Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.

Prévia do material em texto

ANÁLISE DE CASOS CLÍNICOS 
AULA 3 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prof. Renato Staevie Baduy 
 
 
 
2 
CONVERSA INICIAL 
Nesta etapa, daremos continuidade ao nosso mergulho nos escritos 
freudianos sobre a técnica. Até aqui, traçamos um debate a partir de dois textos 
de Freud, um de 1913, de forma a se pensar sobre o início do tratamento e o 
que ocorre ali, para que uma análise em direção à cura seja viável; e, o outro, de 
1937, para nos aproximarmos do que acontece no “meio”, a partir de uma nova 
técnica sistematizada por Freud, a qual ele nomeou de construção em análise. 
Permaneceremos no “meio”, de forma mais contundente. Porém, para 
tanto, nos debruçaremos sobre o texto que, talvez, seja o mais famoso e lido de 
seus escritos sobre a técnica: Lembrar, Repetir e Perlaborar. Este texto foi 
escrito e publicado em 1914, ao mesmo tempo em que eclodia a Primeira Guerra 
Mundial e, também, coincide com um momento muito importante e definidor dos 
rumos do campo psicanalítico: discordâncias entre Adler e Jung e a renúncia de 
Jung da presidência da Associação Psicanalítica Internacional. 
 Igualmente importante para a construção deste texto, trata-se do esforço 
freudiano de pensar a clínica. Conjectura-se que este trabalho é motivado por 
um impasse técnico e teórico de que Freud vivenciava a partir da escuta e da 
condução do caso do “Homem dos Lobos”. Inclusive, conjuntamente ao término 
de sua escrita desse texto e da eclosão da Segunda Guerra, especificamente, 
essa análise foi interrompida. 
 Nada mais apropriado, desta forma, do que iniciarmos esta etapa partindo 
de uma vinheta clínica para pensarmos o que Freud forjou neste texto. Na 
sequência, iremos nos deter, de forma sucinta, ao grosso do texto, extraindo o 
que de mais importante encontramos ali. Por fim, retornaremos ao caso 
apresentado na vinheta clínica à luz da teoria freudiana de Lembrar, Repetir e 
Perlaborar. 
 É digno de nota, também, que este texto é de extrema importância e 
impacto para história da psicanálise. Para o pensamento lacaniano, por exemplo, 
a ideia de atuação extraída a partir desse escrito freudiano é central em seu 
Seminário X, a Angústia, na formulação do quadro da angústia, o que abre todo 
um campo para se pensar a clínica dos atos. Ainda, no Seminário XI, Os Quatro 
Conceitos Fundamentais da Psicanálise, a Repetição ganha o estatuto de um 
dos conceitos fundamentais para que haja psicanálise. Sendo assim, 
 
 
3 
adentramos em um trabalho célebre de Freud para pensarmos um caso clínico. 
Vamos lá? 
TEMA 1 – VINHETA CLÍNICA 
A paciente procurou a clínica, via plano de saúde, solicitando ser atendida 
por um psicanalista do gênero masculino. Ela já vinha de uma experiência 
anterior de análise, desta vez, junto a uma psicanalista do gênero feminino, que 
chegou ao fim após a antiga analista interromper o trabalho por ter parido um 
bebê. Logo na primeira sessão, ela já conta que estava à procura de um analista 
homem, por achar que seria importante para ela lidar com a relação que tem com 
os homens e também elaborar a morte do pai, que havia falecido há cerca de 3 
anos. 
Neste primeiro momento, a paciente direciona muito as sessões para seu 
relacionamento amoroso, na época, em andamento há 7 anos. Conta de suas 
insatisfações na convivência diária de quem mora junto, como a falta de 
reciprocidade na distribuição dos afazeres; de suas insatisfações sexuais; de 
falhas de comunicação; de como ela sempre precisa protagonizar as ações, 
desde a limpeza da casa até a escolha de uma comida para pedir via ifood e, ao 
mesmo tempo, de como não encontra apoio no namorado para seus anseios 
profissionais; conjuntamente, vai demonstrando suas idealizações com outros 
homens, homens do passado, que não passaram de um flerte. 
No mesmo sentido, ainda neste momento inicial, a paciente amplia sua 
gama de queixas, por assim dizer, demonstrando suas insatisfações em planos 
distintos: profissionais, familiares e afetivos. 
A paciente vai se localizando na dinâmica familiar, onde é a filha caçula, 
de irmãos com uma distância de 15 anos de idade, isto é, a irmã mais próxima 
tem 15 anos a mais que ela e, o irmão, 17. Relata que, no momento de seu 
nascimento e no período de sua primeira infância, o irmão vinha atravessando 
problemas com drogas, e os irmãos brigavam muito, o que demandava a atenção 
dos pais. Assim, ela vai narrando cenas onde retira a constatação de solidão, de 
não ter voz, de ter que ser muito responsável desde cedo, de ter que lidar sozinha 
com as questões dela e, ao mesmo tempo, não “dar trabalho” aos pais. 
É neste momento que ela narra as violências sexuais que sofreu na 
infância e adolescência e de não ter encontrado espaço para contar aos 
familiares, o que gerava sensações de ser “menos mulher” do que as mulheres 
 
