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Prévia do material em texto

O	NOVO
TESTAMENTO	E
O	POVO	DE	DEUS
Tradução
Elissamai	Bauleo
The	New	Testament	and	the	People	of	God:	Christian	Origins	and	the	Question
of	God
Copyright	©	1992,	1995	por	Nicholas	Thomas	Wright
Edição	original	por	Society	for	Promoting	Christian	Knowledge	(SPCK).	Todos
os	direitos	reservados.
Copyright	da	tradução	©	Vida	Melhor	Editora	LTDA,	2022.
Os	pontos	de	vista	desta	obra	são	de	responsabilidade	de	seus	autores	e
colaboradores	diretos,	não	refletindo	necessariamente	a	posição	da	Thomas
Nelson	Brasil,	da	HarperCollins	Christian	Publishing	ou	de	sua	equipe	editorial.
Publisher Samuel	Coto
Editor André	Lodos	Tangerino
Preparação Shirley	Lima
Revisão Davi	Freitas	e	Gabriel	Braz
Diagramação	e	Projeto	gráfico Sonia	Peticov
Capa Rafael	Brum
Produção	de	ebook S2	Books
Dados	Internacionais	de	Catalogação	na	Publicação	(CIP)
(BENITEZ	Catalogação	Ass.	Editorial,	MS,	Brasil)
W934n
Wright,	N.	T.	(Nicholas	Thomas),	1948
1.ed.
O	Novo	Testamento	e	o	povo	de	Deus:	Origens	Cristãs	e	a	Questão	de	Deus	/	N.
T.	Wright;	tradução	Elissamai	Bauleo.	—	1.ed.	—	Rio	de	Janeiro:	Thomas
Nelson	Brasil,	2022.
720	p.;	15,5	x	23	cm.
Título	original:	The	New	Testament	and	the	People	of	God:	Christian	Origins
and	the	Question	of	God.
Bibliografia.
ISBN:	978-65-5689-385-3
1.	Cristianismo	primitivo.	2.	Escrituras	cristãs.	3.	Judaísmo	—	História.	4.
Templo	de	Salomão	—	Judaísmo.	5.	Teologia.	I.	Bauleo,	Elissamai.	II.	Título.
01-222/10
CDD:270.1
Índice	para	catálogo	sistemático:
1.	Cristianismo	primitivo:	História	270.1
Bibliotecária	responsável:	Aline	Graziele	Benitez	CRB-1/3129
Thomas	Nelson	Brasil	é	uma	marca	licenciada	à	Vida	Melhor	Editora	LTDA.
Todos	os	direitos	reservados	à	Vida	Melhor	Editora	LTDA.
Rua	da	Quitanda,	86,	sala	218	—	Centro
Rio	de	Janeiro	—	RJ	—	CEP	20091-005
Tel.:	(21)	3175-1030
www.thomasnelson.com.br
http://www.thomasnelson.com.br
para	Brian	Walsh
SUMÁRIO
Capa
Folha	de	rosto
Créditos
Dedicatória
Prefácio
Lista	de	reduções
Parte	I:	introdução
Capítulo	1.	Origens	cristãs	e	o	Novo	Testamento
Introdução
A	tarefa
1.	O	que	fazer	com	os	lavradores	infiéis?
2.	As	perguntas
3.	A	história	do	cristianismo	primitivo
4.	“Teologia	do	Novo	Testamento”
5.	Crítica	literária
6.	A	tarefa	reformulada
Parte	II:	ferramentas	para	a	tarefa
Capítulo	2.	Conhecimento:	problemas	e	variações
Introdução
Rumo	ao	realismo	crítico
Histórias,	cosmovisões	e	conhecimento
Conclusão
Capítulo	3.	Literatura,	histórias	e	articulação	de	cosmovisões
Introdução
Sobre	o	ato	de	ler
1.	Introdução
2.	“Tem	alguém	aí?”
3.	Leitura	e	realismo	crítico
Sobre	a	literatura
A	natureza	das	histórias
1.	Análise	textual:	estrutura	narrativa
2.	Análise	textual:	os	lavradores	infiéis
3.	Jesus,	Paulo	e	as	histórias	judaicas
Capítulo	4.	História	e	o	primeiro	século
Introdução
A	impossibilidade	da	“mera	história”
Isso	não	significa	“ausência	de	fatos”
1.	Realismo	crítico	e	a	ameaça	do	objeto	em	desaparecimento
2.	As	causas	do	equívoco
3.	À	procura	de	novas	categorias
Método	histórico:	hipótese	e	verificação
1.	Introdução
2.	Os	requisitos	de	uma	boa	hipótese
3.	Problemas	de	verificação
Do	evento	ao	significado
1.	Evento	e	intenção
2.	História	e	narrativa
3.	História	e	significado
4.	Conclusão
Estudo	histórico	dos	movimentos	religiosos	do	primeiro	século
1.	Introdução
2.	O	judaísmo	no	primeiro	século
3.	O	cristianismo	no	primeiro	século
Capítulo	5.	Teologia,	autoridade	e	o	Novo	Testamento
Introdução:	da	literatura	e	da	história	à	teologia
Cosmovisão	e	teologia
1.	Sobre	cosmovisões
2.	Sobre	a	teologia
3.	Sobre	a	teologia	cristã
4.	Cosmovisões,	teologia	e	estudos	bíblicos
Teologia,	narrativa	e	autoridade
Conclusão
Parte	III:	O	judaísmo	do	primeiro	século	no	mundo	greco-romano
Capítulo	6.	Contexto	e	história
Introdução
1.	Propósito
2.	Fontes
O	mundo	greco-romano	como	contexto	do	judaísmo	primitivo
A	história	de	Israel	(587	a.C.—70	d.C.)
1.	De	Babilônia	a	Roma	(587	a.C.—63	a.C.)
2.	Judeus	sob	o	governo	romano	(63	a.C.—70	d.C.)
3.	Judaísmo	reconstruído	(70	d.C.—135	d.C.)
4.	Conclusão
Capítulo	7.	O	desenvolvimento	da	diversidade
Introdução:	contexto	social
Movimentos	de	revolta
Os	fariseus
1.	As	fontes
2.	A	identidade	dos	fariseus
3.	O	plano	ideológico	e	a	influência	dos	fariseus
Essênios:	destaques	de	uma	seita
Sacerdotes,	aristocratas	e	saduceus
“Judeus	comuns”:	introdução
Capítulo	8.	Histórias,	símbolos	e	práxis:	elementos	da	cosmovisão	israelita
Introdução
Histórias
1.	Introdução
2.	A	história	fundamental
3.	Histórias	menores
4.	Conclusão
Símbolos
1.	Introdução
2.	Templo
3.	Terra
4.	Torá
5.	Identidade	racial
6.	Conclusão
Práxis
1.	Introdução
2.	Adoração	e	festas
3.	Estudo	e	aprendizado
4.	A	Torá	na	prática
Segundo	as	escrituras:	a	âncora	da	cosmovisão
Conclusão:	a	cosmovisão	de	Israel
Capítulo	9.	As	crenças	de	Israel
Introdução
Monoteísmo	judaico	do	primeiro	século
1.	Monoteísmo	criacional
2.	Monoteísmo	providencial
3.	Monoteísmo	pactual
4.	Tipos	de	dualidade
5.	Monoteísmo	e	suas	modificações
Eleição	e	aliança
1.	Introdução
2.	Aliança
3.	Israel,	Adão	e	o	mundo
Aliança	e	escatologia
Aliança,	redenção	e	perdão
Crenças:	conclusão
Capítulo	10.	A	esperança	de	Israel
“Apocalíptico”
1.	Introdução
2.	Forma	literária	e	convenção	linguística
3.	Os	contextos	do	apocalíptico
4.	Sobre	“representação”
5.	Daniel	7	e	o	Filho	do	Homem
6.	Apocalíptico,	história	e	“dualidades”
O	fim	do	exílio,	a	era	vindoura	e	a	nova	aliança
Nenhum	rei	além	de	Deus
O	Rei	que	haveria	de	vir
A	renovação	do	mundo,	de	Israel	e	do	ser	humano
Salvação	e	justificação
Conclusão:	o	judaísmo	do	primeiro	século
Parte	IV:	O	primeiro	século	cristão
Capítulo	11.	A	busca	pela	igreja	querigmática
Introdução
Tarefas	e	métodos
Pontos	fixos:	história	e	geografia
Preenchendo	as	lacunas:	literatura	em	busca	de	um	contexto
Capítulo	12.	Práxis,	símbolo	e	perguntas:	por	dentro	das	cosmovisões	do
cristianismo	apostólico
Introdução
Práxis
Símbolos
Perguntas
Capítulo	13.	Narrativas	no	cristianismo	apostólico	(1)
Introdução
Lucas	e	suas	histórias
1.	Uma	estranha	comparação?
2.	A	forma	da	história	de	Lucas
O	escriba	e	o	enredo:	a	história	de	Mateus
“Quem	lê,	entenda”:	a	história	de	Marcos
Evangelhos	sinóticos:	conclusão
Paulo:	de	Adão	a	Cristo
O	mundo	narrativo	da	carta	aos	Hebreus
A	história	de	João
Capítulo	14.	Narrativas	no	cristianismo	apostólico	(2)
Introdução:	crítica	da	forma
Rumo	a	uma	crítica	da	forma	revisada
1.	Introdução
2.	Atos	proféticos
3.	Controvérsias
4.	Parábolas
5.	Unidades	mais	longas
6.	Conclusão
Narrativas	sem	história?	“Q”	e	Tomé
Capítulo	15.	Os	primeiros	cristãos:	um	esboço	preliminar
Introdução
Objetivos
Comunidade	e	definição
Desenvolvimento	e	variedade
Teologia
Esperança
Conclusão
Parte	V:	conclusão
Capítulo	16.	O	Novo	Testamento	e	a	questão	de	Deus
Introdução
Jesus
O	Novo	Testamento
A	questão	de	Deus
Apêndice
Tabela	cronológica	da	história	judaica	do	segundo	templo	e	do	cristianismo
primitivo
Bibliografia
A.	Fontes	primárias
1.	Bíblia
2.	Outros	textos	judaicos
3.	Textos	cristãos	relacionados	aos	períodos	apostólico/pós-apostólico
4.	Textos	pagãos
B.	Fontes	secundárias
Índice	de	fontes	antigas
1.	Antigo	Testamento
2.	Apócrifos
3.	Pseudoepígrafos
4.	Qumran
5.	Josefo
6.	Filo
7.	Obras	rabínicas
8.	Novo	Testamento
9.	Outras	obras	do	cristianismo	primitivo
10.	Fontes	gnósticas
11.	Fontes	pagãs
Índice	de	autores	modernos
Índice	de	tópicos	selecionados
PREFÁCIO
Há	alguns	anos,	tenho	tentado	escrever	paralelamente	dois	livros:	um	sobre
Paulo	e	sua	teologia;	e	o	outro	sobre	Jesus	em	seu	contexto	histórico.
Gradualmente,	ocorreu-me	que	ambos	mantinham	estreita	correlação:	ambos	se
voltavam	à	descrição	histórica	de	acontecimentos	e	crenças	do	primeiro	século;
ambos	enfatizavam	uma	forma	particular	de	compreender	os	textos	e	os	eventos
relevantes;	ambos	exigiam	uma	compreensão	prévia	do	judaísmo	primitivo;
ambos	exigiam	reflexões	teológicas,práticas	e	definitivas.	Foi	assim	que	concluí
que	seria	melhor	uma	obra	de	dois	volumes	sobre	Jesus	e	Paulo.
Entretanto,	o	material	e	a	natureza	dos	argumentos	que	eu	desejava	apresentar
sobre	o	assunto	não	permitiram	que	eu	me	contentasse	com	isso.	Uma	das
perguntas	vitais	que	devemos	fazer	como	parte	da	busca	por	Jesus	diz	respeito	à
forma	como	os	evangelhos	são	apresentados,	mas	os	enormes	problemas
levantados	por	essa	questão	dificilmente	seriam	abordados	no	escopo	de	um
único	capítulo	de	um	livro,	longo	por	si	só.	Após	ceder	e	admitir	para	mim
mesmo	que	eu	planejava	escrever	três	volumes,	bastou	um	pequeno	passo	para
perceber	que	eu	realmente	tinha	em	mente	cinco	volumes:	um	sobre	Jesus,	outro
sobre	Paulo,	outro	sobre	os	evangelhos	—	acompanhados	de	uma	introdução	(o
presente	volume)	e	de	uma	conclusão	em	que	várias	coisas	(que,	de	outra	forma,
teriam	de	ser	ditas	no	início	e	no	fim	de	cada	um	dos	livros	anteriores)	poderiam
convergir.	O	resultado	é	um	projeto	que,	embora	ainda	tendo	Jesus	e	Paulo	como
ponto	central,	também	diz	respeito,	inevitavelmente,	ao	Novo	Testamento	como
um	todo.
Uma	razão	para	permitir	que	o	material	se	expandisse	dessa	maneira	é	a
brevidade	frustrante,	na	época	em	que	vivemos,	de	tantas	“teologias	do	Novo
Testamento”,	compactadas	em	apenas	um	ou	dois	volumes.	Comprimir	a
discussão	das	parábolas,	ou	da	justificação,	em	duas	ou	três	páginas	não	é	de
muito	proveito	—	nem	para	o	leitor,	nem	para	o	avanço	no	campo	da	pesquisa
bíblica.	Na	melhor	das	hipóteses,	tudo	o	que	podemos	esperar	com	esse	método
é	tocar	algumas	notas	e	esperar	que	alguns	ouvintes	descubram	algum	padrão
melódico	por	si	mesmos.	Espero	fazer	mais	que	isso,	e	abordar	de	fato	questões
substanciais,	envolvendo-me	nos	debates	que	divergem	da	minha	perspectiva	em
certos	pontos-chave.
No	extremo	oposto	das	pesquisas	genéricas	e	breves,	há	também	uma
fragmentação	de	boa	parte	da	disciplina,	com	algumas	pessoas	dedicando	toda	a
sua	carreira	profissional	à	especialização	em	uma	subárea,	nunca	tentando	juntar
os	fios	de	hipóteses	mais	abrangentes.	Creio	que	é	importante	esboçar	uma
síntese,	mas	sem	falsas	compreensões	ou	excessivas	simplificações.	Espero,
então,	oferecer	uma	hipótese	consistente	acerca	da	origem	do	cristianismo	no
que	concerne	a	Jesus,	a	Paulo	e	aos	evangelhos,	estabelecendo	novas	formas	de
compreensão	e	padrões	de	pensamento,	além	de	sugerir	novas	diretrizes	que	a
exegese	possa	seguir.	Espero	poder,	eu	mesmo,	contribuir	para	essa	tarefa.
Atualmente,	a	expressão	“teologia	do	Novo	Testamento”,	analisada	no	primeiro
capítulo	deste	volume,	está	carregada	de	diversas	conotações.	Ainda	que,	de
muitas	maneiras,	minha	prática	se	enquadre	no	padrão	de	livros	com	títulos
semelhantes,	preferi	deixar	concreto,	e	não	abstrato,	o	título	principal	do	projeto.
Um	dos	temas	subjacentes	é	o	significado	da	palavra	“Deus”	—	ou,	na	verdade,
“deus”	(veja	a	seguir).	Supostamente,	os	primeiros	cristãos,	inclusive	os
escritores	do	Novo	Testamento,	lutaram	com	essa	questão	mais	do	que
costumamos	imaginar.	Para	os	falantes	de	língua	grega,	a	palavra	theos	(e	seus
cognatos	em	outras	línguas	faladas	na	época)	continha	ambiguidades;	e	os
primeiros	cristãos	argumentaram,	de	modo	convincente,	quanto	à	necessidade	de
compreendê-la	em	um	sentido	particular.	Desse	modo,	não	investigo	apenas	a
área	“geral”	da	“teologia”	(ou	seja,	qualquer	coisa	que	passe	pela	reflexão
“teológica”	acerca	de	qualquer	assunto),	mas	ressalto,	em	particular,	a	“teologia”
propriamente	dita	—	ou	seja,	o	significado	e	o	referente	desta	importante
palavra:	“deus”.	Tal	pesquisa,	talvez	de	uma	forma	surpreendente,	tem	sido	um
tanto	negligenciada	na	“teologia	do	Novo	Testamento”.	É	tempo	de	corrigir	essa
situação.
Há	cinco	pontos	relacionados	ao	uso	linguístico	que	devo	comentar	—	quer
desculpando-me,	quer,	talvez,	explicando	o	porquê	de	o	pedido	de	desculpas	ser
desnecessário.	O	primeiro	é	que,	como	muitos	escritores	antigos,	normalmente
me	refiro	a	Jesus	como	“Jesus”,	e	não	simplesmente	como	“Cristo”.	Não	se	trata
de	evitar	ofender	amigos	judeus	e	outros,	para	quem	a	messianidade	de	Jesus	é
motivo	de	debate.	Antes,	comporto-me	assim	pela	seguinte	razão:	a	própria
messianidade	está	em	questão	ao	longo	da	narrativa	do	evangelho,	e	a	tarefa	do
historiador	é	ver	as	coisas,	o	mais	longe	possível,	com	os	olhos	das	pessoas	da
época.	Em	particular,	isso	pode	servir	de	lembrete	ao	fato	de	“Cristo”	ser	um
título	com	um	significado	específico	e	bastante	limitado	(veja	discussões	nos
volumes	2	e	3).	O	título	não	era,	por	si	só,	“divino”,	por	mais	que	tenha	sido
usado	com	esse	sentido	nos	círculos	cristãos.	Tampouco	era,	nos	primórdios	do
cristianismo,	redutível	a	um	mero	nome	próprio.	[	01	]
O	segundo	ponto	é	que,	com	frequência,	empreguei	“deus”	no	lugar	de	“Deus”.
Não	se	trata	de	um	erro	de	impressão,	nem	de	uma	irreverência	deliberada.	Na
verdade,	é	o	contrário.	O	uso	moderno,	sem	o	artigo	e	com	a	inicial	em
maiúsculas,	parece-me	realmente	perigoso.	O	uso	da	palavra,	que	às	vezes
equivale	a	considerar	“Deus”	o	nome	próprio	da	Deidade,	e	não	um	substantivo
comum,	implica	que	todos	os	que	a	empregam	são	monoteístas,	e	que,	dentro
desse	subgrupo	de	falantes,	todos	os	monoteístas	acreditam	no	mesmo	deus.
Evidentemente,	ambas	as	proposições	me	parecem	falsas.	Pode	ou	não	ser
verdade	que	qualquer	adoração	a	um	deus	qualquer	seja	traduzida,	por	alguma
graça	misteriosa,	na	adoração	do	Deus	único	e	verdadeiro.	Alguns	estudantes	de
religião	acreditam	nisso.	Contudo,	muitos	praticantes	das	principais	religiões
monoteístas	(judaísmo,	cristianismo	e	islamismo)	não	compartilham	essa	crença,
bem	como	os	praticantes	de	religiões	politeístas	(hinduísmo,	budismo	e
congêneres).	Por	certo,	judeus	e	cristãos	do	primeiro	século	não	acreditavam
nessa	ideia.	Antes,	criam	que	os	pagãos	adoravam	ídolos,	ou	até	mesmo
demônios.	(A	questão	de	como	os	judeus	e	os	cristãos	consideravam,	de	forma
recíproca,	suas	crenças	a	respeito	desse	tópico	será	abordada	na	“Parte	V”	deste
volume.)
Parece-me,	portanto,	simplesmente	um	equívoco	usar	“Deus”	na	presente	obra.
Muitas	vezes,	preferi	referir-me	ao	deus	de	Israel	pelo	nome	bíblico,	YHWH	(a
despeito	dos	debates	sobre	o	uso	do	nome	no	judaísmo	do	segundo	templo),	ou,
em	frases	cujo	objetivo	é	lembrar-nos	do	que	ou	de	quem	estamos	falando,
referir-me	ao	“criador”,	ao	“deus	da	aliança”	ou	ao	“deus	de	Israel”.	Os
primeiros	cristãos	usavam	“deus”	acompanhado	do	artigo	definido	(ho	theos
[literalmente,	“o	deus”]),	provocando,	penso,	certa	polêmica,	pois	estabeleciam
uma	ideia	essencialmente	judaico-monoteísta	contra	o	politeísmo.	Em	um
mundo	no	qual	havia	muitos	sóis,	não	seria	possível	dizer	“o	sol”.	Além	disso,
os	primeiros	cristãos	normalmente	sentiam	a	necessidade	de	deixar	claro	o	deus
a	respeito	do	qual	falavam,	qualificando	o	termo,	como	Paulo	costumava	fazer,
com	uma	referência	à	revelação	desse	deus	em	Jesus	de	Nazaré.	Visto	que,	de
fato,	este	trabalho	defende,	entre	outras	coisas,	a	ideia	de	uma	nova	compreensão
do	significado	e	do	conteúdo	da	palavra	“deus”	—	à	luz,	em	última	análise,	de
Jesus,	do	Espírito	e	do	Novo	Testamento	—,	não	seria	plausível	seu	uso	nos
moldes	como	já	a	temos	interpretado.	Segundo	penso,	é	provável	que	muitos	dos
que	abordam	um	livro	dessa	natureza	com	a	firme	convicção	de	que	“Jesus	é
Deus”,	e	outros	com	a	convicção	igualmente	firme	de	que	“Jesus	não	é	Deus”,
possam	ter	opiniões	sobre	o	significado	de	“deus”	ou	de	“Deus”	que	devem	ser
calibrados	à	luz	do	Novo	Testamento.	A	questão	cristológica	sobre	a	validade	da
afirmação	“Jesus	é	Deus”	—	e,	se	sim,	em	que	sentido	—	é,	com	frequência,
formulada	como	se	“Deus”	fosse	o	objeto	conhecido,	e	“Jesus”,	o	desconhecido.
Isso,	sugiro,	está	flagrantemente	errado.	Na	realidade,	é	precisamente	o
contrário.	[	02	]
O	terceiro	ponto	é	que	algumas	pessoas	se	irritam	ao	notar	o	uso	de	a.C.	e	d.C.
como	referências	a	datas	anteriores	e	posteriores	ao	nascimento	de	Jesus,	uma
vez	que	as	consideram	um	sinal	do	imperialismo	cristão.	Outras	pessoas	ficam
irritadas	ao	notarcristãos	usando	as	alternativas	“neutras”,	cada	vez	mais
populares,	de	AEC	(“Antes	da	Era	Comum”)	e	EC	(“Era	Comum”),	já	que	isso
soa	como	uma	atitude	complacente	ou	covarde.	Existem	debates	semelhantes
quanto	ao	dever	de	nos	referirmos	à	Bíblia	hebraica	como	“Tanakh”,	“Antigo
Testamento”	ou	até	mesmo	“Testamento	Mais	Antigo”	(na	minha	opinião,	a
opção	mais	transigente	de	todas);	ou	se	os	termos	“Primeiro	Testamento”	e
“Segundo	Testamento”	são	mais	apropriados.	De	uma	forma	estranha,	parece
que,	em	geral,	são	os	eruditos	da	tradição	cristã	que	se	afligem	com	esses
problemas.	Os	escritores	judeus	não	se	deixam	afetar	por	maneiras	“cristãs”	de
fazer	referência	a	datas	e	livros	—	e	eu	não	desejo	que	o	façam.	Em	todos	esses
exemplos,	receio	que	exista	uma	espécie	de	mal-estar	entre	nós,	consistente	no
desejo	de	apresentar	uma	perspectiva	“neutra”	ou	“objetiva”,	como	se	todos	nós
fôssemos	historiadores	desinteressados,	olhando	lá	do	alto,	do	topo	do	Olimpo.
Conforme	argumentarei	na	“Parte	II”	deste	volume,	tal	epistemologia	é
inapropriada	e,	de	fato,	até	mesmo	impossível.	Portanto,	também	ciente	da
impossibilidade	de	agradar	a	todas	as	pessoas	o	tempo	todo,	continuarei	a	seguir
o	uso	ao	qual	estou	acostumado	(a.C.	e	d.C.,	“Antigo	Testamento”	ou	“Bíblia
hebraica”),	sem	qualquer	intenção	imperialista	ou	paternalista.	A	propósito:	cabe
observar	que	os	mesmos	termos	são	empregados	na	revisão	da	obra	clássica	de
Schürer,	produzida	por	uma	equipe	de	historiadores	de	orientações	totalmente
diferentes,	sob	a	liderança	do	professor	Geza	Vermes.	[	03	]
O	quarto	ponto	é	que	lidamos	com	a	questão	controversa	e	atual	no	que	diz
respeito	ao	gênero	da	linguagem	sobre	“Deus”	ou	os	deuses.	Nesse	ponto,
encontramos,	mais	uma	vez,	algo	desconcertante.	Ninguém	insiste	em	que	um
teólogo	muçulmano	se	refira	ao	deus	acerca	do	qual	fala	como	“ela”;	e	isso	é
bom,	pois,	do	contrário,	nenhum	muçulmano	conseguiria	produzir	muita
teologia.	O	mesmo	seria	verdadeiro,	penso,	para	todos	os	judeus	até
recentemente,	mas,	com	certeza,	para	a	maioria	dos	judeus	de	hoje.	Ninguém
insiste	com	um	hindu	que	torne	suas	divindades	indiscriminadamente
andrógenas:	algumas	são	claramente	masculinas,	enquanto	outras,	igualmente,
femininas.	No	mundo	antigo,	as	divindades	pagãs	também	não	ficariam
satisfeitas	caso	alguns	devotos	trocassem	o	sexo	de	um	deus	ou	de	uma	deusa.
Em	uma	obra	histórica,	creio	ser	apropriado	referir-me	ao	deus	dos	judeus,	aos
deuses	do	mundo	greco-romano	e	ao	deus	da	igreja	primitiva	de	uma	forma	que
os	respectivos	grupos	reconheceriam	e	aceitariam.
O	quinto	ponto	é	que	precisarei	mencionar	constantemente	a	parte	do	Oriente
Médio	onde	se	passam	os	acontecimentos	do	evangelho.	Se	eu	chamar,
sistematicamente,	esse	território	de	“Palestina”,	meus	amigos	judeus	poderão
opor-se;	se	eu	me	referir	a	essa	região	como	“Israel”,	os	amigos	palestinos
poderão	sentir-se	menosprezados	(além	do	mais,	a	maioria	dos	cristãos	nativos
que	atualmente	vivem	na	região	é	composta	por	palestinos).	Portanto,	não
adotarei	nenhuma	política	consistente,	mas	desejo	registrar	meu	respeito	para
com	os	sentimentos,	os	medos	e	as	aspirações	de	todas	as	partes	envolvidas,	bem
como	minha	gratidão	pela	recepção	maravilhosa	e	a	hospitalidade	que	recebi	de
ambos	os	lados	quando,	em	1989,	trabalhei	nos	primeiros	três	volumes	deste
projeto,	em	Jerusalém.
A	esta	altura,	algo	deve	ser	dito	em	relação	ao	escopo	deste	primeiro	volume.
Trata-se,	em	essência,	de	um	exercício	de	“preparação	de	terreno”,	cujo
propósito	é	que	eu	me	envolva	mais	profundamente	em	uma	obra	sobre	Jesus,
Paulo	e	os	evangelhos,	sem	ter	de	comprimir	certas	questões	—	o	que	eu	teria
feito	se	tentasse	incluir	este	material	nos	primeiros	capítulos	de	outros	livros.	Na
maior	parte	desta	obra,	então,	escrevo	como	um	amador	fascinado,	e	não	como
um	profissional	altamente	treinado.	Minhas	próprias	especializações	foram	em
Jesus	e	Paulo,	apesar	de	abordar	a	teoria	hermenêutica	e	teológica,	assim	como	o
estudo	do	judaísmo	do	primeiro	século,	como	um	entusiasta	“fora	da	área”.
Alguns,	ansiosos	por	exegese,	verão	boa	parte	deste	livro	como	porções
misteriosas	e	desnecessárias;	outros,	depois	de	terem	passado	a	vida	peneirando
o	material	que	aqui	reúno	de	forma	bastante	rápida,	suspeitarão	que	ainda	faltam
algumas	informações	essenciais.	(Isso	é	particularmente	verdadeiro	na	“Parte
II”.)	Achei	necessário,	no	entanto,	invadir	esses	territórios,	visto	que	a	atual
conjuntura	dos	estudos	do	Novo	Testamento	tem	gerado	tanta	confusão	de
método	e	conteúdo	que	a	única	esperança	é	retornar	ao	início.	A	única	maneira
de	avaliar	as	demais	inadequações	deste	trabalho	seria	transformar	cada	parte	em
um	livro	inteiro.
Isso	significa,	entre	outras	coisas,	que	os	leitores	que	procuram	um	longo
“histórico	de	pesquisa”	ficarão	desapontados.	Incluir	esse	tipo	de	material
tornaria	o	projeto	ainda	mais	longo.	Em	outro	lugar,	escrevi	sobre	o	estado	atual
dos	estudos	do	Novo	Testamento	e	sobre	questões	específicas	relativas	à
pesquisa	recente,	algo	que	continuarei	a	fazer.	[	04	]	Todavia,	em	um	trabalho
como	este,	é	preciso	ser	seletivo	na	escolha	dos	parceiros	de	diálogo,	mesmo	que
corramos	o	risco	de	parecer	ignorar	certas	questões.	Aqueles	que	desejam
averiguar	detalhes	ou	acompanhar	debates	encontrarão	muitos	livros	como
forma	de	auxiliá-los.	[	05	]
Ao	apresentar	minhas	propostas,	entro,	ao	menos	implicitamente,	em	diálogo
com	muito	mais	escritores	do	que	os	listados	nas	notas	de	rodapé.	Em	quase
todas	as	páginas,	seria	possível	duplicar	ou	triplicar	as	fontes	secundárias
mencionadas,	mas	é	preciso	traçar	uma	linha	em	algum	lugar.	Minha	tendência
foi	referir-me	às	discussões	recentes,	as	quais,	em	grande	parte,	fornecem
referências	bibliográficas	completas	de	trabalhos	anteriores.
Cabe,	aqui,	uma	palavra	sobre	a	categoria	“narrativa”,	que	me	vi	usando	cada
vez	mais.	Já	se	mostrou	proveitosa	em	diversos	campos	atuais	de	estudo,	não
apenas	na	crítica	literária,	como	também	em	áreas	tão	diversas	quanto
antropologia,	filosofia,	psicologia,	educação,	ética	e	teologia.	Estou	bem	ciente
de	que	alguns	considerarão	modesto	meu	uso	do	termo;	além	disso,	é	verdade
que	“narrativa”	ou	“história”	são	características	centrais	da	crítica	pós-moderna,
com	sua	rejeição	da	atitude	antitradicional	e	anti-histórica	do	Iluminismo.	Ao
empregar,	porém,	essa	categoria,	não	tenho	a	intenção	de	endossar	o	pós-
modernismo.	Pelo	contrário:	enquanto	o	pós-modernismo	às	vezes	usa
“narrativa”	ou	“história”	como	um	meio	pelo	qual	alguém	pode	dizer	algo
distinto	da	realidade	espaçotemporal,	tentei	empregar	termos	semelhantes	à
epistemologia	“crítico-realista”,	exposta	na	“Parte	II”,	usando-os	como	um
caminho	a	seguir	na	história	e	na	teologia,	bem	como	nos	estudos	literários.
Isso,	por	sua	vez,	leva	a	uma	palavra	final	de	advertência:	é	provável,	segundo
costumo	dizer	aos	meus	alunos,	que	uma	grande	porção	do	que	digo	esteja
errada,	ou	pelo	menos	incompleta	ou	distorcida,	de	uma	maneira	que	não
percebo	neste	momento.	O	único	problema	é	que	não	sei	quais	partes	estão
erradas;	se	soubesse,	poderia	consertá-las.	Cabe	uma	analogia	com	outras	áreas
da	vida:	se	cometo	muitos	erros	em	questões	morais	e	práticas,	por	que	deveria
imaginar	que	meu	pensamento	se	apresenta	misteriosamente	isento?	No	entanto,
se	eu	ferir	alguém,	ou	entrar	na	contramão	ao	dirigir,	não	demorará	para	que	eu
seja	confrontado	com	meu	erro,	ao	passo	que,	se	expuser	perspectivas	erráticas
no	mundo	da	teologia	acadêmica,	será	menos	provável	que	eu	seja	convencido
por	contradição.	(Meu	uso	da	primeira	pessoa	inclui	o	genérico,	como	algumas
vezes	encontramos	em	Paulo.)	Todos	nós	temos	maneiras	de	lidar	com
comentários	adversos,	sem	mudar	de	ideia.	Contudo,	como	estou	ciente	de	que
certamente	cometerei	erros	em	algumas	das	coisas	que	escrevo,	espero	prestar	a
devida	atenção	aos	comentários	(e	haverá	muitos,	sem	dúvida)	daqueles	que
desejam	chamar	minha	atenção	para	os	trechos	em	que	consideram	insatisfatória
minha	declaração	da	evidência,	julgam	meus	argumentos	fracos	e	minhas
conclusões,injustificadas.	Confrontações	fazem	parte	da	vida	acadêmica,	de
modo	que	antecipo	—	não	sem	algum	receio,	claro	—	mais	debates	como
resultado	deste	projeto.
Restam-me	apenas	pequenos	aspectos	técnicos.	Primeiro:	ao	fazer	citações	de
autores	bíblicos	e	fontes	antigas,	usei,	em	geral,	minhas	próprias	traduções.	Nos
contextos	em	que	me	vi	seguindo	outros,	isso	aconteceu	por	eles	parecerem
adequados,	e	não	por	eu	ter	uma	política	consistente	de	seguir	uma	versão
específica	—	embora	minha	tendência	tenha	sido	o	uso	da	New	Revised
Standard	Version	(substituindo	“Senhor”	por	“YHWH”),	a	menos	que	indicado
de	outra	maneira	[em	português	foram	adotadas	a	Nova	Versão	Internacional	ou
a	tradução	livre	como	padrão,	mas	outras	versões	foram	utilizadas	e	indicadas
quando	se	aproximavam	mais	do	original].	Segundo:	mantive	deliberadamente	o
mínimo	de	citações	em	línguas	antigas,	transliterando	também	o	grego	e	o
hebraico	da	forma	mais	simples	possível.
Por	fim,	devo	agradecer	a	diversos	amigos	que	contribuíram	com	este	projeto,
lendo	trechos	do	manuscrito,	criticando	e	encorajando,	fazendo	sugestões	de
todos	os	tipos	e,	em	geral,	levando-me	à	produção	de	um	projeto	amplo	e	denso.
Leitores	críticos	e	valiosos	de	várias	partes	incluíram	os	professores	Michael
Stone	e	a	saudosa	Sara	Kamin,	da	Universidade	Hebraica;	o	professor	Richard
Hays,	da	Duke	Divinity	School,	em	Durham,	Carolina	do	Norte;	o	ex-professor
de	Cambridge,	Charlie	Moule;	e	os	professores	Christopher	Rowland,	Rowan
Williams	e	Oliver	O’Donovan,	de	Oxford.	A	amizade	desses	três	últimos	colegas
foi,	para	mim,	uma	das	maiores	bênçãos	de	viver	e	trabalhar	em	Oxford.	Sou
particularmente	grato	a	amigos	que	me	ajudaram	a	ver	o	trabalho	em	progresso,
antes	da	publicação.	Penso	particularmente	no	Dr.	Anthony	Thiselton,	do	St.
John’s	College,	Durham,	cujo	importantíssimo	livro,	New	Horizons	in
Hermeneutics	[Novos	horizontes	em	hermenêutica],	tive	o	privilégio	de	ler	ainda
na	forma	de	rascunho.	Tenho	também	uma	dívida	de	gratidão	com	meus	alunos
de	graduação	e	pós-graduação,	que	escutaram	pacientemente	minhas	ideias	no
decorrer	dos	anos	e,	com	frequência,	fizeram	observações	e	críticas
contundentes.	Gostaria	de	agradecer	aos	editores	e	à	equipe	da	SPCK	e	da
Fortress,	particularmente	a	Philip	Law,	por	seu	entusiasmo	com	este	projeto,
além	do	cuidado	que	lhe	devotaram	e	da	paciência	com	que	o	aguardaram	—	e
ainda	o	aguardam!	David	Mackinder,	Andrew	Goddard	e	Tony	Cummins	leram
o	manuscrito	completo	e	perceberam	diversas	formas	como	o	texto	podia	ser
melhorado	e	esclarecido;	sou	grato	a	eles.	Uma	palavra	especial	de	gratidão	deve
ser	dirigida	aos	fabricantes	do	software	Nota	Bene,	o	qual	fez	praticamente	tudo
o	que	eu	pedi,	o	que	possibilitou	a	elaboração	deste	livro	no	meu	próprio
escritório.	Naturalmente,	os	demais	erros,	grandes	e	pequenos,	não	são	de
responsabilidade	de	nenhuma	das	pessoas	mencionadas,	mas	somente	de	minha
responsabilidade.
Assistências	secretarial	e	editorial	de	alta	qualidade	me	foram	fornecidas	ao
longo	dos	anos	em	que	me	envolvi	neste	trabalho	por	Jayne	Cummins,	Elisabeth
Goddard,	Lucy	Duffell	e,	particularmente	nas	etapas	finais,	por	Kathleen	Miles,
que	realizou	um	trabalho	excepcional	na	organização	e	no	esclarecimento	de
diversos	processos,	incluindo	a	compilação	de	índices.	Ao	agradecer	a	essas
quatro	pessoas,	desejo	também	reconhecer	aqueles	que	estabeleceram	o	fundo
por	meio	do	qual	consegui	empregá-las,	nesses	dias	de	austeridade	acadêmica.
Faço	menção	particular	a	Paul	Jenson,	de	Orange,	Califórnia,	e	ao	Rev.	Michael
Lloyd,	do	Christ’s	College,	Cambridge.	Nesse	e	em	diversos	outros	aspectos,	o
apoio,	o	encorajamento	e	a	ajuda	prática	de	ambos	me	foram	de	grande	valor.
O	principal	esboço	dos	volumes	1	e	2,	assim	como	a	primeira	metade	do	volume
3,	foram	escritos	no	decorrer	de	um	período	sabático,	em	Jerusalém,	durante	o
verão	de	1989.	Por	isso,	devo	agradecer	não	apenas	ao	Worcester	College	e	à
Universidade	de	Oxford,	por	me	concederem	dispensa,	e	ao	Leverhulme	Trust,
por	uma	generosa	bolsa	de	cooperação	e	pesquisa,	mas	também	aos	meus
anfitriões	em	Jerusalém,	a	saber,	David	Satran,	professor	da	Universidade
Hebraica	e	organizador	do	meu	ensino	na	instituição,	e	o	Rev.	Hugh	Wybrew,
deão	da	St.	George’s	Cathedral,	o	qual	me	concedeu	um	maravilhoso	pied-à-terre
em	seu	apartamento	e	me	proporcionou	um	contexto	ideal,	em	termos
domésticos	e	eclesiásticos,	para	a	escrita.	Também	sou	profundamente	grato	ao
Rev.	Michael	Lloyd,	ao	Rev.	Andrew	Moore	e	à	Dra.	Susan	Gillingham,	por
cuidarem	dos	diferentes	trechos	do	meu	trabalho	durante	minhas	várias
ausências	e	lerem	partes	do	texto,	oferecendo	comentários	cujas	pesquisa	e
natureza	refletiram	o	melhor	tipo	de	colegialidade.	Bibliotecários	da
Universidade	Hebraica	e	da	École	Biblique	me	foram	muito	úteis;	já	de	volta	a
Oxford,	a	Biblioteca	Bodleiana	continua	a	ser	um	lugar	agradável	e	privilegiado
para	se	trabalhar,	apesar	dos	problemas	com	a	redução	de	recursos.	As
bibliotecas	das	faculdades	de	Estudos	Orientais	e	de	Teologia	também	me	foram
de	grande	auxílio.
Um	lugar	de	destaque	nos	agradecimentos	deve	ser	dado,	como	sempre,	à	minha
querida	esposa	e	aos	meus	filhos,	que	suportaram	minha	ausência	durante	minha
estada	em	Jerusalém	e	inúmeras	outras	ausências	e	pressões	ao	longo	do
trabalho.
Se	a	hermenêutica	—	e,	de	fato,	a	própria	história	—	são	inevitavelmente	uma
questão	de	interação	entre	leitor	e	evidência,	aqueles	que	auxiliaram	o	leitor	em
seu	desenvolvimento	precisam	ser	reconhecidos	como	arquitetos	parciais	dos
resultados	produzidos.	Um	desses	arquitetos	parciais	que,	de	diversas	maneiras,
tem	sido	um	sine	qua	non	para	o	projeto	todo,	bem	como	para	meu	pensamento
teológico	e	particularmente	hermenêutico,	é	o	Dr.	Brian	Walsh,	de	Toronto.	Foi
por	seu	entusiasmo	com	o	trabalho	que	ele	tirou	seis	semanas,	no	verão	de	1991,
para	me	ajudar	a	refletir	e	reformular	os	cinco	primeiros	capítulos	do	presente
volume.	Os	muitos	defeitos	que	o	livro	ainda	tem	pertencem	apenas	a	mim;
vários	de	seus	pontos	fortes,	se	é	que	podemos	identificá-los,	provêm	desse	ato
de	generosidade	e	amizade	acadêmica,	o	qual	se	reflete,	embora,	dificilmente,
seja	recompensado	de	forma	adequada,	nesta	dedicatória.
N.	T.	Wright
Worcester	College,	Oxford
Dia	de	São	Pedro
Junho	de	1992
LISTA	DE	REDUÇÕES
ANF Pais	pré-nicenos
ANRW Aufstieg	und	Niedergang	der	Römischen	Welt	[Ascensão	e	queda	do	mundo	romano],	ed.	H.	Temporini	e	A.	Haase	Berlim:	de	Gruyter.
ARA Almeida	Revista	e	Atualizada
ARC Almeida	Revista	e	Corrigida
Arist. Aristóteles
CAH Cambridge	Ancient	History
cf. confira
CHJ Cambridge	History	of	Judaism
Compendia Compendia	Rerum	Iudaicarum	ad	Novum	Testamentum.	Seção	Um:	The	Jewish	People	in	the	First	Century	[O	povo	judeu	no	primeiro	século],	ed.	S.	Safrai	e	M.	Stern,	2	vols.	Seção	Dois:	The	Literature	of	the	Jewish	People	in	the	Period	of	the	Second	Temple	and	the	Talmud	[Literatura	do	povo	judeu	no	período	do	segundo	templo	e	no	Talmude],	ed.	M.	J.	Mulder,	M.	E.	Stone	e	S.	Safrai,	3	vols.	Filadélfia:	Fortress;	Assen/	Maastricht:	Van	Gorcum.	1976-87.
cp. compare
Dio	Cás. Dio	Cássio
Diod.	Sic. Diodoro	Sículo
Epit. Epiteto	(Disc.	=	Discursos)
esp. especialmente
Euséb. Eusébio
Iná. Inácio
Jos. Josefo
JTS Journal	of	Theological	Studies
LCL Loeb	Classical	Library
LXX Septuaginta
NT Novo	Testamento
NTLH Nova	Tradução	da	Linguagem	de	Hoje
NVI Nova	Versão	Internacional
AT Antigo	Testamento
par(s) e	paralelo(s)	[na	tradição	sinótica]
PG J.	P.	Migne,	Patrologia	Graeca.	Paris,	1857-66
SB H.	L.	Strack	e	P.	Billerbeck,	Kommentar	zum	Neuen	Testament	aus	Talmud	und	Midrasch	[Comentário	do	Novo	Testamento	a	partir	do	Talmude	e	da	Midrash],	6	vols.	Munique:	C.	H.	Beck,	1926-56.
Sab.	Sal. Sabedoria	de	Salomão
Sl.	Sal. Salmos	de	Salomão
Schürer E.	Schürer,	The	History	of	the	Jewish	People	in	the	Age	of	Jesus	Christ	[A	história	do	povo	judeu	na	era	de	Jesus	Cristo]	(175	a.C.—135	d.C.).	Rev.	e	ed.	M.	Black,	G.	Vermes,	F.	G.	B.	Millar.	4	vols.	Edimburgo:	T	&	T	Clark,	1973-87.
Suet. Suetônio
Tác. Tácito
TDNT TheologicalDictionary	of	the	New	Testament	[Dicionário	teológico	do	Novo	Testamento],	ed.	G.	Kittel	e	G.	Friedrich,	10	vols.	Trad.	e	ed.	G.	W.	Bromiley.	Grand	Rapids,	Michigan:	Eerdmans,	1964-76.
PARTE	I
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO	1
ORIGENS	CRISTÃS	E	O	NOVO	TESTAMENTO
INTRODUÇÃO
Israel	é	um	país	pequeno.	Podemos	caminhar	por	toda	a	sua	extensão	territorial,
de	norte	a	sul,	em	alguns	dias;	e,	a	partir	das	montanhas	centrais,	podemos
avistar	suas	fronteiras	laterais,	o	mar	a	oeste	e	o	rio	a	leste.	No	entanto,	a	nação
teve	uma	importância	desproporcional	ao	seu	tamanho.	Impérios	lutaram	por	ela.
Em	média,	nos	últimos	quatro	mil	anos,	um	exército	marchou,	a	cada	quarenta	e
quatro	anos,	através	do	território	israelita	—	tanto	para	conquistá-lo	como	para
resgatá-lo	de	alguém,	usá-lo	como	campo	de	batalha	neutro	para	combater	outro
inimigo	ou	utilizá-lo	como	rota	natural	para	chegar	a	outro	lugar.	[	06	]	A	nação
contém	muitas	regiões	que,	outrora	belas,	agora	revelam	as	cicatrizes	e	as
mutilações	que	foram	o	legado	dessas	guerras.	Mesmo	assim,	Israel	permanece
uma	terra	bonita,	uma	terra	que	ainda	produz	uvas	e	figos,	leite	e	mel.
O	Novo	Testamento	não	existe	há	tanto	tempo	quanto	a	terra	de	Israel,	mas,	em
alguns	aspectos,	podemos	estabelecer	paralelos	notáveis	entre	ambos.	O	Novo
Testamento	é	uma	seção	bíblica	curta,	a	ponto	de	podermos	lê-lo	em	um	ou	dois
dias.	Todavia,	teve	uma	importância	oculta	por	seu	aspecto	compacto.	Vez	após
vez,	serviu	de	campo	de	batalha	para	exércitos	em	guerra.	Algumas	vezes,
saquearam	seus	tesouros	para	uso	próprio,	ou	anexaram	parte	de	seu	território
como	porção	de	um	império	maior,	necessitando	de	algumas	montanhas
estratégicas	extras,	especialmente	os	montes	sagrados.	Outras	vezes,	vieram	para
travar	batalhas	particulares	em	seu	território	neutro,	encontrando,	nos	debates
sobre	um	livro	ou	uma	passagem	particular,	um	lugar	conveniente	no	qual
encenar	uma	guerra	cujo	propósito,	na	verdade,	diz	respeito	a	duas	visões	de
mundo	ou	filosofias,	comparativamente	não	relacionadas	à	mensagem	do	Novo
Testamento.	Há	muitos	lugares	cuja	beleza	frágil	foi	pisoteada	por	exegetas	de
pés	pesados	em	busca	de	um	lexema	grego,	um	sermão	rápido	ou	um	slogan
político.	Mesmo	assim,	o	Novo	Testamento	ainda	é	um	livro	poderoso	e
evocativo,	cheio	de	delicadezas	e	majestade,	lágrimas	e	risos.
O	que	devemos	fazer	com	o	Novo	Testamento?	Uma	coisa	é	certa:	não	adianta
tentar	impedir	que	ele	ainda	seja	usado	como	campo	de	batalha.	Nenhum
bloqueio	de	fronteira	seria	forte	o	suficiente	para	afastar	filósofos,	filólogos,
políticos	e,	de	vez	em	quando,	turistas;	nem	mesmo	deveríamos	erguer	esses
bloqueios,	se	pudéssemos.	Muitos	vieram	para	saqueá-lo	e	acabaram
permanecendo	como	peregrinos.	Colocar	a	totalidade	ou	parte	do	Novo
Testamento	em	um	invólucro	sagrado	seria	pedir	por	uma	repreensão	do	Senhor:
“A	minha	casa	será	chamada	casa	de	oração	para	todos	os	povos”	[cf.	Marcos
11:17].	Tentativas	passadas	de	mantê-lo	como	exclusividade	de	um	único	grupo
—	por	eruditos	e	pietistas,	fundamentalistas	de	direita	e	de	esquerda	—
culminaram	em	batalhas	indevidas,	o	equivalente	à	triste	luta	pelo	controle	dos
lugares	sagrados	da	terra	de	Israel.	O	Novo	Testamento	é	um	livro	de	sabedoria
para	todos	os	povos,	porém	nós	o	transformamos	em	um	covil	de	erudições,
quando	não	em	um	manual	de	piedade	rigoroso,	severo	e	exclusivista.
Em	geral,	dois	grupos	tentaram	herdar	para	si	esse	território,	tornando-o	parte	de
sua	reserva	particular.	Como	no	caso	dos	dois	principais	reivindicadores	da	terra
de	Israel	atualmente,	cada	grupo	contém	alguns	cujo	comprometimento	é	com	a
aniquilação	completa	do	outro,	embora	cada	qual	também	tenha	aqueles	que
persistem	na	busca	de	soluções	e	concessões.	Precisamos	entender	algo	a
respeito	de	ambas	as	posições,	se	quisermos	apreciar	os	contornos	gerais	e
específicos	da	tarefa	que	temos	pela	frente	—	em	especial,	o	estudo	de	Jesus,	de
Paulo	e	dos	evangelhos.
De	um	lado,	há	aqueles	que,	por	haverem	tomado	o	poder	há	um	ou	dois	séculos,
ocupando	muitas	das	fortalezas	principais	(posições	de	destaque	em
universidades,	editoras	conhecidas	etc.),	insistem	em	que	o	Novo	Testamento
seja	lido	de	maneira	exclusivamente	histórica,	sem	incidir	sobre	ele	o	peso	de	ser
teologicamente	normativo.	Devemos	descobrir	o	significado	dos	textos	originais
e	apresentá-los	com	o	máximo	de	cuidado,	independentemente	dos	sentimentos
daqueles	que	pensavam	que	uma	passagem	específica	lhes	pertencia	e
significava	para	eles	algo	diferente.	Às	vezes,	há	uma	arrogância	atrelada	a	essa
reivindicação	de	poder.	Com	base	na	aparente	força	da	história,	e	capazes	de
demonstrar	as	inadequações	do	modo	de	vida	simples	que	os	precedeu,	esses
eruditos	estabeleceram	postos	de	armas	de	concreto	em	lugares	nos	quais	antes
havia	vinhedos,	patrulhando	as	ruas	para	perseguir	aqueles	que	insistem	nos
caminhos	antigos,	simplistas.
Do	outro	lado,	há	aqueles	que	demonstram	a	mesma	determinação	em	resistir	ao
avanço	do	novo	regime.	Alguns	ainda	consideram	o	Novo	Testamento	um	tipo
de	livro	mágico,	cujo	“significado”	tem	pouca	relação	com	a	intenção	dos
autores	do	primeiro	século,	mas	muita	relação	com	o	modo	pelo	qual	algum
grupo	contemporâneo	acostumou-se	a	ouvir,	nele,	um	chamado	para	um	tipo
particular	de	espiritualidade	ou	estilo	de	vida.	Esse	fenômeno	é	visto	de	maneira
mais	evidente	nos	círculos	fundamentalistas,	embora	não	se	limite,	de	maneira
alguma,	a	grupos	(encontrados,	em	sua	maior	parte,	nas	tradições	protestantes)
para	os	quais	o	termo	geralmente	é	reservado.	Para	alguns,	o	Novo	Testamento
simplesmente	se	tornou	parte	da	liturgia,	um	documento	a	ser	cantado,	lido	em
pequenos	trechos	isolados	e	usado	em	orações	públicas,	mas	não	um	objeto	de
estudos	ou	um	registro	pelo	qual	devemos	lutar,	na	esperança	de	descobrir
alguma	coisa	que	ainda	não	sabemos.	O	Novo	Testamento	existe,	ao	que	tudo
indica,	para	sustentar	a	alma,	e	não	a	mente.	Tais	atitudes	usam	a	arrogância
como	resposta	à	arrogância,	tentando	criar	áreas	do	tipo	“proibida	a	entrada”,	em
que	forças	acadêmicas	de	ocupação	não	podem	penetrar	e	barricadas	de	piedade
pessoal	foram	estabelecidas,	tendo	histórias	de	atrocidades	acadêmicas	como
pretexto	e	justificativa.
Como	tantas	vezes	é	o	caso	no	mundo	cotidiano	da	política,	é	difícil	pensar	que
um	lado	está	totalmente	certo	e	o	outro,	totalmente	errado.	Sem	dúvida,	o	Novo
Testamento	é	uma	coletânea	de	livros	escritos	em	uma	época	particular,	por
pessoas	específicas;	se	o	tratássemos	como	se	tivesse	caído	do	céu,	aparecendo
na	King	James	Authorized	Version,	encadernado	em	couro	preto	e	“com	mapas”,
[	07	]	seríamos	como	aqueles	que,	no	Israel	de	hoje,	não	querem	saber	nada	do
que	aconteceu	antes	de	1948.	Porventura	nos	esquecemos	de	que	havia	uma
Bíblia	muito	antes	da	“nossa”,	e	que	o	apóstolo	Paulo	falava	grego,	e	não	o
inglês	do	século	17?	Em	contrapartida,	imaginar	que	aspectos	religiosos,
teológicos	e	espirituais	do	Novo	Testamento	são	questões	secundárias	e	que,
devido	à	existência	de	algo	chamado	“fundamentalismo”,	devemos	evitá-lo	e
aceitar	alguma	espécie	de	reducionismo,	seria	como	ignorar	problemas	e
conflitos	atuais	na	terra	de	Israel	ao	argumento	de	que	a	única	questão	relevante
é	o	significado	do	livro	de	Josué.	De	um	lado,	então,	temos	uma	insistência
justificável	sobre	a	importância	da	história	como	aquilo	que	fornece
profundidade	e	dimensão	extra	à	consciência	contemporânea;	de	outro,	uma
insistência	justificável	de	que	a	descrição	histórica	é,	por	si	só,	incompleta.	De
fato,	ambos	os	lados	defendem	posições	relativamente	modernas:	em	uma
extremidade,	racionalismo	pós-iluminista	e,	na	outra,	sobrenaturalismo	anti-
iluminista.	Ambos	os	lados	devem	considerar	o	fato	de	que	podem	existir
alternativas,	ou	seja,	de	que	a	postura	“ou	uma	coisa	ou	outra”,	imposta	no
século	18,	talvez	seja	falsa.
Outras	simplificações	excessivas	se	acumulam	neste	momento,	se	não	tomarmos
cuidado.	Nos	exércitos	atualmente	em	campo,	há	alguns	cuja	lealdade	primária	é
direcionada	a	causas	mais	antigas.	A	divisão	entre	“acadêmico”e	“popular”	tem
raízes	muito	mais	profundas	do	que	as	controvérsias	do	século	18	entre
“história”	e	“teologia”,	raízes	que	incluem,	de	maneiras	distintas,	os	movimentos
montanista,	franciscano,	lollardo,	protestante	e	quaker,	assim	como	reações
favoráveis	e	contrárias	a	esses	movimentos.	A	disputa	entre	os	que	concebem	o
cristianismo	como	fundamentalmente	uma	questão	de	sinais	externos	e	físicos,
em	oposição	aos	que	o	concebem	como	uma	questão	de	“luz	interior”,	é	quase
tão	antiga	quanto	o	mundo;	o	mesmo	se	dá	com	a	desconfiança	profunda	que
separa	aqueles	que	defendem	a	piedade	simples	dos	que	insistem	na	fé	como	a
“busca	constante	por	entendimento”.	Combatentes	de	todas	essas	guerras	podem
muito	bem	juntar-se	às	batalhas	atuais,	não	necessariamente	desejando	apoiar	ao
extremo	a	causa	atual,	mas	vendo-a	como	o	equivalente	mais	próximo	de	sua
tendência	particular.	Há	também	os	que	correspondem	aos	observadores	das
Nações	Unidas,	aqueles	que,	pelo	menos	em	tese,	abordam	o	Novo	Testamento
como	outsiders	e	“neutros”:	são	os	teóricos	da	literatura	ou	os	historiadores
antigos,	que,	de	vez	em	quando,	avaliam	o	campo	de	batalha	e	dizem	como	os
guerreiros	estão	todos	enganados.	Como	seus	homólogos	seculares,	às	vezes
esses	profissionais	estão	certos,	mas	também	podem	servir	de	obstáculo.	[	08	]	O
que,	então,	devemos	fazer	com	esse	pequeno	mas	estranho	e	poderoso	livro?
Este	projeto	tem	como	objetivo	principal	oferecer	um	conjunto	de	respostas	que
podem	muito	bem	resultar	em	controvérsia.	Nesse	ponto,	porém,	temos	de	dizer
algo	em	termos	gerais,	na	esperança	de	estabelecer	um	acordo	inicial,	ainda	que
superficial.	É	claro	que	está	aberta	a	qualquer	pessoa	a	opção	de	fazer	o	que	bem
entender	com	este	ou	com	qualquer	outro	livro.	Um	volume	de	Shakespeare
pode	ser	usado	para	sustentar	a	perna	de	uma	mesa	ou	como	base	para	uma
teoria	filosófica.	Contudo,	não	é	difícil	ver	que	empregá-lo	para	a	produção	de
peças	dramáticas	carrega	mais	autenticidade	do	que	qualquer	outra	opção
(embora,	claro,	suscite	algumas	questões,	como,	por	exemplo,	se	a	produção
com	“figurino	moderno”	seria	mais	apropriada	do	que	uma	produção	“histórica”,
e	assim	por	diante).	Existe	um	acordo	implícito	para	o	uso	de	Shakespeare	na
produção	de	peças	teatrais	que	dispensa	qualquer	argumentação.
Qual	seria,	então,	o	equivalente	ao	Novo	Testamento?	[	09	]	É	precisamente	essa
a	pergunta	a	que	devemos	responder.	Sugiro	que	o	Novo	Testamento	deve	ser
lido	para	ser	compreendido,	lido	em	seu	devido	contexto,	em	um	acústico	que
nos	permita	escutar	todas	as	suas	conotações.	Deve	ser	lido	com	o	mínimo	de
distorção	possível	e	com	a	maior	sensibilidade	possível	aos	seus	diferentes
níveis	de	significado.	Deve	ser	lido	para	que	as	narrativas,	em	conjunto	com	a
Narrativa,	sejam	ouvidas	como	enredos	coerentes,	e	não	como	maneiras
aleatórias	de	declarar	“ideias”	descontextualizadas.	Deve	ser	lido	sem	a
suposição	de	que	já	sabemos	o	que	será	dito,	e	sem	a	arrogância	que	presume
que	“nós”,	a	despeito	de	qualquer	grupo,	temos	direitos	exclusivos	sobre	essa	ou
aquela	passagem,	sobre	esse	ou	aquele	livro	ou	escritor.	O	Novo	Testamento,
enfim,	deve	ser	lido	de	modo	a	desencadear	o	drama	que	sugere.	Estes	volumes
são	uma	tentativa	de	articular	uma	leitura	que	faça	jus	a	essas	exigências.
A	TAREFA
1.	O	que	fazer	com	os	lavradores	infiéis?
Qual,	então,	é	a	natureza	de	nossa	tarefa?	Pode	ajudar	se	começarmos	com	outra
ilustração,	mais	uma	vez	relacionada	a	um	conflito	territorial:
Certo	homem	plantou	uma	vinha,	colocou	uma	cerca	ao	redor	dela,	cavou	um
tanque	para	prensar	uvas	e	construiu	uma	torre.	Depois	arrendou	a	vinha	a
alguns	lavradores	e	foi	fazer	uma	viagem.	Na	época	da	colheita,	enviou	um
servo	aos	lavradores,	para	receber	deles	parte	do	fruto	da	vinha.	Mas	eles	o
agarraram,	o	espancaram	e	o	mandaram	embora	de	mãos	vazias.	Então,	enviou-
lhes	outro	servo;	e	bateram	em	sua	cabeça	e	o	humilharam.	E	enviou	ainda	outro,
a	quem	mataram.	Enviou	muitos	outros;	em	alguns	bateram,	a	outros	mataram.
Faltava-lhe	ainda	um	para	enviar:	seu	filho	amado.	Por	fim	o	enviou,	dizendo:
“A	meu	filho,	respeitarão”.
Mas	os	lavradores	disseram	uns	aos	outros:	“Este	é	o	herdeiro.	Venham,	vamos
matá-lo,	e	a	herança	será	nossa”.	Assim	eles	o	agarraram,	o	mataram	e	o
lançaram	para	fora	da	vinha.
O	que	fará	então	o	dono	da	vinha?	Virá	e	matará	aqueles	lavradores	e	dará	a
vinha	a	outros.	Vocês	nunca	leram	esta	passagem	das	Escrituras?
“A	pedra	que	os	construtores	rejeitaram
tornou-se	a	pedra	angular;
isso	vem	do	Senhor,
e	é	algo	maravilhoso	para	nós.”	[	10	]
O	que	devemos	fazer	com	um	texto	como	esse?	A	fim	de	vermos	como	é
possível	abordar	a	questão,	precisamos	estar	cientes	das	pressões	oriundas	da
cultura	confusa	ao	nosso	redor.	Vivemos	um	tempo	de	grandes	transformações	e
“mudanças	de	humor”	na	cultura	ocidental:	do	modernismo	ao	pós-modernismo;
dos	dualismos	iluministas	aos	panteísmos	da	“nova	era”;	do	existencialismo	a
novas	formas	de	paganismo.	Para	tornar	as	coisas	ainda	mais	confusas,
elementos	de	todas	essas	camadas	coexistem	lado	a	lado:	na	mesma	cidade,	na
mesma	família	e,	às	vezes,	até	na	mesma	mente,	na	mesma	imaginação.	É
importante	estarmos	cientes	de	que	a	força	dos	questionamentos	que	fazemos
depende	de	todo	o	tipo	de	suposição	a	respeito	da	forma	como	o	mundo	funciona
e	do	papel	da	humanidade	no	mundo.	Como	não	há	um	acordo	em	vista	quanto	a
essas	questões,	a	única	possibilidade	é	procedermos	com	cautela,	procurando,	ao
menos	para	começar,	em	tantas	direções	quanto	razoavelmente	pudermos.
Talvez	existam	quatro	tipos	de	leitura	que	podem	ser	oferecidos,	ilustrando
quatro	movimentos	na	história	da	interpretação	do	Novo	Testamento.	Essas
quatro	leituras	(pré-crítica,	histórica,	teológica	e	pós-moderna)	correspondem,
em	linhas	gerais,	a	três	movimentos	na	história	da	cultura	ocidental	dos	últimos
séculos.	A	primeira	pertence	ao	período	anterior	ao	Iluminismo	do	século	18;	a
segunda,	à	principal	vertente	do	Iluminismo,	às	vezes	conhecida	como
“modernismo”	ou	“modernidade”;	a	terceira,	a	uma	correção	frente	à	segunda,
ainda	dentro	de	uma	cosmovisão	iluminista;	e	a	quarta,	ao	período	recente,	em
que	a	visão	de	mundo	iluminista	começou	a	se	desfazer	sob	questionamentos	de
muitos	lados	e	que	ficou	conhecida	como	“pós-moderna”.	[	11	]
A	primeira	forma	de	ler	a	parábola	é	a	de	cristãos	devotos.	Para	estes,	a	Bíblia	é
a	Escritura	Sagrada,	de	modo	que	não	há	necessidade	de	fazer	muitas	perguntas
—	ou	até	mesmo	nenhuma	—	sobre	o	significado	da	passagem	em	seu	contexto
histórico;	basta	ouvir	a	voz	de	Deus	enquanto,	em	oração,	estudam	o	texto.
Talvez	vejam	a	si	mesmos	como	os	lavradores,	precisando	de	repreensão	por	seu
próprio	fracasso	em	reconhecer	o	Filho	de	Deus;	ou,	em	um	contexto	de
perseguição,	possam	identificar-se	com	os	profetas,	rejeitados	pelos	poderosos
proprietários	de	facto,	mas	publicamente	reconhecidos	como	justos	no	final.
Essa	abordagem	pré-crítica	visa	proteger	o	status	autoritativo	do	texto,	ainda	que
seja	passível	de	críticas	em	pelo	menos	três	aspectos,	correspondentes	às	demais
formas	de	leitura:	falha	em	levar	o	texto	a	sério,	em	seu	contexto	histórico;	falha
em	integrá-lo	à	teologia	do	Novo	Testamento	como	um	todo;	e	falha	em	criticar,
de	modo	substancial,	pressupostos	e	pontos	de	vista	inerentes	à	abordagem	em
si.
Permitindo	que	cada	uma	dessas	objeções	tenha	seu	direito	de	defesa,
prosseguimos	para	a	abordagem	histórica.	Associada	primariamente	à	insistência
do	Iluminismo	na	valorização	da	história,	a	abordagem	formulará	uma	série	de
perguntas:	(1)	Jesus	realmente	contou	a	parábola	e,	em	caso	positivo,	o	que	quis
dizer?	Havia,	no	meio	judaico,	outras	histórias	semelhantes	acerca	de	lavradores
e	proprietários	de	vinhas,	capazes	de	nos	auxiliar	na	descoberta	de	nuances	que
os	ouvintes	porventura	tenham	captado?	(2)	Como	a	igreja	primitiva	fez	uso	da
parábola	em	sua	pregação?	Seria	o	caso	de	a	parábola	haver	sido	recontada	no
contexto	em	que	a	igreja	precisava	explicar	a	razão	pela	qual	a	maioria	dos
judeus	contemporâneos	de	Jesusrejeitou	sua	mensagem?	Que	novo	impacto	a
história	teria	nesse	novo	contexto?	Será	que	a	parábola	foi	adaptada	para	suprir
diferentes	necessidades	—	destacando,	por	exemplo,	a	filiação	divina	de	Jesus?
Será	que	a	parábola	realmente	foi	contada,	ou	apenas	inventada	para	atender	às
necessidades	que	não	foram	supridas	pelos	verdadeiros	dizeres	de	Jesus?	(3)
Como	o	evangelista	a	utilizou	em	seu	próprio	texto?	Que	nova	tonalidade
adquire	pelo	fato	de	haver	sido	encaixada	nesse	ponto	da	narrativa,	logo	após
Jesus	ter	realizado	uma	ação	dramática	no	Templo,	quando	o	ritmo	da	história	se
acelera	em	direção	à	crucificação?	O	escritor	a	alterou,	adaptando-a	a	esses
propósitos?
Em	termos	gerais,	os	três	tipos	de	perguntas	mencionados	correspondem	a
questionamentos	feitos	pela	(1)	suposta	crítica	histórica	dos	evangelhos,	(2)	pela
crítica	das	fontes	e	pela	crítica	da	forma	e	(3)	pela	crítica	da	redação.	Discorrerei
com	mais	detalhes	a	respeito	de	cada	posição	na	Parte	IV,	pois	a	maioria	dos
eruditos	concorda	que	questões	dessa	natureza	continuam	indispensáveis	para
uma	leitura	séria	do	texto.
