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ANÁLISE DE CASOS CLÍNICOS AULA 3 Prof. Renato Staevie Baduy 2 CONVERSA INICIAL Nesta etapa, daremos continuidade ao nosso mergulho nos escritos freudianos sobre a técnica. Até aqui, traçamos um debate a partir de dois textos de Freud, um de 1913, de forma a se pensar sobre o início do tratamento e o que ocorre ali, para que uma análise em direção à cura seja viável; e, o outro, de 1937, para nos aproximarmos do que acontece no “meio”, a partir de uma nova técnica sistematizada por Freud, a qual ele nomeou de construção em análise. Permaneceremos no “meio”, de forma mais contundente. Porém, para tanto, nos debruçaremos sobre o texto que, talvez, seja o mais famoso e lido de seus escritos sobre a técnica: Lembrar, Repetir e Perlaborar. Este texto foi escrito e publicado em 1914, ao mesmo tempo em que eclodia a Primeira Guerra Mundial e, também, coincide com um momento muito importante e definidor dos rumos do campo psicanalítico: discordâncias entre Adler e Jung e a renúncia de Jung da presidência da Associação Psicanalítica Internacional. Igualmente importante para a construção deste texto, trata-se do esforço freudiano de pensar a clínica. Conjectura-se que este trabalho é motivado por um impasse técnico e teórico de que Freud vivenciava a partir da escuta e da condução do caso do “Homem dos Lobos”. Inclusive, conjuntamente ao término de sua escrita desse texto e da eclosão da Segunda Guerra, especificamente, essa análise foi interrompida. Nada mais apropriado, desta forma, do que iniciarmos esta etapa partindo de uma vinheta clínica para pensarmos o que Freud forjou neste texto. Na sequência, iremos nos deter, de forma sucinta, ao grosso do texto, extraindo o que de mais importante encontramos ali. Por fim, retornaremos ao caso apresentado na vinheta clínica à luz da teoria freudiana de Lembrar, Repetir e Perlaborar. É digno de nota, também, que este texto é de extrema importância e impacto para história da psicanálise. Para o pensamento lacaniano, por exemplo, a ideia de atuação extraída a partir desse escrito freudiano é central em seu Seminário X, a Angústia, na formulação do quadro da angústia, o que abre todo um campo para se pensar a clínica dos atos. Ainda, no Seminário XI, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, a Repetição ganha o estatuto de um dos conceitos fundamentais para que haja psicanálise. Sendo assim, 3 adentramos em um trabalho célebre de Freud para pensarmos um caso clínico. Vamos lá? TEMA 1 – VINHETA CLÍNICA A paciente procurou a clínica, via plano de saúde, solicitando ser atendida por um psicanalista do gênero masculino. Ela já vinha de uma experiência anterior de análise, desta vez, junto a uma psicanalista do gênero feminino, que chegou ao fim após a antiga analista interromper o trabalho por ter parido um bebê. Logo na primeira sessão, ela já conta que estava à procura de um analista homem, por achar que seria importante para ela lidar com a relação que tem com os homens e também elaborar a morte do pai, que havia falecido há cerca de 3 anos. Neste primeiro momento, a paciente direciona muito as sessões para seu relacionamento amoroso, na época, em andamento há 7 anos. Conta de suas insatisfações na convivência diária de quem mora junto, como a falta de reciprocidade na distribuição dos afazeres; de suas insatisfações sexuais; de falhas de comunicação; de como ela sempre precisa protagonizar as ações, desde a limpeza da casa até a escolha de uma comida para pedir via ifood e, ao mesmo tempo, de como não encontra apoio no namorado para seus anseios profissionais; conjuntamente, vai demonstrando suas idealizações com outros homens, homens do passado, que não passaram de um flerte. No mesmo sentido, ainda neste momento inicial, a paciente amplia sua gama de queixas, por assim dizer, demonstrando suas insatisfações em planos distintos: profissionais, familiares e afetivos. A paciente vai se localizando na dinâmica familiar, onde é a filha caçula, de irmãos com uma distância de 15 anos de idade, isto é, a irmã mais próxima tem 15 anos a mais que ela e, o irmão, 17. Relata que, no momento de seu nascimento e no período de sua primeira infância, o irmão vinha atravessando problemas com drogas, e os irmãos brigavam muito, o que demandava a atenção dos pais. Assim, ela vai narrando cenas onde retira a constatação de solidão, de não ter voz, de ter que ser muito responsável