aplicarmos este padrão à bebé Teresa, parece não
haver objecções a que lhe retiremos os órgãos, pois, como já vimos, seja qual for a nossa decisão,
os seus interesses não serão afectados. Ela, de qualquer maneira, morrerá em breve.
A segunda linha de orientação apela para as preferências da própria pessoa. Poderíamos
perguntar: Se pudesse dizer-nos o que quer, que diria ela? Este tipo de pensamento é
frequentemente útil quando lidamos com pessoas que sabemos terem preferências mas são
incapazes de exprimi-las (por exemplo, um paciente em coma que assinou um testamento). Só
que, infelizmente, a bebé Teresa não tem preferências sobre coisa alguma e nunca terá. Não
podemos, por isso, obter dela qualquer orientação, nem mesmo na nossa imaginação. A conclusão
é que ficamos na contingência de fazer o que consideramos melhor.
O argumento do erro de matar. Os eticistas recorreram igualmente ao princípio de que é
errado matar uma pessoa para salvar outra. Retirar os órgãos de Teresa seria matá-la para salvar
outros, afirmaram eles; por isso, retirar os órgãos seria errado.
Será este argumento sólido? A proibição de matar é certamente uma das regras morais
mais importantes. No entanto, poucas pessoas pensam que matar é sempre errado - a maioria
das pessoas pensa que algumas excepções são por vezes justificadas. Á questão é, pois, saber se
retirar os órgãos da bebé Teresa deveria ser encarado como uma excepção à regra. Há muitas
razões a favor desta ideia, sendo a mais importante que ela morrerá de qualquer
maneira,independentemente do que fizermos, ao passo que retirar-lhe os órgãos permitiria pelo
menos fazer algum bem a outros bebés. Qualquer pessoa que aceite isto tomará como falsa a
primeira premissa do argumento. Em geral é errado matar uma pessoa para salvar outra, mas isso
nem sempre é assim.
Mas há outra possibilidade. Talvez a melhor maneira de entender toda a situação fosse
encarar desde logo a bebé Teresa como morta. Se isto parece insensato, recorde-se que a "morte
cerebral" é hoje amplamente aceite como critério para declarar as pessoas legalmente mortas.
Quando o critério da morte cerebral foi proposto pela primeira vez, houve resistências baseadas
na ideia de que alguém pode estar cerebralmente morto mas muita coisa continua a funcionar no
seu interior - com assistência mecânica o coração pode continuar a bater, pode-se continuar a
respirar, e assim por adiante. Mas a morte cerebral foi por fim aceite e as pessoas acostumaram-
se a encará-la como "verdadeira" morte. Isto foi sensato porque quando o cérebro pára
defuncionar deixa de haver esperança de vida consciente.
As anencefalias não satisfazem os requisitos técnicos da morte cerebral tal como é
actualmente definida; mas talvez a definição devesse ser reelaborada para as incluir. Afinal de
contas, os anencefálicos também não têm perspectivas de vida consciente, pela razão profunda
de que não têm cérebro ou cerebelo. Se a definição de morte cerebral fosse reformulada para
incluir os anencefálicos, acabaríamos por nos acostumar à ideia de que estes infelizes bebés são
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nado-mortos e deixaríamos, por isso, de encarar a extracção dos seus órgãos como uma forma de
os matar. O argumento baseado na ideia de que matar é errado seria então contestável. Parece
pois, no todo, que o argumento a favor do transplante dos órgãos da bebé Teresa é mais forte do
que estes argumentos contra o transplante.
1.3 Segundo exemplo: Jodie e Mary
Em Agosto de 2000, uma jovem de Gozo, uma ilha junto de Malta, descobriu que estava
grávida de gémeos siameses. Sabendo que as instalações de saúde de Gozo não estavam
equipadas para lidar com as complicações de um tal nascimento, ela e o marido foram para o
Hospital St. Mary, em Manchester, Inglaterra, para fazer aí o parto das bebés. As crianças,
conhecidas como Mary e Jodie, estavam ligadas pelo baixo abdómen. As suas espinhas dorsais
encontravam-se fundidas, e partilhavam um coração e um par de pulmões. Jodie, a mais forte,
fornecia sangue à sua irmã.
