Prévia do material em texto
ENTRE O RECEPTOR E ARTE TECNOLÓGICA: QUESTÕES SOBRE INTERATIVIDADE Cleomar Rocha Pablo Lisboa Resumo: Com o surgimento de aparatos tecnológicos em espaços expositivos, o artigo elege como tema a relação travada entre os visitantes e esses centros expográficos os museus, centros de arte e tecnologia, galerias e afins, no que diz respeito aos processos de interatividade aspectos estéticos e sua metodologia projetual. Nessa relação, consideramse os dispositivos móveis utilizados pelos usuários desses espaços, a partir de sua caracterização, gerando uma taxonomia própria, cuja baliza é seu uso: como elemento de acessibilidade, contextualização e obra de arte. Dentre outras questões, entendemos a experiência como tema fundamental das metodologias projetuais expográficas. Para tanto, confrontamos algumas metodologias projetuais, com atenção especial para os elementos da experiência do usuário de Jesse James Garrett e a metodologia casual de Bruno Munari. Utilizando uma abordagem qualitativa, o artigo considera algumas definições a partir da produção científica de autores como Arlindo Machado, Henry Jenkins, Lúcia Santaella, Stuart Hall, Jacques Ranciére e Julio Plaza. Consideramos que a taxonomia apresentada responde bem às características do aparelho expográfico museal contemporâneo. Outrossim, a experiência nos é primordial como elemento central das metodologias expográficas, por ser tributária de um regime estético das artes. Palavraschave: interfaces. museus. experiência. interatividade. INTRODUÇÃO O advento dos aparatos tecnológicos em espaços expográficos vêm transformando a análise e a avaliação da comunicação museológica, mas também, transforma de maneira igualmente profunda, as questões relativas à concepção e design de exposições no âmbito das exibições em museus e/ou espaços museais. Outrossim, o regime estético das artes que estabelece coletivamente a condição de ativação das obras de arte a partir de sua recepção, e não tão somente com prioridade para a poética do artista, principalmente no que diz respeito à vertente tecnológica da arte, pressiona por transformações nos projetos expográficos para que estes estejam mais adequados às complexidades das narrativas hipertextuais e nãolineares. A situação de elevação dos processos de recepção da arte, compõe o âmago daquilo que Jacques Ranciére (2005) chama de “partilha do sensível”, desta forma, está relacionado diretamente com o regime estético que orbita a arte contemporânea. A relação estabelecida e desenvolvida entre os visitantes e as visualidades expográficas das exibições em museus, centros de arte e tecnologia, galerias e afins, são processos interativos tributários de um regime estético que só é possível pela ativação da arte através do que tem de relacional na obra. Tomando a museologia como ponto de vista, à luz da noção de fato museal elaborado por Waldisa Rússio Guarnieri (1981) a partir da noção de fato social em Durkheim (2002), temos a triangulação objetohumanocenário. Essa categoria analítica irá contribuir para identificar os pilares constituintes do fato museal em cada caso determinado. Contudo, o fato museal pode ser combinado com a condição fenomênica do museu, noção elaborada por Tereza Scheiner (1999) com base em uma visão filosófica dos processos museais, nos dando as chaves para exercitar o entendimento de que os museus são espaços de experiência no que diz respeito a sua essencialidade. Complementarmente, na aplicação do fato museal, devemos considerar que o real é complexo (SCHEINER, 1999). Desta forma, a relação entre o humano e os objetos, num cenário determinado, está influenciada por toda a sorte de interpretações e representações. Stuart Hall, ao conceituar o sujeito pósmoderno, afirma que aquele sujeito de identidade unificada e estável está dando lugar para um sujeito fragmentado que é composto por várias identidades. Essa situação produz o sujeito pósmoderno, “conceituado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente” (HALL, 2006, p. 12). Consideramos que a noção de sujeito pósmoderno de Stuart Hall e o real complexo de Tereza Scheiner, são as linhas mestras para o entendimento de que os projetos expográficos devem estar ancorados, não mais numa narrativa imperativa, mas sim, elaborados a partir das necessidades do público com abertura ao contraditório e as variadas percepções, representações e identidades. Consideramos necessária as variadas problematizações possíveis no campo da arte tecnológica em relação a museologia, no entanto, nosso esforço caminha para apresentar as distinções qualitativas da presença