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DO MITO À FILOSOFIA 1 WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR Do Mito À Filosofia A jornada para desvendar a origem e o nascimento da filosofia nos transporta a um tempo e lugar específicos: a Grécia Antiga, por volta do século VI a.C. Nesse cenário de efervescência cultural, polí- tica e comercial, a humanidade deu um passo monumental, uma verdadeira revolução no modo de compreender o mundo e a si mesma. Este movimento, tradicionalmente conhecido como a passagem do Mito ao Logos, não representou um rompimento abrupto e total com o passado, mas sim uma gradual e profunda transformação na maneira como as questões fundamentais da existência eram formuladas e respondidas. Antes do advento da filosofia, era o pensamento mítico que oferecia o arcabouço para a compreensão da realidade, tecendo narrativas repletas de deuses, heróis e forças sobrenaturais para explicar a ori- gem do universo, os fenômenos naturais e o destino humano. O mito, com sua linguagem poética e simbólica, não se pretendia uma mera ficção, mas uma forma de conhecimento sagrado, transmitido de geração em geração através de tradições orais e imortalizado nas epopeias de Homero e Hesíodo. Essas narrativas organizavam o cosmo, estabeleciam as bases da moral e dos costumes sociais e conferiam sentido a um mundo que, de outra forma, pareceria caó- tico e assustador. A cosmogonia mítica, por exemplo, narrava o nascimento do universo a partir de entidades divinas primordiais, e cada evento natural – uma tempestade, a mudança das estações, uma colheita farta – era interpretado como uma manifestação da vontade ou do capricho de uma divindade. O mito, por- tanto, era a verdade de seu tempo, uma verdade que não exigia provas ou argumentação lógica, mas sim fé e aceitação da tradição. Contudo, uma série de fatores convergentes na Grécia, especialmente nas prósperas cidades-estado da Jônia, como Mileto, começou a erodir a hegemonia do pensamento mítico. A invenção da escrita alfabética permitiu um registro mais preciso e a circulação de ideias de forma mais ampla, incentivando a crítica e o debate. O desenvolvimento da pólis (a cidade-estado) e da vida política, com a necessidade de discussão pú- blica e argumentação na ágora (a praça pública), fomentou um ambiente onde a persuasão racional se tornava mais valorizada do que a mera invocação da autoridade divina. Além disso, as viagens marítimas e o contato com diferentes culturas e seus respectivos mitos levaram a um questionamento sobre a universalidade e a veracidade das próprias narrativas tradicionais gregas. Se cada povo tinha seus próprios deuses e suas próprias histórias sobre a criação do mundo, qual delas seria a verdadeira? É nesse solo fértil de questionamento e curiosidade que floresce a filosofia. Os primeiros pensadores, conhecidos como pré-socráticos ou filósofos da physis (natureza), não se contentavam mais com as explicações sobrenaturais do mito. Eles buscaram um novo caminho, o do Logos – a razão, a lógica, o discurso argumentativo. Seu objetivo era encontrar o arché, o princípio fundamental, a substância primordial que constituiria a realidade e a partir da qual tudo se originaria. Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo, propôs que a água era esse princípio fundamental. Anaximandro sugeriu o ápeiron (o ilimitado, o infinito) e Anaxímenes, o ar. Mais do que as respostas que ofereceram, o que os tornou revolucionários foi a natureza de suas perguntas e o método que inauguraram: a observação da natureza, a busca por causas naturais e a formulação de teorias baseadas na argumentação racional, que poderiam ser de- batidas, criticadas e superadas por outras mais convincentes. Assim, o nascimento da filosofia não significou a morte do mito. O pensamento mítico continuou a coexistir e a influenciar profundamente a cultura, a arte e a religião gregas, e até mesmo a própria filosofia, que frequentemente se utilizou de alegorias e narrativas para expressar suas ideias. A transição foi, antes de tudo, o surgimento de uma nova atitude mental, uma nova forma de inquirir a realidade, que já não se satisfazia com o "quem" (qual deus causou isso?), mas perguntava o "o quê" e o "porquê" (o que é isso e por que funciona dessa maneira?). Usuario Realce Usuario Realce Usuario Realce Usuario Realce Usuario Sublinhado Usuario Realce Usuario Realce Usuario Sublinhado Usuario Realce Usuario Realce Usuario Realce Usuario Realce DO MITO À FILOSOFIA 2 WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR A filosofia nasceu, portanto, do espanto, da admiração (thauma, em grego) diante do mundo, e da coragem de buscar explicações para