Ninguém sabe quantos pares de gémeos siameses nascem por ano. São raros, embora o
nascimento recente de três pares no Oregon tenha suscitado a ideia de que o seu número está a
crescer. ("Os Estados Unidos têm um excelente serviço de saúde, mas os registos são muito
pobres", afirmou um médico.) As causas do fenómeno não são bem conhecidas, mas sabemos
com certeza que os gémeos siameses são uma variante de gémeos idênticos. Quando o conjunto
de células (o "pré-embrião") se divide, três a oito dias após a fertilização, surgem os gêmeos
idênticos; quando a divisão se arrasa mais alguns dias, pode ficar incompleta e os gémeos podem
ficar ligados.
Alguns pares de gémeos siameses não têm problemas. Chegam à idade adulta e por vezes
casam e têm os seus próprios filhos. Mas o panorama apresentava-se algo cinzento para Mary e
Jodie. Os médicos afirmaram que, sem intervenção, morreriam dentro de seis meses. A única
esperança era uma operação para separá-las. Isto salvaria Jodie, mas Mary morreria de imediato.
Os pais, católicos devotos, não permitiram a operação baseando-se na ideia de que isso
anteciparia a morte de Mary. "Pensamos que a natureza deve seguir o seu curso", afirmaram os
pais. "Se é a vontade de Deus que as crianças não sobrevivam, assim seja." O hospital, convencido
da sua obrigação de fazer os possíveis para salvar pelo menos uma das crianças, solicitou
permissão aos tribunais para separar as bebés contra o desejo dos pais. Os tribunais concederam
permissão, e a 6 de Novembro a operação foi realizada. Tal como se esperava, Jodie sobreviveu e
Mary morreu. Ao meditar neste caso, devemos separar a questão de quem deveria tomar a
decisão da questão de qual deve ser a decisão. Podemos pensar, por exemplo, que a decisão devia
caber aos pais, caso em que nos oporemos à intromissão dos tribunais. Mas continua em aberto a
questão independente de saber qual seria para os pais (ou qualquer outra pessoa) a escolha mais
sensata. Vamos concentrar-nos nesta última questão: Nas circunstâncias descritas, seria correcto
ou errado separar as gémeas?
O argumento de que devem ser salvas tantas vidas quanto possível. O argumento óbvio a
favor da separação das gémeas é que podemos escolher entre salvar um bebé ou deixar ambos
morrer. Não é claramente melhor salvar um deles? Este argumento é tão atraente que muitas
pessoas concluirão, sem mais, que isto resolve o problema. No auge da controvérsia sobre o caso,
quando os jornais estavam cheios de histórias acerca de Jodie e Mary, o Ladies Home Journal
encomendou uma sondagem para descobrir o que os americanos pensavam. A sondagem
mostrou que 78% aprovava a operação. As pessoas estavam obviamente persuadidas pela ideia
de que devemos salvar tantos bebés quanto possível. No entanto, os pais de Jodie e Mary
pensavam que há um argumento ainda mais forte do lado contrário.
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O argumento da santidade da vida humana. Os pais amavam as duas filhas e pensavam
que seria errado sacrificar uma delas para salvar a outra. Naturalmente, não eram os únicos a
defender esta perspectiva. A ideia de que toda a vida humana tem valor,independentemente da
idade, raça, classe social ou deficiência, está no centro da tradição moral ocidental. É
especialmente enfatizada em obras religiosas. Na ética tradicional, a proibição de matar seres
humanos inocentes é tida como absoluta. Não importa se o assassinato visa servir um propósito
meritório; simplesmente não pode fazer-se. Mary é um ser humano inocente, não podendo por
isso ser morta.
