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PROJETO DE ARQUITETURA E URBANISMO III Anna Carolina Manfroi Galinatti Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Reconhecer a funcionalidade como geradora do partido arquitetônico. � Identificar as características funcionais de ambientes. � Avaliar a utilização de técnicas funcionais em edificações. Introdução A satisfação de uma função é o motivo principal para a existência de um projeto de arquitetura. Uma edificação é construída, normalmente, para satisfazer uma necessidade específica, seja ela uma casa, um escritório ou um hospital. No entanto, a funcionalidade não é o único fator que influencia um projeto; o local, a tecnologia construtiva e os precedentes históricos devem ser levados em conta para se chegar a uma arquitetura de qualidade. Neste capítulo, você conhecerá a evolução da ideia de partido e atendimento à função na história da arquitetura, e identificará as diferentes maneiras de aplicar esses conceitos. Ao final do capítulo, você verá três exemplos de arquitetura analisada sob o ponto de vista da adaptação funcional. O partido arquitetônico através da função O partido arquitetônico pode ser definido como o resultado formal dos fatores levados em conta pelo arquiteto no projeto. Essa consequência, no entanto, não é direta; pode gerar diferentes partidos para situações análogas. É importante que você conheça as origens e a evolução do termo partido para entender como a função pode ser geradora do partido arquitetônico. Até o século XIX, a arquitetura de qualidade deveria, segundo Ludovico Quaroni (1987), apresentar o equilíbrio entre a esfera racional da tríade vi- truviana: firmitas (solidez) e utilitas (adequação funcional) e o conhecimento cultural, venustas, que utilizaria as outras duas para gerar a obra de arquitetura. Esta manipulação estaria, na época pré-moderna, baseada nas relações de proporção e na utilização das ordens clássicas nas fachadas da edificação. Com a superação da linguagem clássica, onde solidez, adequação funcional e beleza eram a régua pela qual se media a qualidade das obras arquitetônicas, no século XVIII, surgiram mudanças na prática da arquitetura. Um exemplo disso foram as teorias e tratados provenientes da Escola de Belas Artes fran- cesa. Cabe destacar as teorias de J. N. L. Durand, publicada originalmente em 1808, e sua evolução, no tratado de Guadet, publicado cem anos depois, que prepararam o terreno para o aparecimento das vanguardas do início do século XX que possibilitaram o surgimento do movimento moderno. O termo partido tem uma série de significados. Aliata (2013) cita a expressão francesa “prende parti”, ou “tomar partido”, como parte do léxico da École de Beaux-Arts. Mahfuz (1995) vai além ao citar quatro diferentes origens: na heráldica (estudo de brasões), “parti” é “emblema”, ou um objeto que representa outro; também poderia representar um grupo de pessoas que compartilham uma mesma opinião; “parti” pode também ser uma conjugação do verbo “partage”, que significa parcelar; e, finalmente, “[…] a expressão parti é a resolução que alguém toma a respeito da melhor maneira de abordar um problema” (MAHFUZ, 1995, p. 16). Com o desenvolvimento da modernidade, surgiu a necessidade da constru- ção de edifícios com usos novos, como estações de trem e indústrias, muitas vezes projetados em contextos complexos e com tecnologias de construção diferentes. Essa transformação exigiu o desenvolvimento de novas maneiras Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico2 de coordenar formalmente os espaços arquitetônicos para produzir obras de excelência — como o museu visto na Figura 1, o parisiense D’Orsay, construído em 1900. Leitores do material impresso, para visualizar as figuras deste capítulo em cores, acessem o link ou o código QR a seguir. https://qrgo.page.link/fgPnZ Figura 1. Museu D'Orsay, em Paris. Construído originalmente em 1900 por Victor Laloux, Lucien Magne e Émile Bénard para abrigar uma estação de trem. 3Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico A funcionalidade, ou atendimento ao programa de necessidades, esteve presente no lançamento dos projetos arquitetônicos com alguma regularidade. Segundo Alfonso Martínez (2000), Guadet dizia que os arquitetos deveriam utilizar o programa de necessidades dado pelo cliente sem interferir nele, enquanto Viollet-le-Duc “[…] mencionava como origem ou motor do processo projetual um programa escrito” (MARTINEZ, 2000, p. 89). Assim como Le-Duc, para