dos dispositivos tecnológicos em relação às obrasartefatos no contexto das exposições museais. PROCESSOS DE INTERATIVIDADE Pelo prisma da noção de fato museal, temos a obra, o autor e o interator, num cenário determinado. Waldisa Rússio Guarnieri ampliou a noção inicial de fato museal como um processo que envolve o homem /sociedade e um objeto /conteúdo em um cenário/território. Manteremos essa noção triangular para fins de nossa proposta de análise. Observamos também que Plaza (2003), discute a relação autorobrareceptor no contexto da abertura da obra de arte à recepção, apresentando uma sequência de estágios em que a arte sofreu mudanças profundas naquilo que o autor descreve como sendo as “fases produtivas da arte: obra artesanal (primeiro estágio), industrial (segundo estágio) e eletroeletrônica (terceiro estágio)”. Plaza destaca que, “quando, em 1922, Moholy Nagy decide ‘pintar’ um quadro por telefone, inaugurouse, de forma pioneira, o universo da ‘interatividade’.” (PLAZA, 2003, p. 10) Passado quase um século da ação artística de Nagy, constatamos que a interatividade goza de primazia nas propostas de obras de arte, evidenciando o quão estabelecido está a arte tecnológica na contemporaneidade. A participação dos públicos nas exposições é resultado de um movimento que parte dos artistas em elaborar uma obra aberta, mas por outro lado, parte também dos públicos que conquistaram o posto de interator. Isso exige do artista a capacidade de formular conexões, mas exige também dos públicos certa capacidade de utilizar seus repertórios nos processos de interatividade. As ferramentas tecnológicas foram desenvolvidas ao longo deste século demaneira que, a interação pôde cada vez mais ser experienciada. Com isso, a 2 arte acompanhou a sociedade da informação e comunicação engendrando suas poéticas de maneira combinada com o regime estético das artes que guarda em seu âmago a partilha do sensível. O que vemos hoje é um especial tipo de sujeito que guarda afinidade, gosto e treino, para o relacionamento com a tecnologia e seus dispositivos. Como uma terceira geração de tipos de leitores, o “leitor imersivo” está na condição de um sujeito que decifra as relações entre palavra e imagem (SANTAELLA, 2004, p. 17), refinando a interação entre obraartefato e os públicos. Entretanto, esse sujeito é um exímio utilizador das máquinas, mas está alheio às informações internas das mesmas. É nesse sentido que Jenkins (2011) alerta para a não existência de uma, mas sim, de várias “caixas pretas”. Ou seja, sistemas fechados e complexos nos quais a estrutura interna é desconhecida ou não é levada em consideração em sua análise, limitandose, desta forma, ao reconhecimento das relações de entrada e saída das mesmas. Na interatividade entre receptor e a arte tecnológica os dispositivos tecnológicos são instrumentos de uso generalizado por parte dos usuários desses espaços, pois os projetos têm adicionando cada vez mais tais dispositivos para proporcionar melhor e mais profunda interação. A partir disso, queremos propor um desenho preliminar de uma taxionomia que nos parece possível, tendo em vista que já estamos em uma época de maturação dos dispositivos tecnológicos nos museus. Em nossa pesquisa, identificamos usos distintos destes dispositivos tecnológicos: 1. como elemento contextual, que antecede a obraartefato; 2. como elemento complementar das obrasartefatos; 3. como elemento constituinte da própria obraartefato. DISPOSITIVOS TECNOLÓGICOS “CONTEXTUAIS” DA OBRAARTEFATO Neste axioma, primeiramente temos a presença dos dispositivos tecnológicos de forma alheia às obrasartefatos, objetivando auxiliar os visitantes na contextualização das exposições. Funcionam como preparação ou abordagem preliminar das exposições em geral, contudo, podem estar presentes nos projetos expográficos. Como exemplo, temos as antesalas que envolvem tecnologia mas não compõem a exposição, seja em tecnologias assistivas ou em audiodescrição. Nessa primeira abordagem se tem por objetivo ambientar a audiência realizando uma espécie de massageamento temático e contextual preparatório para as exposições de fato. Vejamos um exemplo: 3 Imagem 1: Interação de contextualização do público com as obras e os artistas Fonte: http://www.infoartsp.com.br/ ( Excellent Exibhition) A imagem acima diz respeito à exposição interativa “Grandes Mestres Leonardo, Michelangelo e Rafael”, realizada de janeiro a maio de 2016, em São Paulo (Brasil), no Espaço Cultural Porto Seguro. Não se trata da exibição das obras, mas sim, de dispositivos tecnológicos que contextualizam as obras e trabalham com os conteúdos