Será este argumento sólido? Por uma razão surpreendente, os juizes que avaliaram o caso
em tribunal pensaram que não. Negaram a pertinência do argumento tradicional neste caso. O
juiz Robert Walker afirmou que a realização da operação não mataria Mary. Ela seria
simplesmente separada da irmã e depois "morreria, não por ser intencionalmente morta, mas
porque o seu próprio corpo não pode manter a sua vida". Por outras palavras, a causa da sua
morte não seria a operação mas a sua própria debilidade. Os médicos parecem ter favorecido
também esta perspectiva. Quando a operação foi finalmente realizada, executaram todos os
procedimentos para tentarem manter Mary viva - "concedendo-lhe todas as possibilidades" -
mesmo sabendo da inutilidade do esforço.
O argumento do juiz pode parecer um pouco sofístico. Poderíamos pensar, seguramente,
que pouco importa dizer que a morte da Mary é causada pela operação ou pela debilidade do seu
corpo. De qualquer das maneiras ela vai morrer, e a sua morte acontecerá mais cedo do que se
não tivesse sido separada da irmã.
Há, no entanto, uma objecção mais natural ao argumento da santidade da vida que não
depende de um argumento tão forçado. Podemos responder que não é sempre errado matar
seres humanos inocentes. Em situações raras pode mesmo ser correcto. Em particular se: a) o ser
humano inocente não tem futuro por estar condenado a morrer em breve independentemente do
que façamos; b) o ser humano inocente não quer continuar a viver, talvez por estar tão-pouco
desenvolvido mentalmente que não pode de todo ter desejos; e c) se matar o ser humano
inocente permitir salvar a vida de outros, que podem desenvolver-se e ter uma vida boa e plena -
nestas circunstâncias, pouco frequentes, pode justificar-se matar um inocente. E claro que muitos
moralistas, sobretudo os pensadores religiosos, não se deixarão convencer. No entanto, esta é
uma linha de pensamento que muitas pessoas podem achar persuasiva.
1.4 Terceiro exemplo: Tracy Latimer
Tracy Latimer, uma menina de doze anos vítima de paralisia cerebral, foi morta pelo pai
em 1993. Tracy vivia com a família numa quinta de uma pradaria de Saskatchewan, no Canadá.
Numa manhã de domingo, enquanto a mulher e os filhos estavam na missa, Robert Latimer pôs
Tracy na cabina da sua carrinha de caixa aberta e asfixiou-a com o fumo do escape. Na altura da
morte, Tracy pesava menos de dezoito quilos; diz-se que tinha "um nível mental idêntico ao de um
bebé de três meses". A senhora Latimer afirmou ter ficado aliviada por encontrar Tracy morta ao
chegar a casa, e acrescentou que "não tinha coragem" para o fazer.
O senhor Latimer foi julgado por homicídio, mas o juiz e os jurados não quiseram tratá-lo
com demasiada dureza. O júri considerou-o apenas culpado de homicídio de segundo grau e
recomendou ao juiz para ignorar a sentença obrigatória de vinte e cinco anos de prisão. O juiz
concordou e sentenciou Latimer a um ano de cadeia, seguido de um ano de prisão domiciliária na
sua quinta. No entanto, o Supremo Tribunal do Canadá revogou a sentença e ordenou a imposição
da sentença obrigatória. Robert Latimer está ainda detido, cumprindo uma pena de vinte e cinco
anos.
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Questões legais à parte, será que o senhor Latimer fez algo de errado? Este caso envolve
muitas das questões que já vimos nos outros casos. Um argumento contra o senhor Latimer é que
a vida de Tracy tinha valor moral, não tendo ele por isso o direito de a matar. Em sua defesa pode
responder-se que a situação de Tracy era tão catastrófica que ela não tinha quaisquer
perspectivas de uma "vida" em qualquer sentido além do puramente biológico. A sua existência
estava reduzida a nada mais do que sofrimento sem sentido, pelo que matá-la foi um acto de
misericórdia. Considerando estes argumentos, parece que talvez o senhor Latimer tenha agido de
forma defensável. Houve, no entanto, outros argumentos avançados pelos seus críticos.
O argumento contra a discriminação dos deficientes.