 
4 
da família. Ela relembra, também, da época em que seus seios começaram a 
crescer e aparecer, quando ganha de aniversário, com muito constrangimento, 
de um tio, seu primeiro sutiã. Daí, ela associa uma certa posição que assumiu 
diante dos homens: constranger antes de ser constrangida. E começa a dizer 
como não se envolvia sexualmente com os homens quando eles a procuravam, 
adotando, nestas situações, uma atitude de chacota e piadista, precisando, com 
isso, ser ela quem tome a iniciativa. 
Aqui é importante dizer das atitudes da paciente frente ao analista. Ela 
sempre chegava às sessões fazendo uma piada ou um pequeno comentário: 
sobre a cor do tapete, sobre o tamanho da poltrona, sobre como a porta foi 
aberta, sobre o quadro pendurado na parede, sobre as plantas. Ainda nos 
instantes iniciais, quando foi feito o convite para a paciente se deitar no divã, a 
paciente retorna com outro convite, dizendo que seria legal se a sessão tivesse 
ocorrido num bar. Por ocasião, as sessões ocorriam às sextas à noite. 
Quando a paciente se deita no divã, começa a demonstrar grande 
desconforto, tentando por diversas vezes retomar contato visual, virando seu 
pescoço para trás e, inclusive, em certa sessão, se senta para contar 
determinada situação. As suas associações empobrecem demasiadamente e as 
piadas e comentários sobre a sala aumentam exponencialmente. Desta forma, 
o analista pede que a paciente retorne à poltrona. 
Algo importante se passa em sua vida nesse período: seu namorado 
começa a puxar o papo de casamento, indagando se ela aceitaria se ele pedisse, 
ao que ela responde que sim, que não negaria, mas que não achava ser a hora. 
Ele conta para ela que queria pedir no dia do seu aniversário, onde haveria uma 
festa e eles receberiam os amigos e familiares. Sua resposta é para que ele 
espere até que eles possam se acertar antes. 
Na sessão seguinte à festa, a paciente conta que o namorado fez o pedido 
de casamento na frente de todo mundo e que sua reação foi uma crise de riso, 
que ela mal conseguiu responder, apenas quando foi convocada pelo entorno a 
dizer sim ou não. Sua resposta foi sim e, na sequência, diz ter corrido para o seu 
quarto e se deitado na cama em posição fetal, sem conseguir parar de rir. 
Isso a remeteu aos abusos que sofreu na infância, onde ela se sentia sem 
saída, contra a parede, porque o namorado havia feito algo que ela pediu para 
não fazer, mas, ainda assim, ela só poderia aceitar. Ainda nessa sessão, ela é 
capaz de associar que sua crise de riso, muito angustiante por sinal, tinha 
 
