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Uma Breve Historia da arte - Charlotte Mullins

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Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe
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de oferecer conteúdo para uso parcial em
pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o
simples teste da qualidade da obra, com o fim
exclusivo de compra futura.
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a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do
presente conteúdo.
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conhecimento, e não mais lutando por
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Capítulo 1 - As primeiras
marcas
Voltemos 17 mil anos no tempo. Duas pessoas descem
pelo interior de um fosso estreito e se projetam por uma
passagem longa e sinuosa, adentrando as profundezas
de um sistema de cavernas no sul da França. Um riacho
de águas agitadas corre logo abaixo deles, forçando seu
trajeto insinuante por dentro da rocha. Na passagem, o
breu é total e nenhum ruído do mundo externo os
alcança. Da tocha que o adulto leva, saem labaredas
esfumaçadas, como dedos de luz. O adolescente o segue
de perto, reparando nas figuras de um bisão e um cervo,
gravadas nas paredes. Aqui e ali, são obrigados a
engatinhar quando as paredes da caverna se estreitam
ou têm de escolher o caminho por entre esqueletos de
ursos-da-caverna há muito extintos, já sem os caninos,
arrancados por visitantes anteriores para transformá-los
em adornos, como pingentes e colares.
Juntos, a dupla ruma para o ponto mais distante do
sistema de cavernas, a mais de meio quilômetro da
entrada. Ali, equilibrando-se nos calcanhares para os pés
não atolarem na lama, eles se agacham e cortam uma
pesada placa de argila no chão úmido da caverna com
um pedaço de pedra lascada, trazida propositalmente.
Seus pés se afundam um pouco mais ao erguer a placa,
transportá-la até uma superfície rochosa e começar a
trabalhar. Lentamente, a argila macia se transforma em
dois bisões, cada um do tamanho de um braço humano
adulto. Os bisões seguem os contornos da rocha e
destacam-se da superfície, o macho erguendo-se por trás
da fêmea.
De pé, os artistas erguem bem a tocha. Os bisões
parecem ter vida: jubas eriçadas no pescoço, corcovas
proeminentes e rabos balançando sob uma chama
bruxuleante.
*
Seria a execução dessas esculturas parte de um ritual
de fertilidade, para comemorar a criação mágica da vida?
Ou será que o jovem fora levado até as profundezas das
cavernas como parte de uma cerimônia de maioridade,
um rito de passagem na jornada rumo à idade adulta? Só
nos resta conjecturar. Os dois bisões em Tuc d’Audoubert,
na França, pertencem ao período paleolítico. Eles são
pré-históricos, esculpidos antes dos primeiros registros
escritos, muito antes até da própria invenção da escrita.
São conhecidos como as esculturas em relevo mais
primitivas do mundo (as esculturas permanecem presas
à base, projetando-se a partir dela). Recorrendo a
vestígios deixados na caverna, arqueólogos e
paleontólogos conseguem imaginar como e por quem os
bisões foram criados, como marcas de calcanhares na
argila e de dedos nas esculturas. É inacreditável
visualizar essas marcas, porque elas fazem com que a
escultura dos bisões pareça recém-concluída, há poucos
minutos, e que os artistas que deixaram os dedos
marcados na argila acabaram de sair dali. Mas o que não
temos como saber ao certo é por que elas foram feitas. O
que esse tipo de arte significava para nossos ancestrais,
e o que a arte deles significa para nós, hoje? Será que
chegaram a considerar que produziam um tipo de “arte”?
Ao longo deste livro, abordaremos uma gama imensa
e diversificada de materiais do mundo inteiro, hoje todos
considerados arte. Mas o que queremos dizer
precisamente com “arte”? Arte é um termo capcioso. Seu
significado e valor mudam com o tempo, mas, em última
análise, ela é criada para expressar algo que vai além
das palavras. O pintor contemporâneo Ali Banisadr afirma
que toda arte, desde a arte rupestre, resume-se a magia.
Os artistas das cavernas, diz ele, “estavam tentando
alcançar algo mágico, colocar numa linguagem visual
algo que não podemos, de fato, compreender. Sempre foi
uma questão de magia”. O que isso significa? Banisadr
não se refere aqui à magia de um “Abracadabra!”, de
retirar coelhos de cartolas, mas a uma força misteriosa,
um poder inexplicável. Esse tipo de magia é capaz de
transformar um objeto ou um conjunto de marcas numa
parede e de conferir-lhes a capacidade de comunicar
ideias poderosas, muito além do alcance da linguagem
falada. Por vezes, são ideias expressas de forma rápida
ou com uma complexidade de tirar o fôlego. Os artistas
recorrem a essa magia para transformar as marcas ou
materiais mais simples do dia a dia, como carvão, pedra,
papel e tinta, em obras de arte.
Ao esculpir um animal ou pintar uma imagem, os
artistas não estão tentando criar uma semelhança, mas
expressar algo importante sobre aquele animal ou aquela
imagem. Daí por que a arte, independentemente da
diversidade de seu aspecto exterior, acaba tendo um
traço comum. No desenrolar da história (e da pré-
história), os artistas sempre buscaram o melhor meio de
expressão para suas ideias. Essa é a “magia” própria da
arte, o elemento que lhe permite conectar-se a nós, de
nos sensibilizar, ainda que, às vezes, não saibamos
explicar por quê. A arte pode nos ajudar a enxergar o
mundo de modo diferente ou a perceber nosso lugar nele
com um pouco mais de clareza. É algo poderosíssimo.
Neste livro, nossa jornada irá de alguns dos sítios
artísticos mais antigos até os dias atuais para explorar
como a arte e os artistas deram forma e influenciaram o
nosso mundo. Não existe, na história, um caminho único
e nítido a ser percorrido, ainda que relatos anteriores
sugiram o contrário. Em vez disso, caminharemos juntos
explorando a interconexão dos múltiplos caminhos à
medida que viajarmos no tempo. Conheceremos artistas
anônimos na atualidade, como os dois escultores dos
bisões há milhares de anos, e aqueles que foram
reconhecidos e respeitados durante sua vida, mas que
tiveram a carreira ignorada desde então. Veremos
artistas de nomes ainda bem familiares e outros que, a
despeito de seu talento, são bastante desconhecidos.
Vagaremos pelo mundo juntos, resgatando artistas
esquecidos e ampliando a visão tradicional da história da
arte.
Por incrível que pareça, nossa viagem tem início há
100.000 anos, quando os humanos da época fizeram
tinta pela primeira vez, moendo pedras de ocre vermelho
e misturando o pó (pigmento) com o sumo gorduroso
resultante de ossos queimados. Conchas contendo tinta
de 100.000 anos foram encontradas na caverna Blombos,
na África do Sul. Nenhuma arte tão antiga é conhecida, e
é possível que a tinta preparada nas conchas tenha sido
usada para adornar o corpo ou em sepultamentos. No
entanto, já existia a capacidade para fabricar tinta e,
assim, modificar o mundo de forma intencional e criativa.
À época em que os humanos de então começaram a
migrar da África para a Europa e a Ásia, por volta de
60.000 anos atrás, eles começaram a usar tinta para
decorar objetos e paredes. A decoração torna as
superfíciesmais atraentes, sem passar uma mensagem
mais profunda. Pontos e cruzes numa vasilha nada têm a
nos informar sobre o que é estar vivo, o que é ser um
humano. Para isso, precisamos da arte. Até agora,
nenhuma pintura rupestre pré-histórica foi encontrada na
África, porém as similaridades entre exemplares
indonésios e europeus posteriores sugerem uma forma
comum de pensamento de origem africana antes que
nossa migração em massa ocorresse. Infelizmente, isso
ainda é só teoria.
Algumas das primeiras marcas de que se tem
conhecimento são conjuntos de pontos vermelhos e de
palmas da mão encontradas em cavernas, lado a lado
com pinturas de animais. Soprava-se tinta ocre vermelho
nas mãos com o auxílio de um osso de pássaro oco para
deixar uma cópia estampada no lugar. Na caverna de
Chauvet, na França, um ser humano pré-histórico tinha
um dedo mínimo aleijado e a impressão singular da
palma de sua mão é recorrente por todo o sistema de
cavernas. Em Bornéu, existem marcas de mãos
primitivas num sistema de cavernas distante a leste de
Kalimantan e, em Sulawesi, elas aparecem nas paredes
de calcário de Leang Timpuseng. Esses conjuntos de
marcas de mãos, deixados há cerca de 35.000 anos,
estão separados por milhares de quilômetros, mas
transmitem a mesma mensagem: eu estive aqui, esta é a
minha marca. Essas marcas de mãos não são arte. Na
realidade, funcionam mais como assinaturas, feitas
eventualmente pelos responsáveis por pintar os animais.
As representações mais primitivas de animais constituem
as primeiras obras de arte. Agora podemos dar início, de
verdade, à nossa jornada.
As pinturas de animais surgiram por volta da mesma
época ou até mais cedo do que as impressões de mãos.
Bem ao lado da mão de Sulawesi, há um babirussa ou
porco-veado pintado com pinceladas longas com pelo
menos 35.700 anos. Nas profundezas da caverna de
Leang Tedongnge, três porcos selvagens foram datados
como tendo incríveis 45.500 anos, tornando-os os
exemplares mais antigos do mundo de arte figurativa
(arte que representa formas reconhecíveis). Tanto na
Indonésia quanto na Europa, os animais foram pintados
de perfil, com contorno bem escuro. O foco era na
silhueta e em características bem específicas: chifres,
jubas e galhadas. Iluminados por tochas na profundidade
dos sistemas de cavernas, certamente deviam ser uma
visão impressionante.
Foram também encontradas pequeninas esculturas
incrustadas no chão de cavernas onde viviam os
humanos da época. Ossos, presas de mamute e pedras
eram esculpidas em formato de animais ou figuras
híbridas, como o Homem-leão, de 40.000 anos, feito de
marfim de mamute. Outros tinham a forma de figuras
femininas com seios e ancas fartos, a barriga avolumada
por uma gravidez, como a Vênus de Willendorf, de
calcário, de 25.000 anos. Essas imagens podem ter sido
talismãs, ou seja, pequenas esculturas de uso pessoal
com possíveis poderes de proteção, criadas para manter
seu portador seguro ou ajudá-lo a ter muitos filhos.
Os arqueólogos da atualidade conseguem datar
esculturas e pinturas empregando técnicas científicas.
Eles sabem avaliar a idade dos materiais utilizados e
precisar a data de depósitos minerais formados sobre
eles. Entretanto, até o século XX, as pessoas ririam se
lhes sugerissem que essa arte era anterior à dos
romanos em milhares e milhares de anos. Os vitorianos
acreditavam que o mundo tinha uns poucos milhares de
anos, e a data mais antiga que atribuíam à arte era a
“pré-romana”. A pesquisa inovadora de Charles Lyell e
Charles Darwin sobre o tempo geológico e a evolução das
espécies trouxe a ideia de que o mundo e seus
habitantes eram muito mais antigos, milhões de anos
mais velhos do que se sabia até então. Somente após a
publicação das teorias de Lyell e Darwin os arqueólogos
começaram a catalogar vestígios, como machados de
sílex e esqueletos humanos pré-históricos, para respaldar
a ideia.
Os primeiros esqueletos foram algo inusitado, mas em
1879, quando Maria Sanz de Sautuola, de nove anos, e
seu pai, Marcelino, relataram terem visto bisões e
cavalos pré-históricos pintados por todo o teto de um
antigo sistema de cavernas, o mundo acadêmico
gargalhou, afirmando que as pinturas eram falsas.
Homens e mulheres pré-históricos não sabiam pintar,
riam-se eles, não eram sofisticados o suficiente! As
referidas pinturas ficavam em Altamira, na Espanha, num
sistema de cavernas composto por diversas passagens e
câmaras amplas. Todas elas eram decoradas com a
estampa de animais pintados com ocre vermelho e
contorno de carvão. Marcelino morreu em 1888,
ridicularizado por reivindicar a descoberta da arte pré-
histórica. Somente a partir de 1902, os animais foram
reconhecidos pelo que, de fato, são. Hoje sabemos que
algumas das pinturas de Altamira têm 36.000 anos de
idade.
A descoberta da arte rupestre foi um divisor de águas.
Os porcos selvagens da caverna de Leang Tedongnge em
Sulawesi só foram descobertos em 2021, e outros
achados mais recentes ainda estão sendo catalogados.
Na Europa, muitos exemplares são conhecidos há
décadas e, portanto, alvos de um maior número de
pesquisas. Um dos mais famosos é a caverna de
Chauvet, na França. As pinturas de Chauvet datam de
longínquos 33.000 anos, e foram descobertas em 1994,
quando três exploradores de cavernas detectaram um
fluxo de ar através de uma pilha de rochas e decidiram
investigar. Eles descobriram um dos exemplares mais
preservados de arte rupestre do mundo. Uma alcateia de
leões está à espreita em uma das paredes, os olhos em
alerta, os focinhos farejando a presa. Noutra parede, o
embate entre dois rinocerontes sob um grupo de cavalos,
de crina eriçada, orelhas em riste. Cada animal dá
sequência a outro, todos desenhados com contorno de
carvão bem definido, com um ou outro sombreado para
dar volume. Algumas patas aparecem multiplicadas,
como se capturadas em movimento.
Em última análise, não temos como saber como as
pinturas e as esculturas em cavernas como as de
Chauvet funcionaram a princípio. Muitas cavernas
parecem ter sido usadas, abandonadas e reutilizadas
milhares de anos mais tarde, com uma nova arte se
configurando em torno das imagens mais antigas. Com o
recurso de técnicas de datação, sabe-se que alguns
animais de Chauvet foram acrescentados aos primeiros,
milhares de anos mais tarde. É como se, hoje,
acrescentássemos uma ou duas figuras à tumba de
Tutancâmon!