Quando Robert Latimer foi sentenciado com tolerância pelo tribunal, muitos deficientes
encararam o facto como um insulto. O presidente de Saskatoon Voice of People with Disabilities,
que sofre de esclerose múltipla, afirmou: "Ninguém tem o direito de decidir se a minha vida tem
um valor inferior a outra. Essa é a grande questão." Tracy foi morta por ser deficiente, afirmou, e
isso é inadmissível. As pessoas deficientes deveriam ser tão respeitadas e ter tantos direitos como
qualquer outra pessoa. Que podemos dizer disto? A discriminação contra qualquer grupo de
pessoas é, naturalmente, um assunto sério. E inaceitável porque implica tratar algumas pessoas
de forma diferente de outras, quando não há diferenças relevantes entre elas para o justificar.
Exemplos correntes envolvem situações como a discriminação no local de trabalho. Suponha-se
que se recusa um trabalho a uma pessoa cega simplesmente porque o patrão não gosta da ideia
de empregar alguém incapaz de ver. Isto não é diferente de recusar empregar alguém por ser
negro ou judeu. Para sublinhar o quanto isto é ofensivo, poderíamos perguntar por que razão essa
pessoa é tratada de forma diferente. É menos capaz de fazer o trabalho? É mais estúpida ou
menos diligente? Merece menos o emprego? É menos capaz de beneficiar da circunstância de
estar empregada? Se não há qualquer boa razão para a excluir, então é simplesmente arbitrário
tratá-la desta forma.
Mas há algumas circunstâncias nas quais pode justificar-se tratar os deficientes de forma
diferente. Por exemplo, ninguém iria defender seriamente que uma pessoa cega deveria ser
empregada como controladora de tráfego aéreo. Uma vez que podemos explicar facilmente por
que motivo isto não é desejável, a "discriminação" não é arbitrária e não é uma violação dos
direitos da pessoa deficiente. Devemos pensar na morte de Tracy Latimer como um caso de
discriminação de deficientes?
O senhor Latimer argumentou que a paralisia cerebral de Tracy não era a questão. "As
pessoas andam a dizer que isto é uma questão relacionada com deficiência", afirmou, "mas estão
enganadas. Isto diz respeito a tortura. Para Tracy, tratava-se de uma questão de mutilação e
tortura". Antes da sua morte, Tracy fora submetida a uma importante e delicada intervenção
cirúrgica às costas, ancas e pernas, e havia ainda mais cirurgias planeadas. "Tendo em conta a
combinação de um tubo para alimentação, varetas nas costas, a perna cortada e bamba e ainda as
chagas causadas pela permanência na cama", afirmou o pai, "como podem as pessoas dizer que
ela era uma menina feliz"? No julgamento, três dos médicos de Tracy deram o seu testemunho
sobre a dificuldade de controlar as suas dores. O senhor Latimer negou, por isso, que ela tenha
sido morta por causa da paralisia cerebral; foi morta por causa da dor e por não haver esperança
para ela.
O argumento da derrapagem.
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Isto conduz naturalmente a outro argumento. Quando o Supremo Tribunal do Canadá
confirmou a sentença de Robert Latimer, Tracy Walters, directora da Associação Canadense de
Centros para Uma Vida Independente, afirmou-se "agradavelmente surpreendida" pela decisão.
"Teria sido na verdade uma bola de neve e um abrir de portas a outras pessoas para decidirem
quem vive e quem morre", afirmou.
Outros defensores dos deficientes fizeram eco desta ideia. Podemos compreender Robert
Latimer, afirmaram alguns, podemosaté ser tentados a pensar que Tracy está melhor morta. No
entanto, é perigoso pensar desta forma. Se aceitarmos qualquer tipo de morte piedosa, iremos
dar a uma "derrapagem" inevitável, e no final toda a vida terá perdido o seu valor. Onde devemos
pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não merece ser protegida, o que dizer então de
outros deficientes? Que dizer dos velhos, doentes e outros membros "inúteis" da sociedade?
Neste contexto, refere-se frequentemente os nazis, que queriam "purificar a raça", e a implicação
é que se não queremos acabar como eles, é melhor não darmos os perigosos primeiros passos.
