Prévia do material em texto
SP 3.2 - DOENÇA ULCEROSA DOENÇA ULCEROSA PÉPTICA GASTRODUODENAL Definição: A úlcera péptica é uma lesão profunda da mucosa do trato gastrointestinal causada pela ação agressiva do ácido clorídrico (HCl) e da pepsina, enzimas presentes no suco gástrico. Essas substâncias provocam uma solução de continuidade (interrupção) da mucosa, com extensão que ultrapassa a muscular da mucosa, atingindo a submucosa e, em casos mais graves, chegando até a muscular própria. Lesões mais superficiais, que não ultrapassam a muscular da mucosa, são chamadas de erosões. Essas não atingem a submucosa e, por isso, não deixam cicatrizes. As úlceras pépticas podem ocorrer em qualquer parte do trato gastrointestinal exposta à secreção gástrica ácida e à pepsina, desde que em concentração e tempo suficientes para causar dano. Contudo, o termo "doença ulcerosa péptica" é geralmente reservado para as úlceras localizadas no estômago (úlcera gástrica), no duodeno (úlcera duodenal) ou em ambos. ★ A produção de pepsinogênio está aumentada nos ulcerosos, amplificando a agressividade proteolítica sobre a mucosa. Tipos: Úlceras Gástricas (UGs) : Envolvem mucosa atrófica, menor produção ácida e lesão por AINEs. As úlceras gástricas (UGs) ocorrem com mais frequência em pessoas mais velhas, especialmente na sexta década de vida. Mais de 50% acometem homens e são menos comuns que as úlceras duodenais (UDs), provavelmente por serem silenciosas até surgirem complicações. Diferentemente das UDs, podem conter neoplasias malignas e devem ser biopsiadas ao serem detectadas. UGs benignas localizam-se principalmente após a junção antro-corpo, raramente no fundo gástrico, e são histologicamente semelhantes às UDs. Quando associadas ao H. pylori, há gastrite antral; já as relacionadas a AINEs não causam gastrite crônica ativa, mas sim gastropatia química, com alterações como hiperplasia foveolar e edema da lâmina própria, mesmo na ausência de H. pylori. Pode ocorrer ainda extensão de fibras musculares à mucosa superficial. Sua patogênese envolve H. pylori ou AINEs. UGs pré-pilóricas ou no corpo gástrico têm mecanismos semelhantes às UDs. A produção ácida pode ser normal ou baixa, sendo que níveis reduzidos de ácido estão ligados a menor proteção da mucosa. Classificação das UGs por localização: ➔ Tipo I: Corpo gástrico, baixa produção de ácido. ➔ Tipo II: Antro, produção de ácido variável. ➔ Tipo III: Próximo ao piloro, associada a UDs e alta produção de ácido. ➔ Tipo IV: Cárdia, baixa produção de ácido. Úlceras Duodenais (UDs) : Estão associadas à hipersecreção ácida e à infecção por H. pylori restrita ao antro. Ocorrem mais frequentemente na primeira porção do duodeno (> 95%) e, em 90% dos casos, a uma distância de até 3 cm do piloro. Geralmente, as úlceras têm ≤ 1 cm de diâmetro, mas podem alcançar 3 a 6 cm em casos de úlcera gigante. As úlceras são bem demarcadas, com profundidade que pode atingir a muscular própria, e a base da úlcera frequentemente consiste em necrose eosinofílica com fibrose circundante. UDs malignas são extremamente raras. A infecção por H. pylori e as lesões causadas por AINEs são responsáveis pela maioria das UDs. Nos pacientes com UDs, a secreção ácida gástrica basal média e noturna tende a ser aumentada, embora haja substancial sobreposição com os controles. A razão para essa secreção ácida alterada não é totalmente clara, mas a infecção por H. pylori pode contribuir. A secreção de bicarbonato no bulbo duodenal está reduzida em pacientes com UDs ativas. Epidemiologia A causa mais comum de HDA não varicosa é a úlcera péptica gastroduodenal, com incidência entre 31 a 67% dos casos. Nos últimos anos, reporta-se diminuição global na incidência de HDA relacionadas com a úlcera péptica, pelo menos em indivíduos mais jovens, ao passo que sua incidência é estável ou até mesmo maior entre os pacientes mais idosos. A mortalidade da HDA por doença ulcerosa pode variar entre 3 e 14%, sendo que a mortalidade aumenta com a idade, entre os pacientes que estão hospitalizados e apresentam comorbidades. Em cerca de 80% dos pacientes com HDA não varicosa secundária à doença ulcerosa péptica, o sangramento cessa espontaneamente. Com o surgimento dos inibidores de bomba de prótons e novos métodos terapêuticos endoscópicos, a terapia na HDA não varicosa secundária à úlcera péptica é eficaz em 90% dos casos. Contudo, cerca de 6 a 10% dos pacientes podem ressangrar. Os principais fatores clínicos considerados preditores de recidiva hemorrágica incluem idade > 60 anos, história de úlcera péptica, choque, comorbidades, baixo nível de hemoglobina com necessidade de hemotransfusão, sangramento ativo como hematêmese ou visualizado na endoscopia. Patogenia As úlceras pépticas são soluções de continuidade da mucosa do trato gastrointestinal que podem se estender através da camada muscular da mucosa, atingindo a submucosa e até mesmo a muscular própria. Geralmente, ocorre aumento dos fatores agressivos e diminuição dos fatores de defesa e reparação, ocasionando, consequentemente, a lesão mucosa. As causas mais comuns de úlceras no trato gastrointestinal incluem lesão péptica devida à infecção por Helicobacter pylori e o uso de anti-inflamatórios não esteroides. As outras etiologias são menos frequentes Usualmente, úlceras sangram a partir de um vaso em sua base, mais frequentemente com lesão arterial, a qual sofre erosão por um processo ácido péptico. A secreção ácida péptica causa uma arterite com infiltração de polimorfonucleares. Essa arterite envolve o perímetro da artéria, sendo mais intensa no lado próximo à base da úlcera, onde ocorre necrose da parede vascular, causando a ferida sangrante. Fatores Agressivos da Mucosa : ➔ A produção de muco e bicarbonato, formando uma barreira física e química contra a ação do ácido; ➔ O fluxo sanguíneo mucoso, responsável por nutrir o epitélio e remover metabólitos tóxicos; ➔ A atividade das prostaglandinas, que estimulam a secreção de muco/bicarbonato e promovem vasodilatação local ➔ A renovação epitelial contínua, que permite rápida regeneração celular após pequenas lesões. Fatores Protetores da Mucosa ➔ Ácido clorídrico e pepsina, que digerem proteínas e podem degradar componentes celulares; ➔ H. pylori, que coloniza a mucosa gástrica, induz inflamação e altera a fisiologia da secreção ácida; ➔ AINEs, que inibem a síntese de prostaglandinas e comprometem a proteção mucosa; ➔ Tabagismo, etilismo e estresse fisiológico, que favorecem a secreção ácida e prejudicam os mecanismos de defesa. Secreção