Existem	ainda	vários	níveis	adicionais	de	investigação	histórica,	os	quais
também	podem	ser	proveitosos.	Se	deparássemos	com	a	parábola	de	modo
desprevenido	e	fora	de	contexto,	poderíamos	tratá-la	como	um	relato	histórico
ou	quase-histórico	de	um	incidente	real,	embora	um	tanto	improvável.	Talvez
nos	interessássemos	por	ela	em	termos	de	história	social	de	seu	período.
Entretanto,	talvez	também	descobríssemos,	por	fontes	históricas,	sinais	na
própria	narrativa	de	que	a	história	não	deveria,	como	dizemos,	ser	“tomada
literalmente”.	Sua	própria	improbabilidade	indicaria	que	a	história	estaria	sendo
usada	para	dizer	mais	do	que	sugere	seu	significado	superficial.	Posicionada	em
um	contexto	narrativo	cujo	personagem	central	conta	muitas	dessas	histórias	e
rotulada,	com	outras	histórias	semelhantes,	sob	o	gênero	de	“parábola”,
descobrimos	que	a	narrativa	pertence	a	uma	tradição	que	já	contém	histórias
semelhantes	(Isaías	5:1-7,	por	exemplo),	concluindo,	com	razão,	que	pode	ser
mais	bem-interpretada	como	uma	meta-história	—	não	por	seu	próprio
significado	superficial,	mas	por	algum	outro.	Todas	essas	discussões	têm	lugar
na	leitura	histórica	do	texto,	a	tentativa	de	“encaixá-lo”	em	seu	contexto
histórico.
Tal	leitura	histórica	pode	ser	contestada	com	base	em	três	premissas.	Em
primeiro	lugar,	não	está	clara,	a	despeito	de	todas	as	exigências	que	a	abordagem
apresenta,	a	forma	como,	lido	nesses	moldes,	o	texto	pode	fornecer	qualquer
“autoridade”	para	a	igreja	ou	o	mundo	de	hoje,	já	que	as	pessoas	que	leem	o
Novo	Testamento,	em	sua	maioria,	o	abordam	com	certa	expectativa	particular.
Em	segundo	lugar,	a	abordagem	suscitaria,	necessariamente,	questões	sobre	a
teologia	dos	próprios	documentos	originais.	Em	terceiro	lugar,	talvez	seja
otimista	demais	pensar	que	poderíamos	voltar	ao	que	“realmente	aconteceu”,
chegando,	finalmente,	à	verdade	histórica	e	“objetiva”.	Pelas	razões	citadas,	o
método	histórico-crítico	se	ampliou,	particularmente	nos	últimos	cem	anos,	e
passou	a	incluir	o	estudo	teológico	dos	textos.
A	abordagem	teológica	levanta	questionamentos	diferentes,	embora	sobrepostos.
Qual	é	a	teologia	subjacente	à	parábola?	Que	cristologia	está	implícita	na	figura
do	“filho”?	Onde	se	encaixa	na	declaração	teológica	de	Marcos	(ou	de	Mateus,
de	Lucas	ou	da	igreja	primitiva)?	Essas	questões,	oriundas	do	projeto	“Teologia
do	Novo	Testamento”	(conforme	concebido	por	Rudolf	Bultmann,	em	meados
do	século	20),	têm	estado	em	voga.	Embora	possam	ser	respondidas	de	modo	a
incluir	questões	relacionadas	à	autoridade	e	à	historicidade,	também	podem
evitá-las,	relativizando	uma	afirmação	potencialmente	“normativa”	ou	outra
potencialmente	“histórica”	em	“um	único	aspecto	da	teologia	de	Mateus”.
Também	não	está	claro	se	esse	método	levou	a	sério	a	acusação	de	críticos
recentes,	segundo	a	qual	é	preciso	prestar	atenção,	de	forma	mais	cuidadosa,	aos
processos	envolvidos	em	sua	própria	leitura.
A	quarta	e	última	abordagem	é	a	dos	chamados	críticos	literários	pós-modernos.
Rejeitando,	por	um	lado,	a	piedade	pré-crítica	e,	por	outro,	a	abordagem
histórica	do	Iluminismo,	o	método	insiste	em	examinar	o	processo	de	leitura	em
si.	O	que	fazemos	ao	ler	um	texto?	O	que	trago	para	o	texto	como	pressuposto	e
de	que	maneira	mudo	a	mim	mesmo	por	meio	da	leitura?	Embora	a	resposta	a
essa	pergunta	dependa,	em	parte,	do	fato	de	eu	pensar	que	Jesus	realmente
contou	a	parábola,	essa	pergunta	histórica	seria	apenas	complementar	ao
questionamento	mais	importante,	cujo	foco	sou	eu	e	minha	leitura.	Se	tal
questionamento	ganha	sua	força	aparente	devido	à	dificuldade	que	outros
projetos	têm	de	fundamentar	seu	método,	a	vitória	é	ganha	à	custa	de	objeções
naturais:	sim,	eu	posso	acabar	descobrindo	o	que	está	acontecendo	comigo;
todavia,	pensei	que	descobriria	algo	a	respeito	de	Deus,	de	Jesus	ou	sobre	os
primeiros	cristãos.	Devo	simplesmente	desistir	dessas	possibilidades?	Essa
leitura	pode	coexistir	com	a	autoridade,	a	história	ou	a	teologia?	É	provável	que,
por	causa	desses	problemas,	a	teoria	literária	pós-moderna	ainda	não	tenha	feito
muitas	incursões	nos	principais	estudos	bíblicos,	embora	tenhamos	todas	as
razões	para	supor	que,	em	breve,	o	fará.	[	12	]
Problemas	que	surgem	quando	essas	diferentes	abordagens	são	justapostas	se
concentram,	em	geral,	em	um	ponto	específico,	a	saber,	a	tensão	entre	uma
leitura	que	busca	ser,	até	certo	ponto,	normativamente	cristã	e	a	que	procura	ser
fiel	à	história.	O	leitor	moderno	(ao	contrário	do	pós-moderno)	passou	por	duas
pressões	conflitantes.	Em	primeiro	lugar,	há	a	insistência	do	Iluminismo	de	que
todo	dogma	seja	testado	no	tribunal	da	história.	Assim,	H.	S.	Reimarus	(1694—
1768),	um	dos	principais	representantes	do	Iluminismo	nos	estudos	do	Novo
Testamento,	acreditava	que	Jesus	era	um	revolucionário	judeu	comum,	e	que
esse	fato	refutava	o	cristianismo	ortodoxo.	Em	segundo	lugar,	há	a	insistência
cristã	de	que,	por	assim	dizer,	Pôncio	Pilatos	faça	parte	do	Credo;	de	que	os
acontecimentos	centrais	à	fé	e	à	prática	cristãs	não	sejam	reduzidos	a	uma
realidade	além	da	esfera	espaçotemporal,	correspondendo,	antes,	a
acontecimentos	do	mundo	real.	Por	isso	o	enraizamento	do	cristianismo	na
história	é	inegociável;	não	podemos	escapar	da	crítica	do	Iluminismo	ao	afirmar
que	a	história	não	pode	questionar	a	fé.	(Tentativas	de	fazê-lo,	desde	o	início	do
gnosticismo	até	o	recente	teólogo	Paul	Tillich,	foram	amplamente	consideradas
uma	forma	de	evitar	o	problema	em	vez	de	encará-lo.)
Parte	da	dificuldade	tem	sido,	penso,	que	os	herdeiros	do	Iluminismo	foram
muito	estridentes	na	denúncia	do	cristianismo	tradicional	e	que	o	cristianismo
tem	sido,	em	geral,	muito	arrogante	em	resistir	a	novas	perguntas,	quanto	mais	a
novas	respostas,	em	sua	defesa	obstinada…	exatamente	do	quê?	Os	cristãos
sempre	imaginaram	que	estavam	defendendo	o	cristianismo	ao	resistirem	aos
ataques	do	Iluminismo;	mas	é	igualmente	plausível	sugerir	que	o	cristianismo
ortodoxo	estava	defendendo	a	visão	de	mundo	pré-iluminista,	a	qual,	por	si	só,
não	era	mais	especificamente	“cristã”	do	que	qualquer	outra.	Quem	são	os
verdadeiros	lavradores	infiéis,	na	vinha	do	Novo	Testamento?	Qual	é	a
responsabilidade	deles?	Quem	tem	o	direito	de	ser	visto	com	o	grupo	dos
personagens	proféticos,	que	veio	para	resgatar	a	vinha	da	devastação	de
usurpadores?
Eis	o	paradoxo	na	essência	de	todo	esse	projeto:	embora	o	Iluminismo	tenha
começado,	entre	outras	coisas,	como	uma	crítica	ao	cristianismo	ortodoxo,	pode
funcionar,	e	de	várias	formas	funcionou,	como	um	meio	de	chamar	o
cristianismo	de	volta	às	raízes,	à	sua	história	genuína.	Parte	do	cristianismo	teme
a	história,	com	o	receio	de	que,	se	realmente	descobrirmos	o	que	aconteceu	no
primeiro	século,	nossa	fé	entre	em	colapso.	No	entanto,	sem	uma	investigação
histórica,	não	há	controle	sobre	a	propensão	cristã	de	reconstruir	Jesus,	sem
mencionar	YHWH,	à	sua	própria	imagem.	De	modo	semelhante,	grande	parte	do
cristianismo	temeo	aprendizado	acadêmico	e,	na	proporção	em	que	o	programa
do	Iluminismo	era	um	empreendimento	intelectual,	o	cristianismo	respondeu
com	as	simplicidades	da	fé.	Contudo,	embora	seja	verdade	que,	sem	o	amor,	o
aprendizado	não	passa	de	algo	estéril	e	seco,	também	é	verdade	que,	sem	a
instrução,	o	entusiasmo	pode	facilmente	transformar-se	em	arrogância	cega.
Reitero:	boa	parcela	do	cristianismo	teme	a	redução	da	fé	sobrenatural	em
categorias	racionalistas,	mas	a	distinção	nítida	entre	“sobrenatural”	e	“racional”
é,	em	si,	um	resultado	do	pensamento	iluminista.	Assim,	enfatizar	o
“sobrenatural”	em	detrimento	do	“racional”	ou	do	“natural”	é	ceder	à
cosmovisão	iluminista	em	um	nível	mais	profundo	do	que	se	meramente
endossássemos	um	programa	racionalista	e	pós-iluminista.
Desse	modo,	é	impossível	ao	cristianismo	ignorar	ou	relativizar	o	desafio
“modernista”	do	século	18	em	diante.	Naturalmente,	isso	não	significa	que
devemos	simplesmente	endossar	a	crítica	iluminista,	mas	tão	somente	que	suas
perguntas	devem	permanecer	postas	sobre	a	mesa.	Além	disso,	como
argumentarei	mais	adiante,	a	própria	crítica	pós-moderna	contra	o	Iluminismo,
impondo	restrições	bem	necessárias	às	suas	ambições,	não	invalida,	de	modo
inequívoco,	o	projeto	“moderno”.	Enquanto	a	disputa	entre	os	lavradores
continua,	somente	alguém	muito	ousado	assumiria	falar	em	nome	do
Proprietário	[da	vinha].
Tudo	isso	pode	parecer	muito	negativo.	Ler	o	Novo	Testamento	de	uma	forma
séria,	no	momento	atual	da	cultura	ocidental,	parece	tão	problemático	que	alguns
podem	até	ter	o	desejo	de	desistir.	A	vinha	está	superlotada	e,	aparentemente,	é
infrutífera.	Entretanto,	essa	resposta	também	é	inapropriada.	Independentemente
dos	pontos	de	vista	de	alguém,	o	Novo	Testamento	é	totalmente	relevante.	Se	há
alguma	verdade	nas	reivindicações	cristãs	dessa	porção	da	Bíblia,	não	podemos
vê-la	como	um	jardim	seguro	para	o	qual	os	cristãos	poderão	refugiar-se	do
mundo	contemporâneo.	Antes,	deve	funcionar	como	parte	do	desafio	e	da
expressão	do	deus	criador	para	o	mundo	contemporâneo.	Se,	porém,	as
alegações	cristãs	sobre	o	Novo	Testamento	são	falsas,	então	—	como	dizem	os
críticos	do	século	18	em	diante	—,	quanto	mais	cedo	suas	deficiências	forem
apontadas,	melhor.	Portanto,	a	despeito	de	alguém	ter	um	ponto	de	vista	cristão,
o	exame	minucioso	do	Novo	Testamento	é	uma	responsabilidade	necessária.
Por	trás	de	toda	essa	perplexidade,	sugiro	duas	perguntas	em	particular	das	quais
não	podemos	escapar.	São	elas:	(1)	Como	o	cristianismo	começou	e	por	que
assumiu	a	forma	que	tem?	(2)	Faz	sentido	aquilo	em	que	o	cristianismo	acredita?
Daí	o	título	geral	deste	projeto:	Origens	Cristãs	e	a	Questão	de	Deus.	Ambas	as
perguntas,	obviamente,	abordam	a	questão	do	Novo	Testamento.	Faz	parte	da
primeira	pergunta	abordar	a	razão	pela	qual	os	cristãos	apostólicos	escreveram
de	determinada	forma.	Faz	parte	da	segunda	explorarmos	a	relação	dinâmica
entre	o	que	o	Novo	Testamento	diz	e	aquilo	em	que	os	cristãos	acreditam,	e	se	há
coerência	nessa	fé.
2.	As	perguntas
As	duas	perguntas	principais	que	expusemos	dividem-se	em	questionamentos
mais	detalhados.	Para	começar,	devemos	levantar	questões	a	respeito	do	estudo
literário	desses	textos.	O	que	conta	como	leitura	adequada?	Como	podemos
avaliá-la?	Olhando	para	os	métodos	de	leitura	do	Novo	Testamento,
institucionalizados	e	até	mesmo	sacralizados	ao	longo	dos	anos	na	devoção
pública	e	particular	da	igreja,	somos	compelidos	a	indagar	se	essas	leituras
fazem	jus	aos	textos:	se,	por	exemplo,	um	livro	como	o	Evangelho	de	Marcos	é
bem	servido	ao	se	ler	uma	dúzia	de	versículos	por	vez,	fora	de	seu	contexto.
Estamos	à	procura	de	uma	leitura	adequada	e,	no	momento,	não	há	acordo
quanto	ao	que	conta	como	tal.	Prosseguiremos	com	essa	busca	no	capítulo	3.
Olhando,	a	seguir,	para	o	conjunto	histórico	de	perguntas,	encontramos	questões
relacionadas	a	Jesus,	a	Paulo	e	aos	evangelhos:	(a)	Quem	era	Jesus	e	por	que	ele
foi,	de	alguma	maneira,	responsável	pelo	início	do	“cristianismo”?	(b)	Paulo	foi
o	verdadeiro	fundador	do	“cristianismo”,	o	corrompedor	da	mensagem	original
ou	o	verdadeiro	intérprete	de	Jesus?	Quais	estruturas	e	conteúdo	de	seu	sistema
de	crenças	o	motivaram	a	realizar	uma	obra	tão	extraordinária?	(c)	Por	que	os
evangelhos	apresentam	determinadas	características	próprias?	Onde	se	encaixam
em	relação	a	Jesus	e	a	Paulo?	E,	respondendo	a	essas	três	perguntas,	podemos
relacioná-las	umas	com	as	outras?	Podemos	traçar	linhas	do	pensamento	cristão
primitivo	de	modo	a	se	interligarem?	Em	caso	positivo,	como?	Esses	tipos	de
perguntas	—	sem	contar	outros	questionamentos	interessantes	relacionados	à
origem	e	à	teologia	da	carta	aos	Hebreus,	ou	das	principais	obras	não	canônicas,
como	Didaquê	ou	Evangelho	segundo	Tomé	—	é	que,	segundo	sugiro,	devem	ter
respostas.
Até	certo	ponto,	o	fato	de	termos	de	estudar	o	Novo	Testamento	com
profundidade	a	fim	de	responder	a	questões	históricas	sobre	o	cristianismo
primitivo	é	fruto	do	acaso.	Em	tese,	poderia	ter	havido	excelentes	registros
alternativos,	escritos	capazes	de	nos	fornecer	um	conjunto	completo	e	adequado
de	respostas	históricas,	levando-nos,	apenas	de	vez	em	quando,	aos	livros
escritos	pelos	próprios	cristãos.	Evidentemente,	alguns	se	oporiam	a	essa
sugestão,	insistindo	em	que	os	eventos	só	podem	ser	entendidos	pelo	olhar	da	fé
e	que,	por	isso,	nada	menos	do	que	o	próprio	Novo	Testamento	serviria	—	e	que
talvez	a	Providência	tenha	ordenado	a	obliteração	de	quase	todas	as	demais
evidências	com	o	objetivo	de	deixar	isso	claro.	Para	mim,	essa	objeção	parece
antecipar	a	resposta,	muito	antes	da	apresentação	das	evidências;	só	chegaremos
adequadamente	a	determinada	conclusão	quando	a	maior	parte	do	trabalho
estiver	concluída.	A	despeito,	porém,	da	opção	que	adotarmos,	esse	segundo
conjunto	de	perguntas	continua	firmemente	enquadrado	no	que	costuma	ser
considerado	“história”.	Veremos	questões	metodológicas	atreladas	ao
questionamento	histórico	no	capítulo	4.
Entretanto,	há	ainda	um	terceiro	conjunto	de	perguntas	que	também	devem	ser
abordadas	de	várias	maneiras	ao	longo	deste	trabalho.	O	que	é	teologia	cristã?
Em	que	aspectos	deveria	continuar	a	mesma,	como	no	princípio?	Essa
continuidade	é	razoável	ou	até	mesmo	possível?	O	que	conta	como	cristianismo
normativo?	Como	podemos	saber?	Existe	alguma	cosmovisão	disponível	ao	ser
humano	moderno	capaz	de	interpretar	o	mundo	da	forma	como	o	conhecemos	e
que	tenha	uma	continuidade	apropriada	e	reconhecível	com	a	cosmovisão	dos
primeiros	cristãos?	Deveríamos	procurar	uma	declaração	autoritativa	sobre	o	que
constituem	fé	legítima	e	vida	verdadeira?	Se	sim,	onde	podemos	encontrá-la?
Como	ela	seria	reproduzida	na	igreja	e	no	mundo	modernos?	E,	subjacente	a
todas	essas	perguntas:	qual	é	o	significado	por	trás	do	uso	da	palavra	“deus”	ou
“Deus”?
Algumas	pessoas	(em	sua	maioria,	pretensos	historiadores)	protestam	contra	a
ideia	de	que	devemos	mesclar	esse	conjunto	de	perguntas	com	os
questionamentos	históricos.	[	13	]	Alguns	teólogos	levaram	a	advertência	a	sério
e	escreveram	sobre	teologia	cristã	com	pouca	atenção	à	questão	histórica	dos
primórdios	cristãos.	[	14	]	Contudo,	o	fato	é	que	a	maioria	das	pessoas	que
tentaram	escrever	acerca	de	teologia	cristã	considerou	apropriado	dedicar	algum
espaço	a	questões	históricas,	[	15	]	e	que	a	ampla	maioria	dos	que	leram
seriamente	o	Novo	Testamento	por	um	ponto	de	vista	histórico	—	e	que
escreveram	sobre	o	assunto	dessa	forma	—	também	pretendeu,	de	uma	forma	ou
de	outra,	abordar	questões	teológicas,	ainda	que,	obviamente,	eles	busquem
abarcar	uma	ampla	gama	de	respostas.	[	16	]	Naturalmente,	muitas	vezes	as
perguntas	foram	confundidas	entre	si	e	interagiram	de	modo	a	produzir
distorções.	Isso,	em	geral,	aconteceu	em	detrimento	da	história,	pois	vários
programas	foram	projetados	de	forma	anacrônica	em	relação	ao	primeiro	século.
[	17	]	Felizmente,	porém,	os	riscos	não	impediram	outras	pessoas	de	se	esforçar
na	descoberta	de	uma	forma	apropriada	de	integrar	literatura,	história	e	teologia
—	ou	seja,	questões	relativasaos	escritos	do	cristianismo	primitivo,	das	origens
cristãs	e	do	deus	cristão.	[	18	]
Sem	essa	tentativa	de	integração,	há	sempre	o	perigo	de	que	a	história	e	a
teologia	se	apartem.	Muitas	pessoas	ainda	insistem	em	que	a	única	tarefa
adequada	ao	estudioso	do	Novo	Testamento	é	a	descrição	histórica	“neutra”.	[	19
]	“História”	é	considerada	uma	tarefa	pública,	exercida	em	campo	aberto.
Qualquer	um	pode	envolver-se	com	a	história	—	e,	de	fato,	qualquer	um
desejaria	fazê-lo	—,	visto	que,	segundo	argumenta	Räisänen,	o	início	do
cristianismo	serviu	de	parte	vital	na	história	mundial,	de	modo	que	entendê-lo
pode	muito	bem	contribuir	para	a	maior	compreensão	mútua	de	nossa
comunidade	mundial.	Enquanto	isso,	com	frequência,	a	teologia	é	vista	como	um
jogo	cristão	particular,	praticado	em	um	campo	seguro,	longe	de	qualquer
oposição	séria.	Na	verdade,	muitos	cristãos	encorajaram	essa	concepção	e
agiram	como	se	fosse	esse	o	caso.	Muitos	consideram	o	estudo	histórico
“legítimo”	apenas	se	sua	relevância	contemporânea	for	imediatamente	óbvia	e
acessível.	(“O	que	o	estudo	significa	para	nós,	atualmente?”	—	questionamento
cuja	conotação	implica	que	uma	falta	de	resposta	rápida	e	fácil	demonstraria
que,	em	algum	ponto	ou	lugar,	um	erro	foi	cometido.)	[	20	]
O	potencial	para	a	mútua	hostilidade	entre	“história”	e	“teologia”	resultou	na
conhecida	divisão,	em	estudos	do	Novo	Testamento,	segundo	a	qual	o	assunto	é
dividido	em	“Introdução”,	tido	como	um	dever	“puramente	histórico”,	e
“Teologia”,	concebida	menos	historicamente	e	mais	em	termos	sintéticos.	Hoje,
a	divisão	está	consagrada	no	conteúdo	programático	de	muitas	universidades	e
nos	sistemas	de	classificação	de	muitas	bibliotecas	—	área	cujo	rigor
classificatório	parece	inalterável.	Contudo,	essa	divisão	mais	ampla,	por	mais
incentivada	que	seja	por	alguns	de	ambos	os	lados,	não	é	nem	necessária,	nem
automática;	na	verdade,	é	altamente	enganadora.	Por	um	lado,	o	estudo	da
teologia	do	Novo	Testamento	depende	de	uma	crença,	ainda	que	vaga,	de	que
alguns	acontecimentos	do	primeiro	século	são,	em	certo	sentido,	normativos	ou
autoritários	para	o	desenvolvimento	subsequente	do	cristianismo.	Por	outro	lado,
o	estudo	histórico	do	cristianismo	primitivo	é	impossível	sem	uma	clara
compreensão	das	crenças	cristãs	primitivas.	Trata-se	de	uma	tarefa	notoriamente
difícil	ir	além	dessas	duas	declarações	vagas	—	fato	que	não	diminui,	mas,	ao
contrário,	enfatiza,	a	ideia	de	que	a	teologia,	especificamente	a	teologia	cristã,
não	pode	existir	no	vácuo,	em	um	mundo	fechado,	longe	do	escrutínio	público	e
de	questionamentos.	A	integração,	embora	se	mostre	difícil,	continua	a	ser	uma
tarefa	apropriada.
Enquanto	a	história	e	a	teologia	continuam	trabalhando	em	seu	relacionamento
tempestuoso,	sempre	há	o	perigo,	particularmente	no	pós-modernismo,	de	que	o
estudo	literário	prossiga	por	si	só,	sem	afetar	ou	ser	afetado	pela	história	e	pela
teologia.	Quanto	mais	nos	movemos	em	direção	a	um	entendimento	de	que
“minha	leitura	do	texto”	é	o	que	importa,	menor	será	a	pressão	para	ancorarmos
o	texto	em	seu	devido	contexto	histórico	ou	para	integrarmos	uma	“mensagem”
mais	ampla	do	texto	com	outras	mensagens,	produzindo	uma	declaração	ou	uma
síntese	teológica	geral.	Mais	uma	vez,	como	argumentarei	mais	adiante,
representa	um	passo	desnecessário,	embora	impedir	que	ele	seja	tomado	nem
sempre	seja	uma	tarefa	fácil.
O	presente	trabalho,	então,	é	uma	tentativa	de	integrar	três	tarefas	tidas	como
normalmente	díspares.	Algumas	vezes,	nossa	ênfase	recairá	mais	sobre	uma	área
do	que	sobre	as	demais.	Em	certo	sentido,	o	estudo	de	Jesus	é,	antes	de	tudo,
uma	questão	histórica,	demandando	o	estudo	auxiliar	de	textos	literários	e	de
suas	implicações	teológicas.	Descreverei	Jesus	do	ponto	de	vista	de	eventos
históricos	que	precipitaram	uma	revolução	teológica	e	literária.	Em	certo
sentido,	o	estudo	de	Paulo	é	uma	questão	de	teologia,	demandando	o	auxílio
cuidadoso	de	trabalhos	históricos	e	literários.	Discorrerei	acerca	de	Paulo	em
termos	de	uma	teologia	revolucionária,	que	precipitou	uma	conquista	histórica.
Por	fim,	em	certo	sentido,	o	estudo	dos	evangelhos	é,	por	si	só,	uma	tarefa	antes
de	tudo	literária,	que	não	pode	ser	feita,	porém,	sem	uma	atenção	cuidadosa	ao
cenário	histórico	e	teológico,	ao	contexto	e	às	suas	implicações.	Analisarei	os
evangelhos	do	ponto	de	vista	de	uma	conquista	literária	que	incorpora	uma
cosmovisão	revolucionária	(ou	várias	cosmovisões	revolucionárias?).	Ademais,
como	argumentarei	na	Parte	II	do	livro,	nenhum	estudo	desse	tipo	pode	ser	feito
com	uma	“objetividade”	desapegada	e	positivista.	Todos	envolvem,	como
acontece	com	toda	forma	de	conhecimento,	o	conhecedor	e	o	pesquisador,	o
aluno	e	o	leitor.	A	não	ser	que	deixemos	isso	bem	claro	desde	o	início,
trabalharemos	sob	uma	concepção	simplista	demais.	As	coisas	podem	parecer
agradavelmente	simples	para	começar,	mas	os	problemas	serão	reservados	para
mais	tarde.
E,	se	desejarmos	levar	o	programa	adiante,	precisaremos,	então,	analisar
brevemente	o	que	foi	feito	nas	áreas	em	questão	e	oferecer	um	breve	comentário
sobre	cada	uma	delas.	Elaboro-os	aqui	na	ordem	em	que	emergiram,	como	ideias
poderosas	e	influentes	nos	estudos	do	Novo	Testamento	do	século	19.
3.	A	história	do	cristianismo	primitivo
Nos	últimos	duzentos	anos	ou	mais,	estudiosos	se	engajaram	na	busca	do	que
pode	ser	chamado	de	história	cristã	primitiva.	Como	realmente	era	a	igreja
primitiva?	Quais	foram	seus	principais	movimentos?	Como	mudou,	em	cem
anos,	de	uma	pequena	“seita	judaica”	para	um	grande	grupo	multicultural	e
interligado,	estendendo-se	por	todo	o	Império	Romano?	[	21	]	Cobriremos	toda
essa	área	na	Parte	IV	do	presente	volume;	por	isso,	não	há	necessidade	de
anteciparmos	a	suma	dessa	pesquisa	aqui.	Como	já	vimos,	o	estudo	histórico
deve	incluir	o	que	pode	ser	chamado	de	teologia	cristã	primitiva	—	ou	seja,	uma
descrição	histórica	das	visões	de	mundo	e	do	sistema	de	crenças	dos	cristãos
professos	entre,	por	exemplo,	os	anos	30	e	130	d.C.	[	22	]	Se	esse	é	nosso
objetivo,	o	Novo	Testamento	é,	obviamente,	o	principal	lugar	aonde	ir,	ainda	que
apenas	por	falta	de	material	adicional.	Todavia,	será	necessário	empreender
muita	leitura	nas	entrelinhas,	uma	vez	que	os	escritores	do	Novo	Testamento	não
tentavam,	na	maioria	das	vezes,	dar	aos	leitores	certo	tipo	de	informação.	Na
verdade,	o	que	faziam	era,	às	vezes,	combater	certos	sistemas	de	crenças	dos
cristãos	primitivos.	A	reconstrução	da	teologia	do	cristianismo	primitivo	incluirá
a	reconstrução	das	teologias	daqueles	cujos	próprios	escritos	(se	é	que	existiram)
não	foram	preservados.	Pois	bem:	esse	tipo	de	reconstrução	nas	entrelinhas	é	o
que	os	historiadores	costumam	fazer.	Em	tese,	isso	é	possível.	Sem	dúvida,
muito	esforço	foi	concentrado	nessa	direção	nas	últimas	décadas.	[	23	]
A	grande	vantagem	dessa	tarefa	é	que	ela	pode	ser	vista	claramente	como	uma
operação	pública.	Está	aberta	a	todos	e	segue	os	mesmos	métodos	adotados	por
qualquer	historiador	que	reconstrói	qualquer	sociedade	e	seu	sistema	de	crenças.
Além	do	mais,	há	uma	grande	abertura	para	a	tarefa	nos	estudos
contemporâneos.	Novas	ferramentas	e	textos	abriram	mundos	de	pensamento	e
de	vida	que	nossos	antecessores,	cem	anos	atrás,	desconheciam.	Estudar	a
história	da	igreja	primitiva,	incluindo	a	história	de	suas	crenças,	é	não	somente
possível,	como	também	algo	fascinante	e	proveitoso.
Ao	mesmo	tempo,	essa	tarefa	esbarrará	em	diversas	dificuldades.	Para	começar,
partilha	da	dificuldade	geral	de	toda	história	antiga:	não	existe	material
suficiente	para	realizarmos	um	trabalho	completo.	Não	podemos	obter	uma
descrição	tão	completa	da	religião	cristã	primitiva	—	e,	portanto,	da	teologia	—
quanto	gostaríamos.	A	documentação,	não	tendo	sido	projetada	para	nos	dar
informação,	é	inadequada.	Por	conseguinte,	há	sempre	o	perigo	de	um	círculo
vicioso:	parte	do	objetivo	do	estudo	histórico	do	cristianismo	primitivo	consiste
em	chegarmos	a	um	ponto	de	vista	a	partir	do	qual	podemos	examinar	o	cenário
como	um	todo,	incluindo	o	Novo	Testamento;porém,	a	maior	parte	do	material
para	realizar	essa	tarefa	está	contida	no	próprio	Novo	Testamento.
O	resultado,	por	sua	vez,	é	a	possibilidade	de	haver	especulações	intermináveis	e
que	não	levam	a	lugar	algum.	Hipóteses	extraordinárias	podem	crescer	da	noite
para	o	dia,	como	a	planta	sobre	a	cabeça	de	Jonas,	sem	que	haja,	no	dia	seguinte,
uma	lagarta	para	fazê-la	secar.	Antes,	elas	sobrevivem,	abrangendo	diversas
perspectivas	contemporâneas	e	indignas	do	cristianismo.	Existe	a	teoria	do	“Big
Bang”	das	origens	cristãs,	segundo	a	qual	o	cristianismo	verdadeiro,	puro	e
inalterado	apareceu	brevemente	no	início,	esfriando	e	maculando-se	com	outras
ideias	desde	então.	Existe	a	hipótese	do	“desenvolvimento	constante”,	segundo	a
qual	ideias	e	planos	ideológicos	se	desenvolvem	em	linhas	retas,	sem	distorções,
giros	ou	segundas	intenções.	Existe	ainda	a	velha	teoria	da	escola	de	Tübingen,
segundo	a	qual	o	cristianismo	se	desenvolveu	de	duas	maneiras	paralelas	e
distintas,	segmentadas	pelo	contexto	racial,	encontrando-se,	posteriormente,	na
segunda	geração	da	Igreja	Católica.	Há	muito	a	ser	dito	contra	cada	uma	dessas
teorias,	mas	elas	continuam	a	exercer	influência	implícita.
Outro	problema	com	uma	concepção	comum	dessa	tarefa	é	sua	autodescrição
positivista.	No	capítulo	4,	argumentarei	que	toda	história	envolve	seleção,
priorização	de	elementos	etc.,	de	modo	que	a	ideia	de	história	“neutra”	ou
“objetiva”	não	passa	de	uma	invenção	pós-iluminista.	Se,	neste	ponto,	devemos
estabelecer	alguma	distinção,	é	melhor	pensarmos	em	tarefas	“públicas”	e
“particulares”	em	vez	de	“objetivas”	e	“subjetivas”.	No	entanto,	o	elemento
positivista	permanece,	defendendo	uma	historiografia	livre	de	juízos	e	isenta	de
dogmas,	como	se	algo	assim	fosse	possível.	[	24	]	Tal	abordagem	é,	em	certa
medida,	autorrefutável:	o	próprio	relato	de	Räisänen	acerca	da	história	da
disciplina	constitui,	por	si	só,	um	bom	exemplo	de	seleção	e	organização	com
base	em	concepções	previamente	estabelecidas.
Tendo	em	vista	que	certo	tipo	de	conhecimento	histórico	é	possível	e	resistindo	à
queda	ao	subjetivismo	tão	firmemente	quanto	resistimos	ao	objetivismo
arrogante,	questionamos:	para	que	serve	essa	tarefa?	Não	nos	basta	dizer,	como
alguns	gostariam,	que	a	investigação	histórica	é	feita	pelo	amor	a	si	mesma,	ou
seja,	como	um	meio	de	descobrir	as	coisas	que	aconteceram.	O	fato	é	que	todos
os	escritores	do	Novo	Testamento	e	do	cristianismo	primitivo	trazem,	sem
exceção,	suas	próprias	ideias	sobre	a	importância	dos	acontecimentos
envolvidos,	sem	se	contentarem	com	uma	descrição	superficial.	A	história
narrada	sobre	esse	aspecto	do	passado	é	universalmente	percebida	como	se	fosse
relevante	para	o	presente.	Em	relação	a	esse	aspecto,	todos	concordam.	Mas
como	a	história	do	cristianismo	primitivo	pode	ser	“relevante”	para	a	atualidade?
Nesse	ponto,	não	há	acordo;	apenas	muitas	vozes	confusas.
Primeiro,	muitos	escritores	recentes	e	alguns	mais	antigos	enxergam	a
experiência	religiosa	dos	primeiros	cristãos	(às	vezes	incluindo	sua	“teologia”)
como	o	elemento	normativo	do	cristianismo.	Trata-se	da	aparente	vantagem	de
permitir	que	se	conduza	o	estudo	“científico”,	supostamente	“objetivo”,	da
religião	e	da	teologia	cristã	primitiva	com	o	conhecimento	de	que,	ao
depararmos	com	ele,	entraremos	em	contato	com	o	modelo	real	de	como	o
cristianismo	supostamente	deveria	ser.	Seria	esperado,	então,	reativar	esse
modelo	pela	pregação	e	pela	oração.	[	25	]	Esse	pressuposto,	em	certa	medida,
integra-se	com	o	plano	ideológico	anunciado	por	Wrede	e	Räisänen,	pois	apela	a
uma	história	que,	em	tese,	é	observável	a	todos.	Também	se	encaixa
convenientemente	no	programa	do	denominado	movimento	da	“teologia
bíblica”,	do	período	pós-guerra,	que	rejeitou	a	ideia	de	que	a	Bíblia	é	uma
“revelação”	e	optou	pelo	pressuposto	de	que	Deus	se	revela	nos	atos	poderosos
da	história,	da	qual	observadores,	especificamente	os	primeiros	cristãos,	dão
testemunho,	consagrando-o	em	seus	escritos.	[	26	]	Nessa	perspectiva,	o	Novo
Testamento,	lido	de	forma	histórica,	é	“autoritativo”,	por	constituir	o	conjunto	de
documentos	mais	próximos	dos	fatos.	Portanto,	é	“autoritativo”	no	mesmo
sentido	que	Suetônio	representa	a	melhor	“autoridade”	como	narrador	da	vida	de
Domiciano.	Entretanto,	esse	exemplo	mostra	quão	escorregadia	realmente	é	a
palavra	“autoridade”.	Suetônio	não	é	mais	confiável	do	que	um	tabloide.	A	mera
proximidade	com	o	acontecimento	não	é	suficiente.
Em	segundo	lugar,	se	o	cristianismo	primitivo	deve,	de	alguma	maneira,
funcionar	como	norma,	o	processo	abarcará	claramente	não	apenas	a	seleção
envolvida	em	qualquer	relato	histórico	de	qualquer	coisa,	mas	também	a	seleção
dos	tipos	de	cristianismo	primitivo	segundo	um	arranjo	avaliativo
preestabelecido.	Inevitavelmente,	o	processo	envolverá	exceções.	Há	mais	tipos
de	cristianismo	primitivo	do	que	podem	ser	facilmente	agrupados	e	receber
status	autoritativo.	Nesse	ponto	—	já	que,	segundo	o	modelo	adotado,	o	cânone
já	não	tem	mais	importância	—,	somos	obrigados	a	importar	outros	critérios
externos,	que	nos	permitam	distinguir	o	tipo	“certo”	de	experiência	religiosa
inicial	do	tipo	“errado”.	Assim,	de	duas,	uma:	ou	elevaremos	o	período	mais
antigo	por	ser	mais	primitivo	e,	portanto,	mais	puro;	[	27	]	ou	adotaremos	um
tipo	particular	de	religião,	descrito	de	acordo	com	sua	procedência	cultural
(judaica	ou	grega)	ou	em	conformidade	com	uma	norma	teológica	(cristianismo
paulino,	por	exemplo).	[	28	]	Mais	uma	vez,	isso	parece	altamente	problemático:
de	onde	vieram	esses	critérios?	Não	parecem	ter	vindo	da	Bíblia	ou	da	tradição.
Só	podem	ter-se	originado	no	ponto	de	vista	do	intérprete,	o	qual	define	como	o
cristianismo	tradicional,	ou	“autêntico”,	realmente	era.	Nesse	caso,	porém,	o
pretenso	estudo	“objetivo”	do	cristianismo	primitivo	foi	abandonado.	A	tentativa
é	de	uma	teologia	cristã	muito	mais	generalizada	(com	um	ponto	de	partida
desconhecido),	ou	pelo	menos	algum	sub-ramo	da	teologia	do	Novo	Testamento.
[	29	]
De	forma	semelhante,	o	problema	é	evidente	no	trabalho	de	Räisänen,	o	qual,
defendendo	o	estudo	“objetivo”	da	história	da	fé	cristã	primitiva,	sustenta	que
seria	bom	aplicar	os	resultados	do	estudo	do	Novo	Testamento	ao	mundo,	e	não
apenas	à	igreja.	Isso	está	em	consonância	com	os	pressupostos	dos	judeus	e	dos
cristãos	do	primeiro	século,	segundo	o	autor	observa	corretamente	(ainda	que,	de
uma	forma	curiosa,	não	possa	explicar	esse	fenômeno	em	termos	históricos	ou
teológicos).	[	30	]	No	entanto,	isso	levanta	duas	objeções.	A	primeira:	por	que
alguém	de	fora	das	tradições	judaica	ou	cristã	encontraria	alguma	relevância	na
reexposição	de	um	capítulo	histórico	dessas	tradições?	Seria,	no	mínimo,	um
exemplo	de	loucura	ou	de	perseverança	humana	—	ou	talvez	uma	mistura	das
duas	categorias;	e	isso	dificilmente	mereceria	a	atenção	que	os	estudiosos,
inclusive	Räisänen,	ainda	devotam	ao	material.	A	segunda:	a	alegação	de
Räisänen	de	ler	o	Novo	Testamento	e	de	encontrar	um	material	com	o	qual	possa
abordar	questões	modernas	constitui,	para	ele,	um	problema	de	seleção:	de	onde
vem	seu	critério	avaliativo,	o	critério	que	o	leva	a	separar	o	trigo	do	joio	e	usá-lo
como	meio	de	abordar	as	questões	contemporâneas?	A	principal	mensagem	que
parece	emergir	de	seu	tratamento	é	que	as	primeiras	divisões	entre	judaísmo	e
cristianismo	são	tão	interligadas	e	confusas	que	faríamos	muito	melhor	em
repensar	a	questão	toda	a	partir	do	zero.	Podemos	ver	mensagens	generalizadas
semelhantes	em	alguns	historiadores	recentes,	que	tentam	passar	de	uma
afirmação	descritiva	para	outra,	de	cunho	normativo.	[	31	]	Um	método
alternativo	é	sugerir,	pela	reconstrução	histórica	de	Jesus	e	de	seus	primeiros
seguidores,	que,	posteriormente,	o	cristianismo	errou	ao	lhes	atribuir	o	status	que
eles	têm.	[	32	]
Por	fim,	o	que	essa	abordagem	faz	com	Jesus?	É	residualmente	estranho	incluir
Jesus	na	“experiência	cristã	primitiva”	—	ou	na	teologia	ou	na	religião	—,	como
se	Jesus	fosse	simplesmente	o	primeiro	cristão	cuja	“experiência”	do	seu	deus
poderia	ser	consideradaa	mais	normativa.	[	33	]	De	certa	forma,	como	veremos,
é	naturalmente	vital	descrever	Jesus	com	a	maior	precisão	histórica	possível.
Mas	seria	uma	inovação	bastante	radical	afirmar	categoricamente	que	a
experiência	de	Jesus	em	relação	a	deus	deveria	ser	a	mesma	dos	cristãos
subsequentes.	Existem,	sem	dúvida,	paralelos	e	analogias	(a	oração	a	“Aba”,	por
exemplo),	e	certamente	há	um	fio	de	imitatio	Christi	que	percorre	o	Novo
Testamento.	Contudo,	há	também	o	pensamento	comum	de	que	existe	uma
singularidade	sobre	Jesus.	Nesse	aspecto,	seria	estranho	considerar	a	imitação	de
sua	experiência	e	fé	parte	normativa	do	cristianismo	primitivo,	copiada,	da
forma	mais	fiel	possível,	pelas	gerações	cristãs	subsequentes.
Por	todas	as	razões	mencionadas,	parece-me	claro	que	a	simples	descrição
histórica	do	cristianismo	primitivo	e	de	sua	teologia	não	pode,	por	si	só,
constituir	um	empreendimento	completo,	ainda	que	permaneça,	claro,	como
parte	vital	da	tarefa;	mais	adiante,	veremos	que,	sem	ela,	a	tentativa	de	montar
uma	leitura	bem-sucedida	do	Novo	Testamento,	sem	falar	da	teologia	cristã,	está
fadada	ao	fracasso.	A	abordagem	propõe	um	plano	ideológico	claro	e	simples;
contudo,	a	clareza	é	apenas	superficial,	adquirida	à	custa	de	outras	dificuldades.
Em	termos	teóricos,	tende	ao	positivismo	e	ao	idealismo,	ou	a	uma	incômoda
inter-relação	entre	ambos.	Em	termos	práticos,	encontra-se	presa	a	duas	coisas:	à
sua	aparente	arbitrariedade	na	escolha	de	amostras	supostamente	normativas	e	às
dificuldades	de	extrair,	à	luz	do	primeiro	século,	com	todas	as	suas	armadilhas
culturais,	uma	imagem	desse	cristianismo	supostamente	normativo	—	uma
imagem	não	apenas	adequada,	mas	também	transponível,	para	ser	aplicada	a
outras	culturas	e	épocas.	[	34	]	Se	o	projeto	histórico	deseja	ser	bem-sucedido,
mesmo	em	seus	próprios	termos,	deve,	então,	ampliar	seus	horizontes.
4.	“Teologia	do	Novo	Testamento”
O	segundo	modelo	que	devemos	explorar	é	o	da	teologia	do	Novo	Testamento
propriamente	dito.	A	expressão	passou	a	designar,	em	maior	ou	menor	grau,	a
tentativa	de	ler	o	Novo	Testamento	de	um	ponto	de	vista	histórico	e,	ao	mesmo
tempo,	reunir	suas	principais	ênfases	teológicas	em	uma	declaração	coerente,
capaz	de	ser	transmitida	às	gerações	subsequentes,	inclusive	à	nossa	própria
geração.	[	35	]
Quanto	aos	dois	aspectos	desse	termo	ambíguo	—	a	saber,	“teologia	do	Novo
Testamento”	—,	precisamos	dizer	algumas	coisas	preliminares.	[	36	]	O	primeiro
aspecto,	a	descrição	da	teologia	do	Novo	Testamento,	forma,	obviamente,	o
subconjunto	de	uma	categoria	que	acabamos	de	examinar:	a	teologia	do	Novo
Testamento	faz	parte	da	teologia	do	cristianismo	primitivo,	o	qual,	por	sua	vez,
integra	a	história	geral	do	cristianismo	primitivo.	Não	podemos	confundir	um
elemento	com	o	outro,	conforme	costumamos	fazer.	Além	disso,	não	pode	haver
uma	garantia	prévia,	a	menos	que	adotemos	uma	postura	irrefletida	a	priori,	de
que	as	teologias	dos	diferentes	escritores	serão	as	mesmas;	de	fato,	boa	parte	dos
escritos	recentes	tem-se	dedicado	à	demonstração	de	que	elas	não	são.	Assim,	é
necessário	haver	alguma	precisão	no	uso	dessa	expressão.
O	segundo	aspecto	(com	o	qual	o	mundo	moderno	poderá	ser	abordado)	é	mais
complexo,	trazendo-nos,	naturalmente,	para	a	esfera	a	que	nos	referimos,	de
forma	comum	e	espantosa,	como	“hermenêutica”.	[	37	]	Antes	de	tudo,
precisamos	olhar	para	as	raízes	da	questão.	De	onde	surgiu	a	ideia	de	que,	ao
estudarmos	o	Novo	Testamento,	estamos	ouvindo	algo	da	parte	do	nosso	deus?
Essa	fé	nasce	da	convicção	cristã	antiga	e	inabalável	de	que	ser	cristão	significa,
entre	outras	coisas,	viver,	crer	e	caminhar	em	uma	espécie	de	continuidade,	em
tese	demonstrável,	com	o	Novo	Testamento	(e,	portanto,	com	o	Antigo
Testamento	também,	embora	isso	sempre	gere	outras	dificuldades,	que	não	serão
abordadas	neste	livro).	Essa	convicção	ganhou	impulso	adicional	como	resultado
da	Reforma	Protestante,	quando	o	princípio	sola	scriptura	foi	articulado,
posicionando	a	Bíblia	(e	pelo	menos	o	Novo	Testamento)	na	classificação	de
autoridade	suprema.	O	pensamento	defendido	desde	o	início	do	protestantismo	é
este:	de	que	o	ponto	de	partida	do	cristão	é	a	leitura	do	Novo	Testamento,	a	partir
da	qual	ele	será	equipado,	desafiado	e	fortalecido,	recebendo	as	bases	de	sua
vida	e	de	sua	fé.
A	ênfase	particular	que	passou	a	significar	a	atual	expressão	“teologia	do	Novo
Testamento”	foi	a	insistência	protestante	no	sentido	literal	ou	histórico	das
escrituras	como	árbitro	do	significado	do	texto	e,	portanto,	como	veículo	de	sua
autoridade.	Tal	princípio,	articulado	originalmente	como	meio	de	manter
distantes	as	fantasias	alegóricas,	deixou	problemas	residuais	nas	igrejas	que
adotaram	a	Reforma,	que	lutavam	com	o	sentido	literal	do	texto	e	com	sua
aplicação	autoritativa.	Os	mesmos	problemas	acabaram	aparecendo,	na	nova
situação	apresentada	pelo	Iluminismo,	com	o	movimento	histórico-crítico.
Insistiu-se	novamente	no	sentido	literal,	mas	com	dois	resultados	possíveis.	No
primeiro,	seria	possível	demonstrar	que	o	sentido	histórico	das	escrituras	era	de
fato	falso,	questionando-se	a	veracidade	do	cristianismo	como	um	todo.	No
segundo,	seria	possível	explorar	o	significado	histórico	a	fim	de	abstrair
princípios	de	verdades	teológicas	atemporais,	na	esperança	de	se	renovarem
áreas	da	vida	contemporânea	que	o	sentido	literal	seria	incapaz	de	alcançar.
Foram	as	tensões	implícitas	nessa	situação	que	deram	origem	aos	debates	dos
séculos	19	e	20	sobre	a	teologia	do	Novo	Testamento.	A	exegese	histórica
forneceria	à	igreja	material	para	sua	proclamação,	ou	problemas	que	essa
proclamação	teria	de	contornar	ou	com	os	quais	teria	de	lidar?	Como	as	leituras
histórica	e	normativa	poderiam	ser	combinadas?	Em	outras	palavras,	a	“teologia
do	Novo	Testamento”	é,	em	seu	sentido	combinado,	uma	proposição	viável?
Duas	maneiras	de	viabilizá-la,	e	que	foram	exploradas,	revelaram-se,	no	fim	das
contas,	insatisfatórias.	A	primeira,	que	reúne	pensadores	de	Lessing	(século	18)	a
Bultmann	(século	20),	segue	a	linha	indicada	há	pouco:	a	de	fazer	o	trabalho
histórico	com	o	objetivo	de	se	mover	para	além	dele,	para	uma	verdade
definitiva,	para	além	do	tempo	e	do	espaço,	completamente	fora	da	história.	O
resultado,	então,	é	uma	mensagem	atemporal,	uma	verdade	atemporal	ou	um
apelo	atemporal	à	decisão.	Segundo	essa	abordagem,	é	isso	que	podemos	utilizar
hoje.	Tal	“teologia	atemporal”	é,	assim,	o	objeto	real	da	busca	histórica.	Ao
descobrirmos	as	crenças	dos	escritores	do	Novo	Testamento,	podemos,	como
arqueólogos	teológicos,	descobrir	a	subestrutura	essencial	do	cristianismo	a	fim
de	executá-lo	e	exibi-lo	em	outro	lugar,	disponibilizando-o	a	todas	as	gerações,
em	uma	espécie	de	museu.	A	“teologia”	torna-se	a	coisa	“real”	à	qual	o	Novo
Testamento	se	refere,	o	verdadeiro	fruto	que	surge	quando	a	camada	externa	das
circunstâncias	históricas	é	removida.	Isso,	em	geral,	é	afirmado	em	termos	de
aspectos	“verdadeiramente	eternos”	e	“culturalmente	condicionados”.
O	problema	com	esse	programa	é	que	a	camada	externa	não	se	desprende	de
maneira	tão	clara.	É	muito	difícil	produzir	uma	“teologia”	do	Novo	Testamento
que	se	enquadre	em	categorias	“atemporais”;	e,	se	conseguirmos	fazê-lo,
podemos	suspeitar,	justificadamente,	que	boa	parte	do	fruto	foi	jogada	fora,
aderindo-se	ainda	à	casca	descartada.	Todo	o	Novo	Testamento	é	“culturalmente
condicionado”:	se	isso	desqualifica	uma	ideia	ou	um	tema	para	atingir
“relevância”	em	relação	a	outros	períodos	ou	culturas,	o	Novo	Testamento	como
um	todo	está	desqualificado.
Dois	resultados	desse	método,	nos	estudos	do	século	20,	foram:	(1)
demitologização:	a	tentativa	de	se	afastar	das	formas	de	discurso	e	pensamento
específicas	da	cultura	do	primeiro	século,	de	que	a	mensagem	ou	o	chamado
atemporal	se	revestiram;	e	(2)	crítica	da	forma:	os	meios	de	analisar	o	material
que,	a	princípio,	oferece	narrativas	históricas	sobre	Jesus,	de	modo	a	permitir
que	ele	revele	a	(suposta)	fé	“atemporal”	da	igreja	primitiva.	Ambos	os
movimentos	têm	raízes	culturais	e	teológicas,	nãoapenas	nos	movimentos
críticos	modernos,	mas	também	nas	formas	pietistas	pré-modernas	de	ler	as
escrituras,	extraindo	uma	“mensagem”	de	passagens	cujo	sentido	literal	não	é
necessariamente	oferecido.	Todo	o	processo	remonta,	em	última	análise,	à
exegese	alegórica	dos	pais	da	igreja.	[	38	]	Aqui	está	uma	grande	ironia
enraizada	na	ideologia	de	Bultmann,	que	nasce	da	teologia	protestante,	insistindo
em	uma	mensagem	que	rompe	com	a	aparente	camisa	de	força	imposta	pela
história	e	pela	lei,	oferecendo	perdão	gratuito,	graça,	um	novo	começo.	Ao	fazê-
lo,	ainda	enfatiza	o	sentido	literal	das	escrituras,	pelo	menos	em	relação	aos
evangelhos	—	mas	apenas	para	insistir	em	que	o	sentido	literal	deve	ser
transcendido	para	que	a	verdadeira	voz	das	escrituras	seja	ouvida.	Os	evangelhos
são,	na	verdade,	“sobre”	a	fé	cristã	em	Jesus,	e	não	sobre	o	próprio	Jesus.
Podemos	relativizar	os	acontecimentos	em	si:	notoriamente,	até	Jesus	pode
tornar-se	simplesmente	um	dos	primeiros	pregadores	da	mensagem	atemporal,
tendo	sua	morte	como	um	acontecimento	simples,	o	qual,	de	uma	forma	ou	de
outra,	desencadeou	a	fé	primitiva	da	igreja,	aquela	“experiência”	primitiva	que,
como	expresso	nos	escritos	do	Novo	Testamento,	tornou-se	o	fenômeno
realmente	normativo.	[	39	]	Essa	proposta	está	sujeita	às	críticas	prejudiciais	que
não	deram	à	história,	nem	à	criação,	peso	suficiente	para	que	fossem	levadas	a
sério	na	leitura	do	Novo	Testamento,	em	que	ambas	demonstram	ser	de	enorme
importância.	O	primeiro	modelo,	movendo-se	da	história	para	a	verdade
atemporal,	traz	consigo	grandes	problemas	e	não	pode	mais	ser	afirmado	sem
sérias	dificuldades.
O	segundo	modelo	foi	proposto	pela	escola	da	“teologia	bíblica”	das	décadas	de
1950	e	1960.	[	40	]	Em	termos	filosóficos,	essa	escola	se	opôs	ao	idealismo	de
Bultmann	com	uma	espécie	de	realismo.	O	Novo	Testamento	recebe	autoridade
não	por	dar	testemunho	de	uma	verdade	atemporal,	mas	por	testemunhar	os	atos
poderosos	do	deus	criador	na	história,	especialmente	nos	eventos	relativos	a
Jesus.	O	texto	é,	então,	revelador	e,	portanto,	autoritativo,	visto	testemunhar	a
“coisa	real”	—	ou	seja,	dar	testemunho	do(s)	acontecimento(s).	O	modelo	pode
ser	combinado	com	a	visão	da	história	da	igreja.	Nela,	a	igreja	é	vista	como
iniciando-se	em	um	período	“puro”	e,	portanto,	com	algumas	das	maneiras	pelas
quais,	como	vimos,	o	estudo	da	história	cristã	primitiva	pode	ser	usado	em	um
programa	normativo.	Mas	isso,	por	sua	vez,	parece	não	fazer	jus	à	insistência
protestante	no	próprio	texto	como	revelação	divina.	O	modelo	também	não
consegue	destacar	os	acontecimentos	que	devem	contar	como	revelação,
tampouco	dar	uma	explicação	teológica	clara	sobre	como	essa	revelação	deve
ser	concebida.
Outro	problema	em	relação	aos	dois	modelos	é	causado	pela	diversidade	do
material.	A	fim	de	produzir	uma	declaração	“normativa”	fora	do	Novo
Testamento,	é	praticamente	inevitável	que	alguém	enfatize	uma	parte	do	texto	à
custa	do	restante.	Isso	funciona,	em	termos	tanto	acadêmicos	como	populares,
por	meio	da	elevação	de	certas	partes	da	teologia	do	Novo	Testamento	—	a
teologia	de	Paulo,	por	exemplo	—	em	um	“cânone	dentro	do	cânone”.	Tal
método	é	normalmente	justificado	pelo	apelo	ao	princípio	de	que	as	partes	mais
difíceis	da	Bíblia	devem	ser	interpretadas	à	luz	das	mais	fáceis.	É	notável
constatar	por	quanto	tempo	esse	“princípio”	perdurou,	considerando	o
subjetivismo	flagrante	que	ele	contém.	[	41	]	Naturalmente,	o	que	é	“mais	fácil”
ou	“mais	difícil”	variará	consideravelmente	de	uma	geração	para	outra,	de	um
cenário	cultural	para	outro:	observe,	por	exemplo,	a	diversidade	de	explicações
“apocalípticas”	em	nosso	próprio	tempo.	[	42	]	Isso	não	quer	dizer	que	não	se
deve	trabalhar	com	algum	tipo	de	cânone	interno:	todos	os	intérpretes	o	fazem,
quer	admitam,	quer	não,	pois	todos	chegam	ao	texto	com	um	conjunto	de
perguntas	que	dão	início	ao	processo	de	interpretação.	Então,	a	questão	é:	o	que
devemos	fazer	com	esse	ponto	de	partida?	Devemos	usá-lo	simplesmente	como
ponte	de	acesso	ao	material,	mantendo-nos	conscientes	de	nossas	tendências
implícitas?	Ou	devemos	usá-lo	como	uma	espécie	de	leito	de	Procusto,	com	o
qual	podemos	medir,	e	condenar,	trechos	que	não	se	encaixam	em	nossa
perspectiva?	Teoricamente,	a	primeira	alternativa	é	possível;	a	segunda,	porém,	é
bastante	tentadora.
O	maior	problema	enfrentado	pelo	projeto	“teologia	do	Novo	Testamento”,
particularmente	no	paradigma	oferecido	por	Bultmann	e	suas	variantes,	é	o	que
fazer	com	Jesus.	A	“teologia	do	Novo	Testamento”,	estritamente	falando,	não
inclui	o	ensino	(ou	os	fatos	de	vida,	morte	e	ressurreição)	de	Jesus,	mas	apenas	a
fé	dos	escritores	do	Novo	Testamento	sobre	Jesus	(ou	talvez	as	supostas	crenças
mitologicamente	expressas	em	termos	de	histórias	de	Jesus).	É	a	estranha
nêmese	do	princípio	protestante	sola	scriptura	o	fato	de	um	dos	modelos	básicos
por	ele	suscitados	ter	pouco	espaço,	em	sua	estrutura	hermenêutica	ou	sistema	de
autoridade,	para	o	próprio	Jesus,	visto	que	ele	mesmo	não	foi	o	autor	de	nenhum
livro	do	Novo	Testamento.	Segundo	esse	ponto	de	vista,	Bultmann	estava
perfeitamente	correto	em	sua	famosa	frase	de	abertura	de	sua	New	Testament
Theology	[Teologia	do	Novo	Testamento]:	[	43	]	“A	mensagem	de	Jesus	é	o
pressuposto	para	a	teologia	do	Novo	Testamento,	e	não	parte	dessa	teologia	em
si”.	Nessa	afirmação,	vemos	a	linha	que	vai	de	Melanchthon	a	Bultmann	e	além:
uma	vez	que	captamos	o	pro	me	do	evangelho,	a	ideia	de	que	Deus	está	“sendo
gracioso	para	comigo”,	não	precisamos	mais	de	Jesus	tão	firmemente	enraizado
na	história.	[	44	]	Mas	as	críticas	ao	cristianismo,	apresentadas	por	Reimarus	e
outros	—	sem	mencionar	as	artimanhas	revisionistas	de	muitos	escritores	judeus
de	nosso	tempo	—,	não	se	satisfarão	com	uma	retirada	da	história,	exemplificada
por	Kähler,	Bultmann	e	Tillich.	Tampouco	o	problema	de	como	Jesus	é	retratado
por	acadêmicos	modernos,	como	Sanders,	evaporará.	Se	Jesus	foi	como
Reimarus,	Schweitzer	ou	Sanders	demonstraram,	então	a	igreja	precisa,	no
mínimo,	de	uma	revisão	substancial	de	sua	fé.
Além	do	mais,	como	veremos	na	Parte	IV,	há	algo	particularmente	estranho	na
ideia	de	posicionar	a	“teologia	do	Novo	Testamento”	como	norma	contra	o
próprio	Jesus,	como	foi	feito	notoriamente	por	Bultmann.	É	verdade	que	o	Novo
Testamento	nos	apresenta	a	teologia	de	Paulo,	Marcos,	Lucas	etc.	sobre	Jesus,	de
modo	que	as	crenças	teológicas	do	próprio	Jesus	não	podem	ser	interpretadas	na
superfície	do	texto.	Alguns	diriam	que	o	Jesus	real	sequer	pode	ser	redescoberto,
por	estar	agora	tão	sobrecarregado	com	a	teologia	dos	evangelistas;	outros
diriam	que	ele	não	deveria	ser	procurado,	visto	que	procurar	por	Jesus	à	luz	dos
evangelistas	é	buscar	a	construção	feita	por	um	historiador	(ou	outra	figura
“ideal”)	em	vez	do	Senhor,	a	quem	os	primeiros	cristãos	adoravam	e	seguiam.
Mas	até	mesmo	falar	assim	sugere	que	os	escritores	do	Novo	Testamento	não
pensavam	em	estabelecer,	por	meio	de	seus	próprios	escritos,	uma	autoridade	em
oposição	à	de	Jesus.	Tem	sido	comum	dizer	que	os	escritores	do	Novo
Testamento	“não	pensavam	em	si	mesmos	produzindo	a	“escritura”;	e,	ainda
que,	conforme	veremos,	tal	formulação	deva	ser	revisada,	principalmente	à	luz
da	recém-estabelecida	crítica	da	redação,	a	alegação	é	certamente	verdadeira	no
seguinte	sentido:	para	os	apóstolos	e	os	primeiros	cristãos,	o	lugar	no	qual	o	deus
de	Israel	agiu	definitivamente	para	a	salvação	do	mundo	não	jazia	na	pena	e	na
tinta	com	que	escreveram	os	evangelhos,	mas	no	fato	de	seu	deus	se	haver
revestido	de	carne	e	sangue	para	morrer	em	uma	cruz.	O	trabalho	desses
escritores	foi	concebido	como	algo	derivado	desse	fato	e	dependente	dele.
Assim,	embora	seja	verdade	que	Jesus	e	seu	sistema	pessoal	de	crenças	não
integram,	estritamente	falando,	“a	teologia	do	Novo	Testamento”,	isso	não	quer
dizer	que	Jesus	e	sua	proclamação	devam	ser	relativizados	em	favor	da	“coisa
real”,	ou	seja,	da	teologia	do	Novo	Testamento.	[	45	]	Em	detrimento	da
“teologia	do	Novo	Testamento”,	poderíamos	dizer	ainda	mais:	seela	não	contém
a	proclamação	definitiva	de	Jesus,	não	pode	ser,	ela	mesma,	o	todo	e	o	fim	da
revelação	divina,	o	lócus	supremo	da	autoridade,	a	“coisa”	que	todo	o	estudo	do
Novo	Testamento	está	inclinado	a	encontrar.
Se	o	projeto	da	“teologia	do	Novo	Testamento”	é	tão	cheio	de	problemas	como
aqueles	que	mencionei,	por	que	alguém	desejaria	prosseguir	com	ele?	Por	que
nos	esforçamos	freneticamente,	tanto	no	trabalho	popular	como	no	acadêmico,
para	localizar,	destilar,	salvar	e	até	mesmo	inventar	algo	novo,	capaz	de	ainda	ser
chamado	de	“teologia	do	Novo	Testamento”	e	ter	alguma	utilidade	para	cursos
acadêmicos	como	ponto	de	partida	da	vida	eclesiástica,	da	pregação,	de	missões
e	do	evangelismo?	A	resposta,	acredito,	é	tríplice.	Primeiro:	o	setor	teológico	em
que	essa	tarefa	tem	sido	realizada	com	maior	urgência	é	o	protestantismo;	e	os
protestantes	ainda	consideram	o	Novo	Testamento,	em	um	ou	outro	sentido,	a
“verdadeira”	autoridade	para	os	cristãos.	Segundo:	o	contexto	filosófico	de
grande	parte	desse	trabalho	tem	sido	o	idealismo,	contentando-se	muito	mais
com	ideias	abstratas	do	que	com	a	história	concreta;	dessa	forma,	a	teologia,
vista	como	um	conjunto	de	ideias	abstratas,	atinge	um	status	privilegiado.	Se	o
Novo	Testamento	é	“autoritativo”,	sua	autoridade	jaz	na	teologia	que	ele	contém.
Terceiro:	o	contexto	prático	da	“teologia	do	Novo	Testamento”	tem	sido	a	tarefa
percebida	pela	igreja	de	dirigir	a	si	mesma	e	ao	mundo	em	geral	com	uma
palavra	do	deus	verdadeiro.	Acredita-se	que	a	“teologia	do	Novo	Testamento”
impulsiona	a	pregação.	Os	problemas	com	os	quais	esse	modelo	deparou
levaram	alguns	a	objetar	que	não	passava	de	tolice	procurar	por	autoridade,
coerência	ou	até	mesmo	relevância	no	Novo	Testamento;	que	o	estudo	histórico-
objetivo	deve	renunciar	a	todo	e	qualquer	a	priori;	ou	que	o	projeto
simplesmente	retorna	ao	que	foi	articulado	por	Wrede	e,	mais	recentemente,	por
Räisänen	(descrição	“objetiva”	de	escritos	religiosos	em	seu	contexto	histórico).
Isso	levou	outros	a	tentarem	reafirmar	uma	forma	de	continuar	fazendo	algo	que
pode	ser	chamado	de	“teologia	do	Novo	Testamento”,	que	ainda	é	capaz	de	se
apegar	à	descrição	e	à	prescrição,	e	entrelaçar	as	duas	linhas	ao	longo	do	Novo
Testamento	—	ou	pelo	menos	no	caso	de	algumas	de	suas	supostas	“principais
testemunhas”.	Suponho,	entretanto,	que	o	caminho	certo	para	sair	dessa
confusão	não	seja	por	um	retorno	anterior	a	Wrede	(Räisänen),	nem	por	uma
expansão	lateral,	ou	seja,	para	um	pós-modernismo	de	Bultmann	(Morgan),	mas,
sim,	para	uma	categoria	mais	ampla,	com	uma	nova	perspectiva	de	“autoridade”,
“teologia”	e	“relevância”.
