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Na passagem, o breu é total e nenhum ruído do mundo externo os alcança. Da tocha que o adulto leva, saem labaredas esfumaçadas, como dedos de luz. O adolescente o segue de perto, reparando nas figuras de um bisão e um cervo, gravadas nas paredes. Aqui e ali, são obrigados a engatinhar quando as paredes da caverna se estreitam ou têm de escolher o caminho por entre esqueletos de ursos-da-caverna há muito extintos, já sem os caninos, arrancados por visitantes anteriores para transformá-los em adornos, como pingentes e colares. Juntos, a dupla ruma para o ponto mais distante do sistema de cavernas, a mais de meio quilômetro da entrada. Ali, equilibrando-se nos calcanhares para os pés não atolarem na lama, eles se agacham e cortam uma pesada placa de argila no chão úmido da caverna com um pedaço de pedra lascada, trazida propositalmente. Seus pés se afundam um pouco mais ao erguer a placa, transportá-la até uma superfície rochosa e começar a trabalhar. Lentamente, a argila macia se transforma em dois bisões, cada um do tamanho de um braço humano adulto. Os bisões seguem os contornos da rocha e destacam-se da superfície, o macho erguendo-se por trás da fêmea. De pé, os artistas erguem bem a tocha. Os bisões parecem ter vida: jubas eriçadas no pescoço, corcovas proeminentes e rabos balançando sob uma chama bruxuleante. * Seria a execução dessas esculturas parte de um ritual de fertilidade, para comemorar a criação mágica da vida? Ou será que o jovem fora levado até as profundezas das cavernas como parte de uma cerimônia de maioridade, um rito de passagem na jornada rumo à idade adulta? Só nos resta conjecturar. Os dois bisões em Tuc d’Audoubert, na França, pertencem ao período paleolítico. Eles são pré-históricos, esculpidos antes dos primeiros registros escritos, muito antes até da própria invenção da escrita. São conhecidos como as esculturas em relevo mais primitivas do mundo (as esculturas permanecem presas à base, projetando-se a partir dela). Recorrendo a vestígios deixados na caverna, arqueólogos e paleontólogos conseguem imaginar como e por quem os bisões foram criados, como marcas de calcanhares na argila e de dedos nas esculturas. É inacreditável visualizar essas marcas, porque elas fazem com que a escultura dos bisões pareça recém-concluída, há poucos minutos, e que os artistas que deixaram os dedos marcados na argila acabaram de sair dali. Mas o que não temos como saber ao certo é por que elas foram feitas. O que esse tipo de arte significava para nossos ancestrais, e o que a arte deles significa para nós, hoje? Será que chegaram a considerar que produziam um tipo de “arte”? Ao longo deste livro, abordaremos uma gama imensa e diversificada de materiais do mundo inteiro, hoje todos considerados arte. Mas o que queremos dizer precisamente com “arte”? Arte é um termo capcioso. Seu significado e valor mudam com o tempo, mas, em última análise, ela é criada para expressar algo que vai além das palavras. O pintor contemporâneo Ali Banisadr afirma que toda arte, desde a arte rupestre, resume-se a magia. Os artistas das cavernas, diz ele, “estavam tentando alcançar algo mágico, colocar numa linguagem visual algo que não podemos, de fato, compreender. Sempre foi uma questão de magia”. O que isso significa? Banisadr não se refere aqui à magia de um “Abracadabra!”, de retirar coelhos de cartolas, mas a uma força misteriosa, um poder inexplicável. Esse tipo de magia é capaz de transformar um objeto ou um conjunto de marcas numa parede e de conferir-lhes a capacidade de comunicar ideias poderosas, muito além do alcance da linguagem falada. Por vezes, são ideias expressas de forma rápida ou com uma complexidade de tirar o fôlego. Os artistas recorrem a essa magia para transformar as marcas ou materiais mais simples do dia a dia, como carvão, pedra, papel e tinta, em obras de arte. Ao esculpir um animal ou pintar uma imagem, os artistas não estão tentando criar uma semelhança, mas expressar algo importante sobre aquele animal ou aquela imagem. Daí por que a arte, independentemente da diversidade de seu aspecto exterior, acaba tendo um traço comum. No desenrolar da história (e da pré- história), os artistas sempre buscaram o melhor meio de expressão para suas ideias. Essa é a “magia” própria da arte, o elemento que lhe permite conectar-se a nós, de nos sensibilizar, ainda que, às vezes, não saibamos explicar por quê. A arte pode nos ajudar a enxergar o mundo de modo diferente ou a perceber nosso lugar nele com um pouco mais de clareza. É algo poderosíssimo. Neste livro, nossa jornada irá de alguns dos sítios artísticos mais antigos até os dias atuais para explorar como a arte e os artistas deram forma e influenciaram o nosso mundo. Não existe, na história, um caminho único e nítido a ser percorrido, ainda que relatos anteriores sugiram o contrário. Em vez disso, caminharemos juntos explorando a interconexão dos múltiplos caminhos à medida que viajarmos no tempo. Conheceremos artistas anônimos na atualidade, como os dois escultores dos bisões há milhares de anos, e aqueles que foram reconhecidos e respeitados durante sua vida, mas que tiveram a carreira ignorada desde então. Veremos artistas de nomes ainda bem familiares e outros que, a despeito de seu talento, são bastante desconhecidos. Vagaremos pelo mundo juntos, resgatando artistas esquecidos e ampliando a visão tradicional da história da arte. Por incrível que pareça, nossa viagem tem início há 100.000 anos, quando os humanos da época fizeram tinta pela primeira vez, moendo pedras de ocre vermelho e misturando o pó (pigmento) com o sumo gorduroso resultante de ossos queimados. Conchas contendo tinta de 100.000 anos foram encontradas na caverna Blombos, na África do Sul. Nenhuma arte tão antiga é conhecida, e é possível que a tinta preparada nas conchas tenha sido usada para adornar o corpo ou em sepultamentos. No entanto, já existia a capacidade para fabricar tinta e, assim, modificar o mundo de forma intencional e criativa. À época em que os humanos de então começaram a migrar da África para a Europa e a Ásia, por volta de 60.000 anos atrás, eles começaram a usar tinta para decorar objetos e paredes. A decoração torna as superfíciesmais atraentes, sem passar uma mensagem mais profunda. Pontos e cruzes numa vasilha nada têm a nos informar sobre o que é estar vivo, o que é ser um humano. Para isso, precisamos da arte. Até agora, nenhuma pintura rupestre pré-histórica foi encontrada na África, porém as similaridades entre exemplares indonésios e europeus posteriores sugerem uma forma comum de pensamento de origem africana antes que nossa migração em massa ocorresse. Infelizmente, isso ainda é só teoria. Algumas das primeiras marcas de que se tem conhecimento são conjuntos de pontos vermelhos e de palmas da mão encontradas em cavernas, lado a lado com pinturas de animais. Soprava-se tinta ocre vermelho nas mãos com o auxílio de um osso de pássaro oco para deixar uma cópia estampada no lugar. Na caverna de Chauvet, na França, um ser humano pré-histórico tinha um dedo mínimo aleijado e a impressão singular da palma de sua mão é recorrente por todo o sistema de cavernas. Em Bornéu, existem marcas de mãos primitivas num sistema de cavernas distante a leste de Kalimantan e, em Sulawesi, elas aparecem nas paredes de calcário de Leang Timpuseng. Esses conjuntos de marcas de mãos, deixados há cerca de 35.000 anos, estão separados por milhares de quilômetros, mas transmitem a mesma mensagem: eu estive aqui, esta é a minha marca. Essas marcas de mãos não são arte. Na realidade, funcionam mais como assinaturas, feitas eventualmente pelos responsáveis por pintar os animais. As representações mais primitivas de animais constituem as primeiras obras de arte. Agora podemos dar início, de verdade, à nossa jornada. As pinturas de animais surgiram por volta da mesma época ou até mais cedo do que as impressões de mãos. Bem ao lado da mão de Sulawesi, há um babirussa ou porco-veado pintado com pinceladas longas com pelo menos 35.700 anos. Nas profundezas da caverna de Leang Tedongnge, três porcos selvagens foram datados como tendo incríveis 45.500 anos, tornando-os os exemplares mais antigos do mundo de arte figurativa (arte que representa formas reconhecíveis). Tanto na Indonésia quanto na Europa, os animais foram pintados de perfil, com contorno bem escuro. O foco era na silhueta e em características bem específicas: chifres, jubas e galhadas. Iluminados por tochas na profundidade dos sistemas de cavernas, certamente deviam ser uma visão impressionante. Foram também encontradas pequeninas esculturas incrustadas no chão de cavernas onde viviam os humanos da época. Ossos, presas de mamute e pedras eram esculpidas em formato de animais ou figuras híbridas, como o Homem-leão, de 40.000 anos, feito de marfim de mamute. Outros tinham a forma de figuras femininas com seios e ancas fartos, a barriga avolumada por uma gravidez, como a Vênus de Willendorf, de calcário, de 25.000 anos. Essas imagens podem ter sido talismãs, ou seja, pequenas esculturas de uso pessoal com possíveis poderes de proteção, criadas para manter seu portador seguro ou ajudá-lo a ter muitos filhos. Os arqueólogos da atualidade conseguem datar esculturas e pinturas empregando técnicas científicas. Eles sabem avaliar a idade dos materiais utilizados e precisar a data de depósitos minerais formados sobre eles. Entretanto, até o século XX, as pessoas ririam se lhes sugerissem que essa arte era anterior à dos romanos em milhares e milhares de anos. Os vitorianos acreditavam que o mundo tinha uns poucos milhares de anos, e a data mais antiga que atribuíam à arte era a “pré-romana”. A pesquisa inovadora de Charles Lyell e Charles Darwin sobre o tempo geológico e a evolução das espécies trouxe a ideia de que o mundo e seus habitantes eram muito mais antigos, milhões de anos mais velhos do que se sabia até então. Somente após a publicação das teorias de Lyell e Darwin os arqueólogos começaram a catalogar vestígios, como machados de sílex e esqueletos humanos pré-históricos, para respaldar a ideia. Os primeiros esqueletos foram algo inusitado, mas em 1879, quando Maria Sanz de Sautuola, de nove anos, e seu pai, Marcelino, relataram terem visto bisões e cavalos pré-históricos pintados por todo o teto de um antigo sistema de cavernas, o mundo acadêmico gargalhou, afirmando que as pinturas eram falsas. Homens e mulheres pré-históricos não sabiam pintar, riam-se eles, não eram sofisticados o suficiente! As referidas pinturas ficavam em Altamira, na Espanha, num sistema de cavernas composto por diversas passagens e câmaras amplas. Todas elas eram decoradas com a estampa de animais pintados com ocre vermelho e contorno de carvão. Marcelino morreu em 1888, ridicularizado por reivindicar a descoberta da arte pré- histórica. Somente a partir de 1902, os animais foram reconhecidos pelo que, de fato, são. Hoje sabemos que algumas das pinturas de Altamira têm 36.000 anos de idade. A descoberta da arte rupestre foi um divisor de águas. Os porcos selvagens da caverna de Leang Tedongnge em Sulawesi só foram descobertos em 2021, e outros achados mais recentes ainda estão sendo catalogados. Na Europa, muitos exemplares são conhecidos há décadas e, portanto, alvos de um maior número de pesquisas. Um dos mais famosos é a caverna de Chauvet, na França. As pinturas de Chauvet datam de longínquos 33.000 anos, e foram descobertas em 1994, quando três exploradores de cavernas detectaram um fluxo de ar através de uma pilha de rochas e decidiram investigar. Eles descobriram um dos exemplares mais preservados de arte rupestre do mundo. Uma alcateia de leões está à espreita em uma das paredes, os olhos em alerta, os focinhos farejando a presa. Noutra parede, o embate entre dois rinocerontes sob um grupo de cavalos, de crina eriçada, orelhas em riste. Cada animal dá sequência a outro, todos desenhados com contorno de carvão bem definido, com um ou outro sombreado para dar volume. Algumas patas aparecem multiplicadas, como se capturadas em movimento. Em última análise, não temos como saber como as pinturas e as esculturas em cavernas como as de Chauvet funcionaram a princípio. Muitas cavernas parecem ter sido usadas, abandonadas e reutilizadas milhares de anos mais tarde, com uma nova arte se configurando em torno das imagens mais antigas. Com o recurso de técnicas de datação, sabe-se que alguns animais de Chauvet foram acrescentados aos primeiros, milhares de anos mais tarde. É como se, hoje, acrescentássemos uma ou duas figuras à tumba de Tutancâmon! Na caverna de Chauvet, há esqueletos de urso, mas nenhum resto humano, sugerindo que não era um lugar de moradia dos primeiros humanos, mas de cerimônias. Não parece muito diferente de uma catedral, uma mesquita, ou mesmo uma galeria de arte. É um espaço impressionante, naturalmente amplo, para reunir grupos, talvez quando as crianças se tornassem adultas ou para marcar aspectos do calendário como estações ou migração de animais. É possível que os animais estampados nas paredes tenham feito parte de histórias contadas pelos líderes dos grupos. Talvez nossos antepassados tenham contado histórias de caçadas épicas, destacando os animais para evocar uma dramaticidade, ou as pinturas podem ter sido empregadas por xamãs (misto de médico e bruxo) para conjurar espíritos de animais. Na verdade, alguns dos animais representados não eram caçados para servir de alimento, e deveriam ser temidos e respeitados. Ao observar essas primeiras pinturas e esculturas, é importante reconhecer que estamos olhando para o passado com olhos do século XXI. Quando vemos uma reprodução dos leões de Chauvet, nosso primeiro pensamento não é que eles vão ganhar vida e nos devorar. Hoje, podemos nos admirar com as pinturas, mas é bastante improvável que elas nos despertem as mesmas sensações que despertavam ao serem observadas à luz de uma tocha, há 33.000 anos. Por essa razão, no início de cada capítulo, vamos voltar no tempo para olhar a arte conforme sua criação original e tentar imaginar o impacto exercido naquele momento. Para isso,vou precisar que você me acompanhe nessa viagem no tempo. Próxima parada, Mesopotâmia. Capítulo 2 - A história se revela Estamos em 3300 a.C. Em um templo dedicado à deusa Inana, em Uruk, na Mesopotâmia, o governante de Uruk se levanta e contempla um vaso alto decorado. Medindo mais de um metro, a peça de alabastro é recoberta de imagens esculpidas e conta uma história de louvor e gratidão. A superfície se divide em quatro frisos, tiras horizontais de escultura em relevo envolvem o vaso, uma acima da outra. O governante começa a segui-las, a “lê- las” de baixo para cima. Na base, uma linha ondulada indica água corrente. Nas margens, vicejam o linho e as tamareiras. Acima, cabras e ovelhas seguem trotando em torno do vaso: trata-se de uma terra fértil e os tempos são de bonança. No friso seguinte, uma fila de homens nus leva alimentos e bebidas. Eles carregam cestos e ânforas (vasos de argila), cheios até a borda. A parte do topo explica o que estão fazendo: uma procissão até o templo de Inana, levando oferendas em sua homenagem. Ela é a deusa protetora da cidade e eles são gratos por sua bondade em permitir o crescimento das plantações e dos animais. Recipientes enormes transbordam de alimentos, doação dos fiéis agradecidos. Fora do templo, a própria Inana, de pé, a tudo supervisiona. Ao lado dela, há uma figura masculina vestida. A proximidade entre eles sugere que ele também tem poderes divinos, embora seja um mortal. Para confirmá-lo, a palavra referente a “sacerdote-rei” aparece gravada logo acima de sua cabeça. Observando o vaso, o governante sorri com a inscrição. Agrada-lhe ver-se imortalizado no vaso, de pé ao lado da deusa, tão poderoso quanto a própria Inana. * O Vaso de Uruk é um dos mais antigos exemplares de arte narrativa conhecidos no mundo. Ele conta uma história que pode ser compreendida pela leitura das várias camadas de imagens sequenciadas, à semelhança das histórias em quadrinhos de hoje. Nos tempos pré- históricos, um xamã ou o representante mais idoso de um grupo provavelmente contava histórias sobre as pinturas rupestres para dar-lhes vida. Por volta de 3300 a.C., os artistas começavam a contar histórias empregando esculturas em relevo como as do Vaso de Uruk. Qualquer um podia, assim, olhar as esculturas em relevo e “ler” sozinho a história. O Vaso de Uruk é recoberto por esculturas em relevo. Diferentemente das esculturas dos bisões do capítulo 1, feitas com argila por cima da rocha, as figuras sobre o vaso foram recortadas sobre uma superfície de pedra. Primeiro, o artista criava o padrão sobre a pedra lisa usando carvão ou ocre. Em seguida, os canteiros* usavam o martelo e o cinzel para recortar a pedra, dando-lhe formas tridimensionais. Seu objetivo não era esculpir animais como o bisão no mais alto grau de verossimilhança. Concentravam-se, antes, em aspectos que tornavam cada animal ou figura humana distintos, recorrendo à representação em perfil para transmitir movimento. Somente uma sociedade abastada e bem organizada poderia financiar uma arte tão trabalhosa. Na Mesopotâmia (o Iraque de hoje), por volta de 4000 a.C., pequenas aldeias haviam se transformado em cidades. A maior delas era Uruk (hoje Warka), com ruas bem traçadas e muralhas externas com dez quilômetros de extensão. O dinheiro era coletado junto à população por uma autoridade central (como um governo), e a escrita foi inventada para fazer o registro da arrecadação. O Vaso de Uruk é a obra de arte mais antiga em que a escrita aparece. Uruk é a cidade mais antiga do mundo e sua arte era empregada para glorificar deuses como Inana. O governante de Uruk, o “sacerdote-rei” que conhecemos na abertura deste capítulo, via isso com bons olhos, por ele ser glorificado no Vaso de Uruk da mesma forma que Inana. Os artistas das terras férteis que se estendiam desde a Grécia e Turquia até o Irã, o Iraque e a Índia dos dias de hoje criaram obras de arte semelhantes para tumbas, templos e palácios reais. Eram artistas empregados para esculpir histórias impactantes sobre deuses e governantes. Os artistas eram pagos pelos governantes que, obviamente, controlavam a narrativa. Meio mundo longe dali, na Mesoamérica (o México de hoje), a civilização olmeca preferia reverenciar seus líderes de outra forma. Datadas de 1800 a.C., cabeças colossais esculpidas em rochas vulcânicas (basalto) eram colocadas no alto de elevações de terra. A fartura de alimento criava condições para que os olmecas sustentassem artistas em tempo integral. Eles utilizavam ferramentas de pedra para esculpir as cabeças que chegavam a três metros de altura e pesavam oito toneladas ou mais. Os blocos de pedra vinham de uma distância de 100 quilômetros [pelo rio], um prodígio de transporte que empregava balsas e roladores de troncos para movê-los. Dez dessas cabeças monumentais foram encontradas no importante centro de San Lorenzo, onde uma plataforma de terra gigantesca se erguia a 50 metros do chão. Ao contrário das figuras estilizadas do Vaso de Uruk, as cabeças olmecas apresentam um conhecimento sólido de anatomia. Cada cabeça tem bochechas carnudas e feições cuidadosamente definidas, que provavelmente representavam líderes específicos. Muitas vezes com capacetes bem ajustados, como se prontas para guerrear, com uma expressão dura, o cenho franzido, formando um sulco entre as sobrancelhas e o nariz. Hoje elas têm os olhos vazios, mas originalmente essas cabeças eram pintadas e deviam parecer assustadoras e ameaçadoras, vigiando a partir dos cantos da plataforma de terra. Caso você fosse o novo líder, sentiria necessidade de estar à altura das realizações de seu antecessor. Você também se sentiria poderoso em tê-las ao seu lado. Só a dificuldade para esculpir essas cabeças e posicioná-las na plataforma elevada indica o quanto eram valorizadas. No Egito, faraós vivos (reis-deuses) encomendavam esculturas colossais semelhantes para enfatizar seu poder. Não se esperava que essas imagens fossem realistas ou verossímeis. O antigo império egípcio era quase tão antigo quanto a Mesopotâmia e durou 3.000 anos. Desde as primeiras dinastias no poder, o estilo da pintura e da escultura egípcias se manteve distinto, sólido e consistente. Assim como os mesopotâmios, a intenção dos artistas egípcios não era esculpir ou pintar com verossimilhança, mas captar as qualidades essenciais de uma imagem, fosse um faraó, um deus ou uma mulher trabalhando no campo. O Egito era um país abastado, portanto não eram apenas os palácios, templos ou tumbas reais a serem decorados. Nebamun caçando nos pântanos é um mural de 1350 a.C. aproximadamente, pintado na tumba de Nebamun, em Tebas (a Luxor de hoje). Nebamun era contador no Templo de Amun e passava os dias fazendo a contabilidade da produção de grãos. Nesse mural, ele caça passarinhos com a mulher Hatshepsut e a filha. Sua figura está de perfil, as pernas e os pés andando na mesma direção. No entanto, o tronco e os ombros estão de frente para nós, como se estivéssemos olhando direto para ele. A cabeça é uma mistura de perspectivas: vemos o rosto de perfil, mas o olho esquerdo nos encara, como se a cabeça estivesse de frente. Os artistas egípcios escolhiam as partes mais características de um ser humano e as reuniam, criando representações simbólicas e imortais para aqueles que partiam na jornada após a morte, em suas tumbas ricamente decoradas. Grande parte da arte egípcia foi criada para acompanhar os finados no pós-morte. A arte nos túmulos era especial e altamente valorizada por desempenhar um papel crucial para os egípcios, exibindo nas imagens a vida que teriam depois de morrer. Nebamun caçando nos pântanos sugere que Nebamun preferia passar seus dias caçando com a família do que trabalhando. Mil anos após a construção das pirâmides, os faraós decidiram construir novas câmaras de sepultamento dentro de penhascos, em um lugar hoje conhecido como Vale dos Reise Vale das Rainhas. Cada novo governante encomendava uma tumba a ser cortada na rocha. Imagine a dificuldade dessa façanha! Terminado o túmulo, ele era decorado. A tumba de Seti I, que reinou de 1290 a 1279 a.C., foi a primeira a ter todos os compartimentos decorados até a câmara mortuária. A criação de tumbas como essa requeria o trabalho permanente de uma equipe numerosa de escultores, pintores, escribas (escritores) e supervisores no local. Assim como os olmecas e os mesopotâmios, havia alimento farto no Egito para permitir que os artistas se concentrassem em produzir arte em vez de lavrar os campos. Os faraós valorizavam suas habilidades e os abrigavam em um vilarejo exclusivo, chamado Set Maat, “o lugar da verdade” (Deir el-Medina, nos dias de hoje), onde os artistas e suas famílias recebiam alimentação, roupas e lenha para que pudessem se concentrar somente nas tumbas. Um desses artistas foi Sennedjem. Sabemos sobre Sennedjem porque, quando não estava trabalhando numa sucessão de tumbas faraônicas, ele se envolvia com a construção da própria. Sennedjem morreu durante o reinado de Seti I e foi enterrado junto à esposa Iyneferti, no cemitério local para artistas, perto de Set Maat. Nas paredes de sua sepultura havia pinturas do casal arando a terra e ceifando milho, cercados pelas águas auspiciosas do rio Nilo. Nenhum dos dois era fazendeiro e o reino lhes provia alimentação, portanto as pinturas não correspondiam à realidade deles. São, na verdade, episódios extraídos do Livro dos mortos, em que se garante que cada corpo tenha tudo o que precisa na vida após a morte. Era uma forma de escrever o próprio destino, ou seja, se você se pintasse vivendo bem numa terra abundante nas paredes de sua tumba, assim seria em sua vida após a morte. Daí porque Sennedjem passava seu tempo de lazer também com um pincel na mão. Para uma civilização que priorizava a arte, é surpreendente que os egípcios não adotassem o uso do bronze, uma liga de cobre e estanho empregada para fazer esculturas de metal, por volta de 2800 a.C., na Mesopotâmia e na Índia. O conhecimento sobre a fundição do bronze foi transmitido pelas primeiras rotas de comércio e adotado na China. A cultura chinesa valorizava itens que exigiam tempo e empenho para serem feitos. A fundição do bronze consumia muito tempo, mas permitia a criação de esculturas e objetos metálicos muito intricados e logo se tornou o material preferido da dinastia Shang. Os artistas chineses faziam um molde em argila, envolvendo o modelo do objeto acabado. Depois de secos, os pedaços de argila eram retirados para montar a fôrma. O bronze derretido era, então, despejado dentro dela e deixado ali até que ela pudesse ser retirada e a escultura de bronze, revelada. Um exemplar desse trabalho é a jarra de vinho de bronze Tigresa, do período final da dinastia Shang, por volta de 1100 a.C. Ela teria sido usada por um sacerdote-rei em uma cerimônia para homenagear seus ancestrais e enterrada com ele, a fim de permitir que ele continuasse a louvá-los mesmo depois de morto. Ela é muito rebuscada e representa um tigre agachado sobre sua traseira, usando o rabo para se equilibrar. As pernas dianteiras envolvem uma pequena figura humana agarrada à barriga do animal, abaixo de sua mandíbula incrustada de presas. Enterrar um objeto tão precioso num túmulo reforçava o alto grau de importância do sacerdote-rei. A Assíria, ao norte da Mesopotâmia, começou a se expandir por volta da época em que a dinastia Shang dominava o nordeste da China e o império neoassírio estendia-se pela Síria, por Israel e pelo Irã de hoje. Os líderes fortificaram cidades, construíram sistemas de irrigação e ergueram templos e palácios. Esculturas imensas de touros e leões com cabeça humana e asas de águia guardavam os portões da cidade e a entrada dos palácios. A escala avantajada visava intimidar qualquer um que passasse por elas. Esculturas em relevo de alabastro, vivamente pintadas, cobriam os salões do palácio com cenas repletas, exibindo o rei herói em combate e em comunhão com os deuses. Era uma arte atuando como propaganda, exatamente como as cabeças olmecas e as figuras egípcias colossais. Assurbanípal reinou entre 668 e 627 a.C. e reconstruiu o Palácio do Norte em Nínive, na Assíria. Os painéis ao longo de seus corredores representavam o rei numa caçada de leões. Os leões, libertados das jaulas para que o rei os caçasse, aparecem com a juba desgrenhada e dentes à mostra. Os relevos exibem um conhecimento anatômico detalhado sobre leões e uma destreza para contar histórias com dramaticidade. O rei mostra-se triunfante em todas as cenas ao caçar a cavalo, a pé ou numa biga, e há vários leões mortos pelo chão. Cada figura é estilizada como a dos relevos egípcios, porém de forma bem mais detalhada. O rei e seu séquito usam barba bem encaracolada, túnicas decoradas, braceletes, brincos e pulseiras. São painéis muito impressionantes, o auge da arte narrativa do mundo antigo, mas imagine o que deve ter sido vê-los dentro do palácio de Assurbanípal. Iluminados por tochas, cada homem e cada fera pintados em cores vivas, a caçada explodindo ao redor. De quem você acha que teria mais medo, dos leões ou de Assurbanípal? Em 612 a.C., o império neoassírio sucumbiu de modo abrupto sob os ataques de países rivais. Muitas de suas cidades foram destruídas e um novo império babilônio surgiu em seu lugar, ao sul da Mesopotâmia, até ser substituído no século seguinte por um vasto império persa. Mais para o oeste, porém, uma abordagem à figura humana esculpida, radicalmente nova, começava a emergir na Grécia. *Artífices que lavravam pedras de cantaria; escultores em pedra. (N.T.) Capítulo 3 - A ilusão da vida Em Kerameikos [Cerâmico], o bairro das oficinas dos ceramistas na cidade de Atenas, na Grécia, dois homens trabalham com afinco. O ano é 540 a.C. e Amasis faz os retoques finais em um pequeno lekythos [lécito] ou vaso para óleos. Será pintado com mulheres trabalhando num tear, tecendo vestimentas de lã para uso de suas famílias. Amasis emprega outros artistas para pintar e, assim, pode se concentrar no fabrico dos vasilhames. Ele carrega o torno com mais argila e começa a trabalhar numa ânfora. Seu pintor já tem algo planejado para ela também: guerreiros nus se preparando para guerrear e uma mulher empunhando uma lança. Enquanto isso, em outra oficina, o pintor Exéquias também trabalha numa ânfora. Nela está seu personagem favorito, Aquiles, herói das conhecidas histórias sobre a Guerra de Troia. Exéquias decidiu colocar Aquiles e um companheiro de luta, Ajax, num jogo de dados, um jogo de azar, durante um intervalo de batalha. Aquiles ainda usa o capacete e ambos seguram suas lanças, em prontidão. Exéquias é especialista na pintura de figuras negras, mas a concorrência é acirrada em Kerameikos. As peças são exportadas para todo o Mediterrâneo, e os melhores ceramistas e pintores são muito requisitados. Exéquias sabe que não há tempo para descanso. Ele pega novamente o pincel e começa a pintar o escudo de Aquiles. * Atenas era o centro da pintura de figuras negras à época de Exéquias. A técnica fora desenvolvida em outra cidade, Corinto, mas graças a pintores como Exéquias, que aumentaram a escala e começaram a representar mitos e narrativas gregas, Atenas logo dominou o mercado. Eles pintavam usando uma solução cremosa de argila. Depois de pintar as figuras com essa solução, eles talhavam sobre ela até a base de argila, criando arabescos em capacetes e padrões intricados nas túnicas. A solução cremosa se tornava negra e brilhante sob a ação do calor do forno, mas as áreas expostas do vaso de barro conservavam a tonalidade alaranjada original. Hoje valorizamos esses vasos pelas criativas figuras dos pintores, empregando apenas essa solução cremosa de argila. As figuras são chapadas e estilizadas, mas os melhores exemplos, como os de Exéquias, costumamser extremamente detalhados. No entanto, há 2.500 anos, os pintores que ornamentavam painéis e paredes eram bem mais valorizados do que os que pintavam vasos de cerâmica. Por volta daquela época, passou a existir uma distinção entre aqueles que pintavam cenas a serem apreciadas nas paredes, pessoas que hoje chamamos de “artistas”, e os que pintavam cenas, decorando objetos de uso comum como ânforas. Esses pintores eram vistos como “artesãos”. Os artistas foram enaltecidos por escritores da antiguidade como Plínio, o Velho. Segundo ele, os artistas costumavam competir para criar as melhores ilusões da vida real, uma técnica hoje conhecida como trompe l’oeil, ou ilusão de ótica. Poucos fragmentos de pintura mural sobreviveram ao tempo, mas os que restaram comprovam que, naquela época, os artistas eram talentosíssimos. Este livro se concentra nos artistas, não nos artesãos, na arte visual, não nas artes decorativas. Exéquias é um raro militante das duas searas porque, além de suas pinturas tornarem as peças mais atraentes, elas são bem mais do que mera decoração. Ainda que não empreguem o trompe l’oeil em voga, elas contam, de fato, as próprias histórias, retiradas dos mitos gregos e repletas de tensão e dramaticidade. Exéquias combina a habilidade artesanal da decoração com a arte da pintura. Por mais que hoje seja difícil estudar a pintura grega, já que grande parte dela desapareceu, há muitos exemplares de escultura grega que perduraram, seja como originais ou cópias posteriores. As esculturas não eram feitas para ter utilidade como as ânforas, mas para serem observadas, estudadas e admiradas por si, como arte. A princípio, os escultores gregos foram influenciados pelas estátuas egípcias. Mas, durante o século em que os vasos de figuras negras estavam na moda, essas esculturas em pedra dura e fria começaram a se descontrair. Os membros adquiriram maior proporcionalidade e os rostos ganharam mais vida e realismo. As esculturas pararam de parecer jovens idealizados, congelados no tempo, e começaram a parecer homens e mulheres de verdade. Esse foi o início daquilo que hoje denominamos arte clássica – uma ruptura radical com tudo aquilo que viera antes. Teria essa mudança acontecido porque Atenas se tornara a primeira democracia do mundo? Democracia significava que o povo governava a cidade, e não um único líder não eleito. (Naquele tempo, os escravos, as mulheres e as crianças eram excluídos do “povo”.) O verdadeiro povo agora fazia as leis para a cidade, e as esculturas dali tornaram-se cada vez mais realistas. A arte grega é a fundação sobre a qual se construiu toda a arte ocidental, ainda que naquela época a Grécia não fosse um país de verdade, mas uma coleção de cidades-Estados. Em 508 a.C., quando Atenas se tornou uma democracia, a cidade de Esparta dominava a área. As duas cidades só trabalharam juntas quando da invasão persa, em 490 a.C. Atenas acabou fazendo aliança com mais de duzentas cidades gregas para expulsar o império persa. Todas as cidades contribuíam financeiramente para um fundo centralizado e, como resultado, Atenas se tornou muito rica e poderosa. Os escultores gregos tinham começado a trabalhar com bronze no século VI a.C., mas esse material ganhou força, de fato, depois das guerras persas. Havia uma demanda crescente por esculturas de maior porte e mais dinâmicas, e o bronze era o material ideal. Ele podia ser polido para refletir a luz na pele, e os artistas incrustavam olhos de vidro e dentes de prata. Infelizmente, o bronze também podia ser derretido, portanto pouquíssimos bronzes gregos resistiram, como aqueles retirados do mar onde algum navio que os carregava naufragou, como no caso dos Guerreiros (ou Bronzes) de Riace, ou outros que foram encontrados sob os escombros de um terremoto, como o Cocheiro de Delfos. Esses bronzes nos mostram como os escultores se esforçavam para fazer as imagens cada vez mais fiéis à realidade. O Cocheiro de Delfos, de 474 a.C. aproximadamente, é um uma figura de tamanho natural que usa uma túnica longa de mangas curtas, o uniforme de cocheiro. Ele segura as rédeas de uma parelha de cavalos que talvez fizesse parte da escultura original. A escultura foi encomendada por um atleta vitorioso, ganhador da corrida de bigas nos Jogos Píticos, promovidos em Delfos a cada quatro anos. O cocheiro de bronze tem o semblante sério da vitória, seu rosto jovem é emoldurado por cachos que escapam da faixa em torno da cabeça. Seus olhos de ônix e vidro, contornados por cílios de cobre, são de um realismo surpreendente. No entanto, sua túnica se parece mais com uma coluna grega impassível do que um tecido sobre o corpo de um atleta e, nesse ponto, o naturalismo da escultura, seu aspecto natural, é falho. Duas décadas mais tarde, essa falha deixaria de existir nos Guerreiros de Rialce. Para começar, eles estão nus, exibindo músculos e força. Originalmente, as duas imagens eram parte de um monumento dedicado à vitória sobre os persas. Medem quase dois metros de altura e, a princípio, teriam carregado escudos de madeira no antebraço esquerdo erguido e lanças no punho direito. Um deles parece um pouco mais jovem do que o outro, seus músculos estão retesados, os ombros jogados para trás, os olhos fixos à frente, e não para baixo. Os monumentos traziam glória àqueles que os erguiam e há indícios de que homens e mulheres encomendavam estátuas, mas era preciso ser muito rico para adquiri-las. A construção de templos era uma despesa equivalente para as cidades. O Templo de Zeus foi construído em Olímpia, em 456 a.C. Na mesma década, Atenas começara a obra do próprio templo concorrente, dedicado à padroeira da cidade, a deusa Atena, localizado sobre uma colina rochosa de topo plano da Acrópole, que dominava a cidade. Esse templo, o Partenon (447-432 a.C.), era intencionalmente maior do que o Templo de Zeus, ou do que qualquer outro templo grego, e foi construído todo em mármore. Com o dinheiro dos tributos pagos pelas cidades sob o controle ateniense, Péricles, o líder da cidade, contratou o escultor Fídias para supervisionar o grandioso projeto artístico. Ao chegar ao topo da Acrópole e cruzar os portões, você acessava o Partenon por trás. Um friso alto, esculpido em painéis de mármore, envolvia o edifício, com uma narrativa visual concebida para acompanhá-lo em sua jornada à volta da parte externa. O friso, originalmente pintado com cores brilhantes, representava o Grande Panatenaia, um luxuoso festival de verão promovido a cada quatro anos que terminava com um novo peplos (manto) presenteado a Atena, a protetora da cidade. Você se tornava parte da procissão, em que homens e mulheres carregavam ânforas e levavam animais para o sacrifício. Era como a procissão no relevo do Vaso de Uruk, mas em escala muito maior. Ao dobrar a quina perto da entrada, o friso mudava: grandes figuras sentadas indicavam que, agora, você estava na presença dos deuses. No interior, havia uma estátua gigantesca de Atena, com mais de doze metros, inteiramente coberta de ouro e marfim. Imagine isso: uma escultura do tamanho de uma casa de três andares! Só o ouro pesava mais de uma tonelada, e o marfim era um dos materiais mais caros existentes. O marfim tinha sido transformado na pele de Atena, ao ser retirado de presas de elefante e cuidadosamente aplicado sobre as maçãs do rosto, pescoço, braços e mãos. Essa única estátua custou mais do que o resto do Partenon como um todo. Foi a maior afirmação de poder, prestígio e opulência que a cidade poderia fazer. A obra central de Fídias, a enorme Atena, não existe mais, mas sabemos sobre sua aparência porque sua imagem foi impressa em moedas. A influência dela foi igualmente reconhecida em Olímpia, onde Fídias foi contratado a seguir para fazer uma escultura semelhante para o templo de Zeus. É uma pena que ela também não exista mais, tanto porque, à época, a imagem colossal de Zeus sentadofoi tida como a obra-prima de Fídias quanto por ter ficado conhecida como uma das sete maravilhas do mundo antigo. Houve um tempo em que a área dos templos era repleta de milhares de estátuas de bronze em pedestais, perfilando as ruas entre os prédios, por vezes com dois ou três de profundidade. A maioria dessas esculturas não está mais lá, por terem sido fundidas em guerras posteriores, dado o valor do metal. Em Olímpia, foram encontrados mais de mil pedestais vazios. No capítulo seguinte, veremos cópias em mármore de algumas delas quando nos aventurarmos por Roma, mas o mármore só voltou à moda como material preferido dos escultores gregos no século IV a.C. e na obra de Praxíteles. Praxíteles foi muito bem-sucedido ao longo da vida e parece ter sido relativamente abastado. Era ateniense, filho de escultor, e usava modelos vivos para suas peças. Começou trabalhando com bronze, mas optou pelo mármore e tornou-se bem conhecido pela capacidade de fazer a pedra dura parecer pele suave. Uma de suas obras, a Afrodite de Cnido, tornou-se especialmente admirada. Esculpida por volta de 350 a.C., ela foi a primeira representação em tamanho natural de uma mulher nua e é o ponto de partida da história do nu feminino na arte ocidental. Artistas homens, trabalhando para mecenas e apreciadores homens, voltaram-se de forma sistemática para o corpo feminino nu, transformando-o em objeto a ser observado. Foi o que Praxíteles fez com Afrodite. Ela acaba de se despir para o banho (um jarro d’água aparece à sua esquerda). Não está exibindo o corpo publicamente como sinal de força heroica, como os Guerreiros de Riace ou como os homens faziam ao se exercitarem nus no ginásio. As mulheres só ficavam nuas em caráter reservado, e a privacidade de Afrodite foi perturbada, e ela tenta cobrir o corpo com as mãos. Empregando o contrapposto (uma pose flexionada), Praxíteles acrescenta movimento ao corpo dela: o peso está colocado sobre um pé, uma perna flexionada, o quadril deslocado e um dos ombros caído. Em sua origem, Afrodite foi posicionada no centro de um templo e podia ser vista por todos os ângulos. A estátua se tornou um tipo de atração turística, e a cidade de Cnido (cidade grega que se situava onde hoje é o litoral sul da Turquia) exibia, cheia de orgulho, a imagem da escultura em suas moedas. Afrodite não representava o poderio de uma cidade, conforme a colossal Atena fizera, mas sim o poder do artista, alguém capaz de transformar a dureza do mármore em carne sensual, viva. O original se perdeu, mas um batalhão de cópias romanas e moldes de gesso posteriores asseguraram que sua fama perdurasse até hoje. Praxíteles foi um dos principais escultores de sua geração e seu trabalho era muito requisitado. À época em que esculpiu Afrodite, ele foi um dentre vários escultores destacados para trabalhar em um imenso túmulo para Mausolo, governante persa que viveu em Halicarnasso (hoje Bodrum, na Turquia). Os escultores viajavam constantemente para atender às encomendas, dado que líderes regionais ricos compreendiam o valor da arte em sua tentativa de imortalidade. O grandioso túmulo de Mausolo era coberto de esculturas de artistas gregos. Era tão impressionante que inspirou a palavra mausoléu, que significa uma edificação mortuária grandiosa. A influência da arte grega para além do continente grego ficou conhecida como helenismo, espalhando-se ainda mais conforme o líder grego do século IV a.C., Alexandre o Grande, conquistava todos os antigos territórios persas, do Egito até a Índia. Um século mais tarde e do outro lado do mundo, na China, outro líder ambicioso começou a se estabelecer. Seu mausoléu viria a ser de uma escala sem precedentes, o maior projeto escultural jamais realizado. Capítulo 4 - Os imitadores O ano é 210 a.C. e o cruel imperador chinês Qin Shi acaba de falecer. Um exército aglomerou-se para conduzi-lo na vida após a morte e milhares formam fileiras ordenadas. São arqueiros e oficiais, soldados da infantaria e da cavalaria, todos de frente para os territórios conquistados por Qin ao unificar a China sob sua bandeira. A Guarda Imperial se posiciona em dez colunas, de quatro componentes cada, que parecem intermináveis, todos de lança na mão, preparados para um eventual ataque. É um exército que nunca dorme. Afinal, não são soldados comuns, mas sim réplicas pintadas, em tamanho natural, feitas de terracota (argila). Elas fazem parte de um imenso mausoléu que o imperador mandou construir tempos antes, ao assumir o poder como rei regional do Estado de Qin, com treze anos de idade. Trinta e seis anos mais tarde, o exército vigia uma réplica da principal cidade de Qin, Xianyang, incluindo o palácio, onde seu corpo repousa. Corredores ligam o palácio-sepulcro com o resto da cidade duplicada, que se estende por quilômetros. Bigas de bronze estão estacionadas em baias com cavalos de bronze com arreios completos e um cocheiro sempre pronto para conduzir o imperador morto. Músicos e acrobatas de terracota estão ali perto para o entretenimento; réplicas dos cortesãos e servos de Qin ficam próximas, prontas para atendê-lo. Gansos e cisnes de argila “nadam” em um lago subterrâneo, para que nunca falte alimento ao imperador. * Governantes anteriores haviam insistido no sacrifício humano ao morrerem para que fossem assistidos na vida pós-morte, mas Qin encomendou milhares de substitutos de terracota para servi-lo na vida eterna. Para criá-los, misturava-se argila com areia para fortalecê-la durante a queima e o material era distribuído entre diversas oficinas para garantir a mesma qualidade pelas diferentes linhas de produção. As figuras eram confeccionadas por mais de mil operários como peças idênticas, porém com detalhes diferentes. Assim, um soldado com uma armadura adornada podia ter bigode e outro não, ou outro com um coque no alto da cabeça poderia ter um lenço mais espesso que o companheiro ao lado. Essas discrepâncias fazem as imagens parecer mais humanas. Os vestígios de tinta no barro mostram que eram pintadas originalmente com cores realistas. Hoje conhecemos esses soldados como o Exército de Terracota, e milhares de exemplares têm sido descobertos em escavações, desde que o sítio foi redescoberto, em 1974. Ao mesmo tempo em que Qin construía seu império, a cultura Nok florescia na África Ocidental, ao norte do rio Níger (na Nigéria de hoje), e muitas esculturas Nok, também de terracota, sobreviveram. Os artistas da região de Nok eram mulheres, e elas enrolavam cordas de barro para formar imagens ocas em trajes cerimoniais, algumas originalmente com mais de um metro de altura. Enquanto as esculturas secavam, os detalhes eram talhados no barro, como colares texturizados, tornozeleiras e pulseiras, armas, tranças nos cabelos e detalhes faciais. O rosto das esculturas era estilizado e distinto. Cada cabeça exibia sobrancelhas bem arqueadas, olhos grandes triangulares com globos oculares projetados e pupilas vazadas. Nas esculturas maiores, a boca, as orelhas, as narinas e os olhos eram perfurados, abrindo buracos para a passagem do ar de dentro da escultura durante o cozimento no forno, evitando rachaduras na peça. Hoje encontramos uma profusão de fragmentos das esculturas Nok, principalmente bustos, e supõe-se que possam ter sido quebradas e enterradas como parte de um ritual, como uma cerimônia em honra aos ancestrais ou um funeral. Infelizmente não há registros escritos que nos informem melhor sobre a cultura Nok. Adornos da escultura, como uma concha decorativa na cabeça e um cetro de faraó colocado num bracelete, sugerem que a região de Nok mantinha uma rede comercial que resultou num intercâmbio cultural, a partir do oceano Atlântico até o Egito. A reação romana à construção de uma rede comercial foi invadir territórios vizinhos e expandir o próprio império. De cidade pequena, Roma cresceu até se tornar uma superpotência imperial que controlouimensas faixas mediterrâneas no século II a.C. Em Roma, o apetite por esculturas era voraz. Mais de um milhão de habitantes viviam na cidade, e as esculturas estavam por toda parte: de deuses nos templos, de generais romanos nas esquinas das ruas, de bustos de filósofos gregos nas residências e nas tumbas esculpidas à beira das estradas. De cada cidade conquistada, as esculturas eram levadas como espólio de guerra e exibidas pelas ruas de Roma em desfiles pomposos chamados de triunfos. Os escultores eram contratados para fazer réplicas de mármore das esculturas gregas mais famosas de Policleto e Praxíteles e elas eram embarcadas para Roma em quantidade. Moldes de gesso de obras famosas começaram a circular, possibilitando que artistas romanos criassem outras réplicas. Na verdade, milhares de Afrodites e Vênus nuas sobreviveram, e foram encontradas mais de 65 cópias em mármore da estátua de bronze Doríforo, de Policleto, um lanceiro do século V a.C. Os cidadãos romanos abastados não tinham somente uma ou duas esculturas no átrio (saguão de entrada) de suas casas, mas era comum possuírem dezenas e dezenas delas alinhadas também no peristilo (pátio interno). Com a expansão do império romano, tornou-se mais difícil datar as esculturas. Por quê? Para os romanos, copiar obras e reciclar ideias antigas era uma prática artística comum. Todos queriam ter esculturas gregas porque os romanos admiravam muito o estilo de vida grego, e as estátuas simplesmente não eram suficientes para atender à demanda. Então, a prática de copiá-las ou criar novas esculturas baseadas nos originais gregos se difundiu muito. Uma obra em particular ocupa o ponto central dessa dificuldade: a escultura Laocoonte. É uma peça fantástica, cheia de vigor e dramaticidade. Três personagens contorcidos, o sacerdote Laocoonte e os dois filhos, lutam para se libertar de gigantescas serpentes marinhas que tentam derrubá-los, prontas para abocanhá-los. Os três homens estão nus, com a musculatura contraída de medo. A figura central é Laocoonte, sentenciado à morte por um deus vingativo por ter tentado alertar Troia, sua cidade sitiada, para não aceitar o presente do gigantesco cavalo de madeira. Enquanto Laocoonte e seus filhos eram atacados pelas cobras, a barriga do cavalo se abriu e os soldados gregos brotaram dela e invadiram Troia, vencendo a guerra. A história das guerras troianas era conhecida há séculos. (Você deve lembrar que Exéquias, o pintor de vasos grego, era um grande fã.) A Ilíada de Homero a recontou no século VIII a.C., e o poeta romano Virgílio a atualizou com a Eneida (29-19 a.C.), acrescentando-lhe a história de Laocoonte num efeito dramático. Para a escultura de Laocoonte, três artistas da ilha grega de Rodes – Agesandro, Polidoro e Atenodoro – traduziram o conto em mármore, criando uma obra-prima expressiva, turbulenta, transformando a pedra em músculos tensionados. A escultura foi adquirida pelo rico comandante romano (e posteriormente imperador) Tito. Seu contemporâneo, Plínio o Velho, chamou-a de “uma obra superior a qualquer pintura, a qualquer bronze”. Hoje não existe consenso quanto à data em que Laocoonte foi realmente esculpida. Ela se assemelha em estilo às esculturas feitas no século III a.C. em Pérgamo (hoje na Turquia, mas naquela época era considerada parte da Grécia). Outros especialistas preferem datá-la como sendo do primeiro século antes de Cristo. Plínio nomeou os