Na caverna de Chauvet, há esqueletos de urso, mas
nenhum resto humano, sugerindo que não era um lugar
de moradia dos primeiros humanos, mas de cerimônias.
Não parece muito diferente de uma catedral, uma
mesquita, ou mesmo uma galeria de arte. É um espaço
impressionante, naturalmente amplo, para reunir grupos,
talvez quando as crianças se tornassem adultas ou para
marcar aspectos do calendário como estações ou
migração de animais. É possível que os animais
estampados nas paredes tenham feito parte de histórias
contadas pelos líderes dos grupos. Talvez nossos
antepassados tenham contado histórias de caçadas
épicas, destacando os animais para evocar uma
dramaticidade, ou as pinturas podem ter sido
empregadas por xamãs (misto de médico e bruxo) para
conjurar espíritos de animais. Na verdade, alguns dos
animais representados não eram caçados para servir de
alimento, e deveriam ser temidos e respeitados.
Ao observar essas primeiras pinturas e esculturas, é
importante reconhecer que estamos olhando para o
passado com olhos do século XXI. Quando vemos uma
reprodução dos leões de Chauvet, nosso primeiro
pensamento não é que eles vão ganhar vida e nos
devorar. Hoje, podemos nos admirar com as pinturas,
mas é bastante improvável que elas nos despertem as
mesmas sensações que despertavam ao serem
observadas à luz de uma tocha, há 33.000 anos. Por essa
razão, no início de cada capítulo, vamos voltar no tempo
para olhar a arte conforme sua criação original e tentar
imaginar o impacto exercido naquele momento. Para
isso,vou precisar que você me acompanhe nessa viagem
no tempo. Próxima parada, Mesopotâmia.
Capítulo 2 - A história se
revela
Estamos em 3300 a.C. Em um templo dedicado à deusa
Inana, em Uruk, na Mesopotâmia, o governante de Uruk
se levanta e contempla um vaso alto decorado. Medindo
mais de um metro, a peça de alabastro é recoberta de
imagens esculpidas e conta uma história de louvor e
gratidão. A superfície se divide em quatro frisos, tiras
horizontais de escultura em relevo envolvem o vaso, uma
acima da outra. O governante começa a segui-las, a “lê-
las” de baixo para cima.
Na base, uma linha ondulada indica água corrente.
Nas margens, vicejam o linho e as tamareiras. Acima,
cabras e ovelhas seguem trotando em torno do vaso:
trata-se de uma terra fértil e os tempos são de bonança.
No friso seguinte, uma fila de homens nus leva alimentos
e bebidas. Eles carregam cestos e ânforas (vasos de
argila), cheios até a borda. A parte do topo explica o que
estão fazendo: uma procissão até o templo de Inana,
levando oferendas em sua homenagem. Ela é a deusa
protetora da cidade e eles são gratos por sua bondade
em permitir o crescimento das plantações e dos animais.
Recipientes enormes transbordam de alimentos, doação
dos fiéis agradecidos. Fora do templo, a própria Inana, de
pé, a tudo supervisiona. Ao lado dela, há uma figura
masculina vestida. A proximidade entre eles sugere que
ele também tem poderes divinos, embora seja um
mortal. Para confirmá-lo, a palavra referente a
“sacerdote-rei” aparece gravada logo acima de sua
cabeça. Observando o vaso, o governante sorri com a
inscrição. Agrada-lhe ver-se imortalizado no vaso, de pé
ao lado da deusa, tão poderoso quanto a própria Inana.
*
O Vaso de Uruk é um dos mais antigos exemplares de
arte narrativa conhecidos no mundo. Ele conta uma
história que pode ser compreendida pela leitura das
várias camadas de imagens sequenciadas, à semelhança
das histórias em quadrinhos de hoje. Nos tempos pré-
históricos, um xamã ou o representante mais idoso de
um grupo provavelmente contava histórias sobre as
pinturas rupestres para dar-lhes vida. Por volta de 3300
a.C., os artistas começavam a contar histórias
empregando esculturas em relevo como as do Vaso de
Uruk. Qualquer um podia, assim, olhar as esculturas em
relevo e “ler” sozinho a história.
O Vaso de Uruk é recoberto por esculturas em relevo.
Diferentemente das esculturas dos bisões do capítulo 1,
feitas com argila por cima da rocha, as figuras sobre o
vaso foram recortadas sobre uma superfície de pedra.
Primeiro, o artista criava o padrão sobre a pedra lisa
usando carvão ou ocre. Em seguida, os canteiros*
usavam o martelo e o cinzel para recortar a pedra,
dando-lhe formas tridimensionais. Seu objetivo não era
esculpir animais como o bisão no mais alto grau de
verossimilhança. Concentravam-se, antes, em aspectos
que tornavam cada animal ou figura humana distintos,
recorrendo à representação em perfil para transmitir
movimento.
Somente uma sociedade abastada e bem organizada
poderia financiar uma arte tão trabalhosa. Na
Mesopotâmia (o Iraque de hoje), por volta de 4000 a.C.,
pequenas aldeias haviam se transformado em cidades. A
maior delas era Uruk (hoje Warka), com ruas bem
traçadas e muralhas externas com dez quilômetros de
extensão. O dinheiro era coletado junto à população por
uma autoridade central (como um governo), e a escrita
foi inventada para fazer o registro da arrecadação. O
Vaso de Uruk é a obra de arte mais antiga em que a
escrita aparece.
Uruk é a cidade mais antiga do mundo e sua arte era
empregada para glorificar deuses como Inana. O
governante de Uruk, o “sacerdote-rei” que conhecemos
na abertura deste capítulo, via isso com bons olhos, por
ele ser glorificado no Vaso de Uruk da mesma forma que
Inana. Os artistas das terras férteis que se estendiam
desde a Grécia e Turquia até o Irã, o Iraque e a Índia dos
dias de hoje criaram obras de arte semelhantes para
tumbas, templos e palácios reais. Eram artistas
empregados para esculpir histórias impactantes sobre
deuses e governantes. Os artistas eram pagos pelos
governantes que, obviamente, controlavam a narrativa.
Meio mundo longe dali, na Mesoamérica (o México de
hoje), a civilização olmeca preferia reverenciar seus
líderes de outra forma. Datadas de 1800 a.C., cabeças
colossais esculpidas em rochas vulcânicas (basalto) eram
colocadas no alto de elevações de terra. A fartura de
alimento criava condições para que os olmecas
sustentassem artistas em tempo integral. Eles utilizavam
ferramentas de pedra para esculpir as cabeças que
chegavam a três metros de altura e pesavam oito
toneladas ou mais. Os blocos de pedra vinham de uma
distância de 100 quilômetros [pelo rio], um prodígio de
transporte que empregava balsas e roladores de troncos
para movê-los. Dez dessas cabeças monumentais foram
encontradas no importante centro de San Lorenzo, onde
uma plataforma de terra gigantesca se erguia a 50
metros do chão.
Ao contrário das figuras estilizadas do Vaso de Uruk,
as cabeças olmecas apresentam um conhecimento sólido
de anatomia. Cada cabeça tem bochechas carnudas e
feições cuidadosamente definidas, que provavelmente
representavam líderes específicos. Muitas vezes com
capacetes bem ajustados, como se prontas para
guerrear, com uma expressão dura, o cenho franzido,
formando um sulco entre as sobrancelhas e o nariz. Hoje
elas têm os olhos vazios, mas originalmente essas
cabeças eram pintadas e deviam parecer assustadoras e
ameaçadoras, vigiando a partir dos cantos da plataforma
de terra. Caso você fosse o novo líder, sentiria
necessidade de estar à altura das realizações de seu
antecessor. Você também se sentiria poderoso em tê-las
ao seu lado. Só a dificuldade para esculpir essas cabeças
e posicioná-las na plataforma elevada indica o quanto
eram valorizadas.
No Egito, faraós vivos (reis-deuses) encomendavam
esculturas colossais semelhantes para enfatizar seu
poder. Não se esperava que essas imagens fossem
realistas ou verossímeis. O antigo império egípcio era
quase tão antigo quanto a Mesopotâmia e durou 3.000
anos. Desde as primeiras dinastias no poder, o estilo da
pintura e da escultura egípcias se manteve distinto,
sólido e consistente. Assim como os mesopotâmios, a
intenção dos artistas egípcios não era esculpir ou pintar
com verossimilhança, mas captar as qualidades
essenciais de uma imagem, fosse um faraó, um deus ou
uma mulher trabalhando no campo.
O Egito era um país abastado, portanto não eram
apenas os palácios, templos ou tumbas reais a serem
decorados. Nebamun caçando nos pântanos é um mural
de 1350 a.C. aproximadamente, pintado na tumba de
Nebamun, em Tebas (a Luxor de hoje). Nebamun era
contador no Templo de Amun e passava os dias fazendo
a contabilidade da produção de grãos. Nesse mural, ele
caça passarinhos com a mulher Hatshepsut e a filha. Sua
figura está de perfil, as pernas e os pés andando na
mesma direção. No entanto, o tronco e os ombros estão
de frente para nós, como se estivéssemos olhando direto
para ele. A cabeça é uma mistura de perspectivas:
vemos o rosto de perfil, mas o olho esquerdo nos encara,
como se a cabeça estivesse de frente. Os artistas
egípcios escolhiam as partes mais características de um
ser humano e as reuniam, criando representações
simbólicas e imortais para aqueles que partiam na
jornada após a morte, em suas tumbas ricamente
decoradas. Grande parte da arte egípcia foi criada para
acompanhar os finados no pós-morte. A arte nos túmulos
era especial e altamente valorizada por desempenhar um
papel crucial para os egípcios, exibindo nas imagens a
vida que teriam depois de morrer. Nebamun caçando nos
pântanos sugere que Nebamun preferia passar seus dias
caçando com a família do que trabalhando.
Mil anos após a construção das pirâmides, os faraós
decidiram construir novas câmaras de sepultamento
dentro de penhascos, em um lugar hoje conhecido como
Vale dos Reise Vale das Rainhas. Cada novo governante
encomendava uma tumba a ser cortada na rocha.
Imagine a dificuldade dessa façanha! Terminado o
túmulo, ele era decorado. A tumba de Seti I, que reinou
de 1290 a 1279 a.C., foi a primeira a ter todos os
compartimentos decorados até a câmara mortuária. A
criação de tumbas como essa requeria o trabalho
permanente de uma equipe numerosa de escultores,
pintores, escribas (escritores) e supervisores no local.
Assim como os olmecas e os mesopotâmios, havia
alimento farto no Egito para permitir que os artistas se
concentrassem em produzir arte em vez de lavrar os
campos. Os faraós valorizavam suas habilidades e os
abrigavam em um vilarejo exclusivo, chamado Set Maat,
“o lugar da verdade” (Deir el-Medina, nos dias de hoje),
onde os artistas e suas famílias recebiam alimentação,
roupas e lenha para que pudessem se concentrar
somente nas tumbas. Um desses artistas foi Sennedjem.
Sabemos sobre Sennedjem porque, quando não
estava trabalhando numa sucessão de tumbas
faraônicas, ele se envolvia com a construção da própria.
Sennedjem morreu durante o reinado de Seti I e foi
enterrado junto à esposa Iyneferti, no cemitério local
para artistas, perto de Set Maat. Nas paredes de sua
sepultura havia pinturas do casal arando a terra e
ceifando milho, cercados pelas águas auspiciosas do rio
Nilo. Nenhum dos dois era fazendeiro e o reino lhes
provia alimentação, portanto as pinturas não
correspondiam à realidade deles. São, na verdade,
episódios extraídos do Livro dos mortos, em que se
garante que cada corpo tenha tudo o que precisa na vida
após a morte. Era uma forma de escrever o próprio
destino, ou seja, se você se pintasse vivendo bem numa
terra abundante nas paredes de sua tumba, assim seria
em sua vida após a morte. Daí porque Sennedjem
passava seu tempo de lazer também com um pincel na
mão.
Para uma civilização que priorizava a arte, é
surpreendente que os egípcios não adotassem o uso do
bronze, uma liga de cobre e estanho empregada para
fazer esculturas de metal, por volta de 2800 a.C., na
Mesopotâmia e na Índia. O conhecimento sobre a
fundição do bronze foi transmitido pelas primeiras rotas
de comércio e adotado na China. A cultura chinesa
valorizava itens que exigiam tempo e empenho para
serem feitos. A fundição do bronze consumia muito
tempo, mas permitia a criação de esculturas e objetos
metálicos muito intricados e logo se tornou o material
preferido da dinastia Shang. Os artistas chineses faziam
um molde em argila, envolvendo o modelo do objeto
acabado. Depois de secos, os pedaços de argila eram
retirados para montar a fôrma. O bronze derretido era,
então, despejado dentro dela e deixado ali até que ela
pudesse ser retirada e a escultura de bronze, revelada.
Um exemplar desse trabalho é a jarra de vinho de bronze
Tigresa, do período final da dinastia Shang, por volta de
1100 a.C. Ela teria sido usada por um sacerdote-rei em
uma cerimônia para homenagear seus ancestrais e
enterrada com ele, a fim de permitir que ele continuasse
a louvá-los mesmo depois de morto. Ela é muito
rebuscada e representa um tigre agachado sobre sua
traseira, usando o rabo para se equilibrar. As pernas
dianteiras envolvem uma pequena figura humana
agarrada à barriga do animal, abaixo de sua mandíbula
incrustada de presas. Enterrar um objeto tão precioso
num túmulo reforçava o alto grau de importância do
sacerdote-rei.