 
5 
relação com se sentir constrangida e, pelo contrário, não estar na posição de 
constranger. 
Alguns dias após a sessão, a paciente procura o analista para uma sessão 
extra, onde ela narra certa urgência. Contudo, ambos não conseguem acertar 
um horário em comum de forma presencial, apenas online, mas a paciente nega, 
solicitando que seja presencial e que, nesse caso, preferia esperar até a data de 
sua sessão. 
Na sessão seguinte, a paciente vem e narra um sonho que teve com o 
analista que a angustioumuito e, por isso, havia solicitado uma sessão extra. Os 
dois se encontravam em um bar e o analista se dirigiu até a mesa da paciente e 
contou alguma de suas confidências dentro da análise na frente de suas amigas, 
o que a constrangia grandemente. Na sequência, a paciente colocava o analista 
contra a parede, constrangendo-o, e tenta beijá-lo, ao que o analista procura 
escapar, mas, ao final, cede ao beijo. 
Ela conta que, diante da impossibilidade da sessão, fez um recurso teórico 
e foi ler Freud, especificamente, seu texto sobre transferência amorosa e que 
entendeu o que estava acontecendo. Na sequência, conta que se sentiu 
constrangida pelo analista, acusando-o de abuso de poder por ter direcionado a 
interpretação a sua crise de riso diante do pedido de casamento, correlacionando 
a sua própria história com os homens, que ela havia contado em análise. Ela diz 
que não discordava da interpretação, mas que talvez ela não estivesse 
preparada para isso e que queria ter chegado a essa conclusão por conta 
própria, sem a construção do analista. 
TEMA 2 – LEMBRAR, REPETIR, PERLABORAR: O LEMBRAR 
Freud inicia o texto recontando sucintamente um pouco da história do 
desenvolvimento teórico/clínico da psicanálise: lembrando os tempos de hipnose 
até a técnica da interpretação, partindo da regra fundamental da psicanálise, a 
associação livre. Apesar da grandiosa diferença entre as duas modalidades 
clínicas, hipnose e interpretação, Freud salienta que um mesmo objetivo as une: 
“o preenchimento das lacunas da lembrança [Erinnerung], de forma dinâmica: a 
superação das resistências de recalque [Verdrängungswiderständ]” (Freud, p. 
152). 
Temos, então, um primeiro objetivo de uma análise, que, de alguma 
forma, também coincide com um primeiro tempo: o lembrar. Freud apresentará 
 
 
6 
diversas formas que o esquecer e o lembrar se mostram no decurso do trabalho 
clínico a partir da nova técnica. Ele diz que isso demandará do psicanalista um 
trabalho crítico e de muito cuidado, pois, diferentemente da hipnose, o lembrar 
agora se apresenta por uma via repleta de obstáculos. 
A primeira forma de impedimento em relação ao lembrar é elencada por 
Freud como uma forma de “bloqueio”, onde o paciente não relata nenhuma 
lembrança que de fato reconheça como vivência esquecida, apenas conteúdos 
que nunca havia perdido da memória, mas que não pensava a respeito. 
Como forma de um “lembrar-esquecer” pela via do bloqueio, Freud insere 
a rica ideia das “lembranças encobridoras”: 
O “esquecer” sofre uma nova limitação através do reconhecimento das 
lembranças encobridoras [Deckerinnerungen], geralmente presentes. 
Em alguns casos, tive a impressão de que a conhecida amnésia da 
infância, tão importante para nós do ponto de vista teórico, é totalmente 
compensada pelas lembranças encobridoras. Nelas, não apenas se 
perpetuou muito do essencial da vida da infância, mas sim tudo o que 
é essencial. Precisamos apenas saber delas extraí-lo através da 
análise. Elas representam os anos de infância esquecidos tão bem 
quanto o conteúdo manifesto do sonho representa os pensamentos do 
sonho. (Freud, p. 153) 
Outro tipo de conteúdo, dentro dessa díade lembrar-esquecer, também 
provenientes de vivências e impressões internas, parecem não impactar de 
forma relevante no percurso da análise. Freud diz que acontece de o paciente 
se “lembrar de algo que nunca poderiam ter sido esquecidas”, mas que a 
lembrança não se conecta com o trabalho que direciona a análise: “a convicção 
que o paciente adquire ao longo da análise é totalmente independente de tal 
lembrança” (Freud, p. 153). 
Há ainda uma intrigante forma de lembrar, apresentada por Freud em um 
parágrafo de maneira muito densa e complexa, e que Freud diz ser questões tão 
delicadas e estranhas, que ainda são incipientes para serem apresentadas de 
forma elucidativa. É um parágrafo que sua escrita versa sobre a negação, ou 
seja, ele vai escrevendo de forma a negar algo para dizer da coisa. 
Com o privilégio que temos de ler retroativamente, sabemos que nesse 
período (1914) Freud estava em intensas conversas com Sandor Ferenczi, autor 
que privilegia seus estudos em direção ao trauma e sua relação com a negação. 
Sabemos também que, quase dez anos depois de Lembrar, Repetir e Perlaborar, 
Freud escreve um texto curtíssimo, muito denso e central na história da 
psicanálise, chamado A Negação (1925). 
 