três escultores de Rodes que a fizeram, e eles também parecem ser os autores das esculturas teatrais sobre as guerras troianas para a suntuosa mansão do imperador Tibério, à beira-mar, em Sperlonga. No entanto, isto significaria que o Laocoonte seria datado do primeiro século da era cristã. Não há nenhuma inscrição na escultura em si ou qualquer outra forma de saber, mesmo quando se compara o estilo com outras obras, já que era uma prática comum copiar estilos mais antigos. A única área em que os artistas romanos não recorriam à arte grega como inspiração era no retrato esculpido, conhecido como busto. A escultura clássica grega representava homens como adolescentes imberbes e as mulheres com rostos simétricos sem nenhuma ruga. Eles eram os supermodelos de sua época. Por outro lado, os romanos davam preferência a rostos ricos em idade e em experiência, a peculiaridades individuais representadas por orelhas salientes, bochechas flácidas e feições pesadas. O busto de um patrício romano de Otricoli, de 75-50 a.C., exibe um queixo pronunciado e faces encovadas. A boca é firme, mas há preocupações franzindo o cenho e sombreando o olhar. Esse estilo de escultura é apelidado de “verismo”, da palavra latina para verdadeiro, mas hoje não temos como saber se esses bustos são mais verossímeis do que as cabeças gregas. Ambos eram representações de um ideal, mas para os romanos isso era a experiência acima da jovialidade, a sabedoria acima da inocência, a confiabilidade e o estoicismo acima da beleza superficial. O verismo não só era preferência de senadores e oficiais militares, como também de comerciantes e artesãos que tinham os traços característicos próprios esculpidos em seus túmulos. O único problema com o verismo era se você fosse realmente ainda jovem e pouco experiente em termos físicos e mentais. Foi o problema enfrentado por Otaviano Augusto, o sobrinho-neto e filho adotivo de Júlio César, que veio a se tornar o primeiro imperador romano aos 32 anos de idade. Não havia uma forma plausível de ele conseguir uma escultura sua como velho e sábio, então ele recorreu ao modelo grego da juventude idealizada. Ao longo de seus 41 anos como imperador, suas esculturas eram eternamente jovens, maxilar bem definido, sem barba, a boca pequena e carnuda, olhos sem rugas e, acima deles, cachos fartos de um cabelo encaracolado. Havia bustos de Augusto por todo o Império Romano. Uma cabeça de bronze datada aproximadamente de 25 a.C. foi encontrada no Sudão, na África, e existem bustos egípcios em que ele usa o adorno de cabeça de um faraó. Esses bustos marcavam sua presença e representavam sua autoridade quando ausente. Uma imagem dele de perfil aparece em moedas de denários cunhadas na Espanha em 20 a.C., de modo que era possível levar consigo o poder e a proteção do imperador. Em termos históricos, as esculturas encomendadas pelas famílias de aristocratas ou de governantes como a de Augusto eram feitas em mármore e bronze, materiais resistentes, capazes de sobreviver a seus donos. Por essa razão, as cidades italianas de Herculano e Pompeia são uma fonte singular e de valor incalculável para os historiadores da arte. Essas cidades foram soterradas por cerca de quatro a seis metros de cinzas e pedra-pomes quando o Vesúvio, o vulcão da região, entrou em erupção em 79, paralisando no tempo toda a vida da cidade, fossem ricos ou pobres. As escavações, iniciadas em 1738, ainda continuam. Os interiores das casas escavadas, com seus mosaicos baseados em pinturas gregas e pinturas murais representando mitos, paisagens e ilusões arquitetônicas, oferecem insights valiosos sobre a forma como a arte se inseria no dia a dia. Sabemos por Plínio que a pintura era valorizada por seu ilusionismo. Os pintores de Pompeia usavam o trompe l’oeil livremente nos interiores das villas, pintando o gesso para parecer mármore, pássaros empoleirados em guirlandas e paisagens através de janelas. O átrio central era o primeiro cômodo visto pelas visitas e era como um palco montado, com arte e mobília arrumadas para melhor corresponder aos gostos e aspirações de cada proprietário. Estátuas de Dionísio, o deus grego do prazer, sugeria haver ali muito tempo para o lazer, galerias de bustos de filósofos gregos e ancestrais romanos sugeriam um patrimônio cultural e uma mente instruída. Outros cômodos de livre acesso além do átrio costumavam ter cenas mitológicas ou ritos cerimoniais nas paredes. Na Vila dos Mistérios, um quarto érecoberto com pinturas murais que mostram os preparativos para um casamento. Mulheres e homens jovens passam por ambientes apinhados por deuses associados ao amor e à fertilidade, incluindo Dionísio e Eros. As grandes figuras pintadas são sólidas e realistas, assumindo poses como esculturas gregas, e parecem se mover num espaço de pouca profundidade em frente a paredes de um vermelho vivo. Essa perspectiva serve para empurrá-las na direção dos hóspedes que adentram o cômodo, envolvendo-os como se eles também fizessem parte da cerimônia misteriosa. Na Casa do Fauno, uma das grandes mansões de Pompeia, uma pintura grega de Alexandre o Grande lutando contra o rei Dario da Pérsia foi recriada em um mosaico que cobre o chão de um espaço ajardinado. O mosaico mede 6 metros por 3 metros e era originalmente composto por 3 milhões de tesselas, pequeninos cubos de pedra em tons de amarelo, marrom, branco, preto e cinza usados pelo artista para recriar a dinâmica da cena de batalha. É o momento da derrota de Dario e ele se volta para trás para olhar para Alexandre, enquanto seus homens batem em retirada, com as lanças ainda apontadas para o inimigo. Um cavalo luta para se libertar do soldado que o segura, levando-nos diretamente para o centro da ação e revelando a habilidade do artista em trabalhar com o escorço na perspectiva (vemos a traseira e a cabeça do cavalo supostamente por trás). Esse mosaico é o único registro conhecido da pintura original, que tanto poderia ter sido uma famosa representação do século IV a.C. da batalha de Issos por Helena do Egito quanto uma cena de batalha mencionada por Plínio em sua lista das obras-primas gregas. De uma forma ou de outra, ela existe hoje somente na forma desse mosaico, preservado por acaso pelas cinzas vulcânicas em 79. Na época em que o Vesúvio entrou em erupção, o império romano se estendia da Inglaterra até a África e da Espanha até a Turquia. Quando o retomarmos no capítulo seguinte, ele estará próximo do auge de seu poderio. Capítulo 5 - Caminhos para a vida após a morte Estamos no ano 110 e o Fórum romano é um canteiro de obras. O imperador Trajano está determinado a construir o maior espaço de reunião para o senado e para o povo que a cidade já viu. Completo, haverá ali um centro de compras, ambientes para reuniões públicas, uma ampla praça central e duas bibliotecas (uma para os textos gregos, outra para os latinos). No meio de tudo isso, foi erguida uma gigantesca coluna de mármore, com 35 metros de altura, construída com 29 discos de mármore de Luna [Carrara]. A coluna está sendo financiada por espólios de guerra e, futuramente, terá no topo uma escultura de bronze do próprio Trajano. Há uma plataforma de observação, alcançável por uma escada em caracol cavada por dentro da coluna, de onde se pode avistar todo o novo Fórum. Na parte externa, os escultores esculpem um registro vitorioso das recentes campanhas militares de Trajano contra os dácios (a Dácia é a Romênia de hoje). O friso envolve a coluna de baixo para cima, em baixo-relevo. As cenas são ricas em movimento e as figuras são bastante intricadas. Os soldados ganham vida, enquanto se esforçam para cortar árvores na floresta ou martelam pregos nas fortificações, as veias dos braços saltadas, cada placa da armadura se movendo com o esforço. O friso mede somente um metro de altura e duzentos metros de comprimento. Desenrolado, teria a mesma extensão daquele que envolve o Partenon, em Atenas. * A visualização de uma vitória militar numa escala épica não foi inventada pelos romanos, mas eles a usaram bastante. A Coluna de Trajano foi concebida pelo arquiteto do Fórum, Apolodoro de Damasco, e o friso sobe em espiral em torno dela, dando 23 voltas. Na parte inicial, cavalos, bois, carneiros, porta-estandartes, trombeteiros e centenas de soldados jorram pelos portões da cidade a caminho da guerra. É possível ver Trajano atravessando o rio Danúbio, com barcos carregados de provisões para os exércitos. Suas duas campanhas aparecem registradas em detalhe, e o friso culmina com o suicídio do líder dácio derrotado, Decébalo. Trajano aparece 59 vezes no total, em um conjunto de cenas, todas exibindo-o em estado de contentamento e ligeiramente mais alto do que suas tropas para ser distinguido com mais facilidade. A profusão de detalhes é tamanha que os historiadores modernos estudam o friso por suas representações de armaduras e armamentos romanos. Mas há um grande problema no estudo in loco do friso: ele é difícil de ser visualizado. As janelas das bibliotecas construídas por Trajano davam para a coluna, mas ainda assim era impossível ver a totalidade do relevo. Originalmente, ela era pintada e os painéis em relevo eram um pouco maiores na direção do topo da coluna, mas, em última análise, grande parte da narrativa não pode ser avistada da base, o que é, de fato, uma pena. Conforme visto em Pompeia, os romanos abastados tinham condições de encomendar mosaicos e esculturas para decorar suas casas, mas os imperadores romanos deram um passo à frente. A partir de Augusto, os imperadores competiam entre si na construção de templos cada vez maiores e mais impressionantes, assim como lugares de reunião e monumentos. Augusto construíra um fórum no coração de Roma, revestido de mármore e repleto de esculturas. O Fórum de Trajano, erguido um século depois, era três vezes maior. Sua coluna era a mais alta de Roma quando foi construída. Por que chegar a tamanhos tão extraordinários? A coluna era uma declaração ostensiva da vitória de Trajano no campo de batalha e seu sucesso como imperador. As muitas horas dedicadas aos relevos e o nível de detalhe atestaram a capacidade de Roma para conseguir o (quase) impossível. Uma narrativa heroica foi esculpida em 1.100 toneladas de mármore para confirmar o poder e a força do império romano. Era também uma questão de imortalidade. A Coluna de Trajano se tornou o túmulo de Trajano. Suas cinzas foram sepultadas na base da coluna e suas façanhas na Dácia se tornaram um memorial apropriado. É provável que a coluna tenha sido concluída pelo imperador seguinte, Adriano, e ele terá ficado feliz em continuar financiando o projeto, pois era ele que agora respondia pelo forte e poderoso império de Trajano, e dessa forma a coluna também lhe dava bastante visibilidade. O próprio Adriano construiu de forma impressionante em Roma. O Partenon foi erguido durante seu reinado. No entanto, o palácio de verão de Adriano, nas colinas fora da cidade, foi seu derradeiro legado artístico. Construído entre 110 e 130 e chamado modestamente de Villa Adriana, ele cobria uma área com duas vezes o tamanho de Pompeia e podia abrigar todos os seus assessores administrativos assim como muitos convidados. Sua fama está na concentração de esculturas reunidas ali por Adriano. A villa exibia os maiores sucessos da arte grega e romana, às vezes com várias cópias da mesma escultura. Peças que já vimos antes por aqui estavam na villa, incluindo uma cópia da Afrodite de Praxíteles, abrigada numa réplica de seu templo circular. Longe de seu contexto de origem, muitas esculturas eram alinhadas como em uma galeria de arte dos tempos modernos, reunidas para serem observadas e admiradas. O lanceiro Doríforo de Policleto ficava nos banhos da Villa. Uma cópia do popular Discobolus (lançador de disco, original do século V a.C.) também estava exposta na Villa, agrupada com outras esculturas de diferentes procedências e épocas. Adriano misturava suas estimadas cópias gregas com imagens contemporâneas de seu jovem amante Antinoo. Antinoo aparecia nu e caracterizado como os deuses gregos e egípcios. Ele morreu afogado no rio Nilo, no Egito, antes dos vinte anos, e Adriano, consternado pela tristeza, transformou-o em um deus. Em última análise, a exposição de esculturas de Adriano era um gigantesco memorial para Antinoo. Outra forma de memorial era o retrato, a capturadas feições de uma pessoa para a posteridade. O retrato permaneceu popular por todo o império romano e era comum erguer estátuas para celebrar a fundação de prédios e edifícios públicos. Uma estátua em grandes proporções de Plancia Magna foi erguida na cidade romana de Perge (hoje na Turquia), em 121, para marcar sua generosidade por ocasião da grande reforma dos principais portões da cidade. A família de Magna era de cidadãos romanos que tinham se mudado para Perge algumas gerações antes. Eles ainda participavam do senado em Roma, mas agora eram também membros da elite de Perge. A escultura mostra Magna vestida com tecido refinado, delicadamente pregueado, indicando sua riqueza. Ela usa um diadema decorado com pequeninos bustos de imperadores romanos, indicando que ela era uma sacerdotisa do culto imperial, forma de religião estatal em que o imperador era idolatrado como um deus. A inscrição na estátua diz que Magna era uma filha da cidade e que trabalhava para o bem de seu povo. Ela era também a funcionária pública de mais alto nível e figura poderosa em Perge, e a escultura enfatizava sua importância para a cidade. Infelizmente, muitas mulheres morriam no parto, de forma prematura. Era a maior causa de morte de mulheres jovens, em Roma, naquela época. Elas eram homenageadas com esculturas nos túmulos que beiravam as estradas fora dos muros da cidade. Nas lápides dos comerciantes por todo o império, as mulheres eram, muitas vezes, representadas em papéis ativos, vendendo legumes, atuando como parteiras ou sentadas ao lado de um baú de dinheiro para mostrar o envolvimento direto com o comércio. Uma lápide do nordeste da Inglaterra foi encomendada por Barates, originalmente de Palmira (hoje na Síria), quando sua esposa inglesa Regina, antes uma escrava, morreu aos trinta anos. Sentada, a escultura ocupa um nicho, com os braços cheios de pulseiras. Os dedos abrem uma caixa pesada, usada para guardar joias e bens pessoais valiosos. Ela e Barates eram obviamente ricos, conforme atesta o conjunto dessa lápide. A inscrição na parte inferior aparece em latim e aramaico, língua de Barates, e diz “Regina, mulher libertada de Barates, infelizmente”. Assim como os gregos, os romanos adoravam muitos deuses, mas conforme o império se expandia, eles entravam em contato com outros sistemas de crença. No cemitério de Faiyum, no Egito (parte do império romano), os corpos eram preservados segundo os costumes egípcios, porém a máscara tradicional da múmia era substituída por um retrato realista do morto, pintado sobre painéis de madeira. Os retratos de Faiyum foram pintados com encáustica (pigmento misturado com cera de abelha), e registravam o cintilar dos brincos e colares de ouro, as túnicas vermelhas e os cabelos encaracolados com elegância. Neles, rostos pálidos brilham com vida, pinceladas rápidas acrescentam um colorido aos lábios e reflexos de âmbar aos olhos amendoados. A importância dos ancestrais para as famílias romanas pode ter contribuído para essa nova tradição do retrato, que só se estabeleceu no Egito depois que o país foi incorporado ao império romano em 30 a.C. Hoje, esses retratos são muito valorizados por historiadores da arte por serem as únicas pinturas em painéis de madeira da antiguidade que sobreviveram. Na mesma época em que os retratos de Faiyum eram pintados, em Teotihuacán (hoje Cidade do México), a Pirâmide da Serpente Emplumada dava aos mesoamericanos acesso direto ao seu próprio submundo. Cabeças de serpente gigantescas adornavam as fachadas da pirâmide, cada uma pesando mais de quatro toneladas, pintadas com cores vibrantes para intimidar qualquer um que se aproximasse. Há 2.000 anos, Teotihuacán era a cidade mais importante da Mesoamérica, com uma população que chegava a 150.000 habitantes. Mais tarde, os astecas a chamaram de “O berço dos deuses” e faziam romarias às ruínas da cidade. No entanto, os astecas não tiveram acesso ao que jaz sob a Pirâmide da Serpente Emplumada porque a entrada para o subterrâneo fora bloqueada por volta de 225. Essa passagem, redescoberta em 2003, é revestida com milhares de oferendas para os deuses e se estende por mais de cem metros. No final da passagem há uma paisagem montanhosa em miniatura, com três diminutos lagos cheios de mercúrio líquido. Há fragmentos de mica incrustados no teto e nas paredes do túnel e, sob a luz de tochas, a mica cintila, transformando a cobertura numa noite estrelada. Seria essa experiência imersiva uma evocação poderosa do mundo subterrâneo interligado – como de fato era – a outros templos importantes pela Avenida dos Mortos? Os hieróglifos encontrados em Teotihuacán ainda não foram decifrados, e muita informação sobre o povo e os artistas que viviam ali permanece um mistério. Fragmentos de pássaros estilizados e pinturas de animais costumavam decorar casas e espaços públicos, e esculturas enormes dos deuses enfeitavam as pirâmides. A Grande deusa, encontrada perto da Pirâmide da Lua, é a maior escultura descoberta na cidade. A deusa das águas, esculpida em um bloco de pedra, tem rosto simplificado, mas seus trajes são muito elaborados e intricados, sugerindo que o tecido tem um valor simbólico. Na Mesoamérica e na América do Sul, a tecelagem era um componente central da cultura artística. Os tecidos de Paracas, no Peru, eram muito valorizados e incrivelmente detalhados, levando centenas de horas para serem produzidos. As mulheres bordavam cada manta ou coberta fúnebre de forma colaborativa e ela podia chegar a dez metros de comprimento. Hoje, tramas e tecidos nem sempre são reconhecidos como arte, mas para os peruanos daquela época eram objetos culturais dos mais valorizados. Quando faleciam, os líderes comunitários eram envolvidos em várias dessas mantas. Quanto mais elaborada a padronagem, mais valorizadas eram, porque muito tempo teria, de fato, sido investido para homenagear o dirigente morto. O estilo “linear”, caracterizado por linhas retas e poucas cores, abriu caminho para o estilo de “cores sólidas” em que pontos sobrepostos criavam áreas compactas de cor e contornos curvos mais complexos. O desenho popular do xamã voador parece bastante moderno aos nossos olhos com o motivo do médico-bruxo repetido em diversas cores, em queda livre por todo o material. Cada cabeça aparece jogada para trás, os cabelos estirados, como se estivessem sendo soprados com muita força. Alguns desenhos de Paracas se tornaram intencionalmente abstratos, precedendo o abstracionismo ocidental em mais de um milênio. Mais ao sul, em Nazca, no Peru, foi criado um conjunto mais experimental de expressão artística, hoje sob o nome de geoglifo. Por mais de 700 anos, linhas extensas foram traçadas entre os rios Nazca e Ingenio. As rochas escuras que cobriam a planície deram lugar a uma camada bem mais clara, com cerca de 30 centímetros abaixo da superfície. As linhas podiam ser criadas por uma varredura das rochas escuras, e a falta de chuva na área tornou possível que elas ficassem visíveis até os dias de hoje. Algumas se estendem por vinte quilômetros em linha reta, enquanto outras são curvas e assumem a forma de animais e de pessoas com centenas de metros. Elas só podem ser visualizadas de cima, numa vista aérea. Então por que os habitantes de Nazca as fizeram? Jamais poderiam vê-las por completo. Ou talvez tivessem que vivenciá-las? Todos os desenhos foram feitos com uma única linha, supõe-se, então, que havia um aspecto ritualístico neles, uma rota a ser percorrida por um grupo, como parte de um ritual da água ou da fertilidade. Caminhos irradiando a partir de montes de pedras que se espalhavam pela planície podem ter guiado as pessoas para vários motivos: um lagarto, um macaco de rabo espiralado, um beija-flor com uma envergadura maior do que a de um Boeing 747. Por fim, não temos como saber se as linhas de Nazca tinham um propósito espiritual, mas a religião estava cadavez mais no cerne da arte na Europa, Ásia e Oriente Médio, conforme veremos no capítulo seguinte. Capítulo 6 - A arte abarca a religião O ano é 330 e a capital do império romano é, mais uma vez, um canteiro de obras. Mas não se trata de Roma, e sim da cidade grega de Bizâncio, prestes a ser renomeada de Constantinopla, pelo imperador mais recente, Constantino. Ao assumir o poder, Constantino decidiu mudar a capital mais para o leste para estar mais próximo das lucrativas colônias orientais do império romano, que se estendiam desde a Turquia e a Síria até o Egito de nossos dias. Constantinopla será uma segunda Roma – é o seu pensamento. O projeto de construção que ele implementou viu Bizâncio quadruplicar de tamanho. Agora, estátuas de antigos imperadores, incluindo Augusto e César, ocupam as novas avenidas ao lado de esculturas do próprio Constantino, visto que ele se equipara aos maiores líderes do passado. Outras esculturas mais antigas foram maciçamente adquiridas, dentre elas a famosa Afrodite de Praxíteles e a imensa escultura de Zeus, obra de Fídias em Olímpia. Há templos dedicados aos deuses romanos assim como às novas igrejas cristãs. Constantino deu dinheiro à igreja e encomendou novos exemplares da Bíblia para as congregações em crescimento. Até pouco tempo antes, era ilegal reverenciar o cristianismo no império romano, mas Constantino reescreveu as leis e o legalizou. * O cristianismo era uma religião relativamente nova no tempo de Constantino, com somente trezentos anos de idade. A Bíblia apresentou um novo conjunto de histórias a serem representadas pelos artistas, mas, em termos de estilo, a arte sacra primitiva se parece com a pintura clássica. O budismo e o hinduísmo eram religiões muito mais antigas e, por volta do século IV, uma prática artística complexa e sofisticada tinha se desenvolvido em torno de cada sistema de crença na Índia. Viharas (monastérios) e caityas (salões de adoração) budistas foram esculpidos em paredões de rocha, como em Ajanta, no nordeste de Mumbai. São trinta grutas em Ajanta, ao redor de um penhasco em formato de ferradura com cerca de meio quilômetro, acima do rio Waghora. Elas foram esculpidas durante um período superior a seiscentos anos, sendo que as grutas mais complexas datam da segunda metade do século V. Templos como esses, esculpidos na rocha e sem janelas, são importantes porque foi somente no interior deles que a pintura indiana desse período sobreviveu. Muitas pinturas de Ajanta exibem várias encarnações de nagas, semideuses associados à água e à chuva. Nagas brotam no Jataka, conjunto de histórias populares sobre as vidas anteriores de Buda. Uma inscrição na gruta se refere ao lugar como tendo sido o lar de um rei naga e é possível que essas pinturas tivessem um duplo propósito, a saber, o de tranquilizar o naga ali residente (para garantir a continuidade do suprimento de água) e o de reverenciar Buda. Na Gruta 17, uma escultura de Buda sentado ocupa a parede mais distante. Ao seu redor, o teto e as paredes pintadas fervilham de ação do Jakata. Elefantes brancos e leões espreitam sobre canteiros floridos, enquanto homens e mulheres se aglomeram dentro dos templos e das casas e bodhisattvas (discípulos de Buda) oram pela iluminação. Nessas pinturas, vê-se o uso intencional de perspectiva e do efeito de luz e sombra para dar forma aos corpos. Colunatas e portões evocam a arquitetura grega e é possível que artistas gregos tenham introduzido esse estilo de pintura na região. O halo por trás da cabeça do Buda de pernas cruzadas visto nas grutas é originário das esculturas gregas de Apolo, o deus sol. (A arte sacra cristã também viria a empregar o halo como símbolo de divindade.) Por essa época, rotas de comércio bem estabelecidas ligavam a Índia à China, e hoje são conhecidas, em seu conjunto, como Rota da Seda. O budismo indiano se espalhou ao longo dessas rotas, com templos construídos em diversos pontos pelo caminho. Caravanas carregadas trafegavam entre a China, no leste, a Índia, ao sul, e para o império de Constantino, a oeste, levando ideias novas sobre arte e tecnologia. Em qualquer rota feita pela China, era preciso cruzar o deserto de Takla Makan, um trajeto de dois meses. Do outro lado, ficava Dunhuang, cidade com base militar que marcava o limite ocidental do império chinês. Na China, a pintura tem um passado longo e nobre, mas a pintura religiosa não se propagou até o século IV. Durante uma época em que o império chinês se encontrava fragmentado e turbulento, o povo se voltou para a religião, para o budismo, em particular. O exemplo mais famoso de arte budista dessa época é o complexo de cavernas de Mogao, em Dunhuang. São 492 grutas no total, escavadas ao longo de um penhasco de um quilômetro, e representam um ponto alto da pintura em murais na China. A escavação das grutas era um trabalho pesado, assim como sua decoração, e os artistas moravam no local, como acontecia no Egito. De início, a influência da arte indiana predominou e algumas grutas exibem cenas do Jakata. A partir do século VI, novos elementos começaram a aparecer, como paisagens vistas de cima, vistas aéreas que marcaram um novo desenvolvimento na pintura chinesa. Em outras grutas, múltiplas representações da imagem de Buda revestiam as paredes, como na Gruta 249, de onde o lugar herdou o nome de “Grutas dos Mil Budas”. Durante esse período, o cristianismo vinha se espalhando pelo Oriente Médio, norte da África e Europa. Um novo império bizantino era o legado de Constantino e seu alicerce era o cristianismo. Menos de cem anos depois que Constantino mudara a capital do império romano para Constantinopla, o império se dividiu em dois. A metade ocidental foi rapidamente tomada pela invasão dos godos (germânicos), mas a metade oriental, o império bizantino, floresceu. As novas igrejas empregaram artistas para usar a técnica popular romana do mosaico para revestir paredes e tetos imensos com cenas bíblicas. Os artistas de Constantinopla se tornaram internacionalmente renomados por seus mosaicos de ouro e seu trabalho é encontrado em lugares distantes como a Sicília e a Síria. Enquanto os artistas romanos usavam pequenas tesselas de mármore para obter os mosaicos, os bizantinos usavam vidro colorido, que refletia muito mais e podia ser forrado com folha de ouro, de forma que os mosaicos pareciam cintilar com luz celestial. No século VI, o imperador bizantino Justiniano lutou para recuperar a metade ocidental do império romano. Ravena tinha sido a capital dos ostrogodos, antes de sua campanha bem-sucedida. Para selar sua vitória, Justiniano instalou mosaicos esplendorosos dele e de sua mulher Teodora na igreja de São Vital, recém-construída em Ravena. O rico banqueiro Julius Argentarius financiara a construção da igreja, repleta de mosaicos dourados de Cristo e seus seguidores. Os mosaicos de Justiniano e Teodora ocupavam o lugar principal, um de frente para o outro, de cada lado do altar. Justiniano é representado segurando uma pátena (travessa) contendo pão, o corpo de Cristo, para a Missa. Doze homens se agrupam em torno dele, como se fossem seus discípulos e ele, o filho de Deus. À sua esquerda estão os bispos e à direita, os soldados, representando seu comando sobre a igreja e o Estado. Em frente a Justiniano, Teodora usa um adereço de cabeça e veste os trajes oficiais. De pé, no jardim do lado de fora da igreja, ela aguarda para entrar. Bem próximo a ela, estão os três reis Magos (sábios), ligando- a diretamente ao nascimento de Cristo. Ela segura um cálice usado para o vinho, o sangue de Cristo, durante a cerimônia. Os halos por trás de Justiniano e Teodora reforçam seu direito divino para governar o império bizantino em expansão. Esses mosaicos mostravam como Justiniano era devoto e também afirmavam sua nova autoridade sobre a região. São ainda uma das primeiras representações do que se tornaria uma crençacentral no cristianismo ortodoxo oriental, a saber, a união dos poderes religiosos e seculares em um único líder. A igreja de São Vital foi concluída em 547, dez anos depois que a imensa igreja de Justiniano, a Santa Sofia, foi consagrada em Constantinopla (hoje Istambul). São Vital é bem menor, uma igreja octogonal simples, hoje famosa pelos mosaicos de Justiniano e Teodora. É importante observar que esses mosaicos não são imagens perfeitas, pois falta expressão nos rostos e eles têm o corpo recoberto por mantos roxos, o tecido disposto em colunas caneladas. Não se trata, aqui, de uma falha: esses retratos foram criados para serem simbólicos e não realistas. Justiniano nunca esteve em Ravena, portanto esses mosaicos trabalhados funcionavam como um procurador ou representante. Eles são uma visão da presença imperial divina para durar eternamente, assim como Deus e a igreja, e não para ser uma representação temporária. Por essa época, o cristianismo já havia se espalhado para além do mundo bizantino e alcançado as bordas congeladas da Europa. A arte sacra afastou-se da obsessão clássica pelo corpo natural e a mensagem religiosa passou a importar mais do que qualquer outra imagem. No norte da Europa, animais, em vez de pessoas, passaram a dominar a arte da região. O estilo celta-germânico, conforme é hoje conhecido, se estendeu desde a Escandinávia até a Alemanha e atravessou as estepes russas. Os Evangelhos de Lindisfarne, concluídos no norte da Inglaterra por volta de 700, são um exemplo excelente de como esse estilo era usado pelos monges. Eles trabalhavam nos mosteiros, em imensos scriptoria (recintos de escrita), espalhando a palavra de Deus ao criar cópias da Bíblia. Nos títulos das páginas dos Evangelhos de Lindisfarne, agrupamentos ornamentados de nós celtas e de animais e pássaros estilizados preenchem grandes iluminuras de letras capitulares douradas e envolvem cruzes cristãs. Águias e flamingos, serpentes e dragões parecem contorcer-se pelas páginas, dando vida à palavra de Deus. O livro também exibe pinturas de página inteira de cada um dos quatro santos evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João. As imagens flutuam, os corpos são achatados e decorativos, os rostos repetitivos têm grandes olhos amendoados. Por essa época, o corpo se tornara puramente simbólico. São imagens que representam os santos mais como uma ideia do que como gente de verdade, e são reconhecidas principalmente pelos objetos associados a elas, como Marcos e seu leão alado. Isso facilitava a cópia das imagens de um livro para outro. Nessa época, a religião impulsionava a arte e, no Oriente Médio, um novo líder religioso, Maomé, se estabelecera havia pouco tempo. Os seguidores do islamismo, sua nova religião, rapidamente se expandiram pelos territórios orientais do império bizantino e capturaram cidades importantes, como Jerusalém e Alexandria. Sob o islamismo, as representações de figuras religiosas como Maomé foram banidas, com o objetivo de impedir que a imagem fosse adorada como um ídolo, quando o louvor deveria ser reservado para Alá (Deus). Entretanto, existiam muitas outras formas de arte islâmica. No império islâmico, em rápida expansão, construíam- se mesquitas e, em sua capital, Damasco (na Síria de hoje), a Grande Mesquita começou a ser erguida em 705. Ela foi construída em dez anos somente, com o dinheiro dos impostos sírios e mão de obra fornecida pelo Egito. Textos extraídos do Alcorão foram registrados com caligrafia nas paredes, inaugurando-se uma tradição existente até hoje. Ainda que Alá e Maomé não pudessem ser representados, a palavra de Alá podia e, assim, a caligrafia floresceu como arte. As inscrições caligráficas na Grande Mesquita já desapareceram há muito tempo, mas os mosaicos permanecem, uma visão fascinante das redes artísticas do século VIII. As paredes do pátio central e da passagem coberta exibem mosaicos de ouro aplicados por artistas bizantinos. Neles, há paisagens urbanas despovoadas que lembram a Roma e a Grécia antigas. Árvores altas acompanham rios, em cujas margens se erguem palácios sofisticados. Cidades em encostas íngremes se estendem por sobre as árvores. Prédios verdes, azuis e dourados são cuidadosamente combinados para preencher as paredes da mesquita e tudo parece estar na mais perfeita ordem. Por que o califa al-Walid I, que encomendou a Grande Mesquita, escolheu cidades ocidentais para decorar um pátio por onde todos os fiéis passariam? Seria seu desejo integrar o novo império religioso do Islã com impérios mais antigos e estabelecidos como os sediados em Roma e Constantinopla? Ou seria para demonstrar um domínio sobre eles, já que nesse tempo o império islâmico se estendia até o norte da África e a Espanha? Será que o desenho poderia ser imaginado como um mapa, com o mundo distribuído pelas paredes do pátio e a mesquita bem no centro? Os visitantes da mesquita povoariam as cenas assim como se estivessem povoando o mundo graças a seu império em expansão. Qualquer que fosse a motivação para aqueles mosaicos, al-Walid certamente desejava que a mesquita fosse impactante. Em um comunicado ao povo, ele exclamou: “Habitantes de Damasco, quatro coisas lhes oferecem uma superioridade distinta sobre o resto do mundo: o clima, a água, os frutos e os banhos. A essas eu gostaria de acrescentar uma quinta: esta mesquita”. Capítulo 7 - Nuvens de tempestade à vista Estamos em 726. Já está escuro e é hora de dar início à cerimônia. O rei maia, Escudo Jaguar II, está prestes a adentrar um novo templo e dedicá-lo à esposa favorita, a senhora K’ab’al Xook. Trata-se do primeiro templo construído em Yaxchilan (no México de hoje) em 150 anos. A esperança de Escudo Jaguar é que ele traga vida nova para a região e reforce seu poder. Ele já governa há 45 anos e K’ab’al Xook tem sido sua leal apoiadora, acalmando os deuses quando se faz necessário assegurar a sobrevivência de seu reino e seu povo. Os deuses precisam de sangue para viver, daí o sacrifício regular de prisioneiros. Por vezes, só o sangue real é aceito. K’ab’al Xook participou de um ritual de sangria, atravessando a língua com uma corda farpada com cacos de obsidiana (vidro vulcânico). Esse ritual hoje está registrado em pedra, esculpida em três painéis elaborados de calcário, dispostos acima das portas do templo. Os escultores levaram três anos para concluir os painéis, pintando-os com tons vibrantes de verde, vermelho e amarelo. Eles executaram um trabalho excepcional, captando todos os detalhes do manto de K’ab’al Xook ricamente bordado, seu medalhão do deus- sol, e até o sangue respingando sobre o rosto. Ela não expressa nenhum tipo de emoção ao cumprir seu dever real. * Os painéis desse templo, conhecidos hoje como Estrutura 23, estão no British Museum em Londres e no Museo Nacional de Antropologia, na cidade do México. Sua pintura descascou e eles não marcam mais a entrada de um templo sagrado, ainda que conservem um poder intenso. No primeiro painel, o rei está de pé, usando um cocar rebuscado e joias, e segura uma tocha sobre K’ab’al Xook para iluminar a cena. Ela se ajoelha e passa a corda farpada pela língua estendida. No painel seguinte, ela está sentada no chão, com a cabeça jogada para trás em um transe, segurando o cesto de papel que absorveu o sangue de sua língua. (Era muito sangue: há outro cesto no chão, ali perto.) Do sangue, brota uma serpente de duas cabeças, uma das pontas vomitando o rei da tempestade Chac e na outra um antepassado ilustre, armado para a batalha. Os hieróglifos maias registrados em cada painel ligam esse ancestral a Escudo Jaguar II, confirmando seu sangue real e fornecendo as datas de seu reinado e desse evento de sangria. No terceiro painel, vemos K’ab’al Xook entregando ao marido um escudo e uma máscara de jaguar, os atributos de seu nome e com os quais ele impõe seu direito de governar. Essas esculturas extremamente elaboradase detalhadas influenciaram os murais da cidade vizinha, Bonampak, o último florescimento cultural da civilização maia. As pinturas foram concluídas 65 anos mais tarde e se estendem pelas paredes e tetos de três cômodos de um templo modesto. Elas são dedicadas a Escudo Jaguar IV de Yaxchilan, e colocam Bonampak a serviço do rei ancestral da região. As pinturas esbanjam no uso de uma tinta azul luminosa e cara, feita de anil (uma tintura vegetal) e de azurita moída (um mineral caro), e muitos dos olhos pintados foram originalmente incrustados com pedras preciosas. Nas paredes da primeira sala, acontece uma festa. Maias abastados, vestindo túnicas brancas, se enfileiram para levar presentes para a família real, enquanto três jovens com fantasias emplumadas dançam ao som de tambores de casco de tartaruga. Na segunda sala, eclode uma batalha e a luta preenche o cômodo. Na parede em volta da entrada, fica claro quem venceu: os guerreiros maias vencedores, usando mantos de pele de leopardo e cocares, de pé no alto de um lance de escada, enquanto seus prisioneiros estão caídos ou com sangue escorrendo pelos dedos, depois de terem todas as unhas arrancadas. A sala 3 parece ser um retorno à festa, com os três jovens exibindo mais uma vez seus trajes fantásticos, mas perto do teto uma mulher da corte está às voltas com uma sangria, com uma corda atravessada na língua, assim como K’ab’al Xook, talvez para selar a vitória e pagar um tributo aos deuses. Não há luz natural nessas salas e os vãos das portas eram, a princípio, cobertos por cortinas. Na escuridão, você sentiria essas figuras se aglomerarem à sua volta, enquanto se tornava uma delas: pagando tributos, lutando e prestando homenagem aos deuses. O fim da vida em Bonampak deve ter sido bem rápido. As pinturas datam de 791, mas um quarto dos hieróglifos permaneceu inacabado, sugerindo que a obra foi interrompida de repente. É como se a guerra seguinte não os tivesse favorecido e o lugar tivesse sido abandonado e coberto pela floresta tropical por mais de mil anos, até ser redescoberto em 1946. Civilizações diferentes adotaram sistemas de crenças e religiões diferentes, mas todas se voltaram para a arte como meio de glorificar seu deus ou deuses. Na Índia e no sudeste asiático vários deuses eram adorados pelos hindus. A construção de templos nas rochas prosseguiu, e em Ellora, em Maharashtra, na Índia, as cavernas foram dedicadas a diversas divindades hindus, budistas e jainistas. Em Ellora, a caverna hindu mais famosa de forma alguma se parece com uma caverna. Ela foi cortada na rocha, tanto interna quanto externamente e, assim, se destaca do perfil rochoso mais como um templo construído de pedra do que como tendo sido esculpido nela. O templo de Kailasa, obra iniciada em 775, tem mais de trinta metros de altura e é dedicado a Shiva, uma das três divindades hindus (ao lado de Vishnu e Brahma). Os imensos relevos narrativos relatam os ciclos históricos épicos do Mahabharata e de Ramaiana. Shiva se apresenta com diferentes disfarces, destruindo três cidades em um grande relevo na porta de acesso, pisando em um demônio na entrada e aparecendo como um asceta, que se abstém dos prazeres mundanos, no santuário central. As diferentes aparências de Shiva enfatizam sua importância (exatamente como os 59 Trajanos, na coluna do imperador em Roma). No passado, todas as esculturas e os relevos no templo de Kailasa teriam sido pintados, uma festa arrebatadora para os olhos dos devotos. As religiões da Índia se espalharam pelo sudeste asiático por meio das rotas comerciais e propiciaram a construção de imensos complexos de templos. Perto de Yogyakarta, no centro de Java, fica Borobodur, o maior complexo religioso na Indonésia. Construído por volta de 800, ele constituiu um relato visual dos ensinamentos do budismo mahayana, além de ser uma reafirmação do poder da família budista governante, os Shailendras. A base quadrada mede 123 metros em cada lado e foi construída em três camadas para representar as três divisões budistas do universo no caminho para o nirvana. Esculturas em relevo se estendem por dois quilômetros e meio em torno dos oito níveis de terraços, que retratam a vida de Buda e suas encarnações anteriores. Mais de 400 esculturas de Buda sentado estão expostas em nichos ou em postura de oração, olhando ao longe a planície de Kedu abaixo, enquanto outras esculturas adornam os níveis mais elevados, escondidos por estupas (coberturas em formato de sino para objetos religiosos). As figuras esculpidas por toda Borobodur e o templo de Kailasa reforçam e exaltam a crença religiosa. Entretanto, em Constantinopla, crescia uma ruptura entre aqueles que acreditavam que a arte figurativa cristã tinha um papel importante a desempenhar, dando vida à Bíblia e seus personagens, e aqueles que não acreditavam em “ícones”, nas pinturas representativas de Cristo e da Virgem Maria. Esses dois grupos eram conhecidos como os iconófilos e os iconoclastas. Os iconófilos eram amantes da arte, liderados por monges, adoradores de ícones (imagens). Os iconoclastas rejeitavam os ícones e eram liderados por sucessivos imperadores bizantinos. No século VIII, temeroso de que os ídolos estivessem sendo venerados com a mesma importância que Deus, Leão III decretou a proibição das imagens religiosas em todo o império bizantino. Os iconófilos discordaram. Segundo eles, essas imagens permitiam uma compreensão mais profunda de Deus, seriam um canal ou um vínculo entre Deus e o povo. Esses argumentos a favor e contra as imagens religiosas se chocaram por mais de um século. Ao longo desse período, o iconoclasmo destruiu muitos ícones e obras de arte religiosas, com imagens de Cristo em mosaico sendo arrancadas das paredes e substituídas por cruzes simples. Em 843, os iconófilos finalmente acabaram vencendo a contenda e o culto de imagens foi novamente permitido no império bizantino. Em Roma, o papa não aderiu a essa briga em relação às imagens. Ele nomeou um novo imperador, Carlos Magno, para comandar o Sacro Império Romano- Germânico, cortando ainda mais os laços com Constantinopla e o império bizantino. Carlos Magno governava a partir de Aachen, hoje na fronteira ocidental da Alemanha. Nessa região, as imagens religiosas não eram perseguidas pelo iconoclasmo bizantino, pelo contrário. Esculturas de Cristo na cruz, em tamanho natural, eram exibidas acima dos altares. O Crucifixo Gero, de 960-70 aproximadamente, serve de exemplo. É um crucifixo de carvalho encomendado pelo arcebispo Gero para a catedral de Colônia. Cristo está pregado numa cruz simples dourada, com os braços estendidos e presos a uma altura superior à dos ombros, seu corpo pende para baixo, os joelhos fraquejam. Até aquela altura, esculturas da crucificação mostravam Cristo sorridente ao encarar a morte, mas este Cristo sofre: está cabisbaixo, com os olhos fechados e o queixo caído. As veias dos braços estão saltadas pelo esforço e o estômago está projetado. Ainda que a expressão física não seja tão natural como a de uma escultura grega, por exemplo, podemos sentir cada centímetro da dor desse homem. Ele é divino, e o halo nos transmite isso, mas sofre como um humano. O Crucifixo Gero é uma das primeiras imagens esculturais totalmente torneadas nessa escala desde a época clássica tardia, e assinalou o início de uma nova era para a escultura expressiva nas igrejas. Por essa época, outras culturas também criavam arte centrada na morte e na ressurreição. O Great Serpent Mound [Grande Monte da Serpente] no atual estado de Ohio, nos Estados Unidos, é uma gigantesca elevação de terra em formato de serpente. Ele foi o pano de fundo para rituais funerários de nativos americanos e local de encontro para gente vindo de muito longe se reunir, socializar e negociar. Em Bura, no vale do rio Níger, na África, mulheres ceramistas criaram lápides que sobreviveram ao primeiro e segundomilênios. Mais de cem urnas funerárias foram encontradas, com figuras de guerreiros a cavalo e cabeças volumosas com fendas no lugar de olhos, com rostos e frontes amedrontadas. São figuras simbólicas, nada naturais, algo parecido com o que vimos também nos manuscritos com iluminuras e nos vitrais das igrejas cristãs medievais. Ainda que, nessa época, muito da arte se originasse em crenças religiosas ou as reverenciasse, exemplares refinados da arte secular (não religiosa) conseguiram sobreviver. O marfim era usado artisticamente havia séculos à época em que os artistas da corte de Al- Andalus (a Espanha islâmica) começaram a trabalhá-lo, produzindo presentes reais sofisticados no século X. Os artistas de Al-Andalus usavam o marfim das presas de elefantes africanos, importado de Moçambique e do Zimbábue. As preciosas presas eram transportadas por via marítima, costeando a África Ocidental, e eram desembarcadas no Egito, onde eram negociadas no Cairo. O material forte e liso era esculpido, produzindo urnas, porta-joias e estojos para perfumes. Por mais que muitos dos objetos luxuosos de marfim criados nessa época se classifiquem mais na categoria das artes decorativas do que da própria “arte”, a exuberante Pyxis de al-Mughira mostra o nível da habilidade que os escultores de relevo em marfim podiam alcançar. Esculpida em 968, a Pyxis é uma caixa cilíndrica com tampa em forma de domo, feita para guardar frascos de perfume de prata. Foi um presente para al-Mughira, filho do califa (governante), ao completar dezoito anos. Ela foi esculpida na capital, Córdoba, e é extremamente trabalhada, coberta de pequenas figuras e animais, pássaros e folhagens, uma superfície riquíssima em detalhes. O marfim foi cuidadosamente trabalhado com uma broca para que as pequenas figuras se destaquem quase por inteiro. No medalhão central, dois homens a cavalo colhem tâmaras de uma tamareira, para lembrar o dono adolescente de seu lar Omíada ancestral, na Síria dos dias atuais. Em caixas como a Pyxis de al-Mughira predominavam cenas do “ciclo principesco”, uma história sobre o lazer e o entretenimento na corte, usada pela primeira vez na arte islâmica durante o califado Omíada, quando a dinastia Omíada governava o mundo islâmico. Por volta do século X, o califado Omíada era uma lembrança longínqua, pois a dinastia Abássida assumira o controle em 750. Somente em Al-Andalus a dinastia Omíada se fixou no poder. No próximo capítulo, veremos o “ciclo principesco” novamente, mas numa escala muito maior, quando a arte é colocada para trabalhar a serviço de reis e conquistadores. Capítulo 8 - A arte da propaganda O ano é 1077 e o bispo Odo prepara a consagração de sua nova catedral em Bayeux, no norte da França. Para a ocasião, ele encomendou uma tapeçaria, ora em exposição, com seus mais de setenta metros, quase a extensão total da catedral. Onze anos antes, Odo lutara ao lado do meio-irmão Guilherme, na batalha de Hastings. A tapeçaria conta a narrativa épica da batalha de 1066, a luta entre Guilherme, duque da Normandia, e o rei inglês Haroldo, pelo direito de governar a Inglaterra. Quando os franceses venceram, a recompensa de Odo foi o condado inglês de Kent. Ele empregou os recursos do condado para ajudar a financiar a catedral e fez com que as freiras de Kent fizessem o bordado. Dez cores diferentes foram usadas por meio do tingimento dos fios, com raízes de garança para o vermelho e de ísatis, ou pastel, para o azul. Odo percorre a extensão da tapeçaria, lendo o texto em latim que narra o registro normando da traição de Haroldo e seu castigo pelas mãos de Guilherme o Conquistador. Odo observa os homens cortando árvores para construir a frota de Guilherme e a forma como tiram os sapatos e as calças justas para não os molhar ao subirem nos barcos. Ele os vê carregando as cotas de malha para os barcos na França e, depois, os soldados as usando, já a cavalo na Inglaterra, partindo para a batalha. Cada ponto é cuidadosamente arrematado para acompanhar o contorno dos corpos. Tudo está ali: a forma como Haroldo morreu guerreando, com uma flecha atravessada no olho; a forma como os normandos ornavam os barcos com carrancas vikings para mostrar sua ancestralidade; a quantidade de mortos dos dois lados, que escapam da tapeçaria maior para os frisos decorativos nas bordas do tecido. São mais de 600 homens e 200 cavalos. Conforme Odo caminha ao longo do bordado, a batalha é deflagrada, com lanças, espadas e flechas se cruzando, cavalos caindo, soldados morrendo. Todos se movem em sentido diagonal para dar ao bordado um ritmo mais real, e Odo sente como se estivesse, de novo, no campo de batalha. * A Tapeçaria de Bayeux, o nome como hoje se conhece esse bordado, é um poderoso instrumento de propaganda. Ela reconta a batalha direta e exclusivamente pelos olhos normandos. Propaganda significa que existe uma tendenciosidade nas informações que recebemos, em geral, de natureza política. Nesse caso, a batalha foi bordada de forma favorável aos invasores normandos. É também uma obra- prima de informação e construção artística medieval e uma rara sobrevivente secular do século XI. Outro exemplo de arte secular ou laica, desta vez