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Autora: Profa. Mônica Oliveira Santos Colaboradores: Profa. Joana Ormundo Profa. Cielo Griselda Festino Profa. Tania Sandroni Teorias do Texto Professora conteudista: Mônica Oliveira Santos A professora Mônica Oliveira Santos nasceu em Campina Grande (PB), graduou-se no curso de letras (1997) pela Universidade Federal da Paraíba, tendo desenvolvido trabalhos de iniciação científica na área de análise do discurso, durante a graduação. É mestre em linguística aplicada (2000), com ênfase na área de ensino de língua materna, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e é doutora em linguística (2004), com ênfase nas áreas de semântica e análise do discurso, também pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professora adjunta II da Universidade Paulista (UNIP), ministrando as disciplinas Gramática Aplicada à Língua Portuguesa, Teorias do Texto, Semântica e Estilística da Língua Portuguesa, Análise do Discurso, Análise do Discurso/Pragmática e Morfossintaxe Aplicada à Língua Portuguesa. É coordenadora do curso de Letras da (UNIP) no Campus de Campinas/Swift e atua ainda como líder de disciplinas e conteudista (EaD) de Teorias do Texto, Análise do Discurso e Análise do Disrcurso/ Pragmática. Tem experiência na área de linguística, com ênfase em semântica, texto e discurso, atuando principalmente nas abordagens relativas à enunciação coletiva, enunciação proverbial, funcionamento enunciativo-discursivo, textualidade-discursividade, relação sentido e sujeito e ensino do português. Dentre outras produções nas áreas de estudo do texto e da análise do discurso, Mônica Oliveira Santos é autora do livro Um comprimido que anda de boca em boca: os sujeitos e os sentidos no espaço da enunciação proverbial (2007, publicado pela Fapesp e editora Pontes) e coautora dos livros Em torno da língua(gem): questões e análises (2007, publicado pelas edições Uesb); Território da linguagem (2004, publicado pela editora Bagagem); e Texto, discurso, interpretação: ensino e pesquisa (2001, publicado pela editora Ideia). De modo bastante direcionado, o percurso teórico-produtivo de Mônica Oliveira Santos focaliza-se nas questões pertinentes às teorias do texto e do discurso, centralizando-se sobremaneira nas abordagens do ensino, da enunciação, dos sujeitos e da construção/produção de sentidos. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S237 Santos, Mônica Oliveira Teorias do Texto. / Mônica Oliveira Santos. - São Paulo: Editora Sol. 2011. 108 p. il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-017/11, ISSN 1517-9230. 1. Interação 2. Produção 3. Recepção I.Título CDU 800.852 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Tatiane Souza Sumário Teorias do Texto APRESENTAçãO ......................................................................................................................................................7 INTRODUçãO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 O NASCIMENTO DE UMA LINGUÍSTICA DO TEXTO ..............................................................................11 1.2 Da frase ao texto: as três fases de construção da linguística textual ............................ 13 1.3 Aprofundando e delimitando o conceito de texto ................................................................. 18 2 CONSTRUINDO SENTIDOS NO TEXTO: ORGANIZAçãO ESTRUTURAL E PROCESSAMENTO TEXTUAL ............................................................................................................................ 24 3 AINDA ALGUMAS CONSIDERAçÕES SOBRE A LINGUÍSTICA TEXTUAL ...................................... 33 4 OUTRAS TEORIAS CUJO OBJETO DE ESTUDO TAMBÉM É O TEXTO .............................................. 34 Unidade II 5 A RELAçãO ORALIDADE/ESCRITA E SEUS DIFERENTES NÍVEIS DE FORMALIDADE E VARIAçãO: UMA QUESTãO LINGUÍSTICA, SOCIAL E PEDAGÓGICA ............................................ 51 5.1 Diferenças e características da fala e da escrita: interferência mútua entre elas ................... 56 5.2 Mais algumas considerações teóricas sobre o binômio oralidade e escrita ................. 64 5.3 Retomando alguns conceitos na análise do texto ................................................................. 68 6 CONSIDERAçÕES SOBRE A ANÁLISE DA CONVERSAçãO ............................................................... 72 Unidade III 7 LEITURA, ORALIDADE E ESCRITA: PRÁTICAS LINGUÍSTICAS, SOCIAIS E PEDAGÓGICAS ................. 83 8 ESTRATÉGIAS DE LEITURA: COGNITIVAS E METACOGNITIVAS – LEITOR ANALISADOR E (RE)CONSTRUTOR ................................................................................................................ 90 8.1 Leitor analisador e leitor (re)construtor ...................................................................................... 95 7 APreSenTAçãO Caro aluno, A abordagem desta disciplina, Teorias do Texto, abrange o estudo teórico do texto e do contexto a partir da perspectiva sociointeracionista e da linguística textual, visando destacar as principais teorias de processamento cognitivo do texto. Sendo assim, este estudo acerca do universo textual será desenvolvido considerando um panorama que vai desde o nascimento de uma linguística do texto no contexto das análises transfrásticas, passando pela caracterização e diferenciação das modalidades oral e escrita, até as inter-relações que a linguística textual faz com as diferentes linhas teóricas de estudo do texto: a sociolinguística, a pragmática, a análise da conversação e do discurso, a semiótica discursiva, as teorias enunciativas, bem como, enfaticamente, as principais teorias de leitura. Tal panorama se pautará pelo caráter multi e transdisciplinar dessas teorias – cuja preocupação maior é o texto, como processo complexo de interação e construção social de conhecimento e de linguagem que envolve ações linguísticas, cognitivas e sociais na sua organização, produção e funcionamento –, que levam o aluno a refletir sobre o funcionamento da língua nas diversas situações de interação verbal e social, sobre o uso dos recursos que a língua lhe oferece, sobre a adequação dos textos a cada situação, bem como sobre o papel da leitura no processamento cognitivo do texto, tendo em vista o leitor analisador e o leitor (re)construtor. Objetivos • Levar o aluno ao desenvolvimento e ao aperfeiçoamento da competência linguística. • Desenvolver a capacidade de análise e de identificação de diferentes possibilidades de discurso, nas modalidades oral e escrita. • Aprofundar o conhecimento e as possibilidades de textualidade: compreender, distinguir e aplicar diferentes teorias do texto. • Levar o aluno a refletir sobre o funcionamento da língua nas diversas situações de interação• A língua falada em um país varia de região para região nesse mesmo país. • A língua falada em um país varia de comunidade de fala para comunidade de fala no mesmo país. • A língua falada em um país varia em diversos aspectos: étnico, etário, social, sexual, econômico, profissional, cultural etc. • A língua varia até em um mesmo indivíduo em relação aos seus diferentes níveis de formalidade e situações linguísticas. • A língua pode variar em diferentes níveis (lexical, morfológico, sintático, fonético e semântico). II. Pragmática Observe que a pragmática analisa, de um lado, o uso concreto da linguagem, tendo em vista seus usuários, na prática linguística e, de outro lado, estuda as condições que governam essa 36 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 prática. Ela pode ser apontada como a ciência do uso linguístico, cuja preocupação é antes com a linguagem que com a língua. Nesse sentido, também se afasta dos pressupostos estruturalistas (de Saussure). A pragmática defende a não centralidade da língua em relação à fala. Essa área aposta nos estudos da linguagem, considerando a fala e não observa a língua isolada de sua produção social. Os estudos pragmáticos pretendem definir o que é linguagem e analisá-la (por meio de textos) trazendo para a definição os conceitos de “sociedade” e de “comunicação”, descartados pela linguística saussuriana na subtração da fala (e do falante). Há um forte interesse pelos fenômenos linguísticos que não são puramente convencionais, mas sim compostos também por elementos criativos, inovadores, que se alteram e interagem durante o processo de uso da linguagem. O recorte de análise da pragmática não está reduzido a fatos delimitados e convencionais da língua como sistema (inato), mas sim trabalha a partir de indícios de funcionamento da linguagem, mesmo que isso implique visualizar erro, exceção, licença poética! Observe agora as seguintes correntes pragmaticistas que podem ser apontadas como as principais: Quadro 8 O pragmatismo americano Foi desenvolvido por W. James & Morris sob forte influência dos estudos semiológicos de Charles Peirce, enfatiza a inclusão do sujeito na construção do sentido e desconstrói a noção clássica de Verdade. Os estudos dos atos de fala São influenciados pela filosofia da linguagem (Wittgenstein) e alavancados por Jonh L. Austin, enfatizam a performatividade da linguagem, cuja definição estaria diretamente relacionada à ação e interação. É grande a ênfase nas categorias de enunciados constativos e performativos; nos atos loucionais, ilocucionais e perlocucionais; e nas regras conversacionais que regem o princípio da cooperação na linguagem. Os estudos da comunicação Integram ambos os interesses teóricos anteriores, mas acrescentam ainda o interesse pelas questões sociais e históricas em que priorizam as relações sociais, de classe, de gênero, de raça e de cultura. Vamos entender melhor: das três vertentes supracitadas, a que tem maior repercussão historicamente é a teoria dos atos de fala. Então, aprofundando os estudos dos atos de fala, é importante destacar alguns tópicos, conforme sintetiza Pinto (2007): 1. A discussão sobre a “teoria dos atos de fala” foi aberta para debater como as construções gramaticais podem levar a confusões lógicas entre filósofos. Nesse contexto, J. Austin foi quem melhor se destacou na exposição dos problemas, discutindo a materialidade e historicidade das palavras. Seus estudos procuraram refletir sobre a possibilidade de uma teoria que explicasse questões, exclamações e sentenças que expressam comandos, desejos e concessões. A Teoria dos Atos de Fala, que tem por base conferências de Austin publicadas postumamente em 1962 sob o 37 Teorias do TexTo título How to do things with Word (Austin, 1990), concebe a linguagem como uma atividade construída pelos/as interlocutores/as, ou seja, é impossível discutir linguagem sem considerar o ato de estar falando em si – a linguagem não é assim descrição do mundo, mas ação (PINTO, op. cit., p. 57). 2. Inicialmente, na teoria dos atos de fala, um dos pares conceituais mais importantes é a distinção entre os enunciados: • Performativos – que realizam ações porque são ditos: “Eu vos declaro marido e mulher em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. • Constativos – que realizam apenas uma afirmação, constatação: “A mosca caiu na sopa”. A análise dos contrastes entre esses tipos de enunciados, o performativo e o constativo, levou Austin a prosseguir no raciocínio e a aventar a separação de níveis de ação linguística por meio de enunciados (PINTO, op. cit, p. 58). Esses níveis de ação agem simultaneamente no enunciado, e Austin os denomina: • Atos locucionários – os que dizem alguma coisa: “Eu vou estar em casa hoje”. Tem a ver com o conjunto de sons que se organizam para efetivar um significado referencial e predicativo, pois efetiva uma sentença sobre o eu. • Atos ilocucionários – os que refletem a posição do locutor em relação ao que ele diz: “Eu vou estar em casa hoje”. É a força que o enunciado produz que se tipifica em pergunta, afirmação, promessa, ameaça, ordem, pedido etc. • Atos perlocucionários – os que produzem certos efeitos e consequências sobre o interlocutor, sobre o próprio locutor ou sobre outras pessoas: “Eu vou estar em casa hoje”. É o efeito produzido na pessoa que ouve o enunciado, por exemplo, sendo efeito de agrado, de medo, de ameaça, transformando-se em ação. 3. Os atos de fala podem trazer ambiguidades em suas interpretações, pois um enunciado pode tanto ser entendido como uma ordem, como uma ameaça ou como um pedido: “A porta está aberta”. Assim, é importante considerar sempre o contexto, a situação de fala entre os falantes em questão, e mesmo assim os limites da análise linguística muitas vezes não encontram muita exatidão... Austin dedicou-se principalmente aos verbos performativos prometer, declarar, batizar, casar, ordenar, pedir etc., causando grande furor inicialmente frente à impossibilidade, atestada por ele próprio, de manter a distinção entre os valores de verdade e falsidade para esses enunciados (atacando, assim, os semanticistas formais, lógicos). 4. Questionado em 1958 por um filósofo que dizia que o enunciado performativo poderia sim ser verdadeiro ou falso, Austin respondeu com ironia: Pode-se dizer que um ato é útil, que é conveniente, que ele é mesmo sensato, mas não se pode dizer que ele seja true or false. Qualquer que seja ele, tudo 38 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 que posso dizer é que os enunciados desse tipo são muito mais numerosos e variados do que se acreditava (apud PINTO, op. cit., p. 59). Nesse famoso debate, para insistir na impossibilidade de os enunciados performativos serem considerados verdadeiros ou falsos, Austin ousadamente destitui a própria noção de constatividade que ele mesmo havia postulado antes e mostra que enunciados aparentemente constativos são de fato performativos, como “Eu te digo para fechar a porta” ou “A mosca caiu na sopa”. Ele inclusive declara a insustentabilidade de enunciados constativos, afirmando que o constativo nada mais é do que um performativo mascarado. 5. Em 1981, com sua obra Speech acts, John Searle se dedica a interpretar, reorganizar e dar um acabamento à obra de Austin, firmando a teoria dos atos de fala como importante corrente da linguística. Outros autores como Derrida e Ducrot também se dedicaram a ler e problematizar a obra de Austin, apontando para outras faces de análise da linguagem que não estivessem presas necessariamente à experiência empírica e seus níveis de ação, valorizando aspectos mais históricos, ideológicos, estruturais e argumentativos. III. Análise do discurso Sobre a análise do discurso francesa (doravante AD) é importante saber que essa teoria surgiu na França, nos anos 1960, para suprir as insuficiênciasda análise de conteúdo das ciências humanas, que concebia o texto em sua transparência, como projeção da realidade no mundo (extradiscursivo) sem considerar as ligações linguísticas e textuais. A AD, ao contrário, considera o texto em sua opacidade, enfatizando o funcionamento linguístico-textual dos discursos no contexto histórico-social. Conforme Maingueneau (1987), subjazem à análise do discurso três práticas: 1. Tradição filológica – história e reflexão sobre os textos (instrumento para história, antropologia, filosofia). 2. Prática da explicação de textos – teoria da leitura (contexto universitário na França). 3. Base no estruturalismo – via o texto em sua imanência, diferenciado dos modos de estudo da filologia. Veja que é flagrante a influência do pensamento marxista através de Althusser – distinção entre ciência e ideologia, recorrendo ao materialismo histórico: ideologia geral x ideologias particulares. Para Pêcheux, principal autor na França dessa corrente, uma das vias para esse funcionamento é a linguagem: ela, a linguagem, é o lugar privilegiado em que a ideologia se materializa. Entenda bem: a linguística de Saussure era insuficiente por não dar conta da linguagem linguisticamente, incorporando a sua “exterioridade”, sua condição social, histórica e ideológica. Pêcheux concebe a AD apoiando-se criticamente em Saussure, mesmo que reconhecendo nele 39 Teorias do TexTo o ponto de origem da ciência linguística – fonologia, morfologia, sintaxe. Mas afirma que o estruturalismo saussuriano não dá conta da semântica discursiva e suas condições sócio-históricas. O quadro epistemológico do nascimento da AD é marcado pela presença do materialismo histórico, da linguística, como processos sintáxicos e de enunciação, e da teoria do discurso como teoria dos processos semânticos. A esse quadro deve-se acrescentar, ainda, o apoio teórico buscado no seio da psicanálise freudiana, por meio de Lacan. A AD tenta mostrar a inconsistência dos textos no trabalho ideológico como “ilusão”, desmistificando esse processo. Além da influência de Althusser, há também a influência de Foucault na AD. Foucault concebia o discurso como dispositivo enunciativo e institucional de diferentes práticas discursivas. lembrete Hoje não se pode falar em uma escola de análise do discurso francesa, mas em várias. Houve um deslocamento do discurso político para qualquer tipo de produção verbal. A AD passou a fazer fronteira interdisciplinar com outras disciplinas. O objetivo da AD é apreender a linguagem enquanto discurso, materializando o contato entre o linguístico e o não linguístico. O que interessa é construir o “olhar-leitor” – a ação estratégica do sujeito. A AD relaciona-se com textos produzidos em determinadas formações discursivas: • no quadro de instituições que restringem fortemente a enunciação; • nos quais se cristalizam conflitos históricos, sociais etc.; • que delimitam um espaço próprio no exterior de um interdiscurso limitado. Não se trata de examinar um corpus como se tivesse sido produzido por um determinado sujeito, mas de considerar sua enunciação como o correlato de uma certa posição sócio-histórica na qual os enunciadores se revelam substituíveis. Assim, nem os textos tomados em sua singularidade nem os corpora tipologicamente pouco marcados (socialmente, historicamente e ideologicamente) dizem respeito verdadeiramente à AD (MAINGUENEAU, 1989, p. 14). Mas é importante saber que há críticas à AD que apontam como voltadas aos corpora impressos, institucionalizados (interessados nos mecanismos linguísticos formais e nas condições de produção), deixando de lado outras possibilidades do discurso “comum”, heterogêneo. Tais críticas são em 40 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 certo ponto legítimas, mas elas acabam conduzindo a uma posição confusa. É isso que acontece com as tantas “análises do discurso”. Um exemplo é o que se entende por “análise do discurso” nos Estados Unidos (correntes interacionistas e etnometodológicas) (Ver quadro da página 16 em Maingueneau.) O domínio da AD, mesmo “restrito” dessa forma, permanece ilimitado – discurso jurídico, religioso etc., ou discurso narrativo, didático..., ou, ainda, imprensa socialista, manifestos feministas... questões que atravessam essa ou aquela coletividade em dada conjuntura. Daí se constata a possibilidade de construção de uma infinidade de objetos de análise. Sobre a relação do objeto com os mecanismos de análise, todos os fenômenos linguísticos a priori são passíveis de investigação pela AD. Frente a um corpus, o pesquisador a priori não tem nenhuma razão determinante para estudar um fenômeno em detrimento de outro, da mesma forma que nada o obriga a recorrer a um determinado procedimento ao invés de a qualquer outro. Se, para atingir seu propósito, ele se interessa, por exemplo, pelos adjetivos avaliativos, por metáforas ou por algumas estruturas sintáticas, isto ocorre unicamente em virtude de hipóteses... É o fato de levar em conta a singularidade do objeto, a complexidade dos fatos discursivos e a incidência dos métodos de análise que permite produzir os estudos mais interessantes (MAINGUENEAU, op. cit., p. 18-19). Você entendeu? O analista deve esquematizar as referências linguísticas em que se baseia e esclarecer ao leitor que pretende aprofundar tais questões nos textos que deseja analisar. A partir da crítica feita à dicotomia saussuriana língua e fala, o conceito de discurso se firma na associação de regularidades linguísticas às suas condições de produção, constituindo o falante em sujeito assujeitado. Atualmente os estudos discursivos concebem o discurso, de modo geral, como a prática social de produção de textos. Todo discurso é um construto social, não individual e analisável apenas a partir de suas determinações sociais históricas e ideológicas. A análise do discurso (de linha francesa) é uma prática e uma área da linguística e da comunicação, que se particulariza por analisar formações ideológicas por meio de textos. É muito utilizada para a análise de textos polêmicos, relacionados aos contextos político, pedagógico, religioso, jurídico, científico, midiático e também artístico, de protesto, ou ainda que evidencie minorias marginalizadas, em busca das ideologias que trazem em si. Sua orientação teórica prioriza o estudo da estrutura e o acontecimento discursivos em seus processos formadores, bem como a determinação social histórica e ideológica do/no discurso (INDURSKY, 2006). 41 Teorias do TexTo Algumas das categorias teóricas da análise do discurso mais importantes são: • ideologia e condições de produção do discurso; • formações discursivas, formações ideológicas e formações imaginárias; • intertextualidade, interdiscursividade e intradiscursividade; • paráfrase, polissemia e efeitos de sentido; • dialogismo, polifonia e intertextualidade; • subjetividade e identidade: sujeitos e sentidos. Saiba mais Para você se aprofundar mais neste assunto, sugerimos que visite o link , que disponibiliza um Glossário de análise do discurso, organizado pela autora Maria Cristina Leandro Ferreira. O estudo das valorações discursivas desvela os processos de formações ideológicas, de formações discursivas e de interdiscursividades, que se entremeiam na produção dos sentidos e na constituição dos sujeitos. Observar os aspectos teórico-metodológicos do discurso, como os efeitos de leitura, de autoria e de sentido, as noções de dialogismo e polifonia na linguagem, a questão da argumentação e do uso da língua, constituem uma importante ferramenta para um conhecimento mais amplo e articulado da linguagem. IV. Semiótica discursiva A semiótica aponta o texto, e não a palavra ou a frase, como seu objeto de estudo e procura explicar os sentidos do texto a partir de certos mecanismos e procedimentos de construção do sentido (INDURSKY,2006). Esses mecanismos e procedimentos dizem respeito: • à organização linguístico-discursiva; • às relações com a sociedade e com a história. O texto pode ser tanto um texto linguístico quanto um texto visual, olfativo ou gestual, ou, ainda, um texto em que se sincretizam diferentes expressões, como nos quadrinhos, nos filmes ou nas canções populares. Essa teoria interessa-se pela análise do plano de conteúdo do texto e busca construir a sua significação a partir de percurso gerativo dos sentidos. Esse percurso gerativo dos sentidos possui três grandes níveis de análise: o nível fundamental, o nível narrativo e o nível discursivo. 42 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Quadro 9 Percurso gerativo dos sentidos Nível fundamental É o nível mais abstrato e mais simples. Os sentidos são entendidos pelas categorias de oposição semântica. Os termos são determinados por “relações sensoriais” e considerados atraentes ou repulsivos, tensos ou relaxados, negados ou afirmados por meio das categorias ou determinações tensivo-fóricas. Nível narrativo É o nível em que se introduz o sujeito. Nele ocorrem transformações narrativas operadas pelo sujeito. As categorias semânticas fundamentais tornam-se valores dos sujeitos e são “inseridas” nos objetos com que o sujeito se relaciona. As determinações tensivo-fóricas convertem-se em modalizações, que modificam as ações e os modos de existência do sujeito e suas relações com os valores. Nível discursivo É o nível em que a narrativa é colocada no tempo, no espaço junto de seus sujeitos, objetos, destinadores e destinatários. Os personagens do texto tornam-se atores do discurso; graças a investimentos semânticos e de pessoa, os valores dos objetos vão ser disseminados como temas e transformados sensorialmente. Essas transformações produzem efeitos de sentido e fabricam a ilusão da verdade. V. Estudos enunciativos Partindo do princípio de que a produção de sentidos na linguagem não se verifica em relação ao estado de coisas, mas se realiza a partir das enunciações anteriores e no acontecimento enunciativo, faremos algumas observações sobre o fenômeno da enunciação. Para isso, observaremos algumas reflexões bakhtinianas sobre a enunciação e a polifonia, as considerações de Benveniste sobre a enunciação, os dispositivos teóricos concernentes à teoria polifônica ducrotiana, além de considerações a respeito da semântica enunciativa do acontecimento de E. Guimarães. Bakhtin legou-nos uma importante trilha de reflexões a respeito da polifonia e da enunciação, defendendo o dialogismo constitutivo da linguagem e a natureza social da enunciação. Para ele, a enunciação é o produto da interação dos indivíduos socialmente organizados e, ainda que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. O termo “diálogo” deve ser entendido em um sentido amplo, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas como toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros” e em todo enunciado descobriremos que está o outro em diferentes graus de alteridade. Existe uma gama dos gêneros mais difundidos na vida cotidiana, tão cristalizados, apresentando formas tão padronizadas (por exemplo, os provérbios) que a expressão individual do locutor praticamente só pode manifestar-se na própria escolha do gênero. As palavras não são de ninguém, estão a serviço de qualquer locutor e de qualquer juízo de valor, e podem ser totalmente diferentes, até mesmo contrárias. Conforme Bakhtin, em relação às fórmulas estereotipadas da vida corrente, os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia. Benveniste afirma que a enunciação coloca em funcionamento a língua por um ato individual de utilização, por parte de um locutor que mobiliza a língua por sua conta: é o ato mesmo de produzir um enunciado. A enunciação se caracteriza pela realização vocal da língua, supõe a conversão individual da língua em discurso (a semantização da língua) e apresenta caracteres formais próprios a partir da manifestação individual que ela atualiza. Tal mobilização e apropriação da língua são, para o locutor, a obrigatoriedade de referir pelo discurso e para o outro: “a referência é parte integrante da enunciação”. A emergência dos índices de pessoa (eu/tu) só se produz por meio da enunciação. Como diz o autor, o presente é propriamente a origem do tempo. A enunciação 43 Teorias do TexTo cria entidades na rede de indivíduos em relação ao “aqui-agora” do locutor. Em relação à estrutura do diálogo na enunciação, o autor defende a possibilidade de haver enunciado sem diálogo (portanto sem locutor): Poder-se-ia objetar que pode haver diálogo fora da enunciação, ou enunciado sem diálogo. Os dois casos devem ser examinados. Na disputa verbal praticada por diferentes povos e da qual uma variedade típica é o hain-teny dos Merinas, não se trata na verdade nem de diálogo nem de enunciação. Nenhum dos dois parceiros se enuncia: tudo consiste em provérbios citados e em provérbios opostos citados em réplica. Não há uma única referência ao objeto do debate. Aquele, dos dois participantes, que dispõe do maior estoque de provérbios, ou que os emprega de modo mais hábil, mais malicioso, menos previsível deixa o outro sem saber o que responder e é proclamado vencedor. Este jogo não tem senão a aparência de um diálogo. Inversamente, o “monólogo” procede claramente da enunciação. Ele deve ser classificado, não obstante a aparência, como uma variedade do diálogo, estrutura fundamental. O “monólogo” é um diálogo interiorizado, formulado em “linguagem interior”, entre um eu locutor e um eu ouvinte (BENVENISTE, 1989, p. 87). Ducrot desenvolve mais sistematicamente a teoria polifônica da enunciação, sendo este passo significativo no sentido de romper com a unicidade do sujeito falante. Ele conduz uma reflexão crítica sobre a postura tradicional de algumas linhas teóricas da linguística, que concebem a linguagem como monológica e o sujeito como unicentrado. Conforme Ducrot (1987), sua teoria polifônica da linguagem desconstrói o postulado teórico acerca do sujeito unicentrado. Ele estabelece a distinção entre os conceitos de frase (objeto teórico) e enunciado (fato empírico observável no mundo). A descrição do conceito de enunciação tem três acepções: • enunciação – atividade; • enunciação – produto; • enunciação – acontecimento. É com a última concepção (mais completa) que o autor se coaduna em sua teoria. Dentro dessa perspectiva, conforme o autor, sobre os conceitos de sentido e significado, o sentido diz respeito à enunciação, e o significado diz respeito à frase. Na enunciação, o sentido tem natureza instrucional a partir das “variáveis argumentativas”. A concepção polifônica do sentido mostra como o enunciado assinala, em sua enunciação, a superposição de diferentes vozes. Para Ducrot, tal qual uma cena de teatro em que se configuram diferentes personagens que dialogam entre si, há uma apresentação de diferentes vozes, de vários pontos de vista, e o locutor tem como função provocar seu aparecimento e mostrá-los dentro do enunciado: a estes diferentes pontos de vista, o autor vai chamar de enunciadores. Ducrot (1988) aponta três diferentes funções enunciativas para melhor identificar a multiplicidade de vozes presentes na enunciação: • O sujeito empírico (SE): que é o autor efetivo, agente da reprodução de discursos já escutados ou lidos. O ser empírico que preenche o lugar de sujeito. 