esse espanto não mais nas narrativas sagradas e imutáveis da tradição, mas na capacidade humana de observar, pensar, criticar e construir um conhecimento pau- tado na razão. Esta passagem do Mito à Filosofia representa a aurora do pensamento ocidental, um legado que continua a moldar nossa busca incessante por conhecimento e compreensão. Mito E Filosofia Considerados há muito tempo como antagônicos, mito e filosofia protagonizam atualmente uma (re)conciliação. Desde os primórdios, a Filosofia, busca do saber, é entendida como um discurso raci- onal que surgiu para se contrapor ao modelo mítico desenvolvido na Grécia Antiga e que serviu como base de sua Paideia (educação). A palavra mito é grega e significa contar, narrar algo para alguém que reconhece o proferidor do discurso como autoridade sobre aquilo que foi dito. Assim, Homero (Íliada e Odisseia) e Hesíodo (Teogonia e Dos trabalhos e dos Dias) são considerados os educadores da Hélade (como se chamava a Grécia) por excelência, bem como os rapsodos (uma espécie de ator, cantor, recitador) eram tidos como portadores de uma verdade fundamental sobre a origem do universo, das leis etc., por reproduzirem as narrativas contidas nas obras daqueles autores. Foi somente a partir de determinadas condições (navegações, uso e invenção do calendário e da mo- eda, a criação da democracia que preconizava o uso da palavra, bem como a publicidade das leis etc.) que o modelo mítico foi sendo questionado e substituído por uma forma de pensar que exigia outros critérios para a confecção de argumentos. Surge a Filosofia como busca de um conhecimento racional, sistemático e com validade universal. De Aristóteles a Descartes, a Filosofia ganhou uma conotação de ciência, de conhecimento seguro, infalível e essa noção perdurou até o século XIX, quando as bases do que chamamos Razão sofreu duras críticas com o desenvolvimento da técnica e do sistema capitalista de produção. A crença no domínio da natureza, da exploração do trabalho, bem como a descoberta do inconsciente como o grande motivador das ações humanas, evidenciou o declínio de uma sociedade armamentista, excludente e sugadora desenfreada dos recursos naturais. A tendência racionalista fica, então, abalada e uma nova abordagem do mundo faz-se necessária. O que era tido antes como pré-cientifico, primitivo, assistemático, ganha especial papel na formação das culturas. As noções de civilização, progresso e desenvolvimento vão sendo substituídas lenta- mente pela diversidade cultural, já que aquelas não mais se justificam. A releitura de um dos pensadores tidos como fundadores do idealismo racionalista preconiza que já na Grécia o mito não foi meramente substituído nem de forma radical, nem gradual pelo pensamento filo- sófico. Os textos de Platão, analisados não somente pela ótica conceitual, mas também dramática, nos proporciona compreender que um certo uso do mito é necessário onde o lógos (discurso, razão, pala- vra) não consegue atingir ainda seu objeto, ou seja, aquilo que era apenas fantasioso, imaginário, ga- nha destaque por seu valor prático na formação do homem. Dito de outro modo, embora o homem deseje conhecer a fundo o mundo em que vive, ele sempre dependerá do aperfeiçoamento de métodos e técnicas de interpretação. A ciência é realmente um sa- ber, mas que também éhistórico e sua validade prática depende de como foi construído argumentati- vamente. Interessa perceber que Filosofia é amor ao saber, busca do conhecimento e nunca posse, como define Platão. Então, nunca devemos confundi-la com ciência, que é a posse de um saber construído histori- camente, isto é, determinado pelas condições do seu tempo. Portanto, Mito, Filosofia e Ciência pos- suem entre si não uma relação de exclusão ou gradação, mas sim de intercomplementaridade, haja vista que um sempre sucede ao outro de forma cíclica no decorrer do tempo. Origem do Mito Esse foi o recurso utilizado durante anos para explicar tudo o que existe no Universo. Desta forma, foram criados mitos para explicar a origem dos homens, dos sentimentos, dos fenômenos naturais, entre outros. Usuario Realce Usuario Realce Usuario Realce Usuario Realce Usuario Realce Usuario Realce DO MITO À FILOSOFIA 3 WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR O mito era considerado uma história sagrada, narrada pelo rapsodo - que supostamente era a pessoa escolhida pelos deuses para transmitir oralmente as narrativas. O fato de o narrador advir de uma escolha divina, atribuía ao mito o caráter de incontestabilidade, pois os deuses eram inquestionáveis. Importa referir que, além de explicar as origens, a mitologia - o conjunto dessas histórias fantásticas - desempenhavam um papel