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BERNARDO ÉLIS !!
(da Academia Brasileira de Letras) 
!
O TRONCO 
!
Romance !!
8ª edição !!
JOSÉ OLYMPIO EDITORA !
RIO DE JANEIRO/1988 
Bernardo Élis, 1956 !
Reservam-se os direitos desta edição à 
LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA, S.A. 
Rua Marquês de Olinda, 12 
Rio de Janeiro — República Federativa do Brasil 
Printed in Brazil / Impresso no Brasil !
ISBN 85-03-00252-3 !
Capa 
Montagem 
MAURÍCIO DE OLIVEIRA 
sobre desenho de 
POTY !
Diagramação 
ANTÔNIO HERRANZ !!
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte 
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ !
Élis, Bernardo, 1915E42t O Tronco: romance. — 8. ed. — Rio de Janeiro: José Olympio, 
1988. !
Dados biobibliográficos do autor. 
Bibliografia. 
1. Romance brasileiro I. Título. !
 CDD — 869.93 
Rj-77-0419 CDU — 869.0(81)-31 !!
Ofereço este livro aos 
HUMILDES VAQUEIROS, 
JAGUNÇOS, SOLDADOS, 
HOMENS, MULHERES 
 e 
MENINOS SERTANEJOS !
mortos nas lutas dos coronéis 
e que não tiveram sequer uma sepultura. 
SUMÁRIO !!
DADOS BIOGRÁFICOS DE BERNARDO ÉLIS vii !
BlBLIOGRAFIADEBERNARDOÉLIS ÍX !
NOTADAEDITORA XÍ !
ROMANCE DE PROTESTO(Francisco de Assis Barbosa) xi !
EXPLICAÇÃO xviii !
O TRONCO !!!!
I. O inventário 3 
II. A comissão 59 
III. . A prisão 111 
IV. O assalto 209 !!!!!!!!!!!!
DADOS BIOGRÁFICOS 
DE BERNARDO ELIS !
BERNARDO ÉLIS é o nome literário de Bernardo Élis Fleury de Campos Curado, nascido 
em Corumbá de Goiás (GO), em 15 de novembro de 1915, filho do poeta Érico José 
Curado e sua mulher Marieta Fleury Curado. 
 As primeiras letras fez em casa com os pais, o curso ginasial no liceu de Goiás, da 
antiga capital do Estado, o curso jurídico em Goiânia, onde reside desde 1939. Iniciou-se 
na carreira pública como Secretário da Prefeitura Municipal de Goiânia, quando por duas 
vezes exerceu as funções de prefeito da Capital; ingressou depois no magistério como 
professor da Escola Técnica Federal de Goiânia, lecionando ainda nos colégios Estadual 
e Municipal e na rede de ensino gratuito, havendo antes desempenhado as funções de 
técnico cooperativista do Departamento Estadual de Cooperativismo. 
 Foi co-fundador, vice-diretor e professor do Centro de Estudos Brasileiros, da 
Universidade Federal de Goiás, daí passando a professor de Literatura da Universidade 
Católica e em vários cursos preparatórios ao vestibular das universidades. 
 É fundador da União Brasileira de Escritores de Goiás, cuja presidência ocupou 
diversas vezes; é membro da Academia Goiana de Letras, da Academia Brasiliense de 
Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás e da União Nacional de Escritores de 
Brasília, da qual foi presidente. !!!!!!!!!!!!!!
 Tem participado ativamente dos acontecimentos literários a partir de 1934, fundando e 
dirigindo órgãos culturais aparecidos no Brasil Central, nos quais colabora. Participou dos 
Congressos Brasileiros de Escritores realizados em São Paulo, Belo Horizonte, Porto 
Alegre e Goiânia, do Encontro das Academias de Letras em Goiás (1972), do Congresso 
de Jornalistas e Escritores. Promoveu o I Curso de Literatura em Goiás (1953) e realizou 
palestras, conferências e cursos literários em oportunidades que ultrapassam uma 
centena. 
 Como advogado, militou nos foros de Goiânia, Anápolis, Inhumas e outras cidades. 
 Nos Últimos anos desempenhou a função de assessor cultural junto aos Escritórios 
de Representação do Estado de Goiás, no Rio de Janeiro e em Brasília, e reassumiu o 
cargo de professor da Universidade Federal de Goiás, exercendo ainda a função de 
diretor adjunto do Instituto Nacional do Livro (MEC), em Brasília. É conselheiro do 
Conselho Federal de Cultura, do Minc e do Conselho Estadual de Cultura de Goiás. 
 Pertence à Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a Cadeira nº. 1, para a qual 
foi eleito em 23 de outubro de 1975, tendo sido ali recebido em 10 de novembro do 
mesmo ano pelo acadêmico Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. É o primeiro goiano a 
ingressar na Casa de Machado de Assis. 
 Foi agraciado pelo Presidente Sarney com a insígnia e o diploma da Ordem do Rio 
Branco, no grau de Grande Oficial. 
 É casado com a professora e pintora Mana Carmelita Fleury Curado. !
!
BIBLIOGRAFIA DE	
BERNARDO ÉLIS	

!
ROMANCE 
O tronco. São Paulo, Martins, 1956; 2. ed., refundida, Rio de Janeiro, José Olympio, 1967. 
Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, 1968; 3. ed., Rio de Janeiro, José Olympio 
(Coleção Literatura Contemporânea), Civilização Brasileira/Três, 1974; 4. ed., São Paulo, 
Círculo do Livro/Abril, 1974; 5. ed., Rio de Janeiro/ Brasília, José Olympio/INL, 1977; 6. 
ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1979. A terra e as carabinas. Em Obra Reunida de 
Bernardo Élis. Rio de Janeiro, José Olympio, 1987. Coleção Alma de Goiás. Chegou o 
governador. Rio de Janeiro, José Olympio, 1987. Brasileira do Livro, 1967; 2. ed., rev. e 
aum. Rio de Janeiro/ Brasília, José Olympio/INL, 1976; 3. ed., Rio de Janeiro, José 
Olympio, 1978; 4. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1979. Nota de Herman Lima. 
Caminhos dos Gerais. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975; 
2. ed., aum., Rio de Janeiro/ Goiânia, Civilização Brasileira/Universidade Federal de 
Goiás, 1982. Notas da Prof? Moema C. S. Olival. André Louco. Rio de Janeiro, José 
Olympio, 1978. Apenas um violão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. 
Dez contos escolhidos. Brasília, Horizonte, 1985. !
POESIA !
Prímeira chuva. Goiânia, Escola Técnica Industrial 1955; 2. ed., Goiânia, Instituto Rio 
Branco, 1971. !
CRÔNICA !
Jeca Jica — Jica Jeca. Goiânia, Cultura Goiana, 1986. !
CONTO	
Ermos e Gerais. São Paulo, Bolsa de Publicações, Hugo de Carvalho Ramos, 1944; 2. 
ed., Goiânia, OTO, 1955. Prêmio Prefeitura Municipal de Goiânia. 
Caminhos e descaminhos. Goiânia, Brasil Central, 1965. Prêmio Afonso Arinos da 
Academia Brasileira de Letras.Veranico de janeiro. Rio de Janeiro, José Olympio, 1966. 
Prêmio José Lins do Rego da José Olympio, 1965. Prêmio Jabuti da Câmara !
ENSAIO 
Marechal Xavier Curado, criador do Exército nacional. Goiânia, Gráfica Oriente, 1973. 
Prêmio Sesquicentenário da Independência do Brasil, 1972. Vila-Boa de Goiás. Aspectos 
turístico-históricos. Desenhos de tom Maia e legendas de Theresa R. C. Maia. São Paulo/
Rio, Nacional/Embratur, 1979. Goiás. Estudos Sociais (l? grau). Rio de Janeiro, Bloch, 
1976. Coleção Nosso Brasil. Os enigmas de Bartolomeu Antônio Cordovil. Bibliografia 
seguida de !
IX 
antologia do primeiro poeta goiano do Brasil-Colônia. Goiânia, Oriente, 1980. 
Vila-Boa de Goiás. Álbum fotográfico, texto de Bernardo Elis. Rio de Janeiro, Berlendis & 
Vertechia Editores, 1978. Goiás em sol maior. Estudos de história, sociologia e literatura 
sobre Goiás. Goiânia, Poligráfica, 1985. 
O Centro-Oeste. Álbum de pintura com obras inéditas de A. Poteiro, Ornar Souto, A. 
Espíndola e Siron Franco, com apresentação de Bernardo Elis, patrocinado pelo Banco 
Francês e Brasileiro S.A.. Rio de Janeiro, Colorama, 1986. !
DISCURSO 
Cadeira um. Discursos da Academia Brasileira de Letras: Bernardo Elis (posse) e Aurélio 
Buarque de Holanda Ferreira (recepção). Rio de Janeiro, Cátedra, 1983. Duo em si 
menor. Discursos na Academia Brasiliense de Letras, Fundação da Cadeira n. 3: Herberto 
Sales (posse) e Bernardo Elis (recepção). Brasília, Horizonte, 1983. !
ANTOLOGIAS 
Seleta de Bernardo Elis. Organização de Gilberto Mendonça Teles; estudos e notas do 
Prof. Evanildonuma fazenda de 
Santa Maria de Taguatinga, mas comerciavam em Duro, aldeia dos índios Acroá e 
Chacriabá, a que chamavam de ”comércio”. Era homem inteligente, sagaz, audacioso, de 
ambição sem limites, duro feito uma aroeira, dotado de !
28 
normas de conduta que o tomavam muito superior aos naturais da região. Escolheu para 
esposa Ana Divina da Rocha, da mais rica, mais numerosa e mais importante família do 
Norte de Goiás, o que lhe trouxe prestígio social. Dispondo de algumas letras, passou a 
exercer funções de Juiz, Coletor de Rendas, Delegado, canais que o elevaram ao posto 
natural de Chefe Político: era o poder incontestável. 
 Pedro Melo amava o trabalho, a pontualidade, a energia e a força. Amava a vida 
rude e simples. Para o trabalho diário na lida de gado, usava a veste de vaqueiro 
piauiense: calça de couro, gibão e chapéu de couro. A calça terminava em botina. Nas 
grossas e pesadas mãos, a luva de couro. 
 Suas vestes eram branquinhas, do melhor couro de catingueiro curtido na 
decoada, com casca de angico. Para outros momentos era a roupa de algodão tecida em 
casa, pelas negras, no tear que ele mesmo fizera. Detestava o luxo. Ria-se das roupas de 
casimira e linho, chamando de boneco quem as vestia. Que é que o coronel não sabia 
fazer e fazer melhor do que todo mundo? bom pedreiro, ali estava a casa que ergueu, os 
tijolos do piso tão bem ajustados que mal se discerniam as junturas. Era mestre em 
trabalho de couro: uma calça ou chapéu ou gibão de couro feitos por ele eram conhecidos 
pela elegância do talhe e finura da trança. Como carapina de mão cheia ali estavam a 
mesa, os bancos, os tamboretes, as cadeiras de fechar feitas por suas mãos. 
 Numa extensão de muitas léguas, quem não falava com admiração do parafuso de 
madeira que fizera para uma prensa de farinha! Obra-prima de paciência e engenho. E o 
bicame da fazenda Grota? De coqueiro macaúba fez ele um extenso bicame, colhendo 
água de um brejo. Como o lugar era montanhoso e a água devesse ir no nível, nos vales 
as bicas eram assentadas em cima de postes de aroeira, cujo topo fora adrede 
preparado. 
 Em certos lugares essas bicas passavam a uma altura de mais de oito metros do 
chão, por sobre precipícios e perambeiras. Trabalho duro! Requeria coragem. Foi o velho 
sozinho, com a ajuda apenas de Tito, que tudo fizera. Coisa dura era ficar lá naquelas 
grimpas, andando sobre as vigas que ligavam um poste ao outro e sustentando nos 
braços a pesada bica de macaúba que deveria descansar no cabeçote do poste. O velho 
enchia-se de orgulho: !
29 
— Coragem quem tinha era só eu e Tito. 
 As bicas não eram pregadas nos postes, pois macaúbaiiu prego, racha-se. As 
bicas eram soltas: 
 — A gente tinha que andar equilibrando. Se triscasse na bica, ela caía em riba da 
gente. 
 Uma ocasião, teria Vicente uns dezoito anos, estava passeando perto do bicame 
na companhia de Lina, sua noiva, e do tio Pedro Melo. Chegados a esse lugar em que o 
bicame passava lá nas grimpas, o velho pegou a exaltar seus feitos. Para não ficar por 
debaixo, Vicente disse que o trabalho era importante, mas não era essa coisa do outro 
mundo assim como pintava o tio: — ele estava exagerando. 
 — Homem, não foi você que fez... — retrucou o velho num muxoxo. Ele não 
gostava de se sentir diminuído. E logo aquele menino fazendo pouco de sua coragem, de 
sua capacidade de traballho! 
 — Ainda hoje não tem macho para andar lá por cima, naquela viga posta por baixo 
da bica... — falou ele para o vento, os olhos fitos no alto: — Nem para andar lá em cima, 
veja só! Que colocar a bica foi muito mais perigoso... 
 Vicente olhou para onde se dirigiam os olhos do velho. Lá no alto, o bicame se 
recortava contra o céu azul de janeiro. De fato a altura era grande, muito grande mesmo, 
Vicente jamais atingirã a altura tão elevada em sua vida. 
 — Pra subir ali, só o preto Tito que é cabra desacismado,- continuava a voz do 
velho insistente, tenaz, desafiadora. Apontava para cima, fixando a bica desenhada contra 
o céu muito azul, iluminado por um sol claríssimo de janeiro. 
 — Veja lá — dizia ele. — A gente tem que andar na viga, com a bica na altura do 
peito, mas a gente não pode nem pender pra trás, nem pender pra frente. A bica é solta 
no poste. Se a gente de| sequilibra, cai mesmo. Na bica ninguém num pode pegar. 
 No céu, o sol tremia. Cá embaixo, riscavam-se a sombra da viga e sombra da bica. 
Como dois traços negros, paralelos, as sombras galopavam pelo valo, passando por cima 
das folhas viçosas do milharal que ali crescia. O milharal embandeirado tremia ao vento, 
tatalando suas belas folhas verdes, que reverberavam ao sol. Um bafo quente subia da 
terra úmida e do milharal verde. Ao la- !
30 
do, os olhos da sobrinha tinham um lampejo indecifrável. Seria terror? Seria interrogação? 
Seria ironia? 
 — Menino, botar a bica lá em riba foi muito dificultoso — voltava a insistir o coronel 
de maneira a irritar. — Imagina só: eu ia na frente, equilibrando na viga, carregando a bica 
na altura dos peitos. Devagar, devagar! Atrás o Tito, negro bão de confiança. Bastava um 
isso e a gente esborrachava cá embaixo. 
 Vicente compreendia o ardido velho. Toda aquela descrição patética tinha como 
objetivo encher o sobrinho de terror. Vicente já tinha certeza que o tio o desafiaria para 
andar lá em cima do bicame. Era por isso que os olhos de sua namorada brilhavam de um 
brilho tão estranho: ela alcançou o intuito do tio antes de Vicente. 
 — Você tem coragem de andar lá em cima? — Embora esperasse, essa pergunta 
do velho provocou um estremeção no jovem. O coração perdeu o compasso. Num 
momento ele temeu que o sangue lhe fugisse das faces e denunciasse seu receio. 
 Forçou o sorriso, aceitou o desafio, e para ocultar sua provável emoção, saiu 
correndo por entre o milharal: 
 — Vamos, meu tio, vamos lá para cima. Mas olha lá que o senhor não é nenhum 
mocinho. O senhor fez esse bicame faz muito tempo, meu tio! — Vicente dizia aquilo da 
boca para fora, para não dar o braço a torcer, pois o velho Melo, como um demônio, 
conhecedor de todos os pormenores da região, numa agilidade de bicho, galgava 
facilmente o aclive, tomava a dianteira de Vicente e já se equilibrava sobre a tal viga, num 
ponto onde ela era menos alta. Como lhe permitiam as forças, Vicente também fez a 
mesma coisa. Entretanto, do alto da viga, ele pode perceber que o tio não exagerara. 
Pedro Melo, prático em transitar por ali, não encontrava dificuldade. Ia avançando, 
dirigindo-se para o ponto onde o bicame atingia sua maior altitude, justamente por sobre a 
roça de milho. 
 Com grande custo Vicente conseguia equilibrar-se. A viga, por baixo, estava no 
mesmo plano vertical da bica: dessa forma era preciso que a pessoa se mantivesse na 
ponta dos pés e projetasse a barriga para a frente, fazendo recuar o peito, contra o qual 
roçava a bica, ao mesmo tempo que esticava a cabeça por sobre a bica. Nessa posição, 
todo contorcido, ia-se afastando uma perna !
31 
para a direita e depois a outra no mesmo sentido, para caminh ao longo da viga. Uf! . 
 Até que Vicente se apossasse da técnica, já o velho Coronel Pedro Melo ia longe. 
Vicente apressava-se para alcançá-lo, mas o esforço era em vão. Estavam então no 
ponto de maior altura. Vendo que o rapaz não desistia, quis desesperá-lo: 
 — Espia lá embaixo. Vigia como é bonito! — Vicente olhou, mas nada viu de 
bonito. Muito embaixo, no vale, o milharal on deava açoitado do vento. Um precipício, 
uma vertigem, sensação nunca antes experimentada. Do vale subia um bafo quente, 
úmido, feito uma boca de febrento. Tremia o sol, tremia o folhame o chão faltava. Entre o 
verdor do milharal talvez um vulto acenando. Seria a namorada? Nem podia responder. O 
suor corria empapando as costas, sentia-se desamparado e perdido, o milharal rodava, 
ondeava, tudo fugia ao seu apoio. O coração batia com força tamanha que lhe parecia 
estar sendo ouvido pelo velho: o baticum retumbava nas carótidas, sapateava nos 
ouvidos, latejavá nos olhos. Não podia agüentarmais. Foi levando as mãos para agarrar a 
bica. 
 — Não pega, não pega! — Era a voz do velho reboando pelo vale. 
 O grito, como que retemperou Vicente, deu-lhe serenidade. Parado no meio da 
viga estava o velho; e o rapaz lhe disse que seguisse. Queria sair saquele suplício, atingir, 
alcançar o outro lado, pisar a terra firme: 
 — Vamos, meu tio. Pra frente! 
 — Não! Péra aí. Agora é voltar, — respondeu friamente Coronel Pedro Melo. 
 — Voltar? 
 E em seguida o velho passou a explicar: — Fique fixe aí. Eu vou passar por trás de 
você, para voltar. Não há perigo; não toco nem num cabelinho seu. — Vicente percebeu a 
extensão do perigo. Para passar por trás, o velho tinha imensa probabilidade de 
desequilibrar-se e rolar no abismo. Se se desequilibrasse, tentaria apoiar-se em Vicente, 
que procuraria apoio na viga, e aí tudo ia para o fundo do vale, por riba das pontas de 
pedras, pontas de toco das árvores que tinham sido derrubadas para feitio da roça. — 
Não é preciso, meu tio. Agora eu vou na frente e o senhor !
32 
vem atrás. — Melo porém não deu ouvidos, já começou a passar por trás de Vicente a 
sua perna, que tateou, tateou e afirmou-se adiante, depois passou um braço, tocou com a 
mão muito de leve a bica e aí mudou a outra perna. Sem dizer palavra, prosseguiu 
andando na viga, até chegar ao ponto onde havia iniciado a proeza. Num pulo alcançava 
o chão e gritava para a sobrinha: — Pode casar, menina. Seu noivo não é patife não. !
AH, A CASA! Eis um dos padrões de glória da viúva Benedita Fernandes de Melo. 
Nenhuma sequer havia do mesmo tamanho no povoado. Nem a do cunhado Pedro Melo. 
Quando o finado marido Antônio Melo Albuquerque adquiriu a residência, tinha três 
lances. À proporção, porém, que os filhos foram se casando, Antônio Melo foi 
acrescentando novos lances e reunindo filhos e genros debaixo do mesmo teto, debaixo 
do seu teto. 
 No corpo da casa havia uma varanda de quase duas dezenas de metros de 
comprimento, para onde davam portas e janelas dos cômodos internos. Vastas janelas 
corrediças abriam-se da varanda para um pátio lajeado, onde cresciam roseiras, gerânios, 
amores-perfeitos, verbenas, monsenhores, resedáse jasmineiros. Aí estava o segundo 
orgulho de Dona Benedita: suas flores. 
 Para além, ficavam o quintal com a horta, os currais e os pastos. 
 Ao tempo das moças solteiras e do velho vivo, nesse varandão sempre havia 
bailes e brincadeiras, que deram mais fama à grandeza da casa e à beleza do jardim. 
Casa alegre era aquela com a moçada tocando violão, bandolim, cantando, recitando, 
atraindo os melhores cortes de noivo de toda a região. com as filhas de Antônio Melo 
casaram-se Arthur Melo, deputado estadual, Vicente Lemes, coletor estadual, um famoso 
poeta de Goiás, então juiz de Direito da comarca; Moisés Melo, comerciante no Duro. E 
até hoje, embora o velho estivesse enterrado, embora rapazes e moças houvessem 
casado, a casa de Dona Benedita era um formigueiro. 
 Naquela noite, por exemplo, ali na varanda estava um povão danado. No canto, em 
frente à porta da capela, aí estava a velha Benedita assentada na rede, os pés metidos 
nos chinelos, aos ombros um xale preto. Em derredor, pelos tamboretes e frasqueiras, !
33 
espalhavam-se Vicente Lemes, Argemiro Félix, Moisés Melo e as 
esposas. 
 O prosão animado versava sobre o inventário de Clemente Chápadense. Nisso, 
porém, a conversa pegou a mancar, a baixar de tom. De sua rede Dona Benedita falava 
sua fala mansa e macia, mas cheia de ódio. Ela não entendia desse negócio de 
inventário, mas entendia do coração dos homens. Dona Benedita conhecia o genro 
Vicente Lemes e conhecia o outro genro Artur Melo. Se Vicente estava exigindo alguma 
coisa, o direito estava com Vicente, que já lhe havia contado, por diversas vezes, as 
implicâncias de Artur. 
 — Vicente, meu filho, não baixa a crista. Derrota o malvado, 
só, — disse a velhinha, a cujo coração subiu o ódio ao genro Artur, Odiava-o como odiava 
o pai dele, o velho Pedro Melo, irmão de seu defunto marido: — Piauienses de uma figa. 
É preciso dar uma lição nesses ladrões! 
 — Não, Dona Benedita, não diz assim — entrou conciliador o genro Moisés. — 
Afinal de contas, são nossos parentes. 
 — Ladrões, ladrões — repetia a velha. — Então o refrigério não 
foi furtado? 
 Todos conheciam de sobra a história do refrigério, mas ninguém ousou impedir que 
a velha a repetisse, ouvindo tintim por tintim no mais respeitoso silêncio. 
 No caminho de Barreiras, perto do povoado do Duro, no alto da Serra, havia um 
terreno de excelentes pastagens durante a seca. Cheio de taquaral, furnas frescas e 
cambaúbas. Para aí subia o gado no ardor da seca, onde permanecia comendo capim 
verdinho até que cá embaixo se queimassem os pastos e o capim brotasse, quando então 
as reses desciam para comer o verde. 
 Era uma praxe antiqüíssima. O pai e o avô de Dona Benedita assim procediam e o 
marido dela continuou nesse sistema. O gado era tão empastado que logo que o tempo 
demudava e entrav a seca, ele dava fé e pegava a berrar uns berros intermitentes. 
Depois, reunidos em ternadas, aspirando o vento e berrando intei mitentemente, os 
curraleiros começavam a galgar a serra embusca do refrigério, donde só voltariam com a 
outra mudança da estação, quando o vento geral anunciasse chuva, revirando de rumo. 
 Aquilo era uma riqueza. Quem tivesse o refrigério, quem pos- !
34 
suísse a serra, teria reserva de pasto, reserva fresca e boa. Por isso, mal o sogro de 
Vicente fechou os olhos, o irmão Pedro Melo trouxe de Barreiras vários rolos de arame 
farpado e os estendeu por ali, cercando o refrigério. 
 — Absurdo! — gritou a viúva. — Que o refrigério é meu. 
 — Cadê os documentos? — perguntou o cunhado Pedro Melo, assim muito 
inocentezinho. 
 — Que documento? — Ali ninguém possuía título de domínio de terras. Dono do 
chão era quem possuísse gado nele empastado. Até onde andasse o gado com a marca, 
até aí ia a propriedade do dono desta marca. Era uma lei que vinha num é d’hoje, se 
transmitindo de pais a filhos, sem contestação. O próprio Pedro, que era dono de mais de 
vinte fazendas, perguntassem a ele se possuía documento, para ver! 
 De nada valeram, porém, os protestos da velha. Naquela seca, quando o vento 
geral soprou, o gado de Dona Benedita aspirou profundamente o ar, soltou os berros finos 
e curtos de curraleiro e marchou pelas veredas que levavam ao refrigério. Debalde 
caminhavam pelas veredas. Tudo estava vedado pelas cercas de cinco fios, apoiados em 
grossos postes de vinhático e perobinha. A viúva procurou o cunhado e lhe mostrou que 
aquilo não podia ser: — O refrigério sempre foi de minha gente. Eu herdei ele de meu pai, 
que o herdou do pai dele. 
 — Tem dúvida não, minha cunhada. É só mostrar os documentos. 
 Benedita foi atrás dos parentes, mas aquilo era briga de cunhados e contrariar o 
Coronel Pedro Melo era coisa muito perigosa. Pelas veredas, o gado ia e vinha, rondando 
a cerca, tentando transpô-la, ferindo-se nas farpas do aramado. 
 A cerca do Coronel Pedro Melo ganhou fama, sua notícia correu mundo. De longe, 
vinha gente para ver a estrovenga. Então, os valos cavados no chão, as cercas àe pau, 
os muros àe peàra não tinham mais serventia? 
 Ao longo da cerca formou-se um aceiro largo de tanto o gado de Benedita ir e vir 
em busca de acesso ao refrigério. Benedita reclamou de novo e o cunhado fez uma 
pergunta que pareceu à viúva sem pé nem cabeça. Perguntou ele: 
 — Minha cunhada, que mal pregunte, para que a senhora está querendo o 
refrigério? !
35 
— E você pergunta muito mal mesmo, — respondeu a velha. — Quero o refrigério para o 
meu gado, ora essa é boa! — Que vontade que teve ela de lhe dizer que talvez no Piauí 
refrigério tivesse outra serventia! Mas qual! Melhor tolerar. 
 Pedro Melo riu: — Ora, Benedita, a senhora não tem mais gado não. Seu gadinho 
mal vai dar para pagar as custas do inventário de meu irmão. 
 Dona Benedita chorou três dias e três noites sem cessar, diante de seus santos, no 
dia que o oficial de justiça levouseu rebanho o melhor gado do Duro. 
 — Dê graças a Deus, minha cunhada. A sua valença foi meu filho Artur. Se não 
fosse ele, sua casa tinha ido a leilão para pagar as custas. Seu marido não deixou 
dinheiro! 
 Dona Benedita ficou pobre. Tinha a casa que os filhos e os genros sustentavam. 
Para pequenos gastos vendia um objeto de oura ou uma afaia de prata, velha afaia que 
herdou do pai e que entregava como quem corta fora um dedo da mão. 
 Os poucos candeeiros de azeite mal clareavam os cômodos» casarão, por onde os 
netos e sobrinhos brincavam de pegar ou brincavam de pique, numa algazarra dos 
trezentos. 
 — Psiu, psiu, aqui não, meninos. Vão brincar no pátio. 
 — Ai, ai, ai! No pátio não, que vão quebrar as minhas roseiras, — protestava a 
velha Benedita. 
 Na cozinha, à luz das brasas da fornalha, também conersavam os aderentes da 
velha Benedita. Do tamanho de uma menina de oito anos, as sobrancelhas grossas, o 
arde nanica, Maria Pequena falava. Januária ouvia, balançando a cabeça, onde o pixain 
meio branco se escondia por baixo do xale de franja, chupitamdo com a boca murcha de 
velha o pito sarrento, de barro. Januária era velha moradeira do Duro. Já vira e ouvira 
muita coisa. Dava notícia do tempo que os mineradores andavam revolvendo as catas 
que ainda hoje abriam suas bocas pelos arredores da cidade falava dos índios Acroá e 
Chacriabá que foram aldeados ali. A gente não sabia se era contemporânea desses fatos, 
ou se misturava suas recordações com o relato dos antepassados. 
 Naquela noite, como sempre, estava de visita a Maria Pequena, que era irmã de 
leite da velha Benedita e com ela residia. Tanto Januária como Maria Pequena sabiam 
que os graúdos eram maus e por isso o que falavam, falavam debaixo do maior segre- !
36 
do. Vez por outra, uma se erguia do pilão onde estava assentada, e ia à porta espiar se 
não havia ninguém ouvindo: — Parede tem ouvido, comadre. 
 — Seguro morreu de velho, — respondia Maria Pequena com sua voz de anã, 
juntando as sobrancelhas no alto da testa, aquelas sombrancelhas que eram que nem 
duas taturanas. As mulheres não entendiam desse rolo de inventário, mas quem ignorava 
que inventário era feito para os graúdos roubar? 
 — Coitada da viúva! Trem de viúva, a senhora sabe como é. 
 — Mesmo que carniça, cada bicho quer um taco... Mataram o pobre do 
Quelemente e agora tão quereno ficar com os terém do coitadinho... 
 — Até a mulher, que Deus me perdoe, — falou a Pequena dando tapas na boca. 
 — De vera! Diz que essa foi a primeira que o coronel passou a mão... — Pequena 
se ergueu, foi espiar na porta, e voltou: — Mas quem será que tá comendo os terém da 
viúva, comadre? Seu Vicente ou será o Coronel Artur? 
 — Essa menina, pra mim, tudo os dois tão engulindo os terém da viúva. A diferença 
é que Seu Vicente quer comer um taquinho menos avultado e o coronel quer comer o 
defunto inteirinhozinho, sem deixar nem um isso para os outros. — Ambas riram e a outra 
completou que não punha a mão no fogo por Artur: — Esses Melos têm parte com o Cão, 
comadre. Até Félix Bundão eles meteram no chinelo! 
 O caso era muito conhecido. Félix Bundão era um chefe de bando dos Gerais; um 
dia entrou na vila para vingar a honra de duas filhas de um amigo que foram defloradas 
por gente graúda e que não foram válidas da justiça. Félix Bundão entrou disparando 
rifles, cercou a casa do deflorador, deu-lhe vários tiros, matou-o, depois ficou debaixo dos 
mulungus, conversando com conhecidos. 
 Félix não fez nenhum mal à esposa e filhos do deflorador, dizendo-lhes que podiam 
enterrar o defunto em paz. Mais tarde, deixou a vila. Não tocou numa casa, não buliu 
numa gaveta, não fez mal nem a uma galinha, não quebrou nem um raminho de planta. 
Só entrou na casa da vítima e dali meteu os pés na estrada, de volta. Pois não lhe conto 
nada. Foi Félix virar as costas, olhe ali o boato correndo: Félix Bundão limpou a gaveta da 
Coletoria Es- !
37 
tadual. O coletor Pedro Melo dizia para quem quisesse ouvir que Félix levara a renda de 
seis meses da Coletoria! 
 Aí, Januária arrematou: — Tá vendo a astúcia do coronel? Tudo mentira. Foi ele 
quem limpou a gaveta e botou a culpa em riba da cacunda do Bundão. 
 — Cruz credo! — fez Pequena, benzendo-se. — É o Coisa-Rui que o Coronel 
Pedro tem na garrafa que ensina tanta astúcia para eles, meu Divino. 
 Embora conhecesse essa história, Januária teve medo. Encolheu-se, como se 
defendesse de uma agressão e murmurou: 
 — Tesconjuro, Bicho. 
 — É esse Sujo que ajuda os Melos. No dia que o Bicho exallar ou no dia que 
aparecer alguém com uma capetinha fêmea, adeus sorte dos Melos. Nós ainda vamos 
ver. 
 — Mas você acredita que esse ”Bicho” dá conta de fugir? Então o coronel deixa? 
Olha aqui — Januária com o indicador direíto puxava para baixo a pálpebra inferior do 
olho direito, num gesto de quem diz que os Melos estavam de olho aberto. 
 — Psiu! — Januária ergueu-se e foi espiar fora, voltando a seguir para seu lugar no 
pilão. — Ah, o velho não deixa o ”Coisa” escapulir. O capetinha é escravo deles desde os 
tempos do pai do Coronel Pedro, o velho Felipe, que deve de estar nas profundas dos 
infernos, com o perdão da má palavra. 
 — Maria, ô Maria, — chamavam de dentro da casa. 
 — A mó que Sá Dona Benedita tá te chamando você, essa menina? — perguntou 
Januária, que se envolveu no xale para sair. Sim, de fato, era Benedita que chamava. 
 Agora o silêncio caía sobre o casarão. Os parentes, tomando a bênção à velha, 
tinham saído ou para suas casas, ou para seus aposentos. Como uma sombra, Benedita 
tomou o rolo de cera, acendeu-o e chamou Maria Pequena: — Vamos rezar. Pequena 
nem respondeu, abriu a porta da capela, as duas entraram, ajoelharam-se diante do 
oratório de cedro talhado. A luz fumarenta do rolo fazia bulir a imagem grosseira de São 
Miguel. . 
 — Ajude meu genro Vicente, meu poderoso São Miguel— pedia Benedita. 
 — Ave Maria, cheia de graça... — resmungava Maria Pequena, pensando no 
capeta do Coronel Pedro Melo. — O senhor é convosco, bendita sois vós — prosseguia 
Dona Benedita, mas daí em !
38 
diante vieram as lembranças do genro Artur Melo. Desgraçado! — pensou a velha. Fez a 
infelicidade de minha filha, de minha pobre Zefa! 
 Pela sua memória passou o casamento de Zefa com Artur, Zefa tão novinha, quase 
menina. Depois o diabo do Artur metido na sua política sem fim, permanecendo na Capital 
do Estado anos a fio, largando Zefa abandonada na vila. Entrava ano, saía ano e Artur 
mal escrevia uma ou outra cartinha. Na solidão, no abandono, a pobre Zefa ardia de 
desejos; ela cujas carnes moças tinham provado do amor. Nas noites longas e tediosas, a 
pobrezinha rolava na cama larga e vazia, até que a madrugada pintasse o telhado, a 
imaginação torturando os sentidos exaltados pelas recordações amorosas. 
 Quando afinal Benedita desconfiou, o mal ia grande. Por Porto Nacional e 
Natividade já corria a notícia dos amores de Zefa com uns e com outros. Aí, Artur surgiu 
alegando sua honra maculada. Enxotou a esposa de sua casa, tomou-lhe a filha e a 
enviou para um amigo João Alves de Castro educar em Goiás. 
 Pobre Zefa, por muitos anos rolou de deu em deu, até que a filha voltou para o 
Duro, casou com o Doutor Herculano Lima e recolheu para sua casa a pobre Zefa doente 
e miserável. 
 Diante dos santos, a velha até se esqueceu de pedir por Vicente, para somente 
descarregar seu ódios contra Artur: — Piauiense maldito! 
 Aí se lembrou que estava frente a frente com S. Miguel. Afastou o pensamento 
mau e começou a recitar: — Salve Rainha, mãe de misericórdia.., Ao lado, Maria Pequena 
dormia debruçada num baú. 
 
No FRIO da manhã, o Coronel Pedro Melo ia pela estrada montado na sua grande mula, 
a maior de que havia notícia naquela região. Tilintava as esporas, as rodelas dos freios, 
as fivelas e bombas do arreio e da cabeçada. Atrás iam os dois jagunços. Mulato e Resto-
de-onça, cada qual com sua repetição alceada no ombro. Os cascos batiam nas pedras. 
Pelos baixos, a neblina ia densa, molhandoo capim que pegava a amarelar. Os bem-te-
vis cantavam pelos altos angicos. 
 Melo dirigia-se para a Grota, ia pôr seu filho Arthur a !
39 
par de tudo que se passava no povoado, queria dar-lhe parte das 
exigências de Vicente Lemes. 
 O velho olhava sobranceiro a paisagem que lhe era tão familiar. Quantas vezes já 
passara por ali, nem sabia ao certo! Julga va-se o criador daquela paisagem, daqueles 
caminhos, daquelas cercas, daqueles muros e daquelas pontes. Tudo saíra de suas mãos 
ou das de seu filho. Era criador e dono daquilo tudo. No entanto, Vicente Lemes e Valério 
Ferreira pretendiam governar. Essa era boa! Uns preguiçosos daquela marca! Que é que 
eles já haviam feito para a região, a não ser fuxicos e mais fuxicos? Pela frente corria a 
estrada orvalhada e ainda sem sol. Era uma estraída carreira. 
 Quando o velho era menino, havia ali apenas um trincheiro de jumentos. Bem se 
lembrava de quando a abriu. Era mocinho, que bons tempo! A estrada antiga nem merecia 
esse nome. Mal dava passagem para os cargueiros de mantimentos. Para ir a Barreiras 
era duro. Os comerciantes da Bahia até debicavam: 
 — Ei, seu moço, esse seu Goiás é mesmo um fim de mundo! 
 Por que é que você não traz carro de boi para levar mercadoria? 
 Pedro Melo enrolava conversa e ria para disfarçar o embaraço. No fundo, ficava 
agravado. Na verdade não levava carros de bois a Barreiras porque a estrada não dava 
passagem. Dava isso para meter os burros pelas grotas e serrotes. 
 Os comerciantes, entretanto, tanto azucrinaram que um dia Pedro não se conteve: 
 — Homem, não trago carro porque acho tropa melhor de lidar. 
 — Quiá, quiá, quiá — estalaram as gargalhadas em redor. -- Ô homem de boca 
dura! Tu não traz carro porque por lá não exis te estrada, — chasqueou um dos caixeiros 
da ”Rainha da Barateza”, a melhor casa comercial de Barreiras. O Melo sentiu a cara 
lascar fogo: 
 — Pois pro ano, por esse tempo, estou aportando aqui com dois 
carros, de boiada baia. 
 O dono da ”Rainha da Barateza”, onde conversavam, saltou o balcão para fora, 
deu dois tapas nas costas de Pedro, mandou um caixeiro trazer a garrafa de vinho-do-
porto e cálices e distribuiu a bebida para todos: 
 — Olhem, vocês são testemunhas. Se esse goiano entrar aqui, !
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pro ano, com um carro de bois, eu mando dizer uma missa cantada. Já não falo em dois, 
basta um carro. 
 De novo as gargalhadas estrondaram, enquanto os cálices se esvaziavam, como 
selo do trato. Valendo-se da confusão, o moço Pedro Melo despedia-se de todos e 
passava a perna por riba da mula estradeira, metia-lhe as esporas e saía num trote 
picado para alcançar a tropa que guizalhava na saída do comércio. 
 Pelos pousos e estirões, foi delineando o plano. Adestraria duas boiadas de 48 bois 
crioulos baios, faria dois carros de bois. De cá já ia escolhendo os boiecos: o filho da 
Beleza mais o da Dinamarca iam para o coice; o filho da Sertaneja e aquele boizinho que 
barganhara com mano Antônio iriam para a guia. 
 Também pensava nos pés de pau para fazer os carros. Ia fazê-los de jatobá, 
daqueles jatobás enormes que cresciam na beira da serra. 
 E a estrada? Essa era a mais dura, mas ele já tinha em mente como traçar a 
danada por aqueles ermos que tanto conhecia. O principal era despender o menos 
possível. 
 Daí uns dias, já os machados roncavam pelos vãos de serras, abrindo a picada da 
estrada. Para trás as picaretas e as enxadas retiniam, aplainando mais ou menos o chão 
duro. Além, alguns homens davam os últimos repasses numa junta de bois baios que 
arrastavam toras de madeiras. 
 Como um general, todo encourado, Pedro ia e vinha, dando ordens, distribuindo o 
pessoal no trabalho, apressando a picada, pois precisava voltar ao sítio ainda em tempo 
de ajustar as chedas dos carros, que os carpinteiros lavravam. 
 — Vamos ver, vamos ver, minha gente! — As enxadas retiniam no terreno 
pedregoso, enquanto os paus seculares baqueavam lá adiante, clareando a mata. 
 Numa dessas vezes, Pedro Melo viu um preto alçar a foice para cortar uma 
vergôntea que se erguia bela e viçosa nomeio do sarobal. Pedro segurou-lhe o braço, 
chamou os demais trabalhadores e se dirigiu ao foiceiro: 
 — Você sabe o que é isso? 
 O cabra ficou meio espantado, titubeou, mas o patrão encorajou: 
 — Vamos, diga, você sabe. 
 — Apois num é um broto de cedro? 
 — Isso mesmo, — confirmou Pedro Melo, enquanto com o !
41 
olhar aprovador percorria os demais homens ao redor. Também os outros suspenderam a 
faina e estavam curiosos pelo desfecho! da-cena. ”O patrão mandava derrubar o mato e 
depois não deixava torar um ramico daquele!” 
 — Para que serve o cedro? — continuava o moço, sem se dirigir a ninguém. Num 
coro, uma vintena de vozes responde: 
 — Pra fazer cadeira, armário, porta, janela, oratório... 
 Aí as vozes se calaram, como se tivessem esgotado o rol das serventias. Pedro 
Melo percebeu e os concitou: 
 — Vamos, vamos, para que serve mais? 
 — Com o perdão da má palavra, serve para caixão, meu amo — respondeu um 
mais afoito. 
 — Isso mesmo, — aprovou Pedro: — é o pau apropriado para caixão. — Nesse 
ponto, perguntou: — E vocês sabem quem soa eu? 
 Cheios de indecisões, uns três responderam que ele era o patrão, o Coronel Pedro 
Melo, homem poderoso e rico. 
 — Vocês podem bater em mim? 
 — Deus me livre e guarde, — disse o coro de homens descobrindo-se. 
 --- Vocês podem me matar? 
 — Cruz credo, Coronel! Larga pra lá essas brincadeiras sem graça. 
 — Pois esse raminho daí é a mesma coisa que minha pessoa. 
Ninguém pode fazer mal para ele. Ele vai crescer, vai ficar um pézão danado de forte e 
vai servir para meu caixão... — A frase ficou meio suspensa, enquanto o moço refletia 
para, a seguir, dizer com uma firmeza impressionante: — Isso, se eu morrer! 
 O silêncio caiu sobre os homens e sobre a paisagem. Pouco a pouco os cabras 
foram botando na cabeça suarenta os cacos de chapéu e daí uns instantes as 
ferramentas retiniam à cadência de uma canção tristemente monótona. Perto do cedrinho, 
ali ficou o moço Pedro Melo com seu porte arrogante, com seu semblante duro, com sua 
quase convicção de que não morreria, de que viveria eternamente, de que ninguém 
jamais o derrotaria em qualquer coisa. 
 Ante seus olhos agora de velho, uma névoa perpassava. A estrada foi feita, os 
carros de bois avançaram por ela e chegaram a Barreiras justamente no dia marcado. 
Foguetes riscaram o céu da !
42 
cidade e as campainhas da igreja anunciaram a elevação da hóstia, na missa solene que 
o Coronel Lima mandava dizer. 
 ”E, na verdade, tudo isso aconteceu, porque no dia exato, nem antes nem depois, 
precedido de foguetório, o moço Pedro Melo, na porta da ”Rainha da Barateza”, gritava: 
— Ôa, boi, ôa! 
 — Espia o sol — gritou Resto-de-Onça. 
 — Eta rodeira bonita! — secundou Mulato. Estas palavras afugentaram as 
lembranças do velho Coronel Melo, que logo já avistou o bicame e de imediato pensou 
em Vicente Lemes. Vicente foi sempre homem pirracento. Não sei adonde Artur estava 
com a cabeça quando encaminhou esse tranca para os cargos públicos! Por cima, tinha 
ainda a velha Benedita para emprenhar Vicente pelos ouvidos com fuxicos sobre Artur e 
ele, Pedro. 
 — Foi mole, foi mole sem contia... — Esta frase chegada aos ouvidos do velhos, 
fê-lo perder o pensamento. Atrás vinham os dois capangas. Vinham alegres, souberam do 
caso do inventário, ouviram o velho conversando com Tozão e anteviam lutas. Afinal, 
estavam voltando os bons tempos. Quem é que foi mole? — indagava a si mesmo o 
coronel: Seria Artur, seria ele Pedro? Não. Não era um nem outro, que aqueles dois 
homens de sua confiança não iam nunca falar um absurdo desse. Artur não era mole, 
nem ele... 
 — Foi: Damião foi mole — reafirmava Resto-de-Onça e agora o coronel ouviu bem: 
falavam de Damião, ah, isso sim. O capanga prosseguia: — Falar procê, se compadre 
Artur tivesse lá, a escrita era outra. 
 Mulato concordou e contou um caso de outros tempos, Resto-de-Onça ainda não 
trabalhava com eles. Foi em Santa Maria de Taguatinga.O chefe político mais forte de lá 
era contra Artur, mas era um homem delicado, que não gostava de agravar ninguém. Um 
dia Artur com seus rapazes entrou no povoado, madrugadinha, dando tiros e gritos, 
apearam na porta da igreja e desfilaram pelo Largo. 
 — Menino, o tal sujeito delicado virou um canguçu. Num ”vupe” arreuniu seu povo 
e se nós não saíssemos ligeiro, sei não, era aquele sobrosso. 
 Os cavalos gemiam e arrastavam os cascos, descendo cautelosamente, a passo, a 
bocaina estreita e inclinada em demasia. Papa-capins e grilos voavam do capim que 
bordeava o caminho. A !
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Grota estava lá embaixo, no fundo de uma furna. Os arreios ringiam e a conversa calou-
se. 
 Na sombra, um joão-conguinho guinchava. De cá, viam-si casas, o engenho, as 
capoeiras pelas encostas mostrando as velhas roças, os currais, oficina de farinha. O 
velho teve novamente jeriza. Era aquilo que irritava Ferreira e Vicente Lemes, era a 
capacidade de trabalho deles Melos. Isso que enfezava os inimigos. Afi nal, Artur ali era 
tudo, sempre fora tudo. Desde novinho vivia lendo e estudando cada livrão grosso de 
meter medo, mas aprendeu:era o médico, o farmacêutico, o advogado, até o padre. 
Padre, muito bem: padre, porque Artur descobriu aquele tal de espiritismo, que era 
religião. E Artur era médio, como chamava o padre dos espíritas. 
 O velho sentia-se orgulhoso do filho, sentia-se envaidecido. ”Era um sábio. Nem 
Francisco Azevedo, o famoso professor da fazenda das Taipas, que possuía um mundão 
de livros, nem esse podia com Artur que o entupia com duas palavras. Isso era que 
exasperava o dorminhoco do Vicente e o fuxiqueiro do Ferreira!’ 
 Se havendo adiantado, Mulato pendurava-se da sela, faze correr as varas da 
porteira, franqueando ao velho a entrada do curral. Um bando de cachorros veio ao 
encontro dos chegantes,a latidos, mas reconhecendo-os transformaram a acuação em 
ganidos de alegria. 
 Já a pé, Resto-de-Onça segurava com uma mão a camba do freio da mula, com a 
outra firmava o estribo e ajudava o velho aapi-ar-se junto à calçada da frente da fazenda. 
Pedro Melo estavaai ansioso por contar ao filho a exigência absurda do Coletor Vicente, 
mais esse fuxico do diabo do Juiz Valério. Ô gentinha! !
NA SUA FALA arrastada de maranhense, Belisário dizia: — Eu cá num vou. Num vou 
nessas tropelias do coronel. Estou aqui para cuidar de gado e não para fazer arrelias. Se 
eu gostasse de cangaço, estava mais os jagunços de Pernambuco. Oxém, apois num vê 
home de Deus! — Belisário conversava no rancho de palha perdido no oco do mundo. 
Seu interlocutor era também vaqueiro de Pedro Melo, o Casemiro, encarregado daquele 
sítio. 
 Casemiro estava sentado no banquinho da sala de chão; Bell !
44 
sário deitava-se na rede. Fora, era noite estrelada de maio, meia fria. Dentro, era a 
escuridão. Não uma escuridão total, porque a claridade do céu e o hábito do escuro 
permitiam aos dois homens divulgar mal e mal as coisas. De luz, ali, havia apenas a ponta 
dos cigarros que se tomavam mais rubras quando os homens puxavam a fumaça: tão 
intensamente rubra que chegava a alumiar as caras. 
 Nos longes lobo estava uivando. Na frente da casa, um trem lambia o cocho e 
tossia: vaca? Capaz. 
 — Não vou obedecer de jeito nenhum a chamado do Coronel Artur. Bem que ele 
mandou no meu retiro, falar pra mim assim que era para comparecer na Grota. — O 
vaqueiro fez uma pausa, o cigarro chupado clareou o ambiente debilmente. — Levar 
cavalo e repetição... — Nova pausa: — Esse negócio de rifle, eu logo pensei comigo, é 
pra proeza, como aquele ataque no Cartório, em quadra de Reis... Naquela eu fui, porque 
desconhecia, mas não me pegam mais... Jeito nenhum... 
 Casemiro estava quieto, quase nem pondo sentido no que falava o visitante. 
Pensava consigo que Belisário era um sujeito desacismado, falando as coisas assim no 
rasgado, sem medo de castigo dos Melos. Belisário continuava dizendo que tinha entrado 
para o serviço de Artur, mas que não ficaria mais. Não ficava porque eram uns ladrões: — 
Vigia só. Este ano morreu muito gado com a seca; pois não é que o coronel disse que o 
gado que morreu era tudo o que me pertencia! O que era dele, esse a seca respeitou! 
Ora, essa é muito boa! É por essa e outras que vaqueiro num apruma, seu Casemiro. 
 Casemiro matutava. com ele, sempre os Melos faziam pela mesma forma e ele não 
se revoltava, não percebia o furto, achando um procedimento natural. Nas fazendas de 
Artur, como na de todos os criadores, de cada quatro bezerros nascidos um pertencia ao 
vaqueiro. Mas se um boi espaduava, se morria, se sumia, se era roubado por índios, 
quem pagava era o vaqueiro. O resultado era que o vaqueiro estava sempre endividado. 
Belisário tinha razão: aquilo era roubo e roubo descarado. 
 O vento frio pegou a soprar. O homem notou e ponderou: — É a seca, menino. 
Assunta só o friinho! 
 Longe, lobo tá uivando. Triste. Casemiro também sentiu um !
45 
!
!
arrepio e se ergueu para fechar a porta. Ela pouco vedava. De caules de buriti unidos com 
cipó, pelas frinchas o vento assobiava cortante. 
 — Pra agüentar esses Melos só sendo do calibre de Norato, prosseguia sem 
pressa a voz de Belisário. — com Norato eles piaram fino. Gado morria, Tozão botava na 
conta de Norato e Norato nem ligava. Norato comprava uma dúzia de balas.Tozão botava 
na conta dele três dúzias. Norato não reclamava, não discutia.Inteirado dez anos. Norato 
fez as contas, separou o lote de reses que achou que tinha ganho nesse tempo e abriu o 
pala, foi montar seu retiro dele mesmo em Missões. Tozão gritou, esbravejoi Artur entrou 
no meio, mas Norato nem fedeu. O que acharam de fazer foi matar o coitadinho de tocaia. 
 Casemiro sentia a revolta crescer no peito. Ele também tinha sido chamado para 
comparecer na Grota. E tinha medo de ir. Eu não gosto de briga, compadre. Nem num sei 
dar tiro nenhum nada... 
 — Pois é, — quase gritava Belisário. — Tu vai é morrer que nem um passarinho. 
Vai não, menino. Larga isso pra lá! 
 — O diabo que a gente deve, — timidamente ponderava Casemiro. — E como lá 
diz: quem deve é cativo... Só se pagar.., 
 A voz de Belisário veio forte e dura como um trovão --: Pagar, pagar! Tu tá besta, 
só! Se você não fizer feito o Norato, tu num paga nunca mais. Quem entra para o serviço 
deles, quando sai é para a cidade dos pés juntos. 
 O silêncio caiu, cada homem pensando em suas próprias dificuldades. Ratos 
corriam e guinchavam pelo telhado e pelos cantos do rancho onde se amontoava milho, 
arroz ou feijão. ’ 
 — Menino, isso num é d’hoje, mas todo mundo dá definiçãl Uma vez chegou aí no 
povoado um homem branco, socado, risão e trabucador, por nome de Folorenço. 
Conforme chegou, sujou o caráter, quis brigar e foi parar no tronco do sobrado. 
 — Que que houve contigo, criatura? — chegou perguntamdo o velho Melo. 
 — Num é de ver, seu Coronel, que me botaram eu nesta de graça e eu num tenho 
dinheiro para sair. 
 Pedro Melo trocou umas palavras com o carcereiro, que era gente de sua 
confiança, e no sufragante já foi destrancando os cadeados. Dali mesmo Folorenço saiu 
para a lida do velho, num retiro. !
46 
Passado muito tempo, Folorenço apareceu: — Coronel, veja aí quanto que devo, homem. 
 O cabra trabalhara como um mouro, mas juntara bastante dinheiro para saldar o 
débito. Pedro Melo fechou os olhos, resmungou suas contas e disse que Folorenço devia 
duzentos mil réis. Embora bom de escrita, o velho nunca pegava de lápis para fazer seus 
cálculos. Era no bestudo e não tinha erro. 
 — Pois está aqui, Coronel, pode riscar a dívida — e Folorenço risão estendia ante 
os olhos do velho duas notas de cem mil réis. 
 Debaixo de sua barbaça o coronel riu: — Tá doido, menino. Eu não emprestei 
dinheiro para camarada não. Dinheiro de camarada é serviço. Pode socar de novo no 
retiro até pagar tudo. — Diz que nessa hora o risão não riu, mas despediu meio duro e foi 
embora. Dia seguinte, quéde o Folorenço? Que procuraram, que procuraram, nada. 
 — Mulato, vem cá. — O capanga chegoude chapéu na mão para escutar as 
ordens: — Reúne gente e vai no piso do fujão. Gente sarada que o cabra num é de 
brincadeira não. 
 Mulato mais o Tito distribuíram com outros rapazes algumas Comblains que o 
velho trazia dependuradas na parede do quarto grande. Essas Comblains eram armas 
usadas pela polícia estadual. Quando o Governo resolveu substituir esse armamento por 
fuzis Mauser, determinou aos delegados que recolhecem as armas dos destacamentos 
locais e as enviassem para a capital. Pedro Melo era delegado do Duro e recolheu as 
Comblains do destacamento ali existente, mas não as remeteu para Goiás. Limpou-as, 
poliu, consertou com aquela habilidade que sabia ter, e as dependurou na parede de sua 
casa. Ficaram ótimas as armas. 
 Se pegassem Folorenço, amarrariam ele à trave do sobrado e meteriam o chicote 
até o bicho perder os sentidos. A Artur ou ao pai cabia dar as primeiras chicotadas em 
sinal de menagem, para mostrar que ninguém podia rebelar contra sua vontade. 
 — Esse Resto-de-Onça, ô bicho sem calidade. Veve perseguindo os companheiros 
mode agradar o coronel, trem à toa! 
 Fez-se um curto silêncio, em que Casemiro bocejou sonoramente, depois do que 
Belisário falou: — Menino, tu já ouviu falar numa tal de Berandolina? 
 Casemiro já ouvira, notícia vaga. 
 — Apois essa mulher é amiga da gente. Ela protege a pobreza !
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contra a ganância dos ricos. Mal comparando é que nem o finado Antônio Silvino, que 
Deus tenha em sua glória. — Ao falar em Deus o vaqueiro meio se ergueu na rede, 
voltando, em seguida, à posição anterior e continuando: — Nhô pai conheceu esse tal 
Antônio Silvino, demais... 
 Novamente a quieteza envolveu tudo. — Tem hora, esse menino, que eu até que 
penso de pedir ajuda dessa Berandolina. Ela vem cá e leva nós. Se o coronel empinar, 
pior pra ele, que ela é mulher de corpo fechado. 