 
7 
Desta forma, ao ler o parágrafo, notando a natureza da negação em sua 
escrita, e nos situarmos historicamente, somos levados a crer que Freud está 
trabalhando as questões do trauma e sua relação com a díade esquecer-lembrar. 
Bom, o rastro deste parágrafo foi apresentado anteriormente: o contexto 
da época, o texto A Negação de Freud e os trabalhos de Ferenczi. Agora, 
podemos lê-lo: 
Para um tipo especial de vivências extremamente importantes, que 
fazem parte dos primórdios da infância e que à sua época foram vividas 
sem compreensão, mas que a posteriori [nachträglich] encontraram 
compreensão e interpretação, geralmente não se consegue evocar 
uma lembrança. Chegamos ao seu conhecimento através de sonhos e 
pelos motivos mais prementes da engrenagem da neurose somos 
forçados a acreditar nela, e também podemos nos convencer de que o 
analisando, após a superação de suas resistências, não utilizará a 
ausência da sensação de lembrança (sensação de familiaridade) 
contra a sua aceitação. Enfim, esse objeto requer tanto cuidado crítico 
e traz tanta coisa nova e estranha que eu me reservo o direito de tratá-
lo em separado a partir de material adequado. (Freud, p. 154) 
Por fim, e agora entramos no grosso deste trabalho e que nos interessa 
sobremaneira, Freud descreve um tipo muito específico de lembrança, a saber: 
“o analisando não se lembra de mais nada do que foi esquecido e recalcado, 
mas ele atua com aquilo. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, 
ele repete sem, obviamente, saber que o repete” (Freud, p. 154). 
TEMA 3 – LEMBRAR, REPETIR, PERLABORAR: O REPETIR 
Freud irá nos orientar que, comumente, um tratamento começa com a 
repetição e que ela se apresenta como “uma resistência a todo tipo de 
lembrança” (Freud, p. 155). É neste ponto que Freud é muito astuto em seu fazer 
teórico/clínico e eleva a atuação ao status de lembrança: “entendemos que esse 
é seu modo de lembrar” (Freud, p. 155). Isso o permite apontar um trabalho com 
a repetição, com o que o analisando atua a partir da relação transferencial, e 
contribui enormemente para a escuta psicanalítica. Mas, adentraremos na 
relação entre transferência e repetição mais adiante, quando formos trabalhar o 
texto a partir da vinheta clínica. 
Agora, nos interessa seguir a pergunta freudiana: se o paciente repete, 
atua, como resistência ao lembrar e, ao mesmo tempo, a partir da relação 
transferencial, é assim que ele é capaz de dar a ver suas lembranças, Freud se 
pergunta: O que o paciente repete, atua? 
 
 
 