A Assíria, ao norte da Mesopotâmia, começou a se
expandir por volta da época em que a dinastia Shang
dominava o nordeste da China e o império neoassírio
estendia-se pela Síria, por Israel e pelo Irã de hoje. Os
líderes fortificaram cidades, construíram sistemas de
irrigação e ergueram templos e palácios. Esculturas
imensas de touros e leões com cabeça humana e asas de
águia guardavam os portões da cidade e a entrada dos
palácios. A escala avantajada visava intimidar qualquer
um que passasse por elas. Esculturas em relevo de
alabastro, vivamente pintadas, cobriam os salões do
palácio com cenas repletas, exibindo o rei herói em
combate e em comunhão com os deuses. Era uma arte
atuando como propaganda, exatamente como as
cabeças olmecas e as figuras egípcias colossais.
Assurbanípal reinou entre 668 e 627 a.C. e reconstruiu
o Palácio do Norte em Nínive, na Assíria. Os painéis ao
longo de seus corredores representavam o rei numa
caçada de leões. Os leões, libertados das jaulas para que
o rei os caçasse, aparecem com a juba desgrenhada e
dentes à mostra. Os relevos exibem um conhecimento
anatômico detalhado sobre leões e uma destreza para
contar histórias com dramaticidade. O rei mostra-se
triunfante em todas as cenas ao caçar a cavalo, a pé ou
numa biga, e há vários leões mortos pelo chão. Cada
figura é estilizada como a dos relevos egípcios, porém de
forma bem mais detalhada. O rei e seu séquito usam
barba bem encaracolada, túnicas decoradas, braceletes,
brincos e pulseiras. São painéis muito impressionantes, o
auge da arte narrativa do mundo antigo, mas imagine o
que deve ter sido vê-los dentro do palácio de
Assurbanípal. Iluminados por tochas, cada homem e cada
fera pintados em cores vivas, a caçada explodindo ao
redor. De quem você acha que teria mais medo, dos
leões ou de Assurbanípal?
Em 612 a.C., o império neoassírio sucumbiu de modo
abrupto sob os ataques de países rivais. Muitas de suas
cidades foram destruídas e um novo império babilônio
surgiu em seu lugar, ao sul da Mesopotâmia, até ser
substituído no século seguinte por um vasto império
persa. Mais para o oeste, porém, uma abordagem à
figura humana esculpida, radicalmente nova, começava
a emergir na Grécia.
*Artífices que lavravam pedras de cantaria; escultores em pedra. (N.T.)
Capítulo 3 - A ilusão da vida
Em Kerameikos [Cerâmico], o bairro das oficinas dos
ceramistas na cidade de Atenas, na Grécia, dois homens
trabalham com afinco. O ano é 540 a.C. e Amasis faz os
retoques finais em um pequeno lekythos [lécito] ou vaso
para óleos. Será pintado com mulheres trabalhando num
tear, tecendo vestimentas de lã para uso de suas
famílias. Amasis emprega outros artistas para pintar e,
assim, pode se concentrar no fabrico dos vasilhames. Ele
carrega o torno com mais argila e começa a trabalhar
numa ânfora. Seu pintor já tem algo planejado para ela
também: guerreiros nus se preparando para guerrear e
uma mulher empunhando uma lança.
Enquanto isso, em outra oficina, o pintor Exéquias
também trabalha numa ânfora. Nela está seu
personagem favorito, Aquiles, herói das conhecidas
histórias sobre a Guerra de Troia. Exéquias decidiu
colocar Aquiles e um companheiro de luta, Ajax, num
jogo de dados, um jogo de azar, durante um intervalo de
batalha. Aquiles ainda usa o capacete e ambos seguram
suas lanças, em prontidão.
Exéquias é especialista na pintura de figuras negras,
mas a concorrência é acirrada em Kerameikos. As peças
são exportadas para todo o Mediterrâneo, e os melhores
ceramistas e pintores são muito requisitados. Exéquias
sabe que não há tempo para descanso. Ele pega
novamente o pincel e começa a pintar o escudo de
Aquiles.
*
Atenas era o centro da pintura de figuras negras à
época de Exéquias. A técnica fora desenvolvida em outra
cidade, Corinto, mas graças a pintores como Exéquias,
que aumentaram a escala e começaram a representar
mitos e narrativas gregas, Atenas logo dominou o
mercado. Eles pintavam usando uma solução cremosa de
argila. Depois de pintar as figuras com essa solução, eles
talhavam sobre ela até a base de argila, criando
arabescos em capacetes e padrões intricados nas
túnicas. A solução cremosa se tornava negra e brilhante
sob a ação do calor do forno, mas as áreas expostas do
vaso de barro conservavam a tonalidade alaranjada
original.
Hoje valorizamos esses vasos pelas criativas figuras
dos pintores, empregando apenas essa solução cremosa
de argila. As figuras são chapadas e estilizadas, mas os
melhores exemplos, como os de Exéquias, costumamser
extremamente detalhados. No entanto, há 2.500 anos, os
pintores que ornamentavam painéis e paredes eram bem
mais valorizados do que os que pintavam vasos de
cerâmica. Por volta daquela época, passou a existir uma
distinção entre aqueles que pintavam cenas a serem
apreciadas nas paredes, pessoas que hoje chamamos de
“artistas”, e os que pintavam cenas, decorando objetos
de uso comum como ânforas. Esses pintores eram vistos
como “artesãos”.
Os artistas foram enaltecidos por escritores da
antiguidade como Plínio, o Velho. Segundo ele, os artistas
costumavam competir para criar as melhores ilusões da
vida real, uma técnica hoje conhecida como trompe l’oeil,
ou ilusão de ótica. Poucos fragmentos de pintura mural
sobreviveram ao tempo, mas os que restaram
comprovam que, naquela época, os artistas eram
talentosíssimos. Este livro se concentra nos artistas, não
nos artesãos, na arte visual, não nas artes decorativas.
Exéquias é um raro militante das duas searas porque,
além de suas pinturas tornarem as peças mais atraentes,
elas são bem mais do que mera decoração. Ainda que
não empreguem o trompe l’oeil em voga, elas contam,
de fato, as próprias histórias, retiradas dos mitos gregos
e repletas de tensão e dramaticidade. Exéquias combina
a habilidade artesanal da decoração com a arte da
pintura.
Por mais que hoje seja difícil estudar a pintura grega,
já que grande parte dela desapareceu, há muitos
exemplares de escultura grega que perduraram, seja
como originais ou cópias posteriores. As esculturas não
eram feitas para ter utilidade como as ânforas, mas para
serem observadas, estudadas e admiradas por si, como
arte. A princípio, os escultores gregos foram
influenciados pelas estátuas egípcias. Mas, durante o
século em que os vasos de figuras negras estavam na
moda, essas esculturas em pedra dura e fria começaram
a se descontrair. Os membros adquiriram maior
proporcionalidade e os rostos ganharam mais vida e
realismo. As esculturas pararam de parecer jovens
idealizados, congelados no tempo, e começaram a
parecer homens e mulheres de verdade.
Esse foi o início daquilo que hoje denominamos arte
clássica – uma ruptura radical com tudo aquilo que viera
antes. Teria essa mudança acontecido porque Atenas se
tornara a primeira democracia do mundo? Democracia
significava que o povo governava a cidade, e não um
único líder não eleito. (Naquele tempo, os escravos, as
mulheres e as crianças eram excluídos do “povo”.) O
verdadeiro povo agora fazia as leis para a cidade, e as
esculturas dali tornaram-se cada vez mais realistas.
A arte grega é a fundação sobre a qual se construiu
toda a arte ocidental, ainda que naquela época a Grécia
não fosse um país de verdade, mas uma coleção de
cidades-Estados. Em 508 a.C., quando Atenas se tornou
uma democracia, a cidade de Esparta dominava a área.
As duas cidades só trabalharam juntas quando da
invasão persa, em 490 a.C. Atenas acabou fazendo
aliança com mais de duzentas cidades gregas para
expulsar o império persa. Todas as cidades contribuíam
financeiramente para um fundo centralizado e, como
resultado, Atenas se tornou muito rica e poderosa.
Os escultores gregos tinham começado a trabalhar
com bronze no século VI a.C., mas esse material ganhou
força, de fato, depois das guerras persas. Havia uma
demanda crescente por esculturas de maior porte e mais
dinâmicas, e o bronze era o material ideal. Ele podia ser
polido para refletir a luz na pele, e os artistas
incrustavam olhos de vidro e dentes de prata.
Infelizmente, o bronze também podia ser derretido,
portanto pouquíssimos bronzes gregos resistiram, como
aqueles retirados do mar onde algum navio que os
carregava naufragou, como no caso dos Guerreiros (ou
Bronzes) de Riace, ou outros que foram encontrados sob
os escombros de um terremoto, como o Cocheiro de
Delfos.
Esses bronzes nos mostram como os escultores se
esforçavam para fazer as imagens cada vez mais fiéis à
realidade. O Cocheiro de Delfos, de 474 a.C.
aproximadamente, é um uma figura de tamanho natural
que usa uma túnica longa de mangas curtas, o uniforme
de cocheiro. Ele segura as rédeas de uma parelha de
cavalos que talvez fizesse parte da escultura original. A
escultura foi encomendada por um atleta vitorioso,
ganhador da corrida de bigas nos Jogos Píticos,
promovidos em Delfos a cada quatro anos. O cocheiro de
bronze tem o semblante sério da vitória, seu rosto jovem
é emoldurado por cachos que escapam da faixa em torno
da cabeça. Seus olhos de ônix e vidro, contornados por
cílios de cobre, são de um realismo surpreendente. No
entanto, sua túnica se parece mais com uma coluna
grega impassível do que um tecido sobre o corpo de um
atleta e, nesse ponto, o naturalismo da escultura, seu
aspecto natural, é falho.
Duas décadas mais tarde, essa falha deixaria de
existir nos Guerreiros de Rialce. Para começar, eles estão
nus, exibindo músculos e força. Originalmente, as duas
imagens eram parte de um monumento dedicado à
vitória sobre os persas. Medem quase dois metros de
altura e, a princípio, teriam carregado escudos de
madeira no antebraço esquerdo erguido e lanças no
punho direito. Um deles parece um pouco mais jovem do
que o outro, seus músculos estão retesados, os ombros
jogados para trás, os olhos fixos à frente, e não para
baixo.
Os monumentos traziam glória àqueles que os
erguiam e há indícios de que homens e mulheres
encomendavam estátuas, mas era preciso ser muito rico
para adquiri-las. A construção de templos era uma
despesa equivalente para as cidades. O Templo de Zeus
foi construído em Olímpia, em 456 a.C. Na mesma
década, Atenas começara a obra do próprio templo
concorrente, dedicado à padroeira da cidade, a deusa
Atena, localizado sobre uma colina rochosa de topo plano
da Acrópole, que dominava a cidade. Esse templo, o
Partenon (447-432 a.C.), era intencionalmente maior do
que o Templo de Zeus, ou do que qualquer outro templo
grego, e foi construído todo em mármore. Com o dinheiro
dos tributos pagos pelas cidades sob o controle
ateniense, Péricles, o líder da cidade, contratou o
escultor Fídias para supervisionar o grandioso projeto
artístico.
Ao chegar ao topo da Acrópole e cruzar os portões,
você acessava o Partenon por trás. Um friso alto,
esculpido em painéis de mármore, envolvia o edifício,
com uma narrativa visual concebida para acompanhá-lo
em sua jornada à volta da parte externa. O friso,
originalmente pintado com cores brilhantes,
representava o Grande Panatenaia, um luxuoso festival
de verão promovido a cada quatro anos que terminava
com um novo peplos (manto) presenteado a Atena, a
protetora da cidade. Você se tornava parte da procissão,
em que homens e mulheres carregavam ânforas e
levavam animais para o sacrifício. Era como a procissão
no relevo do Vaso de Uruk, mas em escala muito maior.
Ao dobrar a quina perto da entrada, o friso mudava:
grandes figuras sentadas indicavam que, agora, você
estava na presença dos deuses.
No interior, havia uma estátua gigantesca de Atena,
com mais de doze metros, inteiramente coberta de ouro
e marfim. Imagine isso: uma escultura do tamanho de
uma casa de três andares! Só o ouro pesava mais de
uma tonelada, e o marfim era um dos materiais mais
caros existentes. O marfim tinha sido transformado na
pele de Atena, ao ser retirado de presas de elefante e
cuidadosamente aplicado sobre as maçãs do rosto,
pescoço, braços e mãos. Essa única estátua custou mais
do que o resto do Partenon como um todo. Foi a maior
afirmação de poder, prestígio e opulência que a cidade
poderia fazer.
A obra central de Fídias, a enorme Atena, não existe
mais, mas sabemos sobre sua aparência porque sua
imagem foi impressa em moedas. A influência dela foi
igualmente reconhecida em Olímpia, onde Fídias foi
contratado a seguir para fazer uma escultura semelhante
para o templo de Zeus. É uma pena que ela também não
exista mais, tanto porque, à época, a imagem colossal de
Zeus sentadofoi tida como a obra-prima de Fídias quanto
por ter ficado conhecida como uma das sete maravilhas
do mundo antigo.
Houve um tempo em que a área dos templos era
repleta de milhares de estátuas de bronze em pedestais,
perfilando as ruas entre os prédios, por vezes com dois
ou três de profundidade. A maioria dessas esculturas não
está mais lá, por terem sido fundidas em guerras
posteriores, dado o valor do metal. Em Olímpia, foram
encontrados mais de mil pedestais vazios. No capítulo
seguinte, veremos cópias em mármore de algumas delas
quando nos aventurarmos por Roma, mas o mármore só
voltou à moda como material preferido dos escultores
gregos no século IV a.C. e na obra de Praxíteles.