moral. Esse tipo de narrativa era pertinente para responder aos questionamentos até que, a partir do século VII a.C. as explicações oriundas dessas histórias iam deixando de satisfazer os primeiros filósofos gre- gos - os pré-socráticos. Assim, o mundo começava a ser investigado através da razão, priorizando o natural em detrimento do sobrenatural. Começando a fazer uso da razão, os filósofos não acreditavam nos mitos e exigiam com- provações. Surgimento da Filosofia O surgimento da Filosofia se deu na Grécia, mais precisamente com a formação da pólis - cidade-Es- tado grega. Lá, os cidadãos discutiam política em público, tentando chegar à melhor forma de organi- zação da sociedade. Isso motivava o uso do raciocínio, da reflexão e a chamada "atitude filosófica". Com o tempo, as pes- soas não discutiam apenas política, mas se indagavam acerca de vários aspectos, o que levou ao crescimento da investigação. Desta forma, a transição entre o pensamento mítico e o pensamento racional aconteceu de forma pro- gressiva. Os filósofos pré-socráticos buscaram nos elementos da natureza a resposta sobre as origens. O que Mito e Filosofia têm em comum? Ambos buscam explicar as origens, sendo basicamente essa a característica que os aproxima. Veja- mos, entretanto, quais as suas diferenças. Diferenças entre o Mito e a Filosofia A Filosofia e a Ciência Até a Idade Média não havia diferença entre Filosofia e Ciência. Com o desenvolvimento da análise e investigação, todavia, surgiram a Matemática, a Química, a Geografia, a Sociologia, enfim, as diversas áreas científicas. A Filosofia é, assim, a origem para todas as ciências. O que é mito? A palavra mito vem do grego mythos, que deriva de dois verbos: mytheyo, que significa contar, narrar, e mytheo, que remete à conversar, contar, anunciar. De acordo com essa significação, é uma narrativa que tenta explicar os acontecimentos e fenômenos da natureza. Usuario Realce Usuario Realce Usuario Realce Usuario Realce DO MITO À FILOSOFIA 4 WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR Essa é a forma de pensamento que depende da autoridade e credibilidade do poeta-rapsodo – pessoa escolhida pelos deuses para ter conhecimento sobre a origem de todos os seres e coisas, e transmiti- las ao público. O mito então é considerado verdadeiro, incontestável e inquestionável pelo fato de ser uma revelação divina. Por isso, os relatos sobre o surgimento do mundo e de tudo que nele existe é sempre atrelado a determinadas situações, como nascimento dos deuses, rivalidades e alianças entre as divindades, ou o envio de recompensas ou castigos para a humanidade. A narrativa da origem das coisas através de lutas, relacionamentos e acordos entre as forças divinas que governam o destino dos homens ainda classifica os mitos em: Cosmogonias: narrativas em relação ao surgimento e organização do mundo a partir do nascimento dos deuses e do poder dos seus geradores (pai e mãe). Teogonias: histórias sobre a origem dos deuses a partir dos seus antepassados e pais. Como surgiu a filosofia? A filosofia, definida por Pitágoras como o “amor pela sabedoria”, é um campo do conhecimento que surgiu para contrapor o pensamento mítico predominante na Grécia e que serviu como base para o seu desenvolvimento. Com o passar do tempo, as histórias centralizadas no nascimento e vida dos deuses deixaram de satisfazer os homens, que então começaram a buscar um conhecimento racional, siste- mático e lógico para responder os questionamentos diante da existência da vida e de tudo que há no mundo. A transição de narrativas divinas para os discursos filosóficos aconteceu de forma progressiva e moti- vada pelos seguintes fatores históricos: Início das navegações marítimas: as viagens permitiram aos gregos a ruptura na concepção de que o mundo era habitado por deuses, titãs ou heróis. Os mitos sobre os monstros e seres sobrenaturais que controlavam os mares foi dando lugar a descoberta de novas civilizações e a necessidade de um en- tendimento em relação às suas origens. Invenção do calendário e da moeda: avanços que possibilitaram o cálculo do tempo, como as horas, minutos do dia e as estações do ano, e o começo das trocas de mercadorias com base em valores previamente estipulados. Criação da escrita alfabética: marcou a substituição dos desenhos por sinais que representavam as letras, sílabas e vogais, permitindo os registros de todas as ideias. DO MITO À FILOSOFIA 5 WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR Nascimento da política: as discussões sobre as formas de organização e funcionamento da sociedade criou condições para o surgimento das leis e, posteriormente, dos sistemas de governo, a exemplo da democracia. Os