Em	qualquer	projeto	cristão	tradicional	—	evocado	aqui	não	como	um	a	priori
para	resolver	questões	históricas,	mas	como	fundamento	necessário	para
demonstrar	como	os	julgamentos	cristãos	tradicionais	realmente	funcionam	—,
toda	autoridade	pertence,	em	última	análise,	ao	deus	criador;	e	se	(como	o
cristianismo	tradicional	continua	a	afirmar)	esse	deus	se	faz	conhecido	de	forma
suprema	em	Jesus,	então	Jesus	também	tem	uma	autoridade	superior	à	de	todos
que	escreveram	a	seu	respeito.	Muitos,	claro,	supõem	que	isso	se	trata	de	uma
antítese	falsa,	visto	que	o	que	sabemos	a	respeito	de	Jesus	provém	exatamente
desses	escritos.	Mas	o	mesmo	problema	é	encontrado	na	linha	principal	da
“teologia	do	Novo	Testamento”,	segundo	a	qual,	como	vimos,	o	fato	de	os
evangelhos	não	nos	darem	acesso	direto	a	Jesus,	mas	apenas	à	teologia	dos
evangelistas	e	de	seus	antecessores,	é	axiomático.	Se	toda	autoridade	pertence	ao
deus	criador,	trata-se	de	uma	questão	delicada	descrever	como	tal	“autoridade”
passa	a	ser	investida	no	Novo	Testamento,	e	quais	são	os	limites	desse	processo.
As	três	abordagens	que	examinamos	até	agora	(história	cristã	primitiva	e	as	duas
formas	distintas	da	“teologia	do	Novo	Testamento”)	continuaram	a	ser	seguidas
na	guilda	da	erudição	do	Novo	Testamento.	Boa	parte	da	“ciência	normal”	dos
estudos	do	Novo	Testamento	(para	usar	a	terminologia	de	Kuhn)	[	46	]
preencheu	os	paradigmas	representados	pelo	plano	ideológico	de	Wrede,	a
“teologia	do	Novo	Testamento”	de	Bultmann	e	os	vestígios	do	movimento	da
“teologia	bíblica”.	Afinal,	são	grandes	linhas	ideológicas	como	essas	que
conferem	significado	e	propósito,	além	de	senso	de	expectativa,	às	atividades
detalhadas	dos	eruditos	bíblicos,	em	comentários,	artigos	e	monografias.	Surgiu,
da	sede	histórica	do	Iluminismo,	a	busca	por	Jesus,	produzindo	questões
intermináveis,	mas	também	possibilidades,	tanto	para	os	estudiosos	como	para	a
igreja.	Da	sede	de	Bultmann	pela	teologia	do	Novo	Testamento,	surgiram,	entre
outras	coisas,	grandes	estudos	da	teologia	paulina	e	as	principais	reconsiderações
das	tradições	do	evangelho.	Do	movimento	da	“teologia	bíblica”	pós-guerra,
surgiram,	entre	outras	coisas,	ensaios	sobre	a	“história	da	salvação”.	Novos
planos	ideológicos	entraram	em	jogo,	principalmente	o	desejo	pós-guerra	de
libertar	o	cristianismo	e	o	Novo	Testamento	da	suspeita	de	cumplicidade	no
Holocausto	(ou,	alternativamente,	culpá-los	por	esse	acontecimento).	Em	todas
as	frentes,	não	houve	escassez	de	atividades.
É	desse	leque	de	questões	interligadas	que	o	presente	capítulo	e,	de	fato,	os
presentes	volumes	se	ocupam	—	segundo	espero,	com	algumas	propostas	novas
e	positivas.	Devemos	fazer	tanto	história	como	teologia:	mas	como?	Em	última
análise,	este	projeto	faz	parte	da	tarefa	mais	ampla	—	que,	acredito,	posiciona-se
frente	à	cultura	ocidental	moderna	e	em	sua	totalidade,	e	não	apenas	a	teólogos
ou	cristãos	—	de	tentar	repensar	uma	visão	de	mundo	fundamental	em	face	do
colapso	interno	da	perspectiva	que	dominou	o	mundo	ocidental	nos	últimos
duzentos	anos.	E	é	precisamente	uma	das	características	da	visão	de	mundo
agora	sob	ataque	de	que	“história”	e	“teologia”	pertencem	a	compartimentos
separados.	Agora,	o	desafio	se	apresenta	diante	de	nós:	articular	novas	categorias
que	farão	jus	ao	material	relevante,	sem	esse	dualismo	prejudicial	e,	obviamente,
sem	trapacear,	coletando	dados	em	um	monismo	segundo	o	qual	um	“lado”
simplesmente	reaparece	no	outro.	Esse	desafio	é	enfrentado	em	todas	as	áreas,
das	quais	o	estudo	do	Novo	Testamento	constitui	apenas	uma.	No	entanto,	antes
de	prosseguirmos	com	este	projeto,	devemos	examinar	brevemente	o	terceiro
elemento	no	estudo	do	Novo	Testamento.	Se	desejamos	ser	historiadores	e
teólogos,	também	devemos	ser	críticos	literários.
5.	Crítica	literária
Ainda	há	alguns	estudiosos	do	Novo	Testamento	para	quem	a	expressão	“crítica
literária”	significa	a	aplicação,	ao	Novo	Testamento,	de	questões	e	métodos
críticos	que	se	tornaram	famosos	na	primeira	metade	do	século	20.	As	críticas	da
fonte,	da	forma	e	da	redação	eram	a	ordem	do	dia;	e	alguns	desejavam	que	tudo
continuasse	assim.	Uma	boa	parte	dos	estudos	especializados	do	Novo
Testamento	tem-se	preocupado	com	essas	coisas	e	com	a	análise	histórica	da
intenção	dos	escritores	ou	transmissores	do	material	que,	agora,	encontramos	no
Novo	Testamento.
Tal	mundo,	porém,	tornou-se	irreconhecível	nos	últimos	anos.	O	surgimento	das
críticas	literárias	pós-modernas	(cf.	cap.	3)	fez	com	que	as	disciplinas
essencialmente	modernistas	—	de	investigar	a	comunidade	primitiva	que
transmitia	tradições,	de	tentar	descobrir	fontes	literárias	complexas,	de
desvendar	o	que	exatamente	os	evangelistas	faziam	com	essas	fontes	—
soassem,	decididamente,	como	algo	do	passado.	A	nova	ênfase	nos	estudos	do
evangelho	não	está	tanto	no	evangelista	criativo,	mas	no	texto	em	si.	O	estudo	da
fenomenologia	da	leitura,	assim	como	sua	aplicação	ao	que	acontece	quando	o
leitor	de	hoje	lê	o	Novo	Testamento,	é	um	campo	cada	vez	mais	popular.	[	47	]
Recentemente,	argumentou-se	que,	como	a	crítica	histórica	não	parece	ter
produzido	tudo	o	que	os	críticos	estavam	procurando,	um	passo	lateral,	rumo	ao
mundo	da	crítica	literária	(pós-moderna),	talvez	ajudasse.	Já	que	estamos	apenas
observando	a	forma	como	o	leitor	se	apropria	das	coisas	para	si,	talvez	esse
processo	produza	uma	leitura	nova	e	satisfatória	do	Novo	Testamento.	[	48	]A	abordagem	fornece,	na	prática,	uma	nova	maneira	de	ser	bultmanniano.	Em
vez	de	fazer	história	para	descobrir	verdades	eternas,	estudaremos	a	leitura
(bíblica)	para	receber	mensagens	que	transcendem	o	tempo	e	o	espaço.	Trata-se
de	uma	tentativa	de	realizar,	na	pós-modernidade,	aquilo	que,	na	modernidade,	o
pacote	de	Bultmann	não	foi	capaz	de	fazer.	Como	tal,	a	proposta	se	afasta	do
positivismo	estéril	de	Wrede	e	Räisänen,	e	abre	possibilidades	para	explicar
como	os	textos	podem	falar	mais	uma	vez	em	situações	diferentes	das
vivenciadas	originalmente.	Em	particular,	diferentemente	das	fontes	clássicas
adotadas	pela	teologia	bultmanniana,	esse	método	tem	a	vantagem	inestimável
de	partir	do	conhecido	(o	texto)	em	vez	do	desconhecido	(o	cristianismo
primitivo,	da	forma	como	pode	ser	reconstruído	a	partir	das	entrelinhas	do	Novo
Testamento).
Entretanto,	a	proposta	defronta-se	ainda	com	questões	sérias.	Não	está	claro,	a
partir	do	modelo,	por	que	alguém	deveria	ler	o	Novo	Testamento	para	alcançar
esse	efeito.	Por	que	não	deveríamos	ler,	como	algo	de	igual	valor,	o	Evangelho
segundo	Tomé	ou	a	Ética	dos	Pais	[Pirkei	Avot]	—	ou	até	mesmo	Orgulho	e
preconceito?	Da	mesma	forma,	não	está	claro	o	status	contínuo	que	o	modelo
confere	à	história,	nem	o	porquê	de	alguém,	em	seus	próprios	termos,	ter	de	se
concentrar	especificamente	em	literatura.	Por	que	não	na	arte	e	nos	artefatos
cristãos	primitivos?	Será	que	a	literatura	é	obviamente	mais	acessível	ao	estudo
pós-moderno?	Ou	que	o	obscurecimento	de	toda	a	área	por	um	texto	complexo
—	o	Novo	Testamento	—	induz-nos	a	pensar	que	toda	a	tarefa	pode	ser	realizada
em	termos	de	textos?	Particularmente,	ainda	não	está	claro	onde	Jesus	se
encaixaria	nessa	leitura.	Será	que	nos	basta	dizer	que,	ao	lermos	as	parábolas,
deparamos,	a	despeito	dos	diversos	graus	de	separação	que	nos	distanciam	delas,
com	uma	versão	oral	das	próprias	obras	de	arte	de	Jesus?	Como	esse	método
evita	a	propensão	ao	subjetivismo?	Retornaremos	a	essas	questões	no	capítulo	3.
Paralelamente	à	mudança	pós-moderna	na	ênfase	para	o	estudo	orientado	ao
leitor,	o	estudo	histórico	da	literatura	em	seu	contexto	original	teve	continuidade.
Contudo,	passou	a	procurar	por	fenômenos	bastante	diferentes	de	seus
antecessores.	Finalmente,	os	especialistas	bíblicos	estão	seguindo	seus	colegas
clássicos	ao	abandonarem	a	busca	interminável	e	torturante	por	fontes
rigorosamente	reconstruídas.	[	49	]	Vimos,	recentemente,	uma	série	de	estudos
sobre	convenções	e	antigas	formas	retóricas	e	literárias,	além	de	uma	insistência
em	que	a	pesquisa	do	Novo	Testamento	se	desse	conta	deles.	[	50	]	Trata-se,	em
certa	medida,	de	simplesmente	preencher	uma	nova	lacuna	no	programa
elaborado	por	Wrede,	tentando	posicionar	os	documentos	do	Novo	Testamento
no	mapa	histórico	de	sua	época.	Ao	mesmo	tempo,	funciona	como	uma	tentativa
de	avaliar	a	provável	recepção	dos	escritos	em	suas	próprias	comunidades,	algo
que,	na	prática,	serve	como	uma	análise	modernista	(histórica)	de	um	fenômeno
pós-moderno.	Por	tempo	demais,	os	eruditos	presumiram	que	os	leitores	de
(digamos)	Paulo	ou	Mateus	se	assemelhavam	muito	aos	modernos,	de	modo	que
algo	que	nos	parece	difícil	provavelmente	lhes	pareceu	difícil	também.	O	estudo
das	antigas	convenções	de	retórica	e	escrita	expõe	essa	espécie	de	anacronismo
maciço	pelo	que	é;	como	tal,	é	muito	bem-vindo.	Embora	não	seja,	por	si	só,
uma	forma	plena	de	ler	o	Novo	Testamento,	pode	dar	uma	grande	contribuição	à
tarefa	em	geral.
6.	A	tarefa	reformulada
Agora,	examinaremos	brevemente	os	principais	componentes	da	tarefa	de	ler	o
Novo	Testamento	à	luz	de	algumas	discussões	modernas	e	da	direção	em	que
apontam.	Para	tanto,	precisamos	de	uma	síntese	criativa	de	todos	eles.	Devemos
tentar	combinar	a	ênfase	pré-moderna	no	texto	como,	em	certo	sentido,
autoritativo;	a	ênfase	moderna	no	texto	(e	no	próprio	cristianismo)	como
irredutivelmente	integrado	à	história	e	envolvido	com	a	teologia;	e	a	ênfase	pós-
moderna	na	leitura	do	texto.	Dito	de	outra	forma,	precisamos	fazer	jus,
simultaneamente,	à	ênfase	de	Wrede	na	seriedade	histórica	(incluindo	a	história
de	Jesus),	à	ênfase	de	Bultmann	na	teologia	normativa	e	à	ênfase	pós-moderna
no	texto	e	em	seus	leitores.	Evidentemente,	cada	uma	delas	está	inclinada	a
reivindicar	direitos	exclusivos	e	a	se	ressentir	de	compartilhar	o	território	que
considera	seu.	Mas	é	preciso	resistir	a	tais	reivindicações	grandiosas.	[	51	]
Parece-nos	improvável	encontrar	esse	trajeto	adiante	pela	rota	do	positivismo
(cf.	cap.	2),	pela	busca	de	verdades	eternas	ou	simplesmente	concentrando-nos
em	nossa	leitura	agora.	Sugiro	que	a	única	maneira	de	unirmos	o	que	deve	ser
unido	é	por	meio	de	um	novo	exame	de	como	se	assemelharia	um	projeto
literário,	histórico	e	teológico	cristão	contemporâneo.	Esse	é	o	objetivo	da	Parte
II.	No	decorrer	deste	trabalho,	contaremos	algumas	histórias	sobre	como	essas
tarefas	são	executadas,	algo	que,	espero,	subverterá	algumas	das	histórias
contadas	a	seu	respeito	em	outros	lugares.	Não	permitir	essa	possibilidade	seria
fechar	antecipadamente	o	leque	de	respostas	históricas	e	teológicas	concebíveis,
de	uma	forma	um	tanto	inaceitável.	No	mundo	contemporâneo,	com	todas	as
suas	incertezas	sobre	o	controle	de	paradigmas,	temos	a	chance	de	abordar	essas
tarefas	de	novas	maneiras.	Esperamos	que	isso	contribua	não	apenas	para	a
edificação	particular	ou	para	a	satisfação	acadêmica	—	ainda	que,	de	forma
ideal,	ambas	devam	ser	atendidas	en	route	—,	mas	também	para	projetos	mais
amplos,	incluindo	o	avanço	do	“reino	de	deus”.	Isso,	no	entanto,	está	um	pouco	à
frente	do	argumento.
À	luz	da	Parte	II,	precisamos	defender	algumas	hipóteses	sobre	a	situação
histórica	na	qual	os	escritos	do	Novo	Testamento	nasceram.	Isso	envolverá	uma
reconstrução	histórica	do	judaísmo	e	do	cristianismo	do	primeiro	século.
Sabemos	muito	mais	sobre	o	judaísmo	antigo	do	que	antes,	de	modo	que
recorrerei	a	esse	novo	conhecimento,	de	forma	um	tanto	detalhada,	na	Parte	III.
A	tentativa	de	reconstrução	da	história	da	igreja	primitiva	foi	muito	menor,	e	a
falta	de	material	resultou	em	certa	dose	de	fantasia.	Nossa	tarefa	específica,	a	de
descrever	o	cristianismo	entre	30	e	150	d.C.,	sem	discutir	Jesus	ou	Paulo,	é	um
tanto	artificial	—	como	seria	discutir	música	europeia	de	1750	a	1850	sem
mencionar	Mozart	e	Beethoven.	Por	pelo	menos	duas	razões,	porém,	a	tentativa
deve	ser	levada	a	cabo.	A	primeira	é	a	relevância	de	estabelecer,	o	mais
claramente	possível,	o	contexto	histórico	no	qual	os	dois	principais
protagonistas,	Jesus	e	Paulo,	podem	ser	estudados.	A	segunda	é	que	praticamente
todas	as	nossas	informações	sobre	Jesus	vêm	na	forma	de	documentos	nos	quais
encontramos	tradições	transmitidas	e,	com	o	tempo,	escritas	por	cristãos	—
alguns	dos	quais	viveram	naquele	período	inicial	e	tratavam	de	suas
necessidades	particulares.	Dessa	forma,	devemos	entender	algo	sobre	a	própria
igreja	primitiva	para	podermos	ler	os	evangelhos	com	a	devida	sensibilidade	e	o
necessário	cuidado	histórico.	Esse	é	o	assunto	da	Parte	IV,	o	qual	nos	permitirá
avançar,	na	Parte	V,	para	uma	reafirmação	preliminar	de	alguns	pontos-chave.
Evidentemente,	há	uma	inevitável	circularidade	aqui;	mas,	como	mostrarei	na
Parte	II,	não	é,	de	forma	alguma,	um	círculo	vicioso.	Trata-se	da	circularidade
necessária	de	toda	a	reconstrução	histórica	e	até	mesmo	epistemológica,	séria.
O	trabalho	estabelecerá	o	contexto	para	os	volumes	subsequentes,	que	abordarão
Jesus,	Paulo	e	os	evangelhos.	Nas	últimas	décadas,	cada	área	demonstrou
diferentes	ondas	de	estudo	e	interesse;	mas	elas	não	foram	integradas,	quer
histórica,	quer	teologicamente.	Ao	tentar	empreender	essa	grande	tarefa,	escrevo
algo	como	“teologias	do	Novo	Testamento”,	que	repetidas	vezes	foram	escritas.
No	entanto,	também	estou	ciente,	conforme	já	argumentei,	das	diferenças	entre
as	formulações	clássicas	desse	modelo	e	o	modo	como	concebo	tanto	essa	tarefa
como	seu	objetivo.
Este	primeiro	volume,	portanto,	introduz,	até	certo	ponto,	todo	o	projeto	em
questão;	em	outros	aspectos,	porém,ele	se	autossustenta.	Defende	uma	maneira
particular	de	fazer	história,	teologia	e	estudos	literários	em	relação	às	questões
do	primeiro	século;	defende	uma	maneira	particular	de	entender	o	judaísmo	e	o
cristianismo	do	primeiro	século;	e	oferece	uma	discussão	preliminar	do
significado	da	palavra	“deus”	nas	formas	de	pensamento	desses	grupos,	bem
como	as	maneiras	pelas	quais	esse	estudo	histórico	e	teológico	pode	mostrar-se
relevante	para	o	mundo	moderno.	E	se	essas	tarefas	são,	de	certa	forma,
simplesmente	preliminares	ao	trabalho	de	entrar	e	tomar	posse	da	terra
prometida	em	si,	não	se	trata,	então,	de	algo	ruim.	Se	os	lavradores	tivessem
ouvido	as	instruções	do	proprietário,	não	haveria	disputas	sobre	a	vinha.	Se	os
filhos	de	Israel	tivessem	prestado	atenção	às	advertências	feitas	em
Deuteronômio,	haveria	mais	leite	e	mel,	e	menos	miséria	e	injustiça,	quando,
finalmente,	atravessaram	o	Jordão.
PARTE	II
FERRAMENTAS	PARA	A	TAREFA
CAPÍTULO	2
CONHECIMENTO:	PROBLEMAS	E	VARIAÇÕES
INTRODUÇÃO
Vimos	que	o	estudo	do	Novo	Testamento	envolve	três	disciplinas	em	particular:
literatura,	história	e	teologia.	Encontram-se,	por	assim	dizer,	entre	os	exércitos
que	usam	o	Novo	Testamento	como	campo	de	batalha.	Muitos	dos	debates	que
ocuparam	eruditos	ao	longo	de	sua	travessia	pelo	terreno	dos	evangelhos	e	das
cartas	não	foram	tanto	a	exegese	detalhada	de	uma	ou	outra	passagem,	mas	as
questões	mais	amplas	sobre	o	rumo	de	determinada	perspectiva	histórica	ou
teológica,	e	quais	partes	do	território	poderiam	ser	anexadas	com	uma
reivindicação	de	lealdade	justificada.	Dessa	maneira,	é	inevitável	—	embora
alguns	acreditem	ser	lamentável	—	que	passemos	um	tempo	nesse	estágio,
vendo	como	são	esses	grandes	problemas	e	desenvolvendo	uma	ideia	das	opções
entre	eles.	Até	que	o	façamos,	estudar	sobre	Jesus,	Paulo	e	os	evangelhos	dará
continuidade,	em	grande	medida,	à	projeção	de	uma	metafísica	não	discutida:	se
não	explorarmos	os	pressupostos,	poderemos	antecipar	um	debate	sem-fim	e
infrutífero.	Aqueles	que	estão	ávidos	para	continuar	com	o	que	consideram	o
assunto	em	si	são,	naturalmente,	convidados	a	pular	esta	seção;	mas	não	devem
preocupar-se	se,	ao	fazê-lo,	enfrentarem	algumas	perplexidades	posteriormente.
Eles	sempre	poderão	voltar	ao	tópico	discutido	neste	capítulo.
A	lógica	interna	desta	parte	do	livro	é	a	percepção	de	que	todos	os	problemas
que	encontramos	no	estudo	da	literatura,	da	história	e	da	teologia	estão
interligados.	Cada	qual	reflete,	segundo	sua	área,	o	problema	do	conhecimento
em	si.	Isso	não	é	novidade,	mas	merece	ser	ressaltado;	afinal,	resolver	os
problemas	por	etapas,	sem	reconhecer	suas	amplas	semelhanças,	seria	privar
toda	a	discussão	de	seu	senso	de	direção.	Portanto,	a	melhor	coisa	é	lidarmos
com	os	assuntos	mais	amplos	antes	de	mergulharmos	nas	especificidades	de	cada
questão	particular.
Enfrentar	tais	questões	é	ainda	mais	necessário	do	que	antes.	Atualmente,	as
ciências	humanas	encontram-se	em	um	estado	de	crise,	por	sinal	muito
observado	e	discutido.	O	ponto	de	vista	dominante	dos	últimos	duzentos	anos,
associado	particularmente	ao	Iluminismo,	encontra-se	em	estado	de	desordem	há
algum	tempo;	e	seu	suposto	“modernismo”	está	sendo	gradativamente
ultrapassado	pelo	que	rotulamos,	de	modo	um	tanto	infeliz,	como	“pós-
modernismo”.	[	52	]	Antigas	certezas	deram	lugar	a	novas	incertezas;	por	isso,	é
vital	que	um	projeto	como	este	mostre,	desde	o	início,	em	que	pontos	se
fundamenta	em	relação	às	questões	básicas	de	método.	Aqui,	não	será	possível
argumentar	longamente	sobre	o	ponto	de	vista	que	proponho	adotar.	Isso	exigiria
um	livro	inteiro	dedicado	ao	assunto;	e,	de	qualquer	maneira,	a	verdadeira	prova
da	qualidade	do	pudim	está	em	comê-lo	—	ou	seja,	na	capacidade	de	o	método
adotado	dar	mais	sentido	ao	assunto	quando	o	abordamos.	[	53	]	Pretendo,	de
qualquer	maneira,	retornar	a	essas	questões	no	volume	final	deste	projeto.
O	argumento	básico	que	defenderei	nesta	parte	do	livro	é	que	o	problema	do
conhecimento	em	si	—	assim	como	os	três	ramos	que	dele	se	originam	e
constituem	o	foco	de	nossa	atenção	—	pode	ser	esclarecido	quando	visto	à	luz	de
uma	análise	detalhada	das	cosmovisões	que	formam	as	lentes	através	das	quais
os	seres	humanos,	individual	e	coletivamente,	percebem	a	realidade.
Particularmente,	uma	das	características-chave	de	todas	as	visões	de	mundo	é	o
aspecto	da	narrativa.	Isso	é	de	vital	importância,	principalmente	em	relação	ao
Novo	Testamento	e	ao	início	do	cristianismo,	porém	compõe,	na	verdade,	o
sintoma	de	um	fenômeno	universal.	As	“narrativas”,	conforme	defenderei,
ajudam-nos	a	articular	uma	epistemologia	crítico-realista,	podendo,	então,	servir
a	usos	mais	amplos	no	estudo	da	literatura,	da	história	e	da	teologia.	[	54	]
RUMO	AO	REALISMO	CRÍTICO
A	posição	que	esboçarei	brevemente	aqui	é	aquela	que	ficou	conhecida,	em
termos	amplos,	como	realismo	crítico.	[	55	]	Trata-se	de	uma	teoria
epistemológica	e	parece	oferecer	um	caminho	para	avançar,	em	contraste	com	as
teorias	concorrentes	que	se	configuram	em	diversas	áreas	(principalmente	nas
três	com	as	quais	estamos	particularmente	preocupados)	e	que	atualmente
entraram,	ao	que	tudo	indica,	em	estado	de	colapso.	Para	vermos	isso	com	mais
clareza,	precisamos	de	um	relato	breve	e	abrangente	dessas	teorias	rivais,	que
são,	mais	ou	menos,	versões	otimistas	e	pessimistas	do	projeto	epistemológico
do	Iluminismo,	ou	seja,	de	um	empirismo	mais	amplo.	Nesse	estágio,	os	termos
técnicos	que	empregarei	são	deliberadamente	gerais	e	obviamente	bastante
controversos;	mas	espero	conseguir	formular	um	esboço	claro	dessas	ideias.
Por	um	lado,	temos	o	otimismo	da	posição	positivista.	[	56	]	O	positivista
acredita	que	há	certas	coisas	sobre	as	quais	podemos	ter	um	conhecimento
definido.	Algumas	coisas	são	simples	e	“objetivamente”	verdadeiras	—	ou	seja,
há	coisas	sobre	as	quais	podemos	ter,	e	realmente	temos,	um	conhecimento
sólido	e	inquestionável.	São	coisas	que	podem	ser	“empiricamente”	testadas	no
mundo	físico,	ou	seja,	observando-se,	medindo-se	etc.	Levando	essa	ideia	à	sua
conclusão	lógica,	coisas	que	não	podem	ser	testadas	dessa	maneira	não	podem
ser	expressas	sem	denotar	algum	tipo	de	absurdidade.	[	57	]	Embora	esse	ponto
de	vista	tenha	sido	amplamente	abandonado	por	filósofos,	tem	persistido	em
outras	esferas,	principalmente	a	das	ciências	físicas.	Apesar	dos	grandes	avanços
no	conceito	de	autopercepção	que	vieram	(por	exemplo)	da	sociologia	do
conhecimento,	sem	contar	a	própria	filosofia	da	ciência,	ainda	encontramos
alguns	cientistas	(e	muitos	não	cientistas)	que	dizem	que	a	ciência	simplesmente
tem	um	olhar	objetivo	para	as	coisas	que	existem.	[	58	]	O	contrário	dessa	crença
é	a	de	que,	nas	esferas	em	que	o	positivismo	não	consegue	expressar	suas
certezas	estridentes,	tudo	o	que	resta	é	subjetividade	ou	relatividade.	O
fenômeno	contemporâneo	muito	discutido	do	relativismo	cultural	e	teológico	é,
nesse	sentido,	simplesmente	o	lado	sombrio	do	positivismo.
Assim,	as	pessoas	presumem,	dentro	do	mundo	positivista	do	pós-Iluminismo,
que	sabem	das	coisas	“da	forma	certa”.	No	que	muitos	consideram	uma	pequena
dose	de	senso	comum,	essa	posição	pode	ser	chamada	de	“realismo	ingênuo”.
Ilusões	óticas	e	outras	similares	são	tidas	por	aberrações,	afastando-se	da	norma
—	segundo	a	qual	os	seres	humanos,	com	os	devidos	controles	científicos
disponíveis,	têm	acesso	instantâneo	a	dados	brutos	acerca	dos	quais	podem
simplesmente	fazer	proposições	verdadeiras,	com	base	em	experiências
sensoriais.	Visto	ser	evidente	que	nem	todo	conhecimento	humano	pertence	a
essa	categoria,	os	tipos	de	conhecimento	que	quebram	o	padrão	são	rebaixados:
classicamente,	no	positivismo	do	século	20,	a	metafísica	e	a	teologia	entram
nessa	marginalização.	Como	elas	não	admitem	verificação,	tornam-se	crenças,
não	conhecimento	(como	sugerido	por	Platão	há	muito	tempo),	passando,	então,
a	crenças	incoerentes	e	desprovidas	de	sentido	(como	argumenta	Ayer).	Estética
e	ética	são	reduzidas	às	funções	experimentais	de	uma	ou	mais	pessoas:	“belo”	e
“bom”	simplesmentesignificam	“eu	gosto	disso”	ou	“nós	aprovamos	aquilo”.
Desse	modo,	o	positivismo	consegue	resgatar	certos	tipos	de	conhecimento,	mas
em	detrimento	de	outros.
Para	o	positivismo,	há	algumas	coisas	para	as	quais	temos	(em	tese)	uma
perspectiva	completamente	objetiva	e	transparente,	enquanto,	para	outras,	uma
visão	preconceituosa	e	caprichosa.	O	fato	de	o	positivismo	haver	sido	submetido
a	críticas	duras	nas	últimas	décadas,	sendo	drasticamente	modificado	até	mesmo
por	seus	defensores	(incluindo	o	próprio	Ayer),	não	o	impediu	de	continuar
exercendo	influência	em	nível	popular,	esfera	na	qual	atua	em	consonância	com
a	perspectiva	ocidental	predominante.	Nela,	o	conhecimento	científico	e	o
controle	tecnológico	têm	valor	preeminente,	enquanto	valores	e	sistemas	de
crenças	intangíveis	da	sociedade	humana	são	relativizados.	Encontramo-lo	entre
teólogos	ingênuos,	que	reclamam	que,	enquanto	outras	pessoas	têm
“pressuposições”,	os	teólogos	simplesmente	leem	o	texto	de	uma	forma	direta,	já
que	ninguém	pode	ter	“acesso	direto”	aos	“fatos”	sobre	Jesus;	assim,	tudo	o	que
nos	resta	é	um	pântano	de	fantasias	do	primeiro	século.	E	vamos	deparar	com
muitos	argumentos	semelhantes	à	medida	que	prosseguimos.	[	59	]
A	história	vê-se	presa	entre	dois	polos:	trata-se	de	um	conhecimento	“objetivo”
ou	tudo	realmente	não	passa	de	“subjetivismo”?	Ou	seria	o	caso	de	uma	falsa
dicotomia?	[	60	]	Que	tipo	de	conhecimento	temos	sobre	acontecimentos
históricos?	Por	um	lado,	o	conhecimento	histórico	está	sujeito	às	mesmas
ressalvas	que	todo	conhecimento	em	geral.	É	possível	estar	enganado.	Posso
pensar	que	estou	segurando	um	livro	quando,	na	verdade,	é	um	pedaço	de
madeira;	posso	pensar	que	César	atravessou	o	Rubicão,	mas	pode	ter	sido	outro
rio;	posso	pensar	que	Paulo	fundou	a	igreja	de	Filipos,	mas	é	concebível	que
alguém	tenha	chegado	lá	primeiro.	Quando,	então,	as	pessoas	falam
ansiosamente	sobre	em	que	medida	há	“prova	real”	para	esse	ou	aquele
“acontecimento”	histórico,	geralmente	concluindo	que	não	existe,	é	provável	que
estejam	perigosamente	próximas	da	fronteira	“ou	uma	coisa	ou	outra”	da
armadilha	positivista:	plena	certeza	versus	mera	opinião	não	fundamentada.
Evidências	quanto	à	travessia	do	Rubicão	por	César	são	basicamente	da	mesma
ordem	que	as	evidências	de	que	estou	segurando	um	livro.	De	fato,
procedimentos	de	verificação	muito	semelhantes	se	aplicam	a	ambas	as
proposições.	Nenhuma	está	absolutamente	certa;	nenhuma	é	tão	incerta	a	ponto
de	ser	inútil.	Se	não	reconhecermos	essa	semelhança	fundamental,	ignoraremos	a
dúvida	cartesiana	sobre	a	vida	cotidiana,	adotando-a	de	forma	acrítica	no	caso	de
questões	mais	“sérias”.	No	campo	do	Novo	Testamento,	alguns	críticos	fizeram
uma	ótima	música	e	dançaram	sobre	o	fato	de	os	detalhes	da	vida	de	Jesus,	ou	o
fato	de	sua	ressurreição,	não	poderem	ser	“cientificamente”	provados.	Contudo,
o	rigor	filosófico	deve	obrigá-los	a	admitir	que	o	mesmo	problema	pertence	a
uma	vasta	gama	de	conhecimentos	humanos	comuns,	incluindo	a	alegação
implícita	de	que	o	conhecimento	exige	verificação	empírica.
O	lado	pessimista	do	programa	do	Iluminismo	pode	ser	visto	com	mais	clareza
em	certas	formas	mais	modestas	de	empirismo,	principalmente	no
fenomenalismo.	[	61	]	A	única	coisa	de	que	posso	realmente	ter	certeza	quando
sou	confrontado	por	coisas	(o	que	parece	ser)	no	mundo	externo	são	meus
próprios	dados	sensoriais.	Essa	visão,	com	uma	aparente	espécie	de	humildade
epistemológica,	traduz,	então,	uma	conversa	sobre	os	objetos	externos	(“isto	é
um	copo”)	em	declarações	sobre	dados	sensoriais	(“percebo	algo	sólido,	redondo
e	de	superfície	lisa	nas	mãos”).	Nesse	ponto,	o	positivismo	continuaria	a	inferir
e,	se	possível,	averiguar	a	presença	de	objetos	externos;	por	sua	vez,	a
fenomenologia	permanece	cautelosa,	e	essa	cautela	afeta	boa	parte	do	discurso
popular:	em	vez	do	impetuoso	“isto	está	correto”,	dizemos:	“gostaria	de	defender
que	isto	está	correto”,	reduzindo	uma	declaração	perigosamente	arrogante	a
respeito	do	mundo	a	uma	declaração	humilde	sobre	mim	mesmo.	Todavia,	os
problemas	conhecidos	sob	essa	perspectiva	não	a	impediram	de	exercer	enorme
influência,	principalmente	em	alguns	aspectos	do	pós-modernismo.
Quando	pareço	olhar	para	um	texto,	para	a	mente	de	um	autor	dentro	do	texto	ou
para	acontecimentos	dos	quais	o	texto	parece	tratar,	tudo	o	que	realmente	faço	é
ter	a	mesma	perspectiva	que	o	autor	tem	dos	acontecimentos,	a	aparência	do
texto	acerca	da	intenção	do	autor	ou	talvez	apenas	meus	pensamentos	na
presença	do	texto	e…	será	que	se	trata	mesmo	de	um	texto?	[	62	]
Um	diagrama	pode	ajudar	neste	momento.	O	positivista	concebe	o	conhecimento
como	uma	linha	simples,	que	vai	do	observador	para	o	objeto.	Isso	resulta	no
seguinte	modelo:
Observador --------------------------------------------------→ Objeto
•	simplesmente	olhando	para	a	realidade	objetiva
•	testado	pela	observação	empírica
•	caso	não	funcione,	não	faz	sentido
O	fenomenalista,	entretanto,	tenta	esse	modelo	e	descobre	que	todos	os
resultados	retornam	ao	conhecedor:
Observador --------------------------------------------------→
•	Pareço	ter	evidências	da	realidade	externa
←	------------------------------------------------------------------------------------
•	mas	só	tenho	certeza,	de	fato,	de	meus	dados	sensoriais
É	claro	que	existem	todos	os	tipos	de	variação	sobre	esses	temas,	porém	suas
diferenças	podem	ser	resumidas	a	duas	posições	mais	amplas.	Podemos
caracterizá-las	com	uma	ilustração.	Se	conhecer	algo	é	como	olhar	por	um
telescópio,	um	positivista	simplista	pode	imaginar	que	está	apenas	olhando	para
o	objeto,	esquecendo,	por	um	instante,	o	fato	de	estar	olhando	através	de	lentes;
já	o	fenomenalista	pode	suspeitar	que	está	olhando	para	um	espelho	no	qual	vê	o
reflexo	de	seu	próprio	olho.	Evidentemente,	um	resultado	lógico	da	posição	do
fenomenalista	é	o	solipsismo,	a	crença	de	que	eu	—	e	apenas	eu	—	existo.	Para	o
que	mais	tenho	provas?
Contra	essas	duas	posições,	proponho	uma	forma	de	realismo	crítico.	É	um
modo	de	descrever	o	processo	de	“conhecimento”	em	que,	de	acordo	com	essa
abordagem,	reconhecemos	a	realidade	da	coisa	conhecida,	diferenciando-a	do
conhecedor	(daí	o	“realismo”),	enquanto	também	reconhecemos	plenamente	que
o	único	acesso	que	temos	a	essa	realidade	consiste,	ao	longo	de	um	caminho	em
espiral,	no	devido	diálogo	entre	o	conhecedor	e	a	coisa	conhecida	(daí	“crítico”).
[	63	]	Esse	caminho	conduz	a	uma	reflexão	crítica	sobre	os	produtos	de	nossa
investigação	da	“realidade”,	de	modo	que	nossas	afirmações	sobre	a	“realidade”
reconhecem	seu	aspecto	provisório.	Em	outras	palavras,	o	conhecimento,
embora,	a	princípio,	esteja	concentrado	em	realidades	independentes	do
conhecedor,	nunca	é,	ele	próprio,	independente	do	conhecedor.	[	64	]
Podemos,	então,	tentar	um	esboço	preliminar	da	forma	do	conhecimento,
segundo	o	modelo	do	realismo	crítico,	da	seguinte	maneira:
Observador -------------------------------------------------	→
•	observação	inicial
←---------------------------------------------------------------------------------------
•	é	desafiada	pela	reflexão	crítica
-------------------------------------------------	→
•	mas	pode	sobreviver	ao	desafio	e	falar	verdadeiramente	acerca	da	realidade
O	segundo	e	o	terceiro	desses	estágios	demandam,	claramente,	mais	discussões.
A	consciência	crítica	revela	pelo	menos	três	coisas	sobre	o	processo	de
conhecimento,	desafiando	um	realismo	ingênuo	ou	um	positivismo	popular.
Primeiro:	o	observador	olha	de	um	único	ponto	de	vista,	apenas	um;	não	existe
um	tipo	de	visão	divino-panorâmica	(ou	seja,	uma	visão	divino-panorâmica
deísta	de	deus)	disponível	aos	seres	humanos	—	em	outras	palavras,	um	ponto
de	vista	que	não	seja	humano.	[	65	]	Segundo:	como	resultado	dessa	percepção
limitada,	todo	ser	humano	interpreta,	de	modo	inevitável	e	natural,	informações
recebidas	por	seus	sentidos	por	meio	de	um	filtro	de	expectativas,	memórias,
histórias,	estados	psicológicos	etc.	O	ponto	de	vista	não	é	apenas	peculiar	em
termos	de	localização	(estou	de	pé	destelado	do	cômodo,	e	não	daquele	outro;
então,	meu	ponto	de	vista	é	diferente	do	seu);	também	é	peculiar	no	que	diz
respeito	às	lentes	da	minha	visão	de	mundo	(como	vários	escritores	já
demonstraram,	um	ponto	de	vista	tácito	e	pré-teórico	é	requisito	necessário	para
que	ocorram	percepção	e	conhecimento).	[	66	]	Terceiro	—	e	mais	importante:
onde	estou	e	as	lentes	(metafóricas)	por	intermédio	das	quais	enxergo	são	fatores
intimamente	relacionados	às	comunidades	a	que	pertenço.	Algumas	coisas	que
vejo	de	maneira	particular,	eu	as	vejo	por	pertencer	a	uma	comunidade	humana
específica,	a	uma	rede	de	familiares	e	amigos;	outras,	por	pertencer	a	uma
profissão;	ainda	outras,	por	ser	um	músico	amador	etc.	Cada	comunidade
humana	partilha	e	aprecia	certas	suposições,	tradições,	expectativas,	ansiedades
etc.	que	encorajam	seus	membros	a	interpretar	a	realidade	de	forma	particular,
criando	contextos	em	que	certos	tipos	de	afirmação	são	percebidos	como	coisas
que	fazem	sentido.	Não	existe	observador	“neutro”	ou	“objetivo”;	de	modo
semelhante,	não	existe	observador	desapegado.	[	67	]
Todos	esses	fatores	significam	que	qualquer	“realismo”	capaz	de	sobreviver
deve	levar	em	conta	o	caráter	provisório	de	todas	as	suas	declarações.	Como
proceder,	então?
A	única	coisa	que	não	é	possível	neste	momento	é	reavivar	alguma	forma	de
positivismo,	ainda	que	em	um	quadro	teórico	reduzido.	Ou	seja:	neste	momento,
não	é	necessário	dizer	que,	feitas	as	concessões	já	descritas,	ainda	assim	há
coisas	que	podem	ser	ditas,	com	base	em	dados	sensoriais	empíricos,	sobre	o
mundo	externo	ao	observador.	Não;	em	vez	de	trabalhar	a	partir	das
particularidades	da	observação	ou	de	“dados	sensoriais”	para	a	formulação	de
afirmações	confiantes	sobre	a	realidade	externa,	o	realismo	crítico,	conforme	o
proponho,	vê	o	conhecimento	de	particularidades	ocorrendo	na	estrutura	mais
ampla	da	história	ou	da	visão	de	mundo;	e	ambos	compõem	o	modo	de	ser	do
observador	em	relação	ao	mundo.	(No	capítulo	5,	falarei	mais	detalhadamente
sobre	cosmovisões	e	a	forma	como	funcionam.)	Em	vez	de	trabalhar	como	se
estivesse	partindo	de	dados	empíricos	—	ainda	que	em	um	quadro	teórico
reduzido	e	cauteloso	—,	o	conhecimento	ocorre,	nesse	modelo,	quando	as
pessoas	encontram	coisas	que	se	encaixam	em	sua	história	particular	ou	(mais
provavelmente)	em	histórias	às	quais	estão	acostumadas	a	devotar	sua	lealdade.
Cabe-nos,	agora,	discutir	alguns	problemas	adicionais	oriundos	dessa
abordagem.
Estou	ciente	de	que,	isoladamente,	essa	afirmação	soará	intrigante.	Parece	que	o
conhecimento	é	apenas	um	fator	particular;	nesse	caso,	os	fenomenalistas	e
subjetivistas	venceram.	Tudo	o	que	sei	é	o	que	acontece	em	minha	própria
história.	Para	mostrar	por	que	essa	redução	é	injustificada,	precisamos	examinar
a	questão	da	verificação.	O	que	conta	como	“verificar”	que	é	reivindicado	como
conhecimento?	[	68	]
Relatos	comuns	do	método	“científico”	se	concentram	(por	motivos	legítimos,
em	minha	opinião)	em	hipóteses	e	verificação/falsificação.	Formulamos	uma
hipótese	sobre	o	que	é	verdadeiro	e,	em	seguida,	passamos	a	verificá-la	ou
falsificá-la,	por	meio	da	experimentação.	Mas	como	chegamos	às	hipóteses,	e	o
que	conta	como	verificação	ou	falsificação?	Segundo	o	modelo	positivista,	as
hipóteses	são	construídas	a	partir	de	dados	sensoriais	recebidos	e,	em	seguida,
saem	à	procura	de	mais	evidências	sensoriais	que	confirmarão,	modificarão	ou
destruirão	a	hipótese	formulada.	Sugiro	que	esse	processo	é	enganoso.
Utilizando-se	apenas	de	dados	sensoriais,	é	bastante	improvável	que	alguém
construa	uma	boa	hipótese	de	trabalho;	de	fato,	nenhum	pensador	sério,	de
qualquer	área,	acredita	nisso.	Precisamos	de	uma	tela	maior	sobre	a	qual
desenhar,	um	conjunto	maior	de	histórias	sobre	coisas	que	provavelmente
acontecem	no	mundo.	Sempre	deve	haver	um	salto	feito	pela	imaginação
amigavelmente	sintonizada	com	o	objeto	analisado,	desde,	em	tese,	a	observação
aleatória	dos	fenômenos	até	a	hipótese	de	um	padrão.	De	forma	semelhante,	a
verificação	ocorre	não	apenas	pela	observação	de	dados	sensoriais	aleatórios
(para	ver	se	eles	se	encaixam	na	hipótese),	mas	também	pela	criação	de	meios	—
precisamente	com	base	em	narrativas	mais	amplas	(incluindo	a	própria	hipótese)
—	pelos	quais	fazemos	perguntas	específicas	sobre	determinados	aspectos	da
hipótese.	Mas	isso	nos	conduz	à	seguinte	questão:	de	que	maneira	essas
narrativas	mais	amplas	e	os	dados	específicos	se	“encaixam”?	A	fim	de
examinarmos	essa	questão,	precisamos	observar	mais	de	perto	as	narrativas	em
si.
HISTÓRIAS,	COSMOVISÕES	E	CONHECIMENTO
As	histórias	constituem	um	dos	elementos	mais	fundamentais	da	vida	humana.	[
69	]	Não	praticamos	atos	aleatórios	para,	só	então,	tentar	compreendê-los;	se
alguém	faz	isso,	dizemos	que	essa	pessoa	está	bêbada	ou	louca.	Segundo
argumenta	MacIntyre,	diálogos	em	particular	e	ações	humanas	em	geral	são
“narrativas	encenadas”.	Ou	seja,	a	narrativa	geral	forma	a	categoria	mais	básica,
enquanto	o	momento	e	o	indivíduo	particulares	só	podem	ser	entendidos	nesse
contexto:	[	70	]
A	história	não	é	uma	sequência	de	ações;	antes,	o	conceito	de	uma	ação
corresponde	a	um	momento	em	uma	história	factual	ou	fictícia,	extraído	dessa
história	com	algum	propósito	específico.	Da	mesma	forma,	personagens	em	uma
história	não	são	um	conjunto	de	pessoas.	Pelo	contrário:	o	conceito	de	“pessoa”
corresponde	a	um	personagem	extraído	de	uma	história.	[	71	]
A	vida	humana,	então,	pode	ser	vista	como	fundamentada	e	constituída	pelas
histórias	implícitas	ou	explícitas	que	os	seres	humanos	contam	a	si	mesmos	e
uns	aos	outros.	Isso	contraria	a	crença	popular	de	que	as	histórias	existem	para
“ilustrar”	um	ponto	ou	outro	que,	em	tese,	pode	ser	declarado	sem	recorrermos	à
narrativa	como	veículo	inadequado	de	comunicação.	Normalmente,	as	histórias
são	consideradas	pobres	substitutas	de	uma	“coisa	real”,	algo	capaz	de	ser
encontrado	em	alguma	verdade	abstrata	ou	em	declarações	sobre	“fatos
simples”.	Uma	alternativa	igualmente	insatisfatória	é	considerar	a	história	uma
vitrine	para	um	dizer	retórico	ou	um	conjunto	de	dizeres.	As	narrativas	são	um
constituinte	básico	da	vida	humana;	elas	são,	de	fato,	um	elemento-chave	na
construção	plena	de	uma	cosmovisão.	Argumentarei,	no	capítulo	5,	que	todas	as
visões	de	mundo	contêm	um	elemento	narrativo	irredutível	—	um	elemento	que
permanece	ao	lado	de	outros	relacionados	a	essa	visão	de	mundo	(símbolos,
práticas,	perguntas	e	respostas	básicas)	e	que	não	podem	ser	“simplificados”
ainda	mais.	Portanto,	as	visões	de	mundo,	o	prisma	através	do	qual	os	seres
humanos	percebem	a	realidade,	emergem	em	consciência	explícita	em	termos	de
crenças	e	objetivos	humanos,	os	quais	funcionam,	em	tese,	como	expressões
controversas	de	visões	de	mundo.	As	histórias	que	caracterizam	a	própria	visão
de	mundo	estão	localizadas,	no	mapa	do	conhecimento	humano,	em	um	nível
mais	fundamental	do	que	as	crenças	explicitamente	formuladas,	incluindo	as
crenças	teológicas.
Entre	as	narrativas	que	incorporam,	de	forma	mais	óbvia,	as	cosmovisões,	estão
os	mitos	de	fundação,	contados	pelos	chamados	“povos	nativos	primitivos”
como	explicação	para	as	origens	do	mundo	em	geral	e	de	sua	raça	em	particular.
Antropólogos	e	outros,	ansiosos	por	descobrirem	vestígios	de	pontos	de	vista
primordiais,	agora	escondidos	de	olhares	aparentemente	mais	civilizados,
estudam	essas	histórias	como	os	meios	devidos	para	alcançar	esse	fim.	No
entanto,	se	procurarmos	análogos	modernos,	eles	não	se	encontram	assim	tão
longe	de	nós;	um	bom	exemplo	disso	é	a	narrativa	adotada	no	debate	político.
Histórias	de	como	a	situação	estava	durante	a	Grande	Depressão	são	usadas	para
alimentar	um	senso	de	simpatia	pela	classe	trabalhista	oprimida;	histórias	de
terrorismo	são	empregadas	para	justificar	os	atuais	regimes	de	direita.	Em	um
contexto	mais	restrito,	histórias	são	contadas	no	discurso	pessoal	e	doméstico,
não	apenas	para	fornecer	informações	sobre	eventos	pretéritos,	mas	também	para
incorporar	—	e,	portanto,	reforçar	ou	modificar	—	uma	visão	de	mundo
compartilhadadentro	de	uma	família,	de	um	escritório,	de	um	clube	ou	de	uma
universidade.	Assim,	as	histórias	fornecem	uma	estrutura	vital	segundo	a	qual
experimentamos	o	mundo.	Também	fornecem	o	meio	pelo	qual	as	visões	de
mundo	podem	ser	desafiadas.
O	fato	de	as	histórias	serem	a	característica	fundamental	das	cosmovisões
também	pode	ser	ilustrado	em	relação	à	cosmovisão	judaica	e	às	suas	mutações,
que	nunca	podem	ser	reduzidas	a	um	conjunto	de	máximas	ou	regras	de	conduta.
Mesmo	em	sua	forma	mais	proverbial	e	epigramática,	a	escrita	judaica	mantém	a
subestrutura	da	história	judaica	sobre	o	deus	da	aliança,	o	mundo	e	Israel.	Para	a
maioria	dos	judeus	do	primeiro	século,	as	histórias	certamente	eram	a	maneira
natural	e	até	mesmo	inevitável	pela	qual	sua	visão	de	mundo	encontraria
expressão,	fosse	narrando	os	feitos	poderosos	que	YHWH	realizou	em	favor	de
seu	povo,	fosse	na	criação	de	novas	histórias	como	forma	de	instigar	os	fiéis	da
época	a	perseverar	na	paciência	e	na	obediência,	fosse	ainda	na	antecipação
ansiosa	da	ação	poderosa	que	ainda	estava	por	vir,	ação	que	coroaria	todas	as
outras	ações	divinas	até	aquele	momento	e	levaria	Israel	a	uma	libertação
verdadeira	e	duradoura,	de	uma	vez	por	todas.	[	72	]
As	histórias,	sempre	populares	entre	as	crianças	e	aqueles	que	leem	por	puro
prazer,	têm-se	tornado	moda	ultimamente	entre	os	estudiosos,	principalmente	no
campo	de	estudos	bíblicos.	Na	última	geração,	vários	escritores	recorreram	ao
trabalho	de	analistas	de	contos	populares,	como	Vladimir	Propp,	para	ajudá-los	a
entender	a	estrutura	e	o	significado	de	diversos	trechos	bíblicos.	Em	vez	de
“traduzir”	a	narrativa	em	outra	coisa,	somos	agora	incentivados	a	lê-la	da	forma
como	é,	compreendendo-a	em	seus	próprios	termos.	[	73	]	Em	termos	literários	e
teológicos,	isso	me	parece	um	desenvolvimento	totalmente	admirável;	demanda,
sem	dúvida,	alguns	freios	e	contrapesos,	mas,	a	princípio,	é	algo	que	pode	ser
recebido	com	entusiasmo.
Esta	pesquisa,	além	disso,	examinou	como	as	histórias	funcionam	em	si	mesmas
e	em	relação	a	outras	histórias.	Em	termos	de	estrutura	interna,	as	histórias	são
compostas	de	enredos	e	personagens.	Recorrem	a	várias	técnicas	retóricas,
incluindo	modo	de	narração	(o	narrador	é	um	personagem	do	drama	ou	tem	uma
visão	privilegiada	de	todos	os	acontecimentos?),	ironia,	conflito,	diferentes
padrões	narrativos	(como	“enquadramento”)	etc.	As	histórias	terão,	por
conseguinte,	o	que	alguns	chamam	de	“leitor	ideal”	—	ou	seja,	as	narrativas
sugerem	e	atraem	um	tipo	específico	de	leitura.	Tudo	isso	tem	seu	próprio	efeito
sobre	a	forma	como	os	leitores	de	uma	história	veem	as	coisas.	Em	outras
palavras,	somos	convidados	a	fazer,	com	uma	história	complexa,	aquilo	que
(conforme	veremos	no	capítulo	seguinte)	fazemos	com	qualquer	crítica	literária:
estudar	o	efeito	criado	e	os	meios	pelos	quais	esse	efeito	é	criado.	A	intenção	do
autor	não	deve	ser	excluída	desse	processo,	embora,	com	frequência,	isso
aconteça.	Por	exemplo:	ao	lidarmos	com	textos	antigos,	devemos	lembrar	que	os
comentaristas	antigos	da	retórica	estavam	perfeitamente	cientes	dos	vários
efeitos	possíveis	das	narrativas;	por	isso,	devemos	considerar	a	possibilidade	de
os	evangelistas	estarem	cientes	dessas	ideias.	De	modo	semelhante,	contudo,	um
escritor	como	Marcos	pode	muito	bem	ter	produzido	esses	efeitos	da	mesma
forma	que	um	orador	“natural”	faria,	usando	uma	variedade	de	técnicas	sem
estar	ciente	delas.	[	74	]
Quando	examinamos	a	forma	como	as	histórias	funcionam	entre	si,	descobrimos
que	o	ser	humano	cria	narrativas	por	corresponderem	à	forma	como	percebemos
o	mundo	com	o	qual	nos	relacionamos.	O	que	vemos	de	perto,	em	uma
infinidade	de	pequenos	incidentes	—	tanto	isolados	como,	mais	provavelmente,
inter-relacionados	—,	compreendemos	ao	recorrer	a	formas	narrativas	mais	ou
menos	conhecidas,	inserindo,	então,	informações	nelas.	As	histórias,	com	seus
padrões	de	problemas	e	conflitos,	com	suas	tentativas	abortadas	de	resolução	e
resultados	finais,	tristes	ou	alegres,	são,	se	pudermos	inferir	da	prática	comum
do	mundo,	universalmente	percebidas	como	a	melhor	maneira	de	falarmos	de
como	o	mundo	realmente	é.	Boas	histórias	partem	do	pressuposto	de	que	o
mundo	é	um	lugar	de	conflitos	e	resoluções,	sejam	cômicas,	sejam	trágicas.	As
narrativas	selecionam	e	organizam	o	material	segundo	esses	princípios.
Ademais,	conforme	já	sugerimos,	as	histórias	podem	incorporar	ou	reforçar,	ou
até	mesmo	modificar,	as	visões	de	mundo	com	que	se	relacionam.	[	75	]
As	histórias	são,	na	verdade,	peculiarmente	boas	em	modificar	e	subverter	outras
histórias	e	visões	de	mundo.	Naquilo	em	que	um	ataque	frontal	certamente
falharia,	as	parábolas	escondem	a	sabedoria	da	serpente	por	trás	da	inocência	da
pomba,	obtendo	uma	espécie	de	abertura	e	favor	que	podem	ser	usados	para
mudar	suposições	que,	de	outra	forma,	o	ouvinte	manteria	escondidas,	por
segurança.	Natã	conta	a	Davi	uma	história	sobre	um	homem	rico,	um	homem
pobre	e	um	cordeirinho;	Davi	fica	furioso,	e	Natã	o	enlaça.	Mande	alguém	fazer
alguma	coisa,	e	você	afetará	sua	vida	—	por	um	dia;	conte	uma	história	a
alguém,	e	você	mudará	sua	vida.	As	histórias,	ao	surtirem	esse	efeito,	funcionam
como	metáforas	complexas.	A	metáfora	consiste	em	aproximar	dois	conjuntos	de
ideias	próximas	o	suficiente	para	produzir	uma	faísca	que,	se	lançada	ao	ar,
iluminará,	por	um	instante,	toda	a	área	ao	seu	redor,	mudando	as	percepções	ao
fazê-lo.	[	76	]	A	história	subversiva	aproxima-se	o	suficiente	da	história	já
acreditada	pelo	ouvinte	para	que	uma	faísca	salte	entre	ambas;	e,	daí	em	diante,
nada	mais	voltará	a	ser	igual.
Seria	possível	—	e,	em	tese,	até	mesmo	desejável	—	dar	continuidade	a	esse
insight	por	meio	de	várias	ramificações	adicionais.	Sociedades	são	entidades
complexas,	de	modo	que	as	visões	de	mundo	que	as	dominam	dão	origem	não
apenas	a	histórias	diretas,	mas	também	a	versões	fragmentadas	e	distorcidas
dessas	histórias,	na	proporção	em	que	diferentes	grupos	e	indivíduos	marcam,
em	um	cenário	mais	amplo,	seu	próprio	caminho.	Os	seres	humanos	vivem	em
mundos	sobrepostos	e,	como	indivíduos	ou	grupos,	podem	muito	bem	contar	a	si
mesmos	histórias	diferentes	e	sobrepostas,	mas	também	concorrentes.	Ademais,
as	histórias	narradas	explicitamente	por	grupos	ou	indivíduos	podem	ser
enganosas	—	quer	estejam	cientes	disso,	quer	não	—,	de	modo	a	exigir	uma
verificação	à	luz	da	prática	factual	e	de	um	universo	simbólico	mais	amplo.	O
que	alguém	habitualmente	faz,	bem	como	os	símbolos	em	torno	dos	quais
organiza	sua	vida,	servem,	no	mínimo,	como	indicadores	tão	confiáveis	para	sua
visão	de	mundo	quanto	as	histórias	que	“oficialmente”	contam.	[	77	]
O	resultado	de	tudo	isso	em	nosso	campo	específico	—	ou	seja,	o	Novo
Testamento	—	é	o	seguinte:	certo	grupo	de	judeus	do	primeiro	século,	que
guardava	e	desejava	honrar	uma	variante	específica	da	cosmovisão	judaica	da
época	(que	descreveremos	em	detalhes	na	Parte	III),	ansiava	por	dizer:	“A
esperança	que	caracteriza	nossa	cosmovisão	foi	cumprida	nesses
acontecimentos”.	E	escolheram	expressar	isso	da	maneira	mais	natural	(e,
obviamente,	judaica)	possível	—	ou	seja,	contando	uma	história	—,	a	fim	de
subverter	outras	formas	pelas	quais	a	sociedade	judaica	olhava	o	mundo.	Para
ser	mais	explícito:	os	judeus	do	primeiro	século,	como	todos	os	demais	povos,
percebiam	o	mundo	e	os	acontecimentos	ao	seu	redor	através	de	uma	“matriz”
de	interpretações	e	expectativas.	Sua	matriz	particular	consistia	na	crença	de	que
o	mundo	foi	criado	por	um	deus	bom,	sábio	e	onipotente,	que	escolheu	Israel
como	seu	povo	especial.	Os	judeus	criam	que	sua	história	nacional,	comunal	e
tradicional	lhes	dava	lentes	pelas	quais	podiam	perceber	os	acontecimentos	do
mundo,	lentes	pelas	quais	podiam	entendê-lo	e	adequar	a	própria	vida.
Contavam	histórias	que	personificavam,	exemplificavam	e	reforçavam	sua	visão
de	mundo	—	e,	ao	fazê-lo,	lançavam	um	desafio	particularmente	subversivo	às
visões	de	mundo	alternativas.	Aqueles	que	desejavam	encorajar	seus
companheiros	judeus	a	pensar	de	forma	diferente	contavamas	mesmas	histórias,
mas	com	reviravoltas	e	elementos	distintos.	Os	essênios	contavam	uma	história
sobre	o	começo	secreto	da	nova	aliança;	Josefo,	uma	história	sobre	o	deus	de
Israel	alcançando	os	romanos;	Jesus,	uma	história	sobre	lavradores	cuja
infidelidade	causaria	a	morte	do	filho	do	proprietário	e	sua	própria	expulsão;	os
primeiros	cristãos,	histórias	sobre	o	reino	de	deus	e	sua	inauguração	por	meio	de
Jesus.	Contudo,	eis	uma	coisa	que	nunca	faziam:	eles	nunca	expressavam	uma
visão	de	mundo	na	qual	o	deus	em	questão	não	estivesse	interessado	ou
envolvido	com	o	mundo	criado	em	geral,	nem	com	o	destino	de	seu	povo,	em
particular.	Mais	adiante,	retornaremos	a	esse	tema.
O	motivo	pelo	qual	as	histórias	entram	em	conflito	entre	si	é	que	as	visões	de
mundo	e	as	histórias	que	as	caracterizam	são,	em	tese,	normativas	—	ou	seja,
afirmam	dar	sentido	a	toda	a	realidade.	Até	mesmo	o	relativista	—	cuja	crença	é
que	o	ponto	de	vista	de	todos	é	igualmente	válido	em	relação	a	todos	os
assuntos,	embora	os	pontos	de	vista	sejam	aparentemente	incompatíveis	—	é
obediente	a	uma	história	subjacente	acerca	de	toda	a	realidade.	Segundo	ele,	a
realidade	é,	em	última	análise,	composta	por	uma	rede	perfeitamente	interligada,
aberta,	em	tese,	à	experiência,	à	observação	e	à	discussão.	É	irônico	que	muitas
pessoas	no	mundo	moderno	tenham	o	cristianismo	como	uma	visão	de	mundo
particular,	um	conjunto	de	histórias	particulares.	Alguns	cristãos	realmente
caíram	nessa	armadilha.	Em	tese,	porém,	a	questão	toda	do	cristianismo	é	que
ele	oferece	uma	narrativa	correspondente	à	história	do	mundo	inteiro.	Trata-se	de
uma	verdade	pública;	do	contrário,	desmorona	em	alguma	versão	do
gnosticismo.	[	78	]
Podemos,	assim,	traçar	uma	espécie	de	escala	móvel	para	mostrar	o	que	acontece
quando	as	histórias	contadas	por	determinado	grupo	como	explicação	do	mundo
entram	em	contato	com	as	histórias	de	outros	grupos.	Em	uma	extremidade,
temos	o	fenômeno	da	confirmação	direta:	a	história	implícita	por	um	“objeto”,
por	uma	ação	ou	um	acontecimento	que	se	encaixa,	sem	problema	algum,	em
minha	visão	de	mundo.	Na	outra	extremidade,	está	o	confronto	direto:	para	dar
sentido	às	histórias	que	se	desenrolam	à	minha	frente,	tenho	de	abandonar	minha
narrativa	dominante	e	encontrar	uma	nova	—	o	que	acontece	não	por	minha
construção	a	partir	de	evidências	extraídas	de	dados	sensoriais	diretos,	mas
escutando	a	narrativa	de	outra	comunidade	que,	aparentemente,	dá	sentido	a	esse
(até	então	incompreensível)	acontecimento.	[	79	]	A	única	maneira	de	resolver	o
conflito	entre	as	duas	histórias	é	contar	outra	história,	explicando	como	a
evidência	para	a	narrativa	desafiadora	é,	na	verdade,	enganosa.	Trata-se	de	uma
postura	bastante	comum	na	ciência	(o	experimento	não	“funcionou”;	portanto,
alguma	variável	inesperada	deve	ter-se	infiltrado	nos	procedimentos),	na	história
(os	textos	não	se	encaixam	nos	fatos;	portanto,	alguém	os	distorceu)	e	em	outras
áreas.	Além	disso,	entre	esses	dois	extremos	de	confirmação	e	confronto,
acontecimentos	e	“objetos”	podem	modificar	ou	subverter	a	narrativa	ou	as
narrativas	pelas	quais	começamos;	desse	modo,	como	sempre,	a	prova	do	pudim
está	em	comê-lo.	Não	existe	algo	como	prova	“neutra”	ou	“objetiva”;	apenas	a
afirmação	de	que	a	história	que	agora	contamos	a	respeito	do	mundo	como	um
todo	faz	mais	sentido,	em	seu	contorno	e	em	seus	detalhes,	do	que	outras
histórias	disponíveis,	reais	ou	potenciais.	Simplicidade	de	esboço,	elegância	no
manuseio	dos	detalhes,	inclusão	de	todas	as	partes	da	história	e	capacidade	de
fazer	sentido	da	forma	mais	ampla	possível:	são	esses	os	fatores	que	contam.	[
80	]
Retornamos,	então,	a	algo	como	uma	noção	de	hipótese	e	verificação.	Em	geral,
uma	hipótese	(em	qualquer	área)	é	tida	como	“verificada”	se	incluir	dados
relevantes,	apresentar	alguma	simplicidade	e	mostrar-se	frutífera	em	áreas	além
de	sua	preocupação	imediata.	O	que	fizemos,	porém,	foi	preencher	lacunas	no
relato	do	que	uma	hipótese	realmente	é	e	do	que	conta	como	verificação.	Um
relato	completo,	ao	que	parece,	deve	incluir	os	seguintes	elementos:
questionamento,	hipótese	e	teste	de	hipótese.	[	81	]
Existe,	em	primeiro	lugar,	a	pergunta	para	a	qual	a	hipótese	é,	como	resposta,
formulada.	A	pergunta	não	surge	“do	nada”;	antes,	tem	origem	precisamente	nas
histórias	que	certos	seres	humanos	contam	uns	aos	outros,	em	todos	os	níveis.
Alguém	faz	perguntas	porque	sua	narrativa	atual	é,	de	alguma	forma,	enigmática
ou	incompleta.	Dirijo,	por	exemplo,	ao	longo	da	estrada,	pensando	em	uma	série
de	coisas,	mas	tendo	como	certa	uma	história	subjacente	sobre	carros,	direções	e
estradas.	Então,	o	carro	começa	a	tremer.	Imediatamente,	passo	a	contar	a	mim
mesmo	diversas	histórias	capazes	de	explicar	esse	fenômeno.	Talvez	a	prefeitura
esteja	trabalhando	nesse	trecho	da	estrada,	de	modo	que	ainda	não	está
devidamente	asfaltado;	talvez	o	pneu	do	carro	tenha	furado;	talvez	haja	algo	de
errado	com	a	suspensão.	Essas	hipóteses	se	apresentam	para	mim	como
potenciais	elos	perdidos	de	narrativas	mais	amplas:	quando	inseridas	de	forma
adequada,	transformam	minhas	histórias	habituais	em	possíveis	histórias
explicativas.	É	difícil	descrever	de	onde	elas	vêm,	embora	sua	origem	não	seja
irrelevante:	parecem	surgir	por	meio	de	um	processo	de	intuição.	Em	seguida
(retornando	ao	exemplo),	o	veículo	atrás	de	mim	pisca	as	luzes	e	o	motorista
aponta	para	uma	das	rodas	do	meu	carro.	Imediatamente,	a	segunda
história/hipótese	vem	à	tona.	Eu	paro	e	examino	o	pneu,	que	parece	mesmo
encontrar-se	em	estado	lamentável.	Dois	outros	dados	—	a	saber,	a	ação	do	outro
motorista	e	minha	visão	do	pneu	—	convencem-me	de	que	a	segunda	história
corresponde	à	realidade.	Uma	das	histórias	que	contei	a	mim	mesmo	emergiu
como	a	melhor	explicação.	Naturalmente,	a	estrada	e	a	suspensão	podem
apresentar	problemas;	mas	a	explicação	mais	simples	é	esta:	o	estremecimento
que	senti	enquanto	dirigia	foi	causado	pelo	pneu	furado.	Em	cada	fase	do
processo,	o	essencial	pode	ser	mais	bem-descrito	em	termos	de	história:	a
história	que	dá	origem	ao	questionamento,	as	novas	histórias	que	se	oferecem
como	explicação	e	a	narrativa	bem-sucedida	de	uma	das	histórias,	a	qual	inclui
todos	os	dados	relevantes,	utilizando-se	de	um	quadro	teórico	simples	e
contribuindo	para	a	melhor	compreensão	de	outras	histórias	(“sempre	desconfiei
da	loja	em	que	comprei	esses	pneus”).	Essa	descrição	de	um	processo	bastante
simples	de	conhecimento	demonstra	o	que	está	envolvido	no	modelo	de
“hipótese	e	verificação”,	tornando-o	mais	palpável.	Buscarei	desenvolvê-lo	mais
completamente	no	capítulo	5,	ao	tratar	da	natureza	das	visões	de	mundo	e	do
lugar	que	as	narrativas	ocupam	dentro	delas,	o	que	será	de	extrema	importância
na	discussão	da	história	em	particular	(cap.	4),	em	que	discutiremos	também
alguns	dos	problemas	mais	relacionados	ao	processo	de	“verificação”.