originária do Japão, também mostra como as restrições impostas aos artistas poderiam dar forma ao trabalho final. O conto de Genji, escrito por volta de 1010 por Murasaki Shikibu, é tido como o primeiro romance do mundo. Seus 54 capítulos tratam da vida cotidiana e romanesca na corte japonesa e foi bastante reproduzido. A mais antiga versão ilustrada conhecida reuniu vinte pergaminhos e foi concluída em 1130. Hoje restam dela apenas alguns fragmentos. A caligrafia era escrita por homens, mas a pintura cabia às damas da corte que tinham influência significativa sobre a vida cultural no Japão durante o período Heian. Não há ação nas pinturas, uma vez que, nessa época, a corte desaprovava a expressão de emoções. Em vez disso, os personagens parecem preparados para o próximo passo da história, com apenas indícios mínimos – a cor dos trajes, a colocação de biombos numa sala –, fornecendo pistas ao leitor quanto aos seus sentimentos. Os pergaminhos eram obras de arte intimistas e pessoais. Deviam ser contemplados, sem pressa, sobre uma mesa, sendo um único pergaminho parcialmente desenrolado à frente. À medida que a narrativa se desenvolvia, a parte do pergaminho à direita deveria ser enrolada e a da esquerda desenrolada um pouco mais, prosseguindo a história conforme o desdobramento da cena. As pinturas em O conto de Genji mostram o mundo visto de cima, como se estivéssemos olhando para baixo, vendo tudo acontecer, num estilo que remete à abordagem inovadora à pintura de paisagens vista nas cavernas de Mogao, na China do século VI. A arte japonesa foi extremamente influenciada pela pintura chinesa, ainda que certos períodos de sua história, como o período Heian, expressem uma independência de estilo bem maior. O conto de Genji é repleto de cores, contrastando com as paisagens monocromáticas populares na China dessa época. Além disso, a pintura japonesa era trabalhosa, com vários estágios de aplicação de cor, com contornos reaplicados e objetos destacados com folhas de ouro. Como já vimos, a arte também podia ajudar as religiões a afirmar suas ideologias ou conjunto de crenças. Desde o fim definitivo do iconoclasmo, os ícones ou imagens tinham reafirmado seu lugar como parte integrante do cristianismo oriental. Acreditava-se que os ícones originavam-se de antigos retratos de Cristo e da Virgem Maria feitos pelos próprios evangelistas. Desde então, eles vinham sendo repetidamente copiados, com o emprego de métodos tradicionais, cada versão atemporal supostamente recriando a verdadeira e original. Com o passar do tempo, isso levou à estilização das figuras e ao achatamento dos corpos, parecido com os santos dos Evangelhos de Lindisfarne. Panos de fundo emfolhas de ouro, semelhantes aos usados nos mosaicos religiosos, reduziam ainda mais qualquer noção de naturalismo, fazendo os ícones cintilar com luz divinal. Eles também asseguravam que as figuras sagradas ficassem à mostra, acessíveis aos frequentadores da igreja, que podiam tocá-las e beijá-las como forma de se conectar com o Cristo ou a Virgem Maria. Os ícones também podiam ser carregados em procissões pelas ruas para angariar fundos para a igreja. A Virgem de Vladimir, datada de 1131, é a pintura icônica mais famosa que existe. É uma representação da Virgem e o Menino Jesus, e os fiéis acreditam que ela é baseada na versão original de São Lucas. Os ícones mais antigos costumavam ser pintados com encáustica, como os retratos funerários romanos, mas a Virgem de Vladimir foi pintada com têmpera. A têmpera é obtida misturando-se pigmento com gema de ovo para criar uma tinta de secagem rápida. Ela era usada junto com a encáustica, de secagem mais lenta, na época clássica, mas nos tempos de então quase todos os painéis eram pintados com têmpera. Não faz sentido que o artista desconhecido da Virgem de Vladimir estivesse tentando criar uma imagem realista de uma mulher com o filho. O Cristo tem uma cabeça desproporcionalmente pequena e o corpo em bloco, e ambos usam uma roupagem extremamente estilizada. Mesmo assim, há uma ternura entre eles, as maçãs do rosto se tocam, e a expressão tristonha da Virgem é um prenúncio do que está por vir para seu único filho. Esse ícone funciona como um fio condutor dessa história, um ponto de entrada, e era venerado por essa razão. A pintura foi feita em Constantinopla e oferecida à cidade de Kiev, então na Rússia, um presente tanto religioso quanto político para selar a escolha da Rússia pelo Cristianismo Ortodoxo Oriental como religião estatal. O ícone logo foi transferido para a cidade de Vladimir e objeto de muitas cópias posteriores. Os artistas bizantinos também foram contratados pela Santa Sofia, a catedral de Kiev, para criar mosaicos, assim como trabalharam também na basílica de Torcello, em Veneza. Arte, religião e poder se reuniam na excelência desses artistas e nas ambições da Igreja Ortodoxa que, por fim e decididamente, se separou do papa e da Igreja Católica no “Grande Cisma” em 1053. Enquanto o cristianismo ortodoxo se afirmava na Rússia, o islamismo ampliou seu alcance por todo o sul do Mediterrâneo, com cidades islâmicas importantes estabelecidas no Egito, no Magreb (norte da África), na Espanha e na Sicília. Mas os normandos lutaram para retomar a Sicília e o sul da Itália do jugo islâmico. Eles não rejeitaram as tradições islâmicas, mas as absorveram com sua cultura de inclusão. A Capela Palatina, construída pelo rei normando Rogério II, em Palermo, na Sicília, é um exemplo marcante disso. A catedral começou a ser construída em 1132 e a obra levou somente oito anos. Mosaicos de ouro de São João e dos pais fundadores da igreja foram acrescentados às paredes enquanto mil pinturas de Rogério e sua família cobriam o teto. O que torna esse prédio surpreendente e único é que o teto é feito de muqarnas islâmicas, ou seja, formas e facetas de madeira em formato de favo de mel. É o teto islâmico mais complexo remanescente desse período. Em uma catedral dedicada a Cristo, e alardeando o poder dos normandos, Rogério II escolheu fundir a arquitetura italiana com os luxuosos mosaicos bizantinos e arrematou com um tour de force islâmico. O teto é muito elevado. Se usarmos binóculos possantes só distinguiremos pinturas isoladas de Rogério e sua corte jogando xadrez ou caçando, em duelos com lanças e lutando, participando de danças e procissões. As figuras pintadas que recobrem o teto de madeira se parecem com aquelas dos vitrais cristãos e das iluminuras dos manuscritos, e ainda com a arte secular islâmica, com grandes olhos amendoados e corpos estilizados. As diversas atividades realizadas têm origem no “ciclo principesco” islâmico, como visto na Pyxis de al- Mughira, na Espanha. Rogério foi astuto ao empregar esse tema islâmico bem conhecido em sua catedral. O teto pintado existe para mostrar a integração de diferentes culturas na Sicília normanda, onde o cristianismo era a religião oficial, mas o árabe era o idioma da corte. A fusão de temas e estilos sugere que Rogério integrou todas as culturas que, agora, exaltam seu direito e poder para governar. Os mosaicos cristãos sustentam o teto islâmico, como se o cristianismo fosse forte o suficiente para reconhecer e apoiar a coexistência com o islamismo. Figuras religiosas isoladas também empregaram a arte para expressar ideias novas e persuasivas. Monges e freiras cristãs copiavam infindáveis manuscritos bíblicos com iluminuras para igrejas, catedrais e bibliotecas de patronos ricos. Por volta do século XII, produziam-se livros com iluminuras que expressavam ideias religiosas entrelaçadas com novos pensamentos sobre o cosmos e o misticismo. Um exemplo marcante é Scivias, de Hildegard de Bingen. Concluído em 1152, é um relato ilustrado de suas 26 visões. Hildegard era uma monja beneditina influente do convento de Rupertsberg, na Alemanha, fundado por ela. Hildegard descendia de família nobre e era muito bem relacionada. Ela se correspondia com o rei da Inglaterra e a imperatriz da Grécia. O próprio papa afirmara que as visões que ela tivera desde a infância eram genuínas e divinas. Em Scivias, ela concebeu o cristianismo por meio do misticismo, explorando o poder do feminino em suas pinturas de mulheres aladas gigantescas representando Eclésia, a igreja-mãe, e Sinagoga, a sinagoga. Ela se via como uma profetisa, comunicando-se através de suas visões. As pinturas de Hildegard não seguiam o método egípcio de pintura da figura humana, numa junção de elementos-padrão (um olho, um pé) com base em um conhecimento prévio da forma humana. Tampouco seguiam os gregos, que estudavam a natureza de perto, pintando cuidadosamente o que era visto. Em vez disso, ela pintava o que sentia e vivenciava, criando uma versão do reino de Deus sobrenatural, sem fundamento no mundo concreto. As formas não tinham de ser realistas, contanto que transmitissem o sentimento que ela desejava expressar. Em Scivias, Hildegard representou suas visões sobrenaturais descendo e penetrando em sua mente como tentáculos de fogo vindos do céu. Pintou-se com sua placa de cera, sentada na igreja. As visões a penetravam e ela as desenhava instintivamente, ainda que guiada pela mão de Deus. Seu escriba, Volmar, está perto dela, anotando suas palavras para compor o texto correspondente. Ainda existem 35 versões de Scivias e Hildegard foi uma força poderosa dentro da igreja, escrevendo e ilustrando diversos livros e mais de sessenta hinos. A obra Scivias foi copiada e distribuída, mas o acesso a ela foi necessariamente limitado, pois cada edição era trabalhosa, toda copiada à mão. Na outra ponta da escala estavam as novas catedrais do papa, gigantescos marcos públicos do poder firmados pela Igreja Católica. Capítulo 9 - Canteiros, moai e materiais É raiar do dia no norte da França, no ano 1219. Vinte canteiros se reúnem em seu alojamento, um abrigo improvisado onde comem e conservam uma fogueira acesa para mantê-los aquecidos antes de iniciarem os trabalhos. Eles são parte de uma equipe de 200 homens vigorosos que trabalham na obra da catedral de Chartres. É um trabalho de reconstrução no novo estilo, visto pela primeira vez na igreja do abade Suger, em Saint-Denis, a 80 quilômetros dali. Foram mais de 25 anos de obra e ela está quase acabada. No interior da catedral, diferentes equipes instalam janelas imensas ao longo da nave. Eles criam imagens com pedaços de vidro multicolorido, o azul para o reino celeste de Deus e o vermelho para o sangue de Cristo. A luz que se insinua pelas janelas concluídas dá um tom arroxeado ao interior e ilumina as histórias representadas, como a vida dos santos, deCristo, da Virgem Maria. Outros operários pintam as paredes internas de amarelo-girassol, bem vibrante, enchendo a catedral de luminosidade apesar do dia nublado. Os canteiros trabalham no portal norte, talhando esculturas para decorar a entrada ornamentada. No total, serão 1.800 esculturas na catedral, algumas tão elevadas que seus autores não conseguem mais avistá-las. Essas não foram esculpidas para olhos humanos, mas para Deus, e contribuem para o prédio como um todo, como uma afirmação do poder e da presença do cristianismo. Os criadores das esculturas para a catedral foram homenageados em uma das janelas. Na parte inferior da janela em honra a São Chéron, vemos os canteiros, com martelo e cinzel na mão, cortando a pedra e trabalhando nas esculturas. * Se a arte sacra do século XII facilitava a transmissão do poder simbólico e sobrenatural de Deus e seu conjunto de santos e anjos, então o século XIII presenciou um retorno sistemático à representação da carne e do sangue, recolocando as figuras de volta ao mundo real. Deus não deveria mais ser temido, mas compreendido. A catedral de Chartres é um dos melhores exemplos do novo estilo gótico, um estilo que via a escultura, o vitral e a arquitetura, todos trabalhando juntos para criar um edifício único e destacado para celebrar a glória de Deus. Essas imensas igrejas cheias de luz trocavam a arquitetura pesada de pedra de seus antecessores românicos em favor de paredes de vidro e arcos pontiagudos que direcionavam os olhos para o céu. A escultura gótica se espalhou pela Europa na primeira metade do século XIII, ocupando catedrais góticas ainda mais altas. Esculturas de santos e profetas cada vez maiores ganharam vida à medida que os canteiros as esculpiam cada vez mais livres dos pilares ou dos painéis que as sustentavam, conforme aparecem nos portais de Chartres. Nem todas as esculturas de Chartres eram de figuras divinas. Em torno da borda externa do portal norte, há doze esculturas de mulheres. Seis delas, enfileiradas em cada lado do arco de entrada, mostram mulheres lendo livros de oração e lavando, penteando e enrolando lã. As esculturas das mulheres trabalhando são especialmente vigorosas, pois é possível perceber o esforço necessário para transformar a lã em fios. Uma mulher, sentada com as pernas separadas para se equilibrar, se empenha para passar os pentes pela lã, o corpo se contorcendo com o esforço. Essas mulheres representam o rebanho de Deus e estão ali trabalhando com devoção silenciosa. Parecem “saltar para fora” da arquitetura, desafiando a gravidade conforme se curvam em volta do arco pontiagudo da entrada. Não conhecemos o autor dessas esculturas porque a produção da arte gótica raramente se referia a um único indivíduo e era executada por um imenso contingente anônimo. Chartres é uma obra-prima do estilo gótico, conservando grande parte de suas esculturas e vitrais originais. Era fundamental que os artistas contassem com os melhores materiais para trabalhar. Na Europa, a arte estava diretamente a serviço de Deus e os materiais mais refinados eram trazidos para criá-la: o mármore, das pedreiras italianas, o marfim e o ouro, do sul e da África Ocidental. O ouro era usado havia muito tempo na Europa e no Oriente Médio nos mosaicos bizantinos e penetrou na Europa por meio dos mercados de troca no Egito, abastecidos por caravanas de camelos que cruzavam o Saara ou pelo mar, vindo da Tanzânia e de Moçambique. O ouro era negociado pelas nações africanas em troca de artigos de consumo básico (sal) e de luxo (contas de vidro), mas também era usado por elas nas próprias criações artísticas. Neste capítulo, veremos como as diferentes sociedades forneciam internamente e importavam materiais para seus artistas. O ouro era valorizado no sul da África, mas era negociado no oeste africano pelo cobre, metal mais robusto. Em Rapa Nui, na Polinésia, uma pedra de coloração diferente era extraída em dois locais em pontos opostos da ilha para criar figuras totêmicas colossais. No Oriente Médio, ouro e pigmentos caros eram usados nas pinturas dos manuscritos, enquanto na China menos era mais, e o branco da folha usada pelo artista era tão importante quanto o desenho feito sobre ela. Mapungubwe, perto da atual fronteira entre a África do Sul, o Zimbábue e Botsuana, era uma cidade extremamente rica no século XIII. À época em que Chartres era erguida em calcário, os artistas de Mapungubwe usavam ouro para criar esculturas de animais muito valorizados como o boi, o gato selvagem e o rinoceronte. Cada animal consiste em um núcleo de madeira revestido com folhas de ouro marteladas e pregadas. As esculturas eram enterradas nos túmulos reais junto a coroas e cetros de ouro, expressando o poder e a riqueza do governante. Em Ifé, na África Ocidental, a capital espiritual do povo iorubá e hoje na Nigéria, os artistas preferiam trabalhar com barro, latão e cobre. Eles usavam as rotas de comércio que cruzavam o Saara para vender o ouro obtido localmente em troca de metais mais fortes do norte da África para suas esculturas. Supõe-se que o líder espiritual da cidade, Ooni, tenha sido retratado em muitas das cabeças de latão datadas mais ou menos da mesma época dos animais de Mapungubwe. Várias dessas cabeças têm cicatrizes ritualistas, com linhas verticais estreitas seguindo o contorno da fronte, dos olhos e das maçãs do rosto, até a ponte nasal e sob os lábios. As linhas direcionam nossos olhos para baixo até a boca do Ooni, chamando a atenção para os lábios simétricos e carnudos. O olhar do Ooni é sereno e firme. Uma coroa ornamentada, a princípio pintada de vermelho, repousa bem no alto da fronte de uma escultura. Outros exemplares exibem fileiras de orifícios em volta da raiz dos cabelos sugerindo talvez o acréscimo de contas representando cabelos. Algumas cabeças apresentam orifícios em intervalos regulares contornando a boca e o queixo, talvez para indicar uma barba frisada ou um véu cobrindo a boca do líder divino. A milhares de quilômetros da África Ocidental, em uma ilha polinésia pequena e distante chamada Rapa Nui (também conhecida como ilha de Páscoa), outra cultura produzia esculturas de ancestrais e líderes importantes. Não eram esculturas delicadas, moldadas em metal, mas imensas figuras em blocos de pedra, chamadas moai, extraídas de pedreiras vulcânicas e “encaminhadas” pelas encostas até os vários destinos litorâneos com o uso de cordas para levá-las de um lado para o outro. As figuras de pedra gigantescas, algumas medindo mais de dez metros e pesando mais de oitenta toneladas, eram içadas até as plataformas especialmente construídas. De costas para o oceano, esses gigantes de pedra cinzenta miravam o interior. Alguns foram rematados com imensos topetes de pedra vermelha extraída de uma pedreira diferente e acrescentados depois da estátua pronta. Mesmo tendo sido criadas há mais de seis séculos, as estátuas surpreendem pela consistência do estilo, com queixos pronunciados e bem marcados, olhos encovados, lóbulos da orelha compridos e narizes avantajados. Os corpos são bastante simplificados com mamilos e umbigos salientes, braços entalhados e colados à lateral do corpo e mãos pousadas sob a barriga. No total, são 125 moai ao longo da costa de Rapa Nui, mas há outras centenas deles caídos no local da pedreira e nas proximidades, em Rano Raraku, somando quase 900 ao todo. Olhos brancos feitos de coral com pupilas pretas de obsidiana foram acrescentados para dar-lhes mais vida, talvez para cerimônias importantes. Se as pessoas se reunissem de frente para as figuras, teriam a experiência de ver os moai emoldurados, tendo a rebentação e o mar encapelado como pano de fundo. É muito provável que os primeiros habitantes da ilha tenham chegado de barco, vindos da América do Sul, mil anos antes. Atravessaram a imensidão do oceano, levando suas tradições e conhecimentos sobre escultura monumentalem pedra. Eram muito caros os materiais usados pelos pintores de iluminuras de livros em centros específicos nas cidades de Mossul e Bagdá, no Iraque de hoje. Até a destruição de Bagdá pelos mongóis em 1258, as oficinas islâmicas produziam famosos manuscritos com iluminuras de textos seculares, incluindo o Maqamah (Assembleias). Essa coleção de histórias humorísticas, escritas por Abu Muhammad al Qasim ibn Ali al-Hariri no século XI, recontava as histórias do desonesto Abu Zayd. A versão ilustrada mais famosa é a de Yahya ibn Mahmud al-Wasiti e data de 1237. Al-Wasiti trabalhava sobre pergaminho feito de pele de animal, usando cores vivas e folhas de ouro caríssimas. Noventa e nove pinturas (algumas tão largas a ponto de ocuparem duas páginas) davam vida às histórias. Vemos galinhas no telhado da mesquita durante a oração e um camelo pronto para morder, com os dentes à mostra. Figuras se amontoam numa sombra, bebendo e ouvindo música, enquanto outras se aglomeram numa ponte para assistir ao enterro de uma vítima da peste. Há mercados de escravos, acampamentos e procissões de peregrinos em direção a Meca. Há lutas, bate-bocas e brigas conjugais. É pela atenção dada ao detalhe e às figuras islâmicas contemporâneas cheias de personalidade que o livro é tão apreciado hoje, mas, naquela época, os materiais caros e o número de ilustrações também o teriam limitado como um livro especialmente luxuoso. Mongóis da Mongólia invadiram o Oriente Médio e a China, destruindo grande parte do que viam pela frente, arrasando completamente cidades como Bagdá e matando milhares de pessoas. Às vezes, os artistas eram poupados do genocídio. Os de Bagdá, por exemplo, foram forçados a se mudar para a Mongólia para trabalhar para o novo senhor. A China sucumbiu ao domínio mongol na década de 1270. A pintura floresceu na nova corte e os artistas chineses foram bem aceitos, mas, no princípio, o gosto mongol era por retratos coloridos e esculturas enfeitadas, em vez das paisagens monocromáticas, tranquilas e contemplativas dos literati chineses. Os literati já existiam havia mil anos à época da invasão mongol, mas ironicamente foi durante o reinado mongol que esse movimento passou a dominar a pintura chinesa. Os literati altamente conceituados eram muito instruídos e com frequência trabalhavam como funcionários do governo. No tempo livre, se empenhavam para sobressair na poesia, na caligrafia e na pintura. Talvez por limitação de tempo, certos literati dedicavam a vida a pintar apenas um motivo em particular, como ameixeiras em floração, pássaros regionais ou touceiras de bambu. De início, muitos literati perderam a posição na corte sob o regime mongol. Eles se recolheram em casas no campo, onde podiam pintar sem interrupções. Um desses artistas foi Zhao Mengfu (1254-1322), que trabalhou em pinturas de paisagens em sua cidade natal, Wuxing (hoje Huzhou) por dez anos após a conquista mongol. Em 1286, porém, Zhao foi persuadido a juntar-se à administração Yuan (mongol) como funcionário do alto escalão e, a partir de então, precisava contrabalançar seus compromissos oficiais com a paixão pela pintura e a poesia. Ele manteve amizade com artistas e estudiosos e montou uma coleção de arte própria. Talvez Zhao tenha até conversado sobre arte com Marco Polo, o explorador e comerciante italiano que esteve na corte mongol de Kublai Khan, à mesma época que Zhao, por quatro anos. No ano em que retornou à corte, Zhao se casou pela segunda vez. A nova esposa era Guan Daosheng (1262- 1319), artista bem-sucedida que contava com o apoio e o mecenato tanto de homens quanto de mulheres na corte mongol. O casal de artistas costumava trabalhar em conjunto na poesia, na caligrafia e nas pinturas, e Guan era bem conhecida por suas paisagens, como as Touceiras de bambu sob a neblina e a chuva, de 1308. Nessa pintura em pergaminho, moitas rendadas de bambu brotam ao longo de um rio. Um nevoeiro baixo cobre metade dos bambus, efeito criado com uma faixa do tecido em branco para sugerir uma neblina densa pairando sobre o rio. Guan inventou a tradição de pintar bambus às margens dos rios, e a evocação livre de touceiras de bambu, água e condições atmosféricas em tinta preta se descortinava à medida que o leitor desenrolava lentamente o pergaminho da direita para a esquerda. Os literati carregavam de significado suas delicadas paisagens monocromáticas, e o uso repetido do bambu como principal elemento por Guan era visto como a incorporação do desejo de Confúcio pela resistência, do curvar sem quebrar, especialmente durante a dominação desafiadora dos invasores mongóis. O estilo de Guan permaneceu influente até o século XX. A arte chinesa era profundamente enraizada na tradição e até bem pouco tempo depositava-se grande valor na continuação dos estilos e dos temas. Na Europa, o simbolismo medieval predominara por quase mil anos. Mas tudo isso estava em vias de mudar conforme uma geração de artistas fazia um giro de 360° para voltar ao naturalismo da Grécia e da Roma clássicas. Capítulo 10 - O berço do Renascimento Ano de 1305, em Pádua, na Itália, e Giotto mostra a seu assistente onde ele deve espalhar o gesso fresco do dia na parede da capela. Pretende pintá-lo enquanto ainda está úmido, empregando uma técnica chamada buon fresco, na qual as cores se fundem no gesso, formando uma pintura mural luminosa. É um desafio e tanto saber exatamente a quantidade de gesso a ser aplicada. Ele precisa pintar todo o trecho demarcado no mesmo dia, ou o gesso secará sem que as cores sejam absorvidas, conservando-se na superfície. Mas ele sabe o que está fazendo, pois há mais de dois anos vinha pintando afrescos na capela privativa de Enrico Scrovegni. Logo a capela estará terminada, com paredes de afrescos e o teto cintilando com estrelas de ouro em um céu de azul profundo. Enrico, o mecenas de Giotto, herdou a fortuna do pai, Reginaldo, que era agiota. Segundo a igreja, o ato de emprestar dinheiro a juros é um pecado mortal, e Enrico quer “dormir em paz”. Grande parte de sua herança está empenhada nessa capela suntuosa em glória a Deus, e ele solicitou a Giotto que incluísse um retrato dele, Enrico, nos afrescos. No Juízo Final, que hoje ocupa a parede de trás, Enrico apresenta um modelo da capela à Virgem Maria, enquanto conduz os virtuosos ao paraíso. Enrico pediu também a Giotto que pintasse seu pai no inferno, pendurado numa forca. Seu intento é deixar claro que está do lado dos anjos, ao contrário de Reginaldo. Giotto toma distância para contemplar sua obra. Um imenso andaime de madeira ocupa grande parte da capela, mas ele ainda consegue ver os afrescos além dele, recobrindo as paredes. Assim como o ambicioso Juízo Final, ele pintou cenas da vida da Virgem Maria e de Cristo. Ainda que sejam cenas bíblicas, Giotto as registrou na Pádua do século XIV e tentou captar as expressões de todos como pessoas vivas, respirando e sentindo. * Giotto (Giotto di Bondone, 1266/76-1337) viajou por toda a Itália para realizar sua obra, pintando retábulos e afrescos em Nápoles, Roma, Pádua, Assis e Florença, sua terra natal. Nessa época, a Itália não era um país unificado, mas uma série de cidades-Estados e reinos, cada um com leis próprias. Artistas como Giotto tinham que se adequar a elas, estabelecendo oficinas temporárias e empregando artistas locais para ajudá-los no cumprimento de cada obra contratada. Giotto aprendera a fazê-lo com Cimabue (Cenni di Pepo, por volta de 1240-1302), artista influente, que o treinara na adolescência e fora o responsável por levá-lo para Roma pela primeira vez. Em Roma, Giotto e Cimabaue viram pinturas de Pietro Cavallini (cerca de 1250-1330), um dos primeiros defensores da volta ao estudo do corpo humano com base na vida real, sem copiá-lo das pinturas dos ícones ou dos manuscritos com iluminuras. Por que isso? Na Itália, as pessoas começavam a ser influenciadas por um novoramo da filosofia, o humanismo. Os humanistas valorizavam a arte e a filosofia da Grécia e da Roma antigas acima de qualquer outra coisa produzida posteriormente. Eles também acreditavam na responsabilidade do homem por viver uma boa vida na terra, em vez de vivê-la no paraíso depois. Saíram em busca de textos latinos e gregos antigos que haviam sobrevivido em mosteiros distantes e sentavam-se até altas horas discutindo os méritos de filósofos gregos como Platão. O humanismo era popular nos círculos intelectuais nas cidades italianas e, agora, estudiosos seculares superavam os monges como os principais pensadores de sua época. Sob a influência do humanismo, os artistas começaram a se distanciar da representação estilizada das figuras, conforme vimos nas pinturas medievais como o ícone da Virgem de Vladimir, e retomaram o estudo da arte clássica e do corpo humano real. Por exemplo, o Juízo Final de Cavallini, na igreja de Santa Cecília (parcialmente remanescente nos dias atuais), inclui figuras trajando túnicas que recobrem os joelhos e os antebraços, sugerindo corpos de verdade por baixo. São corpos proporcionais com rostos expressivos e verossímeis. Esse afresco do final do século XIII contém vários elementos em comum com o Juízo Final de Giotto e pode tê-lo influenciado. No entanto, no ciclo das histórias que se revelam por toda a Capela Scrovegni, Giotto deu um passo à frente, criando cenas cheias de dramaticidade, de fato dando vida à Bíblia. Braços esticados, bocas de admiração, lágrimas caindo. Na Lamentação, vivenciamos a tristeza das mulheres segurando o Cristo morto pelos ombros curvados, mãos postas e cabeças baixas. O tecido cai sobre os corpos, obedecendo à gravidade, revelando costas curvadas pelo luto e braços torneados. É na obra de Cavallini e Giotto que vemos a retomada do naturalismo clássico na Itália. Desde o século XVI, biógrafos como Giorgio Vasari enalteceram esses pintores por suas “observações das coisas da Natureza”. Vasari destacou Giotto pela abertura “dos portões da verdade”. Esses pintores eram influenciados pelo mundo à sua volta, visto por um olhar humanista, e não pela arte religiosa medieval de seus antecessores. Na Itália, muitos dos artistas de destaque da época trabalhavam para a principal igreja da ordem franciscana, São Francisco de Assis. Cimabue, Giotto e Cavallini têm obras criadas ali, assim como Simone Martini (1284-1344) e a família Lorenzetti. A oficina de Giotto pintou um ciclo da vida de Cristo, reutilizando em certos lugares cenas da Capela Scrovegni. Artistas bem- sucedidos como Giotto mantinham oficinas para fazer frente à demanda. Provavelmente Giotto criou o desenho original para o ciclo de afrescos, mas grande parte teria sido pintada por assistentes, desde crianças aprendizes e jovens artistas ambiciosos até mãos mais maduras. Talvez ele só voltasse para acrescentar rostos e detalhes de acabamento. Na igreja, o excepcional ciclo de São Francisco inclui 28 cenas da vida do santo. O foco é a narração da história, e as figuras realistas parecem com as de Cavallini e Giotto, embora não se saiba ao certo quem as pintou. Essas pinturas foram concebidas para uma congregação para efeito de estudo e, como na Capela Scrovegni de Giotto, elas falavam diretamente com a plateia, refletindo suas expressões e fazendo-a se sentir parte da ação. Numa cena de Natal, com São Francisco abençoando um bebê, nós, como espectadores, ficamos de pé dentro do coro junto a uma multidão para testemunhar monges franciscanos cantando para celebrar a natividade. Para as mulheres peregrinas da congregação, essa deve ter sido uma experiência inusitada porque sua presença não era admitida na área do coro. Fora da Itália, outros artistas também experimentaram o naturalismo. Em Constantinopla (Istambul), na Igreja Ortodoxa Grega de São Salvador, há uma cena da ressurreição que, em cada detalhe, é tão dramática quanto o Juízo Final de Giotto. A pintura Anastasis, de autor desconhecido e criada por volta da mesma época, mostra um Cristo descalço e vigoroso puxando Adão e Eva de seus sepulcros para se juntar a Ele nos céus. Derrotado, Satanás está amarrado sob os pés do Cristo, próximo às portas quebradas do inferno. O afresco ocupa metade do domo, acima de mosaicos bizantinos de santos, que parecem imóveis, como os ícones, em suas túnicas em cores sólidas, sem movimento. Esse encontro explosivo de estilos contrastantes ajuda a visualizar o tamanho da mudança mental e visual ora em andamento. Os primeiríssimos exemplares dessa nova e emocionante expressão de naturalismo seriam encontrados na Itália. Ali, formara-se um clima especial graças ao interesse crescente pelo humanismo, à grande riqueza e à rivalidade acirrada. Cidades, igrejas e mecenas competiam entre si para atrair os melhores artistas e encomendar as obras de arte mais impressionantes. Essas obras se concentravam cada vez mais no mundo natural e expressavam um interesse renovado por tudo o que fosse clássico, dos mitos gregos à crescente verossimilhança das esculturas do corpo humano. Para analisarmos como esse interesse renovado pelo mundo natural levou ao Renascimento (a “renascença” da arte), teremos que, por ora, seguir por um caminho específico. Minha intenção é mostrar o alcance e a envergadura do Renascimento porque ele durou mais de 200 anos e continua a influenciar artistas pelo mundo inteiro na atualidade. Mas, para fazê-lo, temos de suspender nossa visão inclusiva de mundo por alguns capítulos. Notoriamente, por muito tempo essa visão restrita não foi alvo de maior preocupação: a história da arte ocidental simplesmente ignorou a arte para além da Europa. Historiadores da arte muitas vezes nem chegaram a considerá-la como arte. Hoje, no século XXI, a arte do mundo inteiro, expressa por uma vasta gama de realizadores, é defendida e respeitada. Neste livro, já vimos diversos exemplos e há muitos outros à frente. Em alguns dos capítulos seguintes, porém, vamos conhecer os artistas e os mecenas responsáveis pelo Renascimento europeu, um florescimento sem paralelo das artes nos séculos XIV, XV e XVI. Cientistas, filósofos, matemáticos e artistas criaram uma sociedade de elevada curiosidade e inventividade, introduzindo o estudo da perspectiva e da ótica, e uma compreensão científica da anatomia, reintroduzindo o desenho a partir de modelos vivos e naturais. O legado permanente do Renascimento, incluindo o Renascimento nórdico na Alemanha, na Bélgica e na Holanda, é a arte criada nesse período e sua influência posterior sobre a formação e a prática da arte ocidental que durou 400 anos. O início do Renascimento trouxe uma novidade para a arte sacra: o retábulo.** Ele foi criado quando os padres começaram a oficiar parte da missa de costas para a congregação. Para ajudar na concentração, grandes pinturas distribuídas em painéis eram colocadas sobre o altar para atrair os olhares dos fiéis. Um exemplar de um dos primeiros é a Maestà, de Duccio (Duccio di Buoninsegna, em atividade entre 1278-1319), pintura majestosa da Virgem Maria no trono, com o Cristo no colo, cercada por santos e anjos, datada de 1308-1311. Ainda que há muito tempo a obra tenha sido desmembrada, a Maestà já compreendeu setenta painéis incríveis e ocupou o altar central da catedral de Siena, na Itália. Duccio fora discípulo de Cimabue, como Giotto. Na Maestà, ele pintou numerosos espectadores em torno da Virgem e do Cristo, elevados em diferentes níveis como se estivessem sobre bancos para uma foto escolar. Há ali uma quantidade avassaladora de ouro e também uma profusão de detalhes realistas. São João Batista veste uma túnica de lã esfarrapada e Santa Catarina usa véu e manto de brocado trabalhado. As figuras de Duccio não chegam a ter o peso físico que Giotto conferia às suas, e a Virgem de Duccio ainda apresenta as características exageradas da pintura icônica bizantina, de nariz compridoe olhos amendoados. No entanto, ela é bem mais realista do que a Virgem de autoria do mestre Cimabue, que, em comparação, parece muito bidimensional e estilizada. O corpo dirigente da catedral fez Duccio assinar um contrato para a obra da Maestà. A catedral se comprometia a suprir os materiais, inclusive a imensa quantidade de ouro necessária. De sua parte, Duccio não deveria assumir nenhuma outra encomenda e somente ele e sua oficina teriam permissão para trabalhar na pintura. Vinte anos mais tarde, a catedral de Siena passou por grandes obras e novos artistas foram contratados para criar quatro retábulos adicionais para ladear a Maestà de Duccio. Cada um deles foi dedicado a um dos santos padroeiros da cidade, e Simone Martini recebeu a incumbência de pintar o retábulo de Santo Ansano. Martini mantinha a própria oficina e colaborou nesse retábulo com seu cunhado, Lippo Memmi (em torno de 1291-1356). Martini escolheu representar o momento da concepção de Cristo, conhecido como Anunciação, em que o anjo Gabriel desce dos céus para dar a boa-nova a Maria sobre sua gravidez divina. Maria recua assustada com aquela intrusão. A julgar pela túnica esvoaçante de Gabriel, ele chegara naquele instante. Suas palavras estão talhadas no fundo em folha de ouro e se estendem de sua boca até o halo resplandecente da Virgem. Santo Ansano observa, de um painel lateral, segurando a bandeira branca e preta da cidade de Siena. O estilo de Martini é diferente de tudo o que vimos na pintura até agora. Suas figuras são alongadas, com ombros estreitos e rostos pálidos. Parecem esculturas góticas esguias, e uma atmosfera gótica predomina nesse retábulo. Martini terminou trabalhando para a corte de fala francesa do rei de Nápoles, no sul da Itália e, por fim, partiu de mudança para a França. Por meio de artistas como Martini, o estilo gótico, que vimos primeiro na Catedral de Chartres, se traduziu em pintura e hoje é conhecido como gótico internacional. Esse estilo pomposo usava cores vivas e folhas de ouro e era popular nas cortes reais. As pinturas do estilo gótico internacional eram incrivelmente detalhadas, mas era comum as cenas não serem realistas em termos de escala. O estilo floresceu no norte da Europa, conforme veremos no próximo capítulo. ** Painel de madeira ou mármore atrás ou acima do altar. (N.T.) Capítulo 11 - Luzes do Norte Ricardo II, rei da Inglaterra, adentra a catedral da Abadia de Westminster, em Londres, em um dia do inverno de 1397. Ele segue em direção à pequenina capela bem ao fundo da nave. Nela, o espaço exíguo permite a entrada de uma só pessoa por vez para rezar, sendo, portanto, muito particular. Ele passa pelas capelas de Santo Edmundo, Santo Eduardo o Confessor e São João Batista antes de chegar à sua. No interior, o novo retábulo resplandece sob a luz de velas. Não é enorme, mas do tamanho de um livro grande, e é articulado no meio. O rei sorri ao se aproximar e se identificar na pintura, ajoelhado em total devoção, em frente a três santos, aqueles das capelas pelas quais ele acaba de passar. Na pintura, ele oferece suas orações à Virgem e ao Menino Jesus. Eles ocupam o painel frontal, sofisticadamente idealizados, cercados por anjos delicados, com imensas asas emplumadas. Esse díptico (obra em painel duplo) foi extremamente dispendioso, moldado em folhas de ouro e tinta ultramarina cara, cada figura pintada com tamanha delicadeza que ele consegue ver fios ondulados da barba grisalha de Santo Eduardo. Os anjos andam sobre um tapete de flores e todos usam o emblema real, um cervo branco e sua magnífica galhada. Ele usa o mesmo emblema do cervo branco sobre o manto de fios de ouro, e um colar pesado de vagens de giesta, assim como os anjos. Essa simbologia o liga à França, onde as vagens de giesta fazem parte da libré do rei francês, exatamente como o cervo branco faz parte da sua. Ricardo nascera na França, empregou um artista francês para pintar o retábulo, e a França era a terra natal de sua jovem noiva, portanto ele se sente feliz com a inclusão das vagens de giesta. * Essa pintura, de autor anônimo, data mais ou menos de 1395 e é conhecida como o Díptico Wilton. É um exemplar magnífico do gótico internacional. Os rostos elegantes e os dedos alongados de Ricardo e da Virgem relembram a Anunciação de Simone Martini, e a atenção redobrada aos detalhes e as matérias-primas caras tornam a obra um precursor do luxuoso Livro das horas, produzido para o duque de Berry pelos irmãos Limbourg. Os irmãos Limbourg, a saber, Pol, Herman e Jean de Limbourg, usaram o melhor azul ultramarino ao iniciarem o Livro das horas, ricamente decorado, por volta de 1410. Ele foi pintado sobre o mais refinado vélum branco, cortado da parte central do couro de novilho para assegurar a inexistência de rugas, e é do tamanho aproximado de um livro moderno de capa dura. O livro contém doze páginas com os doze meses do ano, repletas de detalhes da vida na corte. Um livro inteiro de preces se segue a essas páginas de calendário, mas são elas que fascinam os espectadores de hoje. As cenas são suntuosas e decorativas, longe de serem realistas. As figuras variam significativamente em forma e proporção, bem parecidas com as dos manuscritos iluminados medievais. No entanto, certos aspectos dos meses são extremamente detalhados, até os pelos dos porcos na pastagem em novembro e os chapéus emplumados dos cortesãos em abril. O gótico internacional está ligado à arte medieval e renascentista e, em última análise, essas pinturas são um híbrido dos dois estilos. Ambos representam tanto a iluminação refinada quanto os primórdios de uma tradição de um Renascimento nórdico, indicando uma observação direta da natureza. É possível que o duque de Berry e Ricardo II fossem ricos o suficiente para encomendar livros iluminados caros e retábulos exclusivos, mas, na virada do século XV, era a corte francesa do duque de Borgonha, Felipe o Calvo, irmão mais velho do duque de Berry, a mais rica da Europa. Felipe construiu um mosteiro em Champmol, perto de sua capital Dijon, para garantir um local apropriado para o túmulo de sua família. O claustro do mosteiro media 100 metros de largura e Felipe pediu ao principal escultor de sua corte, o artista neerlandês Claus Sluter (1340-1405), para desenhar algo vistoso para o centro. Não era uma incumbência fácil porque o claustro cercava um terreno pantanoso. A solução de Sluter foi fazer quatro fundações de pedra a quatro metros de profundidade no solo e usar a água deslocada para formar um poço que rodeava a base como uma piscina. Sobre a base, ele construiu um pedestal de pedra cercado por seis profetas de tamanho natural e anjos menores. Brotando do topo erguia-se uma coluna delgada de pedra, coberta de ouro, apoiando o Cristo na cruz. A Grande cruz, também conhecida como o Poço de Moisés, de 1395-1403, alongava-se por onze metros em direção ao céu. Ela permaneceu no lugar por mais de três séculos, mas hoje restam somente o pedestal e os profetas. Originalmente, os profetas foram pintados por outro artista da corte, Jean Malouel (por volta de 1365- 1415), e as listras azuis e brancas ainda são visíveis na túnica longa de Davi. Todos eles adotam posturas vibrantes, os pés se curvando sobre as bordas estreitas, como se pudessem pisar fora a qualquer momento. Apesar de as figuras estarem fixadas no pedestal, na parte traseira elas são, ainda assim, muito mais ousadas e soltas do que as esculturas góticas em Chartres. Sluter e Malouel usaram a tinta azul à vontade na Grande cruz. Empregaram o pigmento de azurita mais barato nas primeiras camadas e cobriram com o azul ultramarino de alta qualidade os mantos e as túnicas dos profetas. Um potinho com apenas 25 gramas de ultramarino, o peso de uma pilha AA, equivalia ao que Sluter ganhava por semana. Seria possível comprar oito quilos de tinta branca de chumbo pelo mesmo valor. O ultramarinoera obtido a partir da moagem do mineral lápis-lazúli, muito caro, para formar um pigmento ou pó colorido. Era importado de minas situadas no Badakshan (hoje Afeganistão) via Bagdá e Veneza. A azurita, dez vezes mais barata, era obtida mais perto, nas minas alemãs e eslovacas. Sob os auspícios dos duques de Borgonha e de Berry, os artistas levavam um estilo de vida que, de modo geral, estaria reservado aos nobres. O duque de Berry deu a Pol Limbourg (por volta de 1386-1416) uma mansão, e todos os irmãos receberam roupas e presentes, além do salário. O duque de Borgonha pagou a Sluter e Malouel um dinheiro extra quando ambos ficaram gravemente enfermos, para que pudessem quitar as despesas médicas. A maioria dos artistas não vivia com esse tipo de segurança. Cabia a eles o sustento das próprias oficinas, conseguir encomendas e equilibrar o custo dos materiais com possíveis vendas no mercado aberto. Assim, não era de surpreender que os artistas tendessem a se concentrar em cidades onde nobres e comerciantes ricos comprassem suas obras. Uma dessas cidades foi Tournai, hoje na Bélgica, mas que naquela época fazia parte das terras do duque de Borgonha. A arte da pintura nessa região é hoje conhecida, no seu conjunto, como arte flamenga ou neerlandesa. Robert Campin (por volta de 1378-1444) viveu e trabalhou em Tournai, onde mantinha uma grande oficina. Seu tríptico (pintura em três painéis) da Anunciação (1427-1432) é conhecido hoje como Retábulo de Mérode. No painel central, a Virgem está sentada junto à lareira, lendo, enquanto Gabriel desce das alturas para transmitir sua mensagem. A pintura é cheia de detalhes simbólicos, por exemplo, os lírios no vaso azul e branco representam a pureza da Virgem. No painel à esquerda, vemos os doadores da pintura rezando. (Esses doadores financiaram a execução do retábulo.) À direita, José aparece cercado por suas ferramentas de carpinteiro. Para além dele, pelas janelas abertas, vemos figuras humanas bem pequenas circulando pela praça da cidade. Campin foi um dos primeiros a acrescentar essa visão detalhada às suas pinturas. Quanta diferença em relação ao Livro das horas estilizado de Limbourg! Era como se estivéssemos olhando por uma janela de verdade para a rua mais ao longe, e isso nos faz sentir como se tivéssemos adentrado o mundo da Virgem. Esse nível de observação define o Retábulo de Mérode como um dos primeiros exemplares da arte do Renascimento nórdico. Os retábulos em painéis articulados eram a norma na arte flamenga, contrastando com as pinturas em painéis fixos vistos na Itália. E, enquanto na Itália os artistas trabalhavam com têmpera, os flamengos usavam tinta a óleo. O pigmento misturado com óleo, como o óleo de linhaça, vinha sendo usado no norte da Europa por vários séculos, mas foi somente no século XV que ele ocupou o centro do palco, sendo empregado por todos os principais artistas flamengos. As obras foram exportadas para a Itália, e logo os artistas italianos começaram a experimentá-la também, conforme veremos no próximo capítulo. Ao contrário da têmpera de secagem rápida, o que proporcionava um acabamento liso brilhante, a pintura a óleo levava dias para secar e podia ser aplicada em camadas de tinta. Cada camada tinha de secar antes que a outra fosse aplicada, portanto a pintura a óleo era um processo lento, mas permitia que os artistas criassem cores com uma profundidade e uma sutileza impossíveis de serem obtidas com a têmpera. Em Gante (na Bélgica de hoje), dois irmãos criaram o mais fantástico retábulo flamengo do século XV empregando pintura a óleo. O Retábulo de Gante (1426- 1432) foi iniciado por Hubert van Eyck (por volta de 1385-1426) e concluído por Jan van Eyck (cerca de 1390- 1441). Enquanto o Retábulo de Mérode foi feito para devoção pessoal, o Retábulo de Gante foi criado para a Igreja de São João (hoje Catedral de São Bavo). Ele compreende 24 painéis, com as folhas pintadas de ambos os lados, frente e verso. Quando os painéis do Retábulo de Gante são desdobrados, eles se estendem por cinco metros. No centro, há um Cristo maior que o tamanho natural, com um manto vermelho, sentado num trono dourado, a mão elevada, numa bênção. Adão e Eva observam de painéis laterais, sua nudez certamente chocante para a época. Apesar de ambos usarem folhas para cobrir a genitália, ainda é possível distinguir pelos púbicos encaracolados por cima delas. O retábulo fechado conta a história da Anunciação pelos painéis centrais. Os doadores, Elisabeth Borluut e seu marido Joos Vijd, rezam na parte de baixo. Eles não são jovens e Van Eyck não os poupou, portanto eles estão de joelhos, à nossa frente, como pessoas reais, sem idealização. Van Eyck os pintou em nichos arquitetônicos, ou espaços rasos. Ao lado deles, duas “esculturas” ocupam espaços do mesmo tipo. As “esculturas” são, evidentemente, pintadas. Van Eyck ressalta suas habilidades, mostrando que a pintura pode confundir a vista e convencê-lo de que está olhando para pessoas reais e esculturas reais em salas reais. Lembra- se de quando Plínio valorizou os gregos antigos por sua habilidade com o trompe l’oeil no capítulo 3? Os artistas do Renascimento estavam confrontando os gregos com o próprio jogo deles. Jan van Eyck estabeleceu-se em Bruges, em 1431. Sua obra era altamente valorizada pelo incrível ilusionismo e por sua capacidade de recriar diferentes texturas, do caimento pesado de um brocado à casca das laranjas importadas. Em seu quadro Casal Arnolfini (1434), vemos essas laranjas no peitoril da janela da casa do abastado comerciante italiano Giovanni Arnolfini e sua esposa Constanza Trenta. De pé, o casal parece estar recepcionando convidados. A luminosidade do dia se insinua pela porta e pelas janelas abertas, e essa luz harmoniosa nos faz acreditar na ilusão do duplo retrato [retrato rebatido], apesar do fato de que as cabeças do casal têm notoriamente tamanhos diferentes. Ela também nos faz acreditar na vida após a morte. O chapéu preto de Giovanni e a vela solitária ardendo no candelabro de latão trabalhado acima da sua cabeça sugerem que ele está de luto pela jovem esposa que morrera, aos vinte anos, um ano antes dessa pintura. Rogier van der Weyden (1400-1464), ex-aluno de Campin, mudou-se para Bruxelas (hoje na Bélgica) para estabelecer a própria oficina. Os retratos de Van der Weyden se comparavam aos de Van Eyck pela atenção aos detalhes, mas os superavam na transmissão das emoções. Em sua Descida da cruz (por volta de 1435), vemos a profundidade da expressão que era capaz de alcançar. O painel pintado foi encomendado para o altar- mor da Capela de Nossa Senhora Extramuros, em Leuven, perto de Bruxelas, e foi pago pela Guilda ou Confraria dos Besteiros. Dez figuras com trajes da época contrastam com o fundo de ouro. O ouro não é batido sobre a superfície como na pintura icônica. Ele fica por trás das figuras, como se elas fossem atores sobre um palco de pouca profundidade, bem na frente. O recorte do próprio