 O lobo uivava de novo, agora parece que mais longe. O grito selvagem ampliava 
as distâncias, fazia mais espessa a treva viscosa que escorria lá fora. De novo, o trem 
tossiu junto do cocho.Cada homem pensava em Berandolina, ”ah, se viesse em socorro 
deles, os tirasse daquele ermo, os livrasse da dívida do coronel, os livrasse do perigo 
daquela luta que o coronel queria meter eles nela!” 
 — Frio, gente. Até parece que é S. João. — Belisário disse e abriu a boca num 
bocejo ruidoso. Casemiro percebeu que o companheiro tinha sono, mas não se importou. 
Era tão raro uma pessoa de fora com quem se pudesse trocar idéias! De dentro, do único 
com partimento, da camarinha, veio um choro comprido e sentido de menino. Chorinho 
triste que escorria no ermo e no abandono, num desespero sem nome. 
 — Bichim num deixa ninguém dormir com a marvada dessa dor nos ouvidos — 
gemeu Casemiro, numa resignação covarde. 
 — Se eu soubesse! Lá em casa ganhei uma estampa que é uma salvação. É só 
botar ele em riba da dor e a dor passa na mesma hora; mesmo que tirar com a mão. — 
Casemiro ouvia atentamente a narrativa. Deixa estar. Brevemente Berandolina haveria de 
buscá-los. Então ele se valeria da estampa do compadre, para curar o filho que sofria 
tanto com aquele mal excomungado. Entre bocejos repetidos Belisário dava provas da 
estampa: 
 — Ancê num se alembra da velha Custodiana Mesquita? 
 — Ua velha arcada que vevia chorando com uma dor assim por riba da volta da 
apá? 
 — Essa mesmo. Pois, esse menino, não te conto nada pra você. Botei a estampa 
por riba da dor e foi mesmo que pinchar a desgraçada no mato. Custodiana hoje em dia 
até pila arroz no pilãof 
 Ao longe, mais pra essa de banda de cá um tiquinho o lobo voltou a uivar. 
Levantando-se para verter água junto à porta, Belisá- !
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rio ponderou que o bicho devia era de estar num vício velhaco. Valendo-se da saída do 
visitante, Casemiro despediu-se e foi deitar-se. 
 A claridade das estrelas coava pela palha do rancho e pelos vãos das varas 
alumiando fracamente os cômodos. Na camarinha o menino voltou a chorar com a 
danada da dor de ouvidos. 
 Lá fora, o trem tomou a tossir. !
DEPOIS DO ALMOÇO, como fazia todos os dias para espairecer, Lina foi dar uma 
espiada na rua. Debruçou à janela e viu a vila parada, calma, a sombra das árvores e das 
casas desenhando manchas negras no chão. Pela grota, as almas-de-gato piavam os 
pios entojados. Será que estavam mexendo no cemitério? Mas não estariam. Ninguém 
havia morrido. Aquilo era assanhamento dos bichos. 
 Dentro da sala, Vicente Lemes escrevia alguma coisa. Logo depois do almoço? A 
mulher pensou em dizer-lhe para não aplicar a vista assim na hora do quilo que era 
perigoso uma congestão, mas desitiu. Vicente andava tão impaciente! Nisso, uma coisa lá 
fora chamou sua atenção. Havia um movimento desusado no Cartório. 
 — Será que o juiz já chegou? — perguntou ao marido. 
 — O juiz já chegou? Por quê?— indagou Vicente meio sobressaltado. Sabia que os 
Melos estavam reunindo gente e desconfiava que pretendessem atacar o Cartório em dia 
que o juiz estivesse presente. Lina passou a descrever o que via: 
 — Está chegando um pessoalão... largaram os animais soltos... entraram 
correndo... tem gente entrando... gente saindo... 
 De um pulo Vicente chegou à janela e viu que cercavam a casa do Cartório. Gente 
armada entrando e saindo às carreiras, animais de rédea solta meio espantados, andando 
pelo Largo. Vozes altas. Vicente ia saindo, mas Lina se opôs: — Não vai, não vai. 
 — Vou, uai, pera aí, — desvencilhou-se, pegou na gaveta a arma e saiu. No 
corredor, no cabide dos arreios, pegou um chicote de chuço, um estoque. A pistola que 
pegou era Browning, carregada com pente de cinco balas. No bolso, Vicente meteu uma 
caixa de balas, pega também na gaveta. Enquanto corria para a casa das audiências, 
quebrava essa caixa no bolso, soltando as cápsulas. !
49 
 Quis entrar, mas à porta estava postado Mulato com seu rifle, que interceptou a 
passagem. Vicente nada disse, retrocedeu e foi para a janela que dava para a sala do 
Cartório, de onde vinham vozes. 
 Dentro viu Ferreira encostado à parede, ao lado de Cláudio Martim. Na frente 
deles, falando, estava Artur Melo com a carabina segura pelo delgado da coronha, tendo 
de cada lado um homem armado. Um deles era Aleixo, o outro Vicente conhecia, não 
sabia o nome. 
 Artur entrara na sala exibindo ao Juiz Valério uma procuraação do próprio punho 
da viúva de Clemente Chapadense eini mando que era o advogado dela: 
 — Ela não é nenhuma desamparada não. A mim cabe dizer como vai ser o 
inventário. Estão pensando que vou me sujeitar às exigências do coletor? É baixo, 
moreno! — Num triz já Resto-de-Onça tomava a arma da cintura do Juiz Valério, que nem 
teve tempo de reagir. 
 Artur prosseguia: — Aqui, é preciso que vocês entendam uma vez por todas, aqui 
quem manda sou eu, meu pai e meus amigos. Esse pessoal do Foro anda mangando, 
mas agora minha paciência chegou ao fim. 
 Embora encurralado no fundo da sala, com os capangas armados e rodeado, 
Valério Ferreira resistia. Artur queria quei recebesse a procuração, juntasse aos autos e 
despachasse concordando com a descrição dos bens. Ele, porém, teimava: 
 — Não, isso não é comigo. Quem impugnou foi o coletor, ele é que pode aceitar a 
descrição da viúva. 
 Ao ouvir isso, Vicente que chegava à janela, interferiu: 
 — Ô Valério, eu preciso de você lá em casa agora mesmo. Vamos para lá, Valério. 
 Quem respondeu foi Artur, voltando-se para a janela, e reconhecendo a voz de 
Vicente: 
 — Ah, tem graça! Você veio chamar ele, não é? 
 — É. Preciso dele. 
 — Mas ele não vai. Não sai daqui. 
 — Uai, não vai? Num vai por quê? 
 — Porque não pode, — respondeu Artur energicamente. 
 — Então ele está preso? Se ele está preso, eu também quero ser. 
 — Ah, ora! Você também quer ser preso? — respostou Artur. !
50 
em tom de escárnio, afastando-se para um ângulo do qual podia ver Vicente na janela e 
os três prisioneiros. — Pois não se quer ser preso, que entre. 
 Aí Vicente procurou entrar e Mulato não se opôs. Tinha ouvido a ordem do patrão. 
Vicente foi colocar-se aolado de Ferreira e a seguir Artur se pôs ao lado de Vicente, 
travando-lhe o braço E dizia: 
 — Pois é, vocês estão acostumados a fazer o que entendem e eu não connsinto. 
Essa pobre mulher, o marido dela morreu por jagunços seus e vocês querendo espoliar a 
coitada. 
. -- Alto lá, -- protestou Vicerte. – Espoliar, não. Você sabe queestá hvendo 
sonegação de bens. Eu tenho que defender a Fazenda Estadual, você sabe, você é 
advogado. 
 Artur largou o braço de Vicente e deu uma risadinha forçada: 
 — Pois aqui vocês têm que fazer o que ”nós” queremos, nós, os Melos, está 
ouvindo? — E batia no peito. 
 — Eu não faço. Sou funcionário, tenho a quem prestar conas, você sabe que eu 
não faço. Lembra do gado do Tozão? 
 — Pois faz, acaba fazendo — retrucava de lá Artur imitando o tom de voz de 
Vicente. — A gente faz muita coisa sem querer... 
 Na frente da casa já se reunia muita gente. A discussão se acalorava, Artur dava 
cada eco que retumbava pela vila. Também Valério gritava. O povo se apinhavá nas 
janelas, de onde os jagunços os escorraçavam à custa de cano de pistolas. Pelas casas, 
as mulheres e os homens trançavam, esquecendo as rusgas e ressentimentos. Lina foi 
procurar Amélia, filha de Artur; os parentes de Ferreira foram atrás de Tozão; Moisés Melo 
falava com a velha Aninha, cada qual querendo botar água na fervura, tentando evitar 
uma morte ou mal semelhante. 
 — Não deixa ninguém entrar, Mulato — ordenou Artur para afastar o mulherio que 
chorava e pedia desesperadamente. — Aleixo! —gritou Artur, — desentope esta sala. Tem 
gente demais para atrapalhar. 
 — Pronto, meu patrão. 
 — O safado desse Martim, amarra ele lá no moirão do Largo, ouviu? A sala está 
muito cheia... — Apesar de toda a energia de Mulato, as mulheres não arredavam. Ali 
estavam Amélia, filha de Artur; Anastácia, irmã dele; Lina e Alice, mulher e filha de 
Vicente, Tozão, Moisés, Argemiro Félix — gemendo, soluçando, pe- !
51 
dindo, dando gritos. De dentro do gradil, Artur ameaçava com carabina: 
 — Quem entrar, cai na bala. 
 Pelos cômodos, pelo Largo, esparramavam-se os companheiros de Artur: João 
Rocha, Olímpio e Calixto Chapadense, Hi Melo, filho de Tozão e outros homens famosos 
pela valentia e pela truculência. Havia já muito tempo que durava a contenda, com Artur 
de lá ameaçando: 
 — Vocês é que sabem, ”Se nào aceitarem o rol de bens como a viúva descreveu, 
ninguèm sai daqui. Hoje ninguèm come, ninguém bebe, ninguém dorme. 
 — E nós só aceitamos o rol completo — dizia Valério completamente calmo e, 
senhor de. si. 
 — Não come hoje, come amanhã — objetou Vicente, mas Atur contestou com 
ênfase: 
 — Nem hoje, nem amanhã, nem depois, nem dia nenhum, quanto não fizer o que 
”nós” queremos. 
 — Vejamos! 
 — Pois é, uai, vejamos! 
 Aí apareceu o Coronel Pedro Melo, soproso, empurrando o pessoal, a cabeça 
alçada a modo de vaca batedeira, botou a mão no balcão, enquanto mantinha na outra a 
Mauser: 
 — Que é que quer que eu faça, meu filho? — Estava brabo ameaçador, a barbaça 
branca tremendo, os olhos fuzilando e narinas arreganhadas. O velho estava querendo 
pular o gradil, gritando de raiva: — Pode dizer, meu filho, que é pra mim fazer? Enquanto 
dizia, brandia no ar a pistola de matar antas: — pode dizer, que eu estou aqui pra te 
adjutorar, meu filho. 
 Artur se desprendeu do braço de Vicente, por um instante, fez para o pai um gesto: 
 — Calma, meu pai. Tem calma. Por enquanto não carece de fazer nada não. 
Calma. 
 — Hem, num carece de mim, hem? — A barbaça se agitava, a Mauser ia e vinha 
por sobre as cabeças. 
 — Não, meu pai, volta pra casa, eu preciso do senhor lá, —dizia Artur travando 
novamente do braço de Vicente, mas o velho continuava ameaçando céus e terra, 
gritando que aquela arma tinha morto Vigilato e com ela mataria muita gente mais. 
 Aquilo estava passando. Vicente não se conteve. O diabo do 
!
52 
velho era um descarado que confessava publicamente a morte do sobrinho. Que 
cachorro! Para o Juiz Hermínio, negou; ali, afirmava. Era demais: 
 — Olha velho, Vigilato você matou porque era defunto sem choro, mas comigo 
vocês engancham. Tenho parentes, tenho amigos, aqui, em Natividade, em Conceição, 
Arraias, Porto Nacional, Goiás. Comigo... — Vicente não pôde terminar. O velho voltou-se 
num ímpeto, a arma apontada no seu peito: 
 — Parente... parente... 
 — Uaá! — ao redor o mulherio abriu o bué no mundo, gente correu cercando o 
velho que bufava feito um peba: — Parente, parente... 
 De seu canto, embora as mulheres e homens pedissem, Vicente não se calava: 
 — Se você me matar, velho à toa, sua cabeça também rola. No meio do povo, o 
velho quis novamente investir, mas Artur sem largar o braço de Vicente fazia com a 
cabeça sinais a Tozão que retirasse o pai. 
 Vicente tinha no bolso a arma, mas nem tentava sacá-la. Seria pior, no meio de 
tantos inimigos armados. E o estoque? É mesmo, quede o diabo do estoque? Parecia que 
tinha deixado ele em riba do peitoril da janela, no momento que falava com o juiz. 
 Por fim, conseguiram levar o velho, que lá se foi no meio de outros homens. 
Chegando em casa, tirou suas armas, as velhas Comblains, chamou os Chapadenses e 
com elas armou os jagunços que agora se postavam acintosamente ao redor da casinha 
do Cartório. Eles se agachavam, o chapéu de couro puxado em riba dos olhos, a velha 
Comblain nas mãos calosas, o cigarro fumegandono queixo. Além, o povo aguardava 
ansioso o desfecho de tudo. 
 Na sala, Artur continuava exigindo que todo o processado fosse inutilizado a partir 
da informação de Vicente Melo. 
 — Já disse que não faço isso — teimava Vicente. 
 — Pior para você. Quanto mais tempo teimarem, mais tempo vão ficar aqui. Eu, 
por mim, não tenho pressa, — explicava Artur. Ao lado, Ferreira de há muito deixara de 
falar. 
 De certa maneira, o juiz nada tinhacomo fato. Ele apenas mandara cumprir o 
pedido do coletor. Artur o mantinha preso com o intuito de fazer o inventário inteirinho 
naquele dia. Precisava !
53 
de suas sentenças. Tal situação é que permitia a resistência. Contra Vicente, Artur se 
sentia tolhido pelos laços de sangue e afinidade. Ah, se fosse somente o Valério, talvez 
Artur já houvesse cometido uma violência. 
 Pelo Largo, João Rocha ameaçava uns e outros; no fim da rua, Hugo Melo com 
José Anísio disparavam as armas. 
 O tempo correndo e nada de resolver a pendenga. De lá Artur exigia novo 
despacho; de cá Vicente Lemes se negava a lavrá-lo. E o tempo correndo. Quando Artur 
invadiu o Cartório, sol estava por ali assim, podiam ser nove horas da manhã; agora já o 
sol descambava. Os jagunços estiravam as pernas, assuntava o sol e calculavam que 
devia de estar beirando bem ali umas três horas da tarde. Nesse momento, rompendo o 
cerco, se abeirou da janela Argemiro Félix, que arriscou um alvitre: 
 — Gente, não será possível caçar um acordo? Ninguém respondeu, cada qual 
achando que era sinal de fraqueza apresentar uma solução adequada. 
 — É já que vem a noite e vocês trançados aí que nem a los de briga. Que que 
adianta um dizer uma coisa práláej responder uma má-criação pra cá? 
 — Acordo só pode ser um: Vicente faz novo despachou que eu ditar — disse Artur 
em tom acintoso. 
 — Tem graça! — fungou Vicente rolando os olhos 
 Aí Valério pegou a falar, dirigindo-se a Vicente. Fazia já muitas horas que ali 
estavam eles de pé, sem água, sem comida, discutindo atoa. Enquanto Vicente discutia, 
Valério pesava a situação. — Não via Vicente que era inútil resistir? Artur ali estava em 
maioria e armado. Afinal de contas, não eram nem mais nem menos que prisioneiros 
entregues à sorte que lhes quisesse dar o deputado Artur. O melhor seria concordar com 
as exigências. 
 — Mas é um absurdo — protestava Vicente de olhos nadando em lágrimas. — É 
um desaforo ter que baixar o cangote para esse pessoal meter a canga. E o direito está 
do nosso lado! 
 — Pois é, isso é que é certo. Vamos largar mão de muita pirraça, de orgulho e 
podemos resolver as coisas em paz, — acentuava Artur, valendo-se das palavrasdo juiz, 
que terminava: 
 — Vamos concordar, Vicente. Mas saindo daqui vamos fazer uma representação 
ao Governo, exigindo punição para esses bandidos! !
54 
 — Rarará — ria-se Artur, pulando na sala. — Podem denunciar. Ainda não 
ficaram satisfeitos com o caso de Vigilato, não é mesmo? Rarará! O governo vai enviar 
outro Doutor Hermínio Lobato, virá outro Napoleão, rarará! Vai ser uma farra, hem, 
Mulato? 
 Foi com ódio, foi com vergonha, foi cheio de humilhação que Vicente tomou do 
processo e, atendendo às imposições de Artur, rasgou as folhas que continham os 
despachos e informações anteriores. Por que não reagir? A Browing estava ali na 
algibeira com as balas. Era pegá-la e já ir disparando em riba daquela gente. Sim, seria 
morto. Isso não tinha dúvida que Mulato, Resto-de-Onça, João Rocha não estavam ali 
apenas para fazer bonito. Morria, mas ficaria a fama. Amanhã, depois, por muitos anos o 
povo ia se lembrar que ali teve um homem de mais coragem do que os Chapadenses, 
mais valente que João Dias, de Boa Vista. 
 Vicente meteu a mão na algibeira, apalpou a Browning, mas sentiu a coragem 
esmorecer. Reagir à bala seria o mais inteligente? Estava visto que não. Vicente reagia, 
matava Artur ali na sala, mas também seria morto e com ele o juiz Valério e outros 
companheiros. E tudo voltava a ser dominado pelo velho Coronel Pedro Melo. A mão de 
Vicente saiu do bolso, tomou o encaixe, molhou o tinteiro, enquanto seus beiços trêmulos 
murmuravam: 
 — Pode ditar, Seu Doutor Deputado Artuzinho. 
 — Não, uai, não vou ditar não. Você sabe fazer. Você está pago para saber isso. 
 O coletor mantinha a pena no ar: 
 — Sei escrever aquilo que minha vontade dita. Agora estou fazendo uma coisa 
obrigado por você. Não sei qual é o seu querer. 
 Até à sala chegavam os estrondos das armas de Hugo Melo e João; no Largo, os 
Chapadenses contavam rodelas, aos gritos, como era o seu habitual modo de conversar. 
Artur sabia o que queria: 
 — Bem, escreva aí: concordo com a descrição e a avaliação de bens do presente 
inventário. Agora, vire a págna. Cláudio, é a sua vez, íamos lavrar os termos. — E assim, 
ora com um, ora com outro, o processo foi correndo, observados os prazos de praxe, até 
que o juiz Valério deu a sua sentença de final julgamento. 
 — Vá buscar os selos, Vicente — ordenou Artur. O coletor saiu para buscá-los em 
casa. Lina não o acompanhou, ficou ali na casa, já que Artur permitia agora que as 
pessoas entrassem no Car- !
55 
!
tório. Na frente da casa, no moirão, Martim suava amarrado no pau, com o mosqueiro lhe 
azoinando em tomo, acabeça ao sol. Vicente quis falar com ele, mas não achou 
conveniente e foi passando. Vendo-o passar, Aleixo resmungou: 
 — Bão de meter uma bala na cacunda desse desinfeliz. 
 Lina ouviu e saiu correndo a abraçar-se com Vicente. Não lhe contou nada do que 
ouvira, mas queria que ele não voltasse. 
 — Não voltar de que jeito, mulher? Os jagunços vêm buscar. 
 — Não volta. Pega um cavalo por aí e sai fugindo. Artur vai te matar, para você e 
Ferreira não denunciarem. — Lina tremia aos soluços. Vicente fez ouvido mouco. Que 
valia fugir naquele instante, com o processo todo pronto? Agora Artur não ia matar mais 
ninguém, para quê? Tinha obtido tudo! 
 Deixou Lina aos gritos, voltou ao Cartório, selou o que tinha que selar, terminou o 
processo até a derradeira formaralidade. 
 — Este está pronto — disse Artur, que relanceou os olhos pelo Cartório e a seguir, 
continuou a frase: — Como vocês vã me denunciar mesmo, vou aproveitar e levar alguns 
processos de eleitor que esse juizinho andou indeferindo. Me dê aquele maço ali Cláudio. 
 O escrivão tomou um tamborete, subiu em riba, retirou o maço e entregou nas 
mãos de Artur que separou os papéis que quis. Exigiu outros maços, fez a mesma coisa, 
depois juntou tudo num grande pacote que entregou a um homem. 
 Já seriam cinco horas da tarde, quando Artur Melo deixou o Cartório. Resto-de-
Onça veio na carreira, puxando a mula de sela que ficou na sombra do quintal do pai, 
segurou a camba do freio com uma mão, com a outra segurou o estribo; Artur montou 
tomou a rédea, e Resto-de-Onça já corria para a outra banda da mula a ajeitar o pé direito 
de Artur no outro estribo. 
 A seguir, outro cabra entregou a Artur a carabina que locou atrás, na sela, por baixo 
da bunda. Deu as derradeiras ordens, tocou a mula para a casa do pai, com quem 
conversou longamente na janela e daí torou para a Grota, seguido de seus homens. 
 Na casa do velho, outros rapazes por ali ficaram limpando Comblains e as 
dependurando na parede. Os primeiros morcegos principiavam a cortar cambaleantes o 
céu muito diáfano. Na igreja uma coruja soluçou. !
56 
A MADRUGADA ia alta quando a carta ficou pronta. Era dirigida ao Coronel Eugênio 
Jardim e relatava minuciosamente os acontecimentos: a morte de Clemente Chapadense, 
a ocultação dos bens ao inventário, a exigência do coletor e por fim o ataque de Artur. 
Relatando tudo, pedia a carta garantia para o exercício das funções públicas e para a vida 
das autoridades estaduais. 
 À luz do lampião, cansados e sonolentos, estavam reunidos Valério Ferreira, 
Vicente Lemes, Júlio de Aquino, Moisés de Melo e Argemiro Félix. Eles haviam redigido e 
agora a reliam pela derradeia vez. ”Não, parece que não faltava nada. Tinham contado 
tudo e exigiam, com energia, garantias e punições”. O arremate dizia: ”Não exerceremos 
nenhuma função dos cargos enquanto não contarmos com força armada que nos possa 
garantir”. Ótimo, aquilo estava ótimo. 
 Também em casa de Pedro Melo a porta da rua não se fechou. Lá por dentro havia 
luz e movimento de gente. Era Resto-de-Onça que chegava. Tinha estado espionando a 
casa de Vicente, onde redigiam a denúncia. 
 — Podem denunciar, cambada -- bradava o velho. — Denunciem. Vigilato também 
denunciou. 
 De para a manhã, Resto-de-Onça chegou com outra notícia: 
 — Saíram três cavaleiros da casa de Vicente Melo, meu amo. 
 — Quem você acha que são eles? — perguntava o velho. O capanga piscava e 
fazia caretas. Era um tique nervoso que ele possuía. Qualquer esforço intelectual o 
obrigava a piscar, contrair os músculos da cara, revirando os olhos. Diziam que na hora 
de puxar o gatilho, na tocaia, o desgraçado tinha que fazer as gatimônias. A resposta do 
capanga foi cautelosa: 
 — A gente num pode garantir, meu amo, mas pra mim era o seu Júlio de Aquino, 
mais um camarada de Moisés e outro do seu Juiz Valério. — Parou, pensou, careteou: — 
É pra ser esse tal de Júlio, eu vi bem que era ele, mode o jeito... 
 No frio da manhã, Júlio de Aquino rompia chão levando a carta para Eugênio 
Jardim. Só voltaria com um contingente policial, não tivessem dúvida. 
A essas horas, mas em rumo diferente, outro cavaleiro fugia do Duro: era o agente do 
Correio. Mais tarde, depois do almoço, quem deixava a vila era o Juiz Valério Ferreira. 
Para voltar ao exercício da função exigia segurança, soldado bem armado e disposto !
57 
a matar quem tentasse obrigar uma autoridade a fazer o que não era permitido. Esse era 
também o pensamento de Vicente Lemes. Então poderia agora ficar naquele lugar depois 
de tudo que aconteceu? Teria ele mais autoridade para exigir de alguém o pagamento do 
imposto, quando Artur fazia o que bem entendia? Podia ele ficar ali para obrigar apenas 
quem não tinha força para empinar contra as ordens? 
 Vicente Lemes mais uma vez reuniu seus pertences, buscou os animais e se 
dispôs a deixar o Duro, levando mulher e filhos iria para Conceição, onde tinha parentela. 
Quando a força poi-se, voltaria para as funções de coletor, se tivesse garantia. 
 — Eu que não fico aqui sozinha! — reclamou de lá a velha Benedita. E assim, um 
dia, partiram da Vila Vicente com família Benedita Fernandes com os agregados, 
Argemiro Félix e Moisés igualmente com família. 
 Sentado na calçadona alta, o velho Pedro Melo não achava aquilo muito bom, mas 
não confessava. Ficava quieto olhando as casas fechadas, o povoado mais triste, os 
passarinhos pousando emnuvens compactas nos assa-peixes da grota. Eram pássaros-
pretos, papa-capins, rolinhas fogo-apagou e o diabo das almas-de-gato com seus pios 
entojados, piando, piando horas afio. 
 Por fim, também as janelas e as portas do casarão de Pedro Melo deixaram de se 
abrir. De Barreiras, pelo telégrafo, chegavam notícias que um contingente policial 
marchava para o Duro. Diziam que era muita gente, com muito armamento, e que a coisa 
era para valer. O chefe da comissão não era do calibre do Doutor Hermínio não, era nego 
teso, que vinha com ordem severa dos Caiados para acabar de vez com Pedro Melo e 
sua gente. 
 Seguindo o Coronel Pedro Melo, deixaram suas casasTozão, Doutor Herculano 
Lima, Damião de Bastos, Joaquim Alves Leandro e outros moradores. 
 No Largo as rolinhas fogo-apagou formavam bandos, depois voavam e iam 
assentar pelos muros, pelos telhados das casas fechadas, pelos pés de fruta e cantavam 
o que dava o dia. Os viajantes que passavam viam aquela tristeza de tapera e se 
benziam. 
 — Duro acabou, Duro acabou — soluçavam as rolin. 
 Em casa de Dona Benedita, as roseiras morriam por falta de quem as aguasse. 
 — Duro acabou — diziam as rolinhas. !
58 
II	
A comissão !!
PELAS SERRAS e pelas bocainas o piraí estalava e os burros gemiam, levando no lombo 
pisado os costais de mantimentos roupas de cama, trem de cozinha e munição. A serra de 
Jaraguá suas matas ricas ficou para trás; o rio Maranhão com sua caudal soturna foi 
transposto. Pelos caminhos do sertão, incertos caminhos cortados no mato ou no cerrado, 
a caravana avança sempre ao sol e ao sereno. No deserto sem fim, as cidades e 
povoados minúsculas ilhas distantes umas das outras dezenas delégu sítios ou fazendas, 
quando existem, são como navios perdidos no ermo. 
 Para todos os lados galopa o oceano da campina, da floresta ou do cerrado, por 
onde as estradas são tortuosos e indecisos riscos meio apagados na poeira e na lama. 
ítaberaí, Jaraguá, São josé do Tocantins ficaram para trás. 
 Há mais de mês que a comissão nomeada pelo governo estadual para abrir 
inquérito sobre os acontecimentos do Duron marcha pelo sertão. Quando saiu de Goiás, a 
comitiva era pequei o juiz Carvalho, o escrivão Chaves, o Alferes Enéias Altino Pexoto, 
um cabo, dois soldados e o camarada Alexandre. Mais ia crescendo à proporção que 
avançava. Em São José do Tocantins uniu-se a ela o promotor de justiça. 
 Por sobre montes, vales, rios e chapadões a comitiva ava no rumo do Duro. !
60 
 O sertão é triste e feio em julho, as queimadas borrando o céu de fumaça, a 
vegetação já amarelecida, crestada pelo sol e pelo fogo, as árvores: despidas de suas 
folhas pelo rigor da seca. Pelos ermos e descampados o vento galopa seu febrento bafo 
de morte, arrastando folhas secas, levantando a poeira fina, erguendo-a nos espaços em 
funis de redemunhos. 
 Nas noites secas, em tomo da fogueira do pouso, os homens reuniam-se. O 
promotor Imbaúba pegava o violão e se punha a cantar modinhas, lentas e chorosas, 
aprendidas em Salvador, no seu tempo de estudante, ou aquelas em voga em Goiás. !
”Quando vivemos a sonhar amores, 
Quando não temos a ilusão perdida, 
Quando noss’alma não padece dores 
Morrer é triste! Como é doce a vida!” !
 Sebastião de Rojas Imbaúba, comissionado nas funções de promotor de justiça no 
inquérito, era baiano, mulato, magro, alto, inteligente e pernóstico. Em Goiás, para onde 
viera como funcionário do Serviço de Proteção aos índios, andava sempre de fraque e 
chapéu de coco, limpo e elegante no seu cavanhaque preto de mágico, o cabelo teimoso 
alisado à custa de muita brilhantina. De noite, espantava os ecos do Largo do Chafariz, da 
Rua da Abadia, do Largo Detrás do Açougue com seu violão gemebundo, com sua voz 
aflautada de mulato namorador, pondo ternuras de amor no coração das admiradoras. Ali, 
à luz vermelha da fogueira, entoava outra canção: !
”Margarida vai à fonte, 
Margarida vai à fonte, 
Vai encher a cantarinha. 
Brotam lírios pelo monte, 
Margarida vai à fonte 
Vai à fonte e vem sozinha.” !
 Ouvindo, os soldados recompunham cenas de suas vidas. Cabo Ferreirinha revia o 
dia que deixara Goiás em companhia do juiz. A Assembléia Legislativa encerrava os 
trabalhos, a polícia viera prestar-lhe homenagens, formando-se frente ao edifício, na Rua !
61 
da fundição, junto à igreja da Boa Morte e o Palácio dos Arcos. A banda da polícia 
executava justamente a marcha que Imbaúba, no momento cantava: !
“Brotam lírios pelo monte, 
vai à fonte e vvem sozinha.”. !
 A voz não era boa, longe disso, mas no ermo, o campo dormindo ao redor, o vento 
soprando a fogueira, o luar branco como um povilho derramado, o coaxar dos sapos 
acolá na cabeceira da vereda, ao compasso do tilintar dos polacos dos aniais no encosto 
– tudo aquilo bulia com o coração de Ferreirinha. E a namorada? Quando lhe participou 
sua resolução de vir com a comissão, ela nada disse, nada protestou. Uma sombra, uma 
nuvem como que anoiteceu seu semblante. Ficou velha naquele instante, depois saiu 
correndo para dentro de casa. 
 Se pudesse, Ferreinha casava com ela, mas nem pensar nisso era bom. Tinha 
seus planos: ganhar dinheiro na expedição, ir para o Rio de Janeiro fazer o curso de 
Medicina. Que futuro havia em Goiás para um jovem pobre como ele? Quando muito, 
poderia atingir um lugar de chefe de administração pública do Estado. 
 Ferreirinha cursava o Liceu, mas o pai morreu e ele se viu obrigado a abandonar o 
estudo para arrimar a família. Nisso, a irmã se casou, a velha mãe tinha com quem viver, 
tinha em quem se arrimar. Agora Ferreirinha podia ir para o Rio, e ele se meteu na polícia, 
para ganhar dinheiro. 
 Depois a voz de Imbaúba calou-se, outros sons ergueu-se mais distante. Era um 
toque de viola. Ferreirinha conheceu que era do soldado Baianinho. Na sombra, o praça 
pinicava o pinho. Terno, osom vinha vinha numa humildade de choro de mulher amorosa, 
numa humildade igual à namorada de Ferreirinha que ficou com sua saudade na casinha 
térrea do alto do Moreira. 
 No acampamento tremulava a mágoa da viola de Baianinho. !!!!!!
 62 
Para ouvir melhor, em tomo dele outros soldados vieram se agachar com suas mulheres e 
os meninos catarrentos. 
 Bem diferente era o motivo que trazia Baianinho àquela expedição. Ferreirinha 
viera na esperança de ganhar dinheiro com que pudesse seguir para o Rio. Baianinho ali 
estava como um cativo. Era camarada do Coronel Batista, a quem ficara devendo um 
despropósito. Dívida fantástica, dívida inventada pelo coronel. Baianinho comprava uma 
rapadura, o coronel assentava duas em sua conta; no mercado a rapadura custava 
quinhentos réis, nos assentamentos do coronel cada rapadura custava o dobro. com cinco 
anos Baianinho devia tanto que não pagaria ainda que trabalhasse o restante da vida. 
 Aí o coronel trançou os pauzinhos e meteu o devedor na polícia. Doravante, todo 
mês, o coronel recebia na boca do cofre o vencimento do soldado, cobre limpo e certo, 
cobre preciosíssimo para a região escassa em moeda. 
 A mulher de Baianinho que tratasse de sustentar a casa e o marido, vendendo 
quitanda, lavando roupa no rio Vermelho ou cozinhando de ganho aqui e acolá. com o 
barulho do Duro, Baianinho se meteu na Força, pois o ganhame de soldado era dobrado. 
 Na noite, a viola de Baianinho gemia sua dor ignorada. Ele era do Norte de Goiás, 
mas dizia que era baiano mode se dar ao respeito. Segundo diziam, já pertencera a um 
bando de jagunços, na Bahia. Ferreirinha não podia acreditar. Era tão manso o Baianinho! 
É verdade que as aparências enganam, mas Baianinho não podia enganar. 
 Da barraca do juiz ergueu-se o toque de silêncio, que foi ecoando pelo ermo afora. 
Longe, um curraleiro respondeu com o berro fino, como se fosse um rebate de corneta. 
Depois, cada soldado arranjando sua cama, armando a rede num pé de pau-terra ou 
pequizeiro, junto à fogueira, as mulheres pitando em silêncio os cachimbos sarrentos, 
dando de mamar aos meninos magros e barrigudos, com eterna diarréia. Alguém gemiade maleita; outro tossia, encolhendo-se, talvez com a tísica minando os bofes. 
 E assim avançava a comissão pelo sertão belo e terrível. Breve chegaria a 
madrugada, a estrela-d’alva como uma gota d’água tremulando por sobre o monte, e 
Baianinho se meteria pela saroba orvalhada e fria em busca dos animais do juiz e dos 
oficiais, únicos que viajavam montados. !
63 
 Com o sol dourando a copa tremulante dos buritis, seus gritos ecoariam pelo 
ermo, comandando as bestas, trazendo-as do encosto, raspando e arreando. Nos 
espigões, as seriemas garganteavam suas notas álacres. 
 A seguir, meteria os pés de calcanhar rachado na estrada sem fim, dando seus 
gritos com os cargueiros, estalando o piraí assustando o caracará pachorrento assentado 
no galho do pau. 
 — Burro, diacho! 
 Como um barco ronceiro e moroso, a comissão prossegue sempre sempre através 
do sertão ressequido e escaldante. O gaviãozinho e o pinhê-pinhê estridulavam no risco 
do vôo cinzento, caçando cobras e grilos zonzos pelas chamadas das queimadas. 
Embaixo, no valê, a mataria se derrama a perder de vista. Os ipês abrem o luar de ouro e 
paixão de suas copas floridas. Na monotonia da chapada coberta pelo cerrado, a 
monotonia dos pios das perdizes e codornas em busca do amor. Longe, no céu 
acinzentado pelo fumo e pela poeira que os ventos incertos sacodem, os urubus abrem 
grandes círculos negros: carniça de alguma rês morta na boca do tijuco, aonde fora 
buscar uma gota d’água. : 
 A comissão é um barco que avança. Para trás ficaram o Maranhão, o Tocantins e o 
Paraná, rios que rolam águas verdolengas pelos profundos vales, remansando nos pauis 
esverdinhados as febres e os miasmas. 
 Para trás ficou a cidade de Arraias alcandorada na rocha e noouro: ficou Taipas, a 
velha fazenda dos Azevedos. 
 Agora era outro pouso. A noite despencou do alto, num de repente. Na sombra que 
sobe do vale, vem o pio da nhambu, ma como um soluço. Mas na noite não mais se ou 
via a voz do promotor Imbaúba para despertar sonhos e saudades na alma de Ferreirinha; 
a viola de Baianinho não mais soluçava no catiraoam mato de sua mágoa sem remédio. 
Enquanto não vinha o toque de silêncio, os soldados se reuniam para ouvir histórias de 
assombração, histórias de crime e valentia, contadas por Mane Vitô,o sua fala bonita e a 
expressão fácil; contadas por Nestório, Daniezinho ou Adonias. Eles previam lutas e 
bravateavam. Mais para um canto, Peba e Mão Pelada tiravam da algibeira o baralho 
encardido e, às escondidas, armavam a roda de sete-e-meio. 
 O Juiz Carvalho precavia-se. Boatos alarmantes chegavamaté !!
64 
seus ouvidos. Artur Melo estava com muita gente reunida, bem armada e melhor 
municiada, cangaceiros arrebanhados nas fronteiras da Bahia, Pernambuco, Maranhão e 
Piauí. A marcha, nesses dias, era como se estivesse em operação de guerra. 
 No ligá em que dormia, Baianinho sentia o cheiro acre da flor de caju, via no 
encosto o pequizeiro derrubando a flor sebosa, e seu coração renascia de esperanças. Se 
não estivesse na tropa, ia botar uma espera naquele pequizeiro dacolá; viu rastro de 
veado por baixo dele. No outro pouso, na beirada do corgo, vira muito estéreo de 
capivara. Também peixe. Foi um tropeiro, contou-lhe que adiante o rio estava secando e 
peixe lá era um disparate, chegava a fazer carniça de juntar urubu. Bem capaz que 
aquelas rodas de urubu que tanto via no céu não era carniça de gado não, era carniça de 
peixe, veja só! 
 No lusco-fusco Baianinho calculava. Era só passar o barulho, iria buscar a 
obrigação, voltava para o sertão, para caçar e pescar. Naquela comissão, Deus 
adjutorando, brevemente pagaria todas as contas e aí seria um homem livre, dono de sua 
vontade, dono do sertão inteiro, das veredas de buritis, dos rios que escondiam no fundo 
os peixes misteriosos e engraçados que a gente carecia de pegar com muita astúcia. 
Seria dono dos gerais, onde o veado retorce as orelhas e o focinho molhado campeando 
no vento sinal de gente. Seria senhor dos lugares por onde a paca traça seu caminho 
incerto, num passo elástico de veludo e seda. !
EM ARRAIAS, um tropeiro vindo da Bahia contara que Duro era jagunço só. Todo o 
pessoal valente das fronteiras de Goiás, Bahia, Maranhão e Piauí estava reunido no Duro. 
Ali estavam Abílio Araújo, mais conhecido por Abílio Batata, e Roberto Dorado, famosos 
cabos-de-guerra que alguns anos antes assaltaram e tomaram a cidade de Pedro Afonso, 
reduzindo as casas a um montão de ruínas fumegantes; Calixto Chapadense, tão valente 
quanto João Dias de Boa Vista, e Miguel Umbuzeiro, o cangaceiro que atacava rezando 
as excelências. 
 Diziam mais que no Duro, diariamente, João Rocha adestrava os jagunços no 
manejo das armas. Cortava toras de bananeiras, fincava no chão e a cada uma dava o 
nome de um membro !
65 
da comissão: Juíz Carvalho, Promotor Imbaúba, Alferes Enéias e outros. Depois mandava 
os cabras meter bala nas toras e atacar de punhal. 
 Para isso, nos pousos, nada de modinhas de Imbaúbas. A severa precaução da 
marcha de campanha: reconhecimento, ligações, sentinelas. Se era letra, agora a 
marcha se tomou mais vagarosa, que os soldados também estavam estropiados. Nas 
pousadas, cada pelotão tomava posição na ordem em que se efetuava a caminhada; o 
primeiro e o terceiro pelotão formavam os flancos; o segundo pelotão formava o centro. 
 O Juíz Carvalho era quem dava determinação. Algusto César Carvalho de Arruda 
era filho de espírito Santo, onde tomou parte numa revolução. Sufocado o movimento, 
derrotados os partidários de Carvalho, meteu-se ele para Goiás com família e tudo e foi 
logo momeado Juíz de Direito de Santa Luzia. Era Bacharel em Direito e trazia para o 
Presidente de Goiás, Doutor João Alves de Castro, carta de recomendação. 
 Quando Júlio de Aquino entregou em Goiás a carta denunciando os 
acontecimentos do Duro, começou o governo a procurar um Juíz que quisesse seguir 
para lá. Debalde, porém, João Alves de Castro consultava um e outro magistrado. 
Ninguém queria aceitar a comissão, meter-se em embrulhada, enfrentar aquele fim de 
mundo. 
 Egênio Jardim, seu cunhado Totó Caiado e seu outro cunhado Doutor João Alves 
de Castro estavam em luta contra os Melos, cujo poder político queriam esmagar a todo 
custo. O diabo que se metesse numa compliçaão daquela. Os Melos eram gente de largo 
prestígio, gente gente muito ligada a poderosas e riquíssimas famílias da Bahia, como as 
famílias Rocha, Balbino e Lima, as quais influenciariam o Governo Federal em favor do 
amigo de Goiás. Você é besta de mexer com um trem desse! 
 Por cima, sabe onde fica o Duro? No fim do mundo. Por aquelas bandas bandido é 
mato, e bandido ferozes, apoiados por políticos poderosos. Para essa gente não há lei, 
não há nada. 
 Eram de ontem os horrores de Boa Vista, com gente picada viva, com mulheres 
violentadas por dez, vinte homens, com virgensdefloradas e entupidas de areia. Pedro 
Afonso ainda estava fumegando, destruída por Abílio Batata e Roberto Dorado, amigos e 
companheiros dos Melos. Em Pedro Afonso esse cangaceiro com !!
66 !!
seus cabras obrigaram a polícia a correr. Enéias Altino Peixoto que lá residia, teve que 
fugir, perdendo fazenda, gado, casa comercial. Seu pai, sua mãe, irmãos, tios foram 
mortos pela forma mais bárbara. 
 Depois de muita procura, um juiz aceitou a incumbência: o Doutor Carvalho. Aquela 
oportunidade lhe vinha a talho de foice. Metido na pacatez de Santa Luzia, ligado 
intimamente ao situacionismo, Carvalho viu nessa comissão oportunidade para chamar 
sobre si a atenção dos dirigentes do Estado. No ócio da comarca, Carvalho tivera tempo 
para fazer os cálculos. 
 No Espírito Santo levantou-se contra o governo porque o governo só tinha funções 
públicas e oportunidades para os mineiros ádvenas, deixando os filhos da terra, os 
capixabas, na penumbra dos carguinhos subalternos e mal remunerados. Fora derrotado, 
tivera que vir para Goiás, enfrentar o sertão, o desconforto, o atraso, a miséria. 
 Em Goiás, os anos corriam eBechara. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/INL, 
1974; 2. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1976. Presença literária de Bernardo Elis. 
Antologia. Organização de Nelly Alves de Almeida. Goiânia, UFG, 1970. 
A posse da terra: escritores brasileiros hoje. Perfis biobibliográficos e fragmentos 
antológicos de autores da atualidade. Co-edição Imprensa Nacional/Casa da Moeda de 
Portugal e Secretaria de Cultura de São Paulo, Brasil. Lisboa, Sociedade Industrial — 
Gráficajelles da Silva, 1985. Bernardo Elis. Seleção de textos, notas, estudos biográfico, 
histórico e crítico e exercícios por Benjamim Abdala Jr,. São Paulo, Abril Educação, 1983. !
TRADUÇÕES NO EXTERIOR 
Antologia de contos brasileiros. Tradução para o alemão por Kurt Mayer Classon. 
Alemanha Ocidental, 1967. Short Story International. Tradução para o inglês do conto 
”Ontem, como hoje, como amanhã, como depois”, por Silas Curado. International Cultural 
Exchange, New York, USA, 1979. !
CINEMA E TELEVISÃO 
Ermos e Gerais é o título de um documentário cinematográfico em curta metragem sobre 
a obra e a vida de Bernardo Elis feito pelo cineasta Carlos Del Pino (1977). Também com 
esse título a vida e a obra de Bernardo Elis estão incluídas num curta-metragem 
cinematográfico feito pelo MEC. Por ocasião do cinqüentenário de publicação de Ermos 
e Gerais, a organização J. Câmara, por intermédio do Sr. Hamilton Carneiro e outros, 
elaborou ótimo documentário para a televisão. A firma Filmes do Triângulo Ltda., ligada à 
empresa Produções Cinematográficas L.C. Barreto Ltda. do Rio de Janeiro, produziu e 
lançou no mercado brasileiro e mundial o filme índia, a filha do sol, baseado em dois 
contos de Bernardo Elis. 
X !!!!!
NOTA DA EDITORA 
À 2ª EDIÇÃO !
Nosso querido amigo, o escritor Francisco de Assis Barbosa, certo dia, em visita a esta 
Casa, viu sobre uma das mesas de trabalho os originais de O tronco. Virou-se 
imediatamente e declarou: ”Faço questão de fazer a orelha deste livro. É um livro 
importante, de primeira ordem.” Daí a semanas trazia-nos o trabalho. Excedia um tanto as 
dimensões rotineiras de uma orelha — daí resolvermos aproveitar essas páginas — com 
tanto gosto e entusiasmo escritas pelo autor de A vida de Lima Barreto — como nota de 
apresentação nesta 2” edição refundida de O tronco. Vamos ler o que nos diz Francisco 
de Assis Barbosa: !
ROMANCE DE PROTESTO !
FRANCISCO DE ASSIS BARBOSA !
DESDE o APARECIMENTO de Ermos e Gerais, em 1944, Bernardo Élis se tomou 
vanguardeiro de um novo ciclo da ficção brasileira — o do sertanismo goiano-mineiro. 
Cronologicamente, é ele o primeiro. Vieram depois Guimarães Rosa (Sagarana é de 
1946), Mário Palmério (com Vila dos Confins, em 1956) e José J. Veiga (Os Cavalinhos 
de Platiplanto, 1959). E a literatura do Oeste passou a competir em prestígio e significado 
nacional com a literatura do Nordeste, que se havia transformado numa literatura líder, a 
partir da fornada dos grandes romances de conteúdo social iniciada com A bagaceira, de 
José Américo de Almeida. A literatura do Nordeste ficou ligada à Revolução de 1930. A 
literatura do Oeste ressurge — já que não deve ser omitida a con- !
XI 
tribuição pioneira de Bernardo Guimarães, Afonso Arinos e Hugo de Carvalho Ramos — 
na fase atual da nossa evolução histórica, a da fundação de Brasília. 
 Ermos e Gerais bem que pode ser considerado o marco oeste da nossa rosa-dos-
ventos literária, uma antecipação, tal como A bagaceira para o ciclo nordestino. Naquela 
coletânea de contos de um rapaz de Goiás, completamente desconhecido, Monteiro 
Lobato sentiu, como num espanto, o impacto da revelação de um escritor acima da bitola 
comum. Um escritor, reconheceu ao mesmo tempo Mário de Andrade, capaz de transmitir 
uma realidade mais ”real” que a real, o que é, afinal de contas, o segredo do ofício, 
envolto no mistério da própria criação literária 
 Assim é de fato Bernardo Élis, sobretudo neste romance O tronco, por sinal 
extraído de uma história real, bem entendido, de um fato histórico ou simplesmente 
policial, acontecido em Goiás, nos idos de 1917 e 1918, o qual de tão real que é parece 
até coisa inventada. Publicado pela primeira vez em 1956, O tronco passou contudo 
despercebido do grande público e da crítica, se é que ambos existem, apesar do sucesso 
alcançado por Ermos e Gerais, hoje em segunda edição. Talvez agora prestem mais 
atenção em O tronco e por dois motivos. Primeiro, porque o nome do autor se federalizou, 
depois de conquistar prêmios literários seguidos, um da Livraria José Olympio Editora — 
o José Lins do Rego — em 1966, e outro da Academia Brasileira de Letras — o Afonso 
Arinos — em 1967, com livros de contos de primeira qualidade: Veranico de janeiro e 
Caminhos e descaminhos. Segundo, porque O tronco possui força bastante para atrair os 
caçadores de assunto para o cinema novo brasileiro, que tantas obras importantes já 
produziu em sua rápida eclosão, em termos artisticamente válidos, adquirindo por isso 
mesmo em tão pouco tempo uma dimensão internacional. 
 O tronco daria um grande filme. E o roteirista não teria muito trabalho na adaptação 
para a linguagem cinematográfica da história rude e máscula, especialmente nas cenas 
do assalto à Vila do Duro, a luta encarniçada que então se travou entre contingentes da 
polícia e a horda de jagunços a serviço do ”coronel” destituído de repente das graças do 
governo estadual. Tudo parece escrito para o cinema, com impressionante precisão na 
marcação das cenas, sublinhando o autor os momentos de suspense, como nos bons 
filmes de John Ford, até o ponto culminante com o sacrifício das vítimas no tronco. O 
tronco — descreve o romancista — ”era constituído de dois compridos esteios de madeira !
xiv 
forte. De espaço a espaço, possuíam esses esteios um corte em meia-lua. Justapostos, 
os cortes formavam buracos, nos quais se metia as canelas do cristão, que ali ficava 
jungido. De um lado, unindo os dois esteios, havia uma dobradiça de ferro, grosseira, feita 
ali mesmo, e de outro, uma espécie de aldrava com cadeado’’. 
 Esse instrumento de tortura utilizado nos tempos da escravidão continuava a servir, 
em 1918, nas cadeias do interior goiano, como arma dos sobas municipais para a punição 
de adversários ou simples desafetos que ousassem contrariá-los em seus domínios. Não 
havia nem juiz de direito, nem delegado, nem ninguém que pudesse torcer a sua vontade. 
A justiça era (e ainda é) o ”coronel”. O tronco aparece no massacre de São José do Duro, 
repetindo em ponto pequeno a série de horrores que se verificou na sedição de Boa Vista 
dos Tocantins, no início da República, numa guerra civil de ”coronéis” desavindos, que se 
prolongou por três anos, de 1892 e 1894, embora não registrada por nenhum compêndio 
de história, por nenhum livro de história. 
	

 A literatura de ficção — assim chamada como por ironia — é que nos revela o 
drama até então desconhecido do sertão ”belo e terrível”, com os seus vaqueiros, 
jagunços, soldados, sertanejos humildes, mortos nas lutas dos ”coronéis”. A literatura do 
Nordeste foi que alertou os homens de governo para o problema não só das secas, como 
da espoliação e da miséria das populações marginalizadas de uma vasta região brasileira. 
Agora chegou a vez do Oeste. A literatura enche o vazio da história. Pelo menos, os 
escritores do tipo de Bernardo Élis mostram que são menos alienados — vá lá a palavra 
da moda — do que os historiadores, a grande maioria dos historiadores omissos. 
Refletindo a vida brasileira, a nossa literatura tem que ser também, forçosamente, uma 
literatura de protesto. !
Rio de Janeiro, julho de 1967. !!!!!
XV !
VILA DO DURO !
 (CLÓVJS DE MAGALHÃES) !!!!
PLANTA DA VILA DO DURO !
1 — Rancho do Coronel Pedro Melo. 2 — Rancho do Coronel Pedro Melo. 3 — 
Residência de Artur Melo (sempre fechada). 4 — Residência de Dr. Herculano Lima. 5 — 
Residência de Benedita Fernandes de Melo, depois quartel de Vicente Lemes e os 
paisanos. 
6 — Residência de Joaquim Alves Leandro,Carvalho mofava napasmaceira da comarca, pobre e 
esquecido. Brevemente os filhos estariam moços e ficariam por ali sem instrução, 
casando com roceiros bestas, enquanto ele e sua ambição se anulariam no comodismo, 
no atraso do meio, como um outro Doutor Hermínio Lobato. 
 Carvalho não se conformava com isso. Via ali o povo inculto, via os principais 
homens tão atrasados, e sentia que tinha inteligência e cultura para sobrepor-se aos 
demais. Podia ser desembargador, presidente do Tribunal, talvez até Presidente do 
Estado. Na pacatez do sertão, na solidão das divisões e demarcações, Carvalho pensava 
e pensava seriamente. 
 No Espírito Santo tomara armas contra o governo que só tinha cargos para gente 
de fora, para os mineiros; então, no Espírito Santo, dizia que o governo de seu Estado 
utilizava os mineiros, porque eles eram dóceis à vontade dos políticos, enquanto que os 
espíritos-santenses de origem não o eram. Agora, no ermo do sertão de Goiás, Carvalho 
analisava sua situação e compreendia que também ele era um estranho ao Estado de 
Goiás, era para Goiás o que o mineiro era para o Espírito Santo — um pau-rodado, como 
diziam os goianos no seu acendrado bairrismo. Para vencer, o caminho deveria ser 
aquele que deu a vitória aos mineiros. Em Goiás deveria ser dócil às autoridades, ser-lhes 
”leal e fiel”, como diziam os mineiros do Espírito Santo, prestar-se ao desempenho !
67 !
daquilo a que os da terra não se prestavam. O que lhe havia faltado era oportunidade, 
mas esta agora chegava sob a roupagem do telegrama de João Alves de Castro, 
convidando-o para ir ao Duro presidir o inquérito contra os Melos. 
 Era uma missão recusada por muitos Juízes. Estivesse Carvalho em sua terra, não 
aceitaria incumbência semelhante e ainda censuraria a atitude de qualquer forasteiro, 
aceitando-a. Mas estava em Goiás, precisava melhorar de situação, precisava livrar-se do 
sertão. 
 E o Carvalho aceitou chefiar a comissão, “a árdua, a honrosa missão” e partiu para 
o Duro. Homem acostumado à luta, não se importou com o comentário de Moisés 
Santana, companheiro e amigo de Artur Melo, no jornal O Estado de Goiás, nem ligou à 
guerra de silêncio que os goianos de nascimento fizeram à sua nomeação, ato oficial de 
um governo oligarca, empenhado em anular o íntimo e poderoso aliado de ontem. 
 Pelo sertão, Carvalho marchava fazendo ouvido moucos às murmurações. Saiba 
que os Melos erampoderosos, contavam com o apoio dos Bulhonistas, pois o Coronel 
Pedro Melo e seu filho Artur foram os únicos chefes políticos do Norte a apoiar a 
revolução vitoriosa de 1909, em Goiás. Além dos Bulhonistas, apoiavam-nos o senador 
Gonzaga Jaime, o General Braz Abrantes e o Desembargador Emílio Póvoa. 
 Este era um homem misterioso. De dentro do Tribunal traria o juís comissionado 
sob constante bigilância; por trás das persianas sempre fechadas de sua casa, trançava 
os pauzinhos, comandando meio mundo. O medo a Emílio Póvoa tinha impedido que 
outros juízes se prontificassem a ir para o Duro. 
 No começo em Goiás, com os goianos em hostil silêncio, Carvalho teve receio de 
enfrentar a missão, mas sua confiança cresceu à proporção que se afastava da Serra 
Dourada, de Emílio Póva, da pena cortante de Moisés Santana, desses espíritos que viam 
nos Melos uns rebeldes à tirania dos políticos dominantes na Capital do Estado 
 A comitiva já era de mais de meia centena de homens. Soldados e mais soldados e 
mais soldados foram se juntando a ela no correr da viagem que durava uns sessenta dias. 
Em Arraias, numeroso contingente policial juntaram-se à comitiva. Algumas dezenas de 
homens sob !!
68o comando do Tenente Olavo Mendes, de Assis, de patente mais elevada do que os 
Alferes Enéias, Severo, Xavier e Mariano. 
 De fato quem comandava era o Doutor Carvalho, que se lembrava do seu tempo 
de revolucionário em Espírito Santo. Madrugadinha já estava ele de pé, metido nas botas, 
enérgico e empertigado. Já havia feito sua ginástica sueca, barbeara-se e ia acordar o 
cometeiro Anselmo, para o toque de alvorada. Os oficiais piavam fino com o bicho! !