Quando,	portanto,	percebemos	a	realidade	externa,	fazemos	isso	com	base	em
um	quadro	teórico	preexistente.	Em	essência,	tal	quadro	teórico	consiste	em	uma
visão	de	mundo;	e	as	visões	de	mundo,	segundo	enfatizamos,	caracterizam-se,
entre	outras	coisas,	por	certos	tipos	de	história.	As	tradições	positivista	e
tradicionalista	erram	ao	imaginar	que	a	percepção	antecede	a	compreensão	de
realidades	mais	amplas.	Pelo	contrário:	percepções	sensoriais	detalhadas	não
ocorrem	apenas	no	âmbito	de	histórias,	porém	são	verificadas	nelas	(se	é	isso
mesmo	que	acontece).	O	crucial	é	perceber	que	aquilo	que	a	tradição	positivista
veria	como	“fatos”	já	vem	com	teorias	anexadas;	e	teorias	são	precisamente
histórias	contadas	como	o	quadro	teórico	para	incluir	“fatos”.	O	que	é	verdade
sobre	“fatos”	também	é	verdade	sobre	“objetos”:	“objetos”	também	carregam
histórias	sobre	eles.	A	palavra	“xícara”	não	denota	apenas	um	objeto	de	certas
propriedades	físicas;	tampouco,	quando	eu	olho	para	uma	xícara,	ou	a	manuseio,
simplesmente	“vejo”	ou	“sinto”	essas	propriedades	físicas.	A	palavra,	como	o
próprio	objeto,	diz	respeito	ao	conjunto	de	histórias	implícitas	em	que	a	xícara
pode	figurar,sejam	elas	relativas	a	uma	aula	de	cerâmica,	uma	tradição	familiar,
um	chá	ou	a	pedir	açúcar	emprestado	a	um	vizinho.	Em	outras	palavras,	só
sabemos	o	que	são	os	objetos	quando	os	vemos,	ao	menos	implicitamente,	no
âmbito	de	acontecimentos.	E	acontecimentos,	por	sua	vez,	dizem	respeito	(em
princípio)	a	ações	inteligíveis.	Como	resultado,	em	vez	do	diálogo	ou	da
conversa	que	examinamos	anteriormente	—	entre	“observador”	e	“objeto”	do
modo	como	concebidos	na	tradição	empirista,	seja	em	sua	forma	otimista,	seja
em	sua	forma	pessimista	—,	temos	um	diálogo	ou	uma	conversa	entre	seres
humanos	(não	apenas	plataformas	meramente	neutras	e	isoladas)	e
acontecimentos	(não	apenas	objetos	isolados,	sem	sentido).	Desse	modo,	em
ambos	os	lados	desse	diálogo,	temos	histórias:	histórias	que	os	seres	humanos
contam	implicitamente	sobre	o	mundo,	histórias	sugeridas	por	acontecimentos	e,
em	seu	âmbito,	pelos	“objetos”	que	formam	suas	partes	componentes.	[	82	]
Podemos,	então,	elaborar	uma	versão	modificada	do	diagrama	anterior	da
epistemologia	crítico-realista,	levando	em	consideração	os	novos	detalhes	agora
introduzidos:
Ser	humano	contador	de	histórias-----------→	mundo	carregado	de	histórias
a	observação	inicial	(já	no	âmbito	de	uma	história)
←----------------------------------------------------------------------------------------→
é	desafiada	pela	reflexão	crítica	sobre	nós	mesmos	como	contadores	de	histórias,	ou	seja,	reconhecendo	que	nossa	reivindicação	sobre	a	realidade	pode	estar	errada
----------------------------------------------------------------------------------------→
podendo,	porém,	por	narrativas	adicionais,	encontrar	formas	alternativas	de	falar	verdadeiramente	sobre	o	mundo,	empregando	histórias	novas	ou	modificadas
Tal	abordagem,	penso,	guarda	várias	semelhanças	com	a	“hermenêutica	da
suspeita	e	da	recuperação”,	defendida	por	Paul	Ricoeur,	embora	discuti-la	aqui
possa	desviar-nos	para	muito	longe.	[	83	]	Ela	sugere	que,	naquilo	em	que	o
mundo	ocidental	tende	a	dividir	como	conhecimento	“objetivo”	e	conhecimento
“subjetivo”,	uma	maneira	menos	enganosa	de	falar	seria	em	termos	de
conhecimento	“público”	ou	“particular”.	O	caráter	público	de	determinados	tipos
de	conhecimento	não	é	ameaçado	pelo	fato	de	algumas	pessoas	o	formularem.
Pelo	contrário,	é	aumentado.
CONCLUSÃO
A	distinção	aparentemente	clara	entre	“objetivo”	e	“subjetivo”	deve	ser
abandonada	como	inútil.	Se	alguém,	ao	ler	essa	frase,	concluir	imediatamente
que	“não	existe	algo	como	conhecimento	objetivo”,	isso	apenas	mostrará	quão
profundamente	enraizada	a	tradição	positivista	se	tornou	em	nossa	cultura,
exatamente	quando	seus	perpetradores	admitiram,	por	fim,	que	ela	está	errada.	O
essencial,	conforme	argumentei,	é	uma	epistemologia	mais	equilibrada;	e,	sujeito
aos	limites	deste	livro	e	às	limitações	da	minha	experiência,	foi	o	que	tentei
oferecer.	Contudo,	partindo,	por	um	instante,	de	uma	visão	de	mundo	cristã	—	a
ser	discutida	em	mais	detalhes	em	outra	ocasião	—,	podemos	ao	menos	dizer	o
seguinte:	o	conhecimento	diz	respeito	às	inter-relações	entre	seres	humanos	e	o
mundo	criado.	Essa	ideia	conduz	o	conhecimento	à	esfera	da	crença	bíblica,
segundo	a	qual	o	ser	humano	é	feito	à	imagem	do	criador	e,	como	consequência,
é	incumbido	da	tarefa	de	exercer	uma	administração	sábia	na	ordem	criada.	A
humanidade	não	é	nem	observadora	isolada,	nem	predadora	da	criação.	Sob	essa
perspectiva,	o	conhecimento	pode	ser	uma	forma	de	administração;	pode	ser,	em
face	do	presente	estado	do	mundo,	uma	forma	de	administração	redentora;	pode
ser,	em	certo	sentido,	uma	forma	de	amor.	(Se	mal	empregado,	pode	tornar-se,
obviamente,	o	oposto	de	todas	essas	coisas:	o	conhecimento	pode	ser	visto	como
um	dom	projetado	para	ser	usado	na	administração.)	“Conhecer”	é	relacionar-se
com	o	“conhecido”.	Em	outras	palavras,	o	“conhecedor”	deve	estar	aberto	à
possibilidade	de	o	“conhecido”	ser	diferente	do	que	era	esperado	ou	até	mesmo
desejado,	e	deve	estar	preparado	para	responder	da	maneira	adequada,	e	não
apenas	observar	a	distância.
Desse	modo,	o	realismo	crítico	aqui	oferecido	corresponde	essencialmente	a
uma	epistemologia	relacional	em	oposição	a	uma	epistemologia	isolada,
desapegada.	As	histórias	por	meio	das	quais	se	chega	ao	relato	(potencialmente)
verdadeiro	da	realidade	são,	irredutivelmente,	histórias	sobre	a	inter-relação	de
seres	humanos	com	o	restante	da	realidade	(incluindo,	naturalmente,	outros	seres
humanos).	Ademais,	as	próprias	histórias	cruciais	são,	evidentemente,	um
elemento	vital	no	relacionamento	entre	aqueles	que	partilham	de	uma	mesma
visão	de	mundo	(que	contam	histórias	uns	aos	outros	para	confirmar	e	ajustar
sua	visão	de	mundo)	e	entre	os	detentores	de	diferentes	visões	de	mundo	(que
contam	histórias	destinadas	a	subverter	as	posições	uns	dos	outros).	Esse	modelo
abre	espaço	para	a	realidade	do	conhecimento	além	dos	próprios	dados
sensoriais	(aquilo	que	o	“objetivista”	deseja	salvaguardar)	e,	ao	mesmo	tempo,
abre	espaço	para	o	desenvolvimento	do	conhecedor	no	ato	de	conhecer	(aquilo
em	que	o	“subjetivista”	corretamente	insistirá).	Tal	modelo,	acredito,	tem	muito
a	oferecer.	E	pode	servir	como	uma	espécie	de	fio	de	Ariadne	para	nos	guiar
pelos	labirintos	do	estudo	do	Novo	Testamento.
Essa	teoria	crítico-realista	do	conhecimento	e	da	verificação,	então,	reconhece	a
natureza	essencialmente	“histórica”	do	conhecimento,	do	pensamento	e	da	vida
humana,	encaixando-se	no	modelo	mais	amplo	das	cosmovisões	e	de	suas	partes
componentes.	Reconhece	que	todo	conhecimento	de	realidades	externas	a	si
ocorre	no	quadro	teórico	de	uma	visão	de	mundo	da	qual	as	histórias	são	parte
essencial;	e	estabelece	como	hipóteses	várias	histórias	sobre	o	mundo	em	geral
ou	partes	dele	em	particular,	testando-as	ao	ver	que	tipo	de	“encaixe”	elas	têm
com	as	histórias	já	existentes.	Se	alguém	perguntar	quais	argumentos
indisputáveis	posso	produzir	para	mostrar	que	essa	teoria	do	conhecimento
humano	é	de	fato	verdadeira,	obviamente	seria	contraditório	responder	em
termos	essencialmente	empiristas.	O	único	argumento	apropriado	é	aquele
simples,	já	apresentado,	sobre	“comer	o	pudim”.	De	fato,	propor	uma	nova
epistemologia	é	intrinsecamente	difícil,	justamente	pela	dificuldade	causada	pelo
próprio	empirismo.	É	impossível	encontrar	uma	base	sólida	(“objetiva”)	na	qual
firmar-se:	isso	não	existe.	Todas	as	epistemologias	devem	ser,	elas	mesmas,
defendidas	como	hipóteses:	elas	são	testadas	não	por	sua	coerência	com	um
ponto	fixo	previamente	acordado,	mas,	sim	(como,	de	fato,	outras	hipóteses),	por
sua	simplicidade	e	capacidade	de	dar	sentido	a	um	amplo	escopo	de	experiências
e	acontecimentos.	Contei	uma	história	sobre	como	os	seres	humanos	conhecem
as	coisas.	Agora,	devemos	exemplificar	e,	espero,	verificar	adequadamente	essa
história,	vendo	maneiras	pelas	quais	ela	pode	dar	sentido	à	forma	como	o	ser
humano	conhece	certas	coisas	específicas	—	a	saber,	literatura,	história	e
teologia.
CAPÍTULO	3
LITERATURA,	HISTÓRIAS	E	ARTICULAÇÃO	DE	COSMOVISÕES
INTRODUÇÃO
O	estudo	do	cristianismo	primitivo	de	Jesus	e	de	Paulo	—	especialmente	o	da
teologia	de	todo	o	movimento	e	dos	indivíduos	que	dele	participaram	—	é
conduzido	por	meio	do	estudo	da	literatura.	(As	únicas	exceções	a	essa	regra	são
achados	arqueológicos	esporádicos,	como	moedas	e	inscrições.)	Devemos,
assim,	indagar,	pelo	menos	em	termos	gerais,	acerca	da	função	da	literatura,	e
qual	é	a	melhor	forma	de	tratá-la.	A	pergunta	“Como	devemos	abordar	o	Novo
Testamento?”	é	um	caso	mais	específico	de	um	questionamento	mais	amplo	a	ser
feito	a	respeito	de	qualquer	livro.	Somos	particularmente	compelidos	a	esse
questionamento	no	século	21.	A	maré	da	teoria	literária	finalmente	atingiu	o
ponto	na	praia	onde	os	teólogos	têm	brincado	e,	após	encher	com	água	o
pequeno	fosso	em	torno	de	seus	castelos	de	areia,	agora	ameaça	forçá-los	a
recuar,	a	não	ser	que	cavem	mais	fundo	e	construam	um	castelo	mais	resistente.
Problemas	atuais	relativos	à	literatura	têm	estreita	afinidade	com	aqueles	que	já
examinamos.	[	84	]	Deparamos,	maisuma	vez,	com	problemas	acerca	do
conhecimento,	embora	correspondam	a	questões	altamente	especializadas.	Em
primeiro	lugar,	precisamos	discutir	a	questão	da	leitura	em	si:	o	que	acontece
quando	o	leitor	depara	com	o	texto?	Em	seguida,	precisamos	indagar	sobre	a
natureza	da	própria	literatura.	Depois,	à	luz	das	perguntas	anteriores,	devemos
questionar	o	papel	da	crítica	na	literatura	e,	visto	que	esses	questionamentos	nos
levarão	mais	uma	vez	à	questão	da	Narrativa,	devemos,	então,	averiguar,	com
mais	detalhes,	a	forma	como	as	histórias/narrativas	funcionam.	Finalmente,
devemos	aplicar	tudo	isso	de	modo	mais	específico	ao	Novo	Testamento.	[	85	]
Podemos	começar,	porém,	com	alguns	exemplos	que	nos	ajudarão	ao	longo	da
caminhada.
“Tem	alguém	aí?”,	pergunta	o	Viajante,
Ao	bater	à	porta	pelo	luar	iluminada;
Seu	cavalo,	no	silêncio,	roçando	a	grama
Da	forragem	fértil	da	floresta.
Um	pássaro	sobrevoa	a	torre,
Acima	da	cabeça	do	Viajante
“Tem	alguém	aí?”	Mas	nenhum	som	se	ouve!
Ao	bater	uma	segunda	vez,	relutante.
Mas	ninguém	desce	ao	Viajante;
Nem	se	inclina	pela	janela.
Para	ver	seu	rosto	cansado
Enquanto	ele,	perplexo,	espera.
Somente	fantasmas	o	escutam
De	dentro	daquele	lugar,
Na	hora	em	que	uma	voz	humana
Ecoa	à	luz	do	luar.
Em	um	cômodo	escuro,	lá	estavam
Outros,	assentados	na	escada
Percebendo	o	ar	se	agitando
Enquanto	o	Viajante	clamava.
Mas	no	coração	o	Viajante
Sentiu	uma	estranheza	afetá-lo:
Aquele	silêncio	o	escutava?
Sim.	Atendia	ao	seu	chamado.
Então	ele,	batendo	à	porta,
Bradou,	erguendo	a	cabeça:
“Chamei,	mas	ninguém	respondeu.
Ainda	assim,	mantive	minha	promessa”.
Por	mais	que	um	ruído	irrompesse
Por	sombras	escuras	da	casa
Nenhum	som	fizeram	os	ouvintes
À	voz	que	o	Viajante	alçava.
Seus	pés	no	estribo	ouviram,
O	som	de	um	ferro	na	pedra,
E	como	o	silêncio	surgia	suave
Lá	se	ia	o	único	Vivo.	[	86	]
Como	devemos	abordar	esse	poema?	Podemos	nos	concentrar	nele,	se
quisermos,	em	termos	de	arte	literária,	como,	por	exemplo,	o	uso	da	aliteração.	A
sensação	tranquila	e	suave	da	floresta	é	transmitida	pela	sequência	dos	sons	de
“f”	na	quarta	linha;	[	87	]*	o	retorno	ao	silêncio,	como	o	de	um	lago	perturbado
que	recupera	a	quietude,	pelos	sons	de	“s”	na	penúltima	linha.	[	88	]*
Observamos	o	efeito	e	explicamos	o	método.	Mas	existem	efeitos	mais	amplos,
que	merecem	ser	ponderados.	O	título	do	poema	é:	“Os	Ouvintes”,	um	nome	que
talvez	nós	mesmos	não	escolhêssemos	(“O	Cavaleiro	Solitário”?	“O	Cavaleiro
do	Luar”?).	O	título	direciona	nossa	atenção	a	determinado	ponto,	mesmo
quando	a	introdução	do	poema	nos	transpõe	para	outro	lugar.	Convida	o	leitor	a
refletir:	quem	são	esses	ouvintes	fantasmas?	O	que	estão	fazendo?	Quem	fez	o
cavaleiro	prometer	voltar,	e	onde	ele	se	encontra	agora?	A	tensão	entre	título	e
poema,	apenas	parcialmente	resolvida	pelo	fato	de	os	ouvintes	se	tornarem	o
assunto	da	segunda	metade,	combina-se	com	todas	as	alusões	inexplicáveis
(“Ainda	assim,	mantive	minha	promessa”)	para	criar	o	efeito	de	um	grande	e
solene	mistério	do	qual	somos	apenas	parcialmente	sabedores,	mas	não
totalmente.	Percebemos,	de	fato,	que	testemunhamos	o	auge	de	um	drama	muito
mais	longo	e	complexo,	emaranhado,	implícito	e	cheio	de	significados.	Sentimo-
nos,	na	realidade,	irresistivelmente	atraídos	para	um	mundo	narrativo,	para	uma
história	que,	como	o	“conto”	moderno,	convida-nos	a	compartilhar	seu	mundo,
não	tanto	pelas	coisas	que	diz,	mas	também	pelo	que	não	diz.	O	efeito	do	poema
é	mais	do	que	a	soma	total	das	rimas,	da	assonância,	do	cenário	evocativo.	Todos
esses	elementos	se	enquadram	no	—	e,	obviamente,	como	o	poema	é	bom,
acentuam	o	—	efeito	mais	amplo	da	história/narrativa	[	89	]	em	si.	(Algo
semelhante,	sugiro,	é	verdadeiro	acerca	dos	evangelhos.)	Ao	longo	dessas
discussões,	deparamos	com	perguntas	como:	quão	aberto	está	o	poema	a	novas
formas	de	leitura?	O	que	podemos	considerar	uma	leitura	“correta”,	e	quão
importante	é	alcançar	uma	leitura	dessa	natureza?	[	90	]
Vejamos	um	segundo	exemplo.	Em	Doutor	Fausto,	célebre	e	alarmante	romance
de	Thomas	Mann,	somos	apresentados	a	Adrian	Leverkühn,	um	brilhante
compositor	que	inventou	um	método	inteiramente	novo	de	escrever	música.	[	91
]	Mann	alude	quase	imediatamente	ao	pacto	faustiano	do	compositor	com	o
Diabo	e,	então,	finge,	na	pessoa	do	narrador,	estar	aborrecido	consigo	mesmo
por	haver	deixado	escapar	tão	rápido	um	tema	tão	importante.	No	entanto,	o
verdadeiro	tema	principal	permanece	oculto,	sendo	revelado	apenas
implicitamente,	à	medida	que	o	romance	vai	se	aproximando	de	seu	estupendo
clímax.	Paralelamente	à	trajetória	de	vida	do	compositor,	encontramos	a
trajetória	da	Alemanha	moderna,	culminando	com	a	ascensão	de	Hitler	e	a
Segunda	Guerra	Mundial.	E,	apenas	na	última	frase	do	romance,	o	paralelo	é
finalmente	explicitado,	enquanto	o	narrador	olha	para	a	ruína	de	seu	amigo
Leverkühn	e	para	a	ruína	de	sua	terra	natal,	combinando	os	dois:	“Gott	sei	euerer
armen	Seele	gnädig,	mein	Freund,	mein	Vaterland!”	—	“Deus	tenha	misericórdia
de	sua	pobre	alma,	meu	amigo,	minha	pátria!”.	[	92	]	Aqui,	o	efeito	é	de	uma
grande	e	sustentada	crítica	da	Alemanha	do	século	20,	feita	por	um	alemão,	por
alguém	que	ama	sua	nação	e	agora	lamenta	por	ela.	O	efeito	é	alcançado	por
justaposição	e	paralelismo	em	grande	escala,	nunca	exagerado,	emergindo
apenas	gradualmente	das	sombras.	Em	outras	palavras,	a	própria	história	produz
o	efeito,	por	trás	de	todas	as	brilhantes	reconstruções	musicais	e	caracterizações
de	Mann	(somente	um	romancista	ousado	descreveria	peças	fictícias	de	música).
Ademais,	parte	do	poder	da	história,	dentro	da	cultura	ocidental,	reside
precisamente	na	recontagem	de	Mann	da	lenda	de	Fausto,	de	modo	a	subverter
algumas	outras	narrativas,	notadamente	a	de	Goethe.	É	a	respeito	disso,	ele	está
dizendo,	que	essa	história	realmente	trata.
Mais	uma	vez,	encontramos	semelhanças	notáveis	com	tudo	isso	nos
evangelhos;	e,	mais	uma	vez,	surge	a	seguinte	questão:	quanto	disso	tudo
podemos,	ou	devemos,	“acertar”,	e	quanto	permanece	aberto	a	novas	leituras	e
interpretações?
Para	nosso	terceiro	exemplo,	retornamos	a	um	território	agora	familiar.	Na
parábola	de	Jesus	sobre	os	lavradores	infiéis,	encontramos	um	exemplo	clássico
de	história	subversiva.	Seu	paralelo	com	a	história	da	vinha	(Isaías	5)	fornece-
nos	um	ponto	de	partida,	assim	como	a	conclusão	de	Mann	nos	oferece	um
ponto	fixo	a	partir	do	qual	trabalhar	a	história,	começando	do	fim	e	voltando	ao
começo.	A	parábola	conta	a	história	de	Israel;	já	era	uma	tragédia	quando	Isaías
a	contou,	mas,	na	época	de	Jesus,	tornou-se	ainda	mais	intensa,	mais	comovente.
Por	esse	tempo,	já	não	se	trata	mais	de	uma	história	sobre	um	proprietário	de
terras	e	seus	lavradores,	mas	de	um	pai	e	seu	filho.	Esse	elemento	também	é
subversivo:	no	Antigo	Testamento,	Israel	é	o	filho	amado	do	deus	criador;	agora,
porém,	ao	que	tudo	indica,	há	um	filho	tanto	no	lugar	de	Israel	como	contra
Israel.	Observamos	como	a	história	é	construída	em	etapas,	até	seu	auge:	(1)	a
vinha	está	preparada;	(2)	o	dono	envia	mensageiros,	os	quais,	então,	recebem	um
tratamento	cada	vez	mais	duro;	(3)	por	último,	o	filho	é	enviado,	rejeitado	e
morto.	Resta	a	seguinte	conclusão:	(4)	a	vinha	lhes	será	tirada	e	entregue	a
outros.	A	sequência	dramática	está	completa	e	(curiosamente,	como	veremos)	se
revela	essencialmente	trágica:	a	vocação	dos	lavradores,	tomada	de	forma
isolada	e	levada	ao	limite,	é	a	causa	de	sua	própria	ruína.	Chamados	como
arrendatários,	aspiram	a	ser	proprietários.	Como	em	muitas	tragédias,	temos	aqui
uma	ênfase	essencialmente	prometeica.	Desse	modo,	já	podemos	ver	como	a
história	funciona	em	seu	contexto;	como	funciona	em	sua	estrutura	interna;	e
onde	localizá-la	no	mapa	geral	de	histórias.	Mais	uma	vez,	podemos	perguntar:
qual	é	a	importância	de	acertarmos	os	detalhes?	Ainda	outra	pergunta:	que
diferença	faz,	se	houver	alguma,	lermos	o	texto	como	parte	da	“escritura
sagrada”?
SOBRE	O	ATO	DE	LER
1.	Introdução
Com	esses	exemplos	em	mente,	voltamo-nos	à	seguinte	pergunta:	o	queacontece
quando	lemos?	As	observações	do	capítulo	2	sobre	a	natureza	do	conhecimento
devem	ser	aplicadas	a	essa	área	específica.	Que	tipo	de	“conhecimento”
adquirimos	ao	ler?
Muitas	vezes,	os	leitores	ocidentais	modernos	são	tentados	a	dar	uma	resposta
ingenuamente	realista.	Pego	um	jornal	e	leio;	os	autores	me	contam	o	que
aconteceu	ontem	no	mundo.	O	“telescópio”	do	texto	é	simplesmente	uma	janela
através	da	qual	olho	para	a	realidade.	Leio	um	livro	de	história	e	simplesmente
descubro	“o	que	aconteceu”	em	algum	momento	do	passado.	Mas	então,	um	dia,
leio	em	um	jornal	ou	em	um	livro	de	história	um	relato	de	algo	que	conheço	por
meio	de	uma	fonte	diferente;	e	isso	me	faz	parar	para	pensar.	De	repente,	o
realismo	ingênuo	me	parece	preocupante	e,	em	vez	disso,	caminho	em	direção	a
um	reducionismo	ingênuo,	nos	moldes	fenomenológicos:	palavras	não	são
“sobre”	a	realidade,	mas	tão	somente	“sobre”	as	opiniões	do	escritor.	Houve	uma
mudança:	em	vez	de	olhar	“através”	das	palavras	do	escritor	para	o
acontecimento,	começo	a	suspeitar	que	estou	apenas,	ou	principalmente,	olhando
para	o	escritor.	O	telescópio	tornou-se	um	espelho	angular:	o	que	se	vê	não	é	um
acontecimento,	apenas	um	autor.	Isso	pode	ser	demonstrado	no	seguinte
diagrama:
LEITOR TEXTO
realista	ingênuo --------	→
•	lendo	o	texto,	obtenho	acesso	ao	autor	e,	então,	ao	acontecimento
fenomenalista --------→
•	lendo	o	texto,	obtenho	acesso	ao	autor,	mas	o	acontecimento	é	ilusório
Um	bom	exemplo	dessa	mudança,	em	uma	área	“neutra”,	pode	ser	encontrado	na
pintura	de	Monet.	O	artista	começou,	como	a	maioria	dos	pintores,	pintando
objetos	do	mundo	real:	pontes,	catedrais,	seu	jardim,	sua	esposa.	À	medida	que	o
impressionismo	foi	se	tornando,	por	assim	dizer,	mais	impressionista	—	e,
particular	e	curiosamente,	à	medida	que	a	própria	visão	do	pintor	ia	se
deteriorando	—,	Monet	começou	a	pintar	cada	vez	menos	os	objetos	da	forma
como	eram,	e	cada	vez	mais	sua	impressão	dos	objetos.	Assim,	na	metade	de	sua
carreira,	pegamo-nos	olhando	—	muitas	vezes,	claro,	com	grande	deleite	—	não
para	uma	imagem	quase	fotográfica,	mas	para	a	representação	dos	dados
sensoriais	de	alguém.	Contudo,	segundo	seu	próprio	relato,	Monet	tornou-se
cada	vez	menos	interessado	em	dados	sensoriais	que	os	objetos	em	si	lhe
apresentavam,	e	cada	vez	mais	interessado	em	padrões	e	formas,	cores	e
movimentos,	que	ele	simplesmente	imaginava.	Em	seus	trabalhos	posteriores,
vamos	encontrá-lo	caminhando	para	a	abstração	absoluta.	Obviamente,	esse
resumo	da	progressão	de	Monet	é,	como	muitas	outras	coisas	nesta	seção	do
livro,	uma	simplificação	grosseira,	mas	suficientemente	satisfatória	para
estabelecer	o	ponto	que	desejo.	[	93	]
Podemos	suspeitar,	na	verdade,	que	a	maioria	das	pessoas	oscila	de	uma	posição
para	a	outra,	dependendo	das	circunstâncias.	Nós,	ingleses,	tendemos	a	nos
considerar	realistas	robustos:	apenas	observamos	os	fatos	e	os	descrevemos;
somente	lemos	o	texto	como	ele	é.	Entretanto,	conforme	acabamos	de	ver,	assim
que	lemos	uma	reportagem	de	jornal	sobre	um	evento	a	respeito	do	qual	temos
algum	conhecimento,	estamos	cientes	da	diferença	entre	o	ponto	de	vista	do
jornalista	e	o	nosso;	e,	tão	logo	nos	envolvemos,	por	exemplo,	na	prática	de
aconselhamento,	tornamo-nos	cientes	de	que	uma	pessoa	pode,	com	toda	a
aparente	inocência,	sobrepor	ou	“projetar”,	na	imagem	que	forma	de	outra
pessoa,	fenômenos	que	estão	apenas	em	sua	própria	cabeça.	Retornando	ao
exemplo	do	jornalismo,	o	que	vemos	com	frequência	—	em	documentários
televisivos	ou	pseudodocumentários,	por	exemplo	—	parece	ao	leitor	ou	ao
espectador	um	fato	simples;	muito	provavelmente,	porém,	o	que	está	realmente
acontecendo	é	(a)	a	ideia	do	repórter	sobre	o	acontecimento,	projetada	em	um
mundo	aparentemente	“real”;	(b)	essa	ideia	aparecendo	como	“seu	ponto	de	vista
sobre	a	realidade”;	e	(c)	esse	ponto	de	vista	aparecendo	como	a	própria
realidade.	[	94	]	Ao	concordar	com	um	ponto	de	vista,	você	tende	a	observá-lo
como	um	realista	(“é	assim	que	as	coisas	realmente	são”);	ao	discordar,	torna-se
rapidamente	um	fenomenalista	e	assume	o	mesmo	patamar	de
autor/acontecimento	(“era	só	seu	ponto	de	vista”)	ou	até	mesmo	um	subjetivista
(“ele	simplesmente	inventou	tudo	isso”).
Tudo	isso	pode	parecer	um	pouco	distante	do	mundo	do	Novo	Testamento.	Na
verdade,	porém,	defrontamo-nos	com	esse	problema	assim	que	pegamos	um
livro	moderno	sobre	os	evangelhos.	Recentemente,	o	estudioso	alemão	G.
Strecker	publicou	um	livro	sobre	o	Sermão	do	Monte.	[	95	]	Na	contracapa,
somos	informados,	com	ar	de	triunfo,	que	o	Sermão	do	Monte	não	corresponde
aos	dizeres	de	Jesus,	mas	aos	de	Mateus.	Trata-se,	suponho,	não	de	um	juízo
primariamente	exegético	ou	histórico,	mas	de	um	juízo	filosófico.	Strecker	nos
convida	a	passar	do	terreno	arriscado	de	fazer	afirmações	sobre	Jesus	para	o
terreno	aparentemente	mais	seguro	de	dizer	que	o	ensinamento	representa	o
estado	de	espírito	de	Mateus.	[	96	]	Lemos	o	Sermão	do	Monte	e	perguntamos:
“Tem	alguém	aí?”.	A	resposta	é:	“não”	—	não	no	sentido	de	um	orador	original,
de	um	Jesus	sentado	em	um	monte,	dirigindo-se	às	multidões.	Só	existe	Mateus.
Saltamos	do	realismo,	passando	por	cima	de	uma	leitura	empirista	(a	impressão
de	Mateus	sobre	Jesus),	e	aterrissamos	no	fenomenológico	(o	estado	de	espírito
de	Mateus).	A	aparente	força	da	proposta	de	Strecker	tem,	comparativamente,
pouco	a	ver	com	a	história	do	primeiro	século	e	muito	mais	a	ver	com	hábitos
modernos	de	reflexão	e	leitura.
Ou	tome	como	outro	exemplo	a	descrição	que	Josefo	faz	dos	fariseus.	Josefo
refere-se	a	eles	como	se	fossem	uma	seita	filosófica,	com	opiniões	sobre
determinismo	etc.	[	97	]	Ninguém	duvida	da	existência	dos	fariseus,	nem	de	que
tinham	opiniões;	mas	todos	duvidam	de	que	os	fariseus	realmente	fossem	como
os	filósofos	gregos.	Nessa	situação,	optamos	por	uma	leitura	empirista	cautelosa:
Josefo,	dizemos,	fornece	sua	percepção	dos	fariseus	ou,	mais	precisamente,	a
percepção	que	sabia	ser	compreensível	ao	seu	público	pagão.	Tal	percepção	não
é	apenas	uma	ideia	em	sua	própria	mente;	contudo,	também	não	corresponde
exatamente	ao	modo	como	as	coisas	realmente	eram.
Um	terceiro	exemplo,	apesar	de	originado	na	tradição	oral	recente,	também	é
interessante.	Assegurado	por	diversas	testemunhas	oculares	—	alunos	e
pesquisadores	em	uma	universidade	que	visitei	—,	testifico	que	um	dos
professores	afirmou,	em	público,	que	Rudolf	Bultmann	não	foi	influenciado	por
convicções	teológicas	ou	filosóficas	ao	estudar	a	história	da	tradição	sinótica,
mas	que	se	envolveu	em	uma	pesquisa	histórica	puramente	“objetiva”.	A
reivindicação,	que	contradiz	o	próprio	relato	de	Bultmann	sobre	o	método
histórico	e	hermenêutico,	envolve	qualquer	pessoa	que	a	retenha	em	uma
posição	complexa:	positivismo	em	relação	aos	escritos	de	Bultmann	a	respeito
da	igreja	primitiva	(“ele	apenas	narrou	os	fatos”);	ceticismo	quanto	ao	próprio
relato	de	Bultmann	sobre	o	que	estava	fazendo	(“Bultmann	disse	que	partiu	de
pressuposições;	[	98	]	mas	sabemos	que	não”);	e	fenomenologia,	segundo	o
próprio	Bultmann,	em	relação	à	igreja	primitiva	e	aos	seus	escritos	sobre	Jesus
(“escreveram	‘sobre’	Jesus,	mas	realmente	estavam,	na	maior	parte	do	tempo,
falando	‘sobre’	sua	própria	fé”).
Uma	variação	muito	importante	desses	temas	tem	sido	a	concentração,	em
algumas	partes	do	estudo	bíblico	moderno,	na	comunidade	que,	segundo	se
pressupõe,	está	por	trás	de	um	texto.	Assim	como,	em	muitos	lugares,	o	estudo
histórico	de	Jesus	por	meio	do	texto	deu	lugar	ao	estudo	dos	evangelistas,	desde
o	surgimento	da	crítica	da	forma,	noventa	anos	atrás,	o	foco	tem	sido	não	um
referente	além	do	texto,	mas	as	comunidades	que	transmitiram	as	tradições.
Mesmo	naquilo	em	que	a	crítica	da	forma	deu	lugar	à	crítica	da	redação,	o
estudo	dos	evangelistas	muitas	vezes	se	concentrou	simplesmente	em	suas
igrejas	e	em	seus	ambientes	comunitários.	Assim,	o	termo	“comunidade”
funcionou	como	um	tipo	alternativo	de	referente,	além	do	texto	e	subjacente	a
ele:
LEITOR[	99	]---------→	TEXTO---------→[AUTOR]---------→COMUNIDADE[	99	]
Esse	movimento	tem,	para	muitos	teólogos	contemporâneos,	uma	utilidade
hermenêutica	e	teológica	mais	óbvia:	sabemos	(ou	pensamos	saber)	o	que	fazer
com	uma	comunidade	e	com	sua	teologia,	mas	lidar	com	um	acontecimento	é
mais	difícil.	Mas	logo	ficará	óbvio	que	o	tapete	poderia	ser	tirado	até	mesmo	dos
pés	da	crítica	da	redação	por	algum	tipo	de	leitura	pós-moderna	dos	evangelhos,
a	qual	negaria	a	validade	de	podermos	descobrir	o	pensamento	do	próprio
Mateus,	quanto	mais	o	de	sua	“comunidade”,	a	partir	do	evangelho,	insistindo,
em	vez	disso,	na	interação	entre	leitor	e	texto	(ou	mesmo	entre	o	leitor	e	sua
própria	mente)	como	a	única	fonte	de	“significado”.	Essas	leituras	são	todas
inerentemente	instáveis:	as	próprias	razões	filosóficas	pelas	quais	elas	surgem
(ansiedade	cartesiana	em	relação	aos	referentes	segundo	os	quais	a	realidade	é
pregada)	vão	engoli-las.
Tudo	isso	significa	que	o	fenômeno	da	leitura,	em	qualquer	nível	que	não	o
ingênuo,	tornou-se	muito	confuso.	As	pessoas	têm	lido	a	Bíblia	e	grandes	textos
literários	de	múltiplas	formas.	Às	vezes,	como	realistas	ingênuas:	“Shakespeare
nos	conta	uma	história	sobre	Júlio	César;	ponto-final”.	Outras	vezes,	ouvindo
ecos	de	algo	mais:	“Será	que	ele	não	está	discutindo	a	tirania	e	a	democracia	em
geral?	Talvez	esteja	usando	César	como	alegoria	de	um	tirano	que	nos	é
familiar”.	Como	podemos	saber?	De	la	Mare	nos	conta	uma	história	sobre	um
cavaleiro	e	uma	casa	vazia.	Isso	é	tudo?	O	autor	“realmente”	fala	sobre	alguém	à
procura	de	“Deus”?	Fala	sobre	a	própria	literatura	moderna,	com	sua	sensação
de	que	costumava	existir	um	autor	“dentro”	do	texto,	mas	que	agora	não	há	mais
ninguém	em	casa?	Como	podemos	descobrir?	[	100	]	Mann	narra	uma	história
sobre	um	compositor	fictício,	mas	certamente	também	nos	conta	uma	história
sobre	a	Alemanha	moderna.	E,	ao	fazer	isso,	naturalmente	o	autor	revela	suas
próprias	opiniões	e	crenças,	que	estão	totalmente	“envolvidas”	na	realidade
acerca	da	qual	escreve.	Nesse	caso,	o	meio	pelo	qual	podemos	decidir	o	assunto
é	bastante	claro:	sua	última	frase	nos	dá	a	pista,	de	um	modo	artisticamente
apropriado	(i.e.,	sem	qualquer	efeito	deus	ex	machina).	[	101	]	Da	mesma	forma,
Jesus	conta	uma	história	sobre	os	lavradores	de	uma	vinha.	(Ou,	para	sermos
menos	ingênuos,	os	evangelhos	contam	uma	história	sobre	Jesus	contando	uma
história	sobre	os	lavradores	de	uma	vinha.)	Mas	muitos	leitores	concluíram	que	a
história,	cujo	conteúdo	é,	em	certo	nível,	sobre	a	“vinha”,	diz	respeito,	“na
verdade”,	a	“Deus”	e	Israel.	Deparamos,	sugiro,	com	uma	confusão	em	vários
níveis:
LEITOR TEXTO AUTOR ACONTECIMENTO
----------→ vinha
----------→ ----------→ ----------→ “Deus”/	Israel
----------→ igreja	primitiva
←----------
De	modo	semelhante,	muitos	leitores	devotos,	achando	o	aspecto	histórico
hermeneuticamente	desinteressante,	leram	o	texto	como	uma	história	sobre	si
mesmos.	Como	podemos	entender	isso?	Será	que	basta	dizer	que	os	escritores
bíblicos	também	contavam	uma	história	sobre	“Deus”	e,	uma	vez	que	“Deus”	é
sempre	o	mesmo,	a	história	pode	tornar-se	“nossa”	história	hoje?	Em	outras
palavras,	em	que	ponto	a	analogia	com	Thomas	Mann	se	sustenta	—	que	o
escritor,	em	cada	caso,	estava	“realmente”	escrevendo	sobre	a
Alemanha/“Deus”,	e	que	Leverkühn/Jesus	era	apenas	um	“veículo”	(fictício)
para	esse	interesse	“real”?	Em	que	ponto	essa	análise	pode	falhar	e	por	quê?
Parece	que	deparamos	aqui,	em	uma	antecipação	pré-crítica	de	algumas	leituras
pós-críticas,	com	a	seguinte	situação:
LEITOR
																				----------→	leitura	devota	do	texto	←----------	traduzido	imediatamente	em	uma	mensagem	sobre	o	leitor																					----------→	[inspiração	divina]	possivelmente	explicado	ao	postular	“Deus”	como	referente/	fonte	do	texto
Substitua	a	possibilidade	de	alguma	estrutura	textual	por	“Deus”,	e	temos	aqui
um	modelo	de	trabalho	de	algumas	leituras	estruturalistas;	exclua	essa
possibilidade	e	temos,	embutido	na	tradição	pietista,	exatamente	o	mesmo	relato
de	leitura	que	encontramos	no	pós-modernismo	de	Barthes,	Derrida,	Rorty	ou
Fish.	O	que	importa	é	“o	que	o	texto	me	comunica”.
Até	pensarmos	claramente	sobre	esse	conjunto	de	problemas,	não	saberemos
realmente	o	que	está	acontecendo.	Muitos	métodos	“críticos”	parecem
propriamente	“neutros”	quando,	na	verdade,	encapsulam	posições	filosóficas
inteiras	que	são,	em	si	mesmas,	controversas	e	altamente	discutíveis.	Tudo	isso
me	parece	exigir	uma	análise	mais	aprofundada	das	diferentes	etapas	do
processo	de	leitura	dos	textos.
2.	“Tem	alguém	aí?”
Já	vimos	que,	enquanto	o	realismo	ingênuo	imagina	ter	acesso	direto	ao	evento
ou	ao	objeto	falado	no	texto,	uma	leitura	mais	fenomenológica	percebe	que	só
pode	ter	certeza	do	ponto	de	vista	do	autor.	Trata-se	de	uma	afirmação	menos
ambiciosa,	mais	difícil	de	refutar.	Soa	totalmente	mais	segura.	Mas	não	é	o	fim
da	linha.	Os	exemplos	que	acabamos	de	discutir	abordam	a	relação	entre	o	texto
e	a	realidade	que	ele	pretende	escrever.	Os	mesmos	problemas	ocorrem	quando
lidamos	com	a	relação	entre	nós	e	o	texto.	Conforme	já	expus,	o	objetivo	da
crítica	é	descrever	o	efeito	de	um	texto	escrito	e	mostrar	como	esse	efeito	é
alcançado	(o	que	pode,	naturalmente,	incluir	comentários	negativos	sobre
qualquer	fase,	efeito	ou	meio).	Podemos,	porém,	dizer	que	o	autor	“pretendia”
criar	esse	ou	aquele	efeito?	Ao	traçar	o	efeito	que	observamos,	estamos	lendo	a
mente	do	autor?	“Tem	alguém	aí?”
Os	extensos	debates	sobre	esse	ponto	ocupam	livros	inteiros,	de	modo	que	não
podemos	analisá-los	em	detalhes.	Contudo,	podemos	observar	o	movimento	da
crítica	do	século	20	e	fazer	um	comentário	breve.	[	102	]	Como	um	exemplo	do
que	veio	a	ser	conhecido	como	“Nova	Crítica”,	podemos	tomar	as	questões
levantadas	por	C.	S.	Lewis	em	seu	famoso	debate	com	E.	M.	W.	Tillyard.	[	103	]
Lewis	lançou	um	forte	ataque	a	esse	estilo	de	crítica	que	busca	desenterrar,	da
obra	em	consideração,	detalhes	sobre	a	vida,	hábitos,	emoções,	entre	outras
informações	acerca	do	autor.	Para	Lewis,	não	é	esse	o	papel	da	crítica.	A
resposta	de	Tillyard	tentou	apresentar	um	caso	moderado	para	manter,	dentro	de
uma	crítica	adequada,	algum	elemento	de	comentário	sobre	o	escritor.	[	104	]	No
entanto,	o	argumento	de	Lewis	prevaleceu.	Muitos	estudos	modernos	da
literatura	simplesmente	rejeitaram	a	ideia	de	que	temos	acesso	à	mente	ou	às
intenções	de	um	escritor.	O	caminho	para	o	inferno	é	pavimentado	por	intenções
autorais:	tudo	o	que	temos	é	a	obra	em	si,	vista	como	uma	entidade
independente.	Ao	que	parece,	o	que	importa	agora	é	a	interação	entre	leitor	e
texto,	e	não	entre	leitor	e	autor	por	meio	do	texto.	“Tem	alguém	aí?”	—
perguntamos,	ao	lermos	o	texto	antigo	ou	moderno.	Mas	tudo	o	que	às	vezes
imaginamos	é	uma	multidão	de	ouvintes	silenciosos,	testemunhando	que
mantivemos	nossa	promessa,	que	retornamos	ao	texto,	crescido	e	reflorestado.
Os	fantasmas	saberão	que	ocorreu	uma	leitura	do	texto,	mas	a	casa	em	si	—	o
mundo	particular	no	qual	o	escritor	viveu	—	permanece	trancada	e	inacessível.
Evidentemente,	Lewis	não	recomendava	essa	posição	em	toda	a	sua	rigidez.
Antes,	sua	reação	era	contrária	a	uma	ênfase	exagerada	particular,	ressaltando
(como	em	seu	Um	experimento	em	crítica	literária)	a	importância	dos	efeitos	do
texto	sobre	o	leitor.	[	105	]	A	ideia	remete	à	leitura	moderna,	uma	leitura	sem
autor,	mas	não	chega	a	acolhê-la.	Como	no	caso	de	tantos	debates,	ambos	os
lados	parecem	apresentar	pontos	válidos.	Lewis	estava	totalmente	correto	ao
rejeitar	a	ideia,	produto	de	um	casamento	entre	romantismo	e	empirismo,	de	que
a	crítica	poderia	ou	deveria	tentar	descobrir,	lendo	nas	entrelinhas	do	poema,	o
que	o	autor	comeu	no	café	da	manhã,	ou	se	ele	acabara	de	se	apaixonar	pela
empregada.	Situações	desse	tipo	podem,	claro,	ser	tema	de	um	poema,	explícita
ou	alegoricamente;	trata-se,	porém,	de	uma	questão	completamente	diferente.
Obviamente,	parte	da	dificuldade	está	no	fato	de	muitos	poetas	do	século	19
falarem,	em	essência,	de	suas	emoções	e	estados	de	espírito,	atraindo	críticos	a
concluírem	quedescobrir	essas	coisas	era	o	trabalho	normal	de	toda	a	crítica
literária.	Assim,	o	texto	foi	libertado	do	fardo	do	autor:
LEITOR	---------→	TEXTO	---------→	AUTOR	---------→	ACONTECIMENTO
←---------
Argumentarei,	em	breve,	que	a	devida	rejeição	adequada	de	uma	crítica	voltada
simplesmente	à	descoberta	da	vida	interior	do	poeta,	reduzindo	o	“significado”
do	poema	em	termos	dessa	descoberta,	foi	longe	demais	(de	uma	forma	que
Lewis,	podemos	dizer,	não	pretendia)	ao	absolutizar	o	poema	a	ponto	de	rejeitar
não	apenas	o	desejo,	mas	até	mesmo	a	possibilidade,	de	se	conhecer	a	intenção
do	autor.	Nos	estudos	bíblicos,	esse	é	o	movimento	feito	pela	“crítica	da
redação”	(“o	que	Lucas	estava	fazendo	ao	escrever	sua	obra	como	um	todo?”)
para	a	“crítica	da	narrativa”	(“Lucas	não	interessa.	O	que	o	livro	como	um	todo
está	fazendo	por	si	mesmo?”).	[	106	]	Mas,	se	o	foco	do	estudo	recai	sobre	o
texto	em	si,	o	que	deve	ser	dito	sobre	para,	ao	final,	não	contrabandearmos	as
intenções	do	autor?	Nesse	ponto,	existem	vários	movimentos	possíveis,	todos
relevantes	para	os	estudos	bíblicos.
Em	primeiro	lugar,	tem	sido	lugar-comum	nas	principais	correntes	da
hermenêutica	ocidental,	pelo	menos	desde	Schleiermacher,	que	é	possível,	até
mesmo	provável,	que	o	poeta	ou	o	evangelista	escrevia,	em	certo	nível,	com	uma
intencionalidade	consciente,	mas	que	podemos	detectar,	dentro	do	poema,	níveis
de	significado	de	que,	na	natureza	do	caso,	o	autor	não	estava	consciente.	Trata-
se	de	uma	versão	mais	grandiosa	do	conhecido	fenômeno	do	“trocadilho	não
intencional”,	capaz	de	revelar,	em	termos	freudianos,	algo	do	qual	o	falante	não
está	consciente.	Pode	ser	que	vejamos,	com	a	vantagem	de	uma	retrospectiva	ou
de	uma	análise	psicológica	(Freud	é	lido	hoje	não	só	por	psicólogos,	mas
também	por	críticos	literários),	que	o	autor	foi,	sem	perceber,	influenciado	por
fatores	internos	e	externos,	de	modo	que	o	poema	aponta	para	direções	que
apenas	posteriormente	se	tornam	claras,	direções	cuja	existência	nem	sequer
poderia	ter	sido	imaginada	pelo	escritor.	Podemos	realmente	saber	mais	sobre	o
autor	do	que	estava,	ou	poderia	ter	estado,	presente	em	sua	mente	na	época	da
escrita.	[	107	]	Obviamente,	esse	fator	é,	por	si	só,	um	tipo	de
pseudointencionalidade	ou	intencionalidade	oculta,	passível	de	tratamento	como
qualquer	outro	problema	comum.
Ou,	em	segundo	lugar,	talvez,	ao	projetar	um	método	semelhante	em	uma	tela
mais	ampla,	o	poema	possa	servir	como	evidência	para	a	estrutura	mais	profunda
de	todo	o	pensamento	humano,	que,	então,	se	torna	objeto	real	da	investigação
crítica,	a	ser	organizado,	em	conjunto	com	todos	os	outros	dados	antropológicos,
em	conclusões	sobre	a	natureza	do	ser	humano	e	das	sociedades	humanas.	É
assim	que	procede	o	movimento	conhecido	como	“estruturalismo”:	do	texto	às
estruturas	profundas	do	pensamento	e,	em	seguida,	às	conclusões	sobre	uma
realidade	que	está	além	da	consciência	comum.	Tal	estruturalismo	aparece	como
uma	das	versões	modernas	do	platonismo	—	a	tentativa	de	ir	atrás	de	fenômenos
para	analisar	o	que	“realmente”	está	lá.	[	108	]	A	atração	de	um	movimento
dessa	natureza	pode	residir,	em	parte,	no	fato	de	que	parece	evitar	os	problemas
que	afligem	uma	grande	parcela	da	exegese	bíblica	de	determinado	tipo,	ou	seja,
o	problema	de	sempre	ir	atrás	do	texto	(seja	em	busca	de	“acontecimentos
descritos”,	seja	da	mente	do	autor),	a	fim	de	obter	um	significado	real.	Afinal,
não	seria	muito	melhor,	não	seria	muito	mais	“científico”,	se	o	sentido
universalizável	estivesse	escondido	no	próprio	texto?	A	intenção	autoral
atrapalhou	a	universalização;	a	estrutura	profunda	é	muito	mais	eficaz.	[	109	]
Por	essas	e	outras	razões,	toda	uma	gama	de	escritores,	especialmente	na
América	do	Norte,	tentou	olhar	para	os	textos	dessa	nova	maneira.	[	110	]	Nessas
obras,	vemos	a	reintrodução	nos	estudos	bíblicos	de	uma	espécie	de
questionamento	que	deveria	há	muito	ter	sido	feito,	mas	que	foi	excluído	da
maior	parte	do	movimento	crítico	moderno.	Os	críticos	tendem	a	fazer	dois	tipos
de	perguntas:	(a)	A	que	acontecimentos	o	texto	se	refere,	e	o	que	esses
acontecimentos	significam?	(b)	Que	ideias	teológicas	o	autor	desse	texto	teve?	O
“significado”	está	localizado,	nesses	modelos,	tanto	nos	acontecimentos	como
nas	crenças	dos	escritores.	A	crítica	literária	formalista	ou	estruturalista	mais
recente,	no	entanto,	não	busca	significado	em	nenhum	desses	elementos,	mas	na
forma	literária,	na	própria	estrutura	do	texto.	[	111	]	Como	podemos	encontrar
“significado”	no	texto,	e	o	que	podemos	fazer	com	ele	depois	de	o
encontrarmos?
Em	terceiro	lugar,	há	uma	analogia	entre	esse	nível	de	investigação	e	a	sugestão,
às	vezes	feita	dentro	da	exegese	bíblica	tradicional,	de	que	existe,	além	do
significado	do	autor,	um	sensus	plenior,	pelo	qual	um	texto	“inspirado”
realmente	diz	mais	do	que	o	autor	percebeu	na	época,	com	o	Espírito	Santo
preenchendo	a	lacuna	da	ignorância	autoral	ou	realizando	uma	profecia	“não
intencional”,	pela	qual,	por	exemplo,	Caifás	fala	uma	palavra	do	Senhor,	mesmo
quando	pretendia	dizer	outra.	O	reconhecimento	de	tal	sentido,	bem	como	as
possibilidades	de	exegese	alegórica	e	outras	formas	de	exegese	que	se	abrem,
têm,	em	vários	estágios	da	leitura	da	escritura	pela	igreja,	formas	de	permitir	a
experiência	dos	cristãos	de	que	o	texto	bíblico	lhes	“fale”	de	maneiras	que	o
autor	não	poderia	ter	imaginado.	[	112	]	Temos,	portanto,	uma	nova	gama	de
possibilidades:
LEITOR TEXTO sentidos	não	autorais
---------→ ---------→ “mais	do	que	o	autor	tinha	em	mente”
---------→
---------→
Tais	propostas	—	a	última	das	quais	se	encontra	claramente	no	próprio	Novo
Testamento	—	são	maneiras	de	garantir	que	o	significado	não	se	limite	à
intenção	do	autor.	Quer	sigamos	ou	não	o	caminho	do	estruturalismo,	devemos
levar	em	conta	um	je	ne	sais	quoi	que	vai	além	do	que	o	autor	tinha	em	mente,
explicitamente,	na	época.	Não	é	preciso	refletir	muito	para	ver	que	a	crítica	não
pode	fechar	a	porta	a	essa	possibilidade,	embora	possa	considerar	difícil	lidar
com	ela	em	termos	descritivos	ou	hermenêuticos.	Mas	(apenas	no	caso	de
alguém	pensar	que	isso	nos	leva	de	volta	à	leitura	subjetivista	do	texto)	isso	não
significa	que	a	intenção	do	autor	não	seja	importante	ou,	em	última	análise,
indiscutível.	Obviamente,	uma	descrição	completa	da	intenção	autoral	é
impossível.	O	conhecimento	de	toda	a	motivação,	tal	como	sonhado	pelos
primeiros	behavioristas,	recua	como	o	fim	de	um	arco-íris	quanto	mais	nos
aproximamos	dele.	[	113	]	No	entanto,	como	muitas	vezes	destacado,	ainda	é
muito	difícil	manter	uma	leitura	subjetiva	“pura”.	Até	mesmo	os	estruturalistas
mais	ardentes	gostariam	de	sustentar	que	estão	falando	sobre	algo,	e	que	seus
livros,	embora	“abertos”,	significam	e	pretendem	algumas	coisas,	e	não	outras.
Resta,	ao	menos	em	tese,	sabermos	a	intenção	básica	de	um	autor	e
reconhecermos	tal	possibilidade	—	verificando,	por	exemplo,	a	leitura	de	um
texto	pessoalmente	com	seu	autor	(temos	em	mente	os	comentários	de	aprovação
de	Barth	sobre	a	tentativa	de	Hans	Küng	de	ler	sua	mente	sobre	o	assunto	da
justificação).	[	114	]	Não	há	nada	de	estranho	em	dizer	que	“o	governo
tencionava	que	essa	legislação	tivesse	o	efeito	x	quando,	na	verdade,	o	efeito	foi
y”,	quando	x	e	y	são	claramente	incompatíveis;	em	tese,	não	há	nada	de	estranho
em	dizer	que	um	autor	pretendeu	o	efeito	x	(uma	grande	tragédia,	digamos),	mas
alcançou	o	efeito	y	(uma	farsa	tumultuosa);	assim,	porém,	acusamos	diretamente
o	governo,	ou	o	autor,	de	incompetência	ou	fracasso.	No	entanto,	em	um	livro
que	pretendemos	levar	a	sério,	é	uma	crítica	bastante	séria	dizer:	“O	autor	tinha
em	mente	x,	mas	o	livro	significa	y”.	Sugerir	que	tal	comentário	é	irrelevante	é
como	insistir	que	a	lebre	não	pode	realmente	ultrapassar	a	tartaruga,	uma	vez
que,	como	se	sabe,	a	tartaruga	simplesmente	continua	reduzindo	pela	metade	a
distância	entre	ambas,	em	porções	cada	vez	menores.	Os	truques	filosóficos
pelos	quais	a	intenção	do	autor	foi	afastada	do	cálculo	são,	em	última	análise,
mais	impressionantes	doque	o	conhecido	truque	matemático	que	mantém	a	lebre
em	uma	corrida	permanente.
Um	problema	com	a	tentativa	de	fornecer	uma	análise	que	vai	além	do	texto,
mas	não	do	autor,	é	a	falta	de	controle.	Há	pouca	concordância	entre	os
estruturalistas	quanto	ao	que	conta	como	estrutura	profunda	de	uma	passagem	ou
de	um	livro,	e	como	podemos	saber	quando	a	encontramos.	Ademais,	como	os
reformadores	argumentaram,	embora	possa	realmente	existir	um	sensus	plenior
no	que	diz	respeito	às	Escrituras	Sagradas,	é	difícil	dizer	a	diferença	entre	o
sentido	mais	profundo	do	texto	e	a	projeção,	no	texto,	de	uma	ideia	teológica	ou
crença	adquirida	por	algum	outro	meio.	Se	alguém,	então,	apela	para	o	“sentido
literal”	como	o	controle,	terá	realmente	aprendido	algo	novo	com	uma	passagem
pelo	método	plenior?
As	dificuldades	em	relação	a	todos	esses	modelos	potenciais	para	ir	“além”	do
texto	sem	passar	pela	mente	do	autor	significam	que	muitos	críticos,	como	já
vimos,	insistiram	em	trazer	de	volta	o	foco	da	atenção	simplesmente	para	o
próprio	texto.	Uma	vez,	porém,	que	nos	movemos	nessa	direção,	por	que	parar
por	aí?	A	mesma	coisa	não	se	aplica	ao	primeiro	estágio?	A	visão	ingenuamente
realista	desse	estágio	—	o	“leitor”	apenas	lendo	o	“texto”	—	pode	ela	mesma
ruir:	no	bom	estilo	fenomenológico,	tudo	aquilo	de	que	estou	realmente	ciente	na
presença	desse	texto	são	meus	próprios	dados	sensoriais.	A	coisa	toda	se
“desconstrói”	nos	sentimentos,	pensamentos	e	impressões	que	tenho	perante	o
texto:
LEITOR	----------→	TEXTO	----------→	AUTOR----------→	ACONTECIMENTO
←----------
...	de	modo	que,	agora,	não	somente	não	há	nenhum	acontecimento	ou	autor	com
uma	intenção,	como	nem	mesmo	um	texto.	E	isso	resultará	em	múltiplas
possibilidades	de	“leitura”,	com	análises	intermináveis	e	muitas	vezes
minuciosas,	para	as	quais	aqueles	que	estão	fora	do	jogo	podem	olhar	com
considerável	ceticismo.	[	115	]	Essa	posição,	que	pode	parecer	a	morte	de
qualquer	leitura	ou	crítica,	naturalmente	se	tornou	o	ponto	de	partida	para
escolas	totalmente	novas	de	crítica	literária,	das	quais	o	“desconstrucionismo”
propriamente	dito	é	apenas	mais	uma:	Stephen	Moore,	em	seu	livro	recente,
descreve	estágios	na	crítica	recente	que	podem	ser	rotulados	por	escritores	como
Kermode,	Fish	e,	em	última	análise,	Roland	Barthes	e	Jacques	Derrida.	[	116	]	A
ideia	dessa	escola,	exposta	de	maneira	absurdamente	simples,	é	que	a	única	coisa
a	fazer	com	um	texto	é	brincar	com	ele:	devo	ver	o	efeito	que	ele	me	causa,	e
não	questionar	se	há	outra	mente	por	trás	do	texto.	[	117	]	E,	naturalmente,	se	é
esse	o	caso,	não	faz	mais	sentido	discutir	o	texto	com	alguém.	Não	haverá	uma
leitura	“certa”	ou	“errada”;	mas	tão	somente	a	minha	leitura	e	a	sua	leitura.	[	118
]
Acho	que	ficará	claro	até	que	ponto	essa	última	posição	agradará	a	muitos
elementos	da	consciência	contemporânea.	Vivemos	em	uma	era	relativista	e
pluralista,	época	que	coloca	a	autorrealização	acima	da	integração	do	“eu”	com
os	outros.	Há,	evidentemente,	muitas	críticas	diferentes	que	poderiam	ser	feitas
contra	toda	essa	visão	de	mundo.	Ela	traça	sua	ancestralidade	filosófica	e	até
mesmo	literária	por	intermédio	de	Foucault	e	Nietzsche	em	particular,
partilhando	com	eles	algo	do	niilismo,	que	é,	na	minha	opinião,	a	feia	irmã
gêmea	do	positivismo,	que	ainda	se	atrela	a	algumas	partes	da	cultura
contemporânea.	Devo,	contudo,	reservar	essas	críticas	a	contextos	diferentes	por
uma	razão:	até	agora,	o	desconstrucionismo,	em	toda	a	sua	estranha	glória,	ainda
não	alcançou	um	status	considerável	no	mundo	dos	estudos	neotestamentários,
permanecendo,	desse	modo,	estritamente	fora	de	nossos	propósitos	neste	livro.
Houve	algumas	tentativas	de	introduzi-lo,	principalmente	nas	várias	obras	do
brilhante	escritor	J.	Dominic	Crossan.	[	119	]	Crossan,	apesar	de	amplamente
lido,	ainda	não	foi	seguido	por	muitos	outros,	talvez	porque,	conforme	ressaltado
por	Moore,	sua	obra	se	subverte	por	sua	insistência	em	tentar,	ao	mesmo	tempo
que	desconstrói	os	textos,	descobrir	o	Jesus	histórico	por	meio	dos	textos	e	de
uma	forma	subjacente	a	eles.	[	120	]	É	difícil	o	caminho	que	leva	ao
desconstrucionismo	genuíno,	e	aqueles	que	o	seguem	de	forma	consistente	são
poucos.
A	maioria	dos	leitores	bíblicos	de	orientação	conservadora	não	vê	com	bons
olhos	o	desconstrucionismo.	Mas	seu	modelo	proposto	realmente	se	aproxima
muito	de	diversos	modelos	implicitamente	adotados,	amplamente	falando,	pela
tradição	pietista.	A	igreja,	na	verdade,	institucionalizou	e	sistematizou	formas	de
ler	a	Bíblia	que	são	estranhamente	semelhantes	a	algumas	vertentes	do	pós-
modernismo.	Em	particular,	a	igreja	viveu	com	os	evangelhos	durante
praticamente	toda	a	sua	vida,	e	a	familiaridade	gerou	uma	variedade	de	modelos
hermenêuticos	mais	ou	menos	desprezíveis.	Às	vezes,	mesmo	nos	círculos	que
afirmam	levar	a	Bíblia	mais	a	sério	—	muitas	vezes,	na	verdade,	acima	de	tudo	o
mais	—,	há	uma	recusa	lamentável	de	fazer	exatamente	isso,	em	especial	no	que
diz	respeito	aos	evangelhos.	Os	métodos	de	leitura	e	interpretação	adotados	são,
na	verdade,	funções	dos	modelos	de	inspiração	e	autoridade	das	escrituras	que
foram	mantidos	em	vários	círculos,	explícita	ou	(de	modo	mais	frequente)
implicitamente,	tornando	muitas	vezes	absurda	qualquer	tentativa	de	leitura
histórica	da	Bíblia.	O	predecessor	devoto	do	desconstrucionismo	é	aquela	leitura
do	texto	que	insiste	no	fato	de	que	o	que	a	Bíblia	me	diz,	neste	exato	momento,	é
o	princípio	e	o	fim	de	todo	o	seu	significado;	uma	leitura	que	não	deseja	saber	da
intenção	do	evangelista,	da	vida	da	igreja	primitiva,	ou	mesmo	sobre	como	Jesus
realmente	é.	Encontramos	alguns	companheiros	estranhos	desse	método	de
leitura	no	mundo	da	epistemologia	literária.
Diversas	vezes,	claro,	a	prática	tem	sido	melhor	do	que	a	teoria,	e	uma	palavra
do	deus	dos	leitores	foi	ouvida,	apesar	da	terrível	confusão	em	que	os	leitores	e
intérpretes	se	envolveram.	Isso	simplesmente	mostra,	no	mínimo,	que	esse	deus
é	gracioso	e	talvez	até	tenha	senso	de	humor.	Não	é	desculpa	para	deixar	de
pensar	ou	de	trabalhar	mais	cuidadosamente	o	que	se	passa	com	as	pessoas
enquanto	leem	os	evangelhos.	Levar,	porém,	essa	discussão	adiante	neste	ponto
exigiria	uma	consideração	dos	tipos	de	leitura	que	são	apropriados	a	diferentes
tipos	de	escrita,	bem	como	para	os	evangelhos	como	um	caso	especial;	e	isso
deve	ser	adiado	até	consideravelmente	mais	tarde.
Protestos,	então,	contra	leituras	pós-modernas	da	Bíblia	provavelmente	serão
ineficazes	—	ou	seja,	a	não	ser	que	aqueles	que	se	preocupam	com	a	leitura	séria
dos	evangelhos	comecem	a	explorar	maneiras	de	articular	uma	epistemologia
melhor,	levando	a	uma	melhor	descrição	do	que	acontece	quando	um	texto	está
sendo	lido;	a	uma	melhor	descrição	do	que	acontece	quando	um	texto	sagrado
está	sendo	lido;	a	uma	melhor	descrição	do	que	acontece	quando	um	texto
sagrado	que	se	apresenta	como	histórico	está	sendo	lido.	Isso,	por	sua	vez,	levará
a	uma	melhor	descrição	do	que	acontece	quando	os	próprios	evangelhos	estão
sendo	lidos.	Qualquer	crítico	literário	de	orientação	filosófica	em	busca	de	uma
obra	cujo	esforço	valha	a	pena	pode	considerar	essa	ideia	um	possível	projeto.
Eu	não	fingiria	ser	suficientemente	competente	para	fazer	algo	assim,	nem	teria
tempo	ou	paciência	de	fazê-lo.	Contudo,	como	este	capítulo	já	está	se
transformando	em	um	tour	de	force	de	áreas	nas	quais	não	sou	(para	dizer	o
mínimo)	totalmente	competente,	devo	dizer	como	penso	que	tal	projeto	poderia
prosseguir.