painel de madeira foi feito de modo a incluir o alto da cruz de Cristo. No alto da escada, por trás da cruz, um homem segura um alicate, o lembrete vivo de sua tarefa de arrancar os pregos, para que, assim, o Cristo possa ser retirado e sepultado. Três homens seguram o corpo sem vida, os rostos voltados para baixo, os olhos marejados de lágrimas. A mãe de Cristo, Maria, desmaia e cai ao chão, sua postura copiando a do filho, com suas mãos quase se tocando, em um retrato duplo de morte e pesar. O posicionamento de seus braços lembra a curvatura de arcos, um reconhecimento visual da guilda que encomendara a obra. Pinturas a óleo como essa tornaram a arte flamenga procuradíssima. Obras avulsas (não encomendadas) eram vendidas em feiras internacionais na Antuérpia (na Bélgica de hoje) e noutros lugares, e exportadas para ávidos colecionadores na Itália. Van der Weyden e Van Eyck foram considerados os artistas maisimportantes de sua geração, os mestres da ilusão, exatamente como os pintores gregos antigos que os antecederam. Na Itália, esse ilusionismo foi mais impulsionado ainda graças a novos avanços no campo da perspectiva. Capítulo 12 - Questão de perspectiva Ano de 1444. Ao lado do arquiteto Michelozzo, Cosme de Médici observa um terreno, longe da Via Larga, em Florença. Eles discutem os projetos para o novo e ambicioso palácio de Cosme, um edifício clássico, de vários andares e um pátio central. A princípio, Cosme indicara o célebre arquiteto Brunelleschi para concebê-lo, mas rejeitou seus projetos por serem muito vistosos. Cosme possui uma imensa fortuna como dirigente do banco dos Médicis, mas seu pai sempre o aconselhara a não ostentar. Ele optou, então, pelos projetos mais comedidos de Michelozzo, que ainda assim incluíam espaço para sua coleção de pinturas, esculturas e livros cada vez maior. Para o pátio, Cosme pretende contratar um dos principais escultores da época, Donatello, e pedir a ele para esculpir uma figura do pastor Davi, da Bíblia, e colocá-la sobre um pedestal no centro. É algo ousado, pois as esculturas normalmente ocupam nichos nos prédios, e não o centro do palco. A história de Davi e Golias é a da astúcia contra a força bruta. Por esse motivo, faz tempo que Davi foi adotado pelos orgulhosos florentinos como símbolo de sua cidade, uma cidade que conserva independência do papa e das cidades-Estados rivais. Donatello já esculpiu um Davi, instalado no Palazzo della Signoria, sede do governo de Florença. Nessa escultura, ele enfatizou a juventude e a beleza de Davi em vez de suas qualidades nobres e trajou-o com uma túnica ajustada ao corpo e um manto jogado sobre a coxa. Parece mais uma escultura clássica grega do que qualquer outra obra da história recente. Cosme imagina como Donatello concretizará a nova incumbência. Ele sabe que o novo Davi se destacará porque será de bronze, algo ao alcance somente das famílias mais ricas de banqueiros, quiçá apenas os Médicis. * O Davi de bronze de Donatello (Donato di Niccolò di Betto Bardi, por volta de 1386-1466), criado na década de 1440, é uma homenagem à beleza e à juventude masculinas. De pé, está inteiramente nu, exceto pelo par de botas até os joelhos e dedos à mostra. Seu capacete mais parece um chapéu de aba larga com folhas em volta da copa, com cachos fartos no cabelo que ultrapassa a altura dos ombros. Ele traz a mão esquerda apoiada no quadril e o pé esquerdo sobre a cabeça cortada de Golias. O corpo de Davi, sem um único pelo, brilha conforme sua pele de bronze polido reflete a luz. Ele está ali isolado, sem fazer parte da arquitetura, exigindo os olhares. Ninguém fora capaz de executar uma escultura como aquela por muito mais de mil anos. A última vez que uma nova escultura de figura masculina ganhou um pedestal tinha sido com os romanos no poder. Mesmo com origem bíblica, o verdadeiro motivo da escultura é a beleza masculina e uma valorização clássica do corpo. Cosme de Médici era um humanista, com boa formação nas ideias e na arte clássicas. Ele sustentou Donatello ao longo de sua carreira, oferecendo-lhe alimentação, residência e trabalho regular. Na Itália dessa época, a grande maioria das obras de arte resultava de encomendas diretas. As guildas mais ricas da cidade requisitavam esculturas de artistas como Donatello para decorar igrejas. Famílias abastadas compravam áreas dentro das igrejas para suas capelas mortuárias e contratavam artistas para embelezá-las. As famílias ricas lutavam para superar umas às outras. Pelos próximos três capítulos, veremos como três cidades-Estados rivais, Florença, Veneza e Roma, sustentaram artistas e contribuíram para o Renascimento. No século XV, Roma confirmou seu lugar como o epicentro da Igreja Católica, e a cidade se beneficiou enormemente dos bolsos abarrotados do papa. A opulência de Veneza foi construída com o comércio internacional, enquanto Florença era uma república, governada por um corpo dirigente de comerciantes bem-sucedidos que valorizavam sua liberdade. Em cada cidade, a arte floresceu numa proporção jamais vista desde os tempos clássicos. Em Florença, os Médicis formavam a família mais rica e poderosa, e muitos artistas se beneficiaram do seu mecenato. O frade Fra Angelico (Guido di Pietro, por volta de 1395-1455) foi um deles. Cosme de Médici financiou a transferência de dezessete frades para o convento de São Marcos da cidade. Construiu para eles um novo mosteiro e uma biblioteca notável, abastecida por ele com livros clássicos e teológicos. Os dominicanos faziam voto de pobreza, mas isso não os impedia de enfeitar seus mosteiros com obras de arte, especialmente quando um dos mais talentosos pintores de Florença vivia entre eles. Fra Angelico passou a década de 1440 trabalhando com seus assistentes para cobrir São Marcos de afrescos em glória a Deus. Uma crucificação dominava a Casa do Capítulo, e cada um dos 41 quartos austeros, conhecidos como celas, foi pintado com cenas espirituais. No alto da escadaria, uma grande Anunciação exibe o anjo Gabriel resplandecente com asas multicoloridas que se abrem até o final da espinha dorsal, em faixas nas cores vinho, verde-azulado, pêssego, limão e branco. Outra Anunciação pintada em uma das celas é mais sóbria, as paredes do recinto simples e arqueado onde a Virgem se ajoelha combinam com as paredes de gesso da cela como se o espaço dela fosse uma extensão do quarto do frade. Arte, vida e fé se interligavam, e as pinturas de Fra Angelico eram, acima de tudo, recursos visuais para a devoção. Cosme usou o dinheiro para fortalecer sua piedade, da mesma forma como Enrico Scrovegni e Felipe o Calvo tinham feito antes dele. Cosme possuía até uma cela exclusiva em São Marcos onde se recolhia para rezar. Os artistas se valiam das encomendas feitas pelos Médicis e pela igreja para experimentar uma nova técnica que se tornaria o eixo central da arte renascentista: a perspectiva. Lorenzo Ghiberti (por volta de 1378-1455) levou cinquenta anos criando dois pares de portas trabalhadas, cobertas de relevos bíblicos, para o batistério de Florença, concluindo-os, finalmente, em 1452. Donatello trabalhou como seu assistente no primeiro conjunto, mas quando partiu para Siena para ali experimentar o novo conceito matemático da perspectiva, Ghiberti refez as próprias concepções para o segundo conjunto de portas, incorporando, assim, a nova técnica. O que é, de fato, perspectiva? É uma forma de recriar uma visão tridimensional real em uma superfície plana, fazendo alguns objetos parecerem mais próximos do que outros. Brunelleschi e Masaccio (Tommaso di Ser Giovanni di Simone, 1401-1428) experimentaram a perspectiva em Florença antes de Leon Battista Alberti publicar os princípios que a sustentavam em seu livro Della Pittura [Sobre a pintura], em 1435. Ainda que a perspectiva tenha revolucionado a pintura, é mais fácil captarmos seus fundamentos comparando os dois conjuntos de portas de Ghiberti. No primeiro conjunto, as Portas do Norte (com 28 cenas do Novo Testamento), o chão de cada cena parece uma concha, projetando cada imagem para fora. No segundo conjunto, as Portas do Leste (com dez cenas maiores do Antigo Testamento), o chão parece inclinar-se para dentro, para o interior da cena. Nesse segundo conjunto, as figuras se encolhem ao recuarem na distância e as construções têm sua escala reduzida. Ao empregar um horizonte fixo e um ponto de fuga (um local imóvel naquele horizonte) todas as linhas de cada cena confluem para aquele ponto, informando o posicionamento das paredes, a altura dos telhados, os ângulos dos ladrilhos no piso. Assim, cria-se uma cena que se desdobra na arte conforme ela parece ser na realidade, quando olhada de uma única posição. A geometria sustenta toda a experiência visual, trazendo ordem e controle. A perspectiva é a peça final do quebra- cabeça para criara melhor verossimilhança em uma superfície plana, o trompe l’oiel definitivo. Piero della Francesca (por volta de 1415/20-1492) tinha fascínio por descobertas científicas importantes na arte e escreveu tratados sobre perspectiva e corpos geométricos. Paolo Uccello (Paolo di Dono, 1397-1475) tinha igual obsessão por perspectiva. Seus desenhos parecem modelos matemáticos tridimensionais, e ele usava as encomendas para exibir sua pesquisa. Na Batalha de São Romano (por volta de 1438-1440) há lanças quebradas caídas pelo campo de batalha, enfatizando as linhas da perspectiva geométrica que ajudam a dar profundidade à pintura. Em O dilúvio, um afresco em meia-lua na igreja de Santa Maria Novella, em Florença (por volta de 1447), figuras desesperadas se agarram à beirada de uma imensa arca. A arca parece mais uma parede impenetrável do que um barco flutuando, mas atendeu à intenção de Uccello de enfatizar as leis da perspectiva. Ela se estende até o ponto de fuga, que é marcado por um raio vermelho. Uccello inclui também objetos que só costumavam ser vistos em exercícios de desenho, como a moldura circular de cabeça chamada mazzocchi que Uccello coloca em torno do pescoço e na cabeça de duas figuras, empregando a geometria da perspectiva para fazê-las parecer tridimensionais. O corvo bicando os olhos de um cadáver à direita não chama tanta atenção quanto os mazzocchi, ou as laterais incrivelmente recuadas da arca. A perspectiva é o verdadeiro cerne dessa pintura fantástica. Muitos dos maiores artistas de Florença executaram obras para a igreja de Santa Maria Novella, dentre eles Masaccio, Uccello, Sandro Botticelli (Alessandro di Mariano Filipepi, cerca de 1445-1510) e Domenico Ghirlandaio (Domenico di Tommaso Bigordi, 1449-1494). Botticelli pintou a Adoração dos Magos para o altar da nova capela mortuária de Gaspare di Zanobi del Lama, por volta de 1476 (embora hoje esteja na Galeria Uffizi, em Florença). Por essa época, a perspectiva tornara-se parte integral da pintura, não mais algo a ser destacado. As ruínas antigas que se estendem ao fundo na Adoração dos Magos seguem as leis da perspectiva, sem as exibir. Ao contrário, Botticelli usou essa pintura para cair nas graças dos Médicis. Del Lama pertencia à mesma guilda dos banqueiros que os Médicis, e talvez tenha sido essa a razão para Botticelli incluir tantos retratos deles na pintura. Cosme de Médici é imortalizado como um dos sábios, ajoelhando-se diante da Virgem e o Menino Jesus, ao centro. A essa altura, Cosme já era falecido, assim como seu filho Piero (outro dos sábios na pintura). O neto de Cosme, Giuliano de Médici, aparece bem à esquerda, em trajes da última moda, um jovem orgulhoso de peito estufado. À direita, logo atrás de dois sábios, está Lorenzo de Médici, com um manto curto preto. Ele é o irmão mais velho de Giuliano, e Botticelli o pintou como o próximo da fila a estar com Jesus Menino, posição apropriada para um jovem que acabara de herdar os negócios da família. Era um retrato lisonjeador de Lorenzo, e ele se tornou o mecenas mais constante de Botticelli por muitos anos. Botticelli se coloca na extrema direita da pintura, olhando diretamente para o espectador como se estivesse dizendo: e então, o que acha? Lorenzo contava apenas vinte anos quando seu pai Piero faleceu, deixando-o no controle do banco internacional dos Médicis e como líder de facto de Florença. Em abril de 1478, uma família florentina rival, os Pazzi, tentou assassinar Lorenzo enquanto ele estava na igreja. Os Pazzi conseguiram matar o irmão dele, Giuliano, mas Lorenzo escapou e vingou-se dos conspiradores. Ordenou que fossem colocados para fora das janelas da Signoria, onde ficaram pendurados em forcas improvisadas até morrerem estrangulados. Botticelli recebeu a encomenda de pintar retratos em tamanho real de todos os conspiradores na parede da prisão, ao lado da Signoria. Os retratos não existem mais, mas deviam causar uma visão horripilante, um lembrete para que a população não se atrevesse com os Médicis. A despeito das infindáveis disputas políticas, das guerras entre as várias cidades-Estados e dos problemas com seu império financeiro, Lorenzo manteve o mecenato dos artistas e poetas, estabelecendo uma universidade em Florença e criando postos para estudiosos gregos que haviam ficado sem trabalho, depois de escaparem de Constantinopla quando ela caiu na mão dos turcos. Isso constituiu uma extensão dos interesses de Lorenzo pelo humanismo, uma força ainda dominante em Florença. O próprio lema de Lorenzo, “Le temps revient” (o tempo volta), referia-se a esse interesse continuado pela Grécia e Roma clássicas, além de apontar para a palavra que usamos hoje quando nos referimos àquela época: Renascença ou Renascimento. Os artistas de Florença reagiram a essa sede insaciável pela arte e ideias antigas recriando esculturas de corpo inteiro, como o clássico Davi de Donatello, e pintando os mitos gregos, como O nascimento de Vênus de Botticelli (1485-1486). Por outro lado, os artistas venezianos viviam no presente, como parte de uma cidade dinâmica, apinhada de comerciantes de todo o mundo conhecido. No capítulo seguinte, veremos que, enquanto os artistas venezianos começaram a empregar a perspectiva florentina, eles também incrementaram a cor. Em seus ciclos de narrativa épica, eles jogaram luz sobre os muitos grupos que moravam, trabalhavam e negociavam nessa próspera cidade-Estado. Capítulo 13 - O Oriente encontra o Ocidente Gentile Bellini sopra as mãos para aquecê-las antes de pegar no pincel. Ele dá pequeninas pinceladas na tela para engrossar a barba castanha do sultão Mehmet II. É primavera em Constantinopla, mas ainda faz frio. Há seis meses, Bellini partiu de sua cidade natal, Veneza, numa galera (navio) com dois assistentes, em setembro de 1479. O sultão otomano solicitara um pintor retratista como parte das negociações de paz em andamento entre seu reino e Veneza. Os dois territórios – um deles um império em franca expansão e o outro uma cidade- Estado italiana abastada – estavam em guerra havia quinze anos, algo desastroso para o comércio veneziano e os cofres da cidade. Bellini foi o escolhido para ir a Constantinopla, um enorme sacrifício para Veneza, uma vez que ele é considerado o principal artista de sua geração. Na capital otomana, Bellini vivenciou a cultura islâmica, que antes só conhecera pelos produtos luxuosos negociados em Veneza, como tapetes, livros e veludos. Ele fazia esboços dos passantes na rua e pintava escribas trabalhando. A corte de Mehmet fervilhava de intelectuais e estudiosos que traduziam os escritos dos filósofos e historiadores antigos gregos e persas. Esses estudiosos relataram a Bellini que Mehmet escrevia poesias e falava diversos idiomas. Na verdade, Bellini achara o líder bastante reservado quando esteve com ele e havia rumores de que estivesse doente. Bellini concluiu uma série de esboços do sultão e agora dá os retoques finais em um retrato a óleo, em que o sultão aparece por trás de um arco arquitetônico enfeitado e um parapeito (mureta) coberto por um tecido ricamente ornado com joias. Para as sessões de pose, o sultão vestia um cafetã vermelho pesado, fortemente transpassado no peito, e um manto de pele sem mangas. Na cabeça, ele usa o fez, pequeno chapéu de feltro vermelho usado por todos os homens otomanos, com uma faixa de tecido branca enrolada à sua volta. Bellini tem ciência de que sua pintura faz parte das negociações de paz e, portanto, ele não realça os pés de galinha que marcam o rosto do sultão de cinquenta anos. No entanto, ele foi empregado para captar as feições do sultão, assim ele não evita a sobremordida nem o nariz aquilino e o queixo retraído, embora consiga suavizá-los. * Certamente, Mehmet II ficou satisfeito com o retrato porque concedeu o grau de cavaleiro a Gentile Bellini (1429-1507) e presenteou-o com uma corrente de ouromaciço. Mehmet, que convidava artistas italianos para sua corte desde a década de 1450, admirava o realismo dos retratistas italianos e como pareciam manter o modelo vivo, mesmo após sua morte. Ao encomendar um retrato por um artista italiano, ele também reconhecia suas conexões internacionais e sua posição como líder mundial. Na pintura, ele conservou o traje otomano, mas foi pintado como um homem renascentista. Isso é quase verdadeiro, já que ele apreciava o humanismo e se cercou de estudiosos gregos, islamitas e italianos, todos bons conhecedores dos textos da antiguidade clássica. Na década de 1450, ele tinha conquistado a Grécia e passou algum tempo em Atenas, onde ficou fascinado pelo Partenon, transformado por ele em mesquita. Se Mehmet não tivesse morrido um ano depois que Bellini concluiu o retrato, ele provavelmente teria tentado conquistar a Itália para unificar as terras daquele que um dia fora o grandioso império romano. À semelhança dos imperadores romanos anteriores a ele, o retrato de Mehmet foi reproduzido em medalhas de bronze que circularam amplamente. Várias dessas medalhas foram confeccionadas na Itália e enviadas a Mehmet como presentes diplomáticos. Lorenzo de Médici enviou uma em agradecimento por Mehmet entregar um dos conspiradores da família Pazzi que tinham tentado matá-lo. Mehmet também encomendou retratos a pintores persas e turcos de sua corte em Constantinopla, a antiga capital bizantina do Império Romano do Oriente. A encomenda de retratos italianos e turcos indicava que ele desejava mostrar o alcance de sua influência tanto no Ocidente quanto no Oriente. Somente algumas miniaturas restam nos dias de hoje. Elas têm pouca noção de profundidade espacial do tipo encontrado no retrato europeu, mas são ricas em detalhes e padronagens. Numa pintura de aquarela, supostamente de autoria do pintor turco Sinan Beg (em atividade entre as décadas de 1470-1480), Mehmet é visto em perfil de três quartos. A parte de cima da orelha do sultão é pressionada pelo peso do turbante. Retratos como esse se baseavam, de fato, em aspectos do naturalismo italiano, combinando-os com as tradições da pintura em miniatura persa e turca. Criou-se, assim, um novo estilo híbrido que expressava o império multicultural de Mehmet, e ele permaneceu influente por um bom tempo no século XVI. Havia também interação entre os artistas na corte. Um desenho com aquarela, pena e tinta de um escriba sentado da época em que Bellini estava em Constantinopla (e, portanto, muitas vezes atribuído a ele) mostra como o mecenato de Mehmet estimulava uma fusão de estilos. Sentado com as pernas cruzadas, o escriba usa um manto de veludo e um turbante. Sua presença marcante, como um corpo no espaço, sugere que um artista europeu seja o autor da pintura, talvez com um modelo vivo. Por outro lado, a padronagem decorativa, a escrita árabe à direita e o uso de papel e tinta sugerem que o artista também conhecia a pintura em miniatura persa e turca. Misturando ainda mais as tradições, Beg cria uma imagem similar, dessa vez de um pintor sentado. Beg emprega um estilo mais decorativo e aplainado, conservando as tradições da pintura em miniatura. A figura flutua no espaço, mas não é menos detalhada, e o rosto é modelado de forma natural, como um retrato italiano. Muitas vezes essa pintura é vista como uma cópia quase fiel do escriba sentado, mas e se eles tivessem sido pintados ao mesmo tempo, por dois artistas bem-sucedidos na mesma corte, ambos experimentando os estilos um do outro? É possível que, ao voltar para casa, Bellini tenha se surpreendido pelas semelhanças entre Constantinopla e Veneza, já que as duas cidades eram centros comerciais de grande porte e viviam apinhadas de gente de culturas diferentes, falando diversas línguas. O cardeal grego Bessarion prestou grande homenagem a Veneza ao denominá-la “outra Bizâncio”, equiparando-a a Constantinopla. O diplomata francês Philippe de Commynes descreveu Veneza como “a cidade mais triunfante que já vi, capaz de honrar embaixadores e estrangeiros”. Negociantes flamengos, ávidos por comprar produtos luxuosos vindos de Constantinopla e da Rota da Seda, se esbarravam com embaixadores orientais. Islamitas, judeus e cristãos se misturavam na praça central, onde os prédios fundiam a arquitetura gótica europeia com a islâmica e onde domos e mosaicos bizantinos cobriam a igreja católica de São Marcos. A quantidade de alemães e dálmatas residentes em Veneza era suficiente para que formassem as próprias confrarias, chamadas Scuole [escolas]. Cada grupo (ou Scuola) tinha a própria sede e zona de comércio na cidade. Bellini se especializou em pinturas narrativas que cobriam as paredes das ricas Scuole e dos prédios do governo, incluindo o Palácio do Doge. Ao lado de artistas como Vittore Carpaccio (cerca de 1465-1525), Bellini homenageou o cotidiano de Veneza ao situar cenas de procissões religiosas, milagres e histórias da Bíblia contra o pano de fundo contemporâneo da cidade, exibindo sua diversidade de residentes. Essas pinturas são incrivelmente detalhadas, como se oferecessem um relato testemunhal das verdadeiras procissões e milagres. Na Procissão na Praça de São Marcos de 1496, pintada para a Scuola Grande di San Giovanni Evangelista, vemos integrantes dessa Scuola em procissão em torno da praça, em frente à basílica bizantina de São Marcos e ao palácio gótico e islâmico do doge. O cotidiano prossegue à volta deles: quatro comerciantes gregos com chapéu de aba preto discutem negócios à esquerda da praça, enquanto três homens de turbante estão diante da basílica. Em O milagre da relíquia da cruz na ponte Rialto, de Carpaccio (1494), pintado para a mesma Scuola, o evento religioso do título acontece numa loggia (sacada coberta) de primeiro andar na extrema esquerda. Nossa vista, porém, é desviada para a ação no Grand Canal, a principal via de comunicação de Veneza. Vemos mercadores armênios e homens turcos negociando na ponte Rialto, o centro do comércio veneziano, e um gondoleiro africano conduzindo uma gôndola pelo canal movimentado. As diversas Scuole que apoiavam a pintura narrativa acolhiam a diversidade de uma cidade construída sobre uma rede de comércio internacional que se estendia do norte da Europa até Constantinopla e pela Ásia e África. Ainda que Gentile Bellini fosse honrado como o principal artista veneziano de seu tempo, são as pinturas de seu irmão caçula Giovanni (por volta de 1430-1516) as mais conceituadas hoje em dia. Ambos se valeram das primeiras explorações do pai Jacopo no campo da perspectiva florentina e da cor veneziana. A essa, Giovanni acrescentou a luminosidade, uma forma de fazer as pinturas brilharem com vida, empregando velaturas para obter a cor. Vimos essa técnica pela primeira vez nas pinturas de pintores renascentistas nórdicos como Jan van Eyck que, por volta do final do século XV, eram cada vez mais exportadas para a Itália. Em seu trabalho com tinta a óleo sobre painéis de madeira, Giovanni Bellini deu nova vida aos retratos e às cenas religiosas venezianas. Ele recebeu a incumbência de pintar o novo doge, Leonardo Loredano, em 1501, e o retrato finalizado mostra Loredano em seus trajes oficiais de gala, de pé, por trás de um parapeito de pedra, sobre um fundo azul vibrante. Giovanni Bellini capta o brilho da caríssima seda adamascada em branco e dourado, dando-lhe exatamente o caimento necessário em dobras até a densa fileira de botões semelhantes a conchas, que fecha a veste. A luz parece vir da direita do doge e realça o friso de ouro de seu corno ducale (gorro rígido com bico na parte de trás) da mesma forma como é absorvida pela pele envelhecida. As feições do doge são sérias a despeito do olhar distante, e sua boca é resoluta, ou seja, o retrato de um homem pintado com cada centímetro de sua autoridade preservada. Ele esteve originalmente pendurado na câmara do conselho no Paláciodo Doge, acima das pinturas de história narrativa de Gentile Bellini, situando Loredano em uma extensa linha de líderes que haviam conservado a independência de Veneza e administrado sua riqueza por séculos. Ao compararmos o retrato do sultão, de Gentile Bellini, com o do Doge, é possível apreciar a grande habilidade de seu irmão Giovanni. O sultão é realista e está sentado por trás de um parapeito, e o mesmo pode ser dito do Doge. Entretanto, parece que a qualquer momento o Doge pode se virar e olhar para nós com seu olhar duro. Esquecemos que estamos diante de uma pintura e sentimos como se estivéssemos olhando para um homem presente ali na sala conosco. O artista alemão Albrecht Dürer (1471-1528) esteve em Veneza e elogiou Giovanni Bellini como “o melhor de todos os pintores”. A cidade era um chamariz para artistas ambiciosos e Dürer passou duas temporadas em Veneza, ansioso por estudar a arte renascentista em primeira mão e encontrar mecenas ricos. Na segunda vez, ele pintou sua primeira obra importante, a Festa do rosário (1506). Apesar das dificuldades com as autoridades e os rivais invejosos, essa pintura firmou sua reputação em Veneza. O Doge e o patriarca, chefe da Igreja Católica em Veneza, foram conhecer a pintura no ateliê de Dürer e, mais tarde, o pintor escreveu que o Doge tinha pedido para que ele ficasse e trabalhasse para a cidade (ele recusou). A Festa do rosário foi instalada na igreja de São Bartolomeu, associada à Fondaco dei Tedeschi, o centro de comércio e de acolhida para todos os negociantes alemães. A Festa do rosário reverencia a paleta veneziana de Giovanni Bellini com seus azuis-claros e amarelos luminosos. Os dois artistas inspiraram-se no naturalismo e na atenção aos detalhes, vistos nas pinturas dos primórdios do Renascimento nórdico. No entanto, em contraste com as cenas tranquilas de Giovanni, a pintura de Dürer é pura ação. A Virgem, o Menino Deus e os anjos, todos oferecem guirlandas de rosas a uma congregação de joelhos que inclui o papa e o imperador Frederico III. De alguma forma, a despeito dos anjos voejando pelos céus sobre nuvens inverossímeis e a Virgem tocando a cabeça do imperador, Dürer consegue fazer a improvável cerimônia ao ar livre parecer real. A pirâmide central das formas, com o papa em ouro, o imperador em vermelho e a Virgem em azul, parece inteiramente natural. Assim é, em grande parte, porque Dürer pinta a relva sob seus joelhos, as árvores retorcidas que emolduram a cena e as montanhas distantes ao fundo com tanta precisão que menosprezamos os elementos mais artificiais. Veneza era um cadinho de nacionalidades e culturas, com diversos mecenas abastados que encomendavam arte em grande escala. A maioria dos artistas venezianos não sentia necessidade de viajar para outras cidades- Estados à procura de trabalho, mas não era esse o caso em outras partes da Itália. Cada vez mais, muitos dos artistas italianos mais ambiciosos decidiam se mudar para Roma para tentar trabalhar para o papa. No capítulo seguinte, seguiremos três dos maiores artistas do Renascimento que optaram por deixar a cidade de Florença em busca de encomendas lucrativas. Esses artistas são tão familiares para nós hoje que os conhecemos simplesmente pelo primeiro nome: Michelangelo, Leonardo e Rafael. Capítulo 14 - O retorno de Roma É meia-noite do dia 14 de maio de 1504, e um homem nu gigantesco começa a passar pelas ruas silenciosas de Florença. O homem é Davi, a mais ambiciosa escultura de Michelangelo até aquele momento. Ele levou dois anos para esculpi-la e quase esse mesmo tempo o conselho dirigente da catedral precisou para chegar a um consenso sobre a localização da estátua. Michelangelo assinou um contrato para fazer a escultura colossal ser instalada no alto da fachada da catedral, mas, por fim, o conselho decidiu dar a ela uma localização mais pública. Ela devia ser colocada do lado externo do Palazzo della Signoria, sede do governo florentino. O bloco de mármore grande e estreito que a igreja fornecera a Michelangelo estava longe do ideal. Dois outros escultores já haviam tentado trabalhá-lo e desistido, dada a impossibilidade de usá-lo segundo as condições da catedral. Michelangelo recebia seis florins de ouro (em torno de mil libras esterlinas hoje), acrescidos de materiais e auxiliares, para executar a nova escultura. Agora, o gigantesco Davi está ali, nu como um deus grego, e a funda que leva no ombro é o único indício de seu papel na história bíblica de Davi e Golias. O desejo de Michelangelo é ver Davi competindo com as esculturas gregas e romanas da antiguidade, em particular com as figuras colossais nuas de Castor e Pólux que ele conheceu no complexo de banhos do imperador Constantino. O seu Davi tem cachos desalinhados e um rosto de beleza clássica. O corpo é esguio e musculoso, as mãos fortes como as de um escultor, com veias salientes. Davi foi esculpido para ser visto a uma grande altura, daí a cabeça e as mãos serem maiores do que deveriam ser normalmente. Agora elas estão amarradas com cordas e a escultura por inteiro repousa sobre uma plataforma com rodas, que transporta a escultura do pátio de Michelangelo para o Pallazo della Signoria. Os quarenta homens reunidos ao redor da estátua sustentam a tensão das cordas, enquanto Davi, lentamente, inicia sua jornada. * Na adolescência, Michelangelo Buonarroti (1475-1564) foi aprendiz na nova escola de escultura de Lorenzo de Médici, em Florença. Lorenzo sustentava artistas em todos os estágios de carreira e, aos quinze anos, o “pavio curto” Michelangelo tornou-se parte de sua família e residiu no palácio Médici por dois anos. Ali, no pátio, ele deve ter tido a oportunidade de estudar o Davi de bronze de Donatello. A escultura de Donatello é da altura de um adolescente, já o Davi de Michelangelo tem mais do que o triplo em tamanho. Com cinco metros de altura, ele é mais alto do que um ônibus de dois andares, e era a maior escultura feita na Itália desde o tempo dos romanos. Michelangelo era um jovem artista ambicioso, capaz de pintar e esculpir. Ao terminar a escultura de Davi, ele foi contratado para pintar uma das duas cenas de batalha para o Salão da Câmara do Conselho [Salão dos Quinhentos]. Leonardo da Vinci (1452-1519) viera de Milão para Florença para pintar a outra cena, mas, no final, nenhuma das duas foi concluída. Michelangelo mudou-se para Roma e Leonardo começou a pintar a esposa de um rico negociante de seda, Lisa del Giocondo, que hoje conhecemos como Mona Lisa. Com o emprego da velatura e de excelentes pincéis, Leonardo conseguia misturar as cores a ponto de ser impossível distinguir onde uma terminava e outra começava. Essa técnica era conhecida como sfumato, significando esfumado ou embaçado. Na Mona Lisa, a esposa do comerciante está sentada, com as mãos sobrepostas, usando um vestido bordado com fio de ouro, e os cabelos soltos sob um véu transparente. O corpo está em ângulo, mas a cabeça virada a faz olhar de frente. Com um vestígio de sorriso nos lábios, seus olhos fitam os nossos calmamente. Por trás dela, uma paisagem fantasiosa se esvai na distância, dando à pintura uma qualidade onírica. Leonardo jamais entregou a pintura à Lisa ou ao seu marido, conservando-a consigo até a morte. Ainda que hoje seja avaliada como uma obra-prima, é possível que Leonardo a tenha considerado inacabada. Em termos relativos, ele concluía poucas das pinturas que começava, frustrando os que as haviam encomendado. Muitas vezes, ele experimentava diferentes tipos de tinta, nem sempre com êxito (a cena de batalha no Salão da Câmara do Conselho começou a escorrer pela parede antes mesmo de ser concluída). Leonardo era fascinado pelo mundo. Ele mantinha cadáveres retalhados para que pudesse estudá-los e fez esboços de todos os estágios da vida, do feto à velhice e à deformidade. Estudou o voo dos pássaros e traduziu-o em desenhos para um protótipode helicóptero. Criou maquinário para guerras, soluções para distribuição de água e fortificações para a cidade. Da Vinci era canhoto e fazia suas anotações ao contrário, da direita para a esquerda, provavelmente para evitar manchá-las ou protegê-las de olhos curiosos (é preciso um espelho para lê-las). Leonardo pintou retratos a óleo primorosos de várias mulheres e prometeu pintar Isabella d’Este, esposa de Francesco Gonzaga, governante de Mântua, uma pequena cidade-Estado italiana muito rica. Isabella e Francesco tinham se casado quinze anos antes e desde então ela se tornara uma colecionadora de arte insaciável. Ela criou um studiolo, uma sala de estudo com decoração rebuscada, repleta de pinturas encomendadas dos principais artistas, e uma grotta ou sala das coleções, onde ela exibia arte antiga, livros e medalhas. Era um feito inédito para uma mulher daquela época. Ela tinha implorado a Leonardo que pintasse seu retrato e ele concordara, mas somente dois desenhos em giz se concretizaram. Isabella mantinha uma correspondência impressionante com diversos informantes especializados em arte por toda a Itália, seguindo as atividades de Leonardo através das cartas de um monge de Florença e sabendo das esculturas de Michelangelo à venda por intermédio de seu agente de arte em Roma. Sob o papado de Júlio II, e pela primeira vez desde a antiguidade, Roma rapidamente estava se tornando a cidade italiana mais importante para a arte. Júlio assumira o poder em 1503 e estava determinado a tornar Roma a maior cidade da Europa. Ele compreendera que a arte era essencial para alcançar tal posição. Ele encomendou os projetos mais ambiciosos e contratou os melhores artistas disponíveis. Seu mecenato se espelhava no dos Médicis da Florença do século XV. Lorenzo de Médici apoiara muitos artistas, inclusive Michelangelo e Leonardo, mas falecera em 1492. Seu primogênito, Piero, não possuía as mesmas habilidades de liderança, e em dois anos a família Médici tinha sido banida de Florença. O tempo de Lorenzo “o Magnífico” terminara. Com os Médicis eLivross, Roma tornou-se o novo centro do Renascimento. Michelangelo, Leonardo e o jovem e promissor pintor Rafael (Raffaello Santi, 1483-1520) se mudaram para Roma. Michelangelo chegou primeiro, quando o papa o contratou para criar seu mausoléu monumental, de três andares, e coberto com mais de quarenta estátuas. Michelangelo trabalhava nessa obra quando a escultura antiga Laocoonte foi descoberta na escavação de um vinhedo em Roma, e o papa o enviou lá para dar uma olhada. À época de sua realização, Plínio o Velho afirmara que Laocoonte era a melhor escultura existente, mas era dada como perdida até aquele momento. O papa adquiriu imediatamente a escultura para seu jardim de esculturas no Vaticano (a sede da Igreja Católica) onde Michelangelo podia estudá-la à sua conveniência. O mausoléu do papa trouxe muitos problemas para Michelangelo. No final, ele levou quarenta anos para concluir o projeto, que foi muito reduzido quando Júlio morreu. No entanto, como Michelangelo trabalhara nele no princípio, as pessoas ficaram com inveja do seu talento. De acordo com o primeiro biógrafo de Michelangelo, Ascanio Condivi, o arquiteto Donato Bramante persuadiu o papa a dar a Michelangelo uma nova incumbência, interrompendo seu trabalho no mausoléu. A esperança de Bramante era de que isso frustrasse Michelangelo de tal forma que sua ira o levasse a sair de Roma para sempre. A nova encomenda era pintar todo o teto da Capela Sistina. Botticelli, Ghirlandaio e outros artistas tinham pintado os afrescos das paredes inferiores trinta anos antes, quando o teto fora pintado de azul com estrelas douradas espalhadas em toda a sua extensão, representando o cosmos. Agora, o papa queria cobrir o céu inteiro com figuras bíblicas. A essa altura, Michelangelo já realizara várias pinturas, mas deve ter se sentido amedrontado com aquela encomenda, para não falar da raiva por ter de interromper o trabalho no mausoléu para assumi-la. Não era de surpreender que ele quisesse aprontar o teto o mais rápido possível. O único problema era a extensão de 40 metros e os mais de 13 metros de largura, ou seja, praticamente do tamanho de um campo de futebol society. O teto era curvo, e o ponto mais elevado distava 20 metros do chão. A primeira tarefa de Michelangelo foi inventar um modo de chegar lá em cima, e ele desenhou o próprio andaime de madeira. Empregando a técnica do afresco, ele pintava sobre o gesso úmido, que tinha de ser aplicado a cada manhã. Para garantir a proporção das figuras e manter cada seção alinhada, ele trabalhava com base em desenhos de tamanho natural, chamados “cartone” [folha de papel bem grande]. Os esboços nessas grandes folhas eram pregados em intervalos regulares. Depois, os “cartone” eram sustentados sobre o trecho do dia em gesso úmido e carvão em pó era passado sobre eles, deixando pontinhos pretos que recriavam os contornos dos desenhos. Iniciado em 1508, Michelangelo levou quatro anos para concluir o teto da Capela Sistina. Nove painéis recontando o Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, ocupavam toda a extensão do teto. Deus ilumina o mundo e dá vida a Adão e Eva estendendo a mão divina. Em seguida, o casal é expulso do Paraíso e Deus pune a humanidade, desencadeando o grande dilúvio. Michelangelo pintou as figuras como se fossem formas esculturais, como o Laocoonte, dando-lhes peso e solidez, trabalhando cuidadosamente com o escorço, ou seja, quando vistas do chão as figuras parecem estar de fato sentadas ou deitadas ao longo da curvatura do teto. Descendo pelas paredes laterais, sibilas e profetas gigantescos estão todos sentados num cenário arquitetônico pintado que engana a vista, levando-nos a pensar que o teto é uma abóbada de cornijas e colunas. As sibilas (profetisas que previam o futuro) são bem maiores do que as figuras de Deus, de Adão e de Eva. Elas exibem uma compreensão surpreendente da musculatura do corpo humano, embora muitas, como a sibila da Líbia, pareçam masculinizadas, com costas largas e antebraços fortes. Michelangelo optou por desenhar nus masculinos, e não femininos, e sendo gay e solteiro seu conhecimento das formas femininas era limitado. Vinte belos Ignudi (homens nus), que relaxam e se reclinam pelo teto emoldurando os painéis centrais, parecem ter merecido mais atenção. Michelangelo trabalhava no alto de seu andaime, com os braços estendidos, o pescoço pendido para trás, pintando contra a gravidade. Nesse ínterim, Rafael pintava em condições muito mais favoráveis exatamente do outro lado do pátio (de 1509 a 1511). Aos 25 anos, Rafael pintou afrescos nos aposentos privativos do papa. Um aposento, hoje conhecido como Stanza della Segnatura (Sala do Tribunal), foi destinado à biblioteca papal. A temática do desenho refletia os quatro ramos do conhecimento humanista: filosofia, teologia, literatura e justiça. Em vez de criar alegorias da filosofia ou da justiça (figuras simbolizando essas áreas do conhecimento), Rafael pintou gente de verdade, dando vida aos autores dos livros que forrariam as paredes abaixo dos afrescos. Rafael homenageou pensadores históricos e contemporâneos, pintando-os em locais que evocavam a Grécia antiga e a Roma de então. Sua parede de afrescos com filósofos, cientistas e matemáticos é hoje conhecida como A escola de Atenas. Rafael pintou um arco através do qual percebemos um interior arejado cheio de esculturas. Filósofos de todas as idades se reúnem para conversar, com Platão se dirigindo ao discípulo Aristóteles, no centro. Platão aparece como um ancião, de cabelos e barbas brancas, e é possível que seja um retrato de Leonardo. Com o solitário carrancudo que apoia o cotovelo sobre um bloco de pedra, mais à frente, Rafael retrata Michelangelo (sob a forma do filósofo grego Heráclito), e chega a incluir o próprio retrato, a figura de um jovem com boné preto, vislumbradopor trás de Ptolomeu bem à direita. Depois de concluir a Capela Sistina e os aposentos papais, Michelangelo voltou para Florença, onde os Médicis haviam reconquistado o controle da cidade. Rafael ficou em Roma, feliz em poder desfrutar de sua posição na corte e assumir novas incumbências para o papa Júlio II e seu sucessor, papa Leão X. O novo papa era filho de Lorenzo de Médici, e ele desejava deixar sua marca pessoal na Capela Sistina. Mas como seria possível competir com o teto de Michelangelo? Sua solução foi encomendar a Rafael um conjunto de tapeçarias a serem penduradas abaixo do teto. As tapeçarias representavam a vida de São Pedro e São Paulo, os fundadores da Igreja Católica. Elas custaram dez vezes mais do que o valor pago a Michelangelo pelo teto. Apesar do custo, vários conjuntos dessas tapeçarias foram bordados em Bruxelas com base nos mesmos “cartone” detalhados. O rei inglês Henrique VIII viria a encomendar um conjunto para seu palácio em Westminster. Ele as solicitou poucos anos depois de ter definitivamente arrancado a Inglaterra do controle do papa e fundado a Igreja Anglicana. Teremos de esperar até o capítulo 16 para conhecer a corte de Henrique VIII, mas no próximo veremos como a inquietação religiosa já agitava o norte dos Alpes. Isso impactou os artistas, pois o protestantismo começou a crescer e o reformador religioso Martim Lutero acusou a rica Igreja Católica de corrupção. Capítulo 15 - Fogo e enxofre Ano de 1515. Na pequena cidade de ‘s-Hertogenbosch nos Países Baixos, Hieronymus Bosch pousa o pincel e considera finalizada a pintura à sua frente. Talvez ele devesse dizer pinturas, porque são três painéis de carvalho a serem emoldurados juntos em um tríptico, em que os painéis da direita e da esquerda se fecham sobre a imagem central. Na parte externa, ele pintou um pobre viajante perseverando no seu caminho apesar dos perigos e tentações que o cercam. Já no interior, as pessoas não são tão inteligentes. Elas avidamente agarram punhados de feno de uma carroça carregada, ignorando o Cristo, que paira numa nuvem ao alto, julgando-as. O diabo encaminha a carroça de feno para o inferno, mas ninguém percebe, nem mesmo o papa, que segue atrás a cavalo, cego pela ganância. No painel esquerdo, o pecado deles se inicia, com Eva colhendo a maçã no Jardim do Paraíso. À direita, há uma evocação fantasiosa do inferno, com homens estripados, devorados por cães e trespassados por estacas. Em geral, os painéis articulados são pintados para igrejas e contam histórias da vida de Cristo. O carro de feno, no entanto, não se destina a um ambiente religioso, e Bosch tem dúvidas se alguma igreja o exibiria! É uma sátira sobre a estupidez humana. A seu ver, comportamentos egoístas e grosseiros são uma passagem sem volta para o inferno. Bosch relembra um tríptico anterior de sua autoria que tinha o pecado igualmente como tema. Nessa pintura, o Jardim das delícias terrenas, Adão e Eva também ocupam o painel esquerdo. A paisagem fértil do Paraíso se expande para o painel central e, nesse falso paraíso, homens e mulheres se divertem no calor do sol, fazendo sexo à vontade e se refestelando com os morangos maduros. Bosch queria que fosse como um sonho, os corpos brancos e negros nus diminuídos por pássaros gigantescos e frutos avantajados, a pintura como um todo como uma fruta madura demais, doce, porém quase estragada. O sonho vira um pesadelo no painel da direita. Uma harpa e um alaúde viram crucifixos, enquanto um homem-pássaro enorme engole figuras inteiras. Bosch estudou pássaros e animais a fundo, bem como feras grotescas nos manuscritos iluminados e em gravuras de colegas artistas. No entanto, ele ainda acha que as melhores criaturas que pinta são frutos de sua imaginação e as coloca para trabalhar no sentido de revelar as profundezas a que a humanidade pode sucumbir. * Bosch nasceu como Hieronymus van Aken (por volta de 1450-1516), filho de alemães que imigraram para os Países Baixos. Ficou conhecido como Bosch porque sua cidade natal era ‘s-Hertogenbosch. (Muitos artistas perdiam seu nome de batismo dessa forma.) É possível que a ascendência de Bosch o tenha levado a estudar as gravuras de artistas alemães como Martin Schongauer (em atividade de 1471 a 1491). A árvore rebuscada na parte frontal do Jardim das delícias terrenas, suas folhas de palmeira buscando os céus, é semelhante a uma gravada por Schongauer. É possível que ele também tenha se inspirado no poema popular Roman de la Rose, de Guilherme de Lorris. O poema é ambientado em um sonho dentro de um jardim, repleto de aves canoras e fontes tilintantes. Bosch, porém, inseriu a condenação no sonho, criando seu viés mordaz baseado no Juízo Final da Bíblia. Bosch morreu em 1516, enquanto Rafael terminava os “cartone” detalhados para as tapeçarias caríssimas do papa Leão X. Nessa época, Mathis Gothardt, agora conhecido como Matthias Grünewald (1470-1528), era um dos mais destacados artistas da Alemanha, junto a Albrecht Dürer (que conhecemos quando ele esteve em Veneza, no capítulo 13). Grünewald se especializou em pinturas de cenas da crucificação, e elas provavelmente foram tão chocantes quanto as cenas de depravação de arregalar os olhos pintadas por Bosch ao serem instaladas pela primeira vez nas igrejas e nos mosteiros. A mais conhecida crucificação de Grünewald (1512-1516) cobriu os painéis fechados do Retábulo de Issenheim, uma obra imponente de múltiplos painéis, executada para o altar-mor da capela do hospital no mosteiro de Santo Antônio, na Alsácia. Nesse retábulo, ele nos oferece o Cristo mais torturado da arte ocidental. A imagem, em tamanho maior do que o natural, aparece pregada numa cruz rudimentar, tendo ao fundo uma paisagem sombria. Os dedos do Cristo, em espasmos de dor, se contorcem na direção de Deus. O corpo definhado, vestido apenas com um pedaço de pano esfarrapado, está coberto de ferimentos e cravado de espinhos, e a pele adquiriu um tom pútrido de cinza esverdeado, como se começasse a gangrenar. De olhos fechados, a boca aberta de dor, a coroa de espinhos criou filetes de sangue que escorrem pelo rosto, empapando a barba. Ao pé da cruz, sua mãe Maria desmaia, com as mãos unidas em oração. Santo Antônio e São Sebastião observam, nos painéis laterais, como testemunhas impotentes. O hospital em Issenheim tratava daqueles acometidos pelo Fogo de Santo Antônio, o ergotismo, uma doença que se alastrou no século XVI. As vítimas eram levadas à loucura, conforme a gangrena atacava suas mãos e pés. O Cristo de Grünewald, com o corpo decadente, parece encarnar, a um tempo, a dor deles e a sua própria. Abertos, os painéis externos do Retábulo de Issenheim mostravam uma atmosfera mais animada. A Anunciação e a Natividade, à esquerda, contrabalançavam com a Ressurreição do Cristo, à direita, com seu corpo recuperado e envolto por uma luz dourada. Essas cenas internas só eram exibidas à congregação em determinados dias do ano, e no dia de comemoração de Santo Antônio também se dobravam de volta para revelar duas outras pinturas de Grünewald, representando a tortura do santo por monstros com chifres e penas. Essas pinturas internas ladeiam uma escultura dourada do santo, obra de Nicolau de Haguenau (por volta de 1445/60-1538). Entretanto, falta à escultura de Nicolau de Haguenau, no cerne do retábulo, a expressão apaixonada das pinturas de Grünewald. Os escultores costumavam ser empregados para criar as estatuetas centrais escondidas dentro dos retábulos. O melhor escultor alemão da época era Veit Stoss (1447-1533), que trouxe vida à madeira com toda a habilidade que vimos Claus Sluter aplicar à pedra no capítulo 11. Stoss esculpiu estatuetas para o interior dos retábulos e também para serem expostas nas igrejas. Ele empregava os maiores troncos de tília para suas esculturas mais ambiciosas, como a Anunciação do Rosário (1517-1518), que fica no coro da igrejade São Lourenço, em Nuremberg, na Alemanha. Um rosário oval, mais alto do que o Davi de Michelangelo, contorna duas esculturas compactas do anjo Gabriel e da Virgem Maria. Stoss esvaziou o interior das esculturas para aliviar o peso (e reduzir o risco delas se partirem). Ele esculpiu fundo na madeira para criar cachos de cabelo e dobras generosas de tecido, e usou tintas caras para fazer suas esculturas parecerem de carne e osso. Muitos artistas do norte da Europa dessa geração se envolveram com a política da época. Tornaram-se ardentes seguidores de Martim Lutero, um reformador religioso da Universidade de Wittenberg, na Alemanha, que ousou desafiar a Igreja Católica com acusações de corrupção e ganância. Em 1517, Lutero tornou públicas suas acusações pregando-as na porta de uma igreja de Wittemberg, dando início, assim, à