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1 Organizadores Delmo Mattos e Nilda Oliveira Autores Adriana Iop Bellintani – Cristiane Pessôa da Cunha – Delmo Mattos Edgar Lyra – Fábio Luiz Tezini Crocco – Leonardo Ribeiro da Cruz Hiure Anderson Alves da Silva Queiroz – Luciana Araújo Lima Machado Natália Jodas – Nilda Oliveira – Sandra Rufino – Silvia Pimentel Solange Maria dos Santos – Sueli Sampaio Damin Custódio Tatiane Luciano Balliano – Vera Maria Sabóia Araraquara Letraria 2025 Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Engenharia e Sociedade [livro eletrônico]: Humanidades em Debate : Volume 2 / organizadores Delmo Mattos, Nilda Oliveira. - Araraquara, SP: Letraria, 2025. PDF. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-65-5434-126-4 1. Ciência e tecnologia 2. Engenharia 3. Humanidades 4. Sociedade I. Mattos, Delmo. II. Oliveira, Nilda. 25-264768 CDD-620 Índices para catálogo sistemático: 1. Engenharia 620 Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415 DOI: doi.org/10.5281/zenodo.15197807 https://doi.org/10.5281/zenodo.15197807 Conselho editorial Diego Vicentin (Unicamp) Maria Regina Momesso (Unesp) O conteúdo da educação — tal como a forma —, tem caráter eminentemente social e, portanto, histórico. É definido para cada fase e para cada situação da evolução de uma comunidade. Por conseguinte, deve atender primordialmente aos interesses da sociedade. Se esta é democrática, os interesses dominantes têm que ser os do povo, e se consideramos um país em esforço de crescimento, tem que ser o de suas populações que anseiam por modificar sua existência. PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. São Paulo: Cortez, 2010. p. 46. | Sumário 7 Apresentação Delmo Mattos e Nilda Oliveira 11 1. Feminismo e igualdade de gênero no século XXI: reflexões de uma acadêmica e ativista dos direitos humanos Silvia Pimentel 18 2. Desafios éticos da hegemonia da tecnologia e do desenvolvimento das IA’s Edgar Lyra e Delmo Mattos 35 3. Desafios da gestão editorial no contexto da Ciência Aberta Solange Maria dos Santos 48 4. Transferência de Tecnologia para a inovação: rotas de desenvolvimento ligadas às cadeias de bioeconomia Adriana Iop Bellintani, Sueli Sampaio Damin Custódio, Tatiane Luciano Balliano 72 5. Soberania digital no Brasil: panorama e desafios Fábio Luiz Tezini Crocco, Hiure Anderson da Silva Queiroz, Leonardo Ribeiro da Cruz, Natália Jodas 91 6. Construção de PPCs em Engenharias com extensão curricularizada Sandra Rufino 109 7. Promoção da saúde na formação no ensino superior: experiências exitosas e aprendizados para o ITA Cristiane Pessôa da Cunha, Luciana Araújo Lima Machado, Vera Maria Sabóia 132 Quem somos? 7 | Apresentação Delmo Mattos e Nilda Oliveira Este livro é parte dos resultados do projeto intitulado “Ciclo de Debates Engenharia e Sociedade”, do Departamento de Humanidades, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), desenvolvido coletivamente por todos(as) os(as) docentes do Departamento e financiado pela Associação Ex-alunos Apoiando o ITA (ITAEx), projeto este iniciado em 2023, sendo que todas as palestras foram gravadas e estão disponíveis, na íntegra, no canal do Departamento no YouTube1. Tal como em 2023, no ano de 2024 realizamos encontros de palestras e debates presenciais no ITA, com convidados externos que abordaram temas atuais e relacionados a questões tecnológicas, de formação em Engenharia e correlacionados às ciências humanas e sociais. Sendo que no II Ciclo, em 2024, também contamos com a participação de duas profissionais do próprio Instituto, como veremos a seguir. Como no I Ciclo de Debates Engenharia e Sociedade, o II Ciclo também [...] buscou fortalecer o Ensino, a Pesquisa e a Extensão, por meio da discussão de temáticas teóricas e práticas articuladas com disciplinas obrigatórias e eletivas ofertadas pelo Departamento de Humanidades (Ensino); do envolvimento e participação, em todos os encontros promovidos, da comunidade externa ao ITA (Extensão), bem como pela compilação e (re) construção do conhecimento gerado e difundido nos eventos acadêmicos, os quais estão registrados no presente e-book (Pesquisa) (Crocco; Jodas, 2024). As palestras foram realizadas na seguinte ordem e dias: Data Título Convidado(a) Professores(as) Organizadores(as) 06/05/2024 Desafios éticos da hegemonia da tecnologia e do desenvolvimento das IA’s Edgar Lyra (PUC-Rio) Delmo Mattos 06/06/2024 Desafios da gestão editorial no contexto da Ciência Aberta Solange Maria dos Santos (SciELO) Nilda Oliveira 1 Mais detalhes ver: https://www.youtube.com/@DeptoHumanidadesITA. https://www.youtube.com/@DeptoHumanidadesITA 8 07/08/2024 Propriedade intelectual e transferência de tecnologia para a inovação: modelos de transferência de tecnologia para as rotas de desenvolvimento ligadas às cadeias produtivas da BIOeconomia Tatiane Balliano (UFAL) Adriana Iop Bellintani e Sueli Sampaio Damin Custódio 05/09/2024 Desafios da soberania digital e a importância da Engenharia Leonardo Ribeiro da Cruz (UFPA) e Hiure Anderson Alves da Silva Queiroz (Unifesp e Sítio do Astronauta) Fábio Crocco e Natália Jodas 12/09/2024 Construção de PPCs em Engenharias com extensão curricularizada Sandra Rufino (UFRN) John Kleba e Nilda Oliveira 09/10/2024 Os Direitos Humanos das mulheres: avanços e obstáculos Silvia Pimentel (PUC-SP) Cassiano Terra 25/11/2024 Instituições promotoras de saúde: experiências exitosas e aprendizados para o ITA Cristiane Pessôa da Cunha e Luciana Araújo Lima Machado Cristiane Pessôa da Cunha e Nilda Oliveira Ainda sobre as palestras, registramos um agradecimento especial a Brutus Abel Fratuce Pimentel, Professor de Filosofia do nosso Departamento, que foi responsável pela emissão dos Certificados de cada uma das palestras. Este livro reúne sete capítulos de reflexões teóricas e debates que representam os encontros ocorridos no “II Ciclo de Debates Engenharia e Sociedade”, do Departamento de Humanidades. Essas contribuições temáticas variadas destacam a importância de um diálogo interdisciplinar entre áreas que tradicionalmente não se cruzam, mas que se tornam cada vez mais essenciais para a construção de um conhecimento mais completo e responsável. O primeiro capítulo aborda a questão do Feminismo e da Igualdade de Gênero no século XXI da perspectiva de Silvia Pimentel. Ela enfatiza a importância do feminismo na superação do patriarcado, na desconstrução de estereótipos e na promoção de uma sociedade inclusiva e equitativa. O segundo capítulo, que transcreve a palestra de Edgar Lyra, discute os desafios éticos, sociais e regulatórios dos modelos de linguagem avançados, como o GPT, destacando seu impacto na produção cultural, privacidade e manipulação de informações. Enfatiza a urgência de políticas públicas, educação digital e acessibilidade para reduzir desigualdades, promovendo um uso ético e inclusivo da tecnologia. 9 O terceiro capítulo, que transcreve a palestra de Solange Maria dos Santos, explora os princípios fundamentais da Ciência Aberta, com foco nos periódicos científicos e nos desafios relacionados à gestão editorial. Foram destacadas práticas editoriais abertas, como o uso de preprints, dados abertos, artigos de dados e periódicos de dados, além da adoção gradual de métodos mais transparentes de avaliação por pares. O quarto capítulo é uma transcrição da palestra que aborda a temática da “Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para a Inovação”, destacando os resultados preliminares da pesquisa da professora Tatiane Luciano Balliano (UFAL) sobre o desenvolvimento de produtos a partir da alga Kappaphycus alvarezii. São apresentadas estratégias tecnológicas aplicadas à indústria farmacêutica, conectando bioeconomia, inovação e impacto social. O quinto capítulo analisa o “colonialismo de dados”, no qual as big techs dominam o desenvolvimento tecnológicoautônomos, de alto valor intrínseco, logo, passíveis de publicação (Santo; Calò, 2020). A comunicação científica deve integrar todo o ciclo de pesquisa em vez de limitá-la à publicação final em periódicos. Se permeada por toda a pesquisa, a comunicação assegura a consistência da pesquisa, permite o reuso, contribui para a preservação dos dados (quando depositados em repositórios confiáveis evitando sua perda progressiva, facilita avaliações promovendo a transparência. A exposição contínua do processo investigativo contribui para minimizar erros e más práticas à medida que incentiva maior rigor metodológico e alinhamento com padrões éticos (Packer; Santos, 2019a). 38 | Preprints A publicação científica é um processo complexo e demorado. Enviar um artigo para um periódico e aguardar as distintas etapas de revisão pode levar meses ou até anos. Os autores podem acelerar partes desse processo disponibilizando rapidamente versões iniciais de seus artigos em servidores de preprints. Um preprint é um manuscrito postado pelo(s) autor(es) em um repositório ou plataforma para facilitar o compartilhamento aberto e amplo de trabalhos iniciais, sem quaisquer limitações de acesso (Puebla; Polka; Rieger, 2021; Rodríguez, 2019; Higgins; Steiner, 2021). A importância da abertura e rapidez na publicação tornaram-se ainda mais evidentes na pandemia de COVID-19. Durante a pandemia, os pesquisadores começaram a compartilhar informações e análises preliminares sobre a doença um mês após o primeiro caso oficial de infecção pelo SARS-CoV-2 ser noticiado. Esses compartilhamentos incluíram o genoma completo do vírus, como ocorreu a infecção das células de humanos e outros animais e a sua provável origem nos morcegos. Como exemplo, em 23 de janeiro 2020 pesquisadores de Wuhan depositaram e compartilham um preprint acerca da similaridade na estrutura do SARS-CoV e do surto do coronavírus no repositório bioRxiv, que foi instantaneamente acessado por pesquisadores de todo o mundo (Zhou et al., 2020). Entre a data de publicação e 03 de fevereiro de 2020, o preprint teve mais de 290.000 downloads e foi citado em mais de 300 estudos, evidenciando o impacto global do formato. O preprint foi posteriormente formalmente publicado na revista Nature e possui agora mais 6.200 citações de cientistas de todo o mundo (Debruin, 2020). Sem o rápido compartilhamento desse tipo de resultados, não teria sido possível o desenvolvimento, em tempo recorde, das diferentes vacinas hoje disponíveis. Preprint é um manuscrito completo que é depositado pelos autores em um servidor público destinado a preprints antes do envio a um periódico para avaliação por pares, resultando ou não em publicação formal no periódico. Sua principal característica é permitir que o pesquisador divulgue seus resultados de pesquisa com celeridade e de forma independente, permitindo acesso rápido aos resultados à comunidade científica, ao mesmo tempo em que solicita e oferece feedback mais amplo do que o obtido durante o processo tradicional de revisão por pares. Os preprints não passam por avaliação por pares, porém recebem uma moderação inicial e verificação de plágio, que leva cerca de 24 horas, são passíveis de citação por possuírem DOI (Digital Object Identifier). Uma vez publicados, preprints podem receber 39 comentários abertos os quais os autores podem responder e então criar novas versões com base nas sugestões e comentários recebidos e demais edições (Santos; Calò, 2020). Os preprints desempenharam um papel crucial ao permitir que estudos fossem compartilhados antes da revisão por pares, ilustrando como o compartilhamento rápido de dados pode salvar vidas (Koerth, 2021). Figura 1. Preprints sobre COVID-19 de janeiro de 2020 a maio de 2023 Fonte: Fraser e Krammer (2023) Durante a pandemia, repositórios de preprints como o bioRxiv e o medRxiv adicionaram novas políticas e observações de advertência para enfatizar que os preprints são relatórios preliminares de trabalho que não foram certificados pela revisão por pares e não devem ser relatados pela mídia como informações estabelecidas, e sim como resultados preliminares que requerem análise cautelosa. Dessa forma, filtros automáticos, políticas e práticas de moderação/curadoria de preprints e conteúdo como indicadores de qualidade possuem são indispensáveis a fim de estabelecer os preprints como um formato acadêmico confiável. A publicação de preprints em servidores confiáveis não apenas acelera a comunicação dos resultados das investigações como também assegura aos autores precedência de descobrimentos e permite o melhoramento dos manuscritos ao permitir geração de versões aprimoradas a partir dos comentários recebidos. Preprints são documentos citáveis aos quais podem ser atribuídos DOIs e permitem registro para os pesquisadores, como inserção no ORCID, por exemplo. Quando aprovado para publicação em periódico, o preprint é 40 atualizado com um link para o artigo proveniente, aumentando então a exposição da pesquisa (Packer; Santos, 2019b). | Gestão de dados de pesquisa A discussão sobre preprints evidencia a importância de mecanismos que promovam a confiança e a integridade no compartilhamento de informações científicas. Da mesma forma, a gestão de dados de pesquisa desempenha um papel crucial na Ciência Aberta, ao lidar com a criação ou coleta, estruturação, controle de qualidade, armazenamento e disponibilização dos dados presentes nas pesquisas científicas, garantindo que os dados sejam organizados, acessíveis e reutilizáveis. Não há consenso quanto a uma definição para dados de pesquisa, no entanto, de modo geral, dados de pesquisa são registros gerados, obtidos, coletados, ou usados durante o processo de pesquisa que possibilitam avaliar, validar, reanalisar, reinterpretar, replicar e reproduzir a pesquisa que podem ser usados como evidência de fenômenos para fins de pesquisa. Dados podem ser criados a partir de observações, experiências e simulações, por exemplo. Seus tipos mais descritos na literatura são de natureza numérica (medidas, fórmulas, equações e algoritmos), multimídia (imagem, vídeo, áudio e animação), software (base de dados, simulações, códigos), textual (entrevista, transcrição, questionário, cadernos de laboratório ou de campo e diários), artefato (espécime, amostra ou maquete) e processo (Procedimentos operacionais padronizados, workflows, protocolos e testes) (Veiga, 2017). Dentre seus formatos possíveis estão documentos textuais, tabulares, cadernos de laboratórios, questionários, arquivos de áudio, fotografia, coleções de objetos digitais adquiridos durante o processo de pesquisa, dados estatísticos, bancos de dados, modelos, scripts, softwares, workflows e protocolos. Dados de pesquisa livremente acessados, reusados, recalculados e redistribuídos para fins pedagógicos ou de pesquisa científica são considerados dados abertos de pesquisa. Idealmente, eles são disponibilizados em repositórios específicos para que não se percam, sejam corrompidos e desapareçam, e são associados a uma licença de atribuição pouco ou nada restritiva, como a Creative Commons Attribution (CC-BY). Devido à complexidade de lidar e disponibilizar dados de pesquisa que possam ser reaproveitados, em 2014, foi criado um conjunto de princípios, denominado FAIR Principles visando boas práticas para a gestão e depósito de dados em repositórios confiáveis (Wilkinson et al., 2016). A adoção dos princípios FAIR (Findable, Accessible, Interoperable, 41 Reusable) é crucial para garantir a qualidade e a longevidade dos dados (Vidotti; Torino; Coneglian, 2021). Para garantir que os dados sejam “encontrados”, é fundamental a criação de metadados ricos e precisos, como sugerido pelo guia do Acesso Aberto USP (Acesso Aberto USP, s.d.). Além disso, a interoperabilidade dos dados é essencial para sua reutilização em diferentes contextos e ferramentas. A publicação em acesso aberto dos dados de pesquisa é fortementeincentivada desde que a máxima “Tão Aberto Quanto Possível, Tão Fechado Quanto Necessário” seja obedecida. Dados que são compostos por materiais sob copyright de terceiros, ou que possuam termos ou condições que não permitam compartilhamento não devem ser compartilhados. O mesmo se aplica para dados que possuam informações pessoais, informações que ultrapassem o direito de privacidade ou coloquem pessoas em risco, conforme explicitado pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), coordenadas de áreas protegidas, sob ameaça de extinção ou informações que infrinjam acordos comerciais, patentes ou pertençam a terceiros. O gerenciamento de dados de pesquisa, fundamental para a reprodutibilidade e a transparência na Ciência Aberta, exige a criação de metadados detalhados e bem estruturados. Como apontam Torino, Coneglian e Vidotti (2020), estruturas de representação adequadas, como os CRIS institucionais, são essenciais para o reuso de dados. Em busca de facilitar e promover a interação com sistemas computacionais, foi definido um conjunto de princípios que expressam os comportamentos esperados para os arquivos digitais dos dados de pesquisa (Santos, 2021). A gestão de dados de pesquisa é uma prioridade na Ciência Aberta, mas enfrenta desafios como infraestrutura, preservação e citabilidade. Estudos mostram que muitos pesquisadores não cumprem integralmente os compromissos de compartilhamento de dados, evidenciando a necessidade de políticas mais claras e suporte institucional (Gabelica et al., 2022). Em contrapartida, há ferramentas de acesso aberto disponíveis, como o FioDMP que auxiliam na criação de planos de gestão de dados, promovendo transparência e eficiência no ciclo de vida dos dados (Fiocruz, 2020), assim como guias e manuais, são cruciais para capacitar pesquisadores em práticas adequadas de gestão e compartilhamento. Investir no compartilhamento de dados em acesso aberto é fundamental para ampliar a acessibilidade e reuso dos dados (Curty; Aventurier, 2017). 42 | Revisão por pares De acordo com Velterop (2018), a avaliação por pares possui duas funções principais: identificar erros e omissões, podendo ocorrer antes da publicação e de forma anônima; e promover o debate, sendo melhor conduzido abertamente e podendo ocorrer após a publicação. A quantidade de periódicos que oferecem opções de abertura progressiva das revisões por pares é baixa, ainda que crescente (Packer; Santos, 2019b), no entanto, o apelo por maior transparência tem ganhado ritmo nos últimos anos diante do interesse de financiadores e do apoio crescente para que a publicação dos pareceres os torne facilmente citáveis por meio de DOIs. Há, no entanto, muito mais divergência sobre a questão de os revisores revelarem suas identidades abertamente. A adoção de revisão por pares transparente permite ao menos vinte e duas variações e combinações diferentes que consideram a abertura: das identidades, dos pareceres, das interações, das participações e dos comentários (Ross-Hellauer, 2017). Em particular, a abertura das identidades é vantajosa para que interesses conflitantes em potencial possam ser mais facilmente percebidos e para que as responsabilidades dos envolvidos estejam publicamente disponíveis, conferindo o devido crédito aos revisores, sendo um passo para elevar a revisão por pares a uma atividade acadêmica voluntária que merece reconhecimento e valorização. Atualmente, está em curso a denominada “crise da avaliação por pares”, envolvendo a saturação da demanda por pareceres, consequente baixa qualidade das avaliações e notícias de fraude e má conduta ética, deu origem a uma ampla discussão sobre formas alternativas de avaliação, tendo em vista as críticas ao modelo vigente. Dentre as críticas ao modelo atual destacam-se: Quadro 1. Críticas ao modelo atual de avaliação por pares 1. Pouco fidedigno e inconsistente Nem sempre detecta erros ou pode haver inconsistências entre os informes dos pareceristas. Atribui um selo de qualidade que muitas vezes não se justifica. 2. É muito demorado e oneroso Dificuldade em encontrar bons pareceristas e obter pareceres no tempo preconizado pelo processo editorial dos periódicos. 3. Falta de responsabilidades (accontability), com risco de vieses Anonimato permite vieses sociais e de publicação. Falta treinamento adequado de pareceristas. 4. Sem incentivo aos pareceristas Os pareceristas raramente recebem créditos por seu esforço. Plataformas como Publons e ReviewerCredits buscam preencher esta lacuna. 5. Desperdício de esforços O mesmo manuscrito pode ser revisado muitas vezes, à medida que passa por ciclos de envio e aprovação. O trabalho minucioso é descartado após a aprovação do manuscrito. Fonte: Elaboração própria 43 A abertura das identidades pode contribuir para a qualidade das avaliações, incentivando os revisores a serem mais meticulosos em suas avaliações. A pesquisa sugere que revisões por pares assinadas e publicadas são no mínimo tão boas quanto modelos cegos, e pesquisas identificaram melhorias em áreas específicas, como feedback construtivo, comentários sobre métodos, tamanho da revisão e evidências substanciais para apoiar os comentários (Van Rooyen et al., 2010). A avaliação por pares aberta é um processo ainda experimental, que, embora conte com o apoio de parte da comunidade científica, levará tempo para ser amplamente implementada, e pode vir a não substituir completamente o modelo tradicional em todas as áreas. Cada periódico deve avaliar o modelo mais adequado, considerando as necessidades de sua comunidade de pesquisadores e sua estrutura de gestão (Santos; Calò, 2020). | Desafios e oportunidades na implementação da Ciência Aberta Apesar de seu potencial transformador, a implementação dos princípios da Ciência Aberta enfrenta diversos desafios, principalmente na gestão editorial, entre eles: • Resistência à mudança: a transição para práticas abertas requer a reestruturação de políticas editoriais e a capacitação de editores e revisores para que atualizem as políticas editoriais dos periódicos, incentivando e incorporando as principais práticas de Ciência Aberta; • Infraestrutura e sustentabilidade: a necessidade de repositórios interoperáveis, como o SciELO Data para dados de pesquisa, evidencia o papel das plataformas para promover dados FAIR (Findable, Accessible, Interoperable, Reusable); • Reconhecimento e incentivo: sem a implementação de mecanismos de reconhecimento para práticas como pareceres abertos e compartilhamento de dados, a adesão a esses valores tende a ser limitada. Atualmente, há dificuldade de reconhecer as distintas formas de contribuição que ocorrem em todo o processo científico que ainda são negligenciadas por conta do foco na publicação de artigo ou capítulo de livro como o produto final da pesquisa, em vez de reconhecer toda a gama de contribuições relevantes, como dados, metadados e preprints. A transição para um modelo mais aberto exige uma reestruturação das políticas editoriais, além da capacitação de profissionais para lidar com essas novas formas de comunicação científica. Em levantamento realizado pela Equipe SciELO Data, em 2023, foi verificado 44 que a grande maioria dos periódicos da Coleção SciELO Brasil ainda não incluem políticas claras sobre preprints, dados abertos ou revisão por pares transparente. Especificamente, apenas 41,2% dos periódicos da área de Engenharia da coleção SciELO, por exemplo, encoraja explicitamente o compartilhamento de dados. Paradoxalmente, enquanto a América Latina lidera no acesso aberto, regiões como a Europa e os Estados Unidos ainda enfrentam entraves significativos na adoção de tais práticas, evidenciando a necessidade de esforços globais. O Brasil é um dos maiores produtores de literatura científica em acesso aberto, ainda que enfrente diversos desafios para implementar práticas de Ciência Aberta. Não há, até o momento, infraestruturas nacionais para compartilhamentode dados ou capacitação da comunidade científica sobre como prepará-los e publicá-los, ou uma postura definida das agências de fomento e sistemas de avaliação sobre preprints e citações de artigos de dados (Santos; Calò, 2020). Nesse contexto, iniciativas como o SciELO, ao adotar boas práticas de comunicação científica, continuam a liderar o avanço da pesquisa no Brasil e nos países da Rede SciELO (Packer et al., 2018). | Considerações finais A Ciência Aberta apresenta um horizonte promissor para transformar a comunicação científica em uma prática mais inclusiva, eficiente e responsiva às necessidades da sociedade. Embora os desafios sejam significativos, a integração de seus valores no sistema editorial é crucial para a evolução do conhecimento e para enfrentar crises globais, como as vivenciadas recentemente. Persuadir a comunidade científica sobre a importância de adotar práticas de Ciência Aberta envolve não apenas destacar seus benefícios éticos, sociais e acadêmicos, mas também demonstrar como essas práticas podem, de fato, favorecer o êxito profissional e fortalecer as redes de colaboração. A transição para um modelo aberto exige não apenas infraestrutura tecnológica, mas também um esforço coordenado que demanda disposição para mudanças, alocação de recursos financeiros e humanos, bem como tempo e esforço para adotar novos processos, metodologias e tecnologias para capacitar pesquisadores, equipes editoriais e publishers. Ao abraçar a Ciência Aberta, a gestão editorial pode liderar o caminho para uma ciência mais colaborativa, impactante e acessível a todos. 45 | Referências Acesso Aberto USP. Dados científicos: como construir metadados, descrição, readme, dicionário-de-dados e mais. Disponível em: https://www.acessoaberto.usp.br/dados- cientificos-como-construir-metadados-descricao-readme-dicionario-de-dados-e-mais. Acesso em: 20 fev. 2025. CURTY, R. G.; AVENTURIER, P. O paradigma da publicação de dados e suas diferentes abordagens. In: ENANCIB, 18., 2017, Marília. Anais [...]. Marília: Unesp, 2017. 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Transferência de Tecnologia para a inovação: rotas de desenvolvimento ligadas às cadeias de bioeconomia Adriana Iop Bellintani11 Sueli Sampaio Damin Custódio12 Tatiane Luciano Balliano13 doi.org/10.5281/zenodo.15198379 11 Professora Doutora do Departamento de Humanidades e Coordenadora do Programa de Formação Complementar de Inovação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Professora do Programa de Pós-Graduação do Mestrado Profissional de Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação (PROFNIT/ITA). Professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS. E-mail: adriana.bellintani@gp.ita.br. 12 Professora Doutora do Departamento de Humanidades. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação do Mestrado Profissional de Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação (PROFNIT/ITA) e Chefe do Laboratório de Inovação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). E-mail: sueli.damin@gp.ita.br 13 Professora Doutora do Instituto de Química e Biotecnologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e presidente da Comissão Acadêmica Nacional da rede PROFNIT. E-mail: tlb@qui.ufal.br. https://doi.org/10.5281/zenodo.15198379 mailto:adriana.bellintani%40gp.ita.br?subject= mailto:sueli.damin%40gp.ita.br?subject= mailto:tlb%40qui.ufal.br?subject= 49 Resumo: Este capítulo expõe o tema “Propriedade intelectual e transferência de tecnologia para a inovação: modelos de transferência de tecnologia para as rotas de desenvolvimento ligadas às cadeias da bioeconomia”, e tem como referência a palestra da professora Tatiane Luciano Balliano, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), que apresentou os resultados preliminares de sua pesquisa sobre o desenvolvimento tecnológico de produtos a partir da utilização do extrato aquoso e da carragena kappa obtida de algas da espécie kappaphycus alvarezii. A partir das noções conceituais sobre bioeconomia, propriedade intelectual e inovação, apresentou-se os resultados obtidos do projeto do CNPq contemplando as algas kappaphicus alvarezzi. Buscou-se, com isso, expor estratégias de desenvolvimento de produtos tecnológicos e de sua aplicação na indústria farmacêutica oriundos do processamento de algas da espécie kappaphycus alvarezii. O trabalho tem por objetivo expor pesquisas científicas de impacto na sociedade. Palavras-chave: Inovação; Jurema preta; Algas kappaphicus alvarezzi. | Introdução Este capítulo trata sobre a importância do estudo da bioeconomia, centrado nas pesquisas da professora do Instituto de Química e Biotecnologia da Universidade Federal de Alagoas, Tatiane Luciano Balliano. Ela trabalha com projetos para obtenção de materiais relevantes na indústria de Química fina a partir de recursos naturais da biodiversidade de Alagoas e do Brasil. Atualmente, a docente é presidente da Comissão Acadêmica Nacional da rede PROFNIT e desempenha atividades ligadas à propriedade intelectual, transferência de tecnologia e empreendedorismo inovador, sendo coordenadora da sede do PROFNIT – UFAL. O estudo das algas está inserido na cadeia produtiva de bioeconomia que respeita o ecossistema e gera desenvolvimento sustentável. O objetivo deste trabalho é apresentar os conceitos sobre propriedade intelectual, inovação, ecossistema e bioeconomia a partir da apresentação realizada pela professora Tatiane Balliano no II Ciclo de Debates sobre Engenharia e Sociedade, da pesquisa bibliográfica e documental em instituições que se destinam ao estudo e fomento de pesquisas no campo da inovação e bioeconomia, dando destaque à legislação brasileira pertinente à área de propriedade intelectual. Atualmente, o maior desafio tem sido conciliar a produtividade com cuidados com a conservação do meio ambiente e com a preservação dos recursos naturais para as futuras gerações. Nesse contexto, saberes e práticas tradicionais das comunidades, que exploram os recursos naturais, podem auxiliar na identificação e construção de novos parâmetros que favoreçam o desenvolvimento econômico e social aliado ao uso racional dos recursos 50 ambientais. O histórico regulatório internacional sobre propriedade intelectual e seus direitos conexos evidenciam bem o contexto de mudanças tanto no sistema produtivo quanto na forma de regularo uso de exploração dos recursos naturais. A Revolução Industrial impôs muitas modificações no sistema produtivo e no modo de vida do homem. No período anterior à primeira Revolução Industrial, 1750, a Inglaterra despontou entre os outros estados, em relação à preocupação e à regulamentação dos direitos sobre bens. Em 1624, foi redigido o Statute of Monopolies, também conhecido como Lei de Patentes, que tinha a clara intenção de quebrar os monopólios e, a partir de sua normatização, aumentou o número de acordos bilaterais realizados entre a Inglaterra e outros países. Em 1883, foi criado o Bureaux Internationaux réunis pour la protection de la propriété intellectuelle (BIRPI), com sede em Berna. O primeiro acordo internacional relativo à propriedade intelectual foi realizado na Convenção de Paris e entre as importantes decisões desse documento destacamos o Art. 1º, que afirma: “Os países a que se aplica a presente Convenção constituem-se em União para a proteção da propriedade industrial.” Os países signatários e que se mantiveram em união foram: Bélgica, Brasil, França, Guatemala, Itália, Holanda, Portugal, El Salvador, Sérvia, Espanha e Suíça. Posteriormente, aderiram ao acordo Equador, Tunísia, Reino Unido e Estados Unidos. O seu Art. 2º pugnava sobre a proteção dos países signatários com a propriedade industrial: Os nacionais de cada um dos países da União gozarão em todos os outros países da União, no que se refere à proteção da propriedade industrial, das vantagens que as leis respectivas concedem atualmente ou venham a conceder no futuro aos nacionais, sem prejuízo dos direitos especialmente previstos na presente Convenção. Em consequência, terão a mesma proteção que estes e os mesmos recursos legais contra qualquer atentado dos seus direitos, desde que observem as condições e formalidades impostas aos nacionais. O resguardo de autoria era muito ligado à preocupação da produção intelectual, como obras literárias, por exemplo. Mas, com o avanço industrial, a rápida mudança no modo de vida dos indivíduos e a criação de novos inventos fez com que a maior preocupação se concentrasse em assegurar o direito de propriedade sobre os novos aparelhos e invenções. A partir do avanço da tecnologia e dos produtos derivados dela, surgiu a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), na década de sessenta do século XX, com intuito de cooperar na formulação de uma série de tratados no campo internacional. Ela entrou em vigor em 1970 e, segundo o Art. 3° da Convenção de 1967, a OMPI possui como 51 principais objetivos: “i) promover a proteção da propriedade intelectual em todo o mundo, pela cooperação dos Estados, em colaboração, se for caso disso, com qualquer outra organização internacional; ii) assegurar a cooperação administrativa entre as Uniões.” A OMPI se tornou um braço forte da Organização das Nações Unidas (ONU) na defesa da propriedade intelectual entre os estados. A Organização, segundo seu artigo 4°, por meio dos seus órgãos competentes e sob reserva da competência de cada União: i) promoverá a adoção de medidas destinadas a melhorar a proteção da propriedade intelectual em todo o mundo e a harmonizar as legislações nacionais neste domínio; ii) assegurará os serviços administrativos da União de Paris, das Uniões particulares instituídas em relação com esta e da União de Berna; iii) poderá aceitar encarregar-se das tarefas administrativas que forem exigidas pela efectivação de qualquer outro acordo internacional destinado a promover a protecção da propriedade intelectual, ou participar nessa administração; iv) encorajará a conclusão de acordos internacionais destinados a promover a protecção da propriedade intelectual; v) oferecerá a sua cooperação aos Estados que lhe solicitem assistência técnico-jurídica no domínio da propriedade intelectual; vi) reunirá e difundirá todas as informações relativas à protecção da propriedade intelectual, efectuará e encorajará estudos neste domínio e publicará os respectivos resultados; vii) assegurará os serviços que facilitem a protecção internacional da propriedade intelectual e, sendo caso disso, lavrará registos referentes a esta matéria e publicará os dados relativos a estes registos; viii) tomará quaisquer outras medidas apropriadas. Evidenciou-se, nesse período, a criação de legislações nacionais, considerando que os inventos ficavam resguardados dentro de cada Estado. Entretanto, o desafio foi fazer com que outros países respeitassem o direito estabelecido nacionalmente com a criação de mecanismos protetivos de impedir que estrangeiros copiassem a ideia e reproduzissem em outros territórios os mesmos bens já registrados nacionalmente. Dessa forma, ficou muito claro entender que era necessária uma legislação além-fronteiras, que congregasse os países internacionalmente, uma normativa que fosse supranacional. A propriedade intelectual é compreendida a partir da sua subdivisão em: propriedade industrial, direito autoral e produção sui generis. Segundo a análise de Roger Schechter e John Thomas (2003, p. 1), a propriedade intelectual pode ser definida da seguinte maneira: 52 [...] é uma descrição adequada para o assunto das leis que dão origem a interesses proprietários nas criações intelectuais. As principais disciplinas jurídicas da propriedade intelectual