Tem-se usado "argumento da derrapagem" do mesmo género em relação a todo o tipo de
questões. O aborto, a fertilização in vitro (FIV) e, mais recentemente, a clonagem, foram
criticados por causa daquilo a que podem conduzir. Uma vez que estes argumentos envolvem
especulações sobre o futuro, são manifestamente difíceis de avaliar. Por vezes, é possível
verificar, em retrospectiva, que as preocupações eram infundadas. Isto aconteceu com a FIV.
Quando, em 1978, nasceu Louise Brown, a primeira "bebé proveta", houve uma série de
previsões medonhas sobre o que o futuro poderia reservar para ela, a sua família e a sociedade
como um todo. Mas nada de mau aconteceu e a FIV tornou-se um procedimento rotineiro usado
para ajudar milhares de casais a ter filhos.
Quando o futuro é desconhecido, pode, no entanto, ser difícil determinar se um
argumento deste tipo é sólido. Por outro lado, pessoas razoáveis podem discordar sobre o que
poderia acontecer se a morte piedosa fosse aceite em casos como o de Tracy Latimer. Isto dá
origem a um tipo de impasse frustrante: os desacordos quanto aos méritos da argumentação
podem depender simplesmente das inclinações prévias dos interlocutores - os inclinados a
defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões são irrealistas, enquanto os
predispostos a condená-lo insistem na sensatez das previsões.
Vale a pena notar, no entanto, que este tipo de argumento é atreito a usos abusivos. Se
não concordamos com alguma coisa, mas não temos qualquer argumento bom contra ela,
podemos sempre fazer uma previsão sobre as suas possíveis consequências; por mais implausível
que a previsão seja, ninguém pode provar que esteja errada. Este método pode ser utilizado para
contestar quase tudo. Essa é a razão pela qual os argumentos deste tipo devem ser abordados
com cuidado.
1.5 Razão e imparcialidade
O que se pode aprender com tudo isto sobre a natureza da moral? Para começar, podemos tomar
nota de dois aspectos principais: primeiro, os juízos morais têm de se apoiar em boas razões;
segundo, a moral implica a consideração imparcial dos interesses de cada indivíduo.
Raciocínio moral.
Os casos da bebé Teresa, Jodie e Mary e Tracy Latimer, bem como muitos outros que
serão discutidos neste livro, podem despertar sentimentos fortes. Estes sentimentos são
frequentemente sinal de seriedade moral e podem, pois, ser objecto de admiração. Mas podem
também ser um obstáculo à descoberta da verdade: quando temos sentimentos fortes
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relativamente a uma questão, é tentador pressupor que sabemos pura e simplesmente o que a
verdade não pode deixar de ser, sem mesmo termos de tomar em consideração os argumentos
do lado contrário. Infelizmente, não podemos confiar nos nossos sentimentos, por mais fortes que
sejam. Os nossos sentimentos podem ser irracionais: podem não ser mais do que resultados de
preconceito, egoísmo ou condicionamento cultural. (Numa dada altura, os sentimentos das
pessoas diziam-lhes, por exemplo, que os membros de outras raças eram inferiores e que a
escravatura fazia parte do próprio plano divino das coisas.) Além disso, os sentimentos de pessoas
diferentes dizem-lhes frequentemente coisas opostas: no caso de Tracy Latimer, o sentimento
forte de algumas pessoas é que o seu pai devia ter sido condenado a uma pena longa, enquanto
outras têm o sentimento igualmente forte de que ele nunca devia ter sido acusado. Estes
sentimentos não podem, no entanto, estar ambos correctos.
Assim, se queremos descobrir a verdade, temos de tentar deixar que os nossos
sentimentos sejam guiados, tanto quanto possível, pelos argumentos que se podem fornecer a
favor de cada uma das perspectivas opostas. A moralidade é, antes de mais e acima de tudo, uma
questão de aconselhamento racional. Em qualquer circunstância dada, a acção moralmente
correcta é aquela a favor da qual existirem melhores razões.