3.	Leitura	e	realismo	crítico
O	que	precisamos,	sugiro,	é	de	uma	descrição	crítico-realista	do	fenômeno	da
leitura,	em	todas	as	suas	dimensões.	[	121	]	De	um	lado,	podemos	ver	o
positivista,	ou	o	realista	ingênuo,	movendo-se	tão	suavemente	ao	longo	da	linha
do	leitor	para	o	texto,	do	texto	para	o	autor	e	do	autor	para	o	referente	que,	a
cada	passo,	deixa	de	perceber	as	cobras	na	grama;	do	outro	lado,	vemos	o
reducionista,	que,	parando	para	olhar	as	cobras,	é	engolido	por	elas	e	não	segue
adiante.	Evitando	esses	dois	extremos,	sugiro	que	devemos	articularuma	teoria
capaz	de	localizar	todo	o	fenômeno	da	leitura	textual	no	âmbito	da	natureza
histórica	e	relacional	da	consciência	humana.
Tal	teoria	pode	ser	mais	ou	menos	assim.	Nós	(seres	humanos	em	geral;
comunidades	das	quais	eu	e	você,	como	leitores,	fazemos	parte)	contamos	a	nós
mesmos	algumas	histórias	sobre	o	mundo	e	sobre	quem	somos	nele.	Nessa
narrativa,	faz	sentido,	“é	cabível”,	o	fato	de	nos	descrevermos	como	leitores	de
textos;	segundo	já	vimos,	até	mesmo	os	próprios	desconstrucionistas	escrevem
textos	cujo	conteúdo	desejam	que	outros	leiam	a	fim	de	descobrir	o	que	eles,	os
desconstrucionistas,	pretendem	dizer.	[	122	]	Nessa	atividade	de	leitura	textual,
faz	sentido,	“é	cabível”,	o	fato	de	entrarmos,	às	vezes	e	em	tese,	em	contato	com
a	mente	e	a	intenção	do	autor.	Discutir	a	mente	do	autor	pode	ou	não	ser	uma
tarefa	fácil;	em	tese,	é	uma	tarefa	possível	e,	conforme	sugiro,	até	mesmo
desejável.	[	123	]	Eu,	por	exemplo,	nunca	ficarei	convencido	de	que	la	Mare	não
tencionava	produzir	os	óbvios	efeitos	“superficiais”	de	seu	poema,	embora	os
significados	mais	profundos	sejam,	como	vimos,	uma	questão	de	especulação,
hipótese	e	discussão.	O	autor	poderia,	por	exemplo,	ter	escrito	a	respeito	desses
significados	em	outro	lugar.	[	124	]	Nem	posso	acreditar	que	o	paralelo	entre
Leverkühn	e	a	Alemanha	nunca	tenha	ocorrido	a	Mann	enquanto	ele	escrevia	seu
romance.
Ao	mesmo	tempo,	é	importante	ressaltar	que	ambos	os	autores	queriam	que	seus
leitores	refletissem	sobre	o	tema	de	suas	obras,	não	sobre	si	mesmos	como
autores	em	primeiro	lugar.	Seu	trabalho	não	remete	ao	leitor,	nem	para	dentro	de
suas	próprias	cabeças.	Autores	não	constroem	espelhos,	nem	caleidoscópios.
Antes,	oferecem	telescópios	(ou	talvez	microscópios,	que	são	realmente	a
mesma	coisa):	novas	maneiras	de	enxergar	uma	realidade	que	está	fora	e	é
distinta	do	leitor,	do	texto	e	do	autor,	embora,	claro,	relacione-se	de	forma	vital
com	todos	os	três.	Assim,	“encaixa-se”	na	história	que	contamos	sobre	nós
mesmos	e	o	mundo	o	fato	de	os	textos	e	os	autores	apontarem	para	realidades	no
mundo,	para	entidades	além	de	si	mesmos.	Somente	um	leitor	muito	ingênuo
sugeriria	que	o	único	referente	do	poema	seria	um	cavaleiro	e	uma	casa	vazia	em
um	bosque,	que	a	única	coisa	descrita	na	narrativa	de	Mann	seria	um	compositor
possuído	por	demônios	ou	que	a	única	realidade	retratada	na	parábola	seria	uma
história	trágica	envolvendo	uma	comunidade	agrícola.	Descrever	os	reais
referentes	em	casos	tais	é	a	complexa	tarefa	da	crítica	literária	séria,	a	qual
ressaltarei	em	breve.
O	que	precisamos,	então,	é	de	uma	teoria	da	leitura	que,	no	âmbito	do
leitor/texto,	faça	jus	ao	fato	de	o	leitor	ser	um	indivíduo	particular	e	ao	fato	de	o
texto	ser	uma	entidade	independente,	não	uma	substância	plástica	a	ser	moldada
a	gosto	do	leitor.	Também	deve	fazer	jus,	no	âmbito	de	texto/autor,	ao	fato	de
que	o	autor	pretende	transmitir	certas	coisas	e	que	o	texto	também	pode	conter
elementos	—	ecos,	evocações,	estruturas	etc.	—	que	não	estavam	presentes	na
mente	do	autor	e,	naturalmente,	podem	muito	bem	não	estar	presentes	na	mente
do	leitor.	Precisamos	de	uma	teoria	da	leitura	de	ambos	—	não	de	uma	coisa	ou
de	outra.	[	125	]	De	modo	semelhante,	precisamos	de	uma	teoria	que	faça
justiça,	ainda	no	âmbito	do	texto/autor,	ao	fato	de	(1)	os	textos,	incluindo	os
textos	bíblicos,	não	representarem	a	mente	do	autor	em	sua	totalidade	(inclusive
no	caso	das	passagens	que	mais	se	aproximam	da	mente	do	autor)	e,	ao	mesmo
tempo,	(2)	falarem	muito	sobre	seu	autor	—	ao	menos	em	tese.	Por	último,
precisamos	reconhecer,	no	âmbito	de	autor/acontecimento,	que	os	autores	não
escrevem	sem	um	ponto	de	vista	(já	que	são	humanos	e	olham	para	as	coisas	de
maneiras	específicas	e	sob	ângulos	específicos)	e	que	realmente	podem	falar	e
escrever	sobre	acontecimentos	e	objetos	(no	sentido	pleno	de	acontecimentos	e
objetos,	conforme	exploramos	no	capítulo	2)	que	não	são	redutíveis	nos	termos
de	seu	próprio	estado	de	espírito.
Há	um	sentido,	o	qual	não	podemos	explorar	em	detalhes	aqui,	em	que	isso
exige	uma	teoria	completa	da	linguagem.	Precisamos	entender,	melhor	do	que
costumamos	fazer	formalmente,	a	forma	como	a	linguagem	funciona.	Palavras
que	descrevem	acontecimentos	funcionam	regular	e	adequadamente	em	todos	os
níveis,	já	que	os	próprios	acontecimentos	funcionam	em	todos	os	níveis.	O	que
um	marciano	poderia	ter	visto	eram	seres	humanos	colocando	pedaços	de	papel
em	pequenas	caixas	de	lata;	o	que	os	políticos	da	época	viram	foi	uma	eleição
tensa	em	andamento;	o	que	os	historiadores	verão	é	a	virada	na	qual	um	país
moveu-se	de	uma	era	para	outra.	A	linguagem	é	normalmente	usada	como
referência	a	todos	os	três	níveis	de	ações	físicas	de	“acontecimento”,	significado
percebido	ou	imaginado	no	momento	e	significado	percebido	mais	tarde	—	de
todas	as	formas	sutis,	por	meio	de	metáforas,	símbolos,	imagens	e	mitos.	Isso	é
inevitável,	e	não	demanda	desculpas.	[	126	]	E	essa	linguagem	em	si
desempenha	muitas	outras	funções:	edifica,	incomoda,	diverte,	evoca
associações,	cria	novas	possibilidades	de	compreensão	etc.	O	perigo	é
estabelecermos	uma	espécie	de	reducionismo.	Podemos	imaginar	que	o	que
chamamos	de	“significado”	é	algo	artificialmente	“adicionado”	às	ações	(na
verdade,	ninguém	se	teria	incomodado	em	colocar	papel	nas	caixas	se	não
tivesse	pensado	em	fazer	algo	com	um	significado	mais	amplo);	ou	que	as
palavras	que	investem	ações	físicas	com	seu	significado	são,	portanto,
simplesmente	decoração	ou	bordado,	a	fim	de	serem	vistas	como	“simples
metáfora”.	(Alternativamente,	claro,	o	acontecimento	pode	perder-se	na
significância.)	Isso	nos	alerta,	mais	uma	vez,	para	o	fato	de	que	não	existe	algo
como	um	“simples	acontecimento”,	como	veremos	no	próximo	capítulo.	E,	se
tudo	isso	é	verdade	para	a	linguagem	em	geral,	há	regras	e	casos	especiais	na
escrita	histórica;	em	sistemas	de	linguagem	religiosa,	outros	casos	especiais;	em
textos	sagrados,	casos	especiais	inseridos	em	casos	ainda	mais	especiais;	nos
evangelhos,	que	combinam	tudo	isso	e	muito	mais,	um	conjunto	altamente
complexo	de	questões	e	problemas.	Até	mesmo	começar	a	abordar	essas
questões	aqui	nos	distanciaria	demais	de	nosso	propósito.
Sugiro,	então,	que	a	epistemologia	que	delineei	anteriormente	—	aquela	que	vê	o
conhecimento	como	parte	da	responsabilidade	dos	que	são	feitos	à	imagem	do
criador	de	agir	com	responsabilidade	e	sabedoria	no	mundo	criado	—	resulta,	no
nível	da	literatura,	em	um	realismo	crítico	sensível.	Devemos,	por	um	lado,
renunciar	à	ficção	de	uma	visão	soberana	dos	acontecimentos	e,	por	outro,	à
redução	do	acontecimento	à	mera	percepção	individual.	Até	que	realmente
resolvamos	essa	questão,	a	maioria	das	batalhas	atuais	sobre	a	leitura	dos
evangelhos	—	e	a	maioria	das	anteriores	também	—	serão	diálogos	de	surdos,
fadados	ao	fracasso.	Para	começar,	porém,	sugiro	um	possível	modelo
hermenêutico	a	ser	explorado	mais	amplamente	em	outra	ocasião.	Sugiro	uma
hermenêutica	do	amor.
No	amor,	pelo	menos	na	ideia	de	ágape	da	forma	como	a	encontramos	em
algumas	partes	do	Novo	Testamento,	[	127	]	aquele	que	ama	afirma	a	realidade	e
a	alteridade	do	amado.	O	amor	não	busca	arruinar	o	amado	em	termos	de	si
mesmo;	e,	embora	possa	falar	de	se	perder	na	pessoa	amada,	essa	perda	sempre
acaba	sendo	um	verdadeiro	achado.	No	paradoxo	familiar,	alguém	se	torna
totalmente	pleno	ao	se	entregar	a	outra	pessoa.	No	fato	do	amor,	em	suma,
ambas	as	partes	são	simultaneamente	afirmadas.	[	128	]
Aplicado	à	leitura	de	textos,	isso	significa	que	o	texto	pode	ser	ouvido	em	seus
próprios	termos,	sem	ser	reduzido	à	escala	do	que	o	leitor	pode	ou	não
compreender	no	momento.	Se	o	texto	for	de	difícil	compreensão,	o	bom	leitor
fará	o	esforço	necessário	para	entendê-lo,	retornando	sempre	ao	texto	e
continuando	a	ouvi-lo.	Entretanto,	por	mais	perto	que	o	leitor	chegue	de
compreendê-lo,	a	leitura	continuará	a	ser	peculiarmente	aquela	do	leitor:	o
subjetivo	nunca	se	perde,	fator	que	não	é	nem	necessário	nem	desejável.	Nesse
sentido,	“amor”	significará	“atenção”:prontidão	para	deixar	que	o	outro	seja	o
outro,	vontade	de	crescer	e	mudar	a	si	próprio	em	relação	ao	outro.	Ao
aplicarmos	esse	princípio	a	todos	os	três	estágios	do	processo	de	leitura	—
relação	do	leitor	com	o	texto,	do	texto	com	os	autores,	dos	autores	com	as
realidades	que	pretendem	descrever	—,	será	possível	fazermos	várias	afirmações
simultâneas.	Em	primeiro	lugar,	poderemos	afirmar	simultaneamente	que	o	texto
tem	tanto	um	ponto	de	vista	particular,	a	partir	do	qual	tudo	é	visto,	como	o	fato
de	que	a	leitura	feita	por	alguém	não	é	mera	“observação	neutra”.	Em	segundo
lugar,	poderemos	afirmar	que	o	texto	tem	tanto	vida	própria	como	que	o	autor
tinha	intenções	das	quais	podemos,	em	tese,	saber	alguma	coisa.	Em	terceiro
lugar,	poderemos	afirmar	que	as	ações	ou	os	objetos	descritos	são,	em	princípio,
tanto	ações	e	objetos	no	mundo	público	como	que	o	autor	os	contemplava	de	um
ponto	de	vista	particular	e	talvez	até	mesmo	distorcido.	Em	cada	nível,
precisamos	dizer	as	duas	coisas	—	ou	seja,	não	uma	coisa	em	detrimento	da
outra.
Cada	estágio	desse	processo	se	transforma	em	uma	conversa	na	qual	o	mal-
entendido	é	provável,	talvez	até	mesmo	inevitável,	mas	na	qual,	por	meio	da
escuta	paciente,	a	compreensão	real	(e	o	acesso	real	à	realidade	externa)	é
realmente	possível	e	alcançável.	[	129	]	O	que	defendo	é	um	realismo	crítico	—
embora	eu	prefira	descrevê-lo	como	uma	epistemologia	ou	hermenêutica	do
amor	—	como	o	único	tipo	de	teoria	que	fará	jus	à	natureza	complexa	dos	textos
em	geral,	da	história	em	geral	e	dos	evangelhos	em	particular.	Armados	com
isso,	seremos	capazes	de	enfrentar	as	questões	e	os	desafios	da	leitura	do	Novo
Testamento	com	alguma	esperança	de	dar	sentido	ao	seu	conteúdo.
SOBRE	A	LITERATURA
Se,	então,	podemos	concordar	que	algo	como	a	literatura	existe,	e	que	há	como
lê-la	e	falar	de	forma	sensata	sobre	o	tema	sem	que	nossas	palavras	desmoronem
sobre	si	mesmas,	importa	perguntarmos,	embora	de	forma	breve,	o	que	é	a
literatura	e	o	que	fazer	com	ela.	(Refiro-me	à	“literatura”	em	seu	sentido	mais
amplo,	incluindo	a	maioria	dos	escritos	da	maior	parte	dos	seres	humanos,	mas
não	incluindo	listas	telefônicas,	bilhetes	de	ônibus	e	coisas	do	tipo,	por	mais
valiosas	que	sejam	como	símbolos	culturais.)	Nesse	contexto,	a	agora	familiar
história	da	epistemologia	moderna	se	repete,	embora	exemplos	de	pontos	de
vista	extremos	possam	ser	difíceis	de	encontrar.	Na	extremidade	positivista,	a
literatura	pode	ser	concebida	simplesmente	como	a	descrição	“neutra”	do	mundo
—	as	tentativas	bizarras	de	gerações	anteriores	de	nivelar	a	poesia,	reduzindo	a
metáfora	a	uma	linguagem	simples	e	sem	adornos,	parecem	ter	operado	sob	esse
equívoco.	Na	outra	extremidade	da	escala,	a	literatura	foi	considerada	(e	talvez,
como	já	vimos,	os	poetas	românticos	nos	tenham	encorajado	a	fazer	isso)	[	130	]
uma	coletânea	de	sentimentos	subjetivos.
Como	alternativa	para	ambos	os	extremos,	sugiro	que	a	escrita	humana	é	mais
bem	concebida	como	a	articulação	de	visões	de	mundo	ou,	melhor	ainda,	a
narração	de	histórias	que	conduzem	à	articulação	de	visões	de	mundo.	É	claro
que	isso	acontece	de	várias	maneiras.	Algumas	são	bastante	óbvias:	o	romance,	o
poema	narrativo	e	a	parábola	já	contam	histórias;	assim,	não	é	difícil	descrever	o
movimento	que	precisa	ser	feito	do	enredo	específico	em	questão	(ou	de	seus
subenredos)	para	o	tipo	de	visão	de	mundo	que	está	sendo	articulado.	Outros	não
são	tão	óbvios,	mas	nem	por	isso	deixam	de	ser	importantes	à	sua	maneira.	A
carta	sucinta	a	um	colega	reforça	nosso	mundo	narrativo	partilhado	em	que	os
arranjos	para	o	ensino	do	próximo	semestre	devem	ser	feitos	com	antecedência
e,	assim,	reforça,	por	sua	vez,	o	mundo	mais	amplo	em	que	ambos	contamos	a
nós	mesmos,	e	uns	aos	outros,	a	história	das	universidades,	do	estudo,	do	ensino
e	da	teologia	—	ou,	se	formos	cínicos,	a	história	de	termos	um	emprego	e	não
querermos	perdê-lo.	A	carta	de	amor,	não	importa	quão	agramatical	ou
rapsódica,	conta,	em	um	nível	mais	profundo,	uma	história	muito	poderosa	sobre
o	que	significa	ser	humano.	O	livro	árido,	com	suas	listas	e	teoremas,	conta	a
história	de	um	mundo	ordeiro	e	fala	da	possibilidade	de	os	seres	humanos
compreenderem	essa	ordem	e	trabalharem	proficuamente	dentro	dela.	Poemas
curtos	e	aforismos	são	para	as	visões	de	mundo	o	que	as	fotos	instantâneas	são
para	a	história	de	um	feriado,	de	uma	infância,	de	um	casamento	etc.
Sugiro,	portanto,	que	parte	da	tarefa	da	crítica	literária	consista	em	desnudar	e
explicar	o	que	o	escritor	produziu	em	nível	de	narrativa	implícita	e,	em	última
análise,	de	visão	de	mundo	implícita,	bem	como	o	método	que	empregou	com
esse	propósito.	[	131	]	A	tarefa	pode	ser	realizada,	ainda	que	o	escritor
permaneça	desconhecido	(o	que	também	é	bom,	em	vista	do	anonimato	de
muitas	obras,	inclusive	no	Novo	Testamento).	Mas	pode	contar	com	a	ajuda,	em
seu	caminho,	de	alguma	consideração,	mesmo	em	nível	hipotético,	do	que	o
escritor	tentava	ou	pretendia	fazer.	Aqui,	mais	uma	vez,	deparamos	com	a
familiar	dicotomia.	O	crítico	positivista	dirá	que	o	objetivo	da	crítica	é
estabelecer	o	significado	“certo”	ou	“verdadeiro”	do	texto,	partindo	do
pressuposto	de	que	tal	significado	existe	e	que	pode,	hipoteticamente,	ser
encontrado.	O	leitor	fenomenalista	—	que,	nesse	caso,	pode	muito	bem	acabar
sendo	um	desconstrucionista	—	passará	a	dizer	que	tal	coisa	não	existe.	Há
apenas	a	minha	leitura,	a	sua	leitura	e	um	número	infinito	de	outras	leituras
possíveis.	Em	resposta	a	ambos	os	extremos,	a	leitura	crítico-realista	de	um	texto
reconhecerá	e	levará	em	consideração	a	perspectiva	e	o	contexto	do	leitor.	Mas
tal	leitura	continuará	a	insistir	que,	dentro	da	história/narrativa	ou	das	histórias
que	parecem	dar	sentido	a	toda	a	realidade,	existem,	como	aspectos
essencialmente	diferentes	do	leitor,	textos	que	podem	ser	lidos,	que	têm	uma
vida	e	um	conjunto	de	significados	adequados,	não	apenas	potencialmente
independentes	de	seu	autor,	mas	também	de	seu	leitor;	e	que	o	nível	mais
profundo	de	significado	consiste	nas	histórias	—	e,	em	última	análise,	nas	visões
de	mundo	—	que	os	textos	articulam.	Assim,	o	crítico	positivista,	lendo	a
parábola	dos	lavradores	infiéis,	procurará	localizá-la	em	um	contexto	histórico
particular	—	seja	a	vida	de	Jesus,	a	pregação	da	igreja	primitiva	ou	a	escrita	de
um	dos	evangelhos.	Tentará	uma	descrição	completa	e	“objetiva”	do	que	a
narrativa	significava	na	época.	O	aparente	sucesso	desse	projeto	poderá	atrair	os
inexperientes	a	pensarem	que	o	positivismo	provou	seu	ponto	—	até	que	outros
comentários	sejam	consultados,	nos	quais	relatos	igualmente	“objetivos”,
embora	muito	diferentes,	são	oferecidos.	Eles	podem,	claro,	dialogar	entre	si.	No
entanto,	ao	começarem	a	fazê-lo,	já	estão	admitindo	que	o	positivismo	não	é	tão
simples	quanto	parece,	e	que	talvez	um	modelo	epistemológico	diferente	seja	a
melhor	opção.
Já	o	fenomenalista,	por	sua	vez,	lê	a	parábola	e	se	enxerga	abordado	nela.
Embora	perceba	que	a	parábola	pode	ter	um	contexto	histórico,	o	importante,
para	ele,	é	o	que	a	história	lhe	diz	hoje.	Até	certo	ponto,	essa	explicação	se
ajusta,	conforme	observamos	anteriormente,	tanto	ao	fundamentalista	como	ao
desconstrucionista.	O	que	não	pode	ser	feito	com	esse	tipo	de	leitura,	porém,	é
reivindicar	qualquer	normatividade	para	ela:	só	porque	o	texto	diz	algo	para
mim,	não	há	por	que	dizer	a	mesma	coisa	para	você.	Se	não	formos	cuidadosos,
a	afirmação	“esta	parábola	me	diz	que	devo	ser	fiel	às	responsabilidades	que	me
foram	dadas	por	Deus”,	ou	“esta	parábola	fala	de	Jesus	morrendo	por	mim”,
ruirá	e	se	resumirá	a	declarações	cujo	sentido	público	não	é	diferente	de	“eu
gosto	de	sal”	ou	“eu	gosto	de	Sibelius”.	O	fenomenalista	“compra”	a	certeza	e	a
segurança	de	suas	declarações	em	relação	ao	texto	à	custa	da	perda	de	sua
relevância	pública.
Realistas	críticos,	no	entanto,	procurarão	evitar	ambas	as	armadilhas.	Devemos
estar	cientes	do	nosso	próprio	ponto	de	vista.	Leitores	de	textos	sobre	senhores	e
servos	podem	muito	bem	demonstrar	uma	simpatia	instintivaem	relação	a	um	ou
ao	outro	tipo;	o	mesmo	se	dá	com	leitores	de	textos	sobre	pais	e	filhos.	Leitores
que,	de	alguma	forma,	consideram	alguns	textos	normativos	(com	base	em	sua
própria	perspectiva	ou	na	perspectiva	de	outros)	os	abordam	com	certas
esperanças,	ou	até	mesmo	com	determinados	receios.	Em	outras	palavras,	lemos
uma	história	à	luz	de	todos	os	tipos	de	outras	histórias	que	habitualmente
trazemos	conosco	—	ou	seja,	à	luz	de	nossa	visão	de	mundo	fundamental.
Todavia,	é	precisamente	parte	da	história	que	continuamente	contamos	a	nós
mesmos,	como	forma	de	dar	maior	sentido	ao	nosso	ser	no	mundo,	o	fato	de	que
existem,	além	de	nossas	próprias	narrativas	particulares,	outras	histórias,	outros
textos	—	incluindo	os	textos	encontrados	no	Novo	Testamento	—,	e	que,	para
eles,	essas	histórias	podem,	se	atentarmos	para	elas,	modificar	ou	subverter
algumas	ou	todas	as	demais	histórias	que	temos	contado	a	nós	mesmos.	Existem
outras	visões	de	mundo;	essas	visões	expressam-se	em	formas	de	literatura	e
interagem	com	nossa	perspectiva	particular.	A	leitura	crítico-realista	é	uma	lectio
catholica,	semper	reformanda:	busca	ser	verdadeira	consigo	mesma	e	com	o
mundo	público,	embora	sempre	esteja	aberta	à	possibilidade	do	desafio,	da
modificação,	da	subversão.
Portanto,	não	somente	lemos	o	texto	e	o	examinamos	em	toda	a	sua	alteridade
histórica	em	relação	a	nós,	como	também	em	toda	a	sua	relação	transtemporal,
com	a	consciência	da	complexa	interligação	existente	entre	essas	duas	análises.
Quando	chegamos	à	parábola,	nós	a	lemos	como	uma	narrativa	que	já	tem	uma
trajetória	histórica:	lemos	a	narrativa	de	Israel,	que	agora	sofre	uma	nova	e
alarmante	reviravolta;	lemos	uma	narrativa	sobre	Israel	cuja	essência,
surpreendentemente,	concerne	a	Jesus;	lemos	uma	narrativa	com	um	significado
no	ministério	de	Jesus,	mas	com	outro	sentido,	muito	diferente,	ao	ser	recontada
pela	igreja	primitiva,	assim	como	um	livro	a	respeito	de	um	romance	é	diferente
do	próprio	romance.	Além	do	mais,	ainda	que,	como	parte	de	nossa	história	em
geral	(e,	em	tese,	passível	de	subversão),	acreditemos	em	nossa	capacidade	de,
novamente	em	tese,	alcançar	algum	tipo	de	precisão	histórica	nessas	leituras,	o
“significado”	que	a	parábola	continua	a	ter	permanecerá	aberto	em	diversos
aspectos	importantes.	Haverá	espaço	para	uma	adequação	sobre	certos
significados	potenciais,	e	não	sobre	outros.	A	discussão	de	onde	surgem	os
diferentes	“significados”	sugeridos	poderá	e	deverá	ocorrer;	não	se	trata	de	um
jogo	privado.	E	o	teste	de	novos	significados	propostos	vai	condizer	com	sua
continuidade	demonstrável	em	relação	aos	significados	históricos.	Quanto	ao
que	conta	como	continuidade,	por	ora	a	ideia	deve	permanecer	em	aberto.	O
ponto	em	questão	é	que	a	história/narrativa	trouxe	à	luz	uma	visão	de	mundo,	de
modo	que,	ao	lê-la	historicamente,	posso	detectar	que	sempre	teve	a	intenção	de
ser	uma	narrativa	subversiva,	minando	uma	visão	de	mundo	e	tentando	substituí-
la	por	outra.	Ao	lê-la	com	atenção,	percebo	que	ela	também	pode	subverter	a
minha	visão	de	mundo.
Aplicando	tudo	isso	em	um	contexto	mais	amplo	para	a	literatura	judaica	e	cristã
do	primeiro	século,	descobrimos,	sem	dificuldade,	que	boa	parte	do	material	tem
uma	forma	de	história	facilmente	discernível,	quer	na	superfície	do	texto,	quer
não	muito	abaixo	dela.	[	132	]	Existem,	porém,	em	ambas	as	tradições	religiosas,
dois	tipos	de	narrativas	notadamente	diferentes.	Há,	em	primeiro	lugar,	histórias
que	incorporam	e	articulam	uma	visão	de	mundo,	embora	seja	claro	que	não	se
referem	a	acontecimentos	do	mundo	público.	Obviamente,	as	parábolas	se
enquadram	nessa	categoria	e,	no	judaísmo,	tem-se	um	livro	como	José	e
Azenate.	[	133	]	Em	segundo	lugar,	há	histórias	que	incorporam	e	articulam	uma
visão	de	mundo	ao	contar	(mais	ou	menos)	o	que	realmente	aconteceu	no
domínio	público,	uma	vez	que	essa	é	a	perspectiva	que	pretende	explicar.	No
judaísmo,	trata-se,	obviamente,	do	caso	de	livros	como	1	e	2Macabeus,	e
Antiguidades	e	Guerras	judaicas,	[	134	]*	de	Josefo:	Josefo	está	bem	ciente	da
acusação	de	ter	inventado	tudo,	de	modo	que	lhe	é	claramente	importante	negar
tal	acusação.	[	135	]	No	cristianismo,	a	questão	é,	obviamente,	bastante
controvertida.	O	livro	que	professa	mais	ruidosamente	ter	sido	escrito	por
alguém	que	sabia	do	que	estava	falando	(o	evangelho	de	João,	cf.	21:24)	é	o	que
costuma	ser	considerado	uma	história	do	primeiro	tipo,	não	do	segundo.
Encontramos	ironia	semelhante	no	trabalho	de	alguns	críticos	que	consideram	os
evangelhos	“gnósticos”	histórias	do	segundo	tipo,	mais	próximas	dos
acontecimentos,	e	os	sinóticos,	histórias	do	primeiro	tipo,	ou	seja,	mitos
etiológicos	para	um	tipo	de	cristianismo	fora	de	sintonia	com	seu	fundador.	[	136
]	Teremos	de	examinar	essas	questões	em	mais	detalhes	na	Parte	IV,	mas,	por
ora,	podemos	afirmar	o	seguinte:	na	visão	de	mundo	judaica,	era	de	vital
importância	que	certos	eventos	se	passassem	na	história	pública,	precisamente
pelo	fato	de	a	maioria	dos	judeus	acreditar,	como	veremos,	que	o	seu	deus	era	o
criador	do	mundo	e	continuava	a	agir	em	sua	criação.	Embora	os	judeus	fossem
capazes	de	expressar	toda	ou	parte	de	sua	história	em	narrativas	sem	referente
histórico	real,	tais	histórias	são	essencialmente	derivadas,	destinadas	a	extrair,
reforçar	ou	talvez	até	mesmo	subverter	a	ênfase	das	histórias	do	segundo	tipo.
Uma	história	sobre	um	deus	que	não	agiu	ou	sequer	desejaria	agir	na	história
subverteria	a	história	judaica	básica	de	forma	tão	completa	que	não	sobraria
nada.	Foi	o	que	Marcião	e	os	gnósticos	fizeram;	curiosamente,	os	movimentos
modernos	que	mais	se	aproximam	do	gnosticismo	são	também	as	vozes
contemporâneas	mais	ruidosas	no	incentivo	à	“desjudaização”	da	tradição	de
Jesus.	[	137	]
Neste	ponto,	sugiro	que	o	crítico	que	deseja	fazer	jus	aos	próprios	textos,	em	vez
de	desconstruí-los	e	torná-los	irreconhecíveis,	deve	aceitar	a	necessidade	de	falar
de	assuntos	no	mundo	extralinguístico,	caso	queira	evitar	que	aquilo	que	é	dito
no	mundo	linguístico	não	caia	na	incoerência.	É	o	caso	de	um	dos	principais
argumentos	do	trabalho	recente	de	Anthony	Thiselton.	[	138	]	Com	fundamento
na	teoria	dos	atos	da	fala	proposta	por	Searle,	assim	como	nos	argumentos
filosóficos	de	Wolterstorff,	Habermas	e,	acima	de	tudo,	Wittgenstein,	Thiselton
argumenta,	de	forma	convincente,	que,	para	muitos	atos	da	fala,	existe	um
elemento	vital	e	inegociável,	o	qual	consiste	no	“encaixe”	entre	o	que	é	dito	e	os
acontecimentos	do	mundo	extralinguístico.	Embora	grande	parte	de	sua	atenção
seja	concentrada	nos	atos	da	fala	relacionados	a	eventos	não	linguísticos
presentes	e	futuros,	também	inclui,	de	forma	explícita,	o	ponto	que	desejo
destacar:	que	uma	parte	vital	na	apropriação	de	pelo	menos	alguns	textos
bíblicos	é	o	trabalho	da	reconstrução	histórica.	[	139	]	O	fato	de	essa
reconstrução	ser	possível	e	também	conveniente	será	abordado	no	próximo
capítulo.	Cheguei	à	conclusão	de	que	os	argumentos	contrários	a	essa
possibilidade	são,	com	frequência,	reduzidos	a	argumentos	contra	sua
conveniência.	A	cosmovisão	filosófica	que	o	torna	inconveniente	oferece,	ao
mesmo	tempo,	ferramentas	para	torná-lo	aparentemente	impossível.	Toda	a
seção	deste	livro	foi	projetada	para	subverter	essa	visão	de	mundo.	O	crítico
literário	que	trabalha	com	documentos	de	movimentos	religiosos	do	primeiro
século	deve,	assim,	extrair	e	explicar	a	história	que	os	escritos	contam	ou	para	a
qual,	em	suas	diversas	formas,	contribuem.	Tal	análise	da	visão	de	mundo	por
meio	da	história	é	central	à	tarefa.	Ao	fazer	isso,	também	é	necessário,
obviamente,	examinar	a	história	ou	as	histórias	que	os	próprios	escritos
abordam,	reforçam,	subvertem	etc.	E,	assim	como	o	crítico	trabalhando	em	de	la
Mare	ou	Mann	também	deve	mostrar	como	os	textos	em	questão	cumprem	sua
função	—	também	indagando,	talvez,	se	essa	é	a	função	que	o	autor	pretendia
—,	o	crítico	do	Novo	Testamento	deve	estudar	as	partes	à	luz	do	todo,	traçando	a
relação	entre	forma	e	conteúdo,	estrutura	e	impacto,	arte	e	efeito.	Sem	dúvida,	hámuito	mais	a	ser	dito	sobre	esse	assunto.	Mas	pelo	menos	abrimos	algum	espaço
no	qual	podemos	assumir	nossa	posição	e	prosseguir	com	a	tarefa.	Antes	de
passarmos	para	os	principais	componentes	do	assunto,	da	história	e	da	teologia
do	Novo	Testamento,	devemos	olhar	com	mais	detalhes	para	a	categoria	central
que	temos	usado	desde	o	início.	Vimos,	ao	longo	de	nossa	argumentação,	que
um	dos	temas	mais	fundamentais	da	consciência	humana	é	o	da
história/narrativa.	Ademais,	é	inquestionável	que	uma	boa	parte	do	Novo
Testamento	(e	da	literatura	judaica	que	forma	parte	de	seu	contexto)	consiste	em
histórias	reais.	Devemos,	portanto,	examinar	mais	de	perto	o	que	são	essas
histórias	e	como	funcionam.
A	NATUREZA	DAS	HISTÓRIAS
1.	Análise	textual:	estrutura	narrativa
A	forma	como	as	histórias	exercem	um	tipo	de	poder	—	pelo	qual	mudam	a
forma	como	as	pessoas	pensam	e	se	comportam,	alterando,	portanto,	a	forma
como	o	mundo	é	—	pode	ser	vista	mais	claramente	por	meio	de	uma	análise	dos
componentes	essenciais	que	elas	contêm.	Entre	muitas	características	que	foram
estudadas	nos	últimos	anos,	encontram-se:	narrador,	ponto	de	vista,	padrões	de
julgamento,	autor	implícito,	leitor	ideal,	leitor	implícito,	estilo,	técnicas	retóricas
etc.	Poderíamos	dizer	muito	mais	sobre	esses	assuntos,	mas	este	livro	não	se
destina	a	isso.	[	140	]	Muita	atenção,	entretanto,	tem	sido	dada	a	um	elemento
em	particular:	a	estrutura	narrativa	das	histórias	e	como	ela	funciona;	e	esse
elemento	formará	uma	parte	vital	de	diversos	argumentos	que,	mais	adiante,
apresentarei	neste	livro.	Sigo	aqui,	mais	ou	menos,	a	análise	de	histórias
elaborada	por	A.	J.	Greimas,	acompanhando	o	trabalho	pioneiro	de	Vladimir
Propp.	[	141	]	A	esse	respeito,	cabem	algumas	observações	preliminares.
O	trabalho	de	Greimas	foi	frequentemente	incorporado	aos	estudos	bíblicos	nos
últimos	anos,	segundo	vemos,	por	exemplo,	nos	trabalhos	de	D.	O.	Via	e	J.	D.
Crossan,	já	discutidos	de	forma	sucinta.	Em	geral,	isso	tem	sido	feito	a	serviço
de	uma	abordagem	formalista	e/ou	estruturalista,	a	qual,	como	vimos,	tem	sido
uma	forma	de	ler	o	texto	e	talvez	de	tentar	dizer	algo	“objetivo”	a	seu	respeito.
Tal	abordagem	se	distingue	daquela	que	tenta	situar	o	texto	dentro	da	história	de
um	autor	ou	comunidade,	[	142	]	usando-o	como	base	para	a	reconstrução
histórica.	Pode-se	pensar,	portanto,	que	o	uso	de	Greimas	é	aderir	a	um	modelo
estruturalista	um	tanto	ultrapassado	e,	de	qualquer	forma,	decididamente	anti-
histórico.	Contra	isso,	e	a	favor	de	um	uso	cauteloso	de	uma	análise	narrativa	do
tipo	articulado	por	Greimas	no	presente	projeto,	sugiro	que	a	ênfase	recente	na
narrativa,	no	contexto	das	teorias	da	epistemologia	e	da	hermenêutica	(cap.	2)	e
do	estudo	histórico	(cap.	4),	exige	que	busquemos	uma	compreensão	de	como
funcionam	as	narrativas	e	que	reempreguemos	Greimas	nesse	cenário	—	não
para	segui-lo	servilmente	ou	em	um	contexto	formalista,	mas	a	serviço	de	um
programa	histórico	e	hermenêutico	mais	amplo.	O	método	de	Greimas,	sem
dúvida,	não	é	infalível,	e	não	vou	entrar	aqui	nos	debates	a	esse	respeito.	[	143	]
Como	de	costume,	a	prova	do	pudim	está	em	comê-lo.
O	esquema	de	Greimas	pode	ser	mais	bem	visualizado	em	uma	série	de
diagramas.	Sua	complexidade,	principalmente	para	aqueles	que	não	estão
familiarizados	com	Greimas	e	seus	projetos,	pode	parecer	proibitiva,	como	se
alguém	tentasse	explicar	o	desconhecido	utilizando-se	do	incognoscível.	[	144	]
Mas	o	objetivo	do	que	pode	parecer	uma	análise	tortuosa,	espero,	gradualmente
se	tornará	aparente.	Sem	muita	atenção	às	diferentes	fases	de	como	a	história
realmente	funciona,	o	intérprete	está	quase	fadado	a	saltar	muito	rapidamente
para	esta	ou	aquela	conclusão	(provavelmente	errada),	especialmente	quando	a
história	em	questão	é	muito	familiar	devido	ao	seu	recontar	frequente.	As
exigências	do	método	nos	obrigam	a	desacelerar	e	prestar	atenção	em	cada
estágio	quanto	ao	que	realmente	está	acontecendo.	Posteriormente,	sugerirei	que
a	falha	em	dar	atenção	à	história	real	contada	tanto	por	judeus	como	por	cristãos
—	ou	seja,	a	história	do	Antigo	Testamento	—	foi	a	acusação	básica	que	a	igreja
primitiva	levantou	contra	o	judaísmo.	Também	é	possível	sugerir	que	uma	falha
semelhante	por	parte	dos	cristãos	contemporâneos	é	generalizada	e,	além	disso,
está	na	raiz	de	muitos	mal-entendidos	da	tradição	cristã	em	geral	e	dos
evangelhos	em	particular.
Uma	história	típica	pode	ser	dividida	em	três	momentos.	Há	a	sequência	inicial,
em	que	um	problema	é	armado	e	criado,	com	um	herói	(ou	heroína)	encarregado
de	uma	tarefa	cujo	cumprimento	parece	difícil	ou	até	mesmo	impossível;	a
sequência	tópica,	na	qual	o	personagem	central	tenta	resolver	o	problema
proposto	e	acaba	conseguindo;	e	a	sequência	final,	em	que	a	tarefa	é	enfim
concluída.	Assim:
sequência	inicial:	Chapeuzinho	Vermelho	recebe	comida	de	sua	mãe	para	levar
para	a	avó,	mas	é	impedida	pelo	lobo	de	fazê-lo.
sequência	tópica:	o	resgate	chega,	com	o	tempo,	na	forma	do	lenhador.
sequência	final:	Chapeuzinho	Vermelho	consegue,	ao	final,	entregar	a	comida
para	a	avó.
Tais	sequências	podem	ser	definidas	em	diagramas	úteis,	adotando-se	o	seguinte
esquema:
O	“remetente”	é	o	iniciador	da	ação,	que	comissiona	o	“agente”	para	executá-la
—	ou	seja,	para	pegar	ou	transmitir	o	“objeto”	ao	“receptor”.	O	“agente”	é
impedido	de	fazer	o	que	lhe	é	exigido	por	alguma	força	—	o	“oponente”	—	e	é,
ao	menos	potencialmente,	auxiliado	pelo	“ajudador”.	Na	sequência	inicial,
obviamente,	o	oponente	(que	pode	ser	simplesmente	um	defeito	de	caráter	do
agente)	é	mais	poderoso	do	que	o	agente	ou	qualquer	ajuda	disponível.	Se	não
fosse	assim,	não	haveria	história,	mas	apenas	uma	frase:	“Chapeuzinho
Vermelho	foi	enviada	por	sua	mãe	para	levar	um	pouco	de	comida	para	a	avó;
foi	o	que	ela	fez,	e	todos	viveram	felizes	para	sempre”.	Pode	ser	encantador,	mas
não	é	uma	história.	Não	tem	enredo.	Não	incorpora	uma	visão	de	mundo,	exceto,
talvez,	uma	cosmovisão	extremamente	ingênua.	Então:
Apesar	de	seu	charme	e	de	sua	obediência	—	as	únicas	coisas	com	as	quais	a
protagonista	pode	contar	—,	a	heroína	não	consegue	impedir	o	lobo	de	frustrar	o
plano,	visto	que	ele	come	a	avó	de	Chapeuzinho	e	ameaça	comê-la	também.	O
plano	da	mãe	de	fornecer	comida	para	a	moradora	da	casinha	na	floresta	recebe
uma	reviravolta	monstruosa.	Mas,	então,	a	sequência	tópica	fornece	uma	ajuda,
como	deve	ser	para	que	a	história	não	seja	abortada	novamente:	“Chapeuzinho
Vermelho	levou	um	pouco	de	comida	para	sua	avó,	mas	o	lobo	comeu	as	duas”;
a	ideia	não	corresponde,	mais	uma	vez,	a	uma	história	em	seu	sentido	pleno.	Na
sequência	tópica,	é	importante	ressaltar	que	o	agente	da	sequência	inicial	passa	a
ser	o	receptor,	pois	é	ele,	agora,	que	precisa	de	algo,	a	saber,	de	ajuda	para	sair
da	confusão.	Não	há	um	“remetente”	aparente	nesse	caso	particular,	como	em
muitas	sequências	de	várias	histórias	—	o	que	não	representa	nenhum	problema
e,	de	fato,	normalmente	até	confere	certo	ar	de	mistério,	como	no	caso	de	O
Senhor	dos	Anéis,	de	Tolkien,	em	que	o	leitor	está	sempre	ciente	de	que	até
mesmo	os	líderes	raramente	vistos	em	ambos	os	lados	representam	poderes	que
circundam	os	protagonistas.
Sequências	tópicas	assumem	a	mesma	forma	que	as	sequências	iniciais:	na
natureza	do	caso,	porém,	o	“Agente”	do	primeiro	esquema	é	o	“Receptor”	deste,
visto	que,	agora,	o	agente	precisa	de	resgate	e	ajuda.	Um	novo	“Agente”	é,
portanto,	necessário,	trazendo	um	novo	“Objeto”	—	relacionado	à	libertação	do
Agente	de	sua	situação	difícil	—	para	o	resgate.	Nessa	fase,	novos	oponentes
podem	ou	não	ser	adicionados.	Desse	modo:
Ao	aplicarmos	tal	esquema	a	essa	sequência	tópica	de	um	conto	popular,
deparamos	com	o	seguinte:
O	machado	é	poderoso	demais	para	o	lobo;	a	pobre	garota	é	resgatada;	a	avó,
após	ser	libertada	do	estômago	do	lobo	(ao	menos	em	algumas	versões	da
história),	finalmente	recebe	comida.	A	sequência	final,	portanto,	repete	a
sequência	inicial,	com	a	importante	diferença	de	que	revela	uma	situação	bem-
sucedida:
Assim,	aplicando-oà	nossa	heroína	e	ao	seu	destemido	salvador:
John	Barton,	um	dos	atuais	defensores	de	diferentes	métodos	de	estudo	bíblico,
afirma	que	a	história	exige	esse	final:	se	o	lenhador	tivesse	libertado	o	lobo	e	se
casado	com	Chapeuzinho	Vermelho,	uma	cosmovisão	inteiramente	nova	viria	à
luz.	Naturalmente,	isso	é	possível:	somos	capazes	de	imaginar	um	discípulo	de
Sartre	propondo	algo	assim;	[	145	]	mas	não	era	para	esse	fim	que	a	história
remetia	desde	o	início.	[	146	]	Esta	é	a	sintaxe	dos	contos	de	fadas:	é
simplesmente	assim	que	funcionam.	Se	essa	sintaxe	for	alterada,	um	movimento
poderosamente	subversivo	de	pensamento	torna-se	manifesto.
Devemos,	obviamente,	reconhecer	de	imediato	que	a	maior	parte	das	histórias
apresentam	muito	mais	complexidade	do	que	essa.	É	comum	que	contenham
subdivisões,	enredos	dentro	de	enredos	etc.;	veremos,	em	um	momento,	uma
história	bíblica	conhecida	que	tem	essencialmente	um	enredo	dentro	do	outro.	E
também	deve-se	dizer	que	uma	divisão	importante	da	narrativa,	a	saber,	a
tragédia,	não	se	encaixa	tão	obviamente	no	esquema	mencionado.	Nos	contos
populares,	as	coisas	tendem	a	dar	certo	no	final:	sem	dúvida,	isso	diz	respeito	às
funções	para	as	quais	elas	foram	projetadas.	Penso	que	a	tragédia	pode	ter	um
esboço	próprio,	encaixando-se	no	esquema	elaborado	por	Greimas	ao	seu
próprio	modo.	A	história	que	contarei	a	seguir	também	ilustrará	esse	ponto.	[	147
]
Conforme	veremos,	as	muitas	reviravoltas	do	enredo	de	uma	história,	a	qual
recairá	principalmente	em	subdivisões	da	“sequência	tópica”,	exibem	sequências
em	miniatura	da	mesma	forma,	às	vezes	até	mesmo	pequenos	detalhes.	Essa
análise	minuciosa	já	foi	praticada	nos	evangelhos,	[	148	]	com	o	texto	sendo
posto	ao	microscópio	para	ver	o	que	de	fato	está	“acontecendo”	por	trás	de	uma
narrativa	cujas	características	externas	são	frequentemente	tão	conhecidas	que
proíbem,	em	vez	de	encorajar,	uma	nova	compreensão.	Embora	esse	exercício	às
vezes	pareça	tão	denso	que	se	transforma,	por	sua	vez,	em	mais	uma	barreira
para	a	compreensão,	pode	ajudar-nos,	por	exemplo,	a	localizar	onde	residem	as
ênfases	principais	de	uma	narrativa	(que	podem	não	estar	onde	as	leituras
“normais”	do	texto	nos	condicionam	a	olhar),	e	como	as	diversas	partes	se
relacionam	com	o	todo.	Há	uma	necessidade	premente	de	exercer	melhor
controle	na	prática	desse	método,	ou	seja,	de	encontrarmos	meios	de	avaliar	as
respectivas	afirmações	dos	críticos	que	o	utilizaram.	[	149	]	Creio,	por	exemplo,
que	muitos	daqueles	que	praticaram	essa	análise	abordaram	o	texto	com
pressuposições	não	examinadas	e	chegaram	a	conclusões	que	devem	ser
contestadas.	[	150	]	Em	tese,	porém,	a	análise	narrativa	é	mais	do	que	apenas	um
exercício	útil.	Em	um	mundo	(acadêmico)	que	não	sabe	o	que	são	e	para	que
servem	as	histórias,	essa	é	uma	tarefa	necessária	se	desejarmos	recapturar	as
importantes	dimensões	do	texto.
2.	Análise	textual:	os	lavradores	infiéis
Como	exemplo,	olhemos	brevemente	para	nossa	velha	amiga,	a	parábola	dos
lavradores	infiéis	(Marcos	12:1-12	e	passagens	paralelas).	Nela,	encontramos
uma	estrutura	suficientemente	clara,	que	demonstra	ser	um	enredo	dentro	de	um
enredo,	sendo	o	enredo	interior	essencialmente	trágico.	A	história	tem	início	com
um	proprietário	que	planta	uma	vinha	a	fim	de	(ao	que	parece)	obter	fruto	para	si
mesmo,	empregando	lavradores	como	agentes,	a	despeito	(ao	que	parece)	da
ganância	desses	trabalhadores:
1.	Sequência	inicial
Até	aqui,	tudo	bem.	O	dono	envia	mensageiros	aos	lavradores	para	obter	os
frutos;	esse	é	o	primeiro	movimento	da	história	interna.	Os	lavradores,	porém,
acabam	sendo	não	apenas	o	objeto	da	jornada	dos	mensageiros,	mas	também	os
oponentes	do	plano;	esse	elemento	precipita	a	natureza	trágica	da	história
interna,	o	fato	de	que	sua	conclusão	carrega	uma	triste	ironia.	[	151	]
2.	Sequência	tópica	(1)	[=	nova	sequência	inicial	para	a	história	interna]
Após	falhar	no	movimento	inicial,	o	dono	envia	seu	próprio	filho	para	substituir
os	mensageiros:
3.	Sequência	tópica	(2)	[=	Sequência	tópica	da	história	interna]
Há,	agora,	duas	coisas	que	devem	ser	feitas	para	que	o	plano	original	seja	bem-
sucedido.	Como	o	ponto	culminante	trágico	da	história	interna,	os	lavradores
devem	colher	o	destino	que	semearam	para	si	mesmos.	E,	como	o	clímax	de
sucesso	da	história	externa,	o	plano	original,	de	alguma	forma,	tem	de	ser
realizado,	apesar	da	rebelião	dos	lavradores.	Assim,	primeiro	o	proprietário	vem
pessoalmente	e	destrói	os	lavradores:	[	152	]
4.	Sequência	tópica	(3)	[=	Sequência	final	da	história	interna]
(Em	breve,	veremos	que	o	espaço	em	branco	na	posição	“ajudante”	é
importante.)	Por	fim,	o	dono	instala	novos	lavradores,	que	produzirão	os	frutos
de	que	ele	necessita,	voltando,	por	fim,	à	sequência	inicial.	[	153	]	Contudo,	em
vez	de	os	mesmos	lavradores	finalmente	fazerem	o	que	deveriam	fazer	—	como
Chapeuzinho	Vermelho,	que,	finalmente,	entregou	a	comida	para	a	avó	—,	a
natureza	trágica	da	história	interna	significa	que	o	agente	original	deve	ser
suplantado	por	um	novo	agente:
5.	Sequência	final	da	história	principal
O	que	aprendemos	sobre	a	história	por	esse	meio?	Muito,	em	todos	os	sentidos.
Em	primeiro	lugar,	penso	que	devemos	destacar	(mais	do	que	faríamos	de	outra
forma)	a	questão	das	intenções	do	dono.	Evidentemente,	elas	dizem	respeito	a
uma	realidade	para	além	da	vinha	em	si.	A	vinha	está	lá	para	cumprir	um
propósito.	Nos	contextos	históricos	da	parábola	(ou	seja,	o	cenário	óbvio	no
trabalho	dos	evangelistas,	além	do	cenário	hipoteticamente	histórico	na	vida	de
Jesus),	a	vinha	é	certamente	Israel;	e	a	história	pressupõe	que	Israel	não	foi
criado	para	benefício	próprio,	mas	para	cumprir	os	propósitos	do	deus	com	quem
fez	aliança,	propósitos	que	se	estendem	para	além	de	suas	próprias	fronteiras.
Em	segundo	lugar,	o	papel	do	filho	é	mais	limitado	do	que	se	poderia	pensar	por
uma	leitura	menos	cuidadosa,	superconsciente	de	uma	cristologia	posterior.	Não
há	nada	na	morte	do	filho	que	sugira	outra	coisa	senão	o	fracasso	da	sequência
(3),	nenhuma	sugestão,	dentro	das	possibilidades	narrativas,	de	que	essa	morte,
de	alguma	forma,	fosse	o	meio	de	a	história	sofrer	uma	reviravolta	—	exceto	no
sentido	negativo	de	que,	não	tendo	mais	nada	a	fazer,	o	dono	agora	deve	ir
pessoalmente	e	resolver	aquela	bagunça.	No	drama	da	história,	o	filho	é
basicamente	o	último	e	mais	comovente	dos	mensageiros	fracassados.	Após	o
seu	fracasso,	o	desastre	é	a	única	coisa	que	resta.
Em	terceiro	lugar,	observamos	que,	nas	sequências	(2)	e	(4),	os	lavradores
aparecem	em	duas	posições	distintas.	Talvez	isso	faça	parte	da	essência	da
tragédia:	que	os	personagens	da	história	que	foram	projetados	para	se	envolver
em	algum	outro	papel,	como	receptores	ou	sujeitos,	apareçam	na	mesma	história
como	oponentes.	(O	papel	ambíguo	dos	discípulos	nos	evangelhos,	tomados
como	um	todo,	deve	ser	considerado	a	partir	desse	ponto	de	vista.)	A	menos	que
outro	subenredo	intervenha,	um	subenredo	através	do	qual	eles	são	removidos
dessa	categoria,	sua	parte	na	história	está	fadada,	no	final,	ao	desastre.
Em	quarto	lugar,	dentro	da	função	da	narrativa	em	seus	contextos	históricos,	os
novos	lavradores,	que	aparecem	como	agentes	na	sequência	(5),	não	podem	ser
identificados	(conforme	presumiríamos	inicialmente)	apenas	como	gentios.	A
intenção	do	dono	era	conseguir	algo	por	meio	dos	lavradores,	e	esse	“algo”,
como	fica	claro	de	várias	maneiras	nas	narrativas	gerais	dos	evangelhos,	parece
ser	a	bênção	dos	gentios.	[	154	]	Os	“novos	lavradores”,	através	dos	quais	isso
agora	deve	ser	alcançado,	não	podem,	portanto,	ser	gentios	per	se,	mas	devem
ser	um	novo	grupo	de	judeus	por	meio	dos	quais	o	propósito	será	cumprido.	[
155	]
Em	quinto	lugar,	o	espaço	em	branco	sob	“ajudador”	na	sequência	(4)	pode
ocultar	uma	implicação	significativa.	Normalmente,	os	espaços	em	branco	são
cheios	de	significado	nas	histórias,	conforme	vimos	em	relação	ao	“Remetente”
em	O	Senhor	dos	Anéis,	e	segundo	pode	ser	visto	no	“Objeto”	não	mencionado
em	“Os	ouvintes”,	poemaescrito	por	de	la	Mare.	Nos	contextos	da	narrativa
(algo	mais	evidente	em	Lucas,	porém	implícito	também	em	Mateus	e	Marcos),	o
meio	pelo	qual	o	dono	(o	deus	de	Israel)	virá	e	destruirá	os	lavradores	acabará
sendo	uma	ação	militar	levada	a	cabo	por	Roma.	Isso	prepara	o	caminho,	na
narrativa	mais	ampla	dos	evangelhos,	para	a	denúncia	do	Templo	e	a	profecia	de
sua	queda	(Marcos	13	e	passagens	paralelas).
Além	dos	pontos	exegéticos	mencionados,	porém,	há	uma	questão	de	significado
muito	mais	amplo	do	que	a	análise,	em	tese,	abriu.	A	parábola,	como	a	maioria
das	parábolas	de	Jesus,	conta	a	história	de	Israel	—	ou	seja,	estabelece	a
cosmovisão	judaica	da	forma	regular,	apropriada	—,	porém	lhe	confere	uma
reviravolta	surpreendente.	Uma	vez	que	compreendemos	a	estrutura	histórica	das
cosmovisões	em	geral,	e	da	cosmovisão	judaica	em	particular,	estamos	na	posse
de	uma	ferramenta	que,	embora	não	seja	frequentemente	usada	dessa	forma,
pode	ajudar-nos	a	compreender	o	que	estava	em	jogo	nos	debates	entre	o
judaísmo	e	o	cristianismo	do	primeiro	século.	Não	se	tratava	apenas	de	uma
questão	de	debate	“teológico”,	no	sentido	de	controvérsias	relacionadas	a
algumas	doutrinas	abstratas.	Tampouco	o	problema	pode	ser	reduzido	em	termos
de	pressão	social	e	de	facções,	no	sentido	de	uma	controvérsia	entre	judeus	e	não
judeus	ou	entre	judeus	que	praticavam	ou	não	praticavam	a	lei.	Tratava-se,	em
termos	muito	mais	fundamentais,	de	uma	controvérsia	sobre	diferentes	narrativas
da	história	do	deus	de	Israel,	de	seu	povo	e	do	mundo.	E	é	possível,	em	tese,
traçar	essas	diferentes	narrativas	em	diagramas	como	aqueles	que	acabamos	de
utilizar,	a	fim	de	expor,	em	detalhes,	as	diferentes	formas	como	as	histórias
foram	contadas,	compreendendo,	assim,	o	que	realmente	estava	em	jogo	no
primeiro	século.	Tarefas	dessa	natureza	serão	uma	característica	do	restante	deste
livro	e,	de	fato,	de	todo	o	projeto.
Uma	reflexão	final:	essa	análise	da	parábola	abre	uma	janela	sobre	a	maneira
como	as	histórias	dos	evangelhos,	bem	como	a	própria	história	do	evangelho,
articulam,	de	forma	típica,	a	tragédia	dentro	da	comédia,	o	fracasso	de	um
conjunto	de	agentes	em	meio	ao	“sucesso”	do	plano	em	geral.	[	156	]	A	história
do	próprio	Jesus,	de	morte	e	ressurreição,	sofrimento	e	justificação,	tem	essa
forma;	e	o	mesmo	acontece	com	a	história	contada	pelos	cristãos	sobre	Israel,	o
povo	do	deus	criador.	A	história	dos	lavradores	infiéis,	portanto,	traz	à	luz	a
mesma	estrutura	narrativa	que	algumas	das	principais	apresentações	da
cosmovisão	cristã	primitiva.
3.	Jesus,	Paulo	e	as	histórias	judaicas
Evidentemente,	a	parábola	dos	lavradores	infiéis	não	é	um	caso	isolado.	Contar
histórias	era	(segundo	os	evangelhos	sinóticos)	um	dos	métodos	de	ensino	mais
característicos	de	Jesus.	Ademais,	à	luz	de	todo	o	argumento	apresentado	até
então,	seria	claramente	equivocado	ver	essas	narrativas	como	meras	ilustrações
de	verdades	que	poderiam,	em	tese,	ter	sido	articuladas	de	forma	mais	pura	e
abstrata.	Histórias	eram	uma	forma	de	romper	com	a	visão	de	mundo	dos
ouvintes,	a	fim	de	que	sua	cosmovisão	fosse	remodelada	segundo	aquela	aceita	e
defendida	por	Jesus.	Suas	histórias,	como	hipoteticamente	todas	as	histórias,
convidavam	seus	ouvintes	para	um	novo	mundo,	sugerindo,	de	forma	implícita,
que	uma	nova	cosmovisão	fosse	experimentada	e	permanentemente	adotada.
Como	veremos	na	parte	seguinte	deste	livro,	a	teologia	de	Israel	quase	sempre
foi	caracteristicamente	expressa	em	termos	de	história	explícita:	a	história	do
Êxodo,	dos	juízes,	de	Davi	e	sua	família,	de	Elias	e	Eliseu,	do	exílio	e	da
restauração	—	e,	dentro	do	cânon	hebraico	que	se	estabeleceria,	a	história	da
criação	e	dos	patriarcas,	abrangendo	todas	as	outras	e	dando	expressão	ao	seu
significado	mais	amplo.	Jesus	simplesmente	mantinha,	nesse	aspecto,	uma	longa
tradição.
Se	é	verdade	que	todas	as	cosmovisões	são,	em	um	nível	mais	profundo,
fórmulas	abreviadas	para	a	expressão	de	histórias,	isso	é	particularmente	claro
no	caso	do	judaísmo.	A	crença	em	um	único	deus,	que	chamou	Israel	para	ser
seu	povo,	é	o	fundamento	do	judaísmo.	A	única	maneira	adequada	de	falar	sobre
um	deus	como	esse,	que	faz	o	mundo	e	atua	nele,	é	por	meio	da	narrativa.
“Evaporar”	um	conjunto	abstrato	de	proposições,	como	se	assim	alguém
chegasse	a	uma	declaração	mais	fundamental,	seria,	na	verdade,	descaracterizar
uma	visão	de	mundo.	Isso	não	quer	dizer	que	não	possamos	utilizar	frases	e
palavras	abreviadas	para	nos	referirmos,	de	forma	concisa,	a	uma	cosmovisão
cuja	complexidade	seria,	de	outra	forma,	tediosa	de	elaborar	sempre.	Desse
modo,	a	expressão	“monoteísmo	e	eleição”	(cf.	cap.	9)	não	se	refere	a	duas
entidades	abstratas,	existentes	fora	do	espaço	e	do	tempo.	É	uma	forma	de
convocar	os	olhos	da	mente	a	toda	uma	visão	de	mundo.	Nesse	sentido,	segundo
descreveremos	a	seguir,	Israel	contou	e	recontou	a	história	de	como	havia	um
único	deus,	o	criador,	de	como	ele	escolhera	Israel	para	ser	seu	povo	particular	e
de	como,	portanto,	restauraria	sua	sorte,	levando	toda	a	sua	criação	ao
cumprimento	pretendido.	Dar	uma	explicação	completa	todas	as	vezes	seria	algo
extremamente	desgastante.	Também	seria,	de	qualquer	modo,	algo	desnecessário
—	desde	que	nos	lembremos	de	que,	como	tantos	outros	termos	teológicos,
palavras	como	“monoteísmo”	são	constructos	tardios,	abreviações	convenientes
de	realidades	cujo	conteúdo,	muito	mais	complexo,	é	o	verdadeiro	material	da
teologia,	não	meras	expressões	infantis	de	uma	verdade	abstrata	“mais	pura”.
Que	tipo	de	histórias	são	mais	características	dos	judeus	nesse	período?
Conforme	já	sugerimos,	histórias/narrativas	de	todos	os	tipos	podem	expressar	o
conjunto	de	crenças	sustentadas	pela	maioria	dos	judeus,	incluindo	a	crença	de
que	seu	deus	foi	o	criador	do	mundo;	mas	essa	crença	(ao	contrário	de	várias
formas	de	dualismo,	por	exemplo)	nasce,	de	forma	mais	natural	e	característica,
em	histórias	acerca	de	acontecimentos	no	mundo	real.	Ou	seja:	quando
monoteístas	criacionais	e	pactuais	narram	o	que	lhes	sucedeu,	o	nível	narrativo
mais	básico	para	sua	visão	de	mundo	é	a	história.	Dizer	que	podemos	analisar
narrativas	de	forma	bem-sucedida	sem	mencionar	sua	possível	referência	pública
—	e,	portanto,	que	não	podemos	nem	devemos	fazer	tal	referência	—	é	cometer
o	tipo	de	erro	epistemológico	contra	o	qual	tenho	argumentado	nos	últimos	dois
capítulos.	É	negar	o	referente	ao	enfatizar	os	dados	sensoriais.	Se	deixarmos	de
ver	a	importância	da	natureza	histórica	real	de	pelo	menos	algumas	das
narrativas	contadas	pelos	judeus	nesse	período,	não	compreenderemos	o
significado,	nem	na	forma	nem	no	conteúdo,	das	narrativas	em	si.	Somente
quando	insistimos	em	ler	as	narrativas	judaicas	no	âmbito	de	um	conjunto	de
pressupostos	culturais	estranhos	à	sua	visão	de	mundo	e	à	sua	história	subjacente
é	que	podemos	imaginá-las	como	que	falando	sobre	um	deus	distante,	o	qual	não
age	na	história	e	não	a	levará,	com	um	suspiro	de	alívio,	a	um	ponto-final.	[	157
]	Mas	essa	ideia	já	está	nos	levando	muito	longe	de	nosso	objetivo	atual.
O	que	é	verdadeiro	sobre	as	histórias/narrativas	judaicas	pré-cristãs	também	é
verdadeiro	a	respeito	das	primeiras	histórias/narrativas	cristãs.	Se	Jesus	ou	os
evangelistas	contam	histórias,	isso	não	significa	que	deixam	a	história	ou	a
teologia	de	fora	da	equação	e	fazem	outra	coisa.	Se,	como	vimos,	foi	assim	que	a
teologia	de	Israel	(sua	crença	no	criador	como	deus	da	aliança	e	vice-versa)
caracteristicamente	encontrou	expressão,	não	deveríamos	nos	surpreender	se	a
teologia	cristã,	pelo	menos	em	suas	formas	iniciais,	acabasse	por	ser	muito
semelhante.	O	que	temos	de	fazer,	como	historiadores,	é	descobrir	como	chamar
a	visão	de	mundo	antiga	para	o	olhar	moderno;	assim,	ela	poderá	ser	discutida
com	clareza,	e	novos	movimentos	que	nela	ocorriam	poderão	ser	traçados	com
uma	precisão	histórica.	Em	outras	palavras,	temos	de	aprender	a	ler	as	narrativas
com	os	olhos	abertos.	O	ramo	histórico	que	escrutiniza	a	cosmovisão	de
sociedades	e	indivíduos	deve	envolver-se	com	a	investigação	cuidadosadas
narrativas,	implícitas	ou	explícitas,	que	eles	contaram	uns	aos	outros	e	ao
mundo.
Assim,	conforme	veremos	na	Parte	IV,	quando	a	igreja	primitiva	contava
histórias	sobre	Jesus,	essas	narrativas	não	eram,	como	se	poderia	imaginar,
meras	seleções	aleatórias,	episódicas.	Antes,	davam	a	entender	que	cada
acontecimento	poderia	encaixar-se	em	uma	história/narrativa	geral	e	sugeriam
uma	forma	narrativa	na	qual	as	histórias	menores	se	amoldariam.	Das	menores
unidades	que	a	crítica	da	forma	pode	isolar	até	o	mais	longo	dos	primeiros
evangelhos	cristãos,	as	histórias	que	foram	contadas	têm	uma	forma	que	pode,
em	tese,	ser	estudada,	traçada	e	comparada	com	outras	narrativas	da	história
judaico-cristã.	Essas	narrativas	um	tanto	óbvias	da	história	de	Jesus	formarão
uma	parte	importante	de	nosso	argumento	posterior.
Mas	e	quanto	a	Paulo?	Certamente,	ele	rejeitou	a	forma	narrativa,	discutindo
Deus,	Jesus,	o	Espírito,	Israel	e	o	mundo	em	termos	muito	mais	abstratos,	não	é?