8 
Ouvimos, então, que o analisando repete em vez de lembrar, ele repete 
sob as condições da resistência; agora podemos perguntar o que, de 
fato, ele repete ou atua. A resposta diz que ele repete tudo que já se 
impôs a partir das fontes do seu recalcado em sua essência evidente, 
suas inibições e posições inviáveis, seus traços de caráter patológicos. 
Pois ele também repete todos os seus sintomas durante o tratamento. 
E agora podemos perceber que com o destaque da compulsão para a 
repetição [Zwang zur Wiederholung] não ganhamos um fato novo, mas 
apenas uma concepção mais coesa. Então chegamos à conclusão de 
que o estar doente do analisando não pode terminar com o início da 
sua análise, de que devemos tratar a sua doença não como um 
assunto histórico, mas como uma potência atual. Peça por peça desse 
estar doente será colocada agora no horizonte e no raio de influência 
do tratamento, e enquanto o paciente vivenciar isso como algo real e 
atual, entramos com o trabalhoterapêutico, que em boa parte consiste 
na recondução ao passado. (Freud, p. 156) 
Nesta altura do texto, vemos um Freud muito cauteloso com o potencial 
que o fazer repetir sob as condições da transferência tem para a vida do 
paciente. Entra aqui toda uma nítida, e frequente, piora que, muitas vezes, 
ocasiona a interrupção do tratamento. Freud orienta que é possível comunicar 
ao paciente que são pioras necessárias para a continuidade do tratamento. 
Inclusive, mesmo diante de lembranças pela via da fala, é comum pacientes 
relatarem experiências de tristeza. Isso se deve, largamente, ao fato de que, por 
conta do tratamento, o paciente entra em contato com uma parcela muito 
dolorida de sua história. 
No caso da lembrança pela via da repetição, Freud diz que “perigos 
surgem pelo fato de que, no decurso do tratamento, moções pulsionais novas, 
mais profundas, que ainda não tinham se imposto, podem chegar à repetição”. 
E que as ações do paciente, via de regra, extrapolam a relação transferencial e 
podem trazer danos à sua vida de forma geral, para além da relação com o 
analista (Freud, p. 158). 
Então, cabe-nos perguntar como fica o manejo clínico nessas situações? 
A tática a ser adotada pelo médico nessa situação é facilmente 
justificável. Para ele, o objetivo continua sendo o lembrar à moda 
antiga, o reproduzir em âmbito psíquico, objetivo ao qual ele se atém, 
mesmo sabendo que com a nova técnica ele não poderá ser 
alcançado. Ele se prepara para uma luta constante com o paciente, 
para represar todos os impulsos no âmbito psíquico que ele quer levar 
ao âmbito motor, comemorando como um triunfo do tratamento a 
resolução de algo através do trabalho de lembrar, que o paciente quer 
descarregar através de uma ação. Quando o vínculo se tornou útil de 
alguma forma através da transferência, o tratamento conseguirá 
impedir o paciente de realizar todas as ações de repetição 
significativas, utilizando essa intenção in statu nascendi como material 
para o trabalho terapêutico. A melhor forma de proteger o paciente dos 
danos que decorreriam da execução de seus impulsos é quando 
acertamos com ele o compromisso de não tomar nenhuma decisão 
importante na vida enquanto durar o tratamento, por exemplo, que ele 
 
 
9 
não escolha nenhuma profissão, nenhum objeto definitivo de amor, 
mas que para todos esses propósitos ele espere o momento da cura 
[Genesung]. (Freud, p. 158-159) 
 É óbvio que devemos nos questionar quanto à orientação freudiana, dado 
as diferenças significativas de contexto, época, demandas e formas de condução 
de uma análise: é possível, hoje, recomendar ao paciente que não tome 
nenhuma decisão importante em sua vida enquanto o momento da cura não 
chega? Essa questão, certamente, abre um grande leque de debate que não 
cabe e nem é nosso objetivo desta etapa, mas, isso, sim, serve-nos manter a 
pergunta. 
TEMA 4 – LEMBRAR, REPETIR E PERLABORAR: A RELAÇÃO 
TRANSFERENCIAL 
“Mas o principal recurso para conter a compulsão à repetição no paciente 
e reconfigurá-la num motivo para a lembrança encontra-se no manejo da 
transferência” (Freud, p. 160). E, com isso, podemos retomar a vinheta clínica à 
luz da astúcia e coragem freudiana, a partir da criação da noção de neurose de 
transferência. 
Se partirmos da demanda inicial que a paciente faz à análise, mesmo 
antes das queixas, de que o analista seja homem, já é possível ir localizando por 
onde passa a relação transferencial. Contudo, é importante dizer que, nas 
primeiras sessões, a paciente não apresenta nenhum tipo de resistência ao 
tratamento, ela fala com facilidade e narra os impasses da sua relação atual, 
imaginando os outros homens com quem ela poderia se encontrar caso seu 
namoro acabasse. 
Junto dessas imaginações, ela inclui o analista nesse grupo de homens 
que poderia se relacionar, quando propõe que a sessão aconteça em um bar e 
não na clínica. Quanto a isso, a paciente já havia sido indagada, anteriormente, 
sobre o que era um homem, na tentativa de dialetização dessas posições 
sexuadas homem/mulher. Ao que ela responde que homens são aqueles que 
têm poder e os qualifica em dois grupos: os que ela poderia se relacionar e os 
possíveis agressores/abusadores. 
Nesse sentido, temos mais um componente para se pensar a relação 
transferencial: para a paciente o analista é um homem e do grupo que ela poderia 
se relacionar. É importante localizar a construção da transferência para 
 