Este não é um aspecto de somenos importância sobre uma pequena gama de perspectivas
morais; é um requisito lógico geral que tem de ser aceite por qualquer pessoa,
independentemente do seu posicionamento sobre qualquer questão moral em particular. A ideia
fundamental pode enunciar-se de forma simples. Suponha-se que se afirma que alguém devia
fazer isto ou aquilo (ou que fazer isto ou aquilo seria errado). Pode-se legitimamente perguntar
por que motivo se deve fazê-lo (ou por que razão seria errado fazê-lo), e se não se puder dar
qualquer boa razão, pode-se rejeitar o conselho como arbitrário ou infundado.
Neste aspecto, os juízos morais são diferentes das expressões de gosto pessoal. Se alguém
afirma "eu gosto de café", não necessita ter uma razão para tal - está meramente a declarar um
facto sobre si mesmo, nada mais do que isso. Uma "defesa racional" do facto de gostar ou não de
café é algo que não existe, não havendo por isso discussão possível do caso. Desde que uma
pessoa esteja a dar conta dos seus gostos de forma precisa, o que diz tem de ser verdade. Além
do mais, não há nisso qualquer implicação de que as outras pessoas tenham de ter o mesmo
gosto; se todas as outras pessoas do mundo detestarem café, isso não importa. Por outro lado, se
alguém afirma que algo é moralmente errado, necessita ter razões para tal, e se as suas razões
forem sólidas, as outras pessoas têm de reconhecer a sua força. Pela mesma lógica, se não tiver
boas razões para o que diz, está simplesmente a produzir ruídos e não vale a pena dar-lhe
atenção.
Naturalmente, nem todas as razões passíveis de ser apresentadas são boas razões. Há
bons e maus argumentos, e muita da perícia do pensamento moral consiste em saber distinguir
uns de outros. Mas como podemos reconhecer as diferenças? Como devemos proceder para
avaliar argumentos? Os exemplos que analisámos ilustram alguns aspectos pertinentes.
A primeira coisa a fazer é entender com clareza os factos. E frequente isto não ser tão fácil
como parece. Uma fonte de problemas relaciona-se com a dificuldade que por vezes existe em
estabelecer os "factos" - as questões podem ser tão complexas e difíceis que nem mesmo os
especialistas concordam entre si. Outro problema é o preconceito humano. É frequente querer
acreditar numa versão dos factos por apoiar os nossos preconceitos. Os que reprovam a acção de
Robert Latimer, por exemplo, quererão acreditar nas previsões do argumento da derrapagem; os
que o compreendem não vão querer acreditar nessas previsões. É fácil imaginar outros exemplos
do mesmo género: pessoas que não querem dar dinheiro para a caridade consideram com
frequência que as organizações de caridade são esbanjadoras, mesmo quando não têm grandes
provas disso; e as pessoas que não gostam de
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homossexuais afirmam que a comunidade gay inclui um número desmesurado de pedófilos,
apesar das provas em contrário. Mas os factos existem independentemente dos nossos desejos, e
o pensamento moral responsável começa quando tentamos ver as coisas como elas são.
Depois de os factos terem sido estabelecidos tão bem quanto possível, os princípios
morais entram em jogo. Nos nossos três exemplos estavam envolvidos um conjunto de princípios:
que não devemos "usar" as pessoas; que não devemos mataruma pessoa para salvar outra; que
devemos fazer o que beneficie as pessoas afectadas pelas nossas acções; que toda a vida é
sagrada; e que é errado discriminar os deficientes. A maioria dos argumentos morais consiste na
aplicação de princípios aos factos de casos particulares, e por isso o que importa saber é se os
princípios são sólidos e se estão a ser aplicados de forma inteligente.
Seria bom se houvesse uma receita simples para construir bons argumentos e evitar os
maus. Infelizmente, não há um método simples. Os argumentos podem falhar de diversas
maneiras, como se torna evidente pela diversidade de argumentos sobre os bebés deficientes; e
devemos estar sempre atentos à possibilidade de novas complicações e novas formas de erro. Mas
isso não é surpreendente. A aplicação mecânica de métodos rotineiros nunca é um substituto
satisfatório para a inteligência crítica, seja em que área for. O pensamento moral não é excepção.