44 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • O locutor (L): que é o responsável presumido peloenunciado, a quem se atribui a responsabilidade pelo mesmo, responsável inclusive pelo ato praticado e não pelo conteúdo proposicional (marcas em primeira pessoa). • O locutor (Lp): que é o locutor-enquanto-pessoa-no-mundo, aquele que serve de suporte para determinadas predicações. • Os enunciadores (E1, E2): que são os vários pontos de vista que podem ser percebidos em um mesmo enunciado. Apagada a mediação do sujeito empírico na enunciação, as figuras enunciativas (SE, L, E1, E2...) dão lugar à multiplicidade de sujeitos. Guimarães. Assim como Ducrot, esse autor distancia-se da visão de Benveniste, que concebe a enunciação como uma atividade do locutor em produzir um enunciado e que considera o sujeito da enunciação como uno, único e onipotente em relação ao seu próprio dizer e à língua da qual esse sujeito se apropria para dizer algo. Ele mantém que no enunciado há a representação de diferentes papéis do locutor. “As personagens se constroem na medida em que se representa uma diante da outra” (GUIMARãES, 2002, p. 21). O autor explicita que a dupla falante/ouvinte apenas caracteriza os agentes físico-fisiológicos de falar e ouvir, de modo que não dizem respeito ao linguístico e, portanto, não se incluem como objeto da semântica. Entretanto, as figuras/personagens da enunciação linguisticamente consideradas são: locutor/alocutário e enunciador/destinatário. O locutor é aquele que se representa com eu na enunciação, representando-se, internamente ao discurso, como responsável pela enunciação em que ocorre o enunciado. O locutor é uma figura constituída internamente ao discurso e marcada no texto pelas formas do paradigma do eu. O alocutário é o tu do discurso, representado enquanto correlato do locutor pelo próprio locutor. Na representação do locutor, podemos distinguir dois papéis, L e Lp. O locutor-L é aquele que simplesmente se representa como fonte do dizer. O locutor-Lp é o locutor-enquanto-pessoa-no-mundo. O locutor-enquanto-pessoa-no-mundo deve ser caracterizado sócio-historicamente, e isso já se constitui em um deslocamento que o autor faz em relação a Ducrot, para quem o Lp é apenas mais uma figura representativa das funções enunciativas que ele descreve. Respectivamente ao locutor-L, há o alocutário-AL e, ao locutor-enquanto-pessoa-no-mundo, há o alocutário-enquanto-pessoa (ALp) (ibidem, p. 22). Há ainda o nível da relação entre enunciador e destinatário para fechar o quadro polifônico da enunciação. O enunciador é a posição do sujeito que estabelece a perspectiva da enunciação. O destinatário é o correlato constituído segundo a perspectiva do enunciador. Suponhamos aqui que no meio de uma conversa alguém diga: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Em tal enunciado representa um L que fala da perspectiva do senso comum e que, inclusive, mobiliza essa perspectiva como argumento para o que diz. Assim L, nesse caso, fala de uma perspectiva genérico-coletiva, e esta enunciação representa um enunciador genérico-coletivo. Ao contrário de Benveniste, Guimarães não exclui o enunciado proverbial do funcionamento enunciativo, nem dialógico, nem muito menos lhe sonega o locutor. Guimarães procura caracterizar uma cena enunciativa no texto, que cruza as representações da enunciação (L, Lp, E), e como essas representações relacionam-se com as de alocutário e destinatário, representando a alteridade na enunciação. As categorias de análise mencionadas pelo autor são inspiradas na teoria polifônica da enunciação de Ducrot, mas ele enfatiza seu afastamento quanto ao apego à posição estruturalista manifestado por Ducrot. Para o autor, a enunciação constitui historicamente as regularidades da língua, que estão sempre abertas ao efeito do episódio enunciativo. 45 Teorias do TexTo Para finalizar esta primeira unidade, apresentaremos um quadro teórico, adaptado de Indursky (op. cit., p. 75), que sintetiza os aspectos mais importantes das diferentes teorias de estudos do texto e da linguagem, que foram apresentadas nesta unidade, em contraste com a linguística textual: Quadro 10 Linguística textual Sociolinguística Pragmática Semiótica discursiva Teorias da enunciação Análise do discurso Unidade formal: início, meio e fim Registros / recortes de fala Texto equivalente ao enunciado Atos de fala Objeto semiótico- linguístico e não linguístico Texto equivalente ao enunciado Unidade significativa Efeito-texto: completude: começo, meio e fim Texto: objeto não acabado, aberto Relações com a intertextualidade e interdiscursividade Objeto heterogêneo Coesão e coerência Diferentes níveis de variação da/ na linguagem Atos de fala; intencionalidade; perfomatividade na linguagem Textualização: junção do plano do conteúdo com o plano de expressão Coesão e consistência Textualização, tessitura dos recortes e das cadeias discursivas, efeito de textualidade - - - - - Trabalho dos sentidos no texto Internas Internas e contextuais Internas e contextuais Internas Internas e contextuais Textuais Contextuais Intertextuais Interdiscursivas Linguístico (contexto) Linguístico Situacional (aqui/agora) Sócio-histórico Autor/leitor Falante/ouvinte Falante/ouvinte; interacionalidade; cooperatividade Sujeito do discurso: representação da instância do sujeito do discurso: actantes Locutor/ interlocutor Posição-sujeito inscrita em uma formação discursiva (sujeito atravessado pelo inconsciente e interpelado pela ideologia) Funções enunciativas do sujeito: função-autor; efeito-autor; autoria Sentido dado pelo texto Sentido dado pela situação linguística e social Sentido dado pela situação linguística e interacional Construção do percurso gerativo dos sentidos Sentido construído pelos interlocutores Sentido intervalar: efeito de sentido entre o sujeito-autor e o sujeito-leitor mediado pelo texto Texto/ discurso: equivalentes Texto/discurso: equivalentes Texto/discurso: equivalentes Texto /discurso equivalentes Texto: representação semântica do discurso Uma unidade que deve ser manifestada por alguma semiótica Texto/ enunciado/ discurso: equivalentes Texto: a materialidade do discurso 46 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 resumo Nesta primeira unidade, você acompanhou o nascimento e a evolução da linguística textual em suas três fases ao longo das quais evoluiu também o conceito de texto. 1ª fase – transfrástica: ruptura com a unidade da frase em busca da unidade do texto. O texto é concebido como: • uma sequência pronominal ininterrupta – ênfase no fenômeno de correferenciação; • uma sequência coerente de enunciados – encadeamento lógico, mediante a conectividade; • uma forma de organização do material linguístico – sequenciamento lógico com início, meio e fim; • unidade linguística superior à frase – unidade de análise mais complexa e completa. 2ª fase – gramáticas textuais: considera o texto como produto ideal de uma competência textual, postulando a separação entre texto x não texto. O texto é concebido como: • um complexo de proposições sintático-semânticas – apresenta um conjunto de conteúdos que se organizam na superfície textual em função da coerência e da coesão; • uma estrutura pronta e acabada – equivalente a um modelo formal e ideal definido a priori; • produto de uma competência linguística idealizada do ponto de vista de um falante ideal e de um modelo de texto ideal – ênfase no aspecto formal do texto em sua extensão e seus constituintes; • a maior unidade linguística com sequenciamento de signos linguísticos coeso (microestrutura), coerente (macroestrutura) e consistente. 3ª fase – teoria do texto: desconsidera a separação texto x não texto. O texto não pode ser entendido como um produto, uma estrutura pronta e acabada, e passa a ser concebido como: • uma atividade verbal, consciente e interacional entre falante/ouvinte– leitor/leitor; 47 Teorias do TexTo • um conjunto de operações linguísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento e recepção, seja de natureza escrita ou oral; • um processo com atividades globais de comunicação – planejamento, verbalização e construção. Sua organização envolve a coesão no nível dos constituintes linguísticos, a coerência no nível semântico e cognitivo e o sistema de pressuposições e implicações no nível pragmático da produção, no plano das ações e intenções dos falantes; • enfim, um ato de comunicação unificado em um complexo universo de ações humanas, preservando a organização linear, que é o tratamento estritamente linguístico (coesão), e considerando a organização reticulada ou tentacular não linear (coerência – sentidos e intenções), no aspecto semântico e nas funções pragmáticas. A partir das considerações teóricas da linguística textual, você observou que a unidade do texto é analisada por meio do processamento textual e de sua organização estrutural. Os sentidos no texto se produzem/constroem a partir desses eixos de articulação e processamento. • O processamento textual dá-se mediante sistemas de conhecimento acionados no texto e no contexto de produção, a saber: – conhecimento linguístico; – conhecimento enciclopédico ou de mundo; – conhecimento interacional. • A organização estrutural divide-se entre os níveis: – superestrutural; – macroestrutural; – microestrutural. O nível superestrutural é o que diz respeito, de modo geral, aos gêneros (carta, ensaio científico, cartum, outdoor, telefonema, telegrama, e-mail, receita de bolo, relatório etc.) e tipos textuais (narrativo, descritivo, expositivo etc.); e de modo mais específico aos modelos ou estruturas cognitivas globais: as inferências, frames, esquemas, scripts e planos. O nível macroestrutural é o que diz respeito aos fatores de textualidade ou fatores de coerência: princípio de interpretabilidade, situação 48 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 comunicativa, conhecimento de mundo e conhecimento partilhado, polifonia, intertextualidade, intencionalidade, informatividade etc. Já no nível microestrutural, ou seja, o da coesão textual, há três grandes níveis de coesão e seus subtipos, conforme se mostra a seguir: 1. Coesão referencial por substituição (proformas pronominais, verbais, adverbiais, numerais) e por reiteração (repetição do mesmo item lexical, sinonímia, hiponímia e hiperonímia, expressões nominais definidas, nomes genéricos). 2. Coesão recorrencial por recorrência de termos, paralelismo, paráfrase, recursos fonológicos (segmentais e suprassegmentais). 3. Coesão sequencial que pode ser temporal (ordenação linear, expressões ordenadoras ou continuadoras, partículas temporais, correlação dos tempos verbais) e por conexão por meio dos operadores do tipo lógico, operadores do discurso e pausas. Por fim, você ampliou sua visão acerca dos estudos do texto contrastanto os conhecimentos veiculados pela linguística textual com outras perspectivas linguísticas de estudo do texto, como a sociolinguística (que investiga a relação entre linguagem e sociedade), pragmática (que é a ciência do uso concreto da linguagem), análise do discurso (que aprofunda a análise para além do texto em busca da rede interdiscursiva que sustenta seus sentidos determinados sócio-histórico-ideologicamente), semiótica discursiva (que estuda o percurso gerativo dos sentidos nos níveis fundamental, narrativo e descritivo) e os estudos enunciativos, a partir das contribuições de Bakhtin, Benveniste e Ducrot (que esforçaram-se para conceber a linguagem e o texto dialogicamente, em sua polifonia e polissemia, em seu acontecimento enunciativo que convoca o sujeito/enunciador a apropriar-se do dizer). exercícios QUESTÃO 1. Considere o bilhete a seguir e as afirmações subsequentes. “Querido, deixei o boleto em cima da mesa. Não se esqueça do presente para ele. Devo chegar mais tarde hoje. Beijos.” I. Na visão da teoria do texto, o enunciado não pode ser considerado um texto, uma vez que não há coerência entre os períodos e a mensagem não é clara para o leitor. 49 Teorias do TexTo II. A teoria do texto considera que o sentido do texto se completa dentro do contexto em que os interlocutores estão inseridos. III. O bilhete usa os elementos de coesão referencial, como, por exemplo, o pronome pessoal “ele”, que se refere a um elemento já mencionado no texto. Assinale a alternativa correta: A) Somente a afirmativa I está correta. B) Somente a afirmativa II está correta. C) Somente a afirmativa III está correta. D) As afirmativas I e II estão corretas. E) As afirmativas II e III estão corretas. Resposta correta: alternativa B. Análise das alternativas I. Afirmativa incorreta. Justificativa: a teoria do texto não faz distinção entre texto e não texto. O bilhete faz sentido para os interlocutores, o que é suficiente para que seja considerado um texto. II. Afirmativa correta. Justificativa: a teoria do texto considera a situação de produção do enunciado e não apenas o texto em si. A situcionalidade de comunicação é importante sob essa ótica. III. Afirmativa incorreta. Justificativa: embora o pronome pessoal seja normalmente utilizado para substituir um termo já mencionado no texto, não é o que ocorre no texto. O referente só é conhecido pelos interlocutores envolvidos no bilhete. QUESTÃO 2. Considere o trecho a seguir e as afirmações subsequentes. “Com efeito, são frequentes as piadas que exploram algum tipo de preconceito: Na escola, a professora manda um aluno dizer um verbo qualquer e ele responde: – Bicicreta. A professora, então, corrige: – Não é “bicicreta”, é “bicicleta”. E “bicicleta” não é verbo. Ela tenta com outro aluno: – Diga um 50 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 verbo! Ele arrisca: – Prástico. A professora, outra vez, faz a correção: – Não é “prástico”, é “plástico”. E “plástico” não é verbo. A professora faz a sua última tentativa e escolhe um terceiro aluno: – Fale um verbo qualquer! – Hospedar. A professora comemora: – Muito bem! Agora, forme uma frase com esse verbo. – Os pedar da bicicreta é de prástico. Muito provavelmente a piada chamará a atenção dos alunos e eles a acharão engraçada. Entretanto, o que produz este efeito de humor? Marcos Bagno, em sua obra A língua de Eulália (Editora Contexto, 1997), discute situações parecidas com a explorada na piada acima, em que o simples fato de alguém falar diferente (com relação à fala culta) soa engraçado, servindo como motivo de piada. No livro (trata-se de uma novela sociolinguística), o linguista constrói uma personagem, Eulália, que fala “semelhante” ao modo apresentado na piada (semelhante, não idêntico, pois as piadas baseiam-se em estereótipos, nunca em representações linguísticas fiéis à realidade). No entanto, Bagno mostra que, de engraçado, a fala de Eulália não tem nada” (Unicamp/IEL, 2011). I. Observando os “erros” encontrados na piada exposta acima, percebe-se a tendência do falante em trocar o “r” pelo “l”, comum em algumas regiões do país. II. A sociolinguística caracteriza-se como uma área de pesquisa que se dedica a estudar a diversidade linguística, considerando a identidade social do emissor. III. A leitura de piadas desse tipo em sala de aula não é adequada, pois, de acordo com a visão sociolinguística, na escola deve-se aprender apenas a norma culta, deve-se ensinar aos alunos a utilização do português correto, mostrando que outras formas de expressão não são válidas. Assinale a alternativa correta: A) Todas as afirmativas estão corretas. B) Estão corretas as afirmativas I e II, apenas. C) Estão corretas as afirmativas I e III, apenas. D) Estão corretas as afirmativas II e III, apenas. E) Está correta a afirmativa I, apenas. Resolução desta questão na Plataforma.51 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Unidade II TEXTO ORAL E TEXTO ESCRITO: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E PEDAGÓGICAS 5 A RELAÇÃO ORALIDADE/ESCRITA E SEUS DIFERENTES NÍVEIS DE FORMALIDADE E VARIAÇÃO: UMA QUESTÃO LINGUÍSTICA, SOCIAL E PEDAGÓGICA Caro aluno, não é novidade o fato de que o ensino tradicional de língua em nossas escolas (seja língua materna ou estrangeira) é, ainda, bastante questionável em muitos dos seus aspectos. Essa constatação já é um consenso entre os educadores brasileiros, e tem-se identificado na formação do professor uma das principais causas dessa situação. É claro que são vários os fatores que causam essa crise, sendo a formação deficiente do professor de língua apenas uma das marcas visíveis do problema. Um dos aspectos dessa deficiência é a falta de uma base teórica que lhe dê segurança para trabalhar com o texto em sala de aula, fornecendo os procedimentos de leitura, interpretação e produção de textos pertinentes e necessários. Como você deve supor, o ensino tradicional não considera a noção de variação linguística, não leva em conta a linguagem falada e trabalha com uma linguagem “estática”. Ele se torna ainda mais precário no que se refere ao trabalho: com a linguagem oral e com os níveis de formalidade do discurso; com a conceituação do que vem a ser o texto e seus critérios de textualidade; e com o processo de leitura e produção escrita. Infelizmente, a realidade escolar mostra sérios problemas relacionados à aquisição da linguagem escrita, envolvendo os processos de leitura e produção: • O discurso oral é tomado apenas como “antimodelo”, ou seja, o que deve ser evitado na escrita, deixando de ser explorado enquanto processo ativo na linguagem. • Os níveis de formalidade textual são encarados apenas como dois parâmetros, que classificam a linguagem como formal (escrita) ou informal (oral), deixando de conferir ao texto (oral ou escrito) uma posição em uma “escala” de formalidade, atribuindo-lhe a propriedade de ser mais ou menos formal de acordo com sua natureza. • O texto, na maioria das vezes, é tido como um conjunto de palavras a serem decodificadas sem se levar em conta elementos como autoria e sentido. • O processo de escrita é considerado como cópia do padrão da escrita literária e acadêmica, sem que se ensine como se dá esse processo nem quais as implicações da relação entre a passagem da oralidade para a escrita e o exercício da produção textual escrita. É urgente buscar soluções no sentido de se adotar uma postura mais séria e comprometida que supere e redimensione as concepções tradicionais de ensino de língua, veiculadas convencionalmente 52 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 nas escolas. Assim, justifica-se a ênfase na importância acerca da reflexão sobre um continuum na relação fala/escrita e suas implicações na aquisição da linguagem escrita e nos processos de leitura e produção, para uma aprendizagem mais proveitosa e adequada. Outro ponto merecedor de destaque é que refletir sobre a relação oralidade/escrita inevitavelmente traz à tona questões relacionadas à variação linguística, e, nesse sentido, é importante refletir sobre os aspectos teóricos que dizem respeito às modalidades oral e escrita em relação aos diferentes níveis de formalidade da linguagem e variação que compõem um continuum fala-escrita. A elaboração textual está baseada em uma diversidade de gêneros textuais, que, se bem explorada, a partir das diversas situações do dia a dia, nos diferentes níveis de formalidade, tanto no que se refere a textos falados como textos escritos, propicia uma reflexão acerca da influência mútua entre as modalidades oral e escrita, uma vez que tudo o que se fala pode se tornar escrito e vice-versa. Vejam-se alguns exemplos desses diferentes gêneros textuais do dia a dia (falados e escritos): Quadro 11 Diferentes gêneros textuais do dia a dia Escritos Falados Cartas: pessoais, de recomendação, de demissão etc. Novelas* (realização oral, elaboração escrita) Memorandos, ofícios, circulares Comerciais* (realização oral, elaboração escrita) Anúncios: publicitários, de emprego, de venda etc. Cinema* (realização oral, elaboração escrita) Formulários (diversos) Peças teatrais* (realização oral, elaboração escrita) E-mails, chats Telefonemas Multas Aulas Posts, coments de blogs Entrevistas de emprego Notas fiscais Conferências, palestras, comunicações, Listas de compra Discursos Bulas de remédio, receitas médicas, exames médicos Conversas de bar, de elevador, de ponto de ônibus, de namorados, de marido/mulher, de ex-marido e ex-mulher etc. Recibos Teleconferências Contas domésticas Bate-papo em viva-voz via Skype, MSN etc. Jornal impresso e eletrônico Programas de rádio e TV Cheques Pregão na feira, na rua, na bolsa de valores Placas, outdoors Fofocas Recados de geladeira, de Orkut, de post-it etc. “Bronca” (reprimenda) dos pais, da professora, do guarda de trânsito etc. Etc.! Etc.! A investigação linguística (sobretudo a textual), bem como a prática pedagógica, devem explorar as variedades de linguagem, não só incorporando o estudo da oralidade a suas questões de análise e investigação, mas concedendo-lhe uma consideração especial no que se refere à relação fala/escrita. 53 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Como bem coloca Marcuschi (1997), a variação linguística pode ser investigada tanto na oralidade como na escrita. No entanto, é interessante enfocarmos a fala, já que esta é uma atividade muito mais fundamental que a escrita na vida das pessoas. O homem é essencialmente um ser que fala. Entretanto, como temos visto, a escola não considera esse lugar da fala e confere, no ambiente acadêmico, uma posição inferior, desvalorizada, centralizando a atenção dos alunos nas atividades de escrita. Lembrete Esse imaginário já está tão arraigado que é comum ouvir que a escola está aí para ensinar a escrita e não a fala. A escola não pode ignorar a fala porque a escrita está essencialmente ligada a ela e, como já foi dito, o homem é essencialmente um ser que fala e não um ser que escreve. Se se parar para pensar um pouco sobre a questão, o que é possível observar é que a atenção dada à fala no ambiente escolar e nos manuais didáticos é também resquício dos pressupostos teóricos linguísticos dos últimos séculos, que não mantinham uma preocupação com a fala “real”, ou autêntica, e, portanto, desprezava a produção oral efetiva. Conforme Marcuschi, ”fenômenos como a prosódia e até mesmo aspectos e efeitos expressivos de usos variados da língua e a própria variação socioletal não estavam nos horizontes da linguística (op. cit., p. 40). Saiba que só nos últimos anos é que a oralidade começou a ser investigada mais seriamente e passou-se a refletir acerca da importância do estudo da fala e de suas variedades no ensino de língua. Hoje, a preocupação com a oralidade vem se tornando cada vez mais aceita no contexto escolar. Contudo, nem sempre essa preocupação volta-se para as questões principais que devem ser abordadas. O ensino de língua deve garantir que a oralidade assuma o seu papel e o seu lugar na sala de aula, e, portanto, deve ter em vista que variedade textual é adequada para ser trabalhada, considerando também a diversidade contextual. O principal objetivo em veicular um ensino baseado nessas questões é o de evitar a criação de uma concepção “monolítica” restrita ao modelo de escrita padrão. Como já se disse, a variedade linguística tanto se faz observar na fala como na escrita, e o estudo dessas variedades deve ser conduzido de maneira continuada em ambas as modalidades. De acordo com Marcuschi, enxergar a língua por uma ótica “monolítica” leva a conceber um “dialeto de fala padrão” fundamentado na escrita, sem ligações com as relaçõesde “influências mútuas” entre fala e escrita. A fala deve ter seu lugar bem-definido no ensino de língua. Entenda que não se trata de ensinar a falar, mas de identificar a grandiosa riqueza e variabilidade dos usos da língua, pois um aspecto central no estudo da oralidade é a variação. É de fundamental importância ter em mente que a língua falada é variável: 54 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • de cultura para cultura; • de sociedade para sociedade; • de grupo para grupo; • de situação para situação; • de indivíduo para indivíduo; e • a visão do dialeto padrão uniforme é uma visão teórica, que não tem constatação no mundo real, não há um equivalente empírico para essa sistematização da língua(gem) (idem, p. 41). Assim, não podemos perder de vista, no ensino de língua materna, noções como: • padrão; • norma; • jargão; • dialeto; • gênero; • gíria; • variante; • sotaque; • registro; • estilo etc. Outro aspecto que não devemos perder de vista é a análise dos níveis de formalidade (+/- formal; +/- informal) e dos níveis de uso da língua e suas funções e valores sociais do mais ao menos formal, tanto na escrita como na fala, sem que tal abordagem se prenda restritamente à observação lexical. Conforme Marcuschi (op. cit.), a análise dos textos orais pode revelar as relações mútuas e diferenciadas que a fala mantém com a escrita, influenciando uma à outra nos diferentes processos de aquisição da escrita. O estudo da oralidade pode revelar a contribuição da fala na formação sócio-cultural e na preservação de tradições orais que persistem mesmo em culturas decisivamente letradas. Além disso, viabiliza, também, a investigação das diferenças e semelhanças nas atividades que relacionam fala e escrita, facilitando a abordagem da diversidade de processos de contextualização inserida nas produções orais e escritas. 