e assuntos tratados pelos artistas nestas mesmas obras. Podemos ver na imagem 1 que o público interage com interfaces, de forma a entrar em contato com informações sobre os artistas e as obras em questão. Esse é um exemplo bastante preciso da condição contextual que os dispositivos tecnológicos podem ter em relação às obrasartefatos. Nesta primeira condição temos a incorporação dos dispositivos tecnológicos como instrumentos de divulgação. Aos poucos, essas tecnologias foram sendo aplicadas nas exposições de maneira contextual. Desta forma, é no “cenário” do museu que temos a primeira presença dos dispositivos tecnológicos em relação a comunicação patrimonial. Os websites também são essenciais nessa primeira condição de aproximação das tecnologias em relação às obrasartefatos. Desta forma, temos nos dispositivos tecnológicos um rico e eficiente instrumento de acessibilidade às exposições, pois seus projetos expográficos têm o objetivo de disponibilizar informações de aproximação contextual das exibições. DISPOSITIVOS TECNOLÓGICOS “COMPLEMENTARES” A OBRAARTEFATO Em um segundo momento, temos a presença dos dispositivos tecnológicos no auxílio e complemento da apreensão das obras. Os dispositivos que acompanham as obras de arte ou artefatos, nesse caso, tem atuação combinada com a tecnologia que acompanha a exposição. A utilização dos dispositivos na interação das exposições são outro exemplo tácito desta segunda condição que a tecnologia dá às exposições. O The Cleveland Museum of Art, evoluiu seu aplicativo (App) de uso nas exposições, e em 2016, lançou ao público o novo App ArtLens que pode ser utilizado no próprio museu ou em qualquer parte do mundo. 4 Imagem 2 App ArtLenz utilizado no The Cleveland Museum of Art. Fonte: http://www.freshwatercleveland.com/ Em 2014, já tínhamos apresentado como estudo de caso o uso de tablets para complementar informações de obrasartefatos em galerias, que o The Cleveland Museum of Art disponibilizou aos seus visitantes (LISBOA & MASCHIO, 2014). Nesse caso, a ferramenta QR Code foi o instrumento de conexão entre o público e a obraartefato, que disparava as informações que podiam ser visualizadas através de Tablet. Na imagem 2 podemos visualizar a reprodução da obraartefato ladeada pelo mapa do museu, que referencia o local específico onde o visitante se encontra. Nessa condição complementar temos, por exemplo, aquelas exibições de artefatos arqueológico que permitem interagir com a virtualidade do objeto sem o perigo de quebrar ou danificar alguma peça. Aqui, os dispositivos tecnológicos, que estão “complementando” o artefato, se expressam como uma medida de comunicação e interação, mas também como uma ação de preservação do patrimônio físico. DISPOSITIVOS TECNOLÓGICOS “CONSTITUINTES” DA OBRAARTEFATO Por último, temos os dispositivos tecnológicos como elementos de constituição da obraartefato. Ou seja, o produto artístico ou artefato tecnológico, que traz consigo os dispositivos tecnológicos de maneira imbricada ao todo da obraartefato. Nessa condição não se pode mais identificar onde existe ou não, a presença da tecnologia. Nessa categoria, a obraartefato está tramada com a tecnologia e seus dispositivos. Na arte tecnológica, por exemplo, os princípios poéticos se entrelaçam com os conceitos, métodose aparatos da tecnologia, como se verifica com a arte digital, a arte computacional, as narrativas hipertextuais, os universos virtuais, a net arte, a arte interativa, a arte robótica e todas as variantes que usam a tecnologia como princípio ontológico de sua existência. A seguir, temos uma imagem extraída da obra “Global Groove” (1973), produzida por Nam June Paik. 5 Imagem 4: Print da obra “Global Groove” (1973) Fonte: www.youtube.com Arlindo Machado (2007), destaca o lançamento e uso de um gravador portátil de videoteipe (Portapack), na década de 1960, para a disseminação daquilo que viria a ser chamado de vídeo arte. Por volta de 1963, Nam June Paik, que foi um dos primeiros artistas a realizar intervenções tecnológicas a partir do uso do vídeo, em 1973 produziu a obra “Global Groove” (imagem 4), que é considerada como a primeira obra de videoarte. Para exemplificarmos uma obra tecnológica interativa mais atual, apresentamos a seguir, “ Wooden Mirror” (imagem 5). Imagem 5: Obra “Wooden Mirror” de Daniel Rozin (1999). Fonte: aleria Bitforms, NY. Daniel Rozin elaborou a obra “Wooden Mirror” utilizando o Kinect, que lê o movimento do público e ativa, no ladrilho da obra, cada um dos pontos através de pixels, movimentando a malha da superfície de acordo com a interação do público. 6 OBRAARTEFATO TECNOLÓGICO E AS METODOLOGIAS PROJETUAIS No contexto dessas três condições expositivas, as metodologias projetuais para tais exposições ganham complexidade. No campo da metodologia projetual para o design físico temos como uma das grandes ferramentas teóricas a elaboração de Bruno Munari (2000), que propôs, em 1981, uma sequência de procedimentos para a construção de um produto de design. No campo da metodologia projetual para o design digital temos como uma das principais contribuições, a proposição de Jesse James Garrett (2003), que sugeriu uma metodologia de construção de interfaces por meio da estratificação de camadas. Do abstrato para o concreto, Garrett considera que existe uma sequência de camadas na elaboração de uma interface: 1. estratégia; 2. escopo; 3. estrutura; 4. esqueleto. 5. superfície. Analisemos uma das camadas da experiência de Garrett (2003), como forma de exemplificar a relação entre os conceitos museológicos, as noções de arte tecnológica e a metodologia projetual. Na camada da estratégia, por exemplo, temos as necessidades do usuário e os objetivos da interface. Considerando a triangulação humanoobjetocenário, se tomarmos como exemplo a terceira condição das obrasartefatos em relação a tecnologia (constituição), a própria interface é que será a obraartefato em si. Com isso, a metodologia e a obra se entrecruzam e a interface, que seria apenas uma janela, uma mediação, passa a ser o próprio produto, o próprio conteúdo. Essa pista nos sugere uma adequação que se faz necessária para os projetos expositivos que trabalham em alguma das condições apresentadas neste artigo. Segundo Munari (2000), todo o projeto de design nasce de uma necessidade. Podemos observar que, tanto em Garrett como em Munari, o atendimento de uma necessidade vai estar evidenciado como ponto de partida para as produções. Logo, nas exposições de artemídia, por exemplo, que necessitam da participação do público para que as obras sejam ativadas, um profundo conhecimento de audiência será a chave para o sucesso do projeto expográfico. Sabemos que, as obras que são construídas para a interação já são elaboradas pelo artista respeitando a sua condição de interator. Assim, o projeto do artista e o design de exposição se confundem, ocorrendo uma espécie de entrelaçamento de funções. Contudo, ao conceber uma obra interativa, o artista nem sempre considera todos os aspectos que estão postos nos espaços expositivos. Por isso se fazem necessárias metodologias projetuais específicas para exposições tecnológicas que vão subsidiar parametros que respeitem as noções de design de experiência, a obra em si, os objetivos do artista e as noções do campo da museologia. CONCLUSÃO Exposições que tenham metodologias projetuais omissas em relação aos públicos e que não considerem o fator “público” em seus projetos, provavelmente estarão em dissonância com o regime estético da arte contemporânea. Nos parece razoável o olhar estratigráfico que considera três qualidades da tecnologia em relação às exposições museais: “contextual”, “complementar” e “constituinte” da obraartefato, conforme apresentamos neste trabalho. A partir desse axioma buscaremos, ao longo da pesquisa que estamos 7 desenvolvendo, apresentar conceituações acerca das metodologias projetuais para cada uma das três condições apresentadas. REFERÊNCIAS DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002. GARRETT, Jesse James. The elements of User Experience. 2003. GUARNIERI, Waldisa Russio. [sem título]. MuWoP: Museological Working Papers = DoTraM: Documents de Travail en Muséologie. Interdisciplinarity in Museology, Stockholm, ICOM, International Committee for Museology/ICOFOM, Museum of National Antiquities, v. 2, 1981. p. 5657. HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2011. LISBOA, Pablo Fabião; MASCHIO, Alexandre Vieira. Interação Humanotecnologia a partir de Interfaces no Âmbito dos Museus e do Patrimônio Cultural Urbano. Ergodesign & HCI , v. 2, p. 3035, 2014. ISSN 23178876. MACHADO, Arlindo. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas. São Paulo: Ed. Martins, 2000. PLAZA, Julio. Arte e interatividade: autorobrarecepção. Revista da USP, v. 1. nº. 2, 2003. RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005. SCHEINER, Tereza. As bases ontológicas do Museu e da Museologia. In: Simpósio Museologia, Filosofia e Identidade na América Latina e Caribe. ICOFOM LAM, Coro: Venezuela, Subcomitê Regional para a América Latina e Caribe/ICOFOM LAM, 1999. p. 133 164. SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço. O perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004. 8