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Havia uma vez — e esse “uma vez” poderia ser uma manhã de terça-feira em qualquer cidade do país — em que eu sentei numa cafeteria com a intenção de ler um jornal inteiro. Abri a edição, deixei o celular na sacola e, por alguns preciosos minutos, senti o ritmo tranquilo da leitura sem interrupções. Dois cafés depois, percebi que a cena parecia arqueológica: as mesas ao redor brilhavam com telas e dedos dançantes; as manchetes reais competiam com jingles silenciosos de apps. Aquele instante de silêncio foi, para mim, o primeiro sinal íntimo de que vivemos dentro de uma nova economia — a economia da atenção — onde a moeda não é mais apenas dinheiro, mas o foco das pessoas. Narrar esse momento pessoal é também diagnosticar uma mudança estrutural. A economia da atenção transforma tempo e concentração em ativos valiosos para plataformas, anunciantes e criadores de conteúdo. Não é apenas uma metáfora: empresas projetam produtos para maximizar "engajamento", algoritmos avaliam o tempo de permanência e interfaces são desenhadas para interromper e reconquistar. A narrativa do café revela um conflito entre ritmos humanos — leitura lenta, reflexão — e ritmos technocapitalistas — cliques, recompensas imediatas, dopamina programada. Defender que a atenção é um recurso escasso não é romantizar o passado; é reconhecer consequências concretas. Pesquisas em psicologia cognitiva apontam que interrupções frequentes reduzem capacidade de concentração e aumento do estresse. No plano social, a competição por atenção afeta a qualidade do debate público: polarização se alimenta de formatos curtos que premiam emoções fortes, não argumentos complexos. No econômico, modelos de negócio baseados em publicidade criam incentivos para priorizar conteúdo sensacionalista ou enganoso. Assim, a economia da atenção opera como lente para compreender crises de saúde mental, erosão da esfera pública e transformações laborais. Este editorial argumenta que estamos diante de escolhas normativas: aceitar a extração contínua de atenção como externalidade inevitável ou redesenhar instituições e hábitos para proteger capacidades humanas fundamentais. Uma primeira dimensão é regulatória. Legislações que tratem dados e transparência algorítmica existem, mas raramente consideram o impacto no tempo cognitivo. Políticas públicas podem exigir métricas claras sobre práticas de captura de atenção e impor padrões para notificações, design de interface e monetização. Não se trata de censura, mas de reduzir arquiteturas de manipulação que exploram vulnerabilidades atencionais. Outra dimensão é ética e profissional. Designers e desenvolvedores precisam recuperar um código de responsabilidade que valorize a dignidade do usuário. Pequenas decisões — cor do botão, sequência de telas, padrão de recompensas — determinam comportamentos em larga escala. Incentivar modelos de negócio que não dependam exclusivamente da atenção como recurso extraível é crucial: assinaturas, modelos cooperativos e financiamento público de conteúdos de qualidade podem diversificar incentivos. No nível individual, narrativas do cotidiano como a do café apontam caminhos práticos. Habituar-se a zonas sem notificação, praticar leituras longas e instituir rituais de desligamento ajudam a recapturar pedaços de atenção. Contudo, a mudança não é apenas privada; sem alteração nas estruturas que competem por atenção, hábitos serão continuamente pressionados. Por isso, ação coletiva é necessária: campanhas por "tempo digital justo", pressão por padrões industriais e educação sobre alfabetização mediática e atenção. Há também uma dimensão democrática que merece destaque: o direito à atenção como componente do direito à participação informada. Democracia exige cidadãos com capacidade de deliberar. Quando plataformas priorizam estímulo emocional e velocidade, informações complexas perdem visibilidade. Reimaginar espaços públicos digitais que favoreçam deliberacão exige tanto projeto técnico quanto vontade política. Meios públicos fortalecidos, financiamento para jornalismo investigativo e algoritmos que priorizam diversidade de fontes são medidas compatíveis com essa visão. Argumento, por fim, que a economia da atenção é um espelho: revela valores contemporâneos. Valorizamos a imediaticidade, a gratificação instantânea e a mensuração contínua de métricas. Podemos escolher viver em sintonia com esses valores ou contrapor-se dizendo que queremos uma vida com mais profundidade, onde o tempo não seja trocado por cliques. Essa escolha não é só pessoal; demanda instituições que coloquem limites à captura predatória da atenção. Fecho retornando à cafeteria: guardei o jornal, peguei o celular, respondi a mensagens e, por um impulso, desliguei as notificações por uma hora. Foi pouco, mas suficiente para sentir que atenção pode ser reconquistada com combinações de vontade individual e mudança estrutural. Proponho que a próxima narrativa coletiva não seja de resignação, mas de redesenho — construir um ecossistema digital que respeite a atenção humana, e com ela, a qualidade da vida e do discurso público. PERGUNTAS E RESPOSTAS 1) O que é exatamente a economia da atenção? R: É um sistema onde a atenção humana é tratada como recurso escasso e monetizável; empresas competem para capturar e monetizar o tempo e foco das pessoas. 2) Por que isso é um problema social? R: Porque afeta saúde mental, diminui capacidade de concentração, deteriora qualidade do debate público e incentiva desinformação e conteúdo sensacionalista. 3) Quais medidas regulatórias ajudam? R: Transparência algorítmica, limites em notificações invasivas, padrões de design que evitem manipulação e apoio a modelos de financiamento alternativos ao anúncio. 4) O que indivíduos podem fazer hoje? R: Criar hábitos de "tempo sem tela", usar ferramentas que bloqueiam distrações, priorizar leitura profunda e apoiar mídias pagas ou públicas de qualidade. 5) Existe uma alternativa econômica viável? R: Sim — modelos por assinatura, cooperativas de mídia, financiamento público e plataformas que remunerem conteúdo valioso sem extração massiva de atenção.