Não	é	o	caso	de,	com	isso,	o	apóstolo	haver	abandonado	o	mundo	judaico	da
teologia-história,	partindo	sozinho	para	o	território	rarefeito	da	especulação
helenística	abstrata?	A	resposta	é	um	enfático	“não”!	Como	recentemente	foi
demonstrado	em	relação	a	algumas	áreas-chave	da	escrita	de	Paulo,	as
declarações	e	os	argumentos	mais	enfaticamente	“teológicos”	do	apóstolo	são,
na	verdade,	expressões	da	história	essencialmente	judaica,	redesenhada,	agora,
em	torno	de	Jesus.	[	158	]	Isso	pode	ser	visto	com	mais	clareza	em	suas
declarações	frequentes,	às	vezes	tão	reduzidas	que	chegam	a	ser	quase
estereotipadas,	sobre	a	cruz	e	a	ressurreição	de	Jesus;	o	que,	de	fato,	acontece	é
que	Paulo	conta,	repetidas	vezes,	toda	a	história	de	Deus,	de	Israel	e	do	mundo
como	estando	agora	comprimida	na	história	de	Jesus.	Da	mesma	forma,	seu	uso
repetido	do	Antigo	Testamento	não	é	projetado	como	mera	prova	por	meio	de
textos,	mas,	pelo	menos	em	parte,	para	sugerir	novas	maneiras	de	ler	histórias
conhecidas	e	sugerir	que	encontram	um	clímax	mais	natural	na	história	de	Jesus
do	que	em	qualquer	outro	lugar.	É	claro	que	todo	esse	tema	deverá	ser	explorado
posteriormente;	aqui,	eu	o	menciono	apenas	para	que	ninguém	pense	que	Paulo
realmente	foi	uma	exceção	à	regra	por	mim	formulada.	Na	verdade,	trata-se	de
um	excelente	exemplo.
Ao	longo	de	todo	o	projeto,	nossa	tarefa,	então,	envolverá	o	discernimento	e	a
análise,	em	um	nível	ou	em	outro,	de	histórias	do	primeiro	século	e	suas
implicações.	Narrativas,	tanto	em	sua	forma	como	em	seu	modo	de	ser	contadas,
são	os	agentes	cruciais	que	revestem	“acontecimentos”	de	“significados”.	O
modo	como	os	fatos	físicos	desnudos	são	descritos,	o	ponto	no	qual	há	tensão	ou
clímax,	seleção	e	organização	—	tudo	isso	remonta	ao	significado	que,	segundo
acreditamos,	o	acontecimento	tem.	[	159	]	Nossa	tarefa	geral	é	discutir	a	origem
histórica	do	cristianismo	e,	em	uma	relação	complexa	com	essa	origem	histórica,
discutir	a	questão	teológica,	a	questão	de	“deus”;	e	as	matas	nas	quais	a	presa	se
esconde,	em	cada	caso,	pode	ser	rotulada	de	Narrativa.	Para	o	historiador,	tentar
entender	a	cosmovisão,	a	mentalidade,	a	motivação	e	a	intenção	(cf.	cap.	4)	de
Jesus,	de	Paulo	e	dos	evangelistas	—	caçar	a	presa	—	significa	principalmente
entender	as	histórias	que	os	personagens	contavam,	tanto	verbalmente,	em	sua
pregação,	como	na	escrita,	e	andar	pelos	caminhos	que	eles	escolheram	trilhar,
vendo	como	as	histórias	funcionavam,	onde	estava	sua	ênfase	e,	em	particular,
onde	representavam	um	desafio,	implícito	ou	explícito,	às	histórias	contadas	no
judaísmo	e	no	paganismo	da	época.	Temos	de	dar	atenção,	como	vimos,	às
diferenças	e	semelhanças	entre	as	histórias	que	os	autores	bíblicos	contavam	e
que	funcionavam	sem	relação	com	possíveis	referentes	no	mundo	público	e
aquelas	que	perderiam	seu	sentido	se	não	se	referissem	à	realidade	histórica.	E,
ao	tentar	essa	tarefa	complexa,	o	teólogo	descobrirá	que	a	questão	de	“deus”	não
pode,	ao	mesmo	tempo,	deixar	de	ser	tratada.
Não	estou	preocupado,	aqui,	em	discutir	qual	rótulo	devemos	atribuir	a	essa
tarefa	multifacetada	(Crítica	literária?	História?	Teologia?).	Estou	certo	de	que	a
tarefa	confronta	o	historiador	e	o	teólogo	como	algo	necessário	—	não	só	por	se
tratar	de	uma	tarefa	em	tese	possível,	mas	também,	no	estado	atual	das
pesquisas,	de	um	trabalho	vital	e	oportuno.	E,	certamente,	é	óbvio	para	qual
direção	devemos	olhar	a	seguir.	Após	examinar	o	conhecimento	e	a	literatura,
estamos	em	condições	de	analisar	um	tipo	particular	de	conhecimento,	um	tipo
particular	de	literatura.	Devemos	nos	mover	para	dentro	—	de	histórias	para	a
história.
CAPÍTULO	4
HISTÓRIA	E	O	PRIMEIRO	SÉCULO
INTRODUÇÃO
O	conhecimento	histórico,	conforme	sugeri	no	capítulo	2,	realmente	constitui	um
tipo	de	conhecimento.	Precisamos	deixar	claro	esse	ponto,	principalmente	após	o
último	capítulo.	Em	boa	parte	da	crítica	literária	moderna,	como	vimos,	há	tanta
ênfase	no	texto	isolado	do	autor	—	e	no	leitor	isolado	do	texto	—	que	qualquer
ideia	de	que	alguém	possa	ler	algo	que	vá	além	do	texto	em	si	soa	como	um
projeto	tão	ambicioso	que	é	totalmente	desconsiderado	—	ao	menos	em	tese	e
quando	se	mostra	conveniente.	Todavia,	isso	me	parece,	em	essência,
contraintuitivo.	O	desconstrucionista	mais	convicto	ainda	rastreará	a
ancestralidade	de	seu	movimento	a	Foucault,	Nietzsche,	Saussure	ou	qualquer
outro;	e	àqueles	a	quem	o	estudo	e	a	escrita	da	história	correspondem	ao	seu
trabalho	cotidiano,	os	escrúpulos	do	pós-modernismo	parecerão	incrivelmente
—	quase	impossivelmente	—	cautelosos,	tímidos	e	retraídos.	O	fato	é	que
podemos	escrever	história,	sim.	Podemos	saber	a	respeito	de	coisas	que
aconteceram	no	passado.
Entretanto,	que	tipo	de	conhecimento	é	esse?	Evidentemente,	não	há	espaço	aqui
para	uma	discussão	completa	da	natureza	da	história	em	si.	[	160	]	Para	começar,
vou	me	limitar	a	uma	discussão	geral,	defendendo	uma	teoria	“crítico-realista”
do	que	a	história	como	disciplina	é	e	faz	e,	em	seguida,	aplicarei	essa	posição
aos	principais	problemas	históricos	que	nos	aguardam	no	corpo	do	projeto.	Ao
longo	da	minha	argumentação,	porém,	vamos	descobrir	que,	quanto	mais
olhamos	para	a	“história”	em	si,	mais	percebemos	que	ela	não	pode	existir
sozinha.	Ela	aponta	para	algo	além	de	si.	Em	nossa	área	específica,	é	impossível
falar	da	origem	do	cristianismo	sem	ser	confrontado	com	a	questão	de	deus,
assim	como,	ao	considerarmos	a	teologia,	descobriremos	que	o	oposto	também	é
verdadeiro.	A	história,	conforme	veremos,	é	vital;	sozinha,	porém,	não	é
suficiente.
Começamos,	então,	com	um	breve	relato	acerca	do	termo	história.	A	palavra
“história”	[	161	]	é	comumente	empregada	de	duas	maneiras	bem	distintas,
porém	correlatas,	como	referência	(1)	a	acontecimentos	reais	e	do	mundo	real	e
(2)	àquilo	que	as	pessoas	escrevem	sobre	os	acontecimentos	reais	e	do	mundo
real.	Embora	a	segunda	dessas	definições	seja	tecnicamente	a	mais	correta	(é	o
único	significado	no	Concise	Oxford	Dictionary	[Dicionário	conciso	de
Oxford]),	é	importante	reconhecer	a	presença	da	primeira	definição,	pelo	menos
na	fala	popular:	não	é	autocontraditório	dizer:	“Eu	sei	que	não	está	escrito	em
lugar	algum,	mas	o	fato	realmente	aconteceu	na	história”.	Confundir	esses	dois
significados	—	o	de	“história	como	acontecimento”	e	o	de	“história	como	escrita
a	respeito	dos	acontecimentos”	—	abre	espaço	para	muitos	mal-entendidos	e
frustrações.	Concentrarei	a	atenção	de	boa	parte	deste	capítulo	na	segunda
definição,	mas	de	modo	a	incluir,	e	não	a	excluir,	a	primeira:	a	história,
conforme	argumentarei,	não	é	nem	“fatos	desnudos”	nem	“interpretações
subjetivas”,	mas,	sim,	a	narrativa	significativa	de	acontecimentos	e	intenções.
A	atividade	humana	da	escrita,	incluindo	a	escrita	histórica,	constitui	ela	mesma
um	acontecimento	real	e	do	mundo	real.	Por	conseguinte,	a	confusão	entre
história	como	acontecimento	e	história	como	escrita	pode	tornar-se	ainda	maior;
no	entanto,	reconhecer	esse	fato	também	é	uma	saída	para	a	dificuldade.	Quando
os	historiadores	escrevem	como	se	não	tivessemum	ponto	de	vista,	como	se	eles
próprios	fossem	observadores	“não	históricos”,	é	aí	que	começa	o	problema.	Eis
precisamente	o	ponto	de	partida	para	a	nossa	tarefa.
A	IMPOSSIBILIDADE	DA	“MERA	HISTÓRIA”
Não	existe,	nem	pode	existir,	algo	do	tipo	uma	crônica	nua	de	acontecimentos
destituídos	de	um	ponto	de	vista.	[	162	]	O	grande	sonho	iluminista	de	registrar
“o	que,	de	fato,	aconteceu”	é	apenas	isto:	um	sonho.	O	sonhador	é,	mais	uma
vez,	o	positivista,	aquele	que,	olhando	para	a	história,	crê	que	é	possível	ter
acesso	instantâneo	e	não	adulterado	aos	“acontecimentos”.	Em	um	nível
ingênuo,	isso	resulta	na	seguinte	perspectiva	pré-crítica:
OBSERVADOR EVIDÊNCIA
-------------	→ -------------	→
•	simplesmente	olhando	para	a	evidência…	e	tendo	acesso	direto	aos	“fatos”
Em	um	nível	mais	sofisticado,	a	percepção	de	que	a	evidência	pode	conduzir	a
equívocos	dá	origem	a	um	positivismo	mitigado:	o	observador	peneira	a
evidência,	reconhecendo	que,	embora	parte	dela	não	tenha	muita	utilidade,
outras	partes	fornecem	o	desejado	acesso	direto.	[	163	]	Essa	é	a	analogia	da
rejeição	positivista	da	metafísica	em	favor	do	suposto	conhecimento	científico
“claro”:
OBSERVADOR EVIDÊNCIA ACONTECIMENTO	PASSADO
-------------	→ -------------	→
•	olhando	para	a	evidência,	peneirando-a
←-------------
•	rejeitando	algumas	partes
-------------	→
•	e	aceitando	outras
Entretanto,	para	repetir	minha	declaração	inicial,	esse	sonho	de	encontrar	fatos
desnudos	e	não	envernizados	não	corresponde	à	realidade	—	o	que	procurarei
demonstrar	de	forma	sucinta	a	seguir,	embora	se	trate	de	um	ponto	praticamente
óbvio.
Em	um	nível	geral,	não	demora	para	ficar	claro	que	a	história	como	um	todo
envolve	seleção.	Ela	compartilha	esse	elemento	com	outras	áreas	do	saber.	A
todo	instante,	estou	ciente	de	um	vasto	número	de	impressões	sensoriais,	das
quais	faço	uma	seleção	muito	limitada	para	meu	foco	atual	de	atenção	e
interesse.	(Uma	das	razões	pelas	quais,	por	exemplo,	apreciamos	arte	ou	nos
apaixonamos	por	alguém	talvez	seja	pelo	fato	de	essas	experiências	inebriantes
envolverem	um	conjunto	mais	amplo	do	que	o	normal	de	seleções	simultâneas.)
No	nível	mais	trivial,	qualquer	tentativa	de	registrar	“o	que	aconteceu”	sem
algum	tipo	de	seletividade	falharia,	apenas	pelo	enorme	volume	de	informações
—	cada	suspiro	de	cada	ser	humano,	cada	folha	que	cai,	cada	nuvem	que	transita
no	céu.	Alguns	suspiros	humanos	talvez	sejam	dignos	de	registro:	o	suspiro	de
alguém	que	suspeitávamos	estar	morto,	por	exemplo.	O	cair	de	algumas	folhas	e
o	transitar	de	algumas	nuvens	podem	repentinamente	adquirir	importância,
dependendo	do	contexto	(considere	a	pequena	nuvem	que	o	servo	de	Elias	viu
no	topo	do	monte	Carmelo).	Mas	até	mesmo	uma	câmera	de	vídeo	configurada
aleatoriamente	não	resultaria	em	uma	perspectiva	completamente	“neutra”	dos
acontecimentos.	Sua	localização	estará	fixa	apenas	em	um	local;	terá	apenas	um
comprimento	focal;	apontará	apenas	em	uma	direção.	Se,	em	um	sentido,	a
câmera	nunca	mente,	podemos	ver	que,	em	outro	sentido,	ela	não	faz	outra	coisa
senão	mentir.	A	câmera	exclui	muito	mais	do	que	inclui.
A	fim	de	fazer,	então,	qualquer	afirmação	sobre	o	passado,	o	ser	humano	precisa
engajar-se	em	um	esforço	massivo	de	seleção.	Fazemos	isso	o	tempo	todo	—	e
nos	tornamos	muito	bons	nessa	prática	—,	quando	selecionamos	rapidamente
pequenos	fragmentos	de	nossa	vida,	organizando-os	em	narrativas,	anedotas,
lendas	familiares	etc.	E	esse	processo	envolve	inevitavelmente	um	importante
elemento	de	interpretação.	Tentamos	dar	sentido	ao	mundo	em	que	vivemos;	do
contrário,	não	passaremos	de	esponjas	em	vez	de	seres	humanos.	Todo
conhecimento	e	toda	compreensão	dizem	respeito	à	reflexão	por	parte	do	ser
humano;	todo	conhecimento	decorre	das	percepções	e	reflexões	de	alguém.
Como	vimos	no	capítulo	2,	o	legado	do	positivismo	muitas	vezes	nos	seduz	a
imaginar	que	um	“fato”	é	uma	coisa	“puramente	objetiva”	e	imaculada	pelo
processo	de	conhecimento	de	qualquer	pessoa.	[	164	]	Na	realidade,	porém,	o
que	chamamos	de	“fatos”	sempre	faz	parte	de	um	contexto	de	resposta,
percepção	e	interação	—	um	processo	complexo	e	contínuo.	As	narrativas,	como
vimos,	são	mais	fundamentais	do	que	os	“fatos”;	as	partes	devem	ser	vistas	à	luz
do	todo.
Isso	se	torna	mais	obviamente	verdadeiro,	e	em	um	nível	mais	sério,	quando
tentamos	falar	dos	acontecimentos	do	passado.	Suponhamos,	por	exemplo,	que
tentemos	fazer	uma	afirmação	modesta,	porém	central,	sobre	Jesus.	[	165	]	Se
dissermos	que	“Cristo	morreu	pelos	nossos	pecados”,	não	é	tão	difícil	perceber
um	elemento	óbvio	de	interpretação:	“pelos	nossos	pecados”	é	um	adendo
teológico	a	uma	declaração	que,	de	outra	forma,	seria	“histórica”.	Mas,	ainda
que	digamos,	“Cristo	morreu”,	não	escaparemos	da	interpretação:	escolhemos
nos	referir	a	Jesus	como	“Cristo”,	atribuindo-lhe	uma	messianidade	que	nem
seus	contemporâneos	nem	os	nossos	conferiram-lhe	universalmente.	Muito	bem,
então.	E	se	dissermos	apenas:	“Jesus	morreu”?	Mesmo	assim,	ainda	não
escaparemos	da	“interpretação”	—	e,	de	fato,	a	interpretação	parece,	nesse	caso,
maior	do	que	nunca:	três	pessoas	morreram	fora	de	Jerusalém	naquela	tarde,	mas
optamos	por	mencionar	apenas	uma.	Aliás,	milhares	de	judeus	foram
crucificados	pelos	romanos	nas	proximidades	de	Jerusalém	ao	longo	do	primeiro
século,	mas	nós	optamos	por	mencionar	apenas	um.	Nossa	observação	histórica
aparentemente	desnuda	é	o	produto	de	uma	decisão	interpretativa	multifacetada.
Isso	também	não	é	incomum.	É	típico	da	história.	Toda	história	envolve	seleção,
e	é	sempre	o	ser	humano	que	faz	a	seleção.
Segundo	uma	visão	“moderna”	popular,	foi	apenas	nos	últimos	duzentos	anos
que	descobrimos	em	que	realmente	a	“história”	consiste,	enquanto	os	escritores
do	mundo	antigo	eram	ignorantes	sobre	o	assunto	—	inventando	fatos
livremente,	tecendo	fantasias	com	lendas	e	chamando-as	de	história.	Há	uma
grande	ironia	nessa	perspectiva,	já	que	ela	mesma	é	um	mito	moderno,
legitimando	o	imperialismo	cultural	do	Iluminismo	sem	ter	qualquer	base	na
história	real	do	mundo	antigo.	Na	verdade,	os	historiadores	da	antiguidade
sabiam	em	que	consiste	a	história	tão	bem	quanto	nós,	e	muitas	vezes	ainda
melhor.	[	166	]	Não	tinham	a	ilusão	de	meramente	observar	os	fatos	e	registrá-
los.	Heródoto	organizou	os	acontecimentos	de	forma	a	apresentar	sua	teoria
sobre	como	a	história	funciona	—	a	saber,	que	tudo	resulta	do	ciúme	e	da
ganância	do	ser	humano.	Ele	criticou	alguns	dos	contos	que	registrou	a	partir	de
outras	pessoas,	alegando	que	continham,	em	grande	medida,	os	pontos	de	vista
dos	observadores	(presumivelmente	excêntricos).	Heródoto	não	diz	que	os
observadores	não	deveriam	ter	um	ponto	de	vista,	mas	apenas	que	ele	tinha
motivos	para	pensar	que	o	ponto	de	vista	deles	resultara	na	distorção	de
acontecimentos	reais.	Como	todos	os	principais	historiadores	do	mundo	antigo,
Heródoto	reconhecia	a	diferença	entre	história	propriamente	dita	e	a	mera
horografia,	a	tentativa	de	registrar	“o	que	aconteceu”	de	um	dia	para	o	outro.	[
167	]	Ao	mesmo	tempo,	Heródoto	sabia	tão	bem	quanto	nós	que	existem	coisas
como	acontecimentos	reais	e	que	é	tarefa	do	historiador	escrever	sobre	eles,
desconsiderando	os	acontecimentos	que	considera	implausíveis.	[	168	]	De	modo
semelhante,	Tucídides	sustentou	uma	doutrina	de	anangke	—	de	necessidade	—
segundo	a	qual	causa	e	efeito	ocorrem	na	esfera	histórica.	Embora	ele	tenha
vivido	suficientemente	perto	dos	acontecimentos	da	Guerra	do	Peloponeso	para
saber	com	muita	precisão	“o	que	aconteceu”,	Tucídides	não	fingiu,	assim	como
não	devemos	supor,	que	seu	relato	era,	portanto,	“imparcial”.	Na	verdade,	como
um	general	demitido,	observando	a	sorte	do	país	que	o	rejeitou,	dificilmente
poderíamos	esperar	algo	assim.	Contudo,	é	precisamente	a	partir	desse	ponto	de
vista	que	ele	teve	a	oportunidade	de	escrever	de	modo	envolvente	e	ao	mesmo
tempo	desapegado:	selecionando	e	organizando,	claro,	mas	também	fornecendo
aos	leitores	um	conhecimento	factual	de	acontecimentos	factuais.	Coisas
semelhantes	poderiam	ser	ditas,	mutatismutandis,	sobre	Lívio	e	Josefo,	sobre
César	e	Tácito,	sobre	até	mesmo,	em	certa	medida,	Suetônio.	O	fato	de	a	mente
humana	ter	de	organizar	e	dispor	o	material	não	“falsifica”	a	história.	Ao	mesmo
tempo,	Tucídides	e	os	demais	estavam	tão	cientes	quanto	nós	do	dever	solene	do
historiador	de	se	empenhar	pela	honestidade	intelectual	e	a	imparcialidade
rigorosa.	[	169	]
Não	foram	os	antigos	que	se	enganaram	quanto	à	natureza	da	história,	vivendo
em	uma	era	pré-moderna	e	não	sabendo	em	que	consistia	o	pensamento	crítico.
Somos	nós	que,	na	rejeição	iluminista	da	confiança	em	auctores,	“autoridades”
em	sentido	múltiplo,	passamos	a	nos	imaginar	como	os	primeiros	a	ver	a
diferença	entre	sujeitos	e	objetos,	julgando	erroneamente,	portanto,	nossos
antepassados	e	nos	enganando.	Inventar	“história”	por	uma	recapitulação
ideológica	projetada	é	um	fenômeno	tanto	moderno	como	antigo	—	talvez	até
mais	moderno	do	que	antigo.	É	algo	de	que	os	próprios	eruditos	do	Novo
Testamento	não	estão	isentos.
Assim,	por	um	lado,	tanto	os	historiadores	antigos	como	os	modernos	estavam
cientes	da	obrigação	do	historiador	de	fazer	o	possível	para	não	se	posicionar	de
modo	a	prejudicar	seus	próprios	interesses:	o	famoso	sine	ira	et	studio,	de	Tácito
—	honrado,	claro,	pela	violação	e	não	pela	observância	—,	serve	de	evidência
suficiente	desse	fato.	[	170	]	Por	outro	lado,	nenhum	historiador	moderno
escapou	da	necessidade	inevitável	da	seletividade,	e	a	seletividade	não	pode	ser
feita	sem	um	ponto	de	vista.	(Em	contrapartida,	nenhum	ponto	de	vista	pode	ser
sustentado	sem	seletividade,	ainda	que	inconsciente.)	O	mito	da	“história	não
interpretada”	funciona	precisamente	como	isto:	um	mito	em	meio	ao	discurso
moderno	—	ou	seja,	expressa	um	estado	ideal	cuja	realidade	erroneamente
imaginamos	existir,	e	cuja	influência	afeta	nossa	forma	de	pensar	e	falar.	No
entanto,	apesar	de	tudo,	trata-se	apenas	de	um	“mito”,	no	sentido	popular	da
palavra.
É	correr	atrás	do	vento,	então,	imaginar	que	alguém,	antigo	ou	moderno,	poderia
“simplesmente	registrar	os	fatos”.	Em	minha	juventude,	o	jornal	que	afirmava
“dar	ao	leitor	os	fatos,	com	toda	a	franqueza”,	era	notoriamente	o	órgão	de
propaganda	oficial	do	Partido	Comunista	Britânico.	Aprendemos	a	suspeitar	de
pessoas	que	reivindicam	ser	a	única	voz	imparcial	sobre	o	assunto	abordado;	em
geral,	essa	alegação	simplesmente	significa	que	seu	plano	ideológico	é	tão
grande	que,	como	uma	montanha	obscurecendo	o	céu,	elas	se	esquecem	da
existência	de	sua	ideologia.	Não	existe	um	ponto	de	vista	imparcial,
desinteressado.	Imaginar,	portanto,	como	fizeram	alguns	pensadores	pós-
iluministas,	que	nós,	do	mundo	moderno,	descobrimos	a	“história	pura”,	de
modo	que	tudo	o	que	fazemos	é	registrar	“o	que	realmente	aconteceu”,	sem	o
acréscimo	de	qualquer	elemento	interpretativo	ou	perspectiva	do	observador	—	e
que	isso,	de	alguma	forma,	nos	eleva	a	uma	posição	de	superioridade	sobre
aqueles	pobres	ignorantes	do	passado,	cuja	objetividade	não	era	suficiente,	por
não	distinguirem	fatos	de	ficção	—,	não	passa	de	insensatez	e	arrogância.
Pareceria	estranho	até	mesmo	ter	de	refutar	algo	assim,	não	fosse	a	influência	tão
grande	que	essa	ideia	exerce	precisamente	na	área	em	que	desenvolvemos	nosso
tema.
Toda	história,	assim,	consiste	em	uma	espiral	de	conhecimento,	um	longo
processo	de	interação	entre	o	intérprete	e	o	material	de	origem.	Trata-se	de	uma
verdade,	a	despeito	de	o	historiador	em	questão	ser	cristão,	escrevendo	sobre
Jesus	e	Paulo	com	algum	compromisso	prévio	em	relação	a	ambos,	ou	um	não
cristão,	escrevendo	sobre	ambos	com	a	expectativa	de	que	eles	estejam	errados.
Nesse	ponto,	Rudolf	Bultmann	e	Bertrand	Russel	estão	de	acordo.	[	171	]	Esse
processo	de	interação	não	é	um	fenômeno	estranho	ou	inusitado,	mas,	sim,	um
fenômeno	humano	perfeitamente	comum.	Cada	vez	que	pego	o	telefone	e	ouço
uma	voz,	faço	um	julgamento,	formulo	uma	hipótese	acerca	de	quem	fala	do
outro	lado	da	linha.	Algumas	vezes,	estou	certo;	outras	vezes,	mesmo	quando	a
pessoa	revela	seu	nome,	estou	errado.	No	último	caso,	sou	obrigado	a	contornar
a	espiral	várias	vezes,	o	que	me	levará,	espero,	à	sua	identificação.	Em	seguida,
posso	concentrar-me	na	próxima	espiral	de	conhecimento	(que	já	pode	ter
começado),	a	de	realmente	ter	um	diálogo	em	que	um	ou	ambos	os	envolvidos
nem	sempre	entendem	o	que	está	sendo	imediatamente	dito.	Não	é	o	caso	de	eu
ser	simplesmente	um	ouvinte	neutro,	gravando	tudo	o	que	é	dito	em	um	disco
rígido	vazio.	Ocorre	uma	interação.	Em	tese,	com	a	história,	isso	não	é	diferente,
exceto	que	os	materiais	de	base	geralmente	são	mais	complicados	do	que	as
chamadas	telefônicas.
Quando	o	material	de	origem	do	historiador	consiste	na	literatura	do	cristianismo
primitivo,	a	situação	é,	obviamente,	ainda	mais	complicada.	Como	já	discutimos
no	capítulo	1,	muitos	leitores	do	Novo	Testamento	o	abordam	de	modo	a
considerá-lo,	de	alguma	maneira,	autoritativo.	É	como	se	alguém	pegasse	o
telefone	e	esperasse	ouvir	uma	voz	que	lhe	diz	o	que	fazer.	O	processo	normal	da
espiral	do	conhecimento	continuaria,	mas,	dessa	vez,	seria	recoberto,	e	talvez	até
mesmo	confundido,	por	um	conjunto	diferente	de	questões.	No	caso	dos
evangelhos,	a	situação	é	ainda	mais	complexa.	Agora,	é	como	se	a	voz	na	linha,
que	se	presume	autoritativa,	não	desse	instruções,	nem	emitisse	ordens,	mas
apenas	contasse	uma	história.	Não	causa	surpresa	que	aqueles	que	reivindicam	a
escritura	como	sua	autoridade	tenham	dificuldade	em	descobrir	o	que	fazer	com
os	evangelhos.	Os	historiadores	têm	lutado	para	se	libertar	da	suposição	de	que	a
história	é	confiável;	os	teólogos,	às	vezes,	do	reconhecimento	de	que	essa
autoridade	se	apresenta	de	forma	narrativa.	Deparamos	com	o	mesmo	problema
duplo	nas	cartas	neotestamentárias.	Como	esses	documentos	históricos	podem
funcionar	como	autoritativos?	A	impressão	prima	facie	das	cartas,	de	que	são
mais	fáceis	de	usar	como	autoridade	por	dizerem	às	pessoas	em	que	acreditar	e
como	se	comportar,	pode,	na	verdade,	ser	enganosa.	E	se	Paulo	estiver	falando
aos	gálatas	que	evitem	ser	atraídos	para	o	judaísmo	e	exortando	os	romanos	a
evitar	ser	atraídos	para	o	antissemitismo?	Como	é	possível	um	bilhete	dizendo	a
um	amigo	que	Paulo	espera,	em	breve,	visitá-lo	e	hospedar-se	em	sua	casa	ser
“autoritativo”	para	a	igreja	em	uma	geração	subsequente?	Nem	está	claro,	na
superfície	do	texto,	como	uma	discussão	sobre	a	carne	oferecida	aos	ídolos	se
tornará	relevante	para	a	igreja	do	século	21.	Mesmo	quando	a	voz	na	linha
parece	dar	instruções,	como	podemos	estar	certos	de	que	se	destinam	a	nós?	Em
contrapartida,	se	estamos	determinados	a	empregar	as	cartas	como	autoritativas
em	certo	sentido,	como	podemos	fazê-lo	sem	levar	em	consideração	também	os
aspectos	históricos,	como	notoriamente	aconteceu	em	muitos	estudos	de	Paulo?
Existem,	então,	pelo	menos	três	tipos	distintos	de	exercícios	envolvidos	na
leitura	dos	evangelhos	e	das	cartas,	os	quais	normalmente	parecem	cruzar	o
caminho	uns	dos	outros	—	com	o	elemento	extra,	claro,	de	que	o	que	faz	a
ligação	está	falando	em	uma	língua	estrangeira	e	pertence	a	uma	cultura	bem
diferente.	O	primeiro	é	o	exercício	da	escuta,	pura	e	simples;	o	segundo,	o	da
interação;	o	terceiro,	o	exercício	da	prontidão	para	responder	de	forma	adequada
(ou	a	intenção	de	evitar	dar	uma	resposta).	Todos	dizem	respeito	a	questões	mais
amplas	do	que	simplesmente	a	história,	garantindo,	assim,	que	a	tarefa	do
historiador	nunca	pode	ser	simplesmente	observar	e	registrar	“o	que	realmente
aconteceu”.	Mesmo	aqueles	que	não	consideram	os	textos,	de	alguma	forma,
autoritativos	deparam	com	o	fato	de	que	sua	leitura	é	inevitavelmente	conduzida
em	diálogo	com	outros	leitores,	antigos	e	modernos,	que	os	consideram	dessa
forma;	e	que	ao	menos	algumas	das	questões	discutidas	por	aqueles	que	se
encontram	nessa	outra	ponta	da	linha	telefônica	foram	moldadas,	ao	longo	dos
anos,	por	essa	perspectiva.	[	172	]	Além	disso,	mesmo	aqueles	que	gostam	de	se
considerar	individualistas	ferrenhos	terão	de	enfrentar	o	fato	de	que
compartilham	o	telefonecom	outras	pessoas.	A	alternativa	é	simplesmente
ignorar	os	outros	falantes	e,	desse	modo,	não	dialogar	com	eles.	Estudar	a
história,	ao	que	tudo	indica,	não	é	uma	tarefa	tão	simples	quanto	às	vezes	se
imagina;	e	ler	o	Novo	Testamento	de	um	ponto	de	vista	histórico	é	menos	ainda.
Há	duas	áreas	de	particular	interesse	histórico	para	o	estudante	do	Novo
Testamento.	No	presente	volume,	elas	nos	ocuparão	posteriormente.	Ambas
fornecem	exemplos	clássicos	do	modo	como	as	pressuposições	interpretativas
inevitavelmente	interagem	com	o	manuseio	dos	dados.
Na	primeira,	o	estudo	do	judaísmo	antigo	há	muito	tem	sido	atormentado	por
uma	leitura	que	“sabia”,	de	antemão,	que	o	judaísmo	era	o	tipo	errado	de
religião,	o	contexto	obscuro	para	a	luz	gloriosa	do	evangelho.	Agora,	estamos
em	um	período	de	reação	categórica	e	justificada	contra	isso.	Tal	reação,
entretanto,	traz	seus	próprios	problemas;	atualmente,	há	uma	leitura	atomística	e
não	teológica	do	judaísmo,	uma	leitura	que	o	divide	em	suas	diferentes
expressões	e	rejeita	qualquer	síntese	coerente,	exceto	a	mais	generalizada.	[	173
]
Na	segunda,	e	de	forma	semelhante,	o	estudo	do	cristianismo	primitivo	tem	sido
prejudicado	por	gerações,	pela	necessidade	que	a	maioria	dos	escritores	sente	de
organizar	o	material	de	uma	forma	teologicamente	desejável,	comprimindo	os
dados	de	forma	deveras	espúria.	A	ideia	é:	“Os	primeiros	cristãos	devem	ter	sido
pessoas	de	características	peculiares;	precisamos	que	tenham	sido,	pois,	do
contrário,	não	sustentaremos	nossa	interpretação	do	cristianismo”.	[	174	]	Isso
produziu,	como	agora	é	comum	observar,	o	“mito	das	origens	cristãs”.	Como	no
caso	do	judaísmo,	começaram	as	reações,	mas	o	atomismo,	atualmente,	tem
aumentado.	[	175	]	Em	ambos	os	casos,	podemos	ser	um	pouco	solidários	com
os	movimentos	modernos.	Como	veremos	a	seguir,	o	historiador	enfrenta	duas
tarefas:	os	dados	devem	ser	incluídos	e	uma	simplicidade	geral	deve	emergir.
Mas	essas	tarefas	devem	ser	mantidas	com	o	devido	equilíbrio.	Se	a
simplicidade	(de	um	tipo	espúrio)	governou	por	muito	tempo,	produzindo	o
“mito	de	um	judaísmo	sombrio”	ou	o	“mito	de	um	cristianismo	recém-nascido”,
é	hora	de	os	dados	não	selecionados	receberem	uma	nova	audiência.	Contudo,
aqui	também,	há	um	contramito	implícito:	o	mito	dos	dados	objetivos	ou	da
história	sem	pressuposições,	de	modo	que	o	objetivo	do	meu	presente	argumento
é	desafiá-lo:	na	verdade,	não	existe	algo	como	“mera	história”.	Existem	dados.
Existem	manuscritos,	incluindo	os	muito	antigos.	Moedas	e	dados	arqueológicos
estão	disponíveis.	A	partir	desses	elementos,	podemos	saber	muito	sobre	o
mundo	antigo,	chegando	a	um	conhecimento	tão	bom	quanto	o	que	temos	de
qualquer	outra	coisa.	No	entanto,	mesmo	na	coleta	de	manuscritos	e	moedas	—
quanto	mais	para	lê-los,	traduzi-los	ou	organizá-los	em	edições	ou	coleções!	—,
já	devemos	engajar-nos	na	“interpretação”.	[	176	]	Houve,	obviamente,
disciplinas	que	se	desenvolveram	em	torno	de	todas	essas	atividades,	projetadas
precisamente	para	evitar	que	tais	tarefas	caiam	na	arbitrariedade.	Meu	ponto
atual	é	simplesmente	que	toda	a	história	é	história	interpretada.
ISSO	NÃO	SIGNIFICA	“AUSÊNCIA	DE	FATOS”
1.	Realismo	crítico	e	a	ameaça	do	objeto	em	desaparecimento
A	absoluta	complexidade	da	tarefa	do	historiador,	assim	como	sua	manifesta
diferença	da	“mera	observação”,	pode	levar,	e	levou	alguns,	à	conclusão	de	que
não	existem,	então,	coisas	como	“fatos”.	Se	tudo	é	colorido	pela	perspectiva	de
alguém,	então	tudo	pode	ser	reduzido	aos	termos	dessa	perspectiva.	Este	é	o
análogo	do	historiador	para	uma	epistemologia	fenomenológica:
OBSERVADOR
•	olhando	para	a	evidência
ou	que,	na	verdade,	serve	apenas	de	evidência	para	o	ponto	de	vista	do	observador
Tão	frequente	é	essa	suposição	que,	diariamente,	encontramos	exemplos	de
reducionismo	com	base	na	crença	equivocada	de	que	apenas	um	ponto	de	vista
“puro”	ou	“neutro”	será	de	alguma	utilidade	para	qualquer	pessoa.	A	declaração:
“Você	só	diz	isso	por	ser	um	pessimista”	pode	ou	não	ser	uma	réplica
contundente	a	uma	afirmação	de	que	o	bom	clima	dos	últimos	dias	não	durará
por	muito	tempo.	O	“pessimista”	pode	ter	escutado	uma	previsão	precisa	do
tempo.	Da	mesma	forma,	a	declaração:	“Você	só	diz	isso	por	ser	um
matemático”	não	tem	força	alguma	para	anular	a	ideia	de	que	dois	mais	dois	são
quatro.	Nesse	caso,	como	em	vários	outros,	a	ressalva	aduzida	como	motivo	da
redução	deveria	funcionar	de	forma	inversa:	o	fato	de	a	pessoa	abordada	ser	um
matemático	é	um	bom	motivo,	não	um	mau	motivo,	para	acreditarmos	em	sua
afirmação	se	diz	respeito	à	matemática.	[	177	]	O	equivalente	à	leitura	dos
evangelhos	no	século	20	foi	a	afirmação	aparentemente	“científica”	de	que	“todo
texto	é,	antes	de	mais	nada,	uma	evidência	das	circunstâncias	em	que	foi
composto	e	para	as	quais	foi	composto”.	[	178	]	O	crítico,	então,	responde	aos
evangelistas:	“Você	só	escreve	isso	(essa	história	ou	dizer	de	Jesus)	por	ser
cristão”.	Verdadeiro	o	suficiente	em	alguns	aspectos,	mas	manifestamente	não
suficiente	em	outros.	Se	o	fato	de	ser	um	matemático	pode	dar	a	alguém	o	direito
de	falar	quando	o	assunto	são	números,	ser	cristão	pode	significar	que	alguém
tem	o	direito	a	uma	audiência	quando	o	assunto	é	Jesus.	Se	seguíssemos	a	linha
reducionista	até	o	fim	—	e,	hoje,	alguns	tentam	fazer	isso	—,	chegaríamos,
como	vimos	no	capítulo	2,	ao	cul-de-sac	da	fenomenologia:	o	solipsismo.	Só	se
conhece	sobre	si	mesmo,	sobre	os	próprios	dados	sensoriais.	Marcos	sabia
apenas	sobre	sua	própria	teologia,	não	sobre	Jesus.
Pode	ser	útil	retornarmos	por	um	instante	à	teoria	do	conhecimento.	O	fato	de
alguém	estar	em	algum	lugar,	de	ter	determinado	ponto	de	vista	e	de	saber	algo
não	significa	que	tal	conhecimento	seja	menos	valioso:	significa	apenas	que
aquilo	que	o	indivíduo	tem	é,	de	fato,	conhecimento.	Não	há	necessidade,	apesar
das	alegações	de	muitos	empiristas	de	épocas	anteriores	e	de	alguns
fenomenalistas	em	épocas	mais	recentes,	de	reduzirmos	a	conversa	sobre	objetos
que	nos	são	externos	para	falarmos	sobre	nossos	próprios	dados	sensoriais	—	de
modo	que,	em	vez	de	dizermos:	“Isto	é	uma	mesa”,	o	que	realmente	deveríamos
dizer	é:	“Ao	me	sentar	aqui,	tenho	sensações	de	rigidez	causadas	por	uma
superfície	nivelada	e	de	madeira”;	ou,	possivelmente,	para	me	livrar	da	sugestão
de	que	importei	ilicitamente	uma	referência	a	um	objeto	real	(a	saber,	eu
mesmo):	“Há	uma	sensação	de	rigidez	causada	por	uma	superfície	nivelada	e	de
madeira”	—	ou	talvez,	de	forma	mais	simples:	“rigidez	—	superfície	nivelada	—
madeira!”.	O	medo	de	que	“eventos	reais”	desapareçam	sob	uma	confusão	de
percepções	de	alguns	indivíduos	específicos	é	um	medo	desse	tipo,	e	deve	ser
rejeitado	como	infundado.	Como	exemplo	particular,	devemos	afirmar	com	mais
veemência	que	descobrir	que	determinado	escritor	tem	uma	“tendência”	a
determinado	assunto	não	nos	diz	nada	sobre	o	valor	das	informações	que	ele
apresenta.	Apenas	nos	convida	a	estarmos	cientes	da	tendência	(não	só	dele,	mas
também	a	nossa)	e	a	avaliarmos	o	material	segundo	o	máximo	possível	de
fontes.	“A	honestidade	intelectual	não	consiste	em	forçar	uma	neutralidade
impossível,	mas	em	admitir	que	a	neutralidade	não	é	possível.”	[	179	]	De	modo
semelhante,	o	medo	da	“objetivação”,	que	tanto	afetou	a	teologia	de	Rudolf
Bultmann,	pode	ser	posto	de	lado.	Bultmann,	no	contexto	de	sua	herança
filosófica	neokantiana,	desejava	evitar	falar	de	objetos	ou	acontecimentos	senão
em	relação	ao	observador.	Ele,	portanto,	insistiu	(entre	outras	coisas)	em
trabalhar	a	teologia	fazendo	antropologia,	seguindo	Feuerbach,	ao	reduzir	a	fala
divina	a	uma	fala	humana.	[	180	]	Simplesmente	não	temos	de	aceitar	essas
falsas	dicotomias.	Não	é	o	caso	de	algumas	coisas	serem	puramente	objetivas	e
outras	puramente	subjetivas	ou,	então,	que	devemos	reduzir	uma	coisa	a	outra.	A
vida,	felizmente,	é	mais	complicada	que	isso.
A	descoberta,	portanto,	de	que	alguém	tem	um	“ponto	de	vista”,	selecionou	e
organizou	determinado	material	ou	tem	um	estilo	característico	nada	faz	para	nos
informar	seo	assunto	de	que	o	escritor	fala	(caso	ele	ou	ela	julgue	estar
descrevendo	acontecimentos)	realmente	aconteceu	ou	não.	Existem	coisas	como
eventos	no	mundo	exterior,	sim.	Muitos	podem	ser	mais	ou	menos	descritos.
Mas	um	escritor	não	pode	escrever	sobre	eles	sem	selecioná-los	de	acordo	com
um	ponto	de	vista,	da	mesma	forma	que	não	pode	observá-los	sem	usar	os
próprios	olhos.
Dessa	vez,	a	questão	pode	ser	exposta	com	a	ajuda	de	uma	metáfora	visual.	Se
me	for	apresentado	um	telescópio,	supondo	que	eu	nunca	tenha	visto	tal	objeto
antes,	acabarei	descobrindo	que,	ao	erguê-lo	à	altura	dos	olhos,	poderei	ver
coisas	inesperadas	na	outra	extremidade.	Uma	variedade	de	pensamentos	me
ocorreriam.	Se	já	houvesse	deparado	com	caleidoscópios	no	passado,	poderia
imaginar	o	telescópio	como	uma	“variação	do	tema”	e	tentar	girar	a	outra
extremidade	para	ver	se	a	imagem	interessante	—	que	suponho,	de	alguma
forma,	estar	dentro	de	extremidade	oposta	do	instrumento	—	mudará.	Isso	pode
realmente	acontecer,	devido	à	minha	alteração	do	foco;	minhas	suspeitas
(equivocadas)	terão	sido	(equivocadamente)	confirmadas,	e	eu	terei	de	dar	várias
voltas	na	espiral	do	conhecimento,	bem	como	no	telescópio,	até	finalmente
descobrir	a	verdade.	Ou	posso	imaginar	a	existência	de	um	espelho	posicionado
em	determinado	ângulo	na	outra	extremidade,	dando-me	informações	sobre	algo
externo	ao	telescópio,	mas	adjacente	a	mim.	Poderíamos	continuar	explorando
esse	exemplo;	contudo,	ainda	assim,	permanece	o	fato	de	que,	mesmo	que	eu
olhe	através	de	uma	lente	específica,	existem	objetos	lá	fora,	no	mundo	real
(como	todos,	exceto	o	solipsista	mais	ferrenho,	deverão	admitir),	de	modo	que
estou	realmente	olhando	para	eles,	embora,	claro,	(a)	do	meu	próprio	ponto	de
vista	e	(b)	por	meio	de	determinado	conjunto	de	lentes.
O	mesmo	se	dá	com	a	história.	O	telescópio	de	determinada	evidência	—	um
livro,	digamos,	da	história	de	Tucídides	—	contém	lentes	particulares,	dispostas
de	certa	maneira.	Sem	dúvida,	existem	coisas	fora	do	seu	alcance.	Sem	dúvida,
há	coisas	que,	por	estarem	distantes	umas	das	outras,	não	podem	ser	vistas
através	do	telescópio	ao	mesmo	tempo.	No	entanto,	Tucídides,	enquanto	escreve,
e	nós,	enquanto	lemos,	não	estamos	olhando	por	um	caleidoscópio,	para	uma
paisagem	fictícia.	Nem	através	de	um	espelho	ligeiramente	inclinado,	que	apenas
revela	em	que	ponto	Tucídides,	ou	nós	mesmos,	porventura	nos	encontramos.
Estamos	olhando	para	acontecimentos.	A	lente	pode	distorcer,	ou	o	fato	de
olharmos	com	apenas	um	dos	olhos	pode	conduzir-nos	a	erros	de	perspectiva;
talvez	precisemos	de	outras	lentes	e	de	outros	pontos	de	vista	para	corrigir	esses
erros.	Apesar	disso,	porém,	estamos,	mesmo	assim,	olhando	para	os
acontecimentos.	O	realismo	crítico,	e	não	o	abandono	do	conhecimento	do
mundo	extralinguístico,	é	necessário	para	uma	epistemologia	coerente.	[	181	]
Aplicar	isso	aos	evangelhos	significa	claramente	que,	embora	devamos	lê-los
com	os	olhos	e	os	ouvidos	abertos	à	própria	perspectiva	dos	evangelistas,	cientes
de	que	parte	dessa	perspectiva	é	seu	desejo	de	envolver	os	leitores	no	material
em	si	(os	evangelistas	não	são	meros	observadores	frios	e	distantes;	tampouco
desejam	que	nós	sejamos),	isso	não	elimina,	por	si	só,	a	forte	possibilidade	de
que	estejam	descrevendo,	em	tese,	acontecimentos	factuais.	Quando	rejeitamos
este	ou	aquele	acontecimento,	devemos	fazê-lo	por	outros	motivos	em	relação
aos	que	são	regularmente	apresentados	ou	sugeridos	—	a	saber,	que	os
evangelistas	não	são	“neutros”	e	que	seu	trabalho	revela	sua	própria	teologia,	e
não	qualquer	coisa	sobre	Jesus.	[	182	]	Podemos	aplicar	o	mesmo	ponto	à
questão	polêmica	da	teologia	paulina.	A	descoberta	de	que	Paulo	abordava	uma
situação	particular	e	olhava	para	ela	sob	uma	luz	particular	é	frequentemente
saudada	como	uma	indicação	de	que	a	passagem	em	questão	é,	portanto,
puramente	situacional,	sem	expressar	ou	incorporar	uma	teologia	fundamental
ou	uma	cosmovisão.	Isso	não	passa	de	uma	lógica	ruim.	É	um	falso	“uma	coisa
ou	outra”,	algo	típico	das	armadilhas	em	que	os	estudos	bíblicos	frequentemente
caem.
Em	particular,	devemos	notar	que	a	resposta	à	pergunta	“O	que	é	uma	questão
histórica?”	não	diz	respeito	a	“meros	fatos”.	[	183	]	A	história	trata
principalmente	dos	seres	humanos	e	tenta	traçar,	descobrir	e	compreender,	de
dentro	para	fora,	a	interação	entre	as	intenções	e	as	motivações	humanas
presentes	em	determinado	campo	de	investigação	inicial.	O	que	um	positivista
chamaria	de	“fatos”	compõe	uma	parte	inseparável	de	um	todo	muito	maior.	O
mover	do	“fato”	para	a	“interpretação”	não	é	um	mover	do	claro	para	o	pouco
claro:	acontecimentos	não	são	meras	bolas	de	bilhar	que	se	encaixam	umas	nas
outras,	às	quais	diferentes	“significados”	ou	“interpretações”	podem	ser
atribuídos	de	forma	bastante	arbitrária,	de	acordo	com	o	jogo	que	está	sendo
jogado.	Alguns	“significados”	ou	“interpretações”	serão,	segundo	veremos,	mais
apropriados	do	que	outros.	Esse	ponto	afeta	o	estudo	do	Novo	Testamento	de
todas	as	maneiras.	As	tentativas	de	dividir	dois	níveis	de	questionamentos
(primeiro,	perguntamos	“quando”,	“onde”	e	“por	quem”	um	livro	foi	escrito;	em
seguida,	indagamos	“o	que	o	livro	diz”)	são,	na	verdade,	absurdas,	a	despeito	de
toda	a	sua	popularidade.	A	fim	de	abordarmos	um	conjunto	de	questões,
devemos	integrá-las	ao	outro	conjunto.	Isso	exigirá	que	produzamos	hipóteses
históricas	que	levam	em	consideração	as	complexidades	da	motivação	humana
—	motivação	que,	por	sua	vez,	precisa	de	uma	exploração	das	cosmovisões	e	da
mentalidade	das	comunidades	e	dos	indivíduos	envolvidos.
Segundo	acabei	de	sugerir,	esse	argumento	não	deve	ser	compreendido	como
significando	que	todos	os	ângulos	de	visão	para	os	acontecimentos	são
igualmente	válidos	ou	adequados.	Trabalhando	com	o	realismo	crítico,
descobrimos	que	alguns	ângulos	fazem	menos	jus	às	informações	do	que	outros.
Indiscutivelmente,	o	Evangelho	segundo	Tomé	apresenta	um	ângulo
consideravelmente	mais	distorcido	sobre	Jesus	de	Nazaré	do	que	o	Evangelho	de
Marcos;	e	mesmo	os	que	discordam,	[	184	]	chegando	a	uma	conclusão	inversa,
concordam	que	alguns	relatos	estão	mais	próximos	dos	acontecimentos	que
pretendem	descrever	do	que	outros.	Todo	relato	“distorce”,	mas	alguns	o	fazem
consideravelmente	mais	do	que	outros.	Todo	relato	envolve	“interpretação”,	mas
a	questão	é	se	a	interpretação	revela	a	totalidade	do	acontecimento,	abrindo-o	em
toda	a	sua	realidade	e	em	todo	o	seu	significado,	ou	se	o	abafa,	fechando	sua
realidade	e	seu	significado.	Voltando	às	nossas	bolas	de	bilhar:	um	marciano,
observando	um	jogo	de	bilhar,	pode	presumir	que	esses	estranhos	humanos
testavam	as	atividades	balísticas	de	alguma	nova	arma.	Um	observador	humano
que	já	viu	um	jogo	de	sinuca,	mas	nunca	o	jogo	de	bilhar,	pode	imaginar	o	bilhar
como	uma	tentativa	ruim	de	jogar	sinuca,	com	equipamentos	limitados	e
inúmeros	erros.	Ambas	as	“interpretações”	dos	dados	distorceriam,	fechando	o
acontecimento	e	tornando	incompreensíveis	muitos	de	seus	aspectos.	O
observador	que	sabia	do	que	se	tratava	o	bilhar	distorceria,	em	certo	sentido,	da
mesma	forma:	limitaria	imediatamente	a	gama	de	interpretações	possíveis	e,	se,
por	acaso,	os	jogadores	estivessem	testando	uma	nova	arma,	chegaria	à
interpretação	correta	só	muito	tempo	depois	do	marciano.	Em	todo	caso,	porém,
sua	interpretação	revelaria	mais	do	que	ocultaria,	abrindo	o	acontecimento	para
que	os	fatos	se	encaixassem	cada	vez	mais.	Sua	história	seria	mais	completa	e
satisfatória.	O	análogo	histórico	para	isso	é	o	relato	que	não	apenas	descreve	“o
que	aconteceu”,	mas	também	o	que	chega,	como	veremos,	ao	“âmago”	do
acontecimento.
2.	As	causas	do	equívoco
Por	que	o	problema,	então?	Em	particular,	por	que	tantos	estudiosos	foram,	no
mínimo,	tímidos	sobre	os	“acontecimentos”	dos	evangelhos	serem	reais,	em	vez
de	simplesmente	ficções	na	mente	dos	evangelistas?
Às	vezes,	pensa-se	que	a	verdadeira	razão	é	a	rejeição	do	“milagroso”	e,
portanto,	a	impossibilidade	sentida	de	empregar	os	evangelhos	como	uma
história	séria.Terei	mais	a	dizer	sobre	o	assunto	posteriormente,	no	momento	em
que	escrever	a	respeito	de	Jesus.	[	185	]	Contudo,	o	ponto	básico	deve	ser
apresentado	aqui.	Relatos	de	acontecimentos	estranhos	em	qualquer	cultura
estão,	naturalmente,	sujeitos	a	acréscimos	lendários.	Mas	não	podemos	descartar
a	priori	a	possibilidade	de	as	coisas	ocorrerem	de	maneiras	normalmente
inesperadas,	uma	vez	que	fazer	isso	seria	começar	do	ponto	fixo	de	que	uma
visão	de	mundo	particular	—	ou	seja,	a	cosmovisão	racionalista	do	século	18	ou
sua	sucessora	positivista	do	século	20	—	está	correta	ao	postular	que	o	universo
é	simplesmente	um	“continuum	fechado”	de	causa	e	efeito.	Como	é	possível
qualquer	investigação	científica	não	permitir	que	sua	cosmovisão	esteja
incorreta?	(Se	alguém	responder	que	alguns	tipos	de	argumentação	e
investigação	cortariam	o	ramo	sobre	o	qual	a	cosmovisão	estava	assentada,	a
contrarresposta	pode	ser	que,	se	é	para	onde	o	argumento	leva,	é	melhor
encontrar	outro	ramo	—	ou	mesmo	outra	árvore.)
Isso	não	é	o	mesmo	que	dizer	—	digo-o	enfaticamente	—	que	a	visão	de	mundo
pré-iluminista	estava,	afinal,	correta.	Por	que,	uma	vez	que	desafiamos	os
dualismos	prevalecentes,	deveria	haver	apenas	duas	possibilidades	—	a	“pré-
modernista”	e	a	“modernista”?	Dizer	que	os	evangelhos	não	podem	ser	lidos	na
forma	como	se	apresentam	por	sua	visão	do	“milagroso”	conflitar	com	a	visão
de	mundo	iluminista	não	significa,	por	si	só,	que	podem	apenas	ser	lidos	no
âmbito	de	uma	fé	cristã	pré-crítica.	Podem	existir	muitas	outras	cosmovisões,
não	necessariamente	cristãs,	a	partir	das	quais	alguém	leria	o	evangelho	sem	se
ofender	com	os	“milagres”.	Tampouco	significa	que,	se	quisermos	ler	os
evangelhos	na	forma	como	se	encontram,	com	“milagres”	e	tudo	mais,	devemos
admitir	francamente	que	deixamos	de	fazer	“história”	e	passamos	a	fazer	outra
coisa,	a	saber,	“teologia”,	ou	um	tipo	de	meta-história.	Somente	se
desvalorizássemos	a	“história”,	de	modo	que	a	palavra	agora	significasse	“a
recontagem	positivista	daqueles	tipos	de	acontecimentos	que	se	encaixam	em
uma	visão	de	mundo	do	século	18	e	parecem	ter	realmente	acontecido”,
deveríamos	pensar	dessa	forma.	Todo	o	meu	argumento	aqui	é	que	“história”
deve	significar	mais	que	isso,	ou	seja,	a	narrativa	significativa	de	intenções;	e	é
vital	que	não	excluamos	cedo	demais	a	possibilidade	de	“significados”	diferentes
daqueles	que	havíamos	originalmente	imaginado.	A	mente	fechada	é	tão
prejudicial	para	os	estudos	quanto	a	ideia	de	“continuum	fechado”	é	para	a
própria	história.	Se	estivermos	comprometidos	com	a	história,	sempre	haverá	a
possibilidade	de,	após	várias	voltas	em	torno	da	espiral	da	hermenêutica,
encontrarmos	certos	lugares	de	onde	possamos	visualizar	o	material	sob	a	ótica
devida	e,	então,	descobrir	que	alguns	desses	lugares	são	algo	como	a	fé	cristã.
Não	se	trata	de	uma	convicção	a	priori.	Tampouco	seria	necessariamente	o	caso
de	que	o	tipo	de	fé	cristã	que	porventura	descobríssemos	se	assemelhasse	ao	que
é	tido	como	ortodoxia.
O	problema	dos	“milagres”	pode	ter	sido	uma	causa	próxima	do	desejo	por	parte
de	alguns	teólogos	(Reimarus,	Strauss,	Bultmann	etc.)	de	ler	os	evangelhos	de
uma	forma	não	histórica.	Não	creio	que	esse	tenha	sido	o	único	motivo,	nem
mesmo	o	mais	urgente.	Havia	razões	mais	profundas,	não	no	século	18	(quando
os	“milagres”	começaram	a	ser	percebidos	como	um	problema),	mas	antes.
Muitos	métodos	críticos	foram	concebidos	não	para	fazer	história,	mas	para
evitar	fazê-la:	para	manter	um	silêncio	cuidadoso	e	talvez	até	mesmo	piedoso
quando	não	sabemos	o	rumo	que	a	história	pode	tomar.	Como	crianças	que
esticam	o	pé	em	um	escorregador	para	evitar	deslizarem	rapidamente	e,	assim,
perderem	o	controle,	muitos	teólogos	não	se	deixaram	impulsionar	pelas
mudanças	e	oportunidades	do	empreendimento	histórico,	mantendo	firmemente
o	freio	ou,	em	casos	extremos,	simplesmente	recusando-se	a	participar	da
diversão.	Ou,	para	mudar	a	metáfora,	eles	temem	a	história	como	um	caminhante
teme	um	pântano:	podemos	afundar	sem	deixar	vestígios.	[	186	]	Se	houver	uma
ponte	conveniente,	melhor.	Se	o	pântano	não	nos	sustentar,	pior	para	o	pântano;
nesse	caso,	não	devemos	cruzá-lo.
Uma	forma	particularmente	predominante	desse	argumento	é	a	sugestão,	mais
atraente	nos	círculos	luteranos,	de	que	basear	a	fé	na	história	é	transformá-la	em
uma	“obra”	e,	portanto,	obviamente,	no	contexto	dessa	perspectiva	confessional,
falsificá-la.	Aqui	está	parte	da	razão,	juntamente	com	a	rejeição	neokantiana	de
“objetificação”,	pela	qual	Bultmann	adotou	essa	perspectiva.	No	entanto,	esse
argumento	só	seria	válido	se	fosse	o	caso	de	o	cristianismo	primitivo	sustentar
uma	premissa	totalmente	não	judaica,	talvez	até	mesmo	gnóstica	(precisamente	o
que	Bultmann	argumentou	em	termos	de	história	das	religiões;	recentemente,	seu
argumento	recebeu	um	novo	sopro	de	vida)	—	ou	seja,	uma	premissa	de	que	a
verdadeira	religião	seria	encontrada	ao	se	abandonar	a	história	e	encontrar
salvação	em	um	reino	completamente	fora	dela.	[	187	]	Empregar,	porém,	tal
argumento	não	apenas	é	algo	totalmente	falso	em	relação	ao	pensamento	da
igreja	primitiva,	a	qual,	como	um	todo	(incluindo	Paulo	e	João),	permaneceu
muito	mais	judaica	do	que	Bultmann	jamais	imaginou;	o	argumento	também	é
confuso	quanto	à	natureza	da	fé.	A	fé	pode	ser	o	oposto	do	que	vemos.	Também
é,	em	alguns	aspectos	importantes,	o	oposto	da	dúvida.	Dizer	que	basear	a	fé	em
acontecimentos	é	transformá-la	em	uma	“obra”	(como	se	alguém	fosse
responsável	por	esses	acontecimentos!)	é	ser	justificado	não	pela	fé,	mas	pela
dúvida.	Evidentemente,	isso	levanta	a	questão	do	que	é	um	“evento”.	Como
veremos	ao	considerar	a	vida	de	Jesus,	e	particularmente	sua	morte,	um	evento	é
algo	extremamente	complexo,	não	consistindo	apenas	em	um	conjunto	de	fatos
reais	no	mundo	público,	mas	o	ponto	focal	de	diversas	intencionalidades
humanas.	No	âmbito	dessas	intencionalidades	—	sendo	elas	mesmas	o	objeto
apropriado	de	certo	tipo	de	questionamento	histórico,	por	mais	difícil	que	seja
—,	podemos	(ou	não)	encontrar	o	que	às	vezes	é	tido	como	“significado”	ou
“sentido”.	Mais	uma	vez,	devo	enfatizar:	o	único	sentido	em	que	esse	tipo	de
compreensão	é	inacessível	ao	historiador	é	se,	por	“historiador”,	queremos	dizer
“alguém	que	mantém	uma	visão	de	mundo	europeia	do	século	18	e	que	está
comprometido	com	a	crença	de	que	o	significado	não	pode	ser	encontrado	no
âmbito	de	acontecimentos	comuns”.
Existe	outra	razão	correlata	pela	qual	alguns	estudiosos	da	Bíblia,	pelo	menos
dentro	da	teologia	pós-bultmanniana,	quiseram	reduzir	o	telescópio	fornecido
pelos	evangelhos	a	um	caleidoscópio	ou	um	espelho	angular	(e	deformador).	A
razão	é	o	desejo	por	relevância,	percebido	em	termos	de	universalização.	Como
o	ensino	de	Jesus	e	os	acontecimentos	das	narrativas	do	evangelho	podem	ter
qualquer	“significado”	para	aqueles	que	pertencem	a	outros	lugares	e	a	outras
épocas?	Se	olharmos	apenas	para	os	acontecimentos	da	vida	de	Jesus,	eles	nada
terão	a	nos	dizer.	Devem	ser	apenas	exemplos	da	verdade	superior	que
incorporam,	meras	manifestações	ou	exemplos	da	“coisa	real”;	talvez	tenha	sido
errado	ou	mesmo	perigoso	tê-los	registrado,	já	que	as	pessoas	podem	confundi-
los	com	a	coisa	real;	talvez	mostrem	uma	falta	de	coragem	por	parte	da	igreja
primitiva,	que	deveria	ter	olhado	para	o	Senhor	vivo	do	presente	e	para	o	Senhor
vindouro	do	futuro,	não	para	o	Jesus	de	Nazaré	do	passado.	Não	devemos	(ainda
nessa	perspectiva)	nos	iludir,	pensando	que	os	acontecimentos	em	si	são
importantes.	É	por	isso	que	as	parábolas,	que	originalmente	continham	a
mensagem	de	Jesus	para	Israel,	são	feitas	para	conter	uma	mensagem
universalmente	relevante.	[	188	]	O	leito	de	Procusto	do	mito	do	“Jesus
atemporal”	é,	assim,	usado	como	medida	para	cortar	todos	os	pedaços	que	não
cabem,	de	modo	que	somos	reduzidos	a	um	“Jesus	histórico”	que,	por	acaso,
perdeu	todas	as	suas	conexões	principais	com	seu	devido	lugar	e	com	seu	devido
tempo.	No	momento	adequado,	abordaremos	essas	questões;	por	enquanto,
apenas	vamos	observá-las	comoum	problema	a	mais	na	pretensa	leitura
“histórica”	dos	evangelhos.
Devemos,	portanto,	desafiar	vários	dos	pressupostos	sobre	a	história	em	geral	e
os	evangelhos	em	particular.	Em	primeiro	lugar,	devemos	rejeitar	a	ideia,	comum
desde	Reimarus,	de	que	a	“verdadeira”	história	minará	os	elementos
“interpretativos”	e	particularmente	“teológicos”	dos	evangelhos.	Toda	história
envolve	interpretação;	se	os	evangelistas	nos	oferecem	uma	interpretação
teológica,	devemos	ouvi-los	da	melhor	forma	possível,	sem	presumir	que	nossa
interpretação,	particularmente	uma	interpretação	“neutra”	ou	positivista,	seja
automaticamente	a	certa.	Pode	ser	que,	no	fim	das	contas,	alguma
“interpretação”	—	ou	talvez	mais	de	uma	—	possa	trazer	à	tona,	da	melhor
forma	possível,	o	significado	dos	acontecimentos.	Eliminar	essa	possibilidade	a
priori	seria	uma	forma	estranha	de	buscar	“objetividade”.	A	história	não	descarta
a	teologia;	na	verdade,	no	sentido	mais	amplo	de	“teologia”,	a	história	a	exige.
Em	segundo	lugar,	como	imagem	espelhada	desse	ponto,	devemos	insistir	que	os
evangelhos,	embora	sejam	(conforme	enfatizado	pela	crítica	da	redação)
totalmente	teológicos,	não	são,	por	isso,	menos	históricos.	O	fato	de	serem
interpretações	não	significa	que	não	constituam	interpretações	de	eventos;	se
assim	fosse,	não	existiriam	eventos,	já	que,	como	vimos,	todos	os	eventos
históricos	são	interpretados.	[	189	]	A	teologia	não	descarta	a	história;	em	várias
teologias,	não	apenas	em	algumas	variedades	cristãs,	ela	realmente	a	exige.
Em	terceiro	lugar,	devemos	notar,	de	forma	preliminar	(retornaremos	a	esse
ponto	mais	adiante),	as	inúmeras	possibilidades	inerentes	à	palavra	“significado”
aplicada	à	história.	Em	seu	nível	fundamental,	o	“significado”	da	história	pode
ser	considerado	algo	presente	nas	intencionalidades	dos	personagens	em	questão
(quer	realizem	suas	ambições,	quer	alcancem	seus	objetivos,	quer	não).	A
travessia	do	Rubicão	por	César	“significou”	que	ele	pretendia	colocar-se	acima
da	lei	da	República.	Em	outro	nível,	o	“significado”	pode	ser	considerado	algo
presente	na	relevância	contemporânea	ou	na	consequência	dos	acontecimentos.
Aqueles	que	cultivavam	terras	do	lado	italiano	do	Rubicão	teriam	dito	que	a
travessia	de	César	“significou”	certas	coisas	em	termos	do	estado	subsequente	de
suas	propriedades.	Mais	uma	vez,	o	fato	de	havermos	descoberto	certo	conjunto
de	motivações	humanas	pode	sugerir	um	paralelo	em	outros	acontecimentos
históricos,	inclusive	com	aqueles	que	nos	são	contemporâneos,	em	que	um
conjunto	semelhante	de	intencionalidades	pode	estar	presente	e	a	partir	do	qual
podemos	deduzir	um	“significado”	em	termos	do	nosso	próprio	mundo.	[	190	]	A
travessia	do	Rubicão	feita	por	César	“significa”	que	os	pretensos	tiranos	devem
ser	vigiados	com	cuidado	ao	fazerem	movimentos	simbólicos	vitais.	Em	outro
nível	ainda,	podemos	atribuir	“significado”	aos	acontecimentos	com	base	no
conceito	de	revelarem	a	intenção	divina	e,	portanto,	de	falarem	poderosamente
—	seja	para	o	mundo	antigo	ou	moderno,	seja	para	o	mundo	judaico	ou	cristão
—	acerca	da	natureza	e	dos	propósitos	de	“Deus”,	ou	de	um	deus.	O	final	de
César	“significa”	que	sua	arrogância	não	passou	despercebida,	nem	impune,	pela
vingança	divina.