quem o programa deveria ser o marco inicial do projeto, Sum- merson (1990), ao retirar a primazia da antiguidade como fator unitário da arquitetura, confere ao programa de necessidades o papel de fonte da unidade da arquitetura moderna. O partido arquitetônico, portanto, precisa ser entendido como síntese de uma relação entre as necessidades programáticas e sua funcionalidade, a influência do lugar onde será construído o artefato arquitetônico e a tecnolo- gia construtiva disponível no local. Considerada esta tríade, o projetista tem condições de buscar em suas referências alguma estrutura formal — mesmo que isso ocorra de maneira inconsciente — que possa ser adaptada para o local específico onde se está trabalhando. Partindo da articulação destas soluções previamente conhecidas, é possível iniciar o desenvolvimento de um projeto de arquitetura. Características funcionais de ambientes As características funcionais dos edifícios, ditadas pelo programa de necessi- dades, são a razão para a sua existência. Segundo Mahfuz (2004, documento on-line), “[…] o programa é o maior vínculo que um projeto mantém com a realidade”. Portanto, o atendimento às solicitações programáticas de maneira funcional é essencial para a produção de uma arquitetura de qualidade. A ideia de um programa de necessidades sempre esteve presente na arqui- tetura, mas foi a partir do século XIX, com a revolução industrial e os novos usos, que foi necessário explicitar de maneira escrita os usos da edificação. Frente aos novos usos que a modernidade trouxe, o papel do arquiteto foi o de dinamizar a relação entre os espaços solicitados pelo cliente (MARTINEZ, 2000). Partindo deste princípio, você pode entender que o papel do arquiteto no processo criativo consiste em associar elementos funcionais em uma forma específica ou até mesmo em um sistema de formas que satisfaçam as solicita- ções do cliente. O projeto, como linguagem natural do arquiteto, é o meio pelo Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico4 qual será expressa a solução para um problema (o programa de necessidades) dado em forma de texto pelo cliente. Segundo Farrelly (2014, p. 170), “[…] o programa de necessidades visa a limitar e definir as especificações do projeto, determinando aspectos relativos à função, construção, materialidade e relação com terreno”. Ou seja, é utili- zando o programa de necessidades que você deve identificar se um ambiente é realmente funcional. No início do século XX, uma corrente de arquitetura chamada Funciona- lismo surgiu entre as vanguardas modernas, pregando uma arquitetura que emergia de um esquema, ou organograma, funcional que seria a semente da planta baixa. Partindo da definição dos espaços contidos nesta planta esquemática, desenvolvia-se a materialidade do projeto. A Figura 2 mostra o Edifício da Bauhaus, na Alemanha, um dos mais importantes exemplos de arquitetura funcionalista. Figura 2. Edifício da Bauhaus, em Dessau, na Alemanha. O projeto de Walter Gropius, de 1926, declarado Patrimônio Mundial da Humanidade, é um dos mais importantes exemplos de arquitetura funcionalista. Fonte: Urbanoid.Pro/Shutterstock.com. 5Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico Na contemporaneidade, o paradigma do Funcionalismo restrito foi superado. Hoje, o atendimento à função dos espaços deve, obviamente, estar presente naarquitetura, mas como parte de um conjunto de influências, e não como única justificativa para as escolhas arquitetônicas. Mahfuz (2004) coloca o atendimento ao programa como um dos quatro pilares para a construção do que ele chama de forma pertinente, ou, em outras palavras, um projeto arquitetônico de qualidade. Segundo Mahfuz (2004), o atendimento ao programa de necessidades não deve ser utilizado como apenas uma lista de espaços necessários, mas sim como um conjunto de atividades humanas que serão realizadas naquele espaço. Desta maneira, “[…] a verdadeira novidade em arquitetura não aparece no terreno da linguagem arquitetônica e da expressão, mas quando muda a sua concepção programática, que é o verdadeiro reflexo do espírito dos tempos” (MAHFUZ, 2004, documento on-line). É necessário, no entanto, que você fique atento para a necessidade da flexibilidade na arquitetura. O edifício deve, sem dúvidas, atender às de- mandas para as quais ele foi projetado, mas você precisa estar consciente de que os edifícios que você projetar provavelmente continuarão a existir por muitas décadas, mesmo depois de sua morte. Segundo Rossi (2001, p. 30), a arquitetura feita apenas em razão de sua função pode ser considerada um “funcionalismo ingênuo”, pois “[…] impede que [o arquiteto] estude as formas e conheça o mundo da arquitetura segundo suas verdadeiras leis”. Por este motivo, é preciso que o projeto seja flexível o suficiente para receber, de maneira satisfatória, novos usos. É muito comum, nas cidades mais antigas, encontrar casas ou edifícios públicos que foram convertidos para outros usos. No Brasil, um dos exemplos mais interessantes é o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. Em 1967, Oscar Niemeyer projetou o Instituto de Educação do Paraná, uma barra horizontal que, mesmo projetado para abrigar uma escola, nunca recebeu tal uso. O edifício acabou sendo utilizado até os anos 1990 como sede de órgãos públi- cos estaduais, até que em 2001 o arquiteto carioca foi novamente chamado pelo governo paranaense para adaptar seu projeto e construir um anexo que o transformaria em museu. A obra de Niemeyer pode ser vista na Figura 3. Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico6 Figura 3. Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. Ao fundo é possível ver o bloco retangular do projeto original de 1967 e a frente, o "Olho", anexo do início do século XXI, projeto do mesmo arquiteto. Fonte: A. Paes/Shutterstock.com. Portanto, visto que o atendimento ao programa de necessidades é parte indispensável do projeto de arquitetura, é necessário que você, quando elaborar seus próprios projetos, desenvolva o seu partido de modo que a funcionalidade de todos os espaços seja ideal, e sem esquecer que seus projetos provavelmente sofrerão mudanças de uso ao longo dos anos e, por isso, devem ser flexíveis o suficiente para não se tornaram obsoletos rapidamente. O uso das técnicas funcionais em edificações A seguir, você poderá observar, em diferentes projetos, maneiras de resolver problemas arquitetônicos através da articulação do programa de necessidades. Serão apresentados três projetos, dois em Brasília, no Distrito Federal, e um na Serra gaúcha: uma escola pública, um conjunto de uso misto e um edifício residencial. Segundo Mahfuz (2004), a forma arquitetônica deve ser encontrada partindo do programa, do lugar e das técnicas envolvidas. Partindo deste pressuposto, a síntese formal é obtida pelo repertório formal do arquiteto, construído ao longo do tempo. 7Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico Embora os projetos sejam realizados pela mesma equipe, observe como as soluções de projeto são distintas, o que ilustra claramente os preceitos teóricos que você conhece. Edifício Basalto — 0E1 Arquitetos Esse projeto, um edifício de habitação coletiva, apresenta dois apartamentos de dois quartos por pavimento, separados por um núcleo central que contém a circulação vertical e as cozinhas das unidades. Trata-se de um edifício com apartamentos compactos, interpretando medidas mínimas permitidas pela legislação vigente, portanto, toda área precisa atender à funcionalidade da unidade. O núcleo central abriga a escada de incêndio, desenhada em leque para economizar espaço. Para tanto é necessário que exista separação entre os lances para evitar degraus muito estreitos. À frente da escada, você pode observar um corredor que parece mais largo do que o necessário. Sua dimensão, no entanto, é regida pela legislação: 1,5 m é o mínimo permitido para o desembarque de um elevador. Uma parede com dutos verticais separa este corredor das cozinhas das unidades; a concentração da zona de serviço facilita a construção por concentrar também as descidas de tubulação em uma parede. O acesso às unidades se dá pela sala de estar e jantar, separada em duas zonas distintas; de um lado, o sofá e a televisão, e, de outro, ligado à cozinha, a mesa de jantar e uma sacada onde está o aquecedor de água. Alinhado à porta de entrada está um pequeno corredor de acesso aos dois quartos, um virado para cada lado, e ao banheiro, conectado diretamente ao aquecedor de água da sacada. Planta que pode ser vista na Figura 4. A configuração destas unidades, ligadas uma a outra apenas por uma parede, permite que os apartamentos tenham aberturas em mais de uma face, possibilitando, desta maneira, a ventilação cruzada, o que melhora conside- ravelmente a habitabilidade. Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico8 Figura 4. Planta tipo do edifício Basalto. Centro de ensino infantil: Parque do Riacho — 0E1 Arquitetos Neste projeto, um terreno plano localizado em uma esquina de uma avenida movimentada e uma rua sem saída, foi necessário criar elementos que separas- sem efetivamente o espaço reservado para as crianças do exterior. Para tanto, o partido adotado foi a criação de quatro barras retangulares, três térreas e uma com dois pavimentos, organizadas em um anel com um pátio central. A circulação no Centro de Ensino Infantil é feita por uma varanda junto ao pátio, passando pelas quatro barras. Esse esquema permitiu que as salas localizadas nas três barras térreas tivessem pátios privativos no perímetro externo. Na Figura 5, você pode observar que nestas salas existe um conjunto de sanitários para cada duas salas, mantendo um ritmo simétrico. Este artifício permite que duas ou mais salas sejam unidas ou que seu uso se modifique sem perder qualidade espacial. Na barra com dois pavimentos foi projetado um elemento ímpar: uma rampa de grandes dimensões que leva às salas do segundo andar. A rampa fica junto ao pátio central e em linha reta em relação ao acesso principal, ou seja: ao mesmo tempo em que é visível de todos os pontos da escola, está posicionada de modo a não interferir no funcionamento das demais funções. 9Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico Figura 5. Plantas do centro de ensino infantil. UPSA — 0E1 Arquitetos Este projeto para um edifício de uso misto com 40 mil metros quadrados em um bairro planejado contempla comércio no térreo e habitação, comércio e serviços nos pavimentos mais altos. O principal problema deste projeto é a articulação das circulações verticais para usos tão distintos em um edifício compacto. A solução encontrada foi a criação de quatro torres que abrigam a circulação vertical, livrando as quatro barras de programa de instalações fixas como elevadores e escadas. Foi tomado um partido simétrico, com duas barras de escritório, com seis pavimentos cada e duas barras residenciais com quatro pavimentos cada, organizadas em um retângulo. Essas quatro barras são posicionadas sobre uma base de três pavimentos que ocupa todo o terreno, dentro da qual estão o comércio e os serviços, como restaurantes e academias. As quatro torres de circulação são posicionadas nos vértices do retângulo formado pelas quatro barras, permitindo, desta maneira, que os conjuntos de elevadores abram para osdois lados. Esta configuração garante a maior flexibilidade das plantas, pois estas se mantêm retângulos perfeitos que podem ser subdivididos de infinitas maneiras, sem influência de instalações fixas. Na Figura 6 vemos o projeto deste edifício de uso misto. Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico10 Figura 6. Edifício de uso misto UPSA. Com esses exemplos, você pode ter uma ideia de como as solicitações funcionais de projeto precisam ser interpretadas de modo a maximizar a funcionalidade dos edifícios. É possível também observar que solicitações muito parecidas, como as duas escolas, podem ter partidos muito diferentes em razão de influências tanto externas, como o terreno, quanto internas, como solicitações específicas do cliente. Com o exemplo do edifício de uso misto, você pode observar que a separação do programa em barras independentes unidas por torres de circulação permite que os usuários tenham mais controle sobre o espaço interno do edifício, aumentando a vida útil da edificação. 11Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico ALIATA, F. Estrategias proyectuales: los géneros del proyecto moderno. Buenos Aires: Sociedad Central de Arquitectos, 2013. CONHEÇA o Museo Oscar Niemeyer em Curitiba - Museo do Olho. [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo (7 min.). Publicado pelo canal De Tudo um Pouco. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=CykYTDolV1s. Acesso em: 09 maio 2019. FARRELLY, L. Fundamentos de arquitetura. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2014. MAHFUZ, E. C. Ensaio sobre a razão compositiva. Viçosa: UFV/AP, 1995. MAHFUZ, E. C. Reflexões sobre a construção da forma pertinente. Vitruvius — Arquitextos, ano 04, n. 045.02, fev. 2004. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/04.045/606. Acesso em: 09 maio 2019. MARTINEZ, A. C. Ensaio sobre o projeto. Brasília: UNB, 2000. QUARONI, L. Proyectar un edificio: ocho lecciones de arquitectura. Madrid: Xarait, 1987. ROSSI, A. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001. SUMMERSON, J. The unromantic castle: and other essays. London: Thames and Hudson, 1990. Aspectos funcionais e técnicos do partido arquitetônico12