 
10 
compreendermos de onde a paciente fala para o analista, ou melhor, neste caso, 
de onde ela atua. 
Neste instante do trabalho, o analista talvez tenha cometido um equívoco. 
Diante do convite para ir ao bar, obviamente, a paciente ainda demonstrava 
precisar se manter na poltrona, mantendo contato visual. A indicação ao divã 
surgiu previamente a esse convite, mesmo que na mesma sessão, e se mostrava 
indicada por conta da paciente estar se cercando da sua posição sintomática. E, 
como resposta ao convite ao divã – e aqui, é bom dizer, ela já havia 
experimentado o divã em sua análise anterior – a paciente passa a atuar: temos 
a primeira constatação quando do convite para ir ao bar. 
Nas sessões seguintes, como narrado na vinheta, essa situação se 
exacerba: ela se deita e a fala não se enreda e não progride. Talvez, partindo de 
como ela se localizava na relação transferencial, a resistência sempre estivesse 
por perto e, por isso, o convite ao divã possa ter sido um equívoco, apressado. 
Mas, ainda assim, podemos fazer a pergunta: Por que a passagem ao divã 
trouxe como resposta resistências ao tratamento? Vejamos essa passagem do 
Freud: 
É claro que nos interessa em primeira linha a relação dessa obsessão 
da repetição com a transferência e com a resistência. Logo 
percebemos que a resistência, ela própria, é apenas uma parcela de 
repetição, e que a repetição é a transferência do passado esquecido 
não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos 
da situação presente. Portanto, precisamos estar preparados para o 
fato de que o analisando se entrega à obsessão da repetição, que 
agora substitui o impulso para a lembrança, não apenas na relação 
pessoal com o médico, mas também em todas as outras atividades e 
relações simultâneas da sua vida, por exemplo, quando durante um 
tratamento [Kur] ele escolhe um objeto de amor, assume uma tarefa, 
inicia uma empreitada. Também a parte da resistência é fácil de 
reconhecer. Quanto maior for a resistência, de forma mais frequente o 
lembrar será substituído pelo atuar [agieren] (repetir). Isso pois o 
lembrar ideal do esquecido durante a hipnose corresponde a um 
estado em que a resistência é totalmente posta de lado. Se o 
tratamento começar sob os auspícios de uma transferência suave e 
positiva, sem que o seja de forma expressa, ele inicialmente permite 
um aprofundamento na lembrança, como na hipnose, enquanto até 
mesmo os sintomas da doença se calam; mas se no decorrer do 
tratamento essa transferência se tornar hostil ou excessivamente forte 
e, por isso, passível de recalque, imediatamente o lembrar dá lugar ao 
atuar. A partir daí, então, são as resistências que irão definir a 
sequência daquilo a ser repetido. É no arsenal do passado que o 
doente busca as armas com as quais se defende da continuidade do 
tratamento e que precisamos tirar dele peça por peça. (Freud, p.155-
56) 
 Bom, então, a resistência é uma parcela da repetição. As atuações da 
paciente dentro do tratamento passaram a ser uma tentativa de constranger o 
 