55 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Saiba mais Você pode ampliar sua visão acerca deste assunto, variação linguística, observando e analisando alguns filmes como: Domésticas – o filme, de Nando Olival / Fernando Meirelles, 2001. Sinopse: “No meio da nossa sociedade existe um Brasil notado por poucos. Um Brasil formado por pessoas que, apesar de morar dentro de sua casa e fazer parte de seu dia a dia, é como se não estivesse lá. Cinco das integrantes deste Brasil são mostradas em Domésticas – o filme: Cida, Roxane, Quitéria, Raimunda e Créo. Uma quer se casar, a outra é casada, mas sonha com um marido melhor. Uma sonha em ser artista de novela e outra acredita que tem por missão na Terra servir a Deus e à sua patroa. Todas têm sonhos distintos, mas vivem a mesma realidade: trabalhar como empregada doméstica” (disponível em: ). Desmundo, de Alain Fresnot, 2003. Sinopse: “Brasil, por volta de 1570. Chegam ao país algumas órfãs, enviadas pela rainha de Portugal, com o objetivo de desposarem os primeiros colonizadores. Uma delas, Oribela (Simone Spoladore), é uma jovem sensível e religiosa que, após ofender de forma bem grosseira Afonso Soares D’Aragão (Cacá Rosset), vê-se obrigada a casar com Francisco de Albuquerque (Osmar Prado), que a leva para seu engenho de açúcar. Oribela pede a Francisco que lhe dê algum tempo, para ela se acostumar com ele e cumprir com suas “obrigações”, mas paciência é algo que seu marido não tem e ele praticamente a violenta. Sentindo-se infeliz, ela tenta fugir, pois quer pegar um navio e voltar a Portugal, mas acaba sendo recapturada por Francisco. Como castigo, Oribela fica acorrentada em um pequeno galpão. Deprimida por estar sozinha e ferida, pois seus pés ficaram muito machucados, ela passa os dias chorando e só tem contato com uma índia, que lhe leva comida e a ajuda na recuperação, envolvendo seus pés com plantas medicinais. Quando ela sai do seu cativeiro continua determinada a fugir, até que numa noite ela se disfarça de homem e segue para a vila, pedindo ajuda a Ximeno Dias (Caco Ciocler), um português que também morava na região” (disponível em: . Considerar o estudo da fala e a ele se dedicar é, principalmente, criar uma oportunidade ímpar para explicitar, conforme Marcuschi, 56 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 aspectos relativos ao preconceito e à discriminação linguística, bem como, suas formas de disseminação. Além disso, é uma atividade relevante para analisar em que sentido a língua é um mecanismo de controle social e reprodução de esquemas de dominação e poder implícitos em usos linguísticos na vida diária, tendo em vista suas íntimas, complexas e comprovadas relações com as estruturas sociais (MARCUSCHI, op. cit., p. 43). Marcuschi (op. cit.) discute o papel e o lugar da oralidade no ensino de língua e ilustra sua argumentação com uma criteriosa análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e de uma gama considerável de livros didáticos de 1º e 2º graus. O autor afirma que, no século XXI, um dos desafios para as obras didáticas será aprender a lidar com a variação linguística em seus mais variados aspectos: 1. variação sociolinguística; 2. variação dialetal; 3. variação de registros e níveis de fala; 4. variação de gêneros textuais realizados na fala; 5. variação de estratégias organizacionais da interação verbal; 6. variação de estratégias comunicativas; 7. variação de estratégias e processos de compreensão na interação; 8. variação de situações sociocomunicativas; 9. variação de construções sintáticas; 10. variação de seleção lexical (idem, p. 76). Aceitar esse desafio e respeitar o lugar da oralidade na aula de língua é comprometer-se com um ensino sem discriminações linguísticas. 5.1 Diferenças e características da fala e da escrita: interferência mútua entre elas A fala e a escrita são duas modalidades de uso da língua que utilizam o mesmo sistema linguístico, mas têm suas próprias peculiaridades. Isso não significa que devam ser encaradas de maneira dicotômica (oposta, sendo uma superior e outra inferior). Conforme sintetiza Koch (2007; 1997), vários estudiosos dessa área, como Marcuschi (1995/2007a), Koch & Oesterreicher (1990), Halliday (1985) e Koch (1992), afirmam que “os diversos tipos de práticas sociais de produção textual situam-se ao longo de um continuum tipológico, em cujas extremidades estariam, de um lado, a escrita formal e, do outro, a conversação espontânea, coloquial” (KOCH, 2007, p. 31). 57 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Quadro 12 Escrita formal Oralidade informal Marcuschi deixa bem clara a natureza desse continuum tipológico, mostrando que as diferenças entre oralidade e escrita dão-se dentro de um continuum tipológico das práticas sociais de produção de texto e não na relação dicotômica de dois polos opostos. Assim, o continuum tipológico distingue e correlaciona os textos de cada modalidade quanto às estratégias de formulação textual que determinam o continuum das características que diferenciam as variações das estruturas, seleções lexicais etc. Tanto a fala como a escrita dão-se em um continuum de variações, surgindo daí semelhanças e diferenças ao longo de dois contínuos sobrepostos (MARCUSCHI, 2007a). Para proceder à localização dos diversos tipos de texto no continuum, Koch (2007) relata a contribuição de alguns importantes autores da linguística textual: • Koch & Oesterreicher indicam o uso do critério medium e do critério proximidade/distância. • Chafe considera o nível maior ou menor de envolvimento dos interlocutores. • Halliday sugere que o texto escrito tem maior densidade lexical, e o falado, maior complexidade sintática. • Koch sustenta que os textosescritos podem estar mais próximos do polo conversacional e vice-versa. Há ainda os tipos mistos e intermediários. Saiba mais Você pode ampliar sua visão acerca deste assunto assitindo ao filme Narradores de Javé, de Eliane Caffé, 2003 e analisando-o. Esse filme deixa bastante explícitas as diferenças entre fala e escrita, evidenciando ainda a importância e poder legitimador que tem a escrita (científica) para certos funcionamentos sociais. Sinopse: Somente uma ameaça à própria existência pode mudar a rotina dos habitantes do pequeno vilarejo de Javé. É aí que eles deparam com o anúncio de que a cidade pode desaparecer sob as águas de uma enorme usina hidrelétrica. Em resposta à notícia devastadora, a comunidade adota uma ousada estratégia: decide preparar um documento contando todos os grandes acontecimentos heróicos de sua história, para que Javé possa escapar da destruição. Como a maioria dos moradores são analfabetos, a primeira tarefa é encontrar alguém que possa escrever as histórias. Dispoível em: . 58 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Observe que, conforme Koch (2007; 1997), alguns autores (Chafe, Tannen, Halliday, Oesterreicher etc.) a partir da década de 1960 consideraram a dicotomia entre as modalidades fala e escrita, atribuindo a cada uma características particulares. Koch afirma que tais características refletiam uma visão preconceituosa e centrada no modelo da escrita formal padrão. Com base em tal dicotomia fala x escrita, categorizava-se (KOCH, 2007, p. 32): Quadro 13 Fala Escrita Contextualizada Descontextualizada Implícita Explícita Redundante Condensada Não planejada Planejada Predominância do modus pragmático Predominância do modus sintático Fragmentada Não fragmentada Incompleta Completa Pouco elaborada Elaborada Pouca densidade informacional Densidade informacional Predominância de frases curtas, simples e coordenadas Predominância de frases complexas e subordinadas Pequena frequência de passivas Emprego frequente de passivas Poucas nominalizações Abundância em nominalizações Menor densidade lexical Maior densidade lexical Você deve compreender que, em linhas gerais, é possível considerar que essas características não são exclusivas nem de uma nem de outra modalidade e que elas foram estabelecidas a partir dos parâmetros da escrita por visão preconceituosa, que discriminava a fala. Nesse sentido, é mister entender que a fala possui características próprias, particulares à sua situação enunciativa, sua forma de organização e realização. Veja a seguir algumas das características mais essenciais da natureza da fala (mencionadas por KOCH, op. cit., e por MARCURSCHI, op. cit.), que merecem destaque e revelam-se originalmente particulares a ela. • Devido à sua interacionalidade intrínseca, a fala é, a priori, “não planejável”. Ela precisa ser apenas “localmente planejável”. • Possui sua verbalização e seu planejamento concomitantes, pois esses processos emergem no momento da interação – a fala é o seu próprio rascunho. • Apresenta descontinuidades frequentes no fluxo discursivo: abandono de tópicos discursivos; retomadas de tópicos discursivos, inserções abruptas de novos tópicos discursivos, truncamentos etc. • Sintaxe característica/típica ligada, de certa forma, à sintaxe geral da língua. Um exemplo é a topicalização: “Esse menino, eu não sei se tomou banho hoje”; “A violência, falta de segurança, eu não me acostumo com esse ritmo de grandes metrópoles no Brasil”. 59 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • Fala é processo, portanto, é dinâmica: não é um produto pronto e acabado, pois está continuamente se refazendo, indo e voltando nos tópicos de interesse dos interlocutores, definindo-se em razão das necessidades, escolhas e pressões comunicativas da interação. Veja que na atividade de “coprodução” discursiva, os interlocutores empenham-se juntos na produção textual. Em função da interação imediata, há pressões de natureza pragmática que passam por cima das exigências sintáticas: truncamentos, correções, inserções, repetições e parágrafos. Esses elementos têm uma função importante, a função cognitivo-interacional (MARCUSCHI, 1986, apud KOCH, op. cit.). O texto falado não é caótico, ele tem sim uma estrutura própria, que se pauta a partir de sua produção. É nesse sentido que deve ser descrito, estudado e analisado. No processo de produção do texto falado, os interlocutores estão in praesentia – num mesmo tempo e espaço físico (salvo exceções como telefone, rádio e outras possibilidades de conversação oral à distância que a tecnologia oferece). Agora que você já conhece as diferenças e características que perfilam as duas modalidades (falada e escrita), vejam-se a seguir as principais interferências da oralidade na escrita, conforme aponta Koch (1997). I. Questão de referência: na oralidade, muitas vezes os referentes são recuperados no próprio contexto (basta apontar, por exemplo), dispensando assim que os falantes precisem explicitá-los sempre. Mas, na escrita, não é bem assim, pois por ser não presencial há a necessidade de explicitar sempre os referentes, por meio das marcas linguísticas. O trecho a seguir revela a produção escrita de um sujeito que ainda não consegue diferenciar bem os usos da situação oral dos usos da escrita. Exemplo: “[...] certo dia um homem muito rico mudou-se, para perto da fazenda do pobrehomem. Ese homen era mau e iguinorante. Assim que soube se sua existência, dia e noite não parava de atormentá-lo, então ele disse [...]” (KOCH, op. cit., p. 35). II. Repetições: no texto falado, a repetição é muito frequente, aliás ela é um dos seus mecanismos de organização, desempenhando funções didáticas, sintáticas, argumentativas, enfáticas etc. O trecho a seguir revela a interferência clara de um recurso da fala na escrita. Exemplo: “[...] já estavam chegando no final da gruta andaram andaram-andaram chegaram no final da gruta virão o bau-cheio de jóias moedas voutaram para casa e ficaram muito felizes” (idem, p. 36). III. Uso de organizadores textuais: são tópicos continuadores da fala, por exemplo: e, aí, daí, então, daí então etc. Os textos das crianças são ricos em organizadores textuais típicos da oralidade. Exemplo: “era uma vês un castelo abandonado e um dia 2 mininos pobres que tinham passado por lá. comesaram a reformar o castelo e o tempo foi pasando e a notícia se espahol e os mininos creseram e finalmente o castelo ficol pronto os mininos foram entrando e lá dentro tinha 8 cuartos” (ibidem). IV. Justaposição de enunciados sem marca de conexão explícita: é comum, nos textos, enunciados justapostos, sem elementos explícitos de conexão, ligação ou transição. O sujeito que está 60 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 adquirindo a modalidade escrita ainda não aprendeu os mecanismos sequenciadores próprios dessa modalidade e mistura à escrita o padrão oral. Exemplo: “Entraram na gruta com lanterna [/] primeiro foi o leão muitos tigres e onças depois foi milhares de cobras e serpente e la no teto é cheio de morcegos [/] já estavam chegando no final da gruta [/] andaram andaram-andaram [/] chegaram no final da gruta [/] virão o bau-cheio de jóias moedas [/] voutaram para casa e ficaram muito felizes” (ibidem).1 V. Discurso citado: o discurso citado é manifestado prioritariamente no estilo direto, é mais frequente na oralidade; em geral, sem a presença de um verbo que introduza a fala do outro (fulano disse:, fulano resmungou:, fulano gritou:). O sujeito ainda não aprendeu os mecanismos sequenciadores próprios da modalidade escrita e mistura a ela a estrutura mais típica da oral, que é a que ele conhece melhor. Exemplo: “Dez oras depois o Lucas vil um navio pirata elegrito gente vamosnos conder um navio pirata sea prosima vamologo ja sei vamos nos esconder na quela caverna certo elá atras sera que é perigos ela fora rárá vamos ficaricos maos pirtas não acharão droga vam em bora viva camos ricos e turma vou ta para casa. Fim” (idem, p. 37). VI. Segmentação gráfica: também é comum que a segmentação gráfica, em textos de sujeitos iniciantes na modalidade escrita, seja feita em função do que ele ouve. É curioso notar que a criança, por vezes, tentando acertar a segmentação gráfica adequada, acaba dividindo no meio algumas palavras ou juntando outras em uma só! Exemplo: “sabiacomoaranjar, arainha, poriso, aguera, masantesdiso, convoce, masnã, elegrito, vamologo” (ibidem). VII. Grafia correspondente à palavra: ou sequência de palavras tal como pronunciadas oralmente, isto é, reproduzindo o que a criança ouve. Exemplo: “virão (= viram), vamos nos conder (= nos esconder), perigos (= perigoso), maos piratas (= mas os) espahol (= espalhou), ficol, partil, vil (= ficou, partiu, viu)” (ibidem). VIII. Correções feitas da forma como se fazem no texto oral: assim como na fala, o sujeito não apaga ou risca a forma que considera inadequada, mas justapõe a esta a forma corrigida. Exemplo: “Chegando lá a turma rezol rezolvrão to(mar) banho de cachoeira mas algen esquso o maio [...]” (idem, p. 36). Para finalizar este tópico, é importante ainda trazer algumas considerações sobre a organização da coesão e da coerência na conversação. Já que na Unidade I a abordagem desses critérios de textualidade foi longamente trabalhada, valendo conceitualmente tanto para a fala como para a escrita, mas sempre 1A inserção de barras é nossa e serve para separar os enunciados a fim de evidenciar a justaposição sem conectividade entre eles. 61 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 tomando como exemplos textos escritos para ilustrar seus múltiplos fatores, subtipos (enfim, seus funcionamentos), aqui tomaremos como referência o texto falado, a conversação propriamente para analisar o funcionamento destes critérios de textualidade. Para essa discussão, apontamos a autora Leonor Fávero (2009) que traz um capítulo de seu livro “Coesão e coerência textuais” sobre estas questões. Essa autora, na mesma linha de pensamento de Koch, Marcuschi e outros autores citados nesta Unidade II, entende que a conversação deve ser analisada com justiça aos seus aspectos que são particulares e essenciais. Antes de entramos nas especificações dadas à construção da coesão e da coerência no texto falado, é importante frisar alguns aspectos cruciais da natureza da fala, conforme essa autora. Fávero reitera que a conversação “é uma atividade linguística, que pertence às práticas diárias de qualquer cidadão, independente de seu nível sociocultural. Ela representa o intercurso verbal em que duas ou mais pessoas se alternam, discorrendo livremente sobre questões propiciadas pela vida diária” (CASTILHO, 1986 apud FÁVERO, 2009, p. 84). Conforme retoma Fávero de Castilho, há dois tipos de conversação: • a natural – com suas variedades informal, coloquial e formal; • a artificial – desenvolvida em peças de teatro, filmes, novelas, romances etc.; estas seguem um tipo de roteiro prévio. Lembre-se de que tanto no texto oral como no escrito o sistema linguístico é o mesmo para a construção sintática. Entretanto, as regras para a realização oral, bem como os meios utilizados são distintos, o que acaba por revelar materialidades linguísticas totalmente diferentes. Você também deve considerar que, assim como a escrita, a fala também deriva da mesma base semântica, fazendo uso do mesmo repertório lexical, variando, inclusive, na escolha e organização do vocabulário, e, nesse sentido, reafirmamos um fundamento linguístico já enfatizado: o de que fala e escrita são variações funcionais do mesmo sistema linguístico. Observação É comum muitos autores repetirem o equívoco de que o texto falado não é planejado. Mas devemos considerar que o planejamento do texto oral é diferente do planejamento do texto escrito. Fávero aponta quatro graus de planejamento da conversação (indo do texto falado não planejado ao escrito planejado), defendidos por Ochs (1979 apud FÁVERO 2009): • falado não planejado – prescinde de reflexões e preparação prévia: uma briga ou discussão, uma conversa no elevador, dar uma informação na rua etc.; 62 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • falado planejado – é pensado e projetado antes de sua realização, mas está sujeito às pressões da situação comunicativa em coprodução com o(s) interlocutor(es): uma aula, um discurso, uma reunião de condomínio, uma conversa para romper um relacionamento etc.; • escrito não planejado – elaborado em situações informais do dia a dia, caracterizadas pela necessidade do uso da escrita, mas levando em conta situações sem preparação ou expectativa prévia: um recado de geladeira, bilhetinhos trocados em sala de aula, a escrita/“conversa” dos chats na internet etc. • escrito planejado – é pensado e projetado antes de sua publicação: um livro, um artigo de jornal, uma carta de demissão, uma solicitação formal a uma instituição pública etc. Observação Uma das marcas essenciais da organização da conversação é que ela é fruto de uma criação coletiva e dialógica, pois os interlocutores produzem o texto em cooperação. Aqui vale a máxima: “quando um não quer, dois não ‘conversam’2”! O fato de o planejamento da fala se dar localmente confere-lhe uma característica denominada “fragmentação”, consequente de sua natureza espontânea, que se opõe a uma maior “integração” da modalidade escrita, em função do maior tempo de que ela dispõe para ser produzida (Fávero, op. cit., p. 86). A rapidez com que o locutor constrói a fala tem consequências no controle do fluxo da informação, conduzindo-o a descontinuidades nesse mesmo fluxo, reveladas por fenômenos como repetições, paráfrases, inserções, anacolutos, falsos começos e outros; desse modo ela vai revelando seus processos de construção, ao contrário da escrita que busca escondê-los, mostrando somente os resultados (ibidem). Outra característica forte da fala apontada por Chafe (apud FÁVERO, op. cit., p. 86) é o “envolvimento” interpessoal, que se opõe ao “afastamento”, típico da escrita. Considere ainda que as “descontinuidades” da fala são, em sua maioria, técnicas linguísticas usadas como estratégias controladoras do diálogo, que estão baseadas em regras conversacionais3 do tipo: • não diga o óbvio, e sim concentre-se no que é importante; • seja claro para não dispersar nem perder o interesse de seu interlocutor, bem como os objetivos do diálogo; 2O provérbio original é “quando um não quer, dois não brigam”. 3 Sobre a conceituação destas regras conversacionais, sugere-se a leitura de Logic and conversation, de H. Grice, 1975. 63 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • não fale de forma irresponsável ou inconsequente, para não fugir ao que refere a sua opinião e confundir o interlocutor. Feitas as colocações anteriores, focalizemos, então, o funcionamento da coerência e da coesão na conversação. Analisar esses critérios de textualidade no texto oral é trazer à tona uma discussão polêmica, por se tratar de um fenômeno linguístico com poucas evidências empíricas estudadas até então. Na conversação, a coesão não pode ser definida em termos estritamente formais, pois o texto se produz dialogicamente, na concorrência de dois ou mais agentes. A coerência não é uma unidade de sentido, e sim uma dada possibilidade interpretativa resultante localmente. Dois interlocutores se entendem não só porque são coerentes no que dizem, mas principalmente porque sabem do que se trata em cada caso. E, quando não sabem, manifestam seu desentendimento de modo a integrá-locomo parte efetiva no próprio texto (MARCUSCHI, 1988 apud FÁVERO, op. cit., p. 90). Nessa perspectiva, a coerência se dá em função de os enunciados construídos na conversação se mostrarem mutuamente relacionados, de modo ordenado e significativo, melhor caracterizada em termos de “tópico discursivo”, considerando a sua centração, organicidade e delimitação. Ao lado (ou dentro!) da organização do tópico discursivo, há frequentemente as “digressões”, ou partes que não estão topicamente relacionadas com o que veio imediatamente antes, ou com o que vem logo depois, mas que no todo da conversação é possível recuperar tentacularmente, e por isso fazem sentido. • Por outro lado, a coesão é uma relação linear4 entre as sentenças, não sendo necessariamente condicional ou suficiente para a coerência. Ela não é um fator interdependente, mas um subproduto da coerência. Seguem alguns exemplos da coesão na conversação5: 1. Coesão referencial – reiteração, repetição do mesmo item lexical por: • autorrepetição: “... ele já ia à escola da manhã que eu comecei quando eu comecei trabalhar... comecei a trabalhar há dois anos... e quer dizer então... ele já ia à escola de manhã”. • heterorrepetição: “L1 - nós somos: seis filhos. L2 - e a do marido? L1 - e a do marido... eram doze agora são onze...”. 4 Conforme foi enfaticamente destacado na Unidade I. 5 Os exemplos citados são retirados de Fávero (op. cit., p. 91ss), que usou como fonte o inquérito de número 360 do arquivo do Projeto NURC-SP (sobre a linguagem falada culta na cidade de São Paulo). 64 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 2. Coesão recorrencial – paráfrase: “contexto: o tópico que se desenvolve é mercado de trabalho, especificamente, a “procura de engenheiro”. “L2 ... a grande maioria é engenheiro administradores economistas L1... é que a gente está na:: na espera da tecnologia, né?... L2 ... mas engenheiro o peso é muito grande...” 3. Coesão sequencial – por conexão: “contexto: o tópico que vem se desenvolvendo é o do planejamento familiar”. “L1 e:: nós havíamos programado Nove ou dez filhos... não é? ... L2 a sua família é grande? L1 nós somos:: seis filhos L2 e a do marido? L1 e a do marido... eram doze agora são onze...”. 5.2 Mais algumas considerações teóricas sobre o binômio oralidade e escrita Nesta sessão, você acompanhará algumas considerações a respeito de categorias teóricas e perspectivas científicas em torno da relação oralidade e escrita. Mais especificamente, aspectos relacionados à visão dicotômica sobre oralidade x escrita; às especificidades das categorias oralidade/ fala e letramento/escrita; ao binômio oralidade/escrita e prática sociais; à visão culturalista; à visão variacionista; à interacional; à visão funcionalista da relação fala e escrita. Tais considerações são apresentadas por Marcuschi (2007a). I. Fala x escrita – a perspectiva das dicotomias: essa visão é da perspectiva dicotômica entre fala x escrita, é considerada restrita, pois polariza essas duas modalidades da língua. Por outro lado, há quem considere nessa perspectiva as relações fala x escrita dentro de um continuum. Aqui as análises são voltadas para o código com permanência no fato linguístico. Essa teoria deu origem ao prescritivismo gramatical e à norma linguística. De modo geral, as características próprias à fala e à escrita são descritas/ prescritas por essa visão da seguinte maneira: • Fala = contextual, implícita, redundante, não planejada, imprecisa, não normatizada. • Escrita = descontextualizada, explícita, condensada, planejada, precisa, normatizada. Tal visão, baseada no perfil das condições empíricas de uso da língua, é uma visão formalista distorcida do fenômeno textual. É uma visão “imanentista” que originou as Gramáticas Pedagógicas. Ela remonta a separação “forma x conteúdo”, classifica a fala como pouco “complexa” e postula que a escrita é fundada num conjunto de regras que regem a língua. 65 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 II. Oralidade x letramento ou fala x escrita? – há que se observar algumas especificidades dessas categorias teóricas, pois tais especificidades relacionam-se ao seu emprego em teoria e análise. O binômio oralidade x letramento está voltado para analisar as diferenças entre duas “práticas sociais”; enquanto que o binômio fala x escrita volta-se às diferenças entre duas modalidades de uso da língua. Quadro 14 Oralidade: prática social apresentada sob várias formas ou gêneros textuais em sua diversidade de uso formal e contextual. Fala: forma de produção discursivo-textual oral que dispensa um aparato técnico, necessitando, apenas, dos recursos próprios ao ser humano. Letramento: uso social da escrita que vai de uma apropriação mínima da escrita até uma utilização científica dela. Escrita: tecnologia de representação abstrata da fala e produção discursivo-textual com especificidades próprias. III. Oralidade e escrita no contexto das práticas sociais: Marcuschi (2007a) situa o papel das práticas sociais da escrita e da oralidade na civilização contemporânea. Ele considera a relação entre “vida cotidiana” e os fenômenos da fala e escrita. O texto seria, então, uma prática social, e não um artefato linguístico. Compreenda que a escrita, enquanto prática social, tornar-se-ia indispensável. Em relação ao uso da língua (fala e escrita), as práticas sociais têm o seu lugar, papel e grau de relevância de ambas as modalidades na sociedade – eixo de um continuum sócio-histórico-tipológico e até morfológico. Lembrete Homem = naturalmente um “ser que fala”, e não um “ser que escreve” – a escrita é derivada, e a fala é primária. Fala = prática social do dia a dia. Escrita = prática de um ambiente formal – escola (o que lhe confere prestígio). A escrita permeia hoje praticamente todas as práticas sociais das comunidades em que se insere sob a forma de “letramento”. Os objetivos e a ênfase do uso da escrita variam de acordo com os contextos em que se inserem: a “apropriação/distribuição” da escrita e da leitura (padrões de alfabetização); e os “usos/papéis” da escrita e da leitura (processos de letramento). Mesmo as pessoas analfabetas também estão sob a influência das estratégias da escrita em seu desempenho oral. A escrita passou a ter um status bastante singular no contexto das atividades cognitivas em geral. Devem-se distinguir, então: • Letramento: processo de aprendizagem sócio-histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários. 