NAQUELA NOITE, a derradeira que a comissão passaria em marcha, o sono tardava. 
Havia a ansiedade de chegar, terminar uma marcha que se prolongava havia meses ao 
relento, voltar a dormir, comer e morar debabco de um telhado. 
 As notícias alarmantes eram sempre renovadas. Não mais diziam que os jagunços 
estavam no Duro, diziam que estavam na Grota, e em outras fazendas. Diziam também 
que nesta noite, nesta véspera de chegar, nesta é que os jagunços atacariam. 
 Outubro principiava, ainda não chovera, mas as águas não tardariam. O calor e a 
fumaça sufocavam. As árvores já haviam se recoberto de novas folhagens e os campos 
queimados reverdeciam. Boiava no ar o cheiro das mil flores que nessa quadrada 
desabotoam pelo sertão. Noite e dia as cigarras chiavam e os curiangos entravam pela 
noite adentro resmungando seu mau agouro, em vôos cambaleantes pelas estradas. 
Cauãs também cantavam com o mais rouquenho grito de maldição. Os soldados ouviam 
e se benziam. As mulheres balbuciavam uma jaculatória. Era sinal de desgraça. No seu 
cantar, as cauãs diziam: — Mata o homem, mata o homem. A isso, os curiangos 
respondiam: — Puxa terra, puxa terra. 
 A comissão estava completa. A ela juntaram-se Vicente Lemes e Valério Ferreira 
com suas famílias e mais Cláudio Ribeiro e Júlio de Aquino. No dia seguinte, se Deus 
ajudasse, entrariam na vila e o Juiz Carvalho reempossaria cada um em seu cargo, 
garantindo os soldados o exercício das funções. 
 Vicente era um dos que não dormia. Voltava de maneira bem diferente de como 
saíra. Tinha saído corrido como um cachorro sem dono, com Artur os ameaçando como 
se fossem criminosos ou vagabundos. Agora entravam de topete levantado. Os Melos !
69 
veriam o que era governo; o povo ficaria sabendo que na terra havia justiça e lei capazes 
de submeter o vice-rei do Norte o poderoso Coronel Pedro Melo! 
 Por seu gosto, Vicente teria enfumaçado o povoado com foguetório. Amigos e 
correligionários encomendaram dúzias de foguetes em Conceição e Natividade para 
comemorar aquele dia, mas o diabo era a ordem do Juiz Carvalho. Proibiu qualquer 
manifestação de agrado ou desagado. Nada disso, as autoridades entrariam calmamente, 
seriam repostas em seus lugares e em suas casas. Nada de represálias, nada de 
regozije. 
 — Uma pena! — lamentava-se Vicente Lemes, comentando essa ordem com 
Ferreira. — Tanto foguete, oportunidade tão boa para amarrotar aqueles Melos de uma 
figa! 
 — Teremos outras ocasiões... — disse sibilinamente Ferreira sublinhando o dito 
com o riso fino. Por baixo da fisionomia de tuberculoso, Vicente Lemes vislumbrou a 
ironia. Ferreira viu tudo aquilo, regozijava-se com a derrota dos Melos, sentia-se 
envaidecido em poder reassumir seu posto sob garantia de soldados armados, mas no 
fundo mantinha sua desconfiança. Sustentaria o governo até o fim aquela atitude? 
Política tinha muita força! Valério Ferreira ria seu riso fino: 
 — A luta não terminava ali. Apenas estava principiando. Não estava vendo o 
promotor de justiça? 
 Vicente balançava a cabeça. — Pois é. Os Melos viram que Carvalho não recusava 
e então usaram de outra tática: compraram o promotor. 
 A noite sertaneja desdobrava-se calma e bela. Pelos arredores da minúscula casa 
de fazenda luziam as fogueiras dos soldados que se acomodavam por aqui e por ali, 
debaixo de um jenipapeiro, sob o recavém de um carro de bois, ou ao relento, sob uma 
banda de couro de boi, para agasalhar-se do sereno grosso do fim da seca. Ao longe, o 
grito rouco de cauãs e curiangos ou o grito de algum bicho no cio. 
 O acampamento era um grande pouso de tropeiro, as trempes sustentando a 
panelinha de feijão que fervia com uma pele de porco, para o almoço do dia seguinte, se 
os bandidos não matassem tudo esta noite. 
 Na rede, Ferreirinha lembrava a namorada distante, o estudo no Rio de Janeiro. 
Teve saudades e se recordou de ímbaúba. Infe- !
70 
lizmente sua voz não quebrava os ecos.Sua voz silenciara não só porque a ordem do juiz 
era para permanecerem em silêncio, como porque o próprio Imbaúba já não fazia parte da 
comissão. Foi em Arraias, num banquete. O intendente municipal ergueu um brinde ao 
Juiz Carvalho. Agradecendo, Carvalho conclamou: 
 — Era preciso que o povo do Norte de Goiás se reunisse para acabar de vez com 
os jagunços baianos. 
 — Jagunços baianos não senhor — gritava Imbaúba, de pé, os braços erguidos e a 
cara feroz. — Protesto em nome do grande Estado que deu ao Brasil Rui Barbosa e 
Castro Alves! 
 — Precisamos pôr cobro a esses cangaceiros da Bahia — reafirmava 
acintosamente Carvalho, com tal veemência que Imbaúba resolveu calar-se. Ficou o resto 
do tempo com o focinho torcido, resmungando coisas que os circunstantes não queriam 
nem interessavam ouvir. 
 Mais tarde, quando tudo dormia, Carvalho foi ao quarto de Imbaúba, bateu, entrou 
lá dentro e reafirmou o que dissera: — Temos que pôr cobro a esses jagunços baianos. — 
Ah, que é um desaforo — Imbaúba quis gritar. O Juiz Carvalho recomendou-lhe calma e 
silêncio. Viera a tal hora para evitar escândalo: — Não grite e nem faça fitinha. Eu disse e 
digo que são esses jagunços baianos que infelicitam Goiás. Se você prestar, se você for 
homem, venha me tapar a boca. Somos dois homens, um para o outro. Vamos ver quem 
pode mais! 
 Imbaúba velho caiu das carnes, não tugia nem mugia, a cara emburrada. Desde aí 
o promotor passou a viajar à parte, em companhia de dois camaradas de confiança. Vinha 
atrás da comitiva, com um dia de atraso. 
 Boatos logo surgiram. Imbaúba era homem dos Melos. Havia sido nomeado por 
descuido de João Alves; era uma vitória de Emílio Póvoa e Gonzaga Jaime. !
”Margarida vai à fonte, 
Vai encher a cantarinha” !
 Na madorna Ferreirinha não sabia se era Imbaúba cantando ou se era a banda da 
Polícia, na porta da Assembléia, no dia da partida. 
 Súbito, um tiro rouco de Comblain ecoou na noite. As senti- !
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nelas gritaram. O acampamento se contorceu comoumb outras ordens ergueram-se ali no 
meio. As armas retiraram»! nobra. Por trás de suas canastras entrincheirou-se o Juiz 
Carvalho, na mão a Mauser, olhos na treva. Tudo escuro, muito escuro, as fogueiras 
foram apagadas. 
 Com pouco, de um ponto incerto veio a notícia incerta, depois mais certa: -- Rebate 
falso. 
 — Rebate falso? 
 — É. Rês. Ponta de rês. Vinha pela estrada em trote estugado 
 — Decerto pra lamber sal no cocho. Sinal de chuva. 
 — Gado que vem pra porta da fazenda, sinal de chuva! 
 — Sinal de chuva, espia lá, por trás do mato. — Eram rei pagos que acendiam e se 
apagavam, clareando num breve instante o céu inteiro. E o vento soprava, um vento 
diferente, cheira a água. 
 Lavradores na sua maioria, os soldados trocavam idéias ante a aproximação das 
chuvas. Falavam de roças, contavam casos de vaquejadas, relembravam cenas da 
infância, ou de tempos passados. Até os doentes, até o maleitoso se reanimou. 
 — Esses Melos? A gente pode matar eles que nem bugre, Cê acha que o governo 
vai danar? Acha é bom, só! dizia Mané Vitô em voz grave, reacendendo a fogueira que 
desmanchara. 
 Gabriel observou que não fazia cerimônia: 
 — Quero passar a brasa logo nuns pares deles, que é mode ganhar üas duas 
largatixas. Eu tenho que voltar pra Goiás como sargento, se Deus e a Virgem Santíssima 
me ajudar eu. 
 Vento de chuva soprava a fogueira. No escuro, os curiangos gritavam mais 
desesperadamente, abafando o choro das crianças dos soldados. !
A VILA DO DURO era um formigueiro. Carvalho, primeiro, distribuiu as autoridades pelas 
residências, dando-as por reempossadas. Valério Ferreira voltou para seu sítio, Cláudio 
Ribeiro foi para o Cartório e Vicente Lemes para a Coletoria. No sobrado do Largo, misto 
de prisão, mercado e depósito, aí se aquartelaram os oficiais. Por outras casas, 
distribuíram-se os soldados, entrincheirados em locais adequados, de modo a defender a 
vila de qualquer ataque. !
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 Vicente Lemes ficou no casarão da sogra; não voltou para sua casa antiga, 
perto da igreja, na frente da grota. Aí instalou-se o Juiz Carvalho. 
 Agora, em sua residência, o juiz ordenava o caos das bruacas, cangalhas, 
canastras, mesa e livros, ajudado do escrivão Chaves e pelo Cabo Ferreirinha. Arranjava 
o gabinete de trabalho. 
 — Dá licença, meu Juiz — pediu o ordenança, batendo sua continência na porta. 
 — Que há? 
 — Seu Juiz, está aí na porta o Antônio Paulista, arrieiro do doutor Imbaúba.... Quer 
falar com vossimecê. 
 — Reviste o homem, desarme e mande entrar. 
 Com pouco entrava Paulista de chapéu na mão, na ponta dos pés para não retinir 
as esporas, a cara aberta num largo riso bajuldor: 
 — bom dia, Seu Doutor Juiz. 
 — Que Há, homem”? 
 — Seu Doutor, o Doutor Imbaúba... — Carvalho o atalhou, ponderando que 
Imbaúba não era doutor não. Que Paulista dissesse Senhor Imbaúba. — ... apois, o 
Senhor Imbaúba mandou a gente saber se ele tem permissão de entrar na vila? 
 Carvalho não respondeu logo. Continuou como estava limpando da poeira os livros 
que trouxera e os empilhando num banco. Na porta, Paulista virava e revirava o chapéu 
velho e sebento, os olhos baixos à espera da resposta. 
 Por fim, Carvalho decidiu: — Imbaúba pode entrar, sim. 
 Porém Paulista ainda permanecia ali parado feito um dois de paus, rodando 
sempre o chapéu, como se receasse dizer alguma coisa. Afinal, desembuchou: 
 — O patrão quer saber mais se vossimecê aceita ele como promotor? 
 Novamente Carvalho embatucou. Continuou arrumando os livros e só depois 
respondeu: 
 — Homem, diga-lhe que acabe de chegar, depois falaremos. 
 Carvalho vacilava. Será que conservava Imbaúba na Promotoria? Era um sujeito 
muito à-toa, atrasado, besta. Mas sua demissão ia atrasar demais a marcha do inquérito, 
favorecendo os Melos ou lançando um certo desprestígio à comissão. 
 Paulista montou a besta, arrepiou caminho. Na sala, arruman- !
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do os livros, Carvalho sem deliberar. Para demitir o diabo do Imbaúba teria que nomear 
outro promotor, o que só poderia ser feito pelo Presidente do Estado. Essa nomeação 
dermndaria muitos meses. O meio mais rápido de comunicação era o telégrafo 
de .Barreiras, na Bahia. De Duro a Barreiras um cavaleiro gastava dez dias para ir e 
voltar, levando o pedido de demissão e trazendo a resposta do Presidente do Estado de 
Goiás. Qualquer outro meio de comunicação seria mais moroso ainda. Um cavaleiro para 
ir de Duro a Goiás e voltar, não gastaria menos de quatro meses, prazo que seria dilatado 
pelas chuvas que estavam entrando. 
 E encontrar ali uma pessoa competente para o exercício da promotoria? Tinha que 
ser pessoa livre de influências políticas e possuidora de alguma instrução. Quase 
impossível encontrar tais qualidades isoladamente, quanto mais reunidas numa mesma 
pessoa! 
 — Vai ser muito difícil — concordava o escrivão Chaves com quem o juiz trocava 
idéias. 
 — Com licença, Seu Juiz! — ”Diabo, de novo o ordenança! Que será que ainda 
estava querendo? É verdade que tinha uma cara gaiata e maliciosa.” — O senhor num 
quer ver um carnaval, Seu Juiz? 
 — Carnaval? — admirou-se o juiz, chegando àjanela,para onde já correra o 
escrivão Chaves. No Largo passava um homem montado num burrão de oito palmos de 
altura, cria de Lagoa Dourada, sem chapéu, envolto na bandeira nacional, tendo na mão 
um papel que depois se soube ser a Constituição Estadual, Pelo porte agigantado, pela 
cor enfumaçada, pelo cavanhaque de mágico, Carvalho logo reconheceu: Imbaúba. 
 Atrás, no mesmo passo solene, num mutismo de doer, seguiam Antônio Paulista e 
mais um camarada tocando cargueiro. Ao redor de todo o Largo surgiam caras 
espantadas de soldados e paisanos. O espantalho estacou em frente ao juiz, que mandou 
o ordenança convidá-lo a apear. ”Certamente está na cachaça, esse porcaria.” 
 De cima do burrão, empertigado como um boneco, Imbaúba traçava no ombro a 
bandeira que o vento teimava em açoita num tom pausado, proferiu: 
 — Requeiro para mim e para meus auxiliares uma habitaçãocondigna — com os 
longos braços fez um gesto envolvendo os ca- !
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maradas. A bandeira despencou, ele a recolocou no ombro, e prosseguiu pelo Largo no 
mesmo passo grave de assombração. 
— Louco — disse Carvalho. — Só pode ser loucura. — O Tenente Mendes de Assis 
aproximou-se da janela: — Como é, Seu Juiz, será que o homem ficou louco? 
— Sei lá! Mas louco ou não, isso não pode continuar. É uma desmoralização: diz muito 
mal da comissão. Olha, tenente, vá lá e o intime a parar com a palhaçada imediatamente. 
— Mal o oficial foi-se afastando, Carvalho completou: — Tenente, ô tenente, olhe aqui! 
Faça esse tipo deixar a vila imediatamente. É pra sair da vila já-já. 
 Deixou a janela, abeirou-se da mesa e chamou o escrivão Chaves: 
 — Redija aí um telegrama ao Presidente do Estado, Chaves, vamos lá. Pedindo a 
demissão desse Imbaúba. Em caráter irrevogável, hem! Irrevogável. 
 Foi até à janela. Tenente Mendes de Assis discutia com Imbaúba, a seguir tomou 
do freio do burro e saiu puxando. 
 — Ah, já ia esquecendo. Solicita a nomeação de outra pessoa para ocupar a 
Promotoria. — Daí foi até a porta do fundo da salinha e gritou ao Matias: 
 — Diga ao Tenente Mendes de Assis que me mande um soldado de inteira 
confiança, um homem esperto, inteligente. É para levar este telegrama a Barreiras. !
RESSABIADOS e temerosos, os habitantes retomavam ao Duro. Dona Benedita 
Fernandes chegou e ficou muito triste com o jardim. Tudo esturricado, tudo morto. Nunca 
em toda a sua existência sentira uma sensação tão aguda de abandono, de fim de tudo. 
Da janela, convocou pessoas para replantar as roseiras, os craveiros. Queria ver flores 
logo. 
 Também Argemiro Félix, Moisés Melo, Alexandre, umas pessoas pobres 
reocuparam suas casas e voltaram a suas ocupações. 
 Os Melos é que permaneciam ausentes, na Grota, onde diziam pululavam 
jagunços e facínoras. Era gente vinda de São Marcelo, Formosa e Santa Rita do Rio 
Preto. Ali estavam prontos para atacar a vila a qualquer instante, talvez naquela mesma 
noite, quem sabe? !
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 No casarão de Dona Benedita contavam casos de Roberto Dorado, Abílio 
Batata, o assalto de Pedro Afonso, o ataque de Porto Nacional. Falavam de Enéias, a 
família dele trucidade por jagunços, a mulher grávida defendendo a barriga donde tiraram 
o menino vivo. 
 Meio mês de espera. Afinal chegou o soldado de Barreiras com a resposta do 
presidente do Estado: concordava com a demissão de ímbaúba. O Juiz Carvalho 
indicasse outro nome. 
 — Ofície ao Intendente de Natividade, Chaves. Convide-o exercer as funções de 
promotor de justiça. 
 De Duro a Natividade são 25 léguas que o cavaleiro vence em dez dias debaixo da 
chuvarada, esbarrando com rios cheios ei estradas apagadas pelo aguaceiro. 
 — Capaz do intendente não aceitar... — comentavam no casarão de Dona 
Benedita. 
 — Ah, aceita, ele não aprova esses desmandos dos Melos não. 
 — Diz que Artur Melo enviou portador pedindo ao intendente para não aceitar a 
comissão. 
 — Quem contou isso? 
 — Quem contou? Quem contou foi... 
 Com pouco, pelas estradas enlameadas partiam posítivos levando cartas de 
Vicente Lemes, Valério Ferreira, Argemiro Felix e outros. Pediam aos amigos que 
animassem o intendente a aceitar a Promotoria. Era preciso continuar o inquérito que já 
estava ficando velho, com o povo descrente de algum resultado positivo. 
 — Mas é um absurdo! Tem alguém que dê crédito? – É que estava correndo boato 
de que o Juiz Carvalho iria recrutar o povo da região para servir como soldado na defesa 
da vila, 
 — Recrutar só as pessoas? Meu marido tem certeza que vão requisitar tudo 
quanto é mantimento do povo da roça. Vai ser um deus-nos-acuda! 
 Com isso, ninguém trazia mantimentos para o abastecimento da cidade e do 
pessoal da comissão. Na vila, novas casas apareceram fechadas. Os donos tinham 
fugido. A velha Chiquinha, o velho Albininho, Maria Coxa, o pedreiro, uns pobres, foram de 
arribada. Nunca mais botavam os pés nessa terra infeliz. Fugiam da fome, fugiam do 
recrutamento. 
 Vicente Lemes, Valério Ferreira, Argemiro Félix, os homens de maior prestígio 
tiveram que tomar seus animais e ir de sítio em sí- !
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tio, de fazenda em fazenda, de retiro em retiro avisando que aquilo não passava de boato 
e ardil para atrapalhar o serviço do Juiz Carvalho: — O pessoal não tivesse receio e 
permanecesse em paz. 
 — Viva o intendente! Aceitou o cargo — gritaram em casa de Dona Benedita. — 
Novamente portador seguia para Barreiras, a fim de telegrafar ao Presidente do Estado, 
indicando o nome do novo promotoi a ser nomeado. 
 Nos quartéis, Carvalho determinou uma disciplina férrea: exercícios diários, 
trabalho de cavacão de trincheiras para o lado da Grota, sentinelas dobradas em tomo da 
vila. Diariamente patrulhas percorriam as imediações, perseguindo grupos de jagunços 
que igualmente faziam serviço de ligações. Apesar, porém, dessa atividade, o fuxico entre 
a soldadesca e os oficiais era uma sarna: — Cafubira baiana, quanto mais coça mais 
dana! 
 Um dia, Gabriel apareceu baboso, cambaleando, o cabelo caído na cara: 
 S’embora, pessoale. Isso aqui e o cu do mundo. 
 — Bamo, uai — responderam outros soldados também encachaçados. Mendes de 
Assis meteu-os no tronco e deu uma batida na vila, apreendendo os garrafões de restilo. 
 Aí, foi o jogo. Tão logo saiu o pagamento da etapa do primeiro mês, já havia 
soldado sem um real, queixando-se ao comandante: 
 — É uma quadrilha, meu comandante. Uma quadrilha para tomar o dinheiro da 
gente... 
 Peba, Mão Pelada e mais alguns foram trancafiados no tronco velho do sobradão, 
mas a quadrilha só deixou mesmo de funcionar depois que o dinheiro acabou. No 
segundo mês, a coletoria não tinha renda, o numerário deveria vir de Goiás. Mas quando? 
 A jogatina cessou e em seu lugar surgiu a leitura de jornais muito atrasados, 
chegados de Goiás. 
 — Leia aí pra nós, Seu Ferreirinha — pediam os soldados. 
 — Então, escuta. — E Ferreirinha lia a notícia estampada na folha: — A gripe 
espanhola grassava na Capital, vitimando centenas de pessoas. O governo estadual 
tomava providências, determinando o isolamento dos enfermos. Também estava 
organizado um serviço de saúde para impedir que pessoas saiam de Goiás e vão 
contaminar outros centros urbanos. 
 Adiante, vinham os nomes dos mortos. Era gente conhecida !!
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dos soldados, até alguns parentes. Lugar pequeno, coma aparentadas na sua quase 
totalidade, a notícia da morte alarmava e entristecia o pessoal. Muitos estavam chorando 
e lamentando a perda do amigo. O tísico também se aproximou e com sua cara 
encaveirada ficou ouvindo a citação dos nomes. 
 Mané Vitô e Tonhá conversavam: — Tou ficando é cansado. Tomara que esse juiz 
chama a gente logo, que eu quero é amarelar o pé desse tal de Coronel Pedro Melo. Eu 
vou é logo na cabeceira. 
 — Mas o bicho tem gente por trás escorando. 
 — Que nada. A gente passa a brasa, o governo prende uns dias, adispois vem a 
recompensa, só. Sou puta nova o quê! 
 Carvalho também leu os jornais e achou que era perigoso que a gripe espanhola 
atingisse os soldados. Estava ali uma oportunidade para tomar uma medida contra os 
fuxicos eos boatos. A mulherada de soldado era a maior causa de rusgas, queixas, 
boatos e fuxicos. Ia valer-se do perigo da peste e mandá-las para um sítio distante da 
cidade quase uma légua. Seria uma maneira de estancar aquela fonte de inquietação. !
AS NOTÍCIAS não transpiravam, trancadas debaixo de sete chaves. O que se sabia era 
que o processo corria a galope. Nacasa de Cavalho o povo formigava, o lampião de 
querosene aceso até noite velha, os escrivães enchendo folhas e folhas de papel almaçal 
a chegada do novo promotor, o processo corria em segredo de justiça, as autoridades 
trabalhando dia e noite, ouvindo testemunhas, fazendo acareações, realizando 
diligências, intimando mais e mais pessoas. 
 Certo dia, a casa do Coronel Pedro Melo, que estava fechada amanheceu aberta. 
 — Será que o coronel está aí? 
 — Não. Foi a polícia que mandou abrirpara dar busca. 
 Por fim, esclareceu-se. Nela estava arranchado o Doutor Leite Ribeiro, aquele 
advogado terrível que botara o pobre Juíz Hermínio Lobato no cabresto. No mesmo dia, 
de noite, Leite Ribeiro foi visitar o Juiz Carvalho, visita de cordialidade. 
 — O senhor compreende, Doutor Carvalho, por aqui são tão raros os bacharéis, 
como nós, que me apresso em vir bater umm papinho com o colega... !
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 Os oficiais estavam presentes e nenhuma alusão se fez aos Melos, ao inquérito 
ou à política. ”Que será que esse excomungado veio fazer?” — perguntavam em casa de 
Dona Benedita. 
 Nas noites seguintes, lá estava Leite Ribeiro em palestra, tão cordial, falando de 
tudo, menos do inquérito. Também Carvalho se precavia. Não perguntava o motivo da 
estada do colega, afastava qualquer alusão à comissão. 
 Mas uma noite, Leite Ribeiro se valeu de uma deixa e ponderou que Carvalho 
estava sendo mais realista do que o rei, que o caso do Duro era um simples caso de 
família. Os políticos é que pretendiam tirar proveito da situação. 
 Carvalho protestou: — Que caso de família, Doutor Leite! Caso de coação de 
autoridades constituídas, de sedição, isto sim. 
 — Não sejamos trágicos — retrucou o advogado displicentemente, dando ao 
incidente proporções ridículas. — O senhor não conhece o sertão. Isto aqui está na era 
patriarcal, em pleno período bíblico. O patriarca Pedro Melo puxou as orelhas ao sobrinho 
Vicente Lemes e o sobrinho se rebelou contra o corretivo. Nada mais, nada menos do que 
um problema doméstico. 
 — O senhor é quem está torcendo os fatos, Doutor Leite. Vicente não é o sobrinho. 
É o coletor estadual. 
 O advogado prosseguia manhoso: 
 — Não sou advogado da questão, não tenho interesse algum, devo grandes 
favores ao Doutor João Alves de Castro, mas pode estar certo que há muita exploração 
em tomo do caso. Olhe, Senhor Juiz, para início de conversa, vamos indagar: quem 
chefiava o assalto ao Cartório? 
 — De acordo com todas as informações foi Artur Melo com ajuda do pai! — 
Carvalho estranhava demais uma pergunta daquela. Artur mesmo nunca escondeu sua 
chefia no assalto! 
 — Ah, ah — bradava de seu tamborete o advogado. — Vejam como distorcem a 
verdade! Quem chefiava o assalto, meritíssimo, não foi Artur nem seu pai; foram os 
irmãos Chapadenses, Seu Juiz, para vingar o irmão. — Nesse ponto, abaixando a voz e 
achegando-se do ouvido do juiz segredou-lhe: — Vossa Excelência sabe quem são os 
Chapadenses? Uns facínoras, uns celerados. Ir contra os Chapadenses seria crassa 
tolice. Então Artur entrou no meio da turba, para evitar mal maior. Compreende Vossa 
Excelência? Para evitar que pessoas morressem, Artur tomou a dianteira e exi- !
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giu a reforma do processo, ou seja: sua feitura, logo... Leite Ribeiro tirou o lenço 
perfumado, limpou a escuma dos cantos da boca e ajeitou a gravata. 
 Carvalho balançava a cabeça. Se compreendia! Compreendia de sobra. Como os 
Chapadenses viviam foragidos, era muito interessante atirar sobre os ombros deles a 
culpa de Artur Melo. Golpe inteligente de advogado, que Carvalho logo percebeu. Por 
isso, redargüiu: 
 — Se o Coronel Artur provar isso, é com o maior prazer que eu o isento de culpa. 
Entretanto, bem difícil será a Artur negar que ali nas barbas da Comissão matinha 
homens armados para coagir o pronunciamento da justiça, para cercear o livre exercício 
das autoridades. 
 Leite Ribeiro afirmava que o juiz estava com prevenção. Os Melos eram gente 
cordata. Ele podia afirmar que os Melos queriam um acordo: Carvalho desse sua palavra 
de que os pronunciaria, e a João Rocha, e eles dispersariam os cabras imediatamente. 
 Por trás de sua mesa, Carvalho ria: 
 — Não, meu distinto colega. Os termos do acordo tèm que ser outros: primeiro, os 
Melos dispersassem os jagunços, depois conversariam sobre as possibilidades de 
impronúncia. De antemão posso dizer que a impronúncia é muito viável, muito viável -- 
obtemperou o juiz. 
 No outro dia cedo, Leite Ribeiro e sua comitiva deixaram a vila. O povo perguntava 
curioso qual havia sido o motivo da visita, mas ninguém sabia informar. O que diziam era 
que, a menina que Maria Pequena criava tinha apanhado barriga e era de soldado. Maria 
Pequena botava a mão na cabeça: 
 — Filho alheio, brasa no seio, comadre Januária. 
 — Por que que a senhora não procura o juiz, Dona Maria? Ele é homem do direito, 
talvez possa valer à senhora. 
 O diabo, porém, que a tal ”menina” tinha seus trinta anos bem criados e curtidos. 
Como lá diziam, tinha dez de nascimento e vinte de gamela. Vivia por ali fazendo rendas 
de bilro, refinando açúcar e torrando café, sem que nenhum homem se interasse por suas 
graças, pois que ela as possuía. Agora, no fim, via a pobrezinha tão desprezada, 
enxergava seus encantos, dizia-lhe belas coisas aos ouvidos e lhe deixava um filho no 
bucho. Pelo po- !
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voado Maria Pequena formulava seus lamentos, mas o processo ocupava demais as 
atenções. 
 — A coisa está fedendo a chifre queimado! — exclamavam em casa de Dona 
Benedita. No varandão sempre cheio de gente comentavam que o juiz mandou intimar 
Doutor Herculano Lima, genro de Artur, e Anastácia, filha de Pedro Melo, para deporem e 
que eles não atenderam à intimação. Diziam que o juiz planejava enviar um grupo de 
soldados à Grota para trazer as testemunhas recalcitrantes. O Tenente Mendes de Assis, 
diziam, separava nos quartéis os melhores soldados para essa diligência. 
 — Será que o juiz tem coragem? — perguntava Ferreira. — Olha lá que a Grota é 
uma fortaleza, com mais jagunços do que soldados do juiz. 
 Moisés contava que o juiz ia à Grota para buscar o processo de inventário da viúva 
de Clemente Chapadense. 
 — Que processo de inventário, que nada! O que o juiz quer é pegar o Imbaúba que 
agora é gente de Artur e anda ensinando manhas para eles. 
 Cresceu tanto o diz-que-diz que Carvalho mandou chamar alguns cidadãos em seu 
gabinete: 
 — Então, Seu Moisés, estive sabendo que o senhor anda por aí espalhando 
boatos, não é assim? 
 — Eu, Senhor Doutor? Eu não. 
 — Sim senhor, é o senhor mesmo, Seu Moisés. 
 — Deve de ser engano, Seu Juiz. Sou homem que vivo metido só’com meu 
trabalho. Isso é mentira de algum inimigo. 
 — Matias, traga aí do quarto o Malaquias — ordenava o juiz. Ao chegar, o juiz 
perguntava: — Então, Seu Malaquias, que foi que o senhor ouviu da boca do Senhor 
Moisés de Melo,’esse homem que está na sua frente? 
 — Ele falou assim pra mim que o senhor ia na Grota, mode trazer o processo de 
inventário da viúva e que tava até juntando soldado. 
 — Está ouvindo, Seu Moisés? Está ouvindo como não é intriga? Agora o senhor vai 
para sua casa e não me tome a soltar boatos. Não fique falando coisas de que não tenha 
absoluta certeza. Veja lá como se porta de hoje em diante, hem! 
 A seguir ordenava ao Matias que recolhesse o Malaquias ao !
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quarto e mandasse entrar no gabinete outro boateiro para repetir a cena. 
 Com isso, os cochichos desapareciam por alguns dias. Voltava à bailaa o caso de 
Maria Pequena. A mulherzinhata tanto mexeu, tanto gemeu e chorou, que um dia Mendes 
de Assis mandou formar todo o destacamento. Maria Pequena e a menina passaram em 
revista os soldados, tentando identificar o Dom Juan. Debalde! Por uma hora a menina foi 
e veio por entre as filas de soldados perfilados, examinado cara, bigode por bigode, corpo 
por corpo. 
 — Pudera! É tudo dum jeitinho só — disse depois a menina para a madrinha Maria 
Pequena. !
LONGAS, longas e silenciosas, as noites do Duro pareciam não ter fim. Os dias, apesar 
da pasmaceira, eram cheios com o trabalho. Mas as noites! Os sapos coaxavam, a chuva 
chiava na saroba, os grilos trilavam e Carvalho não dormia. 
 Sobre a mesa de trabalho estavam os autos do processo de inquérito, onde os 
depoimentos, as provas indicavam a culpabilidade dos Melos. Por que então não 
decretava a prisão deles? – Perguntava-se Carvalho. Não estavam eles ali ao alcance da 
mão a poucos quilômetros de seu gabinete? 
 Na cama, Carvalho virava-see revirava, sem encontrar jeito de dormir, de 
acomodar-se, como se o diabo daquela cama fosse de espinhos, de cacos de vidro. Que 
falta sentia da esposa, de sua companhia, de seus carinhos. Seria uma pessoa com quem 
conversar, com quem trocar idéias, com quem falar de amor. Que saudade de seu corpo! 
 Ali, bem que o promotor lhe falara de umas tantas mulheres com as quais não 
seria difícil uma noitada de amor. Entretanto, não queria complicações. Lugar pequeno, 
logo a notícia corria e ia acabar em amolação. Tinha a esposa, achava que devia ter 
fidelidade e, sobretudo, era preciso guardar as conveniências. 
Contudo, quem sabe se poderia conservar segredo? O promotor até lhe mostrara alguma. 
Pareceu bonita, viva, ardente. No vestido malfeito vislumbrou uma cintura fina, umas 
ancas forte, grandes nádegas. Seria pulga? Seria percevejo? Amanhã iria mandar o 
Matias que examinasse direito a cama. Havia umas picadelas. !
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 Lá fora, a chuva chiava, uma chuva igual e sem pressa, os sapos roncando. Na 
verdade as provas estavam nos autos, os indiciados ali pertinho, no sítio da Grota, mas o 
diabo é que a Grota era uma fortaleza cheia de homens armados e municiados. Se 
tentasse atacar a Grota, a polícia seria derrotada, sua missão fracassaria, seria a perda 
da confiança de Totó Caiado, seria a perda do lugar de desembargador, de deputado 
federal. 
 Carvalho se viu novamente metido na sua comarca pobre, esquecido, com os filhos 
atrasados e brutos, as filhas empencadas de meninos catarrentos, anêmicos e mal 
vestidos. Carvalho revirava-se para lá e para cá. E a mulher de que lhe falou o promotor? 
Apagava-se, não despertava nele o mesmo desejo de há pouco. 
 Sobre um caixote, na cabeceira da cama, empilhavam-se, mudos, os maçudos 
livros de direito. Não tinham serventia naquele momento, em que o juiz necessitava não 
de letras, mas de uma coisa que os tratados não ensinavam, de algo imponderável que 
nem os mais cultos e eficientes professores transmitem aos alunos. Necessitava de 
tretas, de muita treta para enfraquecer a Grota, para dispersar os jagunços dos Melos ou 
ludibriá-los. 
 Um animal tosava o capim do Largo, na noite cega e molhada, num ritmo soturno: 
— crou, crou, crou. O mesmo ritmo com que as fontes do juiz latejavam de ansiedade e 
de desespero. Enfraquecer a Grota era o único recurso. Mas seria a Grota, de fato, tão 
forte? Carvalho duvidava. O povo do lugar era muito fantasioso, era muito ingênuo, 
receava demasiadamente os Melos, dando a tudo o que era deles um aspecto 
assombroso! Ah, se pudesse ir à Grota examinar a força dos Melos! Se estivessem 
fracos, a polícia atacaria; se notasse que estavam fortes, ali mesmo faria um acordo com 
Artur Melo! 
 Fora, o diabo do animal parara de pastar e urrava, como se estivesse com 
garrotilho, longos e dolorosos acessos de tosse. 
 Estava tudo muito certo, mas como se apresentar na Grota? Os Melos não o 
deixariam entrar... Por cima, acordo? Nas bases propostas por Leite Ribeiro era 
impossível. 
 O animal gemia. Era um cavalo, que vira no dia anterior, com uma coleira de 
sabugos queimados, como simpatia contra o garrotilho. Amplas ancas. Mulher ardente — 
dissera o promotor. 
 Súbito, num repelão, Carvalho sentou-se na cama: e o inventário de Clemente 
Chapadense? Não estaria ele em poder dos Me- !
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leos? Sim. Estava. É sob a alegação de buscá-lo,podiaexaminar a Grota, certificar-se da 
força dos Melos. 
 Na solidão do quarto, Carvalho sorria: -- Essa minha cachola! Nunca falha! 
Confiante, acalmava-se, para trocar planos. Iria à Grota para busca e apreensão do 
inventário. Seria uma diligência. Se ali percebesse que de fatos Melos estavam fortes, 
faria um acordo com Artur Melo. Faria o acordo na base da proposta do Doutor Leite 
Ribeiro. Justamente. No momento, rememorou aproposta e não lhe pareceu apior: 
Carvalho impronunciaria Artur Melo e o pai, no caso de eles dispersarem os jagunços e 
comparecerem a juízo. 
 Lá fora, a chuva cessava, e uma viração forte soprava, fazendo gemer as baneiras 
e mamoeiros do do quintal. Carvalho abriu a janela para refrescar a cabeça que 
escaldava. Estrelas brilhavam no céu, onde asnuvens eram manchadas esgarçadas. O 
juíz complementava o plano: uma vez que os Melos dispersem os jjagunços, enfraquece a 
fortaleza, a polícia prenderá Artur Melo e o pai, levando-os incontinenti para Goiás. 
 Aquele era o plano. Agora era executá-lo. O principal era ter coragem, era ter 
ânimo para enfrentar os Melos com esse plano de deslealdade e de traição. Requeria 
muita habilidade para realizá-lo. Maisque habilidade: arte. 
 Pela cabeça de Carvalho veio a lenbrança do teatrismo escolar de sua cidade. 
Mestre Otacílio repetia a propósito de tudo: o teatro é a vida. Naquele instante Carvalho 
percebia a grandeza de tal afirmativa tão trivial e tão simples. Tinha que representar seu 
papel muito bem, sob pena de perder a oportunidade de melhorar de vida, de fugir ao 
pântano sufocante do sertão, sob pena de acabar como um Doutor Hermínio Loato, 
ingênuo e incapaz. Antevendo os horrores do sertão, sentiu que não tinha tempo a perder. 
Foi à varanda e sacudiu levemente o ordenança Matias. Que fosse chamar o Alferes 
Severo. Mas não acorde os demais oficiais... é segredo, hem! 
 Rapidamente os animais chagaram dos pastos, foram arreados e antes das cinco 
horas da madrugada, antes que o dia clareasse,o juíz Carvalho, o Alferes Severo, o 
escrivão Chaves e o ordenança Matias deixavam a vila e se dirigiam para a Grota. 
 Saindo, o juíz Carvalho,ordenou com rispedez: 
 -- Olhe lá! Nós estamos dormindo. Eu, o Alferes Severo, e es- !!
84 
crivão Chaves e o Cabo Matias. Não diga a ninguém — mas a ninguém mesmo — que 
nós saímos. Olhe lá -- recomendou mais uma vez ao cozinheiro Alexandre. — Num 
carece de ter susto, Seu Doutor. !
EM DEZEMBRO o dia acorda cedo. As chuvas já tinham caído abundantemente e o chão 
era só verdor. Pela estrada pedrenta, quatro cavaleiros marchavam quietos. Entre eles, o 
Juiz Carvalho. Ia em diligência à Grota, fazer busca e apreensão dos processos 
subtraídos por Artur Melo ao Cartório. 
 Os cascos ferrados de novo estalavam nas pedras. As plantas do mato e do campo 
floresciam e perfumavam a madrugada na qual os pássaros já cantavam e os insetos 
começavam a zumbir. Ninguém conversava, cada qual metido com seus próprios 
pensamentos. Ir à Grota era empreitada perigosa. Que haveria no fundo daqueles 
socavões? 
 O juiz imaginava. Logo que chegasse, intimaria Artur Melo a entregar-lhe o 
processo de inventário da viúva. Se fosse obedecido, muito bem: se não fosse, paciência! 
 O que Carvalho pretendia era tomar pulso da verdadeira situação dos Melos, saber 
se estavam mais fortes ou mais fracos do que a polícia. O plano estava firmado: se os 
Melos estivessem fracos, era voltar, reunir a tropa, atacar o reduto e prender os 
indiciados; se estivessem fortes, aí Carvalho teria que manobrar, obter um acordo, 
conseguir um meio de enfraquecer a Grota. O juiz confiava na sua inteligência, na sua 
habilidade, relembrando as palavras de mestre Otacílio: o teatro é a vida. 
 Pelas pedras, os cascos recém-ferrados dos cavalos estalavam. Em cada grota, 
agora, murmurava um filete d’água. Na baixada, a névoa quase encobria os buritis que 
retremiam na manhã os penachos de um verdor severo. Carvalho sabia que estava 
enfrentando perigo. Grota era uma fortaleza cheia de homens valentes, violentos e 
acostumados a dobrar as autoridades que até ali tinham ido com incumbência de apurar 
fatos. 
 O soldado Carajá contara a Carvalho. Carajá tinha esse apelido por descender 
dessa tribo indígena. Seu trabalho era vigiar a Grota. com seu faro de animal do mato, 
com sua sutileza de andar, com sua capacidade de ocultar-se e confundir com paus e 
pedras, desde há muito Carajá vivia pombeando a Grota. Certa vez !
85 
chegou a entrar dentro do curral da fazenda e espiar os cômodos. Viu muita arma, 
cunhetes e cunhetes de balas, muita gente pelo engenho e oficina de farinha, muitanegra 
lidando na cozinha. Vira o velho Coronel Pedro Melo com sua barbaça branca trançando 
uns laços de cabresto. 
 Uns cavalos deram o alarma. Pegaram a bufar, a correr pelo curral, relinchando e 
escavando o chão, como fazem quando pressentem onça. Em dois pulos Carajá ganhou 
um vale e, cachorros pegaram a latir e farejar seu rastro, já estava longe no alto da serra, 
de onde ainda avistou gente batendo os arredores do sítio. 
 Por isso, Carvalho sabia que corria perigo. Não se enganava, nem Carajá o 
enganara. A prova estava ali. De um lado e de outro da estrada viam-se trincheiras 
abertas, por onde surgiam cabeças de homens e canos de carabina. O sol nascendo fez 
brilhar alguma coisa no viso da serra. Era um cano de Comblain, daquelas espingardas 
brunidas que Pedro Melo possuía. Por trás da Comblain alguma coisa alvacenta de 
agitava. 
 — Olha lá a barba do velho — disse Severo. 
 As trincheiras e tocaias principiavam desde um quarto de légua da vila, desde o 
cruzeiro das almas. 
 — Cachorrada! — xingou Severo. — É uma afronta! 
 Desciam a serra, entravam no aclive que levava à fazenda. Severo disse para o 
ar: 
 — Com jeito que o pessoal foi pego de surpresa, com todo aparato de defesa... 
Alferes Severo queria com isso fazer crer que aquela história de que havia espiões no 
meio da polícia era apenas maledicência. Carvalho, porém, acreditava na existência de 
espiões de Artur e por isso respondeu prontamente: — Penso o contrário. 
Justamente o contrário. Parece que estão de sobreaviso, exibindo o poderio... 
 Nesse momento, os animais transpunham as grotas do declive que levava à 
fazenda, o Cabo abria a porteira do curral. Pelas portas e janelas aparecia gente que a 
seguir desaparecia. Dezenas de cachorros avançavam latindo: 
 — Passa, cachorro. Sai, bocanegra! — Pessoas que saíam à porta da casa para 
receber os chegantes enxotavam os cães. Artur Melo em pessoa e outros receberam o 
juiz e seu séquito, introduziram na sala e seguiram-se as apresentações. !
86 
 — Aqui, meu genro, Doutor Herculano Lima, médico, formado pela Faculdade 
do Salvador; este é o rico proprietário Joaquim Alves Leandro. 
 Carvalho também se apresentou e aos demais, assentando-se todos pelos bancos 
e tamboretes. A seguir, levantando-se, o juiz se dirigiu a Artur Melo, dizendo que ali 
estavam para proceder a busca e apreensão do processo de inventário que Artur 
subtraíra ao Cartório. 
 Ante o inesperado, Artur amarelou, mas logo protestou: — Não aceito a intimação... 
O processo corre irregularmente... Nós estamos cerceados em nosso direito de defesa 
e... e... e o processo não está em meu poder. — Alinhava tantos argumentos que o juiz 
notou que Artur escondia a verdade, que procurava naquela abundância de argumentos 
antes convencer a si do que ao interlocutor. 
 Também pálido, Carvalho constatava: — Não havia no processo qualquer 
irregularidade; as citações, as notificações tinham sido feitas com observância da lei; os 
Melos não se defendiam porque não queriam. 
 — Nós, nós... — Uma breve altercação se estabeleceu. Mais gente surgiu de 
dentro da casa. Carvalho terminou por dominar a situação, afirmando teatralmente, com 
sua maneira categoria de falar: 
 — Estou aqui para apurar a verdade dos fatos. No cumprimento do meu dever, 
enfrento até a morte! O senhor me franqueie seus cômodos para busca do processo. 
 Artur Melo baqueou. Percebeu que Carvalho ali estava para o que desse e viesse. 
Como diziam, Carvalho tinha coragem e não temia a luta. Quem é que tinha topete para 
dar busca na Grota, ainda mais sozinho! Artur percebia que o juiz não estava ali para 
cumprir um dever funcional. Ele podia ter cometido a diligência ao oficial de justiça. 
Carvalho ali estava, principalmente, para mostrar a Artur e a seu povo que não temia 
ninguém e que no cumprimento do dever enfrentaria até o diabo. 
 Artur vacilava. Sabia que a força de Carvalho era pequena para enfrentar a Grota, 
mas, que diabo! Se se atrevia a vir até ali, deveria contar com alguma garantia! Não 
estaria Artur enganado sobre o efetivo da tropa do Duro? Não estava enganado. O que 
podia haver era que o juiz esperasse tropas de reforço da Capital... Mas também isso não 
era verdade. Emílio Póvoa, Senador Gon- !
87 !!
zaga Jaime não avisaram nada... Artur vacilava. Inteligente e sagaz, sabia recuar quando 
nisso havia conveniência. Por isso, mudou de tom: 
 — Embora reconheça as nulidades do inquérito, Senhor juiz como chefe político, 
como ex-deputado, respeito as leis eas autoridades constituídas. Compreendo e respeito 
sua missão e sua função de juiz. 
 Respondeu-lhe prontamente Carvalho, no mesmo tom de quem rasgasse seda, 
mas com energia: — Confiado nisso foi que vim aqui, Senhor Deputado. Fiz ouvido 
mouco a todas as notícias correntes sobre sua fazenda. Vim à Grota porque confiava nos 
senhores. Os senhores não podem ser uns chefes de jagunços. 
 Na sala entrou o Coronel Pedro Melo e com ele uma certa inquietação. Era pouco 
mais alto do que o filho, enxuto de carnes, mas robusto, com uma vasta barba branca que 
lhe vinha até o peito. Estava meio magro. A úlcera do estômago voltara a roer-lhes os 
bofes. Foi com muita dificuldade que a filha Anastácia e o 
Genro Tozão o demoveram de entrar na sala armado com a Comblain, como viera da 
trincheira. Contudo, ainda veio de esporas, da cabeça aos pés, o chapéu de couro na 
cabeça e a taca pendente da munheca... Chegou, postou-se entre o filho e o juiz, 
dizendo entre resfôlegos: 
 —Doutor Carvalho... pela fisionomia vejo... tratar-se de homem de caráter... e 
animado... — Em seguida, como o filho lhe dirigisse determinado olhar, o velho afastou-se 
e assentou-se num tamborete forrado de couro de jaguatirica. De pé, Artun afirmava de 
maneira decisiva que não possuía o inventário. Os autos 
estavam na posse da viúva, Dona Rita Chapadense. 
 — Se é assim... —Carvalho fez um gesto, como a dizer que ia tomar outra 
deliberação, mas Artur o atalhou: 
 — Contudo, para demonstrar minha atenção ao Meretíssimo Juiz, para 
testemunhar-lhe meu desejo de cooperação, vou mandar buscar o processo. 
 Carvalho não se deixou enlear pela lisonja. Pedia a Artur lhe dissesse em quanto 
tempo se comprometia a entregar os autos. 
 — Daqui a duas horas. — Assim dizendo, o Melo corria os olhos pela sala. Nas 
portas e janelas amontoavam-se homens. Dezenas e dezenas de sertanejos mulatos, 
negros, louros, foscos, vestidos !
88 !!
de algodão tecido em casa, pé no chão ou de alpercatas, chapéu de couro na cabeça, 
armados de rifle, ou simples garrucha e punhal. Artur dirigiu-se a um deles, trocou 
algumas palavras e o bicho saiu, tomou de um cavalo, bateu a porteira. Artur voltou a 
ocupar o assento, o juiz dirigiu-lhe a palavra e a palestra pegou a animar-se, pegou a ficar 
mais viva, num tom cordial de visita. 
 — Por que é que você não deixa o terreno das armas e da violência, Coronel 
Artur? Você é advogado, parlamentar, jornalista, você sabe que a violência e a truculência 
não levam a bom termo. 
 — Mas nós não podemos confiar no governo! — retrucou Artur. — Ele coloca os 
cargos públicos em mãos de nossos adversários, para nos perseguir... 
 — Entendo que não há essa intenção. Os funcionários são parentes seus, gente 
indicada por vocês mesmos. 
 — Sim senhor. Nos sentimentos sem garantia. Para defender minha vida, tenho 
que manter em armas mais de cem rapazes — fez um gesto no rumo das portas e janelas 
por onde os cabras já se agachavam, pitando e cuspindo. 
 — E é já que vamos ter pra mais de trezentos no coice da repetição, com a graça 
de minha mãe Maria Santíssima — disse de lá o velho Pedro, tocando o chapéu com a 
pontinha do dedo encardido. Carvalho os interrompeu com uma pergunta: 
 — Qual é o fato que mostra não ter o governo dado garantias aos senhores? 
 — Ih, são tantos, tantos! 
 — Cite apenas um, coronel — insistia Cavalho, mas Artur prosseguia: 
 — Sabemos de fonte limpa que o senhor, Seu Juiz, recebeu instruções do 
Desembargador JoãoAlves de Castro para nos perseguir. 
 Novamente a voz clara, de nítido acento piauiense, do velho Pedro Melo se 
ergueu: 
 — Nós sabemos de tudo. Ainda que a gente esteja coberto de razões, o senhor vai 
querer meter a gente na cadeia... Rá! Nós sabemos de tudo. Nós não somos bestas não... 
 Carvalho formalizou-se: 
 — Coronel, se não compreendesse que a paixão o está cegando, eu repelia suas 
palavras como insultosas à minha toga! — Havia !
89 
tragédia na voz de Carvalho. Os Melos, também eles metidos a cavalheiros, a inflexíveis, 
também os Melos se impressionaram com a teatralidade do juiz, que afirmava 
dogmaticamente. 
 — Saibam que sou um juiz. Estou aqui não para perseguir ou fazer injustiça. Aqui 
estou para apurar a verdade. Se apurar que o Desembargador João Alves errou, podem 
estar certos, ou o condenarei. —Fez-se uma pequena pausa. 
—Posso ser castigado mas condenarei. 
 As palavras de Carvalho eram ditas com tal firmeza, com tal solenidade, que 
comoveram os homens. Carvalho completou: 
 — Já disse e meus atos são o penhor; no cumprimento do meu dever enfrento a 
própria morte. E enfrento sorrindo, satisfeito! 
 O silêncio caiu. Ninguém falava. Carvalho sentiu que a seuspróprios ouvidos as 
palavras soavam bem. Ele mesmo estava emocionado com as próprias palavras. Alferes 
Severo tinha cada olho do tamanho de uma laranja, a boca muito aberta. Nunca vira um 
juiz tão furioso, tão grandioso na sua ira. Carvalho sentiu que caíra do goto daquela gente 
que gostava desse negócio de “palavra de honra”, ”dever cumprido”, ”enfrentar a própria 
morte’ “derramar sangue”. Carvalho também gostava disso. 
 A cada instante Artur Melo se convencia de que Carvalho ali estava porque assim 
achava que devera proceder. Estava ali por coragem, estava ali por deferência a eles 
Melos. Tanto era assim que não mandou o oficial de justiça. Veio em pessoa. Era uma 
honra, por sem dúvida. Então não saberia o juiz que a Grota era uma fortaleza, com mais 
gente e mais armas do que o destacamento 
policial do Duro? 
 Por trás de tudo havia alguma coisa que Artur não entendia. Novamente voltava a 
tomar corpo a idéia de um acordo. De há muito vinha teimando com o pai que melhor 
seria fazer um acordo com Carvalho, pois aquele juiz não era graça não. Agora, naquele 
momento, isto lhe voltava à cabeça. A luta estava saindo cara. Havia já meses que 
mantinham homens em armas, sem nada produzirem. Os sítios estavam parados, os 
vaqueiros e camaradas fugiam diariamente, alguns até levando reses. Não produziam 
rapadura, nem açúcar, nem farinha, nem coisa alguma. Nem roça viam plantado. Estavam 
comprando mantimento, numa região em que ninguém produzia o bastante para vender. 
Era gasto e mais gasto com arma de fogo, munição, mantimento! !
90 
 Para agravar, na Grota eles estavam praticamente prisioneiros. A polícia 
mantinha, no diário, piquetes pelos arredores, impedindo a saída e a entrada de gente e 
de coisas. Por mais de uma vez tinha havido escaramuças de parte a parte. Se Artur Melo 
quisesse recuar para a fronteira da Bahia, para entrar em contato com os boiadeiros 
amigos e com os amigos baianos, a polícia não permitia. A polícia podia não tomar a 
Grota, mas quem podia garantir que o diabo do Carvalho já não houvesse solicitado e 
exigido reforços de Goiás? 
 Como vinha matutando desde muito, Artur caçava um jeito de entrar em acordo 
com Carvalho. Diria que estava de pé a proposta feita pelo Doutor Leite Ribeiro. Aceitava 
dispersar os cabras e uma vez dispersos, comparecer a juízo para defender-se. Alegaria 
que o assalto ao Cartório fora promovido pelos Chapadenses. A condição era que o juiz 
impronunciasse a ele, ao pai e ao compadre João Rocha. 
 De seu lugar Artur nem ouvia o que dizia o juiz, absorvido em suas cogitações. É 
que havia uma particularidade que o juiz não saberia jamais. 
Embora prometesse a Carvalho dispersar os rapazes, Artur não os dispersaria. Ai, é que 
estava busílis. Levaria os cabras para o Açude, fazenda situada mais para a fronteira da 
Bahia, onde teria liberdade de movimento, onde poderia entrar em contato com os amigos 
de Barreiras, onde teria tempo de prevenir-se em caso de um ataque da polícia. 
 Os planos de Artur estavam bem delineados: enviava os rapazes para o Açude e 
apresentava-se a juízo. Se Carvalho não cumprisse o trato, se Carvalho o pronunciasse 
ou prendesse os cabras atacariam a vila. Seu plano era esse e era um plano sem 
merma. Naquele momento Artur se resolveu. Tinha que 
Propô-lo a Carvalho e tinha que executá-loantes que pudesse chegar reforços para o juiz. !
NO SEU ENFÁTICO linguajar de arrazoado, Carvalho pontificava: 
-- Ademais, cumpre ponderar que o Doutor João Alves de Castronão é homem desse 
feitio. Antes de presidente, é um magistrado, um homem para quem o direito está com 
quem o tem. Seria incapaz de me transmitir ordens de per seguição, não somente porque 
não é de seu estofo normal, mas também porque sabe que jus- !
91 
!
!
tiça de seu Estado não se presta a oprimir e esbulhar. Eu aconselharia a Vossa Senhoria que que 
se defendessem, que fizessem as provas que lhes são garantidas, para o próprio bem da justiça. 
 O velho Coronel Pedro Melo, que até ali tudo ouvia em silêncio, sem compreender quese 
nada, levantou-se de seu tamburete. O vulto grosseiro, ossudo, com a grande banha branca, a 
roupa de couro de catingueiro, a cabeleira desgrenhada e maltratada, seus gesos estabanados, 
era simplesmente impressionante. Caminhou para o escrivão Chaves. A figura jovem do escrivão, 
seu ar sério, seu semblante acolhedor parece que comoveram o velho, que estendeu a pesada 
mão calejada e encarquihada pelos anos, pousando-a no ombro do rapaz: 
 -- Moço, mecê é nosso conterrâneo, olhe pela nossa causa. 
 Era tão ingênuo o pedido do velho, que o moço sentiu-se atrapalhado. Que é que podia 
fazer o pobre escrivão pelo todo-poderoso Melo? A ele é que cabia defender-se, comparecer a 
juízo, constituir advogado, arrolar testemunhas. O jovem sorriu! 
 -- Nada depende mim, coronel. Sou uma máquina. O senhor deve ter confiança nas 
autoridades, no governo. 