O requisito de imparcialidade. Praticamente todas as teorias morais importantes incluem a
ideia de imparcialidade. A ideia básica consiste em considerar os interesses de cada indivíduo
como igualmente importantes; do ponto de vista moral, não há pessoas privilegiadas. Portanto,
cada um de nós tem de reconhecer que o bem-estar dos outros é tão importante como o nosso.
Ao mesmo tempo, a exigência de imparcialidade elimina qualquer esquema que trate os membros
de determinados grupos como de certa forma inferiores, como os negros, os judeus e outros
foram por vezes tratados.
O requisito de imparcialidade está estreitamente ligado à ideia de que os juízos morais
têm de ser apoiados em boas razões. Considere-se a posição de um racista branco, por exemplo,
que defende ser correcto que os empregos melhores sejam reservados para as pessoas brancas.
Ele sente-se bem com uma situação na qual os executivos das principais empresas e os
responsáveis do governo, entre outros, são brancos, enquanto os negros ficam restringidos a
tarefas sobretudo subalternas; ele apoia ainda as disposições sociais por meio das quais esta
situação se perpetua. Podemos agora perguntar pelas razões para isto; podemos perguntar por
que motivo se pensa que isto está certo. Haverá alguma coisa nos brancos que os torne mais
adequados para os cargos mais bem pagos e mais prestigiados? Serão eles inerentemente mais
inteligentes ou mais empreendedores? Será que se importam mais consigo mesmos e com as suas
famílias? Serão capazes de beneficiar mais por terem tais cargos à sua disposição? Em cada um
destes casos a resposta parece ser não; e se não houver qualquer boa razão para tratar as pessoas
de maneira diferente, a discriminação é inaceitavelmente arbitrária.
O requisito de imparcialidade não é, pois, mais do que uma condenação da arbitrariedade
no tratamento das pessoas. É uma regra que nos proíbe de tratar uma pessoa de forma diferente
de outra quando não há uma boa razão para o fazer. Mas se isto explica o que está errado no
racismo, explica igualmente por que razão em alguns casos especiais não é racista tratar as
pessoas de maneira diferente. Suponha-se que um realizador de cinema estava a fazer um filme
sobre a vida de Martin Luther King, Jr. Teria uma razão muito boa para não recrutarTom Cruise
para o papel de protagonista. É claro que a escolha deste actor não faria sentido. Por haver uma
boa razão para isso, a "discriminação" do realizador não seria arbitrária, não sendo por isso
vulnerável a críticas.
1.6 A concepção mínima de moralidade
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A concepção mínima pode agora ser apresentada de forma breve: a moralidade é, pelo menos, o
esforço para orientar a nossa conduta pela razão - isto é, para fazer aquilo a favor do qual existem
melhores razões - dando simultaneamente a mesma importância aos interesses de cada indivíduo
que será afectado por aquilo que fazemos. Isto oferece, entre outras coisas, uma imagem do que
significa ser um agente moral consciente. O agente moral consciencioso é alguém preocupado
imparcialmente com os interesses de quantos são afectados por aquilo que ele, ou ela, fazem;
alguém que cuidadosamente filtra os factos e examina as suas implicações; que aceita princípios
de conduta somente depois de os examinar, para ter a certeza de que são sólidos; que está
disposto a "dar ouvidos à razão" mesmo quando isso significa ter de rever convicções prévias;
alguém que, por fim, está disposto a agir com base nos resultados da sua deliberação.
É claro que, como seria de esperar, nem todas as teorias éticas aceitam este "mínimo".
Como teremos oportunidade de ver, este retrato do agente moral tem sido posto em causa de
várias maneiras. No entanto, as teorias que rejeitam a concepção mínima debatem-se com sérias
dificuldades. A maioria dos filósofos apercebeu-se disto, e por isso a maior parte das teorias da
moralidade incorpora, de uma forma ou outra, a concepção mínima. Não discordam sobre o
mínimo mas sobre como poderemos alargá-lo, ou talvez modificá-lo, de maneira a alcançar uma
concepção moral inteiramente satisfatória.