66 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • Alfabetização: domínio ativo e sistemático das habilidades de ler e escrever. • Escolarização: prática formal e institucional de ensino que visa a uma formação do indivíduo, sendo que a alfabetização é apenas uma das atribuições/atividades (MARCUSCHI, 2007a). Você deve observar que são muitos os usos de oralidade e escrita em nossa sociedade, como você já viu anteriormente. Também vimos que há diferentes meios de acesso e usos da linguagem na sociedade, tanto em relação à fala quanto em relação à escrita. E esses diferentes usos possibilitados por meio de diferentes mídias e tecnologias, além da própria voz e do código escrito, põem em contato/interação/ dialogismo diferentes subjetividades, em diferentes espaços sociais: • homem/mulher; • pai/filho; • sogra/nora; • patrão/empregado; • professor/aluno; • padre/fiel; • fornecedor/consumidor; • civil/militar; • governante/povo; • dentro/fora da escola; • dentro/fora de casa; • dentro/fora do trabalho; • dentro/fora da igreja; • dentro/fora do tribunal etc. A escrita é uma fonte de preconceito, na medida em que se atribui o desenvolvimento à alfabetização. A escrita é um fato histórico e deve ser tratado como tal, e não como um bem cultural (ibidem). A históriaverbal e social, sobre o uso dos recursos que a língua lhes oferece, bem como sobre a adequação dos textos a cada situação. • Assegurar ao aluno/futuro professor a reflexão e o estudo de questões relevantes para o ensino-aprendizagem da língua. InTrOduçãO No século XX, o pensamento científico determinava que, para um estudo ser reconhecido como científico, deveria estar ancorado nos critérios de cientificidade necessários à época. A ciência tinha de ser autônoma (possuir ferramentas suficientes para dar conta completamente de descrever seu objeto de investigação sem necessidade de interface com outras áreas/ciências ou elementos alheios ao seu 8 objeto), objetiva (impessoal, portanto, não subjetiva) e descritiva (método que se sustenta, grosso modo, em decompor o objeto analisado em unidades/estruturas mínimas e recompô-lo em sua unidade maior, tendo para cada tipo de unidade um nível de análise). Como se sabe, a linguística estrutural (iniciada por Ferdinand Saussure), embora reconhecidamente importante e definitiva para conferir à linguística o estatuto de ciência, por outro lado, limitou o campo de abordagens investigativas de seu objeto: separando rigidamente a língua da fala, o linguístico do extralinguístico e recortando para análise somente a “parte” da língua, em seu aspecto linguístico, apenas, descartando, assim, a fala e os aspectos extralinguísticos a ela vinculados. Seja por necessidade/imposição do momento histórico em que a linguística se constituiu, obedecendo a um padrão de ciência que exigia autonomia (em oposição à complementaridade), objetividade (em oposição à subjetividade) e descritivismo como aspectos fundamentais, seja por razões ideológicas que marcaram a produção do texto/obra de Saussure (postumamente publicada por seus alunos), o fato é que tais “escolhas” deixaram marcas, lacunas, insuficiências, que, ao longo dos estudos da linguagem, ficaram cada vez mais evidentes e sujeitas a muitas críticas. De modo geral, podemos apontar três grandes problemas bastante criticados na linguística estrutural: • Toma como maior unidade de análise linguística a frase (e não o texto, o discurso, a enunciação). • Separa língua de fala (separação inaceitável nos dias de hoje) e com isso deixa de fora (“descarta”) o falante (o sujeito e todos os níveis de subjetividade na linguagem), a situação comunicativa, a variação linguística, os fatores pragmáticos do texto/discurso/enunciação, o contexto, as condições de produção da linguagem, a interação entre falante/ouvinte, autor/leitor, locutor/alocutário, as relações dialógicas entre os sujeitos da linguagem, tanto no nível interpessoal/intersubjetivo como no nível intertextual/interdiscursivo. • Aborda muito superficial e insuficientemente as questões de sentido e significação na linguagem. Em decorrência disso, a partir da década de 1960, os estudos que se desenvolveram na linguística procuraram, cada um a seu modo, preencher os espaços dessas lacunas e insuficiências, buscando resgatar outros elementos de interesse dos estudos da linguagem exatamente naquilo que Saussure excluiu da linguística, a fala/o falante. Tais estudos revisaram e retomaram abordagens e posições descartadas pela linguística saussuriana, ampliaram seu campo de estudos, deixaram, enfim, o caminho a seguir previamente demarcado, “mas mantiveram, com outros nomes e novas definições, a distinção entre o que cabe ao linguista examinar e o que é da alçada de outras ciências ou disciplinas” (BARROS, 1999, p. 1), considerando, sobretudo, o fato de os linguistas se dedicarem mais seriamente a questões de significação e sentido. Dentre tais estudos, ganhou relevância a linguística textual, por se preocupar com a organização global do texto e examinar as relações entre discurso, enunciação e fatores sócio-históricos. Tal ponto 9 de partida trouxe mudanças significativas aos estudos da linguagem e do texto, criando um novo objeto de investigação na linguagem, o texto, pautado pelas seguintes características: • deixou-se de ver a língua como lugar de representação apenas de significados objetivos – ela é um meio convencional de agir no mundo (a pragmática dos atos de linguagem); • passou-se a considerar a linguagem como um instrumento de argumentação e de interação e não somente de informação; • concebeu-se o texto (discurso) como objeto de estudos e não mais a frase como unidade de sentido: análise condicionada aos mecanismos de organização textual; • postulou-se a intersubjetividade em avanço à subjetividade: a relação entre interlocutores funda a linguagem, dá sentido ao texto e constrói os próprios sujeitos produtores do texto. 11 Teorias do TexTo A lInguíSTIcA TexTuAl e SuAS frOnTeIrAS: PercurSO hISTórIcO, ObjeTO de eSTudO, cATegOrIAS TeórIcAS e de AnálISe 1 O nAScIMenTO de uMA lInguíSTIcA dO TexTO Caro aluno, é de suma importância pensar a estrutura do texto como uma unidade de análise linguística. Por mais que pareça óbvio entender o texto dessa maneira, e por mais que se faça evidente a necessidade de estudá-lo em sua estrutura e construção, desvendando seu processamento, organização, modalidades e gêneros, é bom lembrarmos que isso nem sempre foi um consenso e que tais ideias nem sempre foram aceitas. lembrete É importante lembrar que, superficialmente, podemos entender o conceito de “linguística” como a ciência da linguagem. Desse modo, o campo científico denominado linguística textual nasce de um intenso e extenso esforço teórico que defende que toda a linguística é, necessariamente, linguística de texto (KOCH, 2009; 2007; 2006; DIJK, 1972; MARCUSCHI, 1983). Tal visão e método científicos confrontam-se e opõem-se fortemente ao campo teórico da linguística estrutural, movimento pioneiro e demarcador dos estudos linguísticos no parâmetro científico, que teve seu período de ascensão e reconhecimento do final do século XIX até a metade do XX, aproximadamente, e que traz como fundamentos balizares as ideias postuladas pelo linguista suíço Ferdinand de Saussure. Saiba que, em razão de seu crescente avanço, desenvolvimento e sucesso, a linguística estrutural acabou chamando a atenção de outros olhares teóricos, também relacionados à linguagem, para além do formalismo estruturalista (história, antropologia, sociologia, etnometodologia, psicologia etc.) e, assim, cresceu ainda mais a necessidade de ampliar seus domínios, bem como o interesse em sanar possíveis lacunas e insuficiências dessa ciência-piloto, afinal uma ciência nunca está fechada, pronta e acabada! Nesse sentido, a partir da década de 1960 surgem lugares de ruptura na fronteira com o estruturalismo linguístico e ocorrem dissidências, constituindo (a partir de vários aspectos teóricos lacônicos, insuficientes, pouco explorados, marginalizados etc.) novos campos teóricos da linguística, a maioria deles em franca ruptura com algumas das ideias do estruturalismo linguístico, por exemplo: Unidade I 12 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • a sociolinguística; • a etnolinguística; • a psicolinguística; • a neurolinguística; • a pragmática; • a análise da conversação; • a análise do discurso; • a semântica; • a gramática gerativo-transformacional; • e, especialmente aqui, a linguística textual, entre outros campos, é claro. Podemos entender em outras palavras que, ainda que se reconheça a suma importância da linguística estrutural, o quadro teórico da linguística atual retrata diferentes linhas teóricas, que se instauraram a partir da tentativa de superar os equívocos e de preencher as lacunas e insuficiências deixadas pelo estruturalismo linguístico. De modo geral, tais insuficiências/lacunas estão relacionadas a questões cruciais para o desenvolvimento dos estudos da linguagem e precisavam ser revistas, superadas, ultrapassadas. Veja a seguir os principais problemas/lacunas/insuficiênciasdo uso da escrita e da alfabetização ocidental é descontínua e contraditória (relação alfabetização/processo de industrialização). A alfabetização instituída dá-se de preferência sob o controle do Estado, orientando-se por seus objetivos. Assim, a aquisição da escrita é um fenômeno “ideológizavel”. A fala é contínua no dia a dia e a oralidade tem lugar em seus diferentes contextos e usos sociais. IV. Oralidade x escrita: a tendência fenomenológica de caráter culturalista: essa visão é aculturalista e de perspectiva epistemológica. Ela observa as práticas sociais da oralidade x escrita, faz análise cognitiva dos efeitos de organização e produção do conhecimento no aspecto 67 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 psicossocioeconômico-cultural. Essa tendência é inadequada para o trato com os fatos da língua. Ela confere ao domínio da escrita o avanço na capacidade cognitiva individual: Quadro 15 X Cultura oral Cultura escrita Pensamento concreto Pensamento abstrato Raciocínio indutivo Raciocínio dedutivo Atividade artesanal Atividade tecnológica Cultivo da tradição Inovação constante Ritualismo Analitismo Há três grandes problemas nessa tendência: • etnocentrismo; • supervalorização da escrita; e • tratamento globalizante. V. Fala x escrita – perspectiva variacionista: tal visão trata do papel da escrita a partir dos processos educacionais e da variação na relação língua padrão e não padrão em contextos de ensino formal. Modelos teóricos baseiam-se no “currículo bidialetal”. Não há dicotomias, verificam-se as regularidades e variações: Quadro 16 Língua padrão Variedade não padrão Língua culta Língua coloquial Norma padrão Norma não padrão Marcuschi (ibidem) afirma simpatizar com essa tendência, mas acredita serem necessárias maiores reflexões. Para ele, fala e escrita não são dialetos, mas “modalidades” de uso de língua. Nesse sentido, o aluno se tornaria “bimodal”. VI. Oralidade x escrita – a perspectiva interacional: essa perspectiva trata das relações entre fala e escrita, considerando o continuum textual. É a visão interacionista, cujos fundamentos baseiam-se em: • relação dialógica no uso; • estratégias de linguagem; • funções interacionistas; 68 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • envolvimento e situacionalidade; • formulaicidade. Esse modelo percebe mais sistematicamente a língua enquanto fenômeno dinâmico e estereotipado, centrando-se em atividades dialógicas que frisam os aspectos mais salientes da fala. Porém tem um baixo potencial explicativo e descritivo dos fenômenos sintáticos e fonológicos da língua (ibidem). Considere que, nessa visão, as análises se prestam a observar a diversidade de formas textuais produzidas monológica e dialogicamente. Além disso, nela trata-se de fenômenos de compreensão na interação verbal e com o texto escrito, detectando especificidades na atividade de construção do sentido. Essa perspectiva postula que não se deve polarizar ou dicotomizar a relação entre fala e escrita e orienta-se por uma linha discursiva e interpretativa. VII. Concepção e funcionamento da língua – consequente relação fala/escrita: o sucesso da análise vai depender da concepção de língua que subjaz à teoria, bem como da noção de funcionamento da língua, esta é fruto das condições de produção. A noção de sistema atém-se à concepção básica de uma “estrutura virtual”. Fica desde já eliminada uma série de distinções geralmente feitas entre fala e escrita, tais como a contextualização (na fala) x descontextualização (na escrita), implicitude (na fala) x explicitude (na escrita) e assim por diante. A língua (seja oral ou escrita) reflete a organização da sociedade, uma vez que se relaciona com as “representações e as formações sociais”. Entretanto, a fala e a escrita representam formas de organização da mente por meio das próprias representações mentais. Vale salientar, sobretudo, que, assim como a fala não apresenta propriedades intrínsecas negativas, também a escrita não tem propriedades intrinsecamente privilegiadas. São modos de representação cognitiva e social que se revelam em práticas socioculturais específicas. A oralidade e a escrita são ambas práticas sociais e não propriedades de sociedades distintas. 5.3 Retomando alguns conceitos na análise do texto Vamos recuperar alguns conceitos importantes! Conforme vem sendo exposto, ao longo dessa discussão sobre as modalidades de texto oral e escrito, a oralidade tem sido fonte de muitos preconceitos no universo pedagógico (e social), que tende a privilegiar a escrita ou optar por uma única variável privilegiada socialmente, que se aproxima das normas da escrita: o padrão letrado. Isso acontece apesar do trabalho de educadores e linguistas acerca da variação dialetal e da relação fala/escrita, que tem sido veiculado ao longo das últimas décadas. Convencionalmente, a orientação social e pedagógica (tradicionalista) para o ensino-aprendizagem de língua (materna ou estrangeira) dá prioridade à reflexão metalinguística e ao ensino da nomenclatura gramatical, resultando, assim, em um ensino-aprendizagem limitado quanto aos recursos que possibilitam ao falante/autor e ao ouvinte/leitor desenvolver sua competência e desempenho linguístico-textual no funcionamento escolar e social. 69 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Vários autores, como você acompanhou, acreditam que, para mudar essa concepção didático-metodológica do ensino da língua, faz-se necessário refletir e buscar fundamentos em uma concepção que privilegie o exercício da escrita enquanto uma contínua relação entre fala/escrita, que viabiliza os processos de leitura, interpretação e produção textual. Conforme você viu, durante muito tempo, a ciência da linguagem conviveu com perspectivas teóricas limitadas e preconceituosas, que ou descartavam totalmente o estudo da fala ou tratavam a oralidade e a escrita como dois polos opostos (sendo um superior – a escrita – e outro inferior – a fala), o que de certa forma corroborou com a visão míope e equívoca veiculada social e pedagogicamente e que ainda hoje lutamos para derrubar. Observação Atualmente, os teóricos da linguagem (e do texto) pensam a relação fala/escrita como parte de um contínuo em que não se podem estabelecer limites estanques. A linguagem tem níveis de formalidade que podem variar de posição dentro de uma escala de formalidade entre os pontos (+) formal e (-) formal. Entenda que quanto mais formal a oralidade, mais próxima das normas da escrita ela vai estar; e, da mesma forma, quanto mais informal for a escrita, mais ela vai se aproximar da oralidade. Assim, o que se defende hoje é que as diferenças entre fala e escrita não estão em polos extremos, mas que estas são modalidades de uma mesma língua, as quais se tornarão mais ou menos distintas ou próximas de acordo com o grau de interação entre produtores/interlocutores e o propósito com que são produzidas. É preciso compreender bem que a oralidade, que já faz parte de nossa vida, e a escrita, que devemos aprender na escola, são sistemas diferentes, com características “físicas” (voz, imagem), “situacionais” e “funcionais” que particularizam cada uma dessas modalidades e que possuem especificidades relativas à sua estrutura gramatical, à sua organização discursiva e à sua tipologia textual. Mas ambas estão sujeitas às normas sociais de uso de uma mesma língua, e, nesse sentido, é imprescindível considerar o continuum da relação fala/escrita, contextualizando as práticas sociais e institucionais da linguagem. Para visualizar melhor essas questões teóricas refletidas, observem-se, logo mais, alguns aspectos analisados em um texto escrito (a música Saudosa maloca, de Adoniran Barbosa) com várias marcas de oralidade. Antes, porém, de proceder à breve análise,é importante relembrar algumas questões sobre a textualidade. Tomando o texto como unidade comunicativa básica, sendo este uma ocorrência linguística (oral ou escrita, formal ou informal) de qualquer extensão, constituída de unidade sociocomunicativa, semântica e formal. O texto será bem-compreendido quando avaliado sob três aspectos: 1. O pragmático, que tem a ver com seu funcionamento enquanto atuação informacional e comunicativa [intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, intertextualidade, informatividade. 70 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 2. O semântico-conceitual, de que depende sua coerência. 3. O formal, que diz respeito à sua coesão. Você verá agora, a título de ilustração, mencionados superficialmente, alguns elementos do tipo textual narrativo, que é o tipo que abrange o texto proposto para análise (a música Saudosa maloca), procurando estabelecer a influência da estrutura narrativa no contínuo fala/escrita. Conforme Gancho (1991), um texto narrativo é constituído basicamente por uma sequência de fatos no tempo, considerando, portanto, a existência de uma relação de anterioridade e posterioridade entre esses fatos. Esse gênero requer a apresentação de uma estrutura específica cujos componentes basicamente são: enredo, personagens, tempo, espaço e foco narrativo. Saudosa maloca Se o sinhô não tá lembrado Dá licença de contar Ali onde agora está Este adifício arto Era uma casa veia Um palacete assobradado Foi aqui seu moço Que eu, Mato Grosso e o Joça Construimo nossa maloca Mais um dia, nóis nem pode se alembrá Veio os home com as ferramenta E o dono mandô derrubá Peguemos todas nossas coisas E fumos pro meio da rua Apreciá a demolição Que tristeza que nóis sentia Cada táuba que caía Doía no coração Mato Grosso quis gritar Mas por cima eu falei Os home tá co’a razão Nóis arranja outro lugar Só se conformemo quando o Joca falou Deus dá o frio conforme o cobertor E hoje nóis pega as paia nas grama do jardim E pra esquecer nóis cantemos assim: Saudosa maloca, maloca querida Dim dim donde nóis passemo 71 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Os dias feliz da nossa vida Saudosa maloca, maloca querida Dim dim donde nóis passemo Os dias feliz da nossa vida. (BARBOSA, 1990). Veja que a escolha do gênero musical e do tipo narrativo justifica-se em função da abordagem da relação fala/escrita, já que, se por um lado o tipo narrativo é tão típico da oralidade quanto da escrita, por outro, o gênero musical, apesar de sua realização oral, é originalmente um texto escrito. O texto anterior (a música Saudosa maloca, de Adoniran Barbosa), embora seja escrito, traz importantes marcas de oralidade. Tal texto foi planejado (poeticamente) para assemelhar-se, o mais próximo possível, de uma determinada forma de oralidade que identifica uma certa classe social (economicamente desfavorecida), com a intenção de sensibilizar o leitor/ouvinte a ponto de este imaginar e visualizar o próprio personagem da narrativa. Para isso, o autor utiliza recursos caracterizadores da modalidade falada que ele intenta imitar – a própria estrutura narrativa que caracteriza o texto, a linguagem simples com as variantes próprias dessa oralidade (“sinhô”, “alembrá”, “táuba”, “nóis pega as paia” etc.). É claro que por ser um texto escrito (previamente elaborado), não dispõe de outros recursos caracterizadores da modalidade falada, como os de cunho prosódico, paralinguístico, entonacional (hesitações, truncamentos, tomada de turno, entre outros), mas o que interessa é que se trata de um texto escrito que (em uma escala de formalidade) se posiciona em um ponto muito perto do texto oral/informal. Fique atento para o seguinte: o texto pode ser considerado como literário e deve ser observado por seu perfil artisticamente mimético, no que se refere à reprodução de um tipo de oralidade própria a uma determinada classe social. É relevante ainda salientar que o autor escolhe uma estrutura que é própria da modalidade de fala informal: a narrativa originada do diálogo. No caso do texto em estudo, não há diálogo na estrutura geral da conversa. Há um ouvinte (“se o sinhô...”) e um falante (eu/nós – “eu, Mato Grosso e o Joca”, “nóis nem pode”), há citações diretas e indiretas de personagens envolvidos no enredo da narrativa. Quanto à estrutura narrativa, temos um enredo (a demolição e a perda da casa), que se localiza em um tempo (“foi aqui”, “mais um dia...”) e em um espaço (“ali”, “nesse adifício arto”, “uma casa veia”), que tem personagens (“eu, Mato Grosso e o Joca”), e tem foco narrativo (“Se o sinhô num tá lembrado”/ “Dá licença de contá”). Ou seja, o texto preenche todos os elementos da estrutura narrativa informal, trazendo também as etapas concernentes a esse tipo de texto: apresentação do problema, declaração dos fatos desenvolvimento, tensão, clímax e resolução (GANCHO, 1991). Considere ainda que o texto trata de um depoimento informal, que se subsidia da linguagem estritamente oral e informal para expressar, da maneira mais verossímil possível, o drama das pessoas que não têm um teto, um emprego, uma perspectiva digna de vida, não exercem sua cidadania e dependem de um canto em uma praça ou em um jardim para se recolherem. 72 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Com a intenção de sensibilizar e chamar a atenção do leitor para esses aspectos, o autor reproduz o discurso deste personagem típico representante de um sério problema social, valendo-se do que há de mais típico da variação socioletal em relevância. O texto oferece a oportunidade de refletir sobre os processos de leitura, a interpretação e a produção como parte de um continuum entre fala e escrita; a compreensão da relação continuada entre fala e escrita e dos níveis de formalidade. 6 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANÁLISE DA CONVERSAÇÃO Agora discorreremos mais aprofundadamente sobre a teoria linguística que se dedica exclusivamente a tratar da linguagem oral, ou seja, da conversação. Vamos conversar, então? Esta área tem um caráter interdisciplinar, na medida em que divide alguns pressupostos teóricos com outras áreas (inclusive com a LT). Ela busca estabelecer relações com a exterioridade da linguagem, problematizando a separação entre a materialidade da língua e seus contextos de produção. Assim como a sociolinguística, a pragmática, a análise do discurso, a semiótica discursiva e a própria linguística textual, esta área também mobiliza saberes de outras ciências como a filosófica da linguagem, a antropologia, a história, a sociologia, a psicanálise e as ciências cognitivas. Foi na década de 1980 que foi lançado, no Brasil, o primeiro livro nessa área com o título Análise da conversação, de Luiz Antônio Marcuschi (1986/2007b). Para esse autor, a conversação é o exercício prático das potencialidades cognitivas do ser humano em suas relações interpessoais, tornando-se assim um dos melhores testes para a organização e o funcionamento da cognição na complexa atividade da comunicação humana. A conversação é a primeira das formas de interação a que estamos expostos e provavelmente a única da qual nunca abdicamos pela vida afora [...]. Conversação, aqui, trata das formas de interação verbal de nossa sociedade, apesar de alguns estudiosos da área considerarem apenas as interações verbais face a face em que há “simetria de direitos e espontaneidade na realização do evento” (MARCUSCHI, op. cit., p. 14). Como enfatiza Marcuschi (2007b), a análise da conversação (doravante AC) teve origem na década de 1960 no campo dos estudos sociológicos ligados à etnometodologia a partir de trabalhos referenciais como os de Harold Garfinkel, Harvey Sacs, Emanuel Schegloff e Gail Jeferson. A partir dessa perspectiva, os estudiosos da AC têm procurado investigar os aspectos da organização do textoconversacional. Observação Para a etnometodologia, os analistas têm de ser perceptivos aos fenômenos interacionais, centrando-se nos detalhes estruturais do processo interativo. 73 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Vejamos três níveis essenciais desse enfoque apontados por Hilgert (1989 apud MARCUSCHI, 2007b): a. Macronível: nas fases conversacionais – abertura, fechamento e parte central e o tema central e subtemas da conversação. b. Nível médio: turno conversacional, tomada de turnos, sequência conversacional, atos de fala e marcadores conversacionais. c. Micronível: elementos internos do ato de fala, que constituem sua estrutura sintática, lexical, fonológica e prosódica. Não se esqueça de que a análise da conversação estabelece o texto como seu objeto de estudos, mas essa área vai dedicar-se única e exclusivamente ao estudo do texto oral, natural e presencial (face to face), ou seja, aquele texto produzido em situações espontâneas. Portanto, textos “artificiais”, como os de novela, cinema ou ainda conversas telefônicas, não são objeto de interesse específico nesse campo científico. Em uma conversa, geralmente aborda-se um ou mais tópicos discursivos, algo sobre o que duas pessoas (pelo menos) conversam. Esse tópico discursivo define-se como uma atividade que correlaciona objetivos entre os interlocutores em que há um movimento dinâmico da estrutura conversacional, que faz dele a base do texto oral. A organização tópica, como já foi anteriormente retomada de Fávero, pauta-se em três propriedades: a centração, organicidade e delimitação. Na análise da conversação, o tópico discursivo (aquilo sobre o que se fala) é o fio condutor da conversação, e a unidade funcional da conversação é o turno (período de tempo que cada falante ocupa). Observação A conversa espontânea é uma atividade coprodutiva sem “controle” exato de como o interlocutor orienta sua intervenção, mas nem por isso torna-se caótica. Os falantes negociam uma relação com o curso da conversa, produzindo sentidos estrutural e funcionalmente. Para sinalizar que compartilhamos cognitivamente da interação, recorremos, naturalmente, a expressões do tipo: “isso me lembra”, “por falar em” etc., que podem marcar a passagem de um tópico a outro. A estrutura tópica serve, assim, de fio condutor da organização linear do discurso. Conforme Dionísio: O conjunto de relevâncias em foco em dado momento vai, paulatinamente, cedendo lugar a outros conjuntos de relevâncias, ligadas a aspectos antes marginais do tópico em desenvolvimento ou a novos conjuntos que vão sendo introduzidos a partir dos já existentes (2005, p. 72). 