Praxíteles foi muito bem-sucedido ao longo da vida e
parece ter sido relativamente abastado. Era ateniense,
filho de escultor, e usava modelos vivos para suas peças.
Começou trabalhando com bronze, mas optou pelo
mármore e tornou-se bem conhecido pela capacidade de
fazer a pedra dura parecer pele suave. Uma de suas
obras, a Afrodite de Cnido, tornou-se especialmente
admirada. Esculpida por volta de 350 a.C., ela foi a
primeira representação em tamanho natural de uma
mulher nua e é o ponto de partida da história do nu
feminino na arte ocidental. Artistas homens, trabalhando
para mecenas e apreciadores homens, voltaram-se de
forma sistemática para o corpo feminino nu,
transformando-o em objeto a ser observado. Foi o que
Praxíteles fez com Afrodite. Ela acaba de se despir para o
banho (um jarro d’água aparece à sua esquerda). Não
está exibindo o corpo publicamente como sinal de força
heroica, como os Guerreiros de Riace ou como os
homens faziam ao se exercitarem nus no ginásio. As
mulheres só ficavam nuas em caráter reservado, e a
privacidade de Afrodite foi perturbada, e ela tenta cobrir
o corpo com as mãos. Empregando o contrapposto (uma
pose flexionada), Praxíteles acrescenta movimento ao
corpo dela: o peso está colocado sobre um pé, uma
perna flexionada, o quadril deslocado e um dos ombros
caído.
Em sua origem, Afrodite foi posicionada no centro de
um templo e podia ser vista por todos os ângulos. A
estátua se tornou um tipo de atração turística, e a cidade
de Cnido (cidade grega que se situava onde hoje é o
litoral sul da Turquia) exibia, cheia de orgulho, a imagem
da escultura em suas moedas. Afrodite não representava
o poderio de uma cidade, conforme a colossal Atena
fizera, mas sim o poder do artista, alguém capaz de
transformar a dureza do mármore em carne sensual,
viva. O original se perdeu, mas um batalhão de cópias
romanas e moldes de gesso posteriores asseguraram que
sua fama perdurasse até hoje.
Praxíteles foi um dos principais escultores de sua
geração e seu trabalho era muito requisitado. À época
em que esculpiu Afrodite, ele foi um dentre vários
escultores destacados para trabalhar em um imenso
túmulo para Mausolo, governante persa que viveu em
Halicarnasso (hoje Bodrum, na Turquia). Os escultores
viajavam constantemente para atender às encomendas,
dado que líderes regionais ricos compreendiam o valor da
arte em sua tentativa de imortalidade. O grandioso
túmulo de Mausolo era coberto de esculturas de artistas
gregos. Era tão impressionante que inspirou a palavra
mausoléu, que significa uma edificação mortuária
grandiosa.
A influência da arte grega para além do continente
grego ficou conhecida como helenismo, espalhando-se
ainda mais conforme o líder grego do século IV a.C.,
Alexandre o Grande, conquistava todos os antigos
territórios persas, do Egito até a Índia. Um século mais
tarde e do outro lado do mundo, na China, outro líder
ambicioso começou a se estabelecer. Seu mausoléu viria
a ser de uma escala sem precedentes, o maior projeto
escultural jamais realizado.
Capítulo 4 - Os imitadores
O ano é 210 a.C. e o cruel imperador chinês Qin Shi
acaba de falecer. Um exército aglomerou-se para
conduzi-lo na vida após a morte e milhares formam
fileiras ordenadas. São arqueiros e oficiais, soldados da
infantaria e da cavalaria, todos de frente para os
territórios conquistados por Qin ao unificar a China sob
sua bandeira. A Guarda Imperial se posiciona em dez
colunas, de quatro componentes cada, que parecem
intermináveis, todos de lança na mão, preparados para
um eventual ataque. É um exército que nunca dorme.
Afinal, não são soldados comuns, mas sim réplicas
pintadas, em tamanho natural, feitas de terracota
(argila). Elas fazem parte de um imenso mausoléu que o
imperador mandou construir tempos antes, ao assumir o
poder como rei regional do Estado de Qin, com treze
anos de idade.
Trinta e seis anos mais tarde, o exército vigia uma
réplica da principal cidade de Qin, Xianyang, incluindo o
palácio, onde seu corpo repousa. Corredores ligam o
palácio-sepulcro com o resto da cidade duplicada, que se
estende por quilômetros. Bigas de bronze estão
estacionadas em baias com cavalos de bronze com
arreios completos e um cocheiro sempre pronto para
conduzir o imperador morto. Músicos e acrobatas de
terracota estão ali perto para o entretenimento; réplicas
dos cortesãos e servos de Qin ficam próximas, prontas
para atendê-lo. Gansos e cisnes de argila “nadam” em
um lago subterrâneo, para que nunca falte alimento ao
imperador.
*
Governantes anteriores haviam insistido no sacrifício
humano ao morrerem para que fossem assistidos na vida
pós-morte, mas Qin encomendou milhares de substitutos
de terracota para servi-lo na vida eterna. Para criá-los,
misturava-se argila com areia para fortalecê-la durante a
queima e o material era distribuído entre diversas
oficinas para garantir a mesma qualidade pelas
diferentes linhas de produção. As figuras eram
confeccionadas por mais de mil operários como peças
idênticas, porém com detalhes diferentes. Assim, um
soldado com uma armadura adornada podia ter bigode e
outro não, ou outro com um coque no alto da cabeça
poderia ter um lenço mais espesso que o companheiro ao
lado. Essas discrepâncias fazem as imagens parecer mais
humanas. Os vestígios de tinta no barro mostram que
eram pintadas originalmente com cores realistas. Hoje
conhecemos esses soldados como o Exército de
Terracota, e milhares de exemplares têm sido
descobertos em escavações, desde que o sítio foi
redescoberto, em 1974.
Ao mesmo tempo em que Qin construía seu império, a
cultura Nok florescia na África Ocidental, ao norte do rio
Níger (na Nigéria de hoje), e muitas esculturas Nok,
também de terracota, sobreviveram. Os artistas da
região de Nok eram mulheres, e elas enrolavam cordas
de barro para formar imagens ocas em trajes
cerimoniais, algumas originalmente com mais de um
metro de altura. Enquanto as esculturas secavam, os
detalhes eram talhados no barro, como colares
texturizados, tornozeleiras e pulseiras, armas, tranças
nos cabelos e detalhes faciais. O rosto das esculturas era
estilizado e distinto. Cada cabeça exibia sobrancelhas
bem arqueadas, olhos grandes triangulares com globos
oculares projetados e pupilas vazadas. Nas esculturas
maiores, a boca, as orelhas, as narinas e os olhos eram
perfurados, abrindo buracos para a passagem do ar de
dentro da escultura durante o cozimento no forno,
evitando rachaduras na peça.
Hoje encontramos uma profusão de fragmentos das
esculturas Nok, principalmente bustos, e supõe-se que
possam ter sido quebradas e enterradas como parte de
um ritual, como uma cerimônia em honra aos ancestrais
ou um funeral. Infelizmente não há registros escritos que
nos informem melhor sobre a cultura Nok.
Adornos da escultura, como uma concha decorativa na
cabeça e um cetro de faraó colocado num bracelete,
sugerem que a região de Nok mantinha uma rede
comercial que resultou num intercâmbio cultural, a partir
do oceano Atlântico até o Egito.
A reação romana à construção de uma rede comercial
foi invadir territórios vizinhos e expandir o próprio
império. De cidade pequena, Roma cresceu até se tornar
uma superpotência imperial que controlouimensas
faixas mediterrâneas no século II a.C. Em Roma, o
apetite por esculturas era voraz. Mais de um milhão de
habitantes viviam na cidade, e as esculturas estavam por
toda parte: de deuses nos templos, de generais romanos
nas esquinas das ruas, de bustos de filósofos gregos nas
residências e nas tumbas esculpidas à beira das
estradas. De cada cidade conquistada, as esculturas
eram levadas como espólio de guerra e exibidas pelas
ruas de Roma em desfiles pomposos chamados de
triunfos. Os escultores eram contratados para fazer
réplicas de mármore das esculturas gregas mais famosas
de Policleto e Praxíteles e elas eram embarcadas para
Roma em quantidade. Moldes de gesso de obras famosas
começaram a circular, possibilitando que artistas
romanos criassem outras réplicas. Na verdade, milhares
de Afrodites e Vênus nuas sobreviveram, e foram
encontradas mais de 65 cópias em mármore da estátua
de bronze Doríforo, de Policleto, um lanceiro do século V
a.C. Os cidadãos romanos abastados não tinham
somente uma ou duas esculturas no átrio (saguão de
entrada) de suas casas, mas era comum possuírem
dezenas e dezenas delas alinhadas também no peristilo
(pátio interno).
Com a expansão do império romano, tornou-se mais
difícil datar as esculturas. Por quê? Para os romanos,
copiar obras e reciclar ideias antigas era uma prática
artística comum. Todos queriam ter esculturas gregas
porque os romanos admiravam muito o estilo de vida
grego, e as estátuas simplesmente não eram suficientes
para atender à demanda. Então, a prática de copiá-las ou
criar novas esculturas baseadas nos originais gregos se
difundiu muito.
Uma obra em particular ocupa o ponto central dessa
dificuldade: a escultura Laocoonte. É uma peça
fantástica, cheia de vigor e dramaticidade. Três
personagens contorcidos, o sacerdote Laocoonte e os
dois filhos, lutam para se libertar de gigantescas
serpentes marinhas que tentam derrubá-los, prontas
para abocanhá-los. Os três homens estão nus, com a
musculatura contraída de medo. A figura central é
Laocoonte, sentenciado à morte por um deus vingativo
por ter tentado alertar Troia, sua cidade sitiada, para não
aceitar o presente do gigantesco cavalo de madeira.
Enquanto Laocoonte e seus filhos eram atacados pelas
cobras, a barriga do cavalo se abriu e os soldados gregos
brotaram dela e invadiram Troia, vencendo a guerra.
A história das guerras troianas era conhecida há
séculos. (Você deve lembrar que Exéquias, o pintor de
vasos grego, era um grande fã.) A Ilíada de Homero a
recontou no século VIII a.C., e o poeta romano Virgílio a
atualizou com a Eneida (29-19 a.C.), acrescentando-lhe a
história de Laocoonte num efeito dramático. Para a
escultura de Laocoonte, três artistas da ilha grega de
Rodes – Agesandro, Polidoro e Atenodoro – traduziram o
conto em mármore, criando uma obra-prima expressiva,
turbulenta, transformando a pedra em músculos
tensionados. A escultura foi adquirida pelo rico
comandante romano (e posteriormente imperador) Tito.
Seu contemporâneo, Plínio o Velho, chamou-a de “uma
obra superior a qualquer pintura, a qualquer bronze”.
Hoje não existe consenso quanto à data em que
Laocoonte foi realmente esculpida. Ela se assemelha em
estilo às esculturas feitas no século III a.C. em Pérgamo
(hoje na Turquia, mas naquela época era considerada
parte da Grécia). Outros especialistas preferem datá-la
como sendo do primeiro século antes de Cristo.
Plínio nomeou os três escultores de Rodes que a
fizeram, e eles também parecem ser os autores das
esculturas teatrais sobre as guerras troianas para a
suntuosa mansão do imperador Tibério, à beira-mar, em
Sperlonga. No entanto, isto significaria que o Laocoonte
seria datado do primeiro século da era cristã. Não há
nenhuma inscrição na escultura em si ou qualquer outra
forma de saber, mesmo quando se compara o estilo com
outras obras, já que era uma prática comum copiar
estilos mais antigos.
A única área em que os artistas romanos não
recorriam à arte grega como inspiração era no retrato
esculpido, conhecido como busto. A escultura clássica
grega representava homens como adolescentes imberbes
e as mulheres com rostos simétricos sem nenhuma ruga.
Eles eram os supermodelos de sua época. Por outro lado,
os romanos davam preferência a rostos ricos em idade e
em experiência, a peculiaridades individuais
representadas por orelhas salientes, bochechas flácidas e
feições pesadas. O busto de um patrício romano de
Otricoli, de 75-50 a.C., exibe um queixo pronunciado e
faces encovadas. A boca é firme, mas há preocupações
franzindo o cenho e sombreando o olhar. Esse estilo de
escultura é apelidado de “verismo”, da palavra latina
para verdadeiro, mas hoje não temos como saber se
esses bustos são mais verossímeis do que as cabeças
gregas. Ambos eram representações de um ideal, mas
para os romanos isso era a experiência acima da
jovialidade, a sabedoria acima da inocência, a
confiabilidade e o estoicismo acima da beleza superficial.
O verismo não só era preferência de senadores e oficiais
militares, como também de comerciantes e artesãos que
tinham os traços característicos próprios esculpidos em
seus túmulos.
O único problema com o verismo era se você fosse
realmente ainda jovem e pouco experiente em termos
físicos e mentais. Foi o problema enfrentado por
Otaviano Augusto, o sobrinho-neto e filho adotivo de Júlio
César, que veio a se tornar o primeiro imperador romano
aos 32 anos de idade. Não havia uma forma plausível de
ele conseguir uma escultura sua como velho e sábio,
então ele recorreu ao modelo grego da juventude
idealizada. Ao longo de seus 41 anos como imperador,
suas esculturas eram eternamente jovens, maxilar bem
definido, sem barba, a boca pequena e carnuda, olhos
sem rugas e, acima deles, cachos fartos de um cabelo
encaracolado. Havia bustos de Augusto por todo o
Império Romano. Uma cabeça de bronze datada
aproximadamente de 25 a.C. foi encontrada no Sudão, na
África, e existem bustos egípcios em que ele usa o
adorno de cabeça de um faraó. Esses bustos marcavam
sua presença e representavam sua autoridade quando
ausente. Uma imagem dele de perfil aparece em moedas
de denários cunhadas na Espanha em 20 a.C., de modo
que era possível levar consigo o poder e a proteção do
imperador.