Apesar	de	nos	interessarmos,	então,	“por	aquilo	que	realmente	aconteceu”,	nós
(por	“nós”,	quero	dizer	os	historiadores	em	geral)	também	nos	interessamos	pelo
porquê	do	acontecimento.	Essa	questão	se	abre,	por	sua	vez,	para	revelar	toda	a
gama	de	explicações	disponíveis	em	qualquer	cosmovisão,	incluindo	(no	caso	de
respostas	disponíveis	no	âmbito	do	judaísmo	do	primeiro	século)	as	intenções
não	apenas	humanas,	mas	também	as	do	deus	de	Israel.	Se	quisermos	entender
com	o	que	as	coisas	se	assemelhavam	no	primeiro	século,	e	como	se	parecem
para	nós,	toda	essa	gama	de	explicações	deve	ser	mantida	em	aberto.
Exploraremos	vários	aspectos	do	assunto	de	forma	mais	completa	no	capítulo
seguinte.
3.	À	procura	de	novas	categorias
O	que	descobrimos,	em	suma,	é	que	as	ferramentas	epistemológicas	do	nosso
tempo	parecem	inadequadas	frente	aos	dados	que	nos	estão	acessíveis.	Uma	das
ironias	atuais	e	típicas	dos	movimentos	acoplados	a	modas	acadêmicas	é	que,
atualmente,	alguns	filósofos	estão	se	afastando	do	materialismo,	até	mesmo	de
um	realismo	moderado,	e	retornando	ao	idealismo	—	assim	como	os	teólogos,
que,	depois	de	aprisionados	por	tanto	tempo	nos	redutos	idealistas,	estão
finalmente	se	regozijando	ao	descobrirem	algumas	formas	de	realismo.	Esses
debates	podem	servir	para	manter	os	controles	e	equilíbrios	vivos	no	contexto	de
uma	disciplina.	Todavia,	suspeito	que	a	distinção	idealista-realista	seja,	em
última	análise,	enganosa;	e	as	oscilações	não	ajudam	muito	em	termos	de	uma
investigação	histórica	real	como	a	nossa.
O	que	precisamos,	creio,	é	de	um	conjunto	de	ferramentas	projetadas	para	a
tarefa	em	questão,	e	não	de	um	conjunto	emprestado	de	alguém	que	pode	estar
trabalhando	em	outra	coisa.	Da	mesma	forma	que	os	evangelhos	e	as	cartas
incorporam	gêneros	um	tanto	distantes	de	seus	análogos	não	cristãos	mais
próximos,	seu	estudo,	bem	como	o	estudo	de	suas	figuras	centrais,	são	tarefas
que,	embora	guardem,	evidentemente,	analogia	com	outras	disciplinas
estreitamente	relacionadas,	exigem	ferramentas	especializadas	—	ou	seja,	uma
teoria	do	conhecimento	adequada	às	tarefas	específicas.	É	o	que	procuro
fornecer	nesta	parte	do	livro.	Se,	além	disso,	a	afirmação	cristã	fosse,	afinal,
verdadeira	—	seria	tolice	responder	a	essa	pergunta	de	qualquer	maneira,	sem
antes	lidar	com	o	método	preliminar	—,	talvez	esperássemos,	ao	estudar	o
próprio	Jesus,	encontrar	a	chave	para	compreender	não	apenas	o	objeto	que
podemos	ver	pelo	telescópio	e	a	voz	que	podemos	ouvir	ao	telefone,	mas
também	a	própria	natureza	da	visão	e	da	audição.	Em	outras	palavras,	estudar
Jesus	pode	levar	a	uma	reavaliação	da	própria	teoria	do	conhecimento.	[	191	]
Já	sugeri,	em	linhas	gerais,	algumas	maneiras	pelas	quais	esse	empreendimento
pode	prosseguir,	e	espero	voltar	a	tal	ponto	na	conclusão	de	todo	este	projeto.
Por	ora,	podemos	dizer:	o	“observador”,	a	despeito	do	contexto,	é	chamado	a
estar	aberto	à	possibilidade	de	eventos	que	não	se	enquadram	em	sua
cosmovisão,	em	seu	prisma	de	possibilidades	antecipadas.	Ou	então,	segundo	eu
preferiria	dizer,	é	apropriado	aos	seres	humanos	em	geral	ouvirem	histórias	além
daquelas	pelas	quais	habitualmente	organizam	suas	vidas,	questionando	se
deveriam	ter	a	permissão	de	subverter	as	histórias	atuais,	ou	seja,	questionando
se	realmente	há	mais	coisas	entre	o	céu	e	a	terra	do	que	aquilo	com	que	sonha
nossa	vã	filosofia.	Tomado	em	certo	sentido,	o	apelo	pode	soar	como	um	convite
aos	cristãos	“modernistas”	ou	aos	não	cristãos,	para	que	sejam	“abertos	ao
sobrenatural”—	um	convite,	em	outras	palavras,	para	que	um	conservadorismo
ou	um	fundamentalismo	antiquado	recebam	uma	chance.	Contra	isso,	declaro	de
uma	vez	que,	em	muitos	casos,	é	precisamente	o	“cristão	comum”	que	deve	estar
aberto	às	possibilidades	de	leitura	do	Novo	Testamento	e	às	maneiras	de
compreensão	de	quem	realmente	foi	Jesus,	reavaliando	seriamente	suas	histórias
prévias.	Também	espero	estar	claro	que,	assim	como	a	distinção
subjetiva/objetiva,	rejeito	a	distinção	natural/sobrenatural,	a	qual	é	igualmente
produto	do	pensamento	iluminista.	Na	verdade,	precisamente	as	histórias
modeladas	com	base	nessas	distinções,	sejam	de	maneira	“conservadora”	ou
“liberal”,	é	que,	creio,	serão	subvertidas	pela	história	que	me	proponho	a	contar.
As	ferramentas	de	pensamento	de	que	precisamos,	então,	não	podem	ser	as	do
pré-modernismo	mais	do	que	as	do	modernismo.	Até	que	ponto	ofereço
ferramentas	pertencentes	ao	“pós-modernismo”,	essa	é	uma	questão	que	não	me
preocupa	muito.	Afinal,	a	diversidade	é	uma	característica	necessária	do	pós-
modernismo.	Proclamar	a	morte	da	cosmovisão	iluminista	ainda	não	implica
anunciar	o	que	surgirá	para	ocupar	seu	lugar.	Pode	ser	que	o	estudo	de	Jesus,	que
não	pode	deixar	de	realçar	os	elementos	de	sua	morte	e	ressurreição,	tenha	algo	a
dizer	sobreo	assunto.
Se	quisermos,	com	o	tempo,	elaborar	uma	nova	teoria	do	conhecimento,	também
precisaremos	de	uma	nova	teoria	do	ser	ou	da	existência	—	ou	seja,	de	uma	nova
ontologia.	Nesse	caso,	também	nos	encontramos	em	uma	situação	do	tipo	“ovo	e
galinha”:	precisamos	conhecer	a	nova	teoria	antes	de	estudar	o	material,	mas	é
estudando	o	material	que	surgirá	a	nova	teoria.	Portanto,	contento-me,	neste
estágio,	em	delinear	o	caminho	em	que,	segundo	penso,	o	argumento	pode
funcionar,	deixando-o	modificar-se	à	medida	que	vamos	avançando.	Parece-me,
retomando	um	ponto	do	parágrafo	anterior,	que	ontologias	baseadas	em	uma
distinção	natural/sobrenatural	simplesmente	não	são	o	bastante.	Rejeitar,	por
exemplo,	a	premissa	de	que	“o	mundo	está	cheio	da	glória	de	Deus”,	optando-se
antecipadamente	pelo	materialismo	ou	pelo	“sobrenaturalismo”,	é	sempre	correr
o	risco	do	que	me	parece	um	dualismo	ontológico	insustentável.	Como,	em	um
nível	inicial,	podemos	escapar	disso?
Neste	ponto,	inevitavelmente,	o	intérprete	deve	“revelar	a	carta	que	traz	na
manga”.	Sinto-me	impelido,	tanto	por	meu	estudo	do	Novo	Testamento	como
por	uma	variedade	de	fatores	que	contribuíram	para	minha	formação,	a	contar
uma	história	sobre	a	realidade	que	funciona	mais	ou	menos	assim.	A	realidade
como	a	conhecemos	resulta	de	um	deus	criador,	trazendo	à	existência	um	mundo
que,	embora	diferente	de	si	mesmo,	está	cheio	de	sua	glória.	A	intenção	desse
deus	sempre	foi	que	a	criação,	um	dia,	viesse	a	ser	inundada	com	sua	própria
vida,	de	uma	forma	para	a	qual	foi	preparada	desde	o	início.	Como	parte	dos
meios	para	esse	fim,	o	criador	trouxe	à	existência	uma	criatura	que,	ao	portar	sua
imagem,	traria	seu	cuidado	sábio	e	amoroso	para	a	administração	da	criação.	Por
uma	trágica	ironia,	a	criatura	em	questão	rebelou-se	contra	essa	intenção;	mas	o
criador	resolveu	esse	problema,	em	tese,	de	uma	maneira	totalmente	apropriada
e,	como	resultado,	move	a	criação,	mais	uma	vez,	em	direção	ao	objetivo
originalmente	pretendido.	Agora,	a	implementação	dessa	solução	envolve	a
habitação	desse	deus	dentro	de	suas	criaturas	humanas	e,	por	fim,	em	toda	a
criação,	transformando-a	naquilo	para	a	qual	foi	feita	no	início.	Essa	história,
cuja	semelhança	com	a	parábola	dos	lavradores	infiéis	dificilmente	é	acidental,
tenta,	obviamente,	fundamentar	a	ontologia,	uma	perspectiva	do	que	realmente
“está	lá”,	no	ser	e	na	atividade	do	deus	criador/redentor.	No	meu	caso,	já
conseguiu	subverter	todo	o	tipo	de	outras	histórias	(inclusive	várias	histórias
“cristãs”)	que	eu	costumava	contar	a	mim	mesmo	sobre	a	realidade.	Acho	que
ela	“se	encaixa”	com	muito	mais	elementos	do	mundo	real	do	que	as	histórias
pós-iluministas	às	quais	estamos	acostumados.	Fingir	não	ser	esse	o	caso	—
abandonar	essa	história	em	favor	de	reduzir	tudo	à	“mera	história”,	a	um	projeto
estilo	iluminista,	tão	desatualizado	atualmente	quanto	o	muro	de	Berlim	—	seria
tanto	desonestidade	como	tolice.
Em	que	consiste,	então,	o	método	adequado	para	o	historiador?	Recentemente,
argumentou-se,	com	certa	veemência,	que	a	história	consiste	em	um	processo
recorrente	de	hipótese	e	verificação.	[	192	]	Visto	que,	em	muitos	aspectos,
concordo	com	essa	proposta	—	na	medida	em	que	acredito	ser	esse	o	processo
(ou	alguma	variante	dele)	que	todos	os	historiadores	já	seguem	—,	é	vital	que
exploremos	exatamente	o	que	isso	significa	e	como,	especificamente,	os
“métodos	críticos	normais”,	associados	ao	estudo	contemporâneo	do	Novo
Testamento,	baseiam-se	nele.
MÉTODO	HISTÓRICO:	HIPÓTESE	E	VERIFICAÇÃO
1.	Introdução
Há	um	sentido	importante	em	que	o	método	histórico	é	igual	a	todos	os	demais
métodos	de	investigação.	Ele	prossegue	por	meio	de	“hipóteses”	que	demandam
“verificação”.	Conforme	já	vimos,	uma	maneira	melhor	de	colocar	a	questão
(evitando	certas	armadilhas	epistemológicas)	é	dizer	que	a	vida	humana	é	vivida
por	meio	de	histórias	implícitas	e	explícitas;	que	essas	histórias	levantam
questões;	que	os	seres	humanos	apresentam	histórias	explicativas	para	lidar	com
essas	questões;	que	algumas	dessas	histórias	alcançaram	certo	grau	de	sucesso.
Continuarei	a	utilizar	os	convenientes	termos	“hipótese”	e	“verificação”,	porém
devo	empregá-los	com	esses	tons.
Apesar	dessa	semelhança	com	outros	campos	de	investigação,	também	haverá
diferenças	significativas.	Hipóteses	em	diferentes	áreas	demandam	diferentes
tipos	de	força,	assim	como	terão	diferentes	sistemas	de	verificação	apropriados.
As	regras	para	o	que	valerá	a	contar	como	história	explicativa,	quanto	mais	o
que	contará	como	um	empreendimento	bem-sucedido,	serão	sutilmente
diferentes	quando	lidarmos	com	assuntos	diferentes.	Devemos,	assim,	indagar
acerca	do	que	constitui	uma	boa	hipótese	histórica,	em	oposição	a	qualquer	outro
tipo	de	hipótese	elaborada.	Haverá	analogias	e	semelhanças	com	os	critérios	para
boas	hipóteses	em	outras	esferas	do	conhecimento;	contudo,	o	que	já	foi	dito
neste	capítulo	sobre	a	natureza	do	conhecimento	histórico	entrará	em	jogo,
produzindo	diferenças	importantes.
Uma	hipótese,	como	vimos,	é	essencialmente	uma	construção,	pensada	por	uma
mente	humana,	oferecendo-se	como	uma	narrativa	sobre	determinado	conjunto
de	fenômenos;	a	narrativa,	que	está	fadada	a	ser	uma	interpretação	desses
fenômenos,	também	oferece	uma	explicação	sobre	eles.	Por	exemplo:	vejo	um
carro	da	polícia	avançando	na	contramão,	com	as	sirenes	tocando.	Porque	eu
conto	a	mim	mesmo	uma	história	subjacente	sobre	o	estado	normal	de	nossa
sociedade,	deparo	com	a	seguinte	ideia:	algo	fora	do	comum	está	acontecendo.
Penso	que	talvez	um	crime	tenha	sido	cometido;	ou	que	tenha	havido	um
acidente.	Essa	é	uma	hipótese	histórica,	que	agora	precisa	ser	testada	à	luz	de	um
número	maior	de	evidências.	Os	estágios	de	teste	e,	em	última	análise,	de
verificação	podem	ser	ilustrados	por	meio	da	analogia.	Em	seguida,	ouço	um
carro	de	bombeiros	em	uma	rua	vizinha	e	vejo	uma	nuvem	de	fumaça	subindo
nas	imediações.	De	pronto,	altero	a	minha	hipótese:	o	surgimento	de	novos
dados	me	ajudou	a	esclarecer	as	coisas.	Evidentemente,	pode	ser	que	o	carro	de
polícia	esteja	perseguindo	um	ladrão	e	não	saiba	nada	sobre	o	incêndio;	mas	a
probabilidade	permanece	elevada,	devido	à	inerente	simplicidade	da	hipótese	e	à
conclusão	dos	dados,	de	que	os	acontecimentos	se	encaixam.	Então,	lembro-me
de	ter	ouvido	uma	explosão	inexplicada,	dez	minutos	antes.	Mais	uma	vez,	a
explosão	pode	não	ter	qualquer	relação	com	os	fatos,	mas	a	imagem	está
surgindo	com	uma	simplicidade	essencial,	passando	a	abranger	e	a	explicar	mais
dados	que	eu	não	tinha	originalmente	conectado	ao	acontecimento.	No	momento
em	que	chego	ao	carro	de	polícia,	minha	jornada	em	volta	da	espiral	do
entendimento	levou-me,	literal	e	metaforicamente,	à	cena	do	incêndio.	E,	quando
começo	a	fazer	a	verdadeira	pergunta	do	historiador,	a	questão	do	“porquê”	em
relação	a	esses	acontecimentos,	não	preciso	ir	além	da	ação	que,	a	despeito	de
qualquer	intenção,	causou	o	incêndio	e	da	intenção	da	polícia	e	dos	bombeiros
na	realização	de	seu	trabalho	quanto	à	catástrofe.
2.	Os	requisitos	de	uma	boa	hipótese
Há,	portanto,	três	coisas	que	uma	boa	hipótese,	em	qualquer	área	do
conhecimento,	deve	fazer.	Cada	qual	demanda	uma	discussão	mais	aprofundada,
porém	é	importante	esclarecer	os	contornos	de	boas	hipóteses	nesse	estágio.
Em	primeiro	lugar,	uma	boa	hipótese	deve	incluir	os	dados.	Cada	aspecto	da
evidência	deve	ser	incorporado	—	e,	na	medida	do	possível,	preservado	—	e
avaliado	com	meus	próprios	olhos,	e	não	por	uma	visão	divino-panorâmica.	Não
adianta	fingir	que	a	fumaça	era	uma	nuvem	baixa,	ou	imaginar	que	a	“explosão”
foi	simplesmente	a	batida	de	uma	grande	porta	em	uma	localidade	próxima.
Em	segundo	lugar,	deve	construir	um	quadro	geral	essencialmente	simples	e
coerente.	Pode	ser	que	nem	a	explosão,	nem	a	fumaça,	nem	o	carro	de
bombeiros,	tampouco	o	carro	da	polícia	tenham	qualquer	relação	entre	si;	no
entanto,	até	coletarmos	mais	dados	—	como,	por	exemplo,	observar	o	carro	de
polícia	afastando-se	do	fogo	e	indo	em	direção	a	um	banco	que	está	sendo
roubado—,	é	mais	simples	sugerir,	de	modo	razoavelmente	direto,	que	todos	os
elementos	fazem	parte	do	mesmo	todo.
Esses	dois	primeiros	aspectos	de	uma	boa	hipótese	—	obtenção	de	dados	e
simplicidade	—	estão	sempre,	obviamente,	em	tensão	entre	si.	É	fácil	criar
hipóteses	simples	à	custa	de	alguns	dados;	é	fácil	sugerir	explicações	para	todos
os	dados	ao	custo	de	produzir	uma	hipótese	altamente	complexa	e	complicada.
Ambas	as	alternativas	são	encontradas	com	frequência	nos	estudos	do	Novo
Testamento,	principalmente	no	estudo	a	respeito	de	Jesus.	“Jesus,	o	simples
camponês	galileu”	é	uma	declaração	direta,	porém	ignora	boa	parte	das
evidências;	e	a	hipótese	não	é	visivelmente	reforçada	pela	adição	de	todos	os
tipos	de	especulações	que	pretendem	explicar	como	os	demais	dados	foram
inventados	por	grupos	imaginários	da	igreja	primitiva.	Por	outro	lado,	a	maior
parte	das	leituras	“conservadoras”	de	Jesus	inclui	todos	os	dados,	visto	ser	esse
seu	objetivo,	mas	sem	qualquer	relato	historicamente	convincente	dos	objetivos
e	das	intenções	de	Jesus	durante	seu	ministério.
Em	qualquer	campo	de	investigação,	é	bastante	provável	que	existam	diversas
hipóteses	possíveis,	as	quais	incluirão	mais	ou	menos	todos	os	dados,	com	uma
simplicidade	razoável.	Há,	portanto,	uma	terceira	coisa	que	uma	boa	hipótese
deve	fazer	se	quiser	destacar-se	das	outras.	A	história	explicativa	proposta	deve
provar-se	frutífera	em	outras	áreas	correlatas,	explicando	ou	ajudando	a	explicar
outros	problemas.	Em	minha	ilustração	original,	outros	problemas	incluiriam	a
explosão	e	coisas	extras,	às	quais	eu	não	havia	prestado	muita	atenção
originalmente	—	como,	por	exemplo,	o	fato	de	que	uma	estrada	lateral	pela	qual
eu	passara	anteriormente	estava	fechada.
Quando	aplicamos	esses	critérios	e	hipóteses	a	Jesus,	ao	judaísmo	ou	a	toda	a
questão	da	origem	do	cristianismo,	descobrimos	que	os	primeiros	problemas	são
naturalmente	um	pouco	mais	complexos	do	que	um	incêndio	na	cidade.	Em
primeiro	lugar,	descobrimos	que	a	pilha	de	dados	a	serem	incluídos	é	vasta	e
intimidadora.	Em	uma	hipótese	histórica,	os	dados	são,	naturalmente,	materiais
de	origem:	no	período	antigo,	isso	significava	principalmente	documentos
escritos,	mas	também	havia	inscrições,	artefatos,	evidências	arqueológicas	etc.
Uma	massa	de	material	deve	ser	reunida,	e	o	historiador	que	anseia	por
simplicidade	será	fortemente	atraído	a,	em	prol	da	coerência,	omitir	metade	dos
fenômenos.	[	193	]	Se	considerarmos	apenas	as	fontes	judaicas,	teremos	um
estudo	por	toda	a	vida;	os	evangelhos	apresentam	uma	série	de	problemas	que
lhes	são	característicos;	as	formas	de	fala	e	escrita	utilizadas	pelos	primeiros
cristãos	—	principalmente	as	imagens	apocalíticas,	tão	familiares	a	eles	e	tão
estranhas	a	nós	—	nos	levarão	constantemente	a	erro,	se	não	nos	mantivermos
atentos.	E,	como	sempre	é	o	caso	no	que	diz	respeito	à	história	antiga,	as	fontes
têm	o	hábito	de	não	nos	dizer	o	que	realmente	gostaríamos	de	saber.	Não
explicam	coisas	que	lhes	eram	familiares,	levando-nos	a	ter	de	reconstruir
meticulosamente	determinado	assunto.	[	194	]	Somos	como	paleontólogos
lutando	para	reunir	uma	pilha	de	ossos	que	um	dinossauro	teve	durante	toda	a
sua	vida,	sem	que	isso	sequer	lhe	passasse	pela	cabeça.	Ver	e	coletar	dados	é,	por
si	só,	uma	tarefa	monstruosa.
Em	segundo	lugar,	por	conseguinte,	a	formulação	de	uma	hipótese	histórica
essencialmente	simples	também	constitui	um	grande	problema.	Envolve	manter
em	mente,	de	forma	contínua,	todas	as	questões-chave	sobre	Jesus,	recusando-se
a	admitir	uma	simplificação	cuja	solução	em	uma	área	deixa	o	restante	em	um
estado	caótico	e	de	desordem.	É	nesse	estágio,	conforme	veremos	mais	adiante,
que	alguns	estudiosos	do	Novo	Testamento	desenvolvem	formas	altamente
sofisticadas	de	se	livrar	do	dilema	apresentado	por	esses	dois	critérios.	Se	parte
dos	dados	não	se	encaixa	em	uma	hipótese	simples	(de	que,	por	exemplo,	Jesus
esperava	o	fim	do	mundo	em	breve	e,	portanto,	não	teve	tempo	de	pensar	em
fundar	uma	igreja),	então	temos	maneiras	de	lidar	com	os	dados	recalcitrantes:
existem	várias	ferramentas	disponíveis	com	o	objetivo	de	mostrar	que	os	dados
não	têm	origem	em	Jesus,	mas	na	igreja	posterior.	Assim,	os	dados	desaparecem
da	imagem	de	Jesus,	mas	a	um	custo.	[	195	]	E	esse	custo	é	a	complexidade
resultante	da	imagem	da	igreja,	de	sua	atividade	criativa	e	suas	tradições.
Qualquer	um	que	tenha	estudado	a	tradição	histórico-crítica	dos	evangelhos	sabe
como	isso	pode	ser	intrincado	e	quão	poucos	são	os	pontos	de	convergência
realmente	existentes.	O	que	vemos	nessa	situação	é	o	elevado	grau	de
complexidade	implausível	nos	detalhes,	o	preço	que	pagamos,	amplamente
falando,	para	a	compra	da	simplicidade	—	quer	para	um	retrato	de	Jesus,	quer
para	a	igreja	primitiva	e	seu	hipotético	desenvolvimento,	quer	para	a	teologia
paulina.	Só	quando	temos	em	mente	a	importância	da	simplicidade	essencial	de
todo	o	quebra-cabeça	é	que	ficamos	insatisfeitos	(intelectualmente,	podemos
muito	bem	sentir	outros	tipos	de	insatisfação	com	o	atual	estado	da	crítica	da
tradição)	com	resultados	desse	tipo.
O	terceiro	critério	(dar	sentido	a	outras	áreas	fora	do	campo	de	investigação
escolhido)	obviamente	diz	respeito,	no	caso	da	pesquisa	sobre	Jesus	e	Paulo,	ao
quebra-cabeça	mais	amplo	do	primeiro	século	como	um	todo.	Em	particular,
grandes	problemas	foram	levantados	sobre	a	relação	entre	nossos	dois	assuntos
principais,	e	qualquer	hipótese	que	faça	sentido	sobre	um,	visto	que	aponta	para
o	outro,	deve	ter	vantagem	decisiva	sobre	a	hipótese	que	trata	de	ambos	como
polos	separados.	É	quando	os	pesquisadores	tentam	manter	Jesus	e	a	igreja
primitiva	distanciados	entre	si	que	fenômenos	extras	são	importados,	com	a
suposta	helenização	de	Paulo	do	evangelho	judaico	original.	Isso	salva	os
fenômenos	e	lida	com	questões	mais	amplas,	porém	à	custa,	mais	uma	vez,	da
simplicidade.
Até	agora,	omitimos	um	critério	que	desempenha,	regularmente,	um	papel
importante	nas	hipóteses	históricas	sobre	o	Novo	Testamento.	Refiro-me	à
relevância	prática	contemporânea,	real	ou	imaginada,	que	a	hipótese	pode	ter.	Já
vimos	um	pouco	a	esse	respeito	no	capítulo	1	e,	em	capítulos	introdutórios	dos
volumes	sucessivos,	examinaremos	as	formas	particulares	que	assumiu.	Aqui,	a
ideia	a	ser	enfatizada	é	bastante	simples,	ainda	que,	deste	ponto	em	diante,	os
efeitos	do	estudo	de	Jesus	e	do	estudo	de	Paulo	se	dividam.
Poucas	pessoas,	diante	do	fato	incômodo	de	que	Jesus,	afinal,	não	subscreveu
seu	projeto	ou	programa	favorito,	estão	preparadas	para	dizer:	“O	problema	é	de
Jesus”.	Afinal,	foi	o	que	seus	contemporâneos	fizeram,	e	nos	acostumamos	a
criticá-los	por	essa	atitude.	Foi	por	isso	que,	como	disse	George	Tyrrell,	o	“Vidas
de	Jesus”,	[	196	]	produzido	por	liberais	do	século	19,	só	conseguiu	ver	o	reflexo
de	seus	próprios	rostos	no	fundo	de	um	grande	poço.	[	197	]	Da	mesma	forma,
os	muitos	modelos	altamente	variados	de	cristianismo	atualmente	disponíveis	—
todos	com	algum	tipo	de	lugar	para	Jesus	—	resistem	fortemente	a	qualquer
mudança	na	versão	de	seu	próprio	retrato,	uma	vez	que,	como	eles	perceberam
corretamente,	isso	pode	ter	efeito	considerável	e	talvez	mesmo	indesejável	em
outras	áreas	da	vida	e	do	pensamento.	É	claro	que	esse	conservadorismo	inato
significa	que	o	frequentador	médio	da	igreja	(e	muitos	teólogos	são,	ou	foram
em	determinada	época,	frequentadores	comuns)	oferece	uma	resistência	inerente
à	mera	inovação.	Também	significa	que	sugestões	sérias	e	bem-fundadas	para
modificar	a	imagem	de	Jesus	são,	às	vezes,	erroneamente	descartadas.	Tal
processo	de	rejeição	opera	(como,	naturalmente,	as	propostas	inovadoras)	em
diversos	níveis,	cabendo	a	um	sociólogo	ou	a	um	psicólogo	explorar.
E	quanto	a	Paulo?	Já	mencionamos	a	maneira	pela	qual	os	retratos	do	judaísmo	e
da	igreja	primitiva	foram	moldados	para	se	enquadrar	às	exigências	dos
esquemas	hermenêuticos	contemporâneos.	Às	vezes,	judeus	são	os	vilões;	outras
vezes,	os	heróis	trágicos.	Às	vezes,	os	primeiros	cristãos	são	os	nobres	pioneiros;
outras	vezes,	os	primitivosexcêntricos.	Ao	nos	voltarmos	para	Paulo	como	um
caso	especial	da	igreja	primitiva,	descobrimos	um	fenômeno	bem	diferente.	É
comum	que	as	pessoas	digam,	de	fato,	que	“Paulo	acreditava	em	‘x’,	mas	que
nós	acreditamos	em	‘y’”.	Muitos	ainda	querem	ter	Paulo	como	aliado,	mas,
talvez	de	uma	forma	compreensível,	é	menor	o	número	de	estudiosos
comprometidos	com	essa	posição	do	que	aqueles	que	desejam	manter	Jesus	ao
seu	lado.	Para	alguns,	talvez	isso	represente	um	nível	maior	de	“objetividade”
nos	resultados:	se	somos	livres	para	discordar	de	Paulo,	também	somos	livres
para	deixá-lo	ser	ele	mesmo.	As	coisas	não	são,	infelizmente,	tão	simples	assim.
O	que	frequentemente	acontece	em	meio	à	erudição	paulina	é	o	seguinte:	Paulo	é
tido	por	sustentar	uma	perspectiva	que	lhe	é	creditada	por	alguns	expositores;	no
entanto,	algum	erudito	que	discorda	dessa	perspectiva	critica	Paulo,	como	se	o
apóstolo	fosse	o	responsável	por	ela.	Dois	bons	exemplos	são	Schoeps,	que,	em
tom	de	reprovação,	chama	Paulo	de	“luterano”,	e	a	rejeição	ainda	menos
moderada	de	Maccoby,	que	rotula	o	apóstolo	de	“gnóstico	helenista”.	[	198	]
Alternativamente,	alguns	eruditos	vêm	de	tradições	(algumas	inglesas,	por
exemplo)	em	que	há	muito	tempo	está	na	moda	ser	um	tanto	condescendente	e
desdenhoso	com	relação	a	Paulo:	um	bom	sujeito,	sem	dúvida,	porém	um	pouco
confuso	e	muito	dogmático	—	em	suma,	não	exatamente	o	tipo	de	teólogo	que
alguém	gostaria	de	ter	por	perto	em	uma	sociedade	educada.	Então,	é	importante
encontrar	pontos	de	convergência	suficientes	para	manter	uma	continuidade
crível	no	apóstolo,	e	pontos	de	crítica	suficientes	para	evitar	ser	manchado	pelo
pincel	paulino.
É	claro	que	faz	parte	de	uma	epistemologia	coerente,	como	argumentei	no
capítulo	2,	que	o	conhecedor	não	pode	saber	sem	estar	envolvido.	O	positivismo
não	é	melhor	quando	se	estuda	história	em	vez	de	qualquer	outra	coisa.	Além
disso,	como	sugeri	no	capítulo	1,	o	fato	de	que	a	história	controladora	da	vida	de
algumas	pessoas	posicione	Jesus,	e	talvez	Paulo,	sob	uma	ótica	altamente
positiva	significa	que	não	há	necessidade	de	fingir	“neutralidade”,	que	muitas
vezes	não	passa	de	uma	cortina	de	fumaça	por	preconceito	não	examinado.
Entretanto,	se	o	critério	de	controle	para	uma	história	particular	é	sua	capacidade
de	legitimar	determinada	postura,	seja	cristã	ou	não,	reduzimos,	mais	uma	vez,	a
epistemologia	na	direção	oposta:	a	da	fenomenologia.	A	evidência	histórica	só
pode	ser	usada	desde	que	funcione	como	um	espelho	no	qual	possamos	nos	ver
como	gostaríamos.	E	isso	seria	negar	a	possibilidade	de	novas	histórias,	de
subversão	ou	de	modificação	das	histórias	que	já	contamos	a	nós	mesmos.
Assim,	filosoficamente,	jaz	o	solipsismo,	conforme	já	vimos;	dessa	forma,
historicamente,	jaz	a	mente	fechada.	Dessa	forma,	teologicamente,	jaz	o
fundamentalismo,	o	solipsismo	religioso	corporativo,	o	qual	não	pode	suportar	a
ideia	de	uma	história	nova	ou	revisada.
Assim,	se	a	hipótese	proposta	acabasse	por	nos	apontar	para	uma	forma	de
cristianismo	que	algumas	pessoas	considerassem	inaceitável,	ou	se	sugerisse	o
abandono	total	do	cristianismo,	seria	possível	a	qualquer	pessoa	propor	uma
revisão	do	argumento	para	ver	se	um	erro	não	foi	cometido.	Mas	ninguém	pode
usar	uma	percepção	pessoal	de	inaceitabilidade	como	base	legítima	em	si	para
rejeitar	a	hipótese	histórica.	[	199	]	Se	quisermos	testar	a	hipótese,	devemos
proceder	estritamente	com	base	nos	fundamentos	declarados:	obter	dados,
alcançar	a	devida	simplicidade	e	demonstrar	resultados	em	outros	campos	de
investigação.	Evidentemente,	tal	“verificação”	consiste	em	humanos	contando
histórias	percebidas	como	histórias	explicativas	de	sucesso,	e	isso	sempre
envolverá	a	interação	entre	o	conhecedor	e	os	dados.	Contudo,	não	se	deve
permitir	que	essa	inevitabilidade	leve	alguém	a	simplesmente	projetar	no
material	a	posição	que	deseja	aceitar	ou	a	posição	que	deseja	rejeitar.
A	história,	então,	assim	como	a	microbiologia	ou	qualquer	outra	área	do
conhecimento,	procede	por	meio	de	hipótese	e	verificação.	Sugiro	que	sempre
foi	assim,	mesmo	com	o	estudo	de	Jesus	e	dos	evangelhos,	de	Paulo	e	das
epístolas.	Schweitzer,	Bultmann	e	os	demais,	incluindo	os	praticantes	da	“New
Quest”	[Nova	busca]	que	sustentaram,	por	tanto	tempo,	a	necessidade	de	haver
critérios	apropriados	[	200	]	—	todos	eles	apelam	tacitamente	para	esse	esquema
de	pensamento.	Todos	tinham	em	mente	alguma	hipótese,	alguma	narrativa
dominante,	que	defendiam	sob	a	alegação	de	estarem	lidando	com	os	dados,
operando	com	um	esquema	o	mais	simples	possível	e	tentando	ver	como	isso
lançaria	luz	sobre	outros	materiais	circundantes.	O	problema	é	que	esse	método,
embora	realmente	usado,	não	foi,	muitas	vezes,	devidamente	escrutinizado	e,
portanto,	nem	sempre	funcionou	adequadamente:	argumentos	ruins	passaram
despercebidos	porque	a	atenção	foi	desviada	dos	sinais	de	perigo	(descuido	com
os	dados	ou	a	feliz	aceitação	de	complexidades	desnecessárias),	alertando	para	o
fato	de	que	nem	tudo	ia	bem.	Em	particular,	os	pesquisadores	trabalharam	com
modelos	dominantes,	mas	enganosos,	da	igreja	primitiva,	os	quais,	como
veremos,	exerceram	uma	influência	importante,	embora	muitas	vezes
despercebida,	nos	estudos	sobre	Jesus	e	Paulo.
Como	um	exemplo	desse	último	fenômeno,	podemos	considerar	a	célebre
hipótese	de	Wrede	sobre	o	chamado	“segredo	messiânico”.	[	201	]	Tudo
começou	com	Jesus,	que,	de	forma	alguma,	se	considerava	o	Messias.	Em
seguida,	veio	a	igreja	primitiva,	que	o	saudou	como	tal	(por	quê?),	apesar	de	sua
autoconsideração	inocente.	Depois,	surgiu	um	herói	criativo	e	anônimo	que,
diante	dessa	anomalia,	inventou	a	explicação	de	que	Jesus	havia,	afinal,	falado
de	si	mesmo	como	o	Messias,	mas	sempre	mantendo	o	assunto	em	estrito
segredo.	Então,	veio	Marcos,	que	se	reuniu	ao	esquema	e	o	incorporou
deliberadamente	em	uma	narrativa	contínua.	Nem	mesmo	ele	fez	um	trabalho
tão	bom,	já	que	ainda	há	estranhezas,	como	aquelas	ocasiões	no	evangelho	em
que	parece	que	o	segredo	está	sendo	revelado	cedo	demais.	E	tudo	isso
supostamente	aconteceu	em	quarenta	anos.	Isso	não	quer	dizer	que	o
desenvolvimento	teológico	rápido	e	dramático	seja	impossível.	Na	verdade,	tal
desenvolvimento	acontece	com	frequência,	e	o	primeiro	século	é	um	bom
exemplo	disso.	No	entanto,	a	elaboração	dessa	estranheza,	para	a	qual
motivações	complexas	e	bizarras	precisam	ser	inventadas,	etapa	por	etapa,	do
nada	—	isso	já	é	abusar	demais	de	nossa	boa	vontade.	Uma	hipótese	que
explique	os	dados	sem	recorrer	a	esse	tipo	de	coisa	sempre	terá	mais	sucesso,	e
com	razão.	Wrede	pagou	caro	pela	simplicidade	de	sua	ideia	básica	(e	simples)
—	a	de	que	Jesus	não	se	considerava	o	Messias	—,	à	custa	do	aumento	da
complexidade	em	todos	os	demais	aspectos	de	sua	hipótese.	Mesmo	assim,
muitos	dados	continuam	a	não	se	encaixar.	Não	adianta	limpar	debaixo	da	cama
se	o	resultado	for	uma	pilha	de	lixo	debaixo	do	guarda-roupa.	[	202	]
3.	Problemas	de	verificação
Há,	atualmente,	muitas	discussões	apropriadas	e	necessárias	—	entre	os	filósofos
da	ciência,	por	exemplo	—	quanto:	(a)	ao	peso	relativo	que	deve	ser	atribuído
aos	diferentes	critérios	adotados	na	verificação	ou	na	falsificação	de	hipóteses;
(b)	ao	desenvolvimento	adequado,	em	qualquer	campo	de	investigação
particular,	do	que	contará	como	critério	satisfatório.	Esses	são	problemas
importantes,	de	modo	que	devemos	examiná-los	mais	de	perto.
Evidentemente,	o	tipo	de	equilíbrio	necessário	entre	inclusão	de	dados,	por	um
lado,	e	simplicidade,	por	outro,	variará	de	acordo	com	o	assunto.	A	paleontóloga
tem	um	esqueleto	para	montar.	Se	ela	criar	uma	estrutura	linda	e	simples	que
omita	alguns	ossos	grandes,	seus	colegas	poderão	acusá-la	de	atender	ao
segundo	critério	em	detrimento	do	primeiro,	aceitando	com	desconfiança	sua
teoria	de	que	os	demais	ossos	pertencem	ao	animal	que	estava	ingerindo	aquele
agora	construído	—	ou	talvez	sendo	ingerido	por	ele.	A	simplicidade	foi
alcançada	à	custa	da	obtenção	dos	dados.	Se,	no	entanto,	uma	segunda
paleontóloga	produz	um	esqueleto	que	astuciosamenteusa	todos	os	ossos,	mas
tem	sete	dedos	em	um	pé	e	dezoito	no	outro,	talvez	se	chegue	a	uma	conclusão
oposta:	embora	alguns	dados	tenham	sido	incluídos,	a	simplicidade	foi
abandonada,	de	modo	que	a	desconfiança	recairá,	dessa	vez,	em	qualquer
explicação	evolucionária	bizarra	da	nova	história.	Entretanto,	qual	das	duas
teorias	será	a	preferida?	Penso	que	a	primeira:	é	mais	difícil	imaginar	a
ocorrência	de	uma	mutação	peculiar	do	que	suspeitar	de	que	alguns	ossos	a	mais
talvez	se	tenham	intrometido	na	pilha.	Tal	vitória,	porém,	da	simplicidade	sobre
os	dados	(o	que	significa	apenas	que	uma	história	é	melhor	do	que	a	outra,	ainda
que	não	seja	a	melhor	possível,	nem	mesmo	verdadeira)	não	pode	ser
considerada	válida	em	todos	os	campos	de	investigação,	e	a	história	da
humanidade	é	um	bom	exemplo	disso.	O	objeto	do	estudo	histórico	é,	em	si,
desorganizado,	e	todas	as	tentativas	de	reduzi-lo	à	ordem	por	uma	espécie	de	lei
marcial	intelectual	são	suspeitas.	Quanto	mais	sabemos	a	respeito	de	qualquer
evento,	mais	nos	damos	conta	de	sua	complexidade.	É	muito	mais	fácil	projetar
a	simplicidade	em	acontecimentos	quando	há	poucas	evidências	disponíveis.
Assim,	embora	uma	boa	hipótese	histórica	venha	a	conter	certo	grau	de
simplicidade,	e	embora	não	se	devam	aceitar	complexidades	estranhas	de	uma
forma	passiva,	a	inclusão	de	dados	é,	em	última	análise,	o	mais	importante	dos
dois	primeiros	critérios.
Entretanto,	o	que	exatamente	conta	como	inclusão	de	dados?	Os	detalhes	disso,
conforme	aplicados	aos	evangelhos,	serão	trabalhados	posteriormente.	Por	ora,
devemos	ao	menos	dizer	que	esse	objetivo,	o	primeiro	objetivo	de	qualquer
hipótese,	deve	ser	alcançado	ao	tratarmos	a	evidência	com	seriedade	e	em	seus
próprios	termos.	Um	texto	literário	deve	ser	tratado	como	tal,	não	como	outra
coisa;	debates	atuais	sobre	o	gênero	e	a	intenção	dos	evangelhos	são
particularmente	relevantes	nesse	sentido.	De	forma	semelhante,	um	parágrafo
em	um	evangelho	deve	ser	estudado	como	tal,	não	como	outra	coisa;	e	novas
direções	na	crítica	da	forma	podem	ter	algo	a	dizer	a	esse	respeito.	Já	ouvimos
muitas	supostas	reconstruções	históricas	de	Jesus	em	que	ferramentas	de
pensamento	e	crítica	foram	usadas	de	maneira	ad	hoc	e	indiscriminada.	Primeiro,
pegamos	alguma	passagem	inconveniente	dos	evangelhos	e	a	descartamos	como
evidência	de	Jesus,	tratando-a	casualmente	como	produção	da	igreja	primitiva.
Ao	fazermos	isso,	silenciosamente	ignoramos,	ou	até	mesmo	adiamos,	o
conjunto	cada	vez	maior	de	problemas	histórico-tradicionais	assim	criados	na
parte	“igreja	primitiva”	do	quebra-cabeça:	como	podemos	explicar	tal	material
complexo	sendo	produzido	pelos	primeiros	cristãos	se	o	material	não	remontar	a
Jesus?	Ademais,	ignoramos	silenciosamente	a	real	natureza	do	próprio	material.
[	203	]
No	escopo	atual	do	estudo	histórico	do	Novo	Testamento,	certa	pressão	é
regularmente	exercida	entre	os	profissionais	do	setor	para	mostrar	quão	“crítica”
a	erudição	realmente	é	—	ou	seja,	para	mostrar	se	alguém	realmente	pertence	ou
não	ao	clube	pós-Iluminismo	de	estudos	históricos	—,	demonstrando	sua
disposição	em	descartar	esse	ou	aquele	dizer	ou	incidente	nos	evangelhos,	ou
esse	ou	aquele	parágrafo	de	Paulo,	no	interesse	de	uma	hipótese	particular.	Essa
pressão	atua,	entre	outras	coisas,	como	uma	espécie	de	garantia	de	que	alguém
não	é,	afinal,	um	fundamentalista	disfarçado.	Contudo,	esse	anseio	legítimo	por
uma	leitura	histórica	e	pela	crítica	das	fontes,	assim	como	a	devida	recusa	em
recorrer	a	Reimarus	—	ou	seja,	a	uma	época	em	que	questões	dessa	natureza	não
poderiam	ser	levantadas	—,	é	pervertido	se	nos	levar	a	ignorar	o	fato	de	que,	na
história,	o	que	realmente	conta	é	a	coleta	de	dados.	Neste	ponto,	precisamos
reabrir	a	questão,	frequentemente	fechada	hoje	em	dia:	conta	realmente	como
“coleta	de	dados”	dizer	que	“essa	é	uma	invenção	da	igreja	primitiva”?	Poderia
contar,	se	pudéssemos	produzir	uma	hipótese	realmente	viável	sobre	a	igreja
primitiva	que	confirmasse	essa	teoria;	em	meu	julgamento,	porém,	tal	história
ainda	não	foi	sugerida.	O	estudo	da	real	história	da	igreja	primitiva	continua
dando	os	primeiros	passos,	mas	a	criação	já	mostra	sinais	de	que	logo	crescerá	o
suficiente	para	atacar	as	hipóteses	especulativas	que	por	tanto	tempo	usurparam
seu	lugar	na	família	(cf.	Parte	IV).
De	fato,	uma	boa	parte	da	erudição	do	Novo	Testamento	—	e,	dentro	dela,	boa
parte	dos	estudos	de	Jesus	—	agiu	na	suposição	de	que	os	evangelhos	não	podem
fazer	sentido	na	forma	como	se	encontram,	de	modo	que	alguma	hipótese
alternativa	deve	ser	proposta	para	assumir	o	lugar	da	perspectiva	de	Jesus	que
parecem	oferecer.	Parte-se	da	suposição	de	que	sabemos,	mais	ou	menos,	como
foram	a	vida,	o	ministério	e	a	autocompreensão	de	Jesus,	e	que	a	imagem	que
encontramos	nos	evangelhos	diverge	desses	elementos.	[	204	]	Todavia,
hipóteses	desse	tipo	carecem	de	simplicidade,	uma	vez	que	exigem	uma
explicação	não	apenas	para	o	que	aconteceu	no	ministério	de	Jesus,	como
também	para	o	porquê	de	a	igreja	primitiva	dizer	algo	diferente,	produzindo
histórias	fundadoras	de	“mitos”	cuja	relação	com	os	eventos	históricos	foi	tênue
ou	praticamente	inexistente.	Podemos	admitir,	obviamente,	que	a	verdade	desses
assuntos	provavelmente	é	muito	complexa,	porém	deparamos	com	três	fatores
que	militam	contra	esse	tipo	de	complexidade.	Existe,	em	qualquer
demonstração,	a	comparativa	proximidade	cronológica	dos	evangelhos	com	o
assunto	que	pretendem	descrever.	[	205	]	Há,	em	segundo	lugar,	a	alta
probabilidade	de	que	o	cristianismo	palestino	mais	antigo	tenha	continuado,	em
muitos	aspectos	importantes,	no	tipo	de	ministério	no	qual	o	próprio	Jesus	se
engajou.	[	206	]	Também	há	o	fato	de	que	temos	disponíveis	nos	estudos	atuais
várias	hipóteses	plausíveis	sobre	Jesus,	incluindo	resmas	inteiras	de	dados	antes
tidos	como	impossíveis	de	inclusão.	[	207	]	Como	resultado,	a	posição	daqueles
que	insistem	que	a	história	dos	evangelhos	não	pode	ser	tomada	em	nenhum
sentido	como	história	começa	a	se	parecer	com	a	do	paleontólogo	que,	ao
encontrar	um	esqueleto	realmente	preservado	e	intacto,	insiste	em	que	não
existiu,	nem	poderia	ter	existido,	um	animal	assim,	de	modo	que,	para	ele,	esse
esqueleto	deve	ter	sido	montado	em	uma	data	posterior	(talvez	pelo	que	Theissen
chama	de	“comitê	para	enganar	futuros	historiadores”).	[	208	]	Com	o
surgimento	de	uma	hipótese	mais	simples	—	ou	mesmo	antes	disso!	—,	somente
um	cientista	ousado	manteria	tal	argumento.	É	minha	afirmação,	no	campo	do
estudo	histórico	de	Jesus,	que	o	estado	atual	das	pesquisas	histórico-tradicionais
dos	evangelhos	atingiu	esse	ponto;	uma	hipótese	mais	simples,	fazendo	mais	jus
aos	dados	como	um	todo,	está	ao	nosso	alcance.
Reitero:	o	mesmo	se	dá	com	as	hipóteses	sobre	o	pensamento	de	Paulo.	Diversas
hipóteses	oferecidas	alcançaram	aparente	simplicidade	à	custa	da	remoção	de
vários	versículos	como	acréscimos	posteriores	—	ou	seja,	da	remoção	de
evidências	—	ou	sugerindo	que	muitos	dos	grandes	temas	e	passagens	são
realmente	autocontraditórios	e	incoerentes	—	ou	seja,	admitindo	a
intratabilidade	da	evidência.	É	claro	que	existe	algo	como	alteração	posterior	de
textos	antigos;	também	existe,	claro,	algo	como	incoerência,	de	forma	que	é
possível,	tanto	em	tese	como	na	prática,	que	qualquer	escritor,	antigo	ou
moderno,	seja	culpado	disso.	Mas	nunca	se	deve	sugerir	a	remoção	de	evidências
que	não	se	enquadram	na	teoria,	a	menos	que	haja	bons	argumentos	para,	por
outras	razões,	fazê-lo.	[	209	]	E	a	última	possibilidade	—	a	admissão	de	que	a
evidência	parece	intratável	—	deve	ser	considerada	com	muito	cuidado,	tanto	em
si	mesma	como	em	seus	efeitos	danosos	sobre	a	hipótese	que	contém	ou	exige,
antes	de	ser	adotada.	Essa	posição	convida	positivamente	a	uma	nova	proposta
para	uma	solução	clara	e	que	resolve	a	dificuldade.
Em	vista	do	que	foi	exposto	até	agora,	o	que	pode	ser	considerado	como
satisfazendo	o	critério	da	simplicidade?	Os	historiadores,	como	já	sugerimos,
precisam	tomar	cuidado	neste	ponto.	Acadêmicos	que	gostam	de	organização,
talvezpor	outras	razões,	podem	muito	bem	impor	seu	desejo	de	ordem	ao
material,	deixando	a	oficina	histórica	tão	arrumada	a	ponto	de	ninguém
conseguir	descobrir	onde	está	alguma	coisa.	A	história	não	diz	respeito	a	uma
arrumação,	mas,	sim,	na	maioria	das	vezes,	ao	estranho,	ao	irrepetível	e	ao
improvável.	Por	isso,	é	importante	afirmar	que	nem	todas	as	formas	de
simplicidade	têm	o	mesmo	valor.	Se	quisermos	distinguir,	no	campo	limitado	da
história,	entre	diferentes	tipos	de	simplicidade	(ou,	negativamente,	entre
diferentes	tipos	de	complexidade),	poderíamos	fazer	isso	da	seguinte	forma:	as
áreas	em	que	a	simplicidade	pode	se	fazer	valer	fortemente	são	nos	objetivos	e
nas	motivações	do	ser	humano,	na	continuidade	do	indivíduo.	Visto	que	seres
humanos	são	entidades	altamente	complexas,	vivendo	em	um	mundo	altamente
complexo	e,	muitas	vezes,	falhando	em	atingir	um	alto	nível	de	consistência
comportamental,	ainda	assim	há	algo	como	“coerência	e	estabilidade	de	caráter”,
de	modo	que	o	comportamento	incomum	ou	anormal	(ou	seja,	o	comportamento
incomum	ou	anormal	para	aquele	indivíduo,	em	vista	das	informações	adicionais
que	sabemos	a	seu	respeito)	convida	a	uma	investigação	e	a	uma	explicação
especial.	Da	mesma	forma,	ações	e	acontecimentos	simplesmente	têm
consequências	e	sequelas.	Um	salto,	ou	uma	quebra	aparentemente	estranha,	em
uma	sequência	de	acontecimentos	convida	a	uma	investigação	semelhante.
Nesse	aspecto,	estamos	justificados	ao	procurar	pela	simplicidade:	podemos
entender	pelo	menos	alguma	coisa	sobre	como	os	atores	centrais	do	drama
estavam	motivados	e	se	comportavam,	levando	aos	eventos	que	seguiram
determinado	curso?	[	210	]	É	precisamente	porque	esse	tipo	de	simplicidade	é
importante	que	as	principais	questões	que	levantaremos	sobre	Jesus	no	próximo
volume	são	o	que	são.	A	complexidade	de	muitas	hipóteses	precisamente	nesses
pontos	é	uma	de	suas	principais	ruínas.	Mais	uma	vez,	o	mesmo	seria	verdadeiro
em	relação	a	Paulo.	Qualquer	hipótese	que	possa	exibir	consistência	geral	de
pensamento	—	e	desde	que	haja	pelo	menos	a	promessa	de	coerência	com
campos	de	investigação	mais	amplos	—	será	sempre	preferível	a	uma	hipótese
que	deixa	o	escritor	como	um	indivíduo	desorganizado,	cortando	e	mudando	de
ideia	a	cada	passo.	[	211	]	O	mesmo	seria,	em	tese,	verdadeiro	se	estudássemos
Aristóteles,	Atanásio,	Beethoven	ou	Barth.
Há	um	tipo	diferente	de	simplicidade,	contudo,	que	tem	sido	muito	atraente	para
os	estudiosos	do	Novo	Testamento,	mas	cujo	valor	é	extremamente	questionável.
Muitas	hipóteses	foram	construídas	com	uma	simplicidade	que	jaz	em
“movimentos”	diretos	e	nos	desenvolvimentos	unilineares	de	grandes	ideias.	O
cristianismo,	imagina-se,	começou	de	forma	muito	simples	e	depois	se
desenvolveu	em	uma	complexidade	cada	vez	maior.	[	212	]	No	entanto,	não	é
assim	que	a	simplicidade	de	ideias	se	forma.	É	provável	que	a	forma	mais
simples	de	uma	ideia	resulte,	no	mínimo,	do	desenvolvimento	e	da	polidez	de
muitos	anos	de	trabalho,	durante	os	quais	um	fenômeno	complexo	foi
pacientemente	organizado	e	tornado	mais	maleável.	Outro	exemplo	é	o	esquema
proposto,	no	século	19,	por	F.	C.	Baur,	o	qual,	ainda	hoje,	exerce	grande
influência	em	alguns	círculos.	Como	é	simples	e	organizado	ter	o	cristianismo
judaico	desenvolvendo-se	de	maneira	“x”,	o	cristianismo	gentílico
desenvolvendo-se	de	maneira	“y”	e	ambos	unindo-se	para	formar	o	catolicismo
primitivo!	[	213	]	Arguir	que	tal	esquema	cheiraria	a	Hegel	é	perder	de	vista	a
ideia	central.	Tampouco	servirá	sugerir	que	o	esquema	não	possa	ser	verdadeiro
por	haver	começado	como	um	constructo	intelectual	(na	mente	de	F.	C.	Baur)	e
apenas	posteriormente	desenvolvido	em	detalhes.	Não	é	uma	crítica	válida
alegar	que	a	hipótese	foi	o	início,	e	não	o	fim,	de	um	amplo	estudo	dos	dados.
Todas	as	hipóteses,	como	vimos,	funcionam	assim.	Todas	começam	com	a
modificação	de	uma	história	já	contada	por	um	grupo	ou	indivíduo,	ou	com	a
história	à	qual,	por	um	salto	intuitivo,	o	pesquisador	chega.	Em	vez	disso,	tal
esquema	falha	como	história,	já	que	—	como	pode	ser	visto	na	bagunça	que	fez
aos	reais	dados	coletados	—	ela	simplesmente	não	parece	ter	progredido	assim,
segundo	padrões	unilineares	e	definidos.	Encontramos	tanto	regressão	como
progressão.	Há	uma	mudança	absoluta,	não	simplesmente	um	desenvolvimento
observável,	tranquilo.	Pessoas	e	sociedades	refazem	passos,	tentam	caminhos
diferentes.	Nem	sempre	marcham	em	linha	reta.	Isso,	contudo,	não	significa
negar	a	existência	de	algo	do	tipo	“movimento	de	pensamento”.	Em	outro	lugar,
procurei	descrever	algumas	coisas	que	acontecem	atualmente	entre	os	estudiosos
do	Novo	Testamento.	[	214	]	Todavia,	conforme	evidenciado	fortemente	nos
últimos	anos,	a	simplicidade	do	esquema	idealista	de	Baur	demonstrou-se
ilusória.	O	tempo	em	que	o	desenvolvimento	proposto	decorreu	é	simplesmente
muito	curto;	inúmeros	dados	deixaram	de	ser	acoplados	ao	todo,	permanecendo,
assim,	soltos	(o	fato,	por	exemplo,	de	nossa	principal	evidência	para	o
“cristianismo	judaico”	ser	tardia,	mas	não	para	o	“cristianismo	gentílico”);	e	suas
teorias	prediletas	sobre	derivações	da	história	das	religiões,	especialmente	na
área	da	cristologia,	despedaçaram-se	por	completo.	Há	uma	arrumação	e	uma
organização	que	são	próprias	da	vida	humana	plena;	contudo,	também	há	uma
arrumação	que	é	própria	de	um	cemitério.
O	problema	final	sobre	as	hipóteses	é	que,	em	última	análise,	pode	haver	mais	de
uma	hipótese	possível	que	se	encaixe	nas	evidências.	A	questão	pode,	no
linguajar	técnico,	ser	subdeterminada.	Isso	é	especialmente	provável	na	história
antiga,	em	que	dispomos	de	tão	poucos	dados	para	trabalhar,	em	comparação
com	o	que	temos	acerca	do,	digamos,	século	16.	[	215	]	Inevitavelmente,	somos,
até	certo	ponto,	como	o	paleontólogo	que	“reconstrói”	o	brontossauro	a	partir	de
meia	dúzia	de	pequenos	ossos.	Afinal,	talvez	se	tratasse	de	um	mastodonte.	A
possibilidade	teórica	de	duas	ou	mais	soluções	igualmente	boas	é,	no	entanto,
um	problema	com	o	qual	muitos	historiadores	gostam	de	conviver.	Uma	vez	que
é	extremamente	difícil,	para	dizer	o	mínimo,	a	qualquer	profissional	da	classe
manter	todos	os	dados	relevantes	em	sua	cabeça	ao	mesmo	tempo,	carecemos
uns	dos	outros	e	devemos	aceitar,	seguindo	a	tradição	científica,	o	fato	de	ter
nossa	atenção	despertada	por	fragmentos	de	evidências	cuja	existência
deveríamos	ter	esquecido,	complexidades	desnecessárias	na	formulação	da
hipótese	ou	partes	de	um	assunto	correlato	em	que	a	hipótese	parece	criar	novos
problemas	em	vez	de	resolver	problemas	antigos.	Quanto	ao	que	acontece
quando,	finalmente,	chegamos	a	duas	ou	mais	hipóteses	significativamente
diferentes,	que	parecem	atender	a	todos	os	critérios	de	uma	forma	igualmente
adequada	—	bem,	atravessaremos	essa	ponte	quando	a	encontrarmos	pela	frente.
Não	espero	que	seja	logo.
DO	EVENTO	AO	SIGNIFICADO
1.	Evento	e	intenção
História,	então,	diz	respeito	a	um	conhecimento	real,	de	um	tipo	particular.	Seu
conhecimento	é	alcançado,	como	todas	as	formas	de	conhecimento,	pela	espiral
da	epistemologia.	A	comunidade	humana,	contadora	de	histórias,	inicia
investigações,	forma	julgamentos	provisórios	a	respeito	das	narrativas	de	maior
probabilidade	de	sucesso	em	responder	a	essas	investigações	e,	em	seguida,	testa
esses	julgamentos	por	meio	de	uma	interação	posterior	com	os	dados.	Há,
porém,	três	níveis	de	compreensão,	próprios	da	história	em	particular,	aos	quais
devemos	estar	atentos.
Para	começar,	história	envolve	não	apenas	o	estudo	“do	que	aconteceu”,	no
sentido	de	“quais	acontecimentos	físicos	uma	câmera	de	vídeo	teria	registrado”,
mas	também	o	estudo	da	intencionalidade	humana.	Nas	palavras	de
Collingwood,	envolve	olhar	para	o	“interior”	de	um	acontecimento.	[	216	]
Procuramos	descobrir	o	que	as	pessoas	envolvidas	nos	acontecimentos
pensavam	e	faziam,	desejavam	fazer	ou	tentavam	fazer.	Um	contraexemplo
aparentemente	óbvio	para	essa	ideia	seria	o	seguinte:	quando	historiadores
tentam	escrever	sobre	a	história	pré-humana	ou	não	humana,	invocam
regularmente	alguma	ideia	de	propósito—	seja	a	do	cosmos,	seja	a	de	algum
tipo	de	força	vital	direcionadora,	seja	ainda	de	algum	tipo	de	deus.	O	argumento
da	completa	aleatoriedade	torna-se	cada	vez	mais	difícil	de	sustentar.	Coisas
estranhas	acontecem,	mas,	ao	acontecerem,	alguém	começa	a	perguntar:	“Por
quê?”.	E	(para	voltar	à	história	comum,	humana)	a	resposta	a	essa	pergunta
normalmente	alcança	não	apenas	as	propriedades	físicas	dos	“objetos”
envolvidos	(o	vaso	se	quebrou	porque	era	de	vidro	e	colidiu	com	o	chão),	mas
também	os	objetivos,	as	intenções	e	as	motivações	dos	seres	humanos,	e	como
tudo	isso	afetou	os	acontecimentos	observáveis.	O	vaso	se	quebrou	porque	(a)
parte	do	meu	objetivo	geral	é	morar	em	uma	bela	casa	e	eu	percebo	que,	se
encorajar	meus	filhos	a	decorá-la	com	flores,	será	um	meio	de	atingir	esse
objetivo;	(b)	minha	intenção	era	entregar	um	vaso	à	minha	filha	e	(c)	eu	estava
motivado	a	fazê-lo	naquele	momento;	mas	(d)	ela	não	esperava	que	eu	o	soltasse
quando	o	fiz	(talvez	possamos	falar	de	minha	motivação	inapropriada),	e	então
chegou	um	momento	em	que	ninguém	estava	segurando	o	vaso,	de	modo	que	ele
caiu	no	chão.	O	“exterior”	do	acontecimento	é	o	fato	de	o	vaso	haver	quebrado;
o	“interior”	do	acontecimento	é	uma	história,	não	apenas	sobre	as	propriedades
físicas	de	vasos	e	superfícies	sólidas,	porém	mais	particularmente	de	objetivos
humanos,	intenções,	motivações	e	ações	resultantes.	Devemos	explorar	mais	a
esse	respeito;	trata-se	de	uma	área	em	que	pontos	importantes	serão	examinados
mais	adiante.	[	217	]
Por	objetivo,	quero	dizer	a	direção	fundamental	da	vida	de	um	indivíduo	ou	de
algum	subconjunto	razoavelmente	estabelecido	dessa	direção	fundamental.	Tal
objetivo	é,	assim,	o	aspecto	direcional	da	mentalidade	de	alguém,	pela	qual
quero	dizer	o	subconjunto	de,	ou	variante	da,	cosmovisão	da	sociedade	ou	das
sociedades	às	quais	o	indivíduo	pertence.	[	218	]	Falar	sobre	o	“objetivo”
permite	que	a	conversa	sobre	cosmovisões	e	mentalidades	receba	seu	devido
aspecto	direcional	(ou	seja,	o	sentido	de	que	envolvem	propósito	e	movimento),
sem	o	qual	podem	ruir	a	uma	forma	aparentemente	estática,	na	qual	os	seres
humanos	não	passam	de	máquinas	que,	uma	vez	programadas,	permanecem	no
mesmo	local	e	realizam	as	mesmas	operações	mentais	e	físicas.	Isso,	acredito,
seria	algo	fundamentalmente	contraintuitivo.	Quando,	portanto,	questionamos
acerca	do	“objetivo”	de	alguém,	vamos	“dentro”	de	um	acontecimento	até	o
ponto	em	que	algumas	das	questões	mais	fundamentais	podem	ser	encontradas.
Por	intenção,	quero	dizer	a	aplicação	específica	do	“objetivo”	em	uma	situação
particular	(e,	em	tese,	passível	de	repetição).	Obviamente,	a	linha	entre	os	dois	é
bastante	arbitrária,	de	modo	que	é	possível	inverter	as	duas	palavras	sem	causar
violência	à	linguagem.	No	entanto,	algumas	dessas	divisões	costumam	ser	úteis.
O	“objetivo”	de	Paulo	era	anunciar	Jesus	como	Messias	e	Senhor	em	cidades	e
vilarejos	ao	redor	do	mundo	mediterrâneo.	Era	sua	“intenção”,	como	resultado
desse	objetivo,	trabalhar	seu	caminho	ao	redor	da	costa	do	mar	Egeu	e,	tendo
terminado	naquela	região,	seguir	para	Roma.	Quando	olhamos	para	a	“intenção”
de	Jesus	em	ir	para	Jerusalém,	para	sua	última	e	fatídica	Páscoa,	devemos	vê-la	à
luz	de	seu	“objetivo”	geral:	na	ocasião,	como	sua	intenção	estava	relacionada
com	os	objetivos	e	as	metas	subjacentes	que	motivaram	Jesus	ao	longo	de	seu
ministério?
Por	motivação,	quero	dizer	o	sentido	específico,	em	uma	ocasião	específica,	de
que	certa	ação	ou	certo	conjunto	de	ações	é	apropriado	e	desejável.	O	objetivo
de	Jesus	era	(podemos	dizer)	inaugurar	o	“reino	de	Deus”;	sua	intenção,	no	final
da	vida,	era	ir	para	Jerusalém;	entre	uma	coisa	e	outra,	ele	foi	motivado	a	ir	ao
Templo	e	virar	as	mesas.	No	âmbito	do	objetivo	e	das	intenções	gerais	de	Paulo,
o	apóstolo	foi	motivado,	em	uma	ocasião	particular,	a	debater	com	filósofos	em
uma	praça	pública	ateniense;	em	outra	ocasião,	a	escrever	uma	carta	altamente
retórica	a	Corinto;	em	outra	ainda,	a	iniciar	a	arrecadação	de	uma	oferta	em
nome	da	igreja	de	Jerusalém.
Evidentemente,	é	bem	possível	que	motivações	específicas	entrem	em	conflito
com	objetivos	e	intenções:	Aristóteles	dedicou	uma	discussão	considerável	a
esse	problema,	e	certamente	não	foi	o	último	a	fazer	isso.	[	219	]	Um	dos
problemas	de	se	discutir	(digamos)	Judas	Iscariotes	é	o	fato	de	considerarmos
difícil	discernir	uma	motivação	para	sua	ação	crucial	que	faça	sentido	em	si
mesma	e	em	relação	aos	objetivos	e	às	intenções	que	devemos	atribuir-lhe
durante	o	tempo	em	que	seguiu	Jesus.	Entretanto,	em	muitos	casos,	podemos	ver,
em	geral,	uma	ampla	convergência	de	objetivos,	intenções	e	motivações.
Pretendo	tornar-me	um	ministro	do	governo;	pretendo	tornar-me	senhor	de
determinada	área	do	mundo	político;	tendo	um	fim	de	semana	livre,	estou
motivado	a	ler	algo	sobre	uma	parte	nova	da	minha	área	ou,	então,	ampliar
minha	rede	de	contatos	úteis.	Se,	dada	a	presença	das	devidas	oportunidades,
nunca	estou	suficientemente	motivado	para	fazer	essas	coisas,	é	apropriado
questionar	a	veracidade	da	afirmação	sobre	meus	objetivos	e	intenções.
Obviamente,	ocorrerá	fraqueza	de	vontade	(o	que	Aristóteles	chamou	de
akrasia),	de	modo	que	o	desafio	de	se	alcançar	certo	objetivo	pode	ser	resistido;
mas	faz	sentido	propormos	uma	motivação.