74 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Lembre-se de que o planejamento na fala ocorre no momento da interação, pois a conversação é localmente planejada. Considere ainda que em se estabelecendo uma gradação do informal para o formal, observa-se uma variedade entre esses dois polos que se estabelecem dentro de um continuum e que podem ser exemplificadas relacionando diferentes variedades entre fala e escrita, escrita e escrita, e fala e fala, conforme já foi refletido a partir das contribuições de Marcuschi nesse assunto. Após esta apresentação da AC, acompanhe a seguir alguns dos pontos mais importantes dessa teoria linguística. I. Sobre o tratamento dos dados orais – primeiramente, deve-se considerar o sistema de transcrição de texto oral: as conversações naturais que servem de corpus para a AC devem ser gravadas ou filmadas para que o analista possa observar, transcrever e comprovar seus dados da maneira mais fiel possível. O analista pode privilegiar os aspectos fundamentais para sua análise, mas a transcrição deve ser legível. Em função do trabalho com textos orais, esta área possui normas de transcrição de texto bastante específicas para atender a todas as situações. A AC analisa materiais empíricos, orais, contextuais, incluindo realizações entonacionais e gestuais que possam colaborar com a construção do sentido. Outro aspecto importante para caracterizar o perfil da análise da conversação é a importância conferida também aos recursos não verbais utilizados na fala. Os recursos não verbais são de grande relevância na transcrição e análise das conversações. Steinberg (1988 apud DIONÍSIO, 2005, p. 77) sistematiza os recursos não verbais normalmente empregados nas conversações: 1. Paralinguagem – pequenos sons emitidos pelo aparelho fonador que não constituem signos linguísticos, mas interferem na significação: hm hm, shiiii, tsc tsc. 2. Cinésica – movimento do corpo, mãos, gestos na conversação. 3. Proxêmica – proximidade/distância entre os interlocutores. 4. Tacêsica – uso de toque durante a conversação. 5. Silêncio – ausência de conversação, mas que às vezes diz mais que mil palavras: falamos, portanto, com a voz e com o corpo. Vejamos um exemplo retirado de Dionísio (2005, p. 78): 203 M03 certas coisas... eu digo peraí... tinha uma bacia conforme essa aqui ((pega 204 numa bacia plástica que está próxima e mostra)) uma bacia... de loiça... eu 205 maiei aqui assim ((demarca na bacia o nível da água colocada na época)) eu 206 butei água... 75 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 No segundo capítulo do livro Análise da conversação, Marcuschi (2007b) apresenta um sistema de transcrição para textos falados, que sintetiza bem como deve ser o tratamento formal de transcrição da fala e que inclusive serve de base às transcrições do Projeto NURC6. Segue o referido quadro adaptado: Quadro 17 Ocorrências Sinais Exemplificação 1. Indicação dos falantes Os falantes devem ser indicados em linha, com letras ou alguma sigla convencional H28 M33 Doc. Inf. 2. Pausas ... não... isso é besteira 3. Ênfase MAIÚSCULA ela comprou um OSSO 4. Alongamento de vogal : (pequeno) :: (médio) ::: (grande) eu não tô querendo é dizer que ... é: o eu fico até:: o: tempo todo 5. Silabação - do-minadora 6. Interrogação ? ela é contra a mulher machista... sabia? 7. Segmentos incompreensíveis ou ininteligíveis ( ) (ininteligível) bora gente... tenho aula... ( ) daqui 8. Truncamento de palavras ou desvio sintático / eu pre/ pretendo comprar 9. Comentário do transcritor (( )) M.H. ... é ((rindo)) 10. Citações “” “mai Jandira eu vô dize a Anja agora que ela vai apanhá a profissão de madrinha agora mermo” 11. Superposição de vozes [ H28. é... existe... [você ( )do homem... M33. [pera aí... você Acha... pera aí... pera aí 12. Simultaneidade de vozes [[ M33. [[mas eu garanto que muita coisa H28. [[eu acho eu acho é a autoridade 13. Ortografia tô, ta, vô, ahã, mhm II. A organização da conversa – em uma conversa, os interlocutores devem falar um por vez. Eles devem esperar um lugar relevante para a transição (LRT), ou seja, esperar por marcas na fala do interlocutor como pausas, hesitações, entonações descendentes, marcadores etc. Os interlocutores emitem sinais para marcar o fim de seu turno ou um convite à fala do outro e trocam o tempo todo os papéis de falante e ouvinte, mas isso não impede que, em algumas situações, muitas pessoas falem ao mesmo tempo e se entendem. Todos os falantes têm direito à fala. Conforme explica Marcuschi (2007b), a noção de turno engloba dois sentidos: 1. distribuição de turno; 2. unidade construcional. 6Projeto de Estudo Coordenado da Norma Urbana Linguística Culta. 76 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Saiba que os turnos podem ser nucleares (centrais no desenvolvimento do tópico discursivo) e inseridos (produções marginais ao tópico). A mudança de turno pode ocorrer por meio da passagem, do assalto e da sustentação da fala. A passagem do turno pode ser requerida ou consentida pelo falante; os assaltos são uma espécie de violação da regra “falar um de cada vez”,e o falante invade o turno do outro sem solicitação ou consentimento (o interlocutor assaltado pode perder e em seguida retomar, abandonar ou recuperar o comando da interação sobrepondo-se à fala do outro); e a sustentação é uma tentativa do falante de garantir a posse do turno, recorrendo a marcadores conversacionais, alongamentos, repetições e elevação da voz. No caso das entrevistas formais, que apresentam uma estrutura básica de pergunta e resposta, em geral, a elaboração do turno conversacional apresenta uma distinção nítida: os turnos de resposta tendem a ser longos e, apesar de pausas, truncamentos, hesitações, alongamentos etc., não há tomada de turno. A estrutura em pergunta e resposta compõe a unidade fundamental da organização conversacional e pode variar na sua realização. III. Dos marcadores conversacionais – como o texto oral é planejado e verbalizado ao mesmo tempo, dos recursos mais característicos da fala natural são os marcadores conversacionais que podem ser verbais, não verbais ou prosódicos: alguns marcam finalização de turno (“não é?”, “entendeu?”); outros marcam participação (“uhrum”); e outros marcam convergência (“exato”, “sim”). Os marcadores conversacionais são produzidos pelos falantes para dar tempo à organização do pensamento, sustentar o turno, monitorar o ouvinte, corrigir-se, reorganizar e reorientar o discurso e pelos ouvintes para orientar e monitorar o falante quanto à recepção com sinais de convergência, indagação e divergência. Os marcadores (MCs) se apresentam divididos em quatro grupos: 1. MCs simples: um só item lexical – “mas”, “éh”, “aí”; 2. MCs compostos: sintagmas geralmente estereotipados – “sim, mas”, “bom mas aí”; 3. MCs oracionais: pequenas orações – “eu acho que”, “sim, mas me diga”; 4. MCs prosódicos: recursos prosódicos – entonação, pausa, hesitação, tom de voz. IV. A construção da compreensão no texto falado – quando dois ou mais indivíduos conversam, eles coordenam conteúdos e ações, contruindo um texto coerente. O sucesso da interação atrela-se ao processo interacional estabelecido entre os participantes em um esforço coletivo pela construção de sentidos. Conforme Marcuschi (op. cit.), a compreensão na interação verbal face a face, resulta de um projeto conjunto de interlocutores em atividades cooperativas e coordenadas de coprodução de sentido e não de uma simples interpretação semântica de enunciados postos. O analista deve dar conta de como os participantes de uma interação resolvem suas estratégias e seus processos de compreensão. Marcuschi apresenta algumas atividades de compreensão na interação verbal que merecem destaque: • Estratégia 1 – negociação: central para a produção de sentidos na interação verbal dada a sua natureza conjunta. 77 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • Estratégia 2 – construção de um foco comum: na interação, a base da troca é a sintonia referencial, o interesse comum e referentes partilhados. • Estratégia 3 – demonstração de (des)interesse e (não)partilhamento: se não há esse partilhamento, a interação não progride. • Estratégia 4 – existência e diversidade de expectativas: os interlocutores criam expectativas diversas em relação um ao outro, relacionadas ao contexto, às condições em que são produzidas, conhecimento partilhado etc. • Estratégia 5 – marcas de atenção: sinais enviados pelos interlocutores que demonstram se há boa ou má sincronia na interação. A análise da conversação no Brasil constitui-se em uma linha de pesquisa praticada sistematicamente com uma produção editorial que abrange transcrições de materiais do corpus do Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta (NURC), análises de textos orais sobre diversos temas da AC, gramáticas do português falado (com o corpus dos NURCs), além de teses e dissertações defendidas nos programas de pós-graduação das universidades brasileiras. Resumo Nesta Unidade II, você refletiu sobre os gêneros textuais do dia a dia, tanto falados como escritos: • Fala (telefonemas, aulas, entrevistas de emprego, conferências, palestras, comunicações, discursos, conversas de bar, de elevador, de ponto de ônibus, de namorados, de marido/mulher, de ex-marido e ex-mulher, teleconferências, bate-papo em viva-voz via Skype, MSN etc., programas de rádio e TV, pregão na feira, na rua, na bolsa de valores, fofocas, “bronca” (reprimenda) dos pais, da professora, do guarda de trânsito etc.). • Escrita (cartas: pessoais, de recomendação, de demissão etc., memorandos, ofícios, circulares, anúncios: publicitários, de emprego, de venda etc., formulários, e-mails, chats, multas, posts, coments de blogs, notas fiscais, listas de compra, bulas de remédio, receitas médicas, exames médicos, recibos, contas domésticas, jornal impresso e eletrônico, cheques, placas, outdoors, recados de geladeira, de Orkut, de post-it etc.). Você também observou que na linguagem existem vários níveis de variação linguística e que a linguagem é variável em seus mais diversos aspectos: a. variação sociolinguística; 78 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 b. variação dialetal; c. variação de registros e níveis de fala; d. variação de gêneros textuais realizados na fala; e. variação de estratégias organizacionais da interação verbal; f. variação de estratégias comunicativas; g. variação de estratégias e processos de compreensão na interação; h. variação de situações sociocomunicativas; i. variação de construções sintáticas; j. variação de seleção lexical. E viu também que a teoria da linguística textual elabora a definição de um continuum tipológico entre os gêneros de fala e escrita pautados pelos seus níveis maior ou menor de formalidade. Sobre as características próprias da fala, é importante considerar: • Devido à sua interacionalidade intrínseca, a fala é, a priori, “não planejável”. Ela precisa ser apenas “localmente planejável”. • Possui sua verbalização e seu planejamento concomitantes, pois esses processos emergem no momento da interação – a fala é o seu próprio rascunho. • Apresenta descontinuidades frequentes no fluxo discursivo: abandono de tópicos discursivos; retomadas de tópicos discursivos, inserções abruptas de novos tópicos discursivos, truncamentos etc. • Sintaxe característica/típica ligada, de certa forma, à sintaxe geral da língua. Um exemplo é a topicalização: “Esse menino, eu não sei se tomou banho hoje”; “A violência, falta de segurança, eu não me acostumo com esse ritmo de grandes metrópoles no Brasil”. • Fala é processo, portanto, é dinâmica: não é um produto pronto e acabado, pois está continuamente se refazendo, indo e voltando nos tópicos de interesse dos interlocutores, definindo-se em razão das necessidades, escolhas e pressões comunicativas da interação. Refletiu ainda mais formalizadamente sobre as particularidades e característica que distinguem a fala da escrita e os funcionamentos de uma que interferem na outra. 79 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Dando continuidade à discussão acerca do binômio oralidade x escrita, você acompanhou a discussão sobre as perspectivas científicas em torno da relação oralidade e escrita apresentadas por Marcuschi (op. cit.). 1. Fala x escrita – a perspectiva das dicotomias. 2. Oralidade x letramento ou fala x escrita? 3. Oralidade e escrita no contexto das práticas sociais. 4. Oralidade x escrita: a tendência fenomenológica de caráter culturalista. 5. Fala x escrita – perspectiva variacionista. 6. Oralidade x escrita – a perspectiva interacional. 7. Concepção e funcionamento da língua – consequente relação fala/ escrita. Para fixar melhor os conceitos, você acompanhou uma análise das principais categorias a partir da música Saudosa maloca, de Adoniran Barbosa. E, porfim, você acompanhou a apresentação das principais características e categorias da análise da conversação: tratamento dos dados orais; recursos não verbais da conversação; a organização da conversa; os marcadores conversacionais; as estratégias de negociação, construção, demonstração e diversidade de expectativas na conversação. Exercícios QUESTÃO 1. Leia a letra da música a seguir e analise as afirmações subsequentes. As mariposa As mariposa quando chega o frio Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá Elas roda, roda, roda e dispois se senta Em cima do prato da lâmpida pra descansá Eu sou a lâmpida E as muié é as mariposa 80 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Que fica dando vorta em vorta de mim Todas noite só pra me beijá Tá muitu bom... Mas num vai si acostumá, viu dona mariposinha? (BARBOSA, 1974). I. Adoniran usa o nível de linguagem popular, que, além de caracterizar o personagem da música, cria efeito de humor. II. Se a letra da música fosse alterada de acordo com as regras da norma culta, o efeito de sentido permaneceria o mesmo. III. O compositor comete erros gramaticais com o intuito de desvalorizar a cultura popular, deixando evidente que a população brasileira não tem bom nível de escolaridade. Está correto o que se afirma somente em: A) I. B) II. C) III. D) I e II. E) II e III. Resposta correta: alternativa A. Análise das alternativas: I. Afirmativa correta. Justificativa: o nível de linguagem popular explorado por Adoniran Barbosa em suas músicas é essencial para a produção de efeito de humor e também para caracterizar os personagens. II. Afirmativa incorreta. Justificativa: se alterássemos a letra para o nível formal, toda a graça da obra se perderia. III. Afirmativa incorreta. Justificativa: as letras de Adoniran não têm como objetivo a desvalorização da linguagem popular. Ele apenas reproduz em suas composições o modo de falar de um determinado grupo. 81 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 QUESTÃO 2. (Provão 1999) Considere o texto abaixo. A praia de frente pra casa da vó Eu queria surfar. Então vamo nessa: a praia ideal que eu idealizo no caso particularizado de minha pessoa, em primeiramente, seria de frente para a casa da vó, com vista para o meu quarto. Ia ter uma plantaçãozinha de água de coco e, invés de chão ser de areia, eu botava uns gramadão presidente. Assim eu, o Zé e os cara não fica grudando quando vai dar os rolê de Corcel ! Na minha praia dos meus sonhos, ia rolar vááárias vós e uma pá de tia Anastácia fazendo umas merenda nervosa! Uns sorvetão sarado! Uns mingauzão federal! Umas vitaminas servida! X-tudo! XCalabresa Cebola Frita! Xister Mc Tony’s e gemada à vontade pros brother e pras neneca! Tudo de grátis! As mina, exclusive, ia idrolatar surfistas chamados Peterson Ronaldo Foca (conhecidentemente como no caso da figura particularizada da minha pessoa, por exemplo). Pra ganhar as deusa, o xaveco campeão seria... o meu: “E aís, Nina (feminina)? Qual teu C.E.P.? Tua tia já teve catapora? E teu tio? E tua avó? Uhu!! Já ganhei!!” E se ela falasse: “Vai procurar a tua turma!” , minha turma estaria bem do meu lado, pra eu não ficar procurando muito! Exclusive, eu queria surfar, mas na praia ideal dos meus sonho (aquela que eu desacreditei, rachei o bico e falei “nooossa!” ) Não haveriam tubarães. (Haveriam porque é vários tubarães!). A “Eu, o Zé e os Cara, Paneleiros and Friends Association” ia encarregar o colocamento de placas aleatórias com os dizeres: “Sai fora, tubarão! Cê num sabe quem cê é!” . E os bicho ia dar área rapidinho! Cê acha, jovem?! Nóis num quer ficar que nem um colega meu, O Cachorrão, da Associação dos Surfistas de Pernambuco, umas entidade sem pé nem cabeça! Então vamo nessa: na praia dos sonhos que eu falei “É o sooonho!”, teria menos água salgada! (Menas porque água é feminina!) Eu ia conseguir ficar em pé na minha triquilha tigrada, sair do back side, subir no lip, trabalhar a espuma, iiihaa!! Meus pés ia grudar na parafina e eu ia ficar só lá: dropando os tubo e fazendo pose pras tiete, dando umas piscada de rabo de olho e rasgando umas onda de 30 metros (tudo bem, vai! Um metro e meio...). Mesmo sem abrir a boca, eu ia ser o centro das atençães e os repórter ia me focalizar com neon, luz estetoscópica robotizada e uns show de raio lazer!! De 18 concorrentes, eu ia sagrar décimo sétimo, porque um esqueceu a prancha. (Tamém, o cara marcou!) E as mina só lá: “Uhu!! Foca é animal!! Focaliza o Foca!! O cara é o própio galã de Óliud!” Exclusivamente, eu queria surfar, daí os carinha da República me pediram pra falar na revista, a vó tirou um pelo de mim: “Cê nunca vai falar na revista, Peterson Ronaldo!” Daí eu falei: “Artigo?? Eu? É comigo? Tá limpo!” . Eu já apareço no rádio! Por que eu não posso falar na revista?! Então vamo nessa de novo: eu queria pensar, mas eu nem tô ligado nesses lance de utopia...Dormir na pia... Supermetropia! Esses lance aí quem pensa é o Zé! Eu queria escrever! Em súmula: eu parei de pensar, agora eu só surfo! Consequentemente, Peterson Foca. Peterson Foca, personagem cult de “Sobrinhos do Ataíde”, programa que revolucionou o humorismo do rádio brasileiro. O programa “Sobrinhos do Ataíde”, criação de Felipe Xavier, Marco Bianchi e Paulo Bonfá, é veiculado pela rádio 89,1 FM de São Paulo, e em outras cidades do Brasil. República, ano 1, nº 2. 82 Unidade II Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Com relação às formas vááárias, nooosa e sooonho, observa-se que: I. Os autores do texto procuram suprir a falta de símbolos específicos, na escrita, para representar fenômenos prosódicos como contornos entoacionais ascendentes acoplados ao alongamento vocálico. II. A repetição de vogais constitui uma tentativa, por parte dos autores, de representar, na escrita, diferenças de pronúncia relativas à qualidade das vogais tônicas dessas palavras. III. O uso de tais formas produz um efeito de intensificação semelhante ao obtido com o uso de advérbios. É correto o que se afirma apenas em: A) I. B) II. C) III. D) I e II. E) I e III. Resolução desta questão na Plataforma. 83 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Unidade III O PAPEL DA LEITURA: FUNCIONAMENTO SOCIAL E PROCESSAMENTO (META)COGNITIVO 7 LEITURA, ORALIDADE E ESCRITA: PRáTICAS LINGUíSTICAS, SOCIAIS E PEDAGóGICAS Vamos agora relacionar a discussão do texto, enquanto prática social, em sua tríplice forma de acontecimento: escrita, oralidade, leitura. Pensar sobre a comunicação conduz inevitavelmente à reflexão acerca da natureza tecnológica e universalizada do uso da escrita. De acordo com Foucambert (1998), a escrita é usualmente definida como meio privilegiado de comunicação. Embora, nas situações de comunicação oral (informar, perguntar, apontar etc.), de modo geral, reconheçam-se uma facilidade e uma interatividade mediadas pela comunicação em presença dos interlocutores, na comunicação escrita, o que seria uma característica contrária (a não presença) também é reconhecida como elemento facilitador, pois ela se realiza na ausência dos interlocutores e mesmo assim veicula a comunicação em situações específicas e cada vez mais comuns, permitindo que os interlocutores possam interagir à distância. Lembrete É bom nunca perder de vista que fala e escrita são modalidades linguísticas distintas, que utilizam o mesmo código linguístico verbal. Observe a seguir alguns aspectos do funcionamento sócio-histórico da escrita: • Escrita = meio de expressão. Mas para quem? Em que condições? Comunicar-se por meio da escrita soa como uma armadilha para alguns membros da sociedade: uso misterioso, difícil e mutável. • Escrita = meio pelo qual alguns se expressam. Meio de dominação engendrada nas relações histórico-sociaisde força e poder. Os usos da escrita (comunicação e expressão) não dizem respeito a capacidades técnicas, mas sim ao reconhecimento de certo status: luta pelo poder teoricamente democrática. Para Foucambert (1998), a afirmação de que a escrita seja essencialmente e generalizadamente um meio de comunicação não se sustenta, pois ela pode ser prioritariamente comunicação e expressão em um plano individual, particular, mas no plano histórico-social, por princípio, ela está dentro das relações 84 Unidade III Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 de força e de poder. “Sim, a escrita é um meio de expressão e comunicação. Mas do quê? De algo que não existiria sem ela” (p. 44). No plano da comunicação e expressão, a escrita abre um registro novo, diferente daquilo tudo que já se comunicava e se expressava sem ela. A escrita implica outras restrições e operações: Ao contrário do oral, a escrita não é permutada no instante efêmero, mas na permanência do espaço [...]. A escrita não é o terreno do pensamento que se cria, mas do pensamento que experimenta a si mesmo em sua unidade [...]. O oral dá-se no tempo; a escrita, no espaço (idem, p. 46-47). Veja que a função da escrita tem a ver com a transformação dos processos de conhecimento, sua dimensão é espacial e visual, enquanto que a da fala é temporal e auditiva. A escrita não é meramente uma transcrição da fala. A escrita torna-se a linguagem da abstração, do pensamento reflexivo e teórico (o pensamento sobre o pensamento): • A escrita é um meio de construir uma visão de mundo, dar sentido. Não representar, mas apresentar a realidade por meio de restrições próprias e operações específicas. • A leitura é o que vai em busca da visão de mundo e de seu confronto com outros pontos de vista. Leva ao questionamento e à investigação. Para Vygotsky (apud FOUCAMBERT, op. cit., p. 52), a escrita é a álgebra da linguagem, forma mais difícil e complexa da atividade verbal, intencional e consciente. Assim como é difícil para uma criança, também o é para muitos adultos. A escrita se basta a comunicar e expressar precisamente as especificidades intelectuais que ela mesma permite elaborar. Aprender a manejá-la (ler e escrever) é entrar no uso dessas funções. “Como dizia um professor primário: Agora não basta mais ensiná-los a ler, é preciso também que eles compreendam”. Se você aprofundar o olhar acerca desses funcionamentos sociais, concordará que, historicamente, as práticas de escrita e leitura se configuraram como representações sociodiscursivas de diferentes classes e aquelas práticas relacionadas às classes econômica e politicamente dominantes foram atreladas ao “bom uso” do vernáculo, à aquisição e ao acúmulo do conhecimento (e sua organização), ao progresso e avanço científico-tecnológico e à ascensão social. Nessa perspectiva, vinculou-se à escola, sobretudo, o papel de “ensinar”, reproduzir e reconhecer tais práticas. Considere que a prática pedagógica faz uso de cartilhas, livros e manuais didáticos para instrumentalizar os exercícios de leitura e escrita em sala de aula. Entretanto, a escola mostra modelos de escrita, mas não consegue ensiná-los. A escola não prioriza estas questões: Quais são as condições atuais de leitura? Quem lê? Quem escreve? Para quê? Por quê? No exercício pedagógico das práticas de leitura e escrita, há o apagamento (ou enfraquecimento) de sua mais importante característica: a interacionalidade dialógica – constitutiva da linguagem, seja oral ou escrita. A escola se faz o grande (e único) interlocutor do aluno. Desde os exercícios de reconhecimento 85 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 fonético “IVo Viu a uVa” até as tais “fichas de leitura”, em que os alunos nem precisam ler o livro para completar as respostas (GERALDI, 1985). O aluno não é levado a produzir textos, e sim a reproduzi-los, e sua autonomia e originalidade, na maioria das vezes, são podadas e minadas ao longo de seu percurso escolar. Portanto, não há troca, interação, mas apenas uma simulação desse processo entre professor e aluno. Em geral, o professor é sempre a boca (falante) e o aluno é sempre a orelha (ouvinte), sem que nunca troquem de papéis. E, quando o aluno (re)produz, o professor não está interessado em sua produção, mas em se ele conseguiu reproduzir o modelo. Você deve refletir acerca de que os sentidos que as crianças atribuem à escrita, seus esquemas de interpretação, são variados e dependem das experiências passadas, bem como dos conhecimentos adquiridos – a escola confunde falta de conhecimento com inaptidão para adquirir os conhecimentos acadêmicos, não reconhecendo o saber do aluno e rotulando-os: “os alunos fracos”, “os que não sabem”. Veja o texto a seguir, apresentado por Smolka (1988, p. 59), em que a professora está interessada em se a criança decodificou a escrita, mas não está preocupada com a interpretação que a criança faz. A professora escreve na lousa: “A mamãe afia a faca”. E pede para uma criança ler. A criança lê corretamente. Um adulto pergunta à criança: – Quem que é a mamãe? – É a minha mãe, né? – E o que que é “afia”? A criança hesita, pensa e responde: – Sou eu, porque ela (a mamãe) diz: vem cá, minha fia. A professora, desconcertada, intervém: – Não, afia é amola a faca! Compreenda que a criança é exposta a uma frase solta, descontextualizada, mas mesmo assim tenta levantar hipóteses, com base no uso que ela faz de “afia” no seu contexto social e funcional. Vê-se que, como a criança já usa a linguagem (oral) e sabe que ela tem uma função, um sentido, ela fica confusa por não conseguir se subjetivar pelo “texto” que a escola apresenta. Sobre a questão da oralidade na escola, Brito postula: O processo de construção de redação é uma disputa (não uma integração) constante entre a competência linguística do estudante 86 Unidade III Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 (basicamente oral, não formal e desescolarizada) e a imagem de língua escrita que cria a partir da imagem do interlocutor e de interlocuções privilegiadas [...]. Como esse interlocutor tem caráter fortemente repressivo e valorativo, o estudante, na necessidade de mostrar que “sabe”: nega sua capacidade linguística oral; cria uma imagem de língua a partir das fontes que identifica com a imagem do interlocutor, isto é, relações sociais em que haja (ou o aluno identifique) marcas de autoridade, padrão culto etc. (1985, p. 125). Geraldi (1985) conclui que, nessas condições, quanto menos conhecimento específico sobre a linguagem escrita (metalinguístico) a criança tem, mais noção da funcionalidade escrita ela demonstra. Ele aponta o exemplo de dois garotos que foram reprovados em um ano por “não saberem escrever” e no ano seguinte um foi aprovado e o outro, novamente reprovado. Mas, conforme Geraldi, a “produção” do aluno aprovado não passava de uma caricatura idiota, reprodutora do modelo das cartilhas, que nem chega a ser um texto (e sim, no máximo uma “redação”). Já o aluno reprovado, apesar de vários problemas com o registro escrito, apresenta verdadeiramente um texto, uma narrativa em que se pode compreender uma história com todos os seus elementos básicos (enredo, personagens, espaço, tempo, clímax), e, além disso, o texto denota a subjetividade de seu autor, pois retrata um tema bastante típico paras as crianças, sobretudo as de classe econômica baixa. Textos apresentados por Geraldi (1985, p. 129): Quadro 18 A casa é bonita. A casa é do menino. A casa é do pai. A casa tem uma sala. A casa é amarela. Era uma vez umpionho queroia ocabelo dai um emninopinheto dapasou um umenino lipo enei pionho aí pasou um emnino pionheto daí omenino pegoupionho da amunhér pegoupionho da todomundosaiogritãdo todomundo pegou pionho di até sofinho begoupionho. [Era uma vez um piolho que roíao cabelo de um menino piolhento daí passou um menino limpo sem piolho aí um menino piolhento daí o menino pegou piolho daí a mulher pegou piolho daí todo mundo saiu gritando todo mundo pegou piolho até seu filhinho pegou piolho.] Smolka questiona o seguinte: Que escrita é essa que a criança aprende na escola que faz com que ela “regrida” quando escreve o que pensa? Assim se comprova, mais uma vez, que a escola ensina as crianças a repetirem e reproduzirem palavras e frases feitas. A escola ensina palavras isoladas e frases sem sentido e não trabalha com as crianças [na fase da escrita inicial], o “fluir do significado”, a estruturação deliberada do discurso interior pela escritura (1988, p. 69). 87 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Podemos constatar que é devolvendo o direito à palavra ao aluno que talvez se possa um dia ler a história contada, e não contida, da grande maioria que hoje ocupa os bancos das escolas públicas. E tal atitude, conforme Geraldi, dá novo significado à questão: “Como avaliar redações?”. Apontando, no mínimo, para critérios diferentes daqueles que reprovaram o autor do texto e aprovaram o “autor” da redação (GERALDI, 1985, p. 129). Lembrete É preciso não perder de vista que o autor/sujeito emerge do discurso na escritura, e o professor enxergará isso observando as marcas, delineando as pistas e trabalhando a leitura e escritura como práticas discursivas. As situações de ensino/aprendizagem devem ser instauradoras da relação de interação e interlocução – ela é objeto de conhecimento e constitutiva do conhecimento na interação. Não se trata apenas de ensinar (no sentido de transmitir) a escrita, mas de usá-la como interação e interlocução na sala de aula, experimentando a linguagem nas suas várias possibilidades. Veja a seguir algumas importantes contribuições de Smolka, que servem de sugestão para a abordagem dessas questões no ensino, na sala de aula: Buscando, então, transformar algumas condições e procedimentos de ensino nas escolas, começamos a usar, como uma das formas de articulação das atividades e de constituição da interdiscursividade, a literatura infantil. Além da literatura, procurávamos implementar as várias formas de linguagem (plástica, corporal etc.) possíveis e viáveis nas situações escolares. E por que a utilização da literatura? Porque a literatura, como discurso escrito, revela, registra e trabalha formas e normas do discurso social; ao mesmo tempo, instaura e amplia o espaço interdiscursivo, na medida em que inclui outros interlocutores – de outros lugares, de outros tempos – criando novas condições e novas possibilidades de troca de saberes, convocando os ouvintes/leitores a participarem como protagonistas no diálogo que se estabelece (1988, p. 80). E ainda: Nesse processo, a escrita integra o habitus e a possibilidade, a necessidade e o gosto (também forjados socialmente) da interação por escrito ganham força na correspondência e no registro das experiências. Mas relato e ficção se fundem, confundem-se: o imaginário também ganha força. Fatos e crenças, ritos e mitos, medos e desejos são explicitados. É o discurso cotidiano que começa a ser marcado pelo trabalho de escritura das crianças e que traz, 88 Unidade III Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 portanto, as marcas da realidade sociocultural dos indivíduos e dos grupos em interação (idem, p. 100). Após a reflexão apresentada, considerando a proposta da autora, veja agora três textos também apresentados por Smolka (1988), em que se podem reconhecer todos esses aspectos por ela apontados, relacionados ao trabalho com o texto literário e o processo de subjetivação da criança, por meio da leitura/escrita. [A galinha foi na feira com o galo. Ela beijou o galo. Ela passou “boca louca”. O pintinho falou: “Olha o namoro!”. O galo falou: “Porque a sua mãe é bonita demais!”. A galinha falou: “Você também é”. O galo falou: “Obrigado”. A galinha falou: “Obrigado, você”. O galo: “De nada”. O galo deu um “boca louca” para ela. O pintinho bicou o galo, o galo pegou os pintinhos no couro e o galo casou com a galinha e os dois foram passear no bosque. A galinha ficou contente. Os pintinhos ficaram chorando.] Figura 2 Fonte: Smolka, 1988, p. 102. 89 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 [A minha irmã parece o Janjão e eu não gosto dela... ela mexe quando eu tô brincando de carrinho, ela não deixa eu brincando de carrinho porque ela não gosta que eu não “brinco” com moleque de rua. Mas eu vou na rua, eu bato nela e eu vou, bato, e a minha mãe bate em mim e vou dormir. Depois que eu acordo, quando meu pai chega, eu falo pra ele, ele bate nela. Eu gosto quando meu primo bate nela. Eu dou risada. Acabou “dessa” folha.] Figura 3 Fonte: idem, p. 103. [Eu acharia melhor que todo mundo que viesse na festa não estragasse as bandeirinhas, os balões todos que tivessem na festa, não estragasse. Guardasse pro outro ano. Porque as folhas são caras, os cartazes 90 Unidade III Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 também. Cada um ponha as sujeiras no lixo, senão as faxineiras não dão conta... Papel no lixo conserva a nossa escola. Porque ontem de ontem eu vim trazer o menino que eu olho, tinha cada balão lindo, cada desenho lindo! Tinha um balão no meio do pátio parecia balão de verdade! Podia guardar todos os materiais. Pelo jeito que eu vi, eu acho que foi uma festa linda! Pena que eu não pude vir aqui! Este cartaz que está na nossa classe, a gente podia sortear, ou senão guardar como lembrança lá embaixo... Também eu não posso porque eu sou crente da Congregação Cristã do Brasil, eu não posso participar da rodinha do escarnecedor.] Figura 4 Fonte: idem, p. 105. 8 ESTRATéGIAS DE LEITURA: COGNITIVAS E METACOGNITIVAS – LEITOR ANALISADOR E (RE)CONSTRUTOR Ainda sobre o processo de leitura, você precisa entender que esse processo se dá cognitivamente e metacognitivametne, como veremos nos tópicos a seguir. Dentro de uma perspectiva de leitura/escrita cognitivista e sociointeracionista, a autora Ângela Kleiman (2004; e 2007a) analisa e descreve as estratégias processuais de leitura, designadas: estratégias cognitivas e estratégias metacognitivas. 91 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 I. Estratégias de leitura Observe que, quando se fala sobre a leitu ra enquanto ato individual, uma questão bastante pertinente em relação ao en sino da leitura diz respeito à viabilidade desse ensino. Não seriam as tentativas de ensino da leitura incoerentes com a natureza da atividade, uma vez que a leitura é um ato individual de construção de signifi cado em um contexto que se configura mediante a interação entre autor e leitor e que, portanto, será diferente para cada leitor, dependendo de seus conheci mentos, interesses e objetivos do momento? Conforme Kleiman (2004; e 2007a), a tentativa seria incoerente se o ensino de leitura seguisse a prática escolar, tanto do professor como do livro didático, que privilegia uma leitura, a do professor, como a única leitura correta, autorizada. A tentativa não é incoerente, entretanto, se o ensino de leitura for entendido como o ensino de estratégias de leitura, por uma parte, e como o desenvolvimento das habilidades linguísticas que são características do bom leitor, por outra. Tanto estratégias como habilidades são necessárias, porém não suficientes, para realizar o ato de ler. As estratégias de leitura são operações regulares para abordar o texto. Essas estratégias podem ser inferidas a partir da compreensão do texto. O texto, por sua vez, é inferido a partir do comportamento verbal e não verbal do leitor: • tipo de respostas sobre o texto; • os resumos que ele faz;• suas paráfrases; • a forma como ele manipula o objeto. Em linhas gerais, as estratégias do leitor são classificadas em: cognitivas e metacognitivas. É o que se discutirá a seguir. II. Estratégias cognitivas As estratégias cognitivas são as opera ções inconscientes do leitor, no sentido de não ter chegado ainda ao nível consciente, que ele realiza para atingir algum objetivo de leitura. Por exem plo, o fatiamento sintático é uma operação necessária para a leitura, que o lei tor realiza, ou não, rápida ou cuidadosamente, isto é, de diversas maneiras, dependendo das necessidades momentâneas, e que provavelmente não pode rá descrever. De acordo com Kleiman (2004, p. 32), os mecanismos cognitivos e capacidades envolvidas no processamento do texto podem ser visualizados no quadro a seguir: 92 Unidade III Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Quadro 19 - Mecanismos cognitivos no processamento do texto Material escrito Olhos (percepção e interpretação de input gráfico) Memória de trabalho (fatiamento) Memória intermediária (repositório de conhecimento ativado, em alerta) Memória longo termo/Memória semântica/Memória profunda (o conhecimento e regras para seu uso e organização) Fonte: Kleiman, 2004, p. 32. III. Estratégias metacognitivas Entenda que as estratégias cognitivas são as opera ções (e não regras) realizadas com algum objetivo em mente, sobre as quais temos controle consciente, no sentido de sermos capazes de dizer e explicar a nossa ação. Várias são as estratégias que podem ser utilizadas pelo leitor quando este não entende o texto, começando pela consciência própria de falha na compreensão. Por exemplo, ele poderá voltar atrás e reler, ou poderá procurar o significado de uma palavra-chave que recorre no texto, ou poderá fazer um resumo do que leu, ou procurar um exemplo de um conceito. Enfim, dependendo do que ele detectar como causa, ele adotará diversas medidas para resolver o problema. Conforme explicita Kleiman (op. cit.), dentro dessa visão do processo de leitura, como um conjunto de estratégias cognitivas e metacognitivas de abordagem do texto, o ensino es tratégico de leitura consistiria, por um lado, na modelagem de estratégicas metacognitivas, e, por outro, no desenvolvimento de habilidades verbais subjacentes aos automatismos das estratégias cognitivas. 93 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Observação O ensino e modelagem de estratégias de leitura consistem em buscar reproduzir as condições que dão ao leitor proficiente a flexibilidade e independência, indicativas de uma riqueza de recursos disponíveis. Como você mesmo está se exercitando aqui como leitor, o leitor experiente tem duas características básicas que tornam a sua leitura uma atividade consciente, reflexiva e intencional: primeiro, ele lê porque tem algum objetivo em mente, e, segundo, ele compreende o que lê, o que seus olhos percebem seletivamente é interpretado, recorrendo a diversos proce dimentos para tornar o texto inteligível, quando não consegue compreender. Qual a importância da posse de um objetivo pessoal para o leitor? Em primeiro lugar, o objetivo determina escolhas pessoais; nesse sentido, todo programa de leitura deve ter um componente livre, em que o aluno vai à biblioteca da escola e lê o que qui ser, sem cobrança de nenhuma espécie. Em segundo lugar, o leitor proficiente faz escolhas buscando antecipar os assuntos do conteúdo do livro. Essas antecipações estão apoiadas no co nhecimento prévio, tanto sobre o assunto (conhecimento enciclopédico) co mo sobre o autor, a época da obra (conhecimento social, cultural, pragmáti co), o gênero (conhecimento textual) (KLEIMAN, 2007a). Saiba mais Para ampliar essa discussão, você pode ler a resenha do texto Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura, de Ângela Kleiman, que está disponível em . Assim, faz-se necessário que todo programa de leitura permita ao aluno entrar em contato com um universo textual amplo e diversificado. Na aula de leitura, é possível criar condi ções para o aluno fazer suas antecipações do conteúdo, orientado pelo professor, que, além de per mitir-lhe utilizar seu próprio conhecimento, supre eventuais problemas de leitura do aluno, construindo suportes para o enriquecimento dessas antecipações e mobilizando seu maior conhecimento sobre o assunto. O exemplo a seguir, de acordo com Kleiman (2004, p. 52-56), ilustra um caso em que o professor (mais experiente) orienta o aluno (menos experiente), a definir seus objetivos de leitura. O texto 94 Unidade III Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 publicitário, por meio da combinação das linguagens verbal e não verbal, ajuda a criar uma imagem de um leite puro, seguro, nutritivo (adjetivos usados no texto), e natural (associações que a figura do animal traz): Obrigado por não ter aditivos, Caixinha. É natural que você pense que o leite Longa Vida tenha alguma coisa. Afinal, os de saquinho duram 1 ou 2 dias e o leite Longa Vida dura meses. Isso porque ele não tem bactérias. Como não tem bactérias, o leite Longa Vida não precisa de aditivos nem de conservante algum. Por não conter conservantes, leite Longa Vida, uma vez aberto, precisa ser colocado na geladeira. Não porque acabou a mágica, mas porque lá dentro da caixinha só tem leite puro, seguro e nutritivo. Você não deve desconfiar quando um leite é tudo isso. Beba Leite. Este. Figura 5 – Exemplo tomado de Kleiman Conforme destaca Kleiman (2004), o processo de auxílio do leitor em compreender a intenção do autor passa pela busca de marcas linguísticas dessa intenção. No exemplo citado, o autor emprega você em vez de vocês. O uso da terceira pessoa no singular estabelece um maior grau de intimidade, dificilmente alcançado quando usado o plural. Entenda que a intencionalidade aparece no texto por meio de outras marcas, como a hiperlexicalização (repetição de um mesmo item lexical) no emprego do pronome dêitico “isso”. O anúncio do leite está disposto em uma estrutura quase dialogada, e o pronome “isso” pode fazer uma referência tanto interna como externa ao texto, estabelecendo uma ligação com os elementos da falta desse interlocutor imaginário. Assim, quando o antecedente está no texto, a palavra “isso” no enunciado (“Você não deve desconfiar quando um leite é tudo isso”) remete ao parágrafo anterior. Do mesmo modo, o pronome “disso” teria o mesmo antecedente (“Você deve desconfiar quando um leite não é nada disso”). 95 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Por outro lado, a autora aponta ocorrências em que não fica claro qual poderia ser o antecedente, fazendo supor uma ligação com o universo do leitor, tornando a expressão vaga e com diversos referentes possíveis (“Você nem precisa agradecer o fato de o Leite Longa Vida fazer tu do isso por você”). A última ocorrência do pronome também não deixa claro seu significado, pois o seu antecedente parece ser “fazer tudo isso”, que novamente é imprecisa (“Porque, no fundo, “isso” não é mais que uma obrigação”). Kleiman sustenta que a hiperlexicalização é frequentemente um índice de relevância pretendido pelo autor, para enfatizar algum item, dando-lhe um maior grau de importância do que a outros presentes no texto (uso do pronome “você” no anúncio). Contudo, o efeito produzido no leitor é imprevisível, pois leitores diferentes, de culturas e formações diferentes ou mesmo em diversas leituras podem não concordar na interpretação das pistas linguísticas. 8.1 Leitor analisador e leitor (re)construtor E ainda aprofundando a questão dos tipos de leitor, considere que, conforme Kato (1999), são diversas as hipótesessobre os processos mentais subjacentes à leitura. Descrevendo algumas delas, a autora enfatiza aquela em que o leitor participa reconstruindo o planejamento do discurso do escritor. Na área de compreensão e leitura, temos duas hipóteses opostas, ambas descrevendo leitores ideais e considerando o texto uma unidade formal, com significado próprio: 1. A ascendente (bottom-up) ou dependente do texto, na qual o leitor faz uma análise visual dos dados e procura, por meio do entendimento das partes menores, entender o significado do todo (leitor analisador). 2. A descendente (top-donw) ou dependente do leitor, na qual o input visual está em segundo plano, pois nessa hipótese o leitor faz uso de seus conhecimentos prévios do assunto e de sua capacidade inferencial para antecipar o entendimento do texto (leitor construtor) (KATO, 1999). A autora comenta que, apesar de parecerem contraditórios, se esses processos mencionados forem usados conjuntamente, ou seja, complementando um ao outro de forma a estabelecer uma interação entre o leitor e o texto, temos um leitor construtor-analisador, mais fluente e preciso. Você entendeu? Essas hipóteses baseiam-se apenas na interação entre o leitor e o texto, mas e quanto à interação leitor-escritor, em que a compreensão é principalmente dependente da capacidade do autor de transmitir suas ideias no texto? Kato sugere que, partindo da leitura como um ato de comunicação regido por regras conversacionais, o escritor e o leitor estabelecem um contrato de cooperativismo: 96 Unidade III Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • escritor informativo/leitor compreensivo; • escritor sincero/leitor crédulo; • escritor relevante/leitor assertivo; • escritor claro/leitor que espera o uso de recursos linguísticos simples. Entretanto, esse leitor-cooperativo espera sempre que esses quatro princípios estejam sempre presentes. Mesmo o não cumprimento de qualquer um deles pode significar para o leitor que ali há uma ocultação do autor do seu real desejo. Para ilustrar melhor, Kato aponta de Morton e Marshal (1985 apud KATO, 1999, p. 70): Um avião americano que voava de Boston para Vancouver caiu exatamente na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá. Em que país os sobreviventes deveriam ser enterrados? Conforme a autora, há aí uma violação da sinceridade, pois alguns leitores, levados pelo princípio de cooperação, pensarão tratar-se de uma brincadeira do autor, enquanto outros tentarão adivinhar o termo que ocorre nessa posição, evidenciando, neste último caso, a hipótese descendente de leitura. Mesmo que coexista entre escritor e leitor o cooperativismo, a inexistência de uma correspondência biunívoca entre forma, função e até o desconhecimento sobre uma ambiguidade, muitas vezes não pretendida pelo escritor, faz da leitura um processo incapaz de extrair o sentido final do texto. O texto incita o leitor a algumas interpretações, nem sempre intencionalmente colocadas pelo escritor. Considere o texto como sendo, além de uma unidade formal, uma unidade de comunicação, em que a leitura se define como um ato de reconstrução dos processos de sua produção. Essa interação leitor-autor, corroborada por Levy (apud KATO, 1999), prega que a recepção é um processo no qual o leitor se coloca seguindo as trilhas deixadas pelo autor, colocando-se na sua posição para entender seus objetivos. A partir desse percurso, constrói-se o leitor-reconstrutor. O modelo proposto por Levy (apud KATO, op. cit.) vê a produção como um processo de planejamento, por meio do qual o escritor do texto codifica seus objetivos usando estratégias comunicativas. Entenda- se por planejamento o processo por meio do qual o produtor arma um curso de ação para satisfazer a um ou mais objetivos e por estratégia comunicativa o modo como o produtor realiza seu objetivo comunicativo. Resumo Nesta Unidade III, você refletiu sobre a discussão do texto, enquanto prática social de escrita e leitura, considerando que: 97 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • a escrita é um meio de construir uma visão de mundo, dar sentido; não representar, mas apresentar a realidade por meio de restrições próprias e operações específicas; • a leitura é o que vai em busca da visão de mundo e de seu confronto com outros pontos de vista. Leva ao questionamento e à investigação. Você aprofundou o olhar sobre estas práticas: escrita, oralidade, leitura, considerando que no funcionamento social, historicamente, as práticas de escrita e leitura se configuraram como representações sociodiscursivas de diferentes classes e aquelas práticas relacionadas às classes econômica e politicamente dominantes foram atreladas ao “bom uso” do vernáculo, à aquisição e ao acúmulo do conhecimento (e sua organização), ao progresso e avanço científico-tecnológico e à ascensão social. Nessa perspectiva, vinculou-se à escola, sobretudo, o papel de “ensinar”, reproduzir e reconhecer tais práticas. Você pôde refletir acerca de que os sentidos que as crianças atribuem à escrita, seus esquemas de interpretação, são variados e dependem das experiências passadas, bem como dos conhecimentos adquiridos – a escola confunde falta de conhecimento com inaptidão para adquirir os conhecimentos acadêmicos, não reconhecendo o saber do aluno e rotulando-os: “os alunos fracos”, “os que não sabem”, vendo alguns exemplos que ilustram isso. Acompanhou também a discussão acerca de que as situações de ensino/aprendizagem devem ser instauradoras da relação de interação e interlocução – ela é objeto de conhecimento e constitutiva do conhecimento na interação. Não se trata apenas de ensinar (no sentido de transmitir) a escrita, mas de usá-la como interação e interlocução na sala de aula, experimentando a linguagem nas suas várias possibilidades. Após essas discussões, você acompanhou a apresentação das estratégias de leitura (cognitivas e metacognitivas) e os tipos de leitores (analisador e construtor), considerando que o texto é inferido a partir do comportamento verbal e não verbal do leitor: • tipo de respostas sobre o texto; • os resumos que ele faz; • suas paráfrases; • a forma como ele manipula o objeto. 98 Unidade III Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Exercícios QUESTÃO 1. Leia os quadrinhos a seguir e considere as afirmações subsequentes. Figura 6 Fonte: Orlandeli apud Santos, 2011. I. O avanço da internet proporcionou o desenvolvimento do “internetês”, uma variante linguística adaptada às condições de comunicação na rede, que exige rapidez na transmissão da mensagem. II. A linguagem utilizada na internet, como, por exemplo, no MSN, apresenta traços de oralidade. III. Na fala do sobrinho, a forma de escrever certas palavras revela a intenção de se reproduzir na tela a entonação. Está correto o que se afirma em: A) Todas as afirmativas. B) I e II, somente. C) I e III, somente. D) II e III, somente. E) II, somente. Resposta correta: alternativa A. Análise das afirmativas I. Afirmativa correta. Justificativa: a linguagem da internet apresenta características próprias, como a ortografia diferenciada e a abreviação de palavras. Além disso, há a falta de pontuação de acordo com as regras da norma culta. 99 Teorias do TexTo Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 II. Afirmativa correta. Justificativa: nas “conversas” pelo MSN, utilizam-se várias marcas da oralidade, as pessoas normalmente dizem que vão “falar” no MSN justamente pela proximidade que esse meio de comunicação tem com a conversa informal. III. Afirmativa correta. Justificativa: na fala do sobrinho, a extensão da vogal procura reproduzir a entonação. Trata-se de um recurso gráfico. Assim como o uso da onomatopeia para reproduzir a risada. QUESTÃO 2.(Enade 2008) “Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo” (BOFF, 1997, p. 9). Considerando o fragmento de texto apresentado anteriormente, analise o seguinte enunciado. Na leitura, fazemos mais do que decodificar as palavras porque a imagem impressa envolve atribuição de sentidos a partir do ponto de vista de quem lê. Assinale a opção correta a respeito desse enunciado. A) As duas asserções são proposições verdadeiras, e a segunda é uma justificativa correta da primeira. B) As duas asserções são proposições verdadeiras, e a segunda não é justificativa correta da primeira. C) A primeira asserção é uma proposição verdadeira, e a segunda é uma proposição falsa. D) A primeira asserção é uma proposição falsa, e a segunda é uma proposição verdadeira. E) Tanto a primeira asserção quanto a segunda são proposições falsas. Resolução desta questão na Plataforma. 100 FIGURAS E ILUSTRAÇÕES Figura 1 BRASILEIRO, A. A coerência e a coesão na costrução do sentido dos textos. Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2011. REFERÊNCIAS Audiovisuais ALVES, A.; LAGO, Mário. Ai que Saudades da Amélia (1941). Intérprete: Ataulfo Júnior. In: DIVERSOS. [S.I.]: Leva meu samba, 1989. 1 disco sonoro. Lado A, faixa 3. BARBOSA, A. Saudosa maloca. Intérprete: João Bosco. In: DIVERSOS. Som Livre [S.I.]: Adoniran Barbosa: o poeta do Bixiga, 1990. 1 disco sonoro. Faixa 2. ___. As mariposa. Intérprete: Adoniran. In: ADONIRAN. Odeon [S.I.]: Adoniran Barbosa, 1974. 1 disco sonoro. Faixa 3. DESMUNDO. Direção: Alain Fresnot. País: Brasil. 2002. (101 min.) DOMÉSTICAS – O FILME. Direção: Nando Olival/Fernando Meirelles, País: Brasil. 2001. (90 min.) Textuais BAGNO, M. A língua de Eulália: novela sociolinguística. São Paulo: Contexto, 1997. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2002. _____ . 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Acesso em: 17 abr. 2011. ___. Linguística textual: uma entrevista com Ingedor. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2011. ___. O texto e a construção dos sentidos. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2007. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes & Editora da Unicamp, 1989. MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. 6. ed. São Paulo: Ática, 2007b. _____. Concepções de Língua falada nos manuais de português de 1o e 2o graus: uma visão crítica. In: Trabalhos em linguística aplicada. Campinas: Unicamp/IEL, 1997, nº 30. _____. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2007a. _____. Linguística textual: o que é e como se faz. Recife: UFPE, 1983. PINTO, J. P. Pragmática. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A.C. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2007. 103 PLATÃO, F. S.; FIORIN, J. L. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. SMOLKA, A. L. A criança na fase inicial da escrita. São Paulo: Cortez, 1988. Exercícios Unidade I - Questão 1: UNICAMP/IEL. Cefiel. Centro de Formação Continuada de Professores. Alfabetização e Linguagem. Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica. Disponível em: . Acesso em: 23 mai. 2011. Unidade II - Questão 2: INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Provão 1999: Letras. Disponível em: . Acesso em: 18 mai. 2011. Unidade III - Questão 2: INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) 2008: Letras. Disponível em: . Acesso em: 18 mai. 2011. 104 105 106 107 108deixados pela linguística estrutural e que serviram de motivação/objetivo para a linguística textual, entre outras áreas de estudo da linguagem, buscar resolver: • A dicotomia língua x fala (e desconsideração da fala). • A desconsideração dos aspectos extralinguísticos. • A autonomia do objeto de estudo (língua). • A desconsideração do sujeito (desconsideração da fala, portanto do falante). • A unidade de análise centralizada na frase. • A separação do enunciado de sua enunciação. • O pouco caso relegado ao estudo da significação e do sentido entre outras questões de igual modo importantes. As diferentes linhas linguístico-teóricas anteriormente citadas romperam com o estruturalismo linguístico, cada uma em função de um(ns) ou outro(s) aspecto(s) e a partir disso delimitaram 13 Teorias do TexTo seus limites de pesquisa sobre a língua(gem). No caso da linguística textual, todos esses aspectos negligenciados pela tradição estruturalista justificaram a delimitação/instauração do campo de estudo do texto, alguns mais crucialmente que outros. Alguns dos aspectos mais importantes que foram criticados na tradição estruturalista e que serviram de ponto de partida para a instauração da linguística textual, no sentido de serem obstáculos a serem superados foram: • a delimitação da frase (e não do texto) como unidade máxima de análise; • a desimportância relegada ao texto e sua organização global; • a desconsideração da fala (do texto falado) e seus aspectos funcionais e organizacionais; • e, por fim, a total desconsideração do sujeito (falante) e da situação comunicativa na análise linguística. Saiba mais Para entender melhor essa discussão, você pode aprofundar a leitura com o artigo Estudos do texto e do discurso no Brasil, de Diana Luz Pessoa de Barros, disponível on-line em: . É importante salientar mais uma vez que tais aspectos problemáticos, caracterizadores das lacunas da tradição linguístico-estrutural, levaram esse “lugar de ruptura teórica”, os estudos do texto, a empenhar-se: • em ir além dos limites da frase; • em reintegrar o sujeito e a situação sociocomunicativa ao escopo de investigação teórica; e • em desenvolver e ampliar o estudo do texto em suas modalidades oral e escrita, a partir de sua organização estrutural, processamento cognitivo e funcionamento sociointeracional, instaurando assim a linguística textual (doravante LT). 1.2 da frase ao texto: as três fases de construção da linguística textual Agora vamos trilhar um pouco do percurso da linguística textual. Em sua constituição, a LT passou por três fases de desenvolvimento. Conforme apontam Bentes (2007), Indursky (2006) e Koch (2009, 2007, 2006), não houve um desenvolvimento exatamente homogêneo dessas três fases. Os estudos acerca do texto desenvolveram-se e ampliaram-se em diferentes países dentro e fora da Europa 14 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 (destaquem-se a produção norte-americana, germânica e anglo-saxã), mais ou menos à mesma época e com preocupações teóricas variadas. Assim, é importante perceber que não houve precisamente uma sucessão cronológica na transposição de uma fase à outra. O que melhor caracteriza a mudança de uma fase para a outra é muito mais a ampliação e o aprofundamento gradual dos estudos da LT, marcando cada vez mais fortemente o seu afastamento em relação à linguística estrutural. Cada nova fase busca superar os limites e insuficiências da fase anterior. Conforme descrevem Bentes (2007), Indursky (2006), Marcuschi (1983) e Koch (2009, 2007, 2006), entre outros autores clássicos desse campo científico, essas três fases da LT costumam ser conhecidas como: 1a fase transfrástica; 2a fase da gramática textual; 3a fase da teoria do texto. Agora que as fases destacáveis da LT já foram apresentadas rapidamente, é importante considerar que a LT atualmente está mais bem representada por essa terceira fase, em que as suas questões teórico-metodológicas de investigação apresentam-se melhor desenvolvidas. Dito isso, vamos conhecer mais detalhadamente os aspectos e características de cada uma das três fases. lembrete É bom lembrar que, apesar de não se poder levar em conta datas precisas quanto ao início e fim de cada uma das fases, é possível contextualizar aproximadamente (e superficialmente) a fase transfrástica na década de 1960, a fase da gramática textual na década de 1970 e a fase da teoria do texto a partir da década de 1980 até os dias de hoje. 1. Fase transfrástica – a própria designação já aponta o principal interesse dessa fase, a análise transfrástica que vai além dos limites da frase. Essa fase volta-se para os fenômenos linguísticos que nunca foram bem explicados pelas teorias formalistas limitadas ao nível da frase. Segundo Bentes (2007, p. 247), na análise transfrástica, parte-se da frase para o texto. Exatamente por estarem preocupados com as relações que se estabelecem entre as frases e os períodos, de forma que construa uma unidade de sentido, os estudiosos perceberam a existência de fenômenos que não conseguiam ser explicados pelas teorias sintáticas e/ou pelas teorias semânticas: o fenômeno da correferenciação, por exemplo, ultrapassa a fronteira da frase e só pode ser melhor compreendido no interior do texto. 15 Teorias do TexTo O fenômeno da correferenciação estuda o múltiplo referenciamento e significa que o referente textual, ou seja, aquilo sobre o que o texto fala, encontra-se retomado ao longo do texto de diferentes formas, por exemplo: a. “Ana adora bolo, massas e frituras. A danadinha está passando do peso. Essa menina poderá ter problemas, se não fechar a boca.” b. “Maria foi à feira. Ela se assustou com os preços altos.” Observe que o referente “Ana” foi retomado pelas formas “a danadinha” e “essa menina”. Isso fez fluir e progredir a construção do sentido ao longo das sequências, de modo que cada sequência introduzida por um novo correferente veio a acrescentar informações em uma direção argumentativa. Se prestarmos atenção, veremos que o referente “Ana” não dá nenhuma pista sobre tratar-se de uma criança, contudo quando consideramos os correferentes “a danadinha” e “essa menina” somos levados a essa possível leitura sem que nenhuma menção explícita tenha sido feita a isso. Em uma análise transfrástica, é possível olhar o pronome pessoal de 3a pessoa diferentemente da visão tradicional estruturalista, que vê apenas uma simples substituição no nome “Maria” pelo pronome “ela”. Perceba que o uso do pronome propicia ao ouvinte/leitor instruções de conexão entre a predicação que se faz do pronome “se assustou com os preços altos” e o próprio sintagma nominal em questão “Maria” (considerado como aquele sobre o qual também já se disse algo). Tal mecanismo colabora na construção do perfil do referente “Maria” por parte do ouvinte/leitor. Observação Não é a concordância de gênero e número entre nome e pronome (Maria = ela) que garante a equivalência entre esses dois termos, mas as relações estabelecidas entre as suas predicações. É por causa dessas relações que sabemos que o pronome “ela” se refere ao SN “Maria”. Entretanto, o mero mecanismo de correferenciação entre sequências não constitui obrigatoriamente um texto. Ampliando seus esforços, os estudiosos foram observando, ao lado da correferenciação, outros fenômenos que também estabelecem relações entre as orações por meio de sequenciação (conectivos), pronominalização (pronomes), definitivização (artigos definidos e indefinidos), concordância verbal, relação tópico-comentário entre outros. Você deve observar, todavia, que a investigação acerca dos elementos conectivo-sequenciadores, que estabelecem relações entre as orações, levou os teóricos a questionarem se havia obrigatoriedade de relações conectivas presentes entre os enunciados para se constituirum texto. Vejam-se os exemplos: a. Genival não foi ao casamento de sua prima: enviou-lhe flores e um presente. 16 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 b. Genival não foi ao casamento de sua prima: estava adoentado. c. Genival não foi ao casamento de sua prima: não pode dizer quem estava chorando. Como você pode constatar, em (a), é a relação adversativa, implicada pelo conector “mas”, que se estabelece entre o primeiro e o segundo enunciado. Em (b), é a relação explicativa, implicada pelo conector “porque”, que se estabelece entre o primeiro e o segundo enunciado. Em (c), é a relação conclusiva, implicada pelo conector “portanto”, que se estabelece entre o primeiro e o segundo enunciado. Entretanto, os conectores “mas”, “porque” e “portanto” não estão presentes entre os enunciados, mas isso não impede que o ouvinte/leitor reconstrua o sentido da sequência, constituindo mentalmente as relações argumentativas próprias entre as orações. Desse modo, considerar o conhecimento intuitivo do falante acerca das relações a serem estabelecidas entre sentenças e o fato de nem todo texto apresentar o fenômeno da correferenciação [...] [constituíram] fortes motivos para a construção de uma outra linha de pesquisa, que não considerasse o texto apenas uma simples soma [...] de frases (BENTES, op. cit., p. 249). Os estudiosos partem, então, para uma segunda fase de desenvolvimento da LT, considerando os múltiplos mecanismos possíveis que garantem a linearidade, progressão textual e construção de sentidos. 2. Fase da gramática textual – essa fase apoiou-se no objetivo de criar gramáticas textuais. Mesmo considerando-se já um bom desenvolvimento nas investigações da LT, acreditava-se ser o texto um sistema uniforme, estável e abstrato, e nesse ponto ainda se aproximavam um pouco da forma como o estruturalismo descrevia a língua (sistema uniforme, estável e abstrato). As gramáticas textuais refletiam acerca de fenômenos linguísticos não explicáveis por uma gramática da frase. Nesse período, postulava-se o “texto” como uma unidade teórica formalmente construída, em oposição ao “discurso”, unidade funcional, comunicativa e intersubjetivamente construída (ibidem). Entenda que, nessa fase, é possível constatar a forte influência teórica da gramática gerativo- transformacional de Noam Chomsky. O gerativismo é outra corrente linguística que nasce na segunda metade do século XX e que também rompe com o estruturalismo linguístico, mas que mantém um caráter de pesquisa bastante formal que afirma ser a língua um sistema inato ao homem e não um produto de aprendizado social, portanto, desse ponto de vista, as regras da língua são uniformes e estáveis e já estão prontas na mente. Seu objeto de estudo será então o sistema abstrato de regras linguísticas inatas à mente humana e não o uso que se faz delas no plano social. Assim, o texto é tomado como a maior unidade linguística de análise, que pode ser decomposto (e recomposto) em unidades menores classificáveis em uma gramática do texto, buscando assim 17 Teorias do TexTo descrever que papel cada elemento desempenha textualmente. Assim, como o gerativismo considera a competência linguística do falante ideal, que detém o conhecimento internalizado de todas as regras da língua (mesmo que não seja levado a usá-las socialmente, ou seja, ele tem a competência, mas não necessariamente o desempenho), essa segunda fase considera a competência textual: Todo falante nativo possui um conhecimento acerca do que seja um texto [...], sabe reconhecer quando um conjunto de enunciados constitui um texto [ou não] [...], é capaz de resumir e/ou parafrasear um texto [...] [e] perceber se ele está completo [ou não] (BENTES, op. cit., p. 250). Nesse sentido, o falante possuiria três capacidades textuais básicas, conforme aponta Charolles (1989 apud BENTES, op. cit., p. 250): 1a A capacidade formativa (produzir e compreender). 2a A capacidade transformativa (reformular, parafrasear e resumir). 3a A capacidade qualificativa (reconhecer e tipificar: narração, descrição, argumentação). Uma gramática do texto teria as seguintes tarefas, conforme apontam Fávero & Koch (1988): • observação dos princípios e fatores de textualidade responsáveis pela coesão e coerência textual flagrados na superfície do texto; • observação de critérios para delimitação do texto em sua completude; • diferenciação dos vários tipos textuais. Veja que o texto é tomado como um “tecido” com princípios específicos, regras e fatores que formam o conjunto homogêneo e uniforme da textualidade. Assim como o gerativismo concebe o falante ideal, as gramáticas textuais concebem o texto ideal. O texto seria uma unidade teórica, e considerá-lo em funcionamento era considerar o discurso e não o texto. No entanto, a pretensão das gramáticas textuais não alcançou todos os objetivos da investigação acerca do texto, deixando vários fenômenos inexplicáveis ou mal-explicados. Não eram capazes de descrever todas as possíveis regras de textualidade, até porque os gêneros textuais são plurais e muito produtivos. Todos os dias podem surgir novos gêneros textuais (orais e escritos) com princípios e regras particulares (até bem pouco tempo não se tinha o e-mail ou o chat, por exemplo!). Cai, assim, o princípio de homogeneidade textual. Esse tratamento das gramáticas textuais começou a ser visto como excessivamente formal e iniciou-se um terceiro movimento. 3. Fase da teoria do texto – conforme sintetizam Bentes (2007) e Indursky (2006), diferentemente das gramáticas textuais que tencionavam a competência textual de falantes/ouvintes ideais, nessa fase, busca-se: 18 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 investigar a constituição, o funcionamento, a produção e a compreensão dos textos em uso (grifo nosso) [...] [adquirindo] particular importância [...] [o] seu contexto pragmático [, ou seja,] o conjunto de condições externas da produção, recepção e interpretação dos textos (BENTES, op. cit., p. 251). A língua passa a ser entendida não mais como um sistema abstrato (virtual), mas atual, em funcionamento, em uso efetivo. Nessa medida, o texto deixa de ser visto como um produto formal pronto e acabado (ideal) e passa a ser entendido como um processo (real) em funcionamento. Você pode contatar que, nessa perspectiva, a LT torna-se uma disciplina de caráter interdisciplinar, relacionando seus interesses com os de outras áreas do conhecimento que envolvem questões de linguagem e sociedade. Conforme Marcuschi (1998), a LT pode ser bem compreendida como “uma disciplina de caráter multidisciplinar, dinâmica, funcional e processual, considerando a língua como não autônoma, nem sob seu aspecto formal” (MARCUSCHI, 1998). Maiores detalhes sobre essa fase serão aprofundados nos itens que se seguem, em função de essa ser hoje a fase referencial (atual) da LT. Saiba mais Para conhecer mais a respeito do percurso teórico da linguística textual, você pode ampliar seus horizontes lendo o texto (1)Linguística textual: quo vadis, da autora Ingedore Villaça Koch (uma autora de referência nessa área) e a entrevista (2)Linguística textual: uma entrevista com Ingedor. Esse material está disponível on-line nos links: ; . 1.3 Aprofundando e delimitando o conceito de texto Você deve supor que, assim como a LT evoluiu ao longo de suas três fases, o conceito de texto também evoluiu. Observem-se as características principais que constituem as concepções de texto predominantes em cada fase. 1. Em um primeiro momento (fase transfrástica), o texto é concebido como: • “uma sequência pronominal ininterrupta” (dada a ênfase na questão da correferenciação); • “uma sequência coerente de enunciados”; • “forma de organização do material linguístico”; • “unidade linguística superiorà frase”. 19 Teorias do TexTo 2. Em um segundo momento (fase da gramática textual), o texto é concebido como: • “complexo de proposições sintático-semânticas” (apresenta um conjunto de conteúdos); • “estrutura pronta e acabada” que obedece a uma estrutura formal articulada estritamente a partir de sete fatores de textualidade: – coesão; – coerência; – aceitabilidade; – informatividade; – situacionalidade; – intertextualidade; – intencionalidade. • “produto de uma competência linguística idealizada” (ênfase no aspecto formal do texto – extensão e constituintes); • “maior unidade linguística com sequência coerente e consistente de signos linguísticos.” Uma definição de texto que representa bem esses dois primeiros momentos é o de Stammerjohann: O termo abrange tanto textos orais como textos escritos que tenham como extensão mínima dois signos linguísticos, um dos quais, porém, pode ser suprido pela situação, no caso de textos de uma só palavra, como “Socorro!”, sendo sua extensão máxima indeterminada (1975 apud BENTES, 2007, p. 253). Entre os conceitos de texto da primeira e segunda fases não há representativas diferenças. Porém, vale a pena salientar ainda que as gramáticas textuais assim como definem o texto também definem o não texto: • Texto = “sequências linguísticas coerentes entre si”. • Não texto = “sequências linguísticas incoerentes entre si”. Essa oposição (texto x não texto) em si já se mostra um tanto desconexa se se considerar estranho ou difícil de imaginar uma “sequência” que não seja lógica e coerente. Só é sequência porque possui uma lógica, do contrário seria apenas um amontoado aleatório de elementos! Consideravam-se não texto as produções que “ferissem” algum(ns) dos sete fatores de textualidade. 1. Em um terceiro momento (fase da teoria do texto), a noção de texto é completamente revista. A teoria do texto não considera a possibilidade do “não texto”, primeiramente por ser ilógico conceber uma sequência linguística incoerente em si. Se há uma sequência linguística, certamente há uma lógica. 20 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 É possível, por exemplo, encontrar textos precários, incompletos, lacônicos etc., mas que não perdem o seu estatuto de texto por isso. Desde que uma “sequência” faça sentido para alguém, já será um texto. Por exemplo, se considerarmos um gênero textual bastante informal e corriqueiro, mesmo que escrito, o “recado de geladeira”. Imagine que alguém (uma moça) que mora com a mãe, escreva o seguinte recado de geladeira: A.1. “Mãe, deixei o Lucas na creche agorinha. Volto na próxima segunda. Beijo, Luíza.” É possível que algum purista que analise esse texto o julgue incompleto, lacônico, mal-estruturado por falta de referências... Entretanto, considerando o funcionamento social desse gênero, a situação comunicativa que o envolve, os possíveis interlocutores/falantes que dele façam uso para estabelecer uma comunicação etc., vemos que é um texto absolutamente possível, funcional e suficiente. Não está faltando nem sobrando informação. Elas são justas ao que é necessário nessa situação comunicativa, cujas interlocutoras são “Luíza”, autora do texto, e sua “mãe”, a interlocutora/leitora. A “mãe”, interlocutora/leitora do texto, sabe muito bem que é sua filha, a irmã do “Lucas”, quem escreve, sabe que “Lucas” é uma criança pequena e por isso ainda vai à creche, que “agorinha” significa, por exemplo, de manhã, horário natural em que se deixam as crianças na creche e sabe ainda quando vai ser a “próxima segunda”, dia em que a filha vai voltar para casa. Não é preciso acrescentar nada: imagine como seria esquisito e impróprio um “recado de geladeira”, nessa mesma situação comunicativa, que trouxesse todas essas informações implícitas (que são totalmente possíveis de inferir) sem a mínima necessidade de sua presença: A.2. “Prezada senhora Marilda Pinheiro, eu, sua filha Luíza Pinheiro, 24 anos, residente nesse mesmo domicílio, informo solenemente que entreguei o seu filho Lucas Pinheiro, meu irmão caçula, de três anos de idade, aos cuidados da creche Criança Feliz, domiciliada à rua Jatobá, 66, centro, às 7h da manhã do dia 10 de Outubro de 2010. Informo ainda que estou viajando a trabalho para Belo Horizonte e tenho meu regresso datado para a próxima segunda-feira, dia 18 de Outubro de 2010. Sem mais para o momento, firmo-me: Luiza Pinheiro.” Por outro lado, um texto pode fazer todo sentido para um falante e para outro pode não fazer nenhum sentido. Para ilustrar essa possibilidade, vejamos como exemplo o texto a seguir: A vaguidão específica (Millôr Fernandes) “As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vagoespecífica” (Richard Gehman). — Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte. — Junto com as outras? — Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer qualquer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia. — Sim senhora. Olha, o homem está aí. — Aquele de quando choveu? — Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo. 21 Teorias do TexTo — Que é que você disse a ele? — Eu disse para ele continuar. — Ele já começou? — Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse. — É bom? — Mais ou menos. O outro parece mais capaz. — Você trouxe tudo pra cima? — Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou para deixar até a véspera. — Mas traga, traga. Na ocasião, nós descemos tudo de novo. É melhor senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite. — Está bem, vou ver como. Note-se que o problema de coesão caracterizado pela falta de referências não chega a constituir, de forma alguma, falta de coerência no texto, que impossibilite a comunicação entre as interlocutoras dele, pois a proposta do autor é a de que a situacionalidade preencha as lacunas referenciais entre as interlocutoras. Talvez para outros interlocutores/leitores o texto não faça sentido algum, mas definitivamente as informações veiculadas por ele são suficientes para as interlocutoras dessa interação, que possuem o conhecimento partilhado necessário à compreensão da sua suposta falta de referência em si. Ou seja, um texto pode fazer sentido para uns e para outros não! Considere-se ainda que, no texto em questão, o autor não prioriza as informações do texto em si, cujas referências estão ausentes, mas especialmente o tom de humor em referir-se sarcasticamente a certas características apontadas como do universo feminino. Para essa terceira fase, o texto não pode ser entendido como uma estrutura pronta e acabada, um produto, mas como um processo com atividades globais de comunicação – planejamento, verbalização e construção. Lembre-se de que considerar o texto como um processo é considerar seu funcionamento com atividades de planejamento, verbalização e construção a partir de aspectos: • linguísticos (sintáticos, lexicais etc.); • semânticos (conteúdo, coerência, significação); • pragmáticos (seu uso, situação comunicativa, contexto etc.). E sem perder de vista a importante relação entre os sujeitos da produção textual: falante/ ouvinte; autor/leitor. Essa relação é crucial para que o texto faça sentido e se organize especificamente de uma forma e não de outra; quer essa relação se dê no aspecto interpessoal (entre pessoas), ou entre instituições, ou entre uma intituição e uma coletividade, ou entre uma mídia e uma coletividade etc. 22 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Saiba mais O texto disponível no link pode ajudar você a refletir de forma geral sobre estas questões de coerência e coesão e poderá ilustrar essa reflexão com uma imagem bem definidora da articulação entre esses dois eixos de construção da textualidade: a coerência que se dá na globalidade do todo (a mulher de chapéu) e a articulação coesiva que se dá entre os elementos (palavras). O material é do blog Gestação: leitura e leitores, da professora Aparecida Brasileiro. Figura 1 – A coerência e a coesão na costrução do sentido dos textos Você deve compreender que o mesmo texto, inclusive, é passível de diferentes leituras em um mesmo momento histórico ou se lido em épocas e contextos diferentes. Como exemplo disso, podemos citar bem rapidamente as diferentes interpretações dos textos bíblicos que as pessoas fazem de um modo geral ou para si próprias. A própria forma linguística da Lei abre “brechas” para distintas interpretações. Ou, ainda, um texto pode ser considerado moralmente impróprio, ou vulgar, ou acintoso aos valores sociais, familiares e religiosos etc. e em outro momento/contexto pode ser considerado revolucionário, à frente de seu tempo, verdadeiro etc.: os poemas de Gregório de Matos (o poeta barroco conhecido como Boca do Inferno) podem ser um bom exemplo disso. 23 Teorias do TexTo Ou, por outro lado, um texto que pode ter sido considerado poético, verdadeiro e bonito em dado momento histórico pode hoje ser motivo de piada e referência de preconceito e opressão: por exemplo, a música Ai, que saudades da Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago, de 1941, sobretudo em sua segunda estrofe, que hoje faz-nos considerar “Amélia” um adjetivo pejorativo quanto à caracterização da mulher moderna: Ai, que saudades da Amélia Nunca vi fazer tanta exigência Nem fazer o que você me faz Você não sabe o que é consciência Nem vê que eu sou um pobre rapaz Você só pensa em luxo e riqueza Tudo o que você vê, você quer Ai, meu Deus, que saudade da Amélia Aquilo sim é que era mulher Às vezes passava fome ao meu lado E achava bonito não ter o que comer Quando me via contrariado Dizia: “Meu filho, o que se há de fazer!” Amélia não tinha a menor vaidade Amélia é que era mulher de verdade Fonte: Alves; Lago, 1941. Voltando à questão da conceituação do texto, na terceira fase da LT, conforme descreve Koch (op. cit.), a definição de texto deve considerar que: Quadro 1 1. A produção textual é uma atividade verbal 2. A produção textual é uma atividade verbal consciente 3. A produção textual é uma atividade verbal, consciente e interacional O falante/ouvinte pratica ações, atos de fala. O falante/ouvinte tem objetivos e intenções – ele sabe o que faz, como faz e por que faz. O texto é o produto da interação entre falante/ouvinte, autor/leitor. Há sempre um objetivo a ser atingido. O sujeito/falante tem um papel ativo na produção textual – dizer é fazer. Os interlocutores estão obrigatoriamente envolvidos nos processos de construção e compreensão do texto. Os enunciados são dotados de certa força (atos) – saudação, pergunta, asserção, solicitação, convite, despedida etc. Há uma consciência no uso do conhecimento, elementos linguísticos e fatores pragmáticos e interacionais. Esses atos estão inseridos em contextos situacionais, sociocognitivos e culturais. 24 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Veja agora as três definições de texto de diferentes autores, que são exponenciais nesse momento mais atual da linguística textual, mas que devem ser tomadas em sua complementaridade entre si, uma vez que não deve haver apenas uma definição engessada em si mesma para definir o texto (apud BENTES op. cit., p. 255-256): • Bakhtin (1929): “Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra se apoia sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor”. • Koch (1997a): “Poder-se-ia, assim, conceituar o texto como uma manifestação verbal constituída de elementos linguísticos selecionados e ordenados pelos falantes durante a atividade verbal, de modo a permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos semânticos, em decorrência da ativação de processos e estratégias de ordem cognitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo com práticas socioculturais”. • Marcuschi (1983): “Proponho que se veja a linguística do texto, mesmo que provisória e genericamente, como o estudo das operações linguísticas e cognitivas reguladoras e controladoras da produção, construção, funcionamento e recepção de textos escritos ou orais. Seu tema abrange a coesão superficial ao nível dos constituintes linguísticos, a coerência conceitual ao nível semântico e cognitivo e o sistema de pressuposições e implicações ao nível pragmático da produção do sentido no plano das ações e intenções. Em suma, a linguística textual trata o texto como um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas. Por um lado, deve preservar a organização linear, que é o tratamento estritamente linguístico, abordado no aspecto da coesão e, por outro lado, deve considerar a organização reticulada ou tentacular, não linear: portanto, dos níveis do sentido e intenções que realizam a coerência no aspecto semântico e funções pragmáticas”. 2 cOnSTruIndO SenTIdOS nO TexTO: OrgAnIZAçãO eSTruTurAl e PrOceSSAMenTO TexTuAl Uma vez que já construímos o panorama teórico da constituição da LT de seu nascimento, desenvolvimento até à caracterização de seu objeto de estudo (o texto) no perfil atual e vigente desse campo de investigação, agora serão apresentadas algumas das principais categorias teóricas de análise relacionadas à organização estrutural, às estratégias de processamento e funcionamento e ao contexto interacional. Essa descrição será topicalizada da seguinte maneira: I. Processamento textual II. Organização estrutural 25 Teorias do TexTo I. Processamento textual: o texto deve sempre ser entendido como um processo. O processamento textual acontece mediante sistemas de conhecimento acionados no texto e no contexto de produção (KOCH, 2007; 2006). Na produção textual, toda ação (fazer) é necessariamente acompanhada de processos de ordem cognitiva, de maneira que o sujeito dispõe de modelos e tipos de operações mentais. Os interlocutores, na comunicação, dispõem de saberes acumulados sobre os diversos tipos de atividades da vida social, eles têm conhecimentos na memória que precisam ser ativados para que a atividade seja efetivada com sucesso. Tais atividades geram expectativas, e isso compõe um projeto nas atividades de compreensão e produção do texto. Considerando o texto como um processo, Heinemann e Viehweger (1991 apud KOCH, 2007) definem três grandes sistemas de conhecimento, responsáveis pelo processamento textual global: • Conhecimento linguístico: diz respeito ao conhecimento do léxico e da gramática, responsável pela escolha dos termos e pela organização do material linguístico na superfície textual, inclusive dos elementos coesivos. • Conhecimento enciclopédico ou de mundo: corresponde às informações armazenadas na memória de cada sujeito. O conhecimento do mundo abrange o conhecimento declarativo, manifestado por enunciações acerca dos fatos do mundo (“A Ponta do Seixas, na Paraíba, é o extremo leste do continente americano”; “São Paulo é a cidade mais populosa do Brasil”) e o conhecimento episódico e intuitivo, adquirido por via da experiência (“Não dá para fritar o ovo sem quebrar a casca”). • Conhecimento interacional: compreende dimensão interpessoal da linguagem, ou seja, a realização de certas ações por meio da linguagem. Divide-se em: – conhecimento ilocucional: meios diretos e indiretos para atingir um objetivo; – conhecimento comunicacional: meios adequados para atingir os objetivos desejados; – conhecimento metacomunicativo: meios de prevenir e evitar distúrbiosna comunicação – atenuação, paráfrases, parênteses de esclarecimento etc.; – conhecimento superestrutural: modelos textuais globais, que permitem aos usuários reconhecer um texto como pertencente a determinado gênero ou certos esquemas cognitivos. Entenda que tais formas de conhecimento são estruturadas em modelos cognitivos. Nessa medida, os conceitos são organizados em blocos, formando uma rede de relações, de forma que um dado conceito sempre aciona uma série de entidades. É o caso da eleição, à qual se associam: políticos, eleitores, corrupção, CPI, leis, Senado, dinheiro e hoje em dia até cuecas! É por causa dessa estruturação que o conhecimento enciclopédico transforma-se em conhecimento procedimental e fornece instruções para agir em situações particulares e agir em situações específicas. 26 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 II. Organização estrutural: de modo geral, alguns autores, como por exemplo, Dijk (2000), Koch (2007; 2006), Fávero (2009) e Kleiman (2004; 2007), orientam uma organização textual a partir de três níveis estruturais (inter-relacionáveis entre si) a serem apresentados e brevemente descritos a seguir: superestrutural, macroestrutural e microestrutural. lembrete Superestrutural – ou de nível global, com ênfase nas relações esquemático-cognitivas. Macroestrutural – ou de nível semântico, com ênfase nas relações de coerência textual. Microestrutural – ou de nível de superfície linguística, com ênfase nas relações de coesão textual. Quanto ao nível superestrutural, este se refere tanto às estruturas textuais globais, que permitem o reconhecimento dos gêneros ou tipos (ver exemplos a seguir), como também envolve o conhecimento sobre estratégias esquemáticas cognitivas relacionadas à significação global da base textual. São estratégias facilitadoras na produção/recepção de textos que acionam na memória o conhecimento armazenado, por meio de modelos globais, como esquemas, frames, scripts e planos. Quadro 2 Modelos globais Frames Certo conjunto convencional de elementos armazenados na memória sem uma organização sequencial, que acionamos cognitivamente em uma situação de uso. Por exemplo, ao se mencionar o frame “festa de aniversário”, acionamos o conjunto “balões, brigadeiros, bolo, vela, crianças, salgados, presente etc.” sem uma necessária ordem desses elementos. Outros exemplos de frames: natal, carnaval, correios etc. Esquemas Certo conjunto convencional de elementos armazenados na memória e organizados sequencialmente que acionamos cognitivamente em uma situação de uso. Por exemplo, ao se mencionar o esquema “um dia de trabalho”, acionamos o conjunto em uma determinada ordem “acordar, levantar, urinar, tomar banho, vestir-se, tomar café, sair de casa, chegar ao trabalho, trabalhar até meio-dia, sair para o almoço... etc.”. Planos Modelos de comportamento manifestados pelas pessoas no sentido de alcançarem certo propósito, que são acionados em uma situação de uso. Ao deparar-se com uma situação típica produzida pelo falante, o ouvinte já interpreta suas intenções. Por exemplo, um adolescente que organiza um plano para conseguir dos pais permissão para viajar sozinho. Scripts São planos mais estabilizados ou estereotipados com rotina bem estabelecida e que geralmente especificam papéis e ações dos interlocutores. Por exemplo, carta de amor, infância, novela etc. 27 Teorias do TexTo Quadro 3 Tipos de texto Técnico e científico Argumentativo Dedução Indução Jurídico Administrativo Publicitário Coloquial-dialetal Expositivo Narrativo Dialogado Descritivo Opinativo Informativo Humanístico Literário Periodístico Ensaio Quanto ao nível macroestrutural, este se refere às relações de coerência textual, responsáveis por construir a significação global no texto por meio dos processos de produção e compreensão textual, analisados em uma leitura top-down (no eixo vertical). A coerência textual é considerada fundamental para a textualidade, pois dela depende em grande parte o sentido do texto. A construção da coerência textual depende da organização tentacular de fatores de diversas ordens: linguísticos, cognitivos, socioculturais, interacionais e pragmáticos. Autores como Costa Val (2006) e Koch (2007, 1997, 2006) apresentam a coerência como responsável pela diferença entre um texto e um aglomerado de frases. É pela coerência que as ideias são conectadas, harmonizadas, não contraditórias, propiciando a compreensão semântica global. Platão e Fiorin (1996, p. 397-400) simplificam essa questão, apresentando os diferentes níveis de coerência: • Coerência narrativa é a que ocorre quando se respeitam as implicações lógicas existentes entre as partes da narrativa [...]. • A coerência argumentativa diz respeito às relações de implicação ou de adequação que se estabelecem entre certos pressupostos ou afirmações explícitas colocadas no texto e as conclusões que se tiram deles, as consequências que se fazem deles decorrer [...]. • Coerência figurativa diz respeito à combinatória de figuras para manifestar um dado tema ou à compatibilidade de figuras entre si [...]. • Coerência temporal é aquela que respeita as leis da sucessividade dos eventos ou apresenta uma compatibilidade entre os enunciados do texto, do ponto de vista da localização no tempo [...]. 28 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • Coerência espacial diz respeito à compatibilidade entre os enunciados do ponto de vista da localização espacial [...]. • Coerência no nível de linguagem usado e a compatibilidade, do ponto de vista da variante linguística escolhida, no nível do léxico e das estruturas sintéticas utilizados no texto [...]. Note que alguns autores como Koch (2007, 2006, 2009), Fávero (2009) e Bentes (2007) defendem importantes critérios de textualidade, relativos à coerência textual, entre os quais os mais importantes são: • Princípio de interpretabilidade: depende da coparticipação entre produtor e receptor na situação de comunicação e da intenção comunicativa. Não há textos incoerentes em si, eles são coerentes dentro de um contexto interacional, e o que pode ser incoerente para um pode fazer todo sentido para outro. • Situação comunicativa: diz respeito à situacionalidade que envolve a interação e interfere na produção/recepção do texto, podendo ser entendida em sentido estrito (contexto imediato) e em sentido amplo (contexto sociopolítico-cutural). • Conhecimento de mundo e conhecimento partilhado: conhecimento de mundo é toda memória de vida (social, histórica e individual) armazenada mentalmente, e o conhecimento partilhado é a intersecção de conhecimentos comuns compartilhados por produtor e receptor na interação comunicativa. • Polifonia (várias vozes): diz respeito ao jogo de vozes e pontos de vista presentes no texto. Muitas vezes a mudança de vozes nem sempre aparece nitidamente marcada no texto. • Inferência: relaciona-se às estratégias cognitivas que, com base no conhecimento de mundo, organizam e acionam os modelos globais de estruturas textuais: frames, esquemas, planos, scripts. • Intertextualidade: é um fator importante para o processamento cognitivo do texto, na medida em que recorre ao conhecimento de outros textos. Todo texto traz em si, em níveis variáveis, um grau de intertextualidade, seja ela explícita (quando há indicação da fonte) ou implícita (quando não há indicação da fonte). • Intencionalidade: esse critério tem uma forte relação com a argumentatividade e refere-se à forma como os sujeitos usam textos a fim de perseguir e realizar suas intenções, de modo que seus textos produzam-se adequados à obtenção dos efeitos desejados. • Informatividade: é o grau de previsibilidade informacional presente no texto que também está condicionado à intencionalidade, e é regulado pelo contexto situacional mais amplo. O graude informatividade vem imediatamente da relação “dado-novo” referente às informações do texto. Um texto pode trazer um nível de informações novas alto, intermediário ou baixo. É importante salientar que esse critério também depende da interação emissor/receptor: o texto “a terra é redonda” pode ter nível zero de informação para um e ter nível alto de informação para outro (uma criança, por exemplo). 29 Teorias do TexTo Observação Outros aspectos que também merecem consideração sobre a questão da coerência: a consistência e relevância, a aceitabilidade, os fatores de contextualização e os próprios elementos linguísticos, que em si já servem de pistas argumentativas. Quanto ao nível microestrutural, este se refere às relações coesivas lineares, que dizem respeito ao modo como os elementos presentes na superfície textual (no eixo horizontal) estão interconectados através de recursos linguísticos, constituindo sequências veiculadoras de sentido. Veja que diferentemente da coerência, a coesão diz respeito à estrutura formal do texto. Trata da manifestação linguística da coerência e apresenta-se na forma como conceitos e relações subjacentes são expressos no texto. A coesão é construída por meio de elementos gramaticais (pronomes anafóricos, catafóricos, artigos, elipse, concordância, correlação entre os tempos verbais, conjunções etc.), que definem as relações entre frases e sequências de frases e no interior das mesmas, e elementos lexicais, através da reiteração, da substituição e da associação (COSTA VAL, 2006, p. 6). As várias possibilidades de coesão textual podem ser agrupadas dentro de três grandes tipos (FÁVERO, 2009): Quadro 4 1. Coesão referencial 2. Coesão recorrencial 3. Coesão sequencial Diz respeito aos elementos que têm a função de estabelecer referência. Não são interpretados pelo seu sentido próprio, mas referem-se a alguma outra coisa, relacionando o signo a um objeto. A coesão referencial é obtida por meio da substituição e reiteração de termos. Esta se dá quando, apesar de retomadas estruturais, a informação progride, o discurso segue adiante. A coesão recorrencial é obtida por meio da recorrência de termos, paralelismo, paráfrase e recursos fonológicos. Esta tem por função (assim como a recorrencial) fazer o texto progredir, encaminhar o fluxo informacional, porém não pela retomada de itens ou estruturas, mas pela sequenciação das sentenças por meio de mecanismos temporais e conectivos. Para considerarmos uma apresentação mais pormenorizada do eixo da coesão na organização do texto, devemos levar em conta que cada um dos três tipos de coesão (1. Referencial; 2. Recorrencial; e 3. Sequencial) organiza-se a partir de um conjunto de subtipos. Para estudarmos mais detalhadamente esses aspectos, consideraremos as descrições da autora supracitada, Leonor Fávero, que tão bem apresenta a coesão textual em suas microrrelações na construção do texto: I. Coesão referencial: relacionada objetivamente com o estabelecimento da referência, subdivide-se em dois tipos: substituição e reiteração. 1. Substituição: dá-se quando um elemento é retomado ou antecedido por uma proforma (elemento gramatical de baixa densidade sêmica – o pronome, por exemplo). As proformas podem ser: 30 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • pronominais: “Esmeralda comprou um vestido. Ele é vermelho”. A proforma pronominal ele retoma o referente um vestido; • verbais: “Luiz acorda cedo todos os dias no campo. Antônia faz o mesmo”. A proforma verbal faz o mesmo retoma o referente acorda cedo; • numerais: “João e Pedro são primos. Ambos trabalham na siderúrgica”. A proforma numeral ambos retoma o referente João e Pedro; • adverbiais: “Pierre vai à Natal todos os anos em dezembro. Lá faz muito calor”. No caso da retomada do referente, tem-se uma anáfora, por exemplo: A.1. “Elizabete é uma moça trabalhadora e esforçada. Ela levanta cedo e dorme tarde, pois, para trabalhar, essa moça pega quatro conduções todos os dias”. Quadro 5 Elizabete = referente Ela = proforma pronominal Essa = proforma pronominal No caso da sucessão do referente, tem-se uma catáfora, por exemplo: A.2. “Mariana só me disse isto: não quero casar com José”. Quadro 6 Isto = proforma pronominal Não quero casar com José = referente Podem ainda ser incluídos no tipo de coesão referencial por substituição os subtipos: • Anáfora esquemática: “Meu filho vai casar-se. Ela é modelo”. O pronome retoma a ideia de que o filho vai casar-se com uma mulher. • Definitivização: “Era uma vez uma princesa encantada que vivia presa em uma torre. A princesa era filha...”. O referente é introduzido indefinidamente e retomado definidamente. 31 Teorias do TexTo • Elipse: é a substituição por zero ∅. _ “O que você fez ontem o dia inteiro? _ ∅ Nada. _ Não fez nada durante o dia inteiro? _ ∅ Não”. 2. Reiteração: dá-se quando há repetição de certas expressões que possuem a mesma referência no texto. Os tipos de reiteração são: • Repetição do mesmo item lexical: “A água acabou com a cidade. A cidade ficou alagada. Da cidade não sobrou nada”. • Sinonímia: “Josué é calvo” / “Josué é careca”. • Hiponímia: “Judite foi vendedora de imóveis. Os apartamentos eram de primeira linha”. • Hiperonímia: “Laura viu o carro. O veículo vinha em alta velocidade”. II. Coesão recorrencial – voltada à recorrência temática para construir o movimento dado-novo que retoma as informações dadas e acrescenta informações novas, fazendo fluir o texto. 1. Recorrência de termos: tem função de ênfase, intensificação e possibilita o fluir da informação no texto. Por exemplo: Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor [...] (BANDEIRA apud FÁVERO, op. cit., p. 27). 2. Paralelismo: traz estruturas (lexicais) ou ideias (do mesmo campo semântico) paralelas. Por exemplo: Eia! Eia! Eia! Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria! Eia telegrafia sem fios, simpatia metálica do inconsciente! Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez! [...] (PESSOA, apud FÁVERO, op. cit, p. 28). 3. Paráfrase: ato de reformulação pelo qual dizemos a “mesma coisa” com outras palavras, relacionando texto-fonte e texto-derivado. 4. Recursos fonológicos: “a forma fonética é uma consequência da estrutura semântica fornecida pela sintaxe”, considerando-se nesse aspecto os funcionamentos pragmáticos, estilísticos e psicolinguísticos da produção textual (FÁVERO, p. 29). Os recursos fonológicos podem ser de dois tipos: 32 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 • Segmentais: aliteração, assonância, cacofonia etc. • Suprassegmentais: ritmo, silêncio, entonação etc. III. Coesão sequencial: também faz o texto progredir como os mecanismos recorrenciais, fazendo caminhar o fluxo informacional, mas não há neles a retomada a itens ou expressões anteriores. 1. Temporal: toda sequenciação é temporal, mas essa categoria quer indicar o tempo no “mundo real”, conforme explica Fávero (op. cit.). Aqui temos os seguintes subitens: • Ordenação linear dos elementos: “Levantou cedo, tomou café e saiu”. • Expressões ordenadoras ou continuadoras: “Inicialmente você lava os cabelos. Depois aplica a máscara capilar. A seguir você enxágua e escova os cabelos”. • Partículas temporais: “Não deixe de escovar os dentes à noite”. • Correlação dos tempos verbais: “Eu solicitei que saíssem da minha casa”. 2. Por conexão: subordinação dos enunciados a outros para construir a compreensão por meio de sua interdependência, seja de ordem semântica, lógica ou pragmática. • Operadores do tipo lógico: estabelece relações gramaticais lógicas de interdependência. – Disjunção inclusiva: “Há vagas para moças ou rapazes”. – Disjunção exclusiva: “Dilma ou Serra será eleito presidente do Brasil”. – Condicionalidade: “Se chover, não iremos à praia”. – Causalidade: “Se Sócrates é homem, então ele é mortal”. – Mediação: “Fugiu paraque não o prendessem”. – Complementação: “Jéssica deu uma flor à professora”. – Restrição ou delimitação: “Atropelei a moça que faz artesanatos”. • Operadores do discurso: estabelecem relações argumentativas, discursivas. – Conjunção: “Chove e faz sol”. – Disjunção: “Estude bastante para as provas. Ou vai querer pegar uma DP?”. – Contrajunção: “Estudou muito, porém não passou no vestibular” [contudo / todavia / entretanto...]. – Explicação ou justificativa: “Deve haver um engano, pois eu estou aqui desde ontem”. – Conclusão: “Não gosto de você, portanto saia da minha casa”. 33 Teorias do TexTo • Pausas: restabelecem a conexão entre dois enunciados, mesmo com a ausência do conectivo – “Não mexa nesses fios; levará um choque” / “Não fui ao enterro; mandei uma coroa de flores”. 3 AIndA AlguMAS cOnSIderAçÕeS SObre A lInguíSTIcA TexTuAl Vamos agora aprofundar o nosso olhar crítico! Feitas todas as minuciosas descrições anteriores acerca da LT, seu nascimento, suas fases, suas relações epistemológicas, suas categorias teóricas e de análise textual etc., é importante mencionar aqui que esta importante teoria tem algumas fragilidades que seus próprios pesquisadores reconhecem e buscam superar e ainda que os teóricos de outras áreas vizinhas da linguagem criticam. A autora Freda Indursky (2006) sintetiza bem isso pontuando alguns aspectos que ela aponta como fragilidades da linguística textual. Vejamos a seguir alguns destes pontos mais frágeis: Além dos dois critérios de textualidade semântico-formais, coerência e coesão, que são enfaticamente trabalhados nas duas primeiras fases da LT, acrescentam-se mais cinco critérios de textualidade de ordem pragmática (do uso), que vão ser analisados mais cautelosamente na terceira fase da LT: intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade, intertextualidade, além de outros critérios de natureza também pragmática, mais recentemente considerados, como conhecimento de mundo e partilhado, inferências, polifonia, consistência e relevância, argumentação, princípio de cooperação/interpretabilidade e ainda outros que também procuram contemplar melhor os elementos da exterioridade do texto. Pois bem, conforme a crítica feita por Indursky (2006), os dois níveis de critérios de textualidade não são igualmente valorizados. Há uma nítida relevância dada aos critérios de natureza semântico-pragmática em detrimento dos critérios de natureza pragmática, estes aparecem com importância visivelmente secundária em relação aos primeiros, de modo que o que fica a ser entendido subliminarmente é que os critérios pragmáticos não seriam tão essenciais para a construção da textualidade, como são os critérios semântico-formais (coerência e coesão), pondo em evidência na análise do texto o trabalho com os mecanismos linguísticos em seus funcionamentos de tomada, retomada e progressão textual, voltados à trama de superfície formal do texto. I. O primeiro problema está relacionado a outro: a autora menciona que a linguística textual, por se constituir bastante heterogênea e interdisciplinar, faz muitas interfaces com outras áreas da linguagem e toma emprestado muitos conceitos de outras áreas, adaptando-os em seu arcabouço teórico próprio (o que não é necessariamente um aspecto negativo!). Muitos desses conceitos estão localizados exatamente no que descrevemos anteriormente como critérios de natureza pragmática. O problema é que a LT “importa” esses conceitos de outras áreas para compatibilizá-los na teoria do texto, porém eles entram em um lugar periférico, secundários em relação ao que a teoria acaba priorizando como central na análise textual (a coerência e a coesão). Além disso, os conceitos “importados” não passam por uma apresentação mais profunda, cuidadosa por parte da LT, que os descreve muitas vezes de forma simplista e confusa, sem nenhuma teorização. Vejamos a seguir um quadro que relaciona alguns conceitos mais comumente empregados pela LT e que são emprestados de outras áreas de estudo do texto e da linguagem: 34 Unidade I Re vi sã o: T at ia ne - D ia gr am aç ão : L éo - 2 9/ 04 /1 1 Quadro 7 Áreas de interface com a LT Conceitos emprestados Estudos cognitivos • Inferências • Conhecimento de mundo • Conhecimento partilhado • Modelos cognitivos globais Estudos enunciativos • Polifonia • Argumentação • Locutor/alocutário Pragmática • Interacionalidade comunicativa • Intencionalidade e aceitabilidade • Consistência e relevância • Princípio de cooperação • Situacionalidade Análise de discurso • Discurso • Condições de produção II. Um terceiro problema mencionado por Indursky (op. cit.) é a categoria de sujeito que não sofre uma teorização mais cuidadosa e apresenta-se confusa entre categorias subjetivas, que são subjacentes a diferentes modos de análise e, portanto, não querem dizer a mesma coisa, a saber: sujeito = locutor/ alocutário; falante/ouvinte; autor/leitor; emissor/receptor etc. III. E por fim um último problema que seria a confusão generalizada entre os conceitos de texto e discurso, que, via de regra, aparece na LT como sendo a mesma coisa. Veja-se que a noção de discurso é bastante múltipla e tem diferentes significados em diferentes teorias, de modo que não pode ser simplificada a ponto de ser confundida com o conceito de texto. 4 OuTrAS TeOrIAS cujO ObjeTO de eSTudO TAMbÉM É O TexTO Como é sabido, além da linguística textual, também houve outros lugares de ruptura com o estruturalismo linguístico, o que culminou na gênese de novos campos de investigação. Assim, como a LT, muitos desses campos também apresentam o texto (e não a frase) como objeto de estudo. Conforme foi advertido anteriormente, a LT mantém certa interdisciplinaridade com vários desses outros campos de investigação, cuja preocupação maior é o estudo do texto. Nesse sentido, serão apresentados aqueles campos mais representativos, para que se possa melhor conhecê-los (ainda que superficialmente) e estabelecer as possíveis relações com a LT. I. Sociolinguística Essa área investiga a relação entre linguagem e sociedade, por meio dos textos, e postula o princípio da diversidade linguística. Nesse sentido, já é fácil notar o seu perfil interdisciplinar. Ela inscreve-se na corrente das orientações teóricas contextuais e funcionais sobre o fenômeno linguístico não apenas sob 35 Teorias do TexTo o ângulo das regras de linguagem, mas também sob a perspectiva das relações de poder manifestadas na e pela linguagem. Seu interesse está em relacionar as variações linguísticas observáveis em uma comunidade às diferenciações existentes na estrutura social dessa mesma sociedade, pois o objeto da sociolinguística é a diversidade linguística. Nesse sentido, é possível identificar certos fatores socialmente definidos, relacionados à diversidade linguística, como: • identidade social do emissor ou falante; • identidade social do receptor ou ouvinte; • o contexto social (estilos formal e informal); • o julgamento linguístico-social distinto que os falantes fazem de si e dos outros. É importante salientar ainda que a sociolinguística diz respeito prioritariamente ao estudo da língua falada, observada, descrita e analisada em seu contexto social, isto é, em situações reais de uso. Seu ponto de partida é a comunidade linguística. Ela se interessa pelas pesquisas voltadas, por exemplo, para as minorias linguísticas e para a questão do insucesso escolar de crianças oriundas de grupos sociais desfavorecidos. Para a sociolinguística, a língua é um fato social, um sistema convencional adquirido pelos indivíduos no convívio social, de onde se podem abstrair as múltiplas variações observáveis da fala. Conforme os estudos sociolinguísticos, as línguas variam de diversas formas: • Uma língua varia em relação à outra ou a outras línguas, ou seja, as línguas variam entre si. • Uma mesma língua falada em países diferentes varia de um país para outro em que seja falada.