 
11 
analista: desde desdenhar dos quadros pendurados, dizendo ser feios e não 
parecerem ter sido escolhidos pelo analista, desqualificar as plantas 
permanentes, dizendo ser um horror e não entender como alguém opta por elas 
em vez das plantas vivas, até tentar sondar a posição política do analista. 
É importante dizer que as sessões não ficavam inteiramente sob o regime 
das atuações, em muitos momentos, a paciente se punha a falare a sessão 
prosseguia, mas era nítido que ela precisava enfrentar uma batalha para isso. 
 Após supervisionar o caso, o analista toma uma decisão: solicitar que a 
paciente retorne à poltrona. Ela questiona o porquê, ao que o analista responde 
que, de alguma forma, ela havia o solicitado. A paciente demonstra certo alívio 
em se sentar e as sessões começam a se desenvolver um pouco mais. É justo 
nesse momento que as conversas sobre se casar com o namorado aparecem 
em sessão. E, na ocasião da sessão em que ela narra o sonho que teve com o 
analista, ela também diz que ter saído do divã deu a sensação de estar 
regredindo na análise, mesmo concordando que havia um pedido da parte dela 
para sentar. 
 Dessa forma, temos que, mesmo retornando à poltrona, com alívio, as 
atuações perduraram. Às vezes de forma mais intensa e, em outras sessões, 
não, dando espaço à fala e ao lembrar via “âmbito psíquico” (p.158). 
 Dado um manejo clínico delicado, como neste caso, podemos agora 
retornar a astúcia freudiana, não perdendo de vista que o atuar/repetir é uma 
forma de lembrar. Neste caso em específico, a partir do manejo, a paciente foi 
sendo capaz de se perceber nas atuações e relacioná-las com acontecimentos 
do passado, construindo assim sua história. Dessa forma, a orientação freudiana 
é de que os psicanalistas não devem retroceder diante desses casos, mas, pelo 
contrário, incitar a repetição a partir da relação transferencial. Lê-se: 
Tornamos a compulsão inócua, até mesmo útil, na medida em que lhe 
damos o direito de se esbaldar em uma determinada área. Abrimos a 
transferência para ela como sendo um parque de diversões, onde ela 
tem autorização para se desenvolver com liberdade quase total e é 
instada a nos mostrar tudo que ficou escondido em termos de pulsões 
patológicas na vida anímica do paciente. Se o paciente pelo menos 
tiver uma postura colaborativa, na medida em que respeita as 
condições de existência do tratamento, geralmente conseguiremos dar 
a todos os sintomas da doença um novo significado de transferência, 
substituindo a sua neurose comum por uma neurose de transferência, 
da qual ele pode ser curado pelo trabalho terapêutico. A transferência 
cria, assim, uma zona intermediária entre a doença e a vida, onde se 
dá a transição da primeira para a segunda. O novo estado assumiu 
todas as características da doença, mas representa uma doença 
artificial, na qual podemos intervir em todo lugar. Ao mesmo tempo, é 
 
 
12 
um pedaço da vivência real, mas que é tornada possível através de 
condições especialmente favoráveis e que tem a natureza de algo 
provisório. Partindo das reações de repetição que se mostram na 
transferência, os caminhos já conhecidos levam ao despertar das 
lembranças que se instalam quase que sem esforço após a superação 
das resistências. (Freud, p. 160) 
TEMA 5 – LEMBRAR, REPETIR, REPETIR, REPETIR... E PERLABORAR: O 
PERLABORAR 
Nosso percurso nos leva até o último pedaço do título tripartite do texto: o 
perlaborar. Freud reserva a essa parte os dois últimos parágrafos do trabalho. 
Mesmo sendo apenas dois, eles são de suma importância. 
O fator primordial, no que diz respeito ao perlaborar, é o tempo. Freud 
será muito claro, salientando que o trabalho analítico não se finda à nomeação 
da resistência que se apresenta pela via da atuação, mesmo que isso seja 
fundamental. Mas que, dada a nomeação, o analisando precisará de tempo para 
atravessá-la, para perlaborar. Daí que a comunidade psicanalítica, e isso é muito 
nítido na clínica, dá um status maior ao repetir: o repetir se repete, por assim 
dizer. E muitos brincam que o título do texto poderia ser Lembrar, Repetir, 
Repetir, Repetir… e Perlaborar. Vejamos o texto freudiano: 
a nomeação da resistência não pode ter como consequência o seu fim 
imediato. Precisamos dar tempo ao paciente, para que ele se 
aprofunde na resistência que até então lhe era desconhecida, para 
perlaborá-la, superá-la, na medida em que ele, a ela resistindo, 
continua o trabalho de acordo com a regra analítica fundamental. Só 
no ponto mais alto desse trabalho é que, em conjunto com o 
analisando, iremos descobrir as moções pulsionais recalcadas, que 
alimentam as resistências e de cuja existência e poder o paciente se 
convencerá através dessa vivência. O médico não tem mais nada a 
fazer aí senão esperar e aceitar um percurso que não pode ser evitado 
e que também nem sempre pode ser acelerado. Se ele se ativer a essa 
percepção, ele muitas vezes poupará a ilusão de ter fracassado, 
apesar de ter seguido o tratamento na linha correta. (Freud, p. 161) 
 Se retornarmos ao caso, o processo de elaboração fica bastante evidente 
quando, mesmo já sendo capaz de rastrear em sua história a construção de uma 
forma de lidar com os homens, a paciente permanece atuando diante do analista. 
Digamos assim, a travessia ainda está em andamento: o perlaborar. O trabalho 
de análise segue e, por muitas vezes, Freud dirá que a demanda por paciência 
aos psicanalistas é difícil. Dada a recorrência da repetição e a atuação diante do 
tempo, Freud aponta que o perlaborar é a “parte do trabalho que terá a influência 
mais transformadora no paciente e que diferencia o tratamento analítico de todo 
influenciamento por sugestão [Suggestionsbeeinflussung]” (Freud, p. 161). 
 