Ácida: Mecanismo de Secreção Ácida: Proteínas, cálcio (Ca²⁺), aminoácidos, histamina e acetilcolina estimulam a célula G, que libera gastrina. - A gastrina, via sanguínea, age sobre a célula parietal, estimulando a produção de HCl. A queda do pH estimula a célula D, que libera somatostatina, hormônio que inibe a célula G (feedback negativo parácrino). Alguns fatores que influenciam a secreção ácida são a alimentação, uso de medicamentos, tabagismo e estado emocional através de alguns que levam a alguns mecanismo de secreção como o aumento do número de células parietais, maior sensibilidade da célula parietal ao estímulo da gastrina e menor sensibilidade da célula G aos mecanismos inibitórios, como a somatostatina. Na participação das células parietais alguns mensageiros químicos aumentam sua atividade como ➔ Histamina: produzida pelas células ECL (Enterochromaffin-like). ➔ Gastrina: produzida pelas células G. ➔ Acetilcolina: liberada pelas terminações do nervo vago. A ativação desses receptores leva à geração de segundos mensageiros (AMP cíclico ou canais de Ca²⁺) eculmina na ativação da bomba de prótons (H⁺/K⁺ ATPase), etapa final na produção de HCl. Padrões de secreção ácida ➔ Úlcera duodenal: secreção de HCl geralmente aumentada (basal 2 a 3 vezes maior). ➔ Úlcera gástrica: secreção de HCl geralmente normal ou reduzida. Papel da Pepsina : O pepsinogênio, precursor da pepsina, encontra-se elevado na maioria dos pacientes com úlcera, principalmente na úlcera duodenal. Além disso, a atividade proteolítica da pepsina é maior nesses pacientes, contribuindo para o dano à mucosa. Papel da Gastrina e do GRP : A gastrina é o principal mediador da secreção ácida estimulada pela alimentação. O GRP (Gastrin-Releasing Peptide), liberado pelos nervos do trato gastrointestinal na presença de alimentos, estimula fortemente a secreção de gastrina. ➔ Obs: Pacientes H. pylori positivos apresentam níveis de gastrina e secreção ácida até 3 vezes maiores após estímulo com GRP, em comparação aos negativos. Participação do Helicobacter pylori na Patogenia da Doença Ulcerosa Péptica O Helicobacter pylori é um bacilo gram-negativo, espiralado e flagelado, com tropismo pela mucosa gástrica humana. A infecção por essa bactéria é considerada o principal fator etiológico das úlceras duodenais e uma das causas mais relevantes das úlceras gástricas. Sua patogenicidade decorre de uma combinação de mecanismos de evasão do sistema imune, produção de toxinas e indução de resposta inflamatória crônica. Sobrevivência no ambiente gástrico ácido : O H. pylori coloniza preferencialmente a região antral do estômago, local onde o pH é ligeiramente mais elevado. Para resistir à acidez do estômago, a bactéria produz a enzima urease, que converte ureia em dióxido de carbono e amônia. A amônia neutraliza o pH ao redor da bactéria, criando um microambiente mais alcalino e favorecendo sua sobrevivência. Essa amônia, por si só, também é tóxica para as células epiteliais. Adesão à mucosa e persistência : O H. pylori possui proteínas de adesão específicas, como BabA e SabA, que se ligam aos receptores de mucinas e glicoconjugados na superfície das células epiteliais gástricas. Essa fixação impede a eliminação da bactéria pelo muco gástrico e facilita a colonização persistente. Indução de inflamação crônica : A infecção ativa uma resposta inflamatória local mediada por citocinas (IL-1β, IL-6, IL-8 e TNF-α), recrutando leucócitos, especialmente neutrófilos e linfócitos. Esse infiltrado inflamatório causa lesão tecidual progressiva e compromete os mecanismos de defesa locais, resultando em gastrite crônica ativa. Produção de toxinas e dano celular direto ➔ A toxina CagA (cytotoxin-associated gene A), presente em cepas mais virulentas, é introduzida nas células epiteliais por um sistema de secreção tipo IV. No interior da célula, CagA interfere em vias de sinalização intracelular, desorganizando o citoesqueleto, alterando a adesão celular e promovendo inflamação intensa. A presença de CagA está fortemente associada a maior risco de úlcera e câncer gástrico. ➔ A toxina VacA (vacuolating cytotoxin A) promove a formação de vacúolos intracelulares, disfunção mitocondrial e apoptose, além de comprometer a barreira epitelial, facilitando a penetração de ácido e pepsina nas camadas mais profundas da mucosa. Alterações hormonais e hipersecreção ácida : A infecção por H. pylori no antro gástrico leva à diminuição da liberação de somatostatina pelas células D. Esse hormônio normalmente exerce efeito inibitório sobre a secreção de gastrina. Sua redução leva à hipergastrinemia secundária, com consequente hiperestimulação das células parietais do corpo gástrico e aumento da secreção de ácido clorídrico. Este processo está particularmente associado à patogênese da úlcera duodenal. ➔ Nas úlceras gástricas, frequentemente ocorre um processo de gastrite atrófica, com redução da produção de ácido, porém com comprometimento direto da barreira mucosa, facilitando o dano pela acidez residual. Complicações e Erosão Vascular : À medida que a lesão ulcerosa se aprofunda, pode atingir vasos da submucosa, principalmente arteríolas. A secreção ácida e a atividade proteolítica da pepsina desencadeiam um processo de arterite necrosante, caracterizado por infiltração de polimorfonucleares na parede vascular. A destruição do endotélio e da camada muscular da artéria resulta em erosão vascular com hemorragia, sendo essa uma das principais complicações clínicas da DUP. Quadro Clínico: Geral: ➔ Sintomas muitas vezes inespecíficos, ausentes ou discretos. ➔ A dor epigástrica em queimação é o sintoma mais comum na forma não complicada. ➔ A dor tem relação com a alimentação, pode melhorar ou piorar após comer. ➔ Úlceras podem ser silenciosas, descobertas apenas na presença de complicações (hemorragia, perfuração, etc.) ou incidentalmente. Características da dor: ➔ Localização: epigástrio, podendo irradiar para costas, tórax ou abdome. ➔ Tipo: queimação, desconforto, "dor de fome" ou "vazio no estômago". ➔ Ritmicidade: ligada às refeições. ➔ Periodicidade: fases sintomáticas alternadas com períodos de alívio (semanas a anos). ➔ Clocking: dor que acorda o paciente à noite, mais comum na úlcera duodenal. Sintomas associados: ➔ Azia (pirose) e regurgitação ácida (mais na úlcera duodenal). ➔ Náuseas, vômitos, eructação, flatulência — inespecíficos. Diferenças clínicas : ➔ Úlcera Duodenal (UD): ◆ Melhora com alimentação e antiácidos. ◆ Hiperfagia e ganho de peso ◆ Dor noturna frequente. ➔ Úlcera Gástrica (UG): ◆ Pode piorar com a alimentação. ◆ Menos resposta aos antiácidos. ◆ Anorexia e perda de peso. ◆ Dor noturna pode ocorrer. Quadro Complicado: ➔ Hemorragia: melena, hematêmese, sangue oculto. ➔ Perfuração: dor súbita intensa, peritonite, abdome agudo. ➔ Obstrução: náuseas, vômitos, distensão. ➔ Instabilidade hemodinâmica nos quadros graves. Diagnóstico clínico Anamnese: é útil na investigação inicial de HDA, sendo o relato de hematêmese ou melena habitualmente relacionado com a origem topográfica da hemorragia, localizada até a segunda porção duodenal. Com menor frequência, os casos de hemorragia significativa podem se apresentar como enterorragia, muitas vezes associados à instabilidade hemodinâmica. Deve-se questionar sobre a presença de sintomas como epigastralgia, uso de medicações como anti-inflamatórios não esteroides, do tipo salicilatos, anticoagulantes, história conhecida de infecção pelo Helicobacter pylori, alcoolismo e tabagismo, histórico de cirurgias e comorbidades. Exame físico : deve-se checar sinais vitais, além de avaliar a palidez cutânea e o nível de consciência. Esses dados determinam o status hemodinâmico dos indivíduos para classificação do grau do choque hipovolêmico, com o objetivo de identificar precocemente pacientes de alto risco, permitindo a intervenção apropriada. Diagnóstico endoscópico Endoscopia digestiva alta (EDA): é o método diagnóstico de escolha na hemorragia digestiva alta por doença ulcerosa péptica, pois revela acurácia de, aproximadamente, 94% dos casos. A precocidade da realização do exame endoscópico, preferencialmente, nas primeiras 12 a 24 horas do episódio hemorrágico, aumenta a chance de localizar a lesão, permitindo terapêutica endoscópica mais eficaz e imediata. O diagnóstico e o tratamento precoces reduzemtambém as taxas de recidiva do sangramento. A classificação de Forrest é a mais utilizada na prática clínica para avaliar características do sangramento digestivo alto não varicoso e pode estimar a probabilidade de ressangramento, sendo também utilizada, junto com outros parâmetros, para indicar a terapêutica endoscópica. Sendo a classe A indicativo de tratamento B considerar o tratamento C não tratável. Estratificação do risco de ressangramento Buscando não postergar a terapêutica em pacientes graves e evitar abordagens agressivas endoscópicas ou cirúrgicas desnecessárias, existe a preocupação de estratificar o risco de pacientes, identificando aqueles que realmente se beneficiaram com o tratamento. Elaboraram um escore de estratificação de risco (varia de 0 a 11) baseado em parâmetros clínicos: idade, situação da volemia (choque, pressão arterial e pulso), presença de comorbidades e presença de características endoscópicas. ➔ Pacientes com escores menores ou iguais a 2 são considerados de baixo risco para o desenvolvimento de desfechos desfavoráveis (ressangramento 50.000; correção de coagulopatia (RNI > 1,5) pode ser considerada, desde que não atrase o tratamento endoscópico. ➔ Inibidores da bomba de prótons (IBP) : indicados antes da endoscopia quando houver suspeita de úlcera. Omeprazol IV (80 mg em bolus + 8 mg/h) ou doses intermitentes (40-80 mg 2x/dia IV) são eficazes. Manter por 72h após endoscopia e, em seguida, via oral (40 mg/dia). ➔ Helicobacter pylori : investigar e erradicar sempre em casos de úlcera péptica, pois reduz significativamente a recorrência e o ressangramento. Ressangramento precoce e profilaxia de ressangramento A recorrência de HDA pode ocorrer em até 24% dos pacientes considerados de alto risco. O uso dos inibidores de bomba de prótons intravenoso nas primeiras 48 a 72 horas, associado à terapia endoscópica, pode reduzir a taxa de ressangramento precoce em aproximadamente 10%. Em geral, em caso de ressangramento, há boa resposta a uma nova abordagem endoscópica, e uma segunda hemostasia diminui a necessidade de cirurgia, sem aumentar os riscos de óbito e com menor número de complicações que a cirurgia Em caso de ressangramento após uma segunda endoscopia terapêutica, deve ser considerada a hemostasia por meio de radiologia intervencionista ou o tratamento cirúrgico. A profilaxia do ressangramento consiste em determinar o que provocou a lesão péptica. A pesquisa do H. pylori está indicada graças à sua relação causal com a úlcera péptica. Além da eliminação da bactéria, deve-se evitar o uso de anti-inflamatórios e também recomendar a profilaxia de lesões causadas pelo estresse em pacientes sob risco, especialmente se internados em unidades de terapia intensiva, e nos portadores de coagulopatia. DISPEPSIA FUNCIONAL Introdução A dispepsia consiste em um grupo heterogêneo de sintomas persistentes ou recorrentes, localizados na região superior do abdome (epigástrio). Os sintomas dispépticos podem estar associados a uma doença digestiva específica (ex; úlcera péptica, neoplasia gástrica, parasitoses intestinais, dentre outras), classificada como orgânica. Contudo, a maioria dos pacientes com queixas dispépticas crônicas que se submetem a investigações laboratoriais, endoscópicas e ultrassonográficas não apresenta qualquer alteração que justifique os sintomas – são, portanto, considerados portadores de dispepsia funcional, um dos distúrbios gastrointestinais funcionais mais frequentes da prática clínica. Relata-se que cerca de 20 a 40% da população geral apresenta alguma queixa dispéptica (as cifras mais altas correspondem a estudos que incluíram também o sintoma de pirose); entretanto, somente 30% desses indivíduos procuram assistência médica. A dispepsia constitui a causa de 3 a 5% das consultas ambulatoriais de clínica geral, em um centro de atenção primária, e de 20 a 40% das consultas em gastroenterologia.5 Os sintomas dispépticos podem surgir em qualquer idade e são mais prevalentes no sexo feminino. A intensidade da dor e/ou do desconforto e a ansiedade (incluindo o medo de doenças mais graves) constituem os principais motivos de procura ao clínico e ao gastroenterologista Conceito Nos últimos anos, um grupo internacional de especialistas têm sugerido critérios mais objetivos para o diagnóstico e a classificação dos distúrbios funcionais gastrointestinais (Critérios de Roma), trazendo grandes avanços no entendimento das síndromes funcionais como a dispepsia funcional (DF). Porém, vários aspectos ainda precisam ser esclarecidos, especialmente aqueles que se relacionam à sua etiopatogenia. O comitê de especialistas do último Consenso de Roma define a DF como uma síndrome clínica caracterizada pela presença de sintomas dispépticos