desde cedo, de ter que lidar sozinha com as questões dela e, ao mesmo tempo, não “dar trabalho” aos pais. É neste momento que ela narra as violências sexuais que sofreu na infância e adolescência e de não ter encontrado espaço para contar aos familiares, o que gerava sensações de ser “menos mulher” do que as mulheres 4 da família. Ela relembra, também, da época em que seus seios começaram a crescer e aparecer, quando ganha de aniversário, com muito constrangimento, de um tio, seu primeiro sutiã. Daí, ela associa uma certa posição que assumiu diante dos homens: constranger antes de ser constrangida. E começa a dizer como não se envolvia sexualmente com os homens quando eles a procuravam, adotando, nestas situações, uma atitude de chacota e piadista, precisando, com isso, ser ela quem tome a iniciativa. Aqui é importante dizer das atitudes da paciente frente ao analista. Ela sempre chegava às sessões fazendo uma piada ou um pequeno comentário: sobre a cor do tapete, sobre o tamanho da poltrona, sobre como a porta foi aberta, sobre o quadro pendurado na parede, sobre as plantas. Ainda nos instantes iniciais, quando foi feito o convite para a paciente se deitar no divã, a paciente retorna com outro convite, dizendo que seria legal se a sessão tivesse ocorrido num bar. Por ocasião, as sessões ocorriam às sextas à noite. Quando a paciente se deita no divã, começa a demonstrar grande desconforto, tentando por diversas vezes retomar contato visual, virando seu pescoço para trás e, inclusive, em certa sessão, se senta para contar determinada situação. As suas associações empobrecem demasiadamente e as piadas e comentários sobre a sala aumentam exponencialmente. Desta forma, o analista pede que a paciente retorne à poltrona. Algo importante se passa em sua vida nesse período: seu namorado começa a puxar o papo de casamento, indagando se ela aceitaria se ele pedisse, ao que ela responde que sim, que não negaria, mas que não achava ser a hora. Ele conta para ela que queria pedir no dia do seu aniversário, onde haveria uma festa e eles receberiam os amigos e familiares. Sua resposta é para que ele espere até que eles possam se acertar antes. Na sessão seguinte à festa, a paciente conta que o namorado fez o pedido de casamento na frente de todo mundo e que sua reação foi uma crise de riso, que ela mal conseguiu responder, apenas quando foi convocada pelo entorno a dizer sim ou não. Sua resposta foi sim e, na sequência, diz ter corrido para o seu quarto e se deitado na cama em posição fetal, sem conseguir parar de rir. Isso a remeteu aos abusos que sofreu na infância, onde ela se sentia sem saída, contra a parede, porque o namorado havia feito algo que ela pediu para não fazer, mas, ainda assim, ela só poderia aceitar. Ainda nessa sessão, ela é capaz de associar que sua crise de riso, muito angustiante por sinal, tinha 5 relação com se sentir constrangida e, pelo contrário, não estar na posição de constranger. Alguns dias após a sessão, a paciente procura o analista para uma sessão extra, onde ela narra certa urgência. Contudo, ambos não conseguem acertar um horário em comum de forma presencial, apenas online, mas a paciente nega, solicitando que seja presencial e que, nesse caso, preferia esperar até a data de sua sessão. Na sessão seguinte, a paciente vem e narra um sonho que teve com o analista que a angustioumuito e, por isso, havia solicitado uma sessão extra. Os dois se encontravam em um bar e o analista se dirigiu até a mesa da paciente e contou alguma de suas confidências dentro da análise na frente de suas amigas, o que a constrangia grandemente. Na sequência, a paciente colocava o analista contra a parede, constrangendo-o, e tenta beijá-lo, ao que o analista procura escapar, mas, ao final, cede ao beijo. Ela conta que, diante da impossibilidade da sessão, fez um recurso teórico e foi ler Freud, especificamente, seu texto sobre transferência amorosa e que entendeu o que estava acontecendo. Na sequência, conta que se sentiu constrangida pelo analista, acusando-o de abuso de poder por ter direcionado a interpretação a sua crise de riso diante do pedido de casamento, correlacionando a sua própria história com os homens, que ela havia contado em análise. Ela diz que não discordava da interpretação, mas que talvez ela não estivesse preparada para isso e que queria ter chegado a essa conclusão por conta própria, sem a construção do analista. TEMA 2 – LEMBRAR, REPETIR, PERLABORAR: O LEMBRAR Freud inicia o texto recontando sucintamente um pouco da história do desenvolvimento teórico/clínico da psicanálise: lembrando os tempos de hipnose até a técnica da interpretação, partindo da regra fundamental da psicanálise, a associação livre. Apesar da grandiosa diferença entre as duas modalidades clínicas, hipnose e interpretação, Freud salienta que um mesmo objetivo as une: “o preenchimento das lacunas da lembrança [Erinnerung], de forma dinâmica: a superação das resistências de recalque [Verdrängungswiderständ]” (Freud, p. 152). Temos, então, um primeiro objetivo de uma análise, que, de alguma forma, também coincide com um primeiro tempo: o lembrar. Freud apresentará 6 diversas formas que o esquecer e o lembrar se mostram no decurso do trabalho clínico a partir da nova técnica. Ele diz que isso demandará do psicanalista um trabalho crítico e de muito cuidado, pois, diferentemente da hipnose, o lembrar agora se apresenta por uma via repleta de obstáculos. A primeira forma de impedimento em relação ao lembrar é elencada por Freud como uma forma de “bloqueio”, onde o paciente não relata nenhuma lembrança que de fato reconheça como vivência esquecida, apenas conteúdos que nunca havia perdido da memória, mas que não pensava a respeito. Como forma de um “lembrar-esquecer” pela via do bloqueio, Freud insere a rica ideia das “lembranças encobridoras”: O “esquecer” sofre uma nova limitação através do reconhecimento das lembranças encobridoras [Deckerinnerungen], geralmente presentes. Em alguns casos, tive a impressão de que a conhecida amnésia da infância, tão importante para nós do ponto de vista teórico, é totalmente compensada pelas lembranças encobridoras. Nelas, não apenas se perpetuou muito do essencial da vida da infância, mas sim tudo o que é essencial. Precisamos apenas saber delas extraí-lo através da análise. Elas representam os anos de infância esquecidos tão bem quanto o conteúdo manifesto do sonho representa os pensamentos do sonho. (Freud, p. 153) Outro tipo de conteúdo, dentro dessa díade lembrar-esquecer, também provenientes de vivências e impressões internas, parecem não impactar de forma relevante no percurso da análise. Freud diz que acontece de o paciente se “lembrar de algo que nunca poderiam ter sido esquecidas”, mas que a lembrança não se conecta com o trabalho que direciona a análise: “a convicção que o paciente adquire ao longo da análise é totalmente independente de tal lembrança” (Freud, p. 153). Há ainda uma intrigante forma de lembrar, apresentada por Freud em um parágrafo de maneira muito densa e complexa, e que Freud diz ser questões tão delicadas e estranhas, que ainda são incipientes para serem apresentadas de forma elucidativa. É um parágrafo que sua escrita versa sobre a negação, ou seja, ele vai escrevendo de forma a negar algo para dizer da coisa. Com o privilégio que temos de ler retroativamente, sabemos que nesse período (1914) Freud estava em intensas conversas com Sandor Ferenczi, autor que privilegia seus estudos em direção ao trauma e sua relação com a negação. Sabemos também que, quase dez anos depois de Lembrar, Repetir e Perlaborar, Freud escreve um texto curtíssimo, muito denso e central na história da psicanálise, chamado A Negação (1925). 7 Desta forma, ao ler o parágrafo, notando a natureza da negação em sua escrita, e nos situarmos historicamente, somos levados a crer que Freud está trabalhando as questões do trauma e sua relação com a díade esquecer-lembrar. Bom, o rastro deste parágrafo foi apresentado anteriormente: o contexto da época, o texto A Negação de Freud e os trabalhos de Ferenczi. Agora, podemos lê-lo: Para um tipo especial de vivências extremamente importantes, que fazem parte dos primórdios da infância e que à sua época foram vividas sem compreensão, mas que a posteriori [nachträglich] encontraram compreensão e interpretação, geralmente não se consegue evocar uma lembrança. Chegamos ao seu conhecimento através de sonhos e pelos motivos mais prementes da engrenagem da neurose somos forçados a acreditar nela, e também podemos nos convencer de que o analisando, após a superação de suas resistências, não utilizará a ausência da sensação de lembrança (sensação de familiaridade) contra a sua aceitação. Enfim, esse objeto requer tanto cuidado crítico e traz tanta coisa nova e estranha que eu me reservo o direito de tratá- lo em separado a partir de material adequado. (Freud, p. 154) Por fim, e agora entramos no grosso deste trabalho e que nos interessa sobremaneira, Freud descreve um tipo muito específico de lembrança, a saber: “o analisando não se lembra de mais nada do que foi esquecido e recalcado, mas ele atua com aquilo. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele repete sem, obviamente, saber que o repete” (Freud, p. 154). TEMA 3 – LEMBRAR, REPETIR, PERLABORAR: O REPETIR Freud irá nos orientar que, comumente, um tratamento começa com a repetição e que ela se apresenta como “uma resistência a todo tipo de lembrança” (Freud, p. 155). É neste ponto que Freud é muito astuto em seu fazer teórico/clínico e eleva a atuação ao status de lembrança: “entendemos que esse é seu modo de lembrar” (Freud, p. 155). Isso o permite apontar um trabalho com a repetição, com o que o analisando atua a partir da relação transferencial, e contribui enormemente para a escuta psicanalítica. Mas, adentraremos na relação entre transferência e repetição mais adiante, quando formos trabalhar o texto a partir da vinheta clínica. Agora, nos interessa seguir a pergunta freudiana: se o paciente repete, atua, como resistência ao lembrar e, ao mesmo tempo, a partir da relação transferencial, é assim que ele é capaz de dar a ver suas lembranças, Freud se pergunta: O que o paciente repete, atua? 8 Ouvimos, então, que o analisando repete em vez de lembrar, ele repete sob as condições da resistência; agora podemos perguntar o que, de fato, ele repete ou atua. A resposta diz que ele repete tudo que já se impôs a partir das fontes do seu recalcado em sua essência evidente, suas inibições e posições inviáveis, seus traços de caráter patológicos. Pois ele também repete todos os seus sintomas durante o tratamento. E agora podemos perceber que com o destaque da compulsão para a repetição [Zwang zur Wiederholung] não ganhamos um fato novo, mas apenas uma concepção mais coesa. Então chegamos à conclusão de que o estar doente do analisando não pode terminar com o início da sua análise, de que devemos tratar a sua doença não como um assunto histórico, mas como uma potência atual. Peça por peça desse estar doente será colocada agora no horizonte e no raio de influência do tratamento, e enquanto o paciente vivenciar isso como algo real e atual, entramos com o trabalhoterapêutico, que em boa parte consiste na recondução ao passado. (Freud, p. 156) Nesta altura do texto, vemos um Freud muito cauteloso com o potencial que o fazer repetir sob as condições da transferência tem para a vida do paciente. Entra aqui toda uma nítida, e frequente, piora que, muitas vezes, ocasiona a interrupção do tratamento. Freud orienta que é possível comunicar ao paciente que são pioras necessárias para a continuidade do tratamento. Inclusive, mesmo diante de lembranças pela via da fala, é comum pacientes relatarem experiências de tristeza. Isso se deve, largamente, ao fato de que, por conta do tratamento, o paciente entra em contato com uma parcela muito dolorida de sua história. No caso da lembrança pela via da repetição, Freud diz que “perigos surgem pelo fato de que, no decurso do tratamento, moções pulsionais novas, mais profundas, que ainda não tinham se imposto, podem chegar à repetição”. E que as ações do paciente, via de regra, extrapolam a relação transferencial e podem trazer danos à sua vida de forma geral, para além da relação com o analista (Freud, p. 158). Então, cabe-nos perguntar como fica o manejo clínico nessas situações? A tática a ser adotada pelo médico nessa situação é facilmente justificável. Para ele, o objetivo continua sendo o lembrar à moda antiga, o reproduzir em âmbito psíquico, objetivo ao qual ele se atém, mesmo sabendo que com a nova técnica ele não poderá ser alcançado. Ele se prepara para uma luta constante com o paciente, para represar todos os impulsos no âmbito psíquico que ele quer levar ao âmbito motor, comemorando como um triunfo do tratamento a resolução de algo através do trabalho de lembrar, que o paciente quer descarregar através de uma ação. Quando o vínculo se tornou útil de alguma forma através da transferência, o tratamento conseguirá impedir o paciente de realizar todas as ações de repetição significativas, utilizando essa intenção in statu nascendi como material para o trabalho terapêutico. A melhor forma de proteger o paciente dos danos que decorreriam da execução de seus impulsos é quando acertamos com ele o compromisso