 Mas por baixo da barbaça, quem ria era o velho Coronel PedroMelo. Ria da hipocrisia do 
escrivão. Ou seria ingenuidade dele? Confiar em autoridades, ele que sempre as manipulou a seu 
gosdo! Ele que sempre usou do poder da autoridadepara oprimir, para extorquir dinheiro e bens, 
para esmagar consciências, para empedernir no jaguncismo homens simples como Resto-de-
Onça ou Mulato! Pedro Melo ria, pensando como confiar em juiz, se todos eles eram Hermínio 
Lobato. O velho abraçou o escrivão, esfregou nele a barbaça branca. 
 -- Vosmicê é tão novinho, meu conterrâneo! 
 -- Vocês aceitam cerveja? Senhor juiz, aceita? – perguntava risonho o Doutor Herculano 
Lima. 
 -- Como não! Uma cervejinha fresca nunca faz mal a ninguém – chalaceou Carvalho. 
 -- Traga, doutor. Pode mandar trazer – disse Artur ao genro que dentro em pouco voltava 
acompanhado de um homem com as garrafas. Uma pretinha nova, os olhos limpos e muito 
abertos,no corpo uma camisa de algodão grosseiro espetada pelos peitinhos, trazia pesados 
copos de vidro numa salva de prata cheia de arabescos, ramos e gravações. !
92	
!
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!
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!
!
A bebida espumou transbordante nos copos. A conversa tomou um calor cordial. Doutor 
Herculano dizia que conhecia o Espírito Santo. Quando estudante de medicina no 
Salvador fora numa caravana esportiva. Doutor Herculano era um homem bonito, fino de 
trato, a barbicha curta repartida ao meio. Era médico e deveria brevemente ir para 
Barreiras, onde montaria consultório. Aliás, dessa cidade era seu pai e a família toda, 
gente rica e culta, ligada aos Melos pelo comércio. 
 Carvalho chupitava a cerveja e pensava. Pelo que via, Grota era uma fortaleza e os 
Melos uma gente danada. Até aquele momento Carvalho não acreditava em que o 
pessoal dos Melos fosse mais numeroso e melhor armado do que a polícia, mas agora 
não tinha dúvida. Suicídio um ataque à Grota. Além demenos numerosos, os soldados 
eram homens fracos, de moral abatida, armados de Comblains estragadas, com munição 
velha e imprestável na sua maior parte. E os oficiais? Eram os piores. Viviam brigando 
entre si, cada qual disposto a trair e infelicitar o companheiro, na disputa das promoções e 
das vantagens, homens medrosos por lhes faltar conhecimento do papel de policial; 
covardes por só confiarem na superioridade que lhes dava a arma na cintura; venais por 
saberem que os donos das funções públicas, os políticos, não se interessavam por ordem 
ou por justiça, se não por Melos capazes de resguardar maior ou menor número de votos. 
 Carvalho tomava ali a deliberação de não sair sem ter feito um acordo, na base da 
proposta Leite Ribeiro. O que Carvalho não podia admitir era um fracasso de sua missão. 
Estava ficando velho, precisava tirar o pé da miséria. Não podia perder a confiança de 
João Alves de Castro. Se vencesse, talvez até conseguisse eleger-se deputado federal, ir 
para o Rio de Janeiro, rever os parentes, os amigos do Espírito Santo. No momento, 
olhando a espuma que subia, subia e começava a transbordar o copo, Carvalho estudava 
um caminho para aproximar-se desses sagazes, esquives sertanejos que repudiavam a 
aproximação. 
 — Meritíssimo, o senhor gosta de cavalos? 
 Carvalho levantou os olhos da espuma do copo e viu diante de si o vulto de Artur 
Melo. A barba curta alourada, os olhos pardos e vivíssimos, o nariz de gente sagaz. De tal 
maneira estava Carvalho entretido com seus pensamentos, que ficou sem compreender: !
93 
 — Cavalos? 
 Antes de qualquer outra resposta, Artur já o levava pelo braço por um quarto 
lateral, cuja porta cerrou discretamente, e chegando a uma janela aberta sobre o curral, 
mostrou um belo cavalo arreado, na sombra de um telheiro. Animal belíssimo, de fato Mas 
Artur nada falava sobre cavalos. com olhos brilhantes perguntava: 
 — O senhor quer saber porque eu não deixo o terreno das armas? — Olhou 
fixamente no mais profundo dos olhos de Carvalho e prosseguiu: — Posso deixar esse 
terreno, mas em troca dele que é que o senhor me oferece? 
 O juiz sentiu que o coração parou de bater, para depois socar com uma força 
descomunal cá na goela, nas têmporas; sentiu os músculos vibrarem como se ouvisse a 
confissão de um imenso amor, de um amor há muito acalentado e vivido e sofrido e 
sonhado. Sorveu novo gole, mostrou uma calma longe de possuir, respondeu: 
 — Muito fácil. Disperse seus homens, compareça a juízo... Ponha em execução o 
plano do Doutor Leite Ribeiro... Não se lembra dele? — Displicentemente levou o copo 
novamente aos lábios para um sorvo longo, mais longo ainda porque sentia que talvez a 
cerveja derramasse, se desapoiasse o copo dos lábios, tão forte era o tremor da mão. 
”Estaria pálido? Haveria em seu rosto uma tensão denunciadora da emoção que lhe ia na 
alma? Ai, mestre Otacílio. Do meu comportamento agora depende o futuro. Minha esposa 
com suas carnes ainda belas e eu aqui suportando a solidão! Um dia que se passa, é 
uma dia que não volta, na vida.” 
 — Como não. Estou lembrado. Eu disperso os cabras, compareco a juízo e você... 
Você que fará, Senhor Juiz? 
 — Que farei eu? — repetiu Carvalho para ordenar a emoção, para conter o 
baticum das têmporas, para controlar o raciocínio que sentia fugir. 
 — Pois é. Disperso meus rapazes, compareço perante o juiz... Que fará você, o 
juiz, em troca de tudo isso? — A indagação de Artur era também ansiosa. Os olhos pardos 
esvurmavam o semblante do juiz. Os traços fisionômicos contraíam-se em expectação. 
 Carvalho pousou o copo na janela para disfarçar o tremor das mãos e falava 
pausadamente, como um idiota. Soltava uma palavra que era como um balão de ensaio; 
solta a palavra, perscruta- !
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va as reações que ela provocava nas feições sensíveis de Artur Melo, estudando, 
analisando os sinais denunciàdores de alegria, tristeza, ou decepção, para depois 
prosseguir na frase, até completar o pensamento: — tudo farei para... aceitar... sua 
inocência... — A fisionomia de Artur denunciava calma, satisfação. O juiz continuou: — 
Garanto que... — Carvalho levou o copo aos lábios, sorveu um gole. 
 De lá veio a voz aflita de Artur: — Impronunciará a mim, meu pai e o compadre 
João Rocha... 
 — Sim — disse Carvalho correndo a língua pela escuma dos lábios: — 
impronunciarei a você, a seu pai e João Rocha, desde que... 
 —.. os meus rapazes sejam dispersos... — completou de lá Artur Melo. O juiz 
balançou a cabeça lentamente e rosnou: 
 — Isso mesmo. Desde que seus homens sejam dispersos. — Botou nesta 
afirmativa o máximo de ênfase, um tom de resolução inabalável. 
 — Veja lá o que diz, Senhor Juiz! 
 — Palavra de honra! — afirmou Carvalho como se representasse um dramalhão no 
teatrinho de Colatina, enquanto estendia a mão num gesto de lealdade. 
 — Palavra de homem! — repetiu Artur Melo com solenidade, domando a mão do 
juiz. Os olhos de Artur encheram-se d’água subitamente, enquanto as mãos dos dois 
homens se enlaçaram num aperto seco, tal o resultado de um tique nervoso, de uma 
contração muscular. As mãos estavam pegajosas, úmidas de um suor grosso e 
escorregadio. E ambos os homens retiraram a mão, tentando ocultar a emoção que havia 
gerado aquele suor. A porta do quarto rangeu. Dela veio uma voz: 
 — O processo está aí, Seu Coronel Artur! 
 Artur fez um sinal para quem falou e juntamente com o juiz começaram a se dirigir 
para a sala de onde tinham vindo. Carvalho repetia. 
 — Primeiro, dispersar os seus homens. Se não os dispersar, prenderei você, seu 
pai ou João Richa na primeira oportunidade. Estejam onde estiverem. 
 Na sala, a prosa ia animada, com Severo contando casos para !
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um lado, o escrivão palestrando com o velho. Ali chegando, Artur entregou a Carvalho o 
processo de inventário, determinando o juiz ao escrivão que lavrasse o auto. 
 Logo depois a comitiva se despedia, montando os animais. Numa como 
homenagem, Doutor Herculano Lima e Joaquim Leandro montaram também seus animais 
e acompanharam a comitiva até a ladeira de entrada da Grota, quando então retomaram. 
 Na volta, não se viam mais homens na tocaia. O sol do meiodia, claro e rutilante, 
tirava faíscas nas pedras e nas folhas reverdecidas, envolvendo tudo numa atmosfera de 
caldeira: quente, úmido. Os grilos trilavam, saltando do capim alto à medida que os 
cavalos suarentos e soprosos avançavam. Nuvens pesadas formavam-se ao norte, 
crescendo sempre, prometendo aguaceiro para breve. As paisagens desdobravam-se de 
uma beleza impossível. Vastos chapadões que se estendiam a modo de escadaria 
gigantesca, descendo para as bandas do sudoeste, para os lados de Goiás. Longe, as 
serras azulavam contomos, muito longe, a perder de vista. Ao veredas de buritis desciam 
por entre capões de mato, com as palmeiras agitando os cocares — um pelotão de 
guerreiros tapuios desfilando. 
 No chão areento de chapada aluviônica, o capim era glabro e duro, capim dos 
gerais que o gado comia apenas quando novo. 
 Um bando de papagaios passou gritando até perder-se além. Vinham de alguma 
roça de milho escondida no vale, onde ficavam as terras de cultura. 
 Súbito, a estrada sombreava, refrescando repentinamente. Era o vale coberto de 
mato. Por baixo dos paus-d’óleo, aroeiras, cedros e jatobás a estrada passava sombria e 
úmida. No fundo da mata, o pica-pau retinia seu bico, cutucando um toco. 
 A comitiva ia quieta. Só quem pairava era o Cabo Matias, contando ao escrivão 
Chaves episódios das lutas de Boa Vista. 
 — Apois, num é que o Cabo Protásio foi-se chegando na trincheira, foi-se 
chegando... Aí Joaquim Bala manobrou o rifle e meteu fogo. Protásio velho caiu em 
ribinha dos pés, tal e qual um jenipapo maduro, e o tiroteio freveu com a escuma... 
 A história era tão atraente, a fala de Matias tão saborosamente viva, que Carvalho 
e Alferes Severo esqueceram seus pensamentos e deixaram-se embalar pela narrativa do 
Cabo. Mas nesse instante, saltando o córrego, os animais se retemperaram na água fria!
96 
e galgaram o aclive oposto num chouto picado, entre gemidos. Aí Severo soltou a lingua: 
 — Parece que ficaram mais macios, num é, Seu Doutor? Carvalho se fez de 
desentendido: — Quem? Quem foi? Severo que vinha atrás do juiz, apertou as esporas 
no animal, desviou-se de uns ramos de lobeiras floridos de suas florzinhas apaixonadas 
que pendiam sobre a estrada, e emparelhou-se com Carvalho: 
 — Estou dizendo que é capaz, que os Melos agora peguem o trote... botar 
advogado, arrolar testemunhas... 
 Carvalho não respondeu logo. Os olhos duros perdidos nos longes, nas nuvens 
grossas que se erguiam: 
 — Vamos ver... Talvez tenham suas razões... Nunca se sabe perfeitamente o que 
um homem vai fazer... 
 No céu, as nuvens caminhavam. Grandes nuvens prenunciadoras de aguaceiro. 
Das dobras do chão, de entre tufos do barnburral, surgiram as primeiras casinholas do 
povoado. Nas portas, nas janelas, apontavam caras espantadas, admiradas de ver o juiz 
chegar assim das bandas da Grota. 
 — Bem que eu dizia que o juiz não estava dormindo! — exclamava Mendes de 
Assis, com ar desapontado e desenxabido. — Eu bem dizia que o Alexandre estava com 
indaca... — Mendes de Assis ria sem graça. Por dentro, remoía-se. ”Carvalho confiara 
mais em Severo do que nele, que era o comandante do destacamento. Ali havia dente-de-
coeiho! Bem que já estava desconfiado desse juiz. Será que Carvalho ia tirá-lo do 
comando e colocar o Alferes Severo? Isso não podia ser. Ele era oficial de maior 
graduação. No fundo do peito, Tenente Mendes de Assis sentia como um espinho dando 
cutucões. !
— COM ESSE JUIZ os Melos vão fumar um fumo forte! — exclavama Moisés. — Faça 
idéia: ele mais o escrivão e um alferes entrar na Grota e trazer de lá o inventário! É 
preciso ser macho! — Depois da reprimenda, Moisés passara a ter a cautela de só dizer 
coisas favoráveis ao juiz. 
 — Agora esses Melos estão topando pela frente um juiz de verdade. Esse daí não 
é nenhum Hermínio Lobato. Quero ver Resto-de-Onça derrubar garrucha no pé dele! — 
Isso dizia Vicente !
97 !
Lemes sentado no bancão da varanda de Dona Benedita, repletíssima de gente, 
cada qual mais entusiasmado com as façanhas do Juiz Carvalho. 
Até dona Benedita, de seu natural comedida e ponderada, inflamou-se: 
— Deus é pai. Deus tarda mas num falta... 
Servindo o café, Maria Pequena também se sentiu no dever de meter sua colher de 
pau: 
— Num vê que o doutor Carvalho trouxe uma capetinha fêmea na garrafa! — O 
capeta-macho que o velho Melo conservava na garrafa, agora estava querendo unir-se à 
capetinha-fêmea do juiz. E para conseguir isso, só fazia aquilo que o Juiz Carvalho 
desejasse. 
— Eu sei — dizia a anã, erguendo as sobrancelhas grossas, — eu sei. O capeta do 
coronel está de cabeça inchada pela bichinha do juiz! 
— E ninguém como a senhora para entender disso, hem, Dona Maria! Tem larga 
experiência com a sobrinha... — pilheriou Júlio de Aquino, por trás das lentes fortes de 
seus óculos de míope. O varandão inteiro estrondou uma gargalhada, percebendo a 
alusão de Júlio. 
Quem não estava achando muita graça na prosa era o velho Valério Ferreira. Os 
louvores rasgados ao Juiz Carvalho o deixavam meio irritado. Não pelos louvores. Os 
atos do Doutor Carvalho, até o momento pelo que se via, eram atos de homem honesto, 
direito, corajoso; mas Valério teimava em aferrar-se numa eterna desconfiança para com 
as autoridades. com o tempo, o juiz arregaçaria as manguinhas. 
Na sua exaltação, Vicente Lemes continuava: 
— Esse juiz não é o Doutor Hermínio não, minha gente! 
— É cedo — gemeu Valério. — Não se sabe ao certo o que se passou na Grota... 
A ponderação foi como falar em corda na casa de enforcado: provocou um silêncio 
constrangedor, até que Vicente protestou: 
— Ora, não se sabe o que se passou na Grota! Isso, isso... isso é uma... — Vicente 
não atinava com a expressão adequada. — Isso é uma safadeza! 
— Safadeza, não. Vamos devagar. Vocês parece que não ouvem os comentários, 
não vêem as coisas! !
98 
Vicente pulava de raiva: — São uns bandidos! Quem fala de Carvalho é porque é 
gente de Artur. Você, Ferreira, não pode estar repetindo essas infâmias. Temos obrigação 
moral de dar mão forte ao Juiz Carvalho. 
Valério Ferreira erguia os ombros magros, tossia: 
— Não sei, não sei. Nem sou eu que ando batendo caixa por aí. Andam 
murmurando que Carvalho foi à Grota negociar um acordo... 
— Que acordo? Eu não quero um acordo dessa marca nem desgraçado, — gritava 
Vicente entre largos e abundantes gestos. 
— Dizem que correu cerveja. O juiz foi recebido com pato assado... 
Vicente nem procurava mais defender o Juiz Carvalho; fungava, chupitando seu 
cigarrinho de palha, uma raiva danada da impertinência do Valério. Vontade até de 
mandar um trem na cara dele. 
Valério prosseguia: 
— Para apreender um documento é lá preciso que o juiz vá em pessoa? Por cima, 
tanto mistério, um segredo de quem está praticando malfeito... Nem o comandante do 
destacamento ficou sabendo de nada! 
— E você queria que o Juiz Carvalho mandasse avisar aos Melos que iria lá buscar 
o processo? Queria que avisasse ao povo do Duro para que os espiões de Artur o 
alertassem, não é assim? Tem muita graça! 
O boato lavrava, mas Carvalho prosseguia na sua missão com uma inflexibilidade de 
herói de romance, uma inexorabilidade de força da natureza, rompendo obstáculos, 
transpondo barreiras. 
Encerrava-se o inquérito. Imediatamente o juiz abria vistas à Promotoria que, antes 
de esgotado o prazo, oferecia denúncia contra os implicados no assalto do Cartório. 
Com pouco a notícia corria a vila, provocando maiores e mais ribombantes aplausos 
dos inimigos dos Melos. Eram denunciados Artur Melo e o pai, Coronel Pedro 
Albuquerque Melo; João Rocha, Hugo Melo, filho de Tozão; Olímpio Chapadense e 
outros. 
— Falou, machado! — exultava Vicente no varandão. — Vamos ver, Ferreira, que é 
que você inventa de dizer ainda. 
Moisés, porém, entrava correndo com notícia fresca: oficial de !
99 !!
justiça fora para a Grota notificar da denúncia os indiciados que lá se encontravam. 
Vicente Lemes mal se continha, de alegria. Aquele juiz estava lhe enchendo as 
medidas. Torrencialmente, incongruentemente, dizia: 
— Quero só ver a cara desse tal Ferreira! Eu nunca me enganei. Desde a primeira 
vez que vi Carvalho, pensei comigo: está aí um homem macho... — Nisso, deteve-se e se 
dirigiu a Ferreira: — Que que é? Que que é? Ferreira, vem ouvir a última, Ferreira! — E 
aos berros, contou ao velho juiz municipal: — O pessoal da Grota já está fugindo, 
Ferreira! 
Da ponta do banco em que estava, o velho nem lhe respondeu. Sabia que em tais 
momentos de exaltação não há argumento que convença. Fechou a carranca e fez com a 
mão espalmada um gesto que significava: — Espere! 
Vicente admirava-se. Sim, senhor! O vice-rei do Norte, o tuntuqueba Artur Melo ia 
fugindo, ia dispersando a jagunçama. A notícia era tão extraordinária que Vicente 
principiou a perder a graça, começou a ponderar as palavras do velho Valério Ferreira. 
Aquilo já estava passando. Seria possível que os Melos abandonassem a luta assim tão 
de repente! Não teria algum fundamento aquela história de um acordo entre o juiz e os 
Melos? Sei lá! Esse Valério Ferreira era uma boca excomungada! 
TÁ FICANDO dôidio não, menino! — bradava o velho Melo ao filho Artur, no mais 
puro sotaque piauiense. Quando ficava enfezado, repontava o vaqueiro rude, a linguagem 
mudava: 
— Tu tá ficando dôidio! 
Logo que Carvalho deixou a Grota, Artur disse ao pai que o juiz não recuaria. Seria 
melhor que comparecessem a juízo e se defendessem. Do contrário o processo correria à 
revelia e eles seriam condenados. 
— Dôidio, menino! 
Artur prosseguiu: — Olha, meu pai, eu conversei com o Juiz Carvalho. Fizemos um 
trato. Prometi dispersar meus rapazes e apresentar-me, com o senhor e João Rocha, 
para nos defender. Nossa defesa será do jeito que o Doutor Leite Ribeiro estabeleceu. 
Vamos dizer que acompanhamos o grupo chefiados por CalixtoCha- !
100 
padense, a fim de evitar que Valério e Vicente sofressem males maiores. O senhor 
está compreendendo? 
Pedro Melo tinha grande confiança, amor e admiração pelo filho. O que Artur fizesse 
estava bem feito, mas ali, antes de porem em prática o tal acordo com o juiz, o velho 
queria examinar as conveniências. Perguntou: 
— E o juiz? Que foi que esse tal de Carvalho prometeu? 
— Pois é. Aí Carvalho impronuncia a mim, ao senhor, a João Rocha. A culpa fica 
tudo na cacunda de Calixto Chapadense e sua gente. Mas eles já andam foragidos 
mesmo, pouco altera... Depois nós livramos eles... 
O velho ficou quieto muito tempo, enrolando o cigarrão de palha, acendendo-o no 
artifício. A seguir, tirou a primeira tragada abundante, soprou a fumaça cheirosa na própria 
brasa do cigarro e balançou a cabeça de cabelo saranhado: 
— Tu prometeu dispersar os rapazes? Tu prometeu ficar desguarnecido! 
— Sim senhor. Eu prometi dispersar os rapazes, mas não vou cumprir isso não — 
explicou Artur. — Sou lá algum besta para mandar meus rapazes embora! É baixo! vou é 
mandar eles para o Açude. Ali o juiz vai pensar que eles foram dispersados... 
A cara do velho, no pouco que se podia ver entremeio a barbaça e a cabeleira, 
abriu-se num sorriso meloso, ingênuo, ao mesmo tempo que envolvia o filho no mais 
terno olhar de admiração. Ele gostava das manhas de Artur, era um ponto que sentia de 
alto valor no caráter do filho. Ele, Pedro, não sabia fingir, não sabia fazer uma treta como 
aquela. Todavia ainda tinha restrições acerca do tal acordo. 
— E tu vai se apresentar na frente desse juiz? 
Artur não respondeu imediatamente. Estava aí uma coisa sobre a qual não se 
definira totalmente. Por um momento analisou as conseqüências dessa apresentação e 
achando que dela só poderia advir vantagens, respondeu: 
— Sim, vamos nos apresentar e vamos nos defender. Pedro Melo tirava outras 
densas baforadas, esmigalhando o morrão do cigarro contra a unha do polegar, grossa e 
encardida. A fisionomia perdida no matagal da barba estava parada e morta, numa 
neutralidade idiota. De repente, soltou o refrão: 
— Tu tá dôidio. Nós temos cabras bastantes para derrotar esse !
101 
juizinho de merda, meu filho. Tu não vê que o excomungado veio cá! Ele veio pedir 
menagem. Quem procura é porque está querendo topar. — O velho balançava a cabeça, 
sacudia a barbaça, agitava a cabeleira saranhada que não via pente desde muito tempo: 
— Vamo botar esse juizinho de merda pra correr. 
— Isso é que não resolve, — acudiu o Doutor Herculano. — Será pior. Mesmo que 
matemos todos os soldados, outros virão. Isso é loucura. 
O velho estava pegando a ficar irado. Olhava longamente o médico bem trajado no 
seu costume de linho branco, a barbicha bem aparada e até perfumada, as rnãos finas. 
Dava uma cusparada ali para cima de um onceiro que dormitava no canto e soltava um 
palavrão: 
— Vocês são uns covardes! 
Ninguém não dava ouvidos, mas ele prosseguia: 
— Até você, meu filho, até você se agachando para João Alves! Tchá. — Soltava 
outra cusparada para ali. — Olha ninguém num sai daqui para ir aonde está esse juiz não! 
— O velho esbravejava furioso, batendo o pé no chão, dispersando em gestos a ira que 
alagava a alma. — Então Artur não estava vendo que o inquérito era um mundéu? É só tu 
botar o pé no povoado e o juiz manda te prender ocê, manda me prender eu, mete todo 
mundo no tronco e remete nós pra Goiás, para as unhas de Totó Caiado! Tá todo mundo 
dôidio! 
O silêncio, um silêncio respeitosamente feudal, caiu em riba dos homens. Pedro era 
a suprema autoridade. Artur jamais se levantava contra sua vontade. Diante da aparente 
submissão, o velho recuperou em parte a serenidade, mas prosseguiu: 
— Artur, meu filho, tu não aprende! Nossa força é aqui, cuma a força de Totó Caiado 
é lá na Capital dele. Tu pode derrotar Totó mais Eugênio Jardim lá na Capital? Num pode 
não, meu filho! Pois é. Aqui também eles não são homem de derrotar nós. — Bateu a 
binga, bateu, ajeitou o fuzil, procurou uma quina mais viva da pedra, tomou a bater. 
Ofereceram-lhe um fósforo, empurrou para lá. Soprou a binga, tomou a soprar, acendeu o 
cigarrão, chupou novas baforadas, cuspinhou. 
Ao redor, sentados nos toscos bancos, em tomo da ampla mesa de jantar da 
varanda da Grota, Artur Melo, Doutor Hercula- !
102 
no Lima, Tozão e Joaquim Alves Leandro ouviam de cabeça baixa e trocavam 
olhares significativos. 
Soprando a fumaça, o velho arrematou: 
— É só chegar no povoado e o juiz te mete ocê no tronco, manda prá Goiás... Isso é 
mais certo do que existir Deus Nossinhor no céu. 
— O senhor tem toda a razão, meu pai, mas tem uma coisa. A lei não permite ao juiz 
prender assim sem mais nem menos. Os nossos códigos... — jeitosamente, Artur 
procurava convencer o velho, ou antes: convencer o velho com a sabedoria, com a 
citação de leis, de códigos, coisas que Pedro Melo não entendia direito e em cujo terreno 
se deixava guiar pela sapiência do filho. 
— Tchá! — o velho soltou a cusparada para cima do onceiro que dormia no canto da 
sala. Parte do cuspo grosso se esparramou na poeira fina do chão. Era sinal de 
tempestade: 
— Lei, código... Teve lei pra Vigilato? Teve lei pra Norato? Lei é prá quem está de 
riba. Pra quem está no chão é pau no vão das orelhas, home! 
Humildemente Artur voltava à carga, para dizer que a situação deles na Grota era 
insustentável. Eram a bem dizer uns prisioneiros, com uma despesa imensa para 
sustentar os cabras, com o serviço das fazendas paralisado. Não produziam rapadura, 
nem farinha, não estavam vendendo gado. Pelo contrário, os vaqueiros estavam fugindo, 
deixando os retiros ao leu, quando não roubavam o rebanho. 
— Se a gente quiser sair da Grota, Carvalho manda a polícia nos prender. E será 
que podemos resistir ao cerco? Será que temos mais gente do que Carvalho? Para o 
governo tanto faz ficar com os soldados aqui um dia ou um século: para nós é que a 
demora traz complicação. Será que Carvalho não está esperando mais soldados? Aí não 
vamos poder resistir! 
O Doutor Herculano interferia, mas o velho não dava ouvidos. Tinha muita 
consideração para com o marido de sua neta, respeitava-o muito, acatava seu saber, mas 
em matéria de luta, de coragem, isso ele não entendia de jeito nenhum. No fundo, achava 
que essa gente letrada eram uns pusilânimes, uns homens com jeito de mulher. Ora 
bolas, passar água-de-cheiro na barba! 
Talvez se João Rocha dissesse alguma coisa, ele atendia; mas compadre João 
Rocha tinha a mesma opinião do velho. Na sua !
103 
voz pausada, mastigada, de quem possuísse a língua desapregada, João Rocha 
pontificava: 
— Meu compadre Pedro Melo, o quê que a gente deve de fazer é arreunir os 
”meninos”. Por que que Artuzinho não vai atrás de Abílio Batata? 
Para Rocha, a razão estava com Batata. Era como Batata dizia. Arreunir os cabras, 
atacar a Capital de Goiás, tomar o governo e botar em riba desse governo o Doutor 
Artuzinho. 
— Se Artur quisesse era gritar que Batata vinha com mil homens acostumados com 
a fumaça. Não viram como foi em Pedro Afonso, em São Marcelo? Abílio Batata, Roberto 
Dorado, Abade tudo estava ali de grito, esperando um aceno do compadre Artur Melo. 
ARTUR resolveu manobrar, enfrentar outra solução. O pai não concordava mesmo 
em comparecer a juízo. Pelo trato, primeiro deveriam os Melos dispersar os homens em 
armas. Nessas condições nada impedia a Artur transferir seus cabras para a fazenda 
Açude. O juiz não ia saber dessa particularidade. Para ele, Artur estaria dispersando os 
jagunços. 
Açude era um ponto estratégico importante. Mais distante do Duro, mais na fronteira 
com a Bahia, ali ficariam livres da vigilância policial, teriam liberdade de movimentos para 
ligar-se com as demais fazendas, teriam maior capacidade de defesa, pois em caso de 
ataque, para ir do Duro ao Açude a força gastaria no mínimo dois dias. 
Para atacar o Açude, Carvalho teria que pedir reforços de Goiás, os quais 
demorariam a chegar. Nesse meio tempo Arturquando vinha à vila. 7 — Residência de 
Brasuca. 8 — Residência de Crispiniana. 9 — Residência de Coronel Pedro Melo. 10 — 
Oficina de Farinha do Coronel Pedro Melo. 11 — Residência de Tozão. 12 — Paiol e 
rancharia do Coronel Pedro Melo. 13 — Residência de Vicente Lemes, depois residência 
do Juiz Carvalho e por fim quartel do Alferes Severo da Veiga. 14 — Igreja. 15 — 
Residência da velha Josefina. 16 — Intendência Municipal. 17 — Residência do Pedreiro. 
18 — Residência de gente pobre. 19 — Residência de gente pobre. 20 — Residência de 
gente pobre. 21 — Residência de Chica Buena. 22 — Residência de Damião de Bastos, 
depois quartel do Alferes Xavier. 23 — Residência de Albininho. 24 — Residência da 
velha Chiquinha. 25 — Agência do Correio, Cartório e casa de audiências do Juiz. 26 — 
Tapera. 27 — Residência de João Francisco. 28 — Residência de Marianinha. 29 — 
Residência de Felipa. 30 — Residência de Argemiro Félix. 31 — Residência de Aleixo. 32 
— Residência de Felisrnino. 33 — Residência de Alexandre de Melo, depois quartel do 
Tenente Mendes de Assis. 34 — Residência de Agenor Cavalcante. 35 — Residência de 
Moisés Melo. 36 — Sobrado do Coronel Pedro Melo, servindo de mercado e cadeia, 
depois quartel do Alferes Enéias Peixoto, onde existia o velho tronco. 37 — Cemitério. 38 
— Residência de Maria Coxa. 39 — Residência de Seu Antônio. 40 — Residência de 
Maria Pequena. !
XVI 
EXPLICAÇÃO !!!!!!!
Tirantes os pormenores, os fatos centrais desta narrativa aconteceram realmente em 
Goiás. 
 Os personagens, entretanto, tendo tudo de comum com o tipo social que 
representam, são fictícios. O autor não quis retratar ninguém, nem copiou de nenhum 
modelo vivo ou já falecido. 
 Qualquer semelhança com pessoa viva ou morta é mera coincidência. !!!
 B.E. !!!!!!!!!!!!!!!
XVII 
!
!
!
!
O 
TRONCO 
!
!
!
!
!
!
!
!
O inventário 
!
UMA INDIGNAÇÃO, uma raiva cheia de desprezo crescia dentro do peito de Vicente 
Lemes à proporção que ia lendo os autos. Um homem rico como Clemente Chapadense e 
sua viúva apresentam no inventário tão-somente a casinha do povoado! Veja se tinha 
cabimento! E as duzentas e tantas cabeças de gado, gente? E os do sítios no município 
onde ficaram, onde ficaram? Ora bolas! Todo mundo sabia da existência desses trens que 
estavam sendo ocultados. 
 Ainda se fossem bens de pequeno valor, vá lá, que inventáno nunca arrola tudo. 
Tem muita coisa que fica por fora. Mas naquele caso, não. Eram dois sítios, duzentas e 
tantas reses, cuja existència andava no conhecimento dos habitantes da região. A vila 
inteira, embora ninguém nada dissesse claramente, estava de olhos abertos assuntando 
se tais bens entrariam ou não entrariam no inventário. 
 Lugar pequeno, ah, lugar pequeno, em que cada um vive vigiando o outro! 
Pela segunda vez Vicente Lemes lavrou o seu despacho, exigindo que o inventariante 
completasse o rol de bens, sob pena de a Coletoria Estadual o fazer. 
 Aí, como quem tira um peso da consciência, levantou-se do tamborete e chegou à 
janela que dava para o Largo, lançando uma olhadela para a casa onde funcionava o 
Cartório. Calma, a Vila cons- !
4 
.tituída pelo conjunto de casas do Largo. A manhã de maio, fria e neblinosa, estendia-se 
por sobre o povoado de casinhas caiadas de branco, por trás das quais erguiam-se tufos 
verdes de laranjeiras, abacateiros, jenipapeiros, bananeiras e outras plantações. Miúdo, o 
povoado minguava mais ainda naquela quadra do ano, com os habitantes pelas fazendas 
e as casas fechadas exalando tristeza e abandono. 
 Do conjunto, destacava-se na esquina a casa do Coronel Pedro Melo, com a 
calçada alta, o aspecto imponente; de um lado, o casarão acachapado sob o amplo 
telhado, o casarão da velha Benedita Fernandes de Melo, com o largo portão lateral. A 
modo que solto no meio do Largo, o sobrado do Coronel Pedro Melo, misto de prisão e 
depósito de farinha. 
 Sim. A casa do coronel, o sobrado do coronel, — pensou Vicente, que se lembrou 
que também no inventário havia a vontade do coronel. 
 Na igrejazinha a casa de Vicente andorinhas voavam. Na grotinha que cortava o 
Largo, alguns sapos coaxavam e almas-de-gato piavam, metendo seus bicos de grandes 
guias por entre as folhas molhadas de orvalho. Será que mexiam no cemitério? Sempre 
que mexiam no cemitério aqueles pássaros espantavam e saíam piando seus pios 
entojados pelo Largo. 
 Será que o juiz chegou? — perguntou Vicente a si mesmo, logo porém se 
convencendo do contrário. Naquele dia o juiz vinha do seu sítio, a duas léguas do 
povoado, para dar audiência, mas ainda não chegara. Estava tardando um tiquinho, 
decerto algum contratempo. Também Cláudio Ribeiro, escrivão do Cartório de Órfãos, por 
onde corria o inventário de Clemente Chapadense, esperava impaciente o seu juiz. Dia de 
audiência ele costumava aportar no Cartório às oito horas. Chegava, apeava, largava a 
mula roendo milho no cocho do quintal e vinha para o despacho. De tarde, findo o 
expediente, ia-se ele embora, para retomar na outra semana. 
 — O juiz hoje dormiu demais — disse Martim num sorriso. 
 — De vera — concordou Cláudio Ribeiro que lançou um olhar 
pela janela aberta. 
 — Dormiu devagar — pilheriou Martim, enquanto separava as cartas, aprontando 
as malas do Correio. Ele era o agente do Correio. A agência funcionava naquela casinha 
que para essa finali- !
5 
dade foi dividida ao meio: de cá, o Cartório, com sala para audiências; de lá o Correio. 
Para que o povo não bulisse com os papeis o escrivão Cláudio botou um gradil de 
madeira: para dentro do gradil somente ele, o juiz e os amigos passavam. 
 Vindo do interior da casa, a velha Januária espichou a cabeça pela porta e 
interrogou de mansinho: — Uai, esse menino, a mó que esse juiz nem num vem em hoje? 
— Cláudio contestou que viria e podia preparar o almoço. — Para o juiz não vir, só se 
acontecesse alguma coisa séria, mas aí ele mandava avisar. Ah que o juiz era homem de 
preceito, muito sistemático com seus prometidos. 
 Como Cláudio e Martim fossem solteiros, Januária cozinhava para eles, lavava e 
passava a roupa e cuidava do asseio e arrumação da casa. Preferiam uma velha. Se 
botassem dentro de casa uma mulher nova, que é que o povo do lugar não iria dizer! 
 — Pró juiz atrasar desse tanto — continuava Cláudio — foi porque a mula fugiu do 
pasto. 
 De sua casa, Vicente chegou à janela porque, parece, ouviu um tropel de animal, e 
animal ferrado. E não se enganou, que agora o juiz chegava, entava por trás da casa do 
escrivão, como era seu hábito. Vicente só fez virar-se, apanhar o processo e sair ao 
encontro do juiz. Precisava conversar com ele antes do almoço, antes que pegasse a 
chegar gente para a audiência ou para conversar com a autoridade. 
 Os dois homens trocaram bom dia e Vicente falou da demora, até tinha pensado 
que fosse alguma doença em casa... 
 — Diabo dessa mula. Agora, depois de velha, é que deu pra fugir do pasto e dá 
pança para a gente achar. 
 — Bem que eu disse — gritou lá de dentro Cláudio, feliz pelo acerto do vaticínio. 
Martim também se riu, enquanto amarrava as cartas: — Bem que Cláudio tinha dito. 
 Vicente foi logo abrindo o processo que trazia nas mãos e com um ar de mofa 
mostrou ao juiz o que estava exigindo. O juiz leu e riu um riso malicioso. Os olhos de 
Vicente também brilharam e, à guisa de fundamentação, esclareceu: — Está vendo? A 
viúva não arrolou nem o gado nem os dois sítios! 
 — Absurdo — disse o juiz. — Absurdo e perigoso. Nós sabemos quem é Artur 
Melo, que está por detrás dessa viúva. Ele pode estar querendo negar estes bens, mas 
também pode estar arman- !
6do uma cilada. A gente aceita a descrição como está e aí ele denuncia para Goiás que o 
coletor Vicente Lemes não zela os interesses da Fazenda, que está recebendo propinas 
para sonegar bens de menores... 
 — Como fez no caso da boiada — interferiu Cláudio. 
— De um jeito ou de outro, esse inventário vai dar banze — isse Vicente.—Se a 
gente não aceitar o rol comopoderia articular-se com Gonzaga Jaime, 
Brás Abrantes, no Rio; com Antônio Balbino e outros em Barreiras. Aí João Alves ia ver a 
cor da chita! 
Era se valer do acordo. Em vez de dispersar os homens, recuá-los para o Açude. 
com os cabras no Açude, Artur dava uma banana para Carvalho: não comparecia a juízo, 
ia se articular com os bandos de Abílio Batata, Roberto Dorado, Abade e outros. Artur 
sentia-se alegre. Afinal, uma atrapalhação veio melhorar as coisas. Melhorar muito. !
104 
— Quiá-quiá-quiá — ria-se Artur explicando o novo plano a Tozão, ao genro e a 
Joaquim Alves Leandro. — Bem que o pai tinha razão. Agora teria oportunidade de lograr 
o juiz. Carvalho deixaria os homens irem para o Açude na suposição de que ele, Artur, ia 
apresentar-se e no fim ficaria chupando o dedo. Quiáquiá-quiá! 
— Será que Carvalho vai na peta? — ponderou o médico alisando a barba bem 
tratada, num gesto habitual. — Olhe lá que ele é sujeito de olho limpo, meu sogro. 
Artur nem ouvia a objeção do genro. Sentia-se alegre com a solução que veio 
unificar as opiniões de todos com a do velho e do compadre João Rocha. Se antes eles 
estariam fortes, agora então é que não haveria o menor perigo de nada. 
Artur deu as ordens e imediatamente os rapazes começaram a se mover, saindo em 
magotes de 5 e 6, na maioria de a pé. Vendo o pessoal debandar, Tozão sentiu medo e 
procurou Artur para saber se o juiz não ia querer impedir a dispersão dos rapazes. Tozão 
receava e o temor punha-lhe o carão ainda mais comprido, dando cada chupão nos 
dentes podres. 
— Rá-rá-rá, — gargalhava Artur. — Carvalho não vai fazer coisa alguma. Isso faz 
parte da combinação. 
Por cima, havia o serviço secreto de Artur. Ele informava que na vila nenhum indício 
havia de que a tropa tentaria impedir a dispersão. Pensando em tais coisas, Artur sentia 
ternura pelo Sargento Alcides. Homem correto. Artur levava em alta conta a gratidão, a 
fidelidade pessoal. Em sua memória apareceu aquele dia distante em que o Sargento 
Alcides, simples soldado, chegou ao Duro com uma moça na garupa do cavalo. Vinham 
fugindo. 
Artur o livrara de morte certa, que os cunhados não eram flor de se cheirar. Agora o 
sargento ajudava com informações secretas, colhidas junto ao juiz. 
Artur ria, enquanto saía à procura do pai pela fazenda. Devia convencer o velho da 
necessidade de recuar para o Açude. Pelos currais, pela estrada, Artur via o pessoal 
saindo em grupos de 5, 6 , 4. Iria agora argumentar com o velho com um fato consumado. 
Iria dizer-lhe que a Grota estava desguarnecida de jagunços e que era possível que 
Carvalho atacasse a fazenda quando perdesse a esperança do comparecimento deles. !
105	
Ao ouvir isso, o velho exasperou-se: — Vocês estão dôidios varridos. Como é que 
desguarnecem a Grota! Que gente mais perrengue hem Mulato! 
Mulato era o homem de sua confiaça. Companheiro de caçadas, companheiro dos 
tempos de viagem em burros para Barreiras, companheiro de muitos anos e em todas as 
circunstâncias. 
Mulato soltou sua risada sonora, mostrando os belos dentes apontados a faca: 
— Pessoal de hoje em dia é tudo porrado, meu compadre. 
Artur, porém, ali estava insistindo com o pai para ir para o Açude: - Sua teimosia vai 
me sacrificar meu pai. 
O velho ficou muito incomodado: — Eu vou sacrificar você meu filho? Em quê? Diga, 
meu filho. 
— Eu não arredo pé daqui sem o senhor... O senhor não querendo ir, a gente vai ter 
que enfrentar os soldados de Carvalho. 
— E tu tem medo dessa policinha, meu filho? 
— Não, — disse prontamente Artur. — Ninguém tem medo de nada. Mas é que não 
temos mais ninguém. Nossos homens já despachei eles tudo para o Açude. 
— Tchá! — O velho soltou ali no chão uma de suas vastas cusparadas. A saliva 
viscosa caiu no chão e se abriu em estrela. Algumas gotinhas envolveram-se no pó fino 
do chão batido e saíram rolando como pequenas gotas de azougue. Artur prosseguiu: 
— Veja tá fora. 
No curral ia a azáfama da partida. Gente botando cangalhas e bruacas nos animais, 
gente partindo em magotes. Os jagunços recuavam para o Açude, para onde já seguiram 
o compadre João Rocha e Calixto Chapadense. Posteriormente seguiriam as mu lheres e 
os homens não denunciados, como Tozão, Doutor Herculano Lima, Joaquim Alves 
Leandro e outros. Com isso pretendia Artur mascarar a fuga. 
— Mulato, — disse o velho, — meu filho está assustado. Lá na cidade ele ficou 
desacostumado dessas coisas. Vamos aproveita para fazer uma caçada de capivara no 
Açude. As bichas por lá devem de estar num assanhamento desgramado, com esse 
inverno que tá para chegar com a lua- — Ele falava em caçada, de boca dura que era; 
para não confessar a retirada que para ele tinha sabor de derrota. 
Lá fora, o pessoal continuava debandando, obedecendo às or- !
106 
dens de Artur. Iriam para Açude, mais perto da fronteira da Bahia, mais perto de São 
Marcelo, de Santa Rita do Rio Preto, onde assistiam os compadres Roberto Maroto, Abílio 
Batata. 
— Amehã de menhãzinha nós rompemos, Mulato. Pode preparar tua espingarda e 
ajeitar os cachorros, — recomendou o velho entre duas cusparadas. 
Artur ouviu e não gostou. Deviam partir logo. Pelo menos ele e o pai deveriam deixar 
a Grota ainda naquele dia. Eles eram os mais visados e não deviam ficar sem muita gente 
para garanti-los. Contudo, sentia-se sem forças para dobrar o velho. Foi a custo que 
obteve sua aquiescência em partir. Se voltasse a falar no caso, o pai ia emburrar, ia levar 
para o lado da covardia. Que ficasse mais aquela noite. Sargento Alcides nada avisou! 
— SEU DOUTOR, pissuale tudo fugino. Sai aquela ternada levano caiguero pesado 
de trem... carabina munta, bala munto... — era isso que informava na sua meia língua o 
Soldado Carajá voltando da Grota, onde estivera em espionagem. 
Carvalho debruçou-se mais sobre a mesa, procurando ocultar atrás da pilha de livro 
o riso irreprimível. Artur tinha caído na esparrela com a maior ingenuidade. Deixasse-o 
dispersar o povo calmamente. Quando houvesse saído mais da metade, faria a investida 
contra a Grota. Supunha os Melos mais argutos, nunca esperara que fosse tão simples 
armar uma cilada. 
— Muito bem, Carajá. Agora vá chamar o promotor. 
Era chegado o momento de o promotor pedir a prisão preventiva dos denunciados. 
Estava mais do que comprovada a fuga. O promotor devia pedir a prisão preventiva 
imediatamente. Não perder nem um minuto! 
— Matias, ô Matias! — O ordenança bateu ali o seu pronto e o juiz interrogou: — 
Carajá já foi chamar o promotor? 
— Nhor, sim, Seu Juiz. 
— É só, — disse Carvalho despachando o Cabo, E, a sós, passou a examinar as 
providências que lhe cabia tomar. Decretada a prisão preventiva, era despachar a tropa 
incontinenti para a Grota, para prender Artur e o pai. O oficial de justiça já havia 
conversado sobre isso. Queria que a Força Policial na sua maioria o garantisse na 
execução dessa diligência. !!
107 
Era na manhã seguinte, impreterivelmente, que deveria ser feita a prisão. Só de 
madrugada a polícia seria avisada da exigência do oficial de justiça. Existia espião no 
meio da tropa. Quem seria? Carvalho ignorava, mas tinha certeza absoluta de sua 
existência. Se avisasse a polícia de véspera, Artur e o pai escapariam. 
Por isso, às duas horas, o juiz levaria pessoalmente a Mendes de Assis a ordem, 
para prender Artur e Pedro Melo tão logo o dia clareasse. 
Mendes de Assis! Esse Mendes de Assis não merecia confiança, mas infelizmente 
não era possível. Tinha que obedecer à hierarquia militar. 
Uma coisa, porém, no fundo do peito entristecia o Juiz Carvalho. Sentia que estava 
cometendo uma traição. Estava traindo os Melos. Planejara isso, resolvera pôr em prática 
essa traição, mas agora será que deveria trair? Dera a Artur sua palavra de que poderia 
dispersar os homens; agora Artur os dispersara e ele se valia disso para mandar prendê-
los. Era um ato vil, era uma infâmia! 
Procurou apaziguar a consciência. Aquilo era uma imposição do cargo. Com esse 
ardil evitaria um choquearmado com mortes para ambos os lados. Sua traição era um 
meio imoral para atingir um fim humanitário e justo. 
Mas esse raciocínio não convencia. Na verdade, o que havia era o seu interesse 
pessoal. Mas, que diabo! ele também tinha direito de ter seu interesse. Precisava libertar-
se do sertão, precisava galgar a cadeira de desembargador, de presidente do Tribunal de 
Justiça, talvez até Presidente do Estado, quem sabe? Afinal, usara de todos os recursos 
legais. Os Melos não se apresentaram antes porque não quiseram. Alguém poderia 
acusá-lo de haver praticado a menor transgressão legal? Jamais. Tudo que fizera e tudo 
que ia fazer estava estribado na lei. Quem podia dizer que a polícia praticou absurdos? 
Quem podia apontar a menor indisciplina? 
Mas também ele tinha seus direitos. Havia cinco meses que estava naquela Sibéria, 
longe de qualquer conforto, longe de qualquer carinho de mulher. Sobretudo longe da 
mulher. Já não suportava. Bem que falavam de algumas mulheres com quem se poderiam 
ter relações. O promotor que conhecia o povo da região já lhe falara de algumas. Mas 
tinha medo, não podia confiar em ninguém. Botar tudo a perder por causa de uma mulher! !!!
108 !!!!!!!!!!!
Ele estava certo. A decisão só podia ser aquela. Mandar prender o pessoal, levá-lo 
para a Capital. Assim cumpriria a missão, conquistaria a confiança de Totó Caiado, talvez 
fosse eleito deputado federal, iria rever o Rio, os parentes do Espírito Santo. E mulher de 
soldado? Vira uma novinha, uma lindeza. Mas que bobagem, bobagem! Nada de sonhos, 
nada de devaneios. Vamos botar o preto no branco. É voltar logo para casa, é terminar 
esse inquérito, é prender logo essa gente. São uns truculentos, são uns verdadeiros 
facínoras. ”Eu ouvi o que contaram deles, eu vi gente chorando por aí!” 
— Boa tarde, Senhor Promotor. Pois é, o pessoal está fugindo, Seu Promotor! — 
disse Carvalho ao ex-intendente de Natividade, que chegava. — Talvez tenha chegado o 
momento de pedir a prisão preventiva, hem! Veja lá, Senhor Promotor. Isso é com o 
senhor. 
”Traição! Traição nada. Bem que gostaria de que as coisas acontecessem por forma 
diferente. Mas o que fazer? A realidade é a realidade e não os nossos desejos!” !!!!
109 
III	
!
A prisão 
ESTAVA QUERENDO amanhecer quando a Força chegou às imediações da Grota. 
Mendes de Assis confabulou com os Alferes Severo e Xavier e começaram a distribuir os 
soldados de modo a cercar a fazenda em todas as suas saídas. 
O trabalho não era muito fácil porque poucas pessoas conheciam bem a topografia e 
ainda havia o obstáculo do lusco-fusco, e a necessidade de não espantarem os cães e os 
animais da fazenda. ”Ainda bem que não havia vigias”. 
Na companhia de Mendes de Assis vinha o oficial de justiça com a ordem de prisão 
preventiva decretada pelo juiz. 
O céu principiava a pegar fogo para o nascente, onde havia nuvens. A estrela d’alva 
minguava o brilho, empalidecia diante do sol que chegava. Já se podia ler uma carta. 
Cinco horas talvez. 
Ninguém no povoado ficara sabendo da expedição, que era para pegar o pessoal da 
Grota desprevenido. O próprio Mendes de Assis recebeu a ordem para a diligência às 
duas horas da manhã. Carvalho andava muito desconfiado de espiões de Artur no meio 
da tropa. 
O Duro ficara dormindo seu sono de inocência, enquanto sorrateiramente saía para 
a diligência a quase totalidade da Força. No povoado ficaram os Alferes Enéias e Mariano 
com mais umas dez praças, sem contar o tísico e outros doentes de gálico e maleita. 
Tenente Mendes de Assis olhou o céu. Todo chamalotado de nuvens, com uns 
borrados de sangue. A estrela d’alva, adeus, es- !
112 
trela d’alva. Era manhã quente, sem vento, pouco orvalho molhava os ramos. Um ou 
outro grilo ainda grilava. Além um joão-de-barro começava a cantar, talvez ensinando os 
filhotes. Os galos cantavam na fazenda, de onde vinham grunhir de porcos e mugidos de 
reses. Para esse lado de cá, um trem gemia. Talvez inhuma, talvez mutum. Capaz que 
fosse mutum mesmo. 
Vozes, reunir de esporas, freios e ferros, batidos de cascos nas pedras, assopro de 
um animal. Os soldados de Mendes de Assis que se dispunham em linha, deitados no 
chão, como os outros de Severo e Xavier, — os soldados encolheram-se, ajeitaram-se 
melhor. Um magote de gente ia passando. Era gente da Grota que fugia. As vozes 
afastaram-se, um cheiro bom de cavalo suado no ar da manhã. 
Ao romper do sol, deveriam bater na porta da casa e intimar o pessoal a entregar-se. 
Contudo, se mesmo antes do romper do sol algum indiciado quisesse fugir, deveria ser 
preso. O oficial de justiça os conhecia a todos e os apontaria a Mendes de Assis. Para 
isso, cercavam a saída principal, aquela que levava ao Açude, como muito bem informava 
Carajá. O tenente relanceou os olhos e sentiu-se reconfortado. A seu lado estavam 
Daniezinho, Salustiano Dantas, Mane Vitô, Gabriel, Adonias, Sargento Odilon. Eram 
bichos que não vacilavam em matar qualquer um. Não foi à toa que o tenente os colocou 
ali perto 
O tropel apagou-se, apagaram-se as vozes. Bem-te-vis cantavam nos altos angicos. 
No fundo, no mato, o trem continuava gemendo. Sargento Odilon achava que era um 
mutum. Ali tinha disparate. Ainda quando vinham, indo na frente como batedor, por pouco 
que Sargento Odilon não dava um tiro num mutum cuidando que era jagunço dos Melos. 
Precisavam ter muito cuidado. Nada de atirar em bicho, que iria alarmar o pessoal e fazer 
eles debandar. Nada também de atirar à toa. Antes de dar voz de prisão, ver bem se era 
mesmo um dos denunciados. Era fácil: o velho tinha barba branca; Artur, tinha barba mais 
curta, meia loura. 
Com pouco, ruído de conversa, latido de cães, um nhambu piando tão perto, cavalos 
bufando, soprando as ventas. Novamente a linha dos soldados se mexeu, confundiu-se 
com o solo. Não havia sol, mas já era completamente claro. Os tropéis aprochegavam, as 
vozes tinha hora que dava para entender. As armas manobraram cautelosamente. Tão de 
leve, o estalo da mola imitou o que- !
113 
brar de um graveto, o estalar de um preá ou rato do mato. Os bem-te-vis cantavam e 
cantavam pelos ramos. !
* !
Como havia combinado, o velho se levantou cedo, chamou Mulato e mandaram 
pegar os animais no pastinho ao lado. Acordaram a preta Camila para lhes preparar café 
e um prato de cuscuz, enquanto eles mesmos arreavam os animais. 
Por esse tempo, um magote de cabras deixava a Grota. Eram, os derradeiros que ali 
ficaram para os últimos demãos. 
Atrelaram os cachorros, aprontaram as armas, tomaram as capas de chuva, que o 
tempo tava mostrando água. Era como se partissem para uma caçada. Na Grota 
permaneciam Aninha, Toz; e D’outor Herculano, estes últimos com as esposas; o próprio. 
Artur deixaria a Grota mais tarde, ultimando os negócios. Talvez aguardando um aviso do 
Sargento Alcides. Artur confiava no trato do juiz: a dispersão dos rapazes fazia parte do 
combinado. 
Os cães latiam satisfeitos, pulando e correndo, os cavalos sopravam e sacudiam o 
pêlo, sorvendo o ar fino daquela manhã de inverno, com névoa esgarçada pelas grimpas 
dos morros, cora a fumaça subindo o vale, onde resmungava o ribeirão. Pelos altos, o dia 
vinha rompendo. Um bando de gralhas veio naquela bulha, e ficou gritando por sobre os 
soldados. 
Pedro Melo e Mulato transpunham o curral e ganhavam saída, para o Açude. A 
mágoa apertava o coração do velho. Era triste, era humilhante, deixar sua fazenda 
daquele jeito, como um fugitivo. Sobretudo, era revoltante ter que baixar o cangote para 
aqueles preguiçosos do Vicente e do Valério montar. Eles que tinham feito aqueles 
currais, aquelas casas, aqueles bicames! Mas não alterava choradeira. 
— Se a gente for feliz, por esses oito ou dez dias a gente tá de volta, não é mesmo, 
Mulato? 
Logo que destribui o pessoal pelos pontos estratégicos, de modo a cercar a fazenda, 
o Tenete Mendes de Assis percebeu ruídos !!
114 
que vinham da casa. Já teriam atinado com o cerco? Mau, mau! Ali acordavam, 
rachavam lenha, cavalosbufavam e pateavam, cachorros latiam e ganiam. Eram sinais de 
que iria sair gente. Antes já saíra um magote e depois de sua partida tudo se aquietara. 
Será que não restava mais ninguém na Grota. Ô coisa boa! Assim não teria que prender 
nenhuma pessoa. 
Era uma missão penosa aquela. Os Melos eram poderosos. Se Mendes de Assis os 
prendesse, seria perseguido, perderia o posto, que Jaime e Bulhões não perdoavam. Era 
um inferno. 