recorrentes e crônicos, na ausência de lesões estruturais ou metabólicas subjacentes, capazes de justificar o quadro clínico. Entretanto, algumas anormalidades estruturais sutis têm sido associadas a essa síndrome (p. ex., gastrite crônica resultante da infecção pelo Helicobacter pylori, dismotilidade, microinflamação e eosinofilia gastroduodenal). A DF é considerada um problema sanitário e socioeconômico de grande relevância, tanto por sua alta prevalência como por seu caráter crônico e ausência de tratamento satisfatório. Além disso, a despeito de sua evolução benigna, a sintomatologia recidivante afeta de forma significativa a qualidade de vida dos pacientes, o que reflete diretamente em suas relações pessoais, sociais e laborais. Critérios Diagnósticos Critérios gerais para o diagnóstico de DF: ➔ Queixas dispépticas nos últimos 3 meses, com início há pelo menos 6 meses. ➔ Presença de um ou mais sintomas: ◆ Empachamento pós-prandial; ◆ Saciedade precoce; ◆ Dor epigástrica; ◆ Queimação epigástrica. ➔ Ausência de lesões estruturais (comprovada por endoscopia) que expliquem os sintomas. Classificação Síndrome do Desconforto Pós-Prandial (SDPP): ➔ Critérios obrigatórios (um ou ambos): ◆ Empachamento pós-prandial recorrente após refeições habituais. ◆ Saciedade precoce, que impede o término normal das refeições. ◆ Frequência: várias vezes por semana nos últimos 3 meses. ➔ Sintomas de apoio (não obrigatórios): ◆ Distensão do abdome superior; ◆ Náuseas pós-prandiais; ◆ Eructações. ◆ Pode coexistir com a SDE Síndrome da Dor Epigástrica (SDE) :➔ Critérios obrigatórios (todos): ◆ Dor ou queimação epigástrica (pelo menos moderada), uma vez por semana nos últimos 3 meses. ◆ Dor intermitente, não generalizada ou localizada em outras regiões. ◆ Dor não aliviada por evacuação ou eliminação de gases. ◆ Dor não compatível com distúrbios da vesícula biliar ou esfíncter de Oddi. ➔ Sintomas de apoio (não obrigatórios): ◆ Queimação sem irradiação retroesternal; ◆ Pode ser induzida ou aliviada por alimentos; ◆ Pode ocorrer em jejum; ◆ Pode coexistir com a SDPP. Fisiopatologia A fisiopatologia da Dispepsia Funcional (DF) permanece indefinida, embora avanços significativos tenham sido obtidos nas últimas décadas. Evidências atuais sustentam que a DF é uma condição multifatorial, resultante da interação complexa entre diversos mecanismos gastrointestinais e psicossociais. Entre os fatores etiopatogênicos mais frequentemente implicados estão: hipersecreção ácida, dismotilidade gastroduodenal, hipersensibilidade visceral, alterações da acomodação gástrica, infecção por Helicobacter pylori e fatores psicológicos. Hipersecreção Ácida e Acidez Gástrica: Estudos recentes demonstram que a acidez gástrica influencia tanto a motilidade quanto a sensibilidade do trato gastroduodenal. A acidificação duodenal, por exemplo, induz ao relaxamento do estômago proximal e promove hipersensibilidade à distensão gástrica. Contudo, até o momento, não se estabeleceu uma relação causal primária entre a hipersecreção de ácido e o desencadeamento dos sintomas dispépticos. Hipersensibilidade Visceral: Um número significativo de pacientes com DF manifesta dor ou desconforto durante a insuflação gástrica com balão, especialmente quando ocorre infusão de lipídios no duodeno. Esses achados sugerem a presença de uma hipersensibilidade visceral aumentada, ou seja, uma percepção anormal de estímulos fisiológicos, potencialmente relacionada a disfunções no eixo cérebro-intestino. Alterações da Acomodação Gástrica : Pacientes com DF frequentemente apresentam disfunções no relaxamento do estômago proximal após a ingestão alimentar, o que resulta em aumento da pressão intragástrica e sintomas como saciedade precoce. Estudos evidenciam que aproximadamente 40% dos pacientes com DF exibem alterações nessa acomodação, embora sem associação direta com a hipersensibilidade à distensão gástrica. Infecção por Helicobacter pylori : O papel da infecção por H. pylori na fisiopatologia da DF permanece controverso. Apesar das divergências, metanálises recentes indicam que a erradicação da bactéria pode proporcionar benefício sintomático modesto em pacientes infectados. Fatores Psicossociais : Fatores como ansiedade, depressão, distúrbios do humor e experiências traumáticas (ex.: abuso na infância, perda de entes queridos) têm sido identificados com maior frequência em pacientes dispépticos do que na população geral. No entanto, a relevância clínica dessas associações parece ser limitada. Ainda assim, sugere-se que esses elementos possam influenciar a percepção dos sintomas por meio de alterações no eixo cérebro-intestino. Fatores Alimentares: A ingestão de determinados alimentos é associada à piora dos sintomas dispépticos. Lipídios, por exemplo, podem estimular a secreção ácida e a liberação de colecistocinina, modulando a motilidade e sensibilidade gastrointestinal. Existe ainda a hipótese de que um subgrupo de pacientes com DF possa apresentar hipersensibilidade ou alergia alimentar, ou que alimentos fermentáveis (FODMAPs) provoquem alterações na microbiota e leve inflamação mucosa, contribuindo para disfunções sensoriais e motoras. Dispepsia Pós-Infecciosa e Inflamação Duodenal: A DF pode surgir após episódios de gastroenterite aguda, por agentes como Salmonella spp., Escherichia coli, Campylobacter jejuni, Giardia lamblia e Norovírus. Nestes casos, postula-se que a inflamação residual leve e crônica, com ativação de mastócitos e liberação de mediadores como histamina e triptase, promova hipersensibilidade visceral e disfunções da motilidade. A infiltração eosinofílica duodenite está relacionada a dismotilidade gastroduodenal e prejuízo do relaxamento gástrico, reforçando a hipótese inflamatória. Associam a presença de eosinofilia gástrica e duodenal principalmente aos casos de DF pós-infecciosa. Outros Fatores ; Embora o tabagismo, etilismo e o uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) não sejam considerados causas diretas da DF, muitos pacientes relatam exacerbação dos sintomas após exposição a essas substâncias. Acredita-se que tais fatores atuem como agravantes da condição clínica, especialmente em indivíduos predispostos. Diagnóstico da Dispepsia Funcional (DF) O diagnóstico da dispepsia funcional é essencialmente clínico, fundamentado principalmente nos Critérios de Roma III, que definem parâmetros específicos para o reconhecimento da síndrome. A abordagem diagnóstica deve ser cuidadosa e orientada pela história clínica e exame físico detalhados, pois esses elementos