de não tomar nenhuma decisão importante na vida enquanto durar o tratamento, por exemplo, que ele 9 não escolha nenhuma profissão, nenhum objeto definitivo de amor, mas que para todos esses propósitos ele espere o momento da cura [Genesung]. (Freud, p. 158-159) É óbvio que devemos nos questionar quanto à orientação freudiana, dado as diferenças significativas de contexto, época, demandas e formas de condução de uma análise: é possível, hoje, recomendar ao paciente que não tome nenhuma decisão importante em sua vida enquanto o momento da cura não chega? Essa questão, certamente, abre um grande leque de debate que não cabe e nem é nosso objetivo desta etapa, mas, isso, sim, serve-nos manter a pergunta. TEMA 4 – LEMBRAR, REPETIR E PERLABORAR: A RELAÇÃO TRANSFERENCIAL “Mas o principal recurso para conter a compulsão à repetição no paciente e reconfigurá-la num motivo para a lembrança encontra-se no manejo da transferência” (Freud, p. 160). E, com isso, podemos retomar a vinheta clínica à luz da astúcia e coragem freudiana, a partir da criação da noção de neurose de transferência. Se partirmos da demanda inicial que a paciente faz à análise, mesmo antes das queixas, de que o analista seja homem, já é possível ir localizando por onde passa a relação transferencial. Contudo, é importante dizer que, nas primeiras sessões, a paciente não apresenta nenhum tipo de resistência ao tratamento, ela fala com facilidade e narra os impasses da sua relação atual, imaginando os outros homens com quem ela poderia se encontrar caso seu namoro acabasse. Junto dessas imaginações, ela inclui o analista nesse grupo de homens que poderia se relacionar, quando propõe que a sessão aconteça em um bar e não na clínica. Quanto a isso, a paciente já havia sido indagada, anteriormente, sobre o que era um homem, na tentativa de dialetização dessas posições sexuadas homem/mulher. Ao que ela responde que homens são aqueles que têm poder e os qualifica em dois grupos: os que ela poderia se relacionar e os possíveis agressores/abusadores. Nesse sentido, temos mais um componente para se pensar a relação transferencial: para a paciente o analista é um homem e do grupo que ela poderia se relacionar. É importante localizar a construção da transferência para 10 compreendermos de onde a paciente fala para o analista, ou melhor, neste caso, de onde ela atua. Neste instante do trabalho, o analista talvez tenha cometido um equívoco. Diante do convite para ir ao bar, obviamente, a paciente ainda demonstrava precisar se manter na poltrona, mantendo contato visual. A indicação ao divã surgiu previamente a esse convite, mesmo que na mesma sessão, e se mostrava indicada por conta da paciente estar se cercando da sua posição sintomática. E, como resposta ao convite ao divã – e aqui, é bom dizer, ela já havia experimentado o divã em sua análise anterior – a paciente passa a atuar: temos a primeira constatação quando do convite para ir ao bar. Nas sessões seguintes, como narrado na vinheta, essa situação se exacerba: ela se deita e a fala não se enreda e não progride. Talvez, partindo de como ela se localizava na relação transferencial, a resistência sempre estivesse por perto e, por isso, o convite ao divã possa ter sido um equívoco, apressado. Mas, ainda assim, podemos fazer a pergunta: Por que a passagem ao divã trouxe como resposta resistências ao tratamento? Vejamos essa passagem do Freud: É claro que nos interessa em primeira linha a relação dessa obsessão da repetição com a transferência e com a resistência. Logo percebemos que a resistência, ela própria, é apenas uma parcela de repetição, e que a repetição é a transferência do passado esquecido não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação presente. Portanto, precisamos estar preparados para o fato de que o analisando se entrega à obsessão da repetição, que agora substitui o impulso para a lembrança, não apenas na relação pessoal com o médico, mas também em todas as outras atividades e relações simultâneas da sua vida, por exemplo, quando durante um tratamento [Kur] ele escolhe um objeto de amor, assume uma tarefa, inicia uma empreitada. Também a parte da resistência é fácil de reconhecer. Quanto maior for a resistência, de forma mais frequente o lembrar será substituído pelo atuar [agieren] (repetir). Isso pois o lembrar ideal do esquecido durante a hipnose corresponde a um estado em que a resistência é totalmente posta de lado. Se