O tenente tinha filhos e mulher para tratar. Afora o ordenado mensal, nada possuía. 
De momento, o tenente se lembrou de muitos outros oficiais que perderam as patentes 
porque cumpriram determinação legal. Mendes de Assis estava amolado desde que 
recebera do Juiz Carvalho ordem para efetuar a prisão preventiva. Depois, de supetão. 
Estava dormindo, de repente, a ordem do juiz de seguir imediatamente para a Grota, 
àquela hora da madrugada. Missão dura! 
O tenente fazia ali um protesto solene perante si mesmo: não aceitaria nunca mais 
essas comissões no interior do Estado. Estava escarmentado. Doravante queria ficar no 
comando da Força, na Capital, como faziam outros oficiais. Essas comissões só serviam 
para desmoralizar oficiais e incompatibilizá-los com os políticos. 
Sempre que uma comissão chegava a seu ponto difícil, Mendes de Assis fazia tal 
promessa e depois esquecia. As comissões, afinal de contas, tinham seu lado bom. 
Durante elas, Mendes de Assis se sentia um imperador, um todo-poderoso, com as 
pessoas o bajulando receosas de prisão e espancamento, dando-lhe presentes caros. De 
todas as comissões, a pior tinha sido aquela. 
O desgraçado desse juiz mantinha a Força num regime de guerra, confinada nos 
quartéis, com serviço de trincheiras, piquetes. Niguém podia fazer festas, nem jeito de 
conseguir uma mulher para as necessidades do corpo eles tinham. Juiz dos diabos! 
Mas seria a derradeira comissão. A esperança era a afirmação de Carvalho de que 
talvez não houvesse mais ninguém na Grota. Gente havia, mas deviam ser aqueles que 
haviam saído fazia pouco: capangas, camaradas. 
Se assim fosse, Mendes de Assis não se indisporia com os Me- !
115 
los, nem descumpriria a ordem judicial. Os Melos era perigosos e poderosos. Não 
eram os humildes enxadeiros que Mendes de Assis costumava prender e espancar e 
matar, alegando resistência à ordem judicial. Atrás de Artur havia gente grossa: um 
desembargador que mandava no Tribunal de Justiça do Estado: um general do Exército; 
coronéis ricos e prestigiosos da Bahia. Mendes de Assis teve vontade de largar a 
diligência, largar a espada e sair correndo pelo mundo afora. Estava prevendo tudo: ia 
haver luta e ia morrer gente. 
Novos ruídos vinham da fazenda. Vozes chamando porco e galinha. 
— Cuche, cuche, cuche! 
— Ti, ti, ti, pururu! 
Parece até que vinha gente a cavalo pela estrada. Mendes de Assis procurou 
ocultar-se o melhor que pode por trás de umas moitas de veludo e espinho-agulha. De 
onde estava, o tenente via os soldados Daniezinho, Salustiano Dantas e Gabriel 
agachados por trás das pedras, a Comblain em meia posição de tiro, tensos, como 
perdigueiros em caçada. 
Gabriel sentia um enjôo no estômago e um tremor dos diabos pelo corpo. 
Ressoavam em seus ouvidos as palavras de Nestório e Mane Vitô. ”Quem matar os 
Melos pode pegar uma cadeinha para tapear os paisanos, mas depois vai promovido... O 
governo é inimigo dos Melos.” Gabriel nunca tinha estado num serviço assim perigoso. 
Fazia pouco que estava na Força e tinha vergonha de parecer covarde. Daniezinho 
também se sentia mal. O que ele sabia era que a Grota era uma trincheira inexpugnável e 
dessa forma estava disposto a vender caro a sua vida. Já não era moço, tinha vivido 
muito, agora queria sossego. Atiraria no primeiro que visse. 
Agora, ouviam-se tropéus de animais, até o tinir das ferramentas nas pedras; 
chegava-se a ouvir retalhos de conversa dos cavaleiros que davam para se entender. 
Dois vultos surgiram na volta do caminho. Divisava-se bem: um dos vultos só podia ser o 
velho Melo. A barba branca, a roupa de couro, a mulona melada muito alta. Era a maior 
mula que existia por ali, presente de Abílio Batata. Atrás, também num cavalão graúdo, 
vinha outro homem, vestido mais modestamente. Seria Resto-de-Onça, seria Mulato, se- !
116 
ria o compadre João Rocha? Mendes de Assis não conhecia. Estaria armado? Difícil 
saber. Os ramos tapavam, também a manhã era meio escurosa, tudo incerto. 
Um frio percorreu a espinha, retorceu-lhe os intestinos. Naturalmente que o velho 
não podia passar. 
A última esperança do tenente arrebentava como uma bolha de sabão. Só lhe 
restava apegar-se com Deus e com os santos: Que o Divino Padre Eterno o ajudasse 
naquele transe, que alumiasse e caminho e soprasse no seu entendimento uma solução. 
Em sua imaginação beijou um crucifixo que trazia no bolso da túnica. Se estivesse 
sozinho, prendia o que vinha atrás, com jeito de camarada; prendia ou matava, deixando 
o velho fugir, sumir no mundo. Tão simples! Metia a bala no camarada e certamente e 
velho abria o pala. O próprio velho depois confirmaria que fugira. Mas o diabo eram os 
soldados que estavam ali a seu lado, já com as Comblains armadas. A esses Mendes de 
Assis não podia enganar. E Carvalho? pensou o tenente. — Isso mesmo. Havia o Juiz 
Carvalho. Se o velho escapulisse, Carvalho não deixaria a fuga como fato consumado. 
Outro juiz se daria por satisfeito com a fuga; lavaria as mãos, iria embora dizendo que não 
prendera os Melos porque tinham fugido. Com Carvalho, porém, o riscado era outro. 
Mobilizaria toda a polícia para pegar os fugitivos e ainda processaria Mendes de Assis. 
Podia até arrancar-lhe os galões, metê-lo na cadeia. E havia Enéias que ficara no 
povoado. Enéias era inimigo jurado dos Melos. 
Se Mendes de Assis deixasse o velho fugir, Enéias não perdoaria; denunciaria ao 
Presidente do Estado. Enéias ingressara na polícia com o fito de vingar-se dos Melos que 
apoiaram Abílio Batata no assalto de Pedro Afonso, de onde expulsou Enéias e sua 
família. 
Vindo de dentro da saroba, feito um bicho feroz, Severo apareceu por trás de 
Mendes de Assis. Alferes Severo era cumpridor do dever. Recebeu ordem do juiz para 
prender e prenderia mesmo, ainda que tudo levasse o diabo! Ali agora não tinha meu-pé-
me-dói: o velho seria preso, porque esta fora a ordem dada a Severo. O decreto judicial 
estava na algibeira da túnica e pronto! O olhar de Severo fuzilava. 
Era o tipo do homem que servia para lidar com o Juiz Carva- !
117 
lho: não pensava. Desde que lhe dessem uma ordem, ele a cupriria cegamente. 
Ignorante, burro, violentíssimo, Severo só tinha uma qualidade: a coragem. 
Mendes de Assis rememorava. Severo era simples sargento quando em Santa Cruz 
prendeu um juiz na cadeia por vários dias. Até hoje Severo contava o causo com aquela 
tenebrosa escassez de vocábulos: — Num vê que o diabo do juiz era mesmo que ve o 
cão! Eu prendia, o j uiz soltava; tomava a prender, tomava a soltar. Aí perdi a paciência e 
meti foi desavergonhado do juiz no xadrez. 
Depois, foi para as bandas do Sudoeste. Severo foi prender um graúdo, diz que 
houve resistência e o graúdo acabou morrendo. Severo foi metido na cadeia. Ali estava 
quando um dia o cabo chegou contando: 
— Seu Alferes, a cidade não tem juiz, não tem promotor, nem tem delegado, num 
tem nem vigário, Seu Alferes. 
Com a tarimba que tinha, Severo sabia que quando uma cidade ficava assim à 
matroca era porque os graúdos pretendiam matar alguém. 
— Pois é, meu Alferes. O que tem aí é muito parente do morto... Dizem que vão 
matar o senhor.Acho bão o senhor fugir, meu Alferes! 
— Passa pra cá o fuzil e as balas, Cabo! 
— Seu Alferes, mas... 
— Passa pra cá a arma, moleque perrengue, e vai-te embora, se não quiser morrer. 
O cabo entregou-lhe a arma e as balas. Quando chegava a esta altura da narrativa, 
Alferes Severo usava da seguinte chave de ouro: — Jacaré entrou na cadeia? Que 
paisano nenhum num entrou não... 
Naquele momento Severo observava Mendes de Assis,queria ver qual seria o seu 
procedimento. Depois Severo contaria tudo a Carvalho. Mendes de Assis teve medo de 
Severo. Era seu inimigo. Desejava tomar-lhe o lugar de comandante do destacamento, 
contando com a simpatia do juiz. Alferes Severo já estava juntinho de Mendes de Assis e 
lhe segredava ao ouvido que o barbaça era o velho Melo. Contra esse o juiz tinha 
decretado prisão preventiva. O velho não podia escapar. — Alto. Estão presos! !
118 
Mal ouviu, o velho deu na rédea e a mulona revivou. Naquele tempo de capim novo, o 
excesso d’água fazia os animais pesadões. Mas a mula era arraçoada no cocho, com 
milho e rapadura. A bicha tirou um pulo e partiu feito uma bala, arrepiando caminho, 
seguida de perto por Mulato, nego teso como o diabo. 
 Rompiam galhos de veludo e espinho-agulha, de marmelada e murici, saltavam 
grotas, fugiam pelos lugares que conheciam tão perfeitamente. Aquele juiz era o capeta, 
— pensava o velho. — Estava disposto a levá-los presos. Artur tinha se engando, 
julgando enganar o diabo do juiz! Agora a situação era diferente daquela em que ocorreu 
a morte de Vigilato. Eles estavam por debaixo. Artur fizera a besteira, confiando na 
palavra de Carvalho. O juiz lhe armara uma arapuca. 
 A mulona corria, saltava vales, furava moitas de espinhos e taquaral, chegava em 
frente ao curral, transpôs a traqueira num salto. Mas nisso afocinhou, atirando o velho 
adiante. 
 Atrás, perseguindo-o, vinham os soldados. Vinham a pé e por isso se atrasaram. 
Mulato pulou do cavalo e foi ajudar o velho a erguer-se do chão, mas o coronel Pedro 
Melo quase não podia ter-se de pé. Machucara-se. Onde, não sabia. Um frio por dentro, 
uma espécie de desmaio, mal-estar geral. Ele arrastava-se, Mulato o arrastava. Pularam 
outra cerca, procuraram a porta da casa da fazenda. Iriam abrigar-se dentro de casa. Ali 
teriam segurança. 
 Ouvindo o batuque dos galopes, batidos de paus, Artur achou que devia ser algum 
portador que chegava. Saiu à porta do terreiro. Não viu nada. Ouviu foi o grito: 
 — Solados, soldados! 
 A voz era do pai. Num relance, viu soldados que chegavam pulando cercas, 
entrando por entre as plantações. Artur retrocedeu, tomou de sua carabina de oito tiros e 
já vinha saindo em socorro do pai, mas se deteve. Não compreendia direito. Seria engano 
dos oficiais? Seria alguma confusão? Logo, entretanto, uma conclusão se fixou: o acordo 
de Carvalho era uma cilada. Filho da puta! O juiz o traía, antes que ele traísse o juiz! 
 Um tiro estrondou no quintal. Tiro chocho. Um toque de corneta. A cachorrada 
agora latia, latia, embarroava na acuação. !
119 
!
!
!
!
!
!
Artur. Confiou no miserável desse juiz!” Prosseguindo na carreira, o velho se meteu no 
canavial que havia no fundo da casa. 
 Entretanto, mal podia correr. Uma moleza danada, uma suadeira. Mulato a custo 
avançava, carregando-o. Nos calcanhares vinha soldado. 
 Conhecedores de todos os meambros do quintal, o velho e Mulato metiam-se por 
baixo de uma cuitezeira, ali por baixo de uma cacaueiro, ludibriando os perseguidores. 
Por fim, os dois se meteram numa touceira viçosa de cana que crescia dentro de uma 
grotinha funda e apertada, já no fim canavial. Ótimo esconderijo, Muito difícil de acharem 
eles ali. Também o velho não agüentava mais, suava muito, a respiração opressa, como 
que presa no fundo do peito. 
 Os Soldados Fabriciano e Freitas Machado que estavam postados ali no fundo do 
canavial viram uns vultos bulindo na grota. A princípio cuidaram que era porco, quem sabe 
cachorro? 
 Freitas Machado assuntou melhor e estranhou: — Uai, só, tá parecendo o velho. 
Espia só! 
 Já Fabriciano dava um pulo, metendo a Comblain nos homens: — Estão presos. 
 Freitas Machado aproximou-se e tomou a Mauser do velho e ia receber a carabina 
que lhe estendia Mulato, quando o canavial estralou. Como se um pé de vento ou um 
bando de queixadas o atravessasse. Do meio do mato surgiram vários soldados. 
Fabriciano e Freitas Machado tomaram socos e empurrões que os jogaram para longe. 
 — Não me mate — dizia o velho de mãos erguidas. Como respostas coronhadas 
desceram-lhe na cabeça, prostando-o na terra fofa e úmida do canavial. 
 — Me acorde, meu filho. — Um tiro ecoou. O velho punha-se de quatro pés, 
tentando levantar. 
 — Estou aqui, meu patrão — gritou Mulato, mas uma coronhada abriu-lhe o crânio. 
Uma baioneta na ponta do cano da comblain meteu-se-lhe no peito, espetando-o no chão 
podre. Daniel embebeu o refle no ventre do velho. Gabriel tirou um punhal e o socou no 
ventre do homem caído. 
 — Toque aí o toque de vitória, — ordenou Adonias ao cometeiro Ferraz. — Na 
manhã morna e mormacenta, de céu baixo, a !
121 
!
corneta retinia seu som triunfal. Os cahorros latiram e vieram até onde estava o 
corneíeíro. Ali, cheiraram o velho e Mulato e arrepiaram o cangote, pegando a acuação. 
 Na terra úmida do orvalho da noite, por entre folhas e húmus, a barbaça 
esparramada no gibão de couro, na mão grossa a taça bem trançada. Os cachorros se 
escoravam nas patas dianteiras e embarroavam, arrepiados e ferozes. 
 Adonias deu uma coronhada no bicho e o escorraçou para longe, para onde saiu 
ganindo. 
 — Deixem os homens.’ Cerquem a casa! — As ordens vinham do Alferes Severo 
que tomava a Mauser das mãos de Freitas Machado. 
 Havia uma agitação generalizada. Os tiros, o sangue, o toque de corneta 
excitavam os homens, como acontece aos onceiros. Tomando sua Comblain pelo cano, 
disse Adonias: 
 — Cobra a gente faz é desse jeito. Hum! — Macetou a cabeça do velho com o 
coice da pesada arma e saiu com ela pingando sangue por entre as canas verdes que 
tremulavam ao vento da manhã. 
 — Atenção, atenção! — De riba de um toco o Tenente Mendes de Assis vociferava: 
— Vocês vão dizer que o velho e o camarada nos receberam à bala. Vão dizer que eles 
resistiram à prisão. 
 Houve um momento de sossego entre os praças. E a voz repetia: — Quem não 
disser isso, vai comer processo. Olha lá! 
 — Pra casa! — gritava Severo, empurrando os soldados com o cano da Mauser do 
velho. 
 
 Aí apareceu o Soldado Tonhá. Largou a Comblain no chão, examinou ao redor, se 
aproximou dos defuntos e pegou a revistar os bolsos deles. Mulato tinha uma faca 
aparelhada de prata. Tonhá tirou e botou ela na cintura. Este não tinha mais nada. A 
espora era vagabunda, no pé uma alpercata velha, o chapéu sebento e roto. Tonhá ouviu 
passos, voltou-se. Chegavam o Soldado Guia-de-Cego e o Cabo Bernardino. 
 Num minuto, Guia-de-Cego passou a revistar o velho. E como o fazia com rapidez, 
com coisa que tinha prática. Revirou-lhe as algibeiras, pegou um picuá onde encontrou 
fumo, palha e artifício. Passou tudo para seu bolso. Tonhá tinha ódio. O velho podia !
122 !!
!
!!!
ter mais coisas, o miserável do Guia-de-Cego limpava. No entanto, a preferência devia 
ser sua. Chegara primeiro. 
 Guia-de-Cego pegou uma coisa brilhante, levou aos ouvidos. 
 — Será que é ouro? — indagou. Era um relógio. As mãos sujas de sangue 
seguravam o objeto nos ouvidos. 
 Tonhá não se conteve mais. Avançou, afastou Guia-de-Cego, suspendeu o gibão 
de couro do Coronel Pedro Melo e lhe meteu as mãos pela cintura, escarafunchando as 
bolsas de um largo cinturão. Com pouco retirava uma das mãos trazendo um bolo de 
papel. Eram tantas notas, que não se conteve: — Oh, que bolão! 
 — Isso num tá certo, gente. Vocês vão complicar os companheiros... Entre 
assustado e nervoso Tonhá se virou para o lugar de onde vinha a voz. Reconheceu o 
Cabo Bernardino. 
 — É mesmo, — dizia outra voz entre as moitas. Tonhá pensava no Sargento 
Fuinho. A coisa começava a render. Fazia seis meses que esperava por essa 
oportunidade. Outras viriam. Aquilo era apenas o começo. Bem que o Sargento Fuinho 
lhe dizia. Em Boa Vista, muito soldado e muito oficial ficou podre de rico roubando 
defuntos. Era só não dormir no ponto. Ele quase que perdia tudo! !
O DURO ACORDAVA, como todos os dias. Os telhados baixos fumegando com o café da 
manhã, meninos chorando por falta de leite, mulheres preparando cuscuz para a primeirarefeição. O sol não surgia porque a neblina era densa. De repente, a notícia tomou conta 
de tudo: — O restante da Força ia seguir para a Grota, para reforçar o grosso da tropa, 
que está lá desde a madrugada. Ficariam apenas o Alferes Mariano com meia dúzia de 
praças para garantir o juiz. 
 Todo mundo perguntava e ninguém sabia informar. A notícia mais certa era de que 
a polícia fora prender os Melos, eles resistiram, e o velho Pedro tinha sido morto. Agora 
vieram chamar o restante da tropa. 
 — Então está havendo combate? 
 — Mataram só o velho? 
 — Pelo menos, foi o que me falaram. 
 — Pois eu soube que mataram todo o mundo, de mamando a caducando... 
 — Ah, não é possível! !
123 
Atravessando o Largo, lá se ia Enéias com o restante da Força para a Grota. Nas moitas 
de assa-peixe e cansação da grotinha do Largo, as almas-de-gato com seus pios. Por 
entre a neblina, uns relinchos de animais no cio. 
O povoado estava mais triste ainda, as casas fechadas, recolhidas em mistério, o pessoal 
raro deslizando mudo e temeroso, cochichando aqui e ali, completando com a imaginação 
o que desconheciam. 
Lá se iam os soldados num passo acelerado, sacudindo as armas, sacudindo as mochilas 
de bala. Pelas moitas, as almas-de-gato piavam: — choó, choó, choó. As crianças nem 
choravam, embora o cuscuz ainda custasse a ficar pronto. 
MENDES DE ASSIS batia na porta da casa: — Abram a porta em nome da lei! — Num 
requinte de delicadeza esperava que o sol doirasse a grimpa dos angicos da beira do 
córrego, para então bater: — Abram a porta em nome da lei! 
A porta se abriu e apareceu Tozão, com os grande braços balangando, o carão comprido 
de mamão macho. Pediu que esperassem um tiquinho, até que as mulheres se 
aprontassem mal e mal: 
— Estavam se lavando nest’hora. — Deu dois daqueles chupões nos dentes cariados e 
fechou a porta. 
— Desculpa, — observou Severo. — Querem se preparar para resistir à bala. — Alferes 
Xavier achava que era justo o pedido: — casa de família, cheia de senhoras. Por fim a 
porta se abriu. Os soldados ficaram de fora, para não deixarem entrar ou sair ninguém e 
os oficiais entraram. 
Logo de cara Severo pegou algumas pessoas de armas na mão e mandou prendê-las, 
ficando os homens numa sala e as mulheres em outra, vigiados por soldados. Já o 
Tenente Xavier dava busca na casa, vasculhando os cômodos, subindo ao telhado, 
revirando caixotes, armários, camas e colchões. Com prazo de uma hora, Tenente Xavier 
voltava dizendo que nada encontrara. Havia um pouco de armas e munições, mas de 
Artur nem rastro. 
— Ninguém. — admirou-se Severo. — Procurou na tulha? — Xavier afirmava de pedra e 
cal que revistara tudo e que ali dentro Artur não se achava. 
O Tenente Mendes de Assis fez um gesto com as mãos e deu !!!!
124 
ao rosto a expressão de quem dizia: Está aí. Fugiu. Não posso fazer nada! — Mas Severo 
não se conformava: Artur não estaria ali mais, ao tempo da prisão do velho, como queria o 
Alferes Xavier? 
— Ah, isso não. Artur estava aqui dentro, — teimava Severo. — Tanto estava que o velho 
chamou por seu auxílio. 
Ao lado, Carajá informava com toda a certeza, entre curtas frases: 
— Carajá tem zóio vivo. Carajá num viu Artur fugi... 
— Temos que encontrar ele, — dizia Severo. 
— Mas ele não está — repetia Mendes de Assis, demonstrando propósito de abandonar a 
busca do homem. Severo dava ordens para nova procura. Tinha consigo a ordem do juiz 
e a cumpriria custasse o que custasse. 
Por estas alturas, Enéias chegava com seus homens e, ciente da situação, também se 
meteu na busca. Enéias não estava ali para cumprir mero dever militar, nem para roubar, 
como o Soldado Tonhá. Enéias ali estava para derrotar os Melos, para destruí-los, para 
acabar com eles e com seu parceiro Abílio Batata. Enéias ali estava para vingar a derrota 
que Batata infligira a seu pessoal em Pedro Afonso, para vingar as mortes e os prejuízos 
que Batata, com apoio dos Melos causara a seus parentes. Alferes Enéias foi lá dentro, 
procurou o Cabo Odilon, mandou-o que reunisse quatro praças de coragem e fossem 
bater os arredores. Levasse consigo Salustiano Dantas, Daniezinho, Nestório e Zé 
Rodrigues. Enéias os conhecia bem. 
— Não deixem uma furna, uma grota, uma moita de cambaúba sem exame! 
Odilon velho ria mostrando os cacos de dentes, enquanto Enéias lhe segredava: 
— É só ver, mete bala... O resto é comigo... 
Odilon gritou pelos soldados e saiu estalando as alpercatas de couro cru. Botina num 
serviço como aquele só servia para estorvar. 
Mendes de Assis veio conversar com Enéias para dizer-lhe que Xavier não viu nem rastro 
de Artur:.— Pra mim fugiu. 
— Se fugiu, não vai longe. Atrás dele vai gente sacudida. — Aquele Sargento Odilon era 
homem do tempo das lutas de Boa Vista e aquilo é que foi luta de verdade! 
Mendes de Assis ergueu o quepe, cocou a cabeleira suada e !
125 !!!!!!!!!!!!!
aproveitou para tirar um tiquinho a perneira, pois um bicho o mordia dolorosamente na 
perna. Só podia ser roduleiro que em princípio de águas não tem carrapato. 
— Vamos lavrar o auto de resistência e oficiar ao juiz o resutado da diligência, — disse 
Mendes de Assis mais num tom de consulta do que de ordem. Não parecia ser o 
comandante. 
Enéias não deu ouvidos. Fosse para o diabo aquele Mendes Assis. Era uma besta. 
Interessava-lhe pegar Artur, isso sim. Não podia crer que ele houvesse fugido. 
Enéias entrou pela casa e topou Xavier que ainda revirava um bruacas velhas no cômodo 
dos arreios, ouvindo de sua boca que não encontrara ninguém. 
Enéias não acreditava em Xavier, como Xavier não acreditava em Enéias. Aliás cada 
oficial desconfiava do outro. Mendes de Assis não confiava em Severo, em quem via um 
rival. Carvalho queria dar-lhe o comando. Enéias por seu lado era malvisto de todos que 
enxergavam nele não um militar, mas um paisano fardonado na última hora, para saciar 
seu desejo de vingança. Os sargentos Odilon e Alcides tinham ódio de Enéias, porque 
obtivera sua nomeacão para o cargo de alferes; este cargo lhes devia pertencer por 
direito ou por antigüidade. Afinal, estavam na polícia há muitos anos. 
Sargento Odilon vinha das brigas de Boa Vista, isso fazia vinte e poucos anos. Tinham 
bons serviços prestados ao governo e na hora da promoção, na hora de ganharem mais o 
governo ia buscar gente de fora, só porque era protegido. 
Mendes de Assis também todos desconfiavam dele. Diziam que era medroso, um vira-
folha. Em Xavier viam um sujeito ambicioneiro, capaz de vender até a alma. Ali mesmo 
estava Enéias maliciando a atitude de Xavier e de Assis. Podiam ter qualidades mas eram 
capazes de proteger os Melos. Xavier então estava esquisito, cheio de delicadezas com o 
pessoal da Grota, com coisa que essa gente não era inimiga. 
— Homem, eu também vou dar uma busca na casa, — disse Enéias. 
— Vou mais o senhor, Seu Alferes. — Enéias olhou e reconheceu quem lhe oferecia 
auxílio: o Sargento Alcides, que passou a dizer que conhecia a casa. Se alguém estivesse 
escondido, só podia ser na tulha de farinha, mas era difícil esconder ali. Custoso !!!!!
126 
qualquer pessoa meter-se dentro da farinha sem afogar-se. Contudo... 
Enéias e o sargento foram para o cômodo da tulha. Prontamente o sargento marinhou 
pelas tábuas, pediu lá de cima a espada do alferes e meteu-a torto e a direito na farinha. 
No meio da farinha estava Artur Melo, para quem o sargento piscava o olho em sinal de 
amizade. Artur estava de um lado e o sargento metia a espada do outro. Depois Artur 
passava para o outro lado e o sargento metia a espada do lado contrário. Cá de baixo 
Enéias orientava a caçada, e achando a espada curta, tomou uma Comblain, calou a 
baioneta e mandou que o soldado chuchasse com ela a tulha. A arma metia-se na farinha 
até topar o fundo da tulha. 
Sargento Alcides suava de esforço e de sobressalto. E se Enéias resolvesse subir na 
tulha? Nesse caso, o remédio extremo seria meter-lhe a baioneta e enterrá-lo ali na 
farinha. 
Sargento Alcides deixava de pensar nisso, para pensar no Alferes Xavier. Que diabo!Xavier também revistara a tulha. Xavier certamente viu Artur dentro. Será que Xavier 
também era espião? Pelo que sabia, Xavier tinha sido delegado especial, havia uns 
quatro anos, ali no Duro e fora recolhido porque o denunciaram como sendo um 
verdadeiro cabo de chicote dos Melos. Ali tinha marosca do Xavier! 
— Chega, — gritou Enéias. — Aí tem ninguém não! 
O sargento tomou alma nova e pulou de cima molhadinho de suor, o fôlego curto, numa 
sopração de cachorro que correu veado. Enéias chegou a ignorar: — Sentindo alguma 
coisa, só! 
— Até agora sem comer nada, meu Alferes... desde as duas horas em pé... 
Lá fora aprontavam para levar o cadáver do velho e de Mulato para a rua. Mendes de 
Assis lavrara o auto de resistência, já oficiara ao juiz comunicando o resultado da 
diligência e o juiz mandara levar os cadáveres para o auto de corpo de delito. 
Enéias pediu permissão ao comandante. Iria juntar-se ao Sargento Odilon e a seus 
soldados. Ah, Artur não escaparia! Outra ocasião tão propícia para forjar um auto de 
resistência jamais encontraria. Se andasse ligeiro, quem sabe Artur não seria enterrado 
de uma só vez com o pai e com Mulato? !
127 
 O cavalo rompia distância e Enéias pensava. Certamente Artur dirigia-se para o 
Açude. Ao Açude, porém, Enéias não ia só com um sargento e quatro praças. Açude 
devia ter gente muito bem armada. João Rocha estava lá e a jagunçama de João Rocha 
era a cabeleira da jagunçama. E Abílio Batata será que não estava tam bem lá? Homem, 
nem a companhia inteira do Duro daria conta do Açude. Quem conhecia Batata e Roberto 
Dorado era Enéias. !
POR VOLTA das dez horas da manhã chegavam à Vila os corpos do Coronel Pedro Melo 
e de Mulato. Vinham os dois numa só rede, misturando na morte o sangue. 
 A Vila estava deserta e muda, apenas os praças do Alferes Mariano guardando a 
casa do juiz, vizinha da igrejinha. A gente dos Melos estava na Grota, as mulheres de 
soldado estavam na fazenda, os adversários dos Melos, poucos, estavam na rua. E os 
que estavam na Vila, ao saber da notícia, fecharam-se em suas casas. Portas fechadas, 
janelas fechadas, apenas uma frinchinha aberta por onde vigiavam os acontecimentos. 
Que coisa horrorosa! Mataram o Coronel Pedro Melo, o homem que supunham imortal! 
Agora Artur atacaria o povoado para vingar a morte do pai. Artur era companheiro de 
Abílio Batata, Roberto Dorado e Maroto, chefes de bandos famosos pelos massacres de 
Pedro Afonso, São Marcelo e Santa Filomena, no Piauí. 
 — Vai haver castigo, — regougava Januária. — Eles num respeitaram nem a 
véspera de Natal! 
 De seu sítio chegou Valério Ferreira e foi comentar o ocorrido com Vicente Lemes: 
 — Coisa malfeita, Valério, o velho não merecia isso. — Valério fechava-se em 
copas. Chupitava o cigarrinho, tossia, mas não dizia nem arroz. 
 A rede lá vinha pelo povoado vazio, vazio, conduzida por dois soldados. Os passos 
retumbavam, a carga estava pesada, o sol retremia de quente. Os soldados deitaram a 
rede no chão para tomar fôlego. Da terra subia um bafo de mistura com o trilar dos grilos. 
Nuvens grossas manchavam o céu azul; nenhum vento soprava. Iam ter aguaceiro pela 
tarde. 
 De cá, Valério cutucava o braço de Vicente, ambos na frincha da janela: !!
128 
— Vejam onde descansaram o velho! 
 — Meu bom Jesus da Lapa! — bradou Lina, que se encolheu todinha, assaltada 
por súbito arrepio. É que haviam pousado a rede justamente no lugar em que o velho 
fincara a alavanca para marcar onde caíra morto o sobrinho Vigilato. 
 Por trás de cada porta e de cada janela, alguém fez o pelo-sinal e beijou o 
bentinho. Aquilo era castigo. E mais castigo estava para vir. Mataram um homem tão 
poderoso como o Coronel Pedro Melo e ainda por riba na véspera do Natal! 
 — Arriba com a rede, — comandou um oficial. Os soldados meteram os ombros, os 
passos retumbaram no Largo deserto, foram esbarrar na porta do juiz, em cuja sala se fez 
o auto do corpo de delito nos dois cadáveres. 
 Ambos estavam irreconhecíveis, com as cabeças esmigalhadas, cheios de 
balázios e facadas, sujos de sangue e de terra. Doze horas e não haviam terminado o 
auto, o grosso da tropa entrou no povoado, conduzindo presas diversas pessoas. Vinham 
Melinho, irmão de Artur, e Hugo, filho de Tozão. Carvalho determinou que todos fossem 
postos em liberdade, com exceção de Hugo. Este era um dos indiciados e ficaria preso 
para o sumário de culpa. 
 Carvalho determinou a Mendes de Assis que pusesse a tropa em forma. 
 — Companhia, sentido! 
 E ali, em frente dos soldados, diante dos dois cadáveres de rostos descobertos, os 
oficiais Mendes de Assis, Xavier e Severo juraram solenemente que os dois homens 
tinham sido mortos porque ofereceram resistência à ordem de prisão. Cada um dos 
oficiais disse isso de sua vez, com voz solene que reboava pelo Larguinho. A voz rolava 
clara. Cada palavra era repetida pelo eco da casa fronteira. Parecia que alguém colocado 
de lá repetia as palavras num tom sardônico e terrível. 
 Feito isso, Carvalho chamou o oficial de justiça e deu ordem para entregar os 
cadáveres aos parentes, para o enterro. 
 Moisés Albuquerque Melo era um dos poucos parentes que ali se achavam. 
Sobrinho do velho e cunhado de Artur como de Vicente Lemes, esse parentesco lhe dava 
uma posição neutra no conflito. Tanto mantinha relações de amizade com os Melos, 
quanto com seus rivais. Moisés levou os dois cadáveres para sua casa, deu-lhes banho, 
limpou. Mandou um portador à Grota, onde ficara !
129 !
Aninha, esposa do velho, Anastácia, filha dele, Tozão, seu cunhado e genro, para saber 
as ordens. Mas ninguém veio. Mandaram dizer que Moisés enterrasse o tio no cemitério 
da Vila. 
 Moisés então retirou da casa de calçada alta a roupa de casimira, camisa, meias, 
botina e gravata do velho Pedro Melo. Vestiu-o como ele não gostava, isto é, casimira: 
vestiu-o como um boneco. Enquanto isso, o carapina encarregado de fazer o caixão 
procurava por toda parte as tábuas de cedro que o velho preparara e guardara para o seu 
enterro. Mas não encontrava. 
 Era uma pena! Moisés queria respeitar a vontade do tio. Sabia que ele queria que 
seu caixão fosse feito com aquelas tábuas. Debalde enviara portadores à Grota, mas a 
velha Aninha nada podia adiantar, parece que estava passada com o choque. 
 — Que pena não achar as tais tábuas! — Moisés ainda se lembrava. Foi quando o 
velho abria a estrada de Barreiras que viu a vergôntea de cedro agitando no ar as suas 
folhas verdes. Viu e não deixou que a cortassem. Era para crescer e dar tábuas para seu 
caixão. 
 O cedro tornou-se intocável, cresceu, virou árvore frandosa ali no meio da estrada. 
Todos que por ali passavam, lembravam que aquele cedro era para o caixão do velho 
Melo, e o respeitavam. Alguns pensavam: Será que o velho morre? Ele não se diz imortal! 
E a história de Maria Pequena, a história que o capetinha da garrafa o livraria da morte! 
 Entretanto, apesar dessa compreensão, apesar de se ter como imortal, com os 
anos o velho pegou a perrengar. Já não comia, como antes, seus pratarrões de arroz com 
carne-seca. Já não suportava, como sobremesa, aqueles pratos de arroz temperado 
apenas com sal. Um peso no estômago, dores, mal-estar, bocejos. Um dia, o Doutor 
Alípio lhe dissera: 
 — É úlcera, coronel. 
 Mas ele danou-se: 
 — Que mané úlcera. Isso é raiva do desgraçado do Vigilato! E tentou reagir, fazer 
suas caçadas, comer seus pratarrões de arroz, mas sentiu que não era mais o mesmo. 
Uma morrinha pelo corpo, boca amarga. Aí, calmamente, chamou Resto-de-Onça, 
aprontou o carro de bois, meteu-se dentro e lá se foi pela estrada de Barreiras até topar o 
cedro. No caminho, juntou mais gente. !
130 ! !!!!
!!!!!
 — Derribem o pau, — ordenou, e tirem as toras para desdobrar em tabuado. 
 Ele mesmo catou os raminhos menores de cedro, amontoou dum lado da estrada 
com aquele cuidado que ele sabia ter. Depois voltou com as toras para a rua e deixou 
elas na frente de sua casa, para secar. 
 Passado um ano, com a entrada da seca,contratou uns serradores, armou no 
Largo o estaleiro, cobriu-o com folhas de buriti e durante vários meses o povo teve sua 
distração, que foi a de ver os serradores desdobrando as tábuas. 
 Eram dois maranhenses entroncados e contadores de estórias. Um deles, o 
Realino, era paralítico das pernas, mas ninguém o agüentava na serra. 
 Primeiro lavraram as toras a machado, em seguida meteram a serra de mão. O 
velho sempre estava por ali olhando o serviço e para a prosa vinham outras pessoas. 
Vinham Moisés, Afonso Quinto, Constando. Os rancores ainda não eram muito profundos. 
Pouco antes se dera a briga com Vigilato e ali junto dos serradores o velho arrastava seus 
bagaços, cuspindo com as dores do estômago. Realino velho contava estórias de Abílio 
Batata e dos barulhos da Boa Vista. Até sabia uma moda de Abílio Batata, que era uma 
coisa muito bonita. 
 Tirou-se dúzia e meia de tábuas boas, que o velho guardou cuidadosamente para 
não empenar. Era seu caixão. De vez em quando havia precisão de cedro e o povo se 
lembrava: — Bem que o coronel tem umas. 
 Mas ninguém tinha coragem de falar com ele. Sabiam que eram especialmente 
para o caixão dele. Pronto! 
 Naquela manhã Moisés procurava as tábuas. Perguntava a um e outro, onde será 
que o velho tinha guardado elas, mas ninguém não dava definição. Ainda se Camila 
estivesse ali, ou Mulato não houvesse morrido, poderiam dar informações. Ninguém que 
estava na Grota tinha coragem de vir à Vila. Aninha só fazia esbravejar, Doutor Herculano 
não queria vir, negra Camila andava meio banzeira, a mo que dormindo em pé. Sabia de 
nada dessa vida. Resto-de-Onça ninguém sabia por onde andava, nem de Artur se tinha 
notícia! 
 Pelas tantas, Moisés tomou deliberação. Largassem as tábuas !
131 
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de cedro de mão. Pegassem aquelas de São José que estavam emcostadas no sobrado 
do Largo. 
 Tardezinha, saiu o enterro. Quase ninguém havia para acompanhar os dois corpos. 
Maria Pequena e a velha Januária iam atrás rezando seus terços e, ao passar pela igreja, 
bateram síninho. Maria Pequena pensava na capetinha do juiz. Ela previra que o juiz, ou 
antes, sua capetinha daria cabo do velho. Os Melos podiam muito até que Carvalho 
chegou com a capetinha. Dagora em diante estavam perdidos. !
RUMO AO CEMITÉRIO, ia o cortejo, constituído de umas dez pessoas, se tantas. Pelas 
moitas de assa-peixe e de cansançao da grotinha, as almas-de-gato piavam e piavam de 
novo, voando o vôo mole daqui prali. Ah, estavam mexendo no cemitério, já se sabia! Os 
bichos ficavam assanhados e vinham para a Vila dar o alarma, protestar contra a invasão 
de seus domínios. Já boquinha da noite e os bichos ali na rua voando seu vôo molengo e 
piando aqueles pios de mau agouro. 
 Quem diria que no outro dia era Natal, que no outro dia de festa? Ninguém estava 
se lembrando do nascimento do Menino Jesus. O que havia era o medo, a opressão, o 
temor ainda não configurado perfeitamente de que Abílio Batata viria vingar o sangue do 
velho coronel. 
 Talvez nem dez pessoas acompanhando o enterro. Para pegar na alça do caixão 
apareceram os mais pobres, os mais humildes: o coveiro, o carapina, o pedreiro. De mais 
posição, só havia o Moisés. Tal e qual o enterro de Vigilato. Era castigo. Vicente Lemes 
se condoeu do abandono, chegou a pegar o paletó para sair, mas Lina o deteve. Lina era 
sobrinha do velho e tinha no sangue a malícia deles. 
 — Não vai, Vicente. Não vai, que amanhã vão dizer que Você foi para mostrar 
grandeza, para regozijar. 
 Assim dizendo Lina cerrou as portas e as janelas do casarão de Dona Benedita. 
Sinal de luto, que duraria sete dias. Ela e a filha poriam vestido preto, pelo tio. Já 
entregara a roupa para Maria Pequena tingir no barreiro. 
 Do alto, vinha a noite — uma noite terrível. Os céus para os lados da Bahia 
estavam da cor de carvão, de tão carregados de nu- !
132 
vens. De vez em quando um relâmpago cortava o negrume e o ribombo do trovão ecoava 
soturno pelas serras, fazendo retremer as portas e janelas. 
 Em dezembro, as noites chegam tarde. Em dezembro, oito horas da noite, a gente 
ainda pode andar sem candeia dentro de casa. No entanto, naquele dia, seis horas e já 
Alice acendia a candeia. 
 A chuva cairia já-já sobre a cidade. Valério Ferreira não iria para seu sítio. A chuva 
já pegava a cair e era chuva dos diabos. Ferreira dormiria ali mesmo. Lina serviu o jantar. 
 A seguir Valério Ferreira e Vicente Lemes pegaram a conversar. Já se sabia muita 
coisa da ocorrência da Grota. Vicente não queria fazer um juízo temerário, mas a polícia 
se excedera. Diziam que o juiz Carvalho estava muito enfezado com Mendes de Assis. Ô 
juiz teria dito que a polícia tinha praticado um crime revoltante. 
 — Pedro achou o que caçava há muito... Agora falta o filho... 
 Vicente se admirou da dureza de Valério. Como podia ser assim intransigente, 
como podia ter tanto ódio! Vicente Lemes era mole. com o velho morto, toda a mágoa se 
fora. A morte punha termo a tudo. Sinceramente que não sabia odiar. Mesmo para o 
inimigo, Vicente achava que se devia ser justo e humano. Sinceramente lamentava a 
morte do velho. A polícia fizera violência. Se Carvalho estivesse na Grota, não o teriam 
morto. 
 No fundo, um terror atazanava Vicente. Era impossível admitir que o velho tivesse 
morrido daquele jeito. Ele que era tão poderoso, tão arrogante! E a coisa ficaria naquele 
pé? No fundo, no mais profundo de seu entendimento, Vicente mesmo achava que um 
castigo, um castigo qualquer cairia sobre a cabeça dos habitantes do Duro, pela morte do 
velho Coronel Pedro Melo. 
 Valério também acreditava que a polícia se excedera, mas dava de ombros: 
 — Se a polícia fez violência, pela primeira vez fez violência útil. 
 A chuva batia com força. Chuva de vento, ululando nas janelas, entrando pelo vão 
das telhas, entrando pelo vão do pau-a-pique meio roído num ou noutro ponto, apagando 
as candeias, com cada raio que alumiava meio mundo e reboava pelas serras num 
estrondo de ensurdecer. 
 Valério Ferreira levantou o corpo magro de tuberculoso, tossiu, acendeu um cigarro 
e pilheriou amargamente: 
 — O velho já aportou lá em riba... assunta o barulho! !
133 
 — Uai, amanhã é dia de Natal! — admirou-se a menina Alice Lina não disse nada, 
mas sentiu uma pontada no coração. Dona Benedita, aquele ano, não estava fazendo seu 
presépio, como de costume. E isso era mau sinal. Ixe, havia tantos maus sinais naquele 
dia! !
A POLÍCIA abriu novas trincheiras e reforçou as guardas. Esperava-se que Artur Melo 
atacasse a qualquer momento com o pessoal do Açude. Vicente chegou até pensar em 
mandar buscar em Pedro Afonso o preto Supriano, a única pessoa que havia conseguido 
escorar Abílio Batata por aquelas bandas. Nisso, porém, outras notícias chegaram. Artur 
havia seguido para a Bahia, talvez em busca de mais gente, talvez para depois atacar. 
 Homem resmungão, o Valério Ferreira. Ele falou pra Vicente que o Juiz Carvalho 
andava com parte. 
 — Com parte, como? 
 . — Está muito apressado. com jeito de quem está louco para terminar o inquérito e 
ir embora. 
 Vicente riu. Para Ferreira tudo ia sempre mal. O juiz não iria sair num momento 
como aquele, com a ameaça do ataque a qualquer instante. 
 Valério disse a esmo: — Sei lá! Já vi tanta gente correr desse Melos... Não creio 
que Carvalho saia em paz... 
 — Ara, ’cê só vê o lado ruim, Ferreira — reclamou Vicente, mas ficou com a pulga 
atrás da orelha: Sabia-.se lá! Antes Valério Ferreira falou de um pacto entre o Juiz 
Carvalho e Artur Melo; todo mundo achou que era maledicência de Valério. Quando 
acaba, Hugo Melo preso na casa do juiz estava agora afirmando que esse trato existia. 
Hugo Melo afirmava que o juiz tinha garantido a seu tio que dispersasse os homens e ele 
impronunciaria a todos. 
 Vicente dava tratos à bola, pesando as palavras de Ferreira. Deveras o processo ia 
numa corrida dos trezentos. Já se havia realizado o sumário de culpa, com inquirição de 
testemunhas, já se tinha feito o interrogatóriode Hugo Melo, preso na Grota, único 
indiciado presente ao sumário. Para terminar, dera o juiz sua sentença, pronunciando 
Artur Melo, João Rocha, Hugo Melo e os irmãos Chapadenses. Quer dizer que o processo 
estava terminado. 
 O que havia era boato demais. Naquele instante, por exemplo, !
134 
comentavam que tinha havido um levante na polícia. Mendes de Assis e Xavier 
levantaram-se contra o juiz que não foi preso porque Severo e Enéias não deixaram. O 
motivo? O motivo era o dinheiro desaparecido. Dezoito contos tinham sumido da algibeira 
do velho, no dia que mataram ele. O juiz determinou um inquérito e queria prender os 
suspeitos. Mendes de Assis e Xavier rebelaram-se. 
 Cabo Matias, ordenança do juiz, procurou Vicente Lemes: — Doutor Carvalho está 
pedindo pro senhor dá um pulinho lá. 
 — Pois não, uai. — Andando, Vicente pensava nas palavras de Valério Ferreira. O 
juiz anda muito apressado. Parece que quer ir embora. E os jagunços de Abílio Batata, 
será que atacavam? com certeza o juiz vai me contar que pediu reforços em Goiás. Mas 
não vai valer de nada. Mesmo que venha reforço a cavalo, vai demorar um mês, e até lá 
Artur já fez disso aqui um outro Pedro Afonso. Não tem jeito. É castigo da morte do velho’. 
 Em sua sala, Carvalho estava como sempre: delicado, de uma polidez que não 
permitia intimidades, bem-posto no terno de linho branco, a gravata arrumadinha, 
barbeado de fresco. 
 Falava com energia, soltando as palavras como se fossem balas, mas 
pronunciando distintamente os sons. Começou por explicar que já havia dado o seu 
despacho de pronúncia, havia feito prender quem pôde e, assim, nada mais havia que 
fazer ali. 
 — Minha missão, minha aspérrima missão está finda. Sentado no banco, Vicente 
não sabia o que dizer. Carvalho não afirmara, mas Vicente adivinhava que ele ia partir. 
Valério desgraçado. 
 — Vou deixar a Vila — declarou Carvalho, num tom peremptório e solene. — 
Comigo seguirão o promotor, o escrivão, o AIferes Mariano, Sargento Barnabé, nove 
praças e meu camarada Alexandre. 
 Tais palavras deram uma dor no coração de Vicente, causaram uma sensação de 
imenso susto, despertou nele o sentimento de uma forte ofensa pessoal. Foi quase num 
soluço, sem sequer fitar o juiz, que perguntou: 
 — E a Força? Vai também? 
 — Não. A Força fica. Afora as pessoas citadas, a tropa inteira fica aqui. 
 Nesse ponto, o juiz levantou-se procurando talvez fugir ao mu- !
135 
tismo do interlocutor. Seu vulto atlético foi para lá e veio para cá num passo firme e 
elástico, como um tigre. As mãos nos bolsos da calça, o rosto baixo, continuava no 
mesmo tom peremptória — Também os doentes, aquele tísico, os estropiados, aquele 
enfermo de doença venérea vão embora. 
 A cabeça de Vicente zoava. Não sabia como reagir. Ficar calado, dizer alguma 
coisa, continuar assentado, ir para casa? Pegou o canivete, o fumo, alisou uma palha e se 
pôs a picar fumo, enquanto tentava encarrear as idéias. Cruzou e recruzou as pernas, Ele 
tinha esse hábito deselegante de estar. Cruzava as pernas e, como elas eram magras, 
enrolava-as mais uma vez pelas canelas. Ficava encolhido, murcho, feioso que nem um 
macaco doente. 
 De cabeça baixa fazia o cigarro, a cara contraída no esforço da concentração 
mental, o nariz adunco parece que mais adunco. Nos olhos, olhinhos azulados, sentia um 
ardume de lágrimas. Era uma merda. Uma merda aquele tique. Tinha medo que as 
lágrimas lhe corressem pela cara. Era preciso reagir, bancar o homem, um homem não 
chora, Vicente! 
 Em seus ouvidos zumbiam as palavras de Valério. ”O juiz estava se sujando. 
Porque sair naquele momento? Se os jagunços estavam ameaçando invadir a Vila, a 
culpa disso cabia a Carvalho que decretou a prisão do velho, mandou prendê-lo e, de 
uma ou de outra forma, contribuiu para sua morte. Agora Artur vinha vingar a morte do 
pai e nessa hora o Doutor Juiz de Direito ia embora, dava por finda sua aspérrima 
missão!” 
 Essas considerações tiveram o condão de acalmar Vicente, que se sentia senhor 
de si, com coragem de fitar Carvalho. E o enxergou com a dimensão de um homem 
comum. Perdia a grandiosidade com que sempre Vicente o enxergou, na sua fantasia de 
tímido e emotivo. Parado na sua frente, Carvalho perguntava: 
 — Você acha, Vicente, que eu devo permanecer aqui uma vez encerrado o 
processo? Há motivo para essa permanência? 
 Vicente fitou-o vagamente, como se estivesse olhando através de seu vulto, como 
se uma distância imensa separasse eles dois. 
 E não respondeu nada. 
 Estava pensando em sua própria situação. Aquela pergunta feita de chofre, o 
desnorteava. Foi o juiz mesmo que contestou, raciocinando em voz alta: 
 — Se eu permanecer aqui e Artur atacar, dirão que o ataque !
136 
foi motivado pela minha permanência. Indo embora, todos dirão que fui covarde, mas a 
verdade é que nada há que justifique minha permanência. Fui comissionado para quê? 
Para apurar fatos e punir aqueles apontados como culpados. Foi o que fiz. As decisões 
legais são cumpridas pelo órgão coator, pela Força, pelas Forças Armadas. 
 Parecia que havia terminado, mas ainda acrescentou: 
 — Minha missão foi cumprida inteiramente. Artur quer vingarse do juiz. Ora, se o 
juiz não estiver na Vila, ele não atacará. É um raciocínio mais do que lógico! 
 Andou, virou e arrematou: 
 — vou ficar com nome de covarde. Não importa. Quem sabe se sou covarde ou 
não, sou eu. 
 Carvalho tinha razão. Era duro aceitar seu afastamento, sua figura física e moral 
era uma garantia para os moradores, mas não se podia exigir que ficasse. Vicente não se 
sentia com forças para convencer o homem a ficar. O raciocínio dele tinha sido claro e 
convencedor. 
 — Está certo, Doutor. Ninguém está dizendo nada de sua atitude não. 
 Carvalho continuava andando para lá e para cá, parece que querendo ouvir uma 
objeção qualquer dos lábios de Vicente, mas este estava atordoado. Em seus ouvidos 
zumbiam as palavras de Valério: ”Carvalho tem trato com os Melos”. Diante de seus 
olhos, não era o Juiz Carvalho que andava: era Valério Ferreira, corcunda, a cara magra, 
a tosse cava, consumido como um defunto. 
 Vicente sentiu uma idéia surgir, crescer, tomar corpo: também ele devia abandonar 
a Vila. Ele apenas? Também Ferreira, também Júlio de Aquino, também Moisés, também 
a sogra Benedita, Argemiro Félix, Jugurta e outros. Deixar a Vila e levar a família, gado, 
pertences, levar tudo. 
 Mas seria isso possível, gente? Deixar a Vila seria confessar a derrota, seria dar a 
vitória aos Melos. E se saíssem apenas ele, Vicente, e Valério? Nesse caso, em que 
situação ficariam os parentes, os amigos, todos aqueles que acreditaram e confiaram 
neles dois, seguindo-os, dando-lhes apoio? 
 Para Vicente, uma retirada naquele momento significava medo, acovardamento, 
vergonha para o resto da vida. Além de tudo, deixar a Vila era entregá-la e a região à 
sebaça de Artur e seus capan- !
137 !!!!!!!
!!!!!
gas, que roubariam, matariam, violentariam mulheres: Pedro Afonso, Boa Vista, São 
Marcelo. 
 Carvalho assentou-se à mesa, tomou de uma pasta e informou Vicente de sua 
última resolução: havia demitido Mendes de Assis do comando do destacamento. O 
comandante agora era Severo. — Nesse sentido, enviei um portador para a Capital, 
levando correspondência ao governo. Mas não creio que o portador chegue. Artur o 
prenderá por aí. Foi por Barreiras. 
 A esse tempo, a noite vinha caindo. Feia, fria, molhada, de chuva. Fazia já dias que 
a chuva não cessava, chuva teimosa, chuva renitente, que o vento açoitava feito uma 
neblina. Pelas grotas a saparia roncava, enquanto a enxurrada gorgolejava. Nas moitas 
que cresciam com uma exuberância de milagre, os grilos cricrilavam numa monotonia de 
dor. No córrego, as saracuras quebravam seus potes. 
 Alexandre entrou na sala e disse alguma coisa a Carvalho que se virou para 
Vicente Lemes: 
 — Veja aí. Os animais estão no pátio. Vamos arrear. Novamente invadiu Vicente a 
sensação aguda de desamparo, de isolamento, de ameaça dos jagunços. A idéia de 
deixara Vila, de ir embora como o juiz era impraticável. Quando ia pensar nela com mais 
profundidade, as idéias fugiam, um abismo se abria no cérebro, tolhia-o uma inibição 
irremovível. Fugir não era brincadeira. Para o resto da vida seria um Enéias Peixoto. 
 Entretanto, por que razão contar como infalível o ataque deArtur? Ele podia estar 
com farronca, mas não atacaria. Artur era político e renome, ex-deputado estadual, não 
iria se transformar num cangaceiro. Ah, não tinha perigo. Vicente conhecia demais Artur. 
Aquilo não passava de zoada que estava surtindo efeito, pois Carvalho velho, tão valente, 
tão destemido, Carvalho já lá ia de arribada! 
 Carvalho ergueu a voz: 
 — Mandei chamá-lo para que me adiante o dinheiro da viagem. — Ele estava sem 
um real. Desde que deixara Goiás não recebera vencimentos. — Depois pagarei à 
Fazenda, na Capital. 
 Vicente pediu licença, ergueu-se, foi a casa e trouxe o saldo da Coletoria. Seis 
contos de réis. Carvalho contou, botou as notas dobradas dentro da pasta: 
 — Tem os selos para o recibo? !
138 
 — Não. — Não havia estampilhas federais no povoado. 
 Carvalho daria uma declaração de recebimento. A pena rangeu no papel 
escrevendo a declaração. Vicente dobrou e meteu no bolso, junto com a carta de Eugênio 
Jardim e, a seguir, sentindo que nada mais havia que fazer ali, apertou a mão do juiz: 
 — Até outra vista. 
 — Até outra vista — respondeu Carvalho. 
 — Feliz viagem... — disse Vicente, que quis espichar a frase, dizer alguma coisa, 
mas era incapaz. Repentinamente, um muro, uma muralha caía entre os dois homens. Até 
parecia que não-se conheciam, que eram dois estranhos, aos quais nenhum interesse 
comum jamais ligara. Um desgosto fundo, um desengano danado, um enfado de tudo 
apertando o coração de Vicente Lemes. 
 Inda ontem entrava ao lado de Carvalho, todo garboso, mostrando o valor da 
autoridade, provando que não era somente a violência que imperava no mundo, 
afirmando que Artur e seu pai não eram os vice-reis que se diziam. Afinal, naquela tarde, 
Vicente Lemes se encontrava novamente no desamparo, cara a cara com a truculência. E 
em condições mais difíceis: tendo que responder por crimes que não cometeu. !
ERA NOITE quando Vicente Lemes chegou em casa. A mulher e Alice estavam deitadas. 