Em termos históricos, as esculturas encomendadas
pelas famílias de aristocratas ou de governantes como a
de Augusto eram feitas em mármore e bronze, materiais
resistentes, capazes de sobreviver a seus donos. Por essa
razão, as cidades italianas de Herculano e Pompeia são
uma fonte singular e de valor incalculável para os
historiadores da arte. Essas cidades foram soterradas por
cerca de quatro a seis metros de cinzas e pedra-pomes
quando o Vesúvio, o vulcão da região, entrou em erupção
em 79, paralisando no tempo toda a vida da cidade,
fossem ricos ou pobres. As escavações, iniciadas em
1738, ainda continuam. Os interiores das casas
escavadas, com seus mosaicos baseados em pinturas
gregas e pinturas murais representando mitos, paisagens
e ilusões arquitetônicas, oferecem insights valiosos sobre
a forma como a arte se inseria no dia a dia.
Sabemos por Plínio que a pintura era valorizada por
seu ilusionismo. Os pintores de Pompeia usavam o
trompe l’oeil livremente nos interiores das villas,
pintando o gesso para parecer mármore, pássaros
empoleirados em guirlandas e paisagens através de
janelas. O átrio central era o primeiro cômodo visto pelas
visitas e era como um palco montado, com arte e mobília
arrumadas para melhor corresponder aos gostos e
aspirações de cada proprietário. Estátuas de Dionísio, o
deus grego do prazer, sugeria haver ali muito tempo para
o lazer, galerias de bustos de filósofos gregos e
ancestrais romanos sugeriam um patrimônio cultural e
uma mente instruída. Outros cômodos de livre acesso
além do átrio costumavam ter cenas mitológicas ou ritos
cerimoniais nas paredes. Na Vila dos Mistérios, um
quarto érecoberto com pinturas murais que mostram os
preparativos para um casamento. Mulheres e homens
jovens passam por ambientes apinhados por deuses
associados ao amor e à fertilidade, incluindo Dionísio e
Eros. As grandes figuras pintadas são sólidas e realistas,
assumindo poses como esculturas gregas, e parecem se
mover num espaço de pouca profundidade em frente a
paredes de um vermelho vivo. Essa perspectiva serve
para empurrá-las na direção dos hóspedes que adentram
o cômodo, envolvendo-os como se eles também fizessem
parte da cerimônia misteriosa.
Na Casa do Fauno, uma das grandes mansões de
Pompeia, uma pintura grega de Alexandre o Grande
lutando contra o rei Dario da Pérsia foi recriada em um
mosaico que cobre o chão de um espaço ajardinado. O
mosaico mede 6 metros por 3 metros e era originalmente
composto por 3 milhões de tesselas, pequeninos cubos
de pedra em tons de amarelo, marrom, branco, preto e
cinza usados pelo artista para recriar a dinâmica da cena
de batalha. É o momento da derrota de Dario e ele se
volta para trás para olhar para Alexandre, enquanto seus
homens batem em retirada, com as lanças ainda
apontadas para o inimigo. Um cavalo luta para se libertar
do soldado que o segura, levando-nos diretamente para o
centro da ação e revelando a habilidade do artista em
trabalhar com o escorço na perspectiva (vemos a traseira
e a cabeça do cavalo supostamente por trás). Esse
mosaico é o único registro conhecido da pintura original,
que tanto poderia ter sido uma famosa representação do
século IV a.C. da batalha de Issos por Helena do Egito
quanto uma cena de batalha mencionada por Plínio em
sua lista das obras-primas gregas. De uma forma ou de
outra, ela existe hoje somente na forma desse mosaico,
preservado por acaso pelas cinzas vulcânicas em 79.
Na época em que o Vesúvio entrou em erupção, o
império romano se estendia da Inglaterra até a África e
da Espanha até a Turquia. Quando o retomarmos no
capítulo seguinte, ele estará próximo do auge de seu
poderio.
Capítulo 5 - Caminhos para a
vida após a morte
Estamos no ano 110 e o Fórum romano é um canteiro de
obras. O imperador Trajano está determinado a construir
o maior espaço de reunião para o senado e para o povo
que a cidade já viu. Completo, haverá ali um centro de
compras, ambientes para reuniões públicas, uma ampla
praça central e duas bibliotecas (uma para os textos
gregos, outra para os latinos). No meio de tudo isso, foi
erguida uma gigantesca coluna de mármore, com 35
metros de altura, construída com 29 discos de mármore
de Luna [Carrara]. A coluna está sendo financiada por
espólios de guerra e, futuramente, terá no topo uma
escultura de bronze do próprio Trajano. Há uma
plataforma de observação, alcançável por uma escada
em caracol cavada por dentro da coluna, de onde se
pode avistar todo o novo Fórum.
Na parte externa, os escultores esculpem um registro
vitorioso das recentes campanhas militares de Trajano
contra os dácios (a Dácia é a Romênia de hoje). O friso
envolve a coluna de baixo para cima, em baixo-relevo. As
cenas são ricas em movimento e as figuras são bastante
intricadas. Os soldados ganham vida, enquanto se
esforçam para cortar árvores na floresta ou martelam
pregos nas fortificações, as veias dos braços saltadas,
cada placa da armadura se movendo com o esforço. O
friso mede somente um metro de altura e duzentos
metros de comprimento. Desenrolado, teria a mesma
extensão daquele que envolve o Partenon, em Atenas.
*
A visualização de uma vitória militar numa escala
épica não foi inventada pelos romanos, mas eles a
usaram bastante. A Coluna de Trajano foi concebida pelo
arquiteto do Fórum, Apolodoro de Damasco, e o friso
sobe em espiral em torno dela, dando 23 voltas. Na parte
inicial, cavalos, bois, carneiros, porta-estandartes,
trombeteiros e centenas de soldados jorram pelos
portões da cidade a caminho da guerra. É possível ver
Trajano atravessando o rio Danúbio, com barcos
carregados de provisões para os exércitos. Suas duas
campanhas aparecem registradas em detalhe, e o friso
culmina com o suicídio do líder dácio derrotado,
Decébalo. Trajano aparece 59 vezes no total, em um
conjunto de cenas, todas exibindo-o em estado de
contentamento e ligeiramente mais alto do que suas
tropas para ser distinguido com mais facilidade. A
profusão de detalhes é tamanha que os historiadores
modernos estudam o friso por suas representações de
armaduras e armamentos romanos. Mas há um grande
problema no estudo in loco do friso: ele é difícil de ser
visualizado. As janelas das bibliotecas construídas por
Trajano davam para a coluna, mas ainda assim era
impossível ver a totalidade do relevo. Originalmente, ela
era pintada e os painéis em relevo eram um pouco
maiores na direção do topo da coluna, mas, em última
análise, grande parte da narrativa não pode ser avistada
da base, o que é, de fato, uma pena.
Conforme visto em Pompeia, os romanos abastados
tinham condições de encomendar mosaicos e esculturas
para decorar suas casas, mas os imperadores romanos
deram um passo à frente. A partir de Augusto, os
imperadores competiam entre si na construção de
templos cada vez maiores e mais impressionantes, assim
como lugares de reunião e monumentos. Augusto
construíra um fórum no coração de Roma, revestido de
mármore e repleto de esculturas. O Fórum de Trajano,
erguido um século depois, era três vezes maior. Sua
coluna era a mais alta de Roma quando foi construída.
Por que chegar a tamanhos tão extraordinários? A coluna
era uma declaração ostensiva da vitória de Trajano no
campo de batalha e seu sucesso como imperador. As
muitas horas dedicadas aos relevos e o nível de detalhe
atestaram a capacidade de Roma para conseguir o
(quase) impossível. Uma narrativa heroica foi esculpida
em 1.100 toneladas de mármore para confirmar o poder
e a força do império romano.
Era também uma questão de imortalidade. A Coluna
de Trajano se tornou o túmulo de Trajano. Suas cinzas
foram sepultadas na base da coluna e suas façanhas na
Dácia se tornaram um memorial apropriado. É provável
que a coluna tenha sido concluída pelo imperador
seguinte, Adriano, e ele terá ficado feliz em continuar
financiando o projeto, pois era ele que agora respondia
pelo forte e poderoso império de Trajano, e dessa forma a
coluna também lhe dava bastante visibilidade.
O próprio Adriano construiu de forma impressionante
em Roma. O Partenon foi erguido durante seu reinado. No
entanto, o palácio de verão de Adriano, nas colinas fora
da cidade, foi seu derradeiro legado artístico. Construído
entre 110 e 130 e chamado modestamente de Villa
Adriana, ele cobria uma área com duas vezes o tamanho
de Pompeia e podia abrigar todos os seus assessores
administrativos assim como muitos convidados. Sua
fama está na concentração de esculturas reunidas ali por
Adriano. A villa exibia os maiores sucessos da arte grega
e romana, às vezes com várias cópias da mesma
escultura. Peças que já vimos antes por aqui estavam na
villa, incluindo uma cópia da Afrodite de Praxíteles,
abrigada numa réplica de seu templo circular. Longe de
seu contexto de origem, muitas esculturas eram
alinhadas como em uma galeria de arte dos tempos
modernos, reunidas para serem observadas e admiradas.
O lanceiro Doríforo de Policleto ficava nos banhos da
Villa. Uma cópia do popular Discobolus (lançador de
disco, original do século V a.C.) também estava exposta
na Villa, agrupada com outras esculturas de diferentes
procedências e épocas. Adriano misturava suas
estimadas cópias gregas com imagens contemporâneas
de seu jovem amante Antinoo. Antinoo aparecia nu e
caracterizado como os deuses gregos e egípcios. Ele
morreu afogado no rio Nilo, no Egito, antes dos vinte
anos, e Adriano, consternado pela tristeza, transformou-o
em um deus. Em última análise, a exposição de
esculturas de Adriano era um gigantesco memorial para
Antinoo.
Outra forma de memorial era o retrato, a capturadas
feições de uma pessoa para a posteridade. O retrato
permaneceu popular por todo o império romano e era
comum erguer estátuas para celebrar a fundação de
prédios e edifícios públicos. Uma estátua em grandes
proporções de Plancia Magna foi erguida na cidade
romana de Perge (hoje na Turquia), em 121, para marcar
sua generosidade por ocasião da grande reforma dos
principais portões da cidade. A família de Magna era de
cidadãos romanos que tinham se mudado para Perge
algumas gerações antes. Eles ainda participavam do
senado em Roma, mas agora eram também membros da
elite de Perge. A escultura mostra Magna vestida com
tecido refinado, delicadamente pregueado, indicando sua
riqueza. Ela usa um diadema decorado com pequeninos
bustos de imperadores romanos, indicando que ela era
uma sacerdotisa do culto imperial, forma de religião
estatal em que o imperador era idolatrado como um
deus. A inscrição na estátua diz que Magna era uma filha
da cidade e que trabalhava para o bem de seu povo. Ela
era também a funcionária pública de mais alto nível e
figura poderosa em Perge, e a escultura enfatizava sua
importância para a cidade.
Infelizmente, muitas mulheres morriam no parto, de
forma prematura. Era a maior causa de morte de
mulheres jovens, em Roma, naquela época. Elas eram
homenageadas com esculturas nos túmulos que
beiravam as estradas fora dos muros da cidade. Nas
lápides dos comerciantes por todo o império, as mulheres
eram, muitas vezes, representadas em papéis ativos,
vendendo legumes, atuando como parteiras ou sentadas
ao lado de um baú de dinheiro para mostrar o
envolvimento direto com o comércio. Uma lápide do
nordeste da Inglaterra foi encomendada por Barates,
originalmente de Palmira (hoje na Síria), quando sua
esposa inglesa Regina, antes uma escrava, morreu aos
trinta anos. Sentada, a escultura ocupa um nicho, com os
braços cheios de pulseiras. Os dedos abrem uma caixa
pesada, usada para guardar joias e bens pessoais
valiosos. Ela e Barates eram obviamente ricos, conforme
atesta o conjunto dessa lápide. A inscrição na parte
inferior aparece em latim e aramaico, língua de Barates,
e diz “Regina, mulher libertada de Barates, infelizmente”.
Assim como os gregos, os romanos adoravam muitos
deuses, mas conforme o império se expandia, eles
entravam em contato com outros sistemas de crença. No
cemitério de Faiyum, no Egito (parte do império romano),
os corpos eram preservados segundo os costumes
egípcios, porém a máscara tradicional da múmia era
substituída por um retrato realista do morto, pintado
sobre painéis de madeira. Os retratos de Faiyum foram
pintados com encáustica (pigmento misturado com cera
de abelha), e registravam o cintilar dos brincos e colares
de ouro, as túnicas vermelhas e os cabelos
encaracolados com elegância. Neles, rostos pálidos
brilham com vida, pinceladas rápidas acrescentam um
colorido aos lábios e reflexos de âmbar aos olhos
amendoados. A importância dos ancestrais para as
famílias romanas pode ter contribuído para essa nova
tradição do retrato, que só se estabeleceu no Egito
depois que o país foi incorporado ao império romano em
30 a.C. Hoje, esses retratos são muito valorizados por
historiadores da arte por serem as únicas pinturas em
painéis de madeira da antiguidade que sobreviveram.