o tratamento começar sob os auspícios de uma transferência suave e positiva, sem que o seja de forma expressa, ele inicialmente permite um aprofundamento na lembrança, como na hipnose, enquanto até mesmo os sintomas da doença se calam; mas se no decorrer do tratamento essa transferência se tornar hostil ou excessivamente forte e, por isso, passível de recalque, imediatamente o lembrar dá lugar ao atuar. A partir daí, então, são as resistências que irão definir a sequência daquilo a ser repetido. É no arsenal do passado que o doente busca as armas com as quais se defende da continuidade do tratamento e que precisamos tirar dele peça por peça. (Freud, p.155- 56) Bom, então, a resistência é uma parcela da repetição. As atuações da paciente dentro do tratamento passaram a ser uma tentativa de constranger o 11 analista: desde desdenhar dos quadros pendurados, dizendo ser feios e não parecerem ter sido escolhidos pelo analista, desqualificar as plantas permanentes, dizendo ser um horror e não entender como alguém opta por elas em vez das plantas vivas, até tentar sondar a posição política do analista. É importante dizer que as sessões não ficavam inteiramente sob o regime das atuações, em muitos momentos, a paciente se punha a falare a sessão prosseguia, mas era nítido que ela precisava enfrentar uma batalha para isso. Após supervisionar o caso, o analista toma uma decisão: solicitar que a paciente retorne à poltrona. Ela questiona o porquê, ao que o analista responde que, de alguma forma, ela havia o solicitado. A paciente demonstra certo alívio em se sentar e as sessões começam a se desenvolver um pouco mais. É justo nesse momento que as conversas sobre se casar com o namorado aparecem em sessão. E, na ocasião da sessão em que ela narra o sonho que teve com o analista, ela também diz que ter saído do divã deu a sensação de estar regredindo na análise, mesmo concordando que havia um pedido da parte dela para sentar. Dessa forma, temos que, mesmo retornando à poltrona, com alívio, as atuações perduraram. Às vezes de forma mais intensa e, em outras sessões, não, dando espaço à fala e ao lembrar via “âmbito psíquico” (p.158). Dado um manejo clínico delicado, como neste caso, podemos agora retornar a astúcia freudiana, não perdendo de vista que o atuar/repetir é uma forma de lembrar. Neste caso em específico, a partir do manejo, a paciente foi sendo capaz de se perceber nas atuações e relacioná-las com acontecimentos do passado, construindo assim sua história. Dessa forma, a orientação freudiana é de que os psicanalistas não devem retroceder diante desses casos, mas, pelo contrário, incitar a repetição a partir da relação transferencial. Lê-se: Tornamos a compulsão inócua, até mesmo útil, na medida em que lhe damos o direito de se esbaldar em uma determinada área. Abrimos a transferência para ela como sendo um parque de diversões, onde ela tem autorização para se desenvolver com liberdade quase total e é instada a nos mostrar tudo que ficou escondido em termos de pulsões patológicas na vida anímica do paciente. Se o paciente pelo menos tiver uma postura colaborativa, na medida em que respeita as condições de existência do tratamento, geralmente conseguiremos dar a todos os sintomas da doença um novo significado de transferência, substituindo a sua neurose comum por uma neurose de transferência, da qual ele pode ser curado pelo trabalho terapêutico. A transferência cria, assim, uma zona intermediária entre a doença e a vida, onde se dá a transição da primeira para a segunda. O novo estado assumiu todas as características da doença, mas representa uma doença artificial, na qual podemos intervir em todo lugar. Ao mesmo tempo, é 12 um pedaço da vivência real, mas que é tornada possível através de condições especialmente favoráveis e que tem a natureza de algo provisório. Partindo das reações de repetição que se mostram na transferência, os caminhos já conhecidos levam ao despertar das lembranças que se instalam quase que sem esforço após a superação das resistências. (Freud, p. 160) TEMA 5 – LEMBRAR, REPETIR, REPETIR, REPETIR... E PERLABORAR: O PERLABORAR Nosso percurso nos leva até o último pedaço do título tripartite do texto: o perlaborar. Freud reserva a essa parte os dois últimos parágrafos do trabalho. Mesmo sendo apenas dois, eles são de suma importância. O fator primordial, no que diz respeito ao perlaborar, é o tempo. Freud será muito claro, salientando que