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O NOVO TESTAMENTO E O POVO DE DEUS Tradução Elissamai Bauleo The New Testament and the People of God: Christian Origins and the Question of God Copyright © 1992, 1995 por Nicholas Thomas Wright Edição original por Society for Promoting Christian Knowledge (SPCK). Todos os direitos reservados. Copyright da tradução © Vida Melhor Editora LTDA, 2022. Os pontos de vista desta obra são de responsabilidade de seus autores e colaboradores diretos, não refletindo necessariamente a posição da Thomas Nelson Brasil, da HarperCollins Christian Publishing ou de sua equipe editorial. Publisher Samuel Coto Editor André Lodos Tangerino Preparação Shirley Lima Revisão Davi Freitas e Gabriel Braz Diagramação e Projeto gráfico Sonia Peticov Capa Rafael Brum Produção de ebook S2 Books Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil) W934n Wright, N. T. (Nicholas Thomas), 1948 1.ed. O Novo Testamento e o povo de Deus: Origens Cristãs e a Questão de Deus / N. T. Wright; tradução Elissamai Bauleo. — 1.ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2022. 720 p.; 15,5 x 23 cm. Título original: The New Testament and the People of God: Christian Origins and the Question of God. Bibliografia. ISBN: 978-65-5689-385-3 1. Cristianismo primitivo. 2. Escrituras cristãs. 3. Judaísmo — História. 4. Templo de Salomão — Judaísmo. 5. Teologia. I. Bauleo, Elissamai. II. Título. 01-222/10 CDD:270.1 Índice para catálogo sistemático: 1. Cristianismo primitivo: História 270.1 Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129 Thomas Nelson Brasil é uma marca licenciada à Vida Melhor Editora LTDA. Todos os direitos reservados à Vida Melhor Editora LTDA. Rua da Quitanda, 86, sala 218 — Centro Rio de Janeiro — RJ — CEP 20091-005 Tel.: (21) 3175-1030 www.thomasnelson.com.br http://www.thomasnelson.com.br para Brian Walsh SUMÁRIO Capa Folha de rosto Créditos Dedicatória Prefácio Lista de reduções Parte I: introdução Capítulo 1. Origens cristãs e o Novo Testamento Introdução A tarefa 1. O que fazer com os lavradores infiéis? 2. As perguntas 3. A história do cristianismo primitivo 4. “Teologia do Novo Testamento” 5. Crítica literária 6. A tarefa reformulada Parte II: ferramentas para a tarefa Capítulo 2. Conhecimento: problemas e variações Introdução Rumo ao realismo crítico Histórias, cosmovisões e conhecimento Conclusão Capítulo 3. Literatura, histórias e articulação de cosmovisões Introdução Sobre o ato de ler 1. Introdução 2. “Tem alguém aí?” 3. Leitura e realismo crítico Sobre a literatura A natureza das histórias 1. Análise textual: estrutura narrativa 2. Análise textual: os lavradores infiéis 3. Jesus, Paulo e as histórias judaicas Capítulo 4. História e o primeiro século Introdução A impossibilidade da “mera história” Isso não significa “ausência de fatos” 1. Realismo crítico e a ameaça do objeto em desaparecimento 2. As causas do equívoco 3. À procura de novas categorias Método histórico: hipótese e verificação 1. Introdução 2. Os requisitos de uma boa hipótese 3. Problemas de verificação Do evento ao significado 1. Evento e intenção 2. História e narrativa 3. História e significado 4. Conclusão Estudo histórico dos movimentos religiosos do primeiro século 1. Introdução 2. O judaísmo no primeiro século 3. O cristianismo no primeiro século Capítulo 5. Teologia, autoridade e o Novo Testamento Introdução: da literatura e da história à teologia Cosmovisão e teologia 1. Sobre cosmovisões 2. Sobre a teologia 3. Sobre a teologia cristã 4. Cosmovisões, teologia e estudos bíblicos Teologia, narrativa e autoridade Conclusão Parte III: O judaísmo do primeiro século no mundo greco-romano Capítulo 6. Contexto e história Introdução 1. Propósito 2. Fontes O mundo greco-romano como contexto do judaísmo primitivo A história de Israel (587 a.C.—70 d.C.) 1. De Babilônia a Roma (587 a.C.—63 a.C.) 2. Judeus sob o governo romano (63 a.C.—70 d.C.) 3. Judaísmo reconstruído (70 d.C.—135 d.C.) 4. Conclusão Capítulo 7. O desenvolvimento da diversidade Introdução: contexto social Movimentos de revolta Os fariseus 1. As fontes 2. A identidade dos fariseus 3. O plano ideológico e a influência dos fariseus Essênios: destaques de uma seita Sacerdotes, aristocratas e saduceus “Judeus comuns”: introdução Capítulo 8. Histórias, símbolos e práxis: elementos da cosmovisão israelita Introdução Histórias 1. Introdução 2. A história fundamental 3. Histórias menores 4. Conclusão Símbolos 1. Introdução 2. Templo 3. Terra 4. Torá 5. Identidade racial 6. Conclusão Práxis 1. Introdução 2. Adoração e festas 3. Estudo e aprendizado 4. A Torá na prática Segundo as escrituras: a âncora da cosmovisão Conclusão: a cosmovisão de Israel Capítulo 9. As crenças de Israel Introdução Monoteísmo judaico do primeiro século 1. Monoteísmo criacional 2. Monoteísmo providencial 3. Monoteísmo pactual 4. Tipos de dualidade 5. Monoteísmo e suas modificações Eleição e aliança 1. Introdução 2. Aliança 3. Israel, Adão e o mundo Aliança e escatologia Aliança, redenção e perdão Crenças: conclusão Capítulo 10. A esperança de Israel “Apocalíptico” 1. Introdução 2. Forma literária e convenção linguística 3. Os contextos do apocalíptico 4. Sobre “representação” 5. Daniel 7 e o Filho do Homem 6. Apocalíptico, história e “dualidades” O fim do exílio, a era vindoura e a nova aliança Nenhum rei além de Deus O Rei que haveria de vir A renovação do mundo, de Israel e do ser humano Salvação e justificação Conclusão: o judaísmo do primeiro século Parte IV: O primeiro século cristão Capítulo 11. A busca pela igreja querigmática Introdução Tarefas e métodos Pontos fixos: história e geografia Preenchendo as lacunas: literatura em busca de um contexto Capítulo 12. Práxis, símbolo e perguntas: por dentro das cosmovisões do cristianismo apostólico Introdução Práxis Símbolos Perguntas Capítulo 13. Narrativas no cristianismo apostólico (1) Introdução Lucas e suas histórias 1. Uma estranha comparação? 2. A forma da história de Lucas O escriba e o enredo: a história de Mateus “Quem lê, entenda”: a história de Marcos Evangelhos sinóticos: conclusão Paulo: de Adão a Cristo O mundo narrativo da carta aos Hebreus A história de João Capítulo 14. Narrativas no cristianismo apostólico (2) Introdução: crítica da forma Rumo a uma crítica da forma revisada 1. Introdução 2. Atos proféticos 3. Controvérsias 4. Parábolas 5. Unidades mais longas 6. Conclusão Narrativas sem história? “Q” e Tomé Capítulo 15. Os primeiros cristãos: um esboço preliminar Introdução Objetivos Comunidade e definição Desenvolvimento e variedade Teologia Esperança Conclusão Parte V: conclusão Capítulo 16. O Novo Testamento e a questão de Deus Introdução Jesus O Novo Testamento A questão de Deus Apêndice Tabela cronológica da história judaica do segundo templo e do cristianismo primitivo Bibliografia A. Fontes primárias 1. Bíblia 2. Outros textos judaicos 3. Textos cristãos relacionados aos períodos apostólico/pós-apostólico 4. Textos pagãos B. Fontes secundárias Índice de fontes antigas 1. Antigo Testamento 2. Apócrifos 3. Pseudoepígrafos 4. Qumran 5. Josefo 6. Filo 7. Obras rabínicas 8. Novo Testamento 9. Outras obras do cristianismo primitivo 10. Fontes gnósticas 11. Fontes pagãs Índice de autores modernos Índice de tópicos selecionados PREFÁCIO Há alguns anos, tenho tentado escrever paralelamente dois livros: um sobre Paulo e sua teologia; e o outro sobre Jesus em seu contexto histórico. Gradualmente, ocorreu-me que ambos mantinham estreita correlação: ambos se voltavam à descrição histórica de acontecimentos e crenças do primeiro século; ambos enfatizavam uma forma particular de compreender os textos e os eventos relevantes; ambos exigiam uma compreensão prévia do judaísmo primitivo; ambos exigiam reflexões teológicas,práticas e definitivas. Foi assim que concluí que seria melhor uma obra de dois volumes sobre Jesus e Paulo. Entretanto, o material e a natureza dos argumentos que eu desejava apresentar sobre o assunto não permitiram que eu me contentasse com isso. Uma das perguntas vitais que devemos fazer como parte da busca por Jesus diz respeito à forma como os evangelhos são apresentados, mas os enormes problemas levantados por essa questão dificilmente seriam abordados no escopo de um único capítulo de um livro, longo por si só. Após ceder e admitir para mim mesmo que eu planejava escrever três volumes, bastou um pequeno passo para perceber que eu realmente tinha em mente cinco volumes: um sobre Jesus, outro sobre Paulo, outro sobre os evangelhos — acompanhados de uma introdução (o presente volume) e de uma conclusão em que várias coisas (que, de outra forma, teriam de ser ditas no início e no fim de cada um dos livros anteriores) poderiam convergir. O resultado é um projeto que, embora ainda tendo Jesus e Paulo como ponto central, também diz respeito, inevitavelmente, ao Novo Testamento como um todo. Uma razão para permitir que o material se expandisse dessa maneira é a brevidade frustrante, na época em que vivemos, de tantas “teologias do Novo Testamento”, compactadas em apenas um ou dois volumes. Comprimir a discussão das parábolas, ou da justificação, em duas ou três páginas não é de muito proveito — nem para o leitor, nem para o avanço no campo da pesquisa bíblica. Na melhor das hipóteses, tudo o que podemos esperar com esse método é tocar algumas notas e esperar que alguns ouvintes descubram algum padrão melódico por si mesmos. Espero fazer mais que isso, e abordar de fato questões substanciais, envolvendo-me nos debates que divergem da minha perspectiva em certos pontos-chave. No extremo oposto das pesquisas genéricas e breves, há também uma fragmentação de boa parte da disciplina, com algumas pessoas dedicando toda a sua carreira profissional à especialização em uma subárea, nunca tentando juntar os fios de hipóteses mais abrangentes. Creio que é importante esboçar uma síntese, mas sem falsas compreensões ou excessivas simplificações. Espero, então, oferecer uma hipótese consistente acerca da origem do cristianismo no que concerne a Jesus, a Paulo e aos evangelhos, estabelecendo novas formas de compreensão e padrões de pensamento, além de sugerir novas diretrizes que a exegese possa seguir. Espero poder, eu mesmo, contribuir para essa tarefa. Atualmente, a expressão “teologia do Novo Testamento”, analisada no primeiro capítulo deste volume, está carregada de diversas conotações. Ainda que, de muitas maneiras, minha prática se enquadre no padrão de livros com títulos semelhantes, preferi deixar concreto, e não abstrato, o título principal do projeto. Um dos temas subjacentes é o significado da palavra “Deus” — ou, na verdade, “deus” (veja a seguir). Supostamente, os primeiros cristãos, inclusive os escritores do Novo Testamento, lutaram com essa questão mais do que costumamos imaginar. Para os falantes de língua grega, a palavra theos (e seus cognatos em outras línguas faladas na época) continha ambiguidades; e os primeiros cristãos argumentaram, de modo convincente, quanto à necessidade de compreendê-la em um sentido particular. Desse modo, não investigo apenas a área “geral” da “teologia” (ou seja, qualquer coisa que passe pela reflexão “teológica” acerca de qualquer assunto), mas ressalto, em particular, a “teologia” propriamente dita — ou seja, o significado e o referente desta importante palavra: “deus”. Tal pesquisa, talvez de uma forma surpreendente, tem sido um tanto negligenciada na “teologia do Novo Testamento”. É tempo de corrigir essa situação. Há cinco pontos relacionados ao uso linguístico que devo comentar — quer desculpando-me, quer, talvez, explicando o porquê de o pedido de desculpas ser desnecessário. O primeiro é que, como muitos escritores antigos, normalmente me refiro a Jesus como “Jesus”, e não simplesmente como “Cristo”. Não se trata de evitar ofender amigos judeus e outros, para quem a messianidade de Jesus é motivo de debate. Antes, comporto-me assim pela seguinte razão: a própria messianidade está em questão ao longo da narrativa do evangelho, e a tarefa do historiador é ver as coisas, o mais longe possível, com os olhos das pessoas da época. Em particular, isso pode servir de lembrete ao fato de “Cristo” ser um título com um significado específico e bastante limitado (veja discussões nos volumes 2 e 3). O título não era, por si só, “divino”, por mais que tenha sido usado com esse sentido nos círculos cristãos. Tampouco era, nos primórdios do cristianismo, redutível a um mero nome próprio. [ 01 ] O segundo ponto é que, com frequência, empreguei “deus” no lugar de “Deus”. Não se trata de um erro de impressão, nem de uma irreverência deliberada. Na verdade, é o contrário. O uso moderno, sem o artigo e com a inicial em maiúsculas, parece-me realmente perigoso. O uso da palavra, que às vezes equivale a considerar “Deus” o nome próprio da Deidade, e não um substantivo comum, implica que todos os que a empregam são monoteístas, e que, dentro desse subgrupo de falantes, todos os monoteístas acreditam no mesmo deus. Evidentemente, ambas as proposições me parecem falsas. Pode ou não ser verdade que qualquer adoração a um deus qualquer seja traduzida, por alguma graça misteriosa, na adoração do Deus único e verdadeiro. Alguns estudantes de religião acreditam nisso. Contudo, muitos praticantes das principais religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) não compartilham essa crença, bem como os praticantes de religiões politeístas (hinduísmo, budismo e congêneres). Por certo, judeus e cristãos do primeiro século não acreditavam nessa ideia. Antes, criam que os pagãos adoravam ídolos, ou até mesmo demônios. (A questão de como os judeus e os cristãos consideravam, de forma recíproca, suas crenças a respeito desse tópico será abordada na “Parte V” deste volume.) Parece-me, portanto, simplesmente um equívoco usar “Deus” na presente obra. Muitas vezes, preferi referir-me ao deus de Israel pelo nome bíblico, YHWH (a despeito dos debates sobre o uso do nome no judaísmo do segundo templo), ou, em frases cujo objetivo é lembrar-nos do que ou de quem estamos falando, referir-me ao “criador”, ao “deus da aliança” ou ao “deus de Israel”. Os primeiros cristãos usavam “deus” acompanhado do artigo definido (ho theos [literalmente, “o deus”]), provocando, penso, certa polêmica, pois estabeleciam uma ideia essencialmente judaico-monoteísta contra o politeísmo. Em um mundo no qual havia muitos sóis, não seria possível dizer “o sol”. Além disso, os primeiros cristãos normalmente sentiam a necessidade de deixar claro o deus a respeito do qual falavam, qualificando o termo, como Paulo costumava fazer, com uma referência à revelação desse deus em Jesus de Nazaré. Visto que, de fato, este trabalho defende, entre outras coisas, a ideia de uma nova compreensão do significado e do conteúdo da palavra “deus” — à luz, em última análise, de Jesus, do Espírito e do Novo Testamento —, não seria plausível seu uso nos moldes como já a temos interpretado. Segundo penso, é provável que muitos dos que abordam um livro dessa natureza com a firme convicção de que “Jesus é Deus”, e outros com a convicção igualmente firme de que “Jesus não é Deus”, possam ter opiniões sobre o significado de “deus” ou de “Deus” que devem ser calibrados à luz do Novo Testamento. A questão cristológica sobre a validade da afirmação “Jesus é Deus” — e, se sim, em que sentido — é, com frequência, formulada como se “Deus” fosse o objeto conhecido, e “Jesus”, o desconhecido. Isso, sugiro, está flagrantemente errado. Na realidade, é precisamente o contrário. [ 02 ] O terceiro ponto é que algumas pessoas se irritam ao notar o uso de a.C. e d.C. como referências a datas anteriores e posteriores ao nascimento de Jesus, uma vez que as consideram um sinal do imperialismo cristão. Outras pessoas ficam irritadas ao notarcristãos usando as alternativas “neutras”, cada vez mais populares, de AEC (“Antes da Era Comum”) e EC (“Era Comum”), já que isso soa como uma atitude complacente ou covarde. Existem debates semelhantes quanto ao dever de nos referirmos à Bíblia hebraica como “Tanakh”, “Antigo Testamento” ou até mesmo “Testamento Mais Antigo” (na minha opinião, a opção mais transigente de todas); ou se os termos “Primeiro Testamento” e “Segundo Testamento” são mais apropriados. De uma forma estranha, parece que, em geral, são os eruditos da tradição cristã que se afligem com esses problemas. Os escritores judeus não se deixam afetar por maneiras “cristãs” de fazer referência a datas e livros — e eu não desejo que o façam. Em todos esses exemplos, receio que exista uma espécie de mal-estar entre nós, consistente no desejo de apresentar uma perspectiva “neutra” ou “objetiva”, como se todos nós fôssemos historiadores desinteressados, olhando lá do alto, do topo do Olimpo. Conforme argumentarei na “Parte II” deste volume, tal epistemologia é inapropriada e, de fato, até mesmo impossível. Portanto, também ciente da impossibilidade de agradar a todas as pessoas o tempo todo, continuarei a seguir o uso ao qual estou acostumado (a.C. e d.C., “Antigo Testamento” ou “Bíblia hebraica”), sem qualquer intenção imperialista ou paternalista. A propósito: cabe observar que os mesmos termos são empregados na revisão da obra clássica de Schürer, produzida por uma equipe de historiadores de orientações totalmente diferentes, sob a liderança do professor Geza Vermes. [ 03 ] O quarto ponto é que lidamos com a questão controversa e atual no que diz respeito ao gênero da linguagem sobre “Deus” ou os deuses. Nesse ponto, encontramos, mais uma vez, algo desconcertante. Ninguém insiste em que um teólogo muçulmano se refira ao deus acerca do qual fala como “ela”; e isso é bom, pois, do contrário, nenhum muçulmano conseguiria produzir muita teologia. O mesmo seria verdadeiro, penso, para todos os judeus até recentemente, mas, com certeza, para a maioria dos judeus de hoje. Ninguém insiste com um hindu que torne suas divindades indiscriminadamente andrógenas: algumas são claramente masculinas, enquanto outras, igualmente, femininas. No mundo antigo, as divindades pagãs também não ficariam satisfeitas caso alguns devotos trocassem o sexo de um deus ou de uma deusa. Em uma obra histórica, creio ser apropriado referir-me ao deus dos judeus, aos deuses do mundo greco-romano e ao deus da igreja primitiva de uma forma que os respectivos grupos reconheceriam e aceitariam. O quinto ponto é que precisarei mencionar constantemente a parte do Oriente Médio onde se passam os acontecimentos do evangelho. Se eu chamar, sistematicamente, esse território de “Palestina”, meus amigos judeus poderão opor-se; se eu me referir a essa região como “Israel”, os amigos palestinos poderão sentir-se menosprezados (além do mais, a maioria dos cristãos nativos que atualmente vivem na região é composta por palestinos). Portanto, não adotarei nenhuma política consistente, mas desejo registrar meu respeito para com os sentimentos, os medos e as aspirações de todas as partes envolvidas, bem como minha gratidão pela recepção maravilhosa e a hospitalidade que recebi de ambos os lados quando, em 1989, trabalhei nos primeiros três volumes deste projeto, em Jerusalém. A esta altura, algo deve ser dito em relação ao escopo deste primeiro volume. Trata-se, em essência, de um exercício de “preparação de terreno”, cujo propósito é que eu me envolva mais profundamente em uma obra sobre Jesus, Paulo e os evangelhos, sem ter de comprimir certas questões — o que eu teria feito se tentasse incluir este material nos primeiros capítulos de outros livros. Na maior parte desta obra, então, escrevo como um amador fascinado, e não como um profissional altamente treinado. Minhas próprias especializações foram em Jesus e Paulo, apesar de abordar a teoria hermenêutica e teológica, assim como o estudo do judaísmo do primeiro século, como um entusiasta “fora da área”. Alguns, ansiosos por exegese, verão boa parte deste livro como porções misteriosas e desnecessárias; outros, depois de terem passado a vida peneirando o material que aqui reúno de forma bastante rápida, suspeitarão que ainda faltam algumas informações essenciais. (Isso é particularmente verdadeiro na “Parte II”.) Achei necessário, no entanto, invadir esses territórios, visto que a atual conjuntura dos estudos do Novo Testamento tem gerado tanta confusão de método e conteúdo que a única esperança é retornar ao início. A única maneira de avaliar as demais inadequações deste trabalho seria transformar cada parte em um livro inteiro. Isso significa, entre outras coisas, que os leitores que procuram um longo “histórico de pesquisa” ficarão desapontados. Incluir esse tipo de material tornaria o projeto ainda mais longo. Em outro lugar, escrevi sobre o estado atual dos estudos do Novo Testamento e sobre questões específicas relativas à pesquisa recente, algo que continuarei a fazer. [ 04 ] Todavia, em um trabalho como este, é preciso ser seletivo na escolha dos parceiros de diálogo, mesmo que corramos o risco de parecer ignorar certas questões. Aqueles que desejam averiguar detalhes ou acompanhar debates encontrarão muitos livros como forma de auxiliá-los. [ 05 ] Ao apresentar minhas propostas, entro, ao menos implicitamente, em diálogo com muito mais escritores do que os listados nas notas de rodapé. Em quase todas as páginas, seria possível duplicar ou triplicar as fontes secundárias mencionadas, mas é preciso traçar uma linha em algum lugar. Minha tendência foi referir-me às discussões recentes, as quais, em grande parte, fornecem referências bibliográficas completas de trabalhos anteriores. Cabe, aqui, uma palavra sobre a categoria “narrativa”, que me vi usando cada vez mais. Já se mostrou proveitosa em diversos campos atuais de estudo, não apenas na crítica literária, como também em áreas tão diversas quanto antropologia, filosofia, psicologia, educação, ética e teologia. Estou bem ciente de que alguns considerarão modesto meu uso do termo; além disso, é verdade que “narrativa” ou “história” são características centrais da crítica pós-moderna, com sua rejeição da atitude antitradicional e anti-histórica do Iluminismo. Ao empregar, porém, essa categoria, não tenho a intenção de endossar o pós- modernismo. Pelo contrário: enquanto o pós-modernismo às vezes usa “narrativa” ou “história” como um meio pelo qual alguém pode dizer algo distinto da realidade espaçotemporal, tentei empregar termos semelhantes à epistemologia “crítico-realista”, exposta na “Parte II”, usando-os como um caminho a seguir na história e na teologia, bem como nos estudos literários. Isso, por sua vez, leva a uma palavra final de advertência: é provável, segundo costumo dizer aos meus alunos, que uma grande porção do que digo esteja errada, ou pelo menos incompleta ou distorcida, de uma maneira que não percebo neste momento. O único problema é que não sei quais partes estão erradas; se soubesse, poderia consertá-las. Cabe uma analogia com outras áreas da vida: se cometo muitos erros em questões morais e práticas, por que deveria imaginar que meu pensamento se apresenta misteriosamente isento? No entanto, se eu ferir alguém, ou entrar na contramão ao dirigir, não demorará para que eu seja confrontado com meu erro, ao passo que, se expuser perspectivas erráticas no mundo da teologia acadêmica, será menos provável que eu seja convencido por contradição. (Meu uso da primeira pessoa inclui o genérico, como algumas vezes encontramos em Paulo.) Todos nós temos maneiras de lidar com comentários adversos, sem mudar de ideia. Contudo, como estou ciente de que certamente cometerei erros em algumas das coisas que escrevo, espero prestar a devida atenção aos comentários (e haverá muitos, sem dúvida) daqueles que desejam chamar minha atenção para os trechos em que consideram insatisfatória minha declaração da evidência, julgam meus argumentos fracos e minhas conclusões,injustificadas. Confrontações fazem parte da vida acadêmica, de modo que antecipo — não sem algum receio, claro — mais debates como resultado deste projeto. Restam-me apenas pequenos aspectos técnicos. Primeiro: ao fazer citações de autores bíblicos e fontes antigas, usei, em geral, minhas próprias traduções. Nos contextos em que me vi seguindo outros, isso aconteceu por eles parecerem adequados, e não por eu ter uma política consistente de seguir uma versão específica — embora minha tendência tenha sido o uso da New Revised Standard Version (substituindo “Senhor” por “YHWH”), a menos que indicado de outra maneira [em português foram adotadas a Nova Versão Internacional ou a tradução livre como padrão, mas outras versões foram utilizadas e indicadas quando se aproximavam mais do original]. Segundo: mantive deliberadamente o mínimo de citações em línguas antigas, transliterando também o grego e o hebraico da forma mais simples possível. Por fim, devo agradecer a diversos amigos que contribuíram com este projeto, lendo trechos do manuscrito, criticando e encorajando, fazendo sugestões de todos os tipos e, em geral, levando-me à produção de um projeto amplo e denso. Leitores críticos e valiosos de várias partes incluíram os professores Michael Stone e a saudosa Sara Kamin, da Universidade Hebraica; o professor Richard Hays, da Duke Divinity School, em Durham, Carolina do Norte; o ex-professor de Cambridge, Charlie Moule; e os professores Christopher Rowland, Rowan Williams e Oliver O’Donovan, de Oxford. A amizade desses três últimos colegas foi, para mim, uma das maiores bênçãos de viver e trabalhar em Oxford. Sou particularmente grato a amigos que me ajudaram a ver o trabalho em progresso, antes da publicação. Penso particularmente no Dr. Anthony Thiselton, do St. John’s College, Durham, cujo importantíssimo livro, New Horizons in Hermeneutics [Novos horizontes em hermenêutica], tive o privilégio de ler ainda na forma de rascunho. Tenho também uma dívida de gratidão com meus alunos de graduação e pós-graduação, que escutaram pacientemente minhas ideias no decorrer dos anos e, com frequência, fizeram observações e críticas contundentes. Gostaria de agradecer aos editores e à equipe da SPCK e da Fortress, particularmente a Philip Law, por seu entusiasmo com este projeto, além do cuidado que lhe devotaram e da paciência com que o aguardaram — e ainda o aguardam! David Mackinder, Andrew Goddard e Tony Cummins leram o manuscrito completo e perceberam diversas formas como o texto podia ser melhorado e esclarecido; sou grato a eles. Uma palavra especial de gratidão deve ser dirigida aos fabricantes do software Nota Bene, o qual fez praticamente tudo o que eu pedi, o que possibilitou a elaboração deste livro no meu próprio escritório. Naturalmente, os demais erros, grandes e pequenos, não são de responsabilidade de nenhuma das pessoas mencionadas, mas somente de minha responsabilidade. Assistências secretarial e editorial de alta qualidade me foram fornecidas ao longo dos anos em que me envolvi neste trabalho por Jayne Cummins, Elisabeth Goddard, Lucy Duffell e, particularmente nas etapas finais, por Kathleen Miles, que realizou um trabalho excepcional na organização e no esclarecimento de diversos processos, incluindo a compilação de índices. Ao agradecer a essas quatro pessoas, desejo também reconhecer aqueles que estabeleceram o fundo por meio do qual consegui empregá-las, nesses dias de austeridade acadêmica. Faço menção particular a Paul Jenson, de Orange, Califórnia, e ao Rev. Michael Lloyd, do Christ’s College, Cambridge. Nesse e em diversos outros aspectos, o apoio, o encorajamento e a ajuda prática de ambos me foram de grande valor. O principal esboço dos volumes 1 e 2, assim como a primeira metade do volume 3, foram escritos no decorrer de um período sabático, em Jerusalém, durante o verão de 1989. Por isso, devo agradecer não apenas ao Worcester College e à Universidade de Oxford, por me concederem dispensa, e ao Leverhulme Trust, por uma generosa bolsa de cooperação e pesquisa, mas também aos meus anfitriões em Jerusalém, a saber, David Satran, professor da Universidade Hebraica e organizador do meu ensino na instituição, e o Rev. Hugh Wybrew, deão da St. George’s Cathedral, o qual me concedeu um maravilhoso pied-à-terre em seu apartamento e me proporcionou um contexto ideal, em termos domésticos e eclesiásticos, para a escrita. Também sou profundamente grato ao Rev. Michael Lloyd, ao Rev. Andrew Moore e à Dra. Susan Gillingham, por cuidarem dos diferentes trechos do meu trabalho durante minhas várias ausências e lerem partes do texto, oferecendo comentários cujas pesquisa e natureza refletiram o melhor tipo de colegialidade. Bibliotecários da Universidade Hebraica e da École Biblique me foram muito úteis; já de volta a Oxford, a Biblioteca Bodleiana continua a ser um lugar agradável e privilegiado para se trabalhar, apesar dos problemas com a redução de recursos. As bibliotecas das faculdades de Estudos Orientais e de Teologia também me foram de grande auxílio. Um lugar de destaque nos agradecimentos deve ser dado, como sempre, à minha querida esposa e aos meus filhos, que suportaram minha ausência durante minha estada em Jerusalém e inúmeras outras ausências e pressões ao longo do trabalho. Se a hermenêutica — e, de fato, a própria história — são inevitavelmente uma questão de interação entre leitor e evidência, aqueles que auxiliaram o leitor em seu desenvolvimento precisam ser reconhecidos como arquitetos parciais dos resultados produzidos. Um desses arquitetos parciais que, de diversas maneiras, tem sido um sine qua non para o projeto todo, bem como para meu pensamento teológico e particularmente hermenêutico, é o Dr. Brian Walsh, de Toronto. Foi por seu entusiasmo com o trabalho que ele tirou seis semanas, no verão de 1991, para me ajudar a refletir e reformular os cinco primeiros capítulos do presente volume. Os muitos defeitos que o livro ainda tem pertencem apenas a mim; vários de seus pontos fortes, se é que podemos identificá-los, provêm desse ato de generosidade e amizade acadêmica, o qual se reflete, embora, dificilmente, seja recompensado de forma adequada, nesta dedicatória. N. T. Wright Worcester College, Oxford Dia de São Pedro Junho de 1992 LISTA DE REDUÇÕES ANF Pais pré-nicenos ANRW Aufstieg und Niedergang der Römischen Welt [Ascensão e queda do mundo romano], ed. H. Temporini e A. Haase Berlim: de Gruyter. ARA Almeida Revista e Atualizada ARC Almeida Revista e Corrigida Arist. Aristóteles CAH Cambridge Ancient History cf. confira CHJ Cambridge History of Judaism Compendia Compendia Rerum Iudaicarum ad Novum Testamentum. Seção Um: The Jewish People in the First Century [O povo judeu no primeiro século], ed. S. Safrai e M. Stern, 2 vols. Seção Dois: The Literature of the Jewish People in the Period of the Second Temple and the Talmud [Literatura do povo judeu no período do segundo templo e no Talmude], ed. M. J. Mulder, M. E. Stone e S. Safrai, 3 vols. Filadélfia: Fortress; Assen/ Maastricht: Van Gorcum. 1976-87. cp. compare Dio Cás. Dio Cássio Diod. Sic. Diodoro Sículo Epit. Epiteto (Disc. = Discursos) esp. especialmente Euséb. Eusébio Iná. Inácio Jos. Josefo JTS Journal of Theological Studies LCL Loeb Classical Library LXX Septuaginta NT Novo Testamento NTLH Nova Tradução da Linguagem de Hoje NVI Nova Versão Internacional AT Antigo Testamento par(s) e paralelo(s) [na tradição sinótica] PG J. P. Migne, Patrologia Graeca. Paris, 1857-66 SB H. L. Strack e P. Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch [Comentário do Novo Testamento a partir do Talmude e da Midrash], 6 vols. Munique: C. H. Beck, 1926-56. Sab. Sal. Sabedoria de Salomão Sl. Sal. Salmos de Salomão Schürer E. Schürer, The History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ [A história do povo judeu na era de Jesus Cristo] (175 a.C.—135 d.C.). Rev. e ed. M. Black, G. Vermes, F. G. B. Millar. 4 vols. Edimburgo: T & T Clark, 1973-87. Suet. Suetônio Tác. Tácito TDNT TheologicalDictionary of the New Testament [Dicionário teológico do Novo Testamento], ed. G. Kittel e G. Friedrich, 10 vols. Trad. e ed. G. W. Bromiley. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1964-76. PARTE I INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 ORIGENS CRISTÃS E O NOVO TESTAMENTO INTRODUÇÃO Israel é um país pequeno. Podemos caminhar por toda a sua extensão territorial, de norte a sul, em alguns dias; e, a partir das montanhas centrais, podemos avistar suas fronteiras laterais, o mar a oeste e o rio a leste. No entanto, a nação teve uma importância desproporcional ao seu tamanho. Impérios lutaram por ela. Em média, nos últimos quatro mil anos, um exército marchou, a cada quarenta e quatro anos, através do território israelita — tanto para conquistá-lo como para resgatá-lo de alguém, usá-lo como campo de batalha neutro para combater outro inimigo ou utilizá-lo como rota natural para chegar a outro lugar. [ 06 ] A nação contém muitas regiões que, outrora belas, agora revelam as cicatrizes e as mutilações que foram o legado dessas guerras. Mesmo assim, Israel permanece uma terra bonita, uma terra que ainda produz uvas e figos, leite e mel. O Novo Testamento não existe há tanto tempo quanto a terra de Israel, mas, em alguns aspectos, podemos estabelecer paralelos notáveis entre ambos. O Novo Testamento é uma seção bíblica curta, a ponto de podermos lê-lo em um ou dois dias. Todavia, teve uma importância oculta por seu aspecto compacto. Vez após vez, serviu de campo de batalha para exércitos em guerra. Algumas vezes, saquearam seus tesouros para uso próprio, ou anexaram parte de seu território como porção de um império maior, necessitando de algumas montanhas estratégicas extras, especialmente os montes sagrados. Outras vezes, vieram para travar batalhas particulares em seu território neutro, encontrando, nos debates sobre um livro ou uma passagem particular, um lugar conveniente no qual encenar uma guerra cujo propósito, na verdade, diz respeito a duas visões de mundo ou filosofias, comparativamente não relacionadas à mensagem do Novo Testamento. Há muitos lugares cuja beleza frágil foi pisoteada por exegetas de pés pesados em busca de um lexema grego, um sermão rápido ou um slogan político. Mesmo assim, o Novo Testamento ainda é um livro poderoso e evocativo, cheio de delicadezas e majestade, lágrimas e risos. O que devemos fazer com o Novo Testamento? Uma coisa é certa: não adianta tentar impedir que ele ainda seja usado como campo de batalha. Nenhum bloqueio de fronteira seria forte o suficiente para afastar filósofos, filólogos, políticos e, de vez em quando, turistas; nem mesmo deveríamos erguer esses bloqueios, se pudéssemos. Muitos vieram para saqueá-lo e acabaram permanecendo como peregrinos. Colocar a totalidade ou parte do Novo Testamento em um invólucro sagrado seria pedir por uma repreensão do Senhor: “A minha casa será chamada casa de oração para todos os povos” [cf. Marcos 11:17]. Tentativas passadas de mantê-lo como exclusividade de um único grupo — por eruditos e pietistas, fundamentalistas de direita e de esquerda — culminaram em batalhas indevidas, o equivalente à triste luta pelo controle dos lugares sagrados da terra de Israel. O Novo Testamento é um livro de sabedoria para todos os povos, porém nós o transformamos em um covil de erudições, quando não em um manual de piedade rigoroso, severo e exclusivista. Em geral, dois grupos tentaram herdar para si esse território, tornando-o parte de sua reserva particular. Como no caso dos dois principais reivindicadores da terra de Israel atualmente, cada grupo contém alguns cujo comprometimento é com a aniquilação completa do outro, embora cada qual também tenha aqueles que persistem na busca de soluções e concessões. Precisamos entender algo a respeito de ambas as posições, se quisermos apreciar os contornos gerais e específicos da tarefa que temos pela frente — em especial, o estudo de Jesus, de Paulo e dos evangelhos. De um lado, há aqueles que, por haverem tomado o poder há um ou dois séculos, ocupando muitas das fortalezas principais (posições de destaque em universidades, editoras conhecidas etc.), insistem em que o Novo Testamento seja lido de maneira exclusivamente histórica, sem incidir sobre ele o peso de ser teologicamente normativo. Devemos descobrir o significado dos textos originais e apresentá-los com o máximo de cuidado, independentemente dos sentimentos daqueles que pensavam que uma passagem específica lhes pertencia e significava para eles algo diferente. Às vezes, há uma arrogância atrelada a essa reivindicação de poder. Com base na aparente força da história, e capazes de demonstrar as inadequações do modo de vida simples que os precedeu, esses eruditos estabeleceram postos de armas de concreto em lugares nos quais antes havia vinhedos, patrulhando as ruas para perseguir aqueles que insistem nos caminhos antigos, simplistas. Do outro lado, há aqueles que demonstram a mesma determinação em resistir ao avanço do novo regime. Alguns ainda consideram o Novo Testamento um tipo de livro mágico, cujo “significado” tem pouca relação com a intenção dos autores do primeiro século, mas muita relação com o modo pelo qual algum grupo contemporâneo acostumou-se a ouvir, nele, um chamado para um tipo particular de espiritualidade ou estilo de vida. Esse fenômeno é visto de maneira mais evidente nos círculos fundamentalistas, embora não se limite, de maneira alguma, a grupos (encontrados, em sua maior parte, nas tradições protestantes) para os quais o termo geralmente é reservado. Para alguns, o Novo Testamento simplesmente se tornou parte da liturgia, um documento a ser cantado, lido em pequenos trechos isolados e usado em orações públicas, mas não um objeto de estudos ou um registro pelo qual devemos lutar, na esperança de descobrir alguma coisa que ainda não sabemos. O Novo Testamento existe, ao que tudo indica, para sustentar a alma, e não a mente. Tais atitudes usam a arrogância como resposta à arrogância, tentando criar áreas do tipo “proibida a entrada”, em que forças acadêmicas de ocupação não podem penetrar e barricadas de piedade pessoal foram estabelecidas, tendo histórias de atrocidades acadêmicas como pretexto e justificativa. Como tantas vezes é o caso no mundo cotidiano da política, é difícil pensar que um lado está totalmente certo e o outro, totalmente errado. Sem dúvida, o Novo Testamento é uma coletânea de livros escritos em uma época particular, por pessoas específicas; se o tratássemos como se tivesse caído do céu, aparecendo na King James Authorized Version, encadernado em couro preto e “com mapas”, [ 07 ] seríamos como aqueles que, no Israel de hoje, não querem saber nada do que aconteceu antes de 1948. Porventura nos esquecemos de que havia uma Bíblia muito antes da “nossa”, e que o apóstolo Paulo falava grego, e não o inglês do século 17? Em contrapartida, imaginar que aspectos religiosos, teológicos e espirituais do Novo Testamento são questões secundárias e que, devido à existência de algo chamado “fundamentalismo”, devemos evitá-lo e aceitar alguma espécie de reducionismo, seria como ignorar problemas e conflitos atuais na terra de Israel ao argumento de que a única questão relevante é o significado do livro de Josué. De um lado, então, temos uma insistência justificável sobre a importância da história como aquilo que fornece profundidade e dimensão extra à consciência contemporânea; de outro, uma insistência justificável de que a descrição histórica é, por si só, incompleta. De fato, ambos os lados defendem posições relativamente modernas: em uma extremidade, racionalismo pós-iluminista e, na outra, sobrenaturalismo anti- iluminista. Ambos os lados devem considerar o fato de que podem existir alternativas, ou seja, de que a postura “ou uma coisa ou outra”, imposta no século 18, talvez seja falsa. Outras simplificações excessivas se acumulam neste momento, se não tomarmos cuidado. Nos exércitos atualmente em campo, há alguns cuja lealdade primária é direcionada a causas mais antigas. A divisão entre “acadêmico”e “popular” tem raízes muito mais profundas do que as controvérsias do século 18 entre “história” e “teologia”, raízes que incluem, de maneiras distintas, os movimentos montanista, franciscano, lollardo, protestante e quaker, assim como reações favoráveis e contrárias a esses movimentos. A disputa entre os que concebem o cristianismo como fundamentalmente uma questão de sinais externos e físicos, em oposição aos que o concebem como uma questão de “luz interior”, é quase tão antiga quanto o mundo; o mesmo se dá com a desconfiança profunda que separa aqueles que defendem a piedade simples dos que insistem na fé como a “busca constante por entendimento”. Combatentes de todas essas guerras podem muito bem juntar-se às batalhas atuais, não necessariamente desejando apoiar ao extremo a causa atual, mas vendo-a como o equivalente mais próximo de sua tendência particular. Há também os que correspondem aos observadores das Nações Unidas, aqueles que, pelo menos em tese, abordam o Novo Testamento como outsiders e “neutros”: são os teóricos da literatura ou os historiadores antigos, que, de vez em quando, avaliam o campo de batalha e dizem como os guerreiros estão todos enganados. Como seus homólogos seculares, às vezes esses profissionais estão certos, mas também podem servir de obstáculo. [ 08 ] O que, então, devemos fazer com esse pequeno mas estranho e poderoso livro? Este projeto tem como objetivo principal oferecer um conjunto de respostas que podem muito bem resultar em controvérsia. Nesse ponto, porém, temos de dizer algo em termos gerais, na esperança de estabelecer um acordo inicial, ainda que superficial. É claro que está aberta a qualquer pessoa a opção de fazer o que bem entender com este ou com qualquer outro livro. Um volume de Shakespeare pode ser usado para sustentar a perna de uma mesa ou como base para uma teoria filosófica. Contudo, não é difícil ver que empregá-lo para a produção de peças dramáticas carrega mais autenticidade do que qualquer outra opção (embora, claro, suscite algumas questões, como, por exemplo, se a produção com “figurino moderno” seria mais apropriada do que uma produção “histórica”, e assim por diante). Existe um acordo implícito para o uso de Shakespeare na produção de peças teatrais que dispensa qualquer argumentação. Qual seria, então, o equivalente ao Novo Testamento? [ 09 ] É precisamente essa a pergunta a que devemos responder. Sugiro que o Novo Testamento deve ser lido para ser compreendido, lido em seu devido contexto, em um acústico que nos permita escutar todas as suas conotações. Deve ser lido com o mínimo de distorção possível e com a maior sensibilidade possível aos seus diferentes níveis de significado. Deve ser lido para que as narrativas, em conjunto com a Narrativa, sejam ouvidas como enredos coerentes, e não como maneiras aleatórias de declarar “ideias” descontextualizadas. Deve ser lido sem a suposição de que já sabemos o que será dito, e sem a arrogância que presume que “nós”, a despeito de qualquer grupo, temos direitos exclusivos sobre essa ou aquela passagem, sobre esse ou aquele livro ou escritor. O Novo Testamento, enfim, deve ser lido de modo a desencadear o drama que sugere. Estes volumes são uma tentativa de articular uma leitura que faça jus a essas exigências. A TAREFA 1. O que fazer com os lavradores infiéis? Qual, então, é a natureza de nossa tarefa? Pode ajudar se começarmos com outra ilustração, mais uma vez relacionada a um conflito territorial: Certo homem plantou uma vinha, colocou uma cerca ao redor dela, cavou um tanque para prensar uvas e construiu uma torre. Depois arrendou a vinha a alguns lavradores e foi fazer uma viagem. Na época da colheita, enviou um servo aos lavradores, para receber deles parte do fruto da vinha. Mas eles o agarraram, o espancaram e o mandaram embora de mãos vazias. Então, enviou- lhes outro servo; e bateram em sua cabeça e o humilharam. E enviou ainda outro, a quem mataram. Enviou muitos outros; em alguns bateram, a outros mataram. Faltava-lhe ainda um para enviar: seu filho amado. Por fim o enviou, dizendo: “A meu filho, respeitarão”. Mas os lavradores disseram uns aos outros: “Este é o herdeiro. Venham, vamos matá-lo, e a herança será nossa”. Assim eles o agarraram, o mataram e o lançaram para fora da vinha. O que fará então o dono da vinha? Virá e matará aqueles lavradores e dará a vinha a outros. Vocês nunca leram esta passagem das Escrituras? “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isso vem do Senhor, e é algo maravilhoso para nós.” [ 10 ] O que devemos fazer com um texto como esse? A fim de vermos como é possível abordar a questão, precisamos estar cientes das pressões oriundas da cultura confusa ao nosso redor. Vivemos um tempo de grandes transformações e “mudanças de humor” na cultura ocidental: do modernismo ao pós-modernismo; dos dualismos iluministas aos panteísmos da “nova era”; do existencialismo a novas formas de paganismo. Para tornar as coisas ainda mais confusas, elementos de todas essas camadas coexistem lado a lado: na mesma cidade, na mesma família e, às vezes, até na mesma mente, na mesma imaginação. É importante estarmos cientes de que a força dos questionamentos que fazemos depende de todo o tipo de suposição a respeito da forma como o mundo funciona e do papel da humanidade no mundo. Como não há um acordo em vista quanto a essas questões, a única possibilidade é procedermos com cautela, procurando, ao menos para começar, em tantas direções quanto razoavelmente pudermos. Talvez existam quatro tipos de leitura que podem ser oferecidos, ilustrando quatro movimentos na história da interpretação do Novo Testamento. Essas quatro leituras (pré-crítica, histórica, teológica e pós-moderna) correspondem, em linhas gerais, a três movimentos na história da cultura ocidental dos últimos séculos. A primeira pertence ao período anterior ao Iluminismo do século 18; a segunda, à principal vertente do Iluminismo, às vezes conhecida como “modernismo” ou “modernidade”; a terceira, a uma correção frente à segunda, ainda dentro de uma cosmovisão iluminista; e a quarta, ao período recente, em que a visão de mundo iluminista começou a se desfazer sob questionamentos de muitos lados e que ficou conhecida como “pós-moderna”. [ 11 ] A primeira forma de ler a parábola é a de cristãos devotos. Para estes, a Bíblia é a Escritura Sagrada, de modo que não há necessidade de fazer muitas perguntas — ou até mesmo nenhuma — sobre o significado da passagem em seu contexto histórico; basta ouvir a voz de Deus enquanto, em oração, estudam o texto. Talvez vejam a si mesmos como os lavradores, precisando de repreensão por seu próprio fracasso em reconhecer o Filho de Deus; ou, em um contexto de perseguição, possam identificar-se com os profetas, rejeitados pelos poderosos proprietários de facto, mas publicamente reconhecidos como justos no final. Essa abordagem pré-crítica visa proteger o status autoritativo do texto, ainda que seja passível de críticas em pelo menos três aspectos, correspondentes às demais formas de leitura: falha em levar o texto a sério, em seu contexto histórico; falha em integrá-lo à teologia do Novo Testamento como um todo; e falha em criticar, de modo substancial, pressupostos e pontos de vista inerentes à abordagem em si. Permitindo que cada uma dessas objeções tenha seu direito de defesa, prosseguimos para a abordagem histórica. Associada primariamente à insistência do Iluminismo na valorização da história, a abordagem formulará uma série de perguntas: (1) Jesus realmente contou a parábola e, em caso positivo, o que quis dizer? Havia, no meio judaico, outras histórias semelhantes acerca de lavradores e proprietários de vinhas, capazes de nos auxiliar na descoberta de nuances que os ouvintes porventura tenham captado? (2) Como a igreja primitiva fez uso da parábola em sua pregação? Seria o caso de a parábola haver sido recontada no contexto em que a igreja precisava explicar a razão pela qual a maioria dos judeus contemporâneos de Jesusrejeitou sua mensagem? Que novo impacto a história teria nesse novo contexto? Será que a parábola foi adaptada para suprir diferentes necessidades — destacando, por exemplo, a filiação divina de Jesus? Será que a parábola realmente foi contada, ou apenas inventada para atender às necessidades que não foram supridas pelos verdadeiros dizeres de Jesus? (3) Como o evangelista a utilizou em seu próprio texto? Que nova tonalidade adquire pelo fato de haver sido encaixada nesse ponto da narrativa, logo após Jesus ter realizado uma ação dramática no Templo, quando o ritmo da história se acelera em direção à crucificação? O escritor a alterou, adaptando-a a esses propósitos? Em termos gerais, os três tipos de perguntas mencionados correspondem a questionamentos feitos pela (1) suposta crítica histórica dos evangelhos, (2) pela crítica das fontes e pela crítica da forma e (3) pela crítica da redação. Discorrerei com mais detalhes a respeito de cada posição na Parte IV, pois a maioria dos eruditos concorda que questões dessa natureza continuam indispensáveis para uma leitura séria do texto. Existem ainda vários níveis adicionais de investigação histórica, os quais também podem ser proveitosos. Se deparássemos com a parábola de modo desprevenido e fora de contexto, poderíamos tratá-la como um relato histórico ou quase-histórico de um incidente real, embora um tanto improvável. Talvez nos interessássemos por ela em termos de história social de seu período. Entretanto, talvez também descobríssemos, por fontes históricas, sinais na própria narrativa de que a história não deveria, como dizemos, ser “tomada literalmente”. Sua própria improbabilidade indicaria que a história estaria sendo usada para dizer mais do que sugere seu significado superficial. Posicionada em um contexto narrativo cujo personagem central conta muitas dessas histórias e rotulada, com outras histórias semelhantes, sob o gênero de “parábola”, descobrimos que a narrativa pertence a uma tradição que já contém histórias semelhantes (Isaías 5:1-7, por exemplo), concluindo, com razão, que pode ser mais bem-interpretada como uma meta-história — não por seu próprio significado superficial, mas por algum outro. Todas essas discussões têm lugar na leitura histórica do texto, a tentativa de “encaixá-lo” em seu contexto histórico. Tal leitura histórica pode ser contestada com base em três premissas. Em primeiro lugar, não está clara, a despeito de todas as exigências que a abordagem apresenta, a forma como, lido nesses moldes, o texto pode fornecer qualquer “autoridade” para a igreja ou o mundo de hoje, já que as pessoas que leem o Novo Testamento, em sua maioria, o abordam com certa expectativa particular. Em segundo lugar, a abordagem suscitaria, necessariamente, questões sobre a teologia dos próprios documentos originais. Em terceiro lugar, talvez seja otimista demais pensar que poderíamos voltar ao que “realmente aconteceu”, chegando, finalmente, à verdade histórica e “objetiva”. Pelas razões citadas, o método histórico-crítico se ampliou, particularmente nos últimos cem anos, e passou a incluir o estudo teológico dos textos. A abordagem teológica levanta questionamentos diferentes, embora sobrepostos. Qual é a teologia subjacente à parábola? Que cristologia está implícita na figura do “filho”? Onde se encaixa na declaração teológica de Marcos (ou de Mateus, de Lucas ou da igreja primitiva)? Essas questões, oriundas do projeto “Teologia do Novo Testamento” (conforme concebido por Rudolf Bultmann, em meados do século 20), têm estado em voga. Embora possam ser respondidas de modo a incluir questões relacionadas à autoridade e à historicidade, também podem evitá-las, relativizando uma afirmação potencialmente “normativa” ou outra potencialmente “histórica” em “um único aspecto da teologia de Mateus”. Também não está claro se esse método levou a sério a acusação de críticos recentes, segundo a qual é preciso prestar atenção, de forma mais cuidadosa, aos processos envolvidos em sua própria leitura. A quarta e última abordagem é a dos chamados críticos literários pós-modernos. Rejeitando, por um lado, a piedade pré-crítica e, por outro, a abordagem histórica do Iluminismo, o método insiste em examinar o processo de leitura em si. O que fazemos ao ler um texto? O que trago para o texto como pressuposto e de que maneira mudo a mim mesmo por meio da leitura? Embora a resposta a essa pergunta dependa, em parte, do fato de eu pensar que Jesus realmente contou a parábola, essa pergunta histórica seria apenas complementar ao questionamento mais importante, cujo foco sou eu e minha leitura. Se tal questionamento ganha sua força aparente devido à dificuldade que outros projetos têm de fundamentar seu método, a vitória é ganha à custa de objeções naturais: sim, eu posso acabar descobrindo o que está acontecendo comigo; todavia, pensei que descobriria algo a respeito de Deus, de Jesus ou sobre os primeiros cristãos. Devo simplesmente desistir dessas possibilidades? Essa leitura pode coexistir com a autoridade, a história ou a teologia? É provável que, por causa desses problemas, a teoria literária pós-moderna ainda não tenha feito muitas incursões nos principais estudos bíblicos, embora tenhamos todas as razões para supor que, em breve, o fará. [ 12 ] Problemas que surgem quando essas diferentes abordagens são justapostas se concentram, em geral, em um ponto específico, a saber, a tensão entre uma leitura que busca ser, até certo ponto, normativamente cristã e a que procura ser fiel à história. O leitor moderno (ao contrário do pós-moderno) passou por duas pressões conflitantes. Em primeiro lugar, há a insistência do Iluminismo de que todo dogma seja testado no tribunal da história. Assim, H. S. Reimarus (1694— 1768), um dos principais representantes do Iluminismo nos estudos do Novo Testamento, acreditava que Jesus era um revolucionário judeu comum, e que esse fato refutava o cristianismo ortodoxo. Em segundo lugar, há a insistência cristã de que, por assim dizer, Pôncio Pilatos faça parte do Credo; de que os acontecimentos centrais à fé e à prática cristãs não sejam reduzidos a uma realidade além da esfera espaçotemporal, correspondendo, antes, a acontecimentos do mundo real. Por isso o enraizamento do cristianismo na história é inegociável; não podemos escapar da crítica do Iluminismo ao afirmar que a história não pode questionar a fé. (Tentativas de fazê-lo, desde o início do gnosticismo até o recente teólogo Paul Tillich, foram amplamente consideradas uma forma de evitar o problema em vez de encará-lo.) Parte da dificuldade tem sido, penso, que os herdeiros do Iluminismo foram muito estridentes na denúncia do cristianismo tradicional e que o cristianismo tem sido, em geral, muito arrogante em resistir a novas perguntas, quanto mais a novas respostas, em sua defesa obstinada… exatamente do quê? Os cristãos sempre imaginaram que estavam defendendo o cristianismo ao resistirem aos ataques do Iluminismo; mas é igualmente plausível sugerir que o cristianismo ortodoxo estava defendendo a visão de mundo pré-iluminista, a qual, por si só, não era mais especificamente “cristã” do que qualquer outra. Quem são os verdadeiros lavradores infiéis, na vinha do Novo Testamento? Qual é a responsabilidade deles? Quem tem o direito de ser visto com o grupo dos personagens proféticos, que veio para resgatar a vinha da devastação de usurpadores? Eis o paradoxo na essência de todo esse projeto: embora o Iluminismo tenha começado, entre outras coisas, como uma crítica ao cristianismo ortodoxo, pode funcionar, e de várias formas funcionou, como um meio de chamar o cristianismo de volta às raízes, à sua história genuína. Parte do cristianismo teme a história, com o receio de que, se realmente descobrirmos o que aconteceu no primeiro século, nossa fé entre em colapso. No entanto, sem uma investigação histórica, não há controle sobre a propensão cristã de reconstruir Jesus, sem mencionar YHWH, à sua própria imagem. De modo semelhante, grande parte do cristianismo temeo aprendizado acadêmico e, na proporção em que o programa do Iluminismo era um empreendimento intelectual, o cristianismo respondeu com as simplicidades da fé. Contudo, embora seja verdade que, sem o amor, o aprendizado não passa de algo estéril e seco, também é verdade que, sem a instrução, o entusiasmo pode facilmente transformar-se em arrogância cega. Reitero: boa parcela do cristianismo teme a redução da fé sobrenatural em categorias racionalistas, mas a distinção nítida entre “sobrenatural” e “racional” é, em si, um resultado do pensamento iluminista. Assim, enfatizar o “sobrenatural” em detrimento do “racional” ou do “natural” é ceder à cosmovisão iluminista em um nível mais profundo do que se meramente endossássemos um programa racionalista e pós-iluminista. Desse modo, é impossível ao cristianismo ignorar ou relativizar o desafio “modernista” do século 18 em diante. Naturalmente, isso não significa que devemos simplesmente endossar a crítica iluminista, mas tão somente que suas perguntas devem permanecer postas sobre a mesa. Além disso, como argumentarei mais adiante, a própria crítica pós-moderna contra o Iluminismo, impondo restrições bem necessárias às suas ambições, não invalida, de modo inequívoco, o projeto “moderno”. Enquanto a disputa entre os lavradores continua, somente alguém muito ousado assumiria falar em nome do Proprietário [da vinha]. Tudo isso pode parecer muito negativo. Ler o Novo Testamento de uma forma séria, no momento atual da cultura ocidental, parece tão problemático que alguns podem até ter o desejo de desistir. A vinha está superlotada e, aparentemente, é infrutífera. Entretanto, essa resposta também é inapropriada. Independentemente dos pontos de vista de alguém, o Novo Testamento é totalmente relevante. Se há alguma verdade nas reivindicações cristãs dessa porção da Bíblia, não podemos vê-la como um jardim seguro para o qual os cristãos poderão refugiar-se do mundo contemporâneo. Antes, deve funcionar como parte do desafio e da expressão do deus criador para o mundo contemporâneo. Se, porém, as alegações cristãs sobre o Novo Testamento são falsas, então — como dizem os críticos do século 18 em diante —, quanto mais cedo suas deficiências forem apontadas, melhor. Portanto, a despeito de alguém ter um ponto de vista cristão, o exame minucioso do Novo Testamento é uma responsabilidade necessária. Por trás de toda essa perplexidade, sugiro duas perguntas em particular das quais não podemos escapar. São elas: (1) Como o cristianismo começou e por que assumiu a forma que tem? (2) Faz sentido aquilo em que o cristianismo acredita? Daí o título geral deste projeto: Origens Cristãs e a Questão de Deus. Ambas as perguntas, obviamente, abordam a questão do Novo Testamento. Faz parte da primeira pergunta abordar a razão pela qual os cristãos apostólicos escreveram de determinada forma. Faz parte da segunda explorarmos a relação dinâmica entre o que o Novo Testamento diz e aquilo em que os cristãos acreditam, e se há coerência nessa fé. 2. As perguntas As duas perguntas principais que expusemos dividem-se em questionamentos mais detalhados. Para começar, devemos levantar questões a respeito do estudo literário desses textos. O que conta como leitura adequada? Como podemos avaliá-la? Olhando para os métodos de leitura do Novo Testamento, institucionalizados e até mesmo sacralizados ao longo dos anos na devoção pública e particular da igreja, somos compelidos a indagar se essas leituras fazem jus aos textos: se, por exemplo, um livro como o Evangelho de Marcos é bem servido ao se ler uma dúzia de versículos por vez, fora de seu contexto. Estamos à procura de uma leitura adequada e, no momento, não há acordo quanto ao que conta como tal. Prosseguiremos com essa busca no capítulo 3. Olhando, a seguir, para o conjunto histórico de perguntas, encontramos questões relacionadas a Jesus, a Paulo e aos evangelhos: (a) Quem era Jesus e por que ele foi, de alguma maneira, responsável pelo início do “cristianismo”? (b) Paulo foi o verdadeiro fundador do “cristianismo”, o corrompedor da mensagem original ou o verdadeiro intérprete de Jesus? Quais estruturas e conteúdo de seu sistema de crenças o motivaram a realizar uma obra tão extraordinária? (c) Por que os evangelhos apresentam determinadas características próprias? Onde se encaixam em relação a Jesus e a Paulo? E, respondendo a essas três perguntas, podemos relacioná-las umas com as outras? Podemos traçar linhas do pensamento cristão primitivo de modo a se interligarem? Em caso positivo, como? Esses tipos de perguntas — sem contar outros questionamentos interessantes relacionados à origem e à teologia da carta aos Hebreus, ou das principais obras não canônicas, como Didaquê ou Evangelho segundo Tomé — é que, segundo sugiro, devem ter respostas. Até certo ponto, o fato de termos de estudar o Novo Testamento com profundidade a fim de responder a questões históricas sobre o cristianismo primitivo é fruto do acaso. Em tese, poderia ter havido excelentes registros alternativos, escritos capazes de nos fornecer um conjunto completo e adequado de respostas históricas, levando-nos, apenas de vez em quando, aos livros escritos pelos próprios cristãos. Evidentemente, alguns se oporiam a essa sugestão, insistindo em que os eventos só podem ser entendidos pelo olhar da fé e que, por isso, nada menos do que o próprio Novo Testamento serviria — e que talvez a Providência tenha ordenado a obliteração de quase todas as demais evidências com o objetivo de deixar isso claro. Para mim, essa objeção parece antecipar a resposta, muito antes da apresentação das evidências; só chegaremos adequadamente a determinada conclusão quando a maior parte do trabalho estiver concluída. A despeito, porém, da opção que adotarmos, esse segundo conjunto de perguntas continua firmemente enquadrado no que costuma ser considerado “história”. Veremos questões metodológicas atreladas ao questionamento histórico no capítulo 4. Entretanto, há ainda um terceiro conjunto de perguntas que também devem ser abordadas de várias maneiras ao longo deste trabalho. O que é teologia cristã? Em que aspectos deveria continuar a mesma, como no princípio? Essa continuidade é razoável ou até mesmo possível? O que conta como cristianismo normativo? Como podemos saber? Existe alguma cosmovisão disponível ao ser humano moderno capaz de interpretar o mundo da forma como o conhecemos e que tenha uma continuidade apropriada e reconhecível com a cosmovisão dos primeiros cristãos? Deveríamos procurar uma declaração autoritativa sobre o que constituem fé legítima e vida verdadeira? Se sim, onde podemos encontrá-la? Como ela seria reproduzida na igreja e no mundo modernos? E, subjacente a todas essas perguntas: qual é o significado por trás do uso da palavra “deus” ou “Deus”? Algumas pessoas (em sua maioria, pretensos historiadores) protestam contra a ideia de que devemos mesclar esse conjunto de perguntas com os questionamentos históricos. [ 13 ] Alguns teólogos levaram a advertência a sério e escreveram sobre teologia cristã com pouca atenção à questão histórica dos primórdios cristãos. [ 14 ] Contudo, o fato é que a maioria das pessoas que tentaram escrever acerca de teologia cristã considerou apropriado dedicar algum espaço a questões históricas, [ 15 ] e que a ampla maioria dos que leram seriamente o Novo Testamento por um ponto de vista histórico — e que escreveram sobre o assunto dessa forma — também pretendeu, de uma forma ou de outra, abordar questões teológicas, ainda que, obviamente, eles busquem abarcar uma ampla gama de respostas. [ 16 ] Naturalmente, muitas vezes as perguntas foram confundidas entre si e interagiram de modo a produzir distorções. Isso, em geral, aconteceu em detrimento da história, pois vários programas foram projetados de forma anacrônica em relação ao primeiro século. [ 17 ] Felizmente, porém, os riscos não impediram outras pessoas de se esforçar na descoberta de uma forma apropriada de integrar literatura, história e teologia — ou seja, questões relativasaos escritos do cristianismo primitivo, das origens cristãs e do deus cristão. [ 18 ] Sem essa tentativa de integração, há sempre o perigo de que a história e a teologia se apartem. Muitas pessoas ainda insistem em que a única tarefa adequada ao estudioso do Novo Testamento é a descrição histórica “neutra”. [ 19 ] “História” é considerada uma tarefa pública, exercida em campo aberto. Qualquer um pode envolver-se com a história — e, de fato, qualquer um desejaria fazê-lo —, visto que, segundo argumenta Räisänen, o início do cristianismo serviu de parte vital na história mundial, de modo que entendê-lo pode muito bem contribuir para a maior compreensão mútua de nossa comunidade mundial. Enquanto isso, com frequência, a teologia é vista como um jogo cristão particular, praticado em um campo seguro, longe de qualquer oposição séria. Na verdade, muitos cristãos encorajaram essa concepção e agiram como se fosse esse o caso. Muitos consideram o estudo histórico “legítimo” apenas se sua relevância contemporânea for imediatamente óbvia e acessível. (“O que o estudo significa para nós, atualmente?” — questionamento cuja conotação implica que uma falta de resposta rápida e fácil demonstraria que, em algum ponto ou lugar, um erro foi cometido.) [ 20 ] O potencial para a mútua hostilidade entre “história” e “teologia” resultou na conhecida divisão, em estudos do Novo Testamento, segundo a qual o assunto é dividido em “Introdução”, tido como um dever “puramente histórico”, e “Teologia”, concebida menos historicamente e mais em termos sintéticos. Hoje, a divisão está consagrada no conteúdo programático de muitas universidades e nos sistemas de classificação de muitas bibliotecas — área cujo rigor classificatório parece inalterável. Contudo, essa divisão mais ampla, por mais incentivada que seja por alguns de ambos os lados, não é nem necessária, nem automática; na verdade, é altamente enganadora. Por um lado, o estudo da teologia do Novo Testamento depende de uma crença, ainda que vaga, de que alguns acontecimentos do primeiro século são, em certo sentido, normativos ou autoritários para o desenvolvimento subsequente do cristianismo. Por outro lado, o estudo histórico do cristianismo primitivo é impossível sem uma clara compreensão das crenças cristãs primitivas. Trata-se de uma tarefa notoriamente difícil ir além dessas duas declarações vagas — fato que não diminui, mas, ao contrário, enfatiza, a ideia de que a teologia, especificamente a teologia cristã, não pode existir no vácuo, em um mundo fechado, longe do escrutínio público e de questionamentos. A integração, embora se mostre difícil, continua a ser uma tarefa apropriada. Enquanto a história e a teologia continuam trabalhando em seu relacionamento tempestuoso, sempre há o perigo, particularmente no pós-modernismo, de que o estudo literário prossiga por si só, sem afetar ou ser afetado pela história e pela teologia. Quanto mais nos movemos em direção a um entendimento de que “minha leitura do texto” é o que importa, menor será a pressão para ancorarmos o texto em seu devido contexto histórico ou para integrarmos uma “mensagem” mais ampla do texto com outras mensagens, produzindo uma declaração ou uma síntese teológica geral. Mais uma vez, como argumentarei mais adiante, representa um passo desnecessário, embora impedir que ele seja tomado nem sempre seja uma tarefa fácil. O presente trabalho, então, é uma tentativa de integrar três tarefas tidas como normalmente díspares. Algumas vezes, nossa ênfase recairá mais sobre uma área do que sobre as demais. Em certo sentido, o estudo de Jesus é, antes de tudo, uma questão histórica, demandando o estudo auxiliar de textos literários e de suas implicações teológicas. Descreverei Jesus do ponto de vista de eventos históricos que precipitaram uma revolução teológica e literária. Em certo sentido, o estudo de Paulo é uma questão de teologia, demandando o auxílio cuidadoso de trabalhos históricos e literários. Discorrerei acerca de Paulo em termos de uma teologia revolucionária, que precipitou uma conquista histórica. Por fim, em certo sentido, o estudo dos evangelhos é, por si só, uma tarefa antes de tudo literária, que não pode ser feita, porém, sem uma atenção cuidadosa ao cenário histórico e teológico, ao contexto e às suas implicações. Analisarei os evangelhos do ponto de vista de uma conquista literária que incorpora uma cosmovisão revolucionária (ou várias cosmovisões revolucionárias?). Ademais, como argumentarei na Parte II do livro, nenhum estudo desse tipo pode ser feito com uma “objetividade” desapegada e positivista. Todos envolvem, como acontece com toda forma de conhecimento, o conhecedor e o pesquisador, o aluno e o leitor. A não ser que deixemos isso bem claro desde o início, trabalharemos sob uma concepção simplista demais. As coisas podem parecer agradavelmente simples para começar, mas os problemas serão reservados para mais tarde. E, se desejarmos levar o programa adiante, precisaremos, então, analisar brevemente o que foi feito nas áreas em questão e oferecer um breve comentário sobre cada uma delas. Elaboro-os aqui na ordem em que emergiram, como ideias poderosas e influentes nos estudos do Novo Testamento do século 19. 3. A história do cristianismo primitivo Nos últimos duzentos anos ou mais, estudiosos se engajaram na busca do que pode ser chamado de história cristã primitiva. Como realmente era a igreja primitiva? Quais foram seus principais movimentos? Como mudou, em cem anos, de uma pequena “seita judaica” para um grande grupo multicultural e interligado, estendendo-se por todo o Império Romano? [ 21 ] Cobriremos toda essa área na Parte IV do presente volume; por isso, não há necessidade de anteciparmos a suma dessa pesquisa aqui. Como já vimos, o estudo histórico deve incluir o que pode ser chamado de teologia cristã primitiva — ou seja, uma descrição histórica das visões de mundo e do sistema de crenças dos cristãos professos entre, por exemplo, os anos 30 e 130 d.C. [ 22 ] Se esse é nosso objetivo, o Novo Testamento é, obviamente, o principal lugar aonde ir, ainda que apenas por falta de material adicional. Todavia, será necessário empreender muita leitura nas entrelinhas, uma vez que os escritores do Novo Testamento não tentavam, na maioria das vezes, dar aos leitores certo tipo de informação. Na verdade, o que faziam era, às vezes, combater certos sistemas de crenças dos cristãos primitivos. A reconstrução da teologia do cristianismo primitivo incluirá a reconstrução das teologias daqueles cujos próprios escritos (se é que existiram) não foram preservados. Pois bem: esse tipo de reconstrução nas entrelinhas é o que os historiadores costumam fazer. Em tese, isso é possível. Sem dúvida, muito esforço foi concentrado nessa direção nas últimas décadas. [ 23 ] A grande vantagem dessa tarefa é que ela pode ser vista claramente como uma operação pública. Está aberta a todos e segue os mesmos métodos adotados por qualquer historiador que reconstrói qualquer sociedade e seu sistema de crenças. Além do mais, há uma grande abertura para a tarefa nos estudos contemporâneos. Novas ferramentas e textos abriram mundos de pensamento e de vida que nossos antecessores, cem anos atrás, desconheciam. Estudar a história da igreja primitiva, incluindo a história de suas crenças, é não somente possível, como também algo fascinante e proveitoso. Ao mesmo tempo, essa tarefa esbarrará em diversas dificuldades. Para começar, partilha da dificuldade geral de toda história antiga: não existe material suficiente para realizarmos um trabalho completo. Não podemos obter uma descrição tão completa da religião cristã primitiva — e, portanto, da teologia — quanto gostaríamos. A documentação, não tendo sido projetada para nos dar informação, é inadequada. Por conseguinte, há sempre o perigo de um círculo vicioso: parte do objetivo do estudo histórico do cristianismo primitivo consiste em chegarmos a um ponto de vista a partir do qual podemos examinar o cenário como um todo, incluindo o Novo Testamento;porém, a maior parte do material para realizar essa tarefa está contida no próprio Novo Testamento. O resultado, por sua vez, é a possibilidade de haver especulações intermináveis e que não levam a lugar algum. Hipóteses extraordinárias podem crescer da noite para o dia, como a planta sobre a cabeça de Jonas, sem que haja, no dia seguinte, uma lagarta para fazê-la secar. Antes, elas sobrevivem, abrangendo diversas perspectivas contemporâneas e indignas do cristianismo. Existe a teoria do “Big Bang” das origens cristãs, segundo a qual o cristianismo verdadeiro, puro e inalterado apareceu brevemente no início, esfriando e maculando-se com outras ideias desde então. Existe a hipótese do “desenvolvimento constante”, segundo a qual ideias e planos ideológicos se desenvolvem em linhas retas, sem distorções, giros ou segundas intenções. Existe ainda a velha teoria da escola de Tübingen, segundo a qual o cristianismo se desenvolveu de duas maneiras paralelas e distintas, segmentadas pelo contexto racial, encontrando-se, posteriormente, na segunda geração da Igreja Católica. Há muito a ser dito contra cada uma dessas teorias, mas elas continuam a exercer influência implícita. Outro problema com uma concepção comum dessa tarefa é sua autodescrição positivista. No capítulo 4, argumentarei que toda história envolve seleção, priorização de elementos etc., de modo que a ideia de história “neutra” ou “objetiva” não passa de uma invenção pós-iluminista. Se, neste ponto, devemos estabelecer alguma distinção, é melhor pensarmos em tarefas “públicas” e “particulares” em vez de “objetivas” e “subjetivas”. No entanto, o elemento positivista permanece, defendendo uma historiografia livre de juízos e isenta de dogmas, como se algo assim fosse possível. [ 24 ] Tal abordagem é, em certa medida, autorrefutável: o próprio relato de Räisänen acerca da história da disciplina constitui, por si só, um bom exemplo de seleção e organização com base em concepções previamente estabelecidas. Tendo em vista que certo tipo de conhecimento histórico é possível e resistindo à queda ao subjetivismo tão firmemente quanto resistimos ao objetivismo arrogante, questionamos: para que serve essa tarefa? Não nos basta dizer, como alguns gostariam, que a investigação histórica é feita pelo amor a si mesma, ou seja, como um meio de descobrir as coisas que aconteceram. O fato é que todos os escritores do Novo Testamento e do cristianismo primitivo trazem, sem exceção, suas próprias ideias sobre a importância dos acontecimentos envolvidos, sem se contentarem com uma descrição superficial. A história narrada sobre esse aspecto do passado é universalmente percebida como se fosse relevante para o presente. Em relação a esse aspecto, todos concordam. Mas como a história do cristianismo primitivo pode ser “relevante” para a atualidade? Nesse ponto, não há acordo; apenas muitas vozes confusas. Primeiro, muitos escritores recentes e alguns mais antigos enxergam a experiência religiosa dos primeiros cristãos (às vezes incluindo sua “teologia”) como o elemento normativo do cristianismo. Trata-se da aparente vantagem de permitir que se conduza o estudo “científico”, supostamente “objetivo”, da religião e da teologia cristã primitiva com o conhecimento de que, ao depararmos com ele, entraremos em contato com o modelo real de como o cristianismo supostamente deveria ser. Seria esperado, então, reativar esse modelo pela pregação e pela oração. [ 25 ] Esse pressuposto, em certa medida, integra-se com o plano ideológico anunciado por Wrede e Räisänen, pois apela a uma história que, em tese, é observável a todos. Também se encaixa convenientemente no programa do denominado movimento da “teologia bíblica”, do período pós-guerra, que rejeitou a ideia de que a Bíblia é uma “revelação” e optou pelo pressuposto de que Deus se revela nos atos poderosos da história, da qual observadores, especificamente os primeiros cristãos, dão testemunho, consagrando-o em seus escritos. [ 26 ] Nessa perspectiva, o Novo Testamento, lido de forma histórica, é “autoritativo”, por constituir o conjunto de documentos mais próximos dos fatos. Portanto, é “autoritativo” no mesmo sentido que Suetônio representa a melhor “autoridade” como narrador da vida de Domiciano. Entretanto, esse exemplo mostra quão escorregadia realmente é a palavra “autoridade”. Suetônio não é mais confiável do que um tabloide. A mera proximidade com o acontecimento não é suficiente. Em segundo lugar, se o cristianismo primitivo deve, de alguma maneira, funcionar como norma, o processo abarcará claramente não apenas a seleção envolvida em qualquer relato histórico de qualquer coisa, mas também a seleção dos tipos de cristianismo primitivo segundo um arranjo avaliativo preestabelecido. Inevitavelmente, o processo envolverá exceções. Há mais tipos de cristianismo primitivo do que podem ser facilmente agrupados e receber status autoritativo. Nesse ponto — já que, segundo o modelo adotado, o cânone já não tem mais importância —, somos obrigados a importar outros critérios externos, que nos permitam distinguir o tipo “certo” de experiência religiosa inicial do tipo “errado”. Assim, de duas, uma: ou elevaremos o período mais antigo por ser mais primitivo e, portanto, mais puro; [ 27 ] ou adotaremos um tipo particular de religião, descrito de acordo com sua procedência cultural (judaica ou grega) ou em conformidade com uma norma teológica (cristianismo paulino, por exemplo). [ 28 ] Mais uma vez, isso parece altamente problemático: de onde vieram esses critérios? Não parecem ter vindo da Bíblia ou da tradição. Só podem ter-se originado no ponto de vista do intérprete, o qual define como o cristianismo tradicional, ou “autêntico”, realmente era. Nesse caso, porém, o pretenso estudo “objetivo” do cristianismo primitivo foi abandonado. A tentativa é de uma teologia cristã muito mais generalizada (com um ponto de partida desconhecido), ou pelo menos algum sub-ramo da teologia do Novo Testamento. [ 29 ] De forma semelhante, o problema é evidente no trabalho de Räisänen, o qual, defendendo o estudo “objetivo” da história da fé cristã primitiva, sustenta que seria bom aplicar os resultados do estudo do Novo Testamento ao mundo, e não apenas à igreja. Isso está em consonância com os pressupostos dos judeus e dos cristãos do primeiro século, segundo o autor observa corretamente (ainda que, de uma forma curiosa, não possa explicar esse fenômeno em termos históricos ou teológicos). [ 30 ] No entanto, isso levanta duas objeções. A primeira: por que alguém de fora das tradições judaica ou cristã encontraria alguma relevância na reexposição de um capítulo histórico dessas tradições? Seria, no mínimo, um exemplo de loucura ou de perseverança humana — ou talvez uma mistura das duas categorias; e isso dificilmente mereceria a atenção que os estudiosos, inclusive Räisänen, ainda devotam ao material. A segunda: a alegação de Räisänen de ler o Novo Testamento e de encontrar um material com o qual possa abordar questões modernas constitui, para ele, um problema de seleção: de onde vem seu critério avaliativo, o critério que o leva a separar o trigo do joio e usá-lo como meio de abordar as questões contemporâneas? A principal mensagem que parece emergir de seu tratamento é que as primeiras divisões entre judaísmo e cristianismo são tão interligadas e confusas que faríamos muito melhor em repensar a questão toda a partir do zero. Podemos ver mensagens generalizadas semelhantes em alguns historiadores recentes, que tentam passar de uma afirmação descritiva para outra, de cunho normativo. [ 31 ] Um método alternativo é sugerir, pela reconstrução histórica de Jesus e de seus primeiros seguidores, que, posteriormente, o cristianismo errou ao lhes atribuir o status que eles têm. [ 32 ] Por fim, o que essa abordagem faz com Jesus? É residualmente estranho incluir Jesus na “experiência cristã primitiva” — ou na teologia ou na religião —, como se Jesus fosse simplesmente o primeiro cristão cuja “experiência” do seu deus poderia ser consideradaa mais normativa. [ 33 ] De certa forma, como veremos, é naturalmente vital descrever Jesus com a maior precisão histórica possível. Mas seria uma inovação bastante radical afirmar categoricamente que a experiência de Jesus em relação a deus deveria ser a mesma dos cristãos subsequentes. Existem, sem dúvida, paralelos e analogias (a oração a “Aba”, por exemplo), e certamente há um fio de imitatio Christi que percorre o Novo Testamento. Contudo, há também o pensamento comum de que existe uma singularidade sobre Jesus. Nesse aspecto, seria estranho considerar a imitação de sua experiência e fé parte normativa do cristianismo primitivo, copiada, da forma mais fiel possível, pelas gerações cristãs subsequentes. Por todas as razões mencionadas, parece-me claro que a simples descrição histórica do cristianismo primitivo e de sua teologia não pode, por si só, constituir um empreendimento completo, ainda que permaneça, claro, como parte vital da tarefa; mais adiante, veremos que, sem ela, a tentativa de montar uma leitura bem-sucedida do Novo Testamento, sem falar da teologia cristã, está fadada ao fracasso. A abordagem propõe um plano ideológico claro e simples; contudo, a clareza é apenas superficial, adquirida à custa de outras dificuldades. Em termos teóricos, tende ao positivismo e ao idealismo, ou a uma incômoda inter-relação entre ambos. Em termos práticos, encontra-se presa a duas coisas: à sua aparente arbitrariedade na escolha de amostras supostamente normativas e às dificuldades de extrair, à luz do primeiro século, com todas as suas armadilhas culturais, uma imagem desse cristianismo supostamente normativo — uma imagem não apenas adequada, mas também transponível, para ser aplicada a outras culturas e épocas. [ 34 ] Se o projeto histórico deseja ser bem-sucedido, mesmo em seus próprios termos, deve, então, ampliar seus horizontes. 4. “Teologia do Novo Testamento” O segundo modelo que devemos explorar é o da teologia do Novo Testamento propriamente dito. A expressão passou a designar, em maior ou menor grau, a tentativa de ler o Novo Testamento de um ponto de vista histórico e, ao mesmo tempo, reunir suas principais ênfases teológicas em uma declaração coerente, capaz de ser transmitida às gerações subsequentes, inclusive à nossa própria geração. [ 35 ] Quanto aos dois aspectos desse termo ambíguo — a saber, “teologia do Novo Testamento” —, precisamos dizer algumas coisas preliminares. [ 36 ] O primeiro aspecto, a descrição da teologia do Novo Testamento, forma, obviamente, o subconjunto de uma categoria que acabamos de examinar: a teologia do Novo Testamento faz parte da teologia do cristianismo primitivo, o qual, por sua vez, integra a história geral do cristianismo primitivo. Não podemos confundir um elemento com o outro, conforme costumamos fazer. Além disso, não pode haver uma garantia prévia, a menos que adotemos uma postura irrefletida a priori, de que as teologias dos diferentes escritores serão as mesmas; de fato, boa parte dos escritos recentes tem-se dedicado à demonstração de que elas não são. Assim, é necessário haver alguma precisão no uso dessa expressão. O segundo aspecto (com o qual o mundo moderno poderá ser abordado) é mais complexo, trazendo-nos, naturalmente, para a esfera a que nos referimos, de forma comum e espantosa, como “hermenêutica”. [ 37 ] Antes de tudo, precisamos olhar para as raízes da questão. De onde surgiu a ideia de que, ao estudarmos o Novo Testamento, estamos ouvindo algo da parte do nosso deus? Essa fé nasce da convicção cristã antiga e inabalável de que ser cristão significa, entre outras coisas, viver, crer e caminhar em uma espécie de continuidade, em tese demonstrável, com o Novo Testamento (e, portanto, com o Antigo Testamento também, embora isso sempre gere outras dificuldades, que não serão abordadas neste livro). Essa convicção ganhou impulso adicional como resultado da Reforma Protestante, quando o princípio sola scriptura foi articulado, posicionando a Bíblia (e pelo menos o Novo Testamento) na classificação de autoridade suprema. O pensamento defendido desde o início do protestantismo é este: de que o ponto de partida do cristão é a leitura do Novo Testamento, a partir da qual ele será equipado, desafiado e fortalecido, recebendo as bases de sua vida e de sua fé. A ênfase particular que passou a significar a atual expressão “teologia do Novo Testamento” foi a insistência protestante no sentido literal ou histórico das escrituras como árbitro do significado do texto e, portanto, como veículo de sua autoridade. Tal princípio, articulado originalmente como meio de manter distantes as fantasias alegóricas, deixou problemas residuais nas igrejas que adotaram a Reforma, que lutavam com o sentido literal do texto e com sua aplicação autoritativa. Os mesmos problemas acabaram aparecendo, na nova situação apresentada pelo Iluminismo, com o movimento histórico-crítico. Insistiu-se novamente no sentido literal, mas com dois resultados possíveis. No primeiro, seria possível demonstrar que o sentido histórico das escrituras era de fato falso, questionando-se a veracidade do cristianismo como um todo. No segundo, seria possível explorar o significado histórico a fim de abstrair princípios de verdades teológicas atemporais, na esperança de se renovarem áreas da vida contemporânea que o sentido literal seria incapaz de alcançar. Foram as tensões implícitas nessa situação que deram origem aos debates dos séculos 19 e 20 sobre a teologia do Novo Testamento. A exegese histórica forneceria à igreja material para sua proclamação, ou problemas que essa proclamação teria de contornar ou com os quais teria de lidar? Como as leituras histórica e normativa poderiam ser combinadas? Em outras palavras, a “teologia do Novo Testamento” é, em seu sentido combinado, uma proposição viável? Duas maneiras de viabilizá-la, e que foram exploradas, revelaram-se, no fim das contas, insatisfatórias. A primeira, que reúne pensadores de Lessing (século 18) a Bultmann (século 20), segue a linha indicada há pouco: a de fazer o trabalho histórico com o objetivo de se mover para além dele, para uma verdade definitiva, para além do tempo e do espaço, completamente fora da história. O resultado, então, é uma mensagem atemporal, uma verdade atemporal ou um apelo atemporal à decisão. Segundo essa abordagem, é isso que podemos utilizar hoje. Tal “teologia atemporal” é, assim, o objeto real da busca histórica. Ao descobrirmos as crenças dos escritores do Novo Testamento, podemos, como arqueólogos teológicos, descobrir a subestrutura essencial do cristianismo a fim de executá-lo e exibi-lo em outro lugar, disponibilizando-o a todas as gerações, em uma espécie de museu. A “teologia” torna-se a coisa “real” à qual o Novo Testamento se refere, o verdadeiro fruto que surge quando a camada externa das circunstâncias históricas é removida. Isso, em geral, é afirmado em termos de aspectos “verdadeiramente eternos” e “culturalmente condicionados”. O problema com esse programa é que a camada externa não se desprende de maneira tão clara. É muito difícil produzir uma “teologia” do Novo Testamento que se enquadre em categorias “atemporais”; e, se conseguirmos fazê-lo, podemos suspeitar, justificadamente, que boa parte do fruto foi jogada fora, aderindo-se ainda à casca descartada. Todo o Novo Testamento é “culturalmente condicionado”: se isso desqualifica uma ideia ou um tema para atingir “relevância” em relação a outros períodos ou culturas, o Novo Testamento como um todo está desqualificado. Dois resultados desse método, nos estudos do século 20, foram: (1) demitologização: a tentativa de se afastar das formas de discurso e pensamento específicas da cultura do primeiro século, de que a mensagem ou o chamado atemporal se revestiram; e (2) crítica da forma: os meios de analisar o material que, a princípio, oferece narrativas históricas sobre Jesus, de modo a permitir que ele revele a (suposta) fé “atemporal” da igreja primitiva. Ambos os movimentos têm raízes culturais e teológicas, nãoapenas nos movimentos críticos modernos, mas também nas formas pietistas pré-modernas de ler as escrituras, extraindo uma “mensagem” de passagens cujo sentido literal não é necessariamente oferecido. Todo o processo remonta, em última análise, à exegese alegórica dos pais da igreja. [ 38 ] Aqui está uma grande ironia enraizada na ideologia de Bultmann, que nasce da teologia protestante, insistindo em uma mensagem que rompe com a aparente camisa de força imposta pela história e pela lei, oferecendo perdão gratuito, graça, um novo começo. Ao fazê- lo, ainda enfatiza o sentido literal das escrituras, pelo menos em relação aos evangelhos — mas apenas para insistir em que o sentido literal deve ser transcendido para que a verdadeira voz das escrituras seja ouvida. Os evangelhos são, na verdade, “sobre” a fé cristã em Jesus, e não sobre o próprio Jesus. Podemos relativizar os acontecimentos em si: notoriamente, até Jesus pode tornar-se simplesmente um dos primeiros pregadores da mensagem atemporal, tendo sua morte como um acontecimento simples, o qual, de uma forma ou de outra, desencadeou a fé primitiva da igreja, aquela “experiência” primitiva que, como expresso nos escritos do Novo Testamento, tornou-se o fenômeno realmente normativo. [ 39 ] Essa proposta está sujeita às críticas prejudiciais que não deram à história, nem à criação, peso suficiente para que fossem levadas a sério na leitura do Novo Testamento, em que ambas demonstram ser de enorme importância. O primeiro modelo, movendo-se da história para a verdade atemporal, traz consigo grandes problemas e não pode mais ser afirmado sem sérias dificuldades. O segundo modelo foi proposto pela escola da “teologia bíblica” das décadas de 1950 e 1960. [ 40 ] Em termos filosóficos, essa escola se opôs ao idealismo de Bultmann com uma espécie de realismo. O Novo Testamento recebe autoridade não por dar testemunho de uma verdade atemporal, mas por testemunhar os atos poderosos do deus criador na história, especialmente nos eventos relativos a Jesus. O texto é, então, revelador e, portanto, autoritativo, visto testemunhar a “coisa real” — ou seja, dar testemunho do(s) acontecimento(s). O modelo pode ser combinado com a visão da história da igreja. Nela, a igreja é vista como iniciando-se em um período “puro” e, portanto, com algumas das maneiras pelas quais, como vimos, o estudo da história cristã primitiva pode ser usado em um programa normativo. Mas isso, por sua vez, parece não fazer jus à insistência protestante no próprio texto como revelação divina. O modelo também não consegue destacar os acontecimentos que devem contar como revelação, tampouco dar uma explicação teológica clara sobre como essa revelação deve ser concebida. Outro problema em relação aos dois modelos é causado pela diversidade do material. A fim de produzir uma declaração “normativa” fora do Novo Testamento, é praticamente inevitável que alguém enfatize uma parte do texto à custa do restante. Isso funciona, em termos tanto acadêmicos como populares, por meio da elevação de certas partes da teologia do Novo Testamento — a teologia de Paulo, por exemplo — em um “cânone dentro do cânone”. Tal método é normalmente justificado pelo apelo ao princípio de que as partes mais difíceis da Bíblia devem ser interpretadas à luz das mais fáceis. É notável constatar por quanto tempo esse “princípio” perdurou, considerando o subjetivismo flagrante que ele contém. [ 41 ] Naturalmente, o que é “mais fácil” ou “mais difícil” variará consideravelmente de uma geração para outra, de um cenário cultural para outro: observe, por exemplo, a diversidade de explicações “apocalípticas” em nosso próprio tempo. [ 42 ] Isso não quer dizer que não se deve trabalhar com algum tipo de cânone interno: todos os intérpretes o fazem, quer admitam, quer não, pois todos chegam ao texto com um conjunto de perguntas que dão início ao processo de interpretação. Então, a questão é: o que devemos fazer com esse ponto de partida? Devemos usá-lo simplesmente como ponte de acesso ao material, mantendo-nos conscientes de nossas tendências implícitas? Ou devemos usá-lo como uma espécie de leito de Procusto, com o qual podemos medir, e condenar, trechos que não se encaixam em nossa perspectiva? Teoricamente, a primeira alternativa é possível; a segunda, porém, é bastante tentadora. O maior problema enfrentado pelo projeto “teologia do Novo Testamento”, particularmente no paradigma oferecido por Bultmann e suas variantes, é o que fazer com Jesus. A “teologia do Novo Testamento”, estritamente falando, não inclui o ensino (ou os fatos de vida, morte e ressurreição) de Jesus, mas apenas a fé dos escritores do Novo Testamento sobre Jesus (ou talvez as supostas crenças mitologicamente expressas em termos de histórias de Jesus). É a estranha nêmese do princípio protestante sola scriptura o fato de um dos modelos básicos por ele suscitados ter pouco espaço, em sua estrutura hermenêutica ou sistema de autoridade, para o próprio Jesus, visto que ele mesmo não foi o autor de nenhum livro do Novo Testamento. Segundo esse ponto de vista, Bultmann estava perfeitamente correto em sua famosa frase de abertura de sua New Testament Theology [Teologia do Novo Testamento]: [ 43 ] “A mensagem de Jesus é o pressuposto para a teologia do Novo Testamento, e não parte dessa teologia em si”. Nessa afirmação, vemos a linha que vai de Melanchthon a Bultmann e além: uma vez que captamos o pro me do evangelho, a ideia de que Deus está “sendo gracioso para comigo”, não precisamos mais de Jesus tão firmemente enraizado na história. [ 44 ] Mas as críticas ao cristianismo, apresentadas por Reimarus e outros — sem mencionar as artimanhas revisionistas de muitos escritores judeus de nosso tempo —, não se satisfarão com uma retirada da história, exemplificada por Kähler, Bultmann e Tillich. Tampouco o problema de como Jesus é retratado por acadêmicos modernos, como Sanders, evaporará. Se Jesus foi como Reimarus, Schweitzer ou Sanders demonstraram, então a igreja precisa, no mínimo, de uma revisão substancial de sua fé. Além do mais, como veremos na Parte IV, há algo particularmente estranho na ideia de posicionar a “teologia do Novo Testamento” como norma contra o próprio Jesus, como foi feito notoriamente por Bultmann. É verdade que o Novo Testamento nos apresenta a teologia de Paulo, Marcos, Lucas etc. sobre Jesus, de modo que as crenças teológicas do próprio Jesus não podem ser interpretadas na superfície do texto. Alguns diriam que o Jesus real sequer pode ser redescoberto, por estar agora tão sobrecarregado com a teologia dos evangelistas; outros diriam que ele não deveria ser procurado, visto que procurar por Jesus à luz dos evangelistas é buscar a construção feita por um historiador (ou outra figura “ideal”) em vez do Senhor, a quem os primeiros cristãos adoravam e seguiam. Mas até mesmo falar assim sugere que os escritores do Novo Testamento não pensavam em estabelecer, por meio de seus próprios escritos, uma autoridade em oposição à de Jesus. Tem sido comum dizer que os escritores do Novo Testamento “não pensavam em si mesmos produzindo a “escritura”; e, ainda que, conforme veremos, tal formulação deva ser revisada, principalmente à luz da recém-estabelecida crítica da redação, a alegação é certamente verdadeira no seguinte sentido: para os apóstolos e os primeiros cristãos, o lugar no qual o deus de Israel agiu definitivamente para a salvação do mundo não jazia na pena e na tinta com que escreveram os evangelhos, mas no fato de seu deus se haver revestido de carne e sangue para morrer em uma cruz. O trabalho desses escritores foi concebido como algo derivado desse fato e dependente dele. Assim, embora seja verdade que Jesus e seu sistema pessoal de crenças não integram, estritamente falando, “a teologia do Novo Testamento”, isso não quer dizer que Jesus e sua proclamação devam ser relativizados em favor da “coisa real”, ou seja, da teologia do Novo Testamento. [ 45 ] Em detrimento da “teologia do Novo Testamento”, poderíamos dizer ainda mais: seela não contém a proclamação definitiva de Jesus, não pode ser, ela mesma, o todo e o fim da revelação divina, o lócus supremo da autoridade, a “coisa” que todo o estudo do Novo Testamento está inclinado a encontrar. Se o projeto da “teologia do Novo Testamento” é tão cheio de problemas como aqueles que mencionei, por que alguém desejaria prosseguir com ele? Por que nos esforçamos freneticamente, tanto no trabalho popular como no acadêmico, para localizar, destilar, salvar e até mesmo inventar algo novo, capaz de ainda ser chamado de “teologia do Novo Testamento” e ter alguma utilidade para cursos acadêmicos como ponto de partida da vida eclesiástica, da pregação, de missões e do evangelismo? A resposta, acredito, é tríplice. Primeiro: o setor teológico em que essa tarefa tem sido realizada com maior urgência é o protestantismo; e os protestantes ainda consideram o Novo Testamento, em um ou outro sentido, a “verdadeira” autoridade para os cristãos. Segundo: o contexto filosófico de grande parte desse trabalho tem sido o idealismo, contentando-se muito mais com ideias abstratas do que com a história concreta; dessa forma, a teologia, vista como um conjunto de ideias abstratas, atinge um status privilegiado. Se o Novo Testamento é “autoritativo”, sua autoridade jaz na teologia que ele contém. Terceiro: o contexto prático da “teologia do Novo Testamento” tem sido a tarefa percebida pela igreja de dirigir a si mesma e ao mundo em geral com uma palavra do deus verdadeiro. Acredita-se que a “teologia do Novo Testamento” impulsiona a pregação. Os problemas com os quais esse modelo deparou levaram alguns a objetar que não passava de tolice procurar por autoridade, coerência ou até mesmo relevância no Novo Testamento; que o estudo histórico- objetivo deve renunciar a todo e qualquer a priori; ou que o projeto simplesmente retorna ao que foi articulado por Wrede e, mais recentemente, por Räisänen (descrição “objetiva” de escritos religiosos em seu contexto histórico). Isso levou outros a tentarem reafirmar uma forma de continuar fazendo algo que pode ser chamado de “teologia do Novo Testamento”, que ainda é capaz de se apegar à descrição e à prescrição, e entrelaçar as duas linhas ao longo do Novo Testamento — ou pelo menos no caso de algumas de suas supostas “principais testemunhas”. Suponho, entretanto, que o caminho certo para sair dessa confusão não seja por um retorno anterior a Wrede (Räisänen), nem por uma expansão lateral, ou seja, para um pós-modernismo de Bultmann (Morgan), mas, sim, para uma categoria mais ampla, com uma nova perspectiva de “autoridade”, “teologia” e “relevância”. Em qualquer projeto cristão tradicional — evocado aqui não como um a priori para resolver questões históricas, mas como fundamento necessário para demonstrar como os julgamentos cristãos tradicionais realmente funcionam —, toda autoridade pertence, em última análise, ao deus criador; e se (como o cristianismo tradicional continua a afirmar) esse deus se faz conhecido de forma suprema em Jesus, então Jesus também tem uma autoridade superior à de todos que escreveram a seu respeito. Muitos, claro, supõem que isso se trata de uma antítese falsa, visto que o que sabemos a respeito de Jesus provém exatamente desses escritos. Mas o mesmo problema é encontrado na linha principal da “teologia do Novo Testamento”, segundo a qual, como vimos, o fato de os evangelhos não nos darem acesso direto a Jesus, mas apenas à teologia dos evangelistas e de seus antecessores, é axiomático. Se toda autoridade pertence ao deus criador, trata-se de uma questão delicada descrever como tal “autoridade” passa a ser investida no Novo Testamento, e quais são os limites desse processo. As três abordagens que examinamos até agora (história cristã primitiva e as duas formas distintas da “teologia do Novo Testamento”) continuaram a ser seguidas na guilda da erudição do Novo Testamento. Boa parte da “ciência normal” dos estudos do Novo Testamento (para usar a terminologia de Kuhn) [ 46 ] preencheu os paradigmas representados pelo plano ideológico de Wrede, a “teologia do Novo Testamento” de Bultmann e os vestígios do movimento da “teologia bíblica”. Afinal, são grandes linhas ideológicas como essas que conferem significado e propósito, além de senso de expectativa, às atividades detalhadas dos eruditos bíblicos, em comentários, artigos e monografias. Surgiu, da sede histórica do Iluminismo, a busca por Jesus, produzindo questões intermináveis, mas também possibilidades, tanto para os estudiosos como para a igreja. Da sede de Bultmann pela teologia do Novo Testamento, surgiram, entre outras coisas, grandes estudos da teologia paulina e as principais reconsiderações das tradições do evangelho. Do movimento da “teologia bíblica” pós-guerra, surgiram, entre outras coisas, ensaios sobre a “história da salvação”. Novos planos ideológicos entraram em jogo, principalmente o desejo pós-guerra de libertar o cristianismo e o Novo Testamento da suspeita de cumplicidade no Holocausto (ou, alternativamente, culpá-los por esse acontecimento). Em todas as frentes, não houve escassez de atividades. É desse leque de questões interligadas que o presente capítulo e, de fato, os presentes volumes se ocupam — segundo espero, com algumas propostas novas e positivas. Devemos fazer tanto história como teologia: mas como? Em última análise, este projeto faz parte da tarefa mais ampla — que, acredito, posiciona-se frente à cultura ocidental moderna e em sua totalidade, e não apenas a teólogos ou cristãos — de tentar repensar uma visão de mundo fundamental em face do colapso interno da perspectiva que dominou o mundo ocidental nos últimos duzentos anos. E é precisamente uma das características da visão de mundo agora sob ataque de que “história” e “teologia” pertencem a compartimentos separados. Agora, o desafio se apresenta diante de nós: articular novas categorias que farão jus ao material relevante, sem esse dualismo prejudicial e, obviamente, sem trapacear, coletando dados em um monismo segundo o qual um “lado” simplesmente reaparece no outro. Esse desafio é enfrentado em todas as áreas, das quais o estudo do Novo Testamento constitui apenas uma. No entanto, antes de prosseguirmos com este projeto, devemos examinar brevemente o terceiro elemento no estudo do Novo Testamento. Se desejamos ser historiadores e teólogos, também devemos ser críticos literários. 5. Crítica literária Ainda há alguns estudiosos do Novo Testamento para quem a expressão “crítica literária” significa a aplicação, ao Novo Testamento, de questões e métodos críticos que se tornaram famosos na primeira metade do século 20. As críticas da fonte, da forma e da redação eram a ordem do dia; e alguns desejavam que tudo continuasse assim. Uma boa parte dos estudos especializados do Novo Testamento tem-se preocupado com essas coisas e com a análise histórica da intenção dos escritores ou transmissores do material que, agora, encontramos no Novo Testamento. Tal mundo, porém, tornou-se irreconhecível nos últimos anos. O surgimento das críticas literárias pós-modernas (cf. cap. 3) fez com que as disciplinas essencialmente modernistas — de investigar a comunidade primitiva que transmitia tradições, de tentar descobrir fontes literárias complexas, de desvendar o que exatamente os evangelistas faziam com essas fontes — soassem, decididamente, como algo do passado. A nova ênfase nos estudos do evangelho não está tanto no evangelista criativo, mas no texto em si. O estudo da fenomenologia da leitura, assim como sua aplicação ao que acontece quando o leitor de hoje lê o Novo Testamento, é um campo cada vez mais popular. [ 47 ] Recentemente, argumentou-se que, como a crítica histórica não parece ter produzido tudo o que os críticos estavam procurando, um passo lateral, rumo ao mundo da crítica literária (pós-moderna), talvez ajudasse. Já que estamos apenas observando a forma como o leitor se apropria das coisas para si, talvez esse processo produza uma leitura nova e satisfatória do Novo Testamento. [ 48 ]A abordagem fornece, na prática, uma nova maneira de ser bultmanniano. Em vez de fazer história para descobrir verdades eternas, estudaremos a leitura (bíblica) para receber mensagens que transcendem o tempo e o espaço. Trata-se de uma tentativa de realizar, na pós-modernidade, aquilo que, na modernidade, o pacote de Bultmann não foi capaz de fazer. Como tal, a proposta se afasta do positivismo estéril de Wrede e Räisänen, e abre possibilidades para explicar como os textos podem falar mais uma vez em situações diferentes das vivenciadas originalmente. Em particular, diferentemente das fontes clássicas adotadas pela teologia bultmanniana, esse método tem a vantagem inestimável de partir do conhecido (o texto) em vez do desconhecido (o cristianismo primitivo, da forma como pode ser reconstruído a partir das entrelinhas do Novo Testamento). Entretanto, a proposta defronta-se ainda com questões sérias. Não está claro, a partir do modelo, por que alguém deveria ler o Novo Testamento para alcançar esse efeito. Por que não deveríamos ler, como algo de igual valor, o Evangelho segundo Tomé ou a Ética dos Pais [Pirkei Avot] — ou até mesmo Orgulho e preconceito? Da mesma forma, não está claro o status contínuo que o modelo confere à história, nem o porquê de alguém, em seus próprios termos, ter de se concentrar especificamente em literatura. Por que não na arte e nos artefatos cristãos primitivos? Será que a literatura é obviamente mais acessível ao estudo pós-moderno? Ou que o obscurecimento de toda a área por um texto complexo — o Novo Testamento — induz-nos a pensar que toda a tarefa pode ser realizada em termos de textos? Particularmente, ainda não está claro onde Jesus se encaixaria nessa leitura. Será que nos basta dizer que, ao lermos as parábolas, deparamos, a despeito dos diversos graus de separação que nos distanciam delas, com uma versão oral das próprias obras de arte de Jesus? Como esse método evita a propensão ao subjetivismo? Retornaremos a essas questões no capítulo 3. Paralelamente à mudança pós-moderna na ênfase para o estudo orientado ao leitor, o estudo histórico da literatura em seu contexto original teve continuidade. Contudo, passou a procurar por fenômenos bastante diferentes de seus antecessores. Finalmente, os especialistas bíblicos estão seguindo seus colegas clássicos ao abandonarem a busca interminável e torturante por fontes rigorosamente reconstruídas. [ 49 ] Vimos, recentemente, uma série de estudos sobre convenções e antigas formas retóricas e literárias, além de uma insistência em que a pesquisa do Novo Testamento se desse conta deles. [ 50 ] Trata-se, em certa medida, de simplesmente preencher uma nova lacuna no programa elaborado por Wrede, tentando posicionar os documentos do Novo Testamento no mapa histórico de sua época. Ao mesmo tempo, funciona como uma tentativa de avaliar a provável recepção dos escritos em suas próprias comunidades, algo que, na prática, serve como uma análise modernista (histórica) de um fenômeno pós-moderno. Por tempo demais, os eruditos presumiram que os leitores de (digamos) Paulo ou Mateus se assemelhavam muito aos modernos, de modo que algo que nos parece difícil provavelmente lhes pareceu difícil também. O estudo das antigas convenções de retórica e escrita expõe essa espécie de anacronismo maciço pelo que é; como tal, é muito bem-vindo. Embora não seja, por si só, uma forma plena de ler o Novo Testamento, pode dar uma grande contribuição à tarefa em geral. 6. A tarefa reformulada Agora, examinaremos brevemente os principais componentes da tarefa de ler o Novo Testamento à luz de algumas discussões modernas e da direção em que apontam. Para tanto, precisamos de uma síntese criativa de todos eles. Devemos tentar combinar a ênfase pré-moderna no texto como, em certo sentido, autoritativo; a ênfase moderna no texto (e no próprio cristianismo) como irredutivelmente integrado à história e envolvido com a teologia; e a ênfase pós- moderna na leitura do texto. Dito de outra forma, precisamos fazer jus, simultaneamente, à ênfase de Wrede na seriedade histórica (incluindo a história de Jesus), à ênfase de Bultmann na teologia normativa e à ênfase pós-moderna no texto e em seus leitores. Evidentemente, cada uma delas está inclinada a reivindicar direitos exclusivos e a se ressentir de compartilhar o território que considera seu. Mas é preciso resistir a tais reivindicações grandiosas. [ 51 ] Parece-nos improvável encontrar esse trajeto adiante pela rota do positivismo (cf. cap. 2), pela busca de verdades eternas ou simplesmente concentrando-nos em nossa leitura agora. Sugiro que a única maneira de unirmos o que deve ser unido é por meio de um novo exame de como se assemelharia um projeto literário, histórico e teológico cristão contemporâneo. Esse é o objetivo da Parte II. No decorrer deste trabalho, contaremos algumas histórias sobre como essas tarefas são executadas, algo que, espero, subverterá algumas das histórias contadas a seu respeito em outros lugares. Não permitir essa possibilidade seria fechar antecipadamente o leque de respostas históricas e teológicas concebíveis, de uma forma um tanto inaceitável. No mundo contemporâneo, com todas as suas incertezas sobre o controle de paradigmas, temos a chance de abordar essas tarefas de novas maneiras. Esperamos que isso contribua não apenas para a edificação particular ou para a satisfação acadêmica — ainda que, de forma ideal, ambas devam ser atendidas en route —, mas também para projetos mais amplos, incluindo o avanço do “reino de deus”. Isso, no entanto, está um pouco à frente do argumento. À luz da Parte II, precisamos defender algumas hipóteses sobre a situação histórica na qual os escritos do Novo Testamento nasceram. Isso envolverá uma reconstrução histórica do judaísmo e do cristianismo do primeiro século. Sabemos muito mais sobre o judaísmo antigo do que antes, de modo que recorrerei a esse novo conhecimento, de forma um tanto detalhada, na Parte III. A tentativa de reconstrução da história da igreja primitiva foi muito menor, e a falta de material resultou em certa dose de fantasia. Nossa tarefa específica, a de descrever o cristianismo entre 30 e 150 d.C., sem discutir Jesus ou Paulo, é um tanto artificial — como seria discutir música europeia de 1750 a 1850 sem mencionar Mozart e Beethoven. Por pelo menos duas razões, porém, a tentativa deve ser levada a cabo. A primeira é a relevância de estabelecer, o mais claramente possível, o contexto histórico no qual os dois principais protagonistas, Jesus e Paulo, podem ser estudados. A segunda é que praticamente todas as nossas informações sobre Jesus vêm na forma de documentos nos quais encontramos tradições transmitidas e, com o tempo, escritas por cristãos — alguns dos quais viveram naquele período inicial e tratavam de suas necessidades particulares. Dessa forma, devemos entender algo sobre a própria igreja primitiva para podermos ler os evangelhos com a devida sensibilidade e o necessário cuidado histórico. Esse é o assunto da Parte IV, o qual nos permitirá avançar, na Parte V, para uma reafirmação preliminar de alguns pontos-chave. Evidentemente, há uma inevitável circularidade aqui; mas, como mostrarei na Parte II, não é, de forma alguma, um círculo vicioso. Trata-se da circularidade necessária de toda a reconstrução histórica e até mesmo epistemológica, séria. O trabalho estabelecerá o contexto para os volumes subsequentes, que abordarão Jesus, Paulo e os evangelhos. Nas últimas décadas, cada área demonstrou diferentes ondas de estudo e interesse; mas elas não foram integradas, quer histórica, quer teologicamente. Ao tentar empreender essa grande tarefa, escrevo algo como “teologias do Novo Testamento”, que repetidas vezes foram escritas. No entanto, também estou ciente, conforme já argumentei, das diferenças entre as formulações clássicas desse modelo e o modo como concebo tanto essa tarefa como seu objetivo. Este primeiro volume, portanto, introduz, até certo ponto, todo o projeto em questão; em outros aspectos, porém,ele se autossustenta. Defende uma maneira particular de fazer história, teologia e estudos literários em relação às questões do primeiro século; defende uma maneira particular de entender o judaísmo e o cristianismo do primeiro século; e oferece uma discussão preliminar do significado da palavra “deus” nas formas de pensamento desses grupos, bem como as maneiras pelas quais esse estudo histórico e teológico pode mostrar-se relevante para o mundo moderno. E se essas tarefas são, de certa forma, simplesmente preliminares ao trabalho de entrar e tomar posse da terra prometida em si, não se trata, então, de algo ruim. Se os lavradores tivessem ouvido as instruções do proprietário, não haveria disputas sobre a vinha. Se os filhos de Israel tivessem prestado atenção às advertências feitas em Deuteronômio, haveria mais leite e mel, e menos miséria e injustiça, quando, finalmente, atravessaram o Jordão. PARTE II FERRAMENTAS PARA A TAREFA CAPÍTULO 2 CONHECIMENTO: PROBLEMAS E VARIAÇÕES INTRODUÇÃO Vimos que o estudo do Novo Testamento envolve três disciplinas em particular: literatura, história e teologia. Encontram-se, por assim dizer, entre os exércitos que usam o Novo Testamento como campo de batalha. Muitos dos debates que ocuparam eruditos ao longo de sua travessia pelo terreno dos evangelhos e das cartas não foram tanto a exegese detalhada de uma ou outra passagem, mas as questões mais amplas sobre o rumo de determinada perspectiva histórica ou teológica, e quais partes do território poderiam ser anexadas com uma reivindicação de lealdade justificada. Dessa maneira, é inevitável — embora alguns acreditem ser lamentável — que passemos um tempo nesse estágio, vendo como são esses grandes problemas e desenvolvendo uma ideia das opções entre eles. Até que o façamos, estudar sobre Jesus, Paulo e os evangelhos dará continuidade, em grande medida, à projeção de uma metafísica não discutida: se não explorarmos os pressupostos, poderemos antecipar um debate sem-fim e infrutífero. Aqueles que estão ávidos para continuar com o que consideram o assunto em si são, naturalmente, convidados a pular esta seção; mas não devem preocupar-se se, ao fazê-lo, enfrentarem algumas perplexidades posteriormente. Eles sempre poderão voltar ao tópico discutido neste capítulo. A lógica interna desta parte do livro é a percepção de que todos os problemas que encontramos no estudo da literatura, da história e da teologia estão interligados. Cada qual reflete, segundo sua área, o problema do conhecimento em si. Isso não é novidade, mas merece ser ressaltado; afinal, resolver os problemas por etapas, sem reconhecer suas amplas semelhanças, seria privar toda a discussão de seu senso de direção. Portanto, a melhor coisa é lidarmos com os assuntos mais amplos antes de mergulharmos nas especificidades de cada questão particular. Enfrentar tais questões é ainda mais necessário do que antes. Atualmente, as ciências humanas encontram-se em um estado de crise, por sinal muito observado e discutido. O ponto de vista dominante dos últimos duzentos anos, associado particularmente ao Iluminismo, encontra-se em estado de desordem há algum tempo; e seu suposto “modernismo” está sendo gradativamente ultrapassado pelo que rotulamos, de modo um tanto infeliz, como “pós- modernismo”. [ 52 ] Antigas certezas deram lugar a novas incertezas; por isso, é vital que um projeto como este mostre, desde o início, em que pontos se fundamenta em relação às questões básicas de método. Aqui, não será possível argumentar longamente sobre o ponto de vista que proponho adotar. Isso exigiria um livro inteiro dedicado ao assunto; e, de qualquer maneira, a verdadeira prova da qualidade do pudim está em comê-lo — ou seja, na capacidade de o método adotado dar mais sentido ao assunto quando o abordamos. [ 53 ] Pretendo, de qualquer maneira, retornar a essas questões no volume final deste projeto. O argumento básico que defenderei nesta parte do livro é que o problema do conhecimento em si — assim como os três ramos que dele se originam e constituem o foco de nossa atenção — pode ser esclarecido quando visto à luz de uma análise detalhada das cosmovisões que formam as lentes através das quais os seres humanos, individual e coletivamente, percebem a realidade. Particularmente, uma das características-chave de todas as visões de mundo é o aspecto da narrativa. Isso é de vital importância, principalmente em relação ao Novo Testamento e ao início do cristianismo, porém compõe, na verdade, o sintoma de um fenômeno universal. As “narrativas”, conforme defenderei, ajudam-nos a articular uma epistemologia crítico-realista, podendo, então, servir a usos mais amplos no estudo da literatura, da história e da teologia. [ 54 ] RUMO AO REALISMO CRÍTICO A posição que esboçarei brevemente aqui é aquela que ficou conhecida, em termos amplos, como realismo crítico. [ 55 ] Trata-se de uma teoria epistemológica e parece oferecer um caminho para avançar, em contraste com as teorias concorrentes que se configuram em diversas áreas (principalmente nas três com as quais estamos particularmente preocupados) e que atualmente entraram, ao que tudo indica, em estado de colapso. Para vermos isso com mais clareza, precisamos de um relato breve e abrangente dessas teorias rivais, que são, mais ou menos, versões otimistas e pessimistas do projeto epistemológico do Iluminismo, ou seja, de um empirismo mais amplo. Nesse estágio, os termos técnicos que empregarei são deliberadamente gerais e obviamente bastante controversos; mas espero conseguir formular um esboço claro dessas ideias. Por um lado, temos o otimismo da posição positivista. [ 56 ] O positivista acredita que há certas coisas sobre as quais podemos ter um conhecimento definido. Algumas coisas são simples e “objetivamente” verdadeiras — ou seja, há coisas sobre as quais podemos ter, e realmente temos, um conhecimento sólido e inquestionável. São coisas que podem ser “empiricamente” testadas no mundo físico, ou seja, observando-se, medindo-se etc. Levando essa ideia à sua conclusão lógica, coisas que não podem ser testadas dessa maneira não podem ser expressas sem denotar algum tipo de absurdidade. [ 57 ] Embora esse ponto de vista tenha sido amplamente abandonado por filósofos, tem persistido em outras esferas, principalmente a das ciências físicas. Apesar dos grandes avanços no conceito de autopercepção que vieram (por exemplo) da sociologia do conhecimento, sem contar a própria filosofia da ciência, ainda encontramos alguns cientistas (e muitos não cientistas) que dizem que a ciência simplesmente tem um olhar objetivo para as coisas que existem. [ 58 ] O contrário dessa crença é a de que, nas esferas em que o positivismo não consegue expressar suas certezas estridentes, tudo o que resta é subjetividade ou relatividade. O fenômeno contemporâneo muito discutido do relativismo cultural e teológico é, nesse sentido, simplesmente o lado sombrio do positivismo. Assim, as pessoas presumem, dentro do mundo positivista do pós-Iluminismo, que sabem das coisas “da forma certa”. No que muitos consideram uma pequena dose de senso comum, essa posição pode ser chamada de “realismo ingênuo”. Ilusões óticas e outras similares são tidas por aberrações, afastando-se da norma — segundo a qual os seres humanos, com os devidos controles científicos disponíveis, têm acesso instantâneo a dados brutos acerca dos quais podem simplesmente fazer proposições verdadeiras, com base em experiências sensoriais. Visto ser evidente que nem todo conhecimento humano pertence a essa categoria, os tipos de conhecimento que quebram o padrão são rebaixados: classicamente, no positivismo do século 20, a metafísica e a teologia entram nessa marginalização. Como elas não admitem verificação, tornam-se crenças, não conhecimento (como sugerido por Platão há muito tempo), passando, então, a crenças incoerentes e desprovidas de sentido (como argumenta Ayer). Estética e ética são reduzidas às funções experimentais de uma ou mais pessoas: “belo” e “bom” simplesmentesignificam “eu gosto disso” ou “nós aprovamos aquilo”. Desse modo, o positivismo consegue resgatar certos tipos de conhecimento, mas em detrimento de outros. Para o positivismo, há algumas coisas para as quais temos (em tese) uma perspectiva completamente objetiva e transparente, enquanto, para outras, uma visão preconceituosa e caprichosa. O fato de o positivismo haver sido submetido a críticas duras nas últimas décadas, sendo drasticamente modificado até mesmo por seus defensores (incluindo o próprio Ayer), não o impediu de continuar exercendo influência em nível popular, esfera na qual atua em consonância com a perspectiva ocidental predominante. Nela, o conhecimento científico e o controle tecnológico têm valor preeminente, enquanto valores e sistemas de crenças intangíveis da sociedade humana são relativizados. Encontramo-lo entre teólogos ingênuos, que reclamam que, enquanto outras pessoas têm “pressuposições”, os teólogos simplesmente leem o texto de uma forma direta, já que ninguém pode ter “acesso direto” aos “fatos” sobre Jesus; assim, tudo o que nos resta é um pântano de fantasias do primeiro século. E vamos deparar com muitos argumentos semelhantes à medida que prosseguimos. [ 59 ] A história vê-se presa entre dois polos: trata-se de um conhecimento “objetivo” ou tudo realmente não passa de “subjetivismo”? Ou seria o caso de uma falsa dicotomia? [ 60 ] Que tipo de conhecimento temos sobre acontecimentos históricos? Por um lado, o conhecimento histórico está sujeito às mesmas ressalvas que todo conhecimento em geral. É possível estar enganado. Posso pensar que estou segurando um livro quando, na verdade, é um pedaço de madeira; posso pensar que César atravessou o Rubicão, mas pode ter sido outro rio; posso pensar que Paulo fundou a igreja de Filipos, mas é concebível que alguém tenha chegado lá primeiro. Quando, então, as pessoas falam ansiosamente sobre em que medida há “prova real” para esse ou aquele “acontecimento” histórico, geralmente concluindo que não existe, é provável que estejam perigosamente próximas da fronteira “ou uma coisa ou outra” da armadilha positivista: plena certeza versus mera opinião não fundamentada. Evidências quanto à travessia do Rubicão por César são basicamente da mesma ordem que as evidências de que estou segurando um livro. De fato, procedimentos de verificação muito semelhantes se aplicam a ambas as proposições. Nenhuma está absolutamente certa; nenhuma é tão incerta a ponto de ser inútil. Se não reconhecermos essa semelhança fundamental, ignoraremos a dúvida cartesiana sobre a vida cotidiana, adotando-a de forma acrítica no caso de questões mais “sérias”. No campo do Novo Testamento, alguns críticos fizeram uma ótima música e dançaram sobre o fato de os detalhes da vida de Jesus, ou o fato de sua ressurreição, não poderem ser “cientificamente” provados. Contudo, o rigor filosófico deve obrigá-los a admitir que o mesmo problema pertence a uma vasta gama de conhecimentos humanos comuns, incluindo a alegação implícita de que o conhecimento exige verificação empírica. O lado pessimista do programa do Iluminismo pode ser visto com mais clareza em certas formas mais modestas de empirismo, principalmente no fenomenalismo. [ 61 ] A única coisa de que posso realmente ter certeza quando sou confrontado por coisas (o que parece ser) no mundo externo são meus próprios dados sensoriais. Essa visão, com uma aparente espécie de humildade epistemológica, traduz, então, uma conversa sobre os objetos externos (“isto é um copo”) em declarações sobre dados sensoriais (“percebo algo sólido, redondo e de superfície lisa nas mãos”). Nesse ponto, o positivismo continuaria a inferir e, se possível, averiguar a presença de objetos externos; por sua vez, a fenomenologia permanece cautelosa, e essa cautela afeta boa parte do discurso popular: em vez do impetuoso “isto está correto”, dizemos: “gostaria de defender que isto está correto”, reduzindo uma declaração perigosamente arrogante a respeito do mundo a uma declaração humilde sobre mim mesmo. Todavia, os problemas conhecidos sob essa perspectiva não a impediram de exercer enorme influência, principalmente em alguns aspectos do pós-modernismo. Quando pareço olhar para um texto, para a mente de um autor dentro do texto ou para acontecimentos dos quais o texto parece tratar, tudo o que realmente faço é ter a mesma perspectiva que o autor tem dos acontecimentos, a aparência do texto acerca da intenção do autor ou talvez apenas meus pensamentos na presença do texto e… será que se trata mesmo de um texto? [ 62 ] Um diagrama pode ajudar neste momento. O positivista concebe o conhecimento como uma linha simples, que vai do observador para o objeto. Isso resulta no seguinte modelo: Observador --------------------------------------------------→ Objeto • simplesmente olhando para a realidade objetiva • testado pela observação empírica • caso não funcione, não faz sentido O fenomenalista, entretanto, tenta esse modelo e descobre que todos os resultados retornam ao conhecedor: Observador --------------------------------------------------→ • Pareço ter evidências da realidade externa ← ------------------------------------------------------------------------------------ • mas só tenho certeza, de fato, de meus dados sensoriais É claro que existem todos os tipos de variação sobre esses temas, porém suas diferenças podem ser resumidas a duas posições mais amplas. Podemos caracterizá-las com uma ilustração. Se conhecer algo é como olhar por um telescópio, um positivista simplista pode imaginar que está apenas olhando para o objeto, esquecendo, por um instante, o fato de estar olhando através de lentes; já o fenomenalista pode suspeitar que está olhando para um espelho no qual vê o reflexo de seu próprio olho. Evidentemente, um resultado lógico da posição do fenomenalista é o solipsismo, a crença de que eu — e apenas eu — existo. Para o que mais tenho provas? Contra essas duas posições, proponho uma forma de realismo crítico. É um modo de descrever o processo de “conhecimento” em que, de acordo com essa abordagem, reconhecemos a realidade da coisa conhecida, diferenciando-a do conhecedor (daí o “realismo”), enquanto também reconhecemos plenamente que o único acesso que temos a essa realidade consiste, ao longo de um caminho em espiral, no devido diálogo entre o conhecedor e a coisa conhecida (daí “crítico”). [ 63 ] Esse caminho conduz a uma reflexão crítica sobre os produtos de nossa investigação da “realidade”, de modo que nossas afirmações sobre a “realidade” reconhecem seu aspecto provisório. Em outras palavras, o conhecimento, embora, a princípio, esteja concentrado em realidades independentes do conhecedor, nunca é, ele próprio, independente do conhecedor. [ 64 ] Podemos, então, tentar um esboço preliminar da forma do conhecimento, segundo o modelo do realismo crítico, da seguinte maneira: Observador ------------------------------------------------- → • observação inicial ←--------------------------------------------------------------------------------------- • é desafiada pela reflexão crítica ------------------------------------------------- → • mas pode sobreviver ao desafio e falar verdadeiramente acerca da realidade O segundo e o terceiro desses estágios demandam, claramente, mais discussões. A consciência crítica revela pelo menos três coisas sobre o processo de conhecimento, desafiando um realismo ingênuo ou um positivismo popular. Primeiro: o observador olha de um único ponto de vista, apenas um; não existe um tipo de visão divino-panorâmica (ou seja, uma visão divino-panorâmica deísta de deus) disponível aos seres humanos — em outras palavras, um ponto de vista que não seja humano. [ 65 ] Segundo: como resultado dessa percepção limitada, todo ser humano interpreta, de modo inevitável e natural, informações recebidas por seus sentidos por meio de um filtro de expectativas, memórias, histórias, estados psicológicos etc. O ponto de vista não é apenas peculiar em termos de localização (estou de pé destelado do cômodo, e não daquele outro; então, meu ponto de vista é diferente do seu); também é peculiar no que diz respeito às lentes da minha visão de mundo (como vários escritores já demonstraram, um ponto de vista tácito e pré-teórico é requisito necessário para que ocorram percepção e conhecimento). [ 66 ] Terceiro — e mais importante: onde estou e as lentes (metafóricas) por intermédio das quais enxergo são fatores intimamente relacionados às comunidades a que pertenço. Algumas coisas que vejo de maneira particular, eu as vejo por pertencer a uma comunidade humana específica, a uma rede de familiares e amigos; outras, por pertencer a uma profissão; ainda outras, por ser um músico amador etc. Cada comunidade humana partilha e aprecia certas suposições, tradições, expectativas, ansiedades etc. que encorajam seus membros a interpretar a realidade de forma particular, criando contextos em que certos tipos de afirmação são percebidos como coisas que fazem sentido. Não existe observador “neutro” ou “objetivo”; de modo semelhante, não existe observador desapegado. [ 67 ] Todos esses fatores significam que qualquer “realismo” capaz de sobreviver deve levar em conta o caráter provisório de todas as suas declarações. Como proceder, então? A única coisa que não é possível neste momento é reavivar alguma forma de positivismo, ainda que em um quadro teórico reduzido. Ou seja: neste momento, não é necessário dizer que, feitas as concessões já descritas, ainda assim há coisas que podem ser ditas, com base em dados sensoriais empíricos, sobre o mundo externo ao observador. Não; em vez de trabalhar a partir das particularidades da observação ou de “dados sensoriais” para a formulação de afirmações confiantes sobre a realidade externa, o realismo crítico, conforme o proponho, vê o conhecimento de particularidades ocorrendo na estrutura mais ampla da história ou da visão de mundo; e ambos compõem o modo de ser do observador em relação ao mundo. (No capítulo 5, falarei mais detalhadamente sobre cosmovisões e a forma como funcionam.) Em vez de trabalhar como se estivesse partindo de dados empíricos — ainda que em um quadro teórico reduzido e cauteloso —, o conhecimento ocorre, nesse modelo, quando as pessoas encontram coisas que se encaixam em sua história particular ou (mais provavelmente) em histórias às quais estão acostumadas a devotar sua lealdade. Cabe-nos, agora, discutir alguns problemas adicionais oriundos dessa abordagem. Estou ciente de que, isoladamente, essa afirmação soará intrigante. Parece que o conhecimento é apenas um fator particular; nesse caso, os fenomenalistas e subjetivistas venceram. Tudo o que sei é o que acontece em minha própria história. Para mostrar por que essa redução é injustificada, precisamos examinar a questão da verificação. O que conta como “verificar” que é reivindicado como conhecimento? [ 68 ] Relatos comuns do método “científico” se concentram (por motivos legítimos, em minha opinião) em hipóteses e verificação/falsificação. Formulamos uma hipótese sobre o que é verdadeiro e, em seguida, passamos a verificá-la ou falsificá-la, por meio da experimentação. Mas como chegamos às hipóteses, e o que conta como verificação ou falsificação? Segundo o modelo positivista, as hipóteses são construídas a partir de dados sensoriais recebidos e, em seguida, saem à procura de mais evidências sensoriais que confirmarão, modificarão ou destruirão a hipótese formulada. Sugiro que esse processo é enganoso. Utilizando-se apenas de dados sensoriais, é bastante improvável que alguém construa uma boa hipótese de trabalho; de fato, nenhum pensador sério, de qualquer área, acredita nisso. Precisamos de uma tela maior sobre a qual desenhar, um conjunto maior de histórias sobre coisas que provavelmente acontecem no mundo. Sempre deve haver um salto feito pela imaginação amigavelmente sintonizada com o objeto analisado, desde, em tese, a observação aleatória dos fenômenos até a hipótese de um padrão. De forma semelhante, a verificação ocorre não apenas pela observação de dados sensoriais aleatórios (para ver se eles se encaixam na hipótese), mas também pela criação de meios — precisamente com base em narrativas mais amplas (incluindo a própria hipótese) — pelos quais fazemos perguntas específicas sobre determinados aspectos da hipótese. Mas isso nos conduz à seguinte questão: de que maneira essas narrativas mais amplas e os dados específicos se “encaixam”? A fim de examinarmos essa questão, precisamos observar mais de perto as narrativas em si. HISTÓRIAS, COSMOVISÕES E CONHECIMENTO As histórias constituem um dos elementos mais fundamentais da vida humana. [ 69 ] Não praticamos atos aleatórios para, só então, tentar compreendê-los; se alguém faz isso, dizemos que essa pessoa está bêbada ou louca. Segundo argumenta MacIntyre, diálogos em particular e ações humanas em geral são “narrativas encenadas”. Ou seja, a narrativa geral forma a categoria mais básica, enquanto o momento e o indivíduo particulares só podem ser entendidos nesse contexto: [ 70 ] A história não é uma sequência de ações; antes, o conceito de uma ação corresponde a um momento em uma história factual ou fictícia, extraído dessa história com algum propósito específico. Da mesma forma, personagens em uma história não são um conjunto de pessoas. Pelo contrário: o conceito de “pessoa” corresponde a um personagem extraído de uma história. [ 71 ] A vida humana, então, pode ser vista como fundamentada e constituída pelas histórias implícitas ou explícitas que os seres humanos contam a si mesmos e uns aos outros. Isso contraria a crença popular de que as histórias existem para “ilustrar” um ponto ou outro que, em tese, pode ser declarado sem recorrermos à narrativa como veículo inadequado de comunicação. Normalmente, as histórias são consideradas pobres substitutas de uma “coisa real”, algo capaz de ser encontrado em alguma verdade abstrata ou em declarações sobre “fatos simples”. Uma alternativa igualmente insatisfatória é considerar a história uma vitrine para um dizer retórico ou um conjunto de dizeres. As narrativas são um constituinte básico da vida humana; elas são, de fato, um elemento-chave na construção plena de uma cosmovisão. Argumentarei, no capítulo 5, que todas as visões de mundo contêm um elemento narrativo irredutível — um elemento que permanece ao lado de outros relacionados a essa visão de mundo (símbolos, práticas, perguntas e respostas básicas) e que não podem ser “simplificados” ainda mais. Portanto, as visões de mundo, o prisma através do qual os seres humanos percebem a realidade, emergem em consciência explícita em termos de crenças e objetivos humanos, os quais funcionam, em tese, como expressões controversas de visões de mundo. As histórias que caracterizam a própria visão de mundo estão localizadas, no mapa do conhecimento humano, em um nível mais fundamental do que as crenças explicitamente formuladas, incluindo as crenças teológicas. Entre as narrativas que incorporam, de forma mais óbvia, as cosmovisões, estão os mitos de fundação, contados pelos chamados “povos nativos primitivos” como explicação para as origens do mundo em geral e de sua raça em particular. Antropólogos e outros, ansiosos por descobrirem vestígios de pontos de vista primordiais, agora escondidos de olhares aparentemente mais civilizados, estudam essas histórias como os meios devidos para alcançar esse fim. No entanto, se procurarmos análogos modernos, eles não se encontram assim tão longe de nós; um bom exemplo disso é a narrativa adotada no debate político. Histórias de como a situação estava durante a Grande Depressão são usadas para alimentar um senso de simpatia pela classe trabalhista oprimida; histórias de terrorismo são empregadas para justificar os atuais regimes de direita. Em um contexto mais restrito, histórias são contadas no discurso pessoal e doméstico, não apenas para fornecer informações sobre eventos pretéritos, mas também para incorporar — e, portanto, reforçar ou modificar — uma visão de mundo compartilhadadentro de uma família, de um escritório, de um clube ou de uma universidade. Assim, as histórias fornecem uma estrutura vital segundo a qual experimentamos o mundo. Também fornecem o meio pelo qual as visões de mundo podem ser desafiadas. O fato de as histórias serem a característica fundamental das cosmovisões também pode ser ilustrado em relação à cosmovisão judaica e às suas mutações, que nunca podem ser reduzidas a um conjunto de máximas ou regras de conduta. Mesmo em sua forma mais proverbial e epigramática, a escrita judaica mantém a subestrutura da história judaica sobre o deus da aliança, o mundo e Israel. Para a maioria dos judeus do primeiro século, as histórias certamente eram a maneira natural e até mesmo inevitável pela qual sua visão de mundo encontraria expressão, fosse narrando os feitos poderosos que YHWH realizou em favor de seu povo, fosse na criação de novas histórias como forma de instigar os fiéis da época a perseverar na paciência e na obediência, fosse ainda na antecipação ansiosa da ação poderosa que ainda estava por vir, ação que coroaria todas as outras ações divinas até aquele momento e levaria Israel a uma libertação verdadeira e duradoura, de uma vez por todas. [ 72 ] As histórias, sempre populares entre as crianças e aqueles que leem por puro prazer, têm-se tornado moda ultimamente entre os estudiosos, principalmente no campo de estudos bíblicos. Na última geração, vários escritores recorreram ao trabalho de analistas de contos populares, como Vladimir Propp, para ajudá-los a entender a estrutura e o significado de diversos trechos bíblicos. Em vez de “traduzir” a narrativa em outra coisa, somos agora incentivados a lê-la da forma como é, compreendendo-a em seus próprios termos. [ 73 ] Em termos literários e teológicos, isso me parece um desenvolvimento totalmente admirável; demanda, sem dúvida, alguns freios e contrapesos, mas, a princípio, é algo que pode ser recebido com entusiasmo. Esta pesquisa, além disso, examinou como as histórias funcionam em si mesmas e em relação a outras histórias. Em termos de estrutura interna, as histórias são compostas de enredos e personagens. Recorrem a várias técnicas retóricas, incluindo modo de narração (o narrador é um personagem do drama ou tem uma visão privilegiada de todos os acontecimentos?), ironia, conflito, diferentes padrões narrativos (como “enquadramento”) etc. As histórias terão, por conseguinte, o que alguns chamam de “leitor ideal” — ou seja, as narrativas sugerem e atraem um tipo específico de leitura. Tudo isso tem seu próprio efeito sobre a forma como os leitores de uma história veem as coisas. Em outras palavras, somos convidados a fazer, com uma história complexa, aquilo que (conforme veremos no capítulo seguinte) fazemos com qualquer crítica literária: estudar o efeito criado e os meios pelos quais esse efeito é criado. A intenção do autor não deve ser excluída desse processo, embora, com frequência, isso aconteça. Por exemplo: ao lidarmos com textos antigos, devemos lembrar que os comentaristas antigos da retórica estavam perfeitamente cientes dos vários efeitos possíveis das narrativas; por isso, devemos considerar a possibilidade de os evangelistas estarem cientes dessas ideias. De modo semelhante, contudo, um escritor como Marcos pode muito bem ter produzido esses efeitos da mesma forma que um orador “natural” faria, usando uma variedade de técnicas sem estar ciente delas. [ 74 ] Quando examinamos a forma como as histórias funcionam entre si, descobrimos que o ser humano cria narrativas por corresponderem à forma como percebemos o mundo com o qual nos relacionamos. O que vemos de perto, em uma infinidade de pequenos incidentes — tanto isolados como, mais provavelmente, inter-relacionados —, compreendemos ao recorrer a formas narrativas mais ou menos conhecidas, inserindo, então, informações nelas. As histórias, com seus padrões de problemas e conflitos, com suas tentativas abortadas de resolução e resultados finais, tristes ou alegres, são, se pudermos inferir da prática comum do mundo, universalmente percebidas como a melhor maneira de falarmos de como o mundo realmente é. Boas histórias partem do pressuposto de que o mundo é um lugar de conflitos e resoluções, sejam cômicas, sejam trágicas. As narrativas selecionam e organizam o material segundo esses princípios. Ademais, conforme já sugerimos, as histórias podem incorporar ou reforçar, ou até mesmo modificar, as visões de mundo com que se relacionam. [ 75 ] As histórias são, na verdade, peculiarmente boas em modificar e subverter outras histórias e visões de mundo. Naquilo em que um ataque frontal certamente falharia, as parábolas escondem a sabedoria da serpente por trás da inocência da pomba, obtendo uma espécie de abertura e favor que podem ser usados para mudar suposições que, de outra forma, o ouvinte manteria escondidas, por segurança. Natã conta a Davi uma história sobre um homem rico, um homem pobre e um cordeirinho; Davi fica furioso, e Natã o enlaça. Mande alguém fazer alguma coisa, e você afetará sua vida — por um dia; conte uma história a alguém, e você mudará sua vida. As histórias, ao surtirem esse efeito, funcionam como metáforas complexas. A metáfora consiste em aproximar dois conjuntos de ideias próximas o suficiente para produzir uma faísca que, se lançada ao ar, iluminará, por um instante, toda a área ao seu redor, mudando as percepções ao fazê-lo. [ 76 ] A história subversiva aproxima-se o suficiente da história já acreditada pelo ouvinte para que uma faísca salte entre ambas; e, daí em diante, nada mais voltará a ser igual. Seria possível — e, em tese, até mesmo desejável — dar continuidade a esse insight por meio de várias ramificações adicionais. Sociedades são entidades complexas, de modo que as visões de mundo que as dominam dão origem não apenas a histórias diretas, mas também a versões fragmentadas e distorcidas dessas histórias, na proporção em que diferentes grupos e indivíduos marcam, em um cenário mais amplo, seu próprio caminho. Os seres humanos vivem em mundos sobrepostos e, como indivíduos ou grupos, podem muito bem contar a si mesmos histórias diferentes e sobrepostas, mas também concorrentes. Ademais, as histórias narradas explicitamente por grupos ou indivíduos podem ser enganosas — quer estejam cientes disso, quer não —, de modo a exigir uma verificação à luz da prática factual e de um universo simbólico mais amplo. O que alguém habitualmente faz, bem como os símbolos em torno dos quais organiza sua vida, servem, no mínimo, como indicadores tão confiáveis para sua visão de mundo quanto as histórias que “oficialmente” contam. [ 77 ] O resultado de tudo isso em nosso campo específico — ou seja, o Novo Testamento — é o seguinte: certo grupo de judeus do primeiro século, que guardava e desejava honrar uma variante específica da cosmovisão judaica da época (que descreveremos em detalhes na Parte III), ansiava por dizer: “A esperança que caracteriza nossa cosmovisão foi cumprida nesses acontecimentos”. E escolheram expressar isso da maneira mais natural (e, obviamente, judaica) possível — ou seja, contando uma história —, a fim de subverter outras formas pelas quais a sociedade judaica olhava o mundo. Para ser mais explícito: os judeus do primeiro século, como todos os demais povos, percebiam o mundo e os acontecimentos ao seu redor através de uma “matriz” de interpretações e expectativas. Sua matriz particular consistia na crença de que o mundo foi criado por um deus bom, sábio e onipotente, que escolheu Israel como seu povo especial. Os judeus criam que sua história nacional, comunal e tradicional lhes dava lentes pelas quais podiam perceber os acontecimentos do mundo, lentes pelas quais podiam entendê-lo e adequar a própria vida. Contavam histórias que personificavam, exemplificavam e reforçavam sua visão de mundo — e, ao fazê-lo, lançavam um desafio particularmente subversivo às visões de mundo alternativas. Aqueles que desejavam encorajar seus companheiros judeus a pensar de forma diferente contavamas mesmas histórias, mas com reviravoltas e elementos distintos. Os essênios contavam uma história sobre o começo secreto da nova aliança; Josefo, uma história sobre o deus de Israel alcançando os romanos; Jesus, uma história sobre lavradores cuja infidelidade causaria a morte do filho do proprietário e sua própria expulsão; os primeiros cristãos, histórias sobre o reino de deus e sua inauguração por meio de Jesus. Contudo, eis uma coisa que nunca faziam: eles nunca expressavam uma visão de mundo na qual o deus em questão não estivesse interessado ou envolvido com o mundo criado em geral, nem com o destino de seu povo, em particular. Mais adiante, retornaremos a esse tema. O motivo pelo qual as histórias entram em conflito entre si é que as visões de mundo e as histórias que as caracterizam são, em tese, normativas — ou seja, afirmam dar sentido a toda a realidade. Até mesmo o relativista — cuja crença é que o ponto de vista de todos é igualmente válido em relação a todos os assuntos, embora os pontos de vista sejam aparentemente incompatíveis — é obediente a uma história subjacente acerca de toda a realidade. Segundo ele, a realidade é, em última análise, composta por uma rede perfeitamente interligada, aberta, em tese, à experiência, à observação e à discussão. É irônico que muitas pessoas no mundo moderno tenham o cristianismo como uma visão de mundo particular, um conjunto de histórias particulares. Alguns cristãos realmente caíram nessa armadilha. Em tese, porém, a questão toda do cristianismo é que ele oferece uma narrativa correspondente à história do mundo inteiro. Trata-se de uma verdade pública; do contrário, desmorona em alguma versão do gnosticismo. [ 78 ] Podemos, assim, traçar uma espécie de escala móvel para mostrar o que acontece quando as histórias contadas por determinado grupo como explicação do mundo entram em contato com as histórias de outros grupos. Em uma extremidade, temos o fenômeno da confirmação direta: a história implícita por um “objeto”, por uma ação ou um acontecimento que se encaixa, sem problema algum, em minha visão de mundo. Na outra extremidade, está o confronto direto: para dar sentido às histórias que se desenrolam à minha frente, tenho de abandonar minha narrativa dominante e encontrar uma nova — o que acontece não por minha construção a partir de evidências extraídas de dados sensoriais diretos, mas escutando a narrativa de outra comunidade que, aparentemente, dá sentido a esse (até então incompreensível) acontecimento. [ 79 ] A única maneira de resolver o conflito entre as duas histórias é contar outra história, explicando como a evidência para a narrativa desafiadora é, na verdade, enganosa. Trata-se de uma postura bastante comum na ciência (o experimento não “funcionou”; portanto, alguma variável inesperada deve ter-se infiltrado nos procedimentos), na história (os textos não se encaixam nos fatos; portanto, alguém os distorceu) e em outras áreas. Além disso, entre esses dois extremos de confirmação e confronto, acontecimentos e “objetos” podem modificar ou subverter a narrativa ou as narrativas pelas quais começamos; desse modo, como sempre, a prova do pudim está em comê-lo. Não existe algo como prova “neutra” ou “objetiva”; apenas a afirmação de que a história que agora contamos a respeito do mundo como um todo faz mais sentido, em seu contorno e em seus detalhes, do que outras histórias disponíveis, reais ou potenciais. Simplicidade de esboço, elegância no manuseio dos detalhes, inclusão de todas as partes da história e capacidade de fazer sentido da forma mais ampla possível: são esses os fatores que contam. [ 80 ] Retornamos, então, a algo como uma noção de hipótese e verificação. Em geral, uma hipótese (em qualquer área) é tida como “verificada” se incluir dados relevantes, apresentar alguma simplicidade e mostrar-se frutífera em áreas além de sua preocupação imediata. O que fizemos, porém, foi preencher lacunas no relato do que uma hipótese realmente é e do que conta como verificação. Um relato completo, ao que parece, deve incluir os seguintes elementos: questionamento, hipótese e teste de hipótese. [ 81 ] Existe, em primeiro lugar, a pergunta para a qual a hipótese é, como resposta, formulada. A pergunta não surge “do nada”; antes, tem origem precisamente nas histórias que certos seres humanos contam uns aos outros, em todos os níveis. Alguém faz perguntas porque sua narrativa atual é, de alguma forma, enigmática ou incompleta. Dirijo, por exemplo, ao longo da estrada, pensando em uma série de coisas, mas tendo como certa uma história subjacente sobre carros, direções e estradas. Então, o carro começa a tremer. Imediatamente, passo a contar a mim mesmo diversas histórias capazes de explicar esse fenômeno. Talvez a prefeitura esteja trabalhando nesse trecho da estrada, de modo que ainda não está devidamente asfaltado; talvez o pneu do carro tenha furado; talvez haja algo de errado com a suspensão. Essas hipóteses se apresentam para mim como potenciais elos perdidos de narrativas mais amplas: quando inseridas de forma adequada, transformam minhas histórias habituais em possíveis histórias explicativas. É difícil descrever de onde elas vêm, embora sua origem não seja irrelevante: parecem surgir por meio de um processo de intuição. Em seguida (retornando ao exemplo), o veículo atrás de mim pisca as luzes e o motorista aponta para uma das rodas do meu carro. Imediatamente, a segunda história/hipótese vem à tona. Eu paro e examino o pneu, que parece mesmo encontrar-se em estado lamentável. Dois outros dados — a saber, a ação do outro motorista e minha visão do pneu — convencem-me de que a segunda história corresponde à realidade. Uma das histórias que contei a mim mesmo emergiu como a melhor explicação. Naturalmente, a estrada e a suspensão podem apresentar problemas; mas a explicação mais simples é esta: o estremecimento que senti enquanto dirigia foi causado pelo pneu furado. Em cada fase do processo, o essencial pode ser mais bem-descrito em termos de história: a história que dá origem ao questionamento, as novas histórias que se oferecem como explicação e a narrativa bem-sucedida de uma das histórias, a qual inclui todos os dados relevantes, utilizando-se de um quadro teórico simples e contribuindo para a melhor compreensão de outras histórias (“sempre desconfiei da loja em que comprei esses pneus”). Essa descrição de um processo bastante simples de conhecimento demonstra o que está envolvido no modelo de “hipótese e verificação”, tornando-o mais palpável. Buscarei desenvolvê-lo mais completamente no capítulo 5, ao tratar da natureza das visões de mundo e do lugar que as narrativas ocupam dentro delas, o que será de extrema importância na discussão da história em particular (cap. 4), em que discutiremos também alguns dos problemas mais relacionados ao processo de “verificação”. Quando, portanto, percebemos a realidade externa, fazemos isso com base em um quadro teórico preexistente. Em essência, tal quadro teórico consiste em uma visão de mundo; e as visões de mundo, segundo enfatizamos, caracterizam-se, entre outras coisas, por certos tipos de história. As tradições positivista e tradicionalista erram ao imaginar que a percepção antecede a compreensão de realidades mais amplas. Pelo contrário: percepções sensoriais detalhadas não ocorrem apenas no âmbito de histórias, porém são verificadas nelas (se é isso mesmo que acontece). O crucial é perceber que aquilo que a tradição positivista veria como “fatos” já vem com teorias anexadas; e teorias são precisamente histórias contadas como o quadro teórico para incluir “fatos”. O que é verdade sobre “fatos” também é verdade sobre “objetos”: “objetos” também carregam histórias sobre eles. A palavra “xícara” não denota apenas um objeto de certas propriedades físicas; tampouco, quando eu olho para uma xícara, ou a manuseio, simplesmente “vejo” ou “sinto” essas propriedades físicas. A palavra, como o próprio objeto, diz respeito ao conjunto de histórias implícitas em que a xícara pode figurar,sejam elas relativas a uma aula de cerâmica, uma tradição familiar, um chá ou a pedir açúcar emprestado a um vizinho. Em outras palavras, só sabemos o que são os objetos quando os vemos, ao menos implicitamente, no âmbito de acontecimentos. E acontecimentos, por sua vez, dizem respeito (em princípio) a ações inteligíveis. Como resultado, em vez do diálogo ou da conversa que examinamos anteriormente — entre “observador” e “objeto” do modo como concebidos na tradição empirista, seja em sua forma otimista, seja em sua forma pessimista —, temos um diálogo ou uma conversa entre seres humanos (não apenas plataformas meramente neutras e isoladas) e acontecimentos (não apenas objetos isolados, sem sentido). Desse modo, em ambos os lados desse diálogo, temos histórias: histórias que os seres humanos contam implicitamente sobre o mundo, histórias sugeridas por acontecimentos e, em seu âmbito, pelos “objetos” que formam suas partes componentes. [ 82 ] Podemos, então, elaborar uma versão modificada do diagrama anterior da epistemologia crítico-realista, levando em consideração os novos detalhes agora introduzidos: Ser humano contador de histórias-----------→ mundo carregado de histórias a observação inicial (já no âmbito de uma história) ←----------------------------------------------------------------------------------------→ é desafiada pela reflexão crítica sobre nós mesmos como contadores de histórias, ou seja, reconhecendo que nossa reivindicação sobre a realidade pode estar errada ----------------------------------------------------------------------------------------→ podendo, porém, por narrativas adicionais, encontrar formas alternativas de falar verdadeiramente sobre o mundo, empregando histórias novas ou modificadas Tal abordagem, penso, guarda várias semelhanças com a “hermenêutica da suspeita e da recuperação”, defendida por Paul Ricoeur, embora discuti-la aqui possa desviar-nos para muito longe. [ 83 ] Ela sugere que, naquilo em que o mundo ocidental tende a dividir como conhecimento “objetivo” e conhecimento “subjetivo”, uma maneira menos enganosa de falar seria em termos de conhecimento “público” ou “particular”. O caráter público de determinados tipos de conhecimento não é ameaçado pelo fato de algumas pessoas o formularem. Pelo contrário, é aumentado. CONCLUSÃO A distinção aparentemente clara entre “objetivo” e “subjetivo” deve ser abandonada como inútil. Se alguém, ao ler essa frase, concluir imediatamente que “não existe algo como conhecimento objetivo”, isso apenas mostrará quão profundamente enraizada a tradição positivista se tornou em nossa cultura, exatamente quando seus perpetradores admitiram, por fim, que ela está errada. O essencial, conforme argumentei, é uma epistemologia mais equilibrada; e, sujeito aos limites deste livro e às limitações da minha experiência, foi o que tentei oferecer. Contudo, partindo, por um instante, de uma visão de mundo cristã — a ser discutida em mais detalhes em outra ocasião —, podemos ao menos dizer o seguinte: o conhecimento diz respeito às inter-relações entre seres humanos e o mundo criado. Essa ideia conduz o conhecimento à esfera da crença bíblica, segundo a qual o ser humano é feito à imagem do criador e, como consequência, é incumbido da tarefa de exercer uma administração sábia na ordem criada. A humanidade não é nem observadora isolada, nem predadora da criação. Sob essa perspectiva, o conhecimento pode ser uma forma de administração; pode ser, em face do presente estado do mundo, uma forma de administração redentora; pode ser, em certo sentido, uma forma de amor. (Se mal empregado, pode tornar-se, obviamente, o oposto de todas essas coisas: o conhecimento pode ser visto como um dom projetado para ser usado na administração.) “Conhecer” é relacionar-se com o “conhecido”. Em outras palavras, o “conhecedor” deve estar aberto à possibilidade de o “conhecido” ser diferente do que era esperado ou até mesmo desejado, e deve estar preparado para responder da maneira adequada, e não apenas observar a distância. Desse modo, o realismo crítico aqui oferecido corresponde essencialmente a uma epistemologia relacional em oposição a uma epistemologia isolada, desapegada. As histórias por meio das quais se chega ao relato (potencialmente) verdadeiro da realidade são, irredutivelmente, histórias sobre a inter-relação de seres humanos com o restante da realidade (incluindo, naturalmente, outros seres humanos). Ademais, as próprias histórias cruciais são, evidentemente, um elemento vital no relacionamento entre aqueles que partilham de uma mesma visão de mundo (que contam histórias uns aos outros para confirmar e ajustar sua visão de mundo) e entre os detentores de diferentes visões de mundo (que contam histórias destinadas a subverter as posições uns dos outros). Esse modelo abre espaço para a realidade do conhecimento além dos próprios dados sensoriais (aquilo que o “objetivista” deseja salvaguardar) e, ao mesmo tempo, abre espaço para o desenvolvimento do conhecedor no ato de conhecer (aquilo em que o “subjetivista” corretamente insistirá). Tal modelo, acredito, tem muito a oferecer. E pode servir como uma espécie de fio de Ariadne para nos guiar pelos labirintos do estudo do Novo Testamento. Essa teoria crítico-realista do conhecimento e da verificação, então, reconhece a natureza essencialmente “histórica” do conhecimento, do pensamento e da vida humana, encaixando-se no modelo mais amplo das cosmovisões e de suas partes componentes. Reconhece que todo conhecimento de realidades externas a si ocorre no quadro teórico de uma visão de mundo da qual as histórias são parte essencial; e estabelece como hipóteses várias histórias sobre o mundo em geral ou partes dele em particular, testando-as ao ver que tipo de “encaixe” elas têm com as histórias já existentes. Se alguém perguntar quais argumentos indisputáveis posso produzir para mostrar que essa teoria do conhecimento humano é de fato verdadeira, obviamente seria contraditório responder em termos essencialmente empiristas. O único argumento apropriado é aquele simples, já apresentado, sobre “comer o pudim”. De fato, propor uma nova epistemologia é intrinsecamente difícil, justamente pela dificuldade causada pelo próprio empirismo. É impossível encontrar uma base sólida (“objetiva”) na qual firmar-se: isso não existe. Todas as epistemologias devem ser, elas mesmas, defendidas como hipóteses: elas são testadas não por sua coerência com um ponto fixo previamente acordado, mas, sim (como, de fato, outras hipóteses), por sua simplicidade e capacidade de dar sentido a um amplo escopo de experiências e acontecimentos. Contei uma história sobre como os seres humanos conhecem as coisas. Agora, devemos exemplificar e, espero, verificar adequadamente essa história, vendo maneiras pelas quais ela pode dar sentido à forma como o ser humano conhece certas coisas específicas — a saber, literatura, história e teologia. CAPÍTULO 3 LITERATURA, HISTÓRIAS E ARTICULAÇÃO DE COSMOVISÕES INTRODUÇÃO O estudo do cristianismo primitivo de Jesus e de Paulo — especialmente o da teologia de todo o movimento e dos indivíduos que dele participaram — é conduzido por meio do estudo da literatura. (As únicas exceções a essa regra são achados arqueológicos esporádicos, como moedas e inscrições.) Devemos, assim, indagar, pelo menos em termos gerais, acerca da função da literatura, e qual é a melhor forma de tratá-la. A pergunta “Como devemos abordar o Novo Testamento?” é um caso mais específico de um questionamento mais amplo a ser feito a respeito de qualquer livro. Somos particularmente compelidos a esse questionamento no século 21. A maré da teoria literária finalmente atingiu o ponto na praia onde os teólogos têm brincado e, após encher com água o pequeno fosso em torno de seus castelos de areia, agora ameaça forçá-los a recuar, a não ser que cavem mais fundo e construam um castelo mais resistente. Problemas atuais relativos à literatura têm estreita afinidade com aqueles que já examinamos. [ 84 ] Deparamos, maisuma vez, com problemas acerca do conhecimento, embora correspondam a questões altamente especializadas. Em primeiro lugar, precisamos discutir a questão da leitura em si: o que acontece quando o leitor depara com o texto? Em seguida, precisamos indagar sobre a natureza da própria literatura. Depois, à luz das perguntas anteriores, devemos questionar o papel da crítica na literatura e, visto que esses questionamentos nos levarão mais uma vez à questão da Narrativa, devemos, então, averiguar, com mais detalhes, a forma como as histórias/narrativas funcionam. Finalmente, devemos aplicar tudo isso de modo mais específico ao Novo Testamento. [ 85 ] Podemos começar, porém, com alguns exemplos que nos ajudarão ao longo da caminhada. “Tem alguém aí?”, pergunta o Viajante, Ao bater à porta pelo luar iluminada; Seu cavalo, no silêncio, roçando a grama Da forragem fértil da floresta. Um pássaro sobrevoa a torre, Acima da cabeça do Viajante “Tem alguém aí?” Mas nenhum som se ouve! Ao bater uma segunda vez, relutante. Mas ninguém desce ao Viajante; Nem se inclina pela janela. Para ver seu rosto cansado Enquanto ele, perplexo, espera. Somente fantasmas o escutam De dentro daquele lugar, Na hora em que uma voz humana Ecoa à luz do luar. Em um cômodo escuro, lá estavam Outros, assentados na escada Percebendo o ar se agitando Enquanto o Viajante clamava. Mas no coração o Viajante Sentiu uma estranheza afetá-lo: Aquele silêncio o escutava? Sim. Atendia ao seu chamado. Então ele, batendo à porta, Bradou, erguendo a cabeça: “Chamei, mas ninguém respondeu. Ainda assim, mantive minha promessa”. Por mais que um ruído irrompesse Por sombras escuras da casa Nenhum som fizeram os ouvintes À voz que o Viajante alçava. Seus pés no estribo ouviram, O som de um ferro na pedra, E como o silêncio surgia suave Lá se ia o único Vivo. [ 86 ] Como devemos abordar esse poema? Podemos nos concentrar nele, se quisermos, em termos de arte literária, como, por exemplo, o uso da aliteração. A sensação tranquila e suave da floresta é transmitida pela sequência dos sons de “f” na quarta linha; [ 87 ]* o retorno ao silêncio, como o de um lago perturbado que recupera a quietude, pelos sons de “s” na penúltima linha. [ 88 ]* Observamos o efeito e explicamos o método. Mas existem efeitos mais amplos, que merecem ser ponderados. O título do poema é: “Os Ouvintes”, um nome que talvez nós mesmos não escolhêssemos (“O Cavaleiro Solitário”? “O Cavaleiro do Luar”?). O título direciona nossa atenção a determinado ponto, mesmo quando a introdução do poema nos transpõe para outro lugar. Convida o leitor a refletir: quem são esses ouvintes fantasmas? O que estão fazendo? Quem fez o cavaleiro prometer voltar, e onde ele se encontra agora? A tensão entre título e poema, apenas parcialmente resolvida pelo fato de os ouvintes se tornarem o assunto da segunda metade, combina-se com todas as alusões inexplicáveis (“Ainda assim, mantive minha promessa”) para criar o efeito de um grande e solene mistério do qual somos apenas parcialmente sabedores, mas não totalmente. Percebemos, de fato, que testemunhamos o auge de um drama muito mais longo e complexo, emaranhado, implícito e cheio de significados. Sentimo- nos, na realidade, irresistivelmente atraídos para um mundo narrativo, para uma história que, como o “conto” moderno, convida-nos a compartilhar seu mundo, não tanto pelas coisas que diz, mas também pelo que não diz. O efeito do poema é mais do que a soma total das rimas, da assonância, do cenário evocativo. Todos esses elementos se enquadram no — e, obviamente, como o poema é bom, acentuam o — efeito mais amplo da história/narrativa [ 89 ] em si. (Algo semelhante, sugiro, é verdadeiro acerca dos evangelhos.) Ao longo dessas discussões, deparamos com perguntas como: quão aberto está o poema a novas formas de leitura? O que podemos considerar uma leitura “correta”, e quão importante é alcançar uma leitura dessa natureza? [ 90 ] Vejamos um segundo exemplo. Em Doutor Fausto, célebre e alarmante romance de Thomas Mann, somos apresentados a Adrian Leverkühn, um brilhante compositor que inventou um método inteiramente novo de escrever música. [ 91 ] Mann alude quase imediatamente ao pacto faustiano do compositor com o Diabo e, então, finge, na pessoa do narrador, estar aborrecido consigo mesmo por haver deixado escapar tão rápido um tema tão importante. No entanto, o verdadeiro tema principal permanece oculto, sendo revelado apenas implicitamente, à medida que o romance vai se aproximando de seu estupendo clímax. Paralelamente à trajetória de vida do compositor, encontramos a trajetória da Alemanha moderna, culminando com a ascensão de Hitler e a Segunda Guerra Mundial. E, apenas na última frase do romance, o paralelo é finalmente explicitado, enquanto o narrador olha para a ruína de seu amigo Leverkühn e para a ruína de sua terra natal, combinando os dois: “Gott sei euerer armen Seele gnädig, mein Freund, mein Vaterland!” — “Deus tenha misericórdia de sua pobre alma, meu amigo, minha pátria!”. [ 92 ] Aqui, o efeito é de uma grande e sustentada crítica da Alemanha do século 20, feita por um alemão, por alguém que ama sua nação e agora lamenta por ela. O efeito é alcançado por justaposição e paralelismo em grande escala, nunca exagerado, emergindo apenas gradualmente das sombras. Em outras palavras, a própria história produz o efeito, por trás de todas as brilhantes reconstruções musicais e caracterizações de Mann (somente um romancista ousado descreveria peças fictícias de música). Ademais, parte do poder da história, dentro da cultura ocidental, reside precisamente na recontagem de Mann da lenda de Fausto, de modo a subverter algumas outras narrativas, notadamente a de Goethe. É a respeito disso, ele está dizendo, que essa história realmente trata. Mais uma vez, encontramos semelhanças notáveis com tudo isso nos evangelhos; e, mais uma vez, surge a seguinte questão: quanto disso tudo podemos, ou devemos, “acertar”, e quanto permanece aberto a novas leituras e interpretações? Para nosso terceiro exemplo, retornamos a um território agora familiar. Na parábola de Jesus sobre os lavradores infiéis, encontramos um exemplo clássico de história subversiva. Seu paralelo com a história da vinha (Isaías 5) fornece- nos um ponto de partida, assim como a conclusão de Mann nos oferece um ponto fixo a partir do qual trabalhar a história, começando do fim e voltando ao começo. A parábola conta a história de Israel; já era uma tragédia quando Isaías a contou, mas, na época de Jesus, tornou-se ainda mais intensa, mais comovente. Por esse tempo, já não se trata mais de uma história sobre um proprietário de terras e seus lavradores, mas de um pai e seu filho. Esse elemento também é subversivo: no Antigo Testamento, Israel é o filho amado do deus criador; agora, porém, ao que tudo indica, há um filho tanto no lugar de Israel como contra Israel. Observamos como a história é construída em etapas, até seu auge: (1) a vinha está preparada; (2) o dono envia mensageiros, os quais, então, recebem um tratamento cada vez mais duro; (3) por último, o filho é enviado, rejeitado e morto. Resta a seguinte conclusão: (4) a vinha lhes será tirada e entregue a outros. A sequência dramática está completa e (curiosamente, como veremos) se revela essencialmente trágica: a vocação dos lavradores, tomada de forma isolada e levada ao limite, é a causa de sua própria ruína. Chamados como arrendatários, aspiram a ser proprietários. Como em muitas tragédias, temos aqui uma ênfase essencialmente prometeica. Desse modo, já podemos ver como a história funciona em seu contexto; como funciona em sua estrutura interna; e onde localizá-la no mapa geral de histórias. Mais uma vez, podemos perguntar: qual é a importância de acertarmos os detalhes? Ainda outra pergunta: que diferença faz, se houver alguma, lermos o texto como parte da “escritura sagrada”? SOBRE O ATO DE LER 1. Introdução Com esses exemplos em mente, voltamo-nos à seguinte pergunta: o queacontece quando lemos? As observações do capítulo 2 sobre a natureza do conhecimento devem ser aplicadas a essa área específica. Que tipo de “conhecimento” adquirimos ao ler? Muitas vezes, os leitores ocidentais modernos são tentados a dar uma resposta ingenuamente realista. Pego um jornal e leio; os autores me contam o que aconteceu ontem no mundo. O “telescópio” do texto é simplesmente uma janela através da qual olho para a realidade. Leio um livro de história e simplesmente descubro “o que aconteceu” em algum momento do passado. Mas então, um dia, leio em um jornal ou em um livro de história um relato de algo que conheço por meio de uma fonte diferente; e isso me faz parar para pensar. De repente, o realismo ingênuo me parece preocupante e, em vez disso, caminho em direção a um reducionismo ingênuo, nos moldes fenomenológicos: palavras não são “sobre” a realidade, mas tão somente “sobre” as opiniões do escritor. Houve uma mudança: em vez de olhar “através” das palavras do escritor para o acontecimento, começo a suspeitar que estou apenas, ou principalmente, olhando para o escritor. O telescópio tornou-se um espelho angular: o que se vê não é um acontecimento, apenas um autor. Isso pode ser demonstrado no seguinte diagrama: LEITOR TEXTO realista ingênuo -------- → • lendo o texto, obtenho acesso ao autor e, então, ao acontecimento fenomenalista --------→ • lendo o texto, obtenho acesso ao autor, mas o acontecimento é ilusório Um bom exemplo dessa mudança, em uma área “neutra”, pode ser encontrado na pintura de Monet. O artista começou, como a maioria dos pintores, pintando objetos do mundo real: pontes, catedrais, seu jardim, sua esposa. À medida que o impressionismo foi se tornando, por assim dizer, mais impressionista — e, particular e curiosamente, à medida que a própria visão do pintor ia se deteriorando —, Monet começou a pintar cada vez menos os objetos da forma como eram, e cada vez mais sua impressão dos objetos. Assim, na metade de sua carreira, pegamo-nos olhando — muitas vezes, claro, com grande deleite — não para uma imagem quase fotográfica, mas para a representação dos dados sensoriais de alguém. Contudo, segundo seu próprio relato, Monet tornou-se cada vez menos interessado em dados sensoriais que os objetos em si lhe apresentavam, e cada vez mais interessado em padrões e formas, cores e movimentos, que ele simplesmente imaginava. Em seus trabalhos posteriores, vamos encontrá-lo caminhando para a abstração absoluta. Obviamente, esse resumo da progressão de Monet é, como muitas outras coisas nesta seção do livro, uma simplificação grosseira, mas suficientemente satisfatória para estabelecer o ponto que desejo. [ 93 ] Podemos suspeitar, na verdade, que a maioria das pessoas oscila de uma posição para a outra, dependendo das circunstâncias. Nós, ingleses, tendemos a nos considerar realistas robustos: apenas observamos os fatos e os descrevemos; somente lemos o texto como ele é. Entretanto, conforme acabamos de ver, assim que lemos uma reportagem de jornal sobre um evento a respeito do qual temos algum conhecimento, estamos cientes da diferença entre o ponto de vista do jornalista e o nosso; e, tão logo nos envolvemos, por exemplo, na prática de aconselhamento, tornamo-nos cientes de que uma pessoa pode, com toda a aparente inocência, sobrepor ou “projetar”, na imagem que forma de outra pessoa, fenômenos que estão apenas em sua própria cabeça. Retornando ao exemplo do jornalismo, o que vemos com frequência — em documentários televisivos ou pseudodocumentários, por exemplo — parece ao leitor ou ao espectador um fato simples; muito provavelmente, porém, o que está realmente acontecendo é (a) a ideia do repórter sobre o acontecimento, projetada em um mundo aparentemente “real”; (b) essa ideia aparecendo como “seu ponto de vista sobre a realidade”; e (c) esse ponto de vista aparecendo como a própria realidade. [ 94 ] Ao concordar com um ponto de vista, você tende a observá-lo como um realista (“é assim que as coisas realmente são”); ao discordar, torna-se rapidamente um fenomenalista e assume o mesmo patamar de autor/acontecimento (“era só seu ponto de vista”) ou até mesmo um subjetivista (“ele simplesmente inventou tudo isso”). Tudo isso pode parecer um pouco distante do mundo do Novo Testamento. Na verdade, porém, defrontamo-nos com esse problema assim que pegamos um livro moderno sobre os evangelhos. Recentemente, o estudioso alemão G. Strecker publicou um livro sobre o Sermão do Monte. [ 95 ] Na contracapa, somos informados, com ar de triunfo, que o Sermão do Monte não corresponde aos dizeres de Jesus, mas aos de Mateus. Trata-se, suponho, não de um juízo primariamente exegético ou histórico, mas de um juízo filosófico. Strecker nos convida a passar do terreno arriscado de fazer afirmações sobre Jesus para o terreno aparentemente mais seguro de dizer que o ensinamento representa o estado de espírito de Mateus. [ 96 ] Lemos o Sermão do Monte e perguntamos: “Tem alguém aí?”. A resposta é: “não” — não no sentido de um orador original, de um Jesus sentado em um monte, dirigindo-se às multidões. Só existe Mateus. Saltamos do realismo, passando por cima de uma leitura empirista (a impressão de Mateus sobre Jesus), e aterrissamos no fenomenológico (o estado de espírito de Mateus). A aparente força da proposta de Strecker tem, comparativamente, pouco a ver com a história do primeiro século e muito mais a ver com hábitos modernos de reflexão e leitura. Ou tome como outro exemplo a descrição que Josefo faz dos fariseus. Josefo refere-se a eles como se fossem uma seita filosófica, com opiniões sobre determinismo etc. [ 97 ] Ninguém duvida da existência dos fariseus, nem de que tinham opiniões; mas todos duvidam de que os fariseus realmente fossem como os filósofos gregos. Nessa situação, optamos por uma leitura empirista cautelosa: Josefo, dizemos, fornece sua percepção dos fariseus ou, mais precisamente, a percepção que sabia ser compreensível ao seu público pagão. Tal percepção não é apenas uma ideia em sua própria mente; contudo, também não corresponde exatamente ao modo como as coisas realmente eram. Um terceiro exemplo, apesar de originado na tradição oral recente, também é interessante. Assegurado por diversas testemunhas oculares — alunos e pesquisadores em uma universidade que visitei —, testifico que um dos professores afirmou, em público, que Rudolf Bultmann não foi influenciado por convicções teológicas ou filosóficas ao estudar a história da tradição sinótica, mas que se envolveu em uma pesquisa histórica puramente “objetiva”. A reivindicação, que contradiz o próprio relato de Bultmann sobre o método histórico e hermenêutico, envolve qualquer pessoa que a retenha em uma posição complexa: positivismo em relação aos escritos de Bultmann a respeito da igreja primitiva (“ele apenas narrou os fatos”); ceticismo quanto ao próprio relato de Bultmann sobre o que estava fazendo (“Bultmann disse que partiu de pressuposições; [ 98 ] mas sabemos que não”); e fenomenologia, segundo o próprio Bultmann, em relação à igreja primitiva e aos seus escritos sobre Jesus (“escreveram ‘sobre’ Jesus, mas realmente estavam, na maior parte do tempo, falando ‘sobre’ sua própria fé”). Uma variação muito importante desses temas tem sido a concentração, em algumas partes do estudo bíblico moderno, na comunidade que, segundo se pressupõe, está por trás de um texto. Assim como, em muitos lugares, o estudo histórico de Jesus por meio do texto deu lugar ao estudo dos evangelistas, desde o surgimento da crítica da forma, noventa anos atrás, o foco tem sido não um referente além do texto, mas as comunidades que transmitiram as tradições. Mesmo naquilo em que a crítica da forma deu lugar à crítica da redação, o estudo dos evangelistas muitas vezes se concentrou simplesmente em suas igrejas e em seus ambientes comunitários. Assim, o termo “comunidade” funcionou como um tipo alternativo de referente, além do texto e subjacente a ele: LEITOR[ 99 ]---------→ TEXTO---------→[AUTOR]---------→COMUNIDADE[ 99 ] Esse movimento tem, para muitos teólogos contemporâneos, uma utilidade hermenêutica e teológica mais óbvia: sabemos (ou pensamos saber) o que fazer com uma comunidade e com sua teologia, mas lidar com um acontecimento é mais difícil. Mas logo ficará óbvio que o tapete poderia ser tirado até mesmo dos pés da crítica da redação por algum tipo de leitura pós-moderna dos evangelhos, a qual negaria a validade de podermos descobrir o pensamento do próprio Mateus, quanto mais o de sua “comunidade”, a partir do evangelho, insistindo, em vez disso, na interação entre leitor e texto (ou mesmo entre o leitor e sua própria mente) como a única fonte de “significado”. Essas leituras são todas inerentemente instáveis: as próprias razões filosóficas pelas quais elas surgem (ansiedade cartesiana em relação aos referentes segundo os quais a realidade é pregada) vão engoli-las. Tudo isso significa que o fenômeno da leitura, em qualquer nível que não o ingênuo, tornou-se muito confuso. As pessoas têm lido a Bíblia e grandes textos literários de múltiplas formas. Às vezes, como realistas ingênuas: “Shakespeare nos conta uma história sobre Júlio César; ponto-final”. Outras vezes, ouvindo ecos de algo mais: “Será que ele não está discutindo a tirania e a democracia em geral? Talvez esteja usando César como alegoria de um tirano que nos é familiar”. Como podemos saber? De la Mare nos conta uma história sobre um cavaleiro e uma casa vazia. Isso é tudo? O autor “realmente” fala sobre alguém à procura de “Deus”? Fala sobre a própria literatura moderna, com sua sensação de que costumava existir um autor “dentro” do texto, mas que agora não há mais ninguém em casa? Como podemos descobrir? [ 100 ] Mann narra uma história sobre um compositor fictício, mas certamente também nos conta uma história sobre a Alemanha moderna. E, ao fazer isso, naturalmente o autor revela suas próprias opiniões e crenças, que estão totalmente “envolvidas” na realidade acerca da qual escreve. Nesse caso, o meio pelo qual podemos decidir o assunto é bastante claro: sua última frase nos dá a pista, de um modo artisticamente apropriado (i.e., sem qualquer efeito deus ex machina). [ 101 ] Da mesma forma, Jesus conta uma história sobre os lavradores de uma vinha. (Ou, para sermos menos ingênuos, os evangelhos contam uma história sobre Jesus contando uma história sobre os lavradores de uma vinha.) Mas muitos leitores concluíram que a história, cujo conteúdo é, em certo nível, sobre a “vinha”, diz respeito, “na verdade”, a “Deus” e Israel. Deparamos, sugiro, com uma confusão em vários níveis: LEITOR TEXTO AUTOR ACONTECIMENTO ----------→ vinha ----------→ ----------→ ----------→ “Deus”/ Israel ----------→ igreja primitiva ←---------- De modo semelhante, muitos leitores devotos, achando o aspecto histórico hermeneuticamente desinteressante, leram o texto como uma história sobre si mesmos. Como podemos entender isso? Será que basta dizer que os escritores bíblicos também contavam uma história sobre “Deus” e, uma vez que “Deus” é sempre o mesmo, a história pode tornar-se “nossa” história hoje? Em outras palavras, em que ponto a analogia com Thomas Mann se sustenta — que o escritor, em cada caso, estava “realmente” escrevendo sobre a Alemanha/“Deus”, e que Leverkühn/Jesus era apenas um “veículo” (fictício) para esse interesse “real”? Em que ponto essa análise pode falhar e por quê? Parece que deparamos aqui, em uma antecipação pré-crítica de algumas leituras pós-críticas, com a seguinte situação: LEITOR ----------→ leitura devota do texto ←---------- traduzido imediatamente em uma mensagem sobre o leitor ----------→ [inspiração divina] possivelmente explicado ao postular “Deus” como referente/ fonte do texto Substitua a possibilidade de alguma estrutura textual por “Deus”, e temos aqui um modelo de trabalho de algumas leituras estruturalistas; exclua essa possibilidade e temos, embutido na tradição pietista, exatamente o mesmo relato de leitura que encontramos no pós-modernismo de Barthes, Derrida, Rorty ou Fish. O que importa é “o que o texto me comunica”. Até pensarmos claramente sobre esse conjunto de problemas, não saberemos realmente o que está acontecendo. Muitos métodos “críticos” parecem propriamente “neutros” quando, na verdade, encapsulam posições filosóficas inteiras que são, em si mesmas, controversas e altamente discutíveis. Tudo isso me parece exigir uma análise mais aprofundada das diferentes etapas do processo de leitura dos textos. 2. “Tem alguém aí?” Já vimos que, enquanto o realismo ingênuo imagina ter acesso direto ao evento ou ao objeto falado no texto, uma leitura mais fenomenológica percebe que só pode ter certeza do ponto de vista do autor. Trata-se de uma afirmação menos ambiciosa, mais difícil de refutar. Soa totalmente mais segura. Mas não é o fim da linha. Os exemplos que acabamos de discutir abordam a relação entre o texto e a realidade que ele pretende escrever. Os mesmos problemas ocorrem quando lidamos com a relação entre nós e o texto. Conforme já expus, o objetivo da crítica é descrever o efeito de um texto escrito e mostrar como esse efeito é alcançado (o que pode, naturalmente, incluir comentários negativos sobre qualquer fase, efeito ou meio). Podemos, porém, dizer que o autor “pretendia” criar esse ou aquele efeito? Ao traçar o efeito que observamos, estamos lendo a mente do autor? “Tem alguém aí?” Os extensos debates sobre esse ponto ocupam livros inteiros, de modo que não podemos analisá-los em detalhes. Contudo, podemos observar o movimento da crítica do século 20 e fazer um comentário breve. [ 102 ] Como um exemplo do que veio a ser conhecido como “Nova Crítica”, podemos tomar as questões levantadas por C. S. Lewis em seu famoso debate com E. M. W. Tillyard. [ 103 ] Lewis lançou um forte ataque a esse estilo de crítica que busca desenterrar, da obra em consideração, detalhes sobre a vida, hábitos, emoções, entre outras informações acerca do autor. Para Lewis, não é esse o papel da crítica. A resposta de Tillyard tentou apresentar um caso moderado para manter, dentro de uma crítica adequada, algum elemento de comentário sobre o escritor. [ 104 ] No entanto, o argumento de Lewis prevaleceu. Muitos estudos modernos da literatura simplesmente rejeitaram a ideia de que temos acesso à mente ou às intenções de um escritor. O caminho para o inferno é pavimentado por intenções autorais: tudo o que temos é a obra em si, vista como uma entidade independente. Ao que parece, o que importa agora é a interação entre leitor e texto, e não entre leitor e autor por meio do texto. “Tem alguém aí?” — perguntamos, ao lermos o texto antigo ou moderno. Mas tudo o que às vezes imaginamos é uma multidão de ouvintes silenciosos, testemunhando que mantivemos nossa promessa, que retornamos ao texto, crescido e reflorestado. Os fantasmas saberão que ocorreu uma leitura do texto, mas a casa em si — o mundo particular no qual o escritor viveu — permanece trancada e inacessível. Evidentemente, Lewis não recomendava essa posição em toda a sua rigidez. Antes, sua reação era contrária a uma ênfase exagerada particular, ressaltando (como em seu Um experimento em crítica literária) a importância dos efeitos do texto sobre o leitor. [ 105 ] A ideia remete à leitura moderna, uma leitura sem autor, mas não chega a acolhê-la. Como no caso de tantos debates, ambos os lados parecem apresentar pontos válidos. Lewis estava totalmente correto ao rejeitar a ideia, produto de um casamento entre romantismo e empirismo, de que a crítica poderia ou deveria tentar descobrir, lendo nas entrelinhas do poema, o que o autor comeu no café da manhã, ou se ele acabara de se apaixonar pela empregada. Situações desse tipo podem, claro, ser tema de um poema, explícita ou alegoricamente; trata-se, porém, de uma questão completamente diferente. Obviamente, parte da dificuldade está no fato de muitos poetas do século 19 falarem, em essência, de suas emoções e estados de espírito, atraindo críticos a concluírem quedescobrir essas coisas era o trabalho normal de toda a crítica literária. Assim, o texto foi libertado do fardo do autor: LEITOR ---------→ TEXTO ---------→ AUTOR ---------→ ACONTECIMENTO ←--------- Argumentarei, em breve, que a devida rejeição adequada de uma crítica voltada simplesmente à descoberta da vida interior do poeta, reduzindo o “significado” do poema em termos dessa descoberta, foi longe demais (de uma forma que Lewis, podemos dizer, não pretendia) ao absolutizar o poema a ponto de rejeitar não apenas o desejo, mas até mesmo a possibilidade, de se conhecer a intenção do autor. Nos estudos bíblicos, esse é o movimento feito pela “crítica da redação” (“o que Lucas estava fazendo ao escrever sua obra como um todo?”) para a “crítica da narrativa” (“Lucas não interessa. O que o livro como um todo está fazendo por si mesmo?”). [ 106 ] Mas, se o foco do estudo recai sobre o texto em si, o que deve ser dito sobre para, ao final, não contrabandearmos as intenções do autor? Nesse ponto, existem vários movimentos possíveis, todos relevantes para os estudos bíblicos. Em primeiro lugar, tem sido lugar-comum nas principais correntes da hermenêutica ocidental, pelo menos desde Schleiermacher, que é possível, até mesmo provável, que o poeta ou o evangelista escrevia, em certo nível, com uma intencionalidade consciente, mas que podemos detectar, dentro do poema, níveis de significado de que, na natureza do caso, o autor não estava consciente. Trata- se de uma versão mais grandiosa do conhecido fenômeno do “trocadilho não intencional”, capaz de revelar, em termos freudianos, algo do qual o falante não está consciente. Pode ser que vejamos, com a vantagem de uma retrospectiva ou de uma análise psicológica (Freud é lido hoje não só por psicólogos, mas também por críticos literários), que o autor foi, sem perceber, influenciado por fatores internos e externos, de modo que o poema aponta para direções que apenas posteriormente se tornam claras, direções cuja existência nem sequer poderia ter sido imaginada pelo escritor. Podemos realmente saber mais sobre o autor do que estava, ou poderia ter estado, presente em sua mente na época da escrita. [ 107 ] Obviamente, esse fator é, por si só, um tipo de pseudointencionalidade ou intencionalidade oculta, passível de tratamento como qualquer outro problema comum. Ou, em segundo lugar, talvez, ao projetar um método semelhante em uma tela mais ampla, o poema possa servir como evidência para a estrutura mais profunda de todo o pensamento humano, que, então, se torna objeto real da investigação crítica, a ser organizado, em conjunto com todos os outros dados antropológicos, em conclusões sobre a natureza do ser humano e das sociedades humanas. É assim que procede o movimento conhecido como “estruturalismo”: do texto às estruturas profundas do pensamento e, em seguida, às conclusões sobre uma realidade que está além da consciência comum. Tal estruturalismo aparece como uma das versões modernas do platonismo — a tentativa de ir atrás de fenômenos para analisar o que “realmente” está lá. [ 108 ] A atração de um movimento dessa natureza pode residir, em parte, no fato de que parece evitar os problemas que afligem uma grande parcela da exegese bíblica de determinado tipo, ou seja, o problema de sempre ir atrás do texto (seja em busca de “acontecimentos descritos”, seja da mente do autor), a fim de obter um significado real. Afinal, não seria muito melhor, não seria muito mais “científico”, se o sentido universalizável estivesse escondido no próprio texto? A intenção autoral atrapalhou a universalização; a estrutura profunda é muito mais eficaz. [ 109 ] Por essas e outras razões, toda uma gama de escritores, especialmente na América do Norte, tentou olhar para os textos dessa nova maneira. [ 110 ] Nessas obras, vemos a reintrodução nos estudos bíblicos de uma espécie de questionamento que deveria há muito ter sido feito, mas que foi excluído da maior parte do movimento crítico moderno. Os críticos tendem a fazer dois tipos de perguntas: (a) A que acontecimentos o texto se refere, e o que esses acontecimentos significam? (b) Que ideias teológicas o autor desse texto teve? O “significado” está localizado, nesses modelos, tanto nos acontecimentos como nas crenças dos escritores. A crítica literária formalista ou estruturalista mais recente, no entanto, não busca significado em nenhum desses elementos, mas na forma literária, na própria estrutura do texto. [ 111 ] Como podemos encontrar “significado” no texto, e o que podemos fazer com ele depois de o encontrarmos? Em terceiro lugar, há uma analogia entre esse nível de investigação e a sugestão, às vezes feita dentro da exegese bíblica tradicional, de que existe, além do significado do autor, um sensus plenior, pelo qual um texto “inspirado” realmente diz mais do que o autor percebeu na época, com o Espírito Santo preenchendo a lacuna da ignorância autoral ou realizando uma profecia “não intencional”, pela qual, por exemplo, Caifás fala uma palavra do Senhor, mesmo quando pretendia dizer outra. O reconhecimento de tal sentido, bem como as possibilidades de exegese alegórica e outras formas de exegese que se abrem, têm, em vários estágios da leitura da escritura pela igreja, formas de permitir a experiência dos cristãos de que o texto bíblico lhes “fale” de maneiras que o autor não poderia ter imaginado. [ 112 ] Temos, portanto, uma nova gama de possibilidades: LEITOR TEXTO sentidos não autorais ---------→ ---------→ “mais do que o autor tinha em mente” ---------→ ---------→ Tais propostas — a última das quais se encontra claramente no próprio Novo Testamento — são maneiras de garantir que o significado não se limite à intenção do autor. Quer sigamos ou não o caminho do estruturalismo, devemos levar em conta um je ne sais quoi que vai além do que o autor tinha em mente, explicitamente, na época. Não é preciso refletir muito para ver que a crítica não pode fechar a porta a essa possibilidade, embora possa considerar difícil lidar com ela em termos descritivos ou hermenêuticos. Mas (apenas no caso de alguém pensar que isso nos leva de volta à leitura subjetivista do texto) isso não significa que a intenção do autor não seja importante ou, em última análise, indiscutível. Obviamente, uma descrição completa da intenção autoral é impossível. O conhecimento de toda a motivação, tal como sonhado pelos primeiros behavioristas, recua como o fim de um arco-íris quanto mais nos aproximamos dele. [ 113 ] No entanto, como muitas vezes destacado, ainda é muito difícil manter uma leitura subjetiva “pura”. Até mesmo os estruturalistas mais ardentes gostariam de sustentar que estão falando sobre algo, e que seus livros, embora “abertos”, significam e pretendem algumas coisas, e não outras. Resta, ao menos em tese, sabermos a intenção básica de um autor e reconhecermos tal possibilidade — verificando, por exemplo, a leitura de um texto pessoalmente com seu autor (temos em mente os comentários de aprovação de Barth sobre a tentativa de Hans Küng de ler sua mente sobre o assunto da justificação). [ 114 ] Não há nada de estranho em dizer que “o governo tencionava que essa legislação tivesse o efeito x quando, na verdade, o efeito foi y”, quando x e y são claramente incompatíveis; em tese, não há nada de estranho em dizer que um autor pretendeu o efeito x (uma grande tragédia, digamos), mas alcançou o efeito y (uma farsa tumultuosa); assim, porém, acusamos diretamente o governo, ou o autor, de incompetência ou fracasso. No entanto, em um livro que pretendemos levar a sério, é uma crítica bastante séria dizer: “O autor tinha em mente x, mas o livro significa y”. Sugerir que tal comentário é irrelevante é como insistir que a lebre não pode realmente ultrapassar a tartaruga, uma vez que, como se sabe, a tartaruga simplesmente continua reduzindo pela metade a distância entre ambas, em porções cada vez menores. Os truques filosóficos pelos quais a intenção do autor foi afastada do cálculo são, em última análise, mais impressionantes doque o conhecido truque matemático que mantém a lebre em uma corrida permanente. Um problema com a tentativa de fornecer uma análise que vai além do texto, mas não do autor, é a falta de controle. Há pouca concordância entre os estruturalistas quanto ao que conta como estrutura profunda de uma passagem ou de um livro, e como podemos saber quando a encontramos. Ademais, como os reformadores argumentaram, embora possa realmente existir um sensus plenior no que diz respeito às Escrituras Sagradas, é difícil dizer a diferença entre o sentido mais profundo do texto e a projeção, no texto, de uma ideia teológica ou crença adquirida por algum outro meio. Se alguém, então, apela para o “sentido literal” como o controle, terá realmente aprendido algo novo com uma passagem pelo método plenior? As dificuldades em relação a todos esses modelos potenciais para ir “além” do texto sem passar pela mente do autor significam que muitos críticos, como já vimos, insistiram em trazer de volta o foco da atenção simplesmente para o próprio texto. Uma vez, porém, que nos movemos nessa direção, por que parar por aí? A mesma coisa não se aplica ao primeiro estágio? A visão ingenuamente realista desse estágio — o “leitor” apenas lendo o “texto” — pode ela mesma ruir: no bom estilo fenomenológico, tudo aquilo de que estou realmente ciente na presença desse texto são meus próprios dados sensoriais. A coisa toda se “desconstrói” nos sentimentos, pensamentos e impressões que tenho perante o texto: LEITOR ----------→ TEXTO ----------→ AUTOR----------→ ACONTECIMENTO ←---------- ... de modo que, agora, não somente não há nenhum acontecimento ou autor com uma intenção, como nem mesmo um texto. E isso resultará em múltiplas possibilidades de “leitura”, com análises intermináveis e muitas vezes minuciosas, para as quais aqueles que estão fora do jogo podem olhar com considerável ceticismo. [ 115 ] Essa posição, que pode parecer a morte de qualquer leitura ou crítica, naturalmente se tornou o ponto de partida para escolas totalmente novas de crítica literária, das quais o “desconstrucionismo” propriamente dito é apenas mais uma: Stephen Moore, em seu livro recente, descreve estágios na crítica recente que podem ser rotulados por escritores como Kermode, Fish e, em última análise, Roland Barthes e Jacques Derrida. [ 116 ] A ideia dessa escola, exposta de maneira absurdamente simples, é que a única coisa a fazer com um texto é brincar com ele: devo ver o efeito que ele me causa, e não questionar se há outra mente por trás do texto. [ 117 ] E, naturalmente, se é esse o caso, não faz mais sentido discutir o texto com alguém. Não haverá uma leitura “certa” ou “errada”; mas tão somente a minha leitura e a sua leitura. [ 118 ] Acho que ficará claro até que ponto essa última posição agradará a muitos elementos da consciência contemporânea. Vivemos em uma era relativista e pluralista, época que coloca a autorrealização acima da integração do “eu” com os outros. Há, evidentemente, muitas críticas diferentes que poderiam ser feitas contra toda essa visão de mundo. Ela traça sua ancestralidade filosófica e até mesmo literária por intermédio de Foucault e Nietzsche em particular, partilhando com eles algo do niilismo, que é, na minha opinião, a feia irmã gêmea do positivismo, que ainda se atrela a algumas partes da cultura contemporânea. Devo, contudo, reservar essas críticas a contextos diferentes por uma razão: até agora, o desconstrucionismo, em toda a sua estranha glória, ainda não alcançou um status considerável no mundo dos estudos neotestamentários, permanecendo, desse modo, estritamente fora de nossos propósitos neste livro. Houve algumas tentativas de introduzi-lo, principalmente nas várias obras do brilhante escritor J. Dominic Crossan. [ 119 ] Crossan, apesar de amplamente lido, ainda não foi seguido por muitos outros, talvez porque, conforme ressaltado por Moore, sua obra se subverte por sua insistência em tentar, ao mesmo tempo que desconstrói os textos, descobrir o Jesus histórico por meio dos textos e de uma forma subjacente a eles. [ 120 ] É difícil o caminho que leva ao desconstrucionismo genuíno, e aqueles que o seguem de forma consistente são poucos. A maioria dos leitores bíblicos de orientação conservadora não vê com bons olhos o desconstrucionismo. Mas seu modelo proposto realmente se aproxima muito de diversos modelos implicitamente adotados, amplamente falando, pela tradição pietista. A igreja, na verdade, institucionalizou e sistematizou formas de ler a Bíblia que são estranhamente semelhantes a algumas vertentes do pós- modernismo. Em particular, a igreja viveu com os evangelhos durante praticamente toda a sua vida, e a familiaridade gerou uma variedade de modelos hermenêuticos mais ou menos desprezíveis. Às vezes, mesmo nos círculos que afirmam levar a Bíblia mais a sério — muitas vezes, na verdade, acima de tudo o mais —, há uma recusa lamentável de fazer exatamente isso, em especial no que diz respeito aos evangelhos. Os métodos de leitura e interpretação adotados são, na verdade, funções dos modelos de inspiração e autoridade das escrituras que foram mantidos em vários círculos, explícita ou (de modo mais frequente) implicitamente, tornando muitas vezes absurda qualquer tentativa de leitura histórica da Bíblia. O predecessor devoto do desconstrucionismo é aquela leitura do texto que insiste no fato de que o que a Bíblia me diz, neste exato momento, é o princípio e o fim de todo o seu significado; uma leitura que não deseja saber da intenção do evangelista, da vida da igreja primitiva, ou mesmo sobre como Jesus realmente é. Encontramos alguns companheiros estranhos desse método de leitura no mundo da epistemologia literária. Diversas vezes, claro, a prática tem sido melhor do que a teoria, e uma palavra do deus dos leitores foi ouvida, apesar da terrível confusão em que os leitores e intérpretes se envolveram. Isso simplesmente mostra, no mínimo, que esse deus é gracioso e talvez até tenha senso de humor. Não é desculpa para deixar de pensar ou de trabalhar mais cuidadosamente o que se passa com as pessoas enquanto leem os evangelhos. Levar, porém, essa discussão adiante neste ponto exigiria uma consideração dos tipos de leitura que são apropriados a diferentes tipos de escrita, bem como para os evangelhos como um caso especial; e isso deve ser adiado até consideravelmente mais tarde. Protestos, então, contra leituras pós-modernas da Bíblia provavelmente serão ineficazes — ou seja, a não ser que aqueles que se preocupam com a leitura séria dos evangelhos comecem a explorar maneiras de articular uma epistemologia melhor, levando a uma melhor descrição do que acontece quando um texto está sendo lido; a uma melhor descrição do que acontece quando um texto sagrado está sendo lido; a uma melhor descrição do que acontece quando um texto sagrado que se apresenta como histórico está sendo lido. Isso, por sua vez, levará a uma melhor descrição do que acontece quando os próprios evangelhos estão sendo lidos. Qualquer crítico literário de orientação filosófica em busca de uma obra cujo esforço valha a pena pode considerar essa ideia um possível projeto. Eu não fingiria ser suficientemente competente para fazer algo assim, nem teria tempo ou paciência de fazê-lo. Contudo, como este capítulo já está se transformando em um tour de force de áreas nas quais não sou (para dizer o mínimo) totalmente competente, devo dizer como penso que tal projeto poderia prosseguir. 3. Leitura e realismo crítico O que precisamos, sugiro, é de uma descrição crítico-realista do fenômeno da leitura, em todas as suas dimensões. [ 121 ] De um lado, podemos ver o positivista, ou o realista ingênuo, movendo-se tão suavemente ao longo da linha do leitor para o texto, do texto para o autor e do autor para o referente que, a cada passo, deixa de perceber as cobras na grama; do outro lado, vemos o reducionista, que, parando para olhar as cobras, é engolido por elas e não segue adiante. Evitando esses dois extremos, sugiro que devemos articularuma teoria capaz de localizar todo o fenômeno da leitura textual no âmbito da natureza histórica e relacional da consciência humana. Tal teoria pode ser mais ou menos assim. Nós (seres humanos em geral; comunidades das quais eu e você, como leitores, fazemos parte) contamos a nós mesmos algumas histórias sobre o mundo e sobre quem somos nele. Nessa narrativa, faz sentido, “é cabível”, o fato de nos descrevermos como leitores de textos; segundo já vimos, até mesmo os próprios desconstrucionistas escrevem textos cujo conteúdo desejam que outros leiam a fim de descobrir o que eles, os desconstrucionistas, pretendem dizer. [ 122 ] Nessa atividade de leitura textual, faz sentido, “é cabível”, o fato de entrarmos, às vezes e em tese, em contato com a mente e a intenção do autor. Discutir a mente do autor pode ou não ser uma tarefa fácil; em tese, é uma tarefa possível e, conforme sugiro, até mesmo desejável. [ 123 ] Eu, por exemplo, nunca ficarei convencido de que la Mare não tencionava produzir os óbvios efeitos “superficiais” de seu poema, embora os significados mais profundos sejam, como vimos, uma questão de especulação, hipótese e discussão. O autor poderia, por exemplo, ter escrito a respeito desses significados em outro lugar. [ 124 ] Nem posso acreditar que o paralelo entre Leverkühn e a Alemanha nunca tenha ocorrido a Mann enquanto ele escrevia seu romance. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que ambos os autores queriam que seus leitores refletissem sobre o tema de suas obras, não sobre si mesmos como autores em primeiro lugar. Seu trabalho não remete ao leitor, nem para dentro de suas próprias cabeças. Autores não constroem espelhos, nem caleidoscópios. Antes, oferecem telescópios (ou talvez microscópios, que são realmente a mesma coisa): novas maneiras de enxergar uma realidade que está fora e é distinta do leitor, do texto e do autor, embora, claro, relacione-se de forma vital com todos os três. Assim, “encaixa-se” na história que contamos sobre nós mesmos e o mundo o fato de os textos e os autores apontarem para realidades no mundo, para entidades além de si mesmos. Somente um leitor muito ingênuo sugeriria que o único referente do poema seria um cavaleiro e uma casa vazia em um bosque, que a única coisa descrita na narrativa de Mann seria um compositor possuído por demônios ou que a única realidade retratada na parábola seria uma história trágica envolvendo uma comunidade agrícola. Descrever os reais referentes em casos tais é a complexa tarefa da crítica literária séria, a qual ressaltarei em breve. O que precisamos, então, é de uma teoria da leitura que, no âmbito do leitor/texto, faça jus ao fato de o leitor ser um indivíduo particular e ao fato de o texto ser uma entidade independente, não uma substância plástica a ser moldada a gosto do leitor. Também deve fazer jus, no âmbito de texto/autor, ao fato de que o autor pretende transmitir certas coisas e que o texto também pode conter elementos — ecos, evocações, estruturas etc. — que não estavam presentes na mente do autor e, naturalmente, podem muito bem não estar presentes na mente do leitor. Precisamos de uma teoria da leitura de ambos — não de uma coisa ou de outra. [ 125 ] De modo semelhante, precisamos de uma teoria que faça justiça, ainda no âmbito do texto/autor, ao fato de (1) os textos, incluindo os textos bíblicos, não representarem a mente do autor em sua totalidade (inclusive no caso das passagens que mais se aproximam da mente do autor) e, ao mesmo tempo, (2) falarem muito sobre seu autor — ao menos em tese. Por último, precisamos reconhecer, no âmbito de autor/acontecimento, que os autores não escrevem sem um ponto de vista (já que são humanos e olham para as coisas de maneiras específicas e sob ângulos específicos) e que realmente podem falar e escrever sobre acontecimentos e objetos (no sentido pleno de acontecimentos e objetos, conforme exploramos no capítulo 2) que não são redutíveis nos termos de seu próprio estado de espírito. Há um sentido, o qual não podemos explorar em detalhes aqui, em que isso exige uma teoria completa da linguagem. Precisamos entender, melhor do que costumamos fazer formalmente, a forma como a linguagem funciona. Palavras que descrevem acontecimentos funcionam regular e adequadamente em todos os níveis, já que os próprios acontecimentos funcionam em todos os níveis. O que um marciano poderia ter visto eram seres humanos colocando pedaços de papel em pequenas caixas de lata; o que os políticos da época viram foi uma eleição tensa em andamento; o que os historiadores verão é a virada na qual um país moveu-se de uma era para outra. A linguagem é normalmente usada como referência a todos os três níveis de ações físicas de “acontecimento”, significado percebido ou imaginado no momento e significado percebido mais tarde — de todas as formas sutis, por meio de metáforas, símbolos, imagens e mitos. Isso é inevitável, e não demanda desculpas. [ 126 ] E essa linguagem em si desempenha muitas outras funções: edifica, incomoda, diverte, evoca associações, cria novas possibilidades de compreensão etc. O perigo é estabelecermos uma espécie de reducionismo. Podemos imaginar que o que chamamos de “significado” é algo artificialmente “adicionado” às ações (na verdade, ninguém se teria incomodado em colocar papel nas caixas se não tivesse pensado em fazer algo com um significado mais amplo); ou que as palavras que investem ações físicas com seu significado são, portanto, simplesmente decoração ou bordado, a fim de serem vistas como “simples metáfora”. (Alternativamente, claro, o acontecimento pode perder-se na significância.) Isso nos alerta, mais uma vez, para o fato de que não existe algo como um “simples acontecimento”, como veremos no próximo capítulo. E, se tudo isso é verdade para a linguagem em geral, há regras e casos especiais na escrita histórica; em sistemas de linguagem religiosa, outros casos especiais; em textos sagrados, casos especiais inseridos em casos ainda mais especiais; nos evangelhos, que combinam tudo isso e muito mais, um conjunto altamente complexo de questões e problemas. Até mesmo começar a abordar essas questões aqui nos distanciaria demais de nosso propósito. Sugiro, então, que a epistemologia que delineei anteriormente — aquela que vê o conhecimento como parte da responsabilidade dos que são feitos à imagem do criador de agir com responsabilidade e sabedoria no mundo criado — resulta, no nível da literatura, em um realismo crítico sensível. Devemos, por um lado, renunciar à ficção de uma visão soberana dos acontecimentos e, por outro, à redução do acontecimento à mera percepção individual. Até que realmente resolvamos essa questão, a maioria das batalhas atuais sobre a leitura dos evangelhos — e a maioria das anteriores também — serão diálogos de surdos, fadados ao fracasso. Para começar, porém, sugiro um possível modelo hermenêutico a ser explorado mais amplamente em outra ocasião. Sugiro uma hermenêutica do amor. No amor, pelo menos na ideia de ágape da forma como a encontramos em algumas partes do Novo Testamento, [ 127 ] aquele que ama afirma a realidade e a alteridade do amado. O amor não busca arruinar o amado em termos de si mesmo; e, embora possa falar de se perder na pessoa amada, essa perda sempre acaba sendo um verdadeiro achado. No paradoxo familiar, alguém se torna totalmente pleno ao se entregar a outra pessoa. No fato do amor, em suma, ambas as partes são simultaneamente afirmadas. [ 128 ] Aplicado à leitura de textos, isso significa que o texto pode ser ouvido em seus próprios termos, sem ser reduzido à escala do que o leitor pode ou não compreender no momento. Se o texto for de difícil compreensão, o bom leitor fará o esforço necessário para entendê-lo, retornando sempre ao texto e continuando a ouvi-lo. Entretanto, por mais perto que o leitor chegue de compreendê-lo, a leitura continuará a ser peculiarmente aquela do leitor: o subjetivo nunca se perde, fator que não é nem necessário nem desejável. Nesse sentido, “amor” significará “atenção”:prontidão para deixar que o outro seja o outro, vontade de crescer e mudar a si próprio em relação ao outro. Ao aplicarmos esse princípio a todos os três estágios do processo de leitura — relação do leitor com o texto, do texto com os autores, dos autores com as realidades que pretendem descrever —, será possível fazermos várias afirmações simultâneas. Em primeiro lugar, poderemos afirmar simultaneamente que o texto tem tanto um ponto de vista particular, a partir do qual tudo é visto, como o fato de que a leitura feita por alguém não é mera “observação neutra”. Em segundo lugar, poderemos afirmar que o texto tem tanto vida própria como que o autor tinha intenções das quais podemos, em tese, saber alguma coisa. Em terceiro lugar, poderemos afirmar que as ações ou os objetos descritos são, em princípio, tanto ações e objetos no mundo público como que o autor os contemplava de um ponto de vista particular e talvez até mesmo distorcido. Em cada nível, precisamos dizer as duas coisas — ou seja, não uma coisa em detrimento da outra. Cada estágio desse processo se transforma em uma conversa na qual o mal- entendido é provável, talvez até mesmo inevitável, mas na qual, por meio da escuta paciente, a compreensão real (e o acesso real à realidade externa) é realmente possível e alcançável. [ 129 ] O que defendo é um realismo crítico — embora eu prefira descrevê-lo como uma epistemologia ou hermenêutica do amor — como o único tipo de teoria que fará jus à natureza complexa dos textos em geral, da história em geral e dos evangelhos em particular. Armados com isso, seremos capazes de enfrentar as questões e os desafios da leitura do Novo Testamento com alguma esperança de dar sentido ao seu conteúdo. SOBRE A LITERATURA Se, então, podemos concordar que algo como a literatura existe, e que há como lê-la e falar de forma sensata sobre o tema sem que nossas palavras desmoronem sobre si mesmas, importa perguntarmos, embora de forma breve, o que é a literatura e o que fazer com ela. (Refiro-me à “literatura” em seu sentido mais amplo, incluindo a maioria dos escritos da maior parte dos seres humanos, mas não incluindo listas telefônicas, bilhetes de ônibus e coisas do tipo, por mais valiosas que sejam como símbolos culturais.) Nesse contexto, a agora familiar história da epistemologia moderna se repete, embora exemplos de pontos de vista extremos possam ser difíceis de encontrar. Na extremidade positivista, a literatura pode ser concebida simplesmente como a descrição “neutra” do mundo — as tentativas bizarras de gerações anteriores de nivelar a poesia, reduzindo a metáfora a uma linguagem simples e sem adornos, parecem ter operado sob esse equívoco. Na outra extremidade da escala, a literatura foi considerada (e talvez, como já vimos, os poetas românticos nos tenham encorajado a fazer isso) [ 130 ] uma coletânea de sentimentos subjetivos. Como alternativa para ambos os extremos, sugiro que a escrita humana é mais bem concebida como a articulação de visões de mundo ou, melhor ainda, a narração de histórias que conduzem à articulação de visões de mundo. É claro que isso acontece de várias maneiras. Algumas são bastante óbvias: o romance, o poema narrativo e a parábola já contam histórias; assim, não é difícil descrever o movimento que precisa ser feito do enredo específico em questão (ou de seus subenredos) para o tipo de visão de mundo que está sendo articulado. Outros não são tão óbvios, mas nem por isso deixam de ser importantes à sua maneira. A carta sucinta a um colega reforça nosso mundo narrativo partilhado em que os arranjos para o ensino do próximo semestre devem ser feitos com antecedência e, assim, reforça, por sua vez, o mundo mais amplo em que ambos contamos a nós mesmos, e uns aos outros, a história das universidades, do estudo, do ensino e da teologia — ou, se formos cínicos, a história de termos um emprego e não querermos perdê-lo. A carta de amor, não importa quão agramatical ou rapsódica, conta, em um nível mais profundo, uma história muito poderosa sobre o que significa ser humano. O livro árido, com suas listas e teoremas, conta a história de um mundo ordeiro e fala da possibilidade de os seres humanos compreenderem essa ordem e trabalharem proficuamente dentro dela. Poemas curtos e aforismos são para as visões de mundo o que as fotos instantâneas são para a história de um feriado, de uma infância, de um casamento etc. Sugiro, portanto, que parte da tarefa da crítica literária consista em desnudar e explicar o que o escritor produziu em nível de narrativa implícita e, em última análise, de visão de mundo implícita, bem como o método que empregou com esse propósito. [ 131 ] A tarefa pode ser realizada, ainda que o escritor permaneça desconhecido (o que também é bom, em vista do anonimato de muitas obras, inclusive no Novo Testamento). Mas pode contar com a ajuda, em seu caminho, de alguma consideração, mesmo em nível hipotético, do que o escritor tentava ou pretendia fazer. Aqui, mais uma vez, deparamos com a familiar dicotomia. O crítico positivista dirá que o objetivo da crítica é estabelecer o significado “certo” ou “verdadeiro” do texto, partindo do pressuposto de que tal significado existe e que pode, hipoteticamente, ser encontrado. O leitor fenomenalista — que, nesse caso, pode muito bem acabar sendo um desconstrucionista — passará a dizer que tal coisa não existe. Há apenas a minha leitura, a sua leitura e um número infinito de outras leituras possíveis. Em resposta a ambos os extremos, a leitura crítico-realista de um texto reconhecerá e levará em consideração a perspectiva e o contexto do leitor. Mas tal leitura continuará a insistir que, dentro da história/narrativa ou das histórias que parecem dar sentido a toda a realidade, existem, como aspectos essencialmente diferentes do leitor, textos que podem ser lidos, que têm uma vida e um conjunto de significados adequados, não apenas potencialmente independentes de seu autor, mas também de seu leitor; e que o nível mais profundo de significado consiste nas histórias — e, em última análise, nas visões de mundo — que os textos articulam. Assim, o crítico positivista, lendo a parábola dos lavradores infiéis, procurará localizá-la em um contexto histórico particular — seja a vida de Jesus, a pregação da igreja primitiva ou a escrita de um dos evangelhos. Tentará uma descrição completa e “objetiva” do que a narrativa significava na época. O aparente sucesso desse projeto poderá atrair os inexperientes a pensarem que o positivismo provou seu ponto — até que outros comentários sejam consultados, nos quais relatos igualmente “objetivos”, embora muito diferentes, são oferecidos. Eles podem, claro, dialogar entre si. No entanto, ao começarem a fazê-lo, já estão admitindo que o positivismo não é tão simples quanto parece, e que talvez um modelo epistemológico diferente seja a melhor opção. Já o fenomenalista, por sua vez, lê a parábola e se enxerga abordado nela. Embora perceba que a parábola pode ter um contexto histórico, o importante, para ele, é o que a história lhe diz hoje. Até certo ponto, essa explicação se ajusta, conforme observamos anteriormente, tanto ao fundamentalista como ao desconstrucionista. O que não pode ser feito com esse tipo de leitura, porém, é reivindicar qualquer normatividade para ela: só porque o texto diz algo para mim, não há por que dizer a mesma coisa para você. Se não formos cuidadosos, a afirmação “esta parábola me diz que devo ser fiel às responsabilidades que me foram dadas por Deus”, ou “esta parábola fala de Jesus morrendo por mim”, ruirá e se resumirá a declarações cujo sentido público não é diferente de “eu gosto de sal” ou “eu gosto de Sibelius”. O fenomenalista “compra” a certeza e a segurança de suas declarações em relação ao texto à custa da perda de sua relevância pública. Realistas críticos, no entanto, procurarão evitar ambas as armadilhas. Devemos estar cientes do nosso próprio ponto de vista. Leitores de textos sobre senhores e servos podem muito bem demonstrar uma simpatia instintivaem relação a um ou ao outro tipo; o mesmo se dá com leitores de textos sobre pais e filhos. Leitores que, de alguma forma, consideram alguns textos normativos (com base em sua própria perspectiva ou na perspectiva de outros) os abordam com certas esperanças, ou até mesmo com determinados receios. Em outras palavras, lemos uma história à luz de todos os tipos de outras histórias que habitualmente trazemos conosco — ou seja, à luz de nossa visão de mundo fundamental. Todavia, é precisamente parte da história que continuamente contamos a nós mesmos, como forma de dar maior sentido ao nosso ser no mundo, o fato de que existem, além de nossas próprias narrativas particulares, outras histórias, outros textos — incluindo os textos encontrados no Novo Testamento —, e que, para eles, essas histórias podem, se atentarmos para elas, modificar ou subverter algumas ou todas as demais histórias que temos contado a nós mesmos. Existem outras visões de mundo; essas visões expressam-se em formas de literatura e interagem com nossa perspectiva particular. A leitura crítico-realista é uma lectio catholica, semper reformanda: busca ser verdadeira consigo mesma e com o mundo público, embora sempre esteja aberta à possibilidade do desafio, da modificação, da subversão. Portanto, não somente lemos o texto e o examinamos em toda a sua alteridade histórica em relação a nós, como também em toda a sua relação transtemporal, com a consciência da complexa interligação existente entre essas duas análises. Quando chegamos à parábola, nós a lemos como uma narrativa que já tem uma trajetória histórica: lemos a narrativa de Israel, que agora sofre uma nova e alarmante reviravolta; lemos uma narrativa sobre Israel cuja essência, surpreendentemente, concerne a Jesus; lemos uma narrativa com um significado no ministério de Jesus, mas com outro sentido, muito diferente, ao ser recontada pela igreja primitiva, assim como um livro a respeito de um romance é diferente do próprio romance. Além do mais, ainda que, como parte de nossa história em geral (e, em tese, passível de subversão), acreditemos em nossa capacidade de, novamente em tese, alcançar algum tipo de precisão histórica nessas leituras, o “significado” que a parábola continua a ter permanecerá aberto em diversos aspectos importantes. Haverá espaço para uma adequação sobre certos significados potenciais, e não sobre outros. A discussão de onde surgem os diferentes “significados” sugeridos poderá e deverá ocorrer; não se trata de um jogo privado. E o teste de novos significados propostos vai condizer com sua continuidade demonstrável em relação aos significados históricos. Quanto ao que conta como continuidade, por ora a ideia deve permanecer em aberto. O ponto em questão é que a história/narrativa trouxe à luz uma visão de mundo, de modo que, ao lê-la historicamente, posso detectar que sempre teve a intenção de ser uma narrativa subversiva, minando uma visão de mundo e tentando substituí- la por outra. Ao lê-la com atenção, percebo que ela também pode subverter a minha visão de mundo. Aplicando tudo isso em um contexto mais amplo para a literatura judaica e cristã do primeiro século, descobrimos, sem dificuldade, que boa parte do material tem uma forma de história facilmente discernível, quer na superfície do texto, quer não muito abaixo dela. [ 132 ] Existem, porém, em ambas as tradições religiosas, dois tipos de narrativas notadamente diferentes. Há, em primeiro lugar, histórias que incorporam e articulam uma visão de mundo, embora seja claro que não se referem a acontecimentos do mundo público. Obviamente, as parábolas se enquadram nessa categoria e, no judaísmo, tem-se um livro como José e Azenate. [ 133 ] Em segundo lugar, há histórias que incorporam e articulam uma visão de mundo ao contar (mais ou menos) o que realmente aconteceu no domínio público, uma vez que essa é a perspectiva que pretende explicar. No judaísmo, trata-se, obviamente, do caso de livros como 1 e 2Macabeus, e Antiguidades e Guerras judaicas, [ 134 ]* de Josefo: Josefo está bem ciente da acusação de ter inventado tudo, de modo que lhe é claramente importante negar tal acusação. [ 135 ] No cristianismo, a questão é, obviamente, bastante controvertida. O livro que professa mais ruidosamente ter sido escrito por alguém que sabia do que estava falando (o evangelho de João, cf. 21:24) é o que costuma ser considerado uma história do primeiro tipo, não do segundo. Encontramos ironia semelhante no trabalho de alguns críticos que consideram os evangelhos “gnósticos” histórias do segundo tipo, mais próximas dos acontecimentos, e os sinóticos, histórias do primeiro tipo, ou seja, mitos etiológicos para um tipo de cristianismo fora de sintonia com seu fundador. [ 136 ] Teremos de examinar essas questões em mais detalhes na Parte IV, mas, por ora, podemos afirmar o seguinte: na visão de mundo judaica, era de vital importância que certos eventos se passassem na história pública, precisamente pelo fato de a maioria dos judeus acreditar, como veremos, que o seu deus era o criador do mundo e continuava a agir em sua criação. Embora os judeus fossem capazes de expressar toda ou parte de sua história em narrativas sem referente histórico real, tais histórias são essencialmente derivadas, destinadas a extrair, reforçar ou talvez até mesmo subverter a ênfase das histórias do segundo tipo. Uma história sobre um deus que não agiu ou sequer desejaria agir na história subverteria a história judaica básica de forma tão completa que não sobraria nada. Foi o que Marcião e os gnósticos fizeram; curiosamente, os movimentos modernos que mais se aproximam do gnosticismo são também as vozes contemporâneas mais ruidosas no incentivo à “desjudaização” da tradição de Jesus. [ 137 ] Neste ponto, sugiro que o crítico que deseja fazer jus aos próprios textos, em vez de desconstruí-los e torná-los irreconhecíveis, deve aceitar a necessidade de falar de assuntos no mundo extralinguístico, caso queira evitar que aquilo que é dito no mundo linguístico não caia na incoerência. É o caso de um dos principais argumentos do trabalho recente de Anthony Thiselton. [ 138 ] Com fundamento na teoria dos atos da fala proposta por Searle, assim como nos argumentos filosóficos de Wolterstorff, Habermas e, acima de tudo, Wittgenstein, Thiselton argumenta, de forma convincente, que, para muitos atos da fala, existe um elemento vital e inegociável, o qual consiste no “encaixe” entre o que é dito e os acontecimentos do mundo extralinguístico. Embora grande parte de sua atenção seja concentrada nos atos da fala relacionados a eventos não linguísticos presentes e futuros, também inclui, de forma explícita, o ponto que desejo destacar: que uma parte vital na apropriação de pelo menos alguns textos bíblicos é o trabalho da reconstrução histórica. [ 139 ] O fato de essa reconstrução ser possível e também conveniente será abordado no próximo capítulo. Cheguei à conclusão de que os argumentos contrários a essa possibilidade são, com frequência, reduzidos a argumentos contra sua conveniência. A cosmovisão filosófica que o torna inconveniente oferece, ao mesmo tempo, ferramentas para torná-lo aparentemente impossível. Toda a seção deste livro foi projetada para subverter essa visão de mundo. O crítico literário que trabalha com documentos de movimentos religiosos do primeiro século deve, assim, extrair e explicar a história que os escritos contam ou para a qual, em suas diversas formas, contribuem. Tal análise da visão de mundo por meio da história é central à tarefa. Ao fazer isso, também é necessário, obviamente, examinar a história ou as histórias que os próprios escritos abordam, reforçam, subvertem etc. E, assim como o crítico trabalhando em de la Mare ou Mann também deve mostrar como os textos em questão cumprem sua função — também indagando, talvez, se essa é a função que o autor pretendia —, o crítico do Novo Testamento deve estudar as partes à luz do todo, traçando a relação entre forma e conteúdo, estrutura e impacto, arte e efeito. Sem dúvida, hámuito mais a ser dito sobre esse assunto. Mas pelo menos abrimos algum espaço no qual podemos assumir nossa posição e prosseguir com a tarefa. Antes de passarmos para os principais componentes do assunto, da história e da teologia do Novo Testamento, devemos olhar com mais detalhes para a categoria central que temos usado desde o início. Vimos, ao longo de nossa argumentação, que um dos temas mais fundamentais da consciência humana é o da história/narrativa. Ademais, é inquestionável que uma boa parte do Novo Testamento (e da literatura judaica que forma parte de seu contexto) consiste em histórias reais. Devemos, portanto, examinar mais de perto o que são essas histórias e como funcionam. A NATUREZA DAS HISTÓRIAS 1. Análise textual: estrutura narrativa A forma como as histórias exercem um tipo de poder — pelo qual mudam a forma como as pessoas pensam e se comportam, alterando, portanto, a forma como o mundo é — pode ser vista mais claramente por meio de uma análise dos componentes essenciais que elas contêm. Entre muitas características que foram estudadas nos últimos anos, encontram-se: narrador, ponto de vista, padrões de julgamento, autor implícito, leitor ideal, leitor implícito, estilo, técnicas retóricas etc. Poderíamos dizer muito mais sobre esses assuntos, mas este livro não se destina a isso. [ 140 ] Muita atenção, entretanto, tem sido dada a um elemento em particular: a estrutura narrativa das histórias e como ela funciona; e esse elemento formará uma parte vital de diversos argumentos que, mais adiante, apresentarei neste livro. Sigo aqui, mais ou menos, a análise de histórias elaborada por A. J. Greimas, acompanhando o trabalho pioneiro de Vladimir Propp. [ 141 ] A esse respeito, cabem algumas observações preliminares. O trabalho de Greimas foi frequentemente incorporado aos estudos bíblicos nos últimos anos, segundo vemos, por exemplo, nos trabalhos de D. O. Via e J. D. Crossan, já discutidos de forma sucinta. Em geral, isso tem sido feito a serviço de uma abordagem formalista e/ou estruturalista, a qual, como vimos, tem sido uma forma de ler o texto e talvez de tentar dizer algo “objetivo” a seu respeito. Tal abordagem se distingue daquela que tenta situar o texto dentro da história de um autor ou comunidade, [ 142 ] usando-o como base para a reconstrução histórica. Pode-se pensar, portanto, que o uso de Greimas é aderir a um modelo estruturalista um tanto ultrapassado e, de qualquer forma, decididamente anti- histórico. Contra isso, e a favor de um uso cauteloso de uma análise narrativa do tipo articulado por Greimas no presente projeto, sugiro que a ênfase recente na narrativa, no contexto das teorias da epistemologia e da hermenêutica (cap. 2) e do estudo histórico (cap. 4), exige que busquemos uma compreensão de como funcionam as narrativas e que reempreguemos Greimas nesse cenário — não para segui-lo servilmente ou em um contexto formalista, mas a serviço de um programa histórico e hermenêutico mais amplo. O método de Greimas, sem dúvida, não é infalível, e não vou entrar aqui nos debates a esse respeito. [ 143 ] Como de costume, a prova do pudim está em comê-lo. O esquema de Greimas pode ser mais bem visualizado em uma série de diagramas. Sua complexidade, principalmente para aqueles que não estão familiarizados com Greimas e seus projetos, pode parecer proibitiva, como se alguém tentasse explicar o desconhecido utilizando-se do incognoscível. [ 144 ] Mas o objetivo do que pode parecer uma análise tortuosa, espero, gradualmente se tornará aparente. Sem muita atenção às diferentes fases de como a história realmente funciona, o intérprete está quase fadado a saltar muito rapidamente para esta ou aquela conclusão (provavelmente errada), especialmente quando a história em questão é muito familiar devido ao seu recontar frequente. As exigências do método nos obrigam a desacelerar e prestar atenção em cada estágio quanto ao que realmente está acontecendo. Posteriormente, sugerirei que a falha em dar atenção à história real contada tanto por judeus como por cristãos — ou seja, a história do Antigo Testamento — foi a acusação básica que a igreja primitiva levantou contra o judaísmo. Também é possível sugerir que uma falha semelhante por parte dos cristãos contemporâneos é generalizada e, além disso, está na raiz de muitos mal-entendidos da tradição cristã em geral e dos evangelhos em particular. Uma história típica pode ser dividida em três momentos. Há a sequência inicial, em que um problema é armado e criado, com um herói (ou heroína) encarregado de uma tarefa cujo cumprimento parece difícil ou até mesmo impossível; a sequência tópica, na qual o personagem central tenta resolver o problema proposto e acaba conseguindo; e a sequência final, em que a tarefa é enfim concluída. Assim: sequência inicial: Chapeuzinho Vermelho recebe comida de sua mãe para levar para a avó, mas é impedida pelo lobo de fazê-lo. sequência tópica: o resgate chega, com o tempo, na forma do lenhador. sequência final: Chapeuzinho Vermelho consegue, ao final, entregar a comida para a avó. Tais sequências podem ser definidas em diagramas úteis, adotando-se o seguinte esquema: O “remetente” é o iniciador da ação, que comissiona o “agente” para executá-la — ou seja, para pegar ou transmitir o “objeto” ao “receptor”. O “agente” é impedido de fazer o que lhe é exigido por alguma força — o “oponente” — e é, ao menos potencialmente, auxiliado pelo “ajudador”. Na sequência inicial, obviamente, o oponente (que pode ser simplesmente um defeito de caráter do agente) é mais poderoso do que o agente ou qualquer ajuda disponível. Se não fosse assim, não haveria história, mas apenas uma frase: “Chapeuzinho Vermelho foi enviada por sua mãe para levar um pouco de comida para a avó; foi o que ela fez, e todos viveram felizes para sempre”. Pode ser encantador, mas não é uma história. Não tem enredo. Não incorpora uma visão de mundo, exceto, talvez, uma cosmovisão extremamente ingênua. Então: Apesar de seu charme e de sua obediência — as únicas coisas com as quais a protagonista pode contar —, a heroína não consegue impedir o lobo de frustrar o plano, visto que ele come a avó de Chapeuzinho e ameaça comê-la também. O plano da mãe de fornecer comida para a moradora da casinha na floresta recebe uma reviravolta monstruosa. Mas, então, a sequência tópica fornece uma ajuda, como deve ser para que a história não seja abortada novamente: “Chapeuzinho Vermelho levou um pouco de comida para sua avó, mas o lobo comeu as duas”; a ideia não corresponde, mais uma vez, a uma história em seu sentido pleno. Na sequência tópica, é importante ressaltar que o agente da sequência inicial passa a ser o receptor, pois é ele, agora, que precisa de algo, a saber, de ajuda para sair da confusão. Não há um “remetente” aparente nesse caso particular, como em muitas sequências de várias histórias — o que não representa nenhum problema e, de fato, normalmente até confere certo ar de mistério, como no caso de O Senhor dos Anéis, de Tolkien, em que o leitor está sempre ciente de que até mesmo os líderes raramente vistos em ambos os lados representam poderes que circundam os protagonistas. Sequências tópicas assumem a mesma forma que as sequências iniciais: na natureza do caso, porém, o “Agente” do primeiro esquema é o “Receptor” deste, visto que, agora, o agente precisa de resgate e ajuda. Um novo “Agente” é, portanto, necessário, trazendo um novo “Objeto” — relacionado à libertação do Agente de sua situação difícil — para o resgate. Nessa fase, novos oponentes podem ou não ser adicionados. Desse modo: Ao aplicarmos tal esquema a essa sequência tópica de um conto popular, deparamos com o seguinte: O machado é poderoso demais para o lobo; a pobre garota é resgatada; a avó, após ser libertada do estômago do lobo (ao menos em algumas versões da história), finalmente recebe comida. A sequência final, portanto, repete a sequência inicial, com a importante diferença de que revela uma situação bem- sucedida: Assim, aplicando-oà nossa heroína e ao seu destemido salvador: John Barton, um dos atuais defensores de diferentes métodos de estudo bíblico, afirma que a história exige esse final: se o lenhador tivesse libertado o lobo e se casado com Chapeuzinho Vermelho, uma cosmovisão inteiramente nova viria à luz. Naturalmente, isso é possível: somos capazes de imaginar um discípulo de Sartre propondo algo assim; [ 145 ] mas não era para esse fim que a história remetia desde o início. [ 146 ] Esta é a sintaxe dos contos de fadas: é simplesmente assim que funcionam. Se essa sintaxe for alterada, um movimento poderosamente subversivo de pensamento torna-se manifesto. Devemos, obviamente, reconhecer de imediato que a maior parte das histórias apresentam muito mais complexidade do que essa. É comum que contenham subdivisões, enredos dentro de enredos etc.; veremos, em um momento, uma história bíblica conhecida que tem essencialmente um enredo dentro do outro. E também deve-se dizer que uma divisão importante da narrativa, a saber, a tragédia, não se encaixa tão obviamente no esquema mencionado. Nos contos populares, as coisas tendem a dar certo no final: sem dúvida, isso diz respeito às funções para as quais elas foram projetadas. Penso que a tragédia pode ter um esboço próprio, encaixando-se no esquema elaborado por Greimas ao seu próprio modo. A história que contarei a seguir também ilustrará esse ponto. [ 147 ] Conforme veremos, as muitas reviravoltas do enredo de uma história, a qual recairá principalmente em subdivisões da “sequência tópica”, exibem sequências em miniatura da mesma forma, às vezes até mesmo pequenos detalhes. Essa análise minuciosa já foi praticada nos evangelhos, [ 148 ] com o texto sendo posto ao microscópio para ver o que de fato está “acontecendo” por trás de uma narrativa cujas características externas são frequentemente tão conhecidas que proíbem, em vez de encorajar, uma nova compreensão. Embora esse exercício às vezes pareça tão denso que se transforma, por sua vez, em mais uma barreira para a compreensão, pode ajudar-nos, por exemplo, a localizar onde residem as ênfases principais de uma narrativa (que podem não estar onde as leituras “normais” do texto nos condicionam a olhar), e como as diversas partes se relacionam com o todo. Há uma necessidade premente de exercer melhor controle na prática desse método, ou seja, de encontrarmos meios de avaliar as respectivas afirmações dos críticos que o utilizaram. [ 149 ] Creio, por exemplo, que muitos daqueles que praticaram essa análise abordaram o texto com pressuposições não examinadas e chegaram a conclusões que devem ser contestadas. [ 150 ] Em tese, porém, a análise narrativa é mais do que apenas um exercício útil. Em um mundo (acadêmico) que não sabe o que são e para que servem as histórias, essa é uma tarefa necessária se desejarmos recapturar as importantes dimensões do texto. 2. Análise textual: os lavradores infiéis Como exemplo, olhemos brevemente para nossa velha amiga, a parábola dos lavradores infiéis (Marcos 12:1-12 e passagens paralelas). Nela, encontramos uma estrutura suficientemente clara, que demonstra ser um enredo dentro de um enredo, sendo o enredo interior essencialmente trágico. A história tem início com um proprietário que planta uma vinha a fim de (ao que parece) obter fruto para si mesmo, empregando lavradores como agentes, a despeito (ao que parece) da ganância desses trabalhadores: 1. Sequência inicial Até aqui, tudo bem. O dono envia mensageiros aos lavradores para obter os frutos; esse é o primeiro movimento da história interna. Os lavradores, porém, acabam sendo não apenas o objeto da jornada dos mensageiros, mas também os oponentes do plano; esse elemento precipita a natureza trágica da história interna, o fato de que sua conclusão carrega uma triste ironia. [ 151 ] 2. Sequência tópica (1) [= nova sequência inicial para a história interna] Após falhar no movimento inicial, o dono envia seu próprio filho para substituir os mensageiros: 3. Sequência tópica (2) [= Sequência tópica da história interna] Há, agora, duas coisas que devem ser feitas para que o plano original seja bem- sucedido. Como o ponto culminante trágico da história interna, os lavradores devem colher o destino que semearam para si mesmos. E, como o clímax de sucesso da história externa, o plano original, de alguma forma, tem de ser realizado, apesar da rebelião dos lavradores. Assim, primeiro o proprietário vem pessoalmente e destrói os lavradores: [ 152 ] 4. Sequência tópica (3) [= Sequência final da história interna] (Em breve, veremos que o espaço em branco na posição “ajudante” é importante.) Por fim, o dono instala novos lavradores, que produzirão os frutos de que ele necessita, voltando, por fim, à sequência inicial. [ 153 ] Contudo, em vez de os mesmos lavradores finalmente fazerem o que deveriam fazer — como Chapeuzinho Vermelho, que, finalmente, entregou a comida para a avó —, a natureza trágica da história interna significa que o agente original deve ser suplantado por um novo agente: 5. Sequência final da história principal O que aprendemos sobre a história por esse meio? Muito, em todos os sentidos. Em primeiro lugar, penso que devemos destacar (mais do que faríamos de outra forma) a questão das intenções do dono. Evidentemente, elas dizem respeito a uma realidade para além da vinha em si. A vinha está lá para cumprir um propósito. Nos contextos históricos da parábola (ou seja, o cenário óbvio no trabalho dos evangelistas, além do cenário hipoteticamente histórico na vida de Jesus), a vinha é certamente Israel; e a história pressupõe que Israel não foi criado para benefício próprio, mas para cumprir os propósitos do deus com quem fez aliança, propósitos que se estendem para além de suas próprias fronteiras. Em segundo lugar, o papel do filho é mais limitado do que se poderia pensar por uma leitura menos cuidadosa, superconsciente de uma cristologia posterior. Não há nada na morte do filho que sugira outra coisa senão o fracasso da sequência (3), nenhuma sugestão, dentro das possibilidades narrativas, de que essa morte, de alguma forma, fosse o meio de a história sofrer uma reviravolta — exceto no sentido negativo de que, não tendo mais nada a fazer, o dono agora deve ir pessoalmente e resolver aquela bagunça. No drama da história, o filho é basicamente o último e mais comovente dos mensageiros fracassados. Após o seu fracasso, o desastre é a única coisa que resta. Em terceiro lugar, observamos que, nas sequências (2) e (4), os lavradores aparecem em duas posições distintas. Talvez isso faça parte da essência da tragédia: que os personagens da história que foram projetados para se envolver em algum outro papel, como receptores ou sujeitos, apareçam na mesma história como oponentes. (O papel ambíguo dos discípulos nos evangelhos, tomados como um todo, deve ser considerado a partir desse ponto de vista.) A menos que outro subenredo intervenha, um subenredo através do qual eles são removidos dessa categoria, sua parte na história está fadada, no final, ao desastre. Em quarto lugar, dentro da função da narrativa em seus contextos históricos, os novos lavradores, que aparecem como agentes na sequência (5), não podem ser identificados (conforme presumiríamos inicialmente) apenas como gentios. A intenção do dono era conseguir algo por meio dos lavradores, e esse “algo”, como fica claro de várias maneiras nas narrativas gerais dos evangelhos, parece ser a bênção dos gentios. [ 154 ] Os “novos lavradores”, através dos quais isso agora deve ser alcançado, não podem, portanto, ser gentios per se, mas devem ser um novo grupo de judeus por meio dos quais o propósito será cumprido. [ 155 ] Em quinto lugar, o espaço em branco sob “ajudador” na sequência (4) pode ocultar uma implicação significativa. Normalmente, os espaços em branco são cheios de significado nas histórias, conforme vimos em relação ao “Remetente” em O Senhor dos Anéis, e segundo pode ser visto no “Objeto” não mencionado em “Os ouvintes”, poemaescrito por de la Mare. Nos contextos da narrativa (algo mais evidente em Lucas, porém implícito também em Mateus e Marcos), o meio pelo qual o dono (o deus de Israel) virá e destruirá os lavradores acabará sendo uma ação militar levada a cabo por Roma. Isso prepara o caminho, na narrativa mais ampla dos evangelhos, para a denúncia do Templo e a profecia de sua queda (Marcos 13 e passagens paralelas). Além dos pontos exegéticos mencionados, porém, há uma questão de significado muito mais amplo do que a análise, em tese, abriu. A parábola, como a maioria das parábolas de Jesus, conta a história de Israel — ou seja, estabelece a cosmovisão judaica da forma regular, apropriada —, porém lhe confere uma reviravolta surpreendente. Uma vez que compreendemos a estrutura histórica das cosmovisões em geral, e da cosmovisão judaica em particular, estamos na posse de uma ferramenta que, embora não seja frequentemente usada dessa forma, pode ajudar-nos a compreender o que estava em jogo nos debates entre o judaísmo e o cristianismo do primeiro século. Não se tratava apenas de uma questão de debate “teológico”, no sentido de controvérsias relacionadas a algumas doutrinas abstratas. Tampouco o problema pode ser reduzido em termos de pressão social e de facções, no sentido de uma controvérsia entre judeus e não judeus ou entre judeus que praticavam ou não praticavam a lei. Tratava-se, em termos muito mais fundamentais, de uma controvérsia sobre diferentes narrativas da história do deus de Israel, de seu povo e do mundo. E é possível, em tese, traçar essas diferentes narrativas em diagramas como aqueles que acabamos de utilizar, a fim de expor, em detalhes, as diferentes formas como as histórias foram contadas, compreendendo, assim, o que realmente estava em jogo no primeiro século. Tarefas dessa natureza serão uma característica do restante deste livro e, de fato, de todo o projeto. Uma reflexão final: essa análise da parábola abre uma janela sobre a maneira como as histórias dos evangelhos, bem como a própria história do evangelho, articulam, de forma típica, a tragédia dentro da comédia, o fracasso de um conjunto de agentes em meio ao “sucesso” do plano em geral. [ 156 ] A história do próprio Jesus, de morte e ressurreição, sofrimento e justificação, tem essa forma; e o mesmo acontece com a história contada pelos cristãos sobre Israel, o povo do deus criador. A história dos lavradores infiéis, portanto, traz à luz a mesma estrutura narrativa que algumas das principais apresentações da cosmovisão cristã primitiva. 3. Jesus, Paulo e as histórias judaicas Evidentemente, a parábola dos lavradores infiéis não é um caso isolado. Contar histórias era (segundo os evangelhos sinóticos) um dos métodos de ensino mais característicos de Jesus. Ademais, à luz de todo o argumento apresentado até então, seria claramente equivocado ver essas narrativas como meras ilustrações de verdades que poderiam, em tese, ter sido articuladas de forma mais pura e abstrata. Histórias eram uma forma de romper com a visão de mundo dos ouvintes, a fim de que sua cosmovisão fosse remodelada segundo aquela aceita e defendida por Jesus. Suas histórias, como hipoteticamente todas as histórias, convidavam seus ouvintes para um novo mundo, sugerindo, de forma implícita, que uma nova cosmovisão fosse experimentada e permanentemente adotada. Como veremos na parte seguinte deste livro, a teologia de Israel quase sempre foi caracteristicamente expressa em termos de história explícita: a história do Êxodo, dos juízes, de Davi e sua família, de Elias e Eliseu, do exílio e da restauração — e, dentro do cânon hebraico que se estabeleceria, a história da criação e dos patriarcas, abrangendo todas as outras e dando expressão ao seu significado mais amplo. Jesus simplesmente mantinha, nesse aspecto, uma longa tradição. Se é verdade que todas as cosmovisões são, em um nível mais profundo, fórmulas abreviadas para a expressão de histórias, isso é particularmente claro no caso do judaísmo. A crença em um único deus, que chamou Israel para ser seu povo, é o fundamento do judaísmo. A única maneira adequada de falar sobre um deus como esse, que faz o mundo e atua nele, é por meio da narrativa. “Evaporar” um conjunto abstrato de proposições, como se assim alguém chegasse a uma declaração mais fundamental, seria, na verdade, descaracterizar uma visão de mundo. Isso não quer dizer que não possamos utilizar frases e palavras abreviadas para nos referirmos, de forma concisa, a uma cosmovisão cuja complexidade seria, de outra forma, tediosa de elaborar sempre. Desse modo, a expressão “monoteísmo e eleição” (cf. cap. 9) não se refere a duas entidades abstratas, existentes fora do espaço e do tempo. É uma forma de convocar os olhos da mente a toda uma visão de mundo. Nesse sentido, segundo descreveremos a seguir, Israel contou e recontou a história de como havia um único deus, o criador, de como ele escolhera Israel para ser seu povo particular e de como, portanto, restauraria sua sorte, levando toda a sua criação ao cumprimento pretendido. Dar uma explicação completa todas as vezes seria algo extremamente desgastante. Também seria, de qualquer modo, algo desnecessário — desde que nos lembremos de que, como tantos outros termos teológicos, palavras como “monoteísmo” são constructos tardios, abreviações convenientes de realidades cujo conteúdo, muito mais complexo, é o verdadeiro material da teologia, não meras expressões infantis de uma verdade abstrata “mais pura”. Que tipo de histórias são mais características dos judeus nesse período? Conforme já sugerimos, histórias/narrativas de todos os tipos podem expressar o conjunto de crenças sustentadas pela maioria dos judeus, incluindo a crença de que seu deus foi o criador do mundo; mas essa crença (ao contrário de várias formas de dualismo, por exemplo) nasce, de forma mais natural e característica, em histórias acerca de acontecimentos no mundo real. Ou seja: quando monoteístas criacionais e pactuais narram o que lhes sucedeu, o nível narrativo mais básico para sua visão de mundo é a história. Dizer que podemos analisar narrativas de forma bem-sucedida sem mencionar sua possível referência pública — e, portanto, que não podemos nem devemos fazer tal referência — é cometer o tipo de erro epistemológico contra o qual tenho argumentado nos últimos dois capítulos. É negar o referente ao enfatizar os dados sensoriais. Se deixarmos de ver a importância da natureza histórica real de pelo menos algumas das narrativas contadas pelos judeus nesse período, não compreenderemos o significado, nem na forma nem no conteúdo, das narrativas em si. Somente quando insistimos em ler as narrativas judaicas no âmbito de um conjunto de pressupostos culturais estranhos à sua visão de mundo e à sua história subjacente é que podemos imaginá-las como que falando sobre um deus distante, o qual não age na história e não a levará, com um suspiro de alívio, a um ponto-final. [ 157 ] Mas essa ideia já está nos levando muito longe de nosso objetivo atual. O que é verdadeiro sobre as histórias/narrativas judaicas pré-cristãs também é verdadeiro a respeito das primeiras histórias/narrativas cristãs. Se Jesus ou os evangelistas contam histórias, isso não significa que deixam a história ou a teologia de fora da equação e fazem outra coisa. Se, como vimos, foi assim que a teologia de Israel (sua crença no criador como deus da aliança e vice-versa) caracteristicamente encontrou expressão, não deveríamos nos surpreender se a teologia cristã, pelo menos em suas formas iniciais, acabasse por ser muito semelhante. O que temos de fazer, como historiadores, é descobrir como chamar a visão de mundo antiga para o olhar moderno; assim, ela poderá ser discutida com clareza, e novos movimentos que nela ocorriam poderão ser traçados com uma precisão histórica. Em outras palavras, temos de aprender a ler as narrativas com os olhos abertos. O ramo histórico que escrutiniza a cosmovisão de sociedades e indivíduos deve envolver-se com a investigação cuidadosadas narrativas, implícitas ou explícitas, que eles contaram uns aos outros e ao mundo. Assim, conforme veremos na Parte IV, quando a igreja primitiva contava histórias sobre Jesus, essas narrativas não eram, como se poderia imaginar, meras seleções aleatórias, episódicas. Antes, davam a entender que cada acontecimento poderia encaixar-se em uma história/narrativa geral e sugeriam uma forma narrativa na qual as histórias menores se amoldariam. Das menores unidades que a crítica da forma pode isolar até o mais longo dos primeiros evangelhos cristãos, as histórias que foram contadas têm uma forma que pode, em tese, ser estudada, traçada e comparada com outras narrativas da história judaico-cristã. Essas narrativas um tanto óbvias da história de Jesus formarão uma parte importante de nosso argumento posterior. Mas e quanto a Paulo? Certamente, ele rejeitou a forma narrativa, discutindo Deus, Jesus, o Espírito, Israel e o mundo em termos muito mais abstratos, não é? Não é o caso de, com isso, o apóstolo haver abandonado o mundo judaico da teologia-história, partindo sozinho para o território rarefeito da especulação helenística abstrata? A resposta é um enfático “não”! Como recentemente foi demonstrado em relação a algumas áreas-chave da escrita de Paulo, as declarações e os argumentos mais enfaticamente “teológicos” do apóstolo são, na verdade, expressões da história essencialmente judaica, redesenhada, agora, em torno de Jesus. [ 158 ] Isso pode ser visto com mais clareza em suas declarações frequentes, às vezes tão reduzidas que chegam a ser quase estereotipadas, sobre a cruz e a ressurreição de Jesus; o que, de fato, acontece é que Paulo conta, repetidas vezes, toda a história de Deus, de Israel e do mundo como estando agora comprimida na história de Jesus. Da mesma forma, seu uso repetido do Antigo Testamento não é projetado como mera prova por meio de textos, mas, pelo menos em parte, para sugerir novas maneiras de ler histórias conhecidas e sugerir que encontram um clímax mais natural na história de Jesus do que em qualquer outro lugar. É claro que todo esse tema deverá ser explorado posteriormente; aqui, eu o menciono apenas para que ninguém pense que Paulo realmente foi uma exceção à regra por mim formulada. Na verdade, trata-se de um excelente exemplo. Ao longo de todo o projeto, nossa tarefa, então, envolverá o discernimento e a análise, em um nível ou em outro, de histórias do primeiro século e suas implicações. Narrativas, tanto em sua forma como em seu modo de ser contadas, são os agentes cruciais que revestem “acontecimentos” de “significados”. O modo como os fatos físicos desnudos são descritos, o ponto no qual há tensão ou clímax, seleção e organização — tudo isso remonta ao significado que, segundo acreditamos, o acontecimento tem. [ 159 ] Nossa tarefa geral é discutir a origem histórica do cristianismo e, em uma relação complexa com essa origem histórica, discutir a questão teológica, a questão de “deus”; e as matas nas quais a presa se esconde, em cada caso, pode ser rotulada de Narrativa. Para o historiador, tentar entender a cosmovisão, a mentalidade, a motivação e a intenção (cf. cap. 4) de Jesus, de Paulo e dos evangelistas — caçar a presa — significa principalmente entender as histórias que os personagens contavam, tanto verbalmente, em sua pregação, como na escrita, e andar pelos caminhos que eles escolheram trilhar, vendo como as histórias funcionavam, onde estava sua ênfase e, em particular, onde representavam um desafio, implícito ou explícito, às histórias contadas no judaísmo e no paganismo da época. Temos de dar atenção, como vimos, às diferenças e semelhanças entre as histórias que os autores bíblicos contavam e que funcionavam sem relação com possíveis referentes no mundo público e aquelas que perderiam seu sentido se não se referissem à realidade histórica. E, ao tentar essa tarefa complexa, o teólogo descobrirá que a questão de “deus” não pode, ao mesmo tempo, deixar de ser tratada. Não estou preocupado, aqui, em discutir qual rótulo devemos atribuir a essa tarefa multifacetada (Crítica literária? História? Teologia?). Estou certo de que a tarefa confronta o historiador e o teólogo como algo necessário — não só por se tratar de uma tarefa em tese possível, mas também, no estado atual das pesquisas, de um trabalho vital e oportuno. E, certamente, é óbvio para qual direção devemos olhar a seguir. Após examinar o conhecimento e a literatura, estamos em condições de analisar um tipo particular de conhecimento, um tipo particular de literatura. Devemos nos mover para dentro — de histórias para a história. CAPÍTULO 4 HISTÓRIA E O PRIMEIRO SÉCULO INTRODUÇÃO O conhecimento histórico, conforme sugeri no capítulo 2, realmente constitui um tipo de conhecimento. Precisamos deixar claro esse ponto, principalmente após o último capítulo. Em boa parte da crítica literária moderna, como vimos, há tanta ênfase no texto isolado do autor — e no leitor isolado do texto — que qualquer ideia de que alguém possa ler algo que vá além do texto em si soa como um projeto tão ambicioso que é totalmente desconsiderado — ao menos em tese e quando se mostra conveniente. Todavia, isso me parece, em essência, contraintuitivo. O desconstrucionista mais convicto ainda rastreará a ancestralidade de seu movimento a Foucault, Nietzsche, Saussure ou qualquer outro; e àqueles a quem o estudo e a escrita da história correspondem ao seu trabalho cotidiano, os escrúpulos do pós-modernismo parecerão incrivelmente — quase impossivelmente — cautelosos, tímidos e retraídos. O fato é que podemos escrever história, sim. Podemos saber a respeito de coisas que aconteceram no passado. Entretanto, que tipo de conhecimento é esse? Evidentemente, não há espaço aqui para uma discussão completa da natureza da história em si. [ 160 ] Para começar, vou me limitar a uma discussão geral, defendendo uma teoria “crítico-realista” do que a história como disciplina é e faz e, em seguida, aplicarei essa posição aos principais problemas históricos que nos aguardam no corpo do projeto. Ao longo da minha argumentação, porém, vamos descobrir que, quanto mais olhamos para a “história” em si, mais percebemos que ela não pode existir sozinha. Ela aponta para algo além de si. Em nossa área específica, é impossível falar da origem do cristianismo sem ser confrontado com a questão de deus, assim como, ao considerarmos a teologia, descobriremos que o oposto também é verdadeiro. A história, conforme veremos, é vital; sozinha, porém, não é suficiente. Começamos, então, com um breve relato acerca do termo história. A palavra “história” [ 161 ] é comumente empregada de duas maneiras bem distintas, porém correlatas, como referência (1) a acontecimentos reais e do mundo real e (2) àquilo que as pessoas escrevem sobre os acontecimentos reais e do mundo real. Embora a segunda dessas definições seja tecnicamente a mais correta (é o único significado no Concise Oxford Dictionary [Dicionário conciso de Oxford]), é importante reconhecer a presença da primeira definição, pelo menos na fala popular: não é autocontraditório dizer: “Eu sei que não está escrito em lugar algum, mas o fato realmente aconteceu na história”. Confundir esses dois significados — o de “história como acontecimento” e o de “história como escrita a respeito dos acontecimentos” — abre espaço para muitos mal-entendidos e frustrações. Concentrarei a atenção de boa parte deste capítulo na segunda definição, mas de modo a incluir, e não a excluir, a primeira: a história, conforme argumentarei, não é nem “fatos desnudos” nem “interpretações subjetivas”, mas, sim, a narrativa significativa de acontecimentos e intenções. A atividade humana da escrita, incluindo a escrita histórica, constitui ela mesma um acontecimento real e do mundo real. Por conseguinte, a confusão entre história como acontecimento e história como escrita pode tornar-se ainda maior; no entanto, reconhecer esse fato também é uma saída para a dificuldade. Quando os historiadores escrevem como se não tivessemum ponto de vista, como se eles próprios fossem observadores “não históricos”, é aí que começa o problema. Eis precisamente o ponto de partida para a nossa tarefa. A IMPOSSIBILIDADE DA “MERA HISTÓRIA” Não existe, nem pode existir, algo do tipo uma crônica nua de acontecimentos destituídos de um ponto de vista. [ 162 ] O grande sonho iluminista de registrar “o que, de fato, aconteceu” é apenas isto: um sonho. O sonhador é, mais uma vez, o positivista, aquele que, olhando para a história, crê que é possível ter acesso instantâneo e não adulterado aos “acontecimentos”. Em um nível ingênuo, isso resulta na seguinte perspectiva pré-crítica: OBSERVADOR EVIDÊNCIA ------------- → ------------- → • simplesmente olhando para a evidência… e tendo acesso direto aos “fatos” Em um nível mais sofisticado, a percepção de que a evidência pode conduzir a equívocos dá origem a um positivismo mitigado: o observador peneira a evidência, reconhecendo que, embora parte dela não tenha muita utilidade, outras partes fornecem o desejado acesso direto. [ 163 ] Essa é a analogia da rejeição positivista da metafísica em favor do suposto conhecimento científico “claro”: OBSERVADOR EVIDÊNCIA ACONTECIMENTO PASSADO ------------- → ------------- → • olhando para a evidência, peneirando-a ←------------- • rejeitando algumas partes ------------- → • e aceitando outras Entretanto, para repetir minha declaração inicial, esse sonho de encontrar fatos desnudos e não envernizados não corresponde à realidade — o que procurarei demonstrar de forma sucinta a seguir, embora se trate de um ponto praticamente óbvio. Em um nível geral, não demora para ficar claro que a história como um todo envolve seleção. Ela compartilha esse elemento com outras áreas do saber. A todo instante, estou ciente de um vasto número de impressões sensoriais, das quais faço uma seleção muito limitada para meu foco atual de atenção e interesse. (Uma das razões pelas quais, por exemplo, apreciamos arte ou nos apaixonamos por alguém talvez seja pelo fato de essas experiências inebriantes envolverem um conjunto mais amplo do que o normal de seleções simultâneas.) No nível mais trivial, qualquer tentativa de registrar “o que aconteceu” sem algum tipo de seletividade falharia, apenas pelo enorme volume de informações — cada suspiro de cada ser humano, cada folha que cai, cada nuvem que transita no céu. Alguns suspiros humanos talvez sejam dignos de registro: o suspiro de alguém que suspeitávamos estar morto, por exemplo. O cair de algumas folhas e o transitar de algumas nuvens podem repentinamente adquirir importância, dependendo do contexto (considere a pequena nuvem que o servo de Elias viu no topo do monte Carmelo). Mas até mesmo uma câmera de vídeo configurada aleatoriamente não resultaria em uma perspectiva completamente “neutra” dos acontecimentos. Sua localização estará fixa apenas em um local; terá apenas um comprimento focal; apontará apenas em uma direção. Se, em um sentido, a câmera nunca mente, podemos ver que, em outro sentido, ela não faz outra coisa senão mentir. A câmera exclui muito mais do que inclui. A fim de fazer, então, qualquer afirmação sobre o passado, o ser humano precisa engajar-se em um esforço massivo de seleção. Fazemos isso o tempo todo — e nos tornamos muito bons nessa prática —, quando selecionamos rapidamente pequenos fragmentos de nossa vida, organizando-os em narrativas, anedotas, lendas familiares etc. E esse processo envolve inevitavelmente um importante elemento de interpretação. Tentamos dar sentido ao mundo em que vivemos; do contrário, não passaremos de esponjas em vez de seres humanos. Todo conhecimento e toda compreensão dizem respeito à reflexão por parte do ser humano; todo conhecimento decorre das percepções e reflexões de alguém. Como vimos no capítulo 2, o legado do positivismo muitas vezes nos seduz a imaginar que um “fato” é uma coisa “puramente objetiva” e imaculada pelo processo de conhecimento de qualquer pessoa. [ 164 ] Na realidade, porém, o que chamamos de “fatos” sempre faz parte de um contexto de resposta, percepção e interação — um processo complexo e contínuo. As narrativas, como vimos, são mais fundamentais do que os “fatos”; as partes devem ser vistas à luz do todo. Isso se torna mais obviamente verdadeiro, e em um nível mais sério, quando tentamos falar dos acontecimentos do passado. Suponhamos, por exemplo, que tentemos fazer uma afirmação modesta, porém central, sobre Jesus. [ 165 ] Se dissermos que “Cristo morreu pelos nossos pecados”, não é tão difícil perceber um elemento óbvio de interpretação: “pelos nossos pecados” é um adendo teológico a uma declaração que, de outra forma, seria “histórica”. Mas, ainda que digamos, “Cristo morreu”, não escaparemos da interpretação: escolhemos nos referir a Jesus como “Cristo”, atribuindo-lhe uma messianidade que nem seus contemporâneos nem os nossos conferiram-lhe universalmente. Muito bem, então. E se dissermos apenas: “Jesus morreu”? Mesmo assim, ainda não escaparemos da “interpretação” — e, de fato, a interpretação parece, nesse caso, maior do que nunca: três pessoas morreram fora de Jerusalém naquela tarde, mas optamos por mencionar apenas uma. Aliás, milhares de judeus foram crucificados pelos romanos nas proximidades de Jerusalém ao longo do primeiro século, mas nós optamos por mencionar apenas um. Nossa observação histórica aparentemente desnuda é o produto de uma decisão interpretativa multifacetada. Isso também não é incomum. É típico da história. Toda história envolve seleção, e é sempre o ser humano que faz a seleção. Segundo uma visão “moderna” popular, foi apenas nos últimos duzentos anos que descobrimos em que realmente a “história” consiste, enquanto os escritores do mundo antigo eram ignorantes sobre o assunto — inventando fatos livremente, tecendo fantasias com lendas e chamando-as de história. Há uma grande ironia nessa perspectiva, já que ela mesma é um mito moderno, legitimando o imperialismo cultural do Iluminismo sem ter qualquer base na história real do mundo antigo. Na verdade, os historiadores da antiguidade sabiam em que consiste a história tão bem quanto nós, e muitas vezes ainda melhor. [ 166 ] Não tinham a ilusão de meramente observar os fatos e registrá- los. Heródoto organizou os acontecimentos de forma a apresentar sua teoria sobre como a história funciona — a saber, que tudo resulta do ciúme e da ganância do ser humano. Ele criticou alguns dos contos que registrou a partir de outras pessoas, alegando que continham, em grande medida, os pontos de vista dos observadores (presumivelmente excêntricos). Heródoto não diz que os observadores não deveriam ter um ponto de vista, mas apenas que ele tinha motivos para pensar que o ponto de vista deles resultara na distorção de acontecimentos reais. Como todos os principais historiadores do mundo antigo, Heródoto reconhecia a diferença entre história propriamente dita e a mera horografia, a tentativa de registrar “o que aconteceu” de um dia para o outro. [ 167 ] Ao mesmo tempo, Heródoto sabia tão bem quanto nós que existem coisas como acontecimentos reais e que é tarefa do historiador escrever sobre eles, desconsiderando os acontecimentos que considera implausíveis. [ 168 ] De modo semelhante, Tucídides sustentou uma doutrina de anangke — de necessidade — segundo a qual causa e efeito ocorrem na esfera histórica. Embora ele tenha vivido suficientemente perto dos acontecimentos da Guerra do Peloponeso para saber com muita precisão “o que aconteceu”, Tucídides não fingiu, assim como não devemos supor, que seu relato era, portanto, “imparcial”. Na verdade, como um general demitido, observando a sorte do país que o rejeitou, dificilmente poderíamos esperar algo assim. Contudo, é precisamente a partir desse ponto de vista que ele teve a oportunidade de escrever de modo envolvente e ao mesmo tempo desapegado: selecionando e organizando, claro, mas também fornecendo aos leitores um conhecimento factual de acontecimentos factuais. Coisas semelhantes poderiam ser ditas, mutatismutandis, sobre Lívio e Josefo, sobre César e Tácito, sobre até mesmo, em certa medida, Suetônio. O fato de a mente humana ter de organizar e dispor o material não “falsifica” a história. Ao mesmo tempo, Tucídides e os demais estavam tão cientes quanto nós do dever solene do historiador de se empenhar pela honestidade intelectual e a imparcialidade rigorosa. [ 169 ] Não foram os antigos que se enganaram quanto à natureza da história, vivendo em uma era pré-moderna e não sabendo em que consistia o pensamento crítico. Somos nós que, na rejeição iluminista da confiança em auctores, “autoridades” em sentido múltiplo, passamos a nos imaginar como os primeiros a ver a diferença entre sujeitos e objetos, julgando erroneamente, portanto, nossos antepassados e nos enganando. Inventar “história” por uma recapitulação ideológica projetada é um fenômeno tanto moderno como antigo — talvez até mais moderno do que antigo. É algo de que os próprios eruditos do Novo Testamento não estão isentos. Assim, por um lado, tanto os historiadores antigos como os modernos estavam cientes da obrigação do historiador de fazer o possível para não se posicionar de modo a prejudicar seus próprios interesses: o famoso sine ira et studio, de Tácito — honrado, claro, pela violação e não pela observância —, serve de evidência suficiente desse fato. [ 170 ] Por outro lado, nenhum historiador moderno escapou da necessidade inevitável da seletividade, e a seletividade não pode ser feita sem um ponto de vista. (Em contrapartida, nenhum ponto de vista pode ser sustentado sem seletividade, ainda que inconsciente.) O mito da “história não interpretada” funciona precisamente como isto: um mito em meio ao discurso moderno — ou seja, expressa um estado ideal cuja realidade erroneamente imaginamos existir, e cuja influência afeta nossa forma de pensar e falar. No entanto, apesar de tudo, trata-se apenas de um “mito”, no sentido popular da palavra. É correr atrás do vento, então, imaginar que alguém, antigo ou moderno, poderia “simplesmente registrar os fatos”. Em minha juventude, o jornal que afirmava “dar ao leitor os fatos, com toda a franqueza”, era notoriamente o órgão de propaganda oficial do Partido Comunista Britânico. Aprendemos a suspeitar de pessoas que reivindicam ser a única voz imparcial sobre o assunto abordado; em geral, essa alegação simplesmente significa que seu plano ideológico é tão grande que, como uma montanha obscurecendo o céu, elas se esquecem da existência de sua ideologia. Não existe um ponto de vista imparcial, desinteressado. Imaginar, portanto, como fizeram alguns pensadores pós- iluministas, que nós, do mundo moderno, descobrimos a “história pura”, de modo que tudo o que fazemos é registrar “o que realmente aconteceu”, sem o acréscimo de qualquer elemento interpretativo ou perspectiva do observador — e que isso, de alguma forma, nos eleva a uma posição de superioridade sobre aqueles pobres ignorantes do passado, cuja objetividade não era suficiente, por não distinguirem fatos de ficção —, não passa de insensatez e arrogância. Pareceria estranho até mesmo ter de refutar algo assim, não fosse a influência tão grande que essa ideia exerce precisamente na área em que desenvolvemos nosso tema. Toda história, assim, consiste em uma espiral de conhecimento, um longo processo de interação entre o intérprete e o material de origem. Trata-se de uma verdade, a despeito de o historiador em questão ser cristão, escrevendo sobre Jesus e Paulo com algum compromisso prévio em relação a ambos, ou um não cristão, escrevendo sobre ambos com a expectativa de que eles estejam errados. Nesse ponto, Rudolf Bultmann e Bertrand Russel estão de acordo. [ 171 ] Esse processo de interação não é um fenômeno estranho ou inusitado, mas, sim, um fenômeno humano perfeitamente comum. Cada vez que pego o telefone e ouço uma voz, faço um julgamento, formulo uma hipótese acerca de quem fala do outro lado da linha. Algumas vezes, estou certo; outras vezes, mesmo quando a pessoa revela seu nome, estou errado. No último caso, sou obrigado a contornar a espiral várias vezes, o que me levará, espero, à sua identificação. Em seguida, posso concentrar-me na próxima espiral de conhecimento (que já pode ter começado), a de realmente ter um diálogo em que um ou ambos os envolvidos nem sempre entendem o que está sendo imediatamente dito. Não é o caso de eu ser simplesmente um ouvinte neutro, gravando tudo o que é dito em um disco rígido vazio. Ocorre uma interação. Em tese, com a história, isso não é diferente, exceto que os materiais de base geralmente são mais complicados do que as chamadas telefônicas. Quando o material de origem do historiador consiste na literatura do cristianismo primitivo, a situação é, obviamente, ainda mais complicada. Como já discutimos no capítulo 1, muitos leitores do Novo Testamento o abordam de modo a considerá-lo, de alguma maneira, autoritativo. É como se alguém pegasse o telefone e esperasse ouvir uma voz que lhe diz o que fazer. O processo normal da espiral do conhecimento continuaria, mas, dessa vez, seria recoberto, e talvez até mesmo confundido, por um conjunto diferente de questões. No caso dos evangelhos, a situação é ainda mais complexa. Agora, é como se a voz na linha, que se presume autoritativa, não desse instruções, nem emitisse ordens, mas apenas contasse uma história. Não causa surpresa que aqueles que reivindicam a escritura como sua autoridade tenham dificuldade em descobrir o que fazer com os evangelhos. Os historiadores têm lutado para se libertar da suposição de que a história é confiável; os teólogos, às vezes, do reconhecimento de que essa autoridade se apresenta de forma narrativa. Deparamos com o mesmo problema duplo nas cartas neotestamentárias. Como esses documentos históricos podem funcionar como autoritativos? A impressão prima facie das cartas, de que são mais fáceis de usar como autoridade por dizerem às pessoas em que acreditar e como se comportar, pode, na verdade, ser enganosa. E se Paulo estiver falando aos gálatas que evitem ser atraídos para o judaísmo e exortando os romanos a evitar ser atraídos para o antissemitismo? Como é possível um bilhete dizendo a um amigo que Paulo espera, em breve, visitá-lo e hospedar-se em sua casa ser “autoritativo” para a igreja em uma geração subsequente? Nem está claro, na superfície do texto, como uma discussão sobre a carne oferecida aos ídolos se tornará relevante para a igreja do século 21. Mesmo quando a voz na linha parece dar instruções, como podemos estar certos de que se destinam a nós? Em contrapartida, se estamos determinados a empregar as cartas como autoritativas em certo sentido, como podemos fazê-lo sem levar em consideração também os aspectos históricos, como notoriamente aconteceu em muitos estudos de Paulo? Existem, então, pelo menos três tipos distintos de exercícios envolvidos na leitura dos evangelhos e das cartas, os quais normalmente parecem cruzar o caminho uns dos outros — com o elemento extra, claro, de que o que faz a ligação está falando em uma língua estrangeira e pertence a uma cultura bem diferente. O primeiro é o exercício da escuta, pura e simples; o segundo, o da interação; o terceiro, o exercício da prontidão para responder de forma adequada (ou a intenção de evitar dar uma resposta). Todos dizem respeito a questões mais amplas do que simplesmente a história, garantindo, assim, que a tarefa do historiador nunca pode ser simplesmente observar e registrar “o que realmente aconteceu”. Mesmo aqueles que não consideram os textos, de alguma forma, autoritativos deparam com o fato de que sua leitura é inevitavelmente conduzida em diálogo com outros leitores, antigos e modernos, que os consideram dessa forma; e que ao menos algumas das questões discutidas por aqueles que se encontram nessa outra ponta da linha telefônica foram moldadas, ao longo dos anos, por essa perspectiva. [ 172 ] Além disso, mesmo aqueles que gostam de se considerar individualistas ferrenhos terão de enfrentar o fato de que compartilham o telefonecom outras pessoas. A alternativa é simplesmente ignorar os outros falantes e, desse modo, não dialogar com eles. Estudar a história, ao que tudo indica, não é uma tarefa tão simples quanto às vezes se imagina; e ler o Novo Testamento de um ponto de vista histórico é menos ainda. Há duas áreas de particular interesse histórico para o estudante do Novo Testamento. No presente volume, elas nos ocuparão posteriormente. Ambas fornecem exemplos clássicos do modo como as pressuposições interpretativas inevitavelmente interagem com o manuseio dos dados. Na primeira, o estudo do judaísmo antigo há muito tem sido atormentado por uma leitura que “sabia”, de antemão, que o judaísmo era o tipo errado de religião, o contexto obscuro para a luz gloriosa do evangelho. Agora, estamos em um período de reação categórica e justificada contra isso. Tal reação, entretanto, traz seus próprios problemas; atualmente, há uma leitura atomística e não teológica do judaísmo, uma leitura que o divide em suas diferentes expressões e rejeita qualquer síntese coerente, exceto a mais generalizada. [ 173 ] Na segunda, e de forma semelhante, o estudo do cristianismo primitivo tem sido prejudicado por gerações, pela necessidade que a maioria dos escritores sente de organizar o material de uma forma teologicamente desejável, comprimindo os dados de forma deveras espúria. A ideia é: “Os primeiros cristãos devem ter sido pessoas de características peculiares; precisamos que tenham sido, pois, do contrário, não sustentaremos nossa interpretação do cristianismo”. [ 174 ] Isso produziu, como agora é comum observar, o “mito das origens cristãs”. Como no caso do judaísmo, começaram as reações, mas o atomismo, atualmente, tem aumentado. [ 175 ] Em ambos os casos, podemos ser um pouco solidários com os movimentos modernos. Como veremos a seguir, o historiador enfrenta duas tarefas: os dados devem ser incluídos e uma simplicidade geral deve emergir. Mas essas tarefas devem ser mantidas com o devido equilíbrio. Se a simplicidade (de um tipo espúrio) governou por muito tempo, produzindo o “mito de um judaísmo sombrio” ou o “mito de um cristianismo recém-nascido”, é hora de os dados não selecionados receberem uma nova audiência. Contudo, aqui também, há um contramito implícito: o mito dos dados objetivos ou da história sem pressuposições, de modo que o objetivo do meu presente argumento é desafiá-lo: na verdade, não existe algo como “mera história”. Existem dados. Existem manuscritos, incluindo os muito antigos. Moedas e dados arqueológicos estão disponíveis. A partir desses elementos, podemos saber muito sobre o mundo antigo, chegando a um conhecimento tão bom quanto o que temos de qualquer outra coisa. No entanto, mesmo na coleta de manuscritos e moedas — quanto mais para lê-los, traduzi-los ou organizá-los em edições ou coleções! —, já devemos engajar-nos na “interpretação”. [ 176 ] Houve, obviamente, disciplinas que se desenvolveram em torno de todas essas atividades, projetadas precisamente para evitar que tais tarefas caiam na arbitrariedade. Meu ponto atual é simplesmente que toda a história é história interpretada. ISSO NÃO SIGNIFICA “AUSÊNCIA DE FATOS” 1. Realismo crítico e a ameaça do objeto em desaparecimento A absoluta complexidade da tarefa do historiador, assim como sua manifesta diferença da “mera observação”, pode levar, e levou alguns, à conclusão de que não existem, então, coisas como “fatos”. Se tudo é colorido pela perspectiva de alguém, então tudo pode ser reduzido aos termos dessa perspectiva. Este é o análogo do historiador para uma epistemologia fenomenológica: OBSERVADOR • olhando para a evidência ou que, na verdade, serve apenas de evidência para o ponto de vista do observador Tão frequente é essa suposição que, diariamente, encontramos exemplos de reducionismo com base na crença equivocada de que apenas um ponto de vista “puro” ou “neutro” será de alguma utilidade para qualquer pessoa. A declaração: “Você só diz isso por ser um pessimista” pode ou não ser uma réplica contundente a uma afirmação de que o bom clima dos últimos dias não durará por muito tempo. O “pessimista” pode ter escutado uma previsão precisa do tempo. Da mesma forma, a declaração: “Você só diz isso por ser um matemático” não tem força alguma para anular a ideia de que dois mais dois são quatro. Nesse caso, como em vários outros, a ressalva aduzida como motivo da redução deveria funcionar de forma inversa: o fato de a pessoa abordada ser um matemático é um bom motivo, não um mau motivo, para acreditarmos em sua afirmação se diz respeito à matemática. [ 177 ] O equivalente à leitura dos evangelhos no século 20 foi a afirmação aparentemente “científica” de que “todo texto é, antes de mais nada, uma evidência das circunstâncias em que foi composto e para as quais foi composto”. [ 178 ] O crítico, então, responde aos evangelistas: “Você só escreve isso (essa história ou dizer de Jesus) por ser cristão”. Verdadeiro o suficiente em alguns aspectos, mas manifestamente não suficiente em outros. Se o fato de ser um matemático pode dar a alguém o direito de falar quando o assunto são números, ser cristão pode significar que alguém tem o direito a uma audiência quando o assunto é Jesus. Se seguíssemos a linha reducionista até o fim — e, hoje, alguns tentam fazer isso —, chegaríamos, como vimos no capítulo 2, ao cul-de-sac da fenomenologia: o solipsismo. Só se conhece sobre si mesmo, sobre os próprios dados sensoriais. Marcos sabia apenas sobre sua própria teologia, não sobre Jesus. Pode ser útil retornarmos por um instante à teoria do conhecimento. O fato de alguém estar em algum lugar, de ter determinado ponto de vista e de saber algo não significa que tal conhecimento seja menos valioso: significa apenas que aquilo que o indivíduo tem é, de fato, conhecimento. Não há necessidade, apesar das alegações de muitos empiristas de épocas anteriores e de alguns fenomenalistas em épocas mais recentes, de reduzirmos a conversa sobre objetos que nos são externos para falarmos sobre nossos próprios dados sensoriais — de modo que, em vez de dizermos: “Isto é uma mesa”, o que realmente deveríamos dizer é: “Ao me sentar aqui, tenho sensações de rigidez causadas por uma superfície nivelada e de madeira”; ou, possivelmente, para me livrar da sugestão de que importei ilicitamente uma referência a um objeto real (a saber, eu mesmo): “Há uma sensação de rigidez causada por uma superfície nivelada e de madeira” — ou talvez, de forma mais simples: “rigidez — superfície nivelada — madeira!”. O medo de que “eventos reais” desapareçam sob uma confusão de percepções de alguns indivíduos específicos é um medo desse tipo, e deve ser rejeitado como infundado. Como exemplo particular, devemos afirmar com mais veemência que descobrir que determinado escritor tem uma “tendência” a determinado assunto não nos diz nada sobre o valor das informações que ele apresenta. Apenas nos convida a estarmos cientes da tendência (não só dele, mas também a nossa) e a avaliarmos o material segundo o máximo possível de fontes. “A honestidade intelectual não consiste em forçar uma neutralidade impossível, mas em admitir que a neutralidade não é possível.” [ 179 ] De modo semelhante, o medo da “objetivação”, que tanto afetou a teologia de Rudolf Bultmann, pode ser posto de lado. Bultmann, no contexto de sua herança filosófica neokantiana, desejava evitar falar de objetos ou acontecimentos senão em relação ao observador. Ele, portanto, insistiu (entre outras coisas) em trabalhar a teologia fazendo antropologia, seguindo Feuerbach, ao reduzir a fala divina a uma fala humana. [ 180 ] Simplesmente não temos de aceitar essas falsas dicotomias. Não é o caso de algumas coisas serem puramente objetivas e outras puramente subjetivas ou, então, que devemos reduzir uma coisa a outra. A vida, felizmente, é mais complicada que isso. A descoberta, portanto, de que alguém tem um “ponto de vista”, selecionou e organizou determinado material ou tem um estilo característico nada faz para nos informar seo assunto de que o escritor fala (caso ele ou ela julgue estar descrevendo acontecimentos) realmente aconteceu ou não. Existem coisas como eventos no mundo exterior, sim. Muitos podem ser mais ou menos descritos. Mas um escritor não pode escrever sobre eles sem selecioná-los de acordo com um ponto de vista, da mesma forma que não pode observá-los sem usar os próprios olhos. Dessa vez, a questão pode ser exposta com a ajuda de uma metáfora visual. Se me for apresentado um telescópio, supondo que eu nunca tenha visto tal objeto antes, acabarei descobrindo que, ao erguê-lo à altura dos olhos, poderei ver coisas inesperadas na outra extremidade. Uma variedade de pensamentos me ocorreriam. Se já houvesse deparado com caleidoscópios no passado, poderia imaginar o telescópio como uma “variação do tema” e tentar girar a outra extremidade para ver se a imagem interessante — que suponho, de alguma forma, estar dentro de extremidade oposta do instrumento — mudará. Isso pode realmente acontecer, devido à minha alteração do foco; minhas suspeitas (equivocadas) terão sido (equivocadamente) confirmadas, e eu terei de dar várias voltas na espiral do conhecimento, bem como no telescópio, até finalmente descobrir a verdade. Ou posso imaginar a existência de um espelho posicionado em determinado ângulo na outra extremidade, dando-me informações sobre algo externo ao telescópio, mas adjacente a mim. Poderíamos continuar explorando esse exemplo; contudo, ainda assim, permanece o fato de que, mesmo que eu olhe através de uma lente específica, existem objetos lá fora, no mundo real (como todos, exceto o solipsista mais ferrenho, deverão admitir), de modo que estou realmente olhando para eles, embora, claro, (a) do meu próprio ponto de vista e (b) por meio de determinado conjunto de lentes. O mesmo se dá com a história. O telescópio de determinada evidência — um livro, digamos, da história de Tucídides — contém lentes particulares, dispostas de certa maneira. Sem dúvida, existem coisas fora do seu alcance. Sem dúvida, há coisas que, por estarem distantes umas das outras, não podem ser vistas através do telescópio ao mesmo tempo. No entanto, Tucídides, enquanto escreve, e nós, enquanto lemos, não estamos olhando por um caleidoscópio, para uma paisagem fictícia. Nem através de um espelho ligeiramente inclinado, que apenas revela em que ponto Tucídides, ou nós mesmos, porventura nos encontramos. Estamos olhando para acontecimentos. A lente pode distorcer, ou o fato de olharmos com apenas um dos olhos pode conduzir-nos a erros de perspectiva; talvez precisemos de outras lentes e de outros pontos de vista para corrigir esses erros. Apesar disso, porém, estamos, mesmo assim, olhando para os acontecimentos. O realismo crítico, e não o abandono do conhecimento do mundo extralinguístico, é necessário para uma epistemologia coerente. [ 181 ] Aplicar isso aos evangelhos significa claramente que, embora devamos lê-los com os olhos e os ouvidos abertos à própria perspectiva dos evangelistas, cientes de que parte dessa perspectiva é seu desejo de envolver os leitores no material em si (os evangelistas não são meros observadores frios e distantes; tampouco desejam que nós sejamos), isso não elimina, por si só, a forte possibilidade de que estejam descrevendo, em tese, acontecimentos factuais. Quando rejeitamos este ou aquele acontecimento, devemos fazê-lo por outros motivos em relação aos que são regularmente apresentados ou sugeridos — a saber, que os evangelistas não são “neutros” e que seu trabalho revela sua própria teologia, e não qualquer coisa sobre Jesus. [ 182 ] Podemos aplicar o mesmo ponto à questão polêmica da teologia paulina. A descoberta de que Paulo abordava uma situação particular e olhava para ela sob uma luz particular é frequentemente saudada como uma indicação de que a passagem em questão é, portanto, puramente situacional, sem expressar ou incorporar uma teologia fundamental ou uma cosmovisão. Isso não passa de uma lógica ruim. É um falso “uma coisa ou outra”, algo típico das armadilhas em que os estudos bíblicos frequentemente caem. Em particular, devemos notar que a resposta à pergunta “O que é uma questão histórica?” não diz respeito a “meros fatos”. [ 183 ] A história trata principalmente dos seres humanos e tenta traçar, descobrir e compreender, de dentro para fora, a interação entre as intenções e as motivações humanas presentes em determinado campo de investigação inicial. O que um positivista chamaria de “fatos” compõe uma parte inseparável de um todo muito maior. O mover do “fato” para a “interpretação” não é um mover do claro para o pouco claro: acontecimentos não são meras bolas de bilhar que se encaixam umas nas outras, às quais diferentes “significados” ou “interpretações” podem ser atribuídos de forma bastante arbitrária, de acordo com o jogo que está sendo jogado. Alguns “significados” ou “interpretações” serão, segundo veremos, mais apropriados do que outros. Esse ponto afeta o estudo do Novo Testamento de todas as maneiras. As tentativas de dividir dois níveis de questionamentos (primeiro, perguntamos “quando”, “onde” e “por quem” um livro foi escrito; em seguida, indagamos “o que o livro diz”) são, na verdade, absurdas, a despeito de toda a sua popularidade. A fim de abordarmos um conjunto de questões, devemos integrá-las ao outro conjunto. Isso exigirá que produzamos hipóteses históricas que levam em consideração as complexidades da motivação humana — motivação que, por sua vez, precisa de uma exploração das cosmovisões e da mentalidade das comunidades e dos indivíduos envolvidos. Segundo acabei de sugerir, esse argumento não deve ser compreendido como significando que todos os ângulos de visão para os acontecimentos são igualmente válidos ou adequados. Trabalhando com o realismo crítico, descobrimos que alguns ângulos fazem menos jus às informações do que outros. Indiscutivelmente, o Evangelho segundo Tomé apresenta um ângulo consideravelmente mais distorcido sobre Jesus de Nazaré do que o Evangelho de Marcos; e mesmo os que discordam, [ 184 ] chegando a uma conclusão inversa, concordam que alguns relatos estão mais próximos dos acontecimentos que pretendem descrever do que outros. Todo relato “distorce”, mas alguns o fazem consideravelmente mais do que outros. Todo relato envolve “interpretação”, mas a questão é se a interpretação revela a totalidade do acontecimento, abrindo-o em toda a sua realidade e em todo o seu significado, ou se o abafa, fechando sua realidade e seu significado. Voltando às nossas bolas de bilhar: um marciano, observando um jogo de bilhar, pode presumir que esses estranhos humanos testavam as atividades balísticas de alguma nova arma. Um observador humano que já viu um jogo de sinuca, mas nunca o jogo de bilhar, pode imaginar o bilhar como uma tentativa ruim de jogar sinuca, com equipamentos limitados e inúmeros erros. Ambas as “interpretações” dos dados distorceriam, fechando o acontecimento e tornando incompreensíveis muitos de seus aspectos. O observador que sabia do que se tratava o bilhar distorceria, em certo sentido, da mesma forma: limitaria imediatamente a gama de interpretações possíveis e, se, por acaso, os jogadores estivessem testando uma nova arma, chegaria à interpretação correta só muito tempo depois do marciano. Em todo caso, porém, sua interpretação revelaria mais do que ocultaria, abrindo o acontecimento para que os fatos se encaixassem cada vez mais. Sua história seria mais completa e satisfatória. O análogo histórico para isso é o relato que não apenas descreve “o que aconteceu”, mas também o que chega, como veremos, ao “âmago” do acontecimento. 2. As causas do equívoco Por que o problema, então? Em particular, por que tantos estudiosos foram, no mínimo, tímidos sobre os “acontecimentos” dos evangelhos serem reais, em vez de simplesmente ficções na mente dos evangelistas? Às vezes, pensa-se que a verdadeira razão é a rejeição do “milagroso” e, portanto, a impossibilidade sentida de empregar os evangelhos como uma história séria.Terei mais a dizer sobre o assunto posteriormente, no momento em que escrever a respeito de Jesus. [ 185 ] Contudo, o ponto básico deve ser apresentado aqui. Relatos de acontecimentos estranhos em qualquer cultura estão, naturalmente, sujeitos a acréscimos lendários. Mas não podemos descartar a priori a possibilidade de as coisas ocorrerem de maneiras normalmente inesperadas, uma vez que fazer isso seria começar do ponto fixo de que uma visão de mundo particular — ou seja, a cosmovisão racionalista do século 18 ou sua sucessora positivista do século 20 — está correta ao postular que o universo é simplesmente um “continuum fechado” de causa e efeito. Como é possível qualquer investigação científica não permitir que sua cosmovisão esteja incorreta? (Se alguém responder que alguns tipos de argumentação e investigação cortariam o ramo sobre o qual a cosmovisão estava assentada, a contrarresposta pode ser que, se é para onde o argumento leva, é melhor encontrar outro ramo — ou mesmo outra árvore.) Isso não é o mesmo que dizer — digo-o enfaticamente — que a visão de mundo pré-iluminista estava, afinal, correta. Por que, uma vez que desafiamos os dualismos prevalecentes, deveria haver apenas duas possibilidades — a “pré- modernista” e a “modernista”? Dizer que os evangelhos não podem ser lidos na forma como se apresentam por sua visão do “milagroso” conflitar com a visão de mundo iluminista não significa, por si só, que podem apenas ser lidos no âmbito de uma fé cristã pré-crítica. Podem existir muitas outras cosmovisões, não necessariamente cristãs, a partir das quais alguém leria o evangelho sem se ofender com os “milagres”. Tampouco significa que, se quisermos ler os evangelhos na forma como se encontram, com “milagres” e tudo mais, devemos admitir francamente que deixamos de fazer “história” e passamos a fazer outra coisa, a saber, “teologia”, ou um tipo de meta-história. Somente se desvalorizássemos a “história”, de modo que a palavra agora significasse “a recontagem positivista daqueles tipos de acontecimentos que se encaixam em uma visão de mundo do século 18 e parecem ter realmente acontecido”, deveríamos pensar dessa forma. Todo o meu argumento aqui é que “história” deve significar mais que isso, ou seja, a narrativa significativa de intenções; e é vital que não excluamos cedo demais a possibilidade de “significados” diferentes daqueles que havíamos originalmente imaginado. A mente fechada é tão prejudicial para os estudos quanto a ideia de “continuum fechado” é para a própria história. Se estivermos comprometidos com a história, sempre haverá a possibilidade de, após várias voltas em torno da espiral da hermenêutica, encontrarmos certos lugares de onde possamos visualizar o material sob a ótica devida e, então, descobrir que alguns desses lugares são algo como a fé cristã. Não se trata de uma convicção a priori. Tampouco seria necessariamente o caso de que o tipo de fé cristã que porventura descobríssemos se assemelhasse ao que é tido como ortodoxia. O problema dos “milagres” pode ter sido uma causa próxima do desejo por parte de alguns teólogos (Reimarus, Strauss, Bultmann etc.) de ler os evangelhos de uma forma não histórica. Não creio que esse tenha sido o único motivo, nem mesmo o mais urgente. Havia razões mais profundas, não no século 18 (quando os “milagres” começaram a ser percebidos como um problema), mas antes. Muitos métodos críticos foram concebidos não para fazer história, mas para evitar fazê-la: para manter um silêncio cuidadoso e talvez até mesmo piedoso quando não sabemos o rumo que a história pode tomar. Como crianças que esticam o pé em um escorregador para evitar deslizarem rapidamente e, assim, perderem o controle, muitos teólogos não se deixaram impulsionar pelas mudanças e oportunidades do empreendimento histórico, mantendo firmemente o freio ou, em casos extremos, simplesmente recusando-se a participar da diversão. Ou, para mudar a metáfora, eles temem a história como um caminhante teme um pântano: podemos afundar sem deixar vestígios. [ 186 ] Se houver uma ponte conveniente, melhor. Se o pântano não nos sustentar, pior para o pântano; nesse caso, não devemos cruzá-lo. Uma forma particularmente predominante desse argumento é a sugestão, mais atraente nos círculos luteranos, de que basear a fé na história é transformá-la em uma “obra” e, portanto, obviamente, no contexto dessa perspectiva confessional, falsificá-la. Aqui está parte da razão, juntamente com a rejeição neokantiana de “objetificação”, pela qual Bultmann adotou essa perspectiva. No entanto, esse argumento só seria válido se fosse o caso de o cristianismo primitivo sustentar uma premissa totalmente não judaica, talvez até mesmo gnóstica (precisamente o que Bultmann argumentou em termos de história das religiões; recentemente, seu argumento recebeu um novo sopro de vida) — ou seja, uma premissa de que a verdadeira religião seria encontrada ao se abandonar a história e encontrar salvação em um reino completamente fora dela. [ 187 ] Empregar, porém, tal argumento não apenas é algo totalmente falso em relação ao pensamento da igreja primitiva, a qual, como um todo (incluindo Paulo e João), permaneceu muito mais judaica do que Bultmann jamais imaginou; o argumento também é confuso quanto à natureza da fé. A fé pode ser o oposto do que vemos. Também é, em alguns aspectos importantes, o oposto da dúvida. Dizer que basear a fé em acontecimentos é transformá-la em uma “obra” (como se alguém fosse responsável por esses acontecimentos!) é ser justificado não pela fé, mas pela dúvida. Evidentemente, isso levanta a questão do que é um “evento”. Como veremos ao considerar a vida de Jesus, e particularmente sua morte, um evento é algo extremamente complexo, não consistindo apenas em um conjunto de fatos reais no mundo público, mas o ponto focal de diversas intencionalidades humanas. No âmbito dessas intencionalidades — sendo elas mesmas o objeto apropriado de certo tipo de questionamento histórico, por mais difícil que seja —, podemos (ou não) encontrar o que às vezes é tido como “significado” ou “sentido”. Mais uma vez, devo enfatizar: o único sentido em que esse tipo de compreensão é inacessível ao historiador é se, por “historiador”, queremos dizer “alguém que mantém uma visão de mundo europeia do século 18 e que está comprometido com a crença de que o significado não pode ser encontrado no âmbito de acontecimentos comuns”. Existe outra razão correlata pela qual alguns estudiosos da Bíblia, pelo menos dentro da teologia pós-bultmanniana, quiseram reduzir o telescópio fornecido pelos evangelhos a um caleidoscópio ou um espelho angular (e deformador). A razão é o desejo por relevância, percebido em termos de universalização. Como o ensino de Jesus e os acontecimentos das narrativas do evangelho podem ter qualquer “significado” para aqueles que pertencem a outros lugares e a outras épocas? Se olharmos apenas para os acontecimentos da vida de Jesus, eles nada terão a nos dizer. Devem ser apenas exemplos da verdade superior que incorporam, meras manifestações ou exemplos da “coisa real”; talvez tenha sido errado ou mesmo perigoso tê-los registrado, já que as pessoas podem confundi- los com a coisa real; talvez mostrem uma falta de coragem por parte da igreja primitiva, que deveria ter olhado para o Senhor vivo do presente e para o Senhor vindouro do futuro, não para o Jesus de Nazaré do passado. Não devemos (ainda nessa perspectiva) nos iludir, pensando que os acontecimentos em si são importantes. É por isso que as parábolas, que originalmente continham a mensagem de Jesus para Israel, são feitas para conter uma mensagem universalmente relevante. [ 188 ] O leito de Procusto do mito do “Jesus atemporal” é, assim, usado como medida para cortar todos os pedaços que não cabem, de modo que somos reduzidos a um “Jesus histórico” que, por acaso, perdeu todas as suas conexões principais com seu devido lugar e com seu devido tempo. No momento adequado, abordaremos essas questões; por enquanto, apenas vamos observá-las comoum problema a mais na pretensa leitura “histórica” dos evangelhos. Devemos, portanto, desafiar vários dos pressupostos sobre a história em geral e os evangelhos em particular. Em primeiro lugar, devemos rejeitar a ideia, comum desde Reimarus, de que a “verdadeira” história minará os elementos “interpretativos” e particularmente “teológicos” dos evangelhos. Toda história envolve interpretação; se os evangelistas nos oferecem uma interpretação teológica, devemos ouvi-los da melhor forma possível, sem presumir que nossa interpretação, particularmente uma interpretação “neutra” ou positivista, seja automaticamente a certa. Pode ser que, no fim das contas, alguma “interpretação” — ou talvez mais de uma — possa trazer à tona, da melhor forma possível, o significado dos acontecimentos. Eliminar essa possibilidade a priori seria uma forma estranha de buscar “objetividade”. A história não descarta a teologia; na verdade, no sentido mais amplo de “teologia”, a história a exige. Em segundo lugar, como imagem espelhada desse ponto, devemos insistir que os evangelhos, embora sejam (conforme enfatizado pela crítica da redação) totalmente teológicos, não são, por isso, menos históricos. O fato de serem interpretações não significa que não constituam interpretações de eventos; se assim fosse, não existiriam eventos, já que, como vimos, todos os eventos históricos são interpretados. [ 189 ] A teologia não descarta a história; em várias teologias, não apenas em algumas variedades cristãs, ela realmente a exige. Em terceiro lugar, devemos notar, de forma preliminar (retornaremos a esse ponto mais adiante), as inúmeras possibilidades inerentes à palavra “significado” aplicada à história. Em seu nível fundamental, o “significado” da história pode ser considerado algo presente nas intencionalidades dos personagens em questão (quer realizem suas ambições, quer alcancem seus objetivos, quer não). A travessia do Rubicão por César “significou” que ele pretendia colocar-se acima da lei da República. Em outro nível, o “significado” pode ser considerado algo presente na relevância contemporânea ou na consequência dos acontecimentos. Aqueles que cultivavam terras do lado italiano do Rubicão teriam dito que a travessia de César “significou” certas coisas em termos do estado subsequente de suas propriedades. Mais uma vez, o fato de havermos descoberto certo conjunto de motivações humanas pode sugerir um paralelo em outros acontecimentos históricos, inclusive com aqueles que nos são contemporâneos, em que um conjunto semelhante de intencionalidades pode estar presente e a partir do qual podemos deduzir um “significado” em termos do nosso próprio mundo. [ 190 ] A travessia do Rubicão feita por César “significa” que os pretensos tiranos devem ser vigiados com cuidado ao fazerem movimentos simbólicos vitais. Em outro nível ainda, podemos atribuir “significado” aos acontecimentos com base no conceito de revelarem a intenção divina e, portanto, de falarem poderosamente — seja para o mundo antigo ou moderno, seja para o mundo judaico ou cristão — acerca da natureza e dos propósitos de “Deus”, ou de um deus. O final de César “significa” que sua arrogância não passou despercebida, nem impune, pela vingança divina. Apesar de nos interessarmos, então, “por aquilo que realmente aconteceu”, nós (por “nós”, quero dizer os historiadores em geral) também nos interessamos pelo porquê do acontecimento. Essa questão se abre, por sua vez, para revelar toda a gama de explicações disponíveis em qualquer cosmovisão, incluindo (no caso de respostas disponíveis no âmbito do judaísmo do primeiro século) as intenções não apenas humanas, mas também as do deus de Israel. Se quisermos entender com o que as coisas se assemelhavam no primeiro século, e como se parecem para nós, toda essa gama de explicações deve ser mantida em aberto. Exploraremos vários aspectos do assunto de forma mais completa no capítulo seguinte. 3. À procura de novas categorias O que descobrimos, em suma, é que as ferramentas epistemológicas do nosso tempo parecem inadequadas frente aos dados que nos estão acessíveis. Uma das ironias atuais e típicas dos movimentos acoplados a modas acadêmicas é que, atualmente, alguns filósofos estão se afastando do materialismo, até mesmo de um realismo moderado, e retornando ao idealismo — assim como os teólogos, que, depois de aprisionados por tanto tempo nos redutos idealistas, estão finalmente se regozijando ao descobrirem algumas formas de realismo. Esses debates podem servir para manter os controles e equilíbrios vivos no contexto de uma disciplina. Todavia, suspeito que a distinção idealista-realista seja, em última análise, enganosa; e as oscilações não ajudam muito em termos de uma investigação histórica real como a nossa. O que precisamos, creio, é de um conjunto de ferramentas projetadas para a tarefa em questão, e não de um conjunto emprestado de alguém que pode estar trabalhando em outra coisa. Da mesma forma que os evangelhos e as cartas incorporam gêneros um tanto distantes de seus análogos não cristãos mais próximos, seu estudo, bem como o estudo de suas figuras centrais, são tarefas que, embora guardem, evidentemente, analogia com outras disciplinas estreitamente relacionadas, exigem ferramentas especializadas — ou seja, uma teoria do conhecimento adequada às tarefas específicas. É o que procuro fornecer nesta parte do livro. Se, além disso, a afirmação cristã fosse, afinal, verdadeira — seria tolice responder a essa pergunta de qualquer maneira, sem antes lidar com o método preliminar —, talvez esperássemos, ao estudar o próprio Jesus, encontrar a chave para compreender não apenas o objeto que podemos ver pelo telescópio e a voz que podemos ouvir ao telefone, mas também a própria natureza da visão e da audição. Em outras palavras, estudar Jesus pode levar a uma reavaliação da própria teoria do conhecimento. [ 191 ] Já sugeri, em linhas gerais, algumas maneiras pelas quais esse empreendimento pode prosseguir, e espero voltar a tal ponto na conclusão de todo este projeto. Por ora, podemos dizer: o “observador”, a despeito do contexto, é chamado a estar aberto à possibilidade de eventos que não se enquadram em sua cosmovisão, em seu prisma de possibilidades antecipadas. Ou então, segundo eu preferiria dizer, é apropriado aos seres humanos em geral ouvirem histórias além daquelas pelas quais habitualmente organizam suas vidas, questionando se deveriam ter a permissão de subverter as histórias atuais, ou seja, questionando se realmente há mais coisas entre o céu e a terra do que aquilo com que sonha nossa vã filosofia. Tomado em certo sentido, o apelo pode soar como um convite aos cristãos “modernistas” ou aos não cristãos, para que sejam “abertos ao sobrenatural”— um convite, em outras palavras, para que um conservadorismo ou um fundamentalismo antiquado recebam uma chance. Contra isso, declaro de uma vez que, em muitos casos, é precisamente o “cristão comum” que deve estar aberto às possibilidades de leitura do Novo Testamento e às maneiras de compreensão de quem realmente foi Jesus, reavaliando seriamente suas histórias prévias. Também espero estar claro que, assim como a distinção subjetiva/objetiva, rejeito a distinção natural/sobrenatural, a qual é igualmente produto do pensamento iluminista. Na verdade, precisamente as histórias modeladas com base nessas distinções, sejam de maneira “conservadora” ou “liberal”, é que, creio, serão subvertidas pela história que me proponho a contar. As ferramentas de pensamento de que precisamos, então, não podem ser as do pré-modernismo mais do que as do modernismo. Até que ponto ofereço ferramentas pertencentes ao “pós-modernismo”, essa é uma questão que não me preocupa muito. Afinal, a diversidade é uma característica necessária do pós- modernismo. Proclamar a morte da cosmovisão iluminista ainda não implica anunciar o que surgirá para ocupar seu lugar. Pode ser que o estudo de Jesus, que não pode deixar de realçar os elementos de sua morte e ressurreição, tenha algo a dizer sobreo assunto. Se quisermos, com o tempo, elaborar uma nova teoria do conhecimento, também precisaremos de uma nova teoria do ser ou da existência — ou seja, de uma nova ontologia. Nesse caso, também nos encontramos em uma situação do tipo “ovo e galinha”: precisamos conhecer a nova teoria antes de estudar o material, mas é estudando o material que surgirá a nova teoria. Portanto, contento-me, neste estágio, em delinear o caminho em que, segundo penso, o argumento pode funcionar, deixando-o modificar-se à medida que vamos avançando. Parece-me, retomando um ponto do parágrafo anterior, que ontologias baseadas em uma distinção natural/sobrenatural simplesmente não são o bastante. Rejeitar, por exemplo, a premissa de que “o mundo está cheio da glória de Deus”, optando-se antecipadamente pelo materialismo ou pelo “sobrenaturalismo”, é sempre correr o risco do que me parece um dualismo ontológico insustentável. Como, em um nível inicial, podemos escapar disso? Neste ponto, inevitavelmente, o intérprete deve “revelar a carta que traz na manga”. Sinto-me impelido, tanto por meu estudo do Novo Testamento como por uma variedade de fatores que contribuíram para minha formação, a contar uma história sobre a realidade que funciona mais ou menos assim. A realidade como a conhecemos resulta de um deus criador, trazendo à existência um mundo que, embora diferente de si mesmo, está cheio de sua glória. A intenção desse deus sempre foi que a criação, um dia, viesse a ser inundada com sua própria vida, de uma forma para a qual foi preparada desde o início. Como parte dos meios para esse fim, o criador trouxe à existência uma criatura que, ao portar sua imagem, traria seu cuidado sábio e amoroso para a administração da criação. Por uma trágica ironia, a criatura em questão rebelou-se contra essa intenção; mas o criador resolveu esse problema, em tese, de uma maneira totalmente apropriada e, como resultado, move a criação, mais uma vez, em direção ao objetivo originalmente pretendido. Agora, a implementação dessa solução envolve a habitação desse deus dentro de suas criaturas humanas e, por fim, em toda a criação, transformando-a naquilo para a qual foi feita no início. Essa história, cuja semelhança com a parábola dos lavradores infiéis dificilmente é acidental, tenta, obviamente, fundamentar a ontologia, uma perspectiva do que realmente “está lá”, no ser e na atividade do deus criador/redentor. No meu caso, já conseguiu subverter todo o tipo de outras histórias (inclusive várias histórias “cristãs”) que eu costumava contar a mim mesmo sobre a realidade. Acho que ela “se encaixa” com muito mais elementos do mundo real do que as histórias pós-iluministas às quais estamos acostumados. Fingir não ser esse o caso — abandonar essa história em favor de reduzir tudo à “mera história”, a um projeto estilo iluminista, tão desatualizado atualmente quanto o muro de Berlim — seria tanto desonestidade como tolice. Em que consiste, então, o método adequado para o historiador? Recentemente, argumentou-se, com certa veemência, que a história consiste em um processo recorrente de hipótese e verificação. [ 192 ] Visto que, em muitos aspectos, concordo com essa proposta — na medida em que acredito ser esse o processo (ou alguma variante dele) que todos os historiadores já seguem —, é vital que exploremos exatamente o que isso significa e como, especificamente, os “métodos críticos normais”, associados ao estudo contemporâneo do Novo Testamento, baseiam-se nele. MÉTODO HISTÓRICO: HIPÓTESE E VERIFICAÇÃO 1. Introdução Há um sentido importante em que o método histórico é igual a todos os demais métodos de investigação. Ele prossegue por meio de “hipóteses” que demandam “verificação”. Conforme já vimos, uma maneira melhor de colocar a questão (evitando certas armadilhas epistemológicas) é dizer que a vida humana é vivida por meio de histórias implícitas e explícitas; que essas histórias levantam questões; que os seres humanos apresentam histórias explicativas para lidar com essas questões; que algumas dessas histórias alcançaram certo grau de sucesso. Continuarei a utilizar os convenientes termos “hipótese” e “verificação”, porém devo empregá-los com esses tons. Apesar dessa semelhança com outros campos de investigação, também haverá diferenças significativas. Hipóteses em diferentes áreas demandam diferentes tipos de força, assim como terão diferentes sistemas de verificação apropriados. As regras para o que valerá a contar como história explicativa, quanto mais o que contará como um empreendimento bem-sucedido, serão sutilmente diferentes quando lidarmos com assuntos diferentes. Devemos, assim, indagar acerca do que constitui uma boa hipótese histórica, em oposição a qualquer outro tipo de hipótese elaborada. Haverá analogias e semelhanças com os critérios para boas hipóteses em outras esferas do conhecimento; contudo, o que já foi dito neste capítulo sobre a natureza do conhecimento histórico entrará em jogo, produzindo diferenças importantes. Uma hipótese, como vimos, é essencialmente uma construção, pensada por uma mente humana, oferecendo-se como uma narrativa sobre determinado conjunto de fenômenos; a narrativa, que está fadada a ser uma interpretação desses fenômenos, também oferece uma explicação sobre eles. Por exemplo: vejo um carro da polícia avançando na contramão, com as sirenes tocando. Porque eu conto a mim mesmo uma história subjacente sobre o estado normal de nossa sociedade, deparo com a seguinte ideia: algo fora do comum está acontecendo. Penso que talvez um crime tenha sido cometido; ou que tenha havido um acidente. Essa é uma hipótese histórica, que agora precisa ser testada à luz de um número maior de evidências. Os estágios de teste e, em última análise, de verificação podem ser ilustrados por meio da analogia. Em seguida, ouço um carro de bombeiros em uma rua vizinha e vejo uma nuvem de fumaça subindo nas imediações. De pronto, altero a minha hipótese: o surgimento de novos dados me ajudou a esclarecer as coisas. Evidentemente, pode ser que o carro de polícia esteja perseguindo um ladrão e não saiba nada sobre o incêndio; mas a probabilidade permanece elevada, devido à inerente simplicidade da hipótese e à conclusão dos dados, de que os acontecimentos se encaixam. Então, lembro-me de ter ouvido uma explosão inexplicada, dez minutos antes. Mais uma vez, a explosão pode não ter qualquer relação com os fatos, mas a imagem está surgindo com uma simplicidade essencial, passando a abranger e a explicar mais dados que eu não tinha originalmente conectado ao acontecimento. No momento em que chego ao carro de polícia, minha jornada em volta da espiral do entendimento levou-me, literal e metaforicamente, à cena do incêndio. E, quando começo a fazer a verdadeira pergunta do historiador, a questão do “porquê” em relação a esses acontecimentos, não preciso ir além da ação que, a despeito de qualquer intenção, causou o incêndio e da intenção da polícia e dos bombeiros na realização de seu trabalho quanto à catástrofe. 2. Os requisitos de uma boa hipótese Há, portanto, três coisas que uma boa hipótese, em qualquer área do conhecimento, deve fazer. Cada qual demanda uma discussão mais aprofundada, porém é importante esclarecer os contornos de boas hipóteses nesse estágio. Em primeiro lugar, uma boa hipótese deve incluir os dados. Cada aspecto da evidência deve ser incorporado — e, na medida do possível, preservado — e avaliado com meus próprios olhos, e não por uma visão divino-panorâmica. Não adianta fingir que a fumaça era uma nuvem baixa, ou imaginar que a “explosão” foi simplesmente a batida de uma grande porta em uma localidade próxima. Em segundo lugar, deve construir um quadro geral essencialmente simples e coerente. Pode ser que nem a explosão, nem a fumaça, nem o carro de bombeiros, tampouco o carro da polícia tenham qualquer relação entre si; no entanto, até coletarmos mais dados — como, por exemplo, observar o carro de polícia afastando-se do fogo e indo em direção a um banco que está sendo roubado—, é mais simples sugerir, de modo razoavelmente direto, que todos os elementos fazem parte do mesmo todo. Esses dois primeiros aspectos de uma boa hipótese — obtenção de dados e simplicidade — estão sempre, obviamente, em tensão entre si. É fácil criar hipóteses simples à custa de alguns dados; é fácil sugerir explicações para todos os dados ao custo de produzir uma hipótese altamente complexa e complicada. Ambas as alternativas são encontradas com frequência nos estudos do Novo Testamento, principalmente no estudo a respeito de Jesus. “Jesus, o simples camponês galileu” é uma declaração direta, porém ignora boa parte das evidências; e a hipótese não é visivelmente reforçada pela adição de todos os tipos de especulações que pretendem explicar como os demais dados foram inventados por grupos imaginários da igreja primitiva. Por outro lado, a maior parte das leituras “conservadoras” de Jesus inclui todos os dados, visto ser esse seu objetivo, mas sem qualquer relato historicamente convincente dos objetivos e das intenções de Jesus durante seu ministério. Em qualquer campo de investigação, é bastante provável que existam diversas hipóteses possíveis, as quais incluirão mais ou menos todos os dados, com uma simplicidade razoável. Há, portanto, uma terceira coisa que uma boa hipótese deve fazer se quiser destacar-se das outras. A história explicativa proposta deve provar-se frutífera em outras áreas correlatas, explicando ou ajudando a explicar outros problemas. Em minha ilustração original, outros problemas incluiriam a explosão e coisas extras, às quais eu não havia prestado muita atenção originalmente — como, por exemplo, o fato de que uma estrada lateral pela qual eu passara anteriormente estava fechada. Quando aplicamos esses critérios e hipóteses a Jesus, ao judaísmo ou a toda a questão da origem do cristianismo, descobrimos que os primeiros problemas são naturalmente um pouco mais complexos do que um incêndio na cidade. Em primeiro lugar, descobrimos que a pilha de dados a serem incluídos é vasta e intimidadora. Em uma hipótese histórica, os dados são, naturalmente, materiais de origem: no período antigo, isso significava principalmente documentos escritos, mas também havia inscrições, artefatos, evidências arqueológicas etc. Uma massa de material deve ser reunida, e o historiador que anseia por simplicidade será fortemente atraído a, em prol da coerência, omitir metade dos fenômenos. [ 193 ] Se considerarmos apenas as fontes judaicas, teremos um estudo por toda a vida; os evangelhos apresentam uma série de problemas que lhes são característicos; as formas de fala e escrita utilizadas pelos primeiros cristãos — principalmente as imagens apocalíticas, tão familiares a eles e tão estranhas a nós — nos levarão constantemente a erro, se não nos mantivermos atentos. E, como sempre é o caso no que diz respeito à história antiga, as fontes têm o hábito de não nos dizer o que realmente gostaríamos de saber. Não explicam coisas que lhes eram familiares, levando-nos a ter de reconstruir meticulosamente determinado assunto. [ 194 ] Somos como paleontólogos lutando para reunir uma pilha de ossos que um dinossauro teve durante toda a sua vida, sem que isso sequer lhe passasse pela cabeça. Ver e coletar dados é, por si só, uma tarefa monstruosa. Em segundo lugar, por conseguinte, a formulação de uma hipótese histórica essencialmente simples também constitui um grande problema. Envolve manter em mente, de forma contínua, todas as questões-chave sobre Jesus, recusando-se a admitir uma simplificação cuja solução em uma área deixa o restante em um estado caótico e de desordem. É nesse estágio, conforme veremos mais adiante, que alguns estudiosos do Novo Testamento desenvolvem formas altamente sofisticadas de se livrar do dilema apresentado por esses dois critérios. Se parte dos dados não se encaixa em uma hipótese simples (de que, por exemplo, Jesus esperava o fim do mundo em breve e, portanto, não teve tempo de pensar em fundar uma igreja), então temos maneiras de lidar com os dados recalcitrantes: existem várias ferramentas disponíveis com o objetivo de mostrar que os dados não têm origem em Jesus, mas na igreja posterior. Assim, os dados desaparecem da imagem de Jesus, mas a um custo. [ 195 ] E esse custo é a complexidade resultante da imagem da igreja, de sua atividade criativa e suas tradições. Qualquer um que tenha estudado a tradição histórico-crítica dos evangelhos sabe como isso pode ser intrincado e quão poucos são os pontos de convergência realmente existentes. O que vemos nessa situação é o elevado grau de complexidade implausível nos detalhes, o preço que pagamos, amplamente falando, para a compra da simplicidade — quer para um retrato de Jesus, quer para a igreja primitiva e seu hipotético desenvolvimento, quer para a teologia paulina. Só quando temos em mente a importância da simplicidade essencial de todo o quebra-cabeça é que ficamos insatisfeitos (intelectualmente, podemos muito bem sentir outros tipos de insatisfação com o atual estado da crítica da tradição) com resultados desse tipo. O terceiro critério (dar sentido a outras áreas fora do campo de investigação escolhido) obviamente diz respeito, no caso da pesquisa sobre Jesus e Paulo, ao quebra-cabeça mais amplo do primeiro século como um todo. Em particular, grandes problemas foram levantados sobre a relação entre nossos dois assuntos principais, e qualquer hipótese que faça sentido sobre um, visto que aponta para o outro, deve ter vantagem decisiva sobre a hipótese que trata de ambos como polos separados. É quando os pesquisadores tentam manter Jesus e a igreja primitiva distanciados entre si que fenômenos extras são importados, com a suposta helenização de Paulo do evangelho judaico original. Isso salva os fenômenos e lida com questões mais amplas, porém à custa, mais uma vez, da simplicidade. Até agora, omitimos um critério que desempenha, regularmente, um papel importante nas hipóteses históricas sobre o Novo Testamento. Refiro-me à relevância prática contemporânea, real ou imaginada, que a hipótese pode ter. Já vimos um pouco a esse respeito no capítulo 1 e, em capítulos introdutórios dos volumes sucessivos, examinaremos as formas particulares que assumiu. Aqui, a ideia a ser enfatizada é bastante simples, ainda que, deste ponto em diante, os efeitos do estudo de Jesus e do estudo de Paulo se dividam. Poucas pessoas, diante do fato incômodo de que Jesus, afinal, não subscreveu seu projeto ou programa favorito, estão preparadas para dizer: “O problema é de Jesus”. Afinal, foi o que seus contemporâneos fizeram, e nos acostumamos a criticá-los por essa atitude. Foi por isso que, como disse George Tyrrell, o “Vidas de Jesus”, [ 196 ] produzido por liberais do século 19, só conseguiu ver o reflexo de seus próprios rostos no fundo de um grande poço. [ 197 ] Da mesma forma, os muitos modelos altamente variados de cristianismo atualmente disponíveis — todos com algum tipo de lugar para Jesus — resistem fortemente a qualquer mudança na versão de seu próprio retrato, uma vez que, como eles perceberam corretamente, isso pode ter efeito considerável e talvez mesmo indesejável em outras áreas da vida e do pensamento. É claro que esse conservadorismo inato significa que o frequentador médio da igreja (e muitos teólogos são, ou foram em determinada época, frequentadores comuns) oferece uma resistência inerente à mera inovação. Também significa que sugestões sérias e bem-fundadas para modificar a imagem de Jesus são, às vezes, erroneamente descartadas. Tal processo de rejeição opera (como, naturalmente, as propostas inovadoras) em diversos níveis, cabendo a um sociólogo ou a um psicólogo explorar. E quanto a Paulo? Já mencionamos a maneira pela qual os retratos do judaísmo e da igreja primitiva foram moldados para se enquadrar às exigências dos esquemas hermenêuticos contemporâneos. Às vezes, judeus são os vilões; outras vezes, os heróis trágicos. Às vezes, os primeiros cristãos são os nobres pioneiros; outras vezes, os primitivosexcêntricos. Ao nos voltarmos para Paulo como um caso especial da igreja primitiva, descobrimos um fenômeno bem diferente. É comum que as pessoas digam, de fato, que “Paulo acreditava em ‘x’, mas que nós acreditamos em ‘y’”. Muitos ainda querem ter Paulo como aliado, mas, talvez de uma forma compreensível, é menor o número de estudiosos comprometidos com essa posição do que aqueles que desejam manter Jesus ao seu lado. Para alguns, talvez isso represente um nível maior de “objetividade” nos resultados: se somos livres para discordar de Paulo, também somos livres para deixá-lo ser ele mesmo. As coisas não são, infelizmente, tão simples assim. O que frequentemente acontece em meio à erudição paulina é o seguinte: Paulo é tido por sustentar uma perspectiva que lhe é creditada por alguns expositores; no entanto, algum erudito que discorda dessa perspectiva critica Paulo, como se o apóstolo fosse o responsável por ela. Dois bons exemplos são Schoeps, que, em tom de reprovação, chama Paulo de “luterano”, e a rejeição ainda menos moderada de Maccoby, que rotula o apóstolo de “gnóstico helenista”. [ 198 ] Alternativamente, alguns eruditos vêm de tradições (algumas inglesas, por exemplo) em que há muito tempo está na moda ser um tanto condescendente e desdenhoso com relação a Paulo: um bom sujeito, sem dúvida, porém um pouco confuso e muito dogmático — em suma, não exatamente o tipo de teólogo que alguém gostaria de ter por perto em uma sociedade educada. Então, é importante encontrar pontos de convergência suficientes para manter uma continuidade crível no apóstolo, e pontos de crítica suficientes para evitar ser manchado pelo pincel paulino. É claro que faz parte de uma epistemologia coerente, como argumentei no capítulo 2, que o conhecedor não pode saber sem estar envolvido. O positivismo não é melhor quando se estuda história em vez de qualquer outra coisa. Além disso, como sugeri no capítulo 1, o fato de que a história controladora da vida de algumas pessoas posicione Jesus, e talvez Paulo, sob uma ótica altamente positiva significa que não há necessidade de fingir “neutralidade”, que muitas vezes não passa de uma cortina de fumaça por preconceito não examinado. Entretanto, se o critério de controle para uma história particular é sua capacidade de legitimar determinada postura, seja cristã ou não, reduzimos, mais uma vez, a epistemologia na direção oposta: a da fenomenologia. A evidência histórica só pode ser usada desde que funcione como um espelho no qual possamos nos ver como gostaríamos. E isso seria negar a possibilidade de novas histórias, de subversão ou de modificação das histórias que já contamos a nós mesmos. Assim, filosoficamente, jaz o solipsismo, conforme já vimos; dessa forma, historicamente, jaz a mente fechada. Dessa forma, teologicamente, jaz o fundamentalismo, o solipsismo religioso corporativo, o qual não pode suportar a ideia de uma história nova ou revisada. Assim, se a hipótese proposta acabasse por nos apontar para uma forma de cristianismo que algumas pessoas considerassem inaceitável, ou se sugerisse o abandono total do cristianismo, seria possível a qualquer pessoa propor uma revisão do argumento para ver se um erro não foi cometido. Mas ninguém pode usar uma percepção pessoal de inaceitabilidade como base legítima em si para rejeitar a hipótese histórica. [ 199 ] Se quisermos testar a hipótese, devemos proceder estritamente com base nos fundamentos declarados: obter dados, alcançar a devida simplicidade e demonstrar resultados em outros campos de investigação. Evidentemente, tal “verificação” consiste em humanos contando histórias percebidas como histórias explicativas de sucesso, e isso sempre envolverá a interação entre o conhecedor e os dados. Contudo, não se deve permitir que essa inevitabilidade leve alguém a simplesmente projetar no material a posição que deseja aceitar ou a posição que deseja rejeitar. A história, então, assim como a microbiologia ou qualquer outra área do conhecimento, procede por meio de hipótese e verificação. Sugiro que sempre foi assim, mesmo com o estudo de Jesus e dos evangelhos, de Paulo e das epístolas. Schweitzer, Bultmann e os demais, incluindo os praticantes da “New Quest” [Nova busca] que sustentaram, por tanto tempo, a necessidade de haver critérios apropriados [ 200 ] — todos eles apelam tacitamente para esse esquema de pensamento. Todos tinham em mente alguma hipótese, alguma narrativa dominante, que defendiam sob a alegação de estarem lidando com os dados, operando com um esquema o mais simples possível e tentando ver como isso lançaria luz sobre outros materiais circundantes. O problema é que esse método, embora realmente usado, não foi, muitas vezes, devidamente escrutinizado e, portanto, nem sempre funcionou adequadamente: argumentos ruins passaram despercebidos porque a atenção foi desviada dos sinais de perigo (descuido com os dados ou a feliz aceitação de complexidades desnecessárias), alertando para o fato de que nem tudo ia bem. Em particular, os pesquisadores trabalharam com modelos dominantes, mas enganosos, da igreja primitiva, os quais, como veremos, exerceram uma influência importante, embora muitas vezes despercebida, nos estudos sobre Jesus e Paulo. Como um exemplo desse último fenômeno, podemos considerar a célebre hipótese de Wrede sobre o chamado “segredo messiânico”. [ 201 ] Tudo começou com Jesus, que, de forma alguma, se considerava o Messias. Em seguida, veio a igreja primitiva, que o saudou como tal (por quê?), apesar de sua autoconsideração inocente. Depois, surgiu um herói criativo e anônimo que, diante dessa anomalia, inventou a explicação de que Jesus havia, afinal, falado de si mesmo como o Messias, mas sempre mantendo o assunto em estrito segredo. Então, veio Marcos, que se reuniu ao esquema e o incorporou deliberadamente em uma narrativa contínua. Nem mesmo ele fez um trabalho tão bom, já que ainda há estranhezas, como aquelas ocasiões no evangelho em que parece que o segredo está sendo revelado cedo demais. E tudo isso supostamente aconteceu em quarenta anos. Isso não quer dizer que o desenvolvimento teológico rápido e dramático seja impossível. Na verdade, tal desenvolvimento acontece com frequência, e o primeiro século é um bom exemplo disso. No entanto, a elaboração dessa estranheza, para a qual motivações complexas e bizarras precisam ser inventadas, etapa por etapa, do nada — isso já é abusar demais de nossa boa vontade. Uma hipótese que explique os dados sem recorrer a esse tipo de coisa sempre terá mais sucesso, e com razão. Wrede pagou caro pela simplicidade de sua ideia básica (e simples) — a de que Jesus não se considerava o Messias —, à custa do aumento da complexidade em todos os demais aspectos de sua hipótese. Mesmo assim, muitos dados continuam a não se encaixar. Não adianta limpar debaixo da cama se o resultado for uma pilha de lixo debaixo do guarda-roupa. [ 202 ] 3. Problemas de verificação Há, atualmente, muitas discussões apropriadas e necessárias — entre os filósofos da ciência, por exemplo — quanto: (a) ao peso relativo que deve ser atribuído aos diferentes critérios adotados na verificação ou na falsificação de hipóteses; (b) ao desenvolvimento adequado, em qualquer campo de investigação particular, do que contará como critério satisfatório. Esses são problemas importantes, de modo que devemos examiná-los mais de perto. Evidentemente, o tipo de equilíbrio necessário entre inclusão de dados, por um lado, e simplicidade, por outro, variará de acordo com o assunto. A paleontóloga tem um esqueleto para montar. Se ela criar uma estrutura linda e simples que omita alguns ossos grandes, seus colegas poderão acusá-la de atender ao segundo critério em detrimento do primeiro, aceitando com desconfiança sua teoria de que os demais ossos pertencem ao animal que estava ingerindo aquele agora construído — ou talvez sendo ingerido por ele. A simplicidade foi alcançada à custa da obtenção dos dados. Se, no entanto, uma segunda paleontóloga produz um esqueleto que astuciosamenteusa todos os ossos, mas tem sete dedos em um pé e dezoito no outro, talvez se chegue a uma conclusão oposta: embora alguns dados tenham sido incluídos, a simplicidade foi abandonada, de modo que a desconfiança recairá, dessa vez, em qualquer explicação evolucionária bizarra da nova história. Entretanto, qual das duas teorias será a preferida? Penso que a primeira: é mais difícil imaginar a ocorrência de uma mutação peculiar do que suspeitar de que alguns ossos a mais talvez se tenham intrometido na pilha. Tal vitória, porém, da simplicidade sobre os dados (o que significa apenas que uma história é melhor do que a outra, ainda que não seja a melhor possível, nem mesmo verdadeira) não pode ser considerada válida em todos os campos de investigação, e a história da humanidade é um bom exemplo disso. O objeto do estudo histórico é, em si, desorganizado, e todas as tentativas de reduzi-lo à ordem por uma espécie de lei marcial intelectual são suspeitas. Quanto mais sabemos a respeito de qualquer evento, mais nos damos conta de sua complexidade. É muito mais fácil projetar a simplicidade em acontecimentos quando há poucas evidências disponíveis. Assim, embora uma boa hipótese histórica venha a conter certo grau de simplicidade, e embora não se devam aceitar complexidades estranhas de uma forma passiva, a inclusão de dados é, em última análise, o mais importante dos dois primeiros critérios. Entretanto, o que exatamente conta como inclusão de dados? Os detalhes disso, conforme aplicados aos evangelhos, serão trabalhados posteriormente. Por ora, devemos ao menos dizer que esse objetivo, o primeiro objetivo de qualquer hipótese, deve ser alcançado ao tratarmos a evidência com seriedade e em seus próprios termos. Um texto literário deve ser tratado como tal, não como outra coisa; debates atuais sobre o gênero e a intenção dos evangelhos são particularmente relevantes nesse sentido. De forma semelhante, um parágrafo em um evangelho deve ser estudado como tal, não como outra coisa; e novas direções na crítica da forma podem ter algo a dizer a esse respeito. Já ouvimos muitas supostas reconstruções históricas de Jesus em que ferramentas de pensamento e crítica foram usadas de maneira ad hoc e indiscriminada. Primeiro, pegamos alguma passagem inconveniente dos evangelhos e a descartamos como evidência de Jesus, tratando-a casualmente como produção da igreja primitiva. Ao fazermos isso, silenciosamente ignoramos, ou até mesmo adiamos, o conjunto cada vez maior de problemas histórico-tradicionais assim criados na parte “igreja primitiva” do quebra-cabeça: como podemos explicar tal material complexo sendo produzido pelos primeiros cristãos se o material não remontar a Jesus? Ademais, ignoramos silenciosamente a real natureza do próprio material. [ 203 ] No escopo atual do estudo histórico do Novo Testamento, certa pressão é regularmente exercida entre os profissionais do setor para mostrar quão “crítica” a erudição realmente é — ou seja, para mostrar se alguém realmente pertence ou não ao clube pós-Iluminismo de estudos históricos —, demonstrando sua disposição em descartar esse ou aquele dizer ou incidente nos evangelhos, ou esse ou aquele parágrafo de Paulo, no interesse de uma hipótese particular. Essa pressão atua, entre outras coisas, como uma espécie de garantia de que alguém não é, afinal, um fundamentalista disfarçado. Contudo, esse anseio legítimo por uma leitura histórica e pela crítica das fontes, assim como a devida recusa em recorrer a Reimarus — ou seja, a uma época em que questões dessa natureza não poderiam ser levantadas —, é pervertido se nos levar a ignorar o fato de que, na história, o que realmente conta é a coleta de dados. Neste ponto, precisamos reabrir a questão, frequentemente fechada hoje em dia: conta realmente como “coleta de dados” dizer que “essa é uma invenção da igreja primitiva”? Poderia contar, se pudéssemos produzir uma hipótese realmente viável sobre a igreja primitiva que confirmasse essa teoria; em meu julgamento, porém, tal história ainda não foi sugerida. O estudo da real história da igreja primitiva continua dando os primeiros passos, mas a criação já mostra sinais de que logo crescerá o suficiente para atacar as hipóteses especulativas que por tanto tempo usurparam seu lugar na família (cf. Parte IV). De fato, uma boa parte da erudição do Novo Testamento — e, dentro dela, boa parte dos estudos de Jesus — agiu na suposição de que os evangelhos não podem fazer sentido na forma como se encontram, de modo que alguma hipótese alternativa deve ser proposta para assumir o lugar da perspectiva de Jesus que parecem oferecer. Parte-se da suposição de que sabemos, mais ou menos, como foram a vida, o ministério e a autocompreensão de Jesus, e que a imagem que encontramos nos evangelhos diverge desses elementos. [ 204 ] Todavia, hipóteses desse tipo carecem de simplicidade, uma vez que exigem uma explicação não apenas para o que aconteceu no ministério de Jesus, como também para o porquê de a igreja primitiva dizer algo diferente, produzindo histórias fundadoras de “mitos” cuja relação com os eventos históricos foi tênue ou praticamente inexistente. Podemos admitir, obviamente, que a verdade desses assuntos provavelmente é muito complexa, porém deparamos com três fatores que militam contra esse tipo de complexidade. Existe, em qualquer demonstração, a comparativa proximidade cronológica dos evangelhos com o assunto que pretendem descrever. [ 205 ] Há, em segundo lugar, a alta probabilidade de que o cristianismo palestino mais antigo tenha continuado, em muitos aspectos importantes, no tipo de ministério no qual o próprio Jesus se engajou. [ 206 ] Também há o fato de que temos disponíveis nos estudos atuais várias hipóteses plausíveis sobre Jesus, incluindo resmas inteiras de dados antes tidos como impossíveis de inclusão. [ 207 ] Como resultado, a posição daqueles que insistem que a história dos evangelhos não pode ser tomada em nenhum sentido como história começa a se parecer com a do paleontólogo que, ao encontrar um esqueleto realmente preservado e intacto, insiste em que não existiu, nem poderia ter existido, um animal assim, de modo que, para ele, esse esqueleto deve ter sido montado em uma data posterior (talvez pelo que Theissen chama de “comitê para enganar futuros historiadores”). [ 208 ] Com o surgimento de uma hipótese mais simples — ou mesmo antes disso! —, somente um cientista ousado manteria tal argumento. É minha afirmação, no campo do estudo histórico de Jesus, que o estado atual das pesquisas histórico-tradicionais dos evangelhos atingiu esse ponto; uma hipótese mais simples, fazendo mais jus aos dados como um todo, está ao nosso alcance. Reitero: o mesmo se dá com as hipóteses sobre o pensamento de Paulo. Diversas hipóteses oferecidas alcançaram aparente simplicidade à custa da remoção de vários versículos como acréscimos posteriores — ou seja, da remoção de evidências — ou sugerindo que muitos dos grandes temas e passagens são realmente autocontraditórios e incoerentes — ou seja, admitindo a intratabilidade da evidência. É claro que existe algo como alteração posterior de textos antigos; também existe, claro, algo como incoerência, de forma que é possível, tanto em tese como na prática, que qualquer escritor, antigo ou moderno, seja culpado disso. Mas nunca se deve sugerir a remoção de evidências que não se enquadram na teoria, a menos que haja bons argumentos para, por outras razões, fazê-lo. [ 209 ] E a última possibilidade — a admissão de que a evidência parece intratável — deve ser considerada com muito cuidado, tanto em si mesma como em seus efeitos danosos sobre a hipótese que contém ou exige, antes de ser adotada. Essa posição convida positivamente a uma nova proposta para uma solução clara e que resolve a dificuldade. Em vista do que foi exposto até agora, o que pode ser considerado como satisfazendo o critério da simplicidade? Os historiadores, como já sugerimos, precisam tomar cuidado neste ponto. Acadêmicos que gostam de organização, talvezpor outras razões, podem muito bem impor seu desejo de ordem ao material, deixando a oficina histórica tão arrumada a ponto de ninguém conseguir descobrir onde está alguma coisa. A história não diz respeito a uma arrumação, mas, sim, na maioria das vezes, ao estranho, ao irrepetível e ao improvável. Por isso, é importante afirmar que nem todas as formas de simplicidade têm o mesmo valor. Se quisermos distinguir, no campo limitado da história, entre diferentes tipos de simplicidade (ou, negativamente, entre diferentes tipos de complexidade), poderíamos fazer isso da seguinte forma: as áreas em que a simplicidade pode se fazer valer fortemente são nos objetivos e nas motivações do ser humano, na continuidade do indivíduo. Visto que seres humanos são entidades altamente complexas, vivendo em um mundo altamente complexo e, muitas vezes, falhando em atingir um alto nível de consistência comportamental, ainda assim há algo como “coerência e estabilidade de caráter”, de modo que o comportamento incomum ou anormal (ou seja, o comportamento incomum ou anormal para aquele indivíduo, em vista das informações adicionais que sabemos a seu respeito) convida a uma investigação e a uma explicação especial. Da mesma forma, ações e acontecimentos simplesmente têm consequências e sequelas. Um salto, ou uma quebra aparentemente estranha, em uma sequência de acontecimentos convida a uma investigação semelhante. Nesse aspecto, estamos justificados ao procurar pela simplicidade: podemos entender pelo menos alguma coisa sobre como os atores centrais do drama estavam motivados e se comportavam, levando aos eventos que seguiram determinado curso? [ 210 ] É precisamente porque esse tipo de simplicidade é importante que as principais questões que levantaremos sobre Jesus no próximo volume são o que são. A complexidade de muitas hipóteses precisamente nesses pontos é uma de suas principais ruínas. Mais uma vez, o mesmo seria verdadeiro em relação a Paulo. Qualquer hipótese que possa exibir consistência geral de pensamento — e desde que haja pelo menos a promessa de coerência com campos de investigação mais amplos — será sempre preferível a uma hipótese que deixa o escritor como um indivíduo desorganizado, cortando e mudando de ideia a cada passo. [ 211 ] O mesmo seria, em tese, verdadeiro se estudássemos Aristóteles, Atanásio, Beethoven ou Barth. Há um tipo diferente de simplicidade, contudo, que tem sido muito atraente para os estudiosos do Novo Testamento, mas cujo valor é extremamente questionável. Muitas hipóteses foram construídas com uma simplicidade que jaz em “movimentos” diretos e nos desenvolvimentos unilineares de grandes ideias. O cristianismo, imagina-se, começou de forma muito simples e depois se desenvolveu em uma complexidade cada vez maior. [ 212 ] No entanto, não é assim que a simplicidade de ideias se forma. É provável que a forma mais simples de uma ideia resulte, no mínimo, do desenvolvimento e da polidez de muitos anos de trabalho, durante os quais um fenômeno complexo foi pacientemente organizado e tornado mais maleável. Outro exemplo é o esquema proposto, no século 19, por F. C. Baur, o qual, ainda hoje, exerce grande influência em alguns círculos. Como é simples e organizado ter o cristianismo judaico desenvolvendo-se de maneira “x”, o cristianismo gentílico desenvolvendo-se de maneira “y” e ambos unindo-se para formar o catolicismo primitivo! [ 213 ] Arguir que tal esquema cheiraria a Hegel é perder de vista a ideia central. Tampouco servirá sugerir que o esquema não possa ser verdadeiro por haver começado como um constructo intelectual (na mente de F. C. Baur) e apenas posteriormente desenvolvido em detalhes. Não é uma crítica válida alegar que a hipótese foi o início, e não o fim, de um amplo estudo dos dados. Todas as hipóteses, como vimos, funcionam assim. Todas começam com a modificação de uma história já contada por um grupo ou indivíduo, ou com a história à qual, por um salto intuitivo, o pesquisador chega. Em vez disso, tal esquema falha como história, já que — como pode ser visto na bagunça que fez aos reais dados coletados — ela simplesmente não parece ter progredido assim, segundo padrões unilineares e definidos. Encontramos tanto regressão como progressão. Há uma mudança absoluta, não simplesmente um desenvolvimento observável, tranquilo. Pessoas e sociedades refazem passos, tentam caminhos diferentes. Nem sempre marcham em linha reta. Isso, contudo, não significa negar a existência de algo do tipo “movimento de pensamento”. Em outro lugar, procurei descrever algumas coisas que acontecem atualmente entre os estudiosos do Novo Testamento. [ 214 ] Todavia, conforme evidenciado fortemente nos últimos anos, a simplicidade do esquema idealista de Baur demonstrou-se ilusória. O tempo em que o desenvolvimento proposto decorreu é simplesmente muito curto; inúmeros dados deixaram de ser acoplados ao todo, permanecendo, assim, soltos (o fato, por exemplo, de nossa principal evidência para o “cristianismo judaico” ser tardia, mas não para o “cristianismo gentílico”); e suas teorias prediletas sobre derivações da história das religiões, especialmente na área da cristologia, despedaçaram-se por completo. Há uma arrumação e uma organização que são próprias da vida humana plena; contudo, também há uma arrumação que é própria de um cemitério. O problema final sobre as hipóteses é que, em última análise, pode haver mais de uma hipótese possível que se encaixe nas evidências. A questão pode, no linguajar técnico, ser subdeterminada. Isso é especialmente provável na história antiga, em que dispomos de tão poucos dados para trabalhar, em comparação com o que temos acerca do, digamos, século 16. [ 215 ] Inevitavelmente, somos, até certo ponto, como o paleontólogo que “reconstrói” o brontossauro a partir de meia dúzia de pequenos ossos. Afinal, talvez se tratasse de um mastodonte. A possibilidade teórica de duas ou mais soluções igualmente boas é, no entanto, um problema com o qual muitos historiadores gostam de conviver. Uma vez que é extremamente difícil, para dizer o mínimo, a qualquer profissional da classe manter todos os dados relevantes em sua cabeça ao mesmo tempo, carecemos uns dos outros e devemos aceitar, seguindo a tradição científica, o fato de ter nossa atenção despertada por fragmentos de evidências cuja existência deveríamos ter esquecido, complexidades desnecessárias na formulação da hipótese ou partes de um assunto correlato em que a hipótese parece criar novos problemas em vez de resolver problemas antigos. Quanto ao que acontece quando, finalmente, chegamos a duas ou mais hipóteses significativamente diferentes, que parecem atender a todos os critérios de uma forma igualmente adequada — bem, atravessaremos essa ponte quando a encontrarmos pela frente. Não espero que seja logo. DO EVENTO AO SIGNIFICADO 1. Evento e intenção História, então, diz respeito a um conhecimento real, de um tipo particular. Seu conhecimento é alcançado, como todas as formas de conhecimento, pela espiral da epistemologia. A comunidade humana, contadora de histórias, inicia investigações, forma julgamentos provisórios a respeito das narrativas de maior probabilidade de sucesso em responder a essas investigações e, em seguida, testa esses julgamentos por meio de uma interação posterior com os dados. Há, porém, três níveis de compreensão, próprios da história em particular, aos quais devemos estar atentos. Para começar, história envolve não apenas o estudo “do que aconteceu”, no sentido de “quais acontecimentos físicos uma câmera de vídeo teria registrado”, mas também o estudo da intencionalidade humana. Nas palavras de Collingwood, envolve olhar para o “interior” de um acontecimento. [ 216 ] Procuramos descobrir o que as pessoas envolvidas nos acontecimentos pensavam e faziam, desejavam fazer ou tentavam fazer. Um contraexemplo aparentemente óbvio para essa ideia seria o seguinte: quando historiadores tentam escrever sobre a história pré-humana ou não humana, invocam regularmente alguma ideia de propósito— seja a do cosmos, seja a de algum tipo de força vital direcionadora, seja ainda de algum tipo de deus. O argumento da completa aleatoriedade torna-se cada vez mais difícil de sustentar. Coisas estranhas acontecem, mas, ao acontecerem, alguém começa a perguntar: “Por quê?”. E (para voltar à história comum, humana) a resposta a essa pergunta normalmente alcança não apenas as propriedades físicas dos “objetos” envolvidos (o vaso se quebrou porque era de vidro e colidiu com o chão), mas também os objetivos, as intenções e as motivações dos seres humanos, e como tudo isso afetou os acontecimentos observáveis. O vaso se quebrou porque (a) parte do meu objetivo geral é morar em uma bela casa e eu percebo que, se encorajar meus filhos a decorá-la com flores, será um meio de atingir esse objetivo; (b) minha intenção era entregar um vaso à minha filha e (c) eu estava motivado a fazê-lo naquele momento; mas (d) ela não esperava que eu o soltasse quando o fiz (talvez possamos falar de minha motivação inapropriada), e então chegou um momento em que ninguém estava segurando o vaso, de modo que ele caiu no chão. O “exterior” do acontecimento é o fato de o vaso haver quebrado; o “interior” do acontecimento é uma história, não apenas sobre as propriedades físicas de vasos e superfícies sólidas, porém mais particularmente de objetivos humanos, intenções, motivações e ações resultantes. Devemos explorar mais a esse respeito; trata-se de uma área em que pontos importantes serão examinados mais adiante. [ 217 ] Por objetivo, quero dizer a direção fundamental da vida de um indivíduo ou de algum subconjunto razoavelmente estabelecido dessa direção fundamental. Tal objetivo é, assim, o aspecto direcional da mentalidade de alguém, pela qual quero dizer o subconjunto de, ou variante da, cosmovisão da sociedade ou das sociedades às quais o indivíduo pertence. [ 218 ] Falar sobre o “objetivo” permite que a conversa sobre cosmovisões e mentalidades receba seu devido aspecto direcional (ou seja, o sentido de que envolvem propósito e movimento), sem o qual podem ruir a uma forma aparentemente estática, na qual os seres humanos não passam de máquinas que, uma vez programadas, permanecem no mesmo local e realizam as mesmas operações mentais e físicas. Isso, acredito, seria algo fundamentalmente contraintuitivo. Quando, portanto, questionamos acerca do “objetivo” de alguém, vamos “dentro” de um acontecimento até o ponto em que algumas das questões mais fundamentais podem ser encontradas. Por intenção, quero dizer a aplicação específica do “objetivo” em uma situação particular (e, em tese, passível de repetição). Obviamente, a linha entre os dois é bastante arbitrária, de modo que é possível inverter as duas palavras sem causar violência à linguagem. No entanto, algumas dessas divisões costumam ser úteis. O “objetivo” de Paulo era anunciar Jesus como Messias e Senhor em cidades e vilarejos ao redor do mundo mediterrâneo. Era sua “intenção”, como resultado desse objetivo, trabalhar seu caminho ao redor da costa do mar Egeu e, tendo terminado naquela região, seguir para Roma. Quando olhamos para a “intenção” de Jesus em ir para Jerusalém, para sua última e fatídica Páscoa, devemos vê-la à luz de seu “objetivo” geral: na ocasião, como sua intenção estava relacionada com os objetivos e as metas subjacentes que motivaram Jesus ao longo de seu ministério? Por motivação, quero dizer o sentido específico, em uma ocasião específica, de que certa ação ou certo conjunto de ações é apropriado e desejável. O objetivo de Jesus era (podemos dizer) inaugurar o “reino de Deus”; sua intenção, no final da vida, era ir para Jerusalém; entre uma coisa e outra, ele foi motivado a ir ao Templo e virar as mesas. No âmbito do objetivo e das intenções gerais de Paulo, o apóstolo foi motivado, em uma ocasião particular, a debater com filósofos em uma praça pública ateniense; em outra ocasião, a escrever uma carta altamente retórica a Corinto; em outra ainda, a iniciar a arrecadação de uma oferta em nome da igreja de Jerusalém. Evidentemente, é bem possível que motivações específicas entrem em conflito com objetivos e intenções: Aristóteles dedicou uma discussão considerável a esse problema, e certamente não foi o último a fazer isso. [ 219 ] Um dos problemas de se discutir (digamos) Judas Iscariotes é o fato de considerarmos difícil discernir uma motivação para sua ação crucial que faça sentido em si mesma e em relação aos objetivos e às intenções que devemos atribuir-lhe durante o tempo em que seguiu Jesus. Entretanto, em muitos casos, podemos ver, em geral, uma ampla convergência de objetivos, intenções e motivações. Pretendo tornar-me um ministro do governo; pretendo tornar-me senhor de determinada área do mundo político; tendo um fim de semana livre, estou motivado a ler algo sobre uma parte nova da minha área ou, então, ampliar minha rede de contatos úteis. Se, dada a presença das devidas oportunidades, nunca estou suficientemente motivado para fazer essas coisas, é apropriado questionar a veracidade da afirmação sobre meus objetivos e intenções. Obviamente, ocorrerá fraqueza de vontade (o que Aristóteles chamou de akrasia), de modo que o desafio de se alcançar certo objetivo pode ser resistido; mas faz sentido propormos uma motivação. História, então, inclui o estudo de objetivos, intenções e motivações. Isso não significa que ela seja uma psicologia encoberta. É possível, sem dúvida, ir além dos três aspectos já estudados e perguntar, em relação a determinados personagens, por que tinham um conjunto particular de objetivos e intenções ou por que, em certas ocasiões, viam-se claramente motivados a agir, conforme diríamos, como se estivessem “fora de si”. Em tese, é possível, sim; na prática, porém, é muito difícil. Como qualquer conselheiro experiente sabe, é difícil e delicado fazer essas perguntas a um indivíduo amigável, honesto e aberto que, partilhando da mesma cultura que a nossa, está assentado ao nosso lado, cooperando conosco. Já o processo é mais difícil quando se trata de um indivíduo confuso ou hostil; e mais difícil ainda no caso de alguém cujo conhecimento extraímos daquilo que foi relegado à história. Conseguiremos fazer suposições inteligentes sobre o estado psicológico de Napoleão, Martinho Lutero ou até mesmo Jesus; fazê-lo, porém, implica enfrentar enormes dificuldades. Devemos insistir, no entanto, que estudar o “interior” de um acontecimento não significa ir tão longe. Podemos dizer, como historiadores, que o rei Davi escolheu Jerusalém como sua capital porque (a) seu objetivo era unir as doze tribos de Israel; (b) sua intenção era encontrar uma capital que, obviamente, não pertencesse a nenhuma das tribos, não levantando, dessa forma, nenhuma suspeita; (c) e que, em determinado momento, sua motivação foi, como uma conclusão natural, tomar Jerusalém. Podemos dizer, como historiadores, que o objetivo de César era trazer paz e estabilidade ao mundo romano; que sua intenção era alcançar essa paz ao tomar o poder para si e resolver os problemas em torno das fronteiras do (que se tornou o) império; e que sua motivação era confirmar Herodes no poder, a fim de manter a Palestina em ordem. Penso que podemos dizer, do Mestre da Justiça, que seu objetivo era fundar a comunidade do Verdadeiro Israel contra os usurpadores em Jerusalém; que sua intenção era fazê-lo ao dar a seus seguidores uma base sólida de exegese bíblica e uma regra de vida em comunidade; e que sua motivação foi, em ocasiões específicas, o registro de seu ensino. Conforme argumentarei posteriormente, o mesmo que dissemos sobre Jesus pode ser dito sobre Paulo. Repare que nenhum caso envolve especulação psicológica. Antes, envolve o estudo histórico de cosmovisões, mentalidades, objetivos, intenções e motivações. Estamos em um terreno que pode ser debatido sem a necessidade de recorrermos a Freud ou Jung, e sem o fingimento de que podemos interpretar, no caso de um indivíduo de um passado remoto, o que seria difícil interpretar até mesmo em um contemporâneoque cooperasse conosco. Por fim, se a história abarca todas essas coisas, deve claramente envolvê-las não apenas em termos de indivíduos cujas mentalidades estão envolvidas diretamente, mas também de sociedades cujas cosmovisões estão em jogo. [ 220 ] Como, porém, estudamos sociedades e suas cosmovisões? Por meio de seus símbolos, de seu comportamento característico e de sua literatura, particularmente as histórias que contam, explícita ou implicitamente. Sociedades e culturas revelam suas visões de mundo pelos objetos culturais que produzem — de cédulas a passagens de ônibus, de arranha-céus a vagões de metrô, de cerâmica a poesia; de templos a rolos da Torá, de emblemas militares a monumentos funerários, de ginásios a amuletos. Símbolos fornecem as lentes de interpretação através das quais o ser humano percebe como o mundo é e como pode agir dentro dele; fornecem uma perspectiva da realidade e um meio de interpretá-la. [ 221 ] Símbolos se aglutinam em torno do comportamento característico de uma sociedade e vice-versa: a celebração de festas; meios regulares de lidar com a dissonância; rituais associados a nascimento, puberdade, casamento e morte. E, em muitas culturas, o símbolo e o comportamento característico também se concentram em todas as formas de literatura. É estudando essas coisas que o historiador pode descobrir a visão de mundo de outra cultura e, desse modo, preparar o terreno para indagar sobre a mentalidade dos indivíduos dessa sociedade. [ 222 ] A tarefa do historiador é, portanto, abordar os “porquês” em todos os níveis possíveis, até as suas raízes, na forma como as pessoas sob investigação percebiam o mundo como um todo. Contudo, não será suficiente responder à questão simplesmente listando várias circunstâncias antecedentes em qualquer ordem particular. O trabalho do historiador consiste em examinar o equilíbrio dos fatores e chegar a uma conclusão que estabeleça a sequência inter- relacionada dos acontecimentos, dedicando-lhes a devida ponderação. [ 223 ] Como isso deve ser feito? 2. História e narrativa A tarefa do historiador não é simplesmente reunir pequenos aglomerados de “fatos” e esperar que outra pessoa os integre. Seu trabalho é mostrar a interconexão entre eles, ou seja, como uma coisa segue a outra, examinando precisamente o “interior” dos acontecimentos. E o modelo para essas conexões não é simplesmente o de átomos aleatórios encaixando-se uns nos outros; é a interação da plena vida humana — a complexa rede de objetivos, intenções e motivações humanas, operando dentro de e nas fronteiras das diferentes cosmovisões de diferentes comunidades, bem como da mentalidade de diferentes indivíduos. A fim de mostrar isso, o historiador precisa (o que não causa surpresa) contar uma história. [ 224 ] É nesse ponto que o historiador precisa usar uma construção intuitiva ou imaginativa. Como argumentei no capítulo 2, é algo que liga o historiador a todas as outras disciplinas. Todo conhecimento procede de novas narrativas, as quais seguem seu caminho pelo processo de verificação antes discutido. Entretanto, a própria hipótese histórica, como todos os avanços no conhecimento (uma vez que o realismo ingênuo foi abandonado), decorre do próprio historiador e, portanto, dos recursos narrativos inerentes à sua experiência direta ou indireta. O processo pode incluir analogia, reconhecimento de padrões semelhantes de acontecimentos em dois períodos distintos, mas também pode ir além. Uma das perguntas que costumo fazer aos meus alunos é: por que Roma tinha especial interesse no Oriente Médio? Poucos apresentam (o que me parece) a resposta certa: a capital do império precisava de suprimento constante de milho; uma das principais fontes de milho era o Egito; e qualquer coisa que ameaçasse esse abastecimento, como, por exemplo, distúrbios em países vizinhos, poderia resultar em sérias dificuldades para Roma. (É ainda mais surpreendente que a história não venha à mente de forma imediata, considerando as analogias óbvias com a política do século 21: substitua milho por petróleo, certos países por Roma e outros pelo Egito; a equação continuará funcionando.) Mas esse relato de como as coisas eram — uma vez que, para início de conversa, alguém como Pôncio Pilatos encontrava-se na Palestina, por exemplo — não é lido na superfície de um texto particular. Trata-se de uma narrativa contada por historiadores para explicar narrativas menores, encontradas na superfície dos textos. Mesmo para chegarmos a uma interpretação simples, precisamos de certa dose controlada de imaginação. Não precisamos apenas de imaginação, mas, sem imaginação, não há interpretação. É importante enfatizar isso porque, conforme veremos em breve, muitos dos especialistas da área do Novo Testamento escreveram pouquíssima história como tal. Atenção a problemas particulares, sim; tentativas de escrever a história interligada de pelo menos uma parte do primeiro século, não. [ 225 ] Há poucos livros na área que correspondem, digamos, a History of Greece [História da Grécia], de J. B. Bury, ou mesmo a History of Western Philosophy [História da filosofia ocidental], de Bertrand Russell. [ 226 ] Práticas mais características da disciplina, ao menos desde a Primeira Guerra Mundial, têm sido comentários sobre livros específicos, estudos isolados de problemas menores e notas exegéticas de textos. Não há trabalho recente que faça pela igreja primitiva, ou ainda por Jesus, o que a nova edição do clássico de Schürer, History of the Jewish People in the Age of Jesus Christ [História do povo judeu na era de Jesus Cristo], fez pelo tema, mostrando no processo que, apesar dos receios demonstrados pelos estudiosos do Novo Testamento, a história do primeiro século continua viva e saudável. [ 227 ] Qualquer um que duvide que se possa escrever a história factual com base em fontes — a maior parte delas escrita a partir de posicionamentos de fé (não necessariamente de fé cristã, diga-se) — deve ler o primeiro volume de Schürer e observar a análise crítica das fontes, a construção narrativa (em que os escritores se projetam, por uma disposição imaginativa favorável, nas cosmovisões e mentalidades dos personagens envolvidos) e a síntese final. [ 228 ] O resultado é uma narrativa na qual os dados estão contidos, em sua maior parte, em um esquema comparativamente simples, contribuindo, de forma substancial, para nosso conhecimento dos acontecimentos também em outras áreas. É com isso que a história — a história factual, e não alguma invenção estranha da imaginação crítica — se parece. Desse modo, mesmo que nenhum trabalho recente tenha sido produzido nos termos descritos, não há, em tese, uma boa razão para que não seja feito. Certamente, não temos nenhum Josefo para o cristianismo primitivo. No entanto, outras fontes para a história judaica não são nem mais nem menos dispersas ou fragmentárias, nem mais nem menos tendenciosas ou parciais, do que as fontes cristãs, de modo que a tarefa da reconstrução não é nem mais nem menos arriscada e, nos sentidos já discutidos, “subjetiva”. O problema é que, quando os estudiosos do Novo Testamento deparam com páginas e mais páginas de narrativas e descrições históricas, embora salpicadas de notas explicativas de rodapé e discussões de pontos complicados, sentem-se desconfortáveis — especialmente quando o assunto é Jesus. Estão certos de que as perguntas devem ser feitas, que uma harmonização injustificada deve estar acontecendo em algum lugar. Afirmo que esse medo é desnecessário. Claro que deve haver harmonização. Todo escrito histórico sério pressupõe uma sequência de acontecimentos que, de fato, tiveram lugar, uma sequência composta por um “interior” e um “exterior”. Um bom relato histórico oferece precisamente um tratamento harmonioso do todo; essa, conforme vimos, é uma das condições, caso queira ser levado a sério como história. Isso não significa, naturalmente, que um relato harmonioso esteja necessariamente correto. Pode não ser: Meyer, Harvey, Borg, Sanders, Horsley, Crossan e muitosoutros se levantaram contra essa tendência generalizada e produziram relatos internamente harmoniosos de Jesus — e todos discordaram entre si, em diversos pontos. Não era possível que todos estivessem certos o tempo todo. [ 229 ] Relatos harmoniosos devem ser testados, como qualquer outra hipótese. Mas isso significa dizer que um relato harmonioso não é, por sua própria natureza, incorreto. Certos eventos realmente ocorreram, de modo que é possível, em tese, trabalhar em prol de sua descoberta e aprimorar tentativas anteriores à tarefa. É isso que tentarei produzir nas Partes III e IV deste volume e no decorrer do próximo. Um aspecto importante da narrativa é a sequência. Entre os problemas que envolvem o estudo de “história contemporânea”, encontra-se o fato de não termos uma sequência com a qual trabalhar; e, onde não há sequência, um apelo, talvez tácito, pode ser feito à ideologia, a fim de preencher a lacuna. [ 230 ] Existe, obviamente, um grande perigo relacionado às sequências. “Retrospectiva” tende a ser uma palavra abusiva quando analisamos um período: queremos ver e sentir como as coisas eram na época. Mas é igualmente verdade que a história completa do “interior” de um acontecimento só pode ser desdobrada gradualmente, à luz dos acontecimentos subsequentes. Foi apenas nos anos após a Segunda Guerra Mundial, quando a verdade sobre a “Solução Final” veio à tona, que se pôde realmente compreender o que aconteceu na Alemanha durante a década de 1930. Evidentemente, existem coisas como efeitos não intencionais. Também existem efeitos pré-intencionais causados por alguém, ou por um grupo, que gradualmente se manifestam. Como Albert Schweitzer percebeu, precisamos entender algo sobre a segunda geração das comunidades paulinas para compreender plenamente as pretensões do próprio Paulo. [ 231 ] Conforme Ben Meyer argumenta, pode ser que, “na tradição gerada por Jesus, venhamos a descobrir o que o motivou a agir de determinada maneira”. [ 232 ] A narrativa deve, portanto, remeter para além de si mesma e aceitar o futuro. Dessa forma, os historiadores se encontram, de vez em quando, usando a palavra “significado” — algo que, por si só, é gerador de novos problemas. 3. História e significado É no âmbito dessa estrutura que podemos abordar a problemática questão do “significado”. Há tempos ocorre um debate sobre o “significado do significado” nos círculos filosóficos; e, como no caso de muitas outras coisas neste volume, não podemos investigá-lo. [ 233 ] Faz-se necessário, porém, que eu ofereça, neste estágio, um breve relato do que pelo menos entendo em relação a esse conceito. Meu pensamento ficará mais claro se trabalharmos das unidades menores para as maiores. Em primeiro lugar, considero o significado de uma palavra (seguindo Wittgenstein) conforme o uso em um contexto, quer explícito, quer implícito — ou seja, sua utilização factual ou potencial em uma frase ou em uma frase em potencial. [ 234 ] Se eu usar a palavra “reserva”, seu significado será duvidoso até que eu forme uma frase: “O voo foi reservado”; “Eis aí um homem reservado”; “A crise não afetou as reservas do país”. Mesmo quando uma palavra é claramente unívoca, nunca podemos descartar possíveis significados metafóricos — embora, em todo caso, só conheçamos o significado unívoco pelo emprego de frases nas quais ele se tornou claro. Em segundo lugar, o significado de uma frase é seu lugar em uma narrativa explícita ou implícita. [ 235 ] Em termos de história implícita, a frase “O livro está sobre a mesa”, proferida por minha assistente, traz consigo um significado diferente no contexto em que (a) tenho vasculhado minhas estantes à procura de um livro e não consigo encontrá-lo ou (b) quando minha intenção era esconder o livro antes que outra pessoa entrasse na sala. “Jesus foi crucificado” carrega diferentes significados na história contada pelo centurião ao reportar esse evento a Pilatos; na história que os discípulos contaram uns aos outros, naquele mesmo dia; na história contada por Paulo em sua pregação missionária. Em terceiro lugar, o significado de uma história é o lugar que ocupa em uma cosmovisão. (Isso pressupõe, sem dúvida, vários estágios intermediários, nos quais histórias menores adquirem significado dentro das maiores, e assim por diante). Segundo vimos diversas vezes, as histórias se relacionam de várias maneiras com diferentes visões de mundo: articulando-as e legitimando-as, sustentando-as e modificando-as, subvertendo-as e até mesmo destruindo-as. A mesma história pode ter significados distintos em relação a diferentes cosmovisões. A parábola do Bom Samaritano, contada a um fervoroso escriba judeu, ameaçaria ou subverteria sua cosmovisão. A mesma história, contada a um ardente nacionalista samaritano, poderia reforçar a visão de mundo dele. A história da queda do muro de Berlim tem sido amplamente usada para reforçar a cosmovisão do capitalismo liberal ocidental. A mesma história foi usada para subverter a teoria marxista mais antiga: o experimento falhou, mas vamos acertá- lo da próxima vez. Narrativas contadas por historiadores ganham significado a partir de uma visão de mundo geral. Na introdução à segunda edição do seu livro sobre a natureza da história, E. H. Carr defronta-se com a possibilidade de que a história dos acontecimentos entre a primeira e a segunda edição tenha subvertido sua visão de mundo, sua crença no progresso e, em seguida, promova outros argumentos cuja sugestão é que ele ainda possa reter, afinal, sua cosmovisão. [ 236 ] E está muito claro, como sugerimos há pouco, que a questão da sequência constitui motivo de grande preocupação nessas discussões. Se as coisas acabarem diferentes no final, o significado de uma história, incluindo as primeiras partes, será diferente. Se o proprietário da vinha tivesse retornado e ignorado o comportamento dos lavradores, permitindo-lhes reter a vinha para sempre, o significado de todos os acontecimentos teria de ser visto sob uma ótica diferente. O final de uma história ou peça, sendo a sequência da parte principal da ação, obriga-nos a olhar para trás, nas cenas anteriores, com novos olhos: afinal de contas, O mercador de Veneza é realmente uma comédia ou, na verdade, trata-se de uma tragédia oculta? O que é verdade sobre narrativas é enfaticamente verdadeiro sobre eventos. O significado de um evento, o qual, como vimos, é basicamente uma narrativa encenada, é seu lugar, ou a forma como o percebem, em uma sequência de acontecimentos, contribuindo para uma história mais fundamental; e as histórias fundamentais são, naturalmente, uma das características constituintes das visões de mundo. A queda de Jerusalém tinha um significado para o escritor de 4Esdras, que a viu como um desastre absoluto, subvertendo sua expectativa tão completamente quanto um final hipotético de Chapeuzinho Vermelho, no qual o lenhador, depois de libertar o lobo, casa-se com a heroína. Teve um significado radicalmente diferente para Josefo, que pelo menos tentou fingir que o via como resultado do deus de Israel voltando-se para os romanos, talvez revisando tacitamente sua visão de mundo para levar em conta a nova situação. A queda de Jerusalém teve ainda outro significado para o autor de Marcos 13, em que é vista como a destruição de uma Neobabilônia. Assim, em todos os níveis com os quais o historiador está preocupado, de palavras individuais a sequências mais completas de acontecimentos, o “significado” deve ser encontrado dentro de um contexto — em última análise, dentro do contexto das cosmovisões. Quer dizer, então, que “significado” deve ser sempre uma questão de interpretação particular? Será que nos afastamos, ao menos implicitamente, de uma ideia positivista de “significado” — da crença de que, “lá fora”, existe um significado “real” ou “verdadeiro” esperando para ser descoberto — a ponto de destruirmos todo o sistema, reduzindo-o a um solipsismo fenomenológico? De jeito nenhum! Dois contra-argumentos podem ser apresentados. O primeiro é que acontecimentos esuas sequências são essencialmente públicos. Embora o historiador (e o profissional de outras áreas e o cidadão comum) deseje saber sobre o “interior” do acontecimento, o acontecimento é, em si, de domínio público. A visão de mundo da Flat Earth Society [Sociedade da terra plana] é progressivamente minada a cada navegação ao redor do mundo, a cada fotografia tirada do espaço; quando Rosencrantz, personagem criado por Tom Stoppard, diz a Guildenstern não acreditar na Inglaterra, a resposta (“Apenas uma conspiração de cartógrafos, você quer dizer?”) [ 237 ] perde a plausibilidade quando ambos, finalmente, chegam lá (será que realmente chegam?). Se acontecimentos são públicos, então podem ser discutidos; e evidências podem ser acumuladas. Assim, torna-se progressivamente mais difícil reter algumas visões de mundo, demandando cada vez mais teorias da conspiração para que permaneçam no lugar, até que, eventualmente, acabam por desmoronar sob seu próprio peso. Testemunhamos isso em ampla escala com o colapso do comunismo na Europa Oriental. O segundo contra-argumento é que as cosmovisões, embora normalmente escondidas (como os fundamentos de uma casa), podem, em tese, ser escavadas e inspecionadas. [ 238 ] A sinalização de que as descobrimos é dada por alguma frase do tipo: “O mundo é assim mesmo”. Quando outra pessoa diz: “Não, não é!”, duas coisas geralmente acontecem: a conversa é interrompida ou tem início uma batalha, consistente em histórias contadas por ambos os lados com o objetivo de enfraquecer a narrativa do outro ou reforçar a posição já estabelecida de cada um. Nessa discussão, o que realmente está em jogo é a adequação ou justificativa dos significados atribuídos a uma variedade de histórias e acontecimentos pertencentes a determinada visão de mundo. O processo, então, que obviamente pertence à epistemologia crítico-realista que tenho defendido, garante, em tese, que, embora o “significado” nunca possa ser separado das mentes humanas que os supõem, também não podem ser simplesmente reduzidos aos termos dos próprios seres humanos, sejam indivíduos, sejam grupos. O diálogo é possível. Indivíduos podem mudar suas crenças; podem até mesmo mudar suas cosmovisões. No início de João 20, Tomé atribuía um significado à crucificação; no final do capítulo, atribuía outro. Conversões acontecem: Saulo se torna Paulo; Francisco de Assis adota uma nova visão do que significa ser humano. “Significado”, conforme veremos, é, em última análise, uma questão que alcança a esfera pública. 4. Conclusão A prática sem a teoria é cega; contudo, a teoria sem a prática é muda. É tempo de deixarmos de lado a teoria e seguirmos com a prática. Creio que lançamos fundamentos suficientemente sólidos para sustentar o trabalho principal deste projeto, que envolve o estudo da literatura judaica e cristã primitiva, bem como a tentativa de escrever história com base em ambas. Argumentei que uma leitura crítico-realista da história, prestando a devida atenção às visões de mundo, às mentalidades, aos objetivos, às intenções e motivações dos seres humanos e das sociedades envolvidas, é uma tarefa adequada e, em tese, possível. Isso abre caminho para o estudo do judaísmo e do cristianismo, bem como para o estudo de Jesus e de Paulo. Resta-nos apenas mais uma tarefa preliminar: a de explorarmos, de forma mais completa, a outra área de interesse, a saber, a teologia. Antes, porém, de nos voltarmos para essa tarefa, também nos será necessário, resumindo este capítulo sobre história, examinar o que está envolvido no estudo dos principais movimentos religiosos do primeiro século, os quais constituirão nosso foco principal. ESTUDO HISTÓRICO DOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS DO PRIMEIRO SÉCULO 1. Introdução O principal foco deste projeto é nada mais nada menos do que a história de certos movimentos religiosos do primeiro século. Essa descrição é, acredito, tão pouco suscetível de induzir a erro quanto qualquer outro título em geral. Ao lidarmos com Jesus e Paulo, e abordarmos a relevância de ambos, estudaremos principalmente pessoas e movimentos cuja cosmovisão (e cujos objetivos, intenções e motivações a ela inerentes) incluía, em um nível elevado, elementos hoje conhecidos como “religiosos”. Ou seja: elas criam em um deus ativamente envolvido na vida pessoal e corporativa da humanidade, cujos propósitos ele seria capaz de realizar por meio de agentes humanos dispostos (mas nem sempre cientes) e pelo que atualmente chamaríamos de “forças naturais”. Assim, estudaremos uma história humana, reconhecendo que os atores do drama — e, portanto, em certo sentido, o próprio drama — só podem ser totalmente compreendidos quando aprendermos a ver o mundo pelo olhar deles. Passemos rapidamente por duas áreas principais a serem abordadas, com mais detalhes, nas Partes III e IV deste livro. 2. O judaísmo no primeiro século Estudos recentes relacionados ao judaísmo do primeiro século enfatizam corretamente seu aspecto multiforme. Isso foi necessário em um clima no qual, por muitos séculos, tradições de compreensão do judaísmo, tanto em nível acadêmico como em nível popular, operaram segundo modelos simplistas que, lamentavelmente, falharam em fazer jus às evidências. [ 239 ] Pesquisas estão a todo vapor na produção de novas edições e comentários excelentes dos tipos de texto muito diferentes do período. Aprendemos a distinguir não apenas aristocratas de revolucionários, [ 240 ] ou fariseus de saduceus, mas também escritores apocalípticos de rabinos, e ambos das escolas de pensamento representadas por Filo e pela Sabedoria de Salomão. Entretanto, tamanha prontidão para aceitar seu caráter multiforme pode cair em extremos e, na minha opinião, foi exatamente isso que aconteceu: degenerou-se em uma espécie de positivismo atomístico. Há vários estudiosos cujo trabalho parece consistir simplesmente em estudar uma pequena área, dizer certas coisas sobre ela e deixar por isso mesmo. Segundo argumentei na seção anterior, isso ainda não é história em seu sentido pleno. É muito fácil analisar um texto de forma isolada, elaborar perguntas que dizem respeito a seu mundo particular e à sua forma de pensar e deixar de relacioná-lo com o universo mais amplo no qual seu significado pode ser encontrado. Já aprendemos que não devemos ignorar diferenças de cenário e tempo, imaginando uma continuidade de pensamento entre documentos provenientes de contextos distintos. No entanto, há um perigo igual e oposto contra o qual também devemos nos proteger. Um estudo estritamente focado pode ignorar o fato de que os acontecimentos (incluindo os acontecimentos literários) precisam ser examinados de um ponto de vista tão histórico quanto possível; e isso significa olhar para seu “interior”, para a gama de motivações e entendimentos a partir dos quais, tão somente, podem fazer sentido. E, nesse nível, não podemos escapar da tarefa constante, importante tanto no estudo do judaísmo do segundo templo como em qualquer outro estudo, de reconstruir a cosmovisão que informava e fundamentava não apenas determinado escrito em particular, mas também a sociedade como um todo. Precisamos traçar e compreender as histórias que os judeus da época contavam a si mesmos e uns aos outros sobre quem eles eram, sobre o que seu deus planejava realizar e sobre o potencial significado de tudo isso. Não podemos retornar às generalizações baratas que caracterizaram os estudos anteriores. Todavia, também não devemos deixar de consultar, ou até mesmo de detalhar, as correntes predominantes que deram origem à complexa entidade que ainda pode ser chamada de cosmovisão judaica do primeiro século. Esse estudo faz parte da própria história. Não assumir a tarefa implica arriscar suposições estritamente não históricas. 3. O cristianismo no primeiro século O mesmo problema em termos de método histórico pode ser testemunhado em relação ao cristianismo do primeiro século. Mais uma vez, tem havido uma tendência recente ao atomismo pela apropriação de generalizações superficiais anteriores. No caso docristianismo, porém, houve um fator complicador. Boa parte dos estudos do século 20 realmente tentou chegar ao “interior” dos acontecimentos, dos escritos e dos movimentos da igreja primitiva, porém a ferramenta empregada foi extremamente reducionista. Refiro-me às tentativas de compreender o cristianismo primitivo em termos de sua expectativa do fim iminente do mundo e/ou de sua ansiedade e mudança de atitude quando essa expectativa foi frustrada. Posteriormente, argumentarei que toda essa percepção é grosseiramente distorcida e oferecerei hipóteses alternativas para uma história “interior” diferente, a qual irá substituí-la no esquema (perfeitamente válido) da busca pela narrativa interna do cristianismo do primeiro século. E, como no caso do judaísmo, devemos lembrar que o cristianismo primitivo, embora, de muitas maneiras, aparente, para o mundo pós-Iluminismo, ser uma “religião”, não era assim rotulado nas categorias do primeiro século. Os primeiros cristãos eram chamados de “ateus”, pois não ofereciam sacrifícios de animais e se destacavam, em suas reuniões comunitárias, das práticas religiosas não cristãs. A principal coisa que teria impressionado os observadores do cristianismo primitivo não era seu lado “religioso”, nem suas primeiras formulações doutrinárias, mas seu estilo de vida em geral. Ao olharmos, portanto, para a história (do que chamamos) de movimentos religiosos do primeiro século, como o judaísmo e o cristianismo, é vital que procuremos o “interior” dos acontecimentos: objetivos, intenções, motivações e autopercepções das pessoas envolvidas. É igualmente vital que tenhamos em mente os riscos inerentes ao uso de categorias pós-iluministas. O imperialismo cultural existe e é real, e o estudo moderno da história do primeiro século nem sempre o evitou. Buscando ser obediente a essa última exigência de rigor histórico, é vital examinarmos com mais detalhes o assunto que, obviamente, está no cerne das cosmovisões judaicas e cristãs do primeiro século. Devemos dirigir o olhar para a Teologia. CAPÍTULO 5 TEOLOGIA, AUTORIDADE E O NOVO TESTAMENTO INTRODUÇÃO: DA LITERATURA E DA HISTÓRIA À TEOLOGIA Deve estar claro que a tarefa de ler o Novo Testamento nunca pode ser uma questão de estudo “puramente literário” ou “puramente histórico”, como se pudéssemos isolar qualquer elemento particular das considerações mais amplas que envolvem cultura, cosmovisão e, especialmente, teologia. O modelo da “mera história”, em particular, é inadequado para uma apreciação completa de qualquer texto e, particularmente, de um texto como o Novo Testamento. Da mesma forma, sugerimos no primeiro capítulo que uma leitura séria do Novo Testamento deve mostrar como esse livro, lido de modo apropriado, pode funcionar com a autoridade com a qual foi considerado pela maioria dos leitores ao longo dos anos; contudo, também vimos que as formas pré-críticas e “modernas” de articulá-lo não tiveram sucesso. O objetivo deste capítulo é sugerir o que pode estar envolvido em uma leitura “teológica” que não ignore as leituras “literária” e “histórica”, mas que as aprimore; também é explorar um possível modelo segundo o qual essa leitura multifacetada funcione como normativa ou autoritativa. Estou ciente da existência de grandes áreas de possível discussão que não podemos tratar aqui. O objetivo não é fornecer uma descrição exaustiva da natureza da teologia, mas extrair alguns pontos salientes sobre como a disciplina funciona. Já vimos que, além de qualquer objeção, toda leitura envolve o leitor como participante ativo. Dizer que se está apenas estudando história objetiva, sem quaisquer outros pressupostos, não é mais uma opção: Em cada trabalho realizado segundo as normas da ciência histórica, o escritor e o leitor devem estar cientes de que um esboço histórico só pode tomar forma na mente de um historiador e que, nesse processo, o próprio historiador, com todo o seu aparato intelectual, está envolvido. [ 241 ] Existem, portanto, dois níveis em que ultrapassamos a “mera história”. No primeiro, a fim de respondermos aos “porquês” em relação ao passado, devemos mover-nos de “fora” para “dentro” do acontecimento: devemos reconstruir as cosmovisões de outras pessoas. No segundo nível, ao fazermos isso, não há como ignorar nossa própria cosmovisão, da mesma forma que não podemos enxergar sem os próprios olhos. Em ambos os níveis, o leitor deve estar ciente das cosmovisões envolvidas e atento a potenciais peculiaridades, inconsistências ou tensões. Retornaremos a esse último ponto. Há uma ironia aqui, em relação ao nosso campo particular, que não podemos deixar de perceber. É um dado histórico solidamente estabelecido que judeus e cristãos do primeiro século consideravam os eventos reais de que participavam como se tivessem, em si mesmos, extrema importância. Acreditavam fortemente que os acontecimentos relativos a Israel e ao seu destino não eram “simples acontecimentos”, mas que tinham um “interior” ou um “significado” que transcendia a mera crônica. Uma vez que seu prisma interpretativo para a compreensão dos acontecimentos condizia com a crença em um deus criador e com o cumprimento de seus propósitos para o mundo inteiro, realizados por meio de ações relativas ao povo da aliança, os cristãos acreditavam, ao contrário da perspectiva ocidental moderna, que os acontecimentos em questão eram carregados de um significado relacionado a todo ser humano, de todos os tempos. [ 242 ] A despeito de nossa opinião acerca desse ponto de vista particular, devemos dizer que eles entendiam mais sobre a natureza real da história — ou seja, sobre a complexa interação de “evento” e “significado” — do que foi apreendido pelos ardentes proponentes da “história científica” em tempos relativamente recentes. Como, porém, devemos abordar questões históricas de uma forma mais holística, evitando os reducionismos que têm atormentado a erudição? A fim de responder a isso, devemos examinar duas categorias que já sugerimos em vários pontos: “cosmovisão” e “teologia”. COSMOVISÃO E TEOLOGIA A dimensão que falta amplamente na historiografia positivista pode ser descrita em termos de cosmovisão, de modo que devemos, em primeiro lugar, examinar esse conceito. Argumentarei que, na verdade, cosmovisões são, em certo sentido, profundamente teológicas, de modo que devemos examinar o significado de “teologia” nesse contexto. Isso nos levará à consideração da teologia cristã em particular, a qual, por sua vez, suscitará algumas reflexões sobre a teologia em relação ao estudo do Novo Testamento. 1. Sobre cosmovisões Cosmovisões dizem respeito ao nível da pressuposição, ao estágio pré-cognitivo de uma cultura ou sociedade. [ 243 ] Sempre que encontramos as preocupações fundamentais do ser humano, deparamos com visões de mundo. Desse ponto de vista, como o eco de Paul Tillich na frase “preocupação fundamental” indica, cosmovisões são profundamente teológicas, quer contenham ou não aquilo que, no pensamento ocidental moderno, seria considerado uma visão explícita ou elaborada de uma figura divina. [ 244 ] De fato, a “cosmovisão” abrange todas as percepções humanas da realidade em um nível profundo, incluindo a questão de deus ou deuses existirem ou não, e, se sim, como ele, ela, eles ou elas são, bem como a forma como tal ser, ou tais seres, podem relacionar-se com o mundo. Embora a metáfora da visão seja predominante (cosmovisão), a análise a seguir elucidará o fato de que as visões de mundo, no sentido que tenciono imprimir, incluem muitas dimensões da existência humana além da simples teoria. [ 245 ] Há quatro coisas que as cosmovisões, tipicamente, costumam fazer; em cada uma delas, a cosmovisão como um todo pode ser vislumbrada. Primeiro: como vimos ao longo desta parte do livro, cosmovisões fornecem as histórias por meio das quais o ser humano enxerga a realidade. A narrativa é a manifestação mais expressiva de uma visão de mundo, indo além da observação isolada ou fragmentada. Segundo: a partir dessas histórias, podemos, em tese, descobrircomo responder às perguntas básicas que determinam a existência humana: Quem somos? Onde estamos? O que há de errado? Qual é a solução? [ 246 ] Todas as culturas nutrem crenças profundamente enraizadas que podem, em tese, vir à tona para responder a essas perguntas. Em outras palavras, todas as culturas têm um senso de identidade, de ambiente, de um problema em relação à forma como o mundo é e de um caminho a seguir — uma escatologia redentora, para ser mais preciso — que tem o potencial de tirá-las desse problema. Reconhecer esse fato a respeito das culturas pode ser tão esclarecedor quanto reconhecer que outro ser humano dentro de sua própria família ou de seu círculo de amizades tem um tipo de personalidade diferente do seu. Libera todas as partes envolvidas da suposição restritiva de que todos somos, ou deveríamos ser, exatamente iguais. Terceiro: as histórias que expressam a cosmovisão e as respostas que ela fornece às questões de identidade, contexto de vida, maldade e escatologia são expressas, conforme vimos no capítulo anterior, através de símbolos culturais. Podem ser artefatos ou acontecimentos: festivais, reuniões de família etc. Nos Estados Unidos, o desfile da vitória de Nova York após uma guerra de sucesso reúne dois dos símbolos mais poderosos da cultura: os arranha-céus de uma Manhattan orientada aos negócios e os heróis de batalha. Ambos, à sua maneira, demonstram, promovem e celebram o estilo de vida americano. Na Palestina do primeiro século, a celebração da Páscoa funcionava de maneira semelhante, com Jerusalém ocupando o lugar de Manhattan, e o sacrifício e a refeição da Páscoa ocupando o lugar do desfile de vitória. Os edifícios, em vez de falarem de objetivos étnico-econômicos, falavam de objetivos étnico-religiosos; em vez da celebração falando do triunfo alcançado contra as forças das trevas, falava-se do reconhecimento público ainda por vir. Todas as culturas produzem e mantêm esses símbolos; muitas vezes, podemos identificá-los quando, ao desafiá-los, a reação das pessoas é de raiva ou de medo. Esses símbolos costumam funcionar como marcadores de fronteiras sociais e/ou culturais: aqueles que os observam são os insiders, enquanto os que não os observam, outsiders. Ademais, esses símbolos, como lembretes encenados e visíveis de uma cosmovisão que normalmente permanece profunda demais para vir à tona em uma conversa qualquer, formam a matriz real através da qual o mundo é percebido. Esses símbolos determinam como, no dia a dia, os seres humanos enxergam a realidade como um todo. Determinam o que será e o que não será inteligível ou assimilável dentro de uma cultura particular. Quarto: cosmovisões incluem uma prática, uma “forma de ser no mundo”. A escatologia implícita da quarta pergunta (“Qual é a solução?”) implica, necessariamente, ação. Por outro lado, a forma real da visão de mundo de alguém pode muitas vezes ser vista no tipo de ações realizadas, particularmente se essas ações forem tão instintivas ou habituais a ponto de serem tidas como certas. A escolha de um objetivo de vida — ganhar dinheiro, criar uma família, seguir uma vocação, mudar a sociedade ou o mundo de determinada maneira, viver em harmonia com a ordem criada, desenvolver o próprio mundo interior, ser leal às tradições recebidas — reflete a visão de mundo de alguém; e o mesmo acontece com as intenções e motivações que trabalham em função do objetivo geral. [ 247 ] A inconsistência de objetivo e ação não invalida isso; apenas mostra que a questão é complicada e que a resposta à terceira pergunta (“O que há de errado?”) certamente deve incluir a confusão humana. Cosmovisões são, portanto, a matéria-prima da existência humana, as lentes pelas quais o mundo é visto, o projeto de como devemos viver no mundo e, acima de tudo, o senso de identidade e de lugar que permite à humanidade ser o que é. Ignorar as visões de mundo, sejam as nossas próprias ou as da cultura que estudamos, resultaria em uma superficialidade extraordinária. Podemos definir as funções interativas das cosmovisões da seguinte forma: Existem diversos termos gerais que faremos bem em localizar nesse esquema. Para começar, podemos dizer que a cultura denota particularmente as práxis e os símbolos de uma sociedade — ambos, evidentemente, sendo informados pela narrativa controladora e refletindo respostas particulares às questões da cosmovisão. Em segundo lugar, a escorregadia palavra religião também se concentra em símbolos e práxis, porém denota, mais especificamente, o fato de que ambos apontam para outra coisa, ou seja, para uma narrativa ou um conjunto de narrativas controladoras que lhes conferem um significado mais amplo. Em terceiro lugar, a teologia se concentra em perguntas e respostas, enfatizando, mais especificamente, determinados aspectos delas. Neste capítulo, argumentarei sobre a necessidade de integrá-las com as narrativas controladoras e sobre a prudência de se realizar essa tarefa com a plena consciência da inter-relação entre perguntas e narrativas, por um lado, e práxis e símbolos, por outro. Em quarto lugar, a imaginação e o sentimento podem ser localizados na linha entre a história e o símbolo, dando profundidade, de diferentes maneiras, à práxis e às perguntas. Em quinto lugar, a mitologia é, em muitas culturas, uma forma de falar que reflete “uma concepção da realidade que postula a transposição contínua do mundo da experiência cotidiana por forças sagradas”; [ 248 ] ou seja, é uma forma de integrar a práxis e o símbolo à narrativa e, ao menos implicitamente, às respostas às perguntas-chave. Por último, a literatura, que tanto no nível da leitura como no âmbito da escrita é parte da práxis, é um fenômeno complexo em que, explícita e implicitamente, histórias são contadas, questionamentos são levantados e respondidos, a práxis é exemplificada e os símbolos são discutidos, direta ou (o que é mais provável) indiretamente, em metáforas e outros recursos da linguagem. Evidentemente, a literatura está interconectada com a cultura, a imaginação e o sentimento, bem como, frequentemente, com a religião e a teologia. A própria literatura pode, então, criar ou se tornar um novo símbolo: poesia, livrarias e apresentações teatrais, por exemplo, têm valor simbólico em uma cultura. Assim, muitos dos elementos vitais do estudo histórico e literário podem ser traçados de maneira precisa e interessante no modelo de cosmovisão que sugiro. [ 249 ] Cosmovisões, conforme já sugeri, são como os fundamentos de uma casa: vitais, porém invisíveis. São aquilo através do qual, não para o qual, uma sociedade ou um indivíduo normalmente enxerga; formam a matriz através da qual os seres humanos organizam a realidade, e não fragmentos da realidade que se disponibilizam para ser organizados. Em geral, as cosmovisões não são conscientemente articuladas ou discutidas, a menos que sejam desafiadas ou desprezadas de forma bastante explícita; quando isso acontece, o evento é tido como algo alarmante e como motivo de grande preocupação. No entanto, essas visões de mundo podem ser desafiadas; e podem, se necessário, ser discutidas, tendo seu verdadeiro valor, questionado. [ 250 ] A conversão, no sentido de uma mudança radical na cosmovisão, pode acontecer — seja no caso de Saulo a caminho de Damasco, seja no caso de índigenas que se mudam para a cidade e adotam um estilo de vida ocidental. Entretanto, visões de mundo normalmente vêm à tona, de forma mais cotidiana, nos conjuntos de crenças e objetivos que se manifestam abertamente, que são discutidos com mais regularidade e que, em tese, poderiam ser, em alguma medida, revisados sem necessariamente se proceder à revisão da cosmovisão em si. Os materialistas ocidentais modernos têm uma visão de mundo de certo tipo, uma visão que se expressa em crenças básicas acerca de sociedades e sistemas econômicos, bem como em objetivos básicos, como emprego e uso apropriado do tempo. Essas crenças e objetivos são, por assim dizer, formas abreviadas das histórias que aqueles que as têm estão contando,para si mesmos e uns para os outros, sobre a forma como o mundo é. [ 251 ] Talvez seja possível que alguém se convença de que algumas dessas crenças e objetivos básicos estão equivocados, e assim, por exemplo, mudar de um materialista ocidental conservador para um materialista ocidental social-democrata, ou vice-versa, sem qualquer alteração fundamental de sua cosmovisão. Tais crenças e objetivos fundamentais, os quais servem para expressar — e talvez até mesmo salvaguardar — a visão de mundo, dão origem, por sua vez, a crenças e intenções resultantes sobre o mundo, o indivíduo, a sociedade e sobre deus. Esses elementos se espalham, então, em várias direções, transformando-se em opiniões sobre as quais o indivíduo age com diversos graus de convicção. Muitas discussões, debates e argumentos ocorrem no plano de crenças e intenções resultantes, assumindo um nível de convicção fundamental compartilhada que só é revisada quando alguém depara com um impasse total. Muitas discussões políticas, por exemplo, pressupõem não apenas uma cosmovisão, mas também o conjunto de crenças e objetivos básicos que se sustentam a partir dessa cosmovisão. Elas não se desdobram nos níveis mais fundamentais, mas no plano de crenças resultantes ou de propostas específicas de ação (as “intenções” na figura a seguir) que alguns consideram apropriadas. A ideia pode ser definida de forma esquemática: Por enquanto, já falamos o bastante sobre cosmovisões. Como elas se relacionam com, ou incluem, o que é normalmente tido por “teologia”? 2. Sobre a teologia A teologia, conforme acabamos de ver, volta os holofotes para certas dimensões particulares da cosmovisão — qualquer cosmovisão. [ 252 ] É possível sugerir uma definição de teologia bem focalizada: teologia é o estudo de deuses, ou de um deus. Também é possível, e hoje bastante comum, trabalhar com uma definição mais abrangente, interagindo com elementos do padrão da cosmovisão: a teologia sugere determinadas maneiras de contar a história, explora algumas formas de responder às perguntas, oferece interpretações particulares dos símbolos e tanto sugere como critica determinadas formas de práxis. É o que Norman Peterson quer dizer em sua análise da teologia e do “universo simbólico”: Do ponto de vista da sociologia do conhecimento, a teologia e o universo simbólico se distinguem por representarem dois tipos diferentes de conhecimento […], Teologia […] é para a sociologia do conhecimento um tipo de conhecimento cujo produto resulta da reflexão sistemática sobre um universo simbólico e, na verdade, da reflexão cujo propósito é a manutenção desse universo quando ele se encontra em algum tipo de perigo — frente às ameaças da dúvida, do desacordo ou de universos simbólicos concorrentes, por exemplo […]. Por essa razão, podemos falar de um universo simbólico como uma forma primária (pré-reflexiva) de conhecimento e falar da teologia como uma forma secundária (reflexiva), dependente da primária. [ 253 ] Desse modo, por exemplo, vimos, no capítulo 3, que muitas histórias passam a sensação de que o herói (o “agente”, segundo o esquema elaborado por Greimas) foi “enviado” a uma “missão”, embora não esteja claro por quem ele foi enviado. Normalmente, existe um espaço em branco na categoria “remetente”, como vimos no caso de Tolkien e no poema “Os ouvintes”, escrito por de la Mare. Isso reflete a consciência humana generalizada de um propósito que vem do “além”, de “cima” ou, possivelmente, de “dentro”. Se pressionadas, algumas comunidades humanas explicariam esse espaço em branco em termos de uma ou outra das perspectivas tradicionais de um deus. Outras o preencheriam em termos de “forças da natureza”. Outras ainda falariam em termos de mitologia, psicologia e/ou sociologia. Todas essas respostas, bem como outras possíveis, são essencialmente teológicas. Assim, a teologia conta histórias sobre seres humanos e o mundo, narrativas que, por um lado, envolvem um ser não redutível à análise materialista, mas que, por outro, abrem espaço, de forma provocativa, para um lugar no enredo no qual esse deus pode ser, implicitamente, localizado. À luz dessa atividade de contar histórias, a teologia questiona se existe um deus, qual relação esse deus tem com o mundo em que vivemos e o que esse deus está fazendo, ou fará, para pôr as coisas em ordem. Obviamente, essas questões interagem com as quatro perguntas principais atreladas à cosmovisão. Um ateu responde às perguntas teológicas com uma negativa para a primeira, deixando o restante intocado: “Não existe ‘deus’; por isso, nenhum ser superior se relaciona com o mundo, nem acabará com sua maldade”. Ainda assim, a resposta é profundamente teológica, e mesmo respostas fornecidas com base em outras cosmovisões refletem o que, de um ponto de vista teológico, continua contando como uma espécie de teologia. O materialismo ou o totalitarismo, por exemplo, ainda têm uma forma teológica reconhecível, e tais pontos de vista podem sustentar um importante debate com várias teologias ortodoxas (judaica ou cristã, por exemplo) sobre qual delas é a original e qual é a paródia. [ 254 ] A atividade narrativa e questionadora da teologia é normalmente focalizada em símbolos, sejam eles objetos ou ações. Um rolo da Torá, uma cruz de madeira, um gesto manual, uma procissão — tudo isso é capaz de evocar poderosamente todo um conjunto de histórias, bem como de perguntas e respostas. Sem dúvida, podem transformar-se em práticas monótonas e sem vida, ainda que, mesmo nesses casos, sejam capazes de uma notável recuperação. Em tese, porém, a teologia deve levar em conta os símbolos, até porque, às vezes, conforme já vimos, os símbolos de uma sociedade ou cultura podem contar uma história mais convincente sobre sua cosmovisão do que as histórias “oficiais” ou as respostas “autorizadas”. Se o símbolo e a história não se encaixarem, parte da tarefa da teologia é questionar o motivo e fazer uma crítica a qualquer desses dois parceiros que esteja fora da linha. Da mesma forma, a teologia deve levar em conta a práxis. Oração, sacramentos, liturgia; esmolas, atos de justiça e pacificação — tudo isso se integra com narrativas, perguntas e símbolos para produzir um todo completo. Mais uma vez, embora possa ser mais organizado e fácil lidar com declarações oficiais na forma de perguntas e respostas ou na forma de uma história, a práxis pode oferecer um relato mais verdadeiro de como as coisas realmente são. Reitero: a teologia tem a responsabilidade de, nesses casos, oferecer uma crítica. A teologia encontra-se, desse modo, integrada intimamente com a cosmovisão em todos os pontos. Do que, porém, ela trata? Refere-se a uma metalinguagem, a uma forma fantasiosa de tentar dar à realidade um significado nem sempre percebido? Ou se refere a entidades reais, além da realidade espaçotemporal? Nesse ponto, devemos novamente mencionar o realismo crítico. Debates sobre o referente da linguagem divina assumem uma forma familiar: é aquilo que já estudamos quando tratamos de epistemologia, literatura e história. O discurso pré-crítico sobre deuses, ou um deus, muitas vezes parece dar como certo que tal ser, ou tais seres, realmente existem, e que a linguagem humana comum se refere a esse(s) ser(es) com pouca hesitação. Está bastante claro, na verdade, o fato de que, em todas as épocas, pensadores sofisticados estiveram perfeitamente cientes da natureza problemática dessa linguagem e de seu referente, de modo que a expressão “pré-crítica” não se refere, aqui, a um período da história antes do Iluminismo, mas a um estágio de (ou talvez falta de) consciência humana que existe em cada período da história, incluindo o nosso. Na verdade, talvez particularmente em nosso período: um fenômeno moderno perturbador é o espetáculo de um pretenso positivismo cristão cuja presunção é que a linguagem divina seria clara e inequívoca, de modo que podemos ter o mesmo tipo de certeza sobre ela que o positivismo lógico concedeu às declarações científicas e matemáticas. Esse tipo de fundamentalismo