 
13 
NA PRÁTICA 
 Estar envolvido em uma relação transferencial e se emprestar como 
objeto através da posição de analista, por vezes, não é tarefa fácil. 
 O manejo de um caso requer um grande trabalho ao psicanalista: de 
escuta, obviamente, mas também de estudo e de falar-se em análise. Isto 
porque, para se emprestar a uma relação transferencial, é preciso ter se 
escutado em uma análise. Caso contrário, corre-se o risco (mais riscos, na 
verdade) de ouvir a si e não ao paciente. 
Por exemplo, dada a vinheta clínica, após o sonho da paciente com o 
analista, ela narra que vasculhou nas redes sociais a vida do analista e tirou suas 
conclusões. Quais? Como é para o analista ser visto pelo paciente? Esta 
pergunta vale para as redes sociais, mas também para os possíveis encontros 
presenciais entre analisante e analista fora do espaço clínico. Como é ser 
posicionado com determinado gênero para que o paciente possa falar de sua 
sexuação e de suas vivências sexuais? Enfim, perguntas que incidem sobre a 
Pessoa analista. 
Ainda, acredito que também tenha ficado evidente a importância de uma 
supervisão: neste caso, para além de pensar os manejos, o de compreender 
onde a paciente posicionou o analista para poder falar/atuar e como, a partir daí, 
manejar adequadamente. 
Por fim, podemos ficar com uma pergunta que parece ser umas das 
grandes sacadas freudianas nesse texto: Como é ser envolvido em determinada 
relação transferencial? 
FINALIZANDO 
 Com esta etapa, tivemos um importante momento de nossa formação em 
psicanálise. O trabalho freudiano em Lembrar, Repetir e Perlaborar, funciona 
quase como uma sintetização do que se passa em um tratamento analítico e nos 
traz, com grande generosidade, muitos fundamentos e ferramentas para nosso 
trabalho clínico até hoje. 
 Além disso, o texto é uma pérola para o pensamento psicanalítico, 
impactando seus percursos até o momento presente. Sendo assim, ele não pode 
deixar de ser lido e relido dentro de qualquer formação em psicanálise. 
 
 
14 
 Objetivou-se, mais do que nos aproximar do texto, lê-lo de forma prática, 
demonstrando como a clínica ainda reaviva a pena freudiana e, por fim, trazer 
dentro de uma formação com conteúdo teórico denso, um pouco do fazer e viver 
de um psicanalista. 
 
 
 
15 
REFERÊNCIAS 
FREUD, S. Lembrar, Repetir e Perlaborar (1914). In: OBRAS Incompletas de 
Sigmund Freud: Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Autêntica Editora: 2019.

Mais conteúdos dessa disciplina