são os principais subsídios para a identificação correta da condição, seleção dos pacientes que necessitam de investigação adicional e definição da terapêutica apropriada. Critérios Clínicos e Importância da Anamnese ➔ A anamnese detalhada é crucial, permitindo diferenciar pacientes com sintomas típicos e sem sinais de alarme daqueles que necessitam de exames complementares. ➔ Os sinais de alarme incluem: ◆ Emagrecimento inexplicado ◆ Vômitos recorrentes ◆ Disfagia progressiva ◆ Presença de sangramento digestivo ◆ Icterícia ➔ Em pacientes que não apresentam sinais de alarme, não é necessária uma propedêutica extensa inicialmente, e pode-se considerar um diagnóstico precoce para otimizar o manejo clínico e o custo-efetividade do atendimento. Exames Complementares ➔ Endoscopia Digestiva Alta (EDA): Deve ser realizada durante período sintomático, preferencialmente sem o uso prévio de terapia antissecretora, para melhor avaliação da mucosa. Biópsias durante a endoscopia são recomendadas rotineiramente para detecção do Helicobacter pylori e outras condições associadas. ➔ Pesquisa de Helicobacter pylori: ◆ Em pacientes jovens e sem sinais de alarme, os testes não invasivos (teste respiratório, antígeno fecal, sorologia) são preferidos. ◆ Quando positivo, recomenda-se tratamento de erradicação do microrganismo (estratégia “testar e tratar”). ◆ Endoscopia indicada apenas se os sintomas persistirem após a erradicação. Avaliações Adicionais ➔ Doença celíaca e intolerâncias alimentares: Devem ser consideradas e investigadas quando houver suspeita clínica, principalmente intolerância à lactose e frutose. ➔ Avaliação psicossocial e ambiental: Importante identificar fatores psicológicos, ambientais, dietéticos e uso de medicamentos que possam contribuir para o surgimento ou agravamento dos sintomas dispépticos. Tratamento Medidas gerais : Uma parcela considerável dos pacientes obtêm alívio dos seus sintomas com simples mudanças em seu estilo de vida e com a adoção de hábitos salutares em seu cotidiano, como uma alimentação adequada e atividade física regular. ➔ Embora alguns pacientes relacionem a piora dos seus sintomas com a ingestão de determinados alimentos, nenhuma dieta específica está indicada. Os alimentos que agravam o quadroobviamente devem ser evitados. ➔ A queixa de empachamento pós-prandial habitualmente melhora com a redução de alimentos gordurosos, enquanto a saciedade precoce pode ser aliviada com o fracionamento das refeições. ➔ Os fatores psicológicos devem ser sempre abordados, e é essencial esclarecer ao paciente a possível correlação dos seus sintomas com ansiedade, depressão e estresse. O tratamento psicoterápico tem se mostrado eficaz em um subgrupo de pacientes. Tratamento medicamentoso : O tratamento medicamentoso tem como principal objetivo aliviar o sintoma predominante, e a estratégia terapêutica depende basicamente da natureza e da intensidade dos sintomas, do grau do comprometimento funcional e dos fatores psicossociais envolvidos. É necessário também enfatizar que a resposta ao placebo é muito alta na maioria dos ensaios clínicos que envolvem pacientes com DF (25 a 60%). ➔ Antissecretores: são drogas seguras e se constituem na medicação clássica para a DF do tipo síndrome da dor epigástrica. Tanto os bloqueadores H2 (BH2) como os inibidores da bomba de prótons (IBP) podem ser prescritos e recomendados como terapêutica de primeira linha para esse subgrupo de pacientes. Devem ser utilizados na dose padrão, uma vez ao dia. ◆ Demonstra-se que a prescrição de doses mais elevadas não aumenta a resposta terapêutica em pacientes dispépticos funcionais. ◆ Análises de subgrupos de dispépticos mostram que os IBPs são bastante eficazes nos pacientes com queixa de dor epigástrica, especialmente naqueles que apresentam também o sintoma de pirose (DRGE), mas não no grupo de pacientes com sintomas apenas de desconforto pós-prandial. ➔ Procinéticos: mostram-se superiores ao placebo em vários ensaios clínicos, e estão indicados sobretudo para os pacientes portadores da síndrome do desconforto pós-prandial. ◆ Esses medicamentos (metoclopramida, domperidona, bromoprida, motilíneos derivados da eritromicina, dentre outros) são potencialmente capazes de melhorar alguns parâmetros da motilidade gastroduodenal ao aumentar o tônus gástrico, a motilidade antral e, principalmente, a coordenação antroduodenal. ◆ Medicamentos capazes de relaxar o fundo gástrico, como os agonistas da 5-hidroxitriptamina (sumatriptano e buspirona), têm se mostrado bastante eficazes, e aliviam, especialmente, o sintoma de saciedade precoce. ➔ Erradicação do H. pylori: vários estudos evidenciaram que a erradicação do H. pylori é superior ao placebo no alívio dos sintomas da DF, e metanálises recentes demonstram que a erradicação da bactéria resulta em um ganho terapêutico que varia de 4 a 14%. ◆ Baseando-se nesses dados, os especialistas do consenso Roma III e de Maastricht IV (Consenso Europeu do H. pylori) recomendam que essa bactéria seja pesquisada e, se presente, erradicada nos dispépticos funcionais. Essa também foi a decisão do III Consenso Brasileiro do H. pylori, com a justificativa de que o tratamento com antibióticos beneficia um subgrupo de pacientes dispépticos, tendo a vantagem de reduzir, em longo prazo, o risco de uma evolução para úlcera péptica ou neoplasia gástrica. ◆ O esquema terapêutico de erradicação do H. pylori na DF não difere do esquema tradicional e se constitui na associação de IBP na dose-padrão, claritromicina (500 mg) e amoxicilina (1 g) duas vezes ao dia durante sete dias. ➔ Antidepressivos: uma opção a ser considerada para os pacientes que não respondem ao tratamento clássico é o emprego dos antidepressivos tricíclicos (amitriptilina, nortriptilina e imipramina) e de inibidores da recaptação de serotonina (fluoxetina, sertralina, escitalopram, entre outros). ◆ Esses medicamentos parecem ser úteis por apresentarem uma ação analgésica central, sendo capazes de bloquear a transmissão da dor do trato gastrointestinal para o cérebro. Recomenda-se iniciar com doses baixas e, caso a resposta clínica seja satisfatória, o tratamento deverá ser mantido, no mínimo, por três a seis meses. ◆ Um estudo mostrou resultados satisfatórios com o emprego da mirtazapina em pacientes dispépticos e com baixo peso. ◆ De fato, estudos de metanálise recentes demonstram que os tricíclicos são superiores aos inibidores da captação de serotonina no alívio dos sintomas da DF. DUP GASTRODUODENAL X DISPEPSIA FUNCIONAL Aspecto DUP Gastroduodenal Dispepsia Funcional Quadro Clínico Dor epigástrica em queimação ou ardor, frequentemente em jejum (úlcera gástrica) ou 2-3h após a refeição (úlcera duodenal).