Foi até o quarto e Lina perguntou o que estava acontecendo. 
 — Nada — respondeu. — Não há nada. Estava sem sono, iria ficar na sala ainda 
um pouco. 
 Sentia vontade de conversar com alguém, trocar idéias. Se Valério Ferreira 
estivesse ali, seria bom. Talvez até aprovasse a idéia de se retirarem do povoado, de irem 
embora para outro lugar. Ferreira era compreensivo. Não fora assim no dia do ataque ao 
Cartório? Quando não havia mais jeito, concordou com Artur Melo. 
 E se procurasse o tio Argemiro Félix, ou os primos Moisés e Júlio de Aquino? Qual! 
Não iria procurar ninguém. Era uma solução difícil de aceitar, essa de deixar a Vila, sair 
pela segunda yez com medo de Artur e seu povo! Que é que não iriam dizer os amigos e 
companheiros? Muita gente quando visse Vicente e seus amigos pelas costas estaria 
dando vivas a Artur. E os companheiros? Certamente que se sentindo livre dos 
opositores, Artur viria ao po- !
139 
voado, prenderia gente, mataria, saquearia, faria o diabo. Não foi assim em Pedro 
Afonso? Ali, Salomão Solino, Deocleciano Amorim e outros tiveram que pagar um pesado 
resgate por suas vidas a Abílio Batata. Depois de receber dinheiro, fazenda e outros bens 
desses homens, Abílio determinou a sebaça na região, dali foram retiradas mais de seis 
mil reses, que Abílio, Maroto e dorado levaram para a Bahia. 
 Do Largo vinham ruídos. Vicente chegou à janela. No escuro da noite apenas 
vislumbrou vultos: era o povo do juiz indo embora. 
 A noite continuava meio fria, feia, nublada, com grandes nuvens esgarçadas e 
baixas sujando o céu. Uma neblina caía molhando tudo. Lá se foram os cargueiros, o 
oficial, os soldados. Alguns, a pé, outros montados. Até os sapos na grota pararam de 
coaxar, até os grilos nas moitas suspenderam seu cricrilar de sono para deixar a caravana 
passar, ir embora. Só os cães latiam desesperadamente. A Vila dormia. Ninguém sabia 
que Carvalho ia embora, ninguém estava vendo. Saía como fugitivo. Isso mesmo: como 
fugitivo! 
 Nesse ponto, o desgosto voltou ao espírito de Vicente Lemes. Valério Ferreira tinha 
razão. Na hora do pega para capar, o diabo do juiz fazia um papelão daquele, saía 
escondido feito um fugitivo, largando a Vila e o povo que confiou nele em completo 
desamparo. 
 Vicente francamente que achava aquilo feio. ”Acabou-se o inquérito, minha missão 
está finda”. Aquilo eram frases. Para um homem, sob o aspecto moral, esse negócio de 
terminar inquérito, esse negócio de missão finda, eram palavras. Diante de tudo que 
aconteceu, Carvalho estava na obrigação de permanecer na Vila até que Artur Melo 
pusesse fim às ameaças de ataque. 
 Vicente também se acusava. Tinha sido mole, tinha sido medroso. Devia ter 
argumentado com o juiz, devia ter-lhe dito essas coisas, devia ter exigido que ficasse ali 
pelo menos como uma garantia moral. A ameaça de ataque era fortíssima. Todo mundo 
dizia que Artur estava reunindo capangas. Carvalho não ignorava porque Vicente lhe 
contara. Quem chegou com a notícia foi Umbehno Ferrador, tropeiro da Bahia, que ia de 
arribada para Porto Nacional: 
 — vou de arribada, Seu Vicente. Enquanto não serenar esse barulho, não volto. !
140 
 — Mas que há, homem de Deus? 
 — Que há, então não sabe? Estive em São Marcelo com o povo de Artur Melo. 
Está reunindo os cabras de Abílio Batata, Roberto Dorado, Maroto, Passarinho e 
Umbuzeiro mode acabar com isto aqui. É pra ser pior do que Pedro Afonso. Enquanto não 
serenar, eu não ponho os pés pr’essas bandas, seu mano. 
 — Você conversou com gente de Artur, com parente dele, ou foi com capanga? — 
prosseguiu Vicente puxando a língua do homem, que soltou tudo que ouvira em São 
Marcelo. 
 Quem lhe contou foi um sobrinho de João Rocha, gente de confiança. Umbelino 
Ferrador contava que finda a busca na Grota, de noite, Artur deixou a tulha de farinha 
adonde estava escondido e meteu os pés pela biboca, fugindo em demanda do Açude. 
com as barras do dia, meteu-se pelo mato, desviando da patrulha, e chegou cedo ainda 
no Açude, onde topou João Rocha juntando gado para Abílio Batata. A chegada de Artur 
foi um alegrão, pois eles o tinham por morto, como o pai. 
 De imediato, Artur seguia para Barreiras, a fim de obter dinheiro, armas, gente e 
munição para o Duro. 
 Isso, tal como ouvira da boca do dito Umbelino Ferrador, homem de respeito, 
Vicente transmitiu para Carvalho, ponto por ponto. Contou mais aquilo que o povo vivia 
boquejando: isto é, que Carvalho havia prometido não pronunciar os Melos, se eles 
dispersassem os cabras. E foi só eles pegarem a dispersar, o juiz mandou prender. 
 Do quarto Lina chamou Vicente: 
 — Vem deitar que já é tarde, home! 
 — Vou já-já. Estou acabando umas cartas. 
 A madrugada vinha querendo romper. Os sapos voltaram a cantar e os grilos a 
sacudir seus guizinhos de prata. Galos cantaram desanimadamente na manhã enxarcada. 
Uma neblina densa caiava a Vila, tampando tudo. E como o tempo esfriasse, Vicente 
fechou a janela para dormir, mas de novo lhe voltou à cabeça a história do juiz destituindo 
Mendes de Assis do comando da Força. 
 Vicente passou a considerar mal a polícia a partir daquele momento. Sempre 
achou que mataram o velho sem precisão. Achou mesmo muito esquisito quando viu 
chegar aqueles cadáveres. O velho era violento, brigão, metido a valente, mas era 
covarde. 
 De sua prisão no quartel de Severo, Hugo Melo não calava a !
141 
!
boca. Dizia que o velho já se havia entregue, quando os soldados o mataram com 
baionetas, tiro e coronhadas. O velho já se havia entregado ao Soldado Fabriciano e 
Freitas Machado, quando outros soldados o mataram. 
 Aquela polícia não merecia confiança. A responsabilidade de Mendes de Assis era 
muito grande. Ele estava repetindoas proezas do Capitão Machado, em Boa Vista. Para 
Vicente, a retirada do Juiz Carvalho estava ligada aos desmandos de Mendes de Assis. 
 À luz indecisa da manhã, Vicente teve medo da polícia: um bando de facínoras. Ela 
se mantivera disciplinada até ali porque Carvalho era duro nas embiras, tinha uma energia 
de general. Bastou, porém, que não fosse à Grota, que deixasse as feras às soltas, para 
que fizessem o que fizeram! 
 Despertado pela vigília, alertado pelas resoluções de Carvalho, agora ele ligava 
uma palavra ouvida aqui com uma deliberação acolá e reconstituía toda a situação. 
 Diziam que Artur estava oculto na tulha. Mas se estava lá, como é que o Alferes 
Xavier, nem o Sargento Alcides o viram? Talvez tivesse muito fundamento a história que 
contavam. Ao entrar na casa, Xavier recebeu uma bolsa cheia de dinheiro, para não achar 
Artur. 
 E roubo dos dezoito contos de réis que estavam na algibeira do 
velho? Porque Mendes de Assis não punia os culpados? Todo mundo estranhava muito 
que um simples soldado como Tonhá ou Guia-de-Cego estivesse comprando cavalos 
caros, no povoado! Carvalho, coitado, acabou vencido pela polícia. Quis abrir inquérito, 
apurar os furtos, apurar o crime, mas Mendes de Assis e Xavier se revoltaram e o 
obrigaram a sair. 
 — Vicente, vem deitar! — Lina estava de pé na porta da sala. — Que é isso, 
homem, parado aí feito uma assombração? 
 Arrancado bruscamente de seus pensamentos, Vicente abraçou-se com a mulher e 
saiu para o quarto. A luz da manhã metia-se pelos vãos da telha, desenhando as ripas e 
os caibros contra a claridade. Lá fora, os galos cantavam e uma ou outra rês berrava. 
 Um joão-de-barro cantou mesmo em riba da cumeeira seu canto em dueto, alegre 
e acelerado. 
 — Mau sinal — resmungou Lina, benzendo-se e encolhendo-se 
no leito. !
142 
No CASARÃO de Dona Benedita Fernandes as visitas entravam e saíam. A grande 
varanda atijolada estava bem varrida, com a mesa coberta com uma toalha de crivo, em 
cima dela a jarra de flores. 
 Ali estiveram Argemiro Félix, Moisés Melo, Júlio de Aquino e agora Valério Ferreira. 
Vinham trazer a Vicente e à sogra os votos de feliz ano-novo. A conversa decorria num 
tom apagado e melancólico, como se tivesse doente em casa, como se o cadáver do 
velho Coronel Pedro Melo estivesse insepulto ali na sala, impedindo a alegria e a 
desenvoltura. 
 Anualmente vinham do sítio os lavradores, os criadores, a Vila se transformava, 
ficava festiva. Dona Benedita armava o presépio, tirava as ladainhas, servia café-com-
leite com biscoito de goma. 
 Agora, o que se via era a tristeza, a Vila deserta, só com os soldados, mas mesmo 
estes confinados nos quartéis, de onde saíam para as trincheiras, para as patrulhas 
volantes ou para o banho no córgo. 
 — A senhora não devia de deixar de armar o presépio, dona Benedita. Faz mal. 
 Mas Benedita fazia ouvido mouco. Andava apreensiva, amolada, era dela que Artur 
mais tinha ódio, dizendo que de sua casa é que saíam os planos que Valério e Vicente 
executavam. 
 Benedita não tinha ilusões. No caso de um ataque, ela seria a primeira a sofrer 
maus-tratos e humilhações do pessoal de Artur ou de Abílio Batata. Nem sabia se iriam 
deixar ela com vida! Pedia que não judiassem muito, como fizeram em Pedro Afonso. 
 Ainda por cima, a notícia da retirada do juiz na noite anterior. Sem ele, sentiam-se 
desamparados, atirados às unhas dos jagunços. 
 Ferreira estava mais azedo: 
 — Não disse, Vicente! Carvalho custou, mas acabou borrando na retranca. Foi um 
Hermínio Lobato mais metido a sebo, mais cheio de farofa. — Havia na constatação do 
fracasso de Carvalho uma certa alegria, como se lhe desse satisfação o desmoronar de 
reputações. 
 — Que foi que Carvalho alegou para abandonar a cidade? Ele falou para você? 
 — Que estava finda a sua missão... 
 — Depois da traição que aprontou, só partindo, que se Artur !
143 
pega ele, fazia desse juizinho um pirão — soprou Valério num muxoxo. E continuou 
perguntando: — Prenderam os matadores É velho? Prenderam os soldados que furtaram 
o dinheiro e os objetos do cadáver do velho? 
 Vicente sentia-se constrangido em dizer que não. Para amemzar a situação, dizia 
que esses abusos é que levaram o Juiz Carvalho a ir embora. Mendes de Assis e Xavier 
haviam impedido qui ele punisse os culpados. Quase que houve um levante na Força, 
contra o juiz. 
 Valério Ferreira balançava a cabeça. De dentro, veio Lina com a bandeja de café, 
que serviu e perguntou pela família de Ferreira: — Como iam a mulher e as filhas? 
Respondeu que ia trazê-las para o povoado; estavam morrendo de medo de ficarem na 
roça. 
 Lina achou que era justo o receio delas. com o povo de Batata não se podia 
brincar. Veja o que fez em Pedro Afonso. Então Valério não estava lembrado? Aproveitou 
a ausência de Supriano e atacou a casa dele. Pegou a pobre da mulher que estava de 
barriga de seis meses, amarrou num pau e diz que ele mesmo, com facão, foi abrindo o 
ventre da coitadinha e tirando o neném. Gente que viu, diz que o bichinho ainda chorou. 
Credo! 
 Lina estava muito amedrontada. Ali mesmo exigiu de Vicente que escrevesse aos 
amigos e parentes pedindo para virem auxiliar na defesa da Vila. Ela não queria cair na 
unha daqueles malvados, que Deus a livrasse! 
 — É. Eu também escrevi, mas vou mandar um positivo reforçar o convite — falou 
Valério, repondo na bandeja a xícara vazia. 
 — O senhor acha que Artur ataca mesmo, Seu Valério, ou está balançando folha? 
 Valério não vacilou: 
 — Acho que ataca, Dona Lina. Tá chegando a hora de a gente botar o preto no 
branco. Nós precisamos estar prontos para o pior. Artur ataca porque ele é vaidoso 
demais, é orgulhoso despropósito. A morte do pai, o enterro sem gente, a polícia 
enganando eles, como Hugo Melo está contando, tudo isso foi uma humilhação para 
Artur. Ele quer tirar desforra, pode ficar certa. 
 De pé, Lina demonstrava um grande medo. Desde menina que ouvia histórias de 
malvadezas de cangaceiro. Em Boa Vista os jagunços faziam coisas horríveis. Dez, vinte 
homens se servindo de !
144 
uma mulher, na vista do marido, dos filhos, dos pais. De uma, contavam, puseram ela nua 
e fazendo tanto pecado, mas tanto, que quando os bundões foram embora essa coitada 
se atirou no rio e morreu de vergonha. 
 E os roubos? Ali mesmo estava Alferes Enéias que ficou pobre como um peregrino, 
ele que a família era das mais abastadas de Pedro Afonso! Também em Boa Vista, Chico 
Curto mais Capitão Machado acabaram com a família Wanderley. Mataram dezoito 
pessoas; e o pai vendo morrer um por um, até chegar a sua vez. 
 — Agora, então, com Batata é que vão atacar mesmo. Batata luta é por via da 
sebaça. Pedro Afonso lhe deu perto de dez mil reses, não se contando as fazendas, as 
peças de ouro, o dinheiro, os haveres que ele roubou. Dessa vez, somos nós — dizia 
Valério na sua voz cava, até que a tosse o assaltou. 
 Dona Benedita lembrava que se devia pedir a ajuda de Supriano, em Pedro 
Afonso. Supriano fora o único homem que conseguiu derrotar Abílio Batata, e isso porque 
tinha pauta com o cão. Diziam que para matar Supriano requeria que se fundisse uma 
bala de prata virgem, marcada com cruz num dia de Sexta-Feira Santa. E Abílio sabia 
disso. 
 — Cadê tempo, minha comadre? Até ir em Pedro Afonso, campear Supriano e 
volta com ele aqui, Abílio já fez do Duro uma paçoca. 
 Lina entrou com a bandeja, debaixo do maior desconsolo, imaginando que dessa 
vez ninguém escaparia. 
 Vicente consultou Valério da conveniência de abandonarem o povoado e a região, 
transferirem residência para outra cidade. Podiam ir para o Sul, Curralinho, Jaraguá, a 
Capital do Estado. 
 Valério fechou a boca com força, mordendo os beiços. 
 — Isso, não. Nosso lugar é aqui. Então largar tudo nas mãos desses bandidos? E 
as pessoas que tiveram confiança em nós, que nos estão acompanhando? Se a gente 
fugir assim na primeira ameaça, reconhecerão que somos uns porrados, que Artur é que é 
homem. 
 Fez-se uma pausa. Através da janela via-se o céu pardavasco,está, Artur vai gritar que estamos perseguindo ele; se 
a gente aceitar, ele denuncia que estamos com roubalheira. 
 Enquanto ouvia, o juiz se aproximava da mesa, onde pegando a caneta, escreveu 
seu despacho. Determinava que se desse conhecimento à viúva da exigêcia do Sr. 
Coletor. Por trás dos ombros do juiz, lendo o despacho à proporção que ia sendo lavrado, 
Cláudio riu-se. Vai haver banze. Artur não vai aceitar essa exigência de jeito nenhum — 
pensou Cláudio meio amolado, pois a ele é que cabia intimar Artur daquele despacho do 
juiz. 
 Lá por dentro batiam pratos e talheres. Januária estava pondo a mesa e Vicente 
foi-se retirando para sua casa, para almoçar. 
 — Almoça aqui, Seu Vicente — convidou Cláudio, mas Vicente agradeceu. O juiz 
Ferreira também reiterou o convite, embora se desculpasse por não ser o dono da casa. 
Vicente, porém, não aceitou. Ia comer em casa. 
 
No PRATO esmaltado, primeiro Vicente botou o feijão, depois a farinha de mandioca, 
misturou; a seguir botou arroz com carne seca, misturou novamente e levou uma garfada 
à boca. Lina, sua esposa, que servia a mesa e estava de pé a seu lado, indagou pela 
mulher de Ferreira. 
 — Deve de estar boa — respondeu Vicente mastigando —, não perguntei por ela. 
— Lina quis fazer outras perguntas, mas pela maneira seca como o marido respondeu 
àquela, percebeu que ele não queria conversa. Estava mergulhado nos seus problemas e 
só queria saber deles. Por isso, a mulher afastou-se para a cozinha, deixando-o só. Iria 
fazer seu prato e comer sossegadamente com a filha, que quando Vicente estava com a 
vó atrás do toco ninguém não agüentava ele. 
 Mentalmente, Vicente examinava mais uma vez as conseqüências que poderiam 
advir de sua exigência no inventário. Não esta- !
7ria fazendo besteira? Será que não estava com implicância com Artur Melo? Bem, mas o 
fato é que todo mundo estava falando que a viúva possuía as tais duzentas e tantas reses 
e mais os dois sítios e no entanto, por que é que Artur Melo, seu advogado, não 
apresentou esses bens? Não havia nenhum mal: como Coletor, sua obrigação era apontá-
los. Como muito bem dissera o juiz, era preciso denunciar o ocultamento das reses e dos 
sítios. Quem sabe se o próprio Artur Melo não estava com segundas intenções, querendo 
lesar os órfãos e a viúva? Contudo, o certo é que havia caroço naquele angu. A viúva era 
casada com um capanga de Artur Melo e esse Artur e seu pai, o Coronel Pedro Melo, era 
gente poderosa. O prestígio deles era incontestado desde Pirenópolis até Boa Vista. 
Tinham tanto prestígio que logo depois da revolução estadual de 1909 o nome de Artur 
Melo foi indicado para Presidente do Estado de Goiás; seus correligionários Eugênio 
Jardim e Totó Caiado, entretanto, discordaram da indicação e acabaram rompendo com 
ele. No pleito que seguiu à revolução, Artur Melo conseguiu eleger-se Deputado Federal 
tanto por Goiás como pela Bahia, mas quem disse de ele tomar posse! No Rio, os 
Caiados conseguiam depurá-lo, como então se dizia. 
 Foi aí que Artur Melo instalou-se na Capital do Estado com seu jornal de oposição, 
disposto a atacar o caiadismo na sua própria toca. Em represália, os Caiados, senhores 
do Governo, davam apoio político aos opositores dos Melos, no Norte do Estado, criando 
as bases para uma firme e poderosa oposição a Artur Melo e seu pai. Sentindo fugir o 
prestígio, Artur Melo abandona a Capital, e regressa para sua região, a fim de recuperar a 
antiga influência, mas lá chegando depara um quadro desanimador: os cargos públicos 
estão em mãos de adversários, o bafejo político faz do humilde bajulador de ontem um 
rancoroso inimigo. Adeus os bons tempos em que a vontade de Artur ou seu pai era a 
suprema lei! 
 Na própria vila do Duro, residência dos Melos, aí mesmo o Governo contava com 
dois homens de valor: um era o Juiz Municipal, Valério Ferreira; o outro, o Coletor 
Estadual, Vicente Lemes, pessoa de confiança de Eugênio Jardim. O regresso de Vicente 
era má coisa para Artur que ainda se lembrava de como nasceu a rixa com o primo. Artur 
era então Juiz Municipal e um dia chamou !
8 
!
o primo: — Olhe, Vicente, você é gente de casa, pobre, vou te nomear escrivão do 
Judicial e Notas. 
 Antes, porém, nunca o houvesse feito. Era um ingrato o Vicente. O fato foi que 
Norato, vaqueiro de Tozão, abandonou a fazenda do patrão e montou sua própria 
fazenda, com perto de duzentas reses. ”Norato roubou de Tozão” — gritavam os Melos, 
para quem somente pelo roubo poderia um pobre vaqueiro erguer-se à categoria de 
fazendeiro. E apesar das ameaças dos Melos, Norato veio a residir perto do Duro, onde 
se julgava seguro por trás das suas vacas e bois. Um dia Norato aparece morto e por uma 
só boca o povo dizia que o matador fora Calixto Chapadense. Artur Melo era juiz e em vez 
de procurar punir o criminoso, o que fez foi mandar arrecadar as quase duzentas reses do 
morto como bens vacantes; mas não as levou à praça, como mandava a lei. Procurou 
Vicente e lhe propôs darem um sumiço no processo. Argumentava ele: — Você sabe, 
Vicente, que esse gado é mesmo de Tozão. Então, vamos devolver ele a seu dono. Não 
acha? 
 — Isso não, meu primo. Sem provar que o gado não é de Norato, eu não concordo. 
De jeito nenhum. 
 — Mas ninguém fica sabendo, homem de Deus. Aqui tem lá alguém que entende 
dessas coisas! — Vicente empacava. Parecia-lhe um absurdo o hábito que tinham os 
Melos de roubar o povo valendo-se dos cargos de juiz, coletor e outros. Inventário ali era 
meio para legalmente o pessoal do Foro apropriar-se de bens alheios. Como dinheiro era 
coisa escassíssima, para pagamento das custas e demais despesas, que deveriam ser 
custeadas em dinheiro corrente, iam-se todos os bens do inventariado. As pessoas que 
possuíam dinheiro adquiriam esses cabedais na bacia das almas. Se o ”de cujus” era 
homem, a viúva e os órfãos eram esbulhados impiedosamente. 
 Aí o Juiz Artur Melo veio com outra proposta: — Eu compro a boiada independente 
de praça. Meu intuito é poupar serviço inútil para o pessoal do Foro. 
 — Bem. Se era assim, quanto daria Artur pelas quase duzentas reses? — O preço 
era tão vil que nem se podia aceitar. Uma vergonha a proposta! e Vicente ainda dessa vez 
não pôde concordar com o primo Artur Melo. Achava que havia leis, códigos, posturas 
municipais. O caminho era fazer como preceituava a legislação. !
9 Artur ficou danado: — Vem cá, você pensa que te nomeei por teus belos olhos? 
Achei que ia ter um amigo e quando acaba o que tenho é uma cascavel! 
 Passaram a se ver de cara torcida. Por fim, um dia, quando Vicente acordou, 
quéde o gado de Norato? Ninguém sabia dizer. Chamou Tozão que era o depositário e lhe 
disse que a responsabilidade era dele e que o iria processar. 
 — Ora, Vicente, deixe disso — lhe aconselhou o primo Artur Melo que por estas 
alturas era o todo-poderoso rei do Norte. — Não faça nada. Não vê que Tozão é cunhado 
da gente... 
 Vicente sentiu-se desmoralizado. O povo pegou a comentar e ele pensou consigo 
que era inútil querer acabar com as roubalheiras do Foro. O melhor era abandonar o 
cargo, sair daquele lugar infeliz. Vicente não gostava de quizílias e se arrependia de ter 
aceito o diabo do cargo. Que bom tempo aquele em que ignorava tais safadezas e podia 
viver em paz com o primo Artur Melo, com o parente Tozão, fazendo os bailes e as festas 
na casa da sogra Benedita e em outras casas. Como era bom. Agora, o que se ouvia era 
o fuxico, era o diz-que-diz, era a arrogância de Artur e seu pai. ”Quer saber de uma 
coisa?” Certa manhã Vicente ajuntou seus cacarecos, botou tudo no lombo dos burros, 
tangeu adiante suas reses e fincou o pé no mundo. Foi esbarrar em Conceição do Norte. 
 Era dali que Eugênio Jardim, ex-aliado de Artur, agora trazia Vicente, para com ele 
fazer frente aos Melos, no Duro. Dia a dia os correligionários dos Melos abandonavam 
suas fileiras, passando de armas e bagagens para as hostes de Vicente Lemes e Valério 
Ferreira, onde vinham buscar as delícias do situacionismo,ameaçando chuva. 
A Vila bocejava a pasmaceira do dia-santo, hoje sem nem ao menos os pios das almas-
de-gato. Quieteza, quieteza, como na tarde que o velho coronel foi enterrado. 
 Valério voltou a falar, completando seu pensamento: !
145 
 — O juiz pode fugir. É um funcionário público que veio pai! tocar oinquérito. Mas 
conosco a música é diferente. Somos moradores, somos de famílias radicadas aqui há 
muitos anos, somos os principais responsáveis por uma luta contra a violência de Artur, 
contra esse sistema que os Melos têm de não respeitar o direito dos outros. 
 Vicente não se convencia. Na verdade, depois da morte do velho, a situação de 
Artur melhorara. Agora a polícia é que aparecia como criminosa: o juiz traindo um trato, 
soldados matando o velho entregue e roubando o cadáver. Contudo, Vicente tinha 
vergonha de convocar o povo para abandonarem o Duro, para largarem aquela guerra 
besta. No fundo, sempre uma esperança de que Artur não atacasse, um receio de 
enfrentar o desconforto de uma nova vida no Sul. Deixasse o barco rolar. De hora em 
hora Deus melhora. 
 — Acho que não é preciso sair — arrematava Valério. — Temos soldados, temos 
amigos. Vamos escorar esse Artuzinho, gente Se ele tem coragem para atacar, porque 
não vamos ter coragem de defender! Nem tanto medo, uai! 
 O dia que amanheceu meio claro, escureceu que danou. Chuva tombava de 
toadinha e era chuva de afogar sapo. Embaixo, o córrego empolava, na cheia, a 
enxurrada gorgolejando. A Vila estava tristíssima, as casas fechadas. No Largo não 
passava ninguém, ninguém. 
 Nos anos anteriores, o pessoal pobre estaria de casa em casa com a filharada, 
pedindo as festas ou o ano bom. Os roceiros estariam vendendo no sobrado as 
abobrinhas, pepinos, ovos e frangos, para comprar um pano vistoso, grampos para 
cabelo, facas e balas. Na Vila não havia lojas, mas Moisés, Argemiro Félix, Tozão e outros 
tinham em casa frasqueiras repletas de artigos que vendiam a bom preço. 
 Embora nada dissessem, Valério e Vicente pensavam em Carvalho. A ausência 
dele abalava o ânimo de todos, que se sentiam entregues nas mãos ensangüentadas de 
Abílio Batata, Maroto e Roberto Dorado. Carvalho era um só, mas era homem duro, 
enérgico, resoluto, habituado a lutar e a comandar. Na testa daqueles soldados, não havia 
Abílio Batata capaz de resistir. 
 Agora, sem a energia de Carvalho para proibir os boatos, a cada !
146 
hora eles cresciam. Abílio Batata estava na boca de todo mundo. Falavam de sua 
amizade com Artur, a quem deu de presente um cavalo murzelo muito bonito. Falavam de 
um pacto de sangue que tinha com os Melos. Certa vez Supriano derrotou Maroto e 
aprisionou a mulher dele e de Abílio Batata. Artur é que conseguiu de Supriano liberdade 
para as duas donas, que ele em pessoa levou para o Piauí. 
 Batata conhecia a região palmo a palmo. Fora comprador de gado, fazendeiro em 
Pedro Afonso, tirador de borracha no Xingu e de maniçoba no Maranhão e Ceará. Uma 
vez sitiou Pedro Afonso e após cinqüenta horas de fogo invadiu a cidade, incendiou, 
matou muita gente. Foi dessa vez que botou o pessoal de Enéias para correr de lá, 
tomando suas fazendas, gado e haveres. Valério conheceu Abílio Batata em Conceição 
do Norte. Era baixote, meio corcunda, amarelo e magricela. Ninguém dava nada por 
aquela pinóia. Abílio vivia de seco e verde, metido em terno de linho branco, usava 
punhos duros com abotoaduras de ouro, chapéu palheta e sapatos amarelos de fábrica. 
Tinha uma voz fanhosa e fraca, ajudada de largos gestos de mãos para mostrar os anéis 
de ouro e brilhante que trazia nos dedos. Tinha dedo com três anéis. 
 Valério se lembrava que ele possuía uma boca larga de sapo e uns olhos morteiros 
e revirados, olho de quem estivesse morrendo. 
 Um dia um seu desafeto pediu-lhe paz. Abílio daria paz a troco da fazenda e do 
gado do desafeto, tudo isso com recibo passado como se fosse compra e venda. O 
adversário concordou. 
 Recebidos os bens do homem, Abílio Batata fez um sinal para Roberto Dorado que 
pegou o dito cujo, a mulher, os três filhos, amarrou tudo nos paus do curral e dizem que o 
próprio Abílio foi matando um a um. !
NAS HORAS de folga, nos quartéis, os soldados proseavam longamente, ao redor do 
fogo, onde chiava uma espetada de carne ou uma chocolateira de café. com a saída de 
Carvalho, a rigidez da disciplina abrandou. As mulheres voltaram para a Vila e os praças 
podiam estar mais à vontade. !
147 !
 Mané Vitô contava casos muito bem, com a palavra fácil e a voz bonita. Dizia ele 
que esse negócio de ter coragem, de ter coração duro, é que nem gengiva de velho. 
Quando arranca os dentes, a gente sente dor, mas depois a gengiva fica feito um pau, de 
dura. Pode esmoer até coco macaúba. Ao redor, alguns soldados riam. 
 Ser mau, ser capaz de matar e espancar era a suprema glória. Soldado manso não 
fazia carreira e era debicado. 
 — Não viam o Alferes Mariano? Aquilo era uma moça. De delicadeza, coitadinho! 
 — E Ferreirinha! Ah, esse daí num mata nem uma mosca de tirar o cavalo da 
chuva que não chega nunca a oficial. 
 — Só se for de Intendência — criticou Gabriel. 
 — Agora, vigia o Severo. Já é comandante! — ponderou Salustiano. — E Alferes 
Severo mal e mal assina o nome... Só pra mode a malvadeza. Aquilo, dizem, tem uma 
morte em cada dedo, tando os dos pés. 
 Ouvindo as palavras de Mané Vitô, alguns soldados riam bajuladoramente, 
alardeando uma maldade que não possuíam, fingindo uma coragem completamente 
falsa. Adonias botou no cabo do revólver cinco piques, indicando que já matara cinco 
pessoas. Pura inzona. Adonias nem não tinha coragem de matar ninguém. Quando muito, 
esmagava cabeça de um defunto, como fez com o Coronel Pedro Melo, para ao depois 
ficar assombrado, apegando com seus patuás e bentinhos, com medo de estar sozinho. 
 Feito o preâmbulo, Mané Vitô pegou a narrar o jeito como criou coragem. Era um 
madurão de boris dentes, sempre bem calçado e mais ou menos bem vestido, pois 
gostava de conquistar as morenas. Magro, uns olhos de animal selvagem, nada passava 
despercebido ao seu redor. 
 Continuava o caso. Quando era crila, era medroso que nem uma mulher. Foi 
preciso que o padrinho fizesse uma simpatia para perder o medo. 
 No dia que enterraram o Puluquero, o padrinho mandou Mané Vitô atirar três 
punhados de terra na cara do defunto. Depois disso perdeu o medo. 
 Mané Vitô fora criado pelo padrinho, o Coronel Teixeira. E bora rico, tinha o 
padrinho um sestro excomungado de ruim: gostava de furtar. Tudo que podia, surripiava. 
Um dia ele foi mais o padrinho comprar de um mascate, em Catalão, e o coronel meteu !
148 
um freme no meio dos objetos comprados. O mascate deu fé, danou, quis chamar a 
polícia e aí o coronel jogou o furto pra riba do afilhado. Irritado, o mascate deu uns puxões 
de orelha no menino. 
 A partir desse dia o coronel passou a instigar Mané Vitô: 
 — Olha, meu afilhado, pode passar a brasa no miserável que eu te agaranto ocê. 
 Num mutirão, certo dia, olha ali o mascate com suas bugigangas. Mané Vitô estava 
meio chupado, animou-se e meteu uma facada nas costas do turco que chega varou nos 
peitos. Mané Vitô foi metido na cadeia, que o turco tinha seus protetores. Ali ficou meses 
e meses de cambulha com os soldados, sob o comando de um tal Tenente Lima, oficial 
célebre por sua crueldade. 
 O trabalho mais importante do destacamento era espancar mulheres da vida. O 
delegado era um sujeito putanheiro como o diabo e a mulher morria de ciúmes. Sábado, 
para satisfazê-la, Tenente Lima dava uma limpa na cidade. Ia pelas pontas de rua e 
prendia a ”barre”, como dizia: metia no xadrez as meretrizes, raspava a cabeça e no outro 
dia obrigava a deixar a cidade. 
 Para fazer isso ninguém melhor do que Mané Vitô, que foi granjeando a confiança 
do tenente. Outras vezes, Lima mandava Mané Vitô esbordoar camaradas metidos na 
prisão por dívidas ou por fuga de fazendas. 
 Lima foi transferido para Anápolis e levou consigo o protegido que assentou praça 
na polícia.Tonhá também contava casos, mas era de Salustiano Dantas, que era cria de 
padre, em Sergipe. Vivia na preguiça batendo o sininho, beliscando as meninas na 
sacristia, fazendo pouca-vergonha com os coroinhas, bebendo o vinho do padre. Um dia, 
roubou o revólver do vigário e abriu o pala no mundo. Esteve muito tempo pelo São 
Francisco e daí veio esbarrar em Goiás, ingressando na polícia. 
 — E tu, negro à-toa! — gritava Salustiano para Tonhá. Tonhá bufava, que esse era 
seu riso. Ria como se estivesse engasgado com farinha de milho. 
 — Conta seu caso, moleque safado! — Mas ninguém sabia nada de Tonhá. Corria 
que era de uma família muito boa, no Barra do Corda, onde matara um cunhado. Sua 
amásia, Maria Ponciana, tinha um defeito na boca e falava enrolado. !
149 
 — Como foi o causo do Coronel Pedro Melo? — brincou Adonias. 
 — Com coisa que tu tava lá! — debicou Gabriel, cujo nome era agora muito 
respeitado. Ele apunhalou o velho Pedro Melo. — Tu num tava lá coisa nenhuma, nego de 
uma figa. Ocê quer passar por corajudo, mas jagunço vem aí pra tirar prova da valentia de 
muita gente boa! 
 — Eu que num tava? Então quem foi que meteu a derradeira coronhada no piolho 
do bruto? Vou inté botar mais um pique na coronha do meu chimite. 
 A turma gargalhou: — Pode botar, que esses pique são ttudo de mentira! 
 Cuspindo de esguicho, Daniezinho dizia alguma coisa. Era outro ai-Jesus da turma. 
Na Grota foi o primeiro a meter o refle no peito do velho, já largado no chão e já 
desarmado. Apunhala! covardemente para agora arrotar suas valentias, como se fosse o 
maior herói do universo. Daniezinho dizia: 
 — O velho porrado! Vivia matando os pobres, metendo opiraí neles, mas na hora 
da porca torcer o rabo, o desgraçado se borrou. Caiu no chão de joelhos, pedindo pelo 
amor de Deus a gente deixasse ele vivo! 
 — Freitas Machado, ô Freitas Machado! — chamava Mané Vil to. — Estão dizendo 
que você é parente muito chegado do velho Melo... — De novo a gargalhada estrondou 
no cômodo. 
 — ... São tudo da famiação dos covardes... 
 Os mais covardes, riam com mais força, para agradar, para demonstrar admiração 
aos valentões. 
 Freitas Machado não gostou da brincadeira. Era um sujeito caladão e correto. 
Respondia com brutalidade: 
 — Eu num sou de sua laia, Mané Vitô, que só prende mulher da vida e bate em 
pobre amarrado no pau. 
 Agora ninguém ria. Mané Vitô era cabra maludo, com quem ninguém queria 
malquistar-se. Mas Freitas não tinha medo: 
 — Num matei o velho mesmo e vocês só mataram porque tomaram a minha arma. 
Se não, ninguém num matava o velho, por que eu já tinha desarmado e prendido ele... 
 — Ah, é assim? — interpelava Mané Vitô. — Então a polícia matou o velho depois 
de desarmado e entregue, não é? Eu posso contar isso pró comandante, para o Tenente 
Mendes de Assis? !
150 
 Com esta pergunta ele queria dizer que Freitas estava transgredindo a ordem de 
segredo dada por Mendes de Assis. Porém o soldado estava pelo que desse e viesse: 
 — Pode, uai! pode contar. Eu já falei isso pra ele na vista do Doutor Juiz e tomo a 
repetir quantas vezes for preciso. Eu cá num tenho medo de barulho de folha não, seu 
engraçadinho! !
 ”Arara comeu pequi, 
 Num sei se comeu ou não, 
 Debaixo do pequizeiro 
 Tem muito pequi no chão”. 
 
 Erguendo-se, Salustiano cantou essa quadrinha para acalmar os ânimos, enquanto 
brincava com Adonias: 
 — Como é, Adonias, já botou mais um pique no seu chimite agaó? 
 Tonhá conversava com Guia-de-Cego: 
 — A gente vê logo que Freitas Machado é um reculuta. Ele num vê que nós é 
camarada do governo e que os Melo é tudo inimigo do governo. Apois, entonce, quanto 
mais Melo a gente matar, mais o governo apreceia, meu Divino Padre Eterno! 
 — Quede que prenderam Daniezinho mais Gabriel? — observou Guia-de-Cego. 
 — Uai, eles num pode ser preso não. Vão botar é uns par de lagartixa no braço 
deles, gente! 
 Entretanto, Sargento Odilon contava um causo e sua fala chamou logo as 
atenções. Explicava que Tenente Mendes de Assis não era homem de mando, nem de 
grito. Bão pra mandar era o Capitão Machado, comandante da polícia na guerra de Boa 
Vista. 
 — Era ver um rei, de mandador. Cabra macho danado! Para defender Boa Vista 
sitiada por José Dias, Capitão Machado garrou pegar à força os rapazes ali existentes. 
Aonde que pegou um que o pai dele não achou bom e foi reclamar do capitão: Machado 
requisitou o outro, mais menor: aí o pai botou uma tocaia, mas o tenente foi mais esperto. 
Matou o homem, ô coisa boa, gente! 
!
Os POSITIVOS de Vicente Lemes e Valério Ferreira iam e vinham pelas estradas 
enlameadas, atravessando rios cheios, chapadões !
151 
escorreguentos, matas e cerrados por onde os trilheiros quase se apagaram. Faziam 
apelos a amigos, a parentes, a conhecidos para ajudar na defesa da Vila. Se 
conseguissem reunir bastante gente, encher o povoado, Artur não atacaria com medo de 
derrota. 
 Os positivos levavam apelos e traziam boatos. As resoluções de Artur Melo 
chegavam ao Duro como se ele estivesse ali dentro. Era o eterno presente, aquele cuja 
ausência nunca se dava em coisa alguma. 
 Sabia-se que Artur prometera a Abílio Batata, a troco de ajuda na tomada do Duro, 
entregar-lhe mil e quinhentas reses dele Artur e mais o saque da região por seis meses. A 
sebaça ia ser terrível. Era um deus-nos-acuda, um segundo Pedro Afonso! 
 Por mais que os positivos clamassem, os sitiantes não virá para a Vila. Ficando 
neutro, capaz que Abílio Batata num toma os trem da gente, nem faça mal para nossas 
mulheres e filhas pensavam os roceiros. Esperança besta. Jagunço não respeita nada. 
Em Pedro Afonso, em Boa Vista, em São Marcelo, em Santa Rita do Rio Preto, em 
Formosa do Rio Preto as pessoas que ficaram de fora do conflito foram as que mais 
sofreram. 
 Valério e Vicente escreviam cartas, enviavam recados, iam pessoalmente. 
Falavam, argumentavam, davam exemplos, encorajavam, acenavam com a polícia e o 
apoio do governo. Meia dúzia de homens atendeu ao apelo, enquanto outras famílias 
deixavam a Vila aterrorizadas com a notícia de que Artur ia se aproximando. 
 Por baixo dos mulungus da rua, um dia, pousaram uns homen com mulheres, 
crianças, jumentos, cabaças e panelas. Vicente foi lá e reconheceu o Belisário e o 
Casemíro. 
 — Iam de arribada? 
 — Nem num sabemo muito bem pr’adonde.. 
 Vicente os chamou para defender a Vila, mas trancaram-se em copas. Nem sim, 
nem não. 
 No outro dia, cedinho, que Vicente olha para o lugar do pouso, só restavam uns 
tições fumegando. Sumiram. 
 Artur avançava e a defesa era muito fraca. O Duro não dispunha nem de um terço 
dos homens de Abílio Batata. Sem o Juiz Carvalho, as conversinhas, os cochichos, as 
briguinhas alarmavam o povoado. 
 Mendes de Assis estava de braços cruzados. Quase não era visto, passando o 
tempo deitado na rede, rezando um rosário. Outros !
152 
diziam que ele estava era acovardado; tinha certeza que os jagunços de Artur não o 
poupariam. Seu medo era tamanho que estava exigindo da polícia que trouxesse da 
Grota os amigos e parentes dos Melos, pondo-os como refés na Vila. Pusessem os 
parentes e amigos dos Melos dentro da Vila que Artur não atacaria com receio de ferir e 
matar essas pessoas. 
 — Foi o Juiz Carvalho que me deu essa ordem — afirmava Mendes de Assis. 
 Hugo Melo, na prisão, falava: a polícia tinha roubado dezoito contos do avô; 
Mendes de Assis recomendou aos soldados para dizerem que o velho resistiu com 
jagunços... 
 Compradores de gado, compradores de pena de ema, garimpeiros, essa gente 
toda que passava dava notícia dos preparativos e do avanço de Artur Melo. Contava com 
Roberto Dorado, famoso pelas sebaças de Pedro Afonso e São Marcelo. Seus homens 
eram dos mais ferozes de que se tinha notícia. Numa luta em Formosa do Rio Preto os 
homens de Roberto Dorado beberam cachaça com pólvora antes de começar a brigar e 
arrasaram com a cidade. Contava com Miguel Umbuzeiro, escorraçado de Pernambuco; 
Passarinho, o que falava cantado e era rezador. Na horade combater, Passarinho vestia 
um balandrau de irmão das almas. 
 Muito difícil resistir. Boa Vista resistiu cinqüenta dias, mas lá tinha um Capitão 
Machado que era pior que Supriano. Pedro Afonso agüentou durante sessenta horas de 
fogo. Porém em Pedro Afonso existia o negro Supriano que tinha pauta com o cão, 
homem tão fechado que Roberto Dorado haverá encomendado uma bala de prata virgem, 
fundida na Sexta-Feira da Paixão, com duas cruzes gravadas, mode ofender o espritado. 
 — Ei, Mendes de Assis, Severo não ia agüentar nem o primeiro balango! !
CEDINHOCEDINHO Valério Ferreira veio acordar Vicente Lemes, e foi logo contando: 
 — Você já sabe? A polícia recolheu à casa do finado Pedro Melo o pessoal de 
Artur. — E explicou que lá estavam a velha Aninha, Doutor Herculano Lima com mulher e 
filhos, Tozão e família, Damião de Bastos e Joaquim Alves Leandro com família. !
153 
 Não era possível. Ferreira estava brincando. Era um daqueles pegas tão comuns. 
E Vicente indagou: 
 — Uai, mas esse pessoal não estava na Grota? 
 — Pois é isso. Esse pessoal estava na Grota, mas a polícia trouxe todo mundo 
para cá. A polícia trouxe eles como reféns. Paraii pedir um ataque à Vila. 
 A Vicente pareceu absurda a prisão, absurda e ilegal, Valério porém, não pensava 
assim. Para ele a polícia tinha direito de procurar defender a vida dos habitantes do 
povoado e aquele era um meio de defesa. Era para Artur ver que ninguém estava com 
brincadeira. Se ele atacasse, o pessoal seria morto. 
 — A polícia não pode fazer e desfazer sem consultar os paisanos. Eu tenho’aqui na 
algibeira a Carta de Eugênio Jardim, me credenciando a dirigir a política. Eu tenho que 
ser ouvido, ora! 
 -- Precisa ter calma – pedia Valério entre duas tosses. – Não convêm dindespor-se 
com a polícia, já... 
 — Sim, é preciso calma, mas se eles matam essa gente? Você sabe como essa 
polícia é! 
 Valério concordava que era perigoso, que os militares estavam dispostos mesmo a 
matar todos em caso de um ataque, mas era preciso calma e habilidade. Não ia ter 
nenhum ataque assim logo logo. Tivesse paciência... 
 Conversavam, quando uma pretinha, cria da velha Aninha, e trou pela casa e deu a 
Vicente um recado da velha: 
 — Dona Aninha mandou falar assim que é pra Seu Vicente dar um pulinho lá. 
 Vicente não foi. 
 — Capaz de ser negócio da prisão — observou Valério. Fazia muito tempo que 
Vicente não falava com a tia. Desde que saiu do Duro, pouco depois da morte de Vigilato. 
Era uma situação enjoada, aquela. Em casa da velha Aninha iria encontrar o pessoal 
reclamando contra os atos da polícia. Certamente, os prisioneiros quereriam permissão 
para retomar à Grota, e essa permissão Vicente não poderia obter da polícia. Embora 
fosse medida ilegal trazer à força aquele pessoal para a cidade, fosse uma arbitrariedade, 
uma violência, era, como dizia Valério, medida de precaução, medida capaz de contomar 
desastre mais grave. Quem sabe Artur não recuaria, evitando assim a morte de muita 
gente, !
154 
o saque, os vexames? O que não se admitiria era tocar num fio de cabelo de ninguém. 
 O dia caminhava e a todo momento a pretinha da velha Aninha voltava: 
 — Dona Aninha mandou falar assim que é pró senhor dar um pulico lá... 
 — Vou já-já, ouviu? Pode dizer para esperar um tiquinho — Mas não ia. Que iria 
dizer à velha tia? Naturalmente o desejo dela era retomar ao sítio, iria criticar a medida 
policial, diria enfim uma porção de coisas certíssimas, mas que de nada adiantaria. Eles 
não podiam voltar para a Grota. O que a velha tinha que fazer era providenciar meio de 
deter a marcha de Artur, obrigá-lo a desistir de atacar a Vila. 
 Argemiro Félix, a mulher de Moisés e a própria Lina começaram a assediar 
Vicente. 
 — Ainda não foi lá? Ah, não podia fazer isso! Era tia, velha, estava num transe 
difícil, o marido morreu outro dia. Ah, não fizesse assim! 
 Informações chegavam. A velha vivia chorando, clamando, dando seus 
tremeliques. A polícia afirmava de pedra e cal que mataria sumariamente. Era só terem 
certeza que Artur avançava e a faca comia na goela do pessoal. 
 Tanto falaram, tanto mexeram, que Vicente resolveu ir ver a velha. Uma das 
criadas recebeu Vicente no corredor, o conduziu pela varanda até o quarto onde estava a 
velha Aninha. Era o quarto do fundo da varanda. 
 Na cama grande, alta, de madeira, lá estava o corpanzil da tia, no meio da azáfama 
dos serviçais e da atenção dos amigos e parentes. Suas banhas dobravam-se em pregas 
por baixo do cabeção de rendas de bilro da camisa. 
 Ela recebeu Vicente discretamente. Meio que se ergueu no travesseiro, estendeu-
lhe a mão para a bênção: 
 — Deus te abençoe. Assenta aí, Vicente. Como vai Lina e Alice? Ela tá moça, não 
é? 
 Vicente deu as notícias, meio contrafeito. A velha fez um gesto: 
 — Com tanto sobrosso, Vicente, ficou ruim. Desde que Pedro se morreu, que ando 
zonza, sem saber o que fazer. 
 Vicente baixou o rosto. Tinha a impressão de que a tia o incul- !
155 
pava. Damião de Bastos e Joaquim Alves Leandro que estavam assentados por perto, 
levantaram-se e saíram de cara fechada. Com pouco, entravam o Doutor Herculano e 
Tozão, que vieram, apertaram a mão de Vicente, perguntaram pela família, dando mostras 
de muita cordialidade. Tozão pareceu ainda mais feio, com os braços bamboleantes, as 
orelhas flácidas. Doutor Herculano estava um pouco abatido, mas com o porte elegante, a 
barba curta bem tratada, perfumado. Ambos sentaram-se no lugar dos que saíram. 
 Habilidosamente, a velha abordava o assunto do recolhimento do pessoal à Vila. 
Ela não acusava Vicente Lemes. Dizia que sabia que aquilo era arte da polícia, mas que 
Vicente era o homem de maior responsabilidade do lugar e não podia consentir naqueles 
absurdos: 
 — A polícia não pode obrigar a gente a ficar aqui dentro. Nós não fizemos nada! 
 — Indas pro riba, querendo matar a gente — regougou Tozão. — Ela não pode 
matar. 
 Nesse ponto, entrou também Anastácia, dizendo que já não bastava o filho que 
estava preso injustamente no quartel de Severo? Agora vinham prender o marido e ela! 
 Vicente compreendia todo o constrangimento da situação. Na verdade a polícia 
estava agindo arbitrariamente, mas era o recurso que possuía para obrigar Artur a recuar, 
sem derramamento de sangue. Enquanto reclamavam, Vicente pensava essas coisas, 
mas nada dizia. Ali ele não podia ir contra a polícia. Sentia que se não fosse o medo de 
morrer, tipos do calibre de Tozão, Joaquim Alves Leandro e Damião de Bastos não se 
oporiam ao desejo de Artur de atacar a Vila. Para apertar o pessoal, para amedrontá-los 
mais ainda, para coagi-los a tomar uma medida contra o desejo de Artur, Vicente passou 
a defender a polícia: 
 — Os oficiais têm sua razão, minha tia. 
 De lá, a velha bufou, começou a exaltar-se. Doutor Herculano procurou conciliar: 
 — Vamos ao motivo pelo qual a senhora pediu que seu sobrinho viesse cá. Essa 
discussão é inútil. Vamos ao assunto, não é assim, Seu Vicente? 
 A velha se mexeu na cama e calou-se. O médico continuou: 
 — Olha, Vicente, a polícia disse que nos matará. E nós não que- !
156 
remos morrer, é claro. Para nossa salvação resolvemos uma coisa. Vamos escrever uma 
carta a meu sogro Artur Melo, explicando-lhe a nossa situação e pedindo a ele que não 
ataque a Vila, porque se ele atacar nós seremos mortos. 
 — Ótima resolução — exclamou prontamente Vicente Lemes. — Vamos enviar a 
carta, já-já. Isso é que é preciso. 
 — Por nosso gosto, a carta já teria ido embora, mas a polícia não permite — 
completou o médico entre gestos de desespero. 
 — Não é possível! A polícia? Logo a polícia! — admirava-se Vicente. 
 — Pois é — confirmou Aninha, que ouvia em silêncio o médico, que continuou: 
 — A polícia diz que a carta vai revelar segredos de defesa da Vila e por isso não 
pode seguir. Veja só! Diz que vamos fornecer a meu sogro elementos de informação. Olha 
se tem cabimento! 
 — Tsiu, tsiu — Tozão deu os chupões nos dentes cariados. Anastácia, 
temperamental, impetuosa, disse quasegritando: 
 — A polícia faz de propósito. É plano daquele miserável do João Alves... Meu irmão 
ignora tudo, ataca a Vila, a polícia mata todo mundo, depois foge e fica o serviço feito aí. 
 — Calma. Chega de bobagem. Isso não adianta — recomendava o médico. 
 — A polícia que corte na carta o que achar inconveniente — disse Vicente. 
 — Pois é. Mas nada há que cortar. A carta não diz nada além do pedido para não 
atacar. Se me permite, vou ler. — com voz clara, o médico desdobrou-a ante os olhos de 
Vicente. 
 A carta contava que a polícia havia recolhido à casa do finado Pedro Melo, na Vila, 
os parentes e amigos de Artur, mantendo-os sob vigilância; dizia mais que a polícia estava 
no firme propósito de matar sumariamente essas pessoas no caso de Artur atacar a Vila. 
Diante disso, as pessoas recolhidas à casa, por iniciativa própria e sem qual coação, se 
dirigiam a Artur, pedindo-lhe que não atacasse a Vila e que dispersasse os homens 
armados por acaso reunidos. Terminando, os signatários prometiam indenizar Artur Melo 
de todos os gastos que hovesse feito, comprometendo-se igualmente a indenizar os 
outros companheiros seus, como Abílio Batata e Roberto Dorado. 
 — Dê cá a carta — disse Vicente de pé. — com certeza a poli- !
157 
cia não entendeu o que vocês queriam. — E saiu com acarta para o quartel de Severo, 
onde, felizmente, os quatro oficiais estavam reunidos, em descanso. Uns na rede, outros 
nas camas, fumando e contando estórias. Embora tivessem lá suas divergências, 
entendiam-se mais mais ou menos bem. Xavier até remexia nas cordas de um violão, 
cantarolando uma modinha de ímbaúba: !
”Quando vivemos a sonhar amores, 
Quando não temos a ilusão perdida... !
 ” com a chegada de Vicente, puseram-se em atitude reserva. Sabiam que Vicente 
não concordava com a prisão do pessoal e sua visita deveria prender-se àquilo. Vicente 
foi diretamente ao assunto: 
 — Tenho comigo esta carta assinada pelo pessoal recolhido à casa do finado 
coronel. Que é que vocês acham da remessa dela para Artur? Vocês ach... 
 Enéias atalhou: — Não pode ir. 
 — Não pode ir por quê? — perguntou Vicente. A pergunta desnorteou Enéias, que 
contraiu o rosto num esforço de raciocínio ajeitou o cabelo castanho, ergueu o corpo 
magro e corcunda da rede: 
 — Onde já se viu preso escrevendo. 
 Os olhos azuis de Mendes de Assis rolavam na cara vermelha de estrangeiro e foi 
com certo ódio que falou: 
 — Esta carta tem segredos militares. Vicente achou graça da solenidade com que 
o oficial dizia uma bobagem tão grande. Até riu. 
 — Tem segredo nenhum, home! — Desdobrou-a, estendeu-a para Mendes de 
Assis e perguntou: — Vocês leram? Leram esta carta? 
 Enéias olhou para Mendes que balançou a cabeça afirmativamente. 
 — Então, me mostre, onde estáosegredo militar? Se tem.agente corta e remete só 
o que pode ser revelado... 
 Enéias olhou para Mendes, que olhou para Severo. 
 — A carta não vai — disse Severo de maneira terminante. 
 Antes, eles se haviam reunido e deliberado que a carta não seguiria porque 
continha segredos militares. Agora, Mendes de Assis repetia isso, sem se dar ao trabalho 
de examinar a verdade da fra- !
158 
se. Depois, tanto fazia ser verdadeira ou não. Para sua mentalidade, prisioneiro não tinha 
razão, não tinha direitos. Mendes de Assis não perdia tempo em pensar sobre tal caso. O 
comandante era Severo, ele que se fomentasse. Vamos ver se ele sabe comandar um 
destacamento! 
 Vicente continuava argumentando: 
 — Uma insensatez não deixar a carta seguir. Que é que a polícia visava com a 
prisão do pessoal de Artur? Queria com isso obrigar Artur a desistir do ataque, para não 
ter os parentes mortos. Até aí, muito bem. Mas Artur não podia adivinhar que os parentes 
estavam presos. Para que ele não avançasse, era preciso darlhe ciência da prisão e a 
ciência era dada por meio da carta. A carta era indispensável seguir. Era uma garantia 
para a polícia. Sabedor da resolução da polícia, se Artur teimasse em atacar, era sinal de 
que não tinha nenhum interesse pela vida de seus parentes. Era uma garantia para a 
polícia. Depois, o que viesse a acontecer era com o conhecimento e com a participação 
deliberada de Artur Melo. 