Reforma Protestante. Artistas como Grünewald, Dürer e Lucas Cranach (1472- 1553) se apressaram em aderir à causa luterana, com Dürer e Cranach pintando retratos de Lutero e Cranach ilustrando seus panfletos inflamados. Bosch o teria aprovado, pois Lutero acreditava que os seres humanos tinham uma tendência natural para o pecado e só poderiam ser redimidos pela fé em Deus e por uma bússola moral própria. Eles não deveriam poder comprar o perdão do papa com o gerador de receita que foi a venda papal das “indulgências”, uma forma de ter os pecados perdoados mediante o pagamento de uma taxa. A prensa foi um grande trunfo para Lutero por lhe permitir a rápida distribuição de seus panfletos e ideias para uma rede internacional de simpatizantes. A prensa com tipos móveis tinha sido inventada por Johannes Gutenberg por volta de 1450 na Alemanha e rapidamente se espalhou pela Europa. (Antes dessa data todos os livros eram manuscritos.) Imagens talhadas em blocos de madeira podiam ser gravadas ao lado do texto tipografado, e muitas cópias eram obtidas de forma rápida e barata. Em 1521, Lutero juntou o texto de Philip Melanchthon e as talhas de Cranach para o seu Passional Christi und Antichristi, uma série compacta do tipo compare e contraste de treze pares de imagens, em que a riqueza e os excessos da Igreja Católica eram contrapostos à vida virtuosa de Cristo. Conforme a Reforma ganhava fôlego, os protestantes começaram a desafiar o uso de imagens devocionais, exatamente como vimos os iconoclastas ortodoxos fazerem no capítulo 7, mas no princípio Lutero usou os melhores artistas para ajudar a fortalecer e disseminar suas ideias religiosas. As gravuras de Cranach são um exemplo de como a imagem poderia ser colocada a serviço dessa nova religião para criar uma propaganda poderosa. Cranach representou um Cristo descalço açoitando os vendilhões do templo, enquanto a imagem oposta mostrava o papa sobre um estrado elevado, sentado num trono almofadado, observando o dinheiro entrando enquanto assinava as indulgências. Em outro par de imagens, Cristo reza do lado de fora, enquanto o papa aproveita um suntuoso banquete. Nas talhas de Cranach, o papa muitas vezes aparece elevado, assediado por cardeais com mantos rebuscados, retirados da vida entre a população. Ele é mostrado com todas as benesses do cargo, participando de cerimônias teatrais. Por outro lado, o Cristo circula livremente entre seus seguidores, contando parábolas ou curando os enfermos. A proporção do mausoléu do papa Júlio II, no qual Michelangelo ainda trabalhava quando Cranach criou essas xilogravuras, dá uma ideia do gosto da Igreja pela grandiosidade e pelo excesso. Dürer, grande amigo de Cranach, também fez xilogravuras e usou a técnica para sua série Apocalipse, criando algumas das mais expressivas xilogravuras já vistas. No final das contas, entretanto, a xilogravura era limitada em termos de sutileza e de tonalidade, e Dürer cada vez mais optou por gravuras em metal. Seguindo os contornos de um desenho, usava-se um instrumento chamado buril para gravar uma imagem sobre uma folha de cobre, chamada placa. A tinta era esfregada nos sulcos e colocava-se papel úmido por cima. A placa e o papel eram então passados por uma prensa calcográfica que os empurrava juntos, fazendo com que a tinta fosse transferida dos sulcos para o papel. Quando o papel era retirado, obtinha-se uma impressão inversa do desenho gravado na placa de cobre. Era um processo passível de centenas de reproduções antes que as linhas da placa começassem a borrar e ela tivesse de ser abandonada ou refeita. Dürer viveu em Nuremberg e foi o mais talentoso gravador do século XVI. Ele não almejava a comunicação em massa com suas gravuras (ao contrário de Lutero e Cranach), mas sim a maior disseminação possível de sua arte, orientada para um mercado apreciador de qualidade. Diferentemente das pinturas e esculturas, que em sua maioria eram feitas sob encomenda, a esperança dos gravadores era que suas obras fossem populares. Eles viajavam pelo país ou até mais além para vender gravuras isoladas ou séries delas nas feiras das cidades. O amor de Dürer pela natureza preenchia suas gravuras, muitas vezes repletas de animais e pássaros observados em detalhe. O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, de 1513, é uma gravura grande que lhe rendeu enorme sucesso. Com base em um texto humanista de Erasmo de Roterdam, ele mostra um cavaleiro cristão a cavalo, determinado a manter seu rumo a despeito das tentativas do diabo para distraí-lo. O nível do detalhamento faz a gravura ter vida, pois é possível distinguir o brilho da pelagem do cavalo e da armadura do cavaleiro. Dürer consegue conferir à gravura toda a textura e o detalhe de uma pintura sem usar uma única cor. Agnes, esposa de Dürer, e sua criada Susanna vendiam gravuras como essa nas feiras alemãs, e quando os três viajaram para os Países Baixos, em 1520- 1521, essa foi uma das muitas gravuras que levaram. Eles vendiam cópias a mecenas, trocavam-nas por obras de outros artistas e usavam-nas para trocar por materiais caros como o ultramarino. Como ávido colecionador de gravuras e obras de arte, Dürer trocava desenhos com Rafael e adquiriu uma miniatura do Cristo da adolescente Susanna Horenbout em Gante (vamos reencontrá-la em breve). Durante a visita aos Países Baixos, ele pagava para que abrissem os retábulos e ele pudesse estudá-los, inclusive o Retábulo de Gante, que vimos no capítulo 11. Ele a denominou “uma pintura preciosíssima, cheia de reflexão”. Dürer foi também um dos primeiros neerlandeses a testemunhar a riqueza do material enviado do “Novo Mundo” pelo conquistador espanhol Hernan Cortez, ao ser exibido no Palácio Coudenberg em Bruxelas, em 1520, como parte de uma excursão pela Europa. As esculturas da Mesoamérica (hoje América Central) surpreenderam Dürer, que chamou a nação dos Astecas de a “nova terra do ouro”. “Por todos os dias de minha vida”, escreveu, “nada vi que alegrasse mais o meu coração do que essas coisas, porque vi entre elas obras de arte maravilhosas, e muito me admirei com os tipos sutis de homens em terras estrangeiras.” Para os europeus do início do século XVI, o mundo se expandia rapidamente e, conforme veremos no capítulo seguinte, Dürer era um grande entusiasta disso. Capítulo 16 - Os bárbaros estão chegando Montezuma II, governante dos astecas, reflete sobre o que acabou de ouvir. O ano é 1520 e um grupo de espanhóis liderados por Hernan Cortez, que aportaram na costa de seu reino há poucos meses, encontraram e derreteram uma imensa quantidade de ouro em esculturas e equipamentos de guerra astecas. E para quê? Para embarcar o ouro de volta ao seu país empobrecido. Eles não têm respeito, pragueja ele, são gananciosos como porcos selvagens. Ao invadir cidades inimigas, os astecas respeitam a arte que encontram, ele pensa. As esculturas toltecas dos chacmools (estátuas reclinadas), de cores vibrantes, hoje estão nos templos de sua cidade para guardar corações sacrificados, e os artistas do Vale de Tehuacán, conquistado por ele, agoratrabalham para ele nos projetos de maior destaque. Os olhos espanhóis se arregalaram desde que chegaram à cidade de Tenochtitlán. É como se jamais tivessem visto nada tão grandioso: casas construídas com pedras surgindo de hidrovias interligadas; interiores cobertos de esculturas em relevo de madeira; imensas esculturas de pedra representando deuses nos templos em forma de pirâmide. Coatlicue, em particular, parece assustá-los, e Montezuma não se surpreende: a deusa é uma das gigantescas esculturas de pedra do Templo Mayor no recinto sagrado, no centro da cidade. Ela não tem cabeça (foi decapitada), e duas cobras coral formam uma máscara escamosa que lhe permite ver à frente e atrás através dos olhos delas. No pescoço, Coatlicue usa um colar de mãos e corações humanos, oferecidos a ela em sacrifícios passados e, na cintura, uma caveira pendurada. * Por fim, o conquistador Cortez matou Montezuma II e arrasou a cidade de Tenochtitlán, por ele reconstruída como Cidade do México. Cortez desejara destruir os deuses astecas para introduzir o cristianismo, religião predominante na Espanha, um império em franca expansão. Os espanhóis derreteram muitos objetos de ouro e prata para poder levar as barras para a Europa e ordenaram a destruição das esculturas de pedra. Felizmente, Coatlicue foi poupada por ter sido soterrada, e só redescoberta séculos depois, mas inúmeras outras se perderam. Cortez enviou objetos menores para a Europa, como crânios recobertos de obsidiana e ouro, serpentes de duas cabeças forradas de mosaicos de turquesa, fantasias enfeitadas com as valorizadas penas de quetzal. Enquanto Dürer via tudo isso como “obras de arte maravilhosas”, Cortez as enviou para a Europa como curiosidades. Talvez os artistas tenham apreciado o mistério e a “magia” das obras astecas, mas, para pessoas como Cortez, não passavam de ativos financeiros: curiosidades a serem exibidas ou uma fonte lucrativa de materiais preciosos. Por outro lado, os astecas respeitavam a arte de seus adversários, à semelhança dos romanos com a arte grega. Os astecas empregaram artistas mixtecos originários de estados conquistados como Oaxaca e criaram uma metalurgia de altíssima qualidade. Eles também reutilizavam e estudavam a arte de outras culturas como a dos chacmools toltecas e as cabeças olmecas (vimos essas esculturas gigantescas no capítulo 2). Para os astecas, os espanhóis deviam parecer bárbaros, derretendo artefatos preciosos e destruindo esculturas e prédios culturais. Nem todo país europeu era tão bárbaro ao abordar terras estrangeiras. No início do século XVI, os portugueses também navegavam em grande escala e também buscavam ouro. Por volta de 1520, já tinham explorado a costa ocidental da África, dobrado o Cabo da Boa Esperança e estabelecido rotas de comércio até a Índia. Em torno de 1543 haviam chegado ao Japão. A arte produzida nessa época registra a extensão desses encontros transculturais. Em 1521, Dürer se tornara amigo íntimo de Rodrigo Fernandez d’Almada, secretário de comércio internacional de Portugal na Antuérpia. Dürer adquiriu para si obras de arte africana, gastando três florins (cerca de 500 libras esterlinas hoje) em dois saleiros de marfim de Serra Leoa. (Para contextualizar valores, Dürer pagara dois florins pela miniatura de Susanna Horenbout, e uma pintura pequena de sua autoria seria vendida pelo mesmo valor.) Saleiros feitos por escultores sapi de Serra Leoa eram vendidos aos portugueses há várias décadas na época em que foram importados pela Antuérpia, o centro do comércio intercontinental dos portugueses no norte da Europa. Os artistas esculpiam o marfim em profundidade para criar um recipiente esférico central – o saleiro – que era sustentado por um conjunto de figuras. Recobertos de entalhes detalhados, esses saleiros não eram para uso, mas para serem olhados e admirados como objetos de arte. Quando Portugal estreitou os laços com a África Ocidental, houve certo intercâmbio, resultando em saleiros afro-portugueses em que esculturas de homens, mulheres e animais africanos se misturavam às de comerciantes, soldados e navios portugueses e ainda cenas bíblicas. Hoje, o nome dos artistas criadores desses saleiros é desconhecido, mas eram artífices altamente qualificados e se adaptavam rapidamente às necessidades de seus novos mecenas. Eles usavam gravuras de livros de orações e diários de viagens europeus para criar uma fusão das duas culturas. Saleiros comparáveis a esses também foram produzidos no estado de Benin (hoje parte da Nigéria) por artistas edo e owo. Em um exemplar do século XVI, quatro comerciantes portugueses muito bem trajados circundam o saleiro, com uma pequena nau portuguesa completa, com o cordame e um vigia empoleirado espiando no alto. A escultura dos saleiros do Benin não tem o mesmo refinamento da de Serra Leoa, mas as figuras são ricas em detalhes, desde as contas do crucifixo à volta do pescoço de um dos comerciantes às suas botas decoradas. São figuras que têm mais em comum com os painéis em relevo de bronze e latão feitos no Benin nessa época. Os comerciantes portugueses compravam marfim em troca de manilhas de latão e cobre, uma forma de moeda parecida com um bracelete pesado de metal que podia ser derretida para criar obras de arte. Benin e Portugal tinham uma boa relação comercial, e os artistas de Benin registravam as reuniões e as trocas históricas entre os portugueses e o obá (rei de Benin) sobre placas retangulares de latão e bronze, exibidas nos pilares do palácio do obá. Os artistas de Benin trabalhavam com o bronze desde o século XIII, tendo aprendido seu ofício com a gente de Ifé, que conhecemos no capítulo 9. Eles trabalhavam em guildas específicas, a saber, uma para o bronze e outra para o marfim, e moravam na rua Igun, perto do palácio do obá. As placas faziam um relato da vida do obá, glorificando-o de forma semelhante às das esculturas em relevo de Assurbanipal, que vimos no capítulo 2. São registros de batalhas importantes assim como reuniões entre os representantes da corte e os comerciantes portugueses. Em muitas delas o obá aparece fortemente armado com um robusto capacete chapeado e um fio de presas de leopardo em volta do pescoço e da testa. Ele parece invencível, sempre ladeado por subalternos, brandindo escudos e lanças. Os portugueses são identificados com facilidade: alguns usam bigode e todos têm barba. Os cabelos compridos e lisos emolduram o rosto estreito, com o chapéu arredondado acima do nariz pontudo. O colete ajustado é usado sobre a túnica enfeitada, com um saiote pregueado. Por volta da década de 1540, os portugueses já haviam navegado até o Japão, e se estabelecera um fluxo regular de navios portugueses pelos portos japoneses até o país banir o comércio estrangeiro, no início do século XVII. Os artistas japoneses reagiram à chegada dos portugueses com uma nova forma de arte em tela em que figuravam os namban-jin (“os bárbaros do sul”), e essas telas, que chegavam a ter quatro metros e muitas vezes eram feitas em pares, tornaram-se extremamente procuradas por colecionadores japoneses. As melhores telas originaram-se na escola Kano em Quioto, uma das escolas mais famosas na história da pintura japonesa. Fundada um século antes por Kano Masanobu (1434- 1530), ela continuou até o século XIX. Kano Masanobu começou trabalhando com o estilo de pincelada chinês, mas a escola logo desenvolveu uma tradição própria e representava cenas do cotidiano usando o estilo japonês yamato-e, cheio de cores brilhantes e o uso irrestrito de folhas de ouro. O uso do ouro simplificava as composições (a forma como a obra de arte é organizada), substituindo céus e nuvens, estradas e paisagens. A atenção era concentrada no que restava, especialmente nas figuras humanas. Os comerciantes portugueses eram representados com bombachas, calças folgadas diferenciadas, usadas pelos europeus para repelirmosquitos, enquanto é possível identificar marinheiros indianos, malaios e africanos entre os tripulantes dos navios de comércio portugueses. Por essa época, houve também dentro da Europa um intercâmbio de ideias culturais, à medida que artistas de diversos países migraram para as cortes reais mais abastadas. Susanna Horenbout (1503-c.1554), ainda adolescente, mudou-se para a Inglaterra com seu irmão Lucas (por volta de 1495-1544). Ela crescera trabalhando na oficina do pai Gerard, em Gante, e era conhecida por sua habilidade com pinturas em miniatura, pinturas pequeníssimas de figuras religiosas ou retratos de nobres, muitas vezes medindo somente alguns centímetros. Horenbout e seu irmão tinham sido convidados para ir para a Inglaterra pelo cardeal Wolsey, conselheiro de Henrique VIII, e ambos pintaram muitas miniaturas do rei. Em 1526, quatro anos depois de juntar- se à corte de Henrique, Horenbout aperfeiçoou a imagem do rei. Enquanto o irmão pintara Henrique aos 35 anos com um rosto volumoso e feições comprimidas, ela afilou mais o maxilar do rei e acrescentou viço ao seu olhar. Susanna deu ênfase ao peito largo, incluiu uma barba para conferir seriedade e ajustou o chapéu preto, com um caimento mais jovial. Assim, ela fez Henrique VIII parecer seguro e poderoso, e essa miniatura tornou-se o modelo para o “look” oficial do rei. Artistas, como Hans Holbein, o Jovem (1487/8-1543), seguiram os passos dela, e essa miniatura se tornou a imagem de referência dos retratos dos Tudor. Henrique VIII parece ter ficado grato, pois, quando Susanna se casou com John Parker, mais tarde naquele mesmo ano, o rei promoveu Parker de uma posição inferior na corte a guardião do Palácio de Westminster como presente de casamento. As miniaturas atingiram o auge no século XVI. Eram trocadas entre a realeza e nobreza europeias como presentes diplomáticos, e os melhores artistas flamengos e holandeses eram muito requisitados na Inglaterra. O valor desses artistas estava em sua atenção aos detalhes, um legado do Renascimento nórdico, e na capacidade de trabalhar numa escala diminuta. Mais tarde, Horenbout trabalhou junto a outra artista flamenga, Levina Teerlinc (década de 1510-1576), para a rainha Catarina Parr, a sexta esposa de Henrique VIII. Catarina encomendou muitas miniaturas para dar a amigos e aliados, e elas se tornaram acessórios elegantes nos vestidos, usadas como joias. O alemão Holbein pintou Henrique VIII por diversas vezes, mas é uma de suas encomendas particulares, um imenso retrato duplo chamado Os embaixadores, de 1533, que mais nos cativa hoje. Pintado no ano em que Henrique VIII se separou de Roma e fundou a Igreja Anglicana, é um retrato do embaixador francês em Londres, Jean de Dinteville, e seu amigo íntimo Georges de Selve, bispo de Lavaur. De pé, usando trajes refinados, apoiam-se em um móvel com prateleiras repletas de objetos exóticos, científicos e musicais, incluindo um tapete turco, um alaúde, um globo celeste e outro terrestre e um hinário luterano. É tudo tão detalhado que sentimos como se Dinteville pudesse alcançar um dos globos a qualquer momento. Por trás da dupla, a cortina pesada foi afastada para revelar um pequeno crucifixo de prata e, no primeiro plano do quadro, em ousada exibição de ilusão, uma imagem de caveira distorcida, que só se torna clara quando vista de determinado ângulo (do canto direito inferior). Será que Dinteville posicionou o quadro numa escadaria, para que se pudesse ver a caveira ao subi-la? Seria a mortalidade o tema principal de Os embaixadores, com objetos e roupas elegantes, tudo transitório, e somente Deus eterno? Por que acrescentar o livro protestante de Martim Lutero ao retrato de um bispo católico? São perguntas sem resposta que hoje ainda nos fascinam. Holbein era um artista da corte, trabalhando ao lado dos Horenbout e de Teerlinc. Pelo mundo inteiro, a realeza empregou os melhores artistas internacionais para exaltar seus reinos e reinados. O sultão Suleiman o Magnífico, que reinou sobre o império otomano por mais de quarenta anos (1520-1566), mantinha muitos artistas na corte, como turcos, islamitas e europeus, e seu mecenato promoveu uma época áurea na arte otomana. Uma equipe de artistas, hoje anônimos, se empenhou na execução do merecidamente magnífico Süleymannâme (O livro de Suleiman), uma crônica suntuosa dos primeiros 35 anos do sultão no poder. O livro, um poema épico em persa de autoria de Arif, contém 65 pinturas de página inteira, muitas delas representando um Suleiman idealizado, participando de várias batalhas sangrentas. A cabeça de uma das vítimas explode numa nuvem de sangue ao ser golpeada pelo sabre de um soldado otomano. Outra é pisoteada até a morte por um elefante enquanto Suleiman observa. Panos de fundo de ouro e uma perspectiva plana dão às pinturas a sensação de mosaicos bizantinos, mas a padronagem detalhada em toda a extensão é originária da arte islâmica e a riqueza das cores, das miniaturas persas. Essa fusão de estilos é apropriada à arte que registra um império que se estende da Argélia e Egito até a Síria, Hungria e o Mar Negro. Na segunda metade do século XVI, uma corte europeia excedeu as demais no mecenato artístico. A corte espanhola de Felipe II, que reinou por mais de quarenta anos a partir de 1556, atraiu alguns dos melhores artistas estrangeiros, incluindo Ticiano e Anguissola, que conheceremos no próximo capítulo. Capítulo 17 - O reinado na Espanha Ano de 1555, em Cremona, norte da Itália. Sofonisba Anguissola observa Minerva e Lúcia, duas de suas cinco irmãs, jogando xadrez. Sofonisba é a irmã mais velha, e com um pedaço de carvão e está esboçando as meninas, tentando captar suas expressões. Ela cresceu tendo aulas particulares de desenho e pintura e agora é uma artista. Sofonisba já as pintou jogando xadrez antes. No Jogo de xadrez, Minerva e Lúcia estão uma de frente para a outra e o tabuleiro no meio, sobre uma mesa estreita, coberta por um tapete turco estampado. Europa, a irmã caçula, assiste ao jogo. Minerva ergue a mão direita em protesto e Lúcia olha para se certificar de que todos estão observando, antes da sua jogada. As regras do xadrez acabam de ser atualizadas na Itália, criando uma rainha com amplos poderes (o jogo que hoje conhecemos). Talvez a mão de Lucia esteja sobre essa peça, ao usar esse trunfo em seu benefício. Europa ri ante a reclamação de Minerva. No Jogo de xadrez, Sofonisba baseou a expressão de Europa em um desenho feito há algum tempo, ao captar a irmã rindo enquanto estudava o alfabeto. O pai das meninas, Amilcare, enviou o desenho para o famoso Michelangelo, pedindo sua opinião. Amilcare tinha ambições em relação às filhas e promovia com entusiasmo a arte de Sofonisba. Michelangelo respondeu com um desafio, para ver se ela seria capaz de desenhar um menino chorando, cena que ele considerava mais difícil de captar. E, assim, ela esboçou em carvão seu irmão mais novo Asdrubale, cuja curiosidade o levou a ter os dedos mordidos por um lagostim na cesta da irmã. No esboço, ele traz a mão recolhida e contorcida pelo choque, enquanto a boca se abre para chorar e o cenho se franze transmitindo a dor. É um desenho cheio de expressão. Michelangelo ficou tão impressionado que o enviou de presente a Cosme de Médici, junto a um desenho dele. Menino mordido por um lagostim acabaria na coleção do bibliotecário humanista Fúlvio Orsini em Roma, servindo de influência para outros artistas ao mostrar como um único momento podia ser captado sem perder sua vivacidade. * Sofonisba Anguissola (1532-1625) era extremamente habilidosa em captar emoções fugazes, criando retratos pessoais do dia a dia, as pinturas de gênero. Ela seguiu o exemplo deixado pelos artistas flamengos e desencadeou uma nova tendência na Itália. É possível que ela tenha feito esboços regulares da vida real a fim de desenvolver a habilidade refinada para captaremoções e expressões, e seu quadro Jogo de xadrez, assim como o do Menino mordido por um lagostim, exibe toda a vivacidade e a vitalidade do momento vivido. Anguissola era ambiciosa, mas sua origem nobre a impedia de ser vista vendendo seus trabalhos. Assim, quando o rei Felipe II requisitou sua presença na corte espanhola em 1559, ela parecia estar diante de uma grande oportunidade. A corte de Felipe II era a mais poderosa da Europa. Ali, Anguissola se tornou dama de companhia da terceira esposa de Felipe, Elizabeth, e artista respeitada, retratando vários membros da família real, inclusive Felipe. Felipe II transformou as artes na Espanha, tornando-a internacionalmente respeitada durante seu longo reinado, de 1556 a 1598. Muitos artistas estrangeiros foram convidados à sua corte e ele colecionou obras de toda a Europa. O rei acumulou 1.500 pinturas, e as exibições de arte em seus diversos palácios estabeleceram o padrão para as modernas galerias da atualidade. O vasto império de Felipe abrangeu a Europa, as Américas e as Filipinas, e incluiu os Países Baixos (hoje Bélgica e Holanda), onde ele viveu por uma década antes de regressar à Espanha em 1559, ano em que Anguissola juntou-se à sua corte. Nunca mais ele voltaria a se aventurar fora de seu país. O ressentimento em relação ao domínio espanhol nos Países Baixos aumentou por toda a década de 1560, e por volta de 1568 os dois países estavam em guerra. Felipe II estudara arte neerlandesa e admirava seu naturalismo detalhado. Ele adquiriu muitos exemplares e possuía a maior coleção de obras de Hieronymus Bosch, incluindo o Jardim das delícias terrenas, que vimos no capítulo 15. A tia de Felipe enviou-lhe a Descida da cruz, depois que ele a admirou. (Também a admiramos no capítulo 11.) Essas obras de arte estão hoje no Museu do Prado em Madri, na Espanha, porque Felipe as incorporou à sua coleção há quatro séculos. Ainda que Felipe adquirisse muitas obras de pintores neerlandeses, a maioria dos artistas da corte era italiana, como Anguissola. Os artistas italianos eram capazes de pintar uma imagem e enchê-la de emoção. Anguissola tornou-se uma inspiração para artistas mulheres que desejavam seguir seu exemplo, como Lavinia Fontana, que conheceremos no próximo capítulo. À época em que Anguissola juntou-se à corte de Felipe II, outro artista italiano, Ticiano (Tiziano Vecelli, 1490- 1576), finalizava um ciclo grandioso de pinturas mitológicas chamadas “Poesias” para o rei. Em Veneza, os retábulos do jovem artista Ticiano eram os maiores que a cidade já vira, com figuras cheias de energia e expressão, cores ricas e arrojadas. Ele estudara com os irmãos Bellini e era famoso pelos retratos realistas. No entanto, com a idade, seu estilo se tornou mais solto e vibrante, e ele passou os últimos anos de vida trabalhando nas encomendas de Felipe II. As “Poesias” de Ticiano se basearam na mitologia clássica do poeta romano Ovídio em Metamorfoses e levaram onze anos para serem concluídas. O que a fervorosíssima corte católica de Felipe II teria feito delas? São, em sua essência, pinturas obscenas magnificamente pintadas. São mais de vinte mulheres ao longo das seis telas, todas nuas ou com seios e coxas à mostra. Duas das “Poesias” exibem Júpiter, rei dos deuses, uma representação de Felipe II. Em ambas as cenas, Júpiter viola uma deusa. Usa um disfarce de chuva de ouro para possuir Dânae e outro de touro ao raptar Europa. São afirmações enfáticas de poder: do domínio de Felipe sobre grande parte da Europa e da supremacia continuada dos homens sobre as mulheres. El Greco (“o grego”, nascido Doménikos Theotokópoulos, 1541-1614), um dos principais artistas do século XVI, foi excluído do generoso mecenato de Felipe II, mesmo com sua mudança para a Espanha em busca de encomendas reais. El Greco nasceu em Creta e era de descendência grega. Mudou-se para Veneza com cerca de vinte anos, depois de treinar e trabalhar como pintor de ícones, segundo a tradição da Virgem de Vladimir que vimos no capítulo 8. Ao viajar pela Itália, seu estilo rígido de pintura se tornou mais relaxado e ele adotou as cores vibrantes de Ticiano, com quem esteve por algum tempo como aluno já mais experiente. Em última análise, El Greco foi um artista preso entre dois tipos de pintura completamente diferentes e suas obras italianas não entusiasmam hoje. Somente depois de se mudar para a Espanha, onde viveu por quase quarenta anos até sua morte, é que seu estilo maduro tomou forma, uma mistura curiosa de tudo o que absorvera ao longo da vida. Suas pinturas mais tardias explodem de cor, guardam um desprezo intencional pela perspectiva (derivado de seus estudos como pintor de ícones) e impressionam pela carga emocional e espiritual, pintadas como se estivessem numa nação açoitada em um frenesi religioso causado pela Inquisição espanhola. El Greco foi cortado do mecenato de Felipe depois de pintar o Martírio de São Maurício e a legião tebana, de 1579 a 1582, para a capela do rei no palácio do Escorial. Considerada imprópria por exibir nus masculinos e rostos conhecidos de líderes militares, a pintura foi rapidamente substituída. A despeito desse revés, as pinturas religiosas visionárias de El Greco logo o tornaram um dos artistas mais requisitados da Espanha. O país se encontrava nas garras do misticismo católico, no qual fiéis seguidores acreditavam poder falar com Deus diretamente por meio de visões. Na Visão de São João de El Greco (de 1608 a 1614), não faz sentido ele tentar criar uma situação crível para suas imagens porque a verdade a ser transmitida é espiritual, e não física (conforme acontece na pintura dos ícones). O legado dos azuis e vermelhos de Ticiano dão vigor aos trajes desalinhados de São João que cai de joelhos, as pernas entreabertas e os braços erguidos, o queixo voltado para cima, os olhos revirados, vivenciando a visão. O corpo é trabalhado a fim de maximizar a expressão. As coxas do santo têm o tamanho de pernas inteiras e o pescoço sustenta uma cabeça incrivelmente pequena. Por trás dele, um céu que parece vivo mergulha por toda a tela. Em seus últimos trabalhos como esse, o estilo de El Greco é de tamanha intensidade que nenhum artista ousou seguir seus passos até o século XX. Na Itália, Veneza permaneceu como um centro de arte importantíssimo. Agora, com Ticiano trabalhando quase em caráter exclusivo para Felipe II, as encomendas eram atribuídas a artistas mais jovens como Tintoretto (Jacopo Robusti, 1518-1594) e Veronese (Paolo Caliari, 1528- 1588). Elas encheram as Scuole, as igrejas e os palácios de Veneza com telas suntuosas e vigorosas como A última ceia de Veronese, de 1573 (renomeada Banquete na casa de Levi), pintada para um convento veneziano. A exuberância pictórica de Tintoretto e Veronese foi contrabalançada por outros italianos que passaram a vida inteira dentro de mosteiros e conventos. Irmã Plautilla Nelli (Polissena Nelli, 1523-1588) entrou para o convento dominicano de Santa Catarina em Florença aos catorze anos. Autodidata, ela aprendeu observando as obras de arte expostas ao público na cidade. Nelli tornou- se prioresa do convento e dirigiu um grupo de artistas que vendia pinturas e esculturas para outros centros religiosos e também para a nobreza florentina. Sua versão pessoal de A última ceia (por volta de 1568), com a alvura da toalha de mesa e a simplicidade na ambientação, tem mais a ver com a versão de Leonardo da Vinci do que com a de Veronese, seu contemporâneo. É a primeira A última ceia conhecida de autoria feminina e foi instalada no refeitório do convento (salão de jantar). Ela é imensa, medindo quase sete metros, mas Nelli não lutava por um reconhecimento público como os competitivos artistas venezianos. Seu objetivo primordial era criar condições para as irmãs, suas companheiras, se conectarem com o tema retratado, e ela recorreu a exemplos históricos no lugar de ideias contemporâneaspara dar suporte à meditação delas. Na época em que Nelli concluiu A última ceia, o Renascimento terminara por completo. Entre os artistas, a conversa agora girava em torno do estilo, ou maniera, e as pinturas se tornaram mais rebuscadas e exageradas. Estilo, ou como algo aparenta, era mais importante do que como realmente pareceria se esboçado com base na vida real. Braços e pernas ficaram mais alongados e as poses, mais complicadas. Hoje em dia, esses artistas, como Parmigianino (Francesco Mazzola, 1503-1540) e Pontormo (Jacopo Carucci, 1494-1557) são conhecidos como maneiristas em seu conjunto. Giambologna (Jean de Boulogne, 1529-1608) foi um maneirista que definiu Florença, direta e firmemente, como o centro europeu da escultura no século XVI. A ironia é que ele não era italiano, mas nascera em Flandres (hoje parte da Bélgica). Viajara para a Itália, então com 21 anos, determinado a estudar escultura clássica em Roma. As esculturas helenistas, que captavam a explosão do movimento, como Laocoonte, eram para ele especialmente fascinantes. Na jornada para casa, foi persuadido a ficar em Florença pelos Médicis, que ainda governavam a cidade. Seu nome foi italianizado para Giambologna pelos novos mecenas italianos. Giambologna tornou-se o escultor mais influente em Florença, criando obras tecnicamente espantosas que foram bem além daquilo que escultores clássicos e renascentistas julgariam ser possível. A obra-prima que lhe deu fama foi a escultura Sansão decapitando um filisteu, em tamanho maior que o natural, datada de 1560-1562, originalmente a peça central de uma fonte. É uma aula magistral de movimento em pedra, os dois corpos trabalhados e contorcidos para criar a dramaticidade da peça como um todo. De pé, Sansão brande a queixada de asno como arma na mão direita. O corpo nu, os músculos retesados, prevendo a execução do golpe fatal, com o tronco retorcido pelo esforço. Com a mão direita, Sansão puxa para trás a cabeça do filisteu agachado, enquanto o homem se contorce debaixo dele tentando se libertar. Nessa escultura, tudo diz respeito a movimento, na medida em que os dois corpos se enroscam um no outro. É preciso rodear a estátua para poder vê-la sob todos os ângulos, um redemoinho dramático de ação, uma declaração de bravata escultural. O maneirismo é um termo generalista inventado no século XVIII para situar o período entre o Renascimento e o início do Barroco. Alguém como Giambologna, com esculturas cheias de movimento e dramaticidade teatral, poderia facilmente ser tomado como um escultor do Barroco primitivo. Ele foi o precursor da arte de gigantes do Barroco como Caravaggio e Bernini, dois artistas que nos surpreenderão com sua teatralidade nos próximos capítulos. Capítulo 18 - O teatro da vida É 1595 e Caravaggio está de mudança e prestes a ocupar seus novos aposentos na casa do cardeal del Monte, em Roma. O cardeal comprara suas pinturas A adivinha e Os trapaceiros no ano anterior e, agora, Caravaggio vai trabalhar para ele. O pintor reflete sobre a sorte que tem. Veio para Roma somente há três anos, então um “pavio curto” de 21 anos, empregado como pintor de flores e frutas no ateliê de Cavaliere d’Arpino. Agora tem um cardeal como mecenas. Caravaggio adora pintar rapazes bonitos de lábios carnudos e olhos brilhantes, sedutores e provocantes. Ele tem em mente uma nova pintura, inspirada em um desenho visto recentemente na coleção de um dos conhecidos do cardeal, Fúlvio Orsini, bibliotecário do cardeal Farnese. O desenho é Menino mordido por um lagostim, de Sofonisba Anguissola. Na versão de Caravaggio, Rapaz mordido por um lagarto, ele pinta um adolescente, e não uma criança pequena. Seu desejo, porém, é transmitir a mesma ideia de choque: a mão direita sendo recolhida e sacudida, na tentativa de se livrar do bicho que a mordeu, o cenho do jovem crispado de dor, a boca aberta. Caravaggio pode vê-la agora, cerejas maduras espalhadas pela mesa em frente ao rapaz, uma flor atrás da orelha. A delícia da juventude e a mordida afiada do amor. Ele gosta de pintar esses jovens, mas sabe que precisa de encomendas maiores se pretende fazer frente a Cavaliere d’Arpino e tornar-se o pintor mais requisitado em Roma. O cardeal del Monte pode ser a pessoa certa para ajudá-lo no seu intento. * Michelangelo Merisi de Caravaggio (1571-1610) residiu com o cardeal del Monte por cinco anos. Por essa época, havia outro rival desejoso do título de maior artista de Roma, Annibale Carracci (1560-1609). Carracci, assim como Caravaggio, era do norte da Itália, e chegara de Bolonha, onde mantinha um ateliê e uma academia de arte bem-sucedidos com o irmão Agostino e o primo Ludovico. Lá ele havia defendido a volta ao desenho mais natural e real, contrastando com os exageros artificiais dos maneiristas, e estudara a obra de Ticiano e Veronese. Ele chegara em 1594, já como artista de sucesso, e rapidamente foi beneficiado com encomendas respeitáveis. Enquanto Caravaggio estudava a coleção de desenhos do bibliotecário de Farnese, Carracci pintava os afrescos de um teto inteiro do palácio do cardeal Farnese. Nele fervilham histórias de amor da mitologia antiga com deuses nus e deusas saltitando em paisagens idealizadas, cada cena emoldurada por “esculturas” totalmente pintadas em um trompe l’oiel perfeito. O teto fora concebido para complementar a coleção impressionante de esculturas antigas de Farnese, muitas das quais eram exibidas em nichos logo abaixo. No entanto, seu real objetivo pode ter sido provar que a pintura, e não a escultura, era a arte maior, um debate permanente conhecido como paragone que apimentava os textos teóricos contemporâneos. Roma efervescia de tanto talento artístico na virada do século XVII. Por que tantos artistas ainda se mudavam para Roma? Era a sede dos bolsos mais abarrotados e das encomendas mais expressivas, à medida que o poder da Igreja Católica voltava a aumentar. Artistas vinham também de toda a Europa para estudar arte clássica e o brilho renascentista de Michelangelo e Rafael. Em Roma, eles competiram por encomendas ou foram jogados um contra o outro, criando pinturas para o mesmo local. Em julho de 1600, Carracci recebeu a incumbência de pintar os afrescos do teto e o retábulo da capela de Tibério Cerasi na Santa Maria del Popolo, em Roma. Dois meses mais tarde, Cerasi, advogado rico e tesoureiro geral do papa, encomendou a Caravaggio a pintura de dois grandes painéis para ladear o mesmo altar. O retábulo de Carracci, A assunção da Virgem, é uma aula magistral de movimento harmonioso. A Virgem sobe aos céus, os braços abertos. Uma luz divina lhe confere um halo dourado, enquanto os anjos a levam para o alto. Ao nos aproximarmos da capela, ela parece nos dar boas- vindas, de braços abertos, um contraste e tanto diante dos painéis pintados por Caravaggio nas paredes adjacentes. Em vez dos azuis, vermelhos e dourados transcendentes, caímos diretamente por terra, na paleta de marrons, brancos e ocres de Caravaggio. Há vislumbres de vermelho (para atrair a atenção, rivalizando com a Assunção), mas seus dois painéis têm raízes na terra, no mundo real, a despeito da temática sacra. À direita, na Conversão de São Paulo, vemos São Paulo estatelado no chão de frente para um cavalo malhado que segue seu caminho, contornando-o. São Paulo ergue as mãos para o céu, o corpo sob o efeito dramático do escorço, os olhos cegos pela luz divina, e é como se ele estivesse ali mesmo, à nossa frente. O uso extraordinário que Caravaggio faz do efeito de luz e sombra lança São Paulo no nosso espaço. Seus braços parecem esculpidos, ocupando, de fato, um espaço, ao contrário dos da Virgem na Assunção de Carracci, que permanecem como parte da superfície pintada. À esquerda, na Crucificação de São Pedro, Caravaggio foi ainda além, e a energia é tamanha no zigue-zague da composição que ela parece viva. Para nós, hoje, criados para consumircinema e televisão, o realismo dramático de Caravaggio se conecta conosco de uma forma que o estilo clássico idealizado de Carracci não consegue. É um exemplo de como temos de ser cuidadosos ao observar a arte e compreender que trazemos as experiências pessoais para esse momento. Caravaggio nos fala em alto e bom som, e os artistas contemporâneos ainda se sensibilizam com suas poderosas telas cheias de dramaticidade. Hoje, Caravaggio e Carracci são chamados de artistas barrocos. Barroco é um termo geral, aplicado a toda a arte do século XVII. Há em seu cerne um sentido de teatralidade, de movimento, de ação, tipificado pelas pinturas eletrizantes de Caravaggio. Entretanto, naquela época, era o estilo clássico de Carracci, enraizado na escultura antiga, na mitologia grega e no Renascimento, que dominava o ensino nas novas academias de arte. De forma semelhante, os primeiros biógrafos da arte preferiram o idealismo de Carracci ao realismo surpreendente de Caravaggio e, consequentemente, o estilo de Carraci se tornou a aspiração de todo aluno de arte pelos três séculos seguintes. À época das obras da capela de Cerasi, Caravaggio e Carracci eram rivais absolutos. Vários imitadores do estilo dramático de Caravaggio brotaram quase que imediatamente pela Europa e ficaram conhecidos como os Caravaggisti [caravagistas]. A academia de Carracci em Bolonha garantia um suprimento permanente de classicistas para fazer frente a eles, como Guido Reni (1575-1642). Lavinia Fontana (1552-1614) também cresceu em Bolonha, mas era impedida de frequentar a academia de Carracci por ser mulher. Felizmente, seu pai, Próspero Fontana, era um dos principais pintores maneiristas de Bolonha e a ensinou em casa. Mesmo casada e com onze filhos, Lavinia Fontana era a provedora da casa, pintando cenas religiosas, retábulos e retratos da nobreza bolonhesa, enquanto tocava a própria oficina. A Universidade de Bolonha, fundada em 1088, avançara muito na formação de mulheres e, por conseguinte, a cidade liderava o apoio às mulheres artistas. Lavinia estabelecia o preço de suas obras, algo impossível para mulheres artistas antes dela, e trabalhou em encomendas para os Médici e Felipe II de Espanha, conscientemente competindo com o legado de Sofonisba Anguissola. Seus primeiros biógrafos afirmam que ela ganhava o mesmo que os principais pintores da época, e relatos da igreja observam que ela teria recebido mais pelo retábulo da catedral de Bolonha do que a família Carracci por uma obra semelhante. Depois de uma carreira brilhante em Bolonha, Fontana mudou-se com toda a família para Roma em 1604 para atender ao papa. Uma de suas primeiras pinturas em Roma foi Minerva nua. A deusa romana da guerra veste um tipo de combinação transparente tecida com ouro, que reflete a luz. Ela usa um capacete com plumas vermelhas e brancas e está se vestindo para a guerra. Apesar do corpo nu, visível sob a combinação, Minerva não é apresentada como um objeto passivo de beleza. Ela é vista de lado, caminhando na direção do peitoral que logo usará, a coxa robusta, nádegas e bíceps expressando a força física. Essa pintura foi elogiada em um poema contemporâneo de Ottaviano Rabasco e Fontana ficou bastante famosa em Roma, sendo aceita pela Academia de São Lucas, só de artistas masculinos, e vivendo na cidade até sua morte, em 1614. À época em que Fontana faleceu, a Roma de Carracci e Caravaggio também já não existia. Carracci morrera em 1609, aos 49 anos, depois de um colapso nervoso, e foi sepultado ao lado de Rafael, no Panteão. Caravaggio sumiu de Roma depois de matar Ranuccio Tomassoni em um duelo ilegal e morreu na Toscana em 1610, aos 38 anos. Mas seus estilos sobreviveram na obra dos caravagistas e dos pintores da academia clássica. O pintor Orazio Gentileschi, um dos amigos de Caravaggio, foi caravagista. Sua filha, Artemisia (1593- 1653), cresceu no meio de artistas, e o talento precoce foi alimentado pelo pai. Ainda adolescente, ela já pintava cenas bíblicas grandes como Susana e os anciãos (1610), baseada numa história em que dois homens espiam a jovem Susanna enquanto ela se banha, na esperança de se aproveitarem dela. Para Artemísia Gentileschi, a vida imitou a arte, quando dois homens (um deles um artista que trabalhava com seu pai) a estupraram aos dezessete anos de idade. Após um longo processo judicial, os dois foram banidos de Roma, mas nunca saíram de lá. Ela, por sua vez, mudou de cidade e casou-se com outro pintor em Florença e ali viveu por sete anos antes de voltar para Roma. O período passado em Florença garantiu a Gentileschi a reputação de pintora excepcional. Ela reagiu à obra de Caravaggio, criando pinturas muito concretas e reais. Ela reinterpretou um tema pintado por Caravaggio em 1599, Judith degolando Holofernes, atribuindo uma credibilidade muito maior à viúva judia Judith, que golpeia o pescoço do general assírio Holofernes, bêbado, prestes a destruir Betúlia, sua terra natal. A primeira versão de Gentileschi (1612-1613) mostra Holofernes deitado na cama, com a cabeça voltada para o espectador, com Judith e sua criada Abra, as duas outras figuras na tenda escura. Ciente de que uma mulher como Judith não teria forças para enfrentar um guerreiro, Gentileschi situa a criada segurando-o embaixo enquanto Judith passa a espada pelo pescoço dele. Judith agarra um punhado de cabelos do soldado com a mão esquerda e manuseia a espada, com um joelho sobre a cama para manter o equilíbrio. Em sua pintura, Gentileschi transfere a energia que Caravaggio dá a Holofernes agonizante para as duas mulheres que o assassinam. No espaço de um ano, a jovem de vinte anos pintou a cena novamente, dessa vez para Cosme II de Médici. Na segunda versão, ela deu mais força ainda a Judith, que agora torce o corpo inteiro por trás de uma espada mais longa. O sangue mancha os lençóis e espirra do pescoço degolado, respingando nos braços, no vestido e nos seios de Judith. Gentileschi não hesita em mostrar como é, de fato, o corpo de uma mulher em ação. O cenho franzido e o queixo dobrado indicam sua tensão com a lâmina, e os seios são comprimidos e deslocados dentro do corpete quando ela se vira. É inevitável pensar que Gentileschi deve ter passado um bom tempo em frente ao espelho estudando essa pose para tornar a cena o mais realista possível. Com esse quadro, ela confirmou seu lugar como um dos grandes nomes da pintura barroca. Tornou-se a primeira mulher a ser aceita na Academia de Arte de Florença e conseguiu manter um ateliê fora de casa, tarefa nada fácil para uma mulher daquele tempo. Suas representações de mulheres como heroínas verossímeis da história, ativas e empenhadas, são um contraste gritante com aquelas pintadas por artistas masculinos bem-sucedidos da época, que ainda costumavam pintá- las como objetos passivos do desejo. As carreiras de Gentileschi e Fontana representam um divisor de águas para as mulheres artistas. Antes delas, houve mulheres artistas bem-sucedidas, que pintaram reis e rainhas como Susanna Horenbout e Sofonisba Anguissola, ou estiveram à frente de escolas de pintura como Plautilla Nelli. No entanto, como podemos notar nos capítulos até agora, elas aparecem como exceção e não como regra. Com Gentileschi e Fontana, porém, há uma mudança. Elas assumem temas tradicionalmente pintados por homens, cenas bíblicas e nus femininos, e os apresentam sob um ponto de vista diferente, transferindo o poder para as mulheres representadas, que parecem fortes e seguras. Ambas foram reconhecidas como talentos excepcionais em seu tempo de vida, tornando-se as primeiras mulheres a entrar para as academias de arte exclusivas para homens em Roma e Florença. Gentileschi e Fontana provaram que as pintoras podiam se equiparar aos homens e ser aceitas por seus colegas (masculinos). Você verá o impacto exercido por elas conforme mais e mais artistas mulheres aparecerem no livro daqui em diante.Capítulo 19 - Novas formas de olhar É 1614 e Peter Paul Rubens, de pé, vê-se diante da nave branca elevadíssima da Catedral de Nossa Senhora em Antuérpia. Ele se posicionou entre duas colunas, olhando para uma capela próxima ao altar-mor. Acima do altar da capela, em uma moldura dourada, está a sua Descida da cruz. A pintura é enorme, com mais de três metros de altura, e é ladeada por dois painéis que se fecham sobre a figura central do Cristo. Rubens observa a pintura. Ela exibe três sustentáculos do Cristo: a Virgem Maria, Simeão e o crucifixo em que foi morto. No painel esquerdo, ele vê Maria, vestida como uma dama flamenga elegante, a mão pousada sobre o ventre, abrigando o Cristo ainda por nascer. No painel direito, vê o velho Simeão, que segura o Cristo ainda bebê. O que acaba chamando atenção, porém, é o painel central do crucifixo. O corpo sem vida do Cristo é removido conforme o sol se põe no Gólgota, perto de Jerusalém, e gotas de sangue mancham o tecido branco suspenso por trás dele. Rubens usou esse tecido para acrescentar uma faixa de luz no centro da pintura, mergulhando de cima, à direita, até o plano inferior à esquerda. São muitas as mãos a segurá-lo – o operário no alto da cruz chega a usar os dentes para manter o tecido no lugar. João Evangelista sustenta o corpo de Cristo por baixo. João está preparado para assumir o seu legado, com sua túnica vermelha volumosa, simbolizando o sangue do Cristo sacrificado. * Rubens (1577-1640) foi um artista excepcional que aliou as lições aprendidas na Itália às necessidades de seus mecenas do Norte Europeu. Diplomata de alto escalão e pintor da corte, ele foi um humanista conhecido pela ética no trabalho e pela energia. Ele liderava um ateliê extremamente bem-sucedido na Antuérpia, empregando assistentes para concluir pinturas com base em seus esboços a óleo e atraindo artistas do calibre de Antoon Van Dyck, que conheceremos mais adiante neste capítulo. Ainda bem jovem, na Itália, pintando para o duque de Mântua, Rubens fez esboços de esculturas clássicas em Roma, inclusive o Laocoonte. Ele usou essa compreensão da forma para conferir profundidade e solidez aos corpos na Descida da cruz. Rubens recorreu às cores quentes de Ticiano para o vermelho e o dourado nos mantos, às linhas precisas de Rafael (por meio de Veronese) para as figuras nos painéis laterais e à dramaticidade de Caravaggio para os operários por cima da cruz. Como um contraponto norte-europeu, parece haver também uma deferência à Descida da cruz de Rogier van der Weyden na posição arqueada dos braços do Cristo