são os direitos autorais, que dizem respeito a obras artísticas e literárias; patente, referente a inovações pragmáticas; e marca registrada, relativa a símbolos comerciais. A produção sui generis é uma forma de garantir a proteção para ativos como conhecimentos tradicionais, cultivares e topografia de circuitos integrados. Esse tipo de proteção surgiu em 1961 durante a Convenção Internacional para a Proteção das Novas Variedades Vegetais, quando foi criada a União Internacional para Proteção das Obtenções Vegetais (UPOV). A UPOV encoraja o melhoramento genético vegetal. Quadro 1. Quadro Normativo nacional e Internacional Quadro Normativo Nacional Lei nº 9.456 de 1997 – Lei de Proteção de Cultivares – Cultivares: proteção conferida a novas variedades de plantas que são distintas, homogêneas e estáveis. Os direitos são garantidos por 15 a 20 anos, conforme a espécie. Lei nº 13.123 de 2015 – Patrimônio genético e conhecimento tradicional associado – conhecimentos tradicionais: referem-se aos saberes acumulados por comunidades tradicionais, protegendo esses conhecimentos contra a exploração indevida e garantindo uma repartição justa dos benefícios provenientes de seu uso. Internacional Convenção da UPOV (União Internacional para Proteção das Espécies Vegetais). Promulgada no Brasil pelo Decreto no 3.109/1999. Fonte: Elaboração própria O Brasil aderiu à UPOV e passou a defender esse direito em território nacional. Para ser considerado cultivares, precisa ter ocorrido uma modificação por interferência de pesquisadores, como assegura o Art. 4° da Lei Brasileira nº 9.456, de 25 de abril de 1997, que institui a Lei de Proteção de Cultivares e dá outras providências: “É passível de proteção a nova cultivar ou a cultivar essencialmente derivada, de qualquer gênero ou espécie vegetal.” O certificado da cultivares sui generis é conferido, no Brasil, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), por meio do Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC), órgão competente que trata das solicitações e deliberações dos pedidos. Dessa forma, o portador do certificado tem o direito de comercializar o seu produto pelo prazo de até vinte anos. Podemos destacar como exemplo a batata-doce de polpa roxa produzida pela Embrapa, que obteve seu registro em 2021 (Cultivares – Portal Embrapa): https://planalto.gov.br/CCivil_03/LEIS/L9456.htm 53 a batata-doce BRS Cotinga é uma cultivar de casca e polpa de coloração arroxeada intensa com ampla adaptabilidade a ambientes de cultivo e alta estabilidade de produção. Foi desenvolvida com a finalidade de oferecer ao mercado uma cultivarespecífica para industrialização na forma de chips, mas também pode ser recomendada para processamento industrial como farinha, fécula, tapioca, xarope de amido e outros produtos derivados. A concessão de direito de topografia de circuitos integrados é conferida pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), de acordo com a Lei nº 11.484, de 31 de maio de 2007, e a Instrução Normativa INPI nº 109, de 30 de setembro de 2019. O responsável pelo projeto terá o direito de utilizar por até dez anos essa concessão. O Art. nº 26 da Lei nº 11.484 de 2007 define circuito integrado e topografia de circuito integrado como: I – Circuito integrado significa um produto, em forma final ou intermediária, com elementos dos quais pelo menos um seja ativo e com algumas ou todas as interconexões integralmente formadas sobre uma peça de material ou em seu interior e cuja finalidade seja desempenhar uma função eletrônica; II – Topografia de circuitos integrados significa uma série de imagens relacionadas, construídas ou codificadas sob qualquer meio ou forma, que represente a configuração tridimensional das camadas que compõem um circuito integrado, e na qual cada imagem represente, no todo ou em parte, a disposição geométrica ou arranjos da superfície do circuito integrado em qualquer estágio de sua concepção ou manufatura (Brasil, 2022). Denis Borges Barbosa (2010, p. 2144) conceitua o circuito integrado como: Um circuito integrado (o microship) é um pequeno aparelho com circuito eletroeletrônico completo (funcionando como transistores, resistências e suas interconexões) fabricado em peça de material semicondutor, como o silício, germânio ou arsenídio de gálio, folheados em wafers de 8 ou 12 camadas. Alguns circuitos integrados são usados como memória (as RAMs, ROMs, EPROMs); outros são utilizados como processadores, realizando funções lógicas e matemáticas em computadores. E ainda dentro da seção produção sui generis, temos os conhecimentos tradicionais, que possuem toda base teórica internacional baseada na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), realizada em 1992. Esse primeiro acordo multilateral contou com a adesão de cerca de 150 países e regulamentou a conservação e o acesso aos recursos genéticos das comunidades tradicionais. Tal documento passou a inspirar a regulamentação em outros países e defendem em seu Art. 8º, alínea J (2000, p. 12): 54 Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas. O que define o conhecimento tradicional é a cultura e, para atender as necessidades de defesa dos conhecimentos tradicionais, o Brasil estabelece, por meio da Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015, em seu Art. 20, que de acordo com a Convenção sobre Diversidade Biológica, possui as seguintes considerações e conceituações sobre os conhecimentos tradicionais: I – Patrimônio genético – informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivos; II – Conhecimento tradicional associado – informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio genético; III – Conhecimento tradicional associado de origem não identificável – conhecimento tradicional associado em que não há a possibilidade de vincular a sua origem a, pelo menos, uma população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional; IV – Comunidade tradicional – grupo culturalmente diferenciado que se reconhece como tal, possui forma própria de organização social e ocupa e usa territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição; V – Provedor de conhecimento tradicional associado – população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional que detém e fornece a informação sobre conhecimento tradicional associado para o acesso; VI – Consentimento prévio informado – consentimento formal, previamente concedido por população indígena ou comunidade tradicional segundo os seus usos, costumes e tradições ou protocolos comunitários; 55 VII – Protocolo comunitário – norma procedimental das populações indígenas, comunidades tradicionais ou agricultores tradicionais que estabelece, segundo seus usos, costumes e tradições, os mecanismos para o acesso ao conhecimento tradicional associado e a repartição de benefícios de que trata esta Lei; VIII – Acesso ao patrimônio genético – pesquisa ou desenvolvimento tecnológico realizado sobre amostra de patrimônio genético; IX – Acesso ao conhecimento tradicional associado – pesquisa ou desenvolvimento tecnológico realizado sobre conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético que possibilite ou facilite o acesso ao patrimônio genético, ainda que obtido de fontes secundárias, tais como feiras, publicações, inventários, filmes, artigos científicos, cadastros e outras formas de sistematização e registro de conhecimentos tradicionais associados; X – Pesquisa – atividade, experimental ou teórica, realizada sobre o patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado, com o objetivo de produzir novos conhecimentos, por meio de um processo sistemático de construção do conhecimento que gera e testa hipóteses e teorias, descreve e interpreta os fundamentos de fenômenos e fatos observáveis; XI – Desenvolvimento tecnológico – trabalho sistemático sobre o patrimônio genético ou sobre o conhecimento tradicional associado, baseado nos procedimentos existentes, obtidos pela pesquisa ou pela experiência prática, realizado com o objetivo de desenvolver novos materiais, produtos ou dispositivos, aperfeiçoar ou desenvolver novos processos para exploração econômica; Quanto aos direitos autorais, o tema está subdividido em direitos autorais que compreendem as obras literárias, artísticas e científicas; e registro de programa de computador, ambos protegidos pela Lei de Direitos Autorais (LDA), que, em seu Art. 7º, estipula: são obras intelectuais protegidas pelas criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: I — Os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; II — As conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; III — As obras dramáticas e dramático-musicais; IV — As obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma; 56 V — As composições musicais, tenham ou não letra; VI — As obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas; VII — As obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia; VIII — As obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; IX — As ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza; X — Os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência; XI — As adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova; XII — Os programas de computador; XIII — As coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criaçãointelectual. A propriedade industrial está subdividida em Patente, Marca, Desenho Industrial, Indicação Geográfica e Contratos e Franquias. A propriedade industrial, em todas suas categorias, é regulamentada pela Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, que em seu Art. 2º estipula: A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua- se mediante: I – concessão de patentes de invenção e de modelo de utilidade; II – concessão de registro de desenho industrial; III – concessão de registro de marca; IV – repressão às falsas indicações geográficas; e V – repressão à concorrência desleal; VI – concessão de registro para jogos eletrônicos. As franquias são caracterizadas pela concessão de licença por parte da franqueadora às suas franqueadas. Essa licença permite a um terceiro a entrada no mercado com o direito de usar a Marca e, dependendo da empresa, conforme esclarece Fonseca e Rocha (2018), poderá também utilizar a infraestrutura, materiais, preparo e instrução de pessoal, entre outros. Exemplos bem conhecidos de empresas franqueadoras no Brasil são a Hering e a Arezzo. O desenho industrial cria vários produtos nas mais diversas áreas, podendo ser um carro, uma garrafa ou uma máquina. Segundo o Art. 95 da LPI: “desenho industrial é a forma plástica ornamental de um objeto ou o conjunto ornamental de linhas e cores que 57 possa ser aplicado a um produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa e que possa servir de tipo de fabricação industrial”. As indicações geográficas estão ligadas ao tipo de produção e ao local de produção. Os produtos vinculados ao meio geográfico são chamados de “produtos territoriais georreferenciados”, garantindo a valorização dos produtos e sua direta relação com a qualidade. Para além da valorização, podemos ainda destacar que a estreita relação entre o produto e o território oferecem credibilidade ao produto em virtude de sua forma de produção. Dentre alguns produtos brasileiros que possuem o selo de indicação geográfica, temos o café no estado de Minas Gerais, o vinho no Rio Grande do Sul e a farinha no Amazonas. | Inovação: conceituações e noções preliminares Ao pensarmos em propriedade industrial e intelectual nas suas mais diferentes formas e apresentações, levamos em consideração que produtos, de maneira geral, oferecem um diferencial. Seja no seu processo de obtenção, na ideia que provocou a ação ou na própria combinação de uso do conhecimento. Essa significativa diferenciação conduz nossa análise para o campo da inovação. Para falar sobre inovação, destacamos dois importantes estudiosos sobre o tema que são Drucker e Schumpeter. Na visão de Drucker (1987, p. 40), a Inovação está associada à capacidade do homem de transformar matéria em produto comercializável, em algo que potencialmente movimente o mercado: “[...] Qualquer mudança no potencial produtor de riqueza de recursos já inexistentes constitui inovação”. Enquanto para Schumpeter (1988), é essencial um modus operandi que, ao modificar o material primário, gere desenvolvimento econômico e se utilize do conhecimento. Esses fatores conjugados conduzem a novas combinações e esse processo em franca operacionalidade gera o fator inovador. Segundo Schumpeter (1985), a inovação está diretamente relacionada ao mercado e ao valor de negociação do produto. Ocorre a transformação de algo existente em um novo produto, que necessita ser aceito comercialmente. Nesse contexto, podemos considerar inovação um produto novo, um processo, novas matérias-primas ou uma nova organização. Daí demandamos: qual a importância de uma ideia ou um produto que economicamente não tiveram notoriedade? É preciso considerar que um produto para se transformar em inovação passa por determinados momentos, sendo eles a fase gestacional, na qual são exigidos graus de compreensão e conhecimento tecnológico, e a fase em que o melhoramento operado em algo existente adquire aceitação no mercado. Como bem lembra Schumpeter 58 (1985, p. 62): “Embora os empresários possam naturalmente ser inventores exatamente como podem ser capitalistas, não são inventores pela natureza de sua função, mas por coincidência e vice-versa”. Atingir a inovação demanda vencer uma série de esforços e de um ambiente apropriado. Maciel (1997, p. 109) chama a atenção para as dificuldades e imposições de mercado cada vez mais exigente: “[...] procura dar conta do conjunto de condições – limites, obstáculos, possibilidades, estímulos – da inovação em uma determinada formação social. Ambiente de inovação refere-se, portanto, ao conjunto de fatores políticos, econômicos, sociais e culturais que estimulam ou dificultam a inovação [...]”. Esse conjunto de fatores, como destaca Maciel, atua para obter acesso ao mercado e destaque pela diferenciação do produto. A inovação está diretamente ligada ao mercado, pois de nada resolve ter um produto com alta operacionalidade sem atingir um patamar de vendas que permita um custeio acessível para a indústria, como destaca Coutinho (1992, p. 76): [...] a possibilidade de montar redes internas computadorizadas para centralizar a gestão, vendas, compras, estoques, finanças, produção, se necessário em tempo real; a possibilidade de estabelecer novas relações proveitosas com fornecedores, clientes, prestadores de serviços, institutos de pesquisa, universidades, ou mesmo com concorrentes tradicionais, em certas áreas – tudo isso vem induzindo modificações relevantes nas estruturas e nas estratégias empresariais. Para além dos pesquisadores e cientistas que se debruçam sobre a temática, temos um importante documento internacional que congrega e normatiza o entendimento sobre inovação no sistema internacional, o Manual de Oslo. Ele foi organizado em cooperação entre o Nordic Industrial Fund e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) no início dos anos 90 e tratava de conceitos, definições e metodologia sobre inovação. O Manual foi escrito por vários especialistas e técnicos, congregando mais de trinta países, e em 2018 foi lançada a sua quarta edição atualizada. Segundo o Manual de Oslo (2018, tradução própria14), inovação é “um produto ou processo novo ou melhorado (ou combinação dos mesmos) que difere significativamente dos produtos ou processos anteriores da unidade e que foi disponibilizado a potenciais usuários (produto) ou colocado em uso pela unidade (processo)”. 14 No original: “a new or improved product or process (or combination thereof) that differs significantly from the unit’s previous products or processes and that has been made available to potential users (product) or brought into use by the unit (process).” 59 De acordo com o Manual (2005), a inovação é classificada da seguinte maneira: a) a inovação de produtos ou serviços: consiste no desenvolvimento e comercialização criativa de novas tecnologias, acopladas a necessidades insatisfeitas de clientes; b) a inovação de processos: consiste em desenvolver novas formas de fabricação de produtos ou prestação de serviços; c) a inovação de gestão: consiste na introdução de novas maneiras de conduzir negócios que providenciem uma vantagem competitiva; d) a inovação de negócios ou de mercados: consiste na relação do desenvolvimento de novos negócios, que permitam a consolidação de vantagem competitiva. A inovação tecnológica em produto, segundo o mesmo Manual (2005), corresponde a produtos tecnologicamente novos, em que as características ou os usos pretendidos diferem dos produzidos anteriormente, e em produtos tecnologicamente aprimorados, em que um produto existente tem seu desempenho melhorado significativamente ou aprimorado. Ou seja, a inovação tecnológica pode utilizar processos novos ou melhorados, tanto no equipamento quanto simplesmente na organização da produção. E afirma (Manual de Oslo, 2005, p. 21): Uma inovaçãotecnológica de produto é a implantação/comercialização de um produto com características de desempenho aprimoradas de modo a fornecer objetivamente ao consumidor serviços novos ou aprimorados. Uma inovação de processo tecnológico é a implantação/adoção de métodos de produção ou comercialização novos ou significativamente aprimorados. Ela pode envolver mudanças de equipamento, recursos humanos, métodos de trabalho ou uma combinação destes. De acordo com o Manual (2005, p. 41-42), as ações para se obter uma inovação passam pelo campo estratégico e P&D, como explicitado abaixo: Estratégias: como condição prévia necessária à atividade de inovação, as empresas têm de tomar — explicitamente ou não — decisões sobre os tipos de mercados que servem ou tentam criar, e os tipos de inovações que neles tentarão introduzir. P&D: algumas das opções referem-se a P&D (no sentido do Manual Frascati, incluindo desenvolvimento experimental que vá além da pesquisa básica e da pesquisa aplicada): — A empresa pode engajar-se em pesquisa básica para ampliar seu conhecimento dos processos fundamentais relacionados com o que produz; 60 — Pode engajar-se em pesquisa estratégica (no sentido de pesquisa de relevância para a indústria, mas sem aplicações específicas) para ampliar a gama de projetos aplicados que tem à sua disposição, e pesquisa aplicada para produzir invenções específicas ou modificações de técnicas existentes; — Pode desenvolver conceitos de produtos para julgar se são factíveis e viáveis; um estágio que envolve: (i) desenho do protótipo; (ii) desenvolvimento e ensaios; e (iii) pesquisas adicionais para modificação do desenho ou de suas funções técnicas; De Não P&D: a empresa pode engajar-se em muitas outras atividades que não têm nenhuma relação direta com P&D e que não são definidas como P&D, mas que, ainda assim, desempenham um papel importante na inovação e no desempenho corporativos; — Pode identificar novos conceitos e tecnologias de produção: (i) através de sua área de marketing e relações com os usuários; (ii) através da identificação de oportunidades de comercialização decorrentes de pesquisa básica, própria ou de terceiros, ou de pesquisa estratégica, (iii) através de suas capacidades de projeto e engenharia, (iv) monitorando os concorrentes, e (v) valendo-se de consultores; — Pode desenvolver unidades pilotos e, depois, instalações de produção em larga escala; — Pode adquirir informações técnicas, pagando taxas ou royalties por invenções patenteadas (que geralmente requerem trabalho de pesquisa e engenharia para serem adaptadas e modificadas), ou adquirir know-how e competências através de vários tipos de consultorias de engenharia e projeto; — Competências humanas importantes para a produção podem ser desenvolvidas (através de treinamento interno) ou adquiridas (por contratação). Pode também haver aprendizado tácito e informal (aprender “fazendo”) envolvido; — Pode investir em equipamentos de processo ou insumos intermediários que incorporem o trabalho inovador de outros. Isto pode compreender componentes, máquinas ou toda uma fábrica; — pode reorganizar sistemas de gerenciamento e o sistema geral de produção e seus métodos, incluindo novos tipos de administração de estoques e controle de qualidade e a melhoria contínua de qualidade; A busca pela inovação ocorre nos mais diversos setores de produção e, acompanhando a preocupação internacional do século XXI pela preservação do meio ambiente, passou 61 a atuar fortemente em busca da sustentabilidade do ecossistema. E daí surge a grande e pertinente questão: como inovar, gerar desenvolvimento econômico e respeitar o meio ambiente? | Inovação e ecossistema De acordo com os estudos de Jackson (2011), a inovação no campo da economia sustentável é de grande importância para a preservação do meio ambiente. Os processos tecnológicos e criativos aceleram o ritmo de crescimento da economia e captam mais investimentos para aprimorar um produtor ou iniciar novos projetos que contemplem a defesa da natureza. O modelo de hélice tripla de inovação, universidade-indústria-governo, desempenha um papel importante também na promoção da ecoinovação, desde que as hélices estejam interconectadas, uma vez contribuindo para o desenvolvimento regional e criação de oportunidades de renda e emprego. A qualidade de vida depende do uso racional dos recursos naturais, visto que esses são finitos, e é possível atingir o impacto sobre o meio ambiente sem ferir o ecossistema (Severo; Dorion; Guimarães, 2020). Na análise de Jackson (2011), o ecossistema de inovação é um ambiente formado por muitos fatores e atores que se debruçam em busca da inovação e do desenvolvimento socioeconômico. O dinamismo econômico é sustentado pela inovação que, quando aplicada em equilíbrio com o meio ambiente, confere vantagem competitiva sustentável tanto para as empresas quanto para os países, melhorando o mundo onde vivemos. Furlan (2010) destaca que existem categorias de valoração dos serviços e produtos que se originam no ecossistema, que podem ser classificados como um valor de uso direto, ou seja, produtos que usam a maneira artesanal de obtenção como o extrativismo, a caça ou a pesca; produtos de uso indireto, que são obtidos respeitando a natureza e a biodiversidade, como proteção de bacias hidrográficas, preservação de habitat para espécies migratórias, estabilização climática e redução na produção de carbono. Ao expressar a preocupação com o meio ambiente e, principalmente, entendendo que os recursos naturais são finitos, a Confederação Nacional da Indústria (CNI, 2013) destaca que a bioeconomia é uma inovação imprescindível para a sociedade: “A bioeconomia surge como resultado de uma revolução de inovações na área das ciências biológicas. Está relacionada à invenção, desenvolvimento e uso de produtos e processos biológicos nas áreas da biotecnologia industrial, da saúde humana e da produtividade agrícola e pecuária”. 62 A bioeconomia passou a fazer parte de muitas pesquisas ao se utilizar de conhecimentos biológicos voltados para o bem-estar do homem e fomento do mercado. A biotecnologia se utiliza de conhecimentos sustentáveis para gerar produção consciente. De acordo com a Associação Brasileira de Bioeconomia (ABBI, 2022): “somente com a inovabilidade — intersecção entre inovação e sustentabilidade — horizontes do Estado, das organizações e dos clientes será possível o alinhamento de cadeias produtivas regenerativas focadas em inovações disruptivas e no bem-estar econômico, social e ambiental”. Para que fossem atendidas a preservação ambiental e a economia sustentável, sem perder a inovação, foi promulgada a Lei nº 9.985 de 2000, que estabelece, em seu Art. 2o, as bases conceituais sobre o meio ambiente e a preservação: VII – conservação in situ: conservação de ecossistemas e habitats naturais e a manutenção e recuperação de populações viáveis de espécies em seus meios naturais e, no caso de espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido suas propriedades características; VIII – manejo: todo e qualquer procedimento que vise assegurar a conservação da diversidade biológica e dos ecossistemas; IX – uso indireto: aquele que não envolve consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais; X – uso direto: aquele que envolve coleta e uso, comercial ou não, dos recursos naturais; XI – uso sustentável: exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável; XII – extrativismo: sistema de exploração baseado na coleta e extração, de modo sustentável, de recursos naturais renováveis; XVII – plano de manejo: documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidiro uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade; Respeitando as condições para o desenvolvimento industrial e atendendo a preservação do ecossistema por meio de desenvolvimento sustentável e, ainda, atendendo as condições de obter inovação a partir das pesquisas no campo da bioeconomia, desenvolveu-se o 63 projeto com as algas kappaphicus alvarezzi. Conforme se observa na Figura 1, há diversas oportunidades de cultivo e aplicação de uso das algas kappaphicus alvarezzi. Figura 1. Possibilidades de cultivo e aplicação de macroalgas Fonte: Apresentação de Tatiane Balliano | Extrato aquoso algas kappaphicus alvarezzi A indústria de algas no Brasil tem se baseado historicamente na colheita de algas dos bancos naturais. Desde a década de 1960, diversas espécies de macroalgas vêm sendo coletadas no litoral do nordeste para extração de ágar e carragenana. Atualmente, o cultivo de macroalgas tem mostrado um grande potencial em relação ao desenvolvimento da comunidade e passou a ser considerado uma alternativa viável para garantir a sustentabilidade da atividade na região costeira, sobretudo porque a relação sociedade-natureza vivenciada pelas comunidades tradicionais é considerada de baixo impacto ambiental e dessa forma pode contribuir para a conservação da biodiversidade (Pereira; Diegues, 2010). Na Figura 2, é apresentada a imagem da alga kappaphicus alvarezzi. 64 Figura 2. Alga kappaphicus alvarezzi Fonte: Instituto ProAlgas Cabe destacar que novas linhas de pesquisa buscam avaliar o potencial para o uso de algas em diversos setores da economia. O uso desses bioprodutos pode estimular, ainda, a economia no país, auxiliando na geração de renda e sustentabilidade ambiental. As plantas têm desenvolvido um importante papel na captura de gás carbônico e produção de oxigênio, por meio da fotossíntese. Conforme expõe o Instituto ProAlgas Brasil, a atividade de absorção de CO2 pode ser considerada um dos processos biológicos mais importantes do planeta. Além disso, as macroalgas marinhas são consideradas uma fonte valiosa, de importante valor ecológico e econômico, e em função disso, promotora de múltiplos serviços ecossistêmicos. As pesquisas envolvendo as macroalgas são ações conjuntas e articuladas e buscam evidenciar a capacidade que os ecossistemas naturais e seminaturais têm de regular os processos e sistemas de apoio à vida, por meio de processos biológicos e de ciclos biogeoquímicos. Nesse contexto, a pesquisa da Profª Tatiane Balliano está integrada ao plano aquícola da cidade de Maceió, no estado de Alagoas. A Figura 3 localiza a região onde estão localizados os núcleos de cultivo das algas na cidade de Maceió/AL. https://www.proalgabrasil.org.br/novidades-1 https://www.proalgabrasil.org.br/novidades-1 65 Figura 3. Área do Porto de Maceió onde vai ser implantado o cultivo para estabelecimento do plano aquícola, pesquisa e banco de germoplasma e expansão dos Núcleos de Cultivo Fonte: Google Maps Os pesquisadores associados ao laboratório coordenado pela Profª Tatiane Balliano têm desenvolvido produtos tecnológicos para aplicação na indústria farmacêutica oriundos do processamento de algas da espécie kappaphycus alvarezii. As figuras de 4 a 6 mostram as imagens de algumas das etapas da pesquisa. Figuras 4, 5 e 6. Etapas da pesquisa do extrato aquoso e da carragena kappa obtida de algas da espécie kappaphycus alvarezii Fonte: Arquivo de pesquisa do projeto “Desenvolvimento Tecnológico de produtos a partir da utilização do extrato aquoso e da carragena kappa obtida de algas da espécie kappaphycus alvarezii, 2024” As pesquisas desenvolvidas ao longo de 2024 estiveram associadas a aplicações terapêuticas da jurema preta (mimosa tenuiflora (willd.) poir.) e às perspectivas existentes para produção de novos medicamentos fitoterápicos com o extrato aquoso e da carragena obtida de algas da espécie kappaphycus alvarezii. Dentre os estudos, destacam-se a aplicação de ficoeritrina com a planta de jurema preta conforme Figura 7 abaixo e da produção de óvulos intravaginais decorrentes dos resultados obtidos com a ficoeritrina, jurema preta e gelatina glicerinada conforme Figura 10. 66 Figura 7. Ficoeritrina (PE) Fonte: Arquivo de pesquisa do projeto “Desenvolvimento Tecnológico de produtos a partir da utilização do extrato aquoso e da carragena kappa obtida de algas da espécie kappaphycus alvarezii, 2024” A ficoeritrina (PE) é uma proteína da família das ficobiliproteínas, presente nas cianobactérias, algas vermelhas e nas criptofíceas. A pesquisa tem utilizado a ficoeritrina com a planta jurema preta. No conhecimento tradicional, o pó obtido a partir da trituração da casca é muito eficiente no tratamento de queimaduras, acne, problema de pele, pois tem efeito antimicrobiano, analgésico e regenerador de células. Figura 8. Imagem da planta e casca da jurema preta Fonte: Arquivo de pesquisa do projeto “Desenvolvimento Tecnológico de produtos a partir da utilização do extrato aquoso e da carragena kappa obtida de algas da espécie kappaphycus alvarezii, 2024” A pesquisa tem alcançado resultados satisfatórios quanto à melhora na cicatrização de pequenos ferimentos, conforme se evidencia nas imagens retratadas na Figura 9. 67 Figura 9. Imagens dos estudos clínicos do uso da ficoeritrina (PE) com a planta jurema preta Fonte: Arquivo de pesquisa do projeto “Desenvolvimento Tecnológico de produtos a partir da utilização do extrato aquoso e da carragena kappa obtida de algas da espécie kappaphycus alvarezii, 2024 Os efeitos terapêuticos foram preliminarmente evidenciados e a pesquisa está na fase de estudos clínicos para acompanhamento de tratamento de cicatrização de lesões. Outro estudo apresentado foi a produção de óvulos intravaginais para tratamento de câncer do colo do útero conforme imagem ilustrado na Figura 10. Figura 10. Imagem dos óvulos intravaginais Fonte: Arquivo de pesquisa do projeto “Desenvolvimento Tecnológico de produtos a partir da utilização do extrato aquoso e da carragena kappa obtida de algas da espécie kappaphycus alvarezii, 2024 A pesquisa da aplicação da ficoeritrina com jurema preta e gelatina glicerinada, financiado pelo CNPq, já realizou estudo clínico de fase 1 e 2 para cicatrização de lesões e combate a leucorreias com duplo cego randomizado. 68 Quadro 2. Descrição das fases do estudo clínico Aplicação da ficoeritrina com jurema preta e gelatina glicerinada 1ª Fase 24 mulheres 2ª Fase 120 mulheres Fonte: Arquivo de pesquisa do projeto “Desenvolvimento Tecnológico de produtos a partir da utilização do extrato aquoso e da carragena kappa obtida de algas da espécie kappaphycus alvarezii, 2024” No Brasil, excluídos os tumores de pele não melanoma, o câncer do colo do útero é o terceiro tipo de câncer mais incidente entre mulheres. Para o ano de 2023, foram estimados 17.010 casos novos, o que representa uma taxa ajustada de incidência de 13,25 casos a cada 100 mil mulheres (INCA, 2022). | Considerações finais O presente capítulo apresentou a importância da interação entre academia e indústria a partir das pesquisas desenvolvidas na área de propriedade intelectual e transferência de tecnologia, dando destaque a produtos tecnológicos para aplicação na indústria farmacêutica oriundos do processamento de algas da espécie kappaphycus alvarezii e da planta jurema preta. Essa planta apresenta vários efeitos terapêuticos como ação antimicrobiana, antioxidante, anti-inflamatória e cicatrizante. Este trabalho apresentou os resultados de pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Alagoas, pela Profª Tatiane Balliano e sua equipe. Dentre os resultados apresentados pela palestrante, destacam-se dois estudos específicos com algas da espécie kappaphycus alvarezii e a planta jurema preta. Esses estudos estão associados a uma gestão ambiental embasada na conservação da biodiversidade e às políticas de desenvolvimentosustentável. Por fim, pesquisas como as apresentadas acima podem atender a múltiplos propósitos, desde a conscientização da população até a tomada de decisões sobre questões específicas, como o desenvolvimento costeiro. | Agradecimentos Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), aos integrantes do projeto Educação Empreendedora: servidoras, alunas e alunos de graduação e pós- graduação do PROFNIT/ITA pela contribuição nas atividades desenvolvidas e agradecemos, de forma especial, à ITAEx pelo suporte financeiro para a realização do projeto. 69 | Referências ABBI. ABBI – Associação Brasileira de Bioinovação. Bioinovação no setor florestal: oportunidades e desafios. BRASIL. Lei nº 9.456, de 25 de abril de 1997. Institui a Lei de Proteção de Cultivares e dá outras providências. BRASIL. Lei nº 11.484/2007. Dispõe sobre os incentivos às indústrias de equipamentos para TV Digital e de componentes eletrônicos semicondutores e sobre a proteção à propriedade intelectual das topografias de circuitos integrados, instituindo o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores – PADIS e o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Equipamentos para a TV Digital – PATVD; altera a Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993; e revoga o art. 26 da Lei no 11.196, de 21 de novembro de 2005. BRASIL. Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. BRASIL. Lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015. Regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da Constituição Federal, o Artigo 1, a alínea j do Artigo 8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§ 3º e 4º do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade; revoga a Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá outras providências. BRASIL. Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016. Dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação e altera a Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011, a Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, a Lei nº 8.958, de 20 de dezembro de 1994, a Lei nº 8.010, de 29 de março de 1990, a Lei nº 8.032, de 12 de abril de 1990, e a Lei nº 12.772, de 28 de dezembro de 2012, nos termos da Emenda Constitucional nº 85, de 26 de fevereiro de 2015. L13243 (planalto.gov.br). Acessado em 11 de setembro de 2024. EMBRAPA. Cultivares – Portal Embrapa. https://abbi.org.br/bioinovacao-no-setor-florestal/ https://abbi.org.br/bioinovacao-no-setor-florestal/ http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%209.985-2000?OpenDocument http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%209.985-2000?OpenDocument http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%209.985-2000?OpenDocument http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%209.985-2000?OpenDocument 70 COUTINHO, L. A terceira revolução industrial e tecnológica: as grandes tendências de mudança. Economia e sociedade: Revista do Instituto de Economia da UNICAMP, Campinas, v. 1, p. 69-87, 1992. DRUCKER, P. F. Inovação e o espírito empreendedor: práticas e princípios. São Paulo: Pioneira, 1987. FINEP. Manual de Oslo. Disponível em: http://www.finep.gov.br/images/a-finep/ biblioteca/manual_de_oslo.pdf. Acesso em: 12 dez. 2024. FURLAN, M. 