 Severo já se levantara. Alto e corpulento, seu vulto tomava conta da casa baixa, 
entupia o cômodo pequeno, chegava a escurecer a luz que entrava pela janelinha. 
Ajeitava a perneira, o culote. Era moreno, cabelos espetados de ouriço-cacheiro, calado e 
ríspido, de um moreno lustroso de cuia. 
 — Dê cá esta carta — disse com ódio. 
 Tomou, leu-a. Era quase analfabeto. com grande dificuldade soletrou algumas 
palavras, mas não deu para entender. Tinha que se segurar na conclusão de Mendes de 
Assis. Ele falou que a carta continha segredos. Ficou olhando vagamente para as letras 
da carta. 
 — Não pode ir. Paisano não entende, mas militar e jagunço entende. 
 Para fazer-se entender melhor, usou de uma imagem: 
 — Se a gente está tomando refém é porque está fraco. Se eu sei que sou mais 
forte, vou logo te macetando você, num carece de ficar rodeando toco. Jagunço sabe 
disso. 
 Apesar, porém, desse ponto de vista, Severo aceitava parte das razões de Vicente. 
Era preciso mesmo fazer chegar ao conhecimento de Artur a notícia de que seus parentes 
estavam como reféns. Do contrário, que adiantava? !
159 
 Entretanto, o carro pegava noutro ponto: quem fosse levar a carta podia dar a 
Artur informações de que a polícia e os defensores da Vila eram poucos. 
 Vicente propôs que levassem a carta o Doutor Herculano Lima e Argemiro Félix. 
Um e outro teriam o maior empenho em que a povoação não fosse atacada. Deixavam 
recolhidos à casa do coronel parentes chegadíssimos. Herculano deixava mulher, filhos e 
sogra; Argemiro, inimigo de Artur, além de deixar Aninha que era sua cunhada, deixava 
mulher e filhos no povoado. Se eles contribuíssem para que Artur atacasse a Vila, 
estariam lavrando a sentença de morte desses parentes, pois estavam convictos de que a 
polícia os mataria em caso de ataque dos jagunços. 
 Os oficiais novamente confabulavam. Mendes de Assis não concordava com os 
demais; entretanto, por fim vinham as condições — Herculano e Argemiro podiam levar 
aquela carta que estava ali. Tinham porém que fazer um juramento. 
 Os dois portadores vieram para o quartel de Severo. Os paisanos da Vila foram 
todos chamados para a frente do quartel, e diante de todo mundo, inclusive dos oficiais, 
Doutor Herculano e Argemiro fizeram o juramento solene que lhes era ditado por Enéias. 
Juravam nada revelar a Artur que pudesse contribuir para enfraquecer a defesa do Duro. 
 — Se eu não cumprir esse juramento feito perante Deus e perante o povo, me 
considero um vil traidor e aceito que qualquer um cuspa na minha cara, sem que eu 
possa me defender! 
 Enéias falava pausadamente e também pausadamente Doutor Herculano e 
Argemiro repetiam as palavras, solenemente. 
 O dia era embaciado e triste. Em toda a Vila, a vida como que suspendeu para 
ouvir o juramento solene. O pessoal reunido em frente à casa guardava um silêncio 
religioso e constrangedor. 
 As palavras reboavam, como no dia do juramento perante o cadáver do velho 
coronel. Seu som batia na parede da casa fronteiriça e voltava em eco! Era como se 
alguém postado do outro lado zombasse de tudo. 
 Os animais chegaram arreados. Severo mandou que Sargento Odilon e mais dois 
praças revistassem as selas, os baixeiros, ossuadouros. Também as roupas e os 
calçados dos portadores foram revistados. Só então veio a ordem de seguir. Sargento 
Odilon com !
160 
um grupo de soldados armados os conduziu até as últimas trincheiras, no rumo da Grota. 
 O povo dispersou-se ainda impressionado com a gravidade da cena. Alferes 
Severo procurou Vicente Lemes. O cabelo estava mais espetado, as frases eram mais 
curtas: 
 — Você larga de impertinência, hem! Isso não dá certo, não. 
 — Que impertinência, meu Alferes? Estou ajudando vocês. Afinal, vocês querem 
deter o avanço de Artur ou essa prisão é de mentira, é apenas umadesculpa para matar o 
pessoal? Como é que você me explica? 
 Severo botou em Vicente uns olhos frios e tomou a ponderar: — É melhor você 
esbarrar de ir na casa dos Melos, ouviu? Dá certo não, ouviu! — Era uma voz de ameaça, 
dura e apagada, que irritou Vicente. 
 ”Não dá certo? Não ir à casa dos Melos?” — Vicente procurava conter-se. A polícia 
estava com absurdo. Uma proibição assim era um desaforo. Ele ia e ia, que os Melos 
eram seus parentes, estavam sendo coagidos. Afinal de contas ter aquela gente como 
refém era uma violência. Eles nada deviam. Essa é boa! A polícia faz as suas bramuras, 
mata o velho, rouba, e depois os paisanos é que iam pagar o pato! 
 Severo gaguejou, abaixou a cabeça um pouco, estendeu a mão espalmada para 
cima, no rumo de Vicente, e arrematou: 
 — Pode continuar indo lá pra ver uma coisa! 
 Falou e saiu soturnamente, as esporas tinindo no chão batido, a cabeça quase que 
batendo nos caibros. 
 Valério Ferreira ouviu a discussão e quando o oficial se afastou, chamou a atenção 
de Vicente. Vicente estava com besteira. Ele devia fechar os olhos e largar os Melos com 
a polícia. Se matar, que matou. Temos nada com isso! 
 — Temos nada com isso! — retrucou Vicente. — Você está muito enganado, seu 
barra. Estou lutando contra Artur Melo é por causa dos seus desmandos e não vou aceitar 
que a polícia faça a mesma coisa. Eu quero que imperem as leis e não a vontade de Artur, 
ou Vicente Lemes ou Severo. Não concordo com isso, de jeito nenhum! 
 — Você sai perdendo, Vicente — contestava Valério balançando a cabeça, 
desacorçoado, desapontado. — Aqui, não tem disso. Ou !
161 
nós ou os Melos. Você vai perder. Veja o exemplo de Artur. Ele aceita tudo, aceita até 
arrasar com o Duro, contanto que continue mandando. 
 Vicente não concordava. 
 — Tem gente que está conosco para fazer bandalheira, Vicente. Para fazer coisa 
direita eles não precisam de ninguém. Se você continuar com essa bobagem de justiça, 
de lei, de não sei mais o quê, você acaba ficando sozinho na chapada. — Ferreira fecha 
boca fortemente, apertou os lábios, sacudiu a cabeça, consertou a garganta, para 
prosseguir: — Não viu o exemplo de Carvalho? Estávamos achando que era o direito em 
figura de gente, no entanto é isso que se sabe. Tinha trato secreto com Artur para não 
prender e acabou traindo. 
 — Ai, ai, ai! já vem com coisas — protestava Vicente. — Isso é prosa de gente dos 
Melos. 
 — Não, Vicente. É verdade. O pessoal conta que Artur estava dispersando o povo 
para comparecer a juízo, confiante no trato que fez com Carvalho. Hugo Melo está aí e diz 
para quem quis ouvir. Doutor Herculano também dizia, Damião de Bastos diz. 
 Vicente não queria ouvir. Que alterava tudo isso? Entristecia-o o derrotismo de 
Ferreira, a sua falta de confiança. Valério Ferreira continuava falando: 
 — Olha, menino, nem governo não quer saber de justiça. Ele apoia nós para fazer 
aquilo a que a lei não dá direito. Porque é que Artur é respeitado? É porque segue a lei? 
Você vai ver. Você fica aí cheio de dedos com a prisão dos parentes e amigos dele, não 
é? Pois Artur evém de lá com seus ”rapazes” e não respeita mãe, não respeita filha, nem 
cunhados, nem amigos presos. Vai meter bala em riba de tudo. Fica aí defendendo direito 
de Artuzinho para tu ver uma coisa! 
 Valério Ferreira se foi com sua boca desgraçada, com suas palavras de fogo e 
Vicente ficou-se ainda mais desorientado. Então, que fazer? Que caminho tomar? Aceitar 
tudo que a polícia queria fazer, não podia ser. Mesmo sabendo que a polícia tratava os 
paisanos como nem se sabe o quê, não os ouvia, não procurava entrar com eles num 
acordo em nada. 
 Sinceramente achava Vicente que eles estavam entre dois fogos. Tanto era 
perigosa a polícia como os jagunços. E se fugissem? De novo Vicente passou a pensar 
seriamente em fugir. Sair enquan- 
!
162 
 to era tempo, que os homens de Artur estavam querendo fechar o cerco em tomo da Vila. 
Fugir e fugir logo. !
— DONA ANINHA mandou dizer assim... — Olhe novamente a negrinha. 
 — Nega, diabo! — A bichinha saiu que saiu ventando. Vicente já sabia que era 
para ir à casa da tia e ficou sobressaltado. Havia a proibição de Severo, havia as palavras 
de Valério. Mas o coração doía. A velha estava agoniada, tinha medo de morrer e ver 
morrer os parentes, como vira morrer o velho. 
 Na verdade, precisava restringir o contato com os Melos. Astutos como eram 
podiam valer-se de Vicente para burlar a polícia e ajudar Artur. Mas agora tinha que 
atender ao pedido da velha. Fazia uns dois dias que não a via. 
 Ao entrar na casa da tia, no corredor, ali estava o Tenente Mendes de Assis, que 
veio ao seu encontro: 
 — O senhor não pode entrar. 
 — Alto lá, Seu Tenente. Você manda nos seus soldados, no seu quartel. Em mim, 
mando eu. 
 Mendes de Assis engrolava razões, o carão vermelho, os olhinhos azuis dançando: 
 — O comando resolveu proibir o senhor de entrar. Magrinho, franzino, o nariz 
adunco, Vicente Lemes nesses momentos virava uma piranha. Pulava num pé e noutro. 
 — Resolveu o diabo! Tenho nada com o comando! Está aqui a carta de Eugênio 
Jardim me autorizando a dirigir a política do Norte e não vou obedecer a ordem sua. 
 Metia a mão no bolso de dentro do casaco, tirava de lá a tal carta que estava 
esfrangalhada e sacudia a bruta no ar. 
 Mendes de Assis não discutia. Parece que estava representando um papel. Haviam 
determinado que ele montasse guarda, ele veio. Mas não tinha nada com o peixe. 
Carvalho o destituíra do comando, botou Severo, não é? Então, vamos ver em que vai dar 
o comando desse analfabeto do Severo. Mendes de Assis tudo faria para o fracasso do 
rival. 
 Vicente deixou o oficial de lado e entrou pela casa que estava repleta de gente, 
com camas pelos cantos, redes pelo meio da casa, meninos pequenos chorando, bruacas 
e cangalhas. No quar- !
163 
to, a corte de parentes, amigos e crianças. Alguns contando estórias, outros abanando a 
velha, outros lhe trazendo chás e cheiros. 
 Foi vendo o sobrinho e gritando com rispidez: 
 — Como é, Vicente, alguma resposta? 
 Falava entre soluços e lágrimas que lhe corriam pela cara gorda, caindo no colo 
farto. 
 — Resposta de quê, minha tia? 
 Ela se referia à carta que haviam remetido para Artur. Outras interpelações vieram 
tumultuadas. Os portadores tinham mesmo partido? Será que a polícia não estava com 
eles presos? Será que eles não tinham sido mortos? A velha ficava quieta e chorava 
espremido, as lágrimas coleando pelas dobras da gordura. Depois se lembrava: 
 — Falaram na carta que nós queremos pagar as despesas já feitas pro Artur? 
Despesa para reunir os homens, comprar armamento? 
 — A carta conta tudo isso, mamãe, pode ficar tranqüila. Tozão tem uma cópia — 
explicava Anastácia. 
 Também Amélia protestava. 
 — Bem capaz deles matar meu marido. Carvalho prometeu tanto a papai que não 
o prenderia e foi só ele dispersar o povo, aquele cachorro meteu a polícia em cima... 
Herculano não devia ter ido! 
 Anastácia se aproximava de Vicente e começava a lhe falar num tom baixo, 
confidencial. Pedia, de lágrims nos olhos, que arranjasse um jeito de livrar o filho. Tinha 
certeza que os oficiais acabariam matando o coitadinho. 
 Vicente enxergava o rosto da prima-debruçada perto do dele, pedindo, implorando, 
e sem nada poder fazer. Ela queria que os oficiais deixassem o filho na casa da velha. 
 — Não estavam todos presos ali? Pois então que ficasse Hugo também. Severo 
acaba matando o menino, de medo dele contar o roubo do dinheiro, a morte do velho já 
entregue e desarmado... 
 Vicente procurava acalmar a prima. Ele agora achava que Atur não mais atacaria. 
com o recebimento da carta, recuaria. Tanto que não chegavam notícias de novos 
avanços. O perigo estava conjurado. 
 Mas a prima não se conformava. Sua cara estava perto da de Vicente, que 
pensava coisas impróprias para o momento. Pensava no que diziam de Anastácia. Que 
era mulher que tinha suas aven- !
164 
turas amorosas. Vicente desviava os olhos dos olhos da prima. Diziam delacom Norato, 
com Mulato. 
 A boca da prima é que era bonita. Uma boca que conservava o frescor da 
juventude, os lábios carnudos e cheios. Os lábios mexiam-se sensualmente, mas Vicente 
procurava reprimir os pensamentos maus. A pobrezinha estava sofrendo, estava lutando 
como uma leoa na defesa do filho. Podiam dizer dela o diabo, mas a sua coragem, a sua 
firmeza na defesa dos parentes era uma atitude bonita. 
 — Meu filho ouviu Mendes de Assis dar ordem para os soldados afirmarem que 
meu pai resistiu... 
 Vicente saía. Daí a pouquinho a velha queria saber novas notícias. 
 — Tenha calma, minha tia. Eu acho ,que Artur não vai atacar depois de ler a carta. 
 A velha soluçava e voltava aos mesmos refrões: 
 — Será que mataram os portadores? Será que os portadores entregaram a carta? 
 Encostada nos ouvidos de Vicente estava a boca carnuda de Anastácia, mexendo 
sensualmente, soprando as palavras com um hálito quente que arrepiava. A boca parecia 
um sexo, sexo de mulher, carnuda, vermelha. Quando adolescente, muitas vezes tinha 
visto, tinha apalpado o sexo da prima. Bobagem. Primos sempre são assim com essas 
intimidades. 
 — Será que a gente pode ir ao quartel conversar com Severo, Vicente? 
 Por dentro dele subiu uma coisa ruim. Perto de sua cara a cara da prima, molhada 
de lágrimas, a saliva meio visguenta do choro, uma expressão de súplica nos olhos. 
Vicente reprimia o pensamento mau, mas tinha para si que a prima iria tentar o oficial. Ela 
seria bem capaz de oferecer o corpo pela liberdade do filho Por dentro de Vicente subia 
um sentimento confuso. Seriam ciúmes da prima? Ofendia-se com a idéia de vê-la entre 
os braços de Severo, aquele sujeito brutal e odiento, Severo que devia de estar há muitos 
meses sem mulher e que já tinha no olhar um laivo de sensualidade. Severo despindo a 
prima, apertando-a, abrindo-lhe as coxas. 
 — Meu filho sabe muita coisa, Vicente. Se falar, esses oficiais estão perdidos. Se 
falar, o Juiz Carvalho está rodado! !
165 !
 Seu hálito escaldava nos lábios polpudos, semi-abertos como um sexo jovem, 
hálito que lembrava o milharal naquele dia distante de seu noivado, quando o velho 
coronel o desafiou para andar no bicame. 
 ”A prima pelo quintal, nos tempos de infância, mostrando as coxas grossas, 
fugindo, mostrando mais distante. Deixe-me pegar um pouquinho só. Então, só um 
pouquinho. Aí, chega, que vem gente”. !
O PESSOAL cobrou alma nova. A Vila era outra. As pessoas vieram para o Largo, 
conversavam, abraçavam-se, batiam palma: As mulheres enfeitaram com panos vistosos 
as janelas e as crianças riam contentes. 
 Alferes Enéias ficou tão satisfeito que veio dar um abraço em Vicente: 
 — Estou gostando de ver. Vocês não são nenhuns perrengues não. 
Mendes de Assis também deixou a rede, abandonou por alguns minutos o rosário e de 
chinelos arrastando, a barba por fazer e querendo ficar ruça, zanzou no meio dos outros 
quase sem dizer coisa alguma. Podia acontecer o que acontecesse, continuaria de braços 
cruzados. 
 O rebuliço era causado por um contingente que entrava na ViIa. Uns trinta homens 
armados e municiados, comandados por Leão de Aquino, bicho brabo, resolvido, contador 
de lorotas, acostumado a escorar barulho. Leão distribuía o pessoal e cuidava da defesa 
da Vila, mas ao mesmo tempo contava seus casos, arrota-va valentias, entusiasmando o 
povo. 
 Vicente chamou de parte Leão e confiou-lhe alguns segredos: 
 — Olha, cuidado com a polícia, que não merece a menor confiança. — Contou-lhe 
tudo que havia ocorrido. O caso do assassínio do velho já desarmado e entregue, o furto 
do dinheiro, da espionagem de Xavier e Alcides. Contou do levante que tinha havido para 
depor o Juiz Carvalho. — Leão ficaria cometido de uma tarefa muito séria. Vigiar a polícia, 
trazê-la sempre de olho, 
 No varandão de Dona Benedita a conversa recuperou o calor de outrora. A 
velhinha mesma estava entusiasmada, já se interessando pelos canteiros de flores. !
166 
 Das bandas da Bahia, nenhuma notícia chegava. Parece que Artur estava 
dissolvendo o seu grupo. Observando tudo isso, Vicente chegava a sentir-se 
envergonhado, a cara lascando fogo: E eu que quase abandonei o Duro, de medo de 
Artur! Agora, quéde Artur com seus Roberto Dorado, Maroto, Umbuzeiro, João Rocha e 
não sei quê mais? Quede esses tutus, minha gente? Ah, com tanto paisano e com a 
poícia eles não seriam bestas de atacar a Vila! !
ERA VER um galo cansado de tanto correr: cambaleava, vergava os joelhos, avançava, 
ficava parado. Será que está ferido! Algum louco? Atravessou o Largo, entrou na casa de 
dona Benedita, no oitão do quartel de Enéias. 
 O pessoal logo entupiu a casa, aglomerando-se em tomo do chegante que mal 
podia respirar. Sufocava, a baba grossa e visguenta escorrendo queixo abaixo, olhos 
vidrados, narinas dilatadas e a boca arfante. Feito um bêbado, apoiou-se em Valério 
Ferreira e amontoou no chão. 
 — Arreda, gente, arreda, deixa o homem descansar! 
 Mas ninguém se afastava, curiosos das notícias que certamente trazia. Vicente 
mais Valério o pegaram, levaram para um quarto. Na mesma hora caras surgiram na 
janela que foi fechada e ali ficaram abanando o pobre, molhando-lhe a testa e as fontes 
com água fresca, molhando a língua. 
 Era Deodato, pessoa da amizade de Vicente Lemes, comerciante no povoado. 
 Uma gosma grossa e pegajosa tapava a garganta, não deixava a água descer, 
gosma que o engasgava, tomava-lhe o fôlego, obrigava-o a tossir convulsivamente. Nisso 
o homem pegou a gritar, feito um condenado, contorcendo-se. Eram cãibras. A cada 
movimento os músculos enrolavam-se, faziam poronós, e o bicho chegava a chorar de 
dor. 
 Agora, articulava algumas palavras. 
 — Que era? Que estava dizendo? 
 — Abílio Batata e Artur... estavam., na Grota. 
 Aí o homem esbarrou, não agüentava mais, arquejante feito um bicho na agonia, 
uma aflição de matar, os músculos se retorcendo na cãibra. !
167 
	

 Vicente lhe trouxe água, molhou-lhe as fontes, e perguntou a Valério se ouviu direito.	
 - Sim, tinha ouvido: Abílio e Artur estavam na Grota. 
 — É Leão. Quero falar com vocês! 
 Vicente custava a crer. Parecia um sonho, umpesadelo, uma história de menino. 
Quer dizer que Artur ia atacar mesmo. Não era conversa fiada, não era tutu não. Mas todo 
perego não parecia afastado, com Vila garantida pelos refêns, pela polícia, pelos civis? 
Ainda duvidava. Esperava um acontecimento acima das forças humanas, que Deus 
surgisse e empurrasse Abilho Batata com sua espada de fogo. Uma espécie de moleza 
invadia Vicente. Vontade de ficar sentado, deixar Deodato morrer, Deixar os bandidos 
entrar, pregarem fogo, matar, jogar fora, pronto, acabou-se. 
 -- Ei, Vicente, estão batendo! – Foi Ferreira que lhe deu o safonão. É que batiam 
na porta. Quem batia anunciava-se: 
 -- É Leão. Quero falar com vocês! 
 Feito um doente, com um esforço enorme Vicente ergueu-se, abriu a porta. Por ela 
entrou Leão. Entrou feito um pé-de-vento, a cara vermelha, as armas retinindo, as botas 
socando o chão. 
 — Que que está contando? — indagava Leão, que tirava do bols uma garrafmha: 
— Isso é bom para animar. 
 — Que é isso? — queria saber Ferreira. 
 — Água benta, Seu Juiz. Para espantar os maus espíritos. 
 Em tomo, riram, percebendo a brincadeira. Leão continuou,: 
 — Deodato é um pau-d’água dos diabos. O que tem é sede de cachaça. É ou não 
é, Deodato! 
 Leão abraçou-se com o homem, fê-lo levantar-se um pouco, meteu-lhe o gargalo 
na boca, para um pequeno gole. Em seguida trouxeram alguma coisa para o homem 
comer, enquanto Valério punha Leão a par da notícia de Deodato. 
 — Pode chegar, jagunçada de uma figa! — No quarto, Leão dava pinotes, 
ameaçando jagunços imaginários com seu punhal desembainhado: — Chega logo, 
putada! 
 Ferreira ria e Deodato também ensaiou um riso doloroso e desbotado, entre 
gemidos de cãibras. Por fim, Deodato começou a contar. 
 Estava nas imediações da Grota, quando foi preso por um homem de Artur e 
levado para o sítio. Perguntaram-lhe muita coisa,mas depois largaram de mão, vendo 
que ele estava fora da Vila há muito. Nisso o pessoal começou a comer um porco abatido 
na hora. !
168 
Deodato pegou seu pedaço de entrecosto e saiu por ali mode obter uma vara para 
espeto. 
 Quando deu fé, estava meio longinho, não havia ninguém o vigiando. Deodato 
continuou caçando espeto, já agora de mentira. Não tinha ninguém por perto, Deodato 
meteu os pés. Lá adiante, alguém gritou, um jagunço saiu no seu encalço, deu uns tiros, 
mas o homem conhecia tintim por tintim os atalhos e cabreiros da região e em breve 
ganhou dianteira. 
 Corria o que lhe davam as forças, sentia-se desfalecer, sentia as pernas arderem, 
a garganta queimava como se fosse brasa e não ar o que respirava, mas Deodato não se 
detinha. 
 Leão percebeu nos olhos de Vicente um laivo de incredulidade. Mas as palavras do 
homem não eram palavras de mentira. Dizia ele: 
 — Lá na Grota eu vi o Coronel Artur Melo, Abílio Batata, Miguel Umbuzeiro... Tem 
mais de trezentos homens, tudo com Winchester nova e bala que é um despropósito. 
 Leão, Valério e Vicente ouviam em silêncio. 
 — Diz que tão esperando a chegada de Roberto Dorado para atacar... Ai, ai, ai! — 
Eram as cãibras torturando o condenado que se retorcia e chorava de dor. 
 Novas pancadas na porta do quarto. 
 — É o Tenente Assis — gritavam de fora. A porta se abriu muito pouco, o tenente 
passou deixando entrever pela fresta um pessoalão com cara de curiosidade e de pavor. 
Alguém ainda avançou, forçou a porta para entrar, mas Leão impediu. Convinha guardar 
segredo. Era besteira alarmar a população. 
 — Vamos tomar providência, gente! — concitava Leão, enquanto Vicente narrava 
ao ouvido de Mendes de Assis as novidades. O tenente, porém, não dava crédito a 
paisano: queria ouvir da própria boca de Deodato. Enquanto ouvia, contraía a cara, 
coçava-se nervosamente, metia o dedo no nariz. 
 — Seu tenente, Leão é o comandante dos civis, o senhor podia acertar com ele as 
providências que deve tomar, não é? — aventurava Vicente Lemes, enxergando que urgia 
um entrosamento dos civis com os militares. O número de pessoas dentro da Vila era 
bem dizer uma terça parte dos homens de Abílio. Não se podia perder esforço. 
 — Depois a gente chama Leão. Por enquanto... — A resposta !
169 
de Mendes de Assis era uma evasiva. Também ele não mandava nada. Carecia de 
procurar Severo. 
 De novo batiam na porta. Batiam, batiam. Era um recado de Dona Aninha. Quem 
trazia era Moisés, que pedia a Vicente que fosse imediatamente à casa da velha. 
 — Coisa grave — dizia Moisés, num tom misterioso, quem estivesse visto o 
capeta. 
 — E eu que vou procurar esses oficiais! — exclamou Leão, deixando o quarto. — 
Preciso preparar meu povo. 
 O povo queria invadir o comodozinho, mas Vicente impediu. 
 — Não fizesse isso que Deodato estava muito fraco. Ferreira também saiu. Iria 
encontrar-se com Ângelo e Júlio de Aquino para prepararem a defesa. Era chegado o 
momento de faz armazenamento d’água, de alimento, de lenha, de tudo que foi 
necessário para enfrentar o cerco. Estavam completamente desprevenidos, confiantes em 
que Artur não atacaria, confiante e que respeitaria os reféns. Precisava distribuir o povo 
por determinadas casas, estrategicamente, a fim de favorecer a resistência. 
 — Vamos embora, Vicente, — reclamara Moisés, que o pegou pelo braço e saiu 
arrastando em direção à casa da velha. 
 Quando Vicente pisou a soleira da porta da rua, já ouviu o fuá que ia lá por dentro. 
Choro, gritos, correrias, portas fechadas, canastras, bancos, mesas, bruacas e cangalhas 
as escorando. 
 — Que é isso? Onde está a velha? 
 Aninha encontrava-se no quarto grande do fundo da varanda, deitada na cama 
larga, cercada de almofadas, com o pessoalão em tomo: mulheres, homens, meninos, 
servicais. Uns a abanavam outros lhe traziam chá, outros lhe davam cheiros. 
 Quando a velha ficava nervosa, pegava a querer dar chiliques, tremia, perdia os 
sentidos, era um deus-nos-acuda. Naquele momento, todavia, embora todos receassem o 
ataque, ela não o sofria. Estava bem lúcida. 
 Caminhando, Vicente foi-se inteirando do ocorrido. A polícia tinha ido à casa da 
velha e prendido os homens. Todos: Damião de Bastos e os dois filhos; Joaquim Alves 
Leandro e um filho; Melo Filho, irmão de Artur, Tozão, Abadia Ribeiro, irmão de Cláudio, e 
Damasceno, camarada de Damião. 
 Esse pessoal havia sido recolhido ao sobrado, — informavam 
— onde Enéias tinha o seu quartel. Aí, na parte térrea, era aca- !
170 
deia local. Os nove homens lá estavam, os pés metidos no tronco, que era constituído de 
dois compridos esteios de madeira forte. De espaço em espaço, possuíam esses esteios 
um corte em meia-lua. Justapostos, os cortes formavam buracos, nos quais se metia a 
canela do cristão, que ali ficava jungido. De um lado, unindoos dois esteios, havia uma 
dobradiça de ferro, grosseira, feita ali mesmo, e de outro, uma espécie de aldrava com 
cadeado. 
 Os homens protestaram, relutaram, mas foram levados à força, alguns arrastados 
pelos soldados que os ameaçavam de matar ali mesmo. 
 Tozão velho sacudiu as orelhas e balbuciou alguma coisa. Dizia que não podiam 
prendê-lo. Era capitão da Guarda Nacional e só poderia ser preso por oficial de patente 
superior. 
 — Tá bestando, só, — retrucou Enéias. Agora é lei de guerra! Joaquim Leandro, 
esse tentou resistir, correu para pegar sua arma no quarto. Mane Vitô deu-lhe uma 
rasteira, derrubou-o a fio comprido na sala, montou no bicho e meteu o refle na cabeça. 
Diziam que foi levado carregado, sangrando feito um capado. 
 Enéias com os soldados enfiaram a canela de cada um em cada um dos buracos, 
passou o cadeado e meteu a chave na algibeira. 
 — Quero ver esse Artuzinho de merda nos atacar! — dizia ele para Mendes de 
Assis e Severo. E já saindo, Enéias avisou aos prisioneiros: 
 — Pois é, vão se apegando com Deus e os santos, mode Artur não atacar. Se ele 
atacar, vocês podem liquidar com eles, viu? 
 Aquele ”vocês” a quem Enéias se referia eram Mane Vitô e Nestório que ajudaram 
na prisão e garroteamento dos homens e que ali estavam risonhos e satisfeitos, sentindo-
se importantíssimos com a missão de guardar aquela gente.. 
 — Tou fazendo mas é força pra esse tal de Artuzinho atacar... — disse Mane Vitô, 
cuspindo de esguicho. Sentia-se poderoso. No meio de tantos soldados, foi ele que 
Enéias escolheu para vigiar aqueles prisioneiros. Seus companheiros de farda e os 
paisanos ficariam sabendo que era um cabra macho, cabra perigoso. Estava vendo que 
quando acabasse aquela luta, teria uns pares de lagartixa no braço. 
 Alferes Enéias ajeitou a farda que se amarrotara com os movimentos feitos para 
prender o pessoal. Puxou a túnica, acertou a gola, arranjou o talabarte, e saiu, deixando 
Mane Vitô de guar- !
171 
da. Ia reunir-se com os demais oficiais no quartel. com aConblain na mão, o picuá de 
balas a tiracolo, na cinta o refle e o revólver, ficaram de guarda Mane Vitô e Nestório. 
 Passeavam para lá e para cá e já nutriam um ódio de morte os prisioneiros do 
tronco. Olhavam eles como se fossem inimigos pessoais, como se os odiassem de muitos 
e muitos anos. Queriam que te reclamassem a menor coisinha para meter a coronha logo 
na cabeça, rebentar os miolos. Mane Vitô cuspinhou de esguicho no canto da sala, os 
olhos feitos duas brasas: 
 — Bamo ver, cachorrada. Fala alguma coisinha aí para ver eu é que um cachorro 
morre! 
 Nestório agachou-se, puxou o quepe para os olhos e ficou feito um toco de pau. 
Quem visse pensava que estava dormindo. No entretanto, se Mane Vitô assuntasse bem, 
haverá de ver os beiços do cafuzo mexendo. Nestório recitava o credo às avessas e fazia 
muito esforço. Tinha cabeça dura e a reza era reza muito fina de propósito. Se errasse 
uma palavrinha, a reza não surtia efeito. Carecia de botar todo sentido, que era reza 
braba igual jararaca. 
 ”Não creio em Deus Padre todo-poderoso, nem criador do céu e da terra, nem 
creio em Jesus Cristo, que não foi concebido por obra e graça do Espírito Santo!’A VELHA Aninha chorava, como costumam chorar as velhas, de uma maneira 
profundamente dolorosa. As lágrimas corriam,os soluços subiam numa convulsão 
profunda e sofrida, o rosto se contraía, contorcia-se a boca. 
 Mas no estava acovardada. Assim que viu Vicente, falou fui me e fortemente: 
 — É de vera que Artur chegou? 
 — Deodato está contando isso, minha tia. 
 — Pois a polícia veio cá e fez uma limpa, — dizia ela, que enumerou os presos. 
 Dentre os circunstantes, Anastácia informou que Tozão também fora preso. A velha 
protestou que não, que Tozão não tinha sido recolhido ao tronco. 
 — Foi, sim senhora, — teimava de lá a filha, entre soluços, ocultando o rosto com 
as mãos: — Mataram meu pai, prenderam meu !
172 
filho e agora prendem meu marido! — Um choro brutal, um choro selvagem, uivo de cão. 
 — Coitado de Tozão — disse a velha, como para si mesma, — que é que tinha 
com isso? 
 Ao redor comentavam a prisão de Joaquim Alves Leandro. Era igual à morte do 
velho Pedro Melo — um sacrilégio. Talvez se os soldados tivessem quebrado os santos 
do oratório de Dona Benedita o povo não houvesse achado tão espantoso. Ninguém 
contava o caso diretamente ou por inteiro. Referia-o aos pedaços, por meio de vagas 
alusões. 
 Era o homem mais rico da região. Muito poderoso. Sua fazenda perto de 
Natividade imitava um palácio, com cortinas de veludo, vasilhame de prata e ouro. Além 
de dois capangas Joaquim Leandro fazia-se acompanhar de um estribeiro, um rapaz 
vestido de seda de cor, montando num cavalo bonito, que tinha por tarefa segurar a rédea 
para o Senhor Joaquim, e depois ajeitar-lhe o pé no estribo. 
 Os arreios dele eram uma beleza, todo tauxiado de ouro e prata, com as ferragens 
da cabeçada feitas de prata. Joaquim Leandro andava com um chicotinho de cabo de 
ouro na mão, para bater nos empregados. Lambadas de tirar sangue. 
 Nunca ninguém não tivera idéia de triscar ao menos nos animais desses Alves 
Leandro, que eram gente soberba, confiada no alto poderio das barras de ouro enterradas 
nos alicerces da fazenda. No entanto, naquele dia a polícia deu com o alto senhor no 
chão, amontou em riba e meteu o sabre. 
 Ali no chão havia sangue do homem mais rico do Norte de Goiás. Ninguém tocou 
no sangue, em sinal de respeito. Quem passava, passava por longe, nem pular aquele 
sangue ninguém podia, que não era sinal de bom preceito. 
 Os empregados, os criados e os amigos se benziam. Aquilo era mesmo o fim do 
mundo. Bem que Maria Pequena tinha dito que Carvalho possuía uma ”coisa” fêmea! 
 Com seu império de sempre, com coisa que fosse senhora da situação e com coisa 
que não estivesse na dependência de Vicente, a velha virou-se para o sobrinho: 
 — Olha, meu sobrinho, é preciso que você ponha cobro nisso. Você não pode 
deixar esse pessoal morrer assim sem mais nem me- !
173 
nos. O sangue desses pais de família vai cair na sua cacunda e na cacunda de Valério 
Ferreira. 
 — Jeito quem dá é Artur, minha tia. Ele que não ataque o povoado se quiser os 
parentes com vida! 
 Para perto de Vicente veio Anastácia e pegou a lhe encher os ouvidos, o hálito 
quente lhe queimando as orelhas, os beicosa da mais grossos, mais intumescidos pelo 
pranto. 
 — Vicente devia ir ver os presos, não desamparasse eles que os soldados 
estavam dispostos a matar. A polícia os mataria para que não contassem o roubo dos 
dezoito contos do velho, para que revelassem que o velho morreu depois de se haver 
entregue à polícia; para que não contassem que Carvalho prometera a Artur não o 
prender, se dispersasse o pessoal da Grota. 
 Vicente ficava quieto ali no meio do povo, com Anastácia quase montando em riba 
de seus joelhos, esfregando-se nele, a cara molhada de lágrimas, num desespero 
tremendo, o bafo quente como se estivesse com febre. 
 Numa ânsia de animal ela perguntava: 
 — E Hugo? Você falou com Severo? Será que ele deixa meu filho vir pra cá? 
 Aí se lembrava da prisão do marido: 
 — Ah, agora é besteira. Agora eles não deixam mais Hugo vir para cá! 
 O choro vinha do fundo do peito, aos solavancos. Anastácia tombava com a cara 
ali na cama da mãe e gritava pedia: 
 — Vicente, vai vigiar os presos. Os soldados matam eles, Vicente! 
 Era preciso mesmo ver os prisioneiros. E Vicente saía com essa intenção. 
 Na cama ficou a velha resmungando. Não mais estranhava o avanço do filho. No 
seu egoísmo, achava que Artur estava certo; o grupo de Vicente é que tinha que recuar, 
que tinha que abaixar o cangote. 
 Vicente afastava-se e ela dava vazão a seu sentimento: 
 — Ora, essa é boa! O pessoal de Vicente que se fomentasse. Artur disse que ataca 
e ataca mesmo. Até parece que não conhecem Artur! — Havia soberba nessas palavras. 
A velha se envaidecia da dureza, da inflexibilidade do filho, passando por cima de todo !
174 
!
pedido, do pedido de todo mundo, para vingar a morte do pai, para cumprir uma 
promessa de vingança. 
 Ainda no corredor, Anastácia se atravessou na frente de Vicente: 
 — Defenda Tozão, meu primo! — A voz vinha quente, os beiços ardendo, como se 
tivesse comido pimenta. Ela devia ser uma brasa na cama. Bem que diziam. Tentava 
afastar o pensamento libidinoso, ele voltava insistentemente. Norato falava. Uma brasa, 
uma cobra na cama. E quando queria, queria sempre mais. Vicente sentia vergonha de 
pensar isso naquele momento em que ela sofria tanto. Logo agora que ele ia enxergar a 
prima! Logo agora que a pobrezinha estava tão desgraçada. Será que ela procurou os 
oficiais? Se procurasse, os oficiais iam fazer proposta desonesta. Estavam havia muito 
sem mulher, em dieta de família naquele oco. Por certo não resistiriam a uma mulher 
assim naquele estado. 
 Vicente atravessou o Largo e chegou ao sobrado que servia de quartel, em cuja 
parte térrea estavam os prisioneiros. Ali, porém, não pôde entrar. Mal se aproximou, Mane 
Vitô manobrou a arma e botou bala na agulha. 
 — Passe de largo — gritou na sua voz bonita. 
 Aquilo irritou Vicente. Afinal de contas ele possuía autorização de Eugênio Jardim 
para dirigir a política do Norte, e um soldado boçal daquele o mandava passar ao largo! 
 Tentou impor-se. com aquela gente era preciso tomar atitude, endurecer o 
espinhaço, mostrar-se arrogante. 
 — Alto lá, soldado. Quero falar com os prisioneiros, alto lá! A Comblain de novo 
mastigou e a voz veio mais forte: — Se teimar, meto fogo. É ordem! — Vicente viu Mane 
Vitô levar a espingarda à cara, apontando para seu peito. 
 Que fazer! Vicente se dirigiu para o quartel do Tenente Mendes de Assis, onde 
deviam estar reunidos os oficiais. 
 Chegou com jeito, conversou com Mendes de Assis sobre as prisões, disse que 
vinha da parte de Anastácia, que tinha o marido no tronco e o filho em casa de Severo. 
 Severo o interrompeu. Pelo tom de voz, notava-se que se continha para não 
explodir em xingatório: 
 — Se você vem pedir pelos Melos, é tempo perdido, é tempo perdido... — Disse e 
considerou o assunto morto. Já saiu chamando um sargento e dando ordem para reunir 
mantimentos, para juntar lenha, armazenar água. !
 175 
 Vicente Lemes quis dirigir-se ao Alferes Xavier que era o mais delicado e o mais 
compreensivo. Talvez por isso dissessem que era aliado dos Melos, que havia recebido 
uma bolsa de dinheiro ao entrar na casa. Coisas! Também o encontrou fechado. Mais 
baixo do que Severo e mais claro, Xavier não tinha, no momento, calma habitual. Não deu 
ouvidos aos argumentos de Vicente. Xavier ouvia as razões com a cara de enfado, sem 
dizer nada, mostrando-se indiferente ao assunto. 
 De lá, quem falou foi Mendes de Assis: 
 — Precisa prender essa corja, em antes que eles acabem com nossa gente. Isso é 
que é certo! 
 — Quero dizer que não é preciso meter no tronco. Pode prender sem ser no 
tronco. 
 — Sei lá — retrucou Mendes. — Sei lá. São do lado de Artur e estão querendo 
vingar a morte do velho. Gente muito perigos: 
 O tenente proferia as frases num tom terrivelmente nervoso com cara de meter 
medo. Até parecia que estava embriagado. Seria possível? 
 Vicente compreendeu serinútil querer convencer os oficiais de qualquer coisa. 
Estavam assombrados com a aproximação de Artur. Depois, talvez obtivesse alguma 
medida favorável aos prisioneiros; no momento era mais hábil não teimar. !
A TARDE chegou e Vicente nem percebeu, atarefado com uma e outra providência. 
Novos recados vinham da parte da velha Aninha, mas que ia Vicente dizer? Que a polícia 
não atendia a nenhuma reclamação? A tarde avançava e era horrível. A aflição dominava 
a todos. Já ninguém se iludia. Vicente parece que acorda de um sonho, parece que 
estava vivendo uma história fantástica. 
 A realidade agora era dura. Os bandidos estavam de grito, atacariam a qualquer 
momento. A esperança eram as balas, eram as armas, era a coragem dos sitiados, depois 
da proteção divina. 
 E aquela demora irritante! Que atacassem, os miseráveis! Aquela demora é que 
matava, é que arrasava os nervos. Tinha hora que Vicente pensava em desesperar-se, 
pegar o pessoal e atacar a Grota, atacar o reduto, levar o diabo, mas pôr um termo à 
aflição. 
 Lina chegou com um caldo na tigela. Vicente não tinha pingo !
176 
de fome, mas ela instou. Era preciso enfrentar a situação, reconhecer o perigo que estava 
à porta, escorá-lo bem alimentado e disposto. As palavras dela entravam por um ouvido e 
saíam pelo outro. Até o irritavam. Ele só pensava no ataque, na defesa da Vila, na 
maneira de evitar a morte dos homens metidos no tronco, em como salvar Hugo Melo que 
não tinha ainda vinte anos de idade. 
 O homem ingeria o caldo, de qualquer maneira. Caldo de quê seria? De carne, por 
certo, engrossado com farinha de milho. Tozão, Hugo Melo, Tozão, Anastácia, Abadia. 
 Lina era tão diferente de Anastácia! Anastácia era uma fogueira, uma cobra na 
cama, no testemunho de Norato. Pressentia-se isso pelo calor de sua boca, pelo ímpeto 
que punha nas suas resoluções. Vicente desejou a prima, desejo besta de que se 
envergonhou. Lina, tão diferente, tão boa, tão digna de confiança! Mas seria fria? Como 
seria uma mulher ardente, feito uma cobra na cama? 
 Num assomo de ternura, Vicente passou o braço em tomo da cintura da mulher e 
apertou contra si. Remorso de pensar em Anastácia. 
 Desabituada com essas demonstrações de carinho, Lina desvencilhou-se e fugiu, 
levando a tigela. Seria Lina uma mulher fria? Lina amava como quem se desincumbe de 
uma tarefa amolante, não tinha ardor, não tinha entusiasmo. Vicente até desconfiava que 
ela o estimasse como a um irmão, como a um arrimo. Lina não sabia o que era amar. 
 Vicente saiu para o Largo. A lufa-lufa o envolveu. De tempo em tempo, revezavam-
se as sentinelas e os destacamentos das trincheiras. Homens armados entravam e 
saíam. A tarde era murcha, fria, cinzenta, de céu baixo, mas sem chuva. Passaram uns 
urubus de vôo molengo, rumo ao poente. 
 Pelo povoado, a polícia trabalhava vazando muros e paredes, de modo a permitir 
que as pessoas se pudessem comunicar de casa em casa, passando por esses buracos. 
Rodear pela porta da rua seria expor-se às balas inimigas. Era uma experiência de Pedro 
Afonso, que Enéias transmitia. 
 Nos muros, o trabalho não oferecia dificuldades. A taipa era mole, mas as paredes, 
feitas geralmente de pau-a-pique, deviam ter os barrotes serrados, a fim de não 
enfraquecer a construção. !
177 
Serrote crocava, enxadas e alavancas tiniam, ribombavam móveis arrastados para 
escorar portas e janelas. Mesas, canastras, frasqueiras, bancos amontoavam-se nas 
portas e janelas. 
 Uma grande mudança operava-se no povoado. A polícia localizava-se em quatro 
quartéis. O do Alferes Enéias era o sobrado; dos Melos, onde estavam os homens presos 
no tronco; desse mesmo lado era o do Tenente Mendes de Assis, em frente à igreja, junto 
da grotinha que cortava o Largo, perto do pontilhão aí colocado Em frente deste quartel 
de Mendes de Assis, ao lado da igreja, na casa que fora de Vicente Lemes, se localizara o 
quartel do Alferes Severo, onde estava preso, sob sua responsabilidade, o menor Hugo 
Melo; no oitão da igreja, ficava o quartel do Alferes Xavier. Nesse quartel havia umas 
quarenta pessoas, dentre as quais Valério Ferreira e Cláudio Ribeiro, além dos soldados 
com suas mulheres e filhos. 
 Aí, na véspera, cinco casas foram furadas, de modo a formar um passadiço só. 
Nas paredes externas fizeram-se buracos para o cano das armas, buracos mais largos 
por dentro e estreitos por fora, permitindo que as armas se movimentassem. 
 Aí também estava o Soldado Carajá, valente como as armas Severo, naquele 
momento, o mandava espionar a redondeza, ele que sabia farejar tal qual um animal do 
mato e rastejar igual a uma onça-pintada. 
 Na sala de casas oposta ao quartel de Xavier, no casarão de dona Benedita, 
estava a trincheira de Vicente Lemes, que obedecia às ordens do Alferes Enéias, de cujo 
quartel ficava no oitão. Era mais uma casa de civis, aí estavam mais de cem pessoas: 
Vicente Lemes, Moisés, Jugurta e as respectivas famílias. Estavam a mulher e os filhos 
de Argemiro Félix; ele mesmo tinha ido parlamentar com Artur e não retomara. Deodato o 
vira e o Dr. Herculano presos na Grota. Também a velha Benedita estava nessa trincheira. 
 A este quartel ainda pertenciam os homens de Ângelo Lemes, sob o comando de 
Leão de Aquino, que estavam postados pelos corredores da Vila. Competia-lhes atacar os 
jagunços pela retaguarda. 
 Andando, Vicente recebia as reclamações. Brasica queria sair do quartel de Xavier 
e ir para o de Vicente. 
 — Você sabe, Vicente, tenho aquelas meninas-moças... No meio !
178 
daquela soldadesca que veve sem mulher nem num sei desde quando... 
 Por baixo do xale preto, Benedita Melo reclamava. Tinha medo que Artur lhe 
fizesse algum mal: 
 Quem sabe era mais prudente abandonar a Vila, fugir para o mato? 
 — Logo neste momento, minha sogra? -Uai! 
 — Ah, não è possível. Se a senhora sair pode topar com um piquete de jagunços e 
aí tudo leva o diabo! 
 Contavam de um soldado que desguaritou e passou moreno para não ser morto. 
Aliás, ninguém acreditava que o praça tinha desguaritado. Isso ele tinha é tentado 
desertar, mas viu que fora a coisa era pior do que dentro do povoado. 
 Também a seu conhecimento chegavam os conflitos dos militares. Mendes de 
Assis estava de braços cruzados. Não queria combater. Xavier estava de olho em Severo. 
O cometeiro Anselmo e o cabo Bernardino estavam apavorados. Tonhá e Guia-de-Cego 
prometiam matá-los, receando que revelassem o roubo do cadáver. Freitas Machado 
temia Mendes de Assis. Ele deu voz de prisão no velho Pedro Melo, o desarmou e foi aí 
que Daniezinho e Gabriel mataram o coronel. O velho não resistiu. Era mentira de 
Mendes de Assis. 
 — Olha uma tropa chegando! 
 Era o povo de Moisés que tinha saído para buscar mantimentos no sítio Balança. 
Os cargueiros chegaram pesados, as bruacas cheias de feijão, arroz, farinha de 
mandioca; frutas, galinhas, ovos, milho, carne-seca, toucinho, lingüiça, rapadura, açúcar, 
amendoim, buriti raspado — provisões para os quartéis. 
 Os camaradas de Moisés chegavam contando que as fazendas estavam desertas. 
Para encontrar fazenda com gente, tinha que andar muitas léguas. Eram homens 
habituados com viagens, com seus lenços de alcobaça, descarregando as bruacas e os 
dobros. — Chuva por demais, meu amo. O Palmital estava que não dava vau de jeito 
nenhum. 
 A estrada de Taipas tinha acabado. No lugar do atoleiro estava uma lagoa. E por 
falar em atoleiro, o Penacho, macho forçoso, metera-se no tijuco e deu upa para tirar o 
cujo. Quando saiu, estava com uma estrepada por baixo do sovaco direito: !
179 
 — Larguei o bicho na Balança. 
 — Burro, diacho! — gritava um cabra de Ângelo, seminu, rapinha pingando água 
com três machos, trazia água da fonte enchendo os potes, pipotes, gamelas, talhas e 
pipas. A água do povoado era salobra nas cisternas; para beber buscavam nas fontes 
colocadas fora da Vila. 
 Novamente a moleca de Dona Aninha estava chamando Vicente Lemes. Vestida 
com uma camisola de algodão por cima do corpo, no qual começavam a brotar asgraças 
de mulher. Seu nome era Tifuque. Não largou mais Vicente. 
 Decerto Aninha lhe prometera taça, e muita taça, se não trouxesse Vicente. 
 Para onde ele ia, ia também a moleca que ficava parada, muito séria, os grandes 
olhos muito brancos, o rosto fino e aqueles peitinhos apontando, as coxas meio 
arredondadas. Quando passava, os soldados ficavam olhando longamente. 
 — Bota uma pidrinha de sale na boca! 
 Tinha homem que já estava há mais de seis meses sem aproximar de uma mulher 
e quando via a bichinha com seus peitinhos pontudos, chega mudava de cor, o coração 
pegava a escoicearo peito, uma tremura pelo corpo. Dava até vergonha. Leão ia 
chegando e chalaceou: 
 — Uai, Vicente, você arranjou um bom ajudante-de-ordem, hem, seu barra! — 
Vicente encabulou e resolveu ir ver a velha, 
 A tarde corria, feia, uma neblina baixa, uma cruviana que ia e vinha, ora mais 
grossa, ora mais fina. Quando fazia silêncio, ou via-se o gorgolejar das enxurradas e o 
coaxar dos sapos. 
 Um ou outro galo cantava. bom sinal: se um galo cantasse, um cachorro latisse e 
um gato miasse, não aconteceria desgraça naquele dia. 
 Vicente marchava lépido, de corpo leve. Notou que o coração batia e que uma 
emoção diferente o invadia. Pensava em Anastácia, seus beiços intumescidos, sua voz 
quente. Que coisa besta, gente! Até parece namoro de juventude. !
BOBAGEM, nhá tia. Artur não pode atender, ele não manda mais nada. É prisioneiro de 
Batata — contestou Vicente. 
A velha teimava: !
180 !!!!!!!!!!!
 — Agora quem vai é Anastácia. 
 — Inútil. Deodato viu o povo na Grota. Quem mandava era Batata. Seu filho é 
mesmo prisioneiro de Batata; num decide coisa alguma. 
 A mulher prosseguia: 
 — Anastácia está desesperada, com o filho preso, com o marido no tronco. Ela não 
tem sossego imaginando só coisa ruim. 
 Do fundo da casa, a prima saiu. Desfigurada. Abatida. Os cabelos todos caídos, as 
vestes desarrumadas no corpo. Vinha como se estivesse em transe, os olhos 
arregalados. A cada momento imaginava que no instante imediato o primeiro tiro 
disparado e que, ato contínuo, Severo matasse o menino, Enéias matasse o pobre do 
Tozão. 
 Vicente recebeu a notícia meio sem graça. No íntimo, doía-lhe o afastamento da 
mulher, mas logo reagiu: sonhava com o impossível! 
 A prima acercou-se e pegou com aqueles seus modos, falando quase no ouvido de 
Vicente, numa aflição que lembrava mulher na cama. 
 — Não agüento mais. Ai, não suporto. vou topar com Artur. Depressa, Vicente, me 
arranje um jeito de ir na Grota. Quero ir, preciso ir, eu fico louca, Vicente! — Já se ergueu, 
torceu as mãos, empurrava Vicente pelas costas: 
 — Ligeiro, Vicente! Um soldado por descuido dispara um tiro, um engano qualquer, 
a polícia mata meu filho, Vicente, mata o pobre do Tozão. — Tapava o rosto com as mãos, 
como que afastando a visão terrível. — Coitado de Tozão, tão bom, tão incapaz de fazer 
mal aos outros! 
 A idéia de que um equívoco pudesse levar o filho à morte, parece que aumentava o 
medo, fazia o perigo mais pavoroso. A mulher não tinha sossego, não tirava isso da 
cabeça, não conseguia dormir um minuto desde os dias anteriores. Podiam dar-lhe um 
pouco de cachaça. Cachaça numa hora dessas bem que ajudava. 
 Anastácia tomou as mãos de Vicente e começou a beijá-la nas vistas de todo 
mundo. Vicente teve vergonha, era insuportável uma coisa dessa! Beijar a sua mão, ela 
mulher de sua idade, mãe de família sua prima! 
 Vicente retirou as mãos, escondeu-as, limpou-as, e saiu nem sabe como, saiu 
como um embriagado. Enquanto andava, sentia !
181 
na mão ainda o frio das mãos da prima. Nada daquele calor do dias anteriores. Agora, era 
gelo, era um frio de morte que tona as mãos de Anastácia. Também seu hálito, seus 
lábios tinham podido aquela sensualidade que tanto incendiou Vicente. Era inútil. Agora 
quem mandava eram Batata e Dorado e estes não desistiriam de atacar. Queriam receber 
o gado prometido, queriam fazer a sebaça da região por seis meses. 
 Foi com a cara lascando fogo que Vicente Lemes se apresentou perante os 
oficiais. 
 Todo argumento de Vicente foi fraco. Às primeiras palavras, Severo virou as 
costas, saiu pisando duro, embezerrado. 
 Mendes de Assis ouviu e bufou: 
 — Outro emissário para enredar, para denunciar nossos planos? 
 Só Xavier que, por uma deferência, lhe dava ouvidos, talvez constrangido pelo jeito 
contrafeito com que Vicente encaminhava a conversa. Ele dizia que era inútil: 
 — Dois positivos seguiram quando Artur estava na Bahia e podia arrepender-se... 
No entanto, ele não desistiu. 
 — Bem, mas aquele tempo era diferente. Não havia ninguém preso no tronco, 
como agora, esperando o ataque para ser morto. 
 — A mulher pode chegar lá e contar que estamos fracos, qu não podemos resistir 
ao ataque... 
 — Qual!— retrucava Vicente. — Ninguém não está sabendo dessas coisas, muito 
menos uma mulher. E é preciso compreender que ela terá o maior empenho em defender 
o povoado. Ela deixa aqui um filho preso com Severo, deixa o marido no tronco, ambos a 
bem dizer com o pé na cova. É sair um tiro e eles estarão mo tos. Deixa ainda mãe, 
irmãos... 
 O oficial atalhava com ar de enfado, com cara de fastio: 
 — Mulher é bicho fraco. Abílio Batata é cangaceiro antigo. Prende ela, ameaça e 
ela acaba contando tudo. Além disso é irmã de Artur, é filho do velho... Sangue puxa 
muito... Acaba ficando na banda dele. Não vê o caso do Doutor Herculano? 
 — Doutor Herculano está preso, Seu Alferes. Deodato viu e e Argemiro presos. 
 — Qual nada. Chegando lá essa Anastácia vai contar que c soldados estão numa 
medorréia danada, que as Comblains são velhas e imprestáveis, que a munição não 
presta... !
182 
 Ao ouvir aquilo, Vicente sobressaltou-se. 
 — O quê? A munição não presta, as armas são más? Xavier levantou os olhos de 
incontida raiva: 
 — Pois é esse o segredo militar, meu velho! A munição não vale nada. Veja só. — 
Tomou um punhado de cartuchos sobre a mesa e mostrou-os a Vicente. 