e sua cabeça pendente. Rubens passou grande parte de sua vida de mudança entre as cortes reais da Europa, trabalhando como diplomata e criando ciclos de pinturas para a realeza europeia. Conforme já vimos, as cortes abastadas da Europa muitas vezes empregavam artistas de países estrangeiros, como Holbein na Inglaterra e Anguissola na Espanha. De forma semelhante, os imperadores mogóis na Índia optaram por reforçar suas oficinas na corte com artistas persas do Irã. Um desses artistas foi Aqa Riza (Reza Abbasi, em atividade de 1580 a 1635), um pintor safávida que trabalhou para o quarto imperador mogol, Jahangir. Artistas como Riza trouxeram para a corte indiana as tradições persas da padronagem de superfície linear e da composição formal. Riza dirigiu a oficina de pintura da corte de Jahangir em Allahabad (hoje Pryagraj, na Índia), mas sua carreira decaiu com o crescimento do interesse de Jahangir pelo naturalismo europeu. O filho de Riza, Abu’l Hasan (1588 até cerca de 1630), porém, tornou-se o mais respeitado artista da corte de sua geração. Por muito tempo, as oficinas das cortes persa e mogol foram empreendimentos coletivos, com muitos artistas trabalhando no anonimato, em livros ricamente ilustrados. Por volta do século XVII, entretanto, essas oficinas começaram a se assemelhar às europeias. Tornaram-se competitivas e hierarquizadas, com pelo menos um mestre para cada dez pintores empregados, e os artistas mogóis foram cada vez mais valorizados individualmente. Assim como os artistas do Ocidente, eles começaram a assinar suas obras, incluindo autorretratos nas cenas e desenvolvendo estilos pessoais únicos. O interesse de Jahangir pelo naturalismo surgiu da recente disponibilidade de arte ocidental na Índia. Seu pai, Akbar, reunira uma coleção de pinturas e gravuras ocidentais, muitas vezes presenteadas por europeus buscando fechar acordos comerciais. O naturalismo das gravuras europeias começou a se espalhar pela pintura mogol, conferindo solidez às figuras e profundidade às cenas, possibilitando a expressão de relações emocionais mais fortes. Ainda um menino de treze anos, Hasan copiara a imagem de São João da gravura da Crucificação (1511) de Dürer, replicando atentamente os dedos entrelaçados e unidos em oração e os olhos pesarosos. Mais tarde, em Esquilos em um plátano (1605-1608), nota-se como ele reagiu à perspectiva e ao desenho realista europeu. Hasan conserva o tradicional fundo em ouro e a árvore estilizada da obra do pai, mas acrescenta uma paisagem rochosa que vai se distanciando e um conjunto de animais bem observados, incluindo um bando de esquilos vermelhos saltitando pelos galhos. Hasan continuou a pintar cenas do Jahangirnama, entre 1615 e 1618, a versão oficial das memórias de Jahangir, na qual o imperador descreveu Hasan como “não tendo, no presente, rival ou semelhante, [...] tornou-se verdadeiramente a maravilha da época”. Os imperadores mogóis apreciavam colecionar arte ocidental, e os missionários europeus tentaram uma jogada similar na China, levando consigo pinturas europeias para a corte imperial. Mas os literati chineses, os respeitados artistas amadores que vimos pela primeira vez no capítulo 9, deram pouca atenção à nova forma de representar o mundo, e a arte ocidental não se firmou na China até o século XIX. Segundo o artista Dong Qichang (1555-1636), a arte na China do século XVII recaía em dois campos. Havia a escola do Norte, dominada por artistas profissionais treinados como Cui Zizhong (1574-1644), que de modo bem geral pintava figuras, e a escola do Sul, dominada pelos literati como Dong e seu gosto pelas paisagens monocromáticas. Os escritos de Dong sobre arte permaneceram imensamente influentes na China por séculos, mas eram desconhecidos no Ocidente até pouco tempo. Fazem contraste com o modelo ocidental de genialidade individual e imitação clássica. Enquanto os estilos de pintura ocidentais concorrentes eram modernos por, no máximo, algumas décadas, os artistas chineses se valiam de tradições milenares. Dong acreditava que os artistas tinham de absorver a natureza com viagens para em seguida concretizá-la conforme explorassem os estilos de grandes artistas chineses do passado. Eles deveriam criar um estilo pessoal que expressasse originalidade, ao mesmo tempo demostrando deferência pelos que os haviam precedido. Assim, as paisagens de Dong não tentavam replicar a observação exata extraída da natureza, mas a essência do que ele havia observado nela, conforme seus antecessores haviam expressado. Em 1620, ele criou o álbum Oito cenas de outono, um conjunto silente de margens de rio, montanhas e neve, com base em interpretações mais antigas e expondo sua versatilidade com tinta e pincel. Cada cena contém um poema reflexivo que dá vida à paisagem, escrito sobre uma área da pintura deixada em branco de propósito para dar espaço às divagações do espectador. Grande parte das explorações europeias do século XVI tinha sido realizada por portugueses e espanhóis, mas foram os holandeses que dominaram o comércio internacional no século XVII. A república holandesa havia lutado para existir, reavendo suas terras da corte espanhola, que ainda retinha Flandres no sul dos Países Baixos. Agora, quando mercadorias como porcelana chinesa eram embarcadas para a república holandesa, oslucros abarrotavam os bolsos da classe média holandesa e não a realeza espanhola, transformando cidades e municípios densamente povoados em redutos abastados. Isso criou um mercado vigoroso para a arte, uma suposta idade de ouro holandesa. Entretanto, não se tratava de arte na escala dos retábulos flamengos de Rubens. Em vez disso, as pessoas compravam pinturas menores em feiras, nas lojas e com negociantes de arte e escolhiam cenas do cotidiano ou de objetos e paisagens à sua volta. O mercado dominante para a arte não era mais a Igreja ou o Estado, e os artistas tiveram que corresponder às necessidades da nova clientela. Grande parte da arte que temos hoje foi originalmente pintada para clientes de status elevado, e podemos ter a visão distorcida sobre como a arte era vivenciada pela gente comum. A arte da idade de ouro holandesa nos dá condições de ver o tipo de pintura que estaria nas paredes de casas como as nossas, se vivêssemos na república holandesa do século XVII. A natureza-morta foi um dos novos tipos de pintura que se tornou popular, e Clara Peeters (por volta de 1588 -1657) se destacou, pintando mesas fartas, desde o café da manhã a banquetes. Ela se baseou no naturalismo detalhado do Renascimento nórdico e evocou múltiplas texturas contrastantes em cada obra: a casca dura de um pão, o brilho suave de penas, o bojo lustroso de um jarro de estanho. Em Natureza-morta com gavião, galinha, porcelana e conchas (1611), um gavião-da- europa fêmea, de olho dourado flamejante, agarra-se à alça de um cesto de vime sobre a mesa repleta de pássaros mortos, incluindo um pato selvagem, dois pombos depenados e um cardeal. Os pássaros dividem a mesa com quatro conchas e uma pilha de porcelanas. Pelo conjunto dos objetos, fica implícito que o dono é abastado e viajado, já que as conchas são originárias do Caribe e da África Ocidental e a porcelana foi importada da China. As pinturas de natureza-morta eram vendidas logo depois de prontas, ou seja, não eram encomendadas. Elas eram mais uma expressão dos anseios e valores de seus proprietários do que uma marca da propriedade, em si, dos objetos representados. Alguns preferiam ter pinturas de figura humana em suas casas, e o estilo descontraído e exuberante de Frans Hals (1582/3-1666) era muito popular, bem como as pinturas de Judith Leyster (1609-1660), que provavelmente estudou na oficina de Hals em Haarlem. Hals especializou-se em retratos, muitas vezes pintando um homem de classe média alegre fazendo um brinde, ou um músico entoando uma melodia. O melhor de Hals aparecia quando ele captava as expressões momentâneas da vida, como o estouro de uma gargalhada, um olhar desconfiado, o sorriso de um bêbado. Leyster criou cenas de gênero como A proposta, datado de 1631. Hals influenciou-a no uso de pinceladas largas e vibrantes, e os caravagistas inspiraram as sombras escuras que ela usava para impelir as figuras, tornando-as mais próximas do nosso mundo. As cenas de Leyster contêm mais profundidade emocional do que as de Hals, porque ela inseria uma lição de moral em cada obra. A proposta não era um retrato duplo, mas uma história de resiliência feminina e do desejo masculino frustrado. Retrata uma mulher sentada, envolta em um xale de alvura ímpar que reflete a luz da chama e ilumina seu rosto. De cabeça baixa, ela concentra-se na costura e recusa-se a ser distraída pelo homem com chapéu de pele que toca seu ombro, e a mão direita cheia de moedas para ela caso concorde com seus avanços. De volta à Flandres espanhola, Antoon van Dyck (1599-1641) deixara o emprego com Rubens ao se dar conta de que enquanto Rubens permanecesse na Antuérpia, ele sempre seria uma sombra do mestre. Assim, viajou para a Itália, primeiro para Gênova, depois Roma e em seguida Palermo, onde ele esboçou uma já idosa Sofonisba Anguissola, enquanto conversavam sobre pintura. Raramente permanecendo em um lugar por mais de dois anos, Van Dyck pintou ao longo de sua trajetória pelas cortes reais atendendo a encomendas. Ele captava a opulência e os estilos de vida de seus modelos, pintando o aventureiro inglês sir Robert Shirley usando uma vestimenta persa em Roma e o conde de Arundel e sua esposa, Aletheia Talbot, em casa, em Sussex, planejando a colonização britânica de Madagascar e indicando o país em um imenso globo. Van Dyck tornou-se o principal retratista da Inglaterra do século XVII. Carlos I o fez cavaleiro em 1632, e Van Dyck passou a ser seu pintor pelos nove anos seguintes. Em 1635, ele recebeu a incumbência de pintar o rei sob três ângulos para que o destacado escultor italiano Gian Lorenzo Bernini fizesse sua estátua. Van Dyck retratou o rei de frente, de perfil e em três quartos. O rosto era estreito, pálido e barbado, os olhos castanhos ligeiramente caídos. Os lábios são suaves, sem esboçar sorriso, e os dedos finos sustentam vestes de cetim, sob golas fartas de renda trabalhada. É tentador visualizar o destino traçado para Carlos I (decapitado por traição depois de perder a Guerra Civil Inglesa contra Oliver Cromwell) no rosto circunspecto, melancólico, quase assombrado. O brilhantismo de Van Dyck como retratista estava na sua capacidade de captar o âmago da pessoa, usando cada pequeno detalhe assimétrico para construir o retrato de um ser humano e não apenas uma representação. Com o crescimento de novos mercados para a arte no século XVII, especialmente na classe média, tipos de arte diferentes começaram a surgir. Natureza-morta era um deles, outro era o de paisagens, para os quais passaremos a seguir. Capítulo 20 - A mentira da terra É 1648 e Nicolas Poussin, de pé, contempla as duas pinturas a óleo diante dele. Ambas exibem a morte do general ateniense Phocion, envenenado por seus inimigos em 318 a.C. e a quem foi negado um sepultamento na parte intramuros da cidade. No primeiro quadro, Paisagem com o sepultamento de Phocion, vê-se o corpo do general morto sobre uma maca, envolto em uma mortalha branca e levado por dois homens cabisbaixos por uma estrada de terra. Eles seguem pela estrada que serpenteia pelo interior. No segundo quadro, Paisagem com as cinzas de Phocion recolhidas pela viúva, uma mulher se agacha nas sombras, juntando as cinzas do marido com as próprias mãos, enquanto uma criada vigia. Algumas árvores ocupam o primeiro plano enquanto, mais além, um templo clássico chama a atenção para a parte superior, em direção a ruínas distantes. Entre uma pintura e outra, Poussin desvia o olhar para sua caixa cenográfica sobre uma mesa próxima. É como um teatro em miniatura que exibe cada cena a ser pintada. Ele passa dias fabricando as figuras e os prédios de cera, bloqueando a fonte de luz para, em seguida, cautelosamente direcioná-la a partir de determinado ângulo e, assim, estudar as sombras formadas. Nada é deixado ao acaso: ele controla todos os aspectos de cada cena a fim de obter equilíbrio e harmonia. Poussin pintou esses dois quadros para um negociante chamado Cérisier em Lyon, na França, seu país de nascença. Ele costuma pintar para colecionadores franceses, ainda que tenha vivido em Roma por 24 anos. Seus mecenas são todos intelectuais humanistas que apreciam suas pinturas estudadas e calculadas, em que a ação clássica foi acalmada e condensada em reflexões filosóficas sobre a vida. * Por que Nicolas Poussin (1594-1665) foi para Roma aos trinta anos e ficou por lá? Ele não seguiu os passos de Caravaggio, criando obras espetaculares e teatrais, nem procurou os bolsos abarrotados do papa para conseguir encomendas. Não, para Poussin, Roma era o epicentro da arte clássica que, seguindo o pensar de Carracci, continuava a fascinar artistas e antiquários (os estudiosos da arte clássica) por todo o século XVII. Cada vez mais as cenas religiosas e mitológicas eram reduzidas pela paisagem em que eram situadas. Por quê? Até o momento, a paisagem fora pouco mais que um pano de fundo, algo avistadopelas janelas do Renascimento nórdico ou à distância, como na Mona Lisa. Agora, ela rapidamente se tornava a estrela do show, à medida que a pintura paisagística de Poussin permitia-lhe apresentar impressões idealizadas do interior da Roma antiga para seus mecenas e apoiadores humanistas. Ele recorria aos próprios desenhos, muitas vezes esboçados nas colinas fora de Roma ao lado de outro pintor francês, Claude Lorrain, hoje simplesmente conhecido como Claude (Claude Gellée, 1604/5-1682). Os dois artistas foram as pedras angulares dessa nova tradição da pintura de paisagem clássica, extremamente popular nos séculos XVII e XVIII. Os colecionadores de Claude não eram os intelectuais de Poussin, mas a aristocracia da Europa. Nas pinturas de Claude, as árvores também emolduram a paisagem e nos direcionam para a vista. Na Paisagem pastoral de 1647, as árvores margeiam o rio, que nos atrai para dentro da cena ao seguirmos seu trajeto em direção às montanhas enevoadas ao longe. As pessoas só estão presentes para efeito de proporção e marcações de cor. Em muitas de suas cenas, o sol nascente lança um brilho dourado sobre cada folha e pedaço de relva. A riqueza da luz matinal paira sobre tudo o que toca, seja por cima, por baixo ou à frente. A paisagem não é algo natural, ela não existe simplesmente. Não é a terra em si, mas uma vista criteriosamente escolhida, esboçada ou pintada para contar determinada história da relação de um homem com a terra. Para Poussin e Claude, ela é pontilhada de templos romanos fictícios e remonta à aurora do classicismo. Para os artistas holandeses, por outro lado, a paisagem refletia aspectos do cotidiano. Moinhos e igrejas brotam de faixas de terreno plano; barcos e navios saem para o mar sob céus carregados. Na Holanda, o crescimento da pintura de paisagens foi alimentado pelos interesses de colecionadores de classe média que a adquiriam. Eles não habitavam em palácios privativos ou nos claustros das catedrais, mas lá fora, no mundo real, onde seus navios balançavam ancorados e os moinhos giravam nos campos. Tinham lutado bravamente por sua terra, combatendo nações rivais e até o próprio mar, drenando lagos abaixo do nível do mar para ter mais terra para cultivar. O ano de 1648 foi o ponto alto das paisagens clássicas de Poussin e Claude na Itália, mas nos Países Baixos a data significou o fim de uma guerra de trinta anos que havia lançado o Imperador Católico Apostólico Romano contra estados protestantes, dentre eles a República Holandesa. O Tratado de Westfália, assinado em 1648, inaugurou uma era de paz. Apesar do custo da guerra, a era de ouro holandesa não dava sinais de acabar. O dinheiro circulava, vindo dos territórios e das missões comerciais pelo mundo, e os negociantes, beneficiários dos lucros, logo cuidavam de gastar os ganhos em pinturas para decorar suas casas. Mais de um milhão de quadros foram produzidos entre 1640 e 1659, e o tipo de arte mais popular foi a pintura de paisagens. A carreira de pintores holandeses, como Jacob van Ruisdael (1628-1682) de Haarlem, foi extremamente bem-sucedida como especialistas em paisagens. A vasta planície na Vista de Naarden com a igreja em Muiderberg, de 1647, faz o céu dominar, com uma amplidão que nos permite sentir o vento soprando no rosto conforme as nuvens correm pelo céu, ameaçando chuva. Pinturas assim eram um sopro de ar fresco para os compradores comerciantes, entocados em cidades e vilarejos pela República Holandesa. As pinturas de paisagens não ofereciam uma reprodução fiel do que existia, mas eram parecidas. Dunas de areia encaravam o mar cinzento encapelado e galhos de árvores se estendiam para céus vibrantes. Eram poucos os vestígios dos novos sistemas de drenagem para retomar a terra do mar ou da crescente rede de canais. As paisagens que os negociantes compravam em quantidade talvez nos pareçam nostálgicas hoje, uma visão idealizada da vida no interior, mas provavelmente devem ter parecido dessa mesma forma para os cidadãos holandeses do século XVII. Outros pintores holandeses, como Aelbert Cuyp (1620- 1691), sofreram influência de Claude e pintaram vistas douradas de cidades costeiras. Em sua Vista de Dordrecht, de 1655 aproximadamente, um grande navio de dois mastros ancorado ofusca a frota pesqueira aglomerada ao longo do cais. Esse navio, navegando com bandeira holandesa, era capaz de atravessar oceanos e remetia às redes internacionais de comércio das Companhias das Índias Ocidentais e Orientais. Enquanto a Companhia das Índias Orientais operava rotas de comércio de êxito na Ásia, a Companhia das Índias Ocidentais era ativa no Brasil, fundando colônias ao longo da costa para explorar a cana-de-açúcar. O governador geral da colônia brasileira recrutou artistas holandeses para mapear essa “nova” terra, e tanto Albert Eckhout (1610-1666) quanto Frans Post (1612- 1680) passaram uma temporada por lá na década de 1640. Post pintou as propriedades e as fortalezas da nova colônia holandesa durante os oito anos de sua permanência, mas foi o exotismo das paisagens brasileiras, concluídas ao regressar à República Holandesa em 1644, que impulsionou sua carreira. Ele pintou trabalhadores negros desconhecidos em engenhos de cana-de-açúcar impecáveis, com paisagens caprichadas, acrescentando palmeiras para dar o toque “exótico”. Tratava-se claramente de um registro fictício. Na realidade, a cada ano, milhares de escravos morriam trabalhando nos engenhos de cana perigosos. À época em que Post pintou Engenho de cana, em 1659 (uma das 25 versões pintadas), o sonho holandês no Brasil terminara cinco anos antes, com a retomada da colônia pelos portugueses. Apesar do crescimento da pintura de paisagens por toda a Europa no século XVII, muitos artistas continuaram a trabalhar com a figura humana. O autorretrato era uma forma de cartão de visita artístico muito usado pelos artistas para exibir seus dotes. Em um autorretrato da década de 1640, a pintora flamenga Michaelina Wautier (1604-1689), sentada em frente a uma tela, encarando o espectador, segura a paleta com a mão esquerda e os pincéis com a direita. Ela usa uma elegante gola dupla debruada de renda, com saia de cetim creme e um manto volumoso de veludo, trajes que não usaria para pintar. Michaelina exibe suas habilidades ao captar o brilho das pérolas no pescoço e no pulso, a suave luminosidade do cetim, o rubor nas maçãs do rosto. Suas pinturas das décadas de 1640 e 1650 apresentam uma capacidade semelhante de dar vida a seus modelos. Ela tinha, de fato, a habilidade de captar o brilho nos cabelos, os rostinhos infantis bochechudos e as marcas profundas do tempo em homens de idade. Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) temia que escultores não pudessem competir com pintores como Wautier por não trabalharem com cores, só com luz e sombra. Mas comprovou seu engano com as vastas mostras esculturais do brilhantismo barroco financiadas por uma sucessão de papas e cardeais. Para a capela do cardeal Federico Cornaro, na igreja de Santa Maria della Vittoria em Roma, Bernini criou O êxtase de Santa Teresa por volta de 1651. Em sua autobiografia, Santa Teresa relatou suas visões místicas, em que via um lindo anjo com uma lança de ouro flamejante: “Com ela, ele parecia estar perfurando meu coração várias vezes até penetrar minhas entranhas”. Quando ele a puxava de volta, “deixava-me completamente em chamas com um grande amor por Deus”. Olhe para ela: a cabeça jogada para trás, olhos fechados, braços abertos em total abandono, os dedos do pé estirados em um espasmo, como se todo o corpo estivesse reagindo à sensação. Segundo um texto anônimo da época, Bernini “prostituíra” a santa, e Teresa realmente parece vivenciar o toque divino como se fosse um orgasmo. Bernini o enfatizou, iluminando a escultura através de uma janela escondida acima, na cúpula. Ele chegou a oferecer-lhe uma plateia, esculpindo retratos em alto-relevodos mecenas nas paredes da capela, como se as imagens estivessem em camarotes no teatro, observando a visão em êxtase acontecer no palco. Bernini trabalhava com uma equipe numerosa de assistentes que ampliava proporcionalmente seus bozzetti (modelos de barro) em esculturas de mármore, permitindo que o artista criasse obras grandiosas como O êxtase de Santa Teresa e A fonte dos quatro rios, na Piazza Navona, em Roma, no mesmo ano. Concebida para o papa Inocêncio X, cujo palácio da família ficava em frente à praça, a fonte é uma realização magistral de figuras, animais e geologia colossais, com um obelisco do Egito antigo erguendo-se no centro dela. Justo na época em que Bernini concluía a fonte para Inocêncio X, o artista espanhol Diego Rogriguez de Silva y Velázquez (1599-1660) terminava o retrato do pontífice. O olhar analítico e seu intenso realismo certamente não deveriam surpreender o papa, visto que Velázquez já retratara vários integrantes de sua comitiva. O pintor, porém, talvez tivesse exagerado um pouco para o gosto do septuagenário. A boca está tensa, como numa careta, o olhar carrancudo franze a testa e o avermelhado da pele revela a boa vida. Sentado com uma batina de linho sob uma pequena capa e um barrete de cetim vermelho, Inocêncio X parece estar pronto para se levantar a qualquer instante, impaciente para voltar ao trabalho. A obra acabada jamais foi exibida publicamente durante a vida do papa, sendo confinada à galeria do palácio privativo da família, mas é um retrato magnífico do fardo pesado do poder e sua influência corruptora. Velázquez fez cópias do retrato ao voltar para Madri, em 1651. A essa altura, ele já trabalhara para Felipe IV, rei da Espanha (e neto de Felipe II) por quase trinta anos e passara horas estudando a coleção real de arte italiana, inclusive as atrevidas “Poesias” de Ticiano. À época em que pintou a filha de Felipe em As meninas, em 1656, seu estilo era seguro e consolidado. As meninas é um retrato da Infanta Margarita aos cinco anos com suas damas de companhia. No entanto, é também um retrato de Velázquez em ação, ao se incluir pintando um gigantesco retrato duplo dos pais da infanta, que só vemos como um reflexo difuso no espelho na parede do fundo. Velázquez apresentou o ato de pintar como um tema adequado a uma coleção real. Ao se colocar dentro de um retrato real, ele enfatizou a posição elevada dos artistas da corte. Sob esse aspecto, As meninas é também uma pintura política. Na Espanha dessa época, os trabalhadores manuais, grupo que tradicionalmente incluía os artistas, não podiam fazer parte das categorias mais elevadas da sociedade. Os artistas faziam campanha para que sua obra fosse vista como arte liberal, mais em linha com a poesia do que com trabalho manual. As meninas foi a contribuição de Velázquez para o debate, e dois anos depois de terminá- lo, aos 59 anos, ele recebeu a ordem militar mais elevada, o grau de cavaleiro. Foi um triunfo para o pintor e, por consequência, para todos os artistas espanhóis. Infelizmente, para outro grande artista que obtivera um êxito fantástico ainda em vida, as coisas estavam tomando outro rumo, já perto dos sessenta anos: Rembrandt van Rijn. Capítulo 21 - Natureza-morta e vida imóvel É 1658. Rembrandt olha para o quadro no cavalete: um autorretrato sentado. Nele, o pintor surge da absoluta escuridão, trajando uma túnica dourada trabalhada e um manto pesado como o de um rei da Antiguidade, a mão esquerda segurando uma bengala de prata como se fosse um cetro. O chapéu sombreia os olhos preocupados e a barba rala é mais acentuada no queixo, mas a mão (a direita, aquela que ele usa para pintar) envolve o braço da cadeira, intensamente iluminada como se fosse a estrela do espetáculo. Cada vez mais, seus retratos recebem pinceladas largas. Por vezes, ele chega a usar uma espátula para aplicar a tinta, trabalhando com pigmentos grossos para acrescentar textura. Nesse autorretrato somente seu rosto e a mão direita são detalhados, como se fossem as únicas coisas importantes. Afinal, é essa mão que lhe trouxe a imensa fama. Seus quadros o permitiram adquirir a propriedade em que reside, em um bairro rico e elegante de Amsterdã. A imponente casa de cinco andares foi decorada com todo tipo de arte e gravuras de artistas como Ticiano e Dürer, e o ateliê é coalhado de trajes e indumentárias do mundo inteiro, como sedas chinesas, turbantes persas, armamento holandês. Suas despesas, porém, o atropelaram. Aquele que um dia fora o principal pintor da República Holandesa via-se agora diante da falência e tendo que vender tudo. * Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669), hoje conhecido como Rembrandt, foi um personagem. Mas qual deles? Isso dependia do dia. Ao longo da vida, ele pintou, esboçou e gravou autorretratos e existem hoje mais de oitenta. Aos 23 anos, ele imitou seu cabelo castanho rebelde desenhando na tinta molhada com o outro lado do pincel, contornando as feições aveludadas com uma energia vigorosa. Aos 25, ele usou um turbante persa e um roupão de seda acolchoado, com um cão poodle aos pés, apresentando-se como um artista ambicioso, ávido por deixar sua marca como estrela internacional. Ele se apresentava com vestes debruadas de pele e casacos com aplicações, rindo e bebendo com a primeira esposa Saskia, e se portava como um burguês rico com elegantes golas de rufos. Podia se transformar em qualquer personagem, conservando, ainda assim, uma imagem penetrante e, por conseguinte, podia fazer o mesmo para você se o contratasse. Logo Rembrandt se tornou o artista mais importante para os comerciantes metropolitanos ricos e para as guildas da cidade, todos desejosos de um retrato pintado por ele. Em 1642, Rembrandt recebeu a encomenda de uma divisão dos arcabuzeiros (a guarda civil armada) para pintar todo o grupo. Hoje chamado de A ronda noturna, esse quadro enorme viu Rembrandt reinventar o retrato em grupo, tornando aquilo que, antes, seria uma representação linear captada para a posteridade em uma cena comemorativa da guarda em ação. O capitão Cocq e seus homens marcham sob uma arcada ao som de um tambor, armas e lanças ao lado e bandeiras esvoaçando. Um cachorro late e uma menina se vira para assistir ao desfile. Esse foi o ápice de Rembrandt. Em 1658, porém, as encomendas de retratos escassearam, seu estilo mais solto viu-se ameaçado pela moda do naturalismo detalhado, e ele, cada vez mais, se dedicou às gravuras. Rembrandt usava o processo de água-forte nas gravuras. A água-forte era semelhante à gravação, mas em vez do trabalhoso esforço de traçar as linhas no metal, Rembrandt usava o buril para desenhar sobre uma camada fina de cera previamente derretida sobre a placa de cobre. Quando o desenho final era mergulhado em um banho de ácido, a substância corroía o metal exposto com a raspagem da cera, criando linhas que reteriam a tinta para a impressão. Rembrandt costumava refazer suas gravuras várias vezes, eliminando figuras, acrescentando mais sombras e destaques, usando verniz para preencher linhas desnecessárias. Grande parte de sua fama, em vida e depois dela, foi um resultado da ampla distribuição de suas águas-fortes, magnificamente tonalizadas, de temas religiosos, como As três cruzes (1653-1660). Durante a segunda metade do século XVII, as fortunas de Amsterdã se desestabilizaram devido a guerras internas e externas. Um período agitado na China restringiu a exportação de porcelana, escasseando o produto na Europa. Essa foi uma boa notícia para as fábricas holandesas, particularmente para as de Delft, que passaram a fabricar cópias da porcelana azul e branca chinesa. As cópias ficaram conhecidas como porcelana de Delft, e as peças viraram “vacas leiteiras”. Elas ajudaram a transformar a pequena cidade de 20.000 habitantes em um rico centro de arte. Johannes Vermeer (1632-1675) nasceu em Delft, e Pieter de Hooch (1629- 1684) mudou-sede Rotterdã para lá em 1650. Vermeer foi influenciado pelas pinturas de gênero de Gerard ter Borch (1617-1681), pintor holandês muito viajado que passara um tempo em Roma e na corte de Felipe IV, na Espanha, antes de voltar para a República Holandesa. Ter Borch foi um pintor excepcional de tecidos e representou cenas da intimidade doméstica abastada, como alguém tocando alaúde ou lendo uma carta, para exibir sua habilidade em captar o brilho sutil nas saias de cetim branco. Vermeer também pintou mulheres tocando instrumentos ou lendo cartas, mas destaca-se uma quietude em suas pinturas. Em vez das saias de cetim, ele reproduzia elementos simples em seus mínimos detalhes: as tachas no espaldar de uma cadeira, os vincos no mapa recém-pendurado na parede e a luz cinzenta e fria sobre sua esposa Catarina grávida, diante de uma janela, em Mulher de azul lendo uma carta (1663-1664). No capítulo anterior, vimos que Poussin colocava estatuetas de cera dentro de uma caixa cenográfica e manipulava a fonte de luz para controlar a cena antes de pintá-la. Muitos acreditam que Vermeer foi mais longe ainda, graças ao desenvolvimento da ótica, transformando sua casa em palco para uma câmera escura. A câmera escura foi a precursora da câmera fotográfica que conhecemos hoje. Ela refletia a imagem à sua frente, usando uma lente, projetando-a, de cabeça para baixo, na parede de um quarto escuro por trás. Isso permitia a Vermeer experimentar cadeiras, mesas, jarros e até pessoas em diversas posições, equilibrando os elementos em cada composição. Considerando sua notória lentidão como pintor, esse certamente foi um recurso bastante útil. Como ponto de partida, ele podia até traçar os contornos da cena projetada na tela em si. Assim, ele se concentrava naquilo que mais lhe interessava: captar a forma como a luz transformava as pessoas e os objetos à sua frente e construir composições harmoniosas usando poucas cores, especialmente o azul de Delft e o amarelo ocre. Pieter de Hooch também recorreu ao ambiente doméstico como tema, mas em vez de limitar a cena a um canto de sala como Vermeer, ele se divertia mostrando janelas e portas abertas, com outras vidas ou vistas flagradas ao longe. Ele se aventurou também do lado de fora, nos quintais, pintando bombas d’água e vassouras, pisos quadriculados e portas abertas como em Mulher e sua criada em um pátio, concluído em torno de 1660-1663. Suas cenas foram pintadas em Delft e Amsterdã, para onde se mudou em 1660 e retratou inúmeras mulheres, tanto criadas quanto patroas, no dia a dia, balançando um berço, contando moedas, ensinando crianças ou cozinhando. Os quadros de artistas do século XVII como Vermeer, De Hooch e Ter Borch não nos oferecem relatos da literatura histórica ou da Bíblia como as de seus pares italianos. Na escolha dos objetos sobre uma mesa ou da distribuição das figuras, talvez houvesse alguma moral a ser extraída, mas os artistas holandeses do século XVII pareciam se divertir com a falta de história para trazer a arte em si, ou seja, aspectos ligados à luz, forma, composição, para o foco da cena. Eles priorizavam o olhar e a habilidade ótica, o tópico científico em alta na época. Eles investigavam como o mundo era visto e não como as histórias imaginariam que ele fosse. Em contraposição, Elisabetta Sirani (1638-1665) foi uma artista italiana que pintou essas histórias. Formada na oficina do pai em Bolonha, assumiu o controle dela e de seus assistentes homens com apenas dezesseis anos, quando o pai ficou incapacitado pela gota. Ao longo dos dez anos seguintes, ela superou o pai, que fora o discípulo mais destacado de Guido Reni, e tornou-se uma grande pintora em Bolonha. Como Artemísia Gentileschi, sua especialidade eram as heroínas fortes extraídas de fontes bíblicas ou clássicas. Por outro lado, ao contrário de Gentileschi, ela não pintava com fulgor teatral ou brilho dramático, mas seguira o caminho clássico do idealismo visto primeiramente na obra de Annibale Carracci e passado adiante para aqueles que tinham estudado na Academia Carracci, como Reni. Apesar do momento dramático que Sirani escolheu para Portia ferindo sua coxa (1664), há pouco da paixão de Gentileschi em suas figuras femininas. Portia, mulher do senador romano Brutus, se apresenta passivamente segurando o punhal com que acaba de se ferir, o corpo relaxado e idealizado. Portia se feriu para mostrar que as mulheres podiam ser tão corajosas quanto os homens e, portanto, confiáveis para guardar segredos masculinos, no caso o tramado assassinato de Júlio César. Sirani não retrata Portia conversando com as outras mulheres, em um aposento mais ao fundo, ou implorando a Brutus. Em vez disso, Sirani se concentra em sua coragem solitária, em como Portia é senhora do próprio destino. Talvez Sirani se identificasse com ela, ou seja, uma mulher tentando abrir caminho em um mundo masculino. Quatro anos antes desse quadro, Sirani fundara uma academia feminina de arte, a primeira da Europa. Bolonha sempre estivera na vanguarda da educação de mulheres e, por mais que em outras partes da Europa as mulheres artistas estivessem lentamente começando a ser reconhecidas pela capacidade profissional, ainda era um tanto raro que aquelas sem pais artistas se tornassem artistas. A academia de Sirani foi importante por facultar o estudo a mulheres de famílias sem origem artística. Ela treinou suas irmãs mais novas e catorze outras mulheres para se tornarem pintoras, e deixou quase duzentos quadros próprios, quando morreu aos 27 anos. Apesar de menosprezada em histórias da arte posteriores, na época de sua morte Sirani foi equiparada a Reni. A cidade promoveu sua cerimônia fúnebre e ela foi enterrada no túmulo do próprio Reni. Na República Holandesa e em Flandres não existiam academias como a de Sirani, mas os artistas masculinos aceitavam mulheres como discípulas. Um desses artistas foi Jan Davidz de Heem (1606-1684), da Antuérpia, reconhecido pintor de natureza-morta floral, que admitiu Maria Oosterwijck (1630-1693) em sua oficina, aos dezesseis anos de idade. Seu quadro Vanitas (1668) traz uma disposição de flores semelhante às de De Heem, acompanhada, porém, de símbolos de mortalidade como um crânio humano, um rato devorando uma espiga de milho e uma borboleta atalanta. A pintura de flores se popularizou, acrescentada ao mercado de natureza-morta, depois que a “tulipomania” tomou conta da República Holandesa na década de 1630. Essa mania por tulipas viu um único bulbo ser vendido ao preço de uma casa, em uma escalada frenética de negociações que culminou com a quebra do mercado, a primeira do gênero. As pinturas dessas e de outras flores eram agora das mais caras. A valorizada tulipa listrada muitas vezes era representada ao lado de lírios e rosas ainda que não florissem na mesma época. Os pintores recorriam a catálogos ilustrados de flores para retratar flores das diversas estações. Rachel Ruysch (1664-1750) se tornou a principal pintora de flores de sua geração, trabalhando até os oitenta e poucos anos. Enquanto muitos artistas holandeses competentes combinavam espécies de florações consultando livros, Ruysch dava vida às dela. Com pai anatomista e botânico, ela teve acesso a gravuras coloridas à mão em livros como o de Maria Sibylla, New Flower Book [Novo livro das flores], de 1680. Ela também revigorava suas pinturas usando luz e sombra para dar profundidade a cada flor, dispondo-as em arranjos viçosos. Em Vaso com flores (1700), um íris azul-escuro é contrabalançado por uma tulipa listrada de vermelho e branco, com pétalas desabrochando. Mais abaixo, há peônias, rosas brancas silvestres e um punhado de convolvulus de borda azul por baixo de um caule quebrado, como se uma flor murcha já tivesse sido retirada do conjunto. Isso enfatiza a mensagem de todo arranjo floral, ou seja, a beleza e a brevidade da vida. Sentimentos como esse, e esse tipo dearte, estavam começando a sair de moda na virada para o século XVIII na França. No seio da aristocracia francesa, começava a crescer uma tendência para pinturas decorativas superficiais em que a morte era desprezada e a vida, levada como uma fantasia atemporal. Mas o escapismo luxuoso acabaria cobrando um preço. Capítulo 22 - O escapismo do rococó e a vida londrina É 1717, e Jean-Antoine Watteau está de pé, de costas para as janelas, no Salão de Reunião da Academia Francesa em Paris. Diante dele, os principais artistas de sua geração observam sua pintura mais recente, Peregrinação à ilha de Citera. Há cinco anos, a Academia lhe solicitara uma obra, mas ele se ocupara demais, procurando atender a todas as encomendas particulares, e o tempo se fora. Era seu desejo também que a obra fosse a melhor que já tivesse realizado. O quadro será incorporado ao acervo da Academia, aliás, esse é o preço da filiação, e será exposto em uma das salas que se estendem pelo primeiro andar do Louvre (um antigo palácio real). Ali, ela será vista por artistas que participam das aulas de desenho vivo, por visitantes ilustres e por todos os seus pares e rivais. Agora, o diretor se dirige a ele e explica que há um problema. Todo artista que entra para a Academia é inserido em uma categoria: pintura histórica, retrato, pintura de gênero, paisagem e natureza-morta. E existe uma hierarquia, com pintura histórica em primeiro lugar (valorizada por sua capacidade de combinar um tema intelectual com toque pictórico) e natureza-morta por último. O problema da Academia era como classificar Watteau. A pintura em questão, com casais de aristocratas em Citera, a ilha do amor da Grécia antiga, é parte paisagem mitológica, parte representação da corte. A atmosfera é de uma névoa cintilante, enquanto Afrodite pratica sua magia e pequenos querubins brincam nas correntes de ar. O que fazer com a obra? O que fazer com Watteau? Os acadêmicos estão confusos porque a Academia existe há setenta anos e eles não se recordam de ter lidado com esse problema antes. Por fim, é lançada a proposta de introduzir uma nova categoria e nela classificar sua obra. O nome será fêtes galantes [festas galantes], significando cenas da corte ao ar livre. Então Watteau entra para a Academia como pintor de fêtes galantes. * Jean-Antoine Watteau (1684-1721) inspirou-se em Ticiano e Rubens para compor as fêtes galantes. Ele encenava histórias de amor em paisagens clássicas, sob céus suaves e sonhadores, suavizando as cores com sombreados em pastel para complementar os interiores em rococó dourado nas casas de seus mecenas. Suas pinturas de extremo bom gosto foram logo copiadas em vasos de porcelana, caixas de rapé e biombos, vendidos aos milhares à aristocracia europeia. Foram ainda replicadas em gravuras e disseminadas pela Europa, influenciando artistas tão diferentes entre si como Thomas Gainsborough e François Boucher. Assim como Watteau, Boucher (1703-1770) era de família pobre e não estudara na Academia. Naquela época, os principais artistas costumavam ter uma formação clássica. Começavam estudando a forma com esboços de esculturas gregas e romanas antes de passar para modelos vivos e, assim, obter uma perfeita compreensão do corpo. Em seguida, esperava-se que eles trabalhassem na direção dos escalões mais altos da hierarquia acadêmica e aspirassem à pintura da história antiga ou de cenas mitológicas. Boucher, porém, foi treinado pelo pai e começou a vida como gravador, criando águas-fortes com base nas pinturas de Watteau. Sua formação artística foi mais voltada para o trabalho direto na pintura do que para o esboço de troncos humanos de mármore no Louvre. No entanto, como Watteau, Boucher tornou-se também um acadêmico. Sua pintura de admissão foi Rinaldo e Armida (1734), uma sedutora reinterpretação de um poema do século XVI em que a feiticeira Armida engana Rinaldo para que ele se apaixone por ela. Depois de aceito, o quadro Rinaldo e Armida foi colocado na grande salle, o coração da Academia, onde as pinturas e as esculturas da mais alta qualidade eram expostas. Boucher teve direito a um ateliê próprio na ala norte do Louvre, assim como outros acadêmicos, e lá ele pintou cenas domésticas em interiores sofisticados, destinadas a agradar a aristocracia que, cada vez mais, ansiava por novos produtos de luxo para exibir sua riqueza e gosto refinado. Do ponto de vista sóbrio do século XIX, a arte de Watteau e Boucher recebeu, em seu conjunto, o título pejorativo de “rococó”. Era superficial e descontraída, erótica e frívola, uma arte escapista para uma sociedade escapista que ainda veria seu fim sob o fio da guilhotina. O rococó foi o oposto do classicismo. Ao admirar Rubens e priorizar a cor sobre o traço, os pintores do rococó ofereciam uma alternativa à arte dos acadêmicos formados no estilo clássico. Ao longo do século XVIII, em artigos sobre arte nas revistas e nos jornais, o traço era contraposto à cor e o intelecto contra a lealdade à natureza. O escritor Denis Diderot deixou bem claro o lado de sua preferência. Desde 1737, a Academia promovia exposições regulares gratuitas no Salon Carré, uma sala enorme do Louvre, bem no final dos aposentos da Academia, onde o público tinha acesso direto da rua. Diderot reavaliou essas exposições bianuais, conhecidas como Salões, e dispensou as pinturas de Boucher como “perda de tempo e de talento”, criticando as “nádegas rosadas, cheias de covinhas”. Diderot preferia, de longe, artistas que apresentavam composições sóbrias e austeras como as de Jean-Siméon Chardin (1699-1779). “Eis aqui o verdadeiro pintor”, observou com efusividade. “Essa magia vai além da compreensão.” Se as pinturas de Boucher eram um conjunto superficial de artifícios e erotismo destinado às alcovas aristocráticas, as de Chardin ofereciam momentos sóbrios do cotidiano. No Salão de 1737, ele expôs duas pinturas de gênero, Menina com uma peteca e O castelo de cartas. Ambas representam crianças brincando quando deveriam estar ocupadas com outra coisa: a tesoura de costura da menina pendurada numa fita azul atada à cintura e o jovem criado que faz uma pausa na faxina para montar um castelo de cartas. As pinturas sugerem que a frivolidade e a diversão são passageiras e fazem com que as obrigações mais urgentes fiquem de lado. Menina com uma peteca e O castelo de cartas foram compradas pelo primeiro-ministro da Saxônia (na Alemanha). O Salão logo se tornou um acontecimento de grande importância na agenda parisiense e atraía colecionadores internacionais. Foi ele que deu origem à exposição de arte contemporânea na Europa. Em anos posteriores, Chardin pintou uma série de autorretratos usando pastéis – lápis de giz colorido popularizado como material para confecção de retratos pela artista italiana Rosalba Carriera (1675-1757). Carriera passara um ano em Paris, de 1720 a 1721, trocando trabalhos com Watteau e captando as feições do rei Luís XV em pastel. O pastel é um material ingrato: ele suja, se esfarela e é difícil de usar. Antes de Carriera, ele só era usado em esboços. No entanto, Carriera o usou na mistura de tons de pele para dar às maçãs do rosto um viço natural e brilho às roupas. Ela ficou na França só por um ano, mas seus retratos influenciaram imensamente o desenvolvimento da arte do rococó e ela se tornou membro da Academia Francesa. Mais tarde, Carriera regressou a Veneza e seu ateliê atraiu a nobreza europeia que visitava a cidade como parte do Grand Tour, nome dado à viagem pelo continente europeu que jovens aristocratas europeus faziam, principalmente os homens, para completar sua formação clássica. Educados em latim e grego, era profundo o seu conhecimento da mitologia e do pensamento clássico, e viajavam para a Itália a fim de estudar a arte e a arquitetura romanas in loco. Roma era o destino final, mas muitas paradas convenientes aconteciam ao longo do caminho, como Paris,Florença e Veneza. Muitos dos que passavam por Veneza no Grand Tour ficavam extasiados com a cidade, que surgia das águas como uma miragem. Se o artista desejasse um ângulo do Palácio do Doge ou do Grand Canal para sua residência senhorial inglesa, um único ateliê deveria ser procurado: o de Canaletto (Giovanni Antonio Canal, 1697-1768). Canaletto estudara com o pai, pintor de cenários teatrais, mas logo optou por criar fascinantes vedute (quadros panorâmicos) de sua cidade para uma expressiva clientela inglesa. O cônsul britânico Joseph Smith era seu agente, e juntos fizeram da compra de um Canaletto o ponto alto da experiência no Grand Tour, ainda que a demanda excedesse a oferta e, por vezes, só uma propina garantisse a execução do quadro. Por muito tempo a aristocracia se fiou na pintura de retratos como forma de registrar sua imagem para a posteridade. Com o crescimento da pintura de paisagens (inclusive as vedute), esses dois gêneros de arte se fundiram na obra de Thomas Gainsborough (1727-1788). Sr. e Sra. Andrews (1750) é ambientado no vale do rio Stour, na Inglaterra. A colheita já terminou, mas não há lavradores à vista. A área cultivada se funde com os campos, e na lateral esquerda a jovem sra. Frances Andrews aparece sentada ereta, ainda que um tanto insegura de si, calçando tamancos e vestindo uma saia azul sem um respingo de lama. Ela tem dezoito anos e acaba de se casar. O marido, sr. Robert Andrews, é sete anos mais velho. Bem à vontade, ele se encosta no banco, com uma perna cruzada sobre a outra e a mão no bolso. A espingarda de cano longo foi incluída no retrato como se ele tivesse saído para caçar. O colo da sra. Andrew ficou por pintar. Estaria vazio para abrigar alguma caça ou, quem sabe, um bebê, um futuro herdeiro fosse acrescentado mais tarde? O estilo do quadro pode ser o de um retrato de casal em ambiente externo natural, mas é uma enganação. Não é possível que Frances andasse até o banco com aqueles saltos! Em última análise, a pintura é uma declaração de propriedade. A união do casal criou um patrimônio considerável em terras de aproximadamente 12 quilômetros quadrados que se estendem por trás deles. Gainsborough iniciava sua carreira quando pintou esse retrato. Ele e Robert Andrews eram da mesma idade e tinham frequentado a mesma escola. Gainsborough veio a se tornar um dos principais pintores de sua geração, famoso pelos retratos e paisagens e membro fundador da Real Academia de Londres. Em 1750, porém, sentia-se satisfeito por pintar o interior de Essex e não mais Londres, uma cidade, então, cheia de problemas. Salteadores roubavam carruagens em plena luz do dia em Piccadilly, e hordas de soldados e marinheiros dispensados aderiam ao crime para sobreviver. Aqueles confinados nas favelas da cidade consumiam gim em quantidades cada vez maiores. William Hogarth (1697- 1764), com um foco nos aspectos mais sombrios da vida londrina, faz um contraste chocante com Gainsborough e seu escapismo aristocrático. Hogarth era de família pobre e começou como aprendiz com um gravurista. Mesmo sendo pintor autodidata e tendo criado muitos retratos e peças de conversação (retratos de grupo em contextos informais), foram as gravuras que o tornaram um nome conhecido e uma pedra no sapato na esfera do governo. Em 1751, Hogarth publicou Beer Street [rua da cerveja] e Gin Lane [avenida do gim], oferecendo as reproduções a um xelim cada, valor intencionalmente baixo. As gravuras circulavam nas feiras europeias havia séculos (no capítulo 15, vimos Dürer vendendo as dele nessas feiras), mas eram vendidas como obras de arte. As gravuras de Hogarth, por mais que hoje sejam valorizadas como arte, eram críticas sociais mordazes, criadas para alcançar o maior público possível. A Inglaterra importava o gim da República Holandesa havia sessenta anos, e muitos membros da classe operária estavam entregues a ele. O romancista Henry Fielding, amigo de Hogarth, relatara as consequências nefastas da epidemia do gim em janeiro de 1751, e Hogarth publicou essas duas gravuras exatamente um mês depois. (As leis sobre o gim acabaram sendo reescritas após a campanha de Fielding e Hogarth.) Em Gin Lane, uma mulher em estado de total embriaguez deixa o bebê cair tragicamente de seus braços. Um cantor esquelético, ainda com o copo de gim na mão, parece ter dado