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E-mail: fabiofltc@gmail.com. 16 Doutorando no Programa de Inovação e Tecnologia da Universidade Federal de São Paulo. São José dos Campos – SP – Brasil. CEP 12231-280. E-mail: hiure@riseup.net 17 Professor da Faculdade de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará. Coordenador do Observatório Educação Vigiada. Belém – PA – Brasil. CEP: 66077-110. E-mail: leocruz@ufpa.br 18 Professora de Direito do Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA. Departamento de Humanidades. São José dos Campos – SP – Brasil. CEP: 12228-900. E-mail: najodas@ita.br https://doi.org/10.5281/zenodo.15198494 mailto:fabiofltc%40gmail.com?subject= mailto:hiure%40riseup.net?subject= mailto:leocruz%40ufpa.br?subject= mailto:najodas%40ita.br?subject= 73 Resumo: No bojo do capitalismo financeiro global nasceram novas relações de submissão dos estados do Sul Global em relação às grandes empresas de tecnologia (big techs), o que vem sendo denominado de “colonialismo de dados”. Nessa perspectiva, as grandes corporações controlam os dados e todo o processo de desenvolvimentoe o mercado digital, limitando a autonomia dos países do Sul Global. Explora a soberania digital, os marcos regulatórios brasileiros e os desafios políticos, econômicos e culturais, propondo tecnologias autônomas alinhadas aos interesses locais e comunitários. O sexto capítulo transcreve a palestra de Sandra Rufino sobre a relevância e as tendências dos projetos pedagógicos de curso que incorporam a extensão curricularizada e a extensão tecnológica como estratégias pedagógicas. Essas iniciativas foram apresentadas como ferramentas para promover metodologias ativas e projetos integradores, visando ao desenvolvimento de competências profissionais e sociais (hard e soft skills). Além disso, foram discutidas experiências nacionais, desafios enfrentados e os resultados alcançados. O sétimo capítulo destaca as ações de promoção da saúde no ensino superior, enfatizando sua crescente relevância em organizações de saúde e universidades. Aborda as iniciativas do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) para integrar saúde e educação, visando formar cidadãos críticos e conscientes, além de explorar futuras possibilidades no contexto acadêmico. O livro Engenharia e Sociedade: Humanidades em Debate, resultante do I Ciclo de Debates Engenharia e Sociedade, organizado por Fábio Crocco e Natália Jodas pode ser acessado através do seguinte link: https://www.letraria.net/engenharia-e-sociedade/ Sublinhamos, por fim, que Engenharia e Sociedade: Humanidades em Debate (Volume II) é um livro elaborado de forma colaborativa, mediante um processo de análise e discussão de temáticas selecionadas pelo Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (IEF-H/ITA), para valorizar o diálogo entre distintas áreas do conhecimento e materializar uma produção teórica que trilha o caminho da inter e transdisciplinaridade. https://www.letraria.net/engenharia-e-sociedade/ 10 Este livro reflete o esforço coletivo para integrar as humanidades no contexto da engenharia, uma prática cada vez mais necessária diante dos desafios e complexidades do mundo contemporâneo. A engenharia, tradicionalmente voltada para a solução de problemas técnicos e concretos, está cada vez mais envolvida em questões que demandam reflexão ética, social e política. Em um mundo globalizado e tecnologicamente avançado, as decisões tomadas por engenheiros têm repercussões amplas, não apenas no plano técnico, mas também nas esferas sociais, culturais e ambientais. A proposta de incluir as humanidades no processo formativo da engenharia é um reconhecimento de que as soluções tecnológicas não podem ser desassociadas das implicações que elas têm para as pessoas e o meio ambiente. A interseção entre engenharia e humanidades não só contribui para a formação de profissionais mais críticos e responsáveis, mas também promove uma visão mais holística e humanizada da tecnologia. A transdisciplinaridade se apresenta como uma chave importante para a construção de soluções inovadoras e sustentáveis, pois ela propõe uma abordagem que ultrapassa as fronteiras tradicionais entre disciplinas. Em vez de buscar respostas isoladas em um único campo do saber, a transdisciplinaridade foca na integração de diferentes áreas de conhecimento para enfrentar problemas complexos que exigem múltiplas perspectivas. Essa abordagem permite que se compreenda melhor as interconexões entre a técnica, a sociedade e o meio ambiente, oferecendo novas formas de pensar e agir em um contexto de rápida evolução científica e tecnológica. Boa leitura! Os organizadores | Referências CROCCO, F. L. T.; JODAS, N. (org.). Engenharia e Sociedade: Humanidades em Debate. 1. ed. Araraquara: Letraria, 2024. v. 1. Disponível em: https://www.letraria.net/ engenharia-e-sociedade/. Acesso em: 15 abr. 2025. https://www.letraria.net/engenharia-e-sociedade/ https://www.letraria.net/engenharia-e-sociedade/ 1. Feminismo e igualdade de gênero no século XXI: reflexões de uma acadêmica e ativista dos direitos humanos2 Silvia Pimentel3 doi.org/10.5281/zenodo.15198001 2 Palestra realizada no Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, em São José dos Campos – SP, em 09 de outubro de 2024. 3 Professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde ocupa o cargo de Coordenadora do Núcleo de Direito Constitucional da Pós-Graduação em Direito da PUC/SP e representante docente da Faculdade de Direito da PUC/São Paulo no CEPE – Conselho de Ensino e Pesquisa. https://doi.org/10.5281/zenodo.15198001 12 Inicio agradecendo, com muito gosto, o convite para conversar com professoras, professores, alunas e alunos da graduação e pós-graduação e servidores do Instituto de Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Agradeço a apresentação que fizeram da minha trajetória acadêmica e militante pelos Direitos Humanos das Mulheres, na perspectiva da interseccionalidade de gênero, raça, classe e sexualidade. E, se me permitem observar: sou uma acadêmica feminista histórica, desde meados da década de 70, e meu legado está gravado em artigos e livros, inclusive, na Constituição Federal de 1988, no Código Civil de 2002 e na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Também, no Título IV “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual” do Código Penal vigente. Vale frisar que, até 2009, era redigido como “Crimes Contra os Costumes”. Em nosso Brasil, tão belo, tão grande, tão rico, mas tão desigual, importa se queremos contribuir a um mundo melhor e mais justo que consideremos a grande diversidade da nossa população. Se queremos o bem comum, isto é, o bem de todas as pessoas, importa reconhecer as imensas disparidades raciais, socioeconômicas, culturais e políticas que impactam, desigualmente, as vidas de cada brasileira e brasileiro. Importante dizer que a grande maioria da plateia de minha fala é masculina, talvez 90%. Assim, quero cumprimentar as jovens e corajosas mulheres por estarem cursando o ITA, em forte minoria. Ao mesmo tempo, quero desejar que sejam muito sábias e firmes em suas atitudes, pois, sem dúvida, nem todos os jovens estudantes foram educados para reconhecer o valor de colegas do sexo feminino, nem para saber interagir com vocês, com o máximo de respeito, amizade e coleguice. Aos jovens rapazes, eu os cumprimento convidando-os, de coração, a serem críticos a uma série de bobagens, ignorâncias e estereótipos que existem em nossa sociedade e que não os reproduzam. Como por exemplo: “os meninos são mais racionais, portanto mais inteligentes, e as meninas são mais emocionais e menos inteligentes”. Desejo a vocês moças e rapazes que saibam viver o século XXI, experienciando os seus avanços, ao mesmo tempo em que lutem contra suas injustiças, estereótipos, preconceitos e violências. Face à complexidade dos desafios enfrentados pela humanidade, aqueles que se comprometem com uma existência mais digna a todas as pessoas percebem-se eticamente compelidos a AGIR nesse sentido. Espero que minha presença e fala, hoje, sejam recebidas como um convite ao pensar crítico e ao agir consciente, indo além de nossas individualidades, sabendo respeitar o OUTRO. 13 O feminismo é, muitas vezes, mal compreendido como um movimento contra os homens. Na verdade, a luta feminista propõe-se a desafiar a estrutura patriarcal de opressão, ainda vigente, que perpetua as desigualdades de gênero, prejudicando tanto mulheres quanto homens, embora as mulheres de forma brutal. Nesse sentido, a luta feminista fundamenta- se na busca pela estruturação de uma sociedade mais isonômica e inclusiva. O patriarcado “na definição feminista, [...] [é] o sistema de dominação-exploração das mulheres, que as subordina aos homens, e que se sustenta na ideologia de supremacia masculina, a qual chamamos de machismo” (Pimental; Di Giorgi; Mendes, 2024, p. 49). O patriarcado tem se remodelado historicamente, respondendo às exigências das diferentes formas de produção e da política. Vale ressaltar o salto ocorrido entre a fase do pré- mercantilismo, do final da Idadetecnológico, sem abrir espaço para que outros sujeitos ou instituições possam definir outros padrões ou soluções tecnológicas. Dentro desse contexto, o presente trabalho discute as formas de modulação da chamada soberania digital, isto é, a autonomia que um Estado possui sobre os seus dados, informações e infraestrutura digitais, bem como a sua capacidade de garantir que suas políticas e regulamentações sobre o tema sejam aplicadas em seu território. Partindo- se de uma revisão bibliográfica e de um levantamento documental legislativo, este capítulo perpassa importantes conceitos atrelados à temática para desembocar propriamente na análise do cenário brasileiro e, assim, apresentar os principais marcos regulatórios nacionais tocantes às tecnologias digitais e refletir sobre os desafios de ordem econômica, política, cultural e laboral a serem enfrentados pelo Brasil. Ao final, foram retratados caminhos para a construção de tecnologias digitais territorializadas aos interesses de comunidades e povos. Palavras-chave: Soberania digital; Brasil; Marcos regulatórios; Redes comunitárias. | Introdução Neste início de século XXI, o caráter estrutural e ubíquo da digitalização e da automatização de processos decisórios resulta na transformação de todos os âmbitos da vida. A produção, o trabalho, o consumo, a política, a cultura, a geração de conhecimento, a educação e a sociabilidade, por exemplo, são elementos basilares da sociedade que passam a operar com base nessa nova infraestrutura sociotécnica. Longe de questionar o capitalismo, a nova lógica instaura uma reestruturação político-econômica enquanto nova forma de acumulação de capital baseada em dados, que se entranha em todas as atividades econômicas, políticas e culturais e remodela seus modus operandi e, consequentemente, a base da tomada de decisões individuais e sociais. Portanto, a importância das tecnologias digitais e as disputas político-econômicas globais relacionadas ao desenvolvimento de meios produtivos com base em ciência e tecnologia, na atualidade, nos impõe a reflexão das condições e dos desafios relacionados à soberania digital no Brasil. Por esse motivo, este capítulo tem o propósito de discutir os principais aspectos relacionados à noção de soberania digital a fim de investigar a sua aplicação no contexto brasileiro. Para tanto, são estudados os principais marcos regulatórios nacionais atrelados às 74 tecnologias digitais e, conjuntamente, os desafios relacionados à soberania digital no território brasileiro. E, ainda, debatidas algumas iniciativas que visam construir tecnologias autônomas e livres do colonialismo digital, com o intuito de demonstrar caminhos convergentes e frutíferos sobre o tema. A metodologia de pesquisa adotada consiste na revisão bibliográfica nacional e internacional, localizada em obras literárias e periódicos, com vistas a delimitar os conceitos relacionados à soberania, à soberania digital e às redes comunitárias. Em complemento, realiza-se levantamento documental para a análise e discussão do arcabouço jurídico nacional relacionado à regulação das tecnologias digitais. Nesse ponto, os bancos públicos oficiais, responsáveis por abrigar as leis e os projetos de leis federais (Câmara dos Deputados e Senado Federal) e por compilar informações e dados históricos sobre órgãos e entidades públicas (documentos publicados pelo governo federal) são fontes primárias de consulta. E, ainda, para compor a abordagem das iniciativas voltadas à criação de tecnologias autônomas, são coletadas informações situadas em páginas de organizações não governamentais e entidades privadas pertinentes. Este capítulo está organizado em três partes. Na primeira parte são traçadas as principais características vinculadas à soberania, partindo de definições oriundas da Ciência Política e do Direito para chegar ao conceito de soberania digital, termo de origem mais recente, uma vez que decorrente de toda a transformação vivenciada pela digitalização da sociedade no século XXI. Coube à segunda seção esboçar um panorama das principais normas jurídicas relacionadas ao uso e à aplicação das tecnologias digitais no cenário brasileiro, quais sejam, da Lei Carolina Dieckmann, do Marco Civil da Internet, da Lei Geral de Proteção dos Dados Pessoais (LGPD) e dos projetos de lei que almejam regrar a Inteligência Artificial no Brasil. Ainda nesse tópico, comentam-se os desafios ligados ao fortalecimento da soberania digital no contexto brasileiro, em vista dos dilemas relacionados às perdas e às desigualdades econômicas; a não raros casos de espionagem e influência política e legislativa; à fragilidade a que estão sujeitas as pesquisas desenvolvidas pelas universidades e órgãos ligados à ciência e tecnologia; e à afetação da capacidade produtiva e da oferta de empregos industriais e tecnológicos. Na última parte são expostos movimentos e as experiências que vêm se mostrando resistentes à hegemonia digital do Norte Global, sobretudo por ansiar desenvolver tecnologias voltadas às particularidades e interesses de uma determinada coletividade, tendo por base a participação ativa e colaborativa das comunidades e atores sociais comprometidos nessas ações. 75 1 Soberania digital: breves contornos Soberania é um conceito da ciência política que surge com o Estado moderno e está umbilicalmente ligado às características elementares do Estado. Em sentido lato, o conceito político-jurídico de Soberania indica o poder de mando de última instância, numa sociedade política e, consequentemente, a diferença entre esta e as demais associações humanas em cuja organização não se encontra este poder supremo, exclusivo e não derivado. Este conceito está, pois, intimamente ligado ao de poder político: de fato a Soberania pretende ser a racionalização jurídica do poder, no sentido da transformação da força em poder legítimo, do poder de fato em poder de direito. Obviamente, são diferentes as formas de caracterização da Soberania, de acordo com as diferentes formas de organização do poder que ocorreram na história humana: em todas elas é possível sempre identificar uma autoridade suprema, mesmo que, na prática, esta autoridade se explicite ou venha a ser exercida de modos bastante diferentes (Bobbio; Matteucci; Pasquino, 1998, p. 1179). Na perspectiva do Direito, a soberania exprime o mais alto poder do Estado, a qualidade de este poder supremo impor-se nos âmbitos interno e externo (Bonavides, 2018, p. 119). Sob o ângulo interno, corresponde ao controle que o Estado tem sobre o território e a população, bem como a superioridade do poder político frente aos demais poderes sociais que lhe ficam sujeitos, de forma mediata ou imediata. Sob o prisma externo, é a manifestação independente do poder estatal perante outros Estados. Ainda dentro de uma concepção puramente jurídica, a soberania seria o poder de decidir em última instância sobre a atributividade das normas, sobre a eficácia do direito, sendo ela um poder jurídico utilizado para fins jurídicos (Dallari, 1998, p. 32). A soberania pode ser compreendida, em linhas gerais, como a capacidade de o Estado criar e executar a sua própria legislação. O debate em torno deste conceito não deve ser feito de forma isolada, à medida que a soberania pode estar presente nas mais diversas formas de atuação do Estado, sejam elas autocráticas ou mesmo autoritárias. Por isso, a construção da soberania fundada nas teorias democráticas, base da qual partimos, está alinhada à doutrina da soberania popular, na qual o povo participa do Estado e é o elemento formador da vontade deste, sendo que a atribuição da titularidade da soberania ao Estado deve atender às exigências jurídicas, ao mesmo tempo em que preserva o fundamento democrático (Dallari, 1998, p. 33). 76 A temática da soberania digital nasce da necessidade de discutir se os Estados estão, de fato, impondo o seu poder político em relação à influência crescente dos agentes econômicosdetentores das tecnologias digitais. Mas, é preciso dizer, já na segunda metade do século XX, isto é, bem antes da ingerência exercida propriamente pelas big techs, os Estados passaram a ser impactados em suas soberanias pelos efeitos da globalização. Nesse ponto, ao passo que o livre comércio se generalizou, as disputas pelo mercado se tornaram mais acirradas e as empresas transnacionais passaram a atuar como sistemas integrados, os processos decisórios nacionais foram submetidos a pressões desregulamentadoras, sob a forma de privatização de serviços essenciais, alienação de empresas públicas, flexibilização da legislação trabalhista, redução dos encargos sociais, entre outros (Faria, 2008, p. 31). É claro que o impacto dessas mudanças não foi homogêneo, mas variável de acordo com as condições culturais, lutas sociais internas e estratégias adotadas pelos governos. Contudo, é possível afirmar que os Estados, em graus distintos, passaram a sofrer interferência cruzada dos mais variados atores transnacionais que, diante do progressivo domínio da lógica financeira, tornaram as fronteiras territoriais mais porosas e atenuaram a autonomia estatal para o “mercado” (Faria, 2008, p. 32). Acompanhamos, desde as décadas finais do século XX, a revolução microeletrônica e o avanço das tecnologias digitais, mas, nos últimos anos, presenciamos o avanço dos sistemas algorítmicos e de inteligência artificial (IA) baseadas em machine learning, com destaque para o modelo de aprendizado de máquina Large Language Model (LLM). Esse modelo, treinado para aprender a partir de enormes bases de dados, gera, por exemplo, linguagem de conversação com humanos e contexto para a obtenção de respostas em plataformas de IA generativas. As tecnologias de IA de conversação ou as que criam imagens, como ChatGPT, Gemini, Copilot, DALL-E e Midjourney, dependem de um LLM para funcionar. Essa rede neural torna os sistemas de IA capazes de analisar informações em bases de dados e convertê-las em respostas de texto, imagem, vídeo, código de programação e outras. O avanço das inúmeras tecnologias digitais tem promovido transformações significativas na produção, no trabalho, na política, na cultura, na pesquisa científica e nas relações sociais como um todo. Na atualidade, elas estruturam os pilares político-econômicos da nossa sociedade, pois remodelam a infraestrutura da tomada de decisões (individuais e coletivas) e criam uma nova forma de acumulação de capital baseado em dados, que se entranha em todas as atividades econômicas e remodela seus modus operandi. Apesar de sua capacidade socialmente reestruturadora, o controle do seu desenvolvimento está concentrado em países desenvolvidos e, mais especificamente, é guiado direta e 77 indiretamente pelas chamadas big techs19. Estas são grandes empresas de tecnologia que atuam globalmente, que dominam o mercado digital e que estruturam o capitalismo de vigilância a partir da extração, predição e venda de dados (Zuboff, 2021, p. 13). Estes processos estão relacionados aos modelos de negócio pautados em previsões estatísticas de ações e consumo futuro, o que Zuboff (2021) denomina de mercados de comportamentos futuros. Nessa direção, conforme destacado no Manifesto pela Soberania Digital nas Universidades Públicas Brasileiras, Quem controla o software, o hardware e a conexão de rede controla o mundo digital. O controle sobre as interfaces digitais também modula as possibilidades de interação entre todos, porque as linhas dos códigos funcionam como leis que estipulam regras para a relação entre indivíduos. Quem controla o armazenamento e a troca de informações dispõe de meios para extrair valor e gerar lucro com o uso delas. Assim, aquele que detém e vende essas tecnologias possui mais poder do que quem as compra, pois o usuário não tem poder de alterar o modo como o código está escrito ou como o serviço será executado (Moraes; Silveira, 2023). Esse poder concentrado nessas grandes empresas monopolistas e em seus países de origem, orientado para a captura massiva de dados e prestação de serviços tecnológicos, implica em dependência tecnológica dos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Essa dependência nos impõe sérios desafios, pois impacta em nossa lógica produtiva, econômica, laboral e na autonomia, autodeterminação e controle de nossos próprios dados e processos informacionais. Soma-se a isso a influência das plataformas, a partir de suas infraestruturas e interesses, nas nossas decisões a partir de vários níveis de influência e manipulação (Zuboff, 2021; Rouvroy; Berns, 2015). Os níveis de influência e manipulação são diversos e se fundamentam indiretamente na estrutura técnica de funcionamento das plataformas e de serviços digitais e diretamente em posicionamentos e ações políticas das próprias empresas. Dos algoritmos de interesse, que criam bolhas, polarizações e radicalizações políticas, do impulsionamento de conteúdo induzido externamente e da lógica sensacionalista de impulsionamento de mensagens mais clicadas, relacionados à economia da atenção e ao impulsionamento de fake news, ao lobby político das big techs utilizando as próprias redes de suas plataformas e ao 19 GAFAM é o acrônimo de gigantes da Web, Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, que são cinco grandes empresas dos EUA, nascidas nos últimos anos do século XX ou início do século XXI, que dominam o desenvolvimento e o mercado digital. 78 lobby tradicional no Congresso para a formulação de leis favoráveis aos seus interesses econômicos. O aumento da conexão digital, sobretudo por meio dos smartphones e das plataformas privadas de redes e mídias sociais, ampliou o uso cotidiano das TDICs nas mais variadas práticas individuais e coletivas, abrindo espaço para a emergência de modelos de negócios baseados na coleta e tratamento da imensa quantidade de dados digitais, popularmente denominados de Big Data (Penteado; Pellegrini; Silveira, 2023, p. 22). Os dados extraídos e minerados nas plataformas digitais constituem ativos do capitalismo financeiro global, os quais são controlados por grandes corporações sediadas no Norte Global, conforme detalham Claudio Penteado, Jerônimo Pellegrini e Sérgio Amadeu Silveira (2023, p. 23), a saber: O colonialismo de dados produz novas relações de subjugação dos Estados nacionais e do mundo ao poderio das grandes empresas. O Estado é capturado pela lógica das grandes empresas de tecnologia. Além de controlar os dados, essas corporações dominam o processo de desenvolvimento tecnológico, definindo os padrões e os modelos de soluções tecnológicas. A soberania digital diz respeito à autonomia e ao controle que um país possui sobre seus próprios dados, informações e infraestrutura digital, garantindo que suas políticas, leis e regulamentações sejam aplicadas sem interferências de outras nações, de empresas estrangeiras ou de infraestruturas externas. Isso envolve o domínio e a gestão de recursos tecnológicos e humanos essenciais, bem como a capacidade de definir normas, regulamentações e políticas relacionadas às tecnologias digitais. Em outras palavras, soberania digital tem a ver com a capacidade de o Estado conseguir atuar estrategicamente e legislar sobre a atuação das empresas de tecnologia em seu território, ou seja, regular as relações técnicas e tecnológicas que começam a surgir a partir de usos de novas tecnologias e, ao mesmo tempo, de ter autonomia acerca da sua própria infraestrutura digital. 2 Soberania digital no Brasil Em vista das duas perspectivas relacionadas à noção de soberania digital, isto é, à capacidade de o Estado criar normas jurídicas sobre o desenvolvimento, uso e aplicação das tecnologias digitais em seu território e da sua habilidade estratégica de edificar uma infraestrutura digital própria, o presente tópico tem o objetivo de discutir os principais 79 marcos regulatórios brasileiros relacionados às tecnologias digitais e discutir osdesafios brasileiros relacionados à imposição da soberania digital em seu território. Sem pretender esgotar o esquadrinhamento jurídico e a análise crítica, a ideia é traçar um panorama preliminar sobre a temática da soberania digital com enfoque no contexto brasileiro. 2.1 Legislação brasileira sobre tecnologias digitais20 A emergência da era Digital, aqui compreendida como o período histórico em que a vida social, as relações de trabalho e boa parte das interações humanas passam a ser determinadas por algoritmos e operações digitais, acarreta novos desafios ao Direito (Bittar, 2019, p. 938). Diversos são os desdobramentos ocasionados da relação entre o Direito e a Tecnologia, sendo um deles a própria criação de novas especialidades jurídicas, como é o caso do surgimento do Direito Digital, ou mesmo a ressignificação trazida para a Teoria do Direito, especialmente nos capítulos mais sensíveis às novas fronteiras das transformações sociais (Bittar, 2019, p. 940). Somado a isso, visualizamos também a reconfiguração de diplomas normativos em face das mutações sociais provocadas direta e indiretamente pela difusão tecnológica, a exemplo da legislação trabalhista, fortemente modificada em 201721, para acomodar novos formatos de contratação (e precarização) do trabalho; ou mesmo o Código de Defesa do Consumidor (CDC), alvo de constantes mudanças no intuito de abrigar as novas figuras trazidas pelo comércio digital22. Digno de nota assinalar também o quanto as TICs expandiram-se no âmbito do direito processual, alavancados pela pandemia da covid-19, estabelecendo um novo paradigma para a realização de audiências, sessões e comunicações processuais pelo meio eletrônico23. Concomitantemente, brotam ainda situações não regulamentadas pelo ordenamento jurídico brasileiro e que deixam desprotegida uma miríade de sujeitos e grupos, a citar os efeitos do uso da Inteligência Artificial (IA) no âmbito dos direitos autorais; assim como os impactos provocados pelas infraestruturas de IA na natureza. 20 O presente tópico não pretende esgotar a análise de todos os marcos regulatórios brasileiros que tangenciam o uso e a aplicação da tecnologia no território nacional, mas visa comentar algumas das normas jurídicas mais importantes sobre a temática. 21 Cf. Lei nº 13.467/2017 – responsável por alterar consideravelmente a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Somado a isso, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018, reconhecendo a licitude da terceirização do trabalho para as atividades-fim. Cf. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=388429. Acesso em: 01 nov. 2024. 22 Cf. Projeto de Lei nº 3514/2015 (apensado ao PL nº 104/2011), situado na Câmara dos Deputados, que visa aperfeiçoar as disposições gerais do CDC e dispor sobre o comércio eletrônico, entre outras mudanças. Cf. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=2052488. Acesso em: 01 nov. 2024. 23 Sobre esse assunto: Resolução CNJ (Conselho Nacional de Justiça) nº 354/2020, que regulamenta a realização de audiências e sessões por videoconferência e telepresenciais e a comunicação de atos processuais por meio eletrônico nas unidades jurisdicionais de primeira e segunda instâncias da Justiça dos Estados, Federal, Trabalhista, Militar e Eleitoral, bem como nos Tribunais Superiores, à exceção do Supremo Tribunal Federal. Cf. https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3579. Acesso em: 01 nov. 2024. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=388429 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2052488 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2052488 https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3579 80 É notável a complexidade das repercussões jurídicas acarretadas pelo uso das tecnologias. Nesse sentido, sublinha-se que as variadas formas de violação aos direitos fundamentais impulsionaram, de modo mais contundente, a construção de marcos regulatórios específicos para lidar apropriadamente com essa temática. Isso porque, o desrespeito recorrente aos direitos de personalidade (art. 5º, X, Constituição Federal24), como os direitos de intimidade, vida privada, honra e imagem, nome, à semelhança dos direitos de liberdade dos cidadãos (art. 5º, IV e IX, CF25), sobretudo a liberdade de expressão, levaram à necessidade de discussão e publicação de leis federais para tutelar o uso e a aplicação das diversas tecnologias digitais no território nacional. Um dos primeiros passos nesse caminho ocorreu com a publicação da Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/2012), a qual inseriu dispositivos no Código Penal brasileiro26 com a intenção de imputar crimes e delitos informáticos a fatos até então desprovidos de qualquer respaldo jurídico. A atriz, que deu nome à lei, teve seu computador pessoal invadido, comportamento que levou à divulgação de diversas fotografias íntimas da artista nas redes sociais. A repercussão do caso foi determinante para a criação de tipologia penal que pudesse garantir maior segurança virtual, mediante a criminalização da invasão de celulares, computadores ou sistemas informáticos para a aquisição, adulteração ou destruição de dados com finalidades ilícitas. Com uma década de existência, o marco civil da internet, regrado pela Lei nº 12.965/2014, foi pioneiro no propósito de estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Diferentemente de outros países, cuja trilha natural foi tratar da regulação da internet criminalmente, o debate brasileiro despontou com a ideia de pavimentar uma moldura de direitos e liberdades civis, traduzindo os princípios fundamentais da Constituição Federal para o território da internet (Lemos, 2014, p. 4). A construção da norma jurídica passou pela discussão no âmbito de uma plataforma colaborativa, a qual envolveu indivíduos, usuários, bibliotecários, tradutores, empresas de tecnologia, provedores de serviços de internet, empresas de telecomunicações, radiodifusores, associações de classe, entre 24 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. 25 Art. 5º [...] IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; 26 Foi incluído o artigo 154-A no Código Penal, o qual preceitua o seguinte: “Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa [...]. 81 outros, sendo que, após tal processo, o Projeto de Lei (PL)27 ficou paralisado na Câmara dos Deputados até o advento do caso Snowden, em 2013 (Lemos, 2014, p. 6-7). Em linhas gerais, o marco civil da internet cuidou de disciplinar o uso da internet calcado nos direitos fundamentais, especialmente na liberdade de expressão, na privacidade, na igualdade e na livre iniciativa, além de enfatizar a neutralidade da rede como uma de suas diretrizes (art. 3º, IV) e dever dos responsáveis pela transmissão, comutação ou roteamento (art. 9º). Ademais, previu a responsabilidade civil subjetiva28 dos provedores de aplicações da internet a partir da publicação de conteúdos de terceiros (art. 19). A lei exige decisão judicial para impor a retirada de teor considerado ofensivo e não a meranotificação, com vistas a preservar a liberdade de expressão e evitar a censura prévia de conteúdo supostamente violador, sendo o Poder Judiciário a instância legitimada para definir eventual ilicitude do conteúdo questionado (Brega, 2023, p. 8). Por outro lado, pondera-se que tal previsão abre brechas para que, muitas vezes, diante da ocorrência de fatos graves, como a disseminação de conteúdo falso, não haja medidas preventivas eficazes e possibilita, não raras vezes, a perpetuação de crimes no tempo (Meireles, 2023, p. 19). Essa e outras razões fundamentam a discussão da constitucionalidade do artigo 19 da lei comentada no Supremo Tribunal Federal (STF)29. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), instituída pela Lei nº 13.709/2018, inspirou-se no marco civil da internet em relação ao processo de construção normativo ter sido também permeado pela consulta pública. Além disso, com a publicação do Regulamento Geral Europeu sobre a Proteção de Dados (General Data Protection Regulation – RGPD), houve uma maior mobilização legislativa nacional para acelerar a sua aprovação (Meireles, 2023, p. 16). Pode-se afirmar que a LGPD regulamentou as formas de proteção dos dados pessoais da pessoa natural e, também, induziu o reconhecimento do direito fundamental à proteção dos dados pessoais no meio digital, por meio da introdução desse direito no rol do catálogo dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LXXIX, CF/8830). 27 A lei teve origem no PL nº 2.126/2011 e converteu-se em lei em 23 de abril de 2014. Mas o debate em torno do Marco Civil teve suas origens em 2007, sendo que, em 2009, foi encabeçado pelo governo federal, por meio da atuação do Ministério da Justiça. Cf. Brega (2023, p. 7). 28 A responsabilidade civil subjetiva é aquela que exige a demonstração de culpa do agente causador do dano alegado. Tomando por base a teoria do Direito Civil majoritariamente aceita no Brasil, os pressupostos exigidos para a verificação dessa responsabilidade são: conduta culposa, nexo causal e dano. Cf. Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2023. 29 Até o fechamento deste trabalho, o Supremo Tribunal Federal ainda não tinha finalizado o julgamento dos Recursos Extraordinários 1037396 e 1057258, os quais discutem, entre outros pontos, a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Cf. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/marco-civil-da-internet-relator-considera-inconstitucional-exigencia-de-ordem-judicial-para- retirada-de-conteudo/. Acesso em: 13 dez. 2024. 