pensamentos gerados pela política foram de grande importância para a construção da filosofia. Distinções Entre O Mito E A Filosofia Como vimos, o mito e a filosofia se aproximam na questão da finalidade, mas apresentam significativas diferenças. Entre elas, encontram-se: O mito explica a origem do Universo e dos seres por meio das relações ou rivalidades entre as divin- dades, enquanto a filosofia como o resultado de causas naturais, racionais e impessoais. A narrativa mítica não se preocupa com as incoerências, pois a crença na história é determinada pela autoridade divina do seu porta-voz. Já a filosofia não admite contradições e exige respostas formuladas racionalmente. O pensamento é colocado em análise, passa por discussões e demonstrações, até ser comprovada a sua veracidade. Ao revisitarmos a transição do pensamento mítico para o filosófico, compreendemos que não estamos meramente a analisar um evento histórico distante, confinado às costas da Jônia no século VI a.C., mas sim a desvendar a própria certidão de nascimento do pensamento racional ocidental. A passagem do Mito ao Logos não foi uma simples substituição de um conjunto de crenças por outro, mas uma revolução fundamental na atitude humana perante o universo e o conhecimento. Representou a audaciosa afirmação de que o mundo não é um palco para o capricho indecifrável de deuses, mas um cosmos – um todo ordenado e inteligível, cujas leis e princípios podem ser investiga- dos e compreendidos pela razão humana. Esta conclusão, longe de ser um ponto final, é na verdade a abertura de um horizonte de possibilidades que continua a se expandir até os nossos dias. É crucial reiterar que este processo não configurou um rompimento absoluto e imediato. A filosofia não "matou" o mito; em muitos aspectos, nasceu dele e aprendeu a caminhar segurando em suas mãos. As grandes questões queinstigaram os primeiros filósofos – a origem do universo, a natureza da rea- lidade, o lugar do homem no cosmo – eram as mesmas que os mitos tentavam responder. O que mudou radicalmente foi o método e o critério de verdade. A verdade do Logos não mais se baseava na autoridade da tradição sagrada e na fé, mas na força do melhor argumento, na coerência lógica e na correspondência com a observação da natureza. Filósofos como Platão, séculos depois, ainda se valeriam da estrutura mítica em suas alegorias, como a da Caverna, para transmitir complexas ideias filosóficas, demonstrando a persistência e a força da linguagem simbólica. O mito foi, portanto, o solo fértil de onde brotou a semente da razão; um solo rico em intuições, símbolos e questionamentos primordiais que a filosofia se encarregaria de cultivar com novas ferramentas. O legado desta transformação é imenso e multifacetado. Ao inaugurar a busca pelo arché, os pré- socráticos deram o passo inaugural não apenas para a filosofia, mas para a própria ciência. A ideia de que existem causas naturais para os fenômenos e uma ordem subjacente à aparente desordem do mundo é o pressuposto fundamental de toda a investigação científica. A cosmologia filosófica foi a precursora da física e da astronomia. Da mesma forma, o desenvolvimento da argumentação na pólis e a valorização do discurso racional estabeleceram as bases para a lógica, a retórica, a ética e a teoria política. A democracia ateniense, com seus debates públicos e a necessidade de justificação racional das leis, é inseparável do floresci- mento do pensamento filosófico. Em última análise, a jornada do Mito à Filosofia é a história da descoberta da autonomia da razão humana. É o momento em que a humanidade ousa olhar para o céu e para si mesma sem a interme- diação necessária de oráculos ou sacerdotes, confiando na sua própria capacidade de questionar, in- vestigar e conhecer. Esse espírito crítico e essa busca incessante por fundamentos racionais para o conhecimento e para a ação tornaram-se a espinha dorsal da civilização ocidental, impulsionando re- voluções científicas, transformações sociais e o contínuo debate sobre o que significa ser humano. DO MITO À FILOSOFIA 6 WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR Portanto, concluir sobre a origem da filosofia é reconhecer que o espanto (thauma) que moveu Tales a questionar a natureza da água ainda é o mesmo que hoje nos move a investigar os buracos negros, a decifrar o genoma humano ou a refletir sobre a justiça em uma sociedade globalizada. A aurora do pensamento, ocorrida há mais de dois milênios e meio, legou-nos não um conjunto de respostas defi- nitivas, mas a mais poderosa de todas as ferramentas: a própria pergunta, a incessante e corajosa busca pelo saber. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________