Na mesma época em que os retratos de Faiyum eram
pintados, em Teotihuacán (hoje Cidade do México), a
Pirâmide da Serpente Emplumada dava aos
mesoamericanos acesso direto ao seu próprio submundo.
Cabeças de serpente gigantescas adornavam as
fachadas da pirâmide, cada uma pesando mais de quatro
toneladas, pintadas com cores vibrantes para intimidar
qualquer um que se aproximasse. Há 2.000 anos,
Teotihuacán era a cidade mais importante da
Mesoamérica, com uma população que chegava a
150.000 habitantes. Mais tarde, os astecas a chamaram
de “O berço dos deuses” e faziam romarias às ruínas da
cidade. No entanto, os astecas não tiveram acesso ao
que jaz sob a Pirâmide da Serpente Emplumada porque a
entrada para o subterrâneo fora bloqueada por volta de
225. Essa passagem, redescoberta em 2003, é revestida
com milhares de oferendas para os deuses e se estende
por mais de cem metros. No final da passagem há uma
paisagem montanhosa em miniatura, com três diminutos
lagos cheios de mercúrio líquido. Há fragmentos de mica
incrustados no teto e nas paredes do túnel e, sob a luz
de tochas, a mica cintila, transformando a cobertura
numa noite estrelada. Seria essa experiência imersiva
uma evocação poderosa do mundo subterrâneo
interligado – como de fato era – a outros templos
importantes pela Avenida dos Mortos?
Os hieróglifos encontrados em Teotihuacán ainda não
foram decifrados, e muita informação sobre o povo e os
artistas que viviam ali permanece um mistério.
Fragmentos de pássaros estilizados e pinturas de animais
costumavam decorar casas e espaços públicos, e
esculturas enormes dos deuses enfeitavam as pirâmides.
A Grande deusa, encontrada perto da Pirâmide da Lua, é
a maior escultura descoberta na cidade. A deusa das
águas, esculpida em um bloco de pedra, tem rosto
simplificado, mas seus trajes são muito elaborados e
intricados, sugerindo que o tecido tem um valor
simbólico.
Na Mesoamérica e na América do Sul, a tecelagem era
um componente central da cultura artística. Os tecidos
de Paracas, no Peru, eram muito valorizados e
incrivelmente detalhados, levando centenas de horas
para serem produzidos. As mulheres bordavam cada
manta ou coberta fúnebre de forma colaborativa e ela
podia chegar a dez metros de comprimento. Hoje, tramas
e tecidos nem sempre são reconhecidos como arte, mas
para os peruanos daquela época eram objetos culturais
dos mais valorizados. Quando faleciam, os líderes
comunitários eram envolvidos em várias dessas mantas.
Quanto mais elaborada a padronagem, mais valorizadas
eram, porque muito tempo teria, de fato, sido investido
para homenagear o dirigente morto. O estilo “linear”,
caracterizado por linhas retas e poucas cores, abriu
caminho para o estilo de “cores sólidas” em que pontos
sobrepostos criavam áreas compactas de cor e contornos
curvos mais complexos. O desenho popular do xamã
voador parece bastante moderno aos nossos olhos com o
motivo do médico-bruxo repetido em diversas cores, em
queda livre por todo o material. Cada cabeça aparece
jogada para trás, os cabelos estirados, como se
estivessem sendo soprados com muita força. Alguns
desenhos de Paracas se tornaram intencionalmente
abstratos, precedendo o abstracionismo ocidental em
mais de um milênio.
Mais ao sul, em Nazca, no Peru, foi criado um conjunto
mais experimental de expressão artística, hoje sob o
nome de geoglifo. Por mais de 700 anos, linhas extensas
foram traçadas entre os rios Nazca e Ingenio. As rochas
escuras que cobriam a planície deram lugar a uma
camada bem mais clara, com cerca de 30 centímetros
abaixo da superfície. As linhas podiam ser criadas por
uma varredura das rochas escuras, e a falta de chuva na
área tornou possível que elas ficassem visíveis até os
dias de hoje. Algumas se estendem por vinte quilômetros
em linha reta, enquanto outras são curvas e assumem a
forma de animais e de pessoas com centenas de metros.
Elas só podem ser visualizadas de cima, numa vista
aérea. Então por que os habitantes de Nazca as fizeram?
Jamais poderiam vê-las por completo. Ou talvez tivessem
que vivenciá-las? Todos os desenhos foram feitos com
uma única linha, supõe-se, então, que havia um aspecto
ritualístico neles, uma rota a ser percorrida por um
grupo, como parte de um ritual da água ou da fertilidade.
Caminhos irradiando a partir de montes de pedras que se
espalhavam pela planície podem ter guiado as pessoas
para vários motivos: um lagarto, um macaco de rabo
espiralado, um beija-flor com uma envergadura maior do
que a de um Boeing 747.
Por fim, não temos como saber se as linhas de Nazca
tinham um propósito espiritual, mas a religião estava
cadavez mais no cerne da arte na Europa, Ásia e Oriente
Médio, conforme veremos no capítulo seguinte.
Capítulo 6 - A arte abarca a
religião
O ano é 330 e a capital do império romano é, mais uma
vez, um canteiro de obras. Mas não se trata de Roma, e
sim da cidade grega de Bizâncio, prestes a ser
renomeada de Constantinopla, pelo imperador mais
recente, Constantino. Ao assumir o poder, Constantino
decidiu mudar a capital mais para o leste para estar mais
próximo das lucrativas colônias orientais do império
romano, que se estendiam desde a Turquia e a Síria até o
Egito de nossos dias. Constantinopla será uma segunda
Roma – é o seu pensamento.
O projeto de construção que ele implementou viu
Bizâncio quadruplicar de tamanho. Agora, estátuas de
antigos imperadores, incluindo Augusto e César, ocupam
as novas avenidas ao lado de esculturas do próprio
Constantino, visto que ele se equipara aos maiores
líderes do passado. Outras esculturas mais antigas foram
maciçamente adquiridas, dentre elas a famosa Afrodite
de Praxíteles e a imensa escultura de Zeus, obra de
Fídias em Olímpia. Há templos dedicados aos deuses
romanos assim como às novas igrejas cristãs.
Constantino deu dinheiro à igreja e encomendou novos
exemplares da Bíblia para as congregações em
crescimento. Até pouco tempo antes, era ilegal
reverenciar o cristianismo no império romano, mas
Constantino reescreveu as leis e o legalizou.
*
O cristianismo era uma religião relativamente nova no
tempo de Constantino, com somente trezentos anos de
idade. A Bíblia apresentou um novo conjunto de histórias
a serem representadas pelos artistas, mas, em termos de
estilo, a arte sacra primitiva se parece com a pintura
clássica. O budismo e o hinduísmo eram religiões muito
mais antigas e, por volta do século IV, uma prática
artística complexa e sofisticada tinha se desenvolvido em
torno de cada sistema de crença na Índia. Viharas
(monastérios) e caityas (salões de adoração) budistas
foram esculpidos em paredões de rocha, como em
Ajanta, no nordeste de Mumbai. São trinta grutas em
Ajanta, ao redor de um penhasco em formato de
ferradura com cerca de meio quilômetro, acima do rio
Waghora. Elas foram esculpidas durante um período
superior a seiscentos anos, sendo que as grutas mais
complexas datam da segunda metade do século V.
Templos como esses, esculpidos na rocha e sem janelas,
são importantes porque foi somente no interior deles que
a pintura indiana desse período sobreviveu.
Muitas pinturas de Ajanta exibem várias encarnações
de nagas, semideuses associados à água e à chuva.
Nagas brotam no Jataka, conjunto de histórias populares
sobre as vidas anteriores de Buda. Uma inscrição na
gruta se refere ao lugar como tendo sido o lar de um rei
naga e é possível que essas pinturas tivessem um duplo
propósito, a saber, o de tranquilizar o naga ali residente
(para garantir a continuidade do suprimento de água) e o
de reverenciar Buda.
Na Gruta 17, uma escultura de Buda sentado ocupa a
parede mais distante. Ao seu redor, o teto e as paredes
pintadas fervilham de ação do Jakata. Elefantes brancos
e leões espreitam sobre canteiros floridos, enquanto
homens e mulheres se aglomeram dentro dos templos e
das casas e bodhisattvas (discípulos de Buda) oram pela
iluminação. Nessas pinturas, vê-se o uso intencional de
perspectiva e do efeito de luz e sombra para dar forma
aos corpos. Colunatas e portões evocam a arquitetura
grega e é possível que artistas gregos tenham
introduzido esse estilo de pintura na região. O halo por
trás da cabeça do Buda de pernas cruzadas visto nas
grutas é originário das esculturas gregas de Apolo, o deus
sol. (A arte sacra cristã também viria a empregar o halo
como símbolo de divindade.)
Por essa época, rotas de comércio bem estabelecidas
ligavam a Índia à China, e hoje são conhecidas, em seu
conjunto, como Rota da Seda. O budismo indiano se
espalhou ao longo dessas rotas, com templos construídos
em diversos pontos pelo caminho. Caravanas carregadas
trafegavam entre a China, no leste, a Índia, ao sul, e para
o império de Constantino, a oeste, levando ideias novas
sobre arte e tecnologia. Em qualquer rota feita pela
China, era preciso cruzar o deserto de Takla Makan, um
trajeto de dois meses. Do outro lado, ficava Dunhuang,
cidade com base militar que marcava o limite ocidental
do império chinês.
Na China, a pintura tem um passado longo e nobre,
mas a pintura religiosa não se propagou até o século IV.
Durante uma época em que o império chinês se
encontrava fragmentado e turbulento, o povo se voltou
para a religião, para o budismo, em particular. O exemplo
mais famoso de arte budista dessa época é o complexo
de cavernas de Mogao, em Dunhuang. São 492 grutas no
total, escavadas ao longo de um penhasco de um
quilômetro, e representam um ponto alto da pintura em
murais na China. A escavação das grutas era um trabalho
pesado, assim como sua decoração, e os artistas
moravam no local, como acontecia no Egito. De início, a
influência da arte indiana predominou e algumas grutas
exibem cenas do Jakata. A partir do século VI, novos
elementos começaram a aparecer, como paisagens
vistas de cima, vistas aéreas que marcaram um novo
desenvolvimento na pintura chinesa. Em outras grutas,
múltiplas representações da imagem de Buda revestiam
as paredes, como na Gruta 249, de onde o lugar herdou o
nome de “Grutas dos Mil Budas”.
Durante esse período, o cristianismo vinha se
espalhando pelo Oriente Médio, norte da África e Europa.
Um novo império bizantino era o legado de Constantino e
seu alicerce era o cristianismo. Menos de cem anos
depois que Constantino mudara a capital do império
romano para Constantinopla, o império se dividiu em
dois. A metade ocidental foi rapidamente tomada pela
invasão dos godos (germânicos), mas a metade oriental,
o império bizantino, floresceu. As novas igrejas
empregaram artistas para usar a técnica popular romana
do mosaico para revestir paredes e tetos imensos com
cenas bíblicas. Os artistas de Constantinopla se tornaram
internacionalmente renomados por seus mosaicos de
ouro e seu trabalho é encontrado em lugares distantes
como a Sicília e a Síria. Enquanto os artistas romanos
usavam pequenas tesselas de mármore para obter os
mosaicos, os bizantinos usavam vidro colorido, que
refletia muito mais e podia ser forrado com folha de ouro,
de forma que os mosaicos pareciam cintilar com luz
celestial.
No século VI, o imperador bizantino Justiniano lutou
para recuperar a metade ocidental do império romano.
Ravena tinha sido a capital dos ostrogodos, antes de sua
campanha bem-sucedida. Para selar sua vitória,
Justiniano instalou mosaicos esplendorosos dele e de sua
mulher Teodora na igreja de São Vital, recém-construída
em Ravena. O rico banqueiro Julius Argentarius financiara
a construção da igreja, repleta de mosaicos dourados de
Cristo e seus seguidores. Os mosaicos de Justiniano e
Teodora ocupavam o lugar principal, um de frente para o
outro, de cada lado do altar. Justiniano é representado
segurando uma pátena (travessa) contendo pão, o corpo
de Cristo, para a Missa. Doze homens se agrupam em
torno dele, como se fossem seus discípulos e ele, o filho
de Deus. À sua esquerda estão os bispos e à direita, os
soldados, representando seu comando sobre a igreja e o
Estado. Em frente a Justiniano, Teodora usa um adereço
de cabeça e veste os trajes oficiais. De pé, no jardim do
lado de fora da igreja, ela aguarda para entrar. Bem
próximo a ela, estão os três reis Magos (sábios), ligando-
a diretamente ao nascimento de Cristo. Ela segura um
cálice usado para o vinho, o sangue de Cristo, durante a
cerimônia. Os halos por trás de Justiniano e Teodora
reforçam seu direito divino para governar o império
bizantino em expansão. Esses mosaicos mostravam
como Justiniano era devoto e também afirmavam sua
nova autoridade sobre a região. São ainda uma das
primeiras representações do que se tornaria uma crençacentral no cristianismo ortodoxo oriental, a saber, a união
dos poderes religiosos e seculares em um único líder.
A igreja de São Vital foi concluída em 547, dez anos
depois que a imensa igreja de Justiniano, a Santa Sofia,
foi consagrada em Constantinopla (hoje Istambul). São
Vital é bem menor, uma igreja octogonal simples, hoje
famosa pelos mosaicos de Justiniano e Teodora. É
importante observar que esses mosaicos não são
imagens perfeitas, pois falta expressão nos rostos e eles
têm o corpo recoberto por mantos roxos, o tecido
disposto em colunas caneladas. Não se trata, aqui, de
uma falha: esses retratos foram criados para serem
simbólicos e não realistas. Justiniano nunca esteve em
Ravena, portanto esses mosaicos trabalhados
funcionavam como um procurador ou representante. Eles
são uma visão da presença imperial divina para durar
eternamente, assim como Deus e a igreja, e não para ser
uma representação temporária.