- Pode melhorar com alimentação ou antiácidos (especialmente DUP).- Náuseas, vômitos, sensação de plenitude.- Em casos complicados: hemorragia digestiva, perfuração.- Sintomas persistentes e característicos. Dor epigástrica e desconforto pós-prandial sem evidência de úlcera.- Sensação de plenitude, saciedade precoce, náuseas, empachamento pós-prandial.- Sintomas crônicos, intermitentes.- Ausência de lesão ulcerativa evidente ao exame (endoscopia normal). Fisiopatologia Desequilíbrio entre fatores agressivos (ácido clorídrico, pepsina, H. pylori , AINEs) e mecanismos protetores da mucosa gástrica/duodenal.- Infecção por Helicobacter pylori é fator principal.- Aumento da secreção ácida na úlcera duodenal, redução ou alteração da barreira mucosa na úlcera gástrica.- Inflamação, lesão local da mucosa. Transtornos funcionais do trato gastroduodenal, sem lesão estrutural.- Hipersensibilidade visceral, alterações da motilidade gástrica (atonia, retardo do esvaziamento, falha na acomodação do fundo gástrico).- Fatores psicossociais, alteração da microbiota, inflamação de baixo grau.- Presença ou não de H. pylori , mas sua erradicação pode melhorar sintomas. Tratamento Erradicação do H. pylori (quando presente).- Inibidores da bomba de prótons (IBPs) ou bloqueadores H2 para supressão ácida.- Evitar AINEs e fatores irritantes.- Tratamento de complicações (hemorragia, perfuração).- Uso de protetores de mucosa (ex.: sucralfato). Mudanças de estilo de vida (dieta, redução de estresse).- IBPs e bloqueadores H2 em pacientes com sintomas de dor epigástrica predominante.- Procinéticos para sintomas de plenitude, empachamento.- Erradicação do H. pylori quando presente, embora benefício seja menor que na úlcera.- Antidepressivos tricíclicos em casos refratários.- Terapias alternativas e psicoterapia podem ser consideradas. ABDOME AGUDO PERFURATIVO NÃO TRAUMÁTICO Definição : O Abdome Agudo Perfurativo configura-se como uma emergência cirúrgica caracterizada pela perfuração de uma víscera oca do trato gastrointestinal, resultando em extravasamento de conteúdo gastrointestinal (líquido, fezes, bile, enzimas ou gás) para a cavidade peritoneal. Essa condição leva ao desenvolvimento de peritonite química, bacteriana ou mista, além de potencial evolução para sepse e choque séptico, configurando um quadro de alta morbimortalidade. Etiologia ➔ Úlcera péptica perfurada: Perfuração da parede gástrica ou duodenal decorrente da progressão de uma úlcera, especialmente nas regiões da pequena curvatura do estômago e parede anterior do bulbo duodenal. ➔ Apendicite aguda perfurada: Inflamação aguda do apêndice com necrose transmural e subsequente ruptura. ➔ Diverticulite perfurada: Inflamação dos divertículos colônicos, frequentemente do sigmóide,que pode evoluir para micro ou macroperfurações. (doença diverticular do colon) ➔ Doença inflamatória intestinal (Doença de Crohn); A inflamação transmural característica da doença de Crohn pode evoluir para formação de fístulas e perfurações livres. ➔ Obstrução intestinal complicada: A obstrução pode gerar aumento da pressão intraluminal, levando à isquemia da parede intestinal, necrose e perfuração (especialmente em alça fechada ou volvo). ➔ Neoplasias invasivas: Tumores avançados (gástricos, colônicos ou de intestino delgado) podem invadir toda a espessura da parede intestinal, culminando na perfuração. ➔ Infecções intestinais específicas: Agentes como Salmonella typhi (febre tifoide), Citomegalovírus, Mycobacterium tuberculosis, Schistosoma mansoni, entre outros, podem causar ulcerações e perfuração do intestino delgado. ★ Úlceras gástricas e duodenais e doença diverticular do cólon Fisiopatologia O mecanismo fisiopatológico inicia-se com uma lesão transmural de uma víscera oca, permitindo a saída de gás, secreções ou conteúdo fecal para a cavidade peritoneal. O primeiro evento detectável frequentemente é o pneumoperitônio (presença de ar livre na cavidade abdominal). Essa condição gera uma resposta inflamatória peritoneal, inicialmente química (pelo efeito irritante de ácido gástrico, bile ou enzimas digestivas) e, rapidamente, evolui para uma peritonite bacteriana, com translocação de microrganismos e seus produtos, levando a uma resposta inflamatória sistêmica. Sem intervenção precoce, o paciente progride para sepse, choque séptico e disfunção de múltiplos órgãos. O desfecho clínico depende de variáveis como: ➔ Localização da perfuração (alto vs. baixo trato gastrointestinal); ➔ Carga bacteriana; ➔ Estado imunológico do paciente; ➔ Tempo entre o evento perfurativo e a intervenção médica; ➔ Presença de comorbidades. Quadro Clínico Sintomas principais: ➔ Dor abdominal súbita, de forte intensidade, com caráter lancinante ou em pontada, geralmente de início abrupto. Pode ser inicialmente localizada, mas evolui rapidamente para dor difusa. ➔ Rigidez abdominal involuntária (“abdome em tábua”), reflexo da irritação peritoneal. ➔ Náuseas e vômitos, podendo ser intensos. ➔ Febre, mais presente nas fases mais avançadas, associada à infecção bacteriana. ➔ Anorexia e prostração. ➔ Agitação psicomotora ou, na progressão, quadro de rebaixamento do sensório, associado a sepse. Sinais físicos: ➔ Defesa muscular generalizada. ➔ Dor à descompressão brusca (sinal de Blumberg). ➔ Sinal de Jobert (timpanismo na região hepática devido à presença de ar livre subdiafragmático). ➔ Hipersensibilidade cutânea à palpação superficial. ➔ Íleo adinâmico (ausculta com diminuição ou ausência de ruídos hidroaéreos). Diagnóstico Avaliação Clínica ➔ Anamnese detalhada, focando no padrão da dor, início, fatores agravantes e atenuantes, histórico de úlceras, diverticulite, uso de AINEs, cirurgias prévias e comorbidades. ➔ Exame físico meticuloso, com foco na identificação dos sinais de peritonite e gravidade hemodinâmica. Exames Laboratoriais ➔ Hemograma: leucocitose com desvio à esquerda (infecção) ou leucopenia (grave). ➔ Coagulograma: avaliação da função hemostática. ➔ Eletrólitos, ureia e creatinina: avaliação de disfunção orgânica. ➔ Glicemia: pode estar alterada em infecções graves. ➔ Gasometria arterial: acidose metabólica em casos de sepse. ➔ Lactato sérico: marcador de hipoperfusão tecidual e gravidade. ➔ Amilase e lipase: auxilia na diferenciação com pancreatite. Exames de Imagem ➔ Radiografia simples de abdome (em ortostase) e tórax: Pesquisa de pneumoperitônio (sinal