 — Olha, em cada dez, um detona! A munição é velha, imprestável. O que vai valer 
um pouquinho são as armas e a munição dos paisanos de Leão de Aquino. Essas mesmo 
valem pouco. Nós estamos é perdido. Completamente perdido, se Deus não ajudar! 
 Vicente estava tonto, estava zonzo. 
 — Mas não é possível uma coisa desta! Vocês fizeram muito mal em esperar Artur, 
sabendo que estavam tão fracos! 
 — Pois é, — disse Xavier num gesto evasivo. — Achamos que recuasse com a 
tomada de reféns, nunca acreditamos nesse ataque.’.. 
 — Fugir, fugir agora é impossível! — disse Vicente monologando, com cara de 
quem viu o fim do mundo, completamente confuso, sem nenhuma determinação. 
 — Ah, nem precisa pensar em fugir! Aqui pelo menos temos trincheiras, casas, 
mantimentos, algum recurso. Se fizermos uma retirada, Artur nos atacará no campo 
aberto e aí, sim: não escapa ninguém... 
 Os dois permaneciam perplexos, as cabeças vazias, as idéias turbilhonando, um 
zumbido nos ouvidos. ”Um soldado tinha desguaritado (desertado, isso sim) e topou tanta 
patrulha de jagunços que resolveu voltar para o povoado. Era o que ele contava para 
quem quisesse ouvir!” 
 Xavier arrematou: 
 — É entregar para Deus Nossinhor que é pai. E fazer o impossível... 
 Ante os olhos de Vicente pintou-se a figura de Anastácia, o cabelo despenteado, o 
rosto transtomado, aquelas mãos de gelo apertando as suas, depondo nelas um beijo de 
defunto. 
 — Não, alferes, o senhor não viu o sofrimento de Anastácia. O senhor não viu o 
que eu vi. Se a mulher não for falar com o irmão, se não lhe der um jeito de fazer uma 
coisa qualquer, de salvar o filho, o marido, ela enlouquece. Pode ficar certo. Fica doida, 
sai por aí falando besteira feito uma endemoniada. !
183 
 Xavier impressionou-se com o calor das palavras de Vicente e disse: 
 — Eu não mando nada. Quem manda é Severo. Vicente perdeu a paciência. Afinal 
de contas, os civis não eram bonecos, nem bestas. Ele, Vicente, tinha na algibeira a carta 
dsEngênio Jardim; eles, os civis, é que tinhamisto é, vinham buscar dispensa 
de impostos, vinham obter impunidade para os crimes e saques. 
 Embalado por tais pensamentos, Vicente nem percebeu que já havia engolido a 
comida e que estava bebendo água no pote. Daí foi para a sala, de onde deu nova 
olhadela para o Largo. Tudo ia calmo, o solão esparramado nos telhados. Avaliava bem a 
espécie de inimigo que tinha pela frente. Sabia que se aceitasse o rol de bens como Artur 
apresentava, o primo o denunciaria para a Capital como desidioso e desonesto; se 
exigisse os bens restantes Artur o denunciaria como perseguidor. O interesse era 
desmoralizar Vicente e forçá-lo a deixar novamente a vila, para colocar em seu lugar 
gente de confiança. 
!
10 
 De onde estava, Vicente enxergava um trecho do Largo, próximo da calçada alta 
da casa do Coronel Pedro Melo. Até havia pouco, ali existia uma alavanca de ferro 
enfincada. Certa feita, vindo de Conceição, Vicente viu a alavanca e estranhou. 
 — Ah! você não sabe! — E com horror e medo do povo cochichava. — Foi o 
Vigilato, esse menino. Sim, esse mesmo, sobrinho do velho Pedro. Não é que o coronel 
implicou com o coitadinho? Então para enjerizá-lo e obrigá-lo a deixar o lugar, o coronel 
ordenava aos cabras que fossem fazer suas precisões no terreiro do Vigilato. 
 Uma manhã a mulher de Vigilato estava na porta da cozinha, quando senão 
quando olha ali uns homens obrando na sua frente, no maior dos desrespeitos para uma 
senhora direita. Chegando em casa, Vigilato achou a mulher num pranto de choro, que 
aquilo era uma coisa por demais, que ela não ficava mais naquele lugar desgraçado. 
 O rapaz não era nenhum patife não. Saiu e soube que os cabras eram camaradas 
de João Rocha e já ia tomar satisfação desse tal, quando o tio Pedro Melo atravessou no 
seu caminho: 
 — Vigia aqui, esse menino, quem deu ordens aos cabras foi o degas aqui — e 
batia no peito entufado. 
 — Ô velho cachorro! Agora eu estou lá, manda de novo. Vamos ver se você tem 
topete para isso, trem à-toa. O velho não gostou da má-criação do sobrinho e avançou 
para ele que, mais esperto, passou-lhe uma rasteira, botou no chão, montou e mão na 
vasta barbaça branca do coronel: deu-lhe muitos safanões. 
 A partir daí, o coronel só falava do sobrinho para desfeitear e xingar. Deu de 
emagrecer, uma falta de apetite, boca cheia d’água. Uma úlcera lhe roía a pacuera, como 
afirmava o Dr. Rodrigues da Silva, de Barreiras. O velho, entretanto, não confiava no 
diagnóstico do clínico. Aquilo não era doença nenhuma nada. Era raiva, era paixão. O dia 
que vingasse do sobrinho, nesse dia a doença ia embora. 
 Uma noite, Vigilato vinha pelo Largo cambaleando de bêbado. O velho estava na 
porta da casa, na calçadona alta, sentado na cadeira. Pelo Largo deserto rolava a voz do 
bêbado, cantarolando uma modinha, lutando contra a treva e a solidão. Vigilato era 
agente do Correio, vez por outra bebia sua cachaça e se enchia de lirismo, o qual ele 
derramava em cantorias pelos cantos !
11 
do Largo, até cansar e cair no sono. Todos já conheciam a mania do moço e achavam 
graça. Ele não fazia mal a ninguém, só cantava e ria e contava casos. Até que, nessas 
noites, modificava a pasmaceira estagnada do lugarejo de si tão tristonho. 
 A voz pastosa do bêbado rolava nas trevas e de sua porta o velho tio saiu, chamou 
lá dentro do quintal Tito e Resto-de-Onça. mandou em casa do genro e sobrinho Tozão 
buscar o capanga Aleixo, tudo em silêncio, na ponta dos pés, cochicho nos ouvidos. Muito 
de sutil os três homens esperaram o bêbado; e quando ele encostou na calçadona alta do 
tio para soltar a sua cantiga, foi um vup e ram; meteram-lhe o porrete no piolho. 
 Alguma velha que estava rezando no escuro de uma casa, bem que notou que a 
voz de Vigilato esbarrou num baque, a mo que engasgada, deixando o breu da noite 
ainda mais escuro. Na ponta dos pés e com o dedo na boca, o Coronel Pedro Melo 
desceu e sua calçadona, mandou buscar uma laterna furta-fogo; com ela alumiou a cara 
do bêbado tombado no chão. Clareou e meteu fogo, arrebentando-lhe os miolos. 
 — Carregue o cachorro — ciciou o velho olhando em tomo para ver se ninguém 
não chegava. Um cabra pegou por baixo dos ombros, outro pegou as pernas e lá se 
foram, com Aleixo na frente alumiando e o velho atrás de Mauser engatilhada; no Largo 
negro, uma mancha vermelha que se movia confusa e incerta. 
 Chegando à casa do sobrinho, ordenou que batessem. Aleixo bateu, a mulher abriu 
a porta e antes que os olhos dela pudessem habituar com à claridade da laterna, os 
capangas balangavam o cadáver para lá, para cá e — zás — atiravam ele aos pés da 
mulher e dos filhos, dentro da sala, no chão batido e úmido. 
 — Um capado procê limpar — roncou a voz do tio Pedro Melo, enquanto num 
sopro se apagava a lanterna e tudo caía na mais negra escuridão e no chumbo do 
silêncio. Nem cães latiam naquela hora medonha. 
 Na casa tão pequena e tão frágil que um cavalo derrubaria caso se cocasse 
nalgum esteio, aí ficou o espanto, o terror de chorar e esse choro despertar a ira do 
poderoso senhor. Nem luz acenderam, que em casa de bêbado costuma faltar tudo. 
Gente houve que ouviu o tiro, mas teve medo de sair de casa e enfrentar o negrume da 
noite. Quando muito, alguém acendeu uma candeia de azeite !
12 
e chegou à porta da rua, mas o vento zunindo apagou a débil chama. 
 Pelo meio-dia é que o Juiz Valério Ferreira foi ver o corpo de Vigilato. O juiz soube 
do acontecido lá no seu sítio, embora ignorasse quem fora o portador da notícia. Foi uma 
alma caridosa que soprou no ouvido de uma criada; soprou, mas quando a criada quis ver 
quem era, só viu um vulto envolto numa capa de chuva. Assim, ninguém contaria ao 
Coronel Pedro Melo quem foi o portador da notícia para o juiz. 
 Valério foi à procura do delegado de polícia para fazer o auto de corpo de delito, 
mas, receoso, o homem já estava longe. Era preciso, pelo menos, enterrar o defunto. 
Quem, entretanto, se arriscaria a isso, sabendo que o coronel estava de espreita? 
 Na esquina da casa de Pedro Melo, perto da calçadona soberba, no lugar onde 
Vigilato caíra morto, Tito, Resto-de-Onça e Aleixo fincavam uma alavanca de ferro de 
mais de metro de comprimento. Aquilo era para publicar o feito. Os jagunços metiam a 
marreta no ferro que tinia tal qual um sino de defunto. 
 — Pra exemplar cabra maludo — dizia o tio do alto de sua calçada alta, na frente 
da casona mais principal da vila. 
 — É pra ninguém desrespeitar barba de velho! 
 A alavanca retinia e Valério Ferreira ali mesmo junto ao corpo de Vigilato escrevia 
uma representação ao Governo Estadual, a quem comunicava o fato e pedia Melos para 
punir o criminoso. 
 Da casinha, tão pequena, na qual para se entrar carecia de abaixar a cabeça, na 
qual mal cabiam dez pessoas e pessoas sem esporas, daí saía o defunto para o 
cemitério, envolvido numa colcha, que nem o fazedor de caixão teve coragem de 
trabalhar para o inimigo do coronel. com muito custo o Juiz Valério conseguiu dois 
homens pobres para conduzir o defunto até a cova. Os quais iriam se Valério fosse 
também com eles, e publicasse que lhes deu intimação de autoridade. !
NA SALA das audiências, Valério Ferreira também pensava. Aquele inventário ia dar 
barulho. Os Melos andavam desesperados com o abalo em seu prestígio e não 
venderiam mais barato o seu defunto. Haveria outra solução qualquer? Valério não 
enxergava. !
13 
Os Melos lhe pareciam invencíveis, completamente invencíveis] Quando, apesar de tudo, 
admitisse a derrota deles, achava queoi substituiriam outros homens do mesmo estofo. 
 Valério era tuberculoso e talvez daí decorresse o seu pessiraisl mo. Alto, magro, 
embodocado, uma fraqueza o dominava constantemente. Qualquer esforço físico ou 
mental logo o esgotaw| deixando o homem azedo e irritado. Contudo, tão logo recuperava 
o ânimo, voltava a retomar a luta. Reconhecia ser impossível amarrar a égua com os 
Melos e não entregava a palha comi| rapadura. 
 Num passo macio, sorrindo sempre discretamente, o escrivãoarmas e munições; portanto, nada tinham 
que estar pedindo permissão para a polícia, como se pedissem pelo amor de Deus. 
 — Quer saber de uma coisa, Seu Xavier. Eu vim aqui foi para comunicar que 
Anastácia vai embora. Está perdido mesmo! 
 Virou as costas, saiu duro. 
 A tarde era um resto. Morcegos voavam tropegamente, recortando-se no poente 
sombrio. Galos cantavam acomodando-se nos poleiros. Tudo molhado, tudo quieto, como 
se esperando uma coisa qualquer. 
 Chegando à casa de Dona Benedita, mandou arrear um cavalo, mandou chamar a 
prima, montou-a no animal. A seguir pegou um molecote que ela criava e o montou na 
garupa, para servir-lhe de companhia. 
 Daí chamou Leão de Aquino e recomendou que acompanhasse a mulher até as 
suas trincheiras que ficavam a uns quinhentos metros daí, junto à cruz das almas, no 
caminho da Grota: — Urgente, que a noite despencava e a chuva inda por riba! 
 Ao tomar as rédeas, Anastácia agarrou as mãos de Vicente e apertou com uma 
ânsia estranha. Suas mãos eram pegajosas, frias, imitando um sapo, um peixe, mão de 
defunto: 
 — Se Artur quiser atacar, olha aqui o que é que eu levo para ele. 
 A voz da mulher vinha rouca, feito uma voz de velha. Anastácia ergueu o corpete 
da saia e mostrou uma garrucha fogo-central. Os olhos dela eram turvos. Vicente a achou 
muito velha. A boca que lhe dava tamanha graça, aquela boca carnuda, úmida, com uma 
candura de juventude, aquela boca nessa hora caía nos cantos num traço de ódio. 
 Vicente arrepiou-se, chegou a sentir medo. ”Uma fera, tal e qual uma fera.” 
 A mulher chicoteou o cavalo e partiu num trote apressado, com o molecote se 
agarrando à cintura feito um macaquinho. 
 Já era noite. O vulto da mulher, do cavalo, do molecote e de !
184 !!!!!!!!!!
Leão de Aquino recortaram-se no céu por um instante, mas logo se perderam na 
dubiedade do lusco-fusco. Um bicho, coruja talvez, soluçava e um pirilampo pegou a 
fuzilar sua luz de ouro num raminho molhado do chão. 
 Vicente pensou nos reféns. Era preciso libertá-los sem perda de tempo. E a 
conversa de Xavier? Cachorrada! Agora que vinham dizer que não possuíam armas, nem 
munições? Agora que já não se podia fugir. Quanta irresponsabilidade! Por isso que o Juiz 
Carvalho tratou de escafeder-se. Será que valia a pena revelar isso aos companheiros? 
Qual! Preferível que ignorassem. Assim lutariam com mais coragem e com mais 
entusiasmo; não cairiam naquele desânimo em que se encontrava Vicente. Era melhor 
não revelar nada. 
 Mas os reféns, esses carecia libertar. Tirá-los do tronco já e já, antes que o primeiro 
tiro fosse disparado. Se os oficiais endurecessem, quem tinha arma e munição eram os 
paisanos. Leão de Aquino derrotaria a polícia facilmente. !
PARECE que o povoado se agachava, diluía-se acovardado na sombra do crepúsculo. 
Para agravar, a chuva: incessante. Quando não era pancada forte, caía serenando, librina 
que molhava fundo, que o vento suave açoitava para lá e para cá. 
 Os homens chegavam das trincheiras que eram a pura lama, que nem uns pebas. 
As casas que serviam de quartéis metiam medo. A criançada ali sem poder sair, tanto 
choro, tanto mijo, tanto cocô. Gente de mais, entupindo os cômodos, estorvando os outros 
de se mexerem, de andarem, dando embarroadas, empurrões para lá e para cá. Os 
cachorros, as galinhas, os porcos, umas cabrinhas leiteiras, essas não saíam de forma 
alguma, soltando os berros tremidos e trepando nas canastras, roendo os paus, 
espirrando. 
 Fogo não pegava, com a lenha encharcada, o fumaceiro desgraçado sufocando as 
pessoas, invadindo os quartos. 
 — Tão tirando paca do buraco! 
 Lá fora, as bicas dos telhados escorrendo sem parar, o limo esverdinhando o 
terreiro, escorregadio feito quiabo, com a vegetação crescendo com uma rapidez de 
milagre. !
185 
 Nas trempes improvisadas, ao bafo úmido das brasas, panelas ferviam, o 
mosqueiro esvoaçante. Cada mosca de ventre cheio de ovos, voando lerdamente, caindo 
no arroz quente cozido com carne-seca, que o povo comia apressadamente, raspando o 
sobejo no chão, para os cahorros e porcos que zanzavam no meio da gente. Bafo de 
inhaca, de subaco suado, de roupa preguenta de suor e de lama. Chulé. 
 Com a boca da noite, lá pelo córrego, as saracuras quebravam seus potes. Vaga-
lumes vagavam no breu ou se apinhavam nos tamboris, nos mulungus, e ali ficavam a 
noite inteirinha, quando não se entregavam a uma farândola misteriosa de ouro e 
diamantes. 
 Ouvindo a água do córrego gorgolejar crescida, com os bichos quebrando potes, 
alguns soldados que conversavam tiveram o pensamento voltado para o rio. 
 — Devia de estar dando muito peixe. Mesmo no banheiro, pouco antes do barulho 
da Grota, o Sargento Alcides pegara uns mandis-chorões que eram uma beleza. 
 — E paca? — disse alguém da sombra. 
 — Pois é. Ali tinha paca que era um despropósito! 
 A mesma voz dizia que havia antas e capivaras. Inda outro dia o Soldado Benedito 
estava bestando no rio, quando ouviu tropel delas no mato. Mesmo que tropel de novilha. 
 Houve uma exclamação generalizada. 
 — Deixa estar. Passado o barulho, quero pescar e caçar todo santo dia! 
 Um soldado com aspecto de roceiro, falripas de barba na cara murcha, principiou a 
falar na sua voz mofina: 
 — Que pena terem estado de prontidão o tempo todo que passaram ali! Nunca que 
sobrou uma horica para uma caçada, tiração de mel de pau... — A voz mofina morreu com 
a chuva e ficou um silêncio fedendo a suor e cada um avaliou a perda imensa que era não 
terem caçado, nem pescado. Naquela noite mesmo talvez morressem, talvez ficassem 
aleijados para o resto da vida. 
 Parece que rezavam? Sim, havia uma voz monocórdia talvez rezando, algumas 
vezes cantando? Quem seria? 
 — Mas passa, gente, tudo passa. Ao depois ocês pesca, — falou Maria Ponciana, 
que se levantou de perto do amásio, Soldado Tonhá, acendeu na fornalha o pito de barro, 
voltou-se, repuxou a saia de modo a ajustá-la bem às pernas e se agachou. A saia !
186 
escondeu totalmente as pernas finas e musculosas. Tomou um menino que estava no 
chão, equilibrou-o meio por cima dos joelhos, e tirando a pelanca comprida de um peito 
entre os panos da roupa suja, meteu-o na boca do filho. 
 Como por encanto, de todos os lados partiram choros. De recém-nascidos, de 
crianças mais taludinhas, de crianças que já sabiam queixar-se e protestar. Houve um 
rebuliço de saias pelo cômodo exíguo, de teto baixo, mal alumiado pelo fogo vermelho e 
fumacento da fogueira. 
 Os homens não tomavam conhecimento dos choros. Continuavam agachados, em 
tomo da fogueira da sala, pitando e soltando monossílabos. No escuro, as brasinhas dos 
cigarros acendiam-se, chupadas pelos homens, clareavam um pedaço de cara barbuda, 
macilenta, estralavam suavemente e se apagavam, deixando ouvir agora o resmungo de 
reza, uma voz se arrastando pesada, monótona, de quem rezasse, de quem 
confidenciasse um segredo. Quem seria, gente? 
 Na sombra, as mulheres movimentavam-se e as crianças surgiam de todos os 
cantos, magricelas, catarrentas, barrigudas, elas penduravam das saias e choravam. Num 
estoicismo animal as mulheres agachavam-se perto de seus homens, indiferentes à 
choradeira que enchia a noite. Vez por outra, tomavam o cigarro do companheiro, tiravam 
uma baforada, davam ao menino para chupar e devolviam o cigarro. 
 Agora, um menino soltava um vento ruidosamente e a roda inteira fungava de riso. 
 Num tom monótono, mastigado e pausado de roceiro, a conversa rolava. No 
escuro havia olhos famintos seguindo o gesto das mulheres. Tão feia, magra, piolhenta e 
marcada de placas arroxeadas de sífilis, Ponciana balançava o coração do Soldado 
Gabriel que tinha corpo jovem e pouco conhecia de mulher. Tonhá era homem perigoso, 
Gabriel tinha medo de Tonhá e tinha mais respeito. Tonhá esculhambava com quem 
quisesse. Mas Ponciana era uma mulher muito boa, dozeira dos outros, inda outro dia 
Gabriel teve um cangolê e foi Ponciana que preparou um chá para ele. Ponciana tinha um 
cheiro de parto que bulia com o sangueCláudio trouxe os 
papéis para o despacho. Ferreira leu-os atenta| mente e deu o despacho em alguns; 
noutros, mandou que se completassem tais formalidades. Cláudio recebeu os papéis com 
o mesmo riso nos lábios, mas por dentro remoía-se de raiva: homem ranzinza, meu Deus 
do céu! Não confia em ninguém, tudo tem q» ler, reler e mandar corrigir. Mas riu, 
agradeceu, disse uma palavra de amizade. 
 De sua mesa, o juiz ouvia a mula roendo o cocho e alguns sabiás piando no verde 
das laranjeiras dos quintais. Novamente lhe veio a lembrança das exigências do Coletor 
Vicente e um riso escasso arregaçou seus beiços. Era sempre um gostinho pisar o 
inimigo, dar-lhe uma estocada. Quando não também eles sofriam! irritavam-se, ficavam 
desesperados, tinham que providenciar alguma astúcia. 
 — Artuzinho vai ficar danado — disse a Cláudio, que tambéml riu. Até Martim, no 
cômodo do Correio, deu seu palpite: — Isso vai feder a chifre queimado, gente! 
 Valério não gostou da pilhéria de Martim. Martim não tinha direito de desgostar os 
Melos, que nenhum mal lhe fizeram. Parecia ao Juiz que Martim se opunha aos Melos por 
mero dever funcional. Fora nomeado agente do Correio em substituição a Vigilato, a 
pedido de Artur Melo; depois que o Governo Estadual se pôs contra os Melos, Martim 
também bandeou. Explicava que era por amizade a Cláudio e ao juiz, por discordar dos 
atos dos seus protetores de ontem. Mas Valério embirrava com aquilo. Não dizia, que um 
aliado a mais ninguém despreza, ainda mais sendo como era, o controlador da 
correspondência. Mas que Martim era] desprezível isso era. ”Artuzinho, Artuzinho” — 
Fazia muito que !
14 
!
!
Valério não gozava um gostinho como aquele de dar um tapa nos Melos. Com seu feito 
de não pactuar com a violência, com seu escrúpulo no fiel cumprimento das leis, vinha 
sempre perdendo para os adversários. 
 Fora, tudo calmo, sem vivalma pelo Largo. Nos assa-peixes da grotinha, as almas-
de-gato voltaram a piar. Será que mexiam no cemitério? Os olhos do juiz pousavam no 
ângulo da calçadona da casa do Coronel Pedro Melo. Ali em antes, havia a alavanca de 
ferro fincada pelo poderoso chefe. Vigilato com sua cachaçada, com suas valentias de 
nada, Vigilato cantando suas cantigas desafinadas e sem prosseguimento. Talvez se não 
tivesse feito a tal representação ao governo de Goiás, talvez tivesse evitado a jeriza dos 
Melos. Teria nada! A morte de Vigilato só agravou uma rixa antiga. 
 Impedido de instaurar um inquérito, mas revoltado com a morte do inocente 
bêbado, o Juiz Valério enviou para Goiása representação, pedindo providências. Esse 
pedido significou afronta séria para os Melos que passaram a benzer bicheira com o 
nome de Ferreira. O juiz riu seu riso fino. Gostava de atucanar o inimigo. Os Melos 
gritaram, berraram, mas daí uns dias a notícia alarmava a vila: o Governo Estadual 
enviava uma Comissão para apurar o crime. 
 O Juiz Valério alegrava-se com a aproximação da comissão. Acreditava em justiça, 
em lei, achava que o governo fosse dotado de uma clarividência que o comum dos 
homens não possuía, de uma reta intenção de punir o mal e premiar o bem. Daquele 
recanto tão afastado, Governo era assim algo de sobre-humano e inatacável. Antes 
porém que a Comissão chegasse ao Duro, aportaram ali notícias do que era ela. Era 
como o vento que precede a chuva braba. Quem vinha chefiando a comissão era um juiz 
togado, com assento em Porto Nacional, formado pela Faculdade do Recife, com 
militança no Foro de Salvador e Belém do Pará, homem de estudo, homem de preparo, 
homem sabido e corrido. 
 Comandando a força policial vinha um tal Tenente Napoleão; vivia constantemente 
embriagado e um dia o encontraram caído na estrada, a boca entupida de excremento 
humano. Por certo, vingança de algum subalterno. Mas tais novas não arrefeciam o ânimo 
dos Melos que aprontavam uma festança de arromba para receber a Comissão, fazendo 
crer assim que não temiam qualquer devassa em suas vidas. !
15 
 Com a Comissão no povoado, os dias passavam-se em danças e banquetes. 
Tenente Napoleão velho nem se erguia da rede no pileque, de cambulha com os 
soldados. Nos potes do quartel, em vez d’água diz que só existia restilo e restilo forte. Dr. 
Hermínio Lobato, com sua imensa careca, era o chefe da Comissão e tudo ignorava. Os 
Melos o instalaram num sítio fora do povoado, sob a desculpa de o eximir de solicitações 
interesseiras de uma ou de outra parte. Diariamente, de lá vinha o Juiz Hermínio cercado 
de soldados embriagados realizar a audiência e voltava de tarde para seu tugúrio. 
 Era homem de grande bondade, alheio a tudo e a todos, Nas Comarca, à falta de 
serviços forenses, fundou um Colégio f meninos pobres, onde era professor, cozinheiro, 
médico e diretor, ignorando as rusgas, os ódios, as maquinações que lavravam entre os 
jurisdicionados. Conhecedores de suas virtudes, em Porto Nacional todos confiavam nele, 
que não fazia inventário, nem organizava processos escritos para solucionar litígios. Tudo 
ele resolvia amigavelmente, como um novo Salomão. Júri resolveu abolí-los: não havia 
dinheiro para sustentar os presos e os jurados confiavam em que Doutor Hermínio 
julgava melhor do que eles mesmos. 
 Logo no banquete de recepção que o Coronel Pedro Melo lhe ofereceu, Valério 
Ferreira o identificou. No discurso de saudação, Artur disse que o juiz se considerasse 
perfeitamente garantido, pois os Melos dispunham de cem homens armados e 
municiados para sustentar qualquer ato que emanasse da Comissão. Diante de tal 
afirmativa, o Dr. Hermínio ficou inquieto: com ele tinham vindo 30 praças, essas sim para 
garantir seus atos. Logo, os homens de Artur Melo eram uma ameaça à Justiça. O 
Meritíssimo Juiz suava por baixo do terno de linho branco, sem atinar com uma resposta 
adequada, ele que não gostava de luta, cuja existência e dedicada às coisas pacíficas e 
sossegadas da vida; a vasta cara reluzia de suor que ele debalde enxugava no lenço de 
cambraia fina. 
 Por fim, chegou a hora do agradecimento. Dr. Hermínio tinha a careca rebrilhante, 
a cara cansada, o colarinho era uma sopa por entre as dobras da papada suarenta; os 
olhos empapuçados rolavam para um e outro canto. Como um elefante, moveu o 
corpanzil, ergueu-se, mal equilibrou-se, arquejante no esforço mental, soltou um ofego tão 
forte que o sopro apagou dois lampiões na sua !
16 
proximidade. Na semi-escuridão, com o pessoal cochichando e trocando idéias em como 
reacender os lampiões, gaguejou algumas palavras num tom mofino e bambo, dando por 
encerrada a festa. 
 No outro dia, principiou a correr o inquérito. Mas quem o dirigia, na verdade, era o 
Dr. Leite Ribeiro, advogado dos Melos, que o Dr. Hermínio tinha até vergonha de 
confessar que já esquecera a maioria das praxes forenses. Escolhidas a dedo e 
industriadas com esmero, as testemunhas só falavam para dizer que o Coronel Pedro 
Melo era um pobre velho doente, a quem o sobrinho havia espancado cruelmente alguns 
meses antes e a quem tentara assassinar na noite que morreu. O cinismo da mentira era 
tamanho que o povo pegou a comentar e a debicar, enviando cartas anônimas ao juiz e 
membros da Comissão. Aí, numa audiência, Dr. Hermínio resolveu endurecer a espinha e 
tão logo se apresentou a. primeira testemunha, tomou do código e leu o artigo que punia 
o falso testemunho, explicando a significação daquelas palavras. 
 Artur achou aquilo um desaforo. Era uma indireta para ele e seu pai. O Dr. Leite 
Ribeiro tratasse de aparar a asa daquele juizinho que não agüentava nem uma gata pelo 
rabo! 
 A testemunha seguinte era Resto-de-Onça, capanga de Pedro Melo, um dos que 
participaram diretamente da morte de Vigilato e que deveria estar apontado como réu. Ao 
assentar-se no tamborete, em frente do juiz, alguma coisa tombou ruidosamente no chão. 
Dr. Hermínio vagarosamente moveu o vasto corpanzil, tirou os óculos que só permitiam 
ver próximo, e arregalou os olhos. No chão estava a imensa garrucha de Resto-de-Onça 
que, sem pressa, repuxandoa cara com suas caretas habituais de tarado, pegou a arma, 
soprou os ouvidos e meteu no largo correão que servia de cinta. 
 Dr. Hermínio compreendeu a impossibilidade de apurar ali qualquer coisa. Os 
Melos eram os donos de tudo. O caminho que lhe ditava a consciência seria alegar isso e 
renunciar à comissão. Mas como fazer tal coisa, se não conhecia ou não lembrava dos 
caminhos adequados? Depois, tinha já muitos anos de serviço público, estava esperando 
aposentar-se em breve, essa atitude não iria talvez atrapalhar sua aposentadoria? Eram 
trinta e tantos anos de serviço duro, de exílio no sertão. O bondoso Juiz Hermínio 
consertou a garganta, limpou o suor da careca e nunca mais fez a menor pergunta. As 
testemunhas depunham o que bem entendiam, !
17 
seguindo a orientação do advogado Leite Ribeiro, que se tomou o dono do processo. 
 Nesse entretanto, a cachaça correndo na soldadesca. Valério Frerreira e outros 
amigos remeteram um protesto ao Dr. Hermínio, mas nisso saiu a sentença da 
impronúncia do Coronel Pedro Melo, o foguetório enfumaçou o povoado, as carabinas 
roncaram nos quartéis e os signatários do protesto tiveram que fugir e se esconder, ante o 
risco de serem baleados pelos soldados. 
 Tais fatos serviram para ensinar a Valério Ferreira o que era a Justiça e a Lei. Por 
ela, Vigilato é que era criminoso: Norato é que passava por ladrão. Ferreira tratou de unir-
se aos coronéis opositores dos Melos, contratou seu cabra de confiança, dando-lhe um 
rifle papo-amarelo, botou na cintura um punhal e uma garrucha! E já não foi sem tempo. !
SOL DESCAMBANDO, o Juiz Valério encerrou os trabalhos, selou a mula, abotoou as 
esporas, montou e partiu. De passagem, abanou a mão para Vicente, que estava 
assentado na sala. 
 A mula espantou um bando de rolinhas caldo-de-feijão que foi pousar num ruflar de 
asas na grotinha. Por trás da serra do Duro, o sol se afogava numa lagoa de sangue e 
fogo. A tarde esfriava e Ferreira riu seu riso escasso, tossiu. A luta aproximava-se. 
 Na sala, Vicente sentiu uma coisa esquisita: receio? Ansiedade? ímpeto mal 
sofreado? Vicente tinha consciência de que era preciso levantar-se contra o tio e o primo, 
mas no fundo alguma coisa o tolhia: um respeito vindo do tempo de criança, o temor pelol 
homem que sempre mandou no lugar. Vicente pensava. Foi depois! do inquérito sobre a 
morte de Vigilato, ele chegou para o Duro com a carta de Eugênio Jardim na algibeira. 
 Mal desapeou, o Coronel Pedro Melo o foi visitar. Entrou, cumprimentou, assentou-
se no tamborete e ferrou no prosão, campeando sempre um jeitinho mode saber o motivo 
da volta de Vicente. O velho sabia que oxsobrinho deixara o Duro anteriormente porque 
se indispusera com Artur, e que retomava agora com incumbência política. Mas queria 
informação mais precisa, mais por menorizada. Com Vicente ali, a cantiga era outra. Ele 
era casado com uma sobrinha do velho; era, por seu turno, sobrinho da ve- 
!
18 
lha Aninha, mulher de Pedro Melo; por cima de tudo, Vicente e Artur eram casados com 
duas irmãs. Aqueles laços de sangue detinham a mão dos Melos e deles sabiam utilizar 
velhacamente os políticos da longínqua Capital. 
 — Sangue não briga com sangue — diziam os Caiados. O Coronel Pedro Melo 
também sabia levar em conta o parentesco, e reconhecia que o sobrinho Vicente, como 
os demais, tinha um respeito plantado fundo, um temor biológico para com o chefão da 
família. O velho percebia que Vicente algumas vezes até lhe tomava a bênção. 
 Do tamborete onde estava, o velho sondava Vicente, jogava seu verde, queria 
saber se o sobrinho viera com ânimo de ficar de vez ou só veio a passeio. 
 — E tinha trazido o gado? 
 O moço negava estribo, procurava desconversar: 
 — O senhor está forte, meu tio. Da derradeira vez que eu estive aqui, o senhor 
dava um ar que tava perrengado, abatido. Era uma úlcera, parece? 
 Ali estava um assunto que bulia com o homem. Pedro Melo gostava de parecer 
forte. À observação do sobrinho, deu um pulo do tamborete e, no meio da sala, continuou 
saltando ora num pé, ora noutro, mostrando que exercício físico não o cansava, apesar da 
idade. Pulava para lá e para cá, agachava-se, erguia-se, chacoalhando os badulaques 
das algibeiras, agitando a barbaça branca: 
 — Estou forte, menino. 
 — Mesmo, meu tio, — admirava-se Vicente. — Que foi que o senhor fez? Algum 
remédio do Dr. Rodrigues da Silva, alguma reza braba? 
 — Remédio? Que mané remédio! Foi a morte do sem-vergonha do Vigilato. Desde 
que matei aquele tranca, olha, a doença exalou. — Na salinha, entre cangalhas, bruacas 
e canastras, o velho continuava pulando feito um trem doido, agitando a barbaça branca, 
sacolejando os troços que trazia nos bolsos e na cintura: o artifício, o canivete de 
corrente, o punhal aparelhado de prata e não sei o quê mais. 
 Vicente tinha necessidade de não pisar em falso. Qualquer ato seu menos refletido 
podia trazer sérias conseqüências, como foi o caso da boiada. Um boiadeiro tinha mil e 
quinhen- !
19 
!
!!
tos bois para tanger para a Bahia. Até então, os boiadeirosdaü hia passavam pelas 
barreira sem nada pagar de impostos a Goiás, pois os Melos eram os chefes e a troco do 
imposto obtinham o u político e material desses boiadeiros. Agora, porém, o Governo 
estava exigente. Boiadeiro era a base do poder dos Melos, a quem forneciam eleitores e 
jagunços. Boiada não saía sem antes cortar o talão. Aí Artur Melo intercedeu: 
 — Olha, meu primo, você está certíssimo. Mas cobre impostos só sobre quinhentas 
reses. — Nessas horas, Artur se lembrava que era primo de Vicente. 
 — Não pode, Artur. Você conhece a lei, você como deputado ajudou a fazer ela. O 
número de reses é conhecido de todos... Amanhã irão denunciar para a Capital... 
 — Nada, meu primo, faça vistas grossas. Esse povo não está habituado a pagar 
nada e por isso você tem que primeiro educai cobre menos agora, mais da outra vez, até 
que eles não estranhe: É assim mesmo, homem! 
 Vicente acedeu. Fazia a concessão para que Artur não dissej se que Vicente 
repelia acomodações. Para que Artur não ficass] mal servido, ia cobrar imposto sobre a 
metade da boiada. 
 — Muito obrigado, Vicente. Gostei de ver seu espírito de conciliação — dizia Artur 
apertando a mão do coletor, a quem m mais chamava de primo. — É disso que 
precisamos: compreensão mútua, cooperação. Sem isto esse fim de mundo aqui não me 
lhora, não vai pra frente. 
 Artur se foi e ficou de cá Vicente matutando. Está aí. O diabo não é tão feio como 
se pinta. Quem sabe meu primo Artur Melo não está mesmo disposto a viver cordialmente 
com a gente? Artur ia pelo Larguinho e Vicente sentia ternura por ele. O homem tinha 
seus defeitos, mas tinha também suas qualidades. Podiam dizer dele o diabo, mas era 
inteligente, corajoso. Olhe que saiu daquele meio atrasado, chegou a deputado e estava 
na bica para Presidente, quando passou a ser perseguido. Botou jornal na Capital do 
Estado, topeando com homens formados, enfrentando Totó Caiado, Eugênio Jardim... 
 Dois meses depois Vicente recebia um ofício brabo da Secretaria da Fazenda de 
Goiás. O Secretário exigia maior severidac na repressão ao contrabando de gado, pois 
recebera denúncia de !
20 
que Vicente deixara de cobrar imposto sobre metade da boiada exportada para Barreiras 
por fulano de tal, no dia tal. Junto do ofício, um bilhete confidencial: o autor da denúncia 
tinha sido o Deputado Artur Melo. 
 Alguns dias depois, nem por coincidência, apareceu novamente 
Artur: 
 — Meu primo, como vai? Quero lhe apresentar meu amigo João Rocha, boiadeiro 
da Bahia, freguês nosso aqui do Duro desde há muitos anos. 
 — Muito prazer — respondeu Vicente embezerrado. Aquele 
”primo” era mau sinal. 
 — Pois é, o nosso amigo aí tem umas resinhas para passar a barreira e vem 
entender-se com o primo... Quem sabe é possível fazer como daquela outra vez, você 
sabe, já tem o precedente.!. 
 — Quantas cabeças? — perguntou Vicente atalhando a poetagem. 
 — Quinhentos boiequinhos magros, Seu Coletor. 
 Vicente sabia de fontesegura que a boiada era de mais de mil cabeças; assim, 
enquanto ajeitava os talões, foi avisando que João Rocha desculpasse, mas tinha 
informações seguras que a boiada era de mais de mil e duzentos bois. 
 O boiadeiro fechou a cara, cochichando com Artur. Vicente prosseguiu: — Por mim, 
eu cortava o talão para quinhentos bois, mas não posso porque há espiões por aqui. Se 
eu fizer isso, logo denunciarão para Goiás que estou recebendo propinas. Aqui tem gente 
interessada em me tirar do lugar. 
 Novamente os dois homens confabularam e o boiadeiro atolou o chapéu na 
cabeça: — Pois eu não pago é nada, Seu Coletor. Eu me chamo João Rocha, assisto na 
fazenda Pedreira, distrito de Santa Rita do Rio Preto. Faça comigo o que entender! — 
passou a perna na mula ali na porta, tiniu as esporas, deu dois tiros no batente da 
Coletoria e sumiu no mundo. 
 Vicente lavrou o auto de contrabando, testemunhou-o, enviou para Goiás. Levaria 
dois meses para chegar lá, dois para ser informado, mais dois para retomar ao Duro. Aí 
Vicente ia requerer força para garantir a execução. Os soldados viriam de Goiás a pé, 
gastando cerca de três meses na marcha. 
 ”Uma besteira o diabo daquele auto” — pensava Vicente. !
21 
!
!
ATÉ QUE ENFIM! — disse num desafogo o escrivão Cláudio, esfregando as mãos e 
mostrando os dentes num riso largo. Esti satisfeito de ter dado desempenho à tarefa de 
intimar a viúva de Clemente Chapadense da exigência do coletor. Era como arrancar um 
dente dolorido: — Uf! Agora, eles que são brancos que se entendam — completou com 
um gesto de quem afasta de si a guma coisa repelente. 
 — Que se desentendam, isso sim — pilheriou o agente do Correio. — Tozão já 
anda por aí batendo caixa, espalhando a notícia de casa em casa. 
 Assim praticavam Cláudio e Martim, na salinha do Correio, enquanto faziam o quilo 
do jantar: — E vamos ter barulho grosso. 
 Fora, a tarde dissolvia-se em beleza, com pássaros-pretos e sanhaços trinando 
nas laranjeiras e abacateiros. Na sombra, uma rola gemia tristemente, num tom 
merencório de amor abandonado! 
 — A gente podia mudar de casa — observou Martim. O inesperado e estapafúrdio 
da afirmativa, provocou o riso de Cláudio, que exclamou: — Ora, homem, que tem a casa 
com tudo isso? 
 — Em São Marcelo meteram fogo no Cartório e mataram a tamília inteirinha do 
escrivão, que estava dentro. Foi o velho, a mulher e parece que cinco filhos. Uma 
desgraça! 
 Cláudio ria: — Aqui, lugar seguro é o cemitério e assim mesmo, olha lá! 
 Pelas árvores, os derradeiros sanhaços davam seus pulinhosl ágeis, gorjeando 
aquele gorjeio de uma beleza simples. Na grotinha do Largo, a saparia iniciava a 
orquestra. O cururu velho roncava no papo que dava gosto, secundado do sapo-cachorro. 
Martim se ergueu e saiu. Ia ver um conhecido e entreter as horas jogando um sete-e-
meio! 
 — Vamos, Cláudio. — Mas Cláudio rejeitou. Consigo, pensou que o melhor seria 
não sair naquelas noites. Perigoso uma tocaia! como aconteceu ao Vigilato: — Não. vou 
trabalhar, que tenho uma serviceira excomungada em atraso. 
 Januária remexia no quintal, cuidando de seus pés de planta! molhando um 
craveiro e um pé de alfavaca, queimando algum graveto. Cláudio foi ao pote, bebeu uma 
cumbuca d’água e voltou ao tamborete. Diacho. A comida da velha Januária estava 
salgada! A velha estava pegando a caducar. E o inventário do Clemente?! Ia dar águas 
pelas barbas. Esse pessoal de Chapadense era nume- !
22 
roso, valente e perigoso como o diabo. Faça idéia, quem haverá de dizer que um pobre 
desejo de Clemente redundasse em tanto barulho? 
 Clemente Chapadense tinha um cunhado que tinha uma mulherzinha que tinha 
olhos verdes, pernas grossas e umas belas ancas de viola. A diabinha da concunhada ia 
para lá rebolando as cadeiras, no seu jeitinho de pomba-rola, e o sangue de Clemente 
fervia nas veias. Moravam todos em Missões, perto do Duro. Ora, não vê que o homem é 
um homem; o gato é um bicho; o menino, um carrapicho e a mulher um precipício? Vai 
daqui, vai dacolá, Clemente pegou a fazer galanteies à concunhada pelas beiras de cerca 
e de ribeirão. Ela não gostou, contou ao marido, que tomou satisfação de Clemente. Aí, 
quem não gostou foi Clemente, que de homem não se tira satisfação, e sacou a garrucha 
380 fogo-central, mas os parentes entraram no meio e deitaram água à fervura. Saindo 
daí, Clemente ajustou um jagunço; Tico, que assim era chamado o marido dabelezinha, 
ajustou também o seu, e começaram os tiroteios. 
 Cláudio se lembrava como se fosse hoje. Clemente Chapadense entrou no Cartório 
à procura do Juiz Valério. Cláudio ouviu tudo. Clemente se queixava do Coronel Artur: — 
O Dr. Artur Melo diz que entrou na pendenga mode fazer harmonia, mas a harmonia dele 
é esquisita. Pra mim, ele fala que não devo de andar armado e devo ter prudência. Para 
meu cunhado ele fala que não deve de andar desarmado e que eu sou perigoso. 
 Na frente do juiz, Clemente Chapadense pedia garantia de vida. — Minha vida não 
anda segura, Seu Juiz. Estou muito cismado com esse Artur. Até nem num sei cuma é 
que meu irmão Calixto tem confiança nesse trem à-toa. — O sol estava por aqui assim, 
obra de uma braça por cima do morro. Clemente Chapadense montou sua mula e saiu 
para o sítio. A mula batia o gorgulho e Ferreira trocava idéias com Cláudio: 
 — O diabo que entendesse essa gente. Ali estava Clemente no ponto de ser 
comido pelo cunhado, Clemente que era carne com unha com Artur Melo! 
 — Sabe do que andam falando? — interrogou maliciosamente o escrivão, no rosto 
mulato o mais neutro dos sorrisos, numa discrição de velho alcoviteiro. 
 Ferreira balançou a cabeça negativamente. !
23 !!!!!!!!!!!!!
 — Artur anda favorecendo Tico, para que ele mate /Clemente. Os Chapadenses 
são muito fortes, Seu Juiz; para adonde eles penderem, esse lado terá a vitória, na certa. 
Podem pender pro lado de Vicente Lemes... — completava Cláudio cheio de reticências. 
 — Sim senhor! 
 Na tarde, a mula de Clemente comia estrada, que era ana leal, e o pobre com 
medo de Artur. Na tarde, a mula de Clemente trotava, e no peito o coração de Clemente 
também trotava, relembrando as ancas roliças da concunhada, os olhos verdolengos 
assustadiços de veadinha. Por onde andaria Calixto Chapadera irmão de Clemente, 
Calixto que tinha morto Norato e era tão valente quanto João Dias de Boa Vista? Por 
adonde andaria ele que não vinha acudir o irmão das manhas de Artur Melo? O diabo era 
que Calixto tinha um lote de mortes na cacunda, tinha processo fechado no Cartório, 
podia ser pego por Artur e metido no tronco, caso se indispusesse com os Melos. A mula 
comedeira comia estrada, e a cabeça de Clemente pensava na concunhada. E Cláudio 
teve muita pena de Clemente. De que valia toda aquela valentia de Calixto, meu bão 
Jesus da Lapa! 
 No outro dia, nove horas, um grupo de 15 cavaleiros entrou pela vila, quebrando a 
pasmaceira com o matraquear das ferraduras e retinir dos ferros. À testa estava Artur 
Melo. Viera de sua fazei da Grota, onde morava. Chegou à porta do Cartório, sofreou a 
mulona e gritou para o escrivão Cláudio num tom de alta solenil dade: — Onde estão as 
autoridades desta terra, Seu Escrivão? 
 — Por que pergunta, Seu Coronel? — respondeu solícito o funcionário. 
 — Porque mataram um homem, o meu amigo Clemente Chapadense, e nenhuma 
autoridade compareceu ao local para o auto de corpo de delito. Onde estão as 
autoridades? — Artur bradava] em altas vozes, ele próprio alçado nos estribos, a carabina 
erguida na mão direita, os arreios ringindo, as rodelas do freio tinindo. 
 Cláudio chegou até a porta da casa e levou susto ao ver tanta gente. Por isso, 
adoçou mais ainda o sorriso e o semblante: — Seul Coronel, vamos apear, vamos entrar. 
Aqui dentro a gente conversa melhor. — E, entre mesuras, explicava que no povoado era 
surpresa !
24 
essa morte. Ali ninguém estava sabendo do desastre, mas que as autoridades iam agir, 
por sem dúvida. Artur, dramático, agitando no ar a carabina, clamava do alto da mulona:— Você há de provar um dia que entrei na Vila do Duro com meus rapazes em 
busca de justiça e não encontrei justiça. Você, Seu Escrivão, você há de provar! 
 — Sim senhor, sim senhor — balbuciava Cláudio entre gestos de subserviência, 
impressionado com a grandiloqüência do tom do Coronel Artur, emocionado com a 
repetição da invocação de sua pessoa: — Mas eu não tenho nada com isso não, Seu 
Coronel. Eu nem não sei de nada e a gente é tão-somente um pau-mandado, o senhor 
sabe. 
 Os ferros tiniram, os arreios ringiram, os casos tropearam e atrás da mulona de 
Artur saíram os demais cavaleiros. Parece que disse alguém que iam para a casa de 
Clemente Chapadense? Quando, mais tarde, sabedor do ocorrido, para lá acorreu o Juiz 
Valério, a casa estava cheia: mais de trinta homens armados para, segundo dizia Artur, 
prestar as derradeiras homenagens ao defunto. Ali estavam os grandes amigos de Artur: 
Tozão, Damião de Bastos, Joaquim Alves Leandro, Albininho. Num catre, estendia-se o 
corpo de Clemente; noutro encourado de couro de boi, amontoavam-se balas. A cama do 
morto estava cercada de rifles, a coronha no chão, o fuste escorado na cama. Perto, um 
bobo de piraí na mão enxotava os cachorros e porcos que se metiam debaixo do móvel 
para beber o sangue que gotejava dos ferimentos do cadáver. 
 — Como foi que pegaram o coitadinho? 
 — Ah, só mesmo de tocaia, que esses Chapadenses são gente dura. Não viam 
Calixto? Igual a João Dias de Boa Vista. 
 — Mas como foi o sobrosso, de vera? 
 — De vera, home não sabia, que ninguém não viu, mas parece que no atravessar 
o córrego Corrente, Clemente recebeu dois balázios. A mula espantou, arrancou, deu com 
Clemente fora da sela e saiu arrastando ele. 
 — Quer dizer que o pé engarranchou no estribo, não é? 
 — Isso mesmo. Engarranchou e ele foi de arrastão até o lugar Rua Nova; aí a m 
lher mandou pegar o defunto. 
 — Perito? Tá precisando de perito para o auto de corpo de delito — anunciava 
Cláudio. Ninguém porém queria aceitar a incum- !
25 
bência. Aquilo era perigoso, podia depois trazer complicação para quem fizesse 
declarações. 
 — Perito. Quem quer servir de perito? 
 Artur tomou a palavra. Era preciso que os peritos examinassem os ferimentos e 
mandassem o escrivão escrever o que era verdade: 
 — Você aí, Tozão. Também você, Albininho. Compadre!) mião, você também é 
homem desenvolvido para essas coisas! 
 A rede com o defunto saía para o terreiro, seguida da jagunçada de rifle alceado no 
ombro. Aí, parou o préstito para Artur Melo deitar falação: 
 — Esta terra não possui justiça, nem segurança. A justiça tem que ser essa! — 
Artur batia na carabina de papo amarelo. As palavras enfáticas e grandiloqüentes 
retumbaram pelo chapadão ermo e desolado. Dentro do casebre minúsculo, a viúva e os 
filhos choravam, enquanto o grupo se afastava carregando a rede e retinindo as esporas 
e as fivelas das armas. 
 
 Na salinha de chão batido, Cláudio Ribeiro tinha medo. Cartório era sempre 
perigoso, mas com os poderes do Divino Pai Eterno nada havia de suceder de grave. Era 
briga de brancos. A noite caiu por completo sobre o povoado e sobre os campos que a 
seca principiava a esturricar. A janela aberta recortava um retângulo de céu, onde a Via-
Láctea era uma poeira de ouro. Voavam morcegos cambaleantes e estridentes; corujinhas 
gaguejava Na grota, o sapo-cachorro latia esganiçadamente, seguido do cururu. Tão 
calmo tudo! Nem se podia acreditar que sob esta pai germinasse tanto ódio, tanta 
ambição, tanta soberba. 
 Parece que andavam no silêncio. Podia ser Martim, de volta mas também podia 
ser...? Num átimo Cláudio se lembrou de Calixto. Que coisa? Por que Calixto não brigou 
com Artur por causa da morte do irmão? Cláudio se lembrou que também tinha um irmão 
que era gente dos Melos. Seu irmão Abadia fora visto na casa de Clemente, de rifle 
alceado, alparcata no pé e chapéu de couro tombado sobre os olhos. 
 Um zunzum de vozes veio da treva do Largo. Cláudio se apro- !
26 
ximou da janela. No Largo movia-se uma mancha luminosa muito vermelha: na frente, um 
homem de lanterna furta-fogo; atrás uma mulher com criança. Devia ser Vicente Lemes 
que ia para a casa da sogra Benedita, como fazia todas as noites. Ia com mulher e filha, 
para comentar os fatos do dia. !
TOZÃO parecia uma coruja de mato virgem, com o carão comprido, bochechas caídas, 
duas grandes orelhas flácidas, os braços muito compridos dependurados dos ombros 
arcados. Até para chupar os dentes cariados emitia um chiado igual ao das corujas: — 
siu, siu. Naquela noite, ali estava conversando com o Coronel Pedro Melo. 
 Pedro Melo Albuquerque possuía uma boa casa, construída por ele próprio, 
atijolada, cercada de altos muros crivados de cacos de vidro no topo. Melhor do que a do 
Coronel Pedro Melo, só mesmo a casa de sua cunhada Benedita Fernandes de Melo. 
Aquela segurança toda dos muros da casa do Coronel Pedro tinha por escopo prender a 
criadagem, descendente de antigos escravos, mantida ali no regime de escravidão. 
Viviam as criadas maltratadas, mal vestidas, metidas de seco e verde no trabalho duro de 
rachar lenha, cozinhar, fazer queijo, requeijão, manteiga e sabão, refinar açúcar, fazer 
farinha, pilar arroz, desleitar as curraleiras, cuidar da casa, fiar e tecer algodão, lavar e 
passar roupa, fazer de tudo, no final das contas. 
 Novinhas ainda, as ”crias da casa”, como eram chamadas as filhas desses criados, 
prostituíam-se com os patrões, com os parentes dos patrões, com os camaradas. O 
produto da prostituição, entretanto, raramente vingava. A serviceira era tanta que não 
dava tempo às mães de cuidar dos filhos. 
 Esse pessoal não recebia qualquer pagamento: trabalhava a troco da comida, da 
cama e da roupa. Para comandar esse batalhão de escravos, estava ali a velha Aninha, a 
mulher do Coronel Pedro Melo Albuquerque, atroando a casa e o povoado com seu 
vozeirão. No povoado, a derradeira coisa que se ouvia de noite eram os berros de Aninha 
e eram também eles os primeiros sons que se ouviam mal o dia clareava. 
 Aninha era gordíssima. Vivia deitada na larga cama do quar- !
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to de dormir, de onde comandava a casa, as fazendas e o povoado. Mandona e exigente, 
a velha Aninha era uma rainha, sen tirar nem pôr. 
 Naquela noite, Tozão corujava na sua voz de corujão, narrando as notícias do dia: 
 — Num é de ver que Vicente Lemes estava exigindo que a viuva de Clemente 
Chapadense completasse o rol de bens dados a inventário... Siu, siu. — Chupou os 
dentes podres. Ouvindo aquilo o velho coronel deu o desespero: 
 — Aquele Vicente Lemes e aquele Valério Ferreira eram uns cascas de ferida 
braba! O que eles querem é viver na preguiça e atrapalhar os homens trabalhadores 
como nós. Ô gente à-toa! 
 Dando novos chupões nos dentes, Tozão voltou a crocitar: 
 — Pois é, oficial de justiça já foi intimar a viúva... 
 — Isso não fica deste tamanho — esbravejou Pedro, agitando os badulaques e 
arrepiando a barbaça branca. Amanhã cedínho vou participar meu filho Artur. Vou lá na 
Grota inteirar ele de tudo. 
 — Tozão, ô Tozão! — do fundo da varanda, que era coma chamava a sala de 
jantar, onde conversavam os dois homens, veio a voz tomitruante de Aninha. Irmão de 
Aninha e casado com na filha dela, a Anastácia, Tozão se ergueu do tamborete, chupou| 
dentes e saiu com os braços descomunais bamboleantes. Lá contra à irmã e sogra as 
novidades. 
 — Esses preguiçosos, esses fuxiqueiros! — continuava o velho esbravejando na 
vasta varanda. — É um povo que não faz nada, que não tem coragem de trabalhar para 
enriquecer e só quer estar atucanando os que trabalham. 
 A luz do lampião de querosene alumiava o chão de tijolos, as portas, as janelas 
abertas para o quintal, os escassos móveis: a grande mesa de jacarandá, os grandes 
bancos postos ao longo das paredes, tambores de couro, algumas cadeiras de fechar. 
Tudo obra das mãos do velho Pedro Melo. 
 Pedro Melo era um crila quando veio do Piauí com seu pai, que se dizia 
descendente dos Albuquerques de Penambuco. Estabeleceram-se

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