História,	então,	inclui	o	estudo	de	objetivos,	intenções	e	motivações.	Isso	não
significa	que	ela	seja	uma	psicologia	encoberta.	É	possível,	sem	dúvida,	ir	além
dos	três	aspectos	já	estudados	e	perguntar,	em	relação	a	determinados
personagens,	por	que	tinham	um	conjunto	particular	de	objetivos	e	intenções	ou
por	que,	em	certas	ocasiões,	viam-se	claramente	motivados	a	agir,	conforme
diríamos,	como	se	estivessem	“fora	de	si”.	Em	tese,	é	possível,	sim;	na	prática,
porém,	é	muito	difícil.	Como	qualquer	conselheiro	experiente	sabe,	é	difícil	e
delicado	fazer	essas	perguntas	a	um	indivíduo	amigável,	honesto	e	aberto	que,
partilhando	da	mesma	cultura	que	a	nossa,	está	assentado	ao	nosso	lado,
cooperando	conosco.	Já	o	processo	é	mais	difícil	quando	se	trata	de	um
indivíduo	confuso	ou	hostil;	e	mais	difícil	ainda	no	caso	de	alguém	cujo
conhecimento	extraímos	daquilo	que	foi	relegado	à	história.	Conseguiremos
fazer	suposições	inteligentes	sobre	o	estado	psicológico	de	Napoleão,	Martinho
Lutero	ou	até	mesmo	Jesus;	fazê-lo,	porém,	implica	enfrentar	enormes
dificuldades.	Devemos	insistir,	no	entanto,	que	estudar	o	“interior”	de	um
acontecimento	não	significa	ir	tão	longe.	Podemos	dizer,	como	historiadores,	que
o	rei	Davi	escolheu	Jerusalém	como	sua	capital	porque	(a)	seu	objetivo	era	unir
as	doze	tribos	de	Israel;	(b)	sua	intenção	era	encontrar	uma	capital	que,
obviamente,	não	pertencesse	a	nenhuma	das	tribos,	não	levantando,	dessa	forma,
nenhuma	suspeita;	(c)	e	que,	em	determinado	momento,	sua	motivação	foi,	como
uma	conclusão	natural,	tomar	Jerusalém.	Podemos	dizer,	como	historiadores,
que	o	objetivo	de	César	era	trazer	paz	e	estabilidade	ao	mundo	romano;	que	sua
intenção	era	alcançar	essa	paz	ao	tomar	o	poder	para	si	e	resolver	os	problemas
em	torno	das	fronteiras	do	(que	se	tornou	o)	império;	e	que	sua	motivação	era
confirmar	Herodes	no	poder,	a	fim	de	manter	a	Palestina	em	ordem.	Penso	que
podemos	dizer,	do	Mestre	da	Justiça,	que	seu	objetivo	era	fundar	a	comunidade
do	Verdadeiro	Israel	contra	os	usurpadores	em	Jerusalém;	que	sua	intenção	era
fazê-lo	ao	dar	a	seus	seguidores	uma	base	sólida	de	exegese	bíblica	e	uma	regra
de	vida	em	comunidade;	e	que	sua	motivação	foi,	em	ocasiões	específicas,	o
registro	de	seu	ensino.	Conforme	argumentarei	posteriormente,	o	mesmo	que
dissemos	sobre	Jesus	pode	ser	dito	sobre	Paulo.	Repare	que	nenhum	caso
envolve	especulação	psicológica.	Antes,	envolve	o	estudo	histórico	de
cosmovisões,	mentalidades,	objetivos,	intenções	e	motivações.	Estamos	em	um
terreno	que	pode	ser	debatido	sem	a	necessidade	de	recorrermos	a	Freud	ou
Jung,	e	sem	o	fingimento	de	que	podemos	interpretar,	no	caso	de	um	indivíduo
de	um	passado	remoto,	o	que	seria	difícil	interpretar	até	mesmo	em	um
contemporâneoque	cooperasse	conosco.
Por	fim,	se	a	história	abarca	todas	essas	coisas,	deve	claramente	envolvê-las	não
apenas	em	termos	de	indivíduos	cujas	mentalidades	estão	envolvidas
diretamente,	mas	também	de	sociedades	cujas	cosmovisões	estão	em	jogo.	[	220
]	Como,	porém,	estudamos	sociedades	e	suas	cosmovisões?	Por	meio	de	seus
símbolos,	de	seu	comportamento	característico	e	de	sua	literatura,
particularmente	as	histórias	que	contam,	explícita	ou	implicitamente.	Sociedades
e	culturas	revelam	suas	visões	de	mundo	pelos	objetos	culturais	que	produzem
—	de	cédulas	a	passagens	de	ônibus,	de	arranha-céus	a	vagões	de	metrô,	de
cerâmica	a	poesia;	de	templos	a	rolos	da	Torá,	de	emblemas	militares	a
monumentos	funerários,	de	ginásios	a	amuletos.	Símbolos	fornecem	as	lentes	de
interpretação	através	das	quais	o	ser	humano	percebe	como	o	mundo	é	e	como
pode	agir	dentro	dele;	fornecem	uma	perspectiva	da	realidade	e	um	meio	de
interpretá-la.	[	221	]	Símbolos	se	aglutinam	em	torno	do	comportamento
característico	de	uma	sociedade	e	vice-versa:	a	celebração	de	festas;	meios
regulares	de	lidar	com	a	dissonância;	rituais	associados	a	nascimento,	puberdade,
casamento	e	morte.	E,	em	muitas	culturas,	o	símbolo	e	o	comportamento
característico	também	se	concentram	em	todas	as	formas	de	literatura.	É
estudando	essas	coisas	que	o	historiador	pode	descobrir	a	visão	de	mundo	de
outra	cultura	e,	desse	modo,	preparar	o	terreno	para	indagar	sobre	a	mentalidade
dos	indivíduos	dessa	sociedade.	[	222	]
A	tarefa	do	historiador	é,	portanto,	abordar	os	“porquês”	em	todos	os	níveis
possíveis,	até	as	suas	raízes,	na	forma	como	as	pessoas	sob	investigação
percebiam	o	mundo	como	um	todo.	Contudo,	não	será	suficiente	responder	à
questão	simplesmente	listando	várias	circunstâncias	antecedentes	em	qualquer
ordem	particular.	O	trabalho	do	historiador	consiste	em	examinar	o	equilíbrio
dos	fatores	e	chegar	a	uma	conclusão	que	estabeleça	a	sequência	inter-
relacionada	dos	acontecimentos,	dedicando-lhes	a	devida	ponderação.	[	223	]
Como	isso	deve	ser	feito?
2.	História	e	narrativa
A	tarefa	do	historiador	não	é	simplesmente	reunir	pequenos	aglomerados	de
“fatos”	e	esperar	que	outra	pessoa	os	integre.	Seu	trabalho	é	mostrar	a
interconexão	entre	eles,	ou	seja,	como	uma	coisa	segue	a	outra,	examinando
precisamente	o	“interior”	dos	acontecimentos.	E	o	modelo	para	essas	conexões
não	é	simplesmente	o	de	átomos	aleatórios	encaixando-se	uns	nos	outros;	é	a
interação	da	plena	vida	humana	—	a	complexa	rede	de	objetivos,	intenções	e
motivações	humanas,	operando	dentro	de	e	nas	fronteiras	das	diferentes
cosmovisões	de	diferentes	comunidades,	bem	como	da	mentalidade	de	diferentes
indivíduos.	A	fim	de	mostrar	isso,	o	historiador	precisa	(o	que	não	causa
surpresa)	contar	uma	história.	[	224	]
É	nesse	ponto	que	o	historiador	precisa	usar	uma	construção	intuitiva	ou
imaginativa.	Como	argumentei	no	capítulo	2,	é	algo	que	liga	o	historiador	a
todas	as	outras	disciplinas.	Todo	conhecimento	procede	de	novas	narrativas,	as
quais	seguem	seu	caminho	pelo	processo	de	verificação	antes	discutido.
Entretanto,	a	própria	hipótese	histórica,	como	todos	os	avanços	no	conhecimento
(uma	vez	que	o	realismo	ingênuo	foi	abandonado),	decorre	do	próprio
historiador	e,	portanto,	dos	recursos	narrativos	inerentes	à	sua	experiência	direta
ou	indireta.	O	processo	pode	incluir	analogia,	reconhecimento	de	padrões
semelhantes	de	acontecimentos	em	dois	períodos	distintos,	mas	também	pode	ir
além.	Uma	das	perguntas	que	costumo	fazer	aos	meus	alunos	é:	por	que	Roma
tinha	especial	interesse	no	Oriente	Médio?	Poucos	apresentam	(o	que	me	parece)
a	resposta	certa:	a	capital	do	império	precisava	de	suprimento	constante	de
milho;	uma	das	principais	fontes	de	milho	era	o	Egito;	e	qualquer	coisa	que
ameaçasse	esse	abastecimento,	como,	por	exemplo,	distúrbios	em	países
vizinhos,	poderia	resultar	em	sérias	dificuldades	para	Roma.	(É	ainda	mais
surpreendente	que	a	história	não	venha	à	mente	de	forma	imediata,	considerando
as	analogias	óbvias	com	a	política	do	século	21:	substitua	milho	por	petróleo,
certos	países	por	Roma	e	outros	pelo	Egito;	a	equação	continuará	funcionando.)
Mas	esse	relato	de	como	as	coisas	eram	—	uma	vez	que,	para	início	de	conversa,
alguém	como	Pôncio	Pilatos	encontrava-se	na	Palestina,	por	exemplo	—	não	é
lido	na	superfície	de	um	texto	particular.	Trata-se	de	uma	narrativa	contada	por
historiadores	para	explicar	narrativas	menores,	encontradas	na	superfície	dos
textos.	Mesmo	para	chegarmos	a	uma	interpretação	simples,	precisamos	de	certa
dose	controlada	de	imaginação.	Não	precisamos	apenas	de	imaginação,	mas,
sem	imaginação,	não	há	interpretação.
É	importante	enfatizar	isso	porque,	conforme	veremos	em	breve,	muitos	dos
especialistas	da	área	do	Novo	Testamento	escreveram	pouquíssima	história	como
tal.	Atenção	a	problemas	particulares,	sim;	tentativas	de	escrever	a	história
interligada	de	pelo	menos	uma	parte	do	primeiro	século,	não.	[	225	]	Há	poucos
livros	na	área	que	correspondem,	digamos,	a	History	of	Greece	[História	da
Grécia],	de	J.	B.	Bury,	ou	mesmo	a	History	of	Western	Philosophy	[História	da
filosofia	ocidental],	de	Bertrand	Russell.	[	226	]	Práticas	mais	características	da
disciplina,	ao	menos	desde	a	Primeira	Guerra	Mundial,	têm	sido	comentários
sobre	livros	específicos,	estudos	isolados	de	problemas	menores	e	notas
exegéticas	de	textos.	Não	há	trabalho	recente	que	faça	pela	igreja	primitiva,	ou
ainda	por	Jesus,	o	que	a	nova	edição	do	clássico	de	Schürer,	History	of	the
Jewish	People	in	the	Age	of	Jesus	Christ	[História	do	povo	judeu	na	era	de	Jesus
Cristo],	fez	pelo	tema,	mostrando	no	processo	que,	apesar	dos	receios
demonstrados	pelos	estudiosos	do	Novo	Testamento,	a	história	do	primeiro
século	continua	viva	e	saudável.	[	227	]	Qualquer	um	que	duvide	que	se	possa
escrever	a	história	factual	com	base	em	fontes	—	a	maior	parte	delas	escrita	a
partir	de	posicionamentos	de	fé	(não	necessariamente	de	fé	cristã,	diga-se)	—
deve	ler	o	primeiro	volume	de	Schürer	e	observar	a	análise	crítica	das	fontes,	a
construção	narrativa	(em	que	os	escritores	se	projetam,	por	uma	disposição
imaginativa	favorável,	nas	cosmovisões	e	mentalidades	dos	personagens
envolvidos)	e	a	síntese	final.	[	228	]	O	resultado	é	uma	narrativa	na	qual	os
dados	estão	contidos,	em	sua	maior	parte,	em	um	esquema	comparativamente
simples,	contribuindo,	de	forma	substancial,	para	nosso	conhecimento	dos
acontecimentos	também	em	outras	áreas.	É	com	isso	que	a	história	—	a	história
factual,	e	não	alguma	invenção	estranha	da	imaginação	crítica	—	se	parece.
Desse	modo,	mesmo	que	nenhum	trabalho	recente	tenha	sido	produzido	nos
termos	descritos,	não	há,	em	tese,	uma	boa	razão	para	que	não	seja	feito.
Certamente,	não	temos	nenhum	Josefo	para	o	cristianismo	primitivo.	No	entanto,
outras	fontes	para	a	história	judaica	não	são	nem	mais	nem	menos	dispersas	ou
fragmentárias,	nem	mais	nem	menos	tendenciosas	ou	parciais,	do	que	as	fontes
cristãs,	de	modo	que	a	tarefa	da	reconstrução	não	é	nem	mais	nem	menos
arriscada	e,	nos	sentidos	já	discutidos,	“subjetiva”.
O	problema	é	que,	quando	os	estudiosos	do	Novo	Testamento	deparam	com
páginas	e	mais	páginas	de	narrativas	e	descrições	históricas,	embora	salpicadas
de	notas	explicativas	de	rodapé	e	discussões	de	pontos	complicados,	sentem-se
desconfortáveis	—	especialmente	quando	o	assunto	é	Jesus.	Estão	certos	de	que
as	perguntas	devem	ser	feitas,	que	uma	harmonização	injustificada	deve	estar
acontecendo	em	algum	lugar.	Afirmo	que	esse	medo	é	desnecessário.	Claro	que
deve	haver	harmonização.	Todo	escrito	histórico	sério	pressupõe	uma	sequência
de	acontecimentos	que,	de	fato,	tiveram	lugar,	uma	sequência	composta	por	um
“interior”	e	um	“exterior”.	Um	bom	relato	histórico	oferece	precisamente	um
tratamento	harmonioso	do	todo;	essa,	conforme	vimos,	é	uma	das	condições,
caso	queira	ser	levado	a	sério	como	história.
Isso	não	significa,	naturalmente,	que	um	relato	harmonioso	esteja
necessariamente	correto.	Pode	não	ser:	Meyer,	Harvey,	Borg,	Sanders,	Horsley,
Crossan	e	muitosoutros	se	levantaram	contra	essa	tendência	generalizada	e
produziram	relatos	internamente	harmoniosos	de	Jesus	—	e	todos	discordaram
entre	si,	em	diversos	pontos.	Não	era	possível	que	todos	estivessem	certos	o
tempo	todo.	[	229	]	Relatos	harmoniosos	devem	ser	testados,	como	qualquer
outra	hipótese.	Mas	isso	significa	dizer	que	um	relato	harmonioso	não	é,	por	sua
própria	natureza,	incorreto.	Certos	eventos	realmente	ocorreram,	de	modo	que	é
possível,	em	tese,	trabalhar	em	prol	de	sua	descoberta	e	aprimorar	tentativas
anteriores	à	tarefa.	É	isso	que	tentarei	produzir	nas	Partes	III	e	IV	deste	volume	e
no	decorrer	do	próximo.
Um	aspecto	importante	da	narrativa	é	a	sequência.	Entre	os	problemas	que
envolvem	o	estudo	de	“história	contemporânea”,	encontra-se	o	fato	de	não
termos	uma	sequência	com	a	qual	trabalhar;	e,	onde	não	há	sequência,	um	apelo,
talvez	tácito,	pode	ser	feito	à	ideologia,	a	fim	de	preencher	a	lacuna.	[	230	]
Existe,	obviamente,	um	grande	perigo	relacionado	às	sequências.
“Retrospectiva”	tende	a	ser	uma	palavra	abusiva	quando	analisamos	um	período:
queremos	ver	e	sentir	como	as	coisas	eram	na	época.	Mas	é	igualmente	verdade
que	a	história	completa	do	“interior”	de	um	acontecimento	só	pode	ser
desdobrada	gradualmente,	à	luz	dos	acontecimentos	subsequentes.	Foi	apenas
nos	anos	após	a	Segunda	Guerra	Mundial,	quando	a	verdade	sobre	a	“Solução
Final”	veio	à	tona,	que	se	pôde	realmente	compreender	o	que	aconteceu	na
Alemanha	durante	a	década	de	1930.	Evidentemente,	existem	coisas	como
efeitos	não	intencionais.	Também	existem	efeitos	pré-intencionais	causados	por
alguém,	ou	por	um	grupo,	que	gradualmente	se	manifestam.	Como	Albert
Schweitzer	percebeu,	precisamos	entender	algo	sobre	a	segunda	geração	das
comunidades	paulinas	para	compreender	plenamente	as	pretensões	do	próprio
Paulo.	[	231	]	Conforme	Ben	Meyer	argumenta,	pode	ser	que,	“na	tradição
gerada	por	Jesus,	venhamos	a	descobrir	o	que	o	motivou	a	agir	de	determinada
maneira”.	[	232	]	A	narrativa	deve,	portanto,	remeter	para	além	de	si	mesma	e
aceitar	o	futuro.	Dessa	forma,	os	historiadores	se	encontram,	de	vez	em	quando,
usando	a	palavra	“significado”	—	algo	que,	por	si	só,	é	gerador	de	novos
problemas.
3.	História	e	significado
É	no	âmbito	dessa	estrutura	que	podemos	abordar	a	problemática	questão	do
“significado”.	Há	tempos	ocorre	um	debate	sobre	o	“significado	do	significado”
nos	círculos	filosóficos;	e,	como	no	caso	de	muitas	outras	coisas	neste	volume,
não	podemos	investigá-lo.	[	233	]	Faz-se	necessário,	porém,	que	eu	ofereça,
neste	estágio,	um	breve	relato	do	que	pelo	menos	entendo	em	relação	a	esse
conceito.	Meu	pensamento	ficará	mais	claro	se	trabalharmos	das	unidades
menores	para	as	maiores.
Em	primeiro	lugar,	considero	o	significado	de	uma	palavra	(seguindo
Wittgenstein)	conforme	o	uso	em	um	contexto,	quer	explícito,	quer	implícito	—
ou	seja,	sua	utilização	factual	ou	potencial	em	uma	frase	ou	em	uma	frase	em
potencial.	[	234	]	Se	eu	usar	a	palavra	“reserva”,	seu	significado	será	duvidoso
até	que	eu	forme	uma	frase:	“O	voo	foi	reservado”;	“Eis	aí	um	homem
reservado”;	“A	crise	não	afetou	as	reservas	do	país”.	Mesmo	quando	uma
palavra	é	claramente	unívoca,	nunca	podemos	descartar	possíveis	significados
metafóricos	—	embora,	em	todo	caso,	só	conheçamos	o	significado	unívoco	pelo
emprego	de	frases	nas	quais	ele	se	tornou	claro.
Em	segundo	lugar,	o	significado	de	uma	frase	é	seu	lugar	em	uma	narrativa
explícita	ou	implícita.	[	235	]	Em	termos	de	história	implícita,	a	frase	“O	livro
está	sobre	a	mesa”,	proferida	por	minha	assistente,	traz	consigo	um	significado
diferente	no	contexto	em	que	(a)	tenho	vasculhado	minhas	estantes	à	procura	de
um	livro	e	não	consigo	encontrá-lo	ou	(b)	quando	minha	intenção	era	esconder	o
livro	antes	que	outra	pessoa	entrasse	na	sala.	“Jesus	foi	crucificado”	carrega
diferentes	significados	na	história	contada	pelo	centurião	ao	reportar	esse	evento
a	Pilatos;	na	história	que	os	discípulos	contaram	uns	aos	outros,	naquele	mesmo
dia;	na	história	contada	por	Paulo	em	sua	pregação	missionária.
Em	terceiro	lugar,	o	significado	de	uma	história	é	o	lugar	que	ocupa	em	uma
cosmovisão.	(Isso	pressupõe,	sem	dúvida,	vários	estágios	intermediários,	nos
quais	histórias	menores	adquirem	significado	dentro	das	maiores,	e	assim	por
diante).	Segundo	vimos	diversas	vezes,	as	histórias	se	relacionam	de	várias
maneiras	com	diferentes	visões	de	mundo:	articulando-as	e	legitimando-as,
sustentando-as	e	modificando-as,	subvertendo-as	e	até	mesmo	destruindo-as.	A
mesma	história	pode	ter	significados	distintos	em	relação	a	diferentes
cosmovisões.	A	parábola	do	Bom	Samaritano,	contada	a	um	fervoroso	escriba
judeu,	ameaçaria	ou	subverteria	sua	cosmovisão.	A	mesma	história,	contada	a
um	ardente	nacionalista	samaritano,	poderia	reforçar	a	visão	de	mundo	dele.	A
história	da	queda	do	muro	de	Berlim	tem	sido	amplamente	usada	para	reforçar	a
cosmovisão	do	capitalismo	liberal	ocidental.	A	mesma	história	foi	usada	para
subverter	a	teoria	marxista	mais	antiga:	o	experimento	falhou,	mas	vamos	acertá-
lo	da	próxima	vez.	Narrativas	contadas	por	historiadores	ganham	significado	a
partir	de	uma	visão	de	mundo	geral.	Na	introdução	à	segunda	edição	do	seu	livro
sobre	a	natureza	da	história,	E.	H.	Carr	defronta-se	com	a	possibilidade	de	que	a
história	dos	acontecimentos	entre	a	primeira	e	a	segunda	edição	tenha	subvertido
sua	visão	de	mundo,	sua	crença	no	progresso	e,	em	seguida,	promova	outros
argumentos	cuja	sugestão	é	que	ele	ainda	possa	reter,	afinal,	sua	cosmovisão.	[
236	]	E	está	muito	claro,	como	sugerimos	há	pouco,	que	a	questão	da	sequência
constitui	motivo	de	grande	preocupação	nessas	discussões.	Se	as	coisas
acabarem	diferentes	no	final,	o	significado	de	uma	história,	incluindo	as
primeiras	partes,	será	diferente.	Se	o	proprietário	da	vinha	tivesse	retornado	e
ignorado	o	comportamento	dos	lavradores,	permitindo-lhes	reter	a	vinha	para
sempre,	o	significado	de	todos	os	acontecimentos	teria	de	ser	visto	sob	uma	ótica
diferente.	O	final	de	uma	história	ou	peça,	sendo	a	sequência	da	parte	principal
da	ação,	obriga-nos	a	olhar	para	trás,	nas	cenas	anteriores,	com	novos	olhos:
afinal	de	contas,	O	mercador	de	Veneza	é	realmente	uma	comédia	ou,	na
verdade,	trata-se	de	uma	tragédia	oculta?
O	que	é	verdade	sobre	narrativas	é	enfaticamente	verdadeiro	sobre	eventos.	O
significado	de	um	evento,	o	qual,	como	vimos,	é	basicamente	uma	narrativa
encenada,	é	seu	lugar,	ou	a	forma	como	o	percebem,	em	uma	sequência	de
acontecimentos,	contribuindo	para	uma	história	mais	fundamental;	e	as	histórias
fundamentais	são,	naturalmente,	uma	das	características	constituintes	das	visões
de	mundo.	A	queda	de	Jerusalém	tinha	um	significado	para	o	escritor	de
4Esdras,	que	a	viu	como	um	desastre	absoluto,	subvertendo	sua	expectativa	tão
completamente	quanto	um	final	hipotético	de	Chapeuzinho	Vermelho,	no	qual	o
lenhador,	depois	de	libertar	o	lobo,	casa-se	com	a	heroína.	Teve	um	significado
radicalmente	diferente	para	Josefo,	que	pelo	menos	tentou	fingir	que	o	via	como
resultado	do	deus	de	Israel	voltando-se	para	os	romanos,	talvez	revisando
tacitamente	sua	visão	de	mundo	para	levar	em	conta	a	nova	situação.	A	queda	de
Jerusalém	teve	ainda	outro	significado	para	o	autor	de	Marcos	13,	em	que	é	vista
como	a	destruição	de	uma	Neobabilônia.	Assim,	em	todos	os	níveis	com	os
quais	o	historiador	está	preocupado,	de	palavras	individuais	a	sequências	mais
completas	de	acontecimentos,	o	“significado”	deve	ser	encontrado	dentro	de	um
contexto	—	em	última	análise,	dentro	do	contexto	das	cosmovisões.
Quer	dizer,	então,	que	“significado”	deve	ser	sempre	uma	questão	de
interpretação	particular?	Será	que	nos	afastamos,	ao	menos	implicitamente,	de
uma	ideia	positivista	de	“significado”	—	da	crença	de	que,	“lá	fora”,	existe	um
significado	“real”	ou	“verdadeiro”	esperando	para	ser	descoberto	—	a	ponto	de
destruirmos	todo	o	sistema,	reduzindo-o	a	um	solipsismo	fenomenológico?	De
jeito	nenhum!	Dois	contra-argumentos	podem	ser	apresentados.
O	primeiro	é	que	acontecimentos	esuas	sequências	são	essencialmente	públicos.
Embora	o	historiador	(e	o	profissional	de	outras	áreas	e	o	cidadão	comum)
deseje	saber	sobre	o	“interior”	do	acontecimento,	o	acontecimento	é,	em	si,	de
domínio	público.	A	visão	de	mundo	da	Flat	Earth	Society	[Sociedade	da	terra
plana]	é	progressivamente	minada	a	cada	navegação	ao	redor	do	mundo,	a	cada
fotografia	tirada	do	espaço;	quando	Rosencrantz,	personagem	criado	por	Tom
Stoppard,	diz	a	Guildenstern	não	acreditar	na	Inglaterra,	a	resposta	(“Apenas
uma	conspiração	de	cartógrafos,	você	quer	dizer?”)	[	237	]	perde	a
plausibilidade	quando	ambos,	finalmente,	chegam	lá	(será	que	realmente
chegam?).	Se	acontecimentos	são	públicos,	então	podem	ser	discutidos;	e
evidências	podem	ser	acumuladas.	Assim,	torna-se	progressivamente	mais	difícil
reter	algumas	visões	de	mundo,	demandando	cada	vez	mais	teorias	da
conspiração	para	que	permaneçam	no	lugar,	até	que,	eventualmente,	acabam	por
desmoronar	sob	seu	próprio	peso.	Testemunhamos	isso	em	ampla	escala	com	o
colapso	do	comunismo	na	Europa	Oriental.
O	segundo	contra-argumento	é	que	as	cosmovisões,	embora	normalmente
escondidas	(como	os	fundamentos	de	uma	casa),	podem,	em	tese,	ser	escavadas
e	inspecionadas.	[	238	]	A	sinalização	de	que	as	descobrimos	é	dada	por	alguma
frase	do	tipo:	“O	mundo	é	assim	mesmo”.	Quando	outra	pessoa	diz:	“Não,	não
é!”,	duas	coisas	geralmente	acontecem:	a	conversa	é	interrompida	ou	tem	início
uma	batalha,	consistente	em	histórias	contadas	por	ambos	os	lados	com	o
objetivo	de	enfraquecer	a	narrativa	do	outro	ou	reforçar	a	posição	já	estabelecida
de	cada	um.	Nessa	discussão,	o	que	realmente	está	em	jogo	é	a	adequação	ou
justificativa	dos	significados	atribuídos	a	uma	variedade	de	histórias	e
acontecimentos	pertencentes	a	determinada	visão	de	mundo.	O	processo,	então,
que	obviamente	pertence	à	epistemologia	crítico-realista	que	tenho	defendido,
garante,	em	tese,	que,	embora	o	“significado”	nunca	possa	ser	separado	das
mentes	humanas	que	os	supõem,	também	não	podem	ser	simplesmente
reduzidos	aos	termos	dos	próprios	seres	humanos,	sejam	indivíduos,	sejam
grupos.	O	diálogo	é	possível.	Indivíduos	podem	mudar	suas	crenças;	podem	até
mesmo	mudar	suas	cosmovisões.	No	início	de	João	20,	Tomé	atribuía	um
significado	à	crucificação;	no	final	do	capítulo,	atribuía	outro.	Conversões
acontecem:	Saulo	se	torna	Paulo;	Francisco	de	Assis	adota	uma	nova	visão	do
que	significa	ser	humano.	“Significado”,	conforme	veremos,	é,	em	última
análise,	uma	questão	que	alcança	a	esfera	pública.
4.	Conclusão
A	prática	sem	a	teoria	é	cega;	contudo,	a	teoria	sem	a	prática	é	muda.	É	tempo	de
deixarmos	de	lado	a	teoria	e	seguirmos	com	a	prática.	Creio	que	lançamos
fundamentos	suficientemente	sólidos	para	sustentar	o	trabalho	principal	deste
projeto,	que	envolve	o	estudo	da	literatura	judaica	e	cristã	primitiva,	bem	como	a
tentativa	de	escrever	história	com	base	em	ambas.	Argumentei	que	uma	leitura
crítico-realista	da	história,	prestando	a	devida	atenção	às	visões	de	mundo,	às
mentalidades,	aos	objetivos,	às	intenções	e	motivações	dos	seres	humanos	e	das
sociedades	envolvidas,	é	uma	tarefa	adequada	e,	em	tese,	possível.	Isso	abre
caminho	para	o	estudo	do	judaísmo	e	do	cristianismo,	bem	como	para	o	estudo
de	Jesus	e	de	Paulo.
Resta-nos	apenas	mais	uma	tarefa	preliminar:	a	de	explorarmos,	de	forma	mais
completa,	a	outra	área	de	interesse,	a	saber,	a	teologia.	Antes,	porém,	de	nos
voltarmos	para	essa	tarefa,	também	nos	será	necessário,	resumindo	este	capítulo
sobre	história,	examinar	o	que	está	envolvido	no	estudo	dos	principais
movimentos	religiosos	do	primeiro	século,	os	quais	constituirão	nosso	foco
principal.
ESTUDO	HISTÓRICO	DOS	MOVIMENTOS	RELIGIOSOS	DO	PRIMEIRO
SÉCULO
1.	Introdução
O	principal	foco	deste	projeto	é	nada	mais	nada	menos	do	que	a	história	de
certos	movimentos	religiosos	do	primeiro	século.	Essa	descrição	é,	acredito,	tão
pouco	suscetível	de	induzir	a	erro	quanto	qualquer	outro	título	em	geral.	Ao
lidarmos	com	Jesus	e	Paulo,	e	abordarmos	a	relevância	de	ambos,	estudaremos
principalmente	pessoas	e	movimentos	cuja	cosmovisão	(e	cujos	objetivos,
intenções	e	motivações	a	ela	inerentes)	incluía,	em	um	nível	elevado,	elementos
hoje	conhecidos	como	“religiosos”.	Ou	seja:	elas	criam	em	um	deus	ativamente
envolvido	na	vida	pessoal	e	corporativa	da	humanidade,	cujos	propósitos	ele
seria	capaz	de	realizar	por	meio	de	agentes	humanos	dispostos	(mas	nem	sempre
cientes)	e	pelo	que	atualmente	chamaríamos	de	“forças	naturais”.	Assim,
estudaremos	uma	história	humana,	reconhecendo	que	os	atores	do	drama	—	e,
portanto,	em	certo	sentido,	o	próprio	drama	—	só	podem	ser	totalmente
compreendidos	quando	aprendermos	a	ver	o	mundo	pelo	olhar	deles.	Passemos
rapidamente	por	duas	áreas	principais	a	serem	abordadas,	com	mais	detalhes,	nas
Partes	III	e	IV	deste	livro.
2.	O	judaísmo	no	primeiro	século
Estudos	recentes	relacionados	ao	judaísmo	do	primeiro	século	enfatizam
corretamente	seu	aspecto	multiforme.	Isso	foi	necessário	em	um	clima	no	qual,
por	muitos	séculos,	tradições	de	compreensão	do	judaísmo,	tanto	em	nível
acadêmico	como	em	nível	popular,	operaram	segundo	modelos	simplistas	que,
lamentavelmente,	falharam	em	fazer	jus	às	evidências.	[	239	]	Pesquisas	estão	a
todo	vapor	na	produção	de	novas	edições	e	comentários	excelentes	dos	tipos	de
texto	muito	diferentes	do	período.	Aprendemos	a	distinguir	não	apenas
aristocratas	de	revolucionários,	[	240	]	ou	fariseus	de	saduceus,	mas	também
escritores	apocalípticos	de	rabinos,	e	ambos	das	escolas	de	pensamento
representadas	por	Filo	e	pela	Sabedoria	de	Salomão.
Entretanto,	tamanha	prontidão	para	aceitar	seu	caráter	multiforme	pode	cair	em
extremos	e,	na	minha	opinião,	foi	exatamente	isso	que	aconteceu:	degenerou-se
em	uma	espécie	de	positivismo	atomístico.	Há	vários	estudiosos	cujo	trabalho
parece	consistir	simplesmente	em	estudar	uma	pequena	área,	dizer	certas	coisas
sobre	ela	e	deixar	por	isso	mesmo.	Segundo	argumentei	na	seção	anterior,	isso
ainda	não	é	história	em	seu	sentido	pleno.	É	muito	fácil	analisar	um	texto	de
forma	isolada,	elaborar	perguntas	que	dizem	respeito	a	seu	mundo	particular	e	à
sua	forma	de	pensar	e	deixar	de	relacioná-lo	com	o	universo	mais	amplo	no	qual
seu	significado	pode	ser	encontrado.	Já	aprendemos	que	não	devemos	ignorar
diferenças	de	cenário	e	tempo,	imaginando	uma	continuidade	de	pensamento
entre	documentos	provenientes	de	contextos	distintos.	No	entanto,	há	um	perigo
igual	e	oposto	contra	o	qual	também	devemos	nos	proteger.	Um	estudo
estritamente	focado	pode	ignorar	o	fato	de	que	os	acontecimentos	(incluindo	os
acontecimentos	literários)	precisam	ser	examinados	de	um	ponto	de	vista	tão
histórico	quanto	possível;	e	isso	significa	olhar	para	seu	“interior”,	para	a	gama
de	motivações	e	entendimentos	a	partir	dos	quais,	tão	somente,	podem	fazer
sentido.	E,	nesse	nível,	não	podemos	escapar	da	tarefa	constante,	importante
tanto	no	estudo	do	judaísmo	do	segundo	templo	como	em	qualquer	outro	estudo,
de	reconstruir	a	cosmovisão	que	informava	e	fundamentava	não	apenas
determinado	escrito	em	particular,	mas	também	a	sociedade	como	um	todo.
Precisamos	traçar	e	compreender	as	histórias	que	os	judeus	da	época	contavam	a
si	mesmos	e	uns	aos	outros	sobre	quem	eles	eram,	sobre	o	que	seu	deus
planejava	realizar	e	sobre	o	potencial	significado	de	tudo	isso.	Não	podemos
retornar	às	generalizações	baratas	que	caracterizaram	os	estudos	anteriores.
Todavia,	também	não	devemos	deixar	de	consultar,	ou	até	mesmo	de	detalhar,	as
correntes	predominantes	que	deram	origem	à	complexa	entidade	que	ainda	pode
ser	chamada	de	cosmovisão	judaica	do	primeiro	século.	Esse	estudo	faz	parte	da
própria	história.	Não	assumir	a	tarefa	implica	arriscar	suposições	estritamente
não	históricas.
3.	O	cristianismo	no	primeiro	século
O	mesmo	problema	em	termos	de	método	histórico	pode	ser	testemunhado	em
relação	ao	cristianismo	do	primeiro	século.	Mais	uma	vez,	tem	havido	uma
tendência	recente	ao	atomismo	pela	apropriação	de	generalizações	superficiais
anteriores.	No	caso	docristianismo,	porém,	houve	um	fator	complicador.	Boa
parte	dos	estudos	do	século	20	realmente	tentou	chegar	ao	“interior”	dos
acontecimentos,	dos	escritos	e	dos	movimentos	da	igreja	primitiva,	porém	a
ferramenta	empregada	foi	extremamente	reducionista.	Refiro-me	às	tentativas	de
compreender	o	cristianismo	primitivo	em	termos	de	sua	expectativa	do	fim
iminente	do	mundo	e/ou	de	sua	ansiedade	e	mudança	de	atitude	quando	essa
expectativa	foi	frustrada.	Posteriormente,	argumentarei	que	toda	essa	percepção
é	grosseiramente	distorcida	e	oferecerei	hipóteses	alternativas	para	uma	história
“interior”	diferente,	a	qual	irá	substituí-la	no	esquema	(perfeitamente	válido)	da
busca	pela	narrativa	interna	do	cristianismo	do	primeiro	século.	E,	como	no	caso
do	judaísmo,	devemos	lembrar	que	o	cristianismo	primitivo,	embora,	de	muitas
maneiras,	aparente,	para	o	mundo	pós-Iluminismo,	ser	uma	“religião”,	não	era
assim	rotulado	nas	categorias	do	primeiro	século.	Os	primeiros	cristãos	eram
chamados	de	“ateus”,	pois	não	ofereciam	sacrifícios	de	animais	e	se	destacavam,
em	suas	reuniões	comunitárias,	das	práticas	religiosas	não	cristãs.	A	principal
coisa	que	teria	impressionado	os	observadores	do	cristianismo	primitivo	não	era
seu	lado	“religioso”,	nem	suas	primeiras	formulações	doutrinárias,	mas	seu	estilo
de	vida	em	geral.	Ao	olharmos,	portanto,	para	a	história	(do	que	chamamos)	de
movimentos	religiosos	do	primeiro	século,	como	o	judaísmo	e	o	cristianismo,	é
vital	que	procuremos	o	“interior”	dos	acontecimentos:	objetivos,	intenções,
motivações	e	autopercepções	das	pessoas	envolvidas.	É	igualmente	vital	que
tenhamos	em	mente	os	riscos	inerentes	ao	uso	de	categorias	pós-iluministas.	O
imperialismo	cultural	existe	e	é	real,	e	o	estudo	moderno	da	história	do	primeiro
século	nem	sempre	o	evitou.
Buscando	ser	obediente	a	essa	última	exigência	de	rigor	histórico,	é	vital
examinarmos	com	mais	detalhes	o	assunto	que,	obviamente,	está	no	cerne	das
cosmovisões	judaicas	e	cristãs	do	primeiro	século.	Devemos	dirigir	o	olhar	para
a	Teologia.
CAPÍTULO	5
TEOLOGIA,	AUTORIDADE	E	O	NOVO	TESTAMENTO
INTRODUÇÃO:	DA	LITERATURA	E	DA	HISTÓRIA	À	TEOLOGIA
Deve	estar	claro	que	a	tarefa	de	ler	o	Novo	Testamento	nunca	pode	ser	uma
questão	de	estudo	“puramente	literário”	ou	“puramente	histórico”,	como	se
pudéssemos	isolar	qualquer	elemento	particular	das	considerações	mais	amplas
que	envolvem	cultura,	cosmovisão	e,	especialmente,	teologia.	O	modelo	da
“mera	história”,	em	particular,	é	inadequado	para	uma	apreciação	completa	de
qualquer	texto	e,	particularmente,	de	um	texto	como	o	Novo	Testamento.	Da
mesma	forma,	sugerimos	no	primeiro	capítulo	que	uma	leitura	séria	do	Novo
Testamento	deve	mostrar	como	esse	livro,	lido	de	modo	apropriado,	pode
funcionar	com	a	autoridade	com	a	qual	foi	considerado	pela	maioria	dos	leitores
ao	longo	dos	anos;	contudo,	também	vimos	que	as	formas	pré-críticas	e
“modernas”	de	articulá-lo	não	tiveram	sucesso.	O	objetivo	deste	capítulo	é
sugerir	o	que	pode	estar	envolvido	em	uma	leitura	“teológica”	que	não	ignore	as
leituras	“literária”	e	“histórica”,	mas	que	as	aprimore;	também	é	explorar	um
possível	modelo	segundo	o	qual	essa	leitura	multifacetada	funcione	como
normativa	ou	autoritativa.	Estou	ciente	da	existência	de	grandes	áreas	de
possível	discussão	que	não	podemos	tratar	aqui.	O	objetivo	não	é	fornecer	uma
descrição	exaustiva	da	natureza	da	teologia,	mas	extrair	alguns	pontos	salientes
sobre	como	a	disciplina	funciona.
Já	vimos	que,	além	de	qualquer	objeção,	toda	leitura	envolve	o	leitor	como
participante	ativo.	Dizer	que	se	está	apenas	estudando	história	objetiva,	sem
quaisquer	outros	pressupostos,	não	é	mais	uma	opção:
Em	cada	trabalho	realizado	segundo	as	normas	da	ciência	histórica,	o	escritor	e	o
leitor	devem	estar	cientes	de	que	um	esboço	histórico	só	pode	tomar	forma	na
mente	de	um	historiador	e	que,	nesse	processo,	o	próprio	historiador,	com	todo	o
seu	aparato	intelectual,	está	envolvido.	[	241	]
Existem,	portanto,	dois	níveis	em	que	ultrapassamos	a	“mera	história”.	No
primeiro,	a	fim	de	respondermos	aos	“porquês”	em	relação	ao	passado,	devemos
mover-nos	de	“fora”	para	“dentro”	do	acontecimento:	devemos	reconstruir	as
cosmovisões	de	outras	pessoas.	No	segundo	nível,	ao	fazermos	isso,	não	há
como	ignorar	nossa	própria	cosmovisão,	da	mesma	forma	que	não	podemos
enxergar	sem	os	próprios	olhos.	Em	ambos	os	níveis,	o	leitor	deve	estar	ciente
das	cosmovisões	envolvidas	e	atento	a	potenciais	peculiaridades,	inconsistências
ou	tensões.	Retornaremos	a	esse	último	ponto.
Há	uma	ironia	aqui,	em	relação	ao	nosso	campo	particular,	que	não	podemos
deixar	de	perceber.	É	um	dado	histórico	solidamente	estabelecido	que	judeus	e
cristãos	do	primeiro	século	consideravam	os	eventos	reais	de	que	participavam
como	se	tivessem,	em	si	mesmos,	extrema	importância.	Acreditavam	fortemente
que	os	acontecimentos	relativos	a	Israel	e	ao	seu	destino	não	eram	“simples
acontecimentos”,	mas	que	tinham	um	“interior”	ou	um	“significado”	que
transcendia	a	mera	crônica.	Uma	vez	que	seu	prisma	interpretativo	para	a
compreensão	dos	acontecimentos	condizia	com	a	crença	em	um	deus	criador	e
com	o	cumprimento	de	seus	propósitos	para	o	mundo	inteiro,	realizados	por
meio	de	ações	relativas	ao	povo	da	aliança,	os	cristãos	acreditavam,	ao	contrário
da	perspectiva	ocidental	moderna,	que	os	acontecimentos	em	questão	eram
carregados	de	um	significado	relacionado	a	todo	ser	humano,	de	todos	os
tempos.	[	242	]	A	despeito	de	nossa	opinião	acerca	desse	ponto	de	vista
particular,	devemos	dizer	que	eles	entendiam	mais	sobre	a	natureza	real	da
história	—	ou	seja,	sobre	a	complexa	interação	de	“evento”	e	“significado”	—	do
que	foi	apreendido	pelos	ardentes	proponentes	da	“história	científica”	em	tempos
relativamente	recentes.
Como,	porém,	devemos	abordar	questões	históricas	de	uma	forma	mais	holística,
evitando	os	reducionismos	que	têm	atormentado	a	erudição?	A	fim	de	responder
a	isso,	devemos	examinar	duas	categorias	que	já	sugerimos	em	vários	pontos:
“cosmovisão”	e	“teologia”.
COSMOVISÃO	E	TEOLOGIA
A	dimensão	que	falta	amplamente	na	historiografia	positivista	pode	ser	descrita
em	termos	de	cosmovisão,	de	modo	que	devemos,	em	primeiro	lugar,	examinar
esse	conceito.	Argumentarei	que,	na	verdade,	cosmovisões	são,	em	certo	sentido,
profundamente	teológicas,	de	modo	que	devemos	examinar	o	significado	de
“teologia”	nesse	contexto.	Isso	nos	levará	à	consideração	da	teologia	cristã	em
particular,	a	qual,	por	sua	vez,	suscitará	algumas	reflexões	sobre	a	teologia	em
relação	ao	estudo	do	Novo	Testamento.
1.	Sobre	cosmovisões
Cosmovisões	dizem	respeito	ao	nível	da	pressuposição,	ao	estágio	pré-cognitivo
de	uma	cultura	ou	sociedade.	[	243	]	Sempre	que	encontramos	as	preocupações
fundamentais	do	ser	humano,	deparamos	com	visões	de	mundo.	Desse	ponto	de
vista,	como	o	eco	de	Paul	Tillich	na	frase	“preocupação	fundamental”	indica,
cosmovisões	são	profundamente	teológicas,	quer	contenham	ou	não	aquilo	que,
no	pensamento	ocidental	moderno,	seria	considerado	uma	visão	explícita	ou
elaborada	de	uma	figura	divina.	[	244	]	De	fato,	a	“cosmovisão”	abrange	todas	as
percepções	humanas	da	realidade	em	um	nível	profundo,	incluindo	a	questão	de
deus	ou	deuses	existirem	ou	não,	e,	se	sim,	como	ele,	ela,	eles	ou	elas	são,	bem
como	a	forma	como	tal	ser,	ou	tais	seres,	podem	relacionar-se	com	o	mundo.
Embora	a	metáfora	da	visão	seja	predominante	(cosmovisão),	a	análise	a	seguir
elucidará	o	fato	de	que	as	visões	de	mundo,	no	sentido	que	tenciono	imprimir,
incluem	muitas	dimensões	da	existência	humana	além	da	simples	teoria.	[	245	]
Há	quatro	coisas	que	as	cosmovisões,	tipicamente,	costumam	fazer;	em	cada
uma	delas,	a	cosmovisão	como	um	todo	pode	ser	vislumbrada.
Primeiro:	como	vimos	ao	longo	desta	parte	do	livro,	cosmovisões	fornecem	as
histórias	por	meio	das	quais	o	ser	humano	enxerga	a	realidade.	A	narrativa	é	a
manifestação	mais	expressiva	de	uma	visão	de	mundo,	indo	além	da	observação
isolada	ou	fragmentada.
Segundo:	a	partir	dessas	histórias,	podemos,	em	tese,	descobrircomo	responder
às	perguntas	básicas	que	determinam	a	existência	humana:	Quem	somos?	Onde
estamos?	O	que	há	de	errado?	Qual	é	a	solução?	[	246	]	Todas	as	culturas	nutrem
crenças	profundamente	enraizadas	que	podem,	em	tese,	vir	à	tona	para	responder
a	essas	perguntas.	Em	outras	palavras,	todas	as	culturas	têm	um	senso	de
identidade,	de	ambiente,	de	um	problema	em	relação	à	forma	como	o	mundo	é	e
de	um	caminho	a	seguir	—	uma	escatologia	redentora,	para	ser	mais	preciso	—
que	tem	o	potencial	de	tirá-las	desse	problema.	Reconhecer	esse	fato	a	respeito
das	culturas	pode	ser	tão	esclarecedor	quanto	reconhecer	que	outro	ser	humano
dentro	de	sua	própria	família	ou	de	seu	círculo	de	amizades	tem	um	tipo	de
personalidade	diferente	do	seu.	Libera	todas	as	partes	envolvidas	da	suposição
restritiva	de	que	todos	somos,	ou	deveríamos	ser,	exatamente	iguais.
Terceiro:	as	histórias	que	expressam	a	cosmovisão	e	as	respostas	que	ela	fornece
às	questões	de	identidade,	contexto	de	vida,	maldade	e	escatologia	são	expressas,
conforme	vimos	no	capítulo	anterior,	através	de	símbolos	culturais.	Podem	ser
artefatos	ou	acontecimentos:	festivais,	reuniões	de	família	etc.	Nos	Estados
Unidos,	o	desfile	da	vitória	de	Nova	York	após	uma	guerra	de	sucesso	reúne	dois
dos	símbolos	mais	poderosos	da	cultura:	os	arranha-céus	de	uma	Manhattan
orientada	aos	negócios	e	os	heróis	de	batalha.	Ambos,	à	sua	maneira,
demonstram,	promovem	e	celebram	o	estilo	de	vida	americano.	Na	Palestina	do
primeiro	século,	a	celebração	da	Páscoa	funcionava	de	maneira	semelhante,	com
Jerusalém	ocupando	o	lugar	de	Manhattan,	e	o	sacrifício	e	a	refeição	da	Páscoa
ocupando	o	lugar	do	desfile	de	vitória.	Os	edifícios,	em	vez	de	falarem	de
objetivos	étnico-econômicos,	falavam	de	objetivos	étnico-religiosos;	em	vez	da
celebração	falando	do	triunfo	alcançado	contra	as	forças	das	trevas,	falava-se	do
reconhecimento	público	ainda	por	vir.	Todas	as	culturas	produzem	e	mantêm
esses	símbolos;	muitas	vezes,	podemos	identificá-los	quando,	ao	desafiá-los,	a
reação	das	pessoas	é	de	raiva	ou	de	medo.	Esses	símbolos	costumam	funcionar
como	marcadores	de	fronteiras	sociais	e/ou	culturais:	aqueles	que	os	observam
são	os	insiders,	enquanto	os	que	não	os	observam,	outsiders.	Ademais,	esses
símbolos,	como	lembretes	encenados	e	visíveis	de	uma	cosmovisão	que
normalmente	permanece	profunda	demais	para	vir	à	tona	em	uma	conversa
qualquer,	formam	a	matriz	real	através	da	qual	o	mundo	é	percebido.	Esses
símbolos	determinam	como,	no	dia	a	dia,	os	seres	humanos	enxergam	a
realidade	como	um	todo.	Determinam	o	que	será	e	o	que	não	será	inteligível	ou
assimilável	dentro	de	uma	cultura	particular.
Quarto:	cosmovisões	incluem	uma	prática,	uma	“forma	de	ser	no	mundo”.	A
escatologia	implícita	da	quarta	pergunta	(“Qual	é	a	solução?”)	implica,
necessariamente,	ação.	Por	outro	lado,	a	forma	real	da	visão	de	mundo	de
alguém	pode	muitas	vezes	ser	vista	no	tipo	de	ações	realizadas,	particularmente
se	essas	ações	forem	tão	instintivas	ou	habituais	a	ponto	de	serem	tidas	como
certas.	A	escolha	de	um	objetivo	de	vida	—	ganhar	dinheiro,	criar	uma	família,
seguir	uma	vocação,	mudar	a	sociedade	ou	o	mundo	de	determinada	maneira,
viver	em	harmonia	com	a	ordem	criada,	desenvolver	o	próprio	mundo	interior,
ser	leal	às	tradições	recebidas	—	reflete	a	visão	de	mundo	de	alguém;	e	o	mesmo
acontece	com	as	intenções	e	motivações	que	trabalham	em	função	do	objetivo
geral.	[	247	]	A	inconsistência	de	objetivo	e	ação	não	invalida	isso;	apenas
mostra	que	a	questão	é	complicada	e	que	a	resposta	à	terceira	pergunta	(“O	que
há	de	errado?”)	certamente	deve	incluir	a	confusão	humana.
Cosmovisões	são,	portanto,	a	matéria-prima	da	existência	humana,	as	lentes
pelas	quais	o	mundo	é	visto,	o	projeto	de	como	devemos	viver	no	mundo	e,
acima	de	tudo,	o	senso	de	identidade	e	de	lugar	que	permite	à	humanidade	ser	o
que	é.	Ignorar	as	visões	de	mundo,	sejam	as	nossas	próprias	ou	as	da	cultura	que
estudamos,	resultaria	em	uma	superficialidade	extraordinária.
Podemos	definir	as	funções	interativas	das	cosmovisões	da	seguinte	forma:
Existem	diversos	termos	gerais	que	faremos	bem	em	localizar	nesse	esquema.
Para	começar,	podemos	dizer	que	a	cultura	denota	particularmente	as	práxis	e	os
símbolos	de	uma	sociedade	—	ambos,	evidentemente,	sendo	informados	pela
narrativa	controladora	e	refletindo	respostas	particulares	às	questões	da
cosmovisão.	Em	segundo	lugar,	a	escorregadia	palavra	religião	também	se
concentra	em	símbolos	e	práxis,	porém	denota,	mais	especificamente,	o	fato	de
que	ambos	apontam	para	outra	coisa,	ou	seja,	para	uma	narrativa	ou	um	conjunto
de	narrativas	controladoras	que	lhes	conferem	um	significado	mais	amplo.	Em
terceiro	lugar,	a	teologia	se	concentra	em	perguntas	e	respostas,	enfatizando,
mais	especificamente,	determinados	aspectos	delas.	Neste	capítulo,	argumentarei
sobre	a	necessidade	de	integrá-las	com	as	narrativas	controladoras	e	sobre	a
prudência	de	se	realizar	essa	tarefa	com	a	plena	consciência	da	inter-relação
entre	perguntas	e	narrativas,	por	um	lado,	e	práxis	e	símbolos,	por	outro.	Em
quarto	lugar,	a	imaginação	e	o	sentimento	podem	ser	localizados	na	linha	entre	a
história	e	o	símbolo,	dando	profundidade,	de	diferentes	maneiras,	à	práxis	e	às
perguntas.	Em	quinto	lugar,	a	mitologia	é,	em	muitas	culturas,	uma	forma	de
falar	que	reflete	“uma	concepção	da	realidade	que	postula	a	transposição
contínua	do	mundo	da	experiência	cotidiana	por	forças	sagradas”;	[	248	]	ou
seja,	é	uma	forma	de	integrar	a	práxis	e	o	símbolo	à	narrativa	e,	ao	menos
implicitamente,	às	respostas	às	perguntas-chave.	Por	último,	a	literatura,	que
tanto	no	nível	da	leitura	como	no	âmbito	da	escrita	é	parte	da	práxis,	é	um
fenômeno	complexo	em	que,	explícita	e	implicitamente,	histórias	são	contadas,
questionamentos	são	levantados	e	respondidos,	a	práxis	é	exemplificada	e	os
símbolos	são	discutidos,	direta	ou	(o	que	é	mais	provável)	indiretamente,	em
metáforas	e	outros	recursos	da	linguagem.	Evidentemente,	a	literatura	está
interconectada	com	a	cultura,	a	imaginação	e	o	sentimento,	bem	como,
frequentemente,	com	a	religião	e	a	teologia.	A	própria	literatura	pode,	então,
criar	ou	se	tornar	um	novo	símbolo:	poesia,	livrarias	e	apresentações	teatrais,	por
exemplo,	têm	valor	simbólico	em	uma	cultura.	Assim,	muitos	dos	elementos
vitais	do	estudo	histórico	e	literário	podem	ser	traçados	de	maneira	precisa	e
interessante	no	modelo	de	cosmovisão	que	sugiro.	[	249	]
Cosmovisões,	conforme	já	sugeri,	são	como	os	fundamentos	de	uma	casa:	vitais,
porém	invisíveis.	São	aquilo	através	do	qual,	não	para	o	qual,	uma	sociedade	ou
um	indivíduo	normalmente	enxerga;	formam	a	matriz	através	da	qual	os	seres
humanos	organizam	a	realidade,	e	não	fragmentos	da	realidade	que	se
disponibilizam	para	ser	organizados.	Em	geral,	as	cosmovisões	não	são
conscientemente	articuladas	ou	discutidas,	a	menos	que	sejam	desafiadas	ou
desprezadas	de	forma	bastante	explícita;	quando	isso	acontece,	o	evento	é	tido
como	algo	alarmante	e	como	motivo	de	grande	preocupação.	No	entanto,	essas
visões	de	mundo	podem	ser	desafiadas;	e	podem,	se	necessário,	ser	discutidas,
tendo	seu	verdadeiro	valor,	questionado.	[	250	]	A	conversão,	no	sentido	de	uma
mudança	radical	na	cosmovisão,	pode	acontecer	—	seja	no	caso	de	Saulo	a
caminho	de	Damasco,	seja	no	caso	de	índigenas	que	se	mudam	para	a	cidade	e
adotam	um	estilo	de	vida	ocidental.	Entretanto,	visões	de	mundo	normalmente
vêm	à	tona,	de	forma	mais	cotidiana,	nos	conjuntos	de	crenças	e	objetivos	que	se
manifestam	abertamente,	que	são	discutidos	com	mais	regularidade	e	que,	em
tese,	poderiam	ser,	em	alguma	medida,	revisados	sem	necessariamente	se
proceder	à	revisão	da	cosmovisão	em	si.	Os	materialistas	ocidentais	modernos
têm	uma	visão	de	mundo	de	certo	tipo,	uma	visão	que	se	expressa	em	crenças
básicas	acerca	de	sociedades	e	sistemas	econômicos,	bem	como	em	objetivos
básicos,	como	emprego	e	uso	apropriado	do	tempo.	Essas	crenças	e	objetivos
são,	por	assim	dizer,	formas	abreviadas	das	histórias	que	aqueles	que	as	têm
estão	contando,para	si	mesmos	e	uns	para	os	outros,	sobre	a	forma	como	o
mundo	é.	[	251	]	Talvez	seja	possível	que	alguém	se	convença	de	que	algumas
dessas	crenças	e	objetivos	básicos	estão	equivocados,	e	assim,	por	exemplo,
mudar	de	um	materialista	ocidental	conservador	para	um	materialista	ocidental
social-democrata,	ou	vice-versa,	sem	qualquer	alteração	fundamental	de	sua
cosmovisão.
Tais	crenças	e	objetivos	fundamentais,	os	quais	servem	para	expressar	—	e
talvez	até	mesmo	salvaguardar	—	a	visão	de	mundo,	dão	origem,	por	sua	vez,	a
crenças	e	intenções	resultantes	sobre	o	mundo,	o	indivíduo,	a	sociedade	e	sobre
deus.	Esses	elementos	se	espalham,	então,	em	várias	direções,	transformando-se
em	opiniões	sobre	as	quais	o	indivíduo	age	com	diversos	graus	de	convicção.
Muitas	discussões,	debates	e	argumentos	ocorrem	no	plano	de	crenças	e
intenções	resultantes,	assumindo	um	nível	de	convicção	fundamental
compartilhada	que	só	é	revisada	quando	alguém	depara	com	um	impasse	total.
Muitas	discussões	políticas,	por	exemplo,	pressupõem	não	apenas	uma
cosmovisão,	mas	também	o	conjunto	de	crenças	e	objetivos	básicos	que	se
sustentam	a	partir	dessa	cosmovisão.	Elas	não	se	desdobram	nos	níveis	mais
fundamentais,	mas	no	plano	de	crenças	resultantes	ou	de	propostas	específicas
de	ação	(as	“intenções”	na	figura	a	seguir)	que	alguns	consideram	apropriadas.	A
ideia	pode	ser	definida	de	forma	esquemática:
Por	enquanto,	já	falamos	o	bastante	sobre	cosmovisões.	Como	elas	se
relacionam	com,	ou	incluem,	o	que	é	normalmente	tido	por	“teologia”?
2.	Sobre	a	teologia
A	teologia,	conforme	acabamos	de	ver,	volta	os	holofotes	para	certas	dimensões
particulares	da	cosmovisão	—	qualquer	cosmovisão.	[	252	]	É	possível	sugerir
uma	definição	de	teologia	bem	focalizada:	teologia	é	o	estudo	de	deuses,	ou	de
um	deus.	Também	é	possível,	e	hoje	bastante	comum,	trabalhar	com	uma
definição	mais	abrangente,	interagindo	com	elementos	do	padrão	da	cosmovisão:
a	teologia	sugere	determinadas	maneiras	de	contar	a	história,	explora	algumas
formas	de	responder	às	perguntas,	oferece	interpretações	particulares	dos
símbolos	e	tanto	sugere	como	critica	determinadas	formas	de	práxis.	É	o	que
Norman	Peterson	quer	dizer	em	sua	análise	da	teologia	e	do	“universo
simbólico”:
Do	ponto	de	vista	da	sociologia	do	conhecimento,	a	teologia	e	o	universo
simbólico	se	distinguem	por	representarem	dois	tipos	diferentes	de
conhecimento	[…],	Teologia	[…]	é	para	a	sociologia	do	conhecimento	um	tipo
de	conhecimento	cujo	produto	resulta	da	reflexão	sistemática	sobre	um	universo
simbólico	e,	na	verdade,	da	reflexão	cujo	propósito	é	a	manutenção	desse
universo	quando	ele	se	encontra	em	algum	tipo	de	perigo	—	frente	às	ameaças
da	dúvida,	do	desacordo	ou	de	universos	simbólicos	concorrentes,	por	exemplo
[…].	Por	essa	razão,	podemos	falar	de	um	universo	simbólico	como	uma	forma
primária	(pré-reflexiva)	de	conhecimento	e	falar	da	teologia	como	uma	forma
secundária	(reflexiva),	dependente	da	primária.	[	253	]
Desse	modo,	por	exemplo,	vimos,	no	capítulo	3,	que	muitas	histórias	passam	a
sensação	de	que	o	herói	(o	“agente”,	segundo	o	esquema	elaborado	por	Greimas)
foi	“enviado”	a	uma	“missão”,	embora	não	esteja	claro	por	quem	ele	foi	enviado.
Normalmente,	existe	um	espaço	em	branco	na	categoria	“remetente”,	como
vimos	no	caso	de	Tolkien	e	no	poema	“Os	ouvintes”,	escrito	por	de	la	Mare.	Isso
reflete	a	consciência	humana	generalizada	de	um	propósito	que	vem	do	“além”,
de	“cima”	ou,	possivelmente,	de	“dentro”.	Se	pressionadas,	algumas
comunidades	humanas	explicariam	esse	espaço	em	branco	em	termos	de	uma	ou
outra	das	perspectivas	tradicionais	de	um	deus.	Outras	o	preencheriam	em
termos	de	“forças	da	natureza”.	Outras	ainda	falariam	em	termos	de	mitologia,
psicologia	e/ou	sociologia.	Todas	essas	respostas,	bem	como	outras	possíveis,
são	essencialmente	teológicas.
Assim,	a	teologia	conta	histórias	sobre	seres	humanos	e	o	mundo,	narrativas	que,
por	um	lado,	envolvem	um	ser	não	redutível	à	análise	materialista,	mas	que,	por
outro,	abrem	espaço,	de	forma	provocativa,	para	um	lugar	no	enredo	no	qual
esse	deus	pode	ser,	implicitamente,	localizado.	À	luz	dessa	atividade	de	contar
histórias,	a	teologia	questiona	se	existe	um	deus,	qual	relação	esse	deus	tem	com
o	mundo	em	que	vivemos	e	o	que	esse	deus	está	fazendo,	ou	fará,	para	pôr	as
coisas	em	ordem.
Obviamente,	essas	questões	interagem	com	as	quatro	perguntas	principais
atreladas	à	cosmovisão.	Um	ateu	responde	às	perguntas	teológicas	com	uma
negativa	para	a	primeira,	deixando	o	restante	intocado:	“Não	existe	‘deus’;	por
isso,	nenhum	ser	superior	se	relaciona	com	o	mundo,	nem	acabará	com	sua
maldade”.	Ainda	assim,	a	resposta	é	profundamente	teológica,	e	mesmo
respostas	fornecidas	com	base	em	outras	cosmovisões	refletem	o	que,	de	um
ponto	de	vista	teológico,	continua	contando	como	uma	espécie	de	teologia.	O
materialismo	ou	o	totalitarismo,	por	exemplo,	ainda	têm	uma	forma	teológica
reconhecível,	e	tais	pontos	de	vista	podem	sustentar	um	importante	debate	com
várias	teologias	ortodoxas	(judaica	ou	cristã,	por	exemplo)	sobre	qual	delas	é	a
original	e	qual	é	a	paródia.	[	254	]
A	atividade	narrativa	e	questionadora	da	teologia	é	normalmente	focalizada	em
símbolos,	sejam	eles	objetos	ou	ações.	Um	rolo	da	Torá,	uma	cruz	de	madeira,
um	gesto	manual,	uma	procissão	—	tudo	isso	é	capaz	de	evocar	poderosamente
todo	um	conjunto	de	histórias,	bem	como	de	perguntas	e	respostas.	Sem	dúvida,
podem	transformar-se	em	práticas	monótonas	e	sem	vida,	ainda	que,	mesmo
nesses	casos,	sejam	capazes	de	uma	notável	recuperação.	Em	tese,	porém,	a
teologia	deve	levar	em	conta	os	símbolos,	até	porque,	às	vezes,	conforme	já
vimos,	os	símbolos	de	uma	sociedade	ou	cultura	podem	contar	uma	história	mais
convincente	sobre	sua	cosmovisão	do	que	as	histórias	“oficiais”	ou	as	respostas
“autorizadas”.	Se	o	símbolo	e	a	história	não	se	encaixarem,	parte	da	tarefa	da
teologia	é	questionar	o	motivo	e	fazer	uma	crítica	a	qualquer	desses	dois
parceiros	que	esteja	fora	da	linha.
Da	mesma	forma,	a	teologia	deve	levar	em	conta	a	práxis.	Oração,	sacramentos,
liturgia;	esmolas,	atos	de	justiça	e	pacificação	—	tudo	isso	se	integra	com
narrativas,	perguntas	e	símbolos	para	produzir	um	todo	completo.	Mais	uma	vez,
embora	possa	ser	mais	organizado	e	fácil	lidar	com	declarações	oficiais	na	forma
de	perguntas	e	respostas	ou	na	forma	de	uma	história,	a	práxis	pode	oferecer	um
relato	mais	verdadeiro	de	como	as	coisas	realmente	são.	Reitero:	a	teologia	tem	a
responsabilidade	de,	nesses	casos,	oferecer	uma	crítica.
A	teologia	encontra-se,	desse	modo,	integrada	intimamente	com	a	cosmovisão
em	todos	os	pontos.	Do	que,	porém,	ela	trata?	Refere-se	a	uma	metalinguagem,	a
uma	forma	fantasiosa	de	tentar	dar	à	realidade	um	significado	nem	sempre
percebido?	Ou	se	refere	a	entidades	reais,	além	da	realidade	espaçotemporal?
Nesse	ponto,	devemos	novamente	mencionar	o	realismo	crítico.	Debates	sobre	o
referente	da	linguagem	divina	assumem	uma	forma	familiar:	é	aquilo	que	já
estudamos	quando	tratamos	de	epistemologia,	literatura	e	história.
O	discurso	pré-crítico	sobre	deuses,	ou	um	deus,	muitas	vezes	parece	dar	como
certo	que	tal	ser,	ou	tais	seres,	realmente	existem,	e	que	a	linguagem	humana
comum	se	refere	a	esse(s)	ser(es)	com	pouca	hesitação.	Está	bastante	claro,	na
verdade,	o	fato	de	que,	em	todas	as	épocas,	pensadores	sofisticados	estiveram
perfeitamente	cientes	da	natureza	problemática	dessa	linguagem	e	de	seu
referente,	de	modo	que	a	expressão	“pré-crítica”	não	se	refere,	aqui,	a	um
período	da	história	antes	do	Iluminismo,	mas	a	um	estágio	de	(ou	talvez	falta	de)
consciência	humana	que	existe	em	cada	período	da	história,	incluindo	o	nosso.
Na	verdade,	talvez	particularmente	em	nosso	período:	um	fenômeno	moderno
perturbador	é	o	espetáculo	de	um	pretenso	positivismo	cristão	cuja	presunção	é
que	a	linguagem	divina	seria	clara	e	inequívoca,	de	modo	que	podemos	ter	o
mesmo	tipo	de	certeza	sobre	ela	que	o	positivismo	lógico	concedeu	às
declarações	científicas	e	matemáticas.	Esse	tipo	de	fundamentalismo

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