clássico: ar livre subdiafragmático). ➔ Tomografia Computadorizada (TC) de abdome e pelve com contraste: Método de eleição na maioria dos casos. Permite: ◆ Localizar a perfuração; ◆ Avaliar extensão da peritonite (livre ou bloqueada); ◆ Identificar complicações associadas como abscessos ou coleções; ◆ Avaliação precisa de vísceras sólidas e ocas. ➔ Ultrassonografia abdominal: Útil em alguns cenários, especialmente na urgência, embora limitada na detecção do pneumoperitônio. Conduta e Tratamento Abordagem inicial: ➔ Estabilização hemodinâmica: ◆ Acesso venoso calibroso; ◆ Reposição volêmica com cristaloides (Ringer lactato ou SF); ◆ Suporte ventilatório, se necessário. ➔ Antibioticoterapia empírica de amplo espectro: Deve ser iniciada precocemente, visando cobertura para gram-negativos, anaeróbios e, se necessário, gram-positivos. Exemplos: ◆ Piperacilina-tazobactam; ◆ Ceftriaxona associada a metronidazol; ◆ Meropenem, em casos mais graves. ➔ Sonda nasogástrica: Para descompressão do trato gastrointestinal. ➔ Monitorização intensiva: Avaliação constante de sinais vitais, diurese e perfusão tecidual. Tratamento definitivo – Cirúrgico: ➔ Laparotomia exploradora ou laparoscopia, a depender da condição clínica e dos recursos disponíveis. ➔ Procedimentos típicos incluem: ◆ Sutura da perfuração com ou sem uso de epiploplastia (no caso de úlcera perfurada); ◆ Colectomia segmentar em perfurações colônicas; ◆ Apendicectomia em casos de apendicite perfurada; ◆ Drenagem de coleções e lavagem peritoneal abundante. O pneumoperitônio, na ausência de sinais inflamatórios ou perfuração, pode ocorrer como achado pós-operatório, ventilação mecânica ou causas ginecológicas. No entanto, sempre que associado a sinais clínicos de peritonite, indica intervenção cirúrgica imediata. A mortalidade pode variar de 5% a 40%, sendo mais elevada em casos de atraso no tratamento, pacientes idosos, imunossuprimidos ou com múltiplas comorbidades. AÇÃO FARMACOLÓGICA DOS ANTIÁCIDOS Antiácidos: Os antiácidos são bases fracas que reagem com o ácido gástrico formando água e um sal, para diminuir a acidez gástrica. Como a pepsina (uma enzima proteolítica) é inativa em pH acima de 4, os antiácidos reduzem a atividade da pepsina. Química: Os antiácidos variam amplamente em composição química, capacidade de neutralizar o ácido, conteúdo de sódio, palatabilidade e preço. A eficácia de um antiácido depende da sua capacidade de neutralizar o HCl gástrico e do fato de o estômago estar usados são combinações de sais de alumínio e magnésio, como hidróxido de alumínio e hidróxido de magnésio [Mg(OH)2]. O carbonato de cálcio (CaCO3) reage com o HCl formando dióxido de carbono (CO2) e cloreto de cálcio (CaCl2) e é também uma preparação comumente usada. A absorção sistêmica do bicarbonato de sódio [NaHCO3] pode produzir alcalose metabólica transitória. Por isso, esse antiácido não é recomendado para uso prolongado. Usos terapêuticos : Os antiácidos são usados para o alívio sintético da úlcera péptica e da DRGE. Eles também podem promover a cicatrização de úlceras duodenais. Para eficácia máxima, devem ser administrados após a refeição. (Nota: preparações de carbonato de cálcio também são usadas como suplementação de cálcio para o tratamento da osteoporose.) Efeitos adversos: O hidróxido de alumínio tende a causar constipação, ao passo que o hidróxido de magnésio tende a produzir diarreia. Medicamentos que se associam a esses fármacos ajudam na normalização da função intestinal. A absorção dos cátions dos antiácidos (Mg2+, Al3+, Ca2+), em geral, não é problema em pacientes com função renal normal; entretanto, podem ocorrer acúmulo e efeitos adversos em pacientes com comprometimento renal Antagonistas de receptor H2 e regulação da secreção gástrica : A secreção gástrica é estimulada por acetilcolina (ACh), histamina e gastrina. As ligações de ACh, histamina ou gastrina com seus receptores resulta na ativação de proteinocinases, que, por sua vez,estimulam a bomba de prótons H+/K+-adenosina trifosfatase (ATPase) a secretar íons hidrogênio em troca de K+ para o lúmen do estômago. Bloqueando competitivamente a ligação da histamina aos receptores H2, esses fármacos reduzem a secreção do ácido gástrico. Os quatro fármacos usados nos EUA – cimetidina, ranitidina, famotidina e nizatidina – inibem de modo potente (mais de 90%) a secreção gástrica ácida noturna, a estimulada por alimento e a basal. A cimetidina foi o primeiro antagonista do receptor H2 da histamina. Todavia, sua utilidade é limitada por seus efeitos adversos e suas interações medicamentosas. Ações : Os antagonistas de receptor H da histamina atuam seletivamente nos receptores H2 do estômago, mas não têm efeito nos receptores H1. Eles são antagonistas competitivos da histamina e totalmente reversíveis. Usos terapêuticos : O uso desses fármacos diminuiu com o advento dos IBPs. ➔ Úlceras pépticas: Os quatro fármacos são igualmente eficazes para a cicatrização das úlceras gástricas e duodenais. Contudo, a recorrência é comum se houver presença de H. pylori, e o paciente for tratado somente com esses fármacos. Os pacientes com úlceras induzidas por AINEs devem ser tratados com IBPs, pois esses fármacos curam e previnem úlceras futuras de modo mais efetivo do que os antagonistas H2. ➔ Úlceras de estresse agudo: Os anti-histamínicos H2 são usados normalmente por infusão intravenosa (IV) para prevenir e lidar com úlceras de estresse agudo associadas com pacientes de alto risco nas unidades de tratamento intensivo. Entretanto, como pode ocorrer tolerância com esses fármacos, o uso dos IBPs também vem avançando nessa indicação. ➔ DRGE: Doses baixas de antagonistas H2, atualmente disponíveis em medicamentos de venda livre, parecem eficazes na prevenção e no tratamento da queimação (DRGE) somente em cerca de 50% dos pacientes. Os antagonistas H2 atuam somente no controle da secreção ácida. Por isso, eles não aliviam os sintomas por, pelo menos, 45 minutos. Os antiácidos neutralizam de forma mais rápida e eficaz o ácido gástrico, mas sua ação é temporária. Por essa razão, os IBPs são preferidos atualmente no tratamento da DRGE, especialmente em pacientes com azia grave. Farmacocinética: Após administração oral, os antagonistas H2 se distribuem amplamente pelo organismo (incluindo o leite materno e por meio da placenta) e são excretados principalmente na urina. Cimetidina, ranitidina e famotidina também estão disponíveis em formulações IV. A meia-vida de todos esses fármacos pode aumentar em pacientes com disfunção renal, e é preciso