o trabalho analítico não se finda à nomeação da resistência que se apresenta pela via da atuação, mesmo que isso seja fundamental. Mas que, dada a nomeação, o analisando precisará de tempo para atravessá-la, para perlaborar. Daí que a comunidade psicanalítica, e isso é muito nítido na clínica, dá um status maior ao repetir: o repetir se repete, por assim dizer. E muitos brincam que o título do texto poderia ser Lembrar, Repetir, Repetir, Repetir… e Perlaborar. Vejamos o texto freudiano: a nomeação da resistência não pode ter como consequência o seu fim imediato. Precisamos dar tempo ao paciente, para que ele se aprofunde na resistência que até então lhe era desconhecida, para perlaborá-la, superá-la, na medida em que ele, a ela resistindo, continua o trabalho de acordo com a regra analítica fundamental. Só no ponto mais alto desse trabalho é que, em conjunto com o analisando, iremos descobrir as moções pulsionais recalcadas, que alimentam as resistências e de cuja existência e poder o paciente se convencerá através dessa vivência. O médico não tem mais nada a fazer aí senão esperar e aceitar um percurso que não pode ser evitado e que também nem sempre pode ser acelerado. Se ele se ativer a essa percepção, ele muitas vezes poupará a ilusão de ter fracassado, apesar de ter seguido o tratamento na linha correta. (Freud, p. 161) Se retornarmos ao caso, o processo de elaboração fica bastante evidente quando, mesmo já sendo capaz de rastrear em sua história a construção de uma forma de lidar com os homens, a paciente permanece atuando diante do analista. Digamos assim, a travessia ainda está em andamento: o perlaborar. O trabalho de análise segue e, por muitas vezes, Freud dirá que a demanda por paciência aos psicanalistas é difícil. Dada a recorrência da repetição e a atuação diante do tempo, Freud aponta que o perlaborar é a “parte do trabalho que terá a influência mais transformadora no paciente e que diferencia o tratamento analítico de todo influenciamento por sugestão [Suggestionsbeeinflussung]” (Freud, p. 161). 13 NA PRÁTICA Estar envolvido em uma relação transferencial e se emprestar como objeto através da posição de analista, por vezes, não é tarefa fácil. O manejo de um caso requer um grande trabalho ao psicanalista: de escuta, obviamente, mas também de estudo e de falar-se em análise. Isto porque, para se emprestar a uma relação transferencial, é preciso ter se escutado em uma análise. Caso contrário, corre-se o risco (mais riscos, na verdade) de ouvir a si e não ao paciente. Por exemplo, dada a vinheta clínica, após o sonho da paciente com o analista, ela narra que vasculhou nas redes sociais a vida do analista e tirou suas conclusões. Quais? Como é para o analista ser visto pelo paciente? Esta pergunta vale para as redes sociais, mas também para os possíveis encontros presenciais entre analisante e analista fora do espaço clínico. Como é ser posicionado com determinado gênero para que o paciente possa falar de sua sexuação e de suas vivências sexuais? Enfim, perguntas que incidem sobre a Pessoa analista. Ainda, acredito que também tenha ficado evidente a importância de uma supervisão: neste caso, para além de pensar os manejos, o de compreender onde a paciente posicionou o analista para poder falar/atuar e como, a partir daí, manejar adequadamente. Por fim, podemos ficar com uma pergunta que parece ser umas das grandes sacadas freudianas nesse texto: Como é ser envolvido em determinada relação transferencial? FINALIZANDO Com esta etapa, tivemos um importante momento de nossa formação em psicanálise. O trabalho freudiano em Lembrar, Repetir e Perlaborar, funciona quase como uma sintetização do que se passa em um tratamento analítico e nos traz, com grande generosidade, muitos fundamentos e ferramentas para nosso trabalho clínico até hoje. Além disso, o texto é uma pérola para o pensamento psicanalítico, impactando seus percursos até o momento presente. Sendo assim, ele não pode deixar de ser lido e relido dentro de qualquer formação em psicanálise. 14 Objetivou-se, mais do que nos aproximar do texto, lê-lo de forma prática, demonstrando como a clínica ainda reaviva a pena freudiana e, por fim, trazer dentro de uma formação com conteúdo teórico denso, um pouco do fazer e viver de um psicanalista. 15 REFERÊNCIAS FREUD, S. Lembrar, Repetir e Perlaborar (1914). In: OBRAS Incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Autêntica Editora: 2019.