o último suspiro. Em sua cesta, a partitura de uma balada, “A derrocada da sra. Gin”. A sra. Gin é vista fazendo suas maldades pelos arredores da cidade caótica de Hogarth: um homem dependurado na viga de uma casa abandonada, enquanto uma mulher é colocada no caixão. Somente o agiota faz bons negócios. Por outro lado, Beer Street oferece uma alternativa patriótica, alegre e irreverente à morte e à destruição causada pelo gim. A cerveja faz crescer a barriga, mas Hogarth a coloca como a bebida de homens e mulheres trabalhadores e honestos. Nessa realidade alternativa, o agiota leva a pior enquanto a cidade prospera. Hogarth foi um observador incrível da natureza humana e tinha um tino para os tiques e afetações de todas as classes da sociedade. Em Casamento à la mode (1743), ele conta, em seis quadros, a história do casamento arranjado entre a filha de um rico vereador (conselheiro) da cidade e o filho, aparentemente sifilítico, de um conde empobrecido. No quarto quadro, A toalete, um criado negro serve chocolate quente enquanto a esposa recebe o amante em seu quarto. Um menino negro menor, usando um turbante emplumado, brinca com estatuetas da coleção do conde, já falecido, prestes a serem leiloadas para fazer um dinheiro extra. Tudo é exibição, desde os criados negros “exóticos” ao castrato e o flautista que entretêm seus convidados pedantes. Afinal, Hogarth desejava ter suas cenas da Inglaterra contemporânea avaliadas entre as maiores pinturas de todos os tempos, e ficou muito irritado quando não o conseguiu. Ele faleceu quatro anos antes da fundação da Real Academia de Artes em Londres, mas, considerando sua rejeição a teóricos e acadêmicos, é bem provável que não viesse a ser um de seus membros. Hogarth era realista demais – um homem das ruas – para agradar aos acadêmicos de ambos os lados do Canal da Mancha. Capítulo 23 - A Real Academia: em casa e longe dela É 1772 e grande parte dos membros fundadores da nova Real Academia de Artes em Londres se aglomera na sala de desenho vivo. É noite e a única iluminação vem do grande lustre a óleo preso ao teto. Abaixo, sobre uma plataforma rasa, estão dois modelos vivos masculinos sentados. Um deles já está despido e sendo posicionado por George Moser, o artista encarregado das escolas da Academia. Moser coloca a mão do modelo no laço de corda pendente do teto para ajudá-lo a manter o braço erguido, sustentando a posição desconfortável. O desenho vivo é parte essencial da formação acadêmica no século XVIII e, sem ele, nenhum artista pode sonhar com o estrelato. O primeiro diretor da Real Academia, Joshua Reynolds, em um elegante paletó preto forrado de cetim branco, e sua reluzente trombeta de ouvido de prata, não observa o modelo, mas sim escuta o que diz o secretário. Nesse ínterim, os membros da Academia, de peruca e meias, preenchem as bancadas de desenho semicirculares. O pintor paisagista Richard Wilson se apoia em uma extremidade, à direita, de preto, e o artista visitante chinês Tan-che-qua está por trás do pintor de história americana Benjamim West, bem descontraído. Tan-che- qua não se dirige a West, mas olha em direção à parede mais distante, para dois retratos de mulheres artistas. São as únicas “mulheres” que vemos na sala, pois essa é uma sessão de desenho vivo e as mulheres estão estritamente proibidas de entrar. * A reunião acima, na verdade, não aconteceu. Ou, pelo menos, não com essa composição, dado se tratar da cena de um quadro, Os acadêmicos da Real Academia (1771-1772). É um retrato de grupo de autoria de um dos primeirosacadêmicos, o alemão Johann Zoffany (1733- 1810), que se colocou no canto inferior esquerdo, segurando a paleta. O certo é que as duas mulheres nos retratos pintados, Mary Moser (1744-1819) e Angelica Kauffman (1741-1807), jamais estiveram na sala de desenho vivo, mesmo sendo também fundadoras da Academia. (Alguns dos integrantes homens, especialmente Gainsborough, o maior rival de Reynolds, também não fizeram parte do quadro definitivo.) Os acadêmicos da Real Academia é uma interpretação moderna da A escola de Atenas de Rafael, vista no capítulo 14. A pintura reúne dezenas de acadêmicos, artisticamente posicionados em uma composição chamada de retrato de grupo. Zoffany era mestre nisso e, tão logo finalizou o quadro, recebeu uma encomenda da rainha Charlotte para pintar outro no mesmo feitio. O tema era a Tribuna (sala das obras-primas), na recém- inaugurada Galeria Uffizi, em Florença, que fervilhava de ingleses em seu Grand Tour. Na Tribuna dos Uffizi (1772- 1777), há quadros distribuídos pela sala octogonal de cima a baixo. A galeria Uffizi abrigava o acervo dos Médicis e, na pintura de Zoffany, algumas peças foram destacadas para uma observação mais atenta. Há uma ligação entre Os acadêmicos da Real Academia e Tribuna dos Uffizi. O foco de ambas as telas recai sobre homens artistas e aristocratas, e as mulheres somente são incluídas como imagens a serem observadas. Na Tribuna, homens de peruca cercam a escultura nua da Vênus de Médici helenista e a Vênus de Urbino de Ticiano. Já em Os acadêmicos, as duas mulheres, embora membros, não aparecem como participantes ativas, posando como modelos na sala de desenho vivo ou conversando com Reynolds sobre teorias da arte. Ao contrário, elas estão presentes como retratos de cabeça e ombros, como objetos a serem olhados. (A figura feminina seguinte a se tornar acadêmica foi Laura Knight, em 1936, quase dois séculos depois. O lugar permaneceu um universo masculino até bem pouco tempo.) Mary Moser, filha do acadêmico George Moser, foi uma notável pintora de flores, enquanto Angelica Kauffman destacou-se como retratista, aspirante ao primeiro escalão da hierarquia acadêmica, o de pintora histórica. Suíça de nascença, Kauffman viajou com o pai, um pintor contratado (que trabalhava para outros artistas). Angelica era musicista talentosa, mas optou pela pintura, realizando seu primeiro autorretrato conhecido aos doze anos. Aos vinte, morou na Itália (Florença, Bolonha e Roma), antes de se mudar para Londres em 1766, onde ficaria por quinze anos. Ela foi aceita pelas academias de arte dessas quatro cidades, o que atesta sua capacidade, e conquistou seguidores fiéis e alguns mecenas influentes, incluindo a rainha Charlotte. Mesmo sem permissão para praticar com modelos vivos nus, algo visto como essencial para a pintura histórica, ela obteve êxito pintando temas mitológicos e históricos como Zeuxis escolhendo modelos para a pintura de Helena de Troia (1775-1780) e A tristeza de Telêmaco (1783). Angelica obteve enorme sucesso, e suas gravuras inspiradoras circularam pela Europa, levando o embaixador dinamarquês em Londres a observar em 1781 como o mundo inteiro se tornara “louco por Angelica”. Joshua Reynolds (1723-1792) foi um retratista que elevou seus modelos a status de heróis e heroínas e competia com pinturas de história mitológica como as de Kauffman nas exposições da Academia. Entretanto, quando seu colega acadêmico Benjamim West transformou uma cena contemporânea da Batalha de Quebec em uma notável tela histórica com A morte do general Wolfe, em 1770, Reynolds ficou horrorizado. Até então os temas históricos eram clássicos e edificantes, nunca atuais e realistas. West conservou os uniformes dos soldados da época e incluiu um guerreiro mohawk sentado, com tatuagens bem detalhadas e acessórios de contas, sugerindo que o pintor fizera estudos mais detidos sobre aquele homem. Apesar das preocupações de Reynolds, West conferiu à cena da época a seriedade de uma pintura histórica clássica. Seu general moribundo jaz qual o Cristo morto na Descida da cruz de Rubens (vista no capítulo 19), uma morte mais idealizada do que real. A morte do general Wolfe ganhou enorme popularidade, tornando-se uma gravura de alta vendagem, e West assumiu o posto de diretor da Academia quando, mais tarde, Reynolds deixou o cargo. Nas exposições anuais, a Academia exibia as novas obras dos acadêmicos, sendo o equivalente inglês do Salão francês. Acessível a qualquer um que tivesse um xelim sobrando (cerca de cinco libras esterlinas hoje), a Academia tornou-se o coração do mundo da arte londrina enquanto competia com Paris. Nem todo acadêmico estava convencido de que a exposição se equiparava ao Salão e decidiram agir por conta própria. John Singleton Copley (1738-1815) foi um seguidor norte-americano de West e se tornou acadêmico em 1779. Ele sempre enfurecia Reynolds e os demais acadêmicos expondo seus quadros de história moderna em salas alugadas para garantir um foco exclusivo para sua obra. Custava um xelim para ver A morte do major Peirson (1784), um quadro encomendado por John Boydell que viria a ter uma circulação bem maior como gravura. Boydell esperava duplicar as vendas de sua gravura em relação às vendas de A morte do general Wolfe, de West, que alcançaram quinze mil libras (três milhões colossais de libras hoje). O major Peirson não era muito conhecido antes de sua morte, mas, ainda assim, a cena de Copley era cheia de vigor patriótico e lealdade. Peirson morrera durante um ataque às tropas francesas em Jersey. Na interpretação de Copley sobre os acontecimentos, conforme o major branco sucumbe, seu criado negro empunha a arma e atira no criminoso. A aba do casaco do criado revira quando ele mira o alvo, e a atitude do corpo espelhando as linhas diagonais dos soldados avançando e as mulheres e crianças fugindo dá uma sensação de impulso repentino ecoado pelas imensas bandeiras inglesas agitadas. Essas diagonais imprimem velocidade à batalha, levando o espectador ao centro da ação. Nem todos os acadêmicos ficaram na Inglaterra. Ainda jovem, William Hodges (1744-1797) passou três anos a bordo do navio do capitão Cook, Resolution. Ele acompanhou Cook em sua segunda viagem de volta ao mundo de 1772 a 1775, pintando a flora, a fauna e os tipos humanos que conheceu no Taiti, na Nova Zelândia e em Rapa Nui. Na época, o Iluminismo estava no auge, o tempo do conhecimento científico em franca expansão, quando os europeus desejavam ver, compreender e classificar o mundo inteiro (um mundo que estavam, ao mesmo tempo, explorando por meio da construção agressiva de impérios). O botânico Joseph Banks, que navegara com Cook na primeira viagem, deveria acompanhá-lo novamente. Banks convocara os serviços de Zoffany como seu pintor de bordo, mas Cook se recusou a acomodar todo o séquito de Banks e o botânico desistiu da viagem, bem como Zoffany. Zoffany foi para Florença, trabalhar para a rainha Charlotte, e Hodges o substituiu como artista oficial na segunda viagem. Os quadros de Hodges sobre a Oceania, finalizados ao regressar à Inglaterra, não são interpretações precisas da paisagem tropical encontrada. Ao contrário, ele a banhou com as atmosferas douradas de Claude e a transformou em vistas pitorescas que os europeus podiam assimilar. Os quadros procuravam acompanhar o gosto europeu contemporâneo conforme exemplificado na Grã-Bretanha pelo pintor paisagista Richard Wilson (1714-1782), com quem Hodges havia estudado. Os quadros de Hodges realçavam observações detalhadas da vegetação da ilha e muitas vezes incluíam edificações ou barcos usados pelos habitantes da ilha, mas, no final, Hodges era levado por preconceitos europeus. Os taitianos nos barcos em Vista da baía de Matavai na ilha de Otaheite, datado de 1776, têm pele escura e remam em canoas de guerra ao longo da costa, defendendo o litoral da ilha. Por outro lado,as mulheres do quadro de mesma temática Vista da baía de Otaheite Peha têm pele clara. Elas se banham nuas nas águas calmas de um remanso, e só mesmo a tatuagem nas nádegas de uma delas distingue-as das mulheres europeias. Palmeiras esguias e uma escultura taitiana ti’i (bem aumentada) foram acrescentadas como elementos exóticos a uma paisagem que, de outra forma, seria uma paisagem familiar de um curso d’água sinuoso emoldurado por árvores e montanhas distantes. O conhecido relato do navegador francês Louis-Antoine Bougainville sobre o Taiti, publicado em inglês em 1771, descrevia o Taiti como uma nova Citera, a ilha do amor que conhecemos na obra de Watteau no capítulo anterior. Hodges conserva essa ideia, e o espectador na Inglaterra tinha como contemplar as mulheres e a paisagem, apreciando a posse visual de ambas. Os dois quadros de Hodges foram expostos na Real Academia em 1776 ao lado do Retrato de Omai, de Reynolds, uma “imagem” de Mai, habitante da ilha de Raiatea (conhecido em Londres como Omai), na Polinésia. Omai juntou-se a Cook em sua segunda viagem e tornou-se parte da sociedade inglesa ao chegar a Londres. Esse não fora um retrato encomendado. Na verdade, Reynolds havia previsto que o público da exposição anual estaria curioso para ver o estrangeiro “exótico”. Hoje a representação distorcida de Mai feita por Reynolds pode parecer de mau gosto e até racista. Ele vestiu o jovem Mai descalço com túnicas brancas volumosas e um turbante, com tatuagens visíveis somente nas mãos. Sua pele é bem mais clara do que no retrato de Mai feito por Hodges, que dá ao jovem nariz e boca avantajados, diferentes dos traços ocidentalizados do retrato de Reynolds, e há uma sensação de escrutínio visual encoberto por Reynolds em favor de um esplendor teatral. Esculturas ti’i iguais à que vimos no quadro de Hodges, Vista da baía de Otaheite Peha, foram trazidas para a Inglaterra nas viagens de Cook. Hoje avaliamos essas peças como esculturas, mas elas não eram vistas dessa forma no século XVIII, mas como curiosidades antropológicas, exóticas e diferentes aos olhos ocidentais, conforme ocorreu com Mai. Não eram consideradas arte na Europa porque seus autores anônimos não visavam uma representação real. Seja naturalista ou idealista, com pinceladas soltas ou trompe l’oeil, toda a arte do século XVIII era julgada pela maestria da imitação, a capacidade de copiar o mundo natural, que (conforme vimos) teve sua origem na arte clássica grega e romana. Hoje, duas figuras ti’i, um homem e uma mulher, estão no Museu Pitt Rivers, em Oxford. Nelas, vemos somente traços essenciais em vez de feições mais detalhadas. As cabeças são desproporcionais e as pernas curtas arqueadas, com olhos e dedos marcados por linhas. Só depois que artistas modernos como Paul Gauguin encontraram obras semelhantes em feiras mundiais no final do século XIX e começaram a tê-las como fonte de inspiração, o Ocidente, aos poucos, passou a apreciar o valor estético dessa arte. (Seguiremos Gauguin até o Taiti no capítulo 29.) Mesmo nessa época, o contexto original dessas obras nunca foi reconhecido e não sabemos se essas figuras representavam divindades polinésias, se estariam ligadas a sistemas de crenças ou se tinham, a princípio, um propósito artístico. Ninguém acreditava que os nativos das ilhas tivessem se envolvido com as formas da arte ocidental durante as viagens de Cook. Portanto, supunha-se que uma série de aquarelas figurativas sobre os primeiros encontros entre oficiais navais britânicos e a população polinésia seriam de autoria de algum tripulante britânico. Só em 1997 uma carta de Banks revelou que Tupaia, o alto sacerdote de Raiatea, tinha aprendido a desenhar no estilo ocidental ao acompanhar Cook durante sua primeira viagem. As aquarelas posteriores de Tupaia mostram Banks em seus calções e sapatos de fivela trocando uma lagosta espinhosa com um maori tatuado, vestindo um manto de linho. Tupaia também pintou a vestimenta de um chefe de cerimônias fúnebres, reduzindo-a à sua forma essencial, algo que os artistas ocidentais levariam mais 150 anos para alcançar. Isto porque, conforme vimos anteriormente, as academias europeias ainda eram reféns das tradições e do ensino clássicos. Essa abordagem foi exemplificada pelos quadros de David, a nova estrela do neoclássico francês. Capítulo 24 - Liberdade, igualdade e fraternidade? É 1785 e Jacques-Louis David finalmente terminou a tela O juramento dos Horácios. São mais de quatro metros de largura e, nela, a família dos Horácios se prepara para a guerra. Os quatro homens são de tamanho natural – três irmãos saúdam suas espadas que o pai, Horácio, sustenta no alto. Estão prestando o juramento de defender Roma, enquanto o pai fita os céus como se invocando os deuses para abençoar a obediência dos filhos. David baseou o quadro em uma história antiga em que dois grupos de irmãos lutam para resolver uma desavença entre Roma e uma cidade próxima, Alba. Ele situou a família dos Horácios em um interior clássico austero com três arcos emoldurando os grupos familiares. À esquerda, os jovens irmãos imberbes, prontos para a batalha, de capacete e peitoral. O pai, barbado e forte, de pé em frente ao arco central, envolto em um manto vermelho para chamar a atenção. Encostadas no terceiro arco, as figuras femininas da família e seus filhos, um contraponto emocional frente à resiliência férrea dos homens. Agora, David precisa encontrar uma forma de levar o quadro para a Academia em Paris a tempo de participar do Salão, onde será exposto. Não será nada fácil. Ainda que ele estivesse trabalhando nessa obra para o rei francês Luís XVI, ele a pintou em Roma, sede da escultura clássica e berço do Neoclassicismo. * Na França, O juramento dos Horácios deu nova vida ao classicismo. As cidades romanas soterradas, Pompeia e Herculano, tinham sido descobertas no começo do século e alguns livros influentes sobre arte clássica, publicados. Essa redescoberta é hoje conhecida como Neoclassicismo. Os quadros neoclássicos de Jacques- Louis David (1748-1825) baseavam-se em histórias da Antiguidade e, como pinturas históricas, classificavam-se no nível mais elevado da rígida hierarquia da arte da Academia Francesa. Na Academia, as regras eram estritas, e somente quatro mulheres de cada vez eram aceitas e, como na Real Academia, nenhuma delas podia entrar na sala de desenho vivo. As pintoras Adélaïde Labille-Guiard (1749- 1803) e Elisabeth Vigée Lebrun (1755-1842) integraram a Academia. No mesmo Salão em que David expôs O juramento dos Horácios, Labille-Guiard apresentou seu imenso Autorretrato com duas alunas, uma afirmação enfática sobre a necessidade de formar e apoiar mulheres artistas. No Salão seguinte, ela expôs o Retrato de madame Adélaïde, uma pintura da tia do rei, seu mecenas constante. O Salão era um lugar caótico, com quadros nas paredes de cima a baixo e uma multidão se acotovelando, em busca do melhor ângulo de visão. Os artistas tinham de chamar a atenção do espectador distraído de qualquer maneira, por meio da escala da obra, usando cores brilhantes ou assegurando uma reputação tamanha que garantisse o melhor posicionamento na parede, que os acadêmicos dos dois lados do Canal chamavam “na linha” (um metro acima da altura da cabeça). Era onde estavam os quadros de David. O que diz muito sobre a reputação de Labille- Guiard e Vigée Lebrun é saber que, quando o Salão de 1787 foi aberto, os retratos delas estavam logo acima da Morte de Sócrates, de David, e não “nas alturas” com os artistas menos conhecidos que tinham suas obras empurradas para o teto. A entrada de Vigée Lebrun no Salão de 1787 foi com um retrato lisonjeador de Maria Antonieta e seus filhos. Tinha sido encomendado pela família real em uma tentativa desesperada de salvar a reputação de Maria Antonieta, vista pelo povo como frívola e inacessível. A importância do quadro paraa família pode ser avaliada pela soma recebida por Vigée Lebrun, maior do que o valor pago pelos maiores quadros históricos da época. Entretanto, nesse período, o clima político andava tão delicado, que o quadro de Vigée Lebrun só foi pendurado depois que o Salão abriu oficialmente, para minimizar a possibilidade de um tumulto do público. Vigée Lebrun ainda pagaria por ser a pintora favorita de Maria Antonieta, pois, quando a Revolução Francesa eclodiu dois anos mais tarde, ela precisou se exilar para escapar da guilhotina. Os retratos da aristocracia saíram rapidamente de moda na França, à medida que o país se aproximava da deposição do rei, sendo substituídos pelas cenas neoclássicas sóbrias e moralizantes de David e outros. Conforme já constatamos, o Neoclassicismo de David se originara em Roma, onde o veneziano Antônio Canova (1757-1822) também mantinha um ateliê. Esses artistas defenderam um retorno ao classicismo moldado pelos textos influentes de Johann Joachim Winckelmann. Em livros como History of the Art of Antiquity [História da arte da antiguidade], publicado pela primeira vez em 1764, Winckelmann escreveu sobre escultura clássica com entusiasmo, dando vida às obras, identificando nelas uma beleza universal, estimulando artistas contemporâneos como Canova a seguir os passos dos gregos antigos. Winckelmann possuía uma perspectiva muito pessoal sobre a beleza na arte. Ele era um homem branco europeu em uma época em que esses homens classificavam tudo em nome do Iluminismo, rotulando e, portanto, ordenando e controlando o mundo à sua volta. A homossexualidade de Winckelmann fundamentou suas descrições de nus masculinos clássicos, muitas vezes com emoção incontida. Segundo ele, os nus gregos mais bonitos eram masculinos, elogiando o Apolo de Belvedere como o “ideal máximo da arte”. Suas impressões se transformaram no marco fundamental sobre o qual se ergueu a disciplina moderna da história da arte ocidental. Segundo ele, toda a arte posterior deveria aspirar ao ideal grego de “simplicidade nobre e grandeza serena”. Os britânicos, em seu Grand Tour, tinham avaliado a escultura barroca muito teatral e queriam uma arte sóbria, atemporal, para suas residências neoclássicas. Os colecionadores franceses desejavam uma arte oposta ao rococó decadente. Na visão de Winckelmann, a volta aos valores clássicos traria tudo isso, com o mármore branco evocando formas ideais. Para Winckelmann, ao olhar para essas esculturas da perfeição física masculina, de ação em suspenso e músculos expostos, o frisson do erotismo também estava sempre por perto. Canova apoiou-se fortemente nas ideias de Winckelmann, sem, no entanto, dominar por completo a habilidade, do início do barroco, de esculpir estátuas soltas, tridimensionais (visto na obra de Giambologna, no capítulo 17) ou do fascínio pelo amor no rococó. Todas essas ideias desempenharam um papel em suas obras como Psiquê reanimada pelo beijo de Cupido (1787- 1793), escultura elegante e erótica dos amantes improváveis. A mortal Psiquê é abraçada por Cupido, o amante alado, seu corpo praticamente nu buscando alcançá-lo enquanto ele a acaricia. Cupido é uma versão atualizada dos belos jovens gregos que tanto ocuparam a pena de Winckelmann. Foram infindáveis os monumentos dedicados a heróis masculinos brancos no século XVIII, desde a estátua equestre de bronze do czar russo Peter I, em São Petesburgo, por Etienne Maurice Falconet (1716-1791), até a escultura de tamanho natural de George Washington, em Richmond, nos Estados Unidos, de Jean- Antoine Houdon (1741-1828). Mas o período também foi de escultores que começaram a trabalhar com modelos negros. Um busto de um homem negro desconhecido, talvez um atleta, da primeira fase do escultor britânico do Grand Tour, Francis Harwood (1727-1783), mostra o escultor empregando pedra negra em vez de mármore para preservar a semelhança. Houdon esculpiu uma mulher negra para uma fonte concebida por ele para o duque de Chartres. Moldada em chumbo, ela era a criada de uma mulher branca de mármore, em seu banho. Existe ainda hoje somente um molde de estudo pintado, já que a fonte foi abandonada quando a Revolução começou e o duque foi guilhotinado em 1793. Na Inglaterra, o poeta e artista visionário William Blake (1757-1827) complementava sua renda como gravurista para editores de livros. Em 1796, ele ilustrou Narrative of a Five Years’ Expedition against the Revolted Negroes of Surinam [Narrativa da expedição de cinco anos contra os negros revoltosos do Suriname], de John Stedman, que detalhava a tortura brutal e o assassinato de escravos da lavoura na colônia holandesa do Suriname, na América do Sul. Em uma gravura colorida, Blake ilustrou um castigo especialmente bárbaro: um negro amarrado, preso a uma forca por um gancho que atravessa suas costelas. Por trás dele, crânios em estacas pontilham a paisagem, enquanto um navio de comércio holandês se afasta da baía, levando o açúcar produzido pelos escravos para as ávidas mesas europeias. O livro de Stedman foi adotado por britânicos antiescravagistas e essa gravura se tornou uma das peças mais significativas e amplamente reproduzidas da arte antiescravagista. No passado, pessoas negras só eram incluídas em quadros preenchendo um de dois papéis: o de criado “exótico” elegante, em retratos de grupo como nos de Hogarth, que vimos no capítulo 22, ou o de rei africano Baltazar, um dos três reis magos que seguiram a estrela de Belém, trazendo presentes para o Cristo, como nas versões da Adoração dos Magos, de Dürer, Bosch e Rubens. Entretanto, mais para o encerramento do século XVIII, quando a França se tornou uma democracia (de curta duração) após a Revolução, os artistas começaram a pintar modelos negros como indivíduos. Um dos exemplos mais expressivos é o Retrato do deputado Belley, de Anne-Louis Girodet (1767-1824), exposto no Salão de 1798. Belley era filho de escravos vindos do Senegal, libertados depois de muitos anos de trabalho. Ele serviu no exército revolucionário francês, chegando ao posto de capitão. Mais tarde, tornou-se deputado na Convenção Nacional (parlamento provisório francês), representando a colônia francesa de São Domingos, na ilha caribenha Hispaniola (hoje Haiti). Belley fez uso de seu cargo para pleitear contra a escravatura e estava presente quando a Convenção a aboliu nas colônias francesas em 1794. À época da exposição desse retrato, Belley deixara o cargo havia pouco e estava prestes a voltar para casa, em São Domingos, que aparece no quadro, como pano de fundo. No Salão, a receptividade ao retrato de Belley foi calorosa, e ele foi visto como símbolo dos propósitos da Revolução Francesa, a saber, liberdade e igualdade. Ele obteve o mesmo reconhecimento que o busto de mármore em que está apoiado, do abade Raynal, um antigo defensor branco da abolição da escravatura, falecido no ano anterior. Belley usa o uniforme de seu antigo posto e os cabelos grisalhos escovados para trás. Girodet não permite que ele seja inteiramente incorporado à sociedade francesa, acrescentando-lhe um brinco. No geral, porém, é um retrato afável, em que Girodet se empenhou por acreditar em Belley e em tudo o que ele representava. Dessa forma, o retrato representa o auge do Romantismo, um movimento novo dramático e sincero que exploraremos no capítulo seguinte. Girodet fora assistente de David, mas agora se colocava como seu rival. Marie Guillemine Benoist (1768- 1826) tinha a mesma idade de Girodet, e também passara um tempo no ateliê de David, assim como também foi discípula de Vigée Lebrun. Seu Retrato de Madeleine ganhou notoriedade ao aparecer no Salão de 1800. Madeleine é uma jovem negra. Sentada, ela olha diretamente para o espectador, encarando-o com olhos firmes. Seus trajes são uma túnica branca solta com uma fita laranja, um xale azul jogado sobre o espaldar da cadeira. Apresentar uma mulher negra dessa formafoi algo sem precedentes, ao colocá-la como um sujeito com direito próprio, sem desempenhar um papel (escravo ou realeza). Poderia ela simbolizar a Mãe França, recém- libertada da monarquia, um país que abolira a escravatura? Será que simbolizava a emancipação para os negros em geral e para as mulheres? Se ela, de fato, simbolizou tudo isso, a visão foi momentânea. Ainda que ganhasse medalhas no Salão, Benoist foi forçada a abandonar a pintura quando o marido foi promovido. E, quanto à abolição da escravatura, Napoleão a restaurou em 1802. A Revolução Francesa matou um rei e criou um imperador, com o coração determinado, agora, a conquistar a Europa (e além), pilhando os tesouros de cada país. Quando marchou sobre a Espanha, em 1808, ele já havia preenchido os salões do Louvre com carroças e mais carroças de obras-primas roubadas. Da Itália, apossara-se da Vênus de Médici, do Apolo de Belvedere e do Laocoonte. Na Antuérpia, seus representantes confiscaram a Descida da cruz, de Rubens, e Napoleão tentara se apropriar do afresco de Rafael, A escola de Atenas, das paredes do Vaticano. O quadro de Veronese, de 10 metros de largura, As bodas de Canãa, do mosteiro dominicano em Veneza, partiu-se em dois ao cruzar os Alpes e precisou ser rapidamente restaurado. Napoleão acabou sendo interceptado, e muitas das obras de arte foram devolvidas, mas não antes de seus seis anos de incursão pela Espanha. Essa guerra, conhecida como Guerra Peninsular ou Guerra de Independência Espanhola, foi documentada por Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828). A série de gravuras resultante, Os desastres da guerra (1810-1815), é o mais pungente conjunto de obra já criado sobre guerra. Goya, então já idoso e surdo, concluiu as 82 gravuras usando o novo processo de água-tinta, que permitia acrescentar áreas tonalizadas (na escala do cinza, em vez de linhas). Há cenas de fome, de loucura, de violência inimaginável. Na prancha 39, ele gravou três corpos desmembrados e castrados, pendurados em uma árvore; na prancha 5, mulheres encaram soldados de arma em punho só com pedras e pedaços de pau, resguardando os filhos nas costas para protegê-los. Os desastres da guerra foi uma obra tão chocante que Goya não ousou publicá-la em vida. Só foi oficialmente publicada em 1863, 35 anos após sua morte. Capítulo 25 - Do Romantismo ao Orientalismo É julho de 1819 e Théodore Géricault pousa o pincel. Está terminado. Durante os últimos nove meses ele ficou trancado em seu ateliê, em um frenesi pictórico, cobrindo uma tela de 7 metros de largura e quase 5 metros de altura com uma cena emocionante de sobreviventes de um naufrágio. São soldados africanos, marinheiros mediterrâneos e cadáveres franceses sem cor, em uma pequena balsa em alto mar. Um negro, de peito descoberto, é sustentado no alto para acenar uma bandeira improvisada e atrair a atenção do navio que passa, mas o vento na pequena vela os leva na direção errada. Ondas ameaçadoras estão prestes a engolir os homens e cinco deles já morreram. Géricault passa os olhos pelo ateliê. Os amigos deixaram de aparecer, porque o cheiro era insuportável. Ele pagara para ter cadáveres e poder estudar membros e tons de pele, e os corpos tinham ficado ali por um bom tempo. Há desenhos e pinturas referentes à A balsa da Medusa espalhados por toda parte. A obra tomara-lhe dias e noites, enquanto entrevistava sobreviventes e trabalhava em diferentes ideias de composição para dar vida à trágica situação dos náufragos. O quadro tem por base o desastre ocorrido em 1816, quando a fragata francesa Medusa, que encalhara na costa do Senegal, abandonou 150 tripulantes e passageiros em uma balsa improvisada. Eles ficaram à deriva por treze dias até que um navio passasse e os resgatasse. Restaram somente quinze homens com vida, e os relatos de casos de canibalismo chegaram ao litoral com os sobreviventes. Géricault pintou vários homens tentando alcançar o navio distante, que não passa de uma vela triangular minúscula no horizonte. Géricault escuta seus gritos, sente o cheiro da salmoura do mar e o gosto do medo. A batalha deles é entre a vida e a morte e ele está determinado a fazer justiça a ela. * A balsa da Medusa ganhou a medalha de ouro no Salão de 1819, mas não foi adquirida pelo acervo de imediato, talvez devido à posição de destaque dada a um homem negro numa época em que a França retomara a participação no mercado de escravos. A reação da crítica se dividiu entre aqueles que valorizavam o realismo de Théodore Géricault (1791-1824) e aqueles que sentiam que elevar um episódio sinistro da vida contemporânea à categoria de um quadro de história clássica era demasiado. Para Géricault, A balsa da Medusa representava sua crença de que o artista não devia ficar refém das regras da Academia, mas, antes, ser livre para pintar o que o emocionasse. Géricault faleceu cinco anos depois, mas seu quadro foi um toque de clarim para os artistas desejosos de se expressar e de deixar as emoções moldarem sua obra. Esses românticos, como se tornaram conhecidos, rejeitavam o Neoclassicismo e, em vez dele, optavam por expressar a própria personalidade e suas experiências. Ao se distanciarem da formação clássica, eles deram prioridade à cor, à emoção, ao sentimento e às sensações. O Romantismo foi o primeiro calcanhar de Aquiles das academias europeias dominantes, que, até então, tinham controlado a forma como a arte era ensinada e os estilos considerados importantes. A pintura de paisagens europeia fora extremamente influenciada por Claude durante todo o século XVIII, mas, agora, os artistas românticos buscavam uma experiência mais profunda, mais espiritual, em que a natureza arrebatasse os sentidos por completo. Começaram a expressar estados emocionais pintando despenhadeiros vertiginosos e mares sem fim. Suas paisagens nos acordam para a vida, nos preenchendo com uma sensação de admiração, uma maravilha assustadora do poder da natureza. É o que se conhece como o sublime. Intelectuais europeus como Edmund Burke tinham escrito sobre o sublime no século XVIII, mas ele se expressou com mais habilidade na arte meio século mais tarde com Caspar David Friedrich (1774-1840). Para Friedrich, a paisagem alemã tornou-se um local para contemplação pessoal e conexão espiritual. Nascido numa família protestante rígida, muitas de suas paisagens contêm símbolos religiosos: um crucifixo no alto de uma montanha; as ruínas de uma abadia em um bosque no inverno; um monge de pé sobre uma duna de areia contemplando a imensidão do mar. Friedrich ampliou os aspectos naturais para aumentar o sentido do sublime em seus quadros. Em Caminhante sobre o mar de névoa de 1818, um homem de pé sobre a extremidade de um penhasco olha para o vale envolto em nuvens baixas. O vento agita seus cabelos e sentimos vontade de pedir-lhe que se afaste da beira da rocha. A paisagem que ele contempla é vasta. Friedrich muitas vezes evocava o aspecto sublime da natureza, aquele que nos faz perder o fôlego, para transmitir a divina majestade do mundo natural. Na Inglaterra, John Constable (1776-1837) concentrou- se nas planícies da Suffolk de sua infância inglesa. Friedrich desejava captar a experiência do sublime, já Constable visava reproduzir os ares naturais do cotidiano local. Seu intento era transmitir a vívida inconstância dos dias do verão inglês, com nuvens passando sobre a cevada curvada nos campos. Constable se orgulhava de suas paisagens e queria vê- las concorrendo com os quadros históricos nas exposições da Real Academia. Assim, pintou telas colossais, com cerca de dois metros de largura, como A carroça de feno, de 1821. Sob um céu instável, uma carreta puxada por um cavalo segue seu caminho pelas águas rasas do rio Stour, perto de Flatford Mill, propriedade do pai de Constable. Cada folha parece viva sob a luz do sol e, para além do rio, o sombreado no campo reflete a formação dasnuvens acima. Ainda que na Inglaterra Constable tivesse uma receptividade morna, A carroça de feno ganhou a medalha de ouro no Salão de Paris em 1824. Ele foi aclamado como artista romântico na França e influenciou outros românticos, inclusive Eugène Delacroix. Por essa época, o inglês Thomas Cole (1801-1848) se estabelecia nos Estados Unidos. Cole não tinha formação formal e começara como gravurista, mas foi atraído pelas áreas turísticas recém-desenvolvidas da costa leste americana – como o rio Hudson, as montanhas Catskill – e tornou-se pintor de vistas e paisagens. Ele foi o primeiro a pintar essa temática nos Estados Unidos. Para os colonos europeus, a terra norte-americana era algo a ser conquistado e possuído, uma riqueza. Até que os primeiros hotéis turísticos fossem inaugurados, não tinha sido considerada uma vista a ser simplesmente apreciada, e tampouco se considerava que a queda sublime de uma cachoeira ou as alturas de um pico de montanha pudessem ser apreciadas a partir de uma plataforma panorâmica. Na perspectiva de Cole, havia um problema sério. Ele não tinha como incluir prédios clássicos antigos, como Claude fizera, porque eles simplesmente não existiam nos Estados Unidos. Então, ele recorreu à própria história do país e incluiu índios americanos. Em 1826, seu amigo James Fenimore Cooper escrevera o romance histórico O último dos moicanos, ambientado na Guerra Franco- Indígena, ocorrida no século anterior. Cole viu ali uma oportunidade para pintar “composições paisagísticas”, ou seja, paisagens com um elemento imaginativo para transmitir um significado mais profundo. Em Cora ajoelhada aos pés de Tamenund (1827), em um altiplano de uma região montanhosa, um círculo de índios americanos presencia Cora, a heroína de Cooper, implorando pela soltura de sua irmã e companheiros. A inclusão desse conselho tribal, durante o qual os índios americanos discutiam questões importantes do dia, permitiu que Cole abordasse a longa história deles. Para ele, equivalia aos romanos no Fórum. Era uma história diferente para a Europa, porém igualmente válida. No Japão do século XIX, a abordagem de Katsushika Hokusai (1760-1849) e Utagawa Hiroshige (Ando Hiroshige, 1797-1858) à paisagem era bem mais simples, mas as xilogravuras de sua autoria possuíam a mesma dramaticidade. O Japão permanecera fechado aos estrangeiros até a década de 1850, mas os holandeses tinham permissão para enviar navios de comércio, que levavam livros sobre pintura e gravura paisagística ocidental, inclusive as vedute italianas, muito admiradas por sua perspectiva matemática. Elas receberam o nome de uki-e, ou “imagens flutuantes”, porque os espectadores japoneses sentiam como se estivessem penetrando nelas. Essas imagens deram origem às gravuras de paisagens como gênero no Japão, executadas nesse estilo por Hokusai e Hiroshige e conhecidas como ukiyo-e, ou “imagens de um mundo flutuante”. Era possível comprá-las pelo preço de um segundo prato de macarrão, e assim todas as famílias, com exceção das mais pobres, tinham condições de adquiri-las. Hokusai vivia em Edo e criou gravuras durante toda a sua longa vida, contando com a ajuda da filha Katsushika Oi (por volta de 1800-1866) em seus últimos anos. No Ocidente, ele é mais conhecido por suas últimas paisagens do Monte Fuji (vulcão), sendo A grande onda a mais famosa (1829-1833) de sua série “Trinta e seis vistas do Monte Fuji”. Nessa gravura colorida, uma onda estilizada com uma espuma branca em forma de garras ameaça engolir três barcos, quase imperceptíveis na imensidão do monstro. O Monte Fuji recoberto de neve, avistado ao longe, centraliza a gravura, e a espuma do mar, parecendo uma nevasca, cai sobre a montanha. A combinação de elementos próximos e distantes é típica do ukiyo-e, em que cada parte da composição trabalha no sentido de harmonizar a gravura como um todo. Quando essas gravuras começaram a aparecer na Europa, na década de 1850 e 1860, e o Japão se abriu novamente ao comércio internacional, elas se tornaram procuradíssimas por artistas jovens em atividade em Paris. Veremos a influência das gravuras japonesas sobre artistas como Vincent van Gogh em capítulos posteriores. No entanto, antes que o ukyio-e chegasse à França, os artistas tinham que viajar para além da Europa em busca de novos ângulos e perspectivas. O artista romântico Eugène Delacroix (1798-1863), que havia posado para seu herói Géricault em A balsa da Medusa, expôs o seu político e passional A liberdade guiando o povo no Salão de 1831. Em 1832, ele saiu da França e viajou para o Marrocos, no norte da África. Delacroix acompanhou diplomatas ao Marrocos, mas ele estava lá para pintar o “Oriente”. “Oriente” era o termo ocidental para os países além da Europa que beiravam a costa africana do Mediterrâneo e iam até o Oriente Médio. O interesse pela região fora reavivado pela ocupação do Egito por Napoleão na virada do século e a invasão da Argélia pela França, em 1830. A visita pessoal ao Maghreb (norte da África) foi arrebatadora para Delacroix. Assim ele escreveu: “Sou como um homem em um sonho, vendo coisas temendo que desapareçam”. Ele permaneceu seis meses no Marrocos, regressando pela Argélia, e ao partir escreveu: “Roma não será mais encontrada em Roma”. O “Oriente” se tornara outro calcanhar de Aquiles para a formação acadêmica, ainda bastante centrada na arte clássica de Roma. O artista francês mais velho Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780-1867) também pintou fantasias orientais, porém do conforto de seu ateliê, em Roma. Ingres fora aluno de David e era outra estrela neoclássica. As linhas precisas e as superfícies reluzentes de Ingres eram diametralmente opostas à pincelada vigorosa, emocional e romântica de Delacroix, e os dois artistas costumavam ser caricaturados pela imprensa como adversários, com a luta do lápis contra o pincel. Em 1814, Ingres pintou sua primeira odalisca ou escrava. A grande odalisca é uma fantasia masculina: uma mulher nua, em um Oriente imaginado, recostada na cama, à espera de companhia. Surpreendentemente, fora encomendada por uma mulher, a rainha Caroline de Nápoles, como presente para o marido. Era bastante raro que mulheres encomendassem pinturas de nus femininos, considerados como prerrogativa dos homens, que se deleitavam ao observá-las e “possuí-las”. O marido de Caroline já havia adquirido um Ingres, A mulher adormecida de Nápoles, em 1808, um nu frontal de corpo inteiro. O nu encomendado por Caroline apresentava um ângulo diferente. Para começar, A grande odalisca está de costas para nós. Talvez sejam costas meio exageradas, mas é o que acrescenta algo à sua sensualidade. Em torno da cabeça, ela usa um lenço amarrado como um turbante e segura um leque de penas de pavão. Talvez você admire a suavidade das curvas, mas terá que encarar o olhar dela, ao virar a cabeça enfeitada, fixando os olhos dela nos seus. É tentador imaginar se Caroline não teria interferido nessa composição. A odalisca não é só um objeto a ser olhado “de graça”: os olhos dela examinam minuciosamente o espectador enquanto ele a observa. Delacroix usou desenhos e esboços feitos in loco na África para o quadro Mulheres de Argel em seu apartamento, datado de 1834, sua primeira pintura de salão pautada em suas viagens. As pinturas de Delacroix, Ingres, Jean-Léon Gérôme (1824-1904) e David Roberts (1796-1864) se tornaram cada vez mais populares conforme o “Orientalismo” ganhou terreno. O Orientalismo foi uma visão distorcida da cultura árabe para um público ocidental, retratando-a como um mundo rebuscado de escravas do sexo e homens baforando seus narguilés. Artistas e colecionadores se apaixonaram pela ideia do Orientalismo devido às desigualdades que ele perpetuava, especialmente a ideia de que as mulheres eram segregadas e vendidas como servas do sexo em um tempo em que as mulheres europeias tinham cada vez mais voz na campanhapela igualdade de direitos. A reação de Delacroix à África foi prolongada, afetando sua temática e paleta. Joseph Mallord William Turner, por outro lado, optou por reagir à África moderna uma única vez, em uma obra-prima tardia baseada em acontecimentos de sessenta anos passados que ainda conservavam o poder de chocar quando seu Navio negreiro foi exposto na Real Academia em 1840. Capítulo 26 - A realidade dói É um dia quente de junho de 1840. O jovem estudante John Ruskin, vestindo casaco, gravata e cartola, está diante do quadro de Turner, Navio negreiro, na exposição de verão da Real Academia. Ruskin o absorve, tomado pelo mar turbulento, o navio balançando, o céu em chamas com o pôr do sol. Seus olhos se demoram sobre as águas agitadas em primeiro plano, onde uma perna se destaca sobre as ondas, com os grilhões presos ao tornozelo de um escravo. Enquanto observa, consegue visualizar mãos suplicantes saindo do mar espumoso, cercadas de peixes e gaivotas famintos. A fome que ele, Ruskin, tem é pelo poente fogoso, de um vermelho- sangue, por trás da silhueta do navio sacudido pela tempestade. Aos 21 anos, Ruskin interrompe os estudos na Universidade de Oxford devido a problemas mentais e está prestes a embarcar para um circuito de um ano pela Itália. Ele admira a arte de Turner desde que ganhou dos pais, como presente de aniversário de treze anos, um guia ilustrado da Itália, repleto de vistas italianas do pintor. Inclusive, ele possui uma aquarela assinada por Turner, outro presente de aniversário, e ele espera conhecer o grande pintor pessoalmente muito em breve. Na verdade, eles já têm se correspondido, e Ruskin o achou engraçado e generoso, mesmo sabendo que a maioria das pessoas o julga grosseiro e despreparado intelectualmente. Ruskin se desesperou ao ler as críticas sobre a exposição de verão. Ainda que ele avalie Turner como o artista vivo mais importante, os críticos riram de suas obras mais recentes, comentando que ela havia se “desTurnerizado” com seus “rompantes de cromomania”. Ruskin não compreende por que eles não reconhecem o brilho de Turner. * John Ruskin tornou-se o crítico de arte britânico mais influente do século XIX. Publicou o primeiro volume de sua obra-prima Modern Painters [Pintores modernos] somente três anos depois de ver o Navio negreiro (Traficantes de escravos lançam mortos e moribundos ao mar – Um tufão se aproxima), obra que ele viria a adquirir. Em seu livro Modern Painters, ele argumenta que o verdadeiro tema do Navio negreiro é “o poder, a majestade e a letalidade do mar aberto, profundo e ilimitado”. O que ele ignora por completo é o tema contemporâneo em que Turner fundamentou essa sublime reflexão sobre “letalidade”: a escravatura. Joseph Mallord William Turner (1775-1851) apoiou os abolicionistas, que finalmente tinham conseguido dar um fim ao envolvimento da Grã-Bretanha com a escravatura em 1833. Fora uma campanha de mais de cinquenta anos. O Navio negreiro tem por base os relatos históricos das atitudes desumanas do capitão do navio negreiro Zong. Numa viagem de Gana para a Jamaica, em 1781, a água começou a escassear no navio. No porão, muitos dos escravos tinham adoecido e, assim, com uma tempestade à vista, a tripulação recebeu ordens para lançar ao mar mais de 130 deles, vivos e agrilhoados, para que os proprietários pudessem reclamar seu dinheiro junto à seguradora, cuja apólice os reembolsaria pelos escravos perdidos no mar, e não pelos perdidos por doença a bordo. Os críticos não rejeitaram a temática do quadro de Turner. Na mesma exposição, François Auguste Biard (1799-1882), com O comércio de escravos, foi elogiado por seu talento e precisão. O que os críticos não conseguiam entender, e na verdade tudo o que conseguiam dizer sobre o assunto, era a forma como o Navio negreiro fora pintado. O romancista Wiliam Thackeray o ridicularizou por seu “mar horrível de roxo e esmeralda”, enquanto outro crítico se referiu à sua “ardente extravagância de um céu de calêndulas”. Por outro lado, são as pinturas tardias de Turner como o Navio negreiro que nos falam mais diretamente nos dias de hoje. Conforme confrontamos as atitudes deploráveis dos responsáveis pelo Zong, o sol poente marca, ao mesmo tempo, o fim do comércio de escravos, o final trágico daqueles escravos em particular, as profundezas que os capitães do mar alcançaram por dinheiro e a cruel insignificância de toda a humanidade diante do poder do oceano. As últimas telas de Turner, cheias de intensidade emocional, foram muitas vezes incompreendidas por críticos acostumados às obras com verniz acadêmico. Os românticos, porém, incluindo Turner, haviam demonstrado que a arte não tinha de ser assim e, na França, artistas jovens se sentiram confiantes com isso e confrontaram mais uma vez o gosto acadêmico. Gustave Courbet (1819-1877) conservou a proporção e a grandiosidade da pintura histórica, ainda que escolhesse suas figuras humanas nas origens pobres que não deixariam marcas na história, como os músicos itinerantes e pedreiros, os camponeses e os fazendeiros. Em Enterro em Ornans (1849), mais de cinquenta figuras acompanham um funeral em Ornans, cidade natal de Courbet, no leste da França. De tamanho natural, o conjunto de figuras se estende por uma tela enorme de mais de seis metros de largura. Sem heróis destacados nem personagens centrais, Courbet usou os habitantes do lugar como modelos. Seu desejo era criar uma obra de realismo inquestionável, a milhões de quilômetros das cenas neoclássicas de David. Conforme Courbet escreveu em 1851, “Sou, acima de tudo, um Realista [...] pois ‘Realista’ significa um amante sincero da verdade honesta”. Ele armou a arte em apoio à classe trabalhadora, mas seus quadros eram descomedidos para muitos críticos e eles protestaram, considerando-os feios demais, deselegantes demais, grandes demais, socialistas demais. Os críticos deram preferência à obra de Rosa Bonheur (1822-1899). Suas telas vigorosas de cavalos de tração e de reses eram um grande sucesso, e ela se tornou a artista feminina de maior êxito no século XIX. A feira de cavalos (1853) é