ajustar a dosagem. Efeitos adversos : Em geral, os antagonistas H2 são bem tolerados. A cimetidina tem efeitos endócrinos porque atua como um antiandrogênico não esteroidal. Os efeitos incluem ginecomastia e galactorreia (liberação ou ejeção contínua de leite). Os demais não produzem os efeitos antiandrogênicos nem estimulantes de NC), como confusão e alterações mentais, ocorrem primariamente em pacientes idosos ou após administração IV. A cimetidina inibe várias isoenzimas CYP450 e pode interferir na biotransformação de vários outros fármacos, como varfarina, fenitoína e clopidogrel. Todos os antagonistas H2 podem reduzir a eficácia de fármacos que exigem um ambiente ácido para absorção, como o cetoconazol. Inibidores de bomba de prótons (IBP): Os IBP (inibidores da bomba de prótons) são os mais potentes supressores da acidez gástrica, atuando ao inibirem a enzima H+/K+-ATPase gástrica. Eles suprimem 80% a 95% da secreção ácida e incluem fármacos como omeprazol, pantoprazol, rabeprazol, lansoprazol, esomeprazol, dexlansoprazol, entre outros. Embora possuam meia-vida diferente, todos têm eficácia semelhante quando usados em doses comparáveis. Os IBP são pró-fármacos ativados em pH ácido, formulados como grânulos de liberação entérica para proteger sua ativação no estômago. Sua biodisponibilidade aumenta com o uso crônico, e o fármaco é ativado nos canalículos de secreção ácida da célula parietal, ligando-se irreversivelmente à bomba de prótons. Embora tenham meia-vida curta (0,5 a 2 horas), promovem supressão prolongada de 24 a 48 horas. Para otimizar a eficácia, devem ser administrados em jejum ou 30 minutos antes das refeições, pois a administração junto às refeições pode diminuir sua biodisponibilidade. A supressão ácida máxima ocorre após 2 a 5 dias, sendo possível antecipar com 2 doses diárias. Aumentar a dose pode melhorar a taxa de erradicação do H. pylori. Os IBP são metabolizados pelo fígado, e o polimorfismo da CYP2C19 pode afetar a resposta terapêutica, especialmente em populações específicas. Pacientes com hepatopatia podem necessitar de ajuste de dose, enquanto a insuficiência renal crônica não afeta o acúmulo dos fármacos em doses usuais. Usos: Os inibidores da bomba de prótons são utilizados para o tratamento ou o alívio sintomático de vários distúrbios gástricos, incluindo: ➔ Úlceras gástricas e duodenais (especificamente associadas a infecções por H. pylori) ➔ Doença do Refluxo Gastroesofágico e esofagite erosiva ➔ Condições hipersecretoras patológicas ➔ Prevenção do sangramento em pacientes de alto risco em uso de agentes antiagregantes plaquetários. Uma aplicação importante desses fármacos é no tratamento da infecção por Helicobacter pylori em pacientes com úlceras duodenais. O tratamento mais comum é a terapia tríplice, que combina um inibidor da bomba de prótons (como omeprazol ou lansoprazol) com dois agentes anti-infecciosos (como amoxicilina e claritromicina). Outra variação inclui o uso de bismuto com dois antibióticos, como metronidazol e tetraciclina, podendo ser associada a um antagonista dos receptores H₂. Existem diversas combinações terapêuticas disponíveis para erradicação da infecção por H. pylori. Os IBP são utilizados em doenças como DRGE, síndrome de Zollinger-Ellison, sangramento gastrintestinal alto, dispepsia funcional e como profiláticos em pacientes que usam medicamentos com potencial lesivo à mucosa gastrintestinal, como AINE e antineoplásicos. Reações adversas: Os mais comuns incluem náusea, cefaleia, dor abdominal, constipação, flatulência e diarreia. Menos frequentemente, podem ocorrer miopatias, artralgias, osteoporose, hipomagnesemia, pólipos gástricos e infecções entéricas. O uso prolongado pode levar a deficiência de vitamina B12, associada a um aumento do risco de demência e Alzheimer. Estudos também sugerem uma possível associação entre o uso de IBP e doenças cardiovasculares, como o infarto do miocárdio. Contraindicações : Os inibidores da bomba de prótons são contraindicados para pacientes hipersensíveis a qualquer um desses medicamentos. Os inibidores da bomba de prótons devem ser usados com cautela em adultos mais velhos e em pacientes com comprometimento hepático. O tratamento prolongado pode diminuir a capacidade de absorção da vitamina B12 pelo corpo, resultando em anemia. Omeprazol (categoria C para uso na gestação) e lansoprazol, rabeprazol e pantoprazol (categoria B) são contraindicados durante a gravidez e a lactação. Interação medicamentosa : Esses fármacos podem interagir com outros medicamentos, como diazepam e varfarina, além de alterar a absorção de digoxina e nifedipina. O uso de omeprazol pode reduzir a excreção de imipramina e fenitoína. CONSEQUÊNCIAS DA AUTOMEDICAÇÃO ABANDONO DO TRATAMENTO E RISCO DA VISITA TARDIA AO MÉDICO A automedicação, prática de usar medicamentos sem orientação profissional, pode causar reações adversas graves, como alergias, intoxicações ou danos a órgãos como fígado e rins — o uso excessivo de paracetamol, por exemplo, pode levar à hepatotoxicidade. Além disso, combinações inadequadas de medicamentos podem gerar interaçõesperigosas, reduzindo a eficácia de tratamentos ou potencializando efeitos tóxicos. A automedicação gera também outro mau hábito, o de acumular remédios em casa. Esta prática pode causar problemas graves, como: ➔ Confusão entre medicamentos; ➔ Ingestão de substâncias após vencimento; ➔ Ineficácia no tratamento causada pelo mau armazenamento do remédio; ➔ Ingestão acidental por crianças. Essa prática também máscara sintomas, escondendo doenças graves como câncer ou infecções, o que atrasa diagnósticos e tratamentos adequados, podendo agravar quadros clínicos, como o uso de anti-inflamatórios em casos de úlceras gástricas, que pode causar sangramentos. Já o abandono ao tratamento , quando o paciente interrompe a terapia prescrita por desmotivação, descuido ou sensação de melhora, leva à piora de condições crônicas, como diabetes, hipertensão ou HIV, resultando em complicações graves, como infartos, AVCs ou progressão de infecções. A visita tardia ao médico , muitas vezes motivada por subestimar sintomas, medo ou falta de acesso, também é perigosa, pois atrasa diagnósticos de doenças como câncer ou infarto, reduzindo as chances de cura ou controle. Condições tratáveis, como apendicite ou infecções urinárias, podem evoluir para quadros graves, como sepse, se não tratadas a tempo, aumentando custos com tratamentos complexos e impactando a saúde pública ao facilitar a disseminação de doenças transmissíveis.