Por essa época, o cristianismo já havia se espalhado
para além do mundo bizantino e alcançado as bordas
congeladas da Europa. A arte sacra afastou-se da
obsessão clássica pelo corpo natural e a mensagem
religiosa passou a importar mais do que qualquer outra
imagem. No norte da Europa, animais, em vez de
pessoas, passaram a dominar a arte da região. O estilo
celta-germânico, conforme é hoje conhecido, se estendeu
desde a Escandinávia até a Alemanha e atravessou as
estepes russas. Os Evangelhos de Lindisfarne, concluídos
no norte da Inglaterra por volta de 700, são um exemplo
excelente de como esse estilo era usado pelos monges.
Eles trabalhavam nos mosteiros, em imensos scriptoria
(recintos de escrita), espalhando a palavra de Deus ao
criar cópias da Bíblia.
Nos títulos das páginas dos Evangelhos de Lindisfarne,
agrupamentos ornamentados de nós celtas e de animais
e pássaros estilizados preenchem grandes iluminuras de
letras capitulares douradas e envolvem cruzes cristãs.
Águias e flamingos, serpentes e dragões parecem
contorcer-se pelas páginas, dando vida à palavra de
Deus. O livro também exibe pinturas de página inteira de
cada um dos quatro santos evangelistas: Mateus, Marcos,
Lucas e João. As imagens flutuam, os corpos são
achatados e decorativos, os rostos repetitivos têm
grandes olhos amendoados. Por essa época, o corpo se
tornara puramente simbólico. São imagens que
representam os santos mais como uma ideia do que
como gente de verdade, e são reconhecidas
principalmente pelos objetos associados a elas, como
Marcos e seu leão alado. Isso facilitava a cópia das
imagens de um livro para outro.
Nessa época, a religião impulsionava a arte e, no
Oriente Médio, um novo líder religioso, Maomé, se
estabelecera havia pouco tempo. Os seguidores do
islamismo, sua nova religião, rapidamente se expandiram
pelos territórios orientais do império bizantino e
capturaram cidades importantes, como Jerusalém e
Alexandria. Sob o islamismo, as representações de
figuras religiosas como Maomé foram banidas, com o
objetivo de impedir que a imagem fosse adorada como
um ídolo, quando o louvor deveria ser reservado para Alá
(Deus). Entretanto, existiam muitas outras formas de
arte islâmica.
No império islâmico, em rápida expansão, construíam-
se mesquitas e, em sua capital, Damasco (na Síria de
hoje), a Grande Mesquita começou a ser erguida em 705.
Ela foi construída em dez anos somente, com o dinheiro
dos impostos sírios e mão de obra fornecida pelo Egito.
Textos extraídos do Alcorão foram registrados com
caligrafia nas paredes, inaugurando-se uma tradição
existente até hoje. Ainda que Alá e Maomé não
pudessem ser representados, a palavra de Alá podia e,
assim, a caligrafia floresceu como arte.
As inscrições caligráficas na Grande Mesquita já
desapareceram há muito tempo, mas os mosaicos
permanecem, uma visão fascinante das redes artísticas
do século VIII. As paredes do pátio central e da passagem
coberta exibem mosaicos de ouro aplicados por artistas
bizantinos. Neles, há paisagens urbanas despovoadas
que lembram a Roma e a Grécia antigas. Árvores altas
acompanham rios, em cujas margens se erguem palácios
sofisticados. Cidades em encostas íngremes se estendem
por sobre as árvores. Prédios verdes, azuis e dourados
são cuidadosamente combinados para preencher as
paredes da mesquita e tudo parece estar na mais
perfeita ordem.
Por que o califa al-Walid I, que encomendou a Grande
Mesquita, escolheu cidades ocidentais para decorar um
pátio por onde todos os fiéis passariam? Seria seu desejo
integrar o novo império religioso do Islã com impérios
mais antigos e estabelecidos como os sediados em Roma
e Constantinopla? Ou seria para demonstrar um domínio
sobre eles, já que nesse tempo o império islâmico se
estendia até o norte da África e a Espanha? Será que o
desenho poderia ser imaginado como um mapa, com o
mundo distribuído pelas paredes do pátio e a mesquita
bem no centro? Os visitantes da mesquita povoariam as
cenas assim como se estivessem povoando o mundo
graças a seu império em expansão. Qualquer que fosse a
motivação para aqueles mosaicos, al-Walid certamente
desejava que a mesquita fosse impactante. Em um
comunicado ao povo, ele exclamou: “Habitantes de
Damasco, quatro coisas lhes oferecem uma
superioridade distinta sobre o resto do mundo: o clima, a
água, os frutos e os banhos. A essas eu gostaria de
acrescentar uma quinta: esta mesquita”.
Capítulo 7 - Nuvens de
tempestade à vista
Estamos em 726. Já está escuro e é hora de dar início à
cerimônia. O rei maia, Escudo Jaguar II, está prestes a
adentrar um novo templo e dedicá-lo à esposa favorita, a
senhora K’ab’al Xook. Trata-se do primeiro templo
construído em Yaxchilan (no México de hoje) em 150
anos. A esperança de Escudo Jaguar é que ele traga vida
nova para a região e reforce seu poder. Ele já governa há
45 anos e K’ab’al Xook tem sido sua leal apoiadora,
acalmando os deuses quando se faz necessário
assegurar a sobrevivência de seu reino e seu povo. Os
deuses precisam de sangue para viver, daí o sacrifício
regular de prisioneiros. Por vezes, só o sangue real é
aceito. K’ab’al Xook participou de um ritual de sangria,
atravessando a língua com uma corda farpada com cacos
de obsidiana (vidro vulcânico). Esse ritual hoje está
registrado em pedra, esculpida em três painéis
elaborados de calcário, dispostos acima das portas do
templo.
Os escultores levaram três anos para concluir os
painéis, pintando-os com tons vibrantes de verde,
vermelho e amarelo. Eles executaram um trabalho
excepcional, captando todos os detalhes do manto de
K’ab’al Xook ricamente bordado, seu medalhão do deus-
sol, e até o sangue respingando sobre o rosto. Ela não
expressa nenhum tipo de emoção ao cumprir seu dever
real.
*
Os painéis desse templo, conhecidos hoje como
Estrutura 23, estão no British Museum em Londres e no
Museo Nacional de Antropologia, na cidade do México.
Sua pintura descascou e eles não marcam mais a
entrada de um templo sagrado, ainda que conservem um
poder intenso. No primeiro painel, o rei está de pé,
usando um cocar rebuscado e joias, e segura uma tocha
sobre K’ab’al Xook para iluminar a cena. Ela se ajoelha e
passa a corda farpada pela língua estendida. No painel
seguinte, ela está sentada no chão, com a cabeça jogada
para trás em um transe, segurando o cesto de papel que
absorveu o sangue de sua língua. (Era muito sangue: há
outro cesto no chão, ali perto.) Do sangue, brota uma
serpente de duas cabeças, uma das pontas vomitando o
rei da tempestade Chac e na outra um antepassado
ilustre, armado para a batalha.
Os hieróglifos maias registrados em cada painel ligam
esse ancestral a Escudo Jaguar II, confirmando seu
sangue real e fornecendo as datas de seu reinado e
desse evento de sangria. No terceiro painel, vemos
K’ab’al Xook entregando ao marido um escudo e uma
máscara de jaguar, os atributos de seu nome e com os
quais ele impõe seu direito de governar.
Essas esculturas extremamente elaboradase
detalhadas influenciaram os murais da cidade vizinha,
Bonampak, o último florescimento cultural da civilização
maia. As pinturas foram concluídas 65 anos mais tarde e
se estendem pelas paredes e tetos de três cômodos de
um templo modesto. Elas são dedicadas a Escudo Jaguar
IV de Yaxchilan, e colocam Bonampak a serviço do rei
ancestral da região. As pinturas esbanjam no uso de uma
tinta azul luminosa e cara, feita de anil (uma tintura
vegetal) e de azurita moída (um mineral caro), e muitos
dos olhos pintados foram originalmente incrustados com
pedras preciosas.
Nas paredes da primeira sala, acontece uma festa.
Maias abastados, vestindo túnicas brancas, se enfileiram
para levar presentes para a família real, enquanto três
jovens com fantasias emplumadas dançam ao som de
tambores de casco de tartaruga. Na segunda sala, eclode
uma batalha e a luta preenche o cômodo. Na parede em
volta da entrada, fica claro quem venceu: os guerreiros
maias vencedores, usando mantos de pele de leopardo e
cocares, de pé no alto de um lance de escada, enquanto
seus prisioneiros estão caídos ou com sangue escorrendo
pelos dedos, depois de terem todas as unhas arrancadas.
A sala 3 parece ser um retorno à festa, com os três
jovens exibindo mais uma vez seus trajes fantásticos,
mas perto do teto uma mulher da corte está às voltas
com uma sangria, com uma corda atravessada na língua,
assim como K’ab’al Xook, talvez para selar a vitória e
pagar um tributo aos deuses. Não há luz natural nessas
salas e os vãos das portas eram, a princípio, cobertos por
cortinas. Na escuridão, você sentiria essas figuras se
aglomerarem à sua volta, enquanto se tornava uma
delas: pagando tributos, lutando e prestando
homenagem aos deuses.
O fim da vida em Bonampak deve ter sido bem rápido.
As pinturas datam de 791, mas um quarto dos hieróglifos
permaneceu inacabado, sugerindo que a obra foi
interrompida de repente. É como se a guerra seguinte
não os tivesse favorecido e o lugar tivesse sido
abandonado e coberto pela floresta tropical por mais de
mil anos, até ser redescoberto em 1946.
Civilizações diferentes adotaram sistemas de crenças
e religiões diferentes, mas todas se voltaram para a arte
como meio de glorificar seu deus ou deuses. Na Índia e
no sudeste asiático vários deuses eram adorados pelos
hindus. A construção de templos nas rochas prosseguiu,
e em Ellora, em Maharashtra, na Índia, as cavernas
foram dedicadas a diversas divindades hindus, budistas e
jainistas. Em Ellora, a caverna hindu mais famosa de
forma alguma se parece com uma caverna. Ela foi
cortada na rocha, tanto interna quanto externamente e,
assim, se destaca do perfil rochoso mais como um
templo construído de pedra do que como tendo sido
esculpido nela. O templo de Kailasa, obra iniciada em
775, tem mais de trinta metros de altura e é dedicado a
Shiva, uma das três divindades hindus (ao lado de Vishnu
e Brahma). Os imensos relevos narrativos relatam os
ciclos históricos épicos do Mahabharata e de Ramaiana.
Shiva se apresenta com diferentes disfarces, destruindo
três cidades em um grande relevo na porta de acesso,
pisando em um demônio na entrada e aparecendo como
um asceta, que se abstém dos prazeres mundanos, no
santuário central. As diferentes aparências de Shiva
enfatizam sua importância (exatamente como os 59
Trajanos, na coluna do imperador em Roma). No passado,
todas as esculturas e os relevos no templo de Kailasa
teriam sido pintados, uma festa arrebatadora para os
olhos dos devotos.
As religiões da Índia se espalharam pelo sudeste
asiático por meio das rotas comerciais e propiciaram a
construção de imensos complexos de templos. Perto de
Yogyakarta, no centro de Java, fica Borobodur, o maior
complexo religioso na Indonésia. Construído por volta de
800, ele constituiu um relato visual dos ensinamentos do
budismo mahayana, além de ser uma reafirmação do
poder da família budista governante, os Shailendras. A
base quadrada mede 123 metros em cada lado e foi
construída em três camadas para representar as três
divisões budistas do universo no caminho para o nirvana.
Esculturas em relevo se estendem por dois quilômetros e
meio em torno dos oito níveis de terraços, que retratam a
vida de Buda e suas encarnações anteriores. Mais de 400
esculturas de Buda sentado estão expostas em nichos ou
em postura de oração, olhando ao longe a planície de
Kedu abaixo, enquanto outras esculturas adornam os
níveis mais elevados, escondidos por estupas (coberturas
em formato de sino para objetos religiosos).
As figuras esculpidas por toda Borobodur e o templo
de Kailasa reforçam e exaltam a crença religiosa.
Entretanto, em Constantinopla, crescia uma ruptura
entre aqueles que acreditavam que a arte figurativa
cristã tinha um papel importante a desempenhar, dando
vida à Bíblia e seus personagens, e aqueles que não
acreditavam em “ícones”, nas pinturas representativas
de Cristo e da Virgem Maria. Esses dois grupos eram
conhecidos como os iconófilos e os iconoclastas. Os
iconófilos eram amantes da arte, liderados por monges,
adoradores de ícones (imagens). Os iconoclastas
rejeitavam os ícones e eram liderados por sucessivos
imperadores bizantinos. No século VIII, temeroso de que
os ídolos estivessem sendo venerados com a mesma
importância que Deus, Leão III decretou a proibição das
imagens religiosas em todo o império bizantino. Os
iconófilos discordaram. Segundo eles, essas imagens
permitiam uma compreensão mais profunda de Deus,
seriam um canal ou um vínculo entre Deus e o povo.