um redemoinho animado de cavalos de tração Percheron unicamente controlados pelos negociantes esperançosos. Com mais de cinco metros de largura, foi o maior quadro de animais já exposto até então no Salão. No entanto, como mulher, ela ainda era proibida de participar das aulas de desenho vivo na Academia, mas regras como essa não valiam nos abatedouros e nas feiras de cavalos. Na verdade, ela precisou obter permissão especial para usar calças compridas para se disfarçar de homem e poder desenhar em paz. Mas seus esboços vivos posteriores lhe deram condições para pintar cavalos e outros animais que parecem bufar e relinchar em suas telas. Na Inglaterra, uma revolução diferente estava a caminho, capitaneada por um grupo de artistas precoces que se intitulava Irmandade Pré-Rafaelita ou simplesmente PRB, em inglês. Mais uma vez, eles também rejeitavam o ensino tradicional das academias de arte. Sentiam que as exposições da Real Academia eram cheias de obras desproporcionais que seguiam servilmente estilos afetados de pintura. O desejo deles era eliminar a história recente e voltar-se para Giotto e Van Eyck, para um tempo de inocência antes que a arte se tornasse inteligente demais. John Everett Millais (1829-1896) entrara para as escolas da Real Academia em 1840, como o aluno mais jovem que já existira ali, aos onze anos. Lá ele conheceu Dante Gabriel Rossetti (1828-1882) e William Holman Hunt (1827-1910) e, em 1848, eles formaram o grupo secreto, a PRB. Em 1850, Millais expôs Cristo na casa de seus pais na exposição anual da Academia. Um Cristo menino está na oficina de carpintaria de José, cada lasca de madeira e restos de serragem cuidadosamente pintados no chão por varrer. Cristo aparece pálido e ferido, ao cortar a mão num prego da porta em que José estátrabalhando, um presságio de sua posterior crucificação. O quadro levou os críticos à loucura, pois a sagrada família não parecia divina, parecia gente comum. O escritor Charles Dickens vociferou que o Cristo acabara de sair do esgoto, “um menino ruivo horroroso de camisola, de pescoço torto, soluçando”. Foi John Ruskin quem acorreu em defesa da PRB, reforçando que seus quadros não eram “repulsivos e revoltantes” (Dickens, de novo), e que pela atenção dada aos detalhes, à natureza, os Pré-Rafaelitas lutavam por uma verdade mais profunda. Na época em que a PRB foi criada, a fotografia já era usada comercialmente há quase uma década. Ela parecia oferecer a imitação perfeita, já que pela primeira vez na história os artistas não eram os únicos capazes de reproduzir imagens do mundo. Ainda que a câmera escura fosse conhecida há séculos, só depois de 1820 os inventores descobriram como captar a imagem produzida por ela. Em 1839, na França, Louis-Jacques-Mandé Daguerre (1787-1851) fixou as imagens obtidas na câmera escura numa folha de prata sobre uma placa de cobre, usando sais fotossensíveis, criando uma imagem “positiva” do alvo da câmera. A revelação do daguerreótipo levava alguns minutos, e os primeiros retratados chegaram a usar apoios cervicais escondidos para garantir que não se mexessem. No mesmo ano, o pioneiro da fotografia britânico William Henry Fox Talbot (1800-1877) fixou suas imagens em “negativos” de papel, conhecidos como calótipos. As primeiras imagens não eram tão precisas quanto as do daguerreótipo, mas o negativo podia ser reproduzido várias vezes como uma gravura. Os dois processos distintos de “desenhar com a luz” culminaram no método de colódio, desenvolvido no início da década de 1850, que captava a vista como negativo sobre uma lâmina de vidro de onde cópias exatas podiam ser impressas. Na década de 1850, as fotografias decolaram como uma forma barata de retratar e um jeito de dizer “Eu estive lá”. Os estúdios fotográficos rapidamente se espalharam pelo mundo, e as câmeras acompanharam as expedições ao Ártico e no teatro da guerra na Crimeia. Nessa década, a fotografia foi amplamente utilizada na corte iraniana de Nasir al-Din Shah, um fotógrafo amador cheio de entusiasmo. Naquela época, a fotografia não era vista como forma de arte, mas como ferramenta para os artistas, como o aplicativo sketchbook com lápis de hoje, e logo começou a exercer sua influência. A miniatura persa Retrato do príncipe ‘Ali Quli Mirza (1856-1857), de Sani’ al-Mulk (Abu’l Hasan Ghaffari, 1814-1866), parece um retrato elegante de estúdio de fotografia, em um contexto rebuscado e mobília cuidadosamente arrumada. De modo semelhante, na China, o artista Ren Xiong (1820- 1857), da importante Escola de Xangai, pintou um autorretrato impressionante em que sua cabeça raspada e peito nu são de uma clareza fotográfica, mas despontam de trajes tradicionais chineses extremamente estilizados. Alguns dos primeiros fotógrafos, porém, começaram, de fato, a experimentar as possibilidades artísticas da nova tecnologia. Na França, artistas como Gustave Le Gray (1820-1884) usaram a câmera para tirar fotos de paisagens como A grande onda, Sète (1857). Na Grã- Bretanha, Julia Margaret Cameron (1815-1879) explorou as possibilidades criativas da câmera nos retratos, buscando inspiração na arte renascentista. Ela criou composições de foco pouco definido que transformavam crianças em anjos e sonhadores e mulheres jovens em Circe, a feiticeira grega, e na Virgem Maria. A escultura teve de esperar um pouco mais por sua revolução, e o estilo neoclássico se conservou popular por todo o século XIX, dos dois lados do Atlântico. No entanto, ele foi cada vez mais usado em novas temáticas esculturais por um grupo corajoso de mulheres americanas que moravam em Roma, nas décadas de 1850 e 1860. Denominadas “irmandade estranha” pelo romancista Henry James, as mulheres se mudaram para Roma em busca do melhor mármore, para ver esculturas clássicas e por haver ali uma oferta imensa de assistentes qualificados. O fascínio de um país onde podiam trabalhar sem amarras, livres das limitações habituais impostas às mulheres do século XIX, deve ter sido o ponto decisivo. Harriet Hosmer (1830-1908) foi uma das primeiras a chegar, em 1852. Mais tarde, ela escreveu: “Aqui [em Roma] todas as mulheres têm oportunidade se forem suficientemente ousadas para aproveitá-la”. Hosmer estudara anatomia por conta própria em Boston e conhecia o corpo humano a fundo. Enquanto criava esculturas angelicais de grande valor comercial para financiar sua permanência em Roma, ela também esculpiu mulheres poderosas como Zenóbia acorrentada (1859). Zenóbia foi rainha de Palmira (na Síria de nossos dias) no século III, tendo sido acorrentada por seus captores. Mesmo com a cabeça ligeiramente curvada, ela está ali, altiva e nobre, aceitando o aprisionamento. Quando a escultura foi exposta na Inglaterra, em 1862, os críticos comentaram que uma peça daquelas não poderia ter sido esculpida por uma mulher. Segundo eles, teria sido obra de algum antigo tutor ou de artífices romanos. Na mesma hora, Hosmer processou legalmente as duas revistas que alegavam a suposta fraude e, de imediato, lançou uma extensa refutação sob a forma de artigo, explicando o processo colaborativo do trabalho com assistentes, algo que se aplicava igualmente a escultores e escultoras. O círculo de Hosmer incluía Mary Edmonia Lewis (1844-1907), que chegara a Roma dos Estados Unidos em 1865. Ela conseguira o dinheiro para a passagem vendendo bustos de heróis da Guerra Civil e medalhas de abolicionistas, numa época em que os Estados Unidos estavam finalmente libertando os escravos negros. Como mulher mestiça, filha de pai afro-americano e mãe índia americana, Lewis sofreu muitos preconceitos nos Estados Unidos e optou por passar a maior parte de seu tempo em Roma, só retornando à terra natal para a inauguração de suas esculturas públicas. Em vez de se submeter a uma temática tradicional, ela criou esculturas da emancipação negra, como em Livres para sempre, de 1867. Dois anos mais tarde, a escultura foi instalada no Templo Tremont, em Boston. Ela representa um homem negro de pé, com a mão para cima, comemorando a proclamação da liberdade para todos os escravos pelo Presidente Lincoln. Uma mulher ajoelhada a seus pés ergue as mãos em prece e agradecimento. É possível que Roma tenha sido vanguardista para artistas mulheres americanas na década de 1860, mas a França ainda estava ferrenhamente ligada à Academia e ao Salão. Em 1863, porém, uma exposição explosiva no coração da ordem estabelecida mudou as coisas para sempre. Capítulo 27 - Os impressionistas É 1863 e o quadro ambicioso de Edouard Manet Déjeuner sur l’herbe (Almoço sobre a relva) ocupa um lugar proeminente em uma exposição de Paris, que está atraindo mais de mil visitantes por dia. Ele conseguiu entrar no famoso Salão, mas o único problema é que se trata do Salão errado. Em 1863, pela primeira vez, Napoleão III, imperador francês, curvou-se à pressão de artistas insatisfeitos e declarou que todas as obras de arte rejeitadas no Salão oficial (quase 3.000) poderiam ser exibidas em uma exposição isolada no “Salon des Refusés” (Exposição da arte rejeitada). Que o público veja por si mesmo por que o júri os recusou! Então, a tela de Manet se espreme ao lado de muitas outras, julgadas como inacabadas demais ou ousadas demais pelo júri conservador do Salão. A disposição dos quadros parece um quebra-cabeça, do chão ao teto. Senhoras com seus vestidos bufantes e homens de cartola espicham o pescoço para ver melhor. Déjeuner sur l’herbe está situado em posição privilegiada, no meio de uma parede. O quadro é tido como a obra mais ultrajante em exibição por apresentar uma mulher nua em um piquenique com dois homens completamente vestidos. Artistas homens pintaram mulheres despidas por séculos,disfarçadas de deusas ou de ninfas para dar a entender que não eram reais, mas imaginadas. Mas a mulher do quadro de Manet não é um nu. Ela é real demais para caber nessa descrição. Sentada ao lado de homens elegantemente vestidos, suas roupas estão espalhadas pelo chão. Os visitantes da exposição não conseguem compreender a relação dela com aqueles homens, e sua nudez os inquieta. Mas, estranho mesmo é a forma como ela sustenta friamente o olhar da plateia parisiense. E ela parece dizer: “O que é que estão olhando?”. * Manet pintou cenas da vida moderna ao longo de toda a carreira, mas, em última análise, o que ele desejava era ser aceito pelo Salão (o oficial) e ser avaliado comparativamente a antecessores como Velázquez e Hals. Na França, até 1863, o Salão era o único lugar público para expor pinturas. Os artistas que o dirigiam ainda se submetiam à hierarquia do século XVIII, ou seja, com a pintura histórica no topo e natureza-morta por último, e julgavam a arte predominantemente pela fidelidade à imagem. A pintura de Manet era viva, empolgante e imperfeita, as sombras duras, e o tema, inesperado. Ele incorporava o artista descrito pelo escritor Charles Baudelaire em seu artigo influente “O pintor da vida moderna”, publicado no mesmo ano. Esse artista “toma a si a tarefa de extrair da moda todo e qualquer elemento que ela contenha de poesia dentro da história, de destilar o eterno do transitório”. Manet queria encontrar as verdades essenciais nas matérias do dia a dia. No entanto, para o público e o júri do Salão, Manet era só real demais, moderno demais, chocante demais. Ainda que Manet jamais desistisse de lutar para que sua obra fosse exposta no Salão, e tendo alcançado o sucesso lá já no final da vida, foi o “Salon des Refusés” que abriu as portas para a sua geração de artistas. Era a primeira vez que uma exposição era organizada onde o público pudesse julgar a arte por si mesmo. Até aquela altura, artistas ambiciosos tinham de estudar na Academia e subir obedientemente pelos escalões da hierarquia, mostrando sua obra no Salão oficial a colecionadores importantes. A Academia ainda estava formando e promovendo artistas que pintavam deusas mitológicas e pinturas de gênero, como William-Adolphe Bouguereau (1825-1905). Em sua tela Nascimento de Vênus (por volta de 1879), a deusa nua flutua no mar sobre uma concha de vieira, cercada por centauros, ninfas e querubins. O mar é verde, o céu é azul, todos são felizes. As figuras de Bouguereau são irretocáveis como as esculturas clássicas, seu estilo de pintura é refinado e elegante. Nada há de errado com esses quadros hoje, só parecem um pouco desinteressantes e bem ultrapassados. Não parecem ter qualquer conexão com a época em que foram pintados, um mundo que se lançava na idade moderna a toda a velocidade. Na década de 1860, cada vez mais os artistas sentiam a Academia muito arraigada em seu modus operandi, muito antiquada. Eles se deram conta de que se se unissem, o Salão não seria mais o único caminho aberto para eles. Ao longo dessa década e no início da década de 1870, um grupo de jovens artistas, dentre eles Claude Monet (1840-1926), Berthe Morisot (1841-1895), Pierre- Auguste Renoir (1841-1919) e Camille Pissarro (1830- 1903) tentaram, com graus variados de sucesso, expor suas obras no Salão, onde Bouguereau reinava soberano. Quando eram aceitas, suas obras costumavam ser colocadas em lugares escondidos, por serem relativamente menores em comparação aos quadros históricos e mitológicos colossais que tomavam conta das paredes (a Venus de Bouguereau media três metros de altura). Cada vez mais, esses artistas trabalhavam lado a lado e, em 1874, realizaram uma exposição independente como a “Companhia de artistas, pintores, escultores e gravuristas”, alugando salas no estúdio do fotógrafo Nadar, no Boulevard des Capucines, em Paris. A amostra de 165 obras incluiu Impressão: sol nascente, de 1872, uma paisagem esboçada com um sol vermelho se erguendo por trás de silhuetas cinzentas de barcos, cordames e fábricas, a luz banhando a água abaixo e o céu acima, com toques em tom de pêssego. O crítico Louis Leroy mirou no título de Monet e apelidou o grupo de impressionistas. Não se tratava de um elogio. Ele queria dizer que somente uma impressão fora pintada, um passar de olhos em algo, um esboço. Que não se tratava de um quadro totalmente acabado, com uma composição bem concebida. Outros críticos, como Jules Castagnary, foram mais condescendentes. “Eles são impressionistas no sentido de que não retratavam uma paisagem, mas a sensação produzida por uma paisagem”, escreveu ele. O nome “Impressionistas” pegou e, à época da terceira exposição, em 1877, o próprio grupo já o havia adotado. Os impressionistas trabalhavam em uma proporção mais modesta porque muitas vezes sua atividade era ao ar livre, diante daquilo que desejavam pintar, reposicionando suas telas a cada dia. Empenhavam-se em captar um momento no tempo, em revelar como a luz brincava sobre a água ou como as sombras mudavam de cor no transcorrer do dia. Com pinceladas rápidas, tentavam registrar situações em mudança permanente, e a invenção da tinta em bisnagas (bem mais práticas do que as cores misturadas à mão no ateliê) foi de grande benefício, assim como a criação de novos matizes vibrantes como o azul-cerúleo e o verde-água. Suas paletas brilhantes também foram influenciadas pelas teorias de Michel Chevreul, que concebeu um círculo cromático para mostrar como cores complementares, como o vermelho e o verde, incrementam o brilho uma da outra e sua justaposição faz seu brilho parecer ainda mais intenso. Esses artistas exploravam todos os aspectos da vida parisiense moderna, desde as novas avenidas chamadas de boulevards, recém-construídas pelo barão de Haussmann, até salas de espetáculos e cafés, parques e estações de trem, salas de estar e jardins. No entanto, muitos deles estavam tentando, ao mesmo tempo, captar a atmosfera de cada cena, desde as nuvens de fumaça na estação de trem de Monet em Gare Saint- Lazare (1877) à luz do sol incidindo sobre a geada nos sulcos em campos do interior em Geada branca (1873), de Pissarro. Essa era a nova realidade para os impressionistas, em que o fluxo e a mudança constantes tomavam o lugar da forma imutável tradicional de representar o mundo proposta pelo Salão. Por vezes, as figuras se reduziam a traços de tinta, como em La Grenouillère de Monet (1869), onde seu foco de atenção foi a forma como as árvores se refletiam nas águas irrequietas nesse local popular de banhos no rio Sena. É como se estivéssemos vendo um fragmento da vida, um momento instantâneo ou fugaz, e não a vista completa. É algo bem próximo de como de fato vivenciamos o mundo, como uma série de vislumbres momentâneos que nossa memória ajuda a compor em cenas mais abrangentes. Muitos dos artistas em questão foram influenciados pela fotografia, um meio relativamente novo que oferecia ângulos da vida contemporânea bem discordantes da pintura do Salão. Edgar Degas (1834-1917) foi pintor e escultor, mas também tirava as próprias fotografias. Os ângulos incomuns que ele adotou nas pinturas foram influenciados por seus experimentos com fotografia e por gravuras japonesas, que se empenhava em colecionar. Por exemplo, os membros são cortados na borda do quadro como em Duas bailarinas no palco (1874), como se a bailarina já estivesse saindo. O enquadramento de cenas de Morisot não era diferente. Morisot e sua irmã Edma alcançaram o sucesso bem cedo como pintoras, expondo no Salão todo ano, de 1864 a 1867. Morisot conheceu Manet no ano seguinte e acabou se casando com o irmão dele, Eugène. Edma se casou com um oficial de marinha e teve de desistir da pintura, algo de que se lamentava nas cartas escritas à irmã. Morisot participou de sete das oito exposições impressionistas, perdendo só uma, logo após o nascimento da filha, Julie.A sociedade a impedia de ir desacompanhada a cafés, como os artistas homens faziam sempre após um dia de pintura, mas ela podia participar das festas semanais de Manet com bebida incluída. Suas obras vendiam bem e, em 1877, um crítico do jornal Le Temps a chamou de “a verdadeiramente impressionista desse grupo”. Ela pintou a mãe e a irmã em casa e mulheres lendo, mas também trabalhou ao ar livre, pintando vistas de parques, viagens de barco e passeios em família. A artista americana Mary Cassatt (1844-1926) também teve êxito logo cedo no Salão. Degas viu seus quadros lá e convidou-a para se juntar aos impressionistas, o que ela fez em 1877. “Finalmente”, escreveu ela, “eu podia trabalhar com total independência, sem me preocupar com a opinião de um júri!” Seu quadro Mulher de preto na ópera, de 1880, abordou um tema popular para os impressionistas, uma mulher em um camarote no teatro ou na ópera. Em La Loge (O camarote) (1874), de Renoir, por exemplo, uma mulher em elegante traje listrado de preto e branco olha à distância, com um colar de pérolas no pescoço, e segura um pequeno binóculo dourado de ópera com a mão enluvada. O homem por trás dela usa o próprio binóculo de ópera para poder enxergar bem os espectadores na plateia. Nós a observamos assim como o homem observa outras mulheres, como se ela fosse um objeto em exposição. É interessante comparar essa abordagem com a de Cassatt. Em sua tela, a mulher sentada sozinha veste preto, fazendo-nos saber que é viúva. Uma viúva não precisava de companhia para ir ao teatro e gozava de maior liberdade do que outras mulheres de sua origem e classe social. A mulher de Cassatt não nos encara em sua elegância, como um objeto. Em vez disso, ela se mostra ativamente envolvida em observar, como o homem no quadro de Renoir. Ela se concentra: segura com firmeza o leque na mão esquerda, e a mão direita, sem luva, esforça-se para manter o binóculo de ópera na posição. Sem que ela se dê conta, um homem a fita, inclinando-se para fora do camarote mais à frente no semicírculo, e seu cotovelo espelha o dela na borda do camarote. Contudo, ela não o percebe e ele permanece fora de foco, à distância. Dessa forma, Cassatt controla tanto a forma como vemos a mulher quanto como observamos o quadro. Ao pintar o homem e o teatro como um borrão, concentramo-nos na viúva, que claramente demonstra o controle do próprio olhar. Eva Gonzalès (1849-1883) também retratou mulheres e homens na ópera, mas não expôs com os impressionistas. Como Manet, ela manteve o olhar treinado no Salão como marca oficial de sucesso. Ela estudou com ele, e a influência do pintor em suas primeiras obras é grande, como em Camarote no Théâtre des Italiens (1874), com um fundo escuro denso e uma iluminação incômoda. A mulher de Gonzalès também segura binóculos de ópera e fita confiante o espectador, enquanto o homem se apresenta de perfil para ser examinado, em uma nítida inversão de gênero de La Loge, tela de Renoir do mesmo ano. Gonzalès e Morisot se beneficiaram do apoio de Manet, mas nem todas as artistas femininas da época tiveram tanta sorte. Marie Braquemond (1840-1916) foi uma pintora talentosa que expôs com os impressionistas, mas seu marido, o gravurista Félix Braquemond, tanto promoveu a carreira da esposa quanto a limitou, sendo que o ciúme dele costumava prevalecer. Já ouviu falar dela? Não? Então deve ser por essa razão. As oito exposições impressionistas aconteceram de 1874 a 1886. Em seu conjunto, os 55 artistas que ali expuseram exerceram um impacto fantástico sobre a arte. Colocaram-na em um novo caminho, que nos levará até o século XXI. Eles permitiram que a invenção da fotografia os libertasse das regras do Renascimento quanto à perspectiva e à imitação clássica. Lutaram para captar o que realmente era para ser visto, para testemunhar o sol passando por locais populares de lazer ou a fumaça nas estações de trem. Mas, enquanto o Impressionismo crescia na França, outros artistas também ampliavam as fronteiras da arte para explorar os limites do possível. Por vezes, isso lhes causou problemas. Problemas sérios. Capítulo 28 - Os artistas assumem uma posição No dia 26 de novembro de 1878, o extravagante americano James Abbott McNeill Whistler caminha em direção ao tribunal londrino, balançando a bengala. Aos 44 anos, é bem atraente com seus cabelos escuros encaracolados, monóculo, casaco ajustado e sapatos de verniz. É o segundo dia do julgamento da ação de Whistler contra Ruskin. Ele está processando John Ruskin por uma crítica negativa e apelou à corte de justiça para defender sua reputação. (Whistler, na verdade, também poderia usar as mil libras esterlinas que está pleiteando para quitar as dívidas que não param de crescer.) Ruskin, então o crítico de arte de maior influência da Grã-Bretanha, assinara um comentário mordaz sobre a mais recente exposição de Whistler. Antigo defensor do estudo cuidadoso da natureza, Ruskin ferveu de raiva ao mirar Noturno em preto e dourado: o foguete caindo, pintura que capta o momento fugaz de um fogo de artifício explodindo sobre o Tâmisa. Ruskin chamou Whistler de “janota” (homem fútil) e vociferou que ele ousara cobrar “200 guinéus [cerca de 15.000 libras esterlinas] para jogar um balde de tinta na cara do público”. Whistler não visava o realismo em Noturno em preto e dourado. Ele desejava captar o efeito do padrão das centelhas contra o céu noturno e a atmosfera da noite. Só Ruskin não viu nada disso. Whistler assume sua posição na sala do tribunal apinhada. Ruskin indicou o procurador-geral, sir John Holker, para defendê-lo. Holker se debruça sobre as pinturas de Whistler, esforçando-se para compreendê- las. “Levou muito tempo pintando o Noturno em preto e dourado?”, pergunta ele. “Quanto tempo levou para se livrar dele?” O júri gargalha. Whistler não perde a piada e responde: “Talvez tenha me livrado dele em uns dois dias”. Holker acha que o encurralou. “E é esse o trabalho pelo qual cobrou 200 guinéus?” Whistler diz que não, que aquele valor era pelo conhecimento que reunira ao longo da vida. Há uma explosão de aplausos e Whistler se mantém confiante na vitória. * De fato, Whistler (1834-1903) venceu a batalha de difamação mais famosa do século XIX, mas em vez de fazer jus às mil libras pelos prejuízos, ele ganhou um único quarto de centavo, além de arcar com todos os seus custos. Foi uma vitória pírrica, ou seja, um triunfo que, na verdade, é uma perda. Basta pensar que o juiz não teve paciência com aqueles dois homens bem- sucedidos diante dele, brigando por algumas palavras. Ambos foram prejudicados com o julgamento, mas Whistler perdeu tudo: a Casa Branca em estilo japonês, o mobiliário, a coleção de gravuras e de porcelana, os quadros de seu ateliê, construído para aquela finalidade. Estava falido. Nascido nos Estados Unidos, Whistler passara parte de sua infância na Rússia, onde seu pai prestava consultoria sobre a nova rede ferroviária do país. Depois, ele estudou arte nos Estados Unidos e na França, absorvendo os diferentes climas artísticos de cada país. Simpático aos Pré-Rafaelitas, Whistler finalmente se fixou na Inglaterra, tornando-se uma figura de proa no Movimento Estético na Grã-Bretanha. Artistas e designers ligados ao movimento acreditavam que a cor, a forma e o traço criavam obras belas e harmoniosas sem precisar de um tema figurativo como base. O lema deles era “a arte pela arte”. Whistler deu eco à harmonia encontrada na arte japonesa e a aplicou à pintura a óleo ocidental. Seus retratos são estudos em branco ou cinza, suas cenas de rio são atmosferas despojadas em cinzas, azuis e pretos. Sua arte foi importante por ter tirado a pintura da representação do mundo real e explorado a linguagem da pintura em si. Ele era como o musicista clássico trabalhando com notas e timbres para criar climas e atmosferas (e não como um cantor esgoelando canções populares). ConformeWhistler afirmou em uma palestra posterior, “A natureza contém, em cor e forma, os elementos de todas as pinturas, como o teclado contém as notas de todas as músicas. O artista, porém, nasceu para fazer escolhas [...] até que consiga extrair do caos uma gloriosa harmonia”. Sua obra daria aos primeiros artistas do século XX a confiança para ir mais longe ainda e eliminar o tema de uma vez, criando as primeiras pinturas abstratas da arte ocidental. A arte dos contemporâneos de Whistler, que viviam e trabalhavam na costa leste dos Estados Unidos, não poderia diferir muito. Winslow Homer (1836-1910) pintou a versão dos Estados Unidos que o povo ansiava após a cruel Guerra Civil com seus mais de 600.000 soldados mortos entre 1861 e 1865. Nascido em Boston, com formação de gravurista, Homer cobriu a guerra para a revista popular Harper’s Weekly. Rapidamente ele deixou a violência para trás para pintar cenas nostálgicas da vida no interior. Ao longo de todo o período de recessão da década de 1870, seu elenco de personagens cavalgou e nadou, pescou e aprendeu a velejar, como em Vento favorável (1873-1876). Em Os meninos e a melancia, de 1876, três garotos se deliciam com uma melancia roubada. Um deles segura uma fatia comprida de casca, enquanto olha, nervoso, para a esquerda, no seu papel de vigia. Os outros dois se acomodam, de barriga no chão, comendo a sua parte. Ao pintar meninos brancos e negros juntos, Homer sugeriu um nível de integração racial bem distante da realidade nos Estados Unidos. O país ainda era profundamente segregado, embora a escravatura tivesse terminado em 1863. Thomas Eakins (1844-1916), da Filadélfia, procurou mostrar aos americanos que cor não passava de algo superficial. Em A clínica Gross, de 1875, Eakins revelou seu conhecimento de anatomia, mostrando o respeitado cirurgião Samuel Gross dissecando a perna de um homem diante de estudantes curiosos em um auditório. Com a ajuda de quatro homens, o cirurgião explica à turma como está removendo uma lasca de osso para salvar a perna do paciente da amputação. Ele ainda segura o bisturi enquanto fala. Esse nível de realismo revirou o estômago de muita gente, e A clínica Gross não obteve permissão para entrar na “Exposição Centenária” na Filadélfia, em 1876, descartada como violenta, feia e obscena. Somente após uma campanha de Gross para incluí-la foi que Eakins conseguiu, e somente nas paredes do pavilhão médico. O quadro foi exibido como ilustração de uma cirurgia, e não como retrato de corpos, por dentro e por fora. Eakins acreditava na democracia do corpo, observando sua corporeidade em sujeitos brancos e negros, com pouco preconceito. No entanto, se a batalha americana por igualdade era racial, na Rússia era uma questão de classe social. Em 1861, dois anos antes que o presidente Lincoln abolisse a escravatura nos Estados Unidos, o czar Alexandre II liberou todos os camponeses da servidão (um tipo de escravidão), embora a vida deles continuasse extremamente difícil. Os artistas sentiam, cada vez mais, que era seu dever criar uma arte com propósito social, e treze deles se libertaram da dominante Academia de São Petersburgo, uma academia que ainda defendia o Neoclassicismo. O grupo se intitulou de “Itinerantes”, conforme promoviam suas exposições em pequenas cidades pelo país, levando sua arte realista e nacionalista para o povo. Enquanto Whistler lutava simplesmente para limpar o próprio nome, os Itinerantes assumiram a causa dos oprimidos e perseguidos e os defenderam. À primeira vista, Ilya Repin (Il’ia Efimovich Repin, 1844-1930) parece um Itinerante improvável, pois passou três anos em Paris enquanto os impressionistas se uniam. Mas, em 1878, ele se filiou ao grupo. Tornou-se um membro importante, alguém muito admirado por outros artistas e pelo escritor realista Leon Tolstói, que ele pintou por diversas vezes. Assim como Courbet na França, Repin e os Itinerantes usavam sua arte para comentar sobre a sociedade, destacando o sofrimento dos mais necessitados, como na tela de Repin de 1870, Rebocadores do Volga. Em seu imenso quadro Visitante inesperado (1884), ele pintou o regresso de um narodnik (um defensor da reforma) que fora eLivros na Sibéria pelo governo. De pé, na sala de estar, o homem ainda está de casaco como um estranho, o rosto quase perdido nas sombras e os olhos encovados. Os filhos olham para ele como se fosse uma curiosidade, sem reconhecê-lo. Só a mãe dele, erguendo-se da cadeira em trajes de viúva, se aproxima. O assoalho nu sugere que a vida fora dura na sua ausência. Por que os artistas escolhiam pintar essas pessoas? Os Itinerantes desejavam lançar um foco de luz sobre elas e dar-lhes voz, exatamente como Courbet fizera na França. Eles também queriam homenagear a vida dessas pessoas, cientes de que o mundo moderno estava acabando com tradições existentes há séculos. Para captar os antigos costumes antes que desaparecessem, os artistas viajavam pelas novas linhas de trem recém- construídas até pontos extremos dos países onde a terra encontra o mar: para Pont-Aven, na Bretanha; para Zandvoort, nos Países Baixos, e Newlyn, na Inglaterra. Esses vilarejos costeiros ofereciam acomodações baratas e modelos prontos, como pescadores e mulheres, moradores do lugar com trajes tradicionais indo à igreja e cenários rurais pitorescos. Eles procuravam estar o mais longe possível do burburinho da vida moderna nas cidades que então fascinava os impressionistas, oferecendo aos artistas a oportunidade de captar uma forma de vida mais tradicional. Elizabeth Forbes (nascida Elizabeth Armstrong, 1859- 1912) foi uma artista de origem canadense que estudara em Londres e Nova York antes de viajar para Pont-Aven e Zandvoort, pintando a Pescadora de Zandvoort, em 1884. Uma jovem de pé, com a mão esquerda na cintura, sustenta uma travessa de peixes com o braço direito. Forbes a coloca à frente de uma parede indefinida, de modo que nossa atenção recai no olhar austero da moça. Ela olha direto para nós, com o cabelo e o avental contornados pelo sol de um início de manhã. A mãe de Forbes a acompanhava em suas viagens e, juntas, se estabeleceram em Newlyn, na Cornualha, Inglaterra, onde a artista dividia seu ateliê com pilhas gigantescas de redes de pesca. Foi durante o tempo em que morou na Cornualha que conheceu o marido Stanhope Forbes (1857-1947). O quadro dele Venda de peixes em praia da Cornualha (1884-1885) foi um instantâneo agitado da vida costeira, na chegada de uma frota pesqueira que descarregou seus peixes para serem leiloados. Uma arraia, uma cavala e outros peixes estão espalhados aos pés de duas jovens, em prosa com um pescador grisalho, ainda usando seu sou’wester, um chapéu de chuva de oleado. Outras mulheres carregam cestos pesados de pescados, com ondas cinzentas batendo nos pés. Stanhope Forbes expôs em Londres e logo despertou a crença da existência de uma “Escola de Newlyn”. Stanhope e Elizabeth abriram uma galeria, hoje com o nome de Newlyn Art Gallery, e uma escola de pintura. A Escola de Newlyn foi a fundação de uma forte presença artística na área que perdura até hoje. Muitos artistas franceses optaram por não viajar para o exterior, cientes de que as realizações mais incríveis da arte estavam acontecendo no quintal de casa, em Paris. Os impressionistas pintaram a capital e ali promoveram sua exposição final em 1886. Nela foi incluído Tarde de domingo na ilha La Grande Jatte (de 1884-1886), de Georges Seurat (1859-1891), obra em um estilo inteiramente novo. Seurat usou a mesma teoria cromática científica dos impressionistas, mas virou-a de ponta-cabeça. Ele entendia que se duas cores fossem misturadas, digamos vermelho e amarelo, uma nova cor seria obtida, no caso o laranja. Mas e se as cores não fossem misturadas na tela e, em vez disso, as aplicássemos com pontos vermelhos e amarelos, deixando as cores confundirem a vista? E se fosse aplicada novacamada de pontos de cores complementares para fazer as cores realmente vibrarem? O resultado foi Tarde de domingo na ilha La Grande Jatte, uma tela imensa com mais de três metros de largura. La Grande Jatte é uma ilha enorme no rio Sena, nos arredores de Paris. No quadro de Seurat, um casal de classe média, parado sob uma sombra, observa o rio reluzente, empertigados e formais, no melhor traje de domingo. À volta deles, macacos, cachorros, crianças correndo, mulheres montando buquês de flores, trabalhadores relaxando. O crítico Félix Fénéon ficou extasiado: “A atmosfera é vibrante, com uma transparência singular; a superfície parece tremer”. Seurat pintou a tela inteira e a moldura usando pontos. Os pontos vermelhos alinham-se junto à grama no quadro, fazendo a superfície verde pipocar e fervilhar como se estivesse viva. Por outro lado, as pessoas parecem estáticas, sem vida. Representadas, em sua maioria, de perfil, como se fossem figuras de um friso, sentadas ou de pé, sozinhas, isoladas no próprio pedaço de sombra, um reflexo do anonimato da vida na cidade moderna. O estilo deslumbrante de Seurat, conhecido como pontilhismo, significou uma pausa perfeita no Impressionismo e inspirou todo um elenco de seguidores. Fénéon aclamou-o como o início de um novo movimento da arte chamado Neoimpressionismo. Denominou-o como uma rejeição às “aparências fugidias” do Impressionismo e afirmou que ele mostrava um desejo de captar a essência atemporal de uma cena. Os artistas que seguiram esse estilo chamamos hoje de pós- impressionistas: Van Gogh, Gauguin, Cézanne. As obras deles figuram entre as mais valorizadas no mundo. Durante o próprio tempo de vida, porém, eles raramente vendiam um quadro. A despeito dessa falta de apoio do público, a dedicação à sua arte chegou, por vezes, a ser perigosa e até fatal. Capítulo 29 - Os pós- impressionistas É final de setembro de 1888 e Vincent van Gogh está sentado à frente de uma mesa em seu ateliê em Arles, no sul da França. Diante dele, uma carta inacabada para o irmão Theo, marchand em Paris. Van Gogh escreve centenas de cartas por ano e muitas são para Theo. O irmão ainda o sustenta como artista, pagando o aluguel e comprando tintas. Em maio, Van Gogh usou o dinheiro de Theo para alugar a casa em que mora. Ele a chamou de Casa Amarela e estabeleceu-a como seu “Ateliê do Sul”. Ele espera que outros, como o amigo Paul Gauguin, venham juntar-se a ele em Arles e criem uma comunidade de artistas. Por ora, sentado ali sozinho, pena à mão, ele conta a Theo sobre o quadro que acabou de pintar. Chama-se O café à noite, uma representação do bar noturno acima do qual ele morava em Arles. O dono está ao lado da mesa de sinuca, enquanto fregueses desmaiam sobre os copos de bebida em mesas compartilhadas e um casal conversa reservadamente ao fundo. O relógio marca a hora, e é pouco mais de meia-noite. Lampiões a gás enchem o café com a nova luz artificial que irradia do teto, em círculos concêntricos. “No meu quadro”, escreve ele, “tentei expressar a ideia de que o café é um lugar onde alguém pode se arruinar, enlouquecer ou cometer um crime.” Ele fala a Theo sobre os verdes ásperos e os amarelos sulfúricos que usou, sobre a atmosfera delirante criada. Van Gogh passou três noites inteiras em claro para pintar o interior do café, usando cores contrastantes, vermelhos e verdes, para expressar as emoções dos fregueses bêbados e o torpor de seu estado de embriaguez. * Os primeiros quadros de Van Gogh (1853-1890) foram retratos sombrios de camponeses holandeses. Conforme rumou para o sul, dos Países Baixos para Paris e dali para Arles, suas pinturas se tornaram mais brilhantes e ousadas. Levou consigo gravuras japonesas para a Casa Amarela, inclusive Residência com ameixeiras em Kameido (1857), de Utagawa Hiroshige, e Gueixas em uma paisagem (década de 1870), de Sato Torakiyo. Van Gogh comprara as gravuras em feiras na Antuérpia e em Paris e elas viriam a influenciar seu estilo de pintura, ao eliminar sombras e usar linhas escuras espessas para contornar objetos, como em O café à noite. Por que tantos artistas ocidentais buscaram inspiração em gravuras japonesas? Elas pareciam oferecer um caminho além da perspectiva ocidental e das imitações acadêmicas formais. Os artistas admiravam como seus pares japoneses interpretavam a paisagem, criando cenas planas que não tentavam parecer naturais, mas, antes, capturavam a harmonia inerente à natureza. Eles sugeriam novas formas de transformar o mundo tridimensional em uma imagem bidimensional. Van Gogh demonstrou sua admiração pelas gravuras japonesas pintando uma versão de Gueixas em uma paisagem, com o monte Fuji ao fundo, no próprio Autorretrato com orelha enfaixada, de 1889. O Autorretrato com orelha enfaixada foi pintado quando Paul Gauguin (1848-1903), que se juntara a Van Gogh em Arles, deixou a Casa Amarela depois de dois meses de desentendimentos. Num acesso de raiva, Van Gogh cortou o lóbulo da própria orelha. Sua saúde mental se deteriorou rapidamente e ele andou por hospitais e manicômios, embora continuasse pintando. Dois anos depois de O café à noite ele estava morto, suicidando-se com um tiro nos campos que pintara com tanta vivacidade em Campo de feno com corvos, em 1890. Ele vendeu um único quadro em sua vida inteira. Van Gogh foi um artista que trabalhou muito no isolamento, mas hoje constatamos que seus quadros expressivos se equiparam à obra de outros artistas do norte europeu, em particular Edvard Munch (1863-1944). Munch nasceu na Noruega, mas estudou em Paris e depois mudou-se para Berlim, na Alemanha. Arte e vida estavam intimamente ligadas em sua obra, assim como na de Van Gogh. O famoso quadro de Munch, O grito (1893), retrata um grito alucinado de uma imagem semelhante a uma caveira. Por trás, o sol vermelho fervilha e o mar se agita por baixo, um estado que reflete as emoções da figura central, que parece gritar com a própria alma. O grito foi o ápice da série de Munch, O friso da vida. A série expressou o tormento dos homens, os mistérios das mulheres e a presença iminente da morte. Munch foi um importante precursor do Expressionismo alemão, uma forma de arte em que o mundo emocional interno prevalecia sobre as paisagens ou sujeitos físicos. Ele recorria às experiências pessoais com doenças e mortes de entes queridos e à própria depressão para dar forma à sua arte. Munch registrou em seu diário que a arte não deveria retratar a tranquilidade de pessoas lendo ou tricotando, mas, antes, representar “gente de verdade que respirava, sofria, sentia, amava”. Tanto Van Gogh quanto Munch reagiram às pressões do cotidiano moderno. Sofreram com problemas de rejeição e saúde mental no decorrer da vida, mas hoje a obra deles fala às pessoas com grande intensidade, ao tocar diretamente nas emoções e nas ansiedades. A arte de ambos foi além do Impressionismo, pois reconectou emoções reprimidas e realidades internas. Paul Cézanne (1839-1906) também queria ultrapassar os vislumbres momentâneos do mundo para pintar verdades essenciais. Estudou em Paris e, mais tarde, regressou a Aix-en-Provence, no sul da França, onde nascera. Ele lutou com a pintura ao longo de toda a carreira, expondo ao lado de Manet no “Salon des Réfusés” em 1863 e, em seguida, com os impressionistas, antes de abandonar completamente as exposições, até sua primeira exibição solo aos 56 anos. Ele se afastou do mundo da arte para se concentrar na expressão da essência das formas, suas cores, peso e formato. Alguns dos quadros mais conhecidos de Cézanne são de um único marco local, o Monte Santa Vitória. A montanha era para ele tão importante quanto o Monte Fuji para os gravuristas japoneses. Era um símbolo da Provença que ele emoldurou com pinheiros na década de 1880, tonalizou em roxo na década de 1890 e reduziu a uma série de marcas coloridas em papel e em tela no início da década de 1900.Casas quadradas nos campos, na parte inferior, e a montanha em si se fundem com o céu e as árvores em primeiro plano, no Monte Santa Vitória com grande pinheiro (por volta de 1887), para recriar a experiência de absorver uma paisagem de uma vez, como se fosse uma colcha de retalhos de formas e cores. Cézanne falou sobre querer tratar a natureza “por meio do cilindro, da esfera, do cone”. Essa nova forma de pintar, de reduzir objetos à sua forma essencial, oferecia outro caminho para além do Impressionismo e influenciou muitos artistas, inclusive Pablo Picasso, que se fundamentou no estilo de Cézanne para criar o Cubismo, conforme veremos no próximo capítulo. Paul Gauguin também decidiu sair de Paris para buscar sua arte, e suas pinturas oferecem uma terceira via além do Impressionismo, agora por meio de um interesse renovado no simbolismo. A princípio, ele aderiu ao êxodo dos artistas no verão para a Bretanha, na costa noroeste da França, fixando-se em Pont-Aven e pintando mulheres locais e seus costumes. Ali ele recorreu às gravuras japonesas como fonte inspiradora e desenvolveu um estilo de cores uniformes e contornos fortes que chamou de sintetismo. Assim como muitos artistas da época, Gauguin queria dar as costas para o mundo que se modernizava rapidamente e observar as tradições de gente que morava longe das cidades, acreditando que seriam vidas vividas com mais simplicidade e arraigadas com maior profundidade à natureza. Mas, para Gauguin, a Bretanha não era distante o suficiente. Gauguin ansiava por algo ainda mais “primitivo”, uma fuga à sua realidade para um lugar atemporal e fantasioso onde se sentisse livre. E assim, rumou para o Taiti, a ilha tropical pintada por William Hodges em 1775, que conhecemos no capítulo 23. O Taiti, parte da Polinésia no Oceano Pacífico, fora colonizada pela França em 1880. Onze anos depois, Gauguin tomou um navio para lá. “Parece-me”, escreveu ele para Mette, sua sofridíssima esposa que ficara na Europa, “que tudo aquilo que torna a vida na Europa tão problemática não existe mais, e que amanhã será igual a hoje, e assim sucessivamente até o fim.” O Taiti dos quadros de Gauguin é um mito. Ele pintou o Taiti como se fosse um paraíso intocado, com mulheres jovens lindas e sexualmente disponíveis, repousando em clareiras tropicais ou praias arenosas, ou seja, um lugar para ele desfrutar suas fantasias e voltar-se para a natureza. A realidade era uma ilha polinésia que se tornara colônia francesa tomada por doenças sexuais (inadvertidamente trazidas pelos europeus) e missionários protestantes. Gauguin continuou a escrever para Mette enquanto vivia com Tehemana, uma menina taitiana de 13 anos que se tornou sua vahine, esposa taitiana. Por várias vezes ele a fez de modelo, pintando-a em telas rústicas de juta, fundindo natureza e sexualidade feminina com crenças espirituais locais para criar suas fantasias coloniais exóticas. A exploração sexual de meninas menores de idade e sua atitude colonialista em relação ao Taiti como um lugar que ele podia reinventar para satisfazer suas necessidades o transformou em uma figura problemática para a nossa atualidade. A obra mais ambiciosa de Gauguin foi De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?, de 1897. Media seis metros de largura, a mesma medida do ateliê que construíra na ilha. As mulheres do quadro representam as várias idades da humanidade. A figura central colhe uma maçã como se estivesse no Jardim do Éden da Bíblia, mas está em uma paisagem povoada por deuses taitianos. O quadro é como um sonho, repleto de significados escondidos, e não é para ser tomado com uma cena real, mas simbólica. O simbolismo era outra forma de distanciar a arte do naturalismo. Tratava-se da expressão das ideias e das emoções por meio de objetos, não simplesmente da reprodução dos objetos em si. Enquanto Gauguin embarcava para sua viagem de dois meses no Taiti, o artista americano Henry Ossawa Tanner (1859-1937) se preparava para passar seu primeiro verão no antigo refúgio de Gauguin, Pont-Aven. Tanner morou na França por quase cinquenta anos, encontrando ali um clima menos carregado em termos raciais do que nos Estados Unidos. Como afro-americano, ele crescera na Filadélfia, onde o pai mais tarde se tornou bispo da Igreja Metodista Episcopal Africana. Tanner estudou na Academia de Artes da Pensilvânia, mas verificou que os estudantes brancos não o aceitavam como igual. A despeito do apoio inicial de Thomas Eakins, que conhecemos no capítulo anterior, ele sofria preconceito constante nos Estados Unidos e usou o dinheiro das vendas de suas primeiras obras para comprar uma passagem só de ida para Paris. Tanner fez uma viagem curta de volta aos Estados Unidos, em 1893, para participar do Congresso Mundial sobre a África, em Chicago, onde proferiu uma palestra intitulada “O negro americano na arte”. Durante essa visita, ele pintou A aula de banjo, hoje a sua obra mais conhecida. É um retrato humano de um velho negro ensinando um garotinho a tocar banjo. Tanner pintou cenas de gênero de negros americanos para marcar a presença deles na história da arte e para representá-los de modo sério, como pessoas de verdade. Tanner teve uma carreira bem-sucedida na França, mas, em outro continente, a arte histórica africana era tratada de forma bem diferente. Em 9 de fevereiro de 1897, tropas britânicas alcançaram o delta do Níger na África Ocidental. Ali desembarcaram e se dirigiram para a cidade de Benin (hoje no estado de Edo, no sul da Nigéria). Um pequeno pelotão britânico tinha sido assassinado por guardas de Benin no mês anterior, e esse novo ataque era uma retaliação extremamente inflamada. Armados com lançadores de foguetes e metralhadoras, os britânicos aniquilaram os soldados de Edo, que revidavam do alto das árvores nas redondezas. A cidade de Benin foi capturada e o complexo do palácio real incendiado por completo depois de ter seus tesouros totalmente saqueados. Entre eles, centenas de bronzes de Benin, as placas históricas que admiramos no capítulo 16. Não houve catalogação arqueológica das esculturas antes que fossem retiradas dos santuários nem das placas dos depósitos. Em vez disso, o material foi reunido em pátios e dividido e distribuído de acordo com ideias ocidentais de valor, com as obras mais rebuscadas sendo reservadas para a rainha Vitória, como um par de leopardos de marfim incrustados com manchas de cobre. As placas mais elaboradas foram levadas de volta para o Escritório Colonial em Londres para serem vendidas e assim ajudar a financiar a expedição. Dois terços dessas placas foram incorporados à coleção do British Museum, onde houve uma exposição sete meses mais tarde. As pessoas ficaram maravilhadas com os bronzes. Os europeus não imaginavam que a arte africana fosse tão sofisticada ou tecnicamente avançada. Naquela época, a arte africana sequer era considerada “arte”. Rotulavam-na de “primitiva” e a arquivavam em museus etnográficos. E, quando quer que fosse admirada, era por aqueles que achavam que ela mostrava um elo mais estreito entre o homem e a natureza, a inocência quase pueril pela qual Gauguin ansiava no Taiti. Pelos bronzes de Benin, porém, ficou óbvio que se desenvolvera, na África, um alto nível artístico, independente da arte ocidental. Descobriu-se que a África tinha uma história da arte própria. Os bronzes de Benin eram as obras-primas do continente. E os britânicos tinham acabado de roubá-los. Capítulo 30 - Sobre os ombros de gigantes É o ano de 1903, em Berlim, na Alemanha, e Käthe Kollwitz folheia seu catálogo de gravuras recém- publicado, com o artigo assinado pelo diretor do Salão de Gravura de Desdren, Max Lehrs. A gravura é muito popular na Alemanha, e Kollwitz é uma das expoentes nessa arte. Suas gravuras são expostas em Berlim, Paris e Londres, onde colecionadores e museus disputam a compra das obras. As gravuras poderosas de Kollwitz