30 Esse direito foi introduzido por meio da Emenda Constitucional nº 119/2022. Nesse sentido, prevê o art. 5º, LXXIX – “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”. https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5160549 https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5217273 82 O dado pessoal pode ser compreendido como qualquer informação relacionada à pessoa natural que seja identificada ou identificável (art. 5º, I, LGPD). Na prática, isso quer dizer que são informações que podem identificar diretamente uma pessoa (dados diretos) ou informações que, quando associadas a determinado contexto, possam identificar uma pessoa (dados indiretos). Destaca-se que a LGPD é uma norma jurídica que visa proteger os dados (diretos e indiretos) das pessoas naturais, e não das pessoas jurídicas, em meios físicos ou digitais (Teixeira, 2024, p. 108). A LGPD criou a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), autarquia de natureza especial, responsável por zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento da norma em todo o território nacional (art. 5º, XIX). Inicialmente, a ANPD estava vinculada diretamente à Presidência da República, contudo, a Lei nº 14.460/2022 retirou tal vinculação, com o propósito de trazer maior autonomia para a instituição31. Nesse sentido, relevante pontuar que há políticas públicas que são formuladas, implementadas, fiscalizadas e avaliadas pela própria Administração, de forma mais ou menos descentralizada, como ocorre, em muitos aspectos, nas searas da educação e da saúde; e outras, como é o caso da LGPD que, pela necessidade de alta especialização técnica, proteção diante de eventuais inflexões políticas, rápida mutação ou mesmo pela exigência de atuação mais ágil, recomendam arranjos institucionais próprios, distintos, tal como se estabeleceu com a ANPD (Vasconcelos; De Paula; 2023, p. 701). Outrossim, a ANPD é composta pelo Conselho Diretor32; pelo Conselho Nacional de Proteção dos Dados Pessoais e da Privacidade – CNPD33; pela Corregedoria34; pela Ouvidoria35; pela Procuradoria 31 Importante dizer que, embora a concepção original sobre a Autoridade Nacional estivesse ligada à ideia de um órgão centralizado, independente e autônomo para gerir o assunto, na prática, pouco antes do final da gestão do então presidente Michel Temer, foi editada uma Medida Provisória (MP nº 869/2018), cujo conteúdo original alterou dispositivos da LGPD, a fim de criar uma Autoridade vinculada à Administração Pública Direta e integrante da Presidência da República. Ou seja, o modelo proposto originalmente pela referida MP trazia uma Autoridade com baixa independência e autonomia. Em meio às críticas recebidas, após amplo processo legislativo no Congresso Nacional, o desenho legal da ANPD manteve sua vinculação à Presidência da República, mas apontou para uma natureza transitória, a qual pudesse a ANPD ser transformada em autarquia após dois anos. Assim, com a edição da Medida Provisória nº 11.124/2022, posteriormente convertida na Lei nº 14.460/2022, concretizou-se a independência técnica, administrativa e orçamentária da ANPD, conferindo a ela a natureza jurídica de autarquia em regime especial (Vasconcelos; De Paula; 2023, p. 712 e ss). 32 É o órgão máximo da entidade, integrado por cinco diretores, os quais são escolhidos pelo Presidente da República e sabatinados pelo Senado Federal, com mandato de quatro anos. 33 O CNPD é integrado por membros da sociedade civil e do Poder Público, sendo um órgão consultivo da ANPD, composto por 23 membros, sendo que, em 2023, o conselho estabeleceu a sua 2ª formação. Nesse mesmo ano, o Conselho Diretor da ANPD deu início ao processo de seleção de conselheiros representantes da sociedade civil. Cf. 2ª formação CNPD: https://www.gov.br/anpd/pt-br/ cnpd-2/segunda-formacao-cnpd-2023/selecao-de-conselheiros-do-cnpd-2023. Acesso em: 10 nov. 2024. 34 A corregedoria é composta por um membro nomeado(a) pelo(a) Diretor Presidente da ANPDA. A atual corregedora da ANPD foi reconduzida ao seu cargo por meio da Portaria nº 39 de 27 de março de 2024. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/acesso- a-informacao/institucional/quem-e-quem/anexo-1-portaria-de-reconducao.pdf. Acesso em: 10 nov. 2024. 35 A ouvidoria é composta por um membro nomeado(a) pelo Diretor Presidente da ANPD. A atual ouvidora da ANPD foi designada ao seu cargo por meio da Portaria nº 27, de 15 de março de 2023. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-27-de-15- de-marco-de-2023-470784623. Acesso em: 10 nov. 2024. https://www.gov.br/anpd/pt-br/cnpd-2/segunda-formacao-cnpd-2023/selecao-de-conselheiros-do-cnpd-2023 https://www.gov.br/anpd/pt-br/cnpd-2/segunda-formacao-cnpd-2023/selecao-de-conselheiros-do-cnpd-2023 https://www.gov.br/anpd/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/quem-e-quem/anexo-1-portaria-de-reco https://www.gov.br/anpd/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/quem-e-quem/anexo-1-portaria-de-reco https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-27-de-15-de-marco-de-2023-470784623 https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-27-de-15-de-marco-de-2023-470784623 83 Federal Especializada36 e outras unidades administrativas e especializadas. Ainda é cedo para apontar como a ANPD tem desempenhado suas múltiplas funções, todavia, o olhar crítico da sociedade quanto à sua atuação é fundamentalpara que sua estrutura e ações possam ser constantemente discutidas, reformuladas e melhoradas. É válido comentar pontualmente alguns aspectos referentes à regulamentação do uso da Inteligência Artificial (IA) no Brasil. O Projeto de Lei (PL) nº 2.338/2023 teve sua aprovação recente no Senado Federal e agora tramita na Câmara dos Deputados37 para que possa se tornar lei. Destacamos alguns dos pontos trazidos na sua redação, como a necessidade de as empresas informarem, já no treinamento de sistemas de IA, quais conteúdos protegidos pela Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998) foram utilizados; a possibilidade de os autores vetarem o uso de suas obras por tais sistemas; e a permissão do uso de obras protegidas para fins de pesquisa, educação, jornalismo e preservação cultural, desde que não haja a finalidade comercial ou a concorrência com a comercialização da obra original. O texto também prevê a criação do Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA), o qual terá caráter autorizativo e com atribuições do Executivo, dependente de regulamentação após a aprovação da norma. 2.2 Desafios nacionais para a soberania digital Além do arcabouço jurídico, a soberania digital leva em conta a autonomia estatal para munir-se de infraestrutura digital. Nesse quesito, apresentamos alguns aspectos relevantes e dilemas pelos quais o Estado brasileiro vem enfrentando no presente. Movimentos acadêmicos e políticos38, preocupados com a soberania digital do Brasil, alertam sobre várias implicações do tema. Dentre elas, podemos citar as faces econômica, política, cultural e laboral: I – Face econômica: a ausência de soberania digital implica em perda de dados que são hoje insumos importantes e a base para a edificação de nossas próprias empresas e nossas próprias soluções tecnológicas. Ou seja, a concentração das ofertas de tecnologia por empresas transnacionais cria uma relação de dependência que reduz a diversidade do mercado e limita as ofertas produzidas no Brasil. De acordo com VanLear et al. (2020), a extração de dados do país gera perdas econômicas que poderiam ser evitadas e, além 36 A Procuradoria Federal Especializada é composta por um titular, cuja função principal é representar judicial e extrajudicialmente a ANPD, bem como de a assessorar juridicamente. 37 Cf. https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/12/10/senado-aprova-regras-para-inteligencia-artificial-no-brasil-com-identificacao- biometrica-para-auxiliar-em-prisoes.ghtml. Acesso em: 13 dez. 2024. 38 Alguns exemplos são a Carta ao Lula para criação do Programa de Emergência para a soberania digital, a Rede Pela Soberania Digital e o Manifesto pela soberania digital nas universidades públicas brasileiras. https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/12/10/senado-aprova-regras-para-inteligencia-artificial-n https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/12/10/senado-aprova-regras-para-inteligencia-artificial-n 84 disso, as tecnologias digitais e as soluções ofertadas pelas big techs não deveriam causar a excessiva evasão de divisas nem o agravamento das desigualdades socioeconômicas. II – Face política: a vigilância e a coleta de dados sensíveis da nossa população de agentes externos estão relacionadas a casos de espionagem e de influência e manipulação política/legislativa39. Dois casos exemplificam essa questão e articulam elementos políticos e econômicos: 1. a entrega de dados dos servidores públicos federais, civis e militares, que utilizam o chat do aplicativo do governo federal chamado SouGov para a IBM WATSON com o objetivo de prover o aprendizado de máquina da ferramenta de chat denominada ‘Watson’ (Silveira, 2023); 2. o contrato do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) (estatal de tecnologia responsável por 90% dos sistemas digitais do governo, como Fazenda, Tribunal Superior Eleitoral, Receita Federal, Tesouro Nacional e portal Gov.Br), com a Google para a criação de uma nuvem do governo. Esse stack de nuvem do Google, uma espécie de mini datacenter batizada como Google Distributed Cloud (GDC), é chamada de “nuvem soberana” por manter os dados no território nacional, porém continua sendo uma nuvem privada estruturada em soluções tecnológicas da big tech americana. III – Face cultural (educação, ciência e tecnologia): a partir das pesquisas realizadas pelo Observatório Educação Vigiada40, 83% das Instituições Públicas de Ensino Superior do país – locus de produção da maior parte da ciência e da tecnologia do país – têm seus e-mails institucionais alocados em servidores privados, localizados no exterior, e que são gerenciados por empresas envolvidas no lucrativo mercado de coleta, análise, comercialização de dados pessoais e prestação de serviços e oferta de ferramentas digitais. A Google (Alphabet, Inc.), o maior player desse mercado, armazena 74% dos e-mails institucionais das universidades públicas do país (Cruz et al., 2024). IV – Face laboral (trabalho, emprego e renda): o acirramento da competição e da desigualdade na produção tecnológica gera a ampliação da dependência tecnológica dos países em desenvolvimento e isso afeta tanto sua capacidade produtiva quanto a geração e a oferta de empregos industriais e tecnológicos, que são dotados de maior qualidade de renda e seguridade. A atuação das big techs se generaliza globalmente, mas hoje com maior ênfase nos países do Sul Global, que não possuem tecnologias digitais próprias, nem capital de risco para investimento no setor e, por isso, demandam esses serviços mais baratos 39 Essa questão foi exposta pelo ex-agente da CIA Edward Snowden, em 2013, e provocou um escândalo global ao evidenciar as ações de vigilância e espionagem que os EUA realizavam em sua própria população e em países da Europa e da América Latina utilizando servidores de empresas como Google, Apple e Facebook. No caso brasileiro, os dados trazidos à tona por Snowden demonstraram o monitoramento de conversas da própria presidente Dilma Rousseff na época com seus principais assessores. Importante destacar que, nos EUA, empresas americanas são submetidas ao Cloud Act e a outras leis que exigem sua fidelidade aos interesses do Estado norte-americano. 40 Mais detalhes ver: https://educacaovigiada.org.br/. https://educacaovigiada.org.br/ 85 das gigantes do mercado digital. Ao tornarem-se locus de consumo e não de produção tecnológica, os países do Sul Global assumem posição subalterna na Divisão Internacional do Trabalho (DIT) e concentram atividades laborais secundárias e menos qualificadas no setor digital, enquanto os países desenvolvidos, sede das grandes empresas, “concentram as atividades de comando e elaboração com tecnologias mais avançadas, demandando crescentemente mão-de-obra mais qualificada, que recebe maior salário e com condições mais favoráveis de trabalho” (Pochmann, 2007, p. 32). Dentre as atividades produtivas de comando e elaboração concentradas nos países desenvolvidos estão aquelas “vinculadas aos processos de concepção do produto, definição do design, marketing, comercialização, administração, pesquisa e tecnologia e aplicação das finanças empresariais” (Pochmann, 2007, p. 32). São, portanto, estas atividades e oportunidades que concentram os melhores empregos e estimulam a fuga de cérebros dos países periféricos em direção aos países do centro capitalista. 3 Projetos de soberania digital territorializadas e contextualizadas: caminhos O objetivo desta seção é apresentar algumas iniciativas e articulações que têm procurado criar ferramentas e tecnologias autônomas, isto é, voltadas a fortalecer a autodeterminação das comunidades e moldadas a partir das peculiaridades dos territórios envolvidos. Essa outra forma de construir a tecnologia, ou seja, em um movimento de dentro pra fora, exige conhecimentos acerca do seu ferramental, o que é possibilitado por meio da educação, a fim de que o processo de interação e criação de novas tecnologias não aconteça de forma passiva.Sob esse prisma, o uso da tecnologia ocorre em respeito às diferentes culturas e identidades e, por que não, como um instrumento de resistência ao próprio colonialismo digital. Uma das formas de se desenhar a tecnologia dentro de uma perspectiva independente é por meio das redes comunitárias, aqui definidas como aquelas inspiradas, construídas e geridas por cidadãos e organizações sem fins lucrativos, os quais combinam esforços e recursos para instanciar coletivamente infraestruturas de redes de comunicação (Micholia et al., 2018). Pessoas que residem em locais sem acesso à internet, telefone ou outro tipo de comunicação podem se unir com o propósito de pensar soluções para problemas comuns, como a concepção de uma infraestrutura de comunicação comunitária. A rede comunitária vai além da edificação de uma estrutura de tecnologia digital, pois ela tem como base, inclusive para reconhecimento do seu êxito, a participação ativa e o comprometimento das 86 pessoas encarregadas da manutenção dos equipamentos e da gestão da rede (Queiroz; Yadav; 2024, p. 2). Ressalta-se, nessa direção, a existência de documento orientador para auxiliar na construção de redes comunitárias (“Guide: Community Networks”41); instituições situadas nos continentes da América42, Ásia43 e África44, bem como entidades de natureza internacional45 que trabalham para promover e dar suporte a essas ações. Dentro dessa lógica, no Brasil, a COOLAB – Laboratório Cooperativo de Redes Livres – é uma iniciativa que fomenta infraestruturas autônomas de telecomunicação comunitária, por meio da capacitação técnica e da articulação coletiva do território. A COOLAB já desenvolveu projetos dessa tipologia em Monteiro Lobato/SP (Rede Comunitária Portal Sem Porteiras); Resende/RJ (Rede Comunitária de Fumaça); Campos/RJ (Provedores Comunitários); na Amazônia (transmissão de rádio digital) e na comunidade quilombola Kalungas (rede comunitária Kalunga)46. Um bom exemplo de iniciativa voltada à soberania dos dados é o trabalho realizado pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), em parceria com povos indígenas da Amazônia. Nesse contexto, está sendo desenvolvida uma plataforma SIG (Sistema de Informação Geográfica) para a coleta e o armazenamento de dados georreferenciados, referentes tanto às atividades do instituto quanto das organizações indígenas parceiras. No modelo tradicional de serviços digitais, é necessário recorrer a um servidor centralizado para hospedar esses conteúdos, o que envolve questões de oferta e demanda desse tipo de infraestrutura. Com frequência, as melhores opções de servidores encontram-se fora do Brasil, e, por razões econômicas, acaba-se optando por armazenar os dados em outro território. Assim, essas iniciativas se conectam com a ideia de tecnologia autônoma e a possibilidade de se repensar os protocolos de comunicação mediante a sua descentralização, já que a forma comumente estabelecida é centralizada em um único servidor. O Movimento DWeb47, por exemplo, reúne um conjunto de princípios, elaborado por comunidades de todo o mundo, para guiar a proposta de web descentralizada, sendo eles: i. tecnologia para agência humana; ii. distribuição dos benefícios; iii. respeito mútuo; 41 https://www.earthdefenderstoolkit.com/wp-content/uploads/2024/02/Guide-Community-Networks-3-PT-BR.pdf. 42 Citam-se Alter Mundi (Argentina); Colnodo (Colômbia); Coolab (Brasil); Nupef (Brasil); Instituto de Bem-Estar (Brasil); Comunidade de Telecomunicações Indígenas, AC (ICT AC) (México); Projeto Saúde e Alegria (Brasil). Cf. Queiroz e Yadav (2024). 43 Citam-se Soluções Alternativas para Comunidades Rural (ASORCOM) (Myanmar); BAIF em 2020 (Gram Marg Rural Broadband em 2019) (Índia); Fundação de Redes Comuns (Indonésia); Servelots (Índia). Cf. Queiroz e Yadav (2024). 44 Citam-se BOSCO, Uganda (Uganda); Centro de Tecnologia e Desenvolvimento da Informação (CITAD) (Nigeria); Centro de Juventude e Desenvolvimento (CYD) (Malawi); Juntos pela Diferença (República Democrática do Congo); Estamos indo para o Instituto (Quênia); Do it yourself (África do Sul). Cf. Queiroz e Yadav (2024). 45 Citam-se a Association for Progressive Communications; Rhizomatica; Internet Society e International Telecommunication Union. Cf. Queiroz e Yadav (2024). 46 Cf. https://www.coolab.org/quem-somos/. 47 Cf. https://getdweb.net/principles/. https://www.earthdefenderstoolkit.com/wp-content/uploads/2024/02/Guide-Community-Networks-3-PT-BR.pd https://www.coolab.org/quem-somos/ https://getdweb.net/principles/ 87 iv. humanidade; v. consciência ecológica. Conjuntamente, podem ser mencionados os seguintes protocolos descentralizados: O IPFS (InterPlanetary File System), por exemplo, permite o armazenamento de informações baseado no conteúdo, em vez de locais específicos, dificultando a censura e aumentando a resiliência da rede. O Hypercore/ Hyperdrive (anteriormente associado ao navegador Beaker) e o Dat Protocol (agora integrado ao Hypercore) proporcionam sincronização de dados ponto a ponto (P2P), facilitando a criação de aplicações colaborativas sem um intermediário central. O Matrix oferece um protocolo aberto para comunicação em tempo real e mensagens seguras entre diversos clientes, enquanto o Solid (Social Linked Data) permite que as pessoas controlem seus próprios dados, armazenando-os em “pods” pessoais. Por fim, o SSB (Secure Scuttlebutt) cria redes sociais descentralizadas, nas quais cada usuário armazena e compartilha seu próprio histórico, garantindo privacidade, autonomia e resistência à manipulação externa. | Considerações finais Em meio à ubiquidade da digitalização e da automatização na sociedade, este capítulo problematizou a forma como as big techs podem interferir na soberania dos Estados das comunidades e dos povos ao forjarem, muitas vezes, a regulamentação e a autodeterminação das nações sobre o uso das tecnologias digitais em seus territórios. Destacou-se, nesse contexto, os conceitos de colonialismo e soberania digitais como pano de fundo teórico para subsidiar uma discussão mais concreta sobre como o Brasil tem construído a sua legislação e se deparado com desafios de diferentes ordens sobre o tema. A revisão bibliográfica constituiu a base para entender os conceitos trabalhados ao longo das três seções, enquanto o levantamento documental foi o principal aporte metodológico utilizado para sistematizar os marcos regulatórios nacionais atrelados ao assunto. O estudo do contexto atrelado à noção de soberania digital permitiu averiguar que o desenvolvimento das tecnologias digitais está concentrado em países do Norte Global, onde se encontram as maiores empresas do mundo nesse campo, as quais, por sua vez, são responsáveis por dominar o mercado digital e impor, no âmbito dos países do Sul Global, seu modo de operar, vigiar, tratar e negociar dados e outros ferramentais tecnológicos. O grau de influência é amplo e diversificado, pois engloba desde algoritmos de interesse e impulsionamento de conteúdos externos variados até o lobby político endereçado em suas próprias plataformas e nas instâncias parlamentares. O Brasil, na condição de país em desenvolvimento, tem buscado estabelecer uma legislação que regule com maior ênfase os impactos gerados pelo uso das tecnologias 88 digitais em seu território, como é o caso do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e da Lei Geral de Proteção dos Dados Pessoais – LGPD (Lei nº 13.709/2018). Nessa conjuntura, o amadurecimento da jurisprudência dos Tribunais brasileiros poderá trazer respostas mais precisas sobre como esses dispositivos legais vêm sendo aplicados, ao passo que o PL da Inteligência Artificial, que agora será discutida na Câmara dos Deputados, deixa um caminho ainda bastante vago para dimensionar qual o teor da regulamentação que a sociedade brasileira terá nos próximos anos. As iniciativas espalhadas em vários continentes sobre como discutir e criar formas de garantir uma maior autonomiatecnológica para diferentes grupos e povos reforça a existência de direções possíveis e factíveis frente à passividade com a qual as tecnologias digitais vêm sendo assimiladas pelo Brasil e outras nações não hegemônicas. Essas experiências atestam que o uso das tecnologias digitais pode ser feito em respeito às diferentes culturas, identidades e comunidades, tendo como horizonte a melhora das condições de comunicação e de vida humanas, à luz da reflexão crítica sobre as implicações do seu uso desmedido e desregrado. | Referências ANPD. Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Institucional. Quem é quem. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/quem- e-quem. Acesso em: 02 dez. 2024. ANPD. Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Guia do Núcleo de Proteção de Dados do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor. 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Construção de PPCs em Engenharias com extensão curricularizada Sandra Rufino48 doi.org/10.5281/zenodo.15198542 48 Professora da UFRN, no Departamento de Engenharia de Produção na área de gerência da produção. Doutora em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (POLI/USP). https://doi.org/10.5281/zenodo.15198542 92 “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo” Paulo Freire Resumo: a palestra apresentou e debateu a importância e tendência de os projetos pedagógicos de curso usarem a extensão curricularizada e a extensão tecnológica como estratégias pedagógicas, vinculadas às metodologias ativas com projetos integradores, para o desenvolvimento de habilidades e competências profissionais e sociais (hard e soft skills). Apresentou, ainda, algumas experiências nacionais, dificuldades e resultados. Palavras-chave: Projeto Pedagógico do Curso; Ensino de Engenharia; Curricularização da extensão; Extensão universitária tecnológica. A construção de Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs) nas áreas de Engenharia deve considerar a complexidade dos problemas globais, reconhecendo que muitos deles são questões intrínsecas à engenharia. Cada vez mais, as instituições de ensino superior são desafiadas a desenvolver currículos que não apenas preparem os alunos para as tradicionais competências técnicas, mas que também os formem a lidar com as necessidades sociais, ambientais e éticas contemporâneas. Neste capítulo, exploraremos a importância de integrar a extensão universitária tecnológica e também nomodelo curricularizada aos PPCs em Engenharia, enfatizando a necessidade de soluções e a responsabilidade que os(as) futuros(as) engenheiros(as) têm no desenvolvimento sustentável. O texto foi elaborado a partir da palestra de mesmo nome realizada no dia 12 setembro de 2024 no ciclo II Ciclo de Debates de Engenharia e Sociedade. 1. Que profissionais de engenharia formamos? Quando pensamos nos problemas globais – tais como mudanças climáticas, escassez de recursos naturais ou perda da biodiversidade, falta de habitação, saneamento, inclusão digital, soberania alimentar e nutricional etc. – que estão ligadas às desigualdades sociais e à destruição dos ecossistemas, observamos que todos têm implicações diretas no campo da engenharia, seja porque, em parte, foi a geradora com impactos negativos e reforçou injustiça social e ambiental, seja porque a engenharia pode contribuir para mitigar as problemáticas existentes ou mesmo criar um novo fazer de engenharia que busque gerar impactos positivos. 93 Percebemos que a formação do(a) engenheiro(a) contemporâneo(a) no Brasil tem se mostrado insuficiente para enfrentar os desafios globais que permeiam a sociedade atual. A crescente complexidade dos problemas ambientais, sociais e econômicos exige profissionais não apenas tecnicamente capacitados(as), mas também críticos(as), reflexivos(as) e engajados(as). No entanto, a realidade do currículo escolar e o perfil do(a) egresso(a) muitas vezes se afastam dessa necessidade premente. Os currículos fragmentados, a baixa carga horária de disciplinas humanísticas, a desvalorização da extensão universitária e o enfoque em avaliações tradicionais são alguns elementos que fragilizam a formação de profissionais de engenharia. Uma educação deficitária que não forma profissionais humanistas, críticos(as) e reflexivos(as), como orientam as diretrizes curriculares nacionais de engenharia – DCNs (Brasil, 2019), acarreta na formação profissional: 1) tecnicista, que prioriza a excelência técnica e o domínio de disciplinas específicas, sem uma visão ampla e integrada das questões sociais e ambientais; 2) desconectado com a realidade social, que não têm uma compreensão adequada do contexto em que suas soluções serão aplicadas e pode levar a projetos que, embora tecnicamente viáveis, falham em atender às necessidades reais das comunidades e da sociedade como um todo; 3) sem sensibilidade ética e social, pois tem uma formação que muitas vezes negligencia o desenvolvimento de competências éticas e a compreensão do impacto social de suas ações, que gera profissionais que podem priorizar o lucro e a eficiência em detrimento do bem-estar social e ambiental. A educação atual na engenharia precisa ser reavaliada e reformulada para que os(as) futuros(as) profissionais sejam capazes de contribuir efetivamente para a solução dos problemas globais. Isso implica em uma revisão dos currículos com olhar nas críticas e tendência de ensino em âmbito internacional (NAE, 2005; Spinks; Silburn; Birchall, 2006; Rauhut, 2007; CBI, 2009) e no que o Brasil tem apontado nas DCNs (Brasil, 2019), Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Brasil, 2024a) e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (Brasil, 2024b). 2. Engenharia e sustentabilidade As tendências internacionais no ensino de engenharia estão se direcionando para uma formação mais integrada e multidisciplinar, visando atender às demandas de um mundo em constante evolução. Stieb (2007) ressalta que os(as) engenheiros(as) do futuro precisam ter uma formação holística e devem assumir um papel proativo na sociedade, utilizando seu conhecimento para resolver problemas sociais e ambientais, e não apenas para desenvolver produtos e serviços. 94 Autores como Cameron et al. (2019) e Soares (2018) destacam que as universidades estão sob pressão para integrar novos métodos de ensino e tecnologias que atendam às necessidades emergentes do mercado. A educação deve ir além da simples transmissão de conteúdos técnicos, incorporando habilidades de comunicação, trabalho em equipe e resolução de problemas (Almeida, 2018; Bastos; Boscarioli, 2021). Há uma crescente demanda por profissionais de engenharia que não apenas compreenda as tecnologias, mas também suas implicações sociais e éticas, por essa razão a importância da interdisciplinaridade na formação na área. A formação deve incluir uma compreensão profunda dos impactos sociais e ambientais das soluções tecnológicas, incentivando compromisso com a sustentabilidade e ética na tomada de decisões em projetos de engenharia (Kleba, 2017; Klochkova; Bolsunovskaya; Shirokova, 2018). A integração de ciências humanas é essencial para desenvolver uma visão crítica e reflexiva no futuro profissional, assim os(as) discentes de engenharia poderão ser mais conscientes de seu impacto na sociedade (Kleba; Reina-Rozo, 2021). Isso implica que o profissional não apenas possua habilidades técnicas, mas também uma consciência social que o capacite a desenvolver soluções inovadoras e sustentáveis. Além das DCNs de engenharia no Brasil, alinhadas aos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da ONU, o MDIC lançou em 2024 a Política Industrial que coloca a indústria no centro da estratégia de desenvolvimento (Brasil, 2024a). O MCTI a partir dos resultados das conferências prévias e da V Conferência Nacional (V CNCTI) elabora a Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação – ENCTI (Brasil, 2024b). A política de industrialização “Nova Indústria Brasil” é um marco para o setor e para o país suas ações foram pensadas para dez anos (2024-2034). É organizada em seis missões: 1) Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética; 2) Complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde; 3) Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e bem-estar nas cidades; 4) Transformação digital da indústria para ampliar a produtividade; 5) Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as futuras gerações; e 6) Tecnologias de interesse para a soberania e a defesa nacionais. Os programas incluídos nas missões de política industrial têm o potencial de permitir que o Brasil aproveite as oportunidades trazidas pela necessária descarbonização da economia, isso possibilitará que o setor industrial brasileiro atue como protagonista no desenvolvimento sustentável, promovendo a inclusão social e a diminuição das desigualdades. 95 O plano de ação do MDIC tem 5 dos 8 princípios da Nova Indústria Brasil voltados para as questões sociais e sustentabilidade: 1) inclusão socioeconômica; 2) equidade, em particular de gênero, cor e etnia; 3) promoção do trabalho decente e melhoria da renda; 4) desenvolvimento produtivo e tecnológico e inovação; 5) incremento da produtividade e da competitividade; 6) redução das desigualdades, incluindo as regionais; 7) sustentabilidade; e 8) inserção internacional qualificada. A construção ENCTI 2024-2030 agrega resultados das 221 conferências prévias (reuniões temáticas, conferências regionais, conferências estaduais, municipais e distrital e livres) e a nacional. A V CNCTI teve como tema “Ciência, Tecnologia e Inovação para um Brasil Justo, Sustentável e Desenvolvido”. Organizada em quatro eixos estruturantes: 1) Recuperação, expansão e consolidação do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação; 2) Reindustrialização em novas bases e apoio à inovação nas empresas; 3) Ciência, tecnologia e inovação para programas e projetos estratégicos nacionais; e 4) Ciência, tecnologia e inovação para o desenvolvimento social. Analisando os documentos sínteses (e-books) das conferências prévias, temos que as questões sociais, ambientais e de sustentabilidade aparecem de forma recorrente, mostrando sua importância nos debates e recomendaçõesda 5ª CNCTI e consequentemente na construção da ENCTI. Tem-se como recomendações: importância de alinhar pesquisa e inovação com as necessidades ecológicas e sociais; incentivar o desenvolvimento de tecnologias verdes, tecnologias sociais e a descarbonização da economia; garantir que os avanços em energias renováveis contribuam para uma sociedade mais justa e equitativa; desenvolver soluções tecnológicas para a preservação de recursos hídricos e biodiversidade; promover equidade de gênero e raça; reduzir desigualdades regionais; promover a Ciência Aberta e a democratização do conhecimento; incentivar a inovação social, dentre outros. No e-book das conferências livres, para o eixo 4, a extensão universitária foi destacada e é vista como uma ferramenta fundamental para integrar o conhecimento acadêmico e as necessidades sociais, promovendo a inclusão de comunidades marginalizadas (Brasil, 2024c). Apesar de apresentadas as políticas e estratégias de ministérios, ambos estão alinhados e com participação de vários outros em âmbito federal, alinhados aos compromissos do país com os 17 ODS. Diante do cenário e das tendências apresentadas, a mudança nos currículos de engenharia e suas estratégias pedagógicas são emergentes. Logo, a extensão universitária se apresenta como oportunidade inovadora para essa mudança. 96 3. As DCNs2019 e a curricularização da extensão As DCNs para os cursos de graduação em engenharia de 2002 foram as primeiras legislações específicas após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 (Brasil, 1996) e houve sua revisão para 2019 (Brasil, 2019). Ambas as versões das DCNs estabelecem que os cursos de engenharia devem incluir três núcleos curriculares: básico, profissionalizante e específico. As DCNs de 2019 introduzem mudanças significativas, enfatizando a adoção de metodologias ativas e o desenvolvimento de competências tanto hard quanto soft skills. Dentre as soft skills, destacam-se a visão holística, a capacidade de inovação, a resolução criativa de problemas, a multidisciplinaridade, a consideração de aspectos sociais e ambientais e o compromisso com a responsabilidade social (Brasil, 2019, p. 1-2). Em 1968, a promulgação da Lei 5540/1968 (Brasil, 1968) estabeleceu a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nas universidades brasileiras, mas a extensão não foi priorizada até a Resolução nº 7, de 2018, que tornou obrigatória a inserção de 10% da carga horária de extensão nos cursos de graduação (Kleba; Rufino et al., 2021). Essa ideia já estava presente na meta 23 do Plano Nacional de Educação de 2001, que buscava implantar o Programa de Desenvolvimento da Extensão Universitária em todas as Instituições Federais (Brasil, 2001). O conceito de extensão universitária, definido pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão (ForProex), em 1987, é um processo educativo que articula ensino e pesquisa, promovendo uma relação transformadora entre a universidade e a sociedade. A extensão é vista como um fluxo de saberes, no qual a comunidade acadêmica aprende com a sociedade e vice- versa, resultando em produção de conhecimento e democratização do saber (ForProex, 1987; ForProex, 2012). Diversos autores, como Fraga (2012), Paula (2013) e Silva (2020), destacam que o conceito de extensão está em construção e é influenciado por fatores históricos e institucionais. Fraga (2012) e Cristofoletti e Serafim (2020) elencam cinco concepções de extensão: 1) assistencialista (universidades repassam conhecimentos a populações ou fazem atuações técnicas pontuais); 2) comunitária (interação entre a universidade e comunidades/ populações marginalizadas, de forma dialógica e buscando uma transformação social); 3) prestação de serviços (intenção com empresas e governos para resolver problemas e demandas específicas); 4) divulgação científica e formação técnica (oferta de cursos, palestras e eventos); 5) transferências e/ou desenvolvimento de inovações tecnológicas. Uma sexta concepção considera a extensão como suporte a políticas públicas (Incrocci; Andrade, 2018). 97 Essas concepções refletem a diversidade de percepções sobre o papel da universidade na sociedade e as demandas de populações marginalizadas. Cristofoletti e Serafim (2020) observam a falta de clareza sobre os objetivos da extensão nas instituições de ensino superior, sugerindo que pode haver tanto uma falta de consenso quanto um direcionamento político visando um público específico. Assim, a extensão universitária continua a ser um campo de debate e construção coletiva. Embora a implementação de atividades de extensão nos currículos de engenharia ainda esteja em fase inicial, as competências gerais delineadas nas DCNs de 2019 refletem a necessidade de formar profissionais mais conscientes de seu papel transformador na sociedade, promovendo uma interação dialógica entre a academia e a comunidade para a identificação e solução de problemas (Brasil, 2019). A extensão universitária, historicamente vista como uma atividade secundária em relação à pesquisa e ao ensino, passa a ganhar destaque, ou ao menos uma preocupação, nas Instituições de Ensino Superior (IES) nesse novo cenário. A extensão é entendida como uma atividade que não só retorna conhecimento à sociedade, mas também provoca reflexões sobre a prática educativa e a produção de conhecimento na universidade (Isaac et al., 2012). 4. Os currículos de Engenharia no Brasil Uma pesquisa brasileira (Alvear et al., 2023; Rufino, et al., 2023), realizada em 2022, apresenta o panorama nacional brasileiro sobre a implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), de 2019, e a curricularização da extensão nos cursos de engenharia revela um cenário complexo e multifacetado, marcado por desafios significativos e oportunidades promissoras. Este panorama se insere em um contexto de reformulação das práticas de ensino nas IES, com ênfase na formação integral dos(as) estudantes, alinhando-se a demandas sociais contemporâneas. As DCNs de 2019 introduziram mudanças substanciais em relação às diretrizes anteriores de 2002, destacando a importância do desenvolvimento de competências, incluindo as chamadas soft skills, como capacidade crítica, reflexiva e criativa. Essas diretrizes visam não apenas preparar engenheiros(as) tecnicamente proficientes, mas também cidadãos conscientes das realidades sociais e ambientais. Apesar das intenções expressas nas DCNs, a implementação efetiva dessas diretrizes tem sido problemática. A pesquisa realizada por instituições como a UFRJ, UFRN, UFOP e ITA, que coletou dados de 128 cursos de engenharia – com 22 tipos engenharias sendo 9 estaduais e 109 federais localizadas nas 5 98 regiões brasileiras – revelou que apenas 25,8% dos cursos haviam finalizado a implantação das novas DCNs até o prazo estipulado, que expirou em abril de 2023. Um dos principais desafios identificados na implementação das DCNs de 2019 é a resistência de parte do corpo docente em modificar currículos que tradicionalmente priorizam a formação técnica voltada para o mercado. A maioria dos cursos ainda mantém uma abordagem centrada em competências técnicas, relegando as disciplinas de humanidades e a extensão a um papel secundário. Há uma percepção de que a extensão, embora reconhecida como importante, frequentemente é vista como um ônus adicional, em vez de uma oportunidade para integrar teoria e prática de forma significativa. A curricularização da extensão, que tornou obrigatório um mínimo de 10% da carga horária total dos cursos para atividades de extensão, é um aspecto crucial da nova legislação educacional. A pesquisa indicou que apenas 28,1% dos cursos havia atingido essa meta até o momento da coleta de dados. A maior parte dos cursos ainda está em estágios iniciais de discussão sobre como implementar efetivamente essa curricularização, refletindo um panorama de incerteza e hesitação. As estratégias utilizadas para a curricularização da extensão variam amplamente entreas instituições. A maioria dos cursos optou por incluir atividades de extensão como disciplinas extensionistas ou parcialmente extensionistas, enquanto outros buscam integrar essas atividades em projetos existentes. Contudo, a falta de clareza quanto à definição e à função da extensão dentro do currículo tem gerado confusão e resistência, limitando a efetividade das ações. Além disso, a pesquisa qualitativa revelou que a extensão muitas vezes é encarada como uma atividade assistencialista, centrada em atender demandas específicas de empresas ou comunidades, mas sem um foco claro em transformação social ou no desenvolvimento de soluções tecnológicas que considerem as necessidades das populações mais vulneráveis. Essa visão restrita da extensão contrasta com as possibilidades oferecidas pelos novos paradigmas educacionais, que buscam uma formação mais crítica e comprometida com a justiça social. Outro ponto importante a ser destacado é a relação entre a extensão e as metodologias ativas de ensino. Embora a curricularização da extensão tenha o potencial de promover metodologias de aprendizagem mais dinâmicas e centradas no aluno, a realidade observada nas entrevistas aponta que, na prática, a implementação dessas metodologias ainda é limitada. Muitos docentes, especialmente os mais experientes, demonstram resistência a adotar novas abordagens pedagógicas, o que dificulta a transformação do ensino e a integração efetiva da extensão no processo formativo. 99 A relação entre a extensão e o desenvolvimento de competências também foi um tema recorrente nas entrevistas. Os cursos entrevistados expressaram a expectativa de que a extensão contribua para o desenvolvimento de habilidades sociais e de gestão de projetos. No entanto, a falta de uma articulação clara entre as atividades extensionistas e as competências exigidas pelas DCNs pode levar a uma implementação superficial, que não atinge os objetivos desejados de formação integral. Algumas instituições têm buscado promover a formação de docentes em práticas de extensão e metodologias ativas, destacando a importância do envolvimento de estudantes e da comunidade na construção de projetos extensionistas. A participação ativa de alunos em projetos de extensão não apenas enriquece a formação acadêmica, mas também contribui para a construção de uma cultura extensionista dentro das IES. Em suma, o panorama da implantação das DCNs de 2019 e da curricularização da extensão nos cursos de engenharia no Brasil é caracterizado por uma tensão entre a necessidade de adaptação às novas exigências legais e a resistência a mudanças enraizadas em tradições acadêmicas. Embora haja reconhecimentos da importância da extensão e das competências sociais, a prática ainda não reflete completamente essa visão. O sucesso da implementação das DCNs e da curricularização da extensão dependerá de um compromisso coletivo de todos os atores envolvidos – docentes, estudantes e instituições – em promover uma formação que realmente dialogue com as demandas sociais e contribua para o desenvolvimento sustentável do país. 5. O papel da extensão tecnológica na formação de estudantes na engenharia A relação entre tecnologia e sociedade é complexa e frequentemente marcada por desigualdades. A crítica à engenharia tradicional, que tende a ver a tecnologia como neutra, é central para a discussão contemporânea sobre o papel da tecnologia no desenvolvimento social. Quando 90% do desenvolvimento tecnológico se concentra em atender aos 10% mais ricos, exemplos como o uso de tecnologias de reconhecimento facial pela polícia, que falham para pessoas negras, evidenciam a necessidade de um olhar crítico para a produção tecnológica. Além disso, tragédias como as de Brumadinho e Mariana ressaltam as consequências sociais e ambientais de uma abordagem tecnocrática, onde engenheiros(as) não consideram as realidades das populações impactadas por suas práticas (Rufino; Cruz; Kleba, 2023). 100 A formação na engenharia deve, portanto, ir além da técnica, integrando uma perspectiva humanista e voltada para a sustentabilidade, conforme as diretrizes curriculares nacionais (Brasil, 2002, 2019). A tecnologia, definida como um conjunto de soluções que aumentam a eficácia e eficiência em diversas atividades, é também um reflexo de valores sociais (Agazzi, 1998). O desenvolvimento tecnológico não ocorre em um vácuo, sendo moldado por ideais e visões de mundo dos grupos que o produzem. Por exemplo, enquanto povos ameríndios desenvolvem tecnologias que respeitam e preservam seu ambiente, sociedades ocidentais frequentemente utilizam a tecnologia para exploração e consumismo (Cruz, 2021). A tecnologia, portanto, não é neutra e pode reforçar ou contestar estruturas de poder existentes. A extensão tecnológica engajada, uma vertente das engenharias e outras práticas técnicas, busca romper com as abordagens tradicionais e se fundamenta em princípios como a não neutralidade da tecnologia e a rejeição do status quo (Kleba; Cruz; Alvear, 2022). Essa abordagem enfatiza a necessidade de um diálogo de saberes, onde os conhecimentos acadêmicos são integrados aos saberes populares e comunitários, promovendo um processo de empoderamento e co-construção de soluções (Kleba; Cruz, 2022). Através da extensão tecnológica engajada, é possível transformar a educação em um espaço de diálogo e inovação, onde as práticas de engenharia são repensadas à luz das necessidades e realidades das populações atendidas. Essa abordagem não apenas contribui para a formação de engenheiros(as) mais conscientes de seu papel social, mas também promove um desenvolvimento mais equitativo e sustentável. Um exemplo prático dessa abordagem é o Engenheiros Sem Fronteiras (ESF) núcleo Natal, que atua em parceria com comunidades vulneráveis, promovendo projetos que visam o desenvolvimento humano e sustentável. A organização busca não apenas fornecer soluções, mas também formar as comunidades e fomentar uma reflexão crítica sobre o papel da engenharia na sociedade. A estrutura interna do ESF-Natal é organizada em diretorias para cuidar da gestão interna e projetos para realização dos projetos de extensão tecnológica. As diretorias, divididas em geral, finanças, gestão de pessoas, comunicação e desenvolvimento, garantem o funcionamento administrativo e estratégico. A diretoria geral acompanha o desempenho organizacional e estabelece parcerias conforme o alinhamento com os objetivos da incubadora. A diretoria de finanças é responsável pela gestão financeira, incluindo fluxo de caixa e aquisição de materiais. A gestão de pessoas acompanha o engajamento dos membros, gerencia realocações e processos seletivos, promovendo um 101 ambiente organizacional funcional. A comunicação atua na divulgação externa das ações realizadas e na circulação interna de informações para manter os membros informados. A diretoria de desenvolvimento se concentra no mapeamento de processos e documentos, promovendo uma gestão do conhecimento e organizando formações para o aprimoramento das equipes. No âmbito dos projetos, o ESF-Natal, em 2024, se estruturava em seis ações extensionistas tecnológicas49, organizadas em três eixos temáticos. No eixo Educação, o projeto Robótica desenvolve atividades em escolas públicas com crianças, adolescentes e professores, utilizando robótica e física para estimular o interesse pela engenharia. No eixo Sustentabilidade, destacam-se três projetos: Biodigestor, que instala sistemas para geração de biogás e biofertilizante em comunidades rurais; Floema, que implementa sistemas agroflorestais e oferece suporte técnico para agricultores familiares, promovendo segurança alimentar e nutricional; e Saneamento Fértil, que desenvolve fossas sépticas biodigestoras e sistemas de reuso de água para irrigação agrícola. No eixo Empreendedorismo e Gestão, o projeto Lean promove a inovação social com eliminação de desperdícios e agregação de valor para melhorar a capacidadeMédia, para a fase da propriamente mercantilização, na Idade Moderna. Hoje, em nossa contemporaneidade neoliberal e pós-moderna, embora tenham ocorrido significativas mudanças, o patriarcado permanece entre nós. A historiadora e feminista Gerda Lerner, em sua obra A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens, elucida que o patriarcado é um sistema social profundamente arraigado, cuja origem remonta a tempos anteriores à formação do Estado Moderno e à delimitação da propriedade privada. Este sistema se sustenta na naturalização de diferenças biológicas para justificar desigualdades de status e de papéis sociais entre homens e mulheres. Tais papéis socialmente são melhor compreendidos à luz do conceito de gênero, o qual permite transcender a existência de diferenças sexuais entre homens e mulheres. O gênero traduz-se em “um aparelho semiótico, um sistema de representação que atribui significado aos indivíduos no interior da sociedade”4. Nesse sentido, o sexo é biológico, enquanto gênero corresponde a uma construção cultural e uma forma primária de dar significado às relações de poder. A assimetria de poder entre homens e mulheres, quando entrelaçada com aspectos sócio-raciais, econômicos, culturais, políticos, jurídicos e educacionais, oprime as mulheres pelo simples fato de serem mulheres. 4 Idem. 14 No contexto Universitário, vale destacar a presença do assédio moral5 e sexual6 vivenciado por alunas, professoras e servidoras que, apenas por serem mulheres, sofrem constrangimentos diários no exercício de suas funções. Pare um momento para pensar se já observou ou enfrentou uma situação de constrangimento pela qual um homem jamais seria submetido. É bem provável que uma situação concreta tenha vindo à sua mente. Os estereótipos de gênero são responsáveis por essa opressão, pois, de maneira automática e acrítica, perpetuam preconceitos e limitam possibilidades, ao promoverem uma visão reducionista das potencialidades de meninas e mulheres. Em outras palavras, os estereótipos de gênero limitam comportamentos, gostos, escolhas, vestimentas, profissões, com base no que foi socialmente pré-determinado a cada sexo biológico. Levando ao equívoco de que: “Existem coisas para mulheres”/ “Existem coisas para homem”. O Comitê CEDAW/ONU (Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher) – órgão de monitoramento do cumprimento das obrigações dos Estados-Parte ao firmarem a Convenção CEDAW, em suas Recomendações, expressa a obrigação dos países de promoverem um sistema educacional que estimule meninas e meninos ao aprendizado em todas as áreas do conhecimento, inclusive as exatas. O que podemos observar nos artigos 2, 5 e 10, da Convenção CEDAW/ONU de 1979: Art. 2º. Os Estados Partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher [...]. Art. 5º. Os Estados-Partes tornarão todas as medidas apropriadas para: a) Modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres. 5 Assédio moral corresponde à exposição de pessoas a situações humilhantes e constrangedoras, no ambiente de trabalho ou educacional, de forma repetitiva e prolongada, no exercício de suas atividades. Enquadra-se em assédio moral toda e qualquer conduta abusiva manifestada por comportamento, palavras, atos, gestos ou texto que possam trazer danos à personalidade, dignidade ou à integridade física e psíquica de uma pessoa, tornando o ambiente de trabalho ou estudo degradante. 6 Assédio sexual corresponde ao comportamento sexual indevido, em um contexto de relação hierárquica entre autor e vítima, pelo abuso da posição privilegiada para constranger a vítima a conceder favores ou fazer concessões de cunho sexual. Produzindo danos à personalidade, dignidade ou à integridade física e psíquica de uma pessoa, tornando o ambiente de trabalho ou estudo degradante. 15 b) Garantir que a educação familiar inclua uma compreensão adequada da maternidade como função social e o reconhecimento da responsabilidade comum de homens e mulheres no que diz respeito à educação e ao desenvolvimento de seus filhos, entendendo-se que o interesse dos filhos constituirá a consideração primordial em todos os casos. Art. 10. Os Estados-Partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher, a fim de assegurar-lhe a igualdade de direitos com o homem na esfera da educação e em particular para assegurarem condições de igualdade entre homens e mulheres. No Brasil, assim como em diversos países, essas dinâmicas ainda existem, perpetuando desigualdades. A crítica feminista, no entanto, propõe desconstruir narrativas, reconhecendo a igualdade entre os gêneros e reivindicando uma participação equitativa nos espaços de poder e decisão. Embora o gênero seja um eixo central de análise, é essencial abordar as questões de gênero de forma interseccional, considerando raça, classe, orientação sexual, identidade de gênero e outros marcadores sociais que se entrelaçam e naturalizam as discriminações, os preconceitos, os estereótipos e as violências contra as mulheres. No contexto brasileiro, onde a maioria da população é não branca, é impossível falar sobre os direitos das mulheres sem considerar a intersecção de gênero com raça. Mulheres negras enfrentam vulnerabilidades únicas, resultantes da confluência entre essas opressões, sendo frequentemente sub-representadas em espaços de poder e mais expostas à violência. A respeito do preconceito e desigualdades oriundas da raça, Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, e Achille Mbembe, em Necropolítica, destacam como raça e classe estruturam opressões em sociedades pós-coloniais. Na mesma linha, a pobreza é um fator que atinge desproporcionalmente as mulheres, expondo-as a desafios adicionais. “A pobreza e o classismo atingem, em muito, as mulheres, que frequentemente enfrentam desafios adicionais e têm maior dificuldade em acessar recursos de apoio, além de serem mais estigmatizadas”7. Em contrapartida, o feminismo brasileiro destaca-se por seu caráter inclusivo e democrático. Enquanto ativista e professora feminista histórica desde meados da década de 1970, tenho legitimidade para afirmar que o movimento feminista em nosso país é 7 Idem. 16 composto por mulheres magníficas que se organizaram e se organizam de uma maneira muito orgânica e articulada. A Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes é exemplo emblemático de articulação nacional em prol dos direitos das mulheres, unindo diferentes vozes – urbanas, rurais, negras, brancas, analfabetas, acadêmicas – em torno de um objetivo comum, sempre de forma plural e crítica a todas as formas de autoritarismo, discriminação e desigualdade. Pelas mãos de mais de 1.000 mulheres, em agosto de 1996, deu-se a elaboração da Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes – a mais ampla e profunda articulação reivindicatória feminista brasileira que visou incluir na Constituição Federal de 1988 os direitos e as garantias fundamentais das mulheres e a isonomia entre mulheres e homens. Tanto a mulher urbana, quanto a mulher rural, a mulher dos meios acadêmicos, a semianalfabeta e a analfabeta, a mulher branca e a mulher negra, a mulher jovem, a mulher madura, a mulher idosa, a mulher trabalhadora, a mulher doméstica, a patroa, a empregada, a mulher casada, a mulher companheira, a mulher mãe solteira, a mulher bem assalariada, a mulher explorada e a despossuída, todas elas participaram no conjunto de propostas, sob o lema “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”. Essa abordagem, que alia teoria e prática, evidenciagovernativa das atividades de apoio em escolas públicas, enquanto o projeto Rede fortalece mulheres em empreendimentos econômicos solidários por meio da articulação de uma rede de confecção. Em 2022, a diretoria do ESF-Natal conduziu uma pesquisa (Rufino; Andrade; Moura, 2022) para avaliar se as ações de extensão realizadas por bolsistas e voluntários contribuíram para o desenvolvimento de habilidades e competências. O questionário foi enviado a aproximadamente 250 ex-participantes, recebendo 90 respostas: 47,8% de membros ativos, 16,7% de membros afastados e 35,6% de ex-membros, oriundos de 23 cursos, principalmente de engenharia (83,4%). A permanência média no ESF é de 2,8 anos. Os participantes escolheram até quatro competências gerais das DCNs de engenharia (Quadro 1) e até três habilidades (Quadro 2) desenvolvidas nas atividades extensionistas. Quadro 1. Competências desenvolvidas no ESF-Natal Competências Gerais DCNs de engenharia n. trabalhar e liderar equipes multidisciplinares 66 aprender de forma autônoma e lidar com situações e contextos complexos, atualizando-se em relação aos avanços da ciência, da tecnologia e aos desafios da inovação 64 comunicar-se eficazmente nas formas escrita, oral e gráfica 60 49 O ESF-Natal tem projetos dinâmicos, a depender da demanda da sociedade, da entrada ou saída de docentes, estudantes ou profissionais podem criar novas ou encerrar ações de extensão tecnológica. 102 conceber, projetar e analisar sistemas, produtos (bens e serviços), componentes ou processos 51 formular e conceber soluções desejáveis de engenharia, analisando e compreendendo os usuários dessas soluções e seu contexto 48 implantar, supervisionar e controlar as soluções de Engenharia 33 conhecer e aplicar com ética a legislação e os atos normativos no âmbito do exercício da profissão 30 analisar e compreender os fenômenos físicos e químicos por meio de modelos simbólicos, físicos e outros, verificados e validados por experimentação 8 Fonte: Rufino, Andrade e Moura (2022) Quadro 2. Habilidades desenvolvidas Habilidades Gerais DCNs de engenharia n. ter visão holística e humanista, ser crítico, reflexivo, criativo, cooperativo e ético e com forte formação técnica. 66 adotar perspectivas multidisciplinares e transdisciplinares em sua prática. 54 ser capaz de reconhecer as necessidades dos usuários, formular, analisar e resolver, de forma criativa, os problemas de Engenharia. 47 atuar com isenção e comprometimento com a responsabilidade social e com o desenvolvimento sustentável. 42 considerar os aspectos globais, políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e de segurança e saúde no trabalho. 32 estar apto a pesquisar, desenvolver, adaptar e utilizar novas tecnologias, com atuação inovadora e empreendedora. 29 Fonte: Rufino, Andrade e Moura (2022) Todas as competências e habilidades disponíveis foram citadas, indicando que o desenvolvimento varia conforme o tempo de participação, as ações realizadas e as responsabilidades assumidas. Esse resultado ocorre porque, dependendo do tempo que o(a) participante está na organização, das ações extensionistas que realiza, da comunidade com a qual interage e das responsabilidades que assume (como diretorias ou projetos), ele(a) desenvolverá habilidades e competências variadas, que podem ser mais ou menos diversificadas. A dinâmica autogestionária do ESF-Natal possibilita uma formação que abrange os seguintes aspectos: atuação em equipes interdisciplinares e multiprofissionais; formações teóricas oferecidas aos participantes (como economia solidária, tecnologia 103 social, estudos de ciência, tecnologia e sociedade, e semiárido, entre outros); promoção da autonomia; e integração com outras organizações de diversos setores da sociedade. 6. Considerações finais A construção de Projetos Pedagógicos de Curso nas engenharias, com ênfase na curricularização da extensão universitária, se revela uma estratégia essencial para preparar profissionais capazes de enfrentar os desafios contemporâneos. Este capítulo ressaltou a importância de uma formação que transcenda a mera excelência técnica, integrando aspectos sociais, ambientais e éticos, fundamentais para o desenvolvimento sustentável. A análise das Diretrizes Curriculares Nacionais de 2019 evidenciou uma mudança significativa na abordagem educativa, promovendo a inclusão de competências e habilidades que favorecem uma formação mais holística. No entanto, a implementação efetiva dessas diretrizes ainda enfrenta barreiras, como a resistência de alguns(mas) docentes e a persistência de currículos tradicionalmente voltados para a técnica. A curricularização da extensão, ao exigir um mínimo de 10% da carga horária total para atividades extensionistas, oferece uma oportunidade valiosa para integrar teoria e prática, promovendo uma formação que dialogue com as realidades sociais. Os dados apresentados demonstram que, apesar das intenções das DCNs, a realidade da implementação da extensão nos cursos de engenharia ainda é incipiente. A busca por uma formação que desenvolva profissionais críticos(as), reflexivos(as) e comprometidos(as) com a transformação social é um desafio premente. A resistência a mudanças pedagógicas e a visão assistencialista da extensão, que muitas vezes a limita a um papel secundário, precisam ser superadas. A experiência do Engenheiros Sem Fronteiras (ESF) exemplifica como a extensão tecnológica engajada pode fomentar uma formação mais consciente e alinhada às necessidades das comunidades. Projetos que integram saberes acadêmicos e populares demonstram que a extensão não apenas contribui para o desenvolvimento de habilidades e de competências técnicas, mas também para a formação de cidadãos comprometidos com a justiça social e a sustentabilidade. Em conclusão, a formação do(a) engenheiro(a) contemporâneo deve ser reavaliada e reformulada para atender à complexidade dos problemas globais. Ao integrar a teoria e a prática, e ao buscar uma formação que valorize a diversidade de saberes, é possível criar soluções tecnológicas que realmente atendam às necessidades da sociedade, promovendo a inclusão social, a melhoria das condições de vida, contribuindo para a transformação 104 social e o desenvolvimento sustentável. A extensão universitária, nesse contexto, se torna uma ferramenta poderosa para a transformação social, contribuindo para a formação de profissionais comprometidos(as) com a construção de um mundo mais solidário e sustentável. Assim, a construção de um novo perfil de engenheiro(a) deve ser uma prioridade nas instituições de ensino superior, refletindo um compromisso com uma formação integral. | Referências AGAZZI, E. From technique to technology: the role of modern science. Philosophy & Technology, v. 4, n. 2, p. 79-85, 1998. ALMEIDA, B. M. D. Sistemática metacognitiva de educação em engenharia. 2018. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Guaratinguetá, 2018. ALVEAR, C. A. S.; RUFINO, S.; CURI FILHO, W. R.; CRUZ, C. C. Panorama nacional sobre a implantação das DCNs 2019 e da curricularização da extensão nos cursos de engenharia – Relatório final. Relatório do projeto de pesquisa. UFRN/UFRJ/UFOP/ IME. 2023. Disponível em: http://nides.ufrj.br/images/Imagens/programas/SOLTEC/ PROJETOS/EngEng/RelatorioFinal_CurricularizacaoExtensao_DCNs.pdf. Acesso em: 02 dez. 2024. BASTOS, T. B. M. C.; BOSCARIOLI, C. 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Promoção da saúde na formação no ensino superior: experiências exitosas e aprendizados para o ITA Cristiane Pessôa da Cunha50 Luciana Araújo Lima Machado51 Vera Maria Sabóia52 doi.org/10.5281/zenodo.15198562 50 Professora Associada no Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, Departamento de Humanidades. Chefe da Divisão de Assuntos Estudantis do ITA. Doutora em Educação – Unicamp. 51 Mestre em Ciências em Saúde da Mulher e da Criança no Instituto Fernandes Figueira (IFF-FioCruz; 2012). Atua com “Educação em saúde”, “Promoção em saúde” e “Prevenção de doenças” dentro do contexto do ensino superior no Instituto Tecnológico de Aeronáutica. 52 Professora Titular da Disciplina de Fundamentos de Enfermagem da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense/RJ. Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.15198562 110 Resumo: Este capítulo tem como objetivo dar visibilidade às ações promotoras da saúde na formação dos jovens que cursam o ensino superior. Trata-se de um tema que tem ganhado espaço nas organizações nacionais e internacionais de saúde, nas discussões científicas e nos campi universitários. O Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) tem acompanhado essa pauta e vem somando esforços para que a instituição conquiste mais um campo de reconhecimento na qualidade de ensino desenvolvido e na formação de cidadãos críticos e conscientes. Esta obra versa sobre a concepção de promoção de saúde e a importância de implementar essas ações no espaço universitário, de que maneira isso vem sendo realizado no Instituto Tecnológico de Aeronáutica e quais as possibilidades futuras para o contexto acadêmico em que vivemos. Palavras-chave: Promoção da saúde; Ensino superior; Bem-viver. | Introdução A promoção da saúde (PS) vem sendo discutida desde meados da década de 70, durante o processo de redemocratização do Brasil. Com a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), na Constituição Federal de 1988, fica assegurado que todos os cidadãos possuem acesso universal às ações e serviços de saúde nos campos da promoção, prevenção, proteção e recuperação da saúde, conforme as necessidades das pessoas (PNPS, 2024). Em 1990, o SUS definiu o conceito de saúde dentro de uma perspectiva ampliada, resultante dos modos de vida, da organização e da produção de um determinado contexto histórico, social e cultural. A atualização desse conceito tem trazido avanços nas discussões de políticas e estratégias de promoção da saúde da população, pois suscita a crítica ao modelo biomédico que restringe a atenção à saúde dentro do binômio saúde-doença, centrado nos fatores biológicos do corpo e da patologia, impactando na adoção de ações preventivas durante o processo de adoecimento do indivíduo e da análise dos múltiplos e complexos aspectos da saúde (PNPS, 2024). O conceito de PS também evoluiu com análise crítica sobre o desequilíbrio dos gastos com a assistência médica curativa e a qualidade de vida do cidadão. A revisão das Políticas Nacionais de Promoção da Saúde (PNPS) aponta para a necessidade de descentralização na produção da saúde e do seu cuidado, considerando que os demais setores e instituições, a participação social e os movimentos populares são essenciais ao enfrentamento dos determinantes e condicionantes da saúde junto ao setor Sanitário. Assim, o olhar sobre a proteção da saúde surge com ênfase na relação entre a biologia humana, os fatores ambientais e as condições de saúde dos indivíduos, dentro da dinâmica inter e intrasetoriais, que buscam a equidade e a qualidade de vida (Damasceno; Pimentel, 2022; PNPS, 2024). 111 Dessa forma, a promoção da saúde se constitui como um conjunto de estratégias e formas de produzir saúde, tanto na esfera individual como na coletiva. Essas ações se caracterizam pela articulação e cooperação entre os diferentes setores e redes de atenção à saúde e de proteção social, com ampla participação e controle social. Essa diretriz abre espaço para a capacitação da comunidade na atuação da qualidade de vida e saúde, assim como maior participação no controle de melhorias (Damasceno; Pimentel, 2022; PNPS, 2024). As ações de promoção da saúde (PS) devem ser realizadas com foco em soluções para a melhoria do bem-viver das pessoas e diminuição das desigualdades sociais (WHO, 1998), considerando as especificidades dos contextos sociais, econômico, político e cultural nos quais os sujeitos estão inseridos (PNPS, 2004). No contexto das instituições de ensino superior (IES), o ciclo de vida do jovem é marcado por experiências multifacetárias, que se estendem desde a demanda de adaptação vivenciada pelos estudantes ingressantes ao aluno que já se encontra no mercado de trabalho. O impacto na qualidade de vida dos estudantes pode ser justificado pela fragilidade dos vínculos sociais, exigências e frustrações educacionais, bem como pela incerteza e busca da identidade profissional e outros fatores de risco associados a essa fase de vida (ANVERSA, 2018). A partir dos anos 1990, o ensino superior brasileiro passou por profundas transformações, com destaque para: o aumento do número de estudantes e a alteração do perfil socioeconômico e psicossocial destes; o estabelecimento de um Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (SINAES), com o objetivo de proporcionar regulação desse nível de ensino; o avanço de outras modalidades de ensino, principalmente da educação a distância; e a implantação de políticas públicas com vistas a ampliar o acesso e melhorar as condições de permanência dos estudantes. Nesse contexto, também pode ser incluída a preocupação crescente das instituições em oferecer aos estudantes ambientes que propiciem a promoção da saúde. Assim, refletir sobre ações de promoção de saúde contribui para a compreensão da saúde como um processo dinâmico e socialmente produzido, abandonando o conceito de simplesmente a ausência de doença e depositando sobre os fatores sociais e econômicos que interferem diretamente na saúde da população o foco das intervenções. A promoção da saúde é entendida em oposição direta ao modelo focado estritamente na cura ou mesmo na prevenção específica de uma doença. Cabe destacar que a promoção da saúde difere da prevenção em saúde, em alguns aspectos, conforme apontam diversos estudiosos no assunto. Enquanto a promoção procura intervir sobre as condições de vida, 112 a fim de garantir qualidade de vida para a população, a prevenção é a ciência que se ocupa com uma doença específica, procurando suas causas, a fim de evitar sua ocorrência (Czeresnia, 2003; Buss, 2003). O movimento global sobre as ações de promoção da saúde no ensino superior baseia- se a partir da Carta de Ottawa (1986) como referência de documento para se pensar na criação de ambientes favoráveis à saúde, enfatizando a interconexão entre indivíduos e o seu ambiente (Okanagan Charter, 2015). Essa perspectiva coloca a saúde como um recurso para a vida, e não como objetivo de viver, conduzindo o seu conceito para algo que deve ser criado e vivenciado no cotidiano das pessoas. A interconectividade entre fatores ambientais, culturais, políticos, comportamentais, a qualidade das relações sociais, afazeres e lazer devem ser vistos de forma integrada aos aspectos orgânicos do corpo humano na equação da saúde (Carta de Ottawa, 1986). Nesse contexto, as IES são ambientesfavoráveis para a promoção da saúde no momento em que podem se dedicar em difundir esse conceito nos espaços sociais ocupados pelo público majoritariamente jovem, somando habilidades no desenvolvimento de toda a comunidade para uma educação que atue na transformação. Pensar nesses espaços para estimular a “reflexão interdisciplinar e diálogos plurais para a produção de uma cultura organizacional de promoção da saúde em todos os ciclos e curso da vida humana, bem como de implementar as políticas institucionais de valorização da vida e da sustentabilidade planetária”, deve ser parte fundamental da missão de uma IES (Moura, 2024, p. 16). Olhar para o ambiente universitário como um espaço dinâmico, em constante desenvolvimento e aberto à participação de todas as esferas na construção de um local que preze pela facilitação da saúde e bem-viver é, como colocado por Damasceno e Pimentel (2022), incentivar o potencial das IES em atuar como protetores de vida. Para tanto, é indispensável o compromisso dos diferentes níveis de gestão e atores que compõem a comunidade acadêmica, como dirigentes, reitores, conselheiros, alunos, professores, trabalhadores, comunidade e demais setores, cujas ações trarão benefícios para toda a sociedade (Damasceno; Pimentel, 2022; Moura, 2024). A mobilização sobre o desenvolvimento de ações de promoção da saúde no âmbito universitário teve seu início na década de 70, na França, por meio de iniciativas como o programa “Universidades pela Saúde”, com a finalidade de outorgar às universidades os cuidados pertinentes à saúde da comunidade inserida em seu contexto. O movimento foi crescendo e ganhou força, quando em 1996 foi oficializado o movimento de Universidades Promotoras em Saúde (UPS) na Universidade de Lancaster, no Reino Unido, durante a 1ª Conferência Internacional de UPS. A partir dele, a promoção da saúde passou a ocupar os 113 espaços das instituições de ensino superior, alinhado à descentralização da saúde defendida pelas políticas públicas e caminhando na direção do bem-estar global (Ottawa, 1986). A partir daí, as universidades se organizaram em redes, exercendo um importante papel na promoção de convênios, na atuação como agentes facilitadores do diálogo sobre promoção da saúde, capacitação de profissionais, auxílio no diagnóstico de saúde dos integrantes da comunidade universitária, trocas de experiências na implementação da UPS entre outras estratégias de cooperação (Damasceno; Pimentel, 2022). Em 2003, foi originada a Rede Iberoamericana de Universidades Promotoras da Saúde (RIUPS) como parte dos esforços regionais da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) para impulsionar o enfoque dos ambientes saudáveis (Arroyo-Acevedo, 2024). A abrangência da RIUPS proporcionou para as universidades brasileiras o ingresso nessa rede, trazendo a discussão do tema em um contexto próximo ao que vivenciamos no país. Uma Universidade Promotora da Saúde atribui a si como um espaço de formação e desenvolvimento humano, garantindo informações além do conhecimento técnico-científico, mas também de promover uma cultura de saúde e bem-viver entre seus estudantes, professores, funcionários e com a comunidade em seu entorno. A integração dessas ações pode contribuir para a formação de indivíduos conscientes e capacitados a orientar e reorientar comportamentos saudáveis, repercutindo positivamente em suas comunidades e na sociedade em geral (Cortez; Sabóia, 2024). | Saúde e Engenharia na Agenda 2030: interfaces e possibilidades para o ensino superior A promoção da saúde abrange todas as esferas da sociedade, pois para que se possa viver bem é preciso relacionar todos os aspectos que fazem parte da vida. A Agenda 2030, legitimada pelos chefes de Estado na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro de 2015, estabeleceu um conjunto de 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas. Essas metas são monitoradas e avaliadas por meio de 232 indicadores que passaram por um processo de harmonização para permitir a comparação entre diferentes níveis territoriais e grupos de pessoas em todo o planeta. A construção da Agenda 2030 teve a participação de governos em diversos níveis, além de instituições multilaterais, academia, empresas e outras organizações da sociedade civil, destacando que esses atores têm cada um seu papel na implementação das políticas para alcance dos objetivos, além do monitoramento do progresso em seu território e sua população. 114 A saúde está explicitamente representada no ODS 3, que se propõe a “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar em todas as idades”, a partir de 13 metas e 28 indicadores únicos. Porém, ainda que representada de maneira explícita no ODS 3, a saúde está direta e/ou indiretamente relacionada a um conjunto de outros ODS. A divisão em temas para alcançar a paz e o desenvolvimento sustentável do planeta e da humanidade não diminui a inter-relação entre os objetivos. Estes estão integrados e indivisíveis e mesclam, de forma equilibrada, as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental (Nações Unidas Brasil, 2015). Atuando também de forma transversal, porém indispensável na resolução de problemas, estão os conhecimentos da engenharia. Os engenheiros são profissionais essenciais quando se pensa sobre a manutenção das necessidades humanas básicas como: o alívio da pobreza, a promoção de um desenvolvimento seguro e sustentável, respostas a emergências, a reconstrução de infraestruturas, a transposição da divisa do conhecimento e a cooperação intercultural, conectando necessidades sociais a inovações tecnológicas, bem como aplicações comerciais (UNESCO, 2022). A engenharia tem o potencial de promover o desenvolvimento socioeconômico sustentável e necessário na contribuição da resiliência humana para enfrentar desastres e desafios de saúde pública, para a garantia de alimentos, água, comunicação e transporte, bem como a inovação e criação de novos produtos e serviços (UNESCO, 2022). Dentro do exposto, imagina-se que há informações suficientes para inspirar o alinhamento desses temas e pensar em mudanças para o nosso planeta, certo? Propõe-se o seguimento dessa discussão com alguns exemplos para facilitar a aproximação com essa ideia. O relatório da UNESCO (2022) aponta para uma situação de forte conexão entre saúde e engenharia que está muito recente na memória da sociedade: a pandemia de COVID-19. A engenharia foi fundamental no combate à pandemia por implementar tecnologias avançadas como, por exemplo, a busca por uma vacina por meio de métodos de manufatura avançada, sistemas logísticos, de transporte e a impressão 3D de equipamentos de proteção individual. A engenharia erradicou doenças como febre tifoide e cólera ao oferecer água limpa e saneamento básico; desenvolveu próteses e melhorias no tratamento de audição, saúde cardíaca e funcionamento cerebral. A robótica, a visão computacional e a inteligência artificial estão revolucionando diagnósticos, procedimentos cirúrgicos e acessibilidade dessas tecnologias em países de baixa renda. A cooperação entre essas ciências (entre outras também, mas o foco desse capítulo é o alinhamento dessas áreas) é crucial para o desenvolvimento sustentável. 115 A relação entre a cooperação dessas áreas com o alcance das metas e indicadores da ODS-3 estão intrinsecamente ligadas e a comunidade acadêmica pode contribuir para atingi-las. Partindo da premissa de que pessoas saudáveis são a base para economias igualmente saudáveis, ao iniciar com o autocuidado, as pessoas estarão fortalecendo os sistemas de saúde e promovendo a resiliência diante das adversidades de saúde. Ao estenderem esse cuidado às pessoas próximas e na contribuição da conscientização da comunidade sobre a importância da boa saúde, da adoção de estilos saudáveis, bem como do direito das pessoas ao acesso a serviços de saúde de qualidade, estarão atuando em redepara o fortalecimento da promoção da saúde ao seu redor. Os resultados dessas ações se tornam especialmente importantes na proteção de grupos populacionais vulneráveis e indivíduos que residem em regiões sobrecarregadas por alta prevalência de doenças, visto que os recursos públicos poderão ter um destino a essas situações com a melhoria da saúde populacional. Sabe-se que a opção por vidas saudáveis para todos requer bastante comprometimento, mas os benefícios superam o custo. O posicionamento junto ao governo e líderes locais por seus compromissos em melhorar o acesso das pessoas aos serviços de saúde e aos cuidados de saúde podem contribuir para o alcance amplo das políticas de saúde. O senso de responsabilidade coletiva e o exercício da abordagem de questões que acontecem no contexto diário, alinhado aos desafios globais, irão inspirar a mente do estudante (e profissional) de engenharia na busca de inovações necessárias. Quando essas ações são levadas para o ambiente organizacional, institucionalizar rotinas de monitoramento baseadas nos indicadores é um importante caminho para se estabelecer capacidades que provoquem mudanças nos determinantes sociais e ambientais da saúde. Essas rotinas oferecem importantes subsídios aos agentes públicos e privados, nas diversas esferas, para decisão de alocação de recursos e de ações, de forma mais efetiva e equitativa. A mesma estratégia pode ser seguida pelas Instituições de Ensino Superior (IES), que buscam se tornar ambientes de promoção de saúde. As universidades ocupam um lugar de destaque dentro da sociedade, com um inquestionável protagonismo na difusão do conhecimento e, consequentemente, na promoção do bem-estar social. Ou ainda, como explicado por Galvão, Cabral e Maurer (2020), os ODS podem atuar como diretrizes para implementar transformações que promovam segurança no cotidiano universitário, de forma sustentável, propiciando maior conforto e satisfação. Assim, é de suma importância que as universidades, como instituições de ensino superior com caráter formador, comuniquem suas ações e práticas relacionadas aos ODS, se integrem às propostas mundiais de desenvolvimento sustentável e assumam sua responsabilidade na interdependência para uma sociedade melhor. 116 Figura 1. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela Organização das Nações Unidas Fonte: Recursos de comunicação do site https://www.un.org/ | Desafios no ITA: um resgate histórico das ações de saúde coordenadas pela DAE e reflexões para o futuro Esta seção tem o propósito de refletir sobre os desafios da promoção da saúde na esfera da graduação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Pelo motivo das autoras deste capítulo estarem envolvidas com os serviços oferecidos pela Divisão de Assuntos Estudantis (DAE), que se dedica ao apoio à vida acadêmica dos alunos da graduação, a discussão será mais centralizada nesse público, na esperança de que o tema possa se estender de maneira transversal entre os demais setores institucionais. O ITA é uma instituição de ensino superior (IES) que oferece, atualmente, seis cursos de graduação em engenharia (ITA, 2024). A partir de 2025, a graduação irá abranger mais dois cursos da área, no campus da cidade de Fortaleza, ampliando o número do corpo discente (CECOMSAER, 2024). Trata-se de uma escola com um total de aproximadamente 730 alunos, entre o primeiro e quinto ano do curso de graduação, sendo apenas 8% deste total estudantes do gênero feminino. A expectativa para 2025 é o aumento de 50 vagas, 25 para cada curso que será inaugurado no campus Fortaleza. A graduação do ITA é caracterizada pelo currículo acadêmico de alta demanda, com alunos provenientes de um processo de entrada bastante competitivo e uma rotina acadêmica de dedicação exclusiva. A pressão contínua pela performance acadêmica e o regimento https://www.un.org/ 117 singular de nossa escola são variáveis que se encontram no rol de fatores de risco para o desenvolvimento de sentimentos de estresse, desequilíbrios na saúde e ajustes que impactam em várias esferas da vida. Além disso, os conflitos na comunidade estudantil são comuns, visto que temos um público majoritariamente masculino, que reside no campus e precisa gerenciar questões de diferentes naturezas para o bem-estar comum, como diversidade, inclusão social, novos vínculos sociais, rede de apoio, senso de pertencimento, independência do núcleo familiar, dentre tantos outros desafios para o novo ciclo de vida. O apoio institucional fornecido aos alunos referente às questões alheias ao currículo acadêmico fazem parte desta escola desde a sua fundação, em 1950. A Divisão de Alunos, primeiro setor destinado ao acompanhamento da vida acadêmica do aluno e pioneiro na implantação do Serviço de Orientação Educacional (SOE) no ensino superior brasileiro, e a Comissão de Orientação Educacional da Congregação53, que sempre contou com profissionais designados especificamente para o exercício da orientação educacional, precisam ser destacados na história das políticas institucionais do ITA sobre o olhar integral na formação do aluno (Lacaz; Mazariolli, 2020). Essa abordagem iniciou com o atendimento voltado à orientação educacional e conquistou um enfoque multidisciplinar em 2019, quando o assistente social54 passou a integrar efetivamente a equipe, até então composta apenas por psicólogos e professores, para tal finalidade. Em 2017, a Divisão de Alunos passou a ser denominada Divisão de Assuntos Estudantis55, herdando as responsabilidades da antiga Divisão de Alunos e ampliando sua abordagem no apoio à vida acadêmica do aluno. No sentido de atuar nas esferas que impactam a vida e a saúde do aluno iteano, a DAE atua não só como facilitadora, mas também como a própria rede de apoio ao estudante de graduação, cujo papel de acolher, aconselhar e direcionar permitem auxiliar a vivência do aluno por situações estressoras para mitigar o impacto no desempenho acadêmico e desenvolvimento profissional. Essa intervenção possibilita que a equipe dessa divisão atue na prevenção de riscos psíquicos, emocionais, cognitivos e/ou físicos exigidos na vida acadêmica. As ações no campo da saúde vêm ganhando força ao longo da história do ITA e felizmente não estão restritas à Divisão de Assuntos Estudantis. Contudo, essa pauta ainda não está contemplada nas prioridades da agenda institucional e as iniciativas que permitem estender o cuidado pela proteção de vidas, ou seja, por meio da promoção do bem-estar e equidade entre a comunidade acadêmica, se expressam como ações focais e ainda desconexos com a unidade institucional. 53 Não foram encontrados registros precisos sobre o ano em que foi descontinuado. 54 Vale registrar que o assistente social está presente na DAE desde 2012, a partir do apoio do SESO (Serviço Social do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial), para entrevistas e acompanhamento dos alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, que recebem bolsa permanência, patrocinada pela Associação dos Engenheiros do ITA (AEITA). https://www.aeita.com.br/pages/bolsa-aluno 55 http://www.ita.br/sites/default/files/pages/DAE.pdf https://www.aeita.com.br/pages/bolsa-aluno http://www.ita.br/sites/default/files/pages/DAE.pdf 118 As Instituições de Ensino Superior (IES) são ambientes estratégicos para a promoção de saúde. Arroyo (2022) a considera como um “epicentro” para o paradigma. Além de ser capaz de promover a elevação dos níveis de saúde dentro de seu território, a IES é potencializadora dessas ações pela pesquisa, pela extensão e pela formação profissional. A Promoção da Saúde (PS) é um processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e de saúde, atuando sobre os determinantes sociais de saúde56 e fomentando o compromisso em defesa dos direitos coletivos. Isso requer o movimento além do foco no comportamento individual e ao encontro de uma intervenção social e ambiental ampla (Sícoli;Nascimento, 2003; Carta de Okanagan, 2015). Segundo Rodrigues (2017), faz-se necessário cultivar uma cultura institucional promotora da saúde para que haja estímulo aos profissionais de uma comunidade universitária atuarem na promoção da saúde no campus. Os projetos e as atividades de PS no ambiente acadêmico devem ser sustentáveis por meio da colaboração e trabalho em rede, juntamente com o envolvimento de todos os aspectos institucionais – incluindo políticas, ambiente físico, organização curricular, serviços de saúde mental e transformação da cultura organizacional, a fim de obter progresso na incorporação da promoção de saúde nos planos de desenvolvimento institucional (Moura, 2024; Cortez, Sabóia, 2024). Durante a última década, por meio da entrada de professores, servidores e colaboradores provenientes dos setores da saúde no quadro funcional do ITA, este tema tem ganhado visibilidade ao mitigar os problemas que ocorrem nessa esfera, principalmente durante a assistência ao corpo discente. Além da demanda assistencial existente, a DAE também tem se ocupado em pensar sobre estratégias do campo da saúde e educação a fim de proporcionar informações úteis para o bem-estar, a saúde e o desempenho acadêmico dos alunos. A idealização dos primeiros projetos da DAE foi feita com ênfase na prevenção de doenças, através de campanhas de saúde, coordenadas pela chefia da Divisão57. As ações foram se estendendo e, com o apoio de parcerias de outras organizações militares do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeronáutica (DCTA), a DAE foi capaz de organizar feiras de saúde, palestras sobre saúde mental e rodas de conversa. Outras propostas também se consolidaram na área da educação, como a reestruturação do programa Aconselhamento, que passou a ser nomeado de Novo Aconselhamento, em virtude das mudanças realizadas na estrutura do programa alinhado às experiências internacionais. 56 Para a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), os DSS são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população (Buss; Pellegrini Filho, 2007). 57 Uma das autoras, Cristiane Pessôa da Cunha, assumiu a chefia da DAE em 2016. 119 Optou-se por manter o nome “Aconselhamento”, pois trata-se de um patrimônio cultural da nossa instituição (Cunha; Silva, 2024). Desde então, as ações de saúde ganharam força na DAE de forma progressiva. Em 2023, as discussões sobre promoção da saúde foram se aprofundando e ganhando estrutura para novos avanços com a chegada de novos integrantes à equipe58. Em 2024, o Núcleo de Atenção à Saúde do Aluno (Núcleo ASA) foi inaugurado como um programa da DAE, cujo objetivo é buscar estratégias no campo da saúde para o bem-estar e a saúde dos alunos do ITA. As ações do ASA estão sendo consolidadas de forma transversal, planejadas intersetorialmente, inspiradas em diretrizes nacionais e internacionais, como o movimento de Universidades Promotoras da Saúde e da United Nations Academic Impact (UNAI) (Machado, 2024). A título de esclarecimento, a DAE59 é composta por cinco setores atualmente, são eles: Secretaria, Seção de Coordenação e Controle, Seção de Orientação Educacional, Seção de Apoio Acadêmico e Social, Seção de Apoio ao Docente. Além disso, a DAE coordena três programas voltados para o corpo discente, são eles: Novo Aconselhamento, Mentoria e Núcleo de Atenção à Saúde do Aluno. A Divisão de Assuntos Estudantis está organizada em três eixos de trabalho, são eles: 1) Rotinas Administrativas relacionadas ao aluno, 2) Apoio no Processo Ensino-Aprendizagem e 3) Saúde e Bem-Viver do corpo discente. Estes eixos trabalham de forma interdisciplinar, fomentando a intersetorialidade e os diferentes olhares para a orientação e apoio na trajetória acadêmica do aluno. Alinhado aos conceitos de PS trazidos ao longo deste texto, foram identificadas todas as iniciativas e projetos da DAE relacionados ao tema e que foram desenvolvidas de acordo com os eixos de trabalho Apoio no Processo Ensino-Aprendizagem e Saúde/Bem-Estar. A seguir, realizamos um levantamento das ações alinhadas ao campo da promoção da saúde realizadas pela DAE desde 2017. As atividades estão categorizadas de acordo com os cinco campos centrais de atuação na promoção da saúde, de acordo com a Carta de Ottawa (1986): criação de ambientes favoráveis à saúde; reforço da ação comunitária; desenvolvimento de habilidades pessoais, reorientação do sistema de saúde e elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis. Lembramos que a DAE é uma divisão que atende ao público de alunos da graduação do ITA e, por isso, as atividades têm alcance restrito. 58 Luciana Araújo Lima Machado, servidora transferida para DAE, com formação na área de Saúde Coletiva e uma das autoras do presente capítulo. 59 Para maiores informações, acesse a página da Divisão de Assuntos Estudantis (DAE) no site do ITA: http://www.ita.br/ig/dae e o folder: http://www.ita.br/sites/default/files/pages/DAE.pdf http://www.ita.br/ig/dae http://www.ita.br/sites/default/files/pages/DAE.pdf 120 Quadro 1. Categorização das atividades, projetos e iniciativas identificadas na DAE segundo eixos da Carta de Ottawa Categoria – Carta de Ottawa Atividades identificadas Reforçar ações comunitárias (ações e visibilidade) • Comunidade Pertencer & Humanizar; apoio aos professores nas atividades em aulas relativas à campanha de equidade; Campanha de Equidade no ITA; Campanhas de doação de sangue; feiras de saúde: stands de informação e prevenção sobre infecções sexualmente transmissíveis (IST), prevenção de deficiências auditivas, prevenção ao fumo, campanha de vacinação, impacto das telas na organização postural, orientação nutricional, testes rápidos de glicemia, colesterol e pressão arterial, orientações sobre nível de estresse, entre outros temas de saúde; Manual do Aluno; ReflITA; organização de palestras e aulas sobre saúde mental, valorização da vida e prevenção ao suicídio, dependência química; Ciclo de Palestras sobre temas de saúde ao aluno ingressante; Disciplina Colóquio60 no ano Fundamental 1; DAE talks61. Desenvolver habilidades pessoais (estruturas e apoio) • Programa Novo Aconselhamento62: apresentação do professor-conselheiro ao aluno, roteiros de acompanhamento do aluno, Curso Bizu da Saúde, capacitação e apoio ao professor-conselheiro; Programa Núcleo de Atenção à Saúde do Aluno: atividades relacionadas ao autocuidado e estilo de vida saudáveis (oficinas, rodas de conversa); plantão de acolhimento; atendimento de orientação educacional; oficina de gestão do tempo; ciclo de oficinas de preparação do professor-conselheiro; Programa de Mentoria (por empresa e individual). Criar ambientes favoráveis (condições de trabalho e estudo) • Projeto Geladeiroteca; ações de integração dos alunos ingressantes; acompanhamento social e projeto de permanência estudantil; Semana Criativa (arte, música e autocuidado), evento de recepção dos pais e responsáveis na apresentação do estudante para o início do curso, apoio a eventos sociais organizados pelos alunos; Rancho Festivo; Projeto Respira; Orientar e apoiar o Centro Acadêmico Santos Dumont (representação estudantil). Reorientar os serviços de saúde • Atendimento domiciliar emergencial a alunos que residem no campus, acompanhamento de internação psiquiátrica, acompanhamento em consultas de saúde em atendimentos emergenciais; Direito de uso do plano de saúde da Aeronáutica por alunos em vulnerabilidade social; Protocolo de apoio ao aluno em crise; Pesquisa na área de saúde mental; Atendimento individual e coletivo aos alunos interessados na adoção de hábitos saudáveis; Assistência ao aluno em vulnerabilidade-social. Elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis • Registro do Novo Aconselhamento no Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) do ITA, elaboraçãode textos acadêmicos, artigos de revista e capítulos de livro para a visibilidade interna e externa sobre promoção da saúde no contexto universitário; produção de trabalhos científicos; aproximação com parcerias para a rede de assistência em saúde e conscientização sobre a promoção da saúde; workshop “Ouvindo quem ouve”; 1º Encontro Internacional sobre experiências em acolhimento e acompanhamento de alunos ingressantes no ensino superior63 Fonte: Elaboração própria 60 A disciplina Colóquio é coordenada pela Professora Dra. Cristiane Pessôa da Cunha que defende a curricularização da promoção da saúde na trajetória do aluno no ITA. 61 Para maior aproximação com esse projeto, sugerimos a leitura do livro Saúde e humanização na transversalidade da formação do engenheiro. https://www.doi.org/10.5281/zenodo.14111787 62 Incentivamos a leitura do artigo de Cunha e Silva (2024) para mais detalhes sobre o programa Novo Aconselhamento. https://doi.org/10.5281/zenodo.14112362 63 Acesse a página http://www.ita.br/noticias446, para mais informações sobre o evento. https://www.doi.org/10.5281/zenodo.14111787 https://doi.org/10.5281/zenodo.14112362 http://www.ita.br/noticias446 121 As ações de saúde elaboradas pela DAE procuram desenvolver o tema por meio de diversas abordagens disponíveis em uma instituição de ensino, como pesquisa, aulas expositivas, palestras, eventos, práticas com os alunos e a literacia, assim como se faz presente nas esferas acadêmica, social, assistencial e institucional. Muitas delas podem ser inseridas em mais de uma categoria apontada pela Carta de Ottawa, em virtude de sua transversalidade entre os temas. Muitos projetos desenvolvidos já alcançaram seu amadurecimento e estão inseridos de forma permanente no calendário acadêmico, outros encontram-se em fase piloto e são atualizados à medida que a interação no campo demonstra a necessidade de reajustes. Novas estratégias são pensadas e planejadas a cada ano para que a promoção da saúde direcionada aos alunos possa ser cada vez mais coerente com o contexto acadêmico que vivenciam, mas também contribua para o bem-viver durante sua trajetória na instituição e construção de uma vida consciente sobre a sua saúde e o impacto no meio em que vivenciam. | O Programa Novo Aconselhamento como microambiente alinhado à promoção de saúde universitária Nas décadas iniciais do ITA, o professor-conselheiro era designado para acompanhar o desempenho acadêmico do aluno e também, caso necessário, substituir a família do jovem discente, pois na época os contatos próximos com familiares eram dificultados pelas distâncias, que não eram facilmente vencidas, devido à ausência de transportes mais acessíveis, que viabilizassem visitas periódicas à rede de apoio anterior ao ingresso no Instituto. Com o passar dos anos, ainda que a comunidade iteana reconhecesse a importância do aconselhamento, naturalmente houve a necessidade de modernização da referida estratégia, que não se mostrava mais alinhada às necessidades e desafios enfrentados pelo alunado. Refletindo em retrospectiva, podemos afirmar que a reformulação do aconselhamento praticado no ITA teve início em 2018, através da participação no 8º Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa (FORGES), sediado em Lisboa. Na oportunidade, houve uma aproximação com o modelo de tutoria utilizado pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa – IST, além de outras experiências exitosas no contexto europeu, que ofertavam diversas estratégias de apoio ao estudante. 122 Após essa primeira aproximação com o IST e, particularmente, com o Núcleo de Desenvolvimento Acadêmico (NDA), foi possível convidar a Psicóloga Isabel Gonçalves, responsável pelo NDA, para ministrar curso e palestra sobre a experiência em tutoria, no evento Engineering Education for the Future – EEF64, que aconteceu no ITA, em maio de 2019. Com 34 docentes (na época, cerca de 19% do quadro total de docentes do ITA) inscritos, iniciamos, em fevereiro de 2020, o I Ciclo de Oficinas Preparatórias do Novo Aconselhamento65 com programação que se estendeu por dois dias. Contamos com Especialistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do Poder Judiciário de São José dos Campos e do ITA, que ministraram palestras sobre os seguintes temas: “A promoção do aprender autorregulado no ensino superior”; “Habilidades Sociais”; “Vulnerabilidade social e impactos na vida acadêmica”, “Normas do ITA e cotidiano escolar”; “Saúde mental – Preocupações com os estudantes do ensino superior”; “Mesa-redonda com egressos sobre Disciplina Consciente e outros aspectos do modelo do ITA”; e “Mediação e Conciliação na condução de conflitos no espaço acadêmico”. Após capacitação dos Conselheiros, foi realizada em março de 2020 a implantação oficial do Novo Aconselhamento. Alunos e professores foram apresentados ao programa totalmente reformulado, que inclui, resumidamente, apoio e formação do professor-conselheiro, além de roteiros que guiam os encontros bimestrais obrigatórios, que o conselheiro realiza com os seus aconselhados. O roteiro preenchido e devolvido ao setor que coordena o aconselhamento servirá como feedback, indicando como o aluno-aconselhado está se adaptando e enfrentando as rotinas acadêmicas. O roteiro é construído para facilitar o contato entre conselheiro e aconselhado, privilegiando aspectos que devem ser observados. Outra importante implementação na operacionalização do aconselhamento diz respeito às designações que resguardam o número de, no máximo, um professor para até cinco alunos. No modelo de aconselhamento praticado até então, chegamos a encontrar professores atribuídos a quarenta alunos, o que certamente não permitia um efetivo acompanhamento do aluno e, consequentemente, contribuía para o descrédito instalado em relação ao aconselhamento. 64 http://www.ita.br/noticias230 65 http://www.ita.br/grad/oficinas_acons http://www.ita.br/noticias230 http://www.ita.br/grad/oficinas_acons 123 Figura 2. Diagrama representativo dos pilares do Programa Novo Aconselhamento Fonte: Arquivo das autoras Logo após a implantação do Novo Aconselhamento, enfrentamos o início da pandemia do COVID-19 e, consequentemente, o afastamento social. Os conselheiros que inauguraram a estratégia reformulada já enfrentaram um difícil desafio, pois foram estimulados a adaptar o contato com os aconselhados, utilizando todos os recursos possíveis e disponíveis de tecnologia. O Aconselhamento tornou-se um importante aliado no enfrentamento às mudanças trazidas pela pandemia e na manutenção de vínculos efetivos do alunado com a Instituição. Com base nos roteiros de reuniões elaborados pela coordenação do Novo Aconselhamento, os professores iniciaram o agendamento dos encontros com os devidos registros a fim de garantir a efetividade do acompanhamento. A capacitação dos conselheiros continuou através das ferramentas disponíveis no Google Classroom, a partir de reuniões síncronas e conteúdos gravados. A formação dos conselheiros continuou no segundo semestre de 2020, sendo ofertados conteúdos gravados sobre os seguintes temas66: “Adulto Jovem: contribuições da psicologia do desenvolvimento”; Projeto de vida”; Saúde Mental no contexto universitário”; “Acompanhamento pedagógico no ensino superior”; “Acolhimento e adaptação do aluno ingressante”; e “Mediação de conflitos e conciliação”. A coordenação do Novo Aconselhamento sempre teve a preocupação de preparar a formação do professor-conselheiro, com temas para além de aspectos didáticos pedagógicos. Temos continuamente convidado palestrantes de diversas áreas, que abordam nas formações conteúdos que dialogam com a promoção da saúde, principalmente no que diz respeito à criação de hábitos e ambientes saudáveis, dentro e fora do espaço acadêmico. 66 http://www.ita.br/noticias/iiciclodeoficinaspreparatriasdonovoaconselhamentohttp://www.ita.br/noticias/iiciclodeoficinaspreparatriasdonovoaconselhamento 124 Figura 3. Diagrama representativo das ações do Novo Aconselhamento Fonte: Arquivo das autoras Recentemente, o Novo Aconselhamento praticado no ITA passou a despertar o interesse de outras Instituições de Ensino Superior (IES), para o compartilhamento de experiências e boas práticas. O Novo Aconselhamento segue avançando em suas atividades, mantendo o pilar da capacitação constante dos conselheiros, o contato regular com os alunos e o diálogo constante com os diversos atores institucionais, sempre em alinhamento com o desenvolvimento de habilidades individuais e coletivas, em busca do bem viver. | O Núcleo de Atenção à Saúde do Aluno (ASA) como incubadora da reflexão sobre a promoção da saúde no ITA O termo “promoção da saúde” e a aproximação com as discussões nessa área surgiram na DAE a partir da sensibilidade do olhar relacionada à demanda de trabalho sobre o professor do ITA. A proposta de olhar para o processo de adoecimento e para a importância do investimento na saúde iniciou dentro do Programa Novo Aconselhamento, em 2023, com a elaboração de um curso de autocuidado voltado aos professores-conselheiros. O curso, nomeado como “Bizu67 da Saúde”, consistiu em treze aulas gravadas e o objetivo foi desenvolver o tema sobre a construção da saúde a partir das escolhas cotidianas e hábitos de vida, assim como o seu impacto na qualidade de vida e bem-estar. Os professores- conselheiros receberam relatórios sobre o mapeamento de sua saúde, pela abordagem 67 Bizu é um termo utilizado pela comunidade iteana que significa “atalho”, “dica”. 125 integrativa e de acordo com as respostas fornecidas em questionário, e também puderam agendar o atendimento individual com a especialista da DAE para adoção de novos hábitos. Alguns desfechos dessa iniciativa surpreenderam a equipe, ao observar nos relatórios regulares no Novo Aconselhamento que o conteúdo das aulas estava sendo propagado nos diálogos com os alunos, de maneira informal e durante os encontros agendados entre aluno e conselheiro. Esse trabalho foi apresentado no XI Congresso Iberoamericano de Universidades Promotoras em Saúde, em outubro de 2024, e concedeu à equipe da DAE muitas trocas de experiências com outras Instituições de Ensino Superior. Seguindo essa linha de ação e com base nos dados de saúde coletados pelo Programa Novo Aconselhamento, decidiu-se por estender o tema de autocuidado e hábitos saudáveis aos alunos. Foi nesse contexto que se inaugurou o Núcleo de Atenção à Saúde do Aluno (ASA), em janeiro de 2024, cuja atuação consiste na busca por estratégias da área de saúde que visam contribuir para o desenvolvimento pessoal do aluno, saúde e bem-estar. O ASA baseia-se em três eixos para atuar institucionalmente na área de saúde: 1. Promoção da saúde – Buscar estratégias do setor de saúde para as ações coletivas e individuais que contribuam para o sucesso acadêmico, o desenvolvimento pessoal, a saúde e o bem-estar. Incentivar o protagonismo do aluno e da comunidade discente na busca pela equidade e a qualidade de vida. 2. Intersetorialidade – Atuar em sinergia com outros setores, integrando diferentes saberes e ambientes organizacionais para a ampliação das redes de proteção social e promoção da saúde. 3. Pesquisa na área de saúde no contexto do ensino superior – Ampliar a interface e discussão com as universidades que investigam o tema da promoção da saúde. Figura 4. Diagrama representativo dos pilares de atuação do ASA Fonte: Arquivo das autoras 126 Em seu primeiro ano de inauguração, o ASA desenvolveu parcerias internas com outras Organizações Militares (OM) do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA). Obtivemos dois avanços por meio das cooperações entre as OMs envolvidas: 1) Atuação da DAE no aquartelamento dos alunos aptos ao serviço militar durante o Curso de Formação no Centro Preparatório de Oficiais da Reserva de São José dos Campos (CPOR-SJ); 2) Participação de profissionais especialistas na área de saúde para proferir palestras, realizar oficinas práticas e, também, a possibilidade de aproximar os alunos dos palestrantes, que, por pertencerem ao quadro de funcionários do DCTA, estão acessíveis para o agendamento de consultas clínicas pelo plano de assistência de saúde da Aeronáutica68. Essas iniciativas também auxiliaram na aproximação da equipe de profissionais da Divisão de Assuntos Estudantis com os alunos do primeiro ano antes de iniciar o período letivo, facilitando o diálogo com os estudantes. A proposta das palestras foi continuada na disciplina Colóquio (FND-01)69, porém, planejada em um novo formato, com duração máxima de vinte minutos, nomeado DAE talks. O objetivo desse espaço é conscientizar os alunos sobre atitudes saudáveis e o seu impacto no sucesso acadêmico. O projeto teve boa aceitação pelos alunos, com avaliação média de “boa-muito boa” no feedback de satisfação utilizando a escala likert (Machado, 2024). Algumas das aulas foram levadas para o campo prático, como a oficina de corrida e de alimentação, e estiveram entre os temas preferidos dos alunos. Incentivamos a leitura do livro Saúde e Humanização na transversalidade da formação do engenheiro, a fim de se aproximar do trabalho que foi desenvolvido durante esta disciplina. Figura 5. Logo criado para o projeto DAE talks Fonte: Arquivo das autoras 68 Os alunos do primeiro ano do curso de engenharia do ITA, enquanto estiverem no período de serviço militar, possuem o benefício do plano de saúde da Aeronáutica. 69 A disciplina Colóquio é obrigatória e compõe a grade curricular do primeiro ano do curso de engenharia do ITA. 127 As estratégias dos serviços de atenção à saúde do aluno foram pensadas na atuação coletiva e individual. As abordagens coletivas consistiram em palestras, aulas expositivas, oficinas, rodas de conversas e feira de saúde. As duas últimas com a participação e o protagonismo dos alunos na organização do evento e na escolha do tema de maior interesse entre a comunidade de alunos. Foi uma experiência exitosa a aproximação do tema de promoção da saúde com o incentivo ao protagonismo estudantil, onde o ASA provê o olhar técnico da saúde e a rede de cooperação entre profissionais, OMs e universidades desta área e os alunos organizam os eventos, fazem a pesquisa de interesse e as estratégias de divulgação. Os eventos em cooperação com os alunos permitiram a abordagem do tema com a jovialidade dos estudantes, tornando esses encontros informativos e num ambiente de socialização e bem-estar. Nomeamos essas ações como Conscientização, que se refere às palestras e aulas inseridas no tempo regular da grade de aula dos alunos, onde o alcance são os estudantes do primeiro ano, e Ação, que diz respeito às atividades organizadas em parceria com os alunos em que o público-alvo é todo o corpo discente. Figura 6. Fluxo das ações de promoção da saúde desenvolvidas pelo ASA Fonte: Arquivo das autoras O fluxo das atividades segue para o Gerenciamento de Promoção da Saúde (GPS) que, de forma intencional, nomeamos com a ideia de fornecer rotas de cuidado para o aluno durante o atendimento individual. Os alunos podem solicitar o atendimento individual por procura espontânea, ou encaminhado por outro profissional da rede de apoio do aluno, como profissionais da DAE, professor-conselheiro, diretores das Iniciativas acadêmicas70 (ou colegas próximos) e professores. Em seguida, caso seja necessário, o profissional da DAE responsável pelo atendimento poderá encaminhá-lo ou orientá-lo na procura de outros especialistas. 70 “É uma forma de trabalho em rede, em que diversos grupos de estudantes do ITA, denominados “Iniciativas”, trabalham em parceria. As Iniciativas têm diversos propósitos, como a Prática de Engenharia, Ação Social, bem-estar da Comunidade Iteana e Empreendedorismo” (Ribeiro, 2024). Cada Iniciativa é composta pelo diretor, vice-diretor e membrose estão sob a gerência do Centro Acadêmico Santos Dumont (CASD), órgão oficial de representação dos alunos de graduação do ITA. 128 O Núcleo de Atenção à Saúde do Aluno tem se consolidado de forma transversal entre os setores, contando com a cooperação e as competências de diferentes profissionais. Todavia, é preciso avançar em muitas direções, entre as mais importantes estão a inserção da promoção da saúde nas discussões da política e cultura institucional. Contudo, a partir de toda a trajetória construída pela Divisão de Assuntos Estudantis na área de atenção ao aluno, seja nas esferas de prevenção, promoção e atenção à saúde, acreditamos que o caminho para ampliar o alcance da promoção da saúde pode ser fluido e consistente. | Considerações finais A promoção da saúde (PS) não deve estar no campo abstrato das ideias tampouco com metas utópicas planejadas. É preciso se apropriar do tema como um projeto essencial na formação do cidadão e nas ações comunitárias. As Instituições de Ensino Superior (IES) são locais privilegiados de discussão, desenvolvimento e pesquisa e, como qualquer conhecimento respaldado na ciência, deve ser retornado para a comunidade dentro de uma interação para o benefício coletivo. Na esfera educacional, todos os integrantes da comunidade acadêmica podem se beneficiar de um âmbito que promova a saúde e o bem-viver. Além do direito de todo cidadão ter acesso ao conhecimento sobre os processos de saúde-doença, são incontestáveis as vantagens que as ações institucionais nessa área podem trazer para as pessoas e coletividades. Ao incorporar os princípios da promoção de saúde em suas atividades de gestão, ensino, pesquisa e extensão, a universidade se compromete a construir uma espécie de nova cultura universitária, na qual todas as atividades realizadas deveriam não buscar apenas atingir seus objetivos evidentes, mas também zelar pela saúde das pessoas envolvidas. A saúde no contexto acadêmico permite o desenvolvimento de habilidades como autoconhecimento, maior consciência do ambiente e nas relações interpessoais e a liderança, pelo exemplo, e aqui, provocamos principalmente gestores, professores e colaboradores, que formam aqueles que irão protagonizar o futuro e influenciar os ambientes a que pertencem. Cuidar de si é o primeiro passo para interagir com compaixão de forma sustentável e permanente, certamente somando às ações necessárias para um mundo melhor. Nesse sentido, é imperativa a união e colaboração dos atores envolvidos na esfera educacional, a fim de envolver todos os aspectos institucionais no fortalecimento da comunidade e contribuir para o bem-viver das pessoas, lugares e do planeta. 129 | Referências ANVERSA, A. C. et al. Qualidade de vida e o cotidiano acadêmico: uma reflexão necessária. Cad. Bras. Ter. Ocup., São Carlos, v. 26, n. 3, p. 626-631, 2018. ARROYO-ACEVEDO, H. V. Perspectiva histórica y conceptual del movimiento iberoamericano de universidades promotoras de la salud. In: CORTEZ, E. A.; SABÓIA, V. M. (org.). Bem-viver na Universidade Federal Fluminense: a trajetória de uma universidade promotora da saúde. São Paulo: Ed. Hucitec, 2024. BUSS, P. M. Uma introdução ao conceito de promoção de saúde. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (org.). Promoção de saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 19-42. BUSS, P. M.; PELLEGRINI, A. F. A saúde e seus determinantes sociais. 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Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Brasília, Brasília, 2017. http://www.ita.br/info http://www.ita.br/noticias462 http://www.ita.br/noticias462 https://www.doi.org/10.5281/zenodo.14111787 https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/Brasil_Amigo_Pesso_Idosa/Agenda2030.pdf https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/Brasil_Amigo_Pesso_Idosa/Agenda2030.pdf https://doi.org/10.5281/zenodo.14112467 131 SÍCOLI, J. L.; NASCIMENTO, P. R. Health promotion: concepts, principles and practice, Interface – Comunic, Saúde, Educ, v. 7, n. 12, p. 91-112, 2003. UNESCO. Engenharia para o desenvolvimento sustentável: cumprir com os objetivos de desenvolvimento sustentável. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000375634_por. Acesso em: 15 nov. 2024. UNITED NATIONS. Goal 3: Ensure healthy lives and promote well-being for all at all ages. Disponível em: https://www.un.org/sustainabledevelopment/health/. Acesso em: 15 nov. 2024. WHO. World Health Organization. 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Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: Amazônia, exército, ditadura, subversão e democracia, e na área de relações Internacionais, principalmente em História das Relações Internacionais e Política Internacional. Atualmente, é professora efetiva do Instituto de Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação e Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS. CV: http://lattes.cnpq.br/3216738054719684 Cristiane Pessôa da Cunha Doutorado em Educação (2010) na área de concentração: Ensino, Avaliação e Formação de Professores – Unicamp. Especialização em Gestão Escolar (2018) pela ESALQ/USP. Professora Associada no Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, Departamento de Humanidades. Chefe da Divisão de Assuntos Estudantis do ITA. Membro da Associação Nacional de Política e Administração da Educação/ANPAE. Membro associado da Rede de Apoio Psicológico no Ensino Superior/RESAPES – Portugal. Membro da Associação FORGES – Fórum da Gestão do Ensino Superior. Pesquisadora colaboradora no Laboratório de Saúde Mental Multimétodos (Labsamm) do Instituto de Psicologia da USP. Experiência na área de administração escolar. Avaliadora institucional e de cursos do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior – SINAES/MEC. CV: http://lattes.cnpq.br/2430375748076749 Delmo Mattos Professor de Filosofia do Departamento de Humanidades (IEFH), Divisão de Ciências Fundamentais, no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para a Inovação (PROFNIT/ITA). Líder do Grupo de Pesquisa Inovação e dilemas éticos da inteligência artificial (IDEIA/CNPq 2024). Membro do Laboratório de Filosofia, Lógica e Epistemologia da Tecno-Ciência (LabFILOETEC/ITA). Em 2017, concluiu o estágio de Pós- Doutorado em Teoria da Justiça no PPGDIR na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Realizou Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008), http://lattes.cnpq.br/3216738054719684 http://lattes.cnpq.br/2430375748076749 134 Mestrado em Filosofia, com Bolsa CAPES, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2003) e Bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000). Atualmente coordena o GT Hobbes, da ANPOF. Desde 2019, constituiu-se como membro da Asociación Latinoamericana de Estudios Hobbesianos e da European Hobbes Society (desde 2020). Desenvolve pesquisa na área de Ética na inteligência artificial e filosofia política e da tecnologia, com atual interesse nos seguintes temas: Contratualismo Moderno: Thomas Hobbes; Ética: Ética e Inteligência Artificial, Ética das Máquinas, Inteligência Artificial e Atribuição de Responsabilidade, Possibilidade de Agentes Morais Artificiais. CV: http://lattes.cnpq.br/7268737133400216 Edgar Lyra Graduado em Engenharia Química pela UERJ (1981), com mestrado (1999) e doutorado (2003) em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde atua como professor e pesquisador associado. Coordenou o curso de graduação em Filosofia, entre setembro de 2013 e março de 2020, e exerceu o cargo de diretor do departamento entre 2020 e março de 2024. Tem experiência na área de Filosofia Contemporânea, especialmente em problemas éticos, políticos e pedagógicos vinculados à atual hegemonia tecnológica. Coordenou, entre 2014 e 2016, o Grupo de Trabalho Heidegger da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), ao qual continua filiado. Criou e lidera, desde 2016, o Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Tecnologia, certificado pelo CNPq. Ingressou em junho de 2019 no Laboratório de Humanidades Digitais da PUC-Rio, e em setembro do mesmo ano filiou-se ao EMAPS (Grupo de Ética e Mediação Algorítmica de Processos Sociais). CV: http://lattes.cnpq.br/3641926552572579 Fábio Luiz Tezini Crocco É professor do Departamento de Humanidades (IEFH) do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e membro do Laboratório de Cidadania e Tecnologias Sociais (LabCTS). É doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), na linha de pesquisa “Determinações do mundo do trabalho”, com estágio doutoral no Centro de Estudos Sociais (CES), vinculado à Universidade de Coimbra em Portugal (2014). Possui graduação em Ciências Sociais – Bacharelado (2005) e Licenciatura (2006) – e mestrado em Filosofia pela Unesp (2008). Atua com foco na Sociologia do Trabalho, nos estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) e na Teoria Crítica. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/5950052772377300 http://lattes.cnpq.br/7268737133400216 http://lattes.cnpq.br/3641926552572579 http://lattes.cnpq.br/5950052772377300 135 Hiure Anderson da Silva Queiroz É graduado em Física e mestre em Ciência dos Materiais pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Atualmente, está iniciando um doutorado em Inovação e Tecnologia pela Unifesp, com o objetivo de desenvolver tecnologias sociais voltadas para o bem-viver. É membro da Coolab – Laboratório Cooperativo de Redes Livres – e sócio-fundador do Sítio do Astronauta, iniciativas que promovem a apropriação da ciência e da tecnologia por meio da cultura hacker. Também atua na Associação Portal Sem Porteiras, que gerencia uma rede comunitária e trabalha na interface entre a sociedade e as tecnologias de comunicação e informação, fortalecendo a autonomia digital e a soberania tecnológica em comunidades. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/3937647124092137 Leonardo Ribeiro da Cruz Cientista Social. Professor adjunto de teoria sociológica no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará. Pesquisador do Observatório Educação Vigiada (educacaovigiada.org.br) e coordenador do Grupo de Pesquisa Laboratório de Estudos Sociotécnicos da Universidade Federal do Pará (LAES-UFPA). CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7288675449844086 Luciana Araújo Lima Machado Fisioterapeuta com Mestrado em Saúde da Criança e da Mulher (2012) na área de concentração: Saúde Coletiva – FIOCRUZ. Especialista em Fisioterapia Ortopédica e Manipulativa Articular pela Escuela de Osteopatia de Madrid, Espanha (2005) e Instrutora de Medical Qigong pela Japan Chinese Medical Qigong Association, Japão (2022). Coordenadora do Programa Núcleo de Atenção à Saúde do Aluno (ASA), da Divisão de Assuntos Estudantis, vinculada à Pró-Reitoria de Graduação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA. Experiência na área de adoecimento crônico e dor crônica, atua na área de promoção da saúde no ensino superior – principalmente voltado aos estudantes de graduação. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1425168161713718 Natália Jodas É Professora Adjunta de Direito do Departamento de Humanidades do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). É Doutora na subárea Direito Ambientalque o feminismo brasileiro não é uma luta individualista. É um movimento solidário, que busca transformar não apenas as condições de vida das mulheres, mas também da sociedade como um todo. Nesse contexto, há de se reconhecer a importância da educação para a desconstrução de estereótipos de gênero. Nana Queiroz, em Os meninos são a cura do machismo, enfatiza que transformar mentalidades requer um trabalho educacional desde a infância, incentivando meninos e meninas a explorar áreas como ciências e matemática, sem limitações impostas por papéis de gênero. A autora demonstra que a desconstrução da desigualdade de gênero e dos impactos do patriarcado partem de uma luta conjunta entre homens e mulheres, em um contexto de uma educação libertadora em que todos compreendem o impacto da opressão machista. Os desafios contemporâneos exigem novas reflexões: a era da globalização e das altas tecnologias traz benefícios inegáveis, mas também reforça desigualdades. A transformação que nós feministas estamos empenhadas em realizar demanda diálogo, educação e políticas públicas comprometidas com a igualdade de gênero e justiça social. 17 | Referências PIMENTEL, S. A mulher e a Constituinte. Uma contribuição ao debate. 2. ed. Cortez: Educ, 1985. PIMENTEL, S.; DI GIORGI, B.; MENDES, M. Estereótipos de gênero II: semente de repertório: dos corredores e gabinetes aos processos judiciais. São Paulo: Matrioska Editora, 2024. QUEIROZ, N. Os meninos são a cura do machismo. São Paulo: Record, 2021. 2. Desafios éticos da hegemonia da tecnologia e do desenvolvimento das IA’s Edgar Lyra8 Delmo Mattos9 doi.org/10.5281/zenodo.15198078 8 Professor e pesquisador associado da PUC-Rio. Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 9 Professor de Filosofia do Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.15198078 19 Resumo: A apresentação discute os desafios éticos, sociais e regulatórios trazidos pela ascensão de modelos de linguagem avançados, como o GPT, que revolucionaram a interação com IA desde 2022. A análise explora questões como o impacto dessas tecnologias na produção cultural, privacidade e manipulação de informações, além da urgência de políticas públicas eficazes. Ressalta-se a necessidade de um debate multidisciplinar que promova uma utilização responsável e inclusiva, equilibrando inovação tecnológica e responsabilidade ética. Por fim, propõe caminhos para regulamentação, destacando a importância da educação digital e da acessibilidade para reduzir desigualdades e fortalecer a confiança pública. Palavras-chave: Inteligência Artificial; Ética; Tecnologia; Inovação; Responsabilidade. A introdução dessa discussão é necessária e surge da satisfação em encontrar um grupo tão empenhado no tema. O objetivo é expor um problema e compartilhar a dificuldade de solução, buscando comprometer todos com o desafio que temos à frente. Não se trata de demonizar novas tecnologias, mas sim de deslocar a discussão do imaginário de ficção científica para algo mais concreto, porém igualmente desafiador quanto ao impacto em nossas existências pessoais e coletivas. O contexto atual destaca os grandes modelos de linguagem, como o GPT, que ganharam proeminência em 2022, quando a OpenAI, ao incorporar aprendizado por reforço com feedback humano, lançou sua ferramenta ao público, quebrando recordes de cadastros e acessos. Desde então, a qualidade das respostas vem surpreendendo, abrangendo temas como literatura, matemática, engenharia, programação, política e religião. Há uma discussão crescente sobre a possibilidade dessas LLMs (Large Language Models) se configurarem como Inteligência Artificial Geral, ou seja, inteligências capazes de atender a demandas variadas e não apenas problemas específicos. Esse fenômeno revisitou preocupações éticas e estratégicas que remontam às décadas de 1940 e 1950, nos Estados Unidos e na Europa, relacionadas à hegemonia tecnológica e ao poder de condicionamento da vida. Esse cenário se intensifica com a rápida proliferação de ferramentas semelhantes aplicadas à criação de texto, imagem, vídeo e outros conteúdos digitais, o que transforma a IA em uma força poderosa na produção cultural, educacional e até mesmo nas interações sociais cotidianas. Essa expansão exige uma compreensão profunda e detalhada dos impactos, não apenas técnicos, mas também éticos e sociais, que tais tecnologias representam. O uso massivo dessas ferramentas levanta questões urgentes sobre autenticidade, privacidade e a manipulação de informações, tornando imprescindível a criação de políticas públicas e estratégias regulatórias capazes de acompanhar esse avanço tecnológico e proteger os interesses individuais e coletivos. 20 A falta de regulação apropriada pode gerar consequências graves, como a proliferação de fake news, deepfakes e a erosão da confiança pública nas mídias digitais. É vital que legisladores e reguladores estejam bem informados e atentos à rapidez com que essas ferramentas evoluem, a fim de formular diretrizes que promovam uma utilização responsável e ética da tecnologia. Para isso, é fundamental envolver especialistas de áreas diversas, como ética, direito, ciência da computação e comunicação, buscando um consenso que equilibre inovação com responsabilidade. Além disso, a questão da acessibilidade e inclusão deve ser central nesse debate. Muitas vezes, tecnologias avançadas permanecem acessíveis apenas a um público específico, o que pode ampliar desigualdades ao criar barreiras para aqueles que não têm os mesmos recursos. Portanto, é necessário promover uma educação digital que capacite todas as camadas da população a entender e utilizar essas tecnologias de forma consciente e crítica. Sem um entendimento mínimo, qualquer debate sobre legislação corre o risco de ser vazio. Este seminário pretende abordar as várias facetas dessa questão, possibilitando uma discussão produtiva sobre o desafio. A apresentação será dividida em três partes: uma análise do estado da arte, deslocando a questão de narrativas apocalípticas para problemas concretos; uma discussão sobre ética e o verdadeiro problema da regulação; e, por fim, uma análise de questões relevantes. Os objetivos principais são esclarecer o contexto atual para quem ainda não se aprofundou no assunto e discutir caminhos para a regulamentação dessa tecnologia. A humanidade tem tentado regular as diferenças e resolver conflitos desde os tempos dos gregos, mas o desafio se agrava à medida que as mudanças tecnológicas se tornam cada vez mais rápidas e onipresentes. O fenômeno em questão possui uma dimensão atmosférica, ultrapassando a ideia de um simples instrumento que se pode optar por usar ou não. São tecnologias que condicionam as existências de maneira ubíqua, ao ponto de considerar que essas máquinas possam agir com “vontade própria” e questionar a ideia de controle completo sobre essas ferramentas. Pergunta-se se é realmente possível abdicar desse paradigma e renunciar à busca por vantagens estratégicas. Na prática, parece que as influências externas moldam as ações de forma profunda e o poder de condicionamento resultante é extraordinário. Adicionalmente, há o fator da aceleração exponencial da capacidade de processamento, que gera a sensação constante de novidade e de urgência em entender uma inovação antes que outra a substitua. Como lidar com essa velocidade? 21 | Ubiquidade tecnológica Não se pode agir como se existisse um “lado de fora” desse cenário. Todos estão imersos, e se há intenção de manter protagonismo e controle sobre o futuro, essa discussão deve partir de dentro, seja nas universidades, seja em centros de inovação. O fenômeno atual se manifesta em aspectos diversos da vida cotidiana: no sono, no ritmo de vida, nas interações sociais e na educação. A tecnologia tornou-se tão pervasivado Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da USP (2019). É Mestre em Direito Ambiental e Ecologia Política, na área de concentração Direito, Estado e Sociedade, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (2015). É especialista em http://lattes.cnpq.br/3937647124092137 http://lattes.cnpq.br/7288675449844086 http://lattes.cnpq.br/1425168161713718 136 Direito Constitucional pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) (2010). É graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) (2009). É Coordenadora de Atividades Científicas da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil (APRODAB). Foi Secretária-Geral (2017-2019) e Diretora de Comunicação (2020-2023) do Instituto O Direito por um Planeta Verde (IDPV). Desenvolve pesquisa na área de Direito Ambiental, Direito e Mudanças Climáticas, Espaços Protegidos, Pagamento por Serviços Ambientais, Inovações Sustentáveis e Direitos fundamentais. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1837664238865270 Nilda Oliveira Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, Professora Titular do Departamento de Humanidades do Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e membro do Laboratório de Cidadania e Tecnologias Sociais. Atua com foco nos estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), História da Ciência e Tecnologia no Brasil e Ensino de Engenharia, com ênfase na Curricularização da Extensão. Atualmente, é Secretária Geral da Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias – Esocite.BR. CV: http://lattes.cnpq.br/4767741185493374 Sandra Rufino Bolsista de Produtividade Desen. Tec. e Extensão Inovadora do CNPq. Atua há 31 anos no ensino superior. Professora da UFRN no Departamento de Engenharia de Produção (DEP/CT) na área de gerência da produção e no Programa Regional de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA). Professora no Programa de Pós- Graduação de Tecnologia para o Desenvolvimento Social (NIDES/UFRJ). Formada em Tecnologia Civil (1994) pela FATEC/SP, possui mestrado e doutorado (1999, 2005) em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (POLI/ USP), pós-doutorado em Tecnologias Sociais (2009) pela Université Catholique de Louvain (UCL) e pós-doutorado em Extensão Universitária e Engenharia Engajada (2022) pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). É membro: do Comitê Estadual de Investimentos e Negócios de Impacto Social (CENIS) do RN; do Laboratório de Cidadania e Tecnologia Social (LabCTS-ITA); da Rede de Professores do Instituto de Cidadania Empresarial (Academia ICE); da Rede de Engenharia Popular Osvaldo Sevá (REPOS). Integra a Associação Brasileira de Ensino, Pesquisa e Extensão em Tecnologia Social (ABEPETS) e é também conselheira dos Engenheiros Sem Fronteiras – ESF Brasil e orientadora ESF Natal. Compõe o grupo de pesquisa interinstitucional (UFRJ/UFRN/ITA/UFOP) que estuda Engenharias Engajadas. Na Pesquisa e Extensão, atua nas áreas de Extensão Universitária e Engenharias http://lattes.cnpq.br/1837664238865270 http://lattes.cnpq.br/4767741185493374 137 Engajadas; Educação em Engenharia; Tecnologia e Inovação Social, Negócios de Impacto Socioambiental; Gestão da Produção e Pensamento Enxuto. CV: http://lattes.cnpq.br/7918356337724287 Silvia Pimentel Possui Graduação e Pós-Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1970) e Pós-Graduação em Psicologia da Educação na mesma Universidade. Concluiu Doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1977). Atualmente, é professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo onde ocupa o cargo de Coordenadora do Núcleo de Direito Constitucional da Pós-Graduação em Direito da PUC/SP e representante docente da Faculdade de Direito da PUC/São Paulo no CEPE – Conselho de Ensino e Pesquisa. Dentre as disciplinas que leciona: Introdução ao Estudo do Direito, Filosofia do Direito e a Optativa Direito, Gênero e Igualdade, a qual introduziu, em uma perspectiva interdisciplinar, no currículo das Optativas da Faculdade, desde 2015, sendo que está desde o segundo semestre de 2017 aberta a alunos de todas as Faculdades da PUC. Fundadora e membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe Para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM-1987), e membro de seu Conselho Honorário Consultivo(desde 2005), fundadora e membro do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR-desde 1992) e “Expert” (2005-2016) e em 2011/2012, Presidente do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, da Organização das Nações Unidas (CEDAW/ONU). É coordenadora do Grupo de Pesquisa de Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade da PUC-SP. Integra a Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP. Autora de vários livros, textos e artigos. Conferencista. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6439432014660596 Solange Maria dos Santos Professora credenciada do Departamento de Biblioteconomia e Ciência da Informação do PPGCI da Escola de Comunicações de Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Possui graduação, mestrado e doutorado em Ciências da Informação pela Universidade de São Paulo (USP). Desde 2002, é coordenadora de Produção editorial e publicação do Programa SciELO onde também é representante do Comitê Consultivo da Rede SciELO. É pesquisadora do grupo CiMetrias da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e membro do Advisory Board Council do Directory of Open Access Journals (DOAJ). CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1490307259359399 http://lattes.cnpq.br/7918356337724287 http://lattes.cnpq.br/6439432014660596 http://lattes.cnpq.br/1490307259359399 138 Sueli Sampaio Damin Custódio Professora de Direito, Inovação e Ética dos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Coordenadora do Programa de Mestrado Profissional em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação (PROFNIT/ITA). Chefe do Laboratório de Inovação do ITA (InovaLab). Desenvolve pesquisa na área de Inovação, Ética e Direitos Especiais, com atual interesse nos seguintes temas: Inovação, Propriedade Intelectual, Novas Tecnologias e seus impactos. Política e Direito Espacial. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9219753372630977 Tatiane Luciano Balliano Possui graduação em Licenciatura em Química pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL, 2005), mestrado em Química e Biotecnologia, área de concentração Físico-química (cristalografia de raios X) pela Universidade Federal de Alagoas (2006) e doutorado em Física Aplicada (Biomolecular) pela Universidade de São Paulo (2010), onde trabalhou com planejamento de inibidores da enzima GAPDH de T. cruzi. Atualmente, é professora adjunta IV na Universidade Federal de Alagoas no Instituto de Química e Biotecnologia e tem experiência em Cristalografia de Raios X (pequenas e macromoléculas e materiais policristalinos), Química de Produtos Naturais, desenvolvimento de produtos e materiais para aplicação em saúde humana e veterinária. Desenvolve projetos para obtenção de materiais relevantes na indústria de Química fina a partir de recursos naturais da biodiversidade brasileira e de Alagoas. Na área de gestão em ciência, tecnologia e inovação, desempenha atualmente a função de presidente da Comissão Acadêmica Nacional da rede PROFNIT. Desempenha atividades ligadas à propriedade intelectual, transferência de tecnologia e empreendedorismo inovador. É Coordenadora da sede do PROFNIT – UFAL. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/6891155976666166 Vera Maria Sabóia Formada em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Federal Fluminense (1982), Mestrado em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995) e Doutorado em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1999). Concluiu pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2015). É professora Titular daDisciplina de Fundamentos de Enfermagem da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense desde 2005. Possui conhecimentos na área de Saúde Coletiva, Promoção da Saúde, Educação em Saúde, Formação em Enfermagem, Metodologias Participativas de Ensino e Pesquisa. Docente permanente do Programa Acadêmico de Ciências e Cuidado em Saúde (mestrado, http://lattes.cnpq.br/9219753372630977 http://lattes.cnpq.br/6891155976666166 139 doutorado e Pós-doutorado). Líder do Núcleo de Estudos em Fundamentos de Enfermagem (NEFE). Membro pesquisador do International Collaboration Health Research (ICPHR), do Programa de Enfermería del Grupo Tordesillas e do Programa Doutoral do Grupo Tordesillas de Enfermeria. Representante da Universidade Federal Fluminense na Rede Iberoamericana de Universidades Promotoras da Saúde. Coordenadora da parceria entre a UFF e a Escola Superior de Saúde Norte da Cruz Vermelha Portuguesa (COIL-2023). CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2886146961212444 http://lattes.cnpq.br/2886146961212444 Publique com a gente e compartilhe o conhecimento www.letraria.net http://www.letraria.net _Hlk190957516 _heading=h.gjdgxs _heading=h.30j0zll _heading=h.1fob9te _heading=h.3znysh7 _heading=h.2et92p0 _heading=h.tyjcwt _heading=h.3dy6vkm _heading=h.1t3h5sf _heading=h.5qv4yr34anea _heading=h.2s8eyo1 _heading=h.17dp8vu _heading=h.3rdcrjn _heading=h.26in1rg _heading=h.lnxbz9 _heading=h.35nkun2 _heading=h.1ksv4uvque a dependência e a interdependência com esses sistemas são realidades. Essa ubiquidade tecnológica dissolve limites entre o real e o mediado por telas e interfaces. Cada inovação aumenta a dependência e reduz a sensação de controle. Assim, não cabe mais a postura de uma observação neutra ou distante. Cabe a todos — pesquisadores, legisladores e sociedade civil — buscar garantir que o desenvolvimento tecnológico respeite valores éticos fundamentais e preserve um mínimo de autonomia humana. O uso constante de dispositivos móveis e a crescente dependência de tecnologias digitais têm levantado questões profundas sobre os impactos na atenção, na percepção espacial e temporal e nas interações sociais. Em grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro, observa-se com frequência pessoas caminhando distraídas com o celular, motociclistas e ciclistas navegando pelo trânsito enquanto olham para a tela, expondo-se a riscos. Esse fenômeno, abordado em um estudo de Roberto Siman sobre “Smartphone Zombies”, indica como a economia da atenção influencia o cotidiano e como se configura uma nova forma de percepção de espaço e tempo. Outro ponto de preocupação é a imersão proporcionada pelos jogos eletrônicos, que criam um ambiente espacial não natural. Jogos populares, como Free Fire e Fortnite, estruturam-se em molduras retangulares onde o movimento do cenário predomina sobre o movimento do personagem, criando uma sensação assimétrica de espaço e tempo. Essa nova forma de experiência espacial, que exige análise crítica, afeta a maneira como se percebe a realidade. Embora seja uma questão moral, também se trata de como a tecnologia redefine a atenção e as interações. Na educação, o uso de ferramentas digitais apresenta desafios adicionais. Durante a pandemia, as aulas remotas gravadas permitiam aos estudantes assistir ao conteúdo em velocidade aumentada, o que levanta questionamentos sobre o processamento da informação e o impacto na aprendizagem. Esse contexto reflete mudanças na discursividade e nos processos de absorção de conhecimento, adaptando-se a um ritmo acelerado, mas talvez em detrimento da profundidade de compreensão. 22 Esse crescimento acelerado trouxe à tona preocupações sobre a privacidade, a transparência e o uso ético da inteligência artificial. Grandes modelos de linguagem, como o GPT, possuem a capacidade de gerar texto de forma incrivelmente realista, o que levanta questões sobre a autenticidade e a autoria do conteúdo produzido. Em alguns casos, os usuários podem não distinguir entre o que foi escrito por um ser humano e o que foi gerado por uma máquina, criando desafios para a detecção de desinformação e a confiança nas informações disseminadas on-line. Esse cenário exige que desenvolvedores e legisladores considerem diretrizes que promovam a clareza e a responsabilidade na utilização desses sistemas. Outro aspecto relevante é a questão do viés algorítmico. Assim como outros modelos de IA, os grandes modelos de linguagem são treinados em vastas quantidades de dados, que podem refletir preconceitos existentes na sociedade. Isso significa que, sem uma análise crítica e uma calibragem cuidadosa, esses sistemas podem reproduzir e até amplificar preconceitos de gênero, raça e outras desigualdades estruturais. Empresas e pesquisadores da área de IA têm buscado mecanismos para mitigar esses vieses, mas ainda há um longo caminho para garantir que a tecnologia seja desenvolvida de forma justa e inclusiva. Esse esforço depende de um trabalho colaborativo entre programadores, cientistas de dados, filósofos e representantes de minorias para revisar e melhorar continuamente esses sistemas. | Automação, eficiência e produtividade A proliferação desses modelos também introduz desafios em termos de emprego e mercado de trabalho. Ferramentas como o GPT podem automatizar tarefas antes desempenhadas por humanos, gerando preocupações sobre o futuro de diversas profissões, especialmente em áreas de criação de conteúdo, atendimento ao cliente e análise de dados. Embora a automação ofereça o potencial de aumentar a eficiência e a produtividade, ela também demanda que trabalhadores e empresas se adaptem rapidamente às mudanças. Políticas públicas focadas em educação e requalificação profissional serão fundamentais para ajudar a força de trabalho a se adaptar ao cenário emergente e a desenvolver novas habilidades que complementem as capacidades da IA. Finalmente, o impacto social e psicológico da interação com IA também é uma preocupação crescente. Com a presença cada vez maior desses modelos em aplicativos de bate-papo, assistentes virtuais e redes sociais, é essencial refletir sobre como essa interação pode influenciar nossa comunicação, nossos relacionamentos e até nossa percepção da 23 realidade. Em uma sociedade cada vez mais digital, as interações mediadas por IA podem alterar a maneira como os indivíduos se conectam uns com os outros, afetando a empatia e o sentido de comunidade. Uma abordagem ética ao desenvolvimento e implementação desses sistemas deve, portanto, priorizar o bem-estar emocional e social das pessoas, buscando promover uma convivência tecnológica que fortaleça laços humanos em vez de enfraquecê-los. O uso de ferramentas de inteligência artificial, como o Midjourney, que possibilita criar imagens hiper-realistas, e softwares de “deepfake” que alteram vozes e rostos em tempo real, desafiam a noção de autenticidade. Esses recursos já estão amplamente disponíveis e acessíveis, criando riscos significativos para a privacidade e a integridade das informações. A manipulação de imagens e áudios de forma tão acessível pode impactar a confiabilidade das informações e facilitar a disseminação de conteúdo falso. A questão ética em torno dessas tecnologias é complexa, pois envolve a mediação entre os avanços tecnológicos e a preservação de valores fundamentais, como a integridade das narrativas e a privacidade individual. O uso excessivo e pouco regulado de inteligências artificiais coloca em evidência a necessidade de políticas de regulação e reflexão ética, especialmente em um ambiente onde os dados e as informações se transformam rapidamente. Finalmente, no ambiente acadêmico, essas tecnologias apresentam dilemas sobre a originalidade e autenticidade do trabalho intelectual. A proliferação de ferramentas de inteligência artificial que auxiliam na produção de textos e artigos acadêmicos gerou preocupações com o uso ético desses recursos, levando a uma revisão mais rigorosa dos trabalhos. Em última análise, esses fenômenos indicam a importância de uma regulação que considere o impacto dessas inovações no ambiente educacional e social, preservando um mínimo de autonomia humana e ética. A pesquisadora leu os 230 títulos ou foi uma ferramenta que localizou as palavras- chave e gerou resumos que a auxiliaram a decidir se os incorporaria em sua tese? Existe uma mudança profunda na economia do conhecimento, mesmo em áreas consideradas “hardcore”. Hoje, as máquinas já programam muitas dessas atividades. No meu grupo interdisciplinar, por exemplo, temos especialistas em diversas áreas. Como filósofo, eu preciso do apoio de profissionais de Computação, Engenharia Elétrica, Direito e Neurociência para compreender o fenômeno em sua totalidade. Sem isso, há o risco de interpretações equivocadas. Estamos estudando ferramentas de processamento de texto. Esta tecnologia ainda não é uma LLM (Large Language Model), mas um motor que identifica regularidades e organiza 24 dados em gráficos, o que reduz significativamente o esforço de leitura de textos completos, promovendo o chamado “distant reading” em contraste com a leitura próxima (“close reading”). Precisamos analisar a qualidade do conhecimento gerado e refletir criticamente sobre ele. Um exemplo interessante é o artigo de Emily Bender e outros, “On the Dangers of Stochastic Parrots: Can Language Models Be Too Big?”, que discute a ideia dos “papagaios estocásticos”.Muitos já tentaram entender como as LLMs funcionam e como elas, embora respondam de forma convincente, apenas mimetizam associações de palavras sem compreensão real. Essas LLMs podem se tornar tão complexas que, em algum ponto, é difícil distingui-las de seres conscientes, à luz de testes como o de Turing. Trouxemos recentemente ao Brasil a pesquisadora Erin Glass, da Universidade de San Diego. Ela estudou como o processo de escrita mudou com a introdução dos computadores, inspirando-se em Paulo Freire para analisar o impacto nos novos pesquisadores norte- americanos. Sua tese de doutorado, The Software of the Oppressed, investiga o aprendizado crítico em ambientes digitais. | Tecnologias, realidade digital e opinião pública Outro ponto importante são as normas éticas e regulatórias em tecnologia. A Associação de Computação propôs prioridades para a pesquisa que se alinham com os valores de equidade, confiabilidade, segurança, impacto social e responsabilidade. A legislação brasileira, como o Projeto de Lei nº 2338, busca regular o uso de IA e já adota alguns desses princípios, categorizando os riscos em diferentes níveis e estipulando responsabilidades proporcionais a cada um. Estamos em um momento crucial, no qual o caráter (individual e coletivo) deve ser fortalecido para uma sociedade habitável. Ética, moral, direito e política precisam caminhar juntos para regular práticas que impactam o bem-estar coletivo. Vamos analisar o conteúdo do artigo TR para explorar valores como justiça, equidade, inclusão, transparência, explicabilidade, inteligibilidade e auditabilidade. Embora esses princípios estejam bem estabelecidos, o problema parece residir menos em sua definição e mais em sua implementação prática. Existe um consenso na comunidade internacional de que uma sociedade sustentável, diante das novas tecnologias, precisa cultivar a transparência e os parâmetros de inclusão, justiça e equidade. No entanto, é fundamental refletir sobre algumas questões para concluir essa discussão e abrir espaço para o diálogo. 25 Primeiro, até que ponto esses princípios são realmente universais e imperativos? Como um princípio se concretiza, por exemplo, no Vale do Silício em comparação com uma comunidade religiosa ou um grupo de fãs? Supondo que haja um consenso mínimo sobre esses princípios, como podemos garantir que eles sejam acolhidos e aplicados de maneira uniforme? Como disseminamos esses valores, para que se tornem parte da vida de programadores, usuários iniciantes e avançados, crianças e idosos? Será que apenas a legislação é suficiente para que esses valores sejam respeitados? A exemplo da Lei nº 2338, muitos de seus dispositivos já são considerados ultrapassados antes mesmo de sua implementação. Ela menciona o termo “educação” apenas duas vezes, o que demonstra uma lacuna significativa. É necessário investir em letramento digital desde cedo, preparando a população para interagir criticamente com a tecnologia, uma vez que essas crianças e jovens já fazem parte de uma nova realidade digital. Um projeto que desenvolvo na Rocinha, por exemplo, tenta compreender como jovens da comunidade acessam e utilizam a internet, considerando suas limitações. Esses alunos estão imersos no universo digital, o que desafia o formato de atenção tradicional das escolas. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) fala sobre letramento digital, mas ainda há muito a ser feito para qualificar a opinião pública e desmistificar essas novas tecnologias. Outro aspecto crucial é a inserção cultural desses valores. Isso requer a colaboração da mídia e de comunicadores para criar uma ponte entre a educação formal e a informal, garantindo que todos compreendam o impacto da tecnologia em suas vidas. Na PUC, estamos estudando formas de incorporar mecanismos reguladores nos próprios sistemas tecnológicos, como limitadores “by design”, que ajudem legisladores e educadores a promover esses valores éticos. Ética não se limita a um conjunto de princípios; envolve uma atenção aos hábitos, valores, normas e leis que estruturam a sociedade high-tech em que vivemos. Em termos filosóficos, trata-se de uma reflexão constante sobre o modo como estamos lidando com tudo isso. Como diria Aristóteles, precisamos da “phronesis”, ou seja, uma sabedoria prática que nos ajude a agir de maneira mais sensata e humana. É importante notar que, para avançar nessas questões, é necessário promover um diálogo interdisciplinar e holístico, no qual engenheiros, cientistas, filósofos, juristas e educadores estejam envolvidos. No evento “Legal T”, por exemplo, conversei com um representante da Meta que afirmou que a empresa segue os melhores princípios de transparência e responsabilidade. No entanto, precisamos reconhecer as limitações e a complexidade dessas promessas e envolver ainda mais atores sociais no debate. 26 Na educação, por exemplo, as escolas enfrentam dilemas sobre o uso de celulares em sala de aula, uma questão que desafia até mesmo os princípios mais liberais. O uso excessivo de dispositivos inviabiliza a interação e a atenção dos alunos. Assim, algumas medidas restritivas temporárias podem ser necessárias, até que se reintroduza o uso de maneira mais consciente. Para enfrentar o problema, precisamos que todos os setores da sociedade — técnicos, desenvolvedores, filósofos, sociólogos, juristas, teólogos e a mídia — participem do diálogo. É hora de pararmos de fingir que essas questões possuem respostas simples e de reconhecer que precisamos de uma abordagem que una a legislação, a cultura e a educação para que possamos desenvolver uma regulação ética e viável para as novas tecnologias. | Sociedade e engajamento multidisciplinar A discussão sobre a interação entre novas tecnologias e sociedade é complexa e requer um engajamento multidisciplinar profundo. Essa introdução busca contextualizar as problemáticas atuais e fomentar um diálogo crítico e colaborativo sobre os desafios que as inovações tecnológicas, como os grandes modelos de linguagem (Large Language Models – LLMs), representam para o tecido social e ético. O interesse crescente nesses sistemas de inteligência artificial começou com o lançamento do GPT pela OpenAI, em 2022, uma tecnologia avançada que incorpora aprendizado por reforço e feedback humano, conquistando rapidamente milhões de usuários. Desde então, modelos como o GPT têm se expandido, abordando temas de diversas áreas do conhecimento, como literatura, matemática, engenharia e até questões mais subjetivas, como ética e religião. Esse avanço coloca uma questão central: será que estamos observando o surgimento de uma inteligência artificial geral (AGI), capaz de resolver problemas amplos e complexos e de se adaptar a contextos variados? Essa questão, longe de ser um debate restrito à ficção científica, é hoje uma preocupação tangível e imediata, que evoca o contexto histórico das décadas de 1940 e 1950, quando surgiram as primeiras preocupações sobre a hegemonia tecnológica e o poder de condicionamento da vida humana. À medida que essas ferramentas avançam, questões éticas e estratégicas se intensificam, exigindo uma abordagem fundamentada para orientar políticas públicas e regulações que se adaptem ao contexto atual. Sem um entendimento mínimo sobre o funcionamento e o impacto dessas tecnologias, os debates sobre regulamentação correm o risco de ser meramente superficiais. Esse seminário, portanto, busca explorar as várias dimensões dessa discussão. A proposta é dividir a apresentação em três partes fundamentais: análise 27 do estado da arte, no qual as questões tecnológicas e éticas serão discutidas sem recorrer a narrativas apocalípticas; uma reflexão sobre o dilema ético-regulatório; e, por fim, uma análise prática das questões mais relevantes para a sociedade. A amplitude do impacto dessas tecnologias é evidente. Elas não são mais apenas instrumentos opcionais: tornaram-se parte integrante e onipresente do cotidiano, afetandodesde interações interpessoais até a maneira como compreendemos nossa própria identidade e o espaço ao nosso redor. Em grandes centros urbanos, observamos pessoas andando distraídas com seus celulares ou motociclistas utilizando dispositivos durante o trânsito, expondo-se a perigos. Esse fenômeno da “economia da atenção” nos faz questionar o quanto a tecnologia reconfigura a percepção do tempo e do espaço. No campo da educação, o uso de ferramentas digitais durante a pandemia trouxe à tona desafios que vão além da sala de aula física. Estudantes que assistiam a aulas gravadas em velocidade acelerada, por exemplo, levantaram questionamentos sobre o impacto desse ritmo acelerado na absorção e profundidade do conhecimento. O ambiente acadêmico também foi transformado, com ferramentas de IA facilitando a produção de textos e artigos, o que gerou preocupações sobre a autenticidade e originalidade do trabalho intelectual. A capacidade de gerar imagens, vídeos e áudios com alto grau de realismo tem implicações sérias para a sociedade, especialmente no que diz respeito à confiança pública. Ferramentas como o Midjourney e os “deepfakes” colocam em risco a credibilidade de registros audiovisuais, tradicionalmente vistos como provas fiáveis de eventos e declarações. Esse fenômeno desafia a habilidade das pessoas de distinguir entre o real e o fabricado, o que pode levar a uma crescente desconfiança em informações compartilhadas em redes sociais, na mídia e em processos judiciais. Em resposta, empresas de tecnologia e legisladores estão explorando métodos de verificação digital e mecanismos de autenticação, mas ainda há muito a ser feito para estabelecer padrões globais que garantam a integridade das mídias. Outro aspecto preocupante é o impacto sobre a privacidade e o consentimento individual. Com a facilidade de manipulação digital, é possível criar representações de qualquer pessoa sem sua autorização, o que levanta questões sobre o direito à imagem e ao controle de sua identidade digital. A falta de regulamentação clara permite que esses conteúdos sejam usados de maneira prejudicial, como em casos de pornografia não consensual ou difamação, afetando gravemente a vida das pessoas envolvidas. Para enfrentar esses desafios, políticas que protejam os direitos das pessoas sobre sua própria imagem e voz tornam-se urgentes, exigindo que as plataformas digitais, os governos e as organizações civis colaborem na criação de mecanismos de proteção e denúncia eficazes. 28 | Dilemas, educação e bem-estar social Além disso, a manipulação de conteúdo visual e sonoro contribui para a propagação de desinformação e pode ser usada como ferramenta de manipulação política. Em períodos eleitorais, por exemplo, o uso de deepfakes e outros tipos de conteúdo forjado pode distorcer declarações de candidatos, induzir eleitores ao erro e desestabilizar democracias. Em um contexto em que a informação digital circula rapidamente e com grande impacto, torna-se fundamental que os sistemas de IA contem com barreiras contra a criação de conteúdo enganoso. Iniciativas para aumentar a literacia digital e a conscientização da população sobre os riscos dessas tecnologias também desempenham um papel crucial na proteção contra manipulações. Por fim, a questão da responsabilidade se destaca no uso de tecnologias de manipulação digital. Quando um conteúdo falsificado causa danos, torna-se difícil determinar a quem cabe a responsabilidade: ao desenvolvedor do software, ao usuário que manipulou o conteúdo, ou à plataforma que permitiu sua disseminação? Esse dilema expõe a necessidade de desenvolver um quadro ético e jurídico claro que defina os limites de uso e a responsabilidade de cada agente no ecossistema digital. Construir um futuro tecnológico mais ético e seguro exige uma postura proativa em relação à responsabilidade, envolvendo tanto empresas de tecnologia quanto governos e a sociedade civil para criar um ambiente em que a inovação sirva ao bem comum e respeite os direitos fundamentais de todos. Esses desafios ressaltam a necessidade de uma regulamentação que considere não apenas a proteção de dados, mas também a integridade da informação e o bem-estar social. No entanto, cabe questionar se a legislação, por si só, é capaz de promover a adesão aos valores éticos necessários. A Lei Brasileira de IA (PL 2338) destaca alguns desses princípios, mas menciona “educação” apenas duas vezes, subestimando o papel crítico do letramento digital na formação de cidadãos preparados para a era digital. Os dilemas que emergem não podem ser resolvidos apenas com respostas técnicas; exigem também uma abordagem cultural e educacional que prepare a sociedade para enfrentar os impactos de uma convivência cada vez mais próxima com sistemas autônomos e avançados. No Brasil, um exemplo dessa realidade pode ser observado em projetos educacionais em comunidades como a Rocinha, onde jovens imersos no universo digital desafiam os formatos educacionais tradicionais. Nesse contexto, as escolas e as famílias precisam entender que o desenvolvimento de uma convivência saudável com a tecnologia deve começar desde cedo, promovendo a criação de limites e o incentivo ao pensamento crítico. É fundamental a construção de uma 29 ética compartilhada que guie o desenvolvimento tecnológico em direção à transparência, inclusão e justiça. Ao mesmo tempo, a sociedade precisa cultivar uma sabedoria prática, ou phronesis, como propôs Aristóteles, para que possamos desenvolver uma convivência sensata e consciente com essas inovações. Ética, direito e política precisam avançar juntos para enfrentar o impacto que o uso das novas tecnologias tem sobre o bem-estar individual e coletivo. Portanto, estamos diante de um momento crucial em que o caráter, tanto individual quanto coletivo, deve ser fortalecido e moldado para que a sociedade possa coexistir com as tecnologias emergentes de maneira ética e sustentável. As discussões devem envolver engenheiros, cientistas, filósofos, juristas, educadores e a sociedade em geral para construir um caminho que garanta a segurança e a integridade da nossa convivência com a inteligência artificial e as tecnologias digitais. Essa reflexão compartilhada visa criar um ambiente de colaboração, no qual o desenvolvimento tecnológico esteja sempre a serviço dos valores humanos e da autonomia. A partir dessa abordagem, poderemos criar políticas e práticas que protejam e valorizem a diversidade humana, promovendo um progresso que respeite as especificidades e necessidades de todos. A convivência ética com a inteligência artificial (IA) é um desafio que exige a participação de toda a sociedade, incluindo escolas, famílias, desenvolvedores e formuladores de políticas. À medida que a IA se torna parte essencial de nosso cotidiano, torna-se crucial promover, desde cedo, uma relação consciente e crítica com essas tecnologias. Isso implica não apenas a criação de limites de uso, mas também o incentivo ao pensamento crítico, para que as gerações mais jovens desenvolvam habilidades que lhes permitam compreender e questionar os impactos da tecnologia em suas vidas. Para orientar o desenvolvimento tecnológico de maneira ética e sustentável, é essencial construir uma ética compartilhada, baseada em valores como transparência, inclusão e justiça. Essa ética deve não apenas regulamentar o uso da IA, mas também guiar as práticas de design e implementação dessas tecnologias, assegurando que elas promovam o bem- estar coletivo e individual. Em outras palavras, a IA deve servir aos valores humanos e à autonomia, e não o contrário. 30 | Uso responsável das tecnologias Aristóteles introduziu o conceito de phronesis, ou sabedoria prática, como uma virtude essencial para a convivência sensata e consciente com inovações e desafios. Hoje, mais do que nunca, precisamos dessa sabedoria para lidar com os impactos das tecnologias emergentes. Ética, direito e política devem caminhar juntos,promovendo uma regulação que respeite as necessidades e especificidades humanas, protegendo a integridade de nossa convivência com a IA e outras tecnologias digitais. Nesse contexto, estamos em um momento crítico: o fortalecimento do caráter individual e coletivo é necessário para que possamos navegar as mudanças com responsabilidade e resiliência. As discussões sobre ética em IA precisam envolver engenheiros, cientistas, filósofos, juristas, educadores e o público em geral, numa perspectiva interdisciplinar e colaborativa, para que possamos construir uma convivência que equilibre progresso e responsabilidade. Esse diálogo colaborativo não apenas promoverá a segurança, mas também valorizará a diversidade humana, garantindo que o avanço tecnológico respeite e atenda às necessidades de todos. A construção de políticas e práticas éticas na IA é um caminho para um futuro em que a tecnologia esteja verdadeiramente a serviço da humanidade. Por meio de uma abordagem ética e inclusiva, podemos desenvolver uma relação com a tecnologia que valorize a diversidade, proteja a autonomia e promova um progresso que beneficie e respeite cada indivíduo e a sociedade como um todo. O crescente uso da inteligência artificial (IA) e outras tecnologias digitais tem gerado um impacto profundo na sociedade, alterando desde as formas de comunicação até as estruturas de poder político e social. Nesse cenário, a questão da ética no desenvolvimento e na aplicação dessas tecnologias se torna central. À medida que ferramentas como deepfakes, manipulação de conteúdo visual e áudio, e algoritmos de recomendação se tornam mais acessíveis e sofisticadas, as implicações para a privacidade, a veracidade das informações e a segurança das democracias são alarmantes. Em particular, a capacidade de criar conteúdos falsificados ou manipulados de forma tão realista coloca em risco a confiança pública, especialmente em momentos críticos como períodos eleitorais, nos quais a desinformação pode influenciar resultados e desestabilizar instituições democráticas. Porém, o impacto dessas tecnologias não se limita à esfera política. As questões éticas relacionadas à manipulação de conteúdo também envolvem os direitos individuais, como o direito à privacidade e à própria imagem. A facilidade com que é possível criar representações de uma pessoa sem seu consentimento levanta preocupações sobre abusos, 31 como a difamação ou a exploração indevida da imagem pessoal. O uso irresponsável dessas tecnologias pode resultar em danos irreparáveis às vítimas, especialmente em um mundo onde a informação se espalha rapidamente e pode ser consumida sem a devida verificação de sua autenticidade. Para enfrentar essas ameaças, é urgente que governos, empresas de tecnologia e organizações civis desenvolvam políticas públicas robustas que protejam os indivíduos contra o uso indevido de suas imagens e dados pessoais, e que promovam um uso ético e transparente dessas tecnologias. Outro ponto crucial é o papel da educação e do letramento digital na formação de uma sociedade capaz de lidar de forma ética com as tecnologias emergentes. Não basta que as leis existam; é necessário que a população esteja preparada para compreender os impactos dessas tecnologias no cotidiano. A Lei Brasileira de IA, por exemplo, já se preocupa com a regulamentação dessas tecnologias, mas ainda precisa avançar na inclusão de temas como educação digital. A conscientização e o treinamento contínuo, principalmente entre jovens e comunidades mais vulneráveis, são fundamentais para que os cidadãos se tornem participantes críticos e informados no uso das novas tecnologias. No Brasil, iniciativas educacionais como aquelas observadas na Rocinha, onde jovens são introduzidos ao universo digital de forma participativa e crítica, podem servir como modelos para a construção de uma sociedade mais engajada e preparada para o futuro digital. É imprescindível que esse processo de conscientização e regulamentação envolva todos os setores da sociedade. Engenheiros, cientistas, filósofos, educadores, juristas e a população em geral devem trabalhar juntos para criar um consenso ético que oriente o desenvolvimento da IA de maneira inclusiva, justa e sustentável. A criação de uma ética compartilhada não deve se limitar ao âmbito da legislação, mas também englobar práticas sociais e culturais que incentivem a transparência, a inclusão e a justiça. A tecnologia deve ser um meio para promover o bem-estar coletivo, sem prejudicar os direitos individuais. Nesse sentido, Aristóteles, com seu conceito de phronesis ou sabedoria prática, oferece uma perspectiva fundamental para que possamos equilibrar as inovações tecnológicas com os valores humanos, agindo com sensatez e responsabilidade diante dos novos desafios que surgem. Assim, o futuro das tecnologias emergentes e da inteligência artificial depende da capacidade da sociedade de criar e adotar uma abordagem ética e colaborativa. Precisamos entender que a inovação tecnológica, quando não acompanhada de uma reflexão ética profunda, pode gerar mais problemas do que soluções. Portanto, é vital que continuemos a promover o diálogo entre diferentes áreas do conhecimento, incentivando a criação de políticas públicas, práticas empresariais e comportamentos sociais que respeitem os direitos 32 humanos e promovam o bem-estar coletivo. Apenas dessa forma, poderemos garantir que as tecnologias emergentes realmente sirvam à humanidade, respeitando as necessidades e os direitos de todos os indivíduos e promovendo um progresso verdadeiramente inclusivo e sustentável. | Perguntas do público ao Prof. Edgar Lyra Pergunta Na filosofia, há uma resistência inicial à ideia de regulamentação. Por que, então, você passou a defender a regulamentação da Inteligência Artificial (IA)? Resposta Inicialmente, minha perspectiva era de que a IA deveria se autorregulamentar, sem a necessidade de normas externas. Porém, ao me aprofundar em estudos e artigos sobre o tema, percebi que o próprio desenvolvimento da IA exige um acompanhamento regulatório. É impossível imaginar a evolução dessa tecnologia sem um marco regulatório que a acompanhe, dada sua complexidade e impacto. Por exemplo, temos carros autônomos já em operação em alguns países, e um dos grandes desafios é a questão da responsabilidade moral e ética. As máquinas não possuem inteligência natural, mas sim uma inteligência artificial, criada por humanos e carregada com valores, vieses e princípios das pessoas que a programam. Esses vieses podem ser racistas, religiosos ou outros, e já vimos casos concretos disso. Um exemplo foi o incidente no Google, onde uma busca pelo termo “macaco” retornava imagens de pessoas negras. Mais recentemente, um homem foi identificado erroneamente como criminoso por uma IA durante um jogo de futebol. Esses exemplos evidenciam a necessidade de uma regulamentação que impeça vieses prejudiciais. Sem regulamentação, corremos o risco de chegarmos a extremos, como carros autônomos que tomam decisões enviesadas ou tecnologias militares que atacam alvos indevidamente. Assim, defendo que o desenvolvimento da IA esteja necessariamente acompanhado de regulamentações claras e éticas. Pergunta Como você vê o papel de outras áreas do conhecimento nesse debate sobre regulamentação da IA? 33 Resposta A regulamentação da IA não pode ser tratada de forma isolada ou puramente técnica. É essencial envolver diversas áreas do conhecimento, como filosofia, sociologia, direito, psicologia, e até mesmo teologia. Essa abordagem interdisciplinar enriquece o debate e evita soluções unilaterais e ineficazes. Tive a oportunidade de participar de debates com representantes de grandes empresas, como a Meta. Embora o discurso seja muitas vezes de que estão alinhados com transparência e responsabilidade, há uma desconexão entre a narrativa apresentada e a realidade dos impactos da IA. Por isso, é crucial trazer mais pessoas para essaconversa. Além disso, precisamos repensar nossos próprios paradigmas. Às vezes, medidas mais rígidas são necessárias para controlar o uso inadequado da tecnologia e abrir espaço para reflexões mais profundas. Um exemplo simples: em escolas construtivistas, a proibição temporária de celulares foi necessária para recuperar o ambiente de aprendizagem. Pergunta A regulamentação é importante, mas como lidar com externalidades, como a exploração de trabalhadores que treinam IA ou os impactos ambientais das tecnologias? Resposta As externalidades são um aspecto essencial nesse debate. Muitas vezes, focamos nos problemas mais visíveis da IA, como vieses e decisões erradas, mas ignoramos questões estruturais, como a exploração de trabalhadores terceirizados que etiquetam dados para treinar modelos de IA. Empresas contratam mão de obra barata de países como Namíbia e Zâmbia para identificar conteúdos problemáticos. Esses trabalhadores são invisíveis, mas essenciais para o funcionamento das IAs modernas. Outro ponto crítico é o impacto ambiental. A energia necessária para treinar modelos de IA, como o GPT, é imensa, e precisamos questionar se estamos priorizando as coisas certas em meio a uma crise climática global. A regulamentação deve considerar não apenas o uso da IA, mas também as condições em que essas tecnologias são produzidas. Pergunta Como você enxerga a influência econômica e política sobre a regulamentação da IA? Resposta A economia e a política têm papel central nesse processo. As grandes corporações de tecnologia, as chamadas “Big Techs”, possuem recursos e influência desproporcionais, 34 moldando o desenvolvimento e a regulamentação da IA em benefício próprio. Por outro lado, os Estados enfrentam o desafio de equilibrar interesses econômicos e a proteção da população. A disputa entre esses dois lados define o terreno da regulamentação. Enquanto os Estados buscam proteger direitos e estabelecer normas coletivas, as corporações frequentemente priorizam lucratividade e competitividade. Por isso, a regulamentação da IA precisa ser pensada considerando as dinâmicas de poder e os interesses econômicos que influenciam tanto o desenvolvimento quanto o uso dessas tecnologias. | Referências ASSOCIAÇÃO DE COMPUTAÇÃO. Proposta de prioridades de pesquisa alinhadas com equidade, confiabilidade, segurança, impacto social e responsabilidade. Disponível em: https://acm.org/research-priorities. Acesso em: 19 nov. 2024. BENDER, E. et al. On the dangers of stochastic parrots: can language models be too big? Proceedings of the 2021 ACM Conference on Fairness, Accountability, and Transparency (FAccT). New York: ACM, 2021. Disponível em: https://doi. org/10.1145/3442188.3445922. Acesso em: 19 nov. 2024. BRASIL. Projeto de Lei nº 2338, de 2023. Regulamentação do uso de inteligência artificial no Brasil. Disponível em: https://www.camara.leg.br/projetos/2338. Acesso em: 19 nov. 2024. GLASS, E. The software of the oppressed. 2021. Tese (Doutorado em Educação) – University of San Diego, San Diego, 2021. SIMAN, R. Estudo sobre “Smartphone Zombies”. Disponível em: https://exemplo.com/ smartphonezombies. Acesso em: 19 nov. 2024. https://acm.org/research-priorities https://doi.org/10.1145/3442188.3445922 https://doi.org/10.1145/3442188.3445922 https://www.camara.leg.br/projetos/2338 https://exemplo.com/smartphonezombies https://exemplo.com/smartphonezombies 3. Desafios da gestão editorial no contexto da Ciência Aberta Solange Maria dos Santos10 doi.org/10.5281/zenodo.15198104 10 Doutora em Ciências da Informação pela Universidade de São Paulo. Coordenadora de Produção editorial e publicação do Programa SciELO. Professora credenciada do Departamento de Biblioteconomia e Ciência da Informação do PPGCI da Escola de Comunicações de Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). https://doi.org/10.5281/zenodo.15198104 36 Resumo: A palestra abordou os princípios que norteiam a Ciência Aberta, principalmente no que se refere aos periódicos científicos e aos desafios da gestão editorial, com destaque para práticas editoriais abertas que englobam: preprints, dados abertos, artigo de dados, periódicos de dados, além da adoção progressiva de formas mais transparentes da avaliação por pares. Palavras-chave: Ciência Aberta; Preprints; Dados abertos; Revisão por pares aberta. A Ciência Aberta (open science) é frequentemente apresentada como um termo “guarda- chuva” que engloba um conjunto de práticas e princípios que visam tornar a pesquisa mais transparente, acessível e colaborativa. A UNESCO (2022) define a Ciência Aberta como: [...] um construto inclusivo que combina vários movimentos e práticas com o objetivo de tornar o conhecimento científico multilíngue disponível abertamente, acessível e reutilizável para todos, para aumentar as colaborações científicas e o compartilhamento de informações para os benefícios da ciência e da sociedade, e para abrir os processos de criação de conhecimento científico, avaliação e comunicação aos atores sociais além da comunidade científica tradicional. Fundamentada em valores como qualidade, integridade, equidade e benefício coletivo, justiça e diversidade, a Ciência Aberta reconfigura a produção e disseminação do conhecimento, incentivando a participação de diversos atores no processo científico e promovendo a comunicação científica transparente. Esses valores permeiam não apenas o ato de publicar, mas todo o ciclo de pesquisa – desde a concepção até a disseminação dos resultados. Assim, embora não seja um conceito novo, a Ciência Aberta é um fenômeno disruptivo que propõe mudanças significativas na forma de produção, organização e disseminação do conhecimento científico, visando que ele possa ser reutilizado de forma colaborativa, sustentável, democrática, livre, transparente e ética. | Transformações na produção e gestão editorial dos periódicos O movimento em favor da Ciência Aberta ganhou força principalmente a partir de 2013, quando a Comissão Europeia, alinhada a seus princípios, definiu diretrizes para o financiamento e a divulgação dos resultados de projetos de pesquisa. Desde então, tem se espalhado rapidamente, conquistando apoio global (European Comission, 2015). 37 A ascensão da Ciência Aberta demanda uma reestruturação dos modelos tradicionais de publicação científica, impactando diretamente o ambiente de edição e gestão dos periódicos científicos. Packer e Santos (2019b) destacam que essa mudança desafia os modelos de negócio existentes, exigindo novas formas de financiamento e plataformas de publicação mais eficientes e transparentes, dentre elas: • A disponibilização em repositórios de acesso aberto dos dados, métodos de análise e códigos de programas e demais materiais utilizados na pesquisa, assim como dos resultados obtidos a fim de viabilizar a preservação, a reprodutibilidade e a reusabilidade dos dados. A disponibilização dos artigos científicos deve ser realizada sem barreiras financeiras para a publicação e leitura; • Maior rapidez na comunicação dos artigos como fator chave no avanço do conhecimento científico, mediante a adoção de preprints antes da avaliação por pares e publicação de artigos em fluxo contínuo; • Transparência e abertura progressiva nos processos de avaliação de manuscritos por pares envolvendo relações e interações entre autores, editores e pareceristas. (Packer; Santos, 2019a). A gestão editorial também precisa se adaptar para lidar com os novos tipos de objetos digitais de comunicação das pesquisas (outputs), como dados, softwares e códigos- fonte. Como exemplo é válido destacar o crescimento do fenômeno dos data journals, especializados em publicar artigos de dados (data papers), que descrevem e contextualizam conjuntos de dados para ampliar sua reutilização, e refletem essa mudança nas práticas editoriais. Seu surgimento se deu em razão do crescente protagonismo dos dados de pesquisa passando a ser valorizados como ativos de pesquisa