Esses argumentos a favor e contra as imagens religiosas
se chocaram por mais de um século. Ao longo desse
período, o iconoclasmo destruiu muitos ícones e obras de
arte religiosas, com imagens de Cristo em mosaico sendo
arrancadas das paredes e substituídas por cruzes
simples. Em 843, os iconófilos finalmente acabaram
vencendo a contenda e o culto de imagens foi
novamente permitido no império bizantino.
Em Roma, o papa não aderiu a essa briga em relação
às imagens. Ele nomeou um novo imperador, Carlos
Magno, para comandar o Sacro Império Romano-
Germânico, cortando ainda mais os laços com
Constantinopla e o império bizantino. Carlos Magno
governava a partir de Aachen, hoje na fronteira ocidental
da Alemanha. Nessa região, as imagens religiosas não
eram perseguidas pelo iconoclasmo bizantino, pelo
contrário. Esculturas de Cristo na cruz, em tamanho
natural, eram exibidas acima dos altares. O Crucifixo
Gero, de 960-70 aproximadamente, serve de exemplo. É
um crucifixo de carvalho encomendado pelo arcebispo
Gero para a catedral de Colônia. Cristo está pregado
numa cruz simples dourada, com os braços estendidos e
presos a uma altura superior à dos ombros, seu corpo
pende para baixo, os joelhos fraquejam. Até aquela
altura, esculturas da crucificação mostravam Cristo
sorridente ao encarar a morte, mas este Cristo sofre:
está cabisbaixo, com os olhos fechados e o queixo caído.
As veias dos braços estão saltadas pelo esforço e o
estômago está projetado. Ainda que a expressão física
não seja tão natural como a de uma escultura grega, por
exemplo, podemos sentir cada centímetro da dor desse
homem. Ele é divino, e o halo nos transmite isso, mas
sofre como um humano. O Crucifixo Gero é uma das
primeiras imagens esculturais totalmente torneadas
nessa escala desde a época clássica tardia, e assinalou o
início de uma nova era para a escultura expressiva nas
igrejas.
Por essa época, outras culturas também criavam arte
centrada na morte e na ressurreição. O Great Serpent
Mound [Grande Monte da Serpente] no atual estado de
Ohio, nos Estados Unidos, é uma gigantesca elevação de
terra em formato de serpente. Ele foi o pano de fundo
para rituais funerários de nativos americanos e local de
encontro para gente vindo de muito longe se reunir,
socializar e negociar. Em Bura, no vale do rio Níger, na
África, mulheres ceramistas criaram lápides que
sobreviveram ao primeiro e segundomilênios. Mais de
cem urnas funerárias foram encontradas, com figuras de
guerreiros a cavalo e cabeças volumosas com fendas no
lugar de olhos, com rostos e frontes amedrontadas. São
figuras simbólicas, nada naturais, algo parecido com o
que vimos também nos manuscritos com iluminuras e
nos vitrais das igrejas cristãs medievais.
Ainda que, nessa época, muito da arte se originasse
em crenças religiosas ou as reverenciasse, exemplares
refinados da arte secular (não religiosa) conseguiram
sobreviver. O marfim era usado artisticamente havia
séculos à época em que os artistas da corte de Al-
Andalus (a Espanha islâmica) começaram a trabalhá-lo,
produzindo presentes reais sofisticados no século X. Os
artistas de Al-Andalus usavam o marfim das presas de
elefantes africanos, importado de Moçambique e do
Zimbábue. As preciosas presas eram transportadas por
via marítima, costeando a África Ocidental, e eram
desembarcadas no Egito, onde eram negociadas no
Cairo. O material forte e liso era esculpido, produzindo
urnas, porta-joias e estojos para perfumes.
Por mais que muitos dos objetos luxuosos de marfim
criados nessa época se classifiquem mais na categoria
das artes decorativas do que da própria “arte”, a
exuberante Pyxis de al-Mughira mostra o nível da
habilidade que os escultores de relevo em marfim
podiam alcançar. Esculpida em 968, a Pyxis é uma caixa
cilíndrica com tampa em forma de domo, feita para
guardar frascos de perfume de prata. Foi um presente
para al-Mughira, filho do califa (governante), ao
completar dezoito anos. Ela foi esculpida na capital,
Córdoba, e é extremamente trabalhada, coberta de
pequenas figuras e animais, pássaros e folhagens, uma
superfície riquíssima em detalhes. O marfim foi
cuidadosamente trabalhado com uma broca para que as
pequenas figuras se destaquem quase por inteiro. No
medalhão central, dois homens a cavalo colhem tâmaras
de uma tamareira, para lembrar o dono adolescente de
seu lar Omíada ancestral, na Síria dos dias atuais.
Em caixas como a Pyxis de al-Mughira predominavam
cenas do “ciclo principesco”, uma história sobre o lazer e
o entretenimento na corte, usada pela primeira vez na
arte islâmica durante o califado Omíada, quando a
dinastia Omíada governava o mundo islâmico. Por volta
do século X, o califado Omíada era uma lembrança
longínqua, pois a dinastia Abássida assumira o controle
em 750. Somente em Al-Andalus a dinastia Omíada se
fixou no poder. No próximo capítulo, veremos o “ciclo
principesco” novamente, mas numa escala muito maior,
quando a arte é colocada para trabalhar a serviço de reis
e conquistadores.
Capítulo 8 - A arte da
propaganda
O ano é 1077 e o bispo Odo prepara a consagração de
sua nova catedral em Bayeux, no norte da França. Para a
ocasião, ele encomendou uma tapeçaria, ora em
exposição, com seus mais de setenta metros, quase a
extensão total da catedral. Onze anos antes, Odo lutara
ao lado do meio-irmão Guilherme, na batalha de
Hastings. A tapeçaria conta a narrativa épica da batalha
de 1066, a luta entre Guilherme, duque da Normandia, e
o rei inglês Haroldo, pelo direito de governar a Inglaterra.
Quando os franceses venceram, a recompensa de Odo foi
o condado inglês de Kent. Ele empregou os recursos do
condado para ajudar a financiar a catedral e fez com que
as freiras de Kent fizessem o bordado. Dez cores
diferentes foram usadas por meio do tingimento dos fios,
com raízes de garança para o vermelho e de ísatis, ou
pastel, para o azul.
Odo percorre a extensão da tapeçaria, lendo o texto
em latim que narra o registro normando da traição de
Haroldo e seu castigo pelas mãos de Guilherme o
Conquistador. Odo observa os homens cortando árvores
para construir a frota de Guilherme e a forma como tiram
os sapatos e as calças justas para não os molhar ao
subirem nos barcos. Ele os vê carregando as cotas de
malha para os barcos na França e, depois, os soldados as
usando, já a cavalo na Inglaterra, partindo para a
batalha. Cada ponto é cuidadosamente arrematado para
acompanhar o contorno dos corpos. Tudo está ali: a
forma como Haroldo morreu guerreando, com uma flecha
atravessada no olho; a forma como os normandos
ornavam os barcos com carrancas vikings para mostrar
sua ancestralidade; a quantidade de mortos dos dois
lados, que escapam da tapeçaria maior para os frisos
decorativos nas bordas do tecido. São mais de 600
homens e 200 cavalos. Conforme Odo caminha ao longo
do bordado, a batalha é deflagrada, com lanças, espadas
e flechas se cruzando, cavalos caindo, soldados
morrendo. Todos se movem em sentido diagonal para dar
ao bordado um ritmo mais real, e Odo sente como se
estivesse, de novo, no campo de batalha.
*
A Tapeçaria de Bayeux, o nome como hoje se conhece
esse bordado, é um poderoso instrumento de
propaganda. Ela reconta a batalha direta e
exclusivamente pelos olhos normandos. Propaganda
significa que existe uma tendenciosidade nas
informações que recebemos, em geral, de natureza
política. Nesse caso, a batalha foi bordada de forma
favorável aos invasores normandos. É também uma obra-
prima de informação e construção artística medieval e
uma rara sobrevivente secular do século XI.
Outro exemplo de arte secular ou laica, desta vez
originária do Japão, também mostra como as restrições
impostas aos artistas poderiam dar forma ao trabalho
final. O conto de Genji, escrito por volta de 1010 por
Murasaki Shikibu, é tido como o primeiro romance do
mundo. Seus 54 capítulos tratam da vida cotidiana e
romanesca na corte japonesa e foi bastante reproduzido.
A mais antiga versão ilustrada conhecida reuniu vinte
pergaminhos e foi concluída em 1130. Hoje restam dela
apenas alguns fragmentos. A caligrafia era escrita por
homens, mas a pintura cabia às damas da corte que
tinham influência significativa sobre a vida cultural no
Japão durante o período Heian. Não há ação nas pinturas,
uma vez que, nessa época, a corte desaprovava a
expressão de emoções. Em vez disso, os personagens
parecem preparados para o próximo passo da história,
com apenas indícios mínimos – a cor dos trajes, a
colocação de biombos numa sala –, fornecendo pistas ao
leitor quanto aos seus sentimentos.
Os pergaminhos eram obras de arte intimistas e
pessoais. Deviam ser contemplados, sem pressa, sobre
uma mesa, sendo um único pergaminho parcialmente
desenrolado à frente. À medida que a narrativa se
desenvolvia, a parte do pergaminho à direita deveria ser
enrolada e a da esquerda desenrolada um pouco mais,
prosseguindo a história conforme o desdobramento da
cena. As pinturas em O conto de Genji mostram o mundo
visto de cima, como se estivéssemos olhando para baixo,
vendo tudo acontecer, num estilo que remete à
abordagem inovadora à pintura de paisagens vista nas
cavernas de Mogao, na China do século VI. A arte
japonesa foi extremamente influenciada pela pintura
chinesa, ainda que certos períodos de sua história, como
o período Heian, expressem uma independência de estilo
bem maior. O conto de Genji é repleto de cores,
contrastando com as paisagens monocromáticas
populares na China dessa época. Além disso, a pintura
japonesa era trabalhosa, com vários estágios de
aplicação de cor, com contornos reaplicados e objetos
destacados com folhas de ouro.
Como já vimos, a arte também podia ajudar as
religiões a afirmar suas ideologias ou conjunto de
crenças. Desde o fim definitivo do iconoclasmo, os ícones
ou imagens tinham reafirmado seu lugar como parte
integrante do cristianismo oriental. Acreditava-se que os
ícones originavam-se de antigos retratos de Cristo e da
Virgem Maria feitos pelos próprios evangelistas. Desde
então, eles vinham sendo repetidamente copiados, com
o emprego de métodos tradicionais, cada versão
atemporal supostamente recriando a verdadeira e
original. Com o passar do tempo, isso levou à estilização
das figuras e ao achatamento dos corpos, parecido com
os santos dos Evangelhos de Lindisfarne. Panos de fundo
emfolhas de ouro, semelhantes aos usados nos
mosaicos religiosos, reduziam ainda mais qualquer noção
de naturalismo, fazendo os ícones cintilar com luz divinal.
Eles também asseguravam que as figuras sagradas
ficassem à mostra, acessíveis aos frequentadores da
igreja, que podiam tocá-las e beijá-las como forma de se
conectar com o Cristo ou a Virgem Maria. Os ícones
também podiam ser carregados em procissões pelas ruas
para angariar fundos para a igreja.
A Virgem de Vladimir, datada de 1131, é a pintura
icônica mais famosa que existe. É uma representação da
Virgem e o Menino Jesus, e os fiéis acreditam que ela é
baseada na versão original de São Lucas. Os ícones mais
antigos costumavam ser pintados com encáustica, como
os retratos funerários romanos, mas a Virgem de
Vladimir foi pintada com têmpera. A têmpera é obtida
misturando-se pigmento com gema de ovo para criar
uma tinta de secagem rápida. Ela era usada junto com a
encáustica, de secagem mais lenta, na época clássica,
mas nos tempos de então quase todos os painéis eram
pintados com têmpera.
Não faz sentido que o artista desconhecido da Virgem
de Vladimir estivesse tentando criar uma imagem realista
de uma mulher com o filho. O Cristo tem uma cabeça
desproporcionalmente pequena e o corpo em bloco, e
ambos usam uma roupagem extremamente estilizada.
Mesmo assim, há uma ternura entre eles, as maçãs do
rosto se tocam, e a expressão tristonha da Virgem é um
prenúncio do que está por vir para seu único filho. Esse
ícone funciona como um fio condutor dessa história, um
ponto de entrada, e era venerado por essa razão.
A pintura foi feita em Constantinopla e oferecida à
cidade de Kiev, então na Rússia, um presente tanto
religioso quanto político para selar a escolha da Rússia
pelo Cristianismo Ortodoxo Oriental como religião estatal.
O ícone logo foi transferido para a cidade de Vladimir e
objeto de muitas cópias posteriores. Os artistas
bizantinos também foram contratados pela Santa Sofia, a
catedral de Kiev, para criar mosaicos, assim como
trabalharam também na basílica de Torcello, em Veneza.
Arte, religião e poder se reuniam na excelência desses
artistas e nas ambições da Igreja Ortodoxa que, por fim e
decididamente, se separou do papa e da Igreja Católica
no “Grande Cisma” em 1053.
Enquanto o cristianismo ortodoxo se afirmava na
Rússia, o islamismo ampliou seu alcance por todo o sul
do Mediterrâneo, com cidades islâmicas importantes
estabelecidas no Egito, no Magreb (norte da África), na
Espanha e na Sicília. Mas os normandos lutaram para
retomar a Sicília e o sul da Itália do jugo islâmico. Eles
não rejeitaram as tradições islâmicas, mas as
absorveram com sua cultura de inclusão. A Capela
Palatina, construída pelo rei normando Rogério II, em
Palermo, na Sicília, é um exemplo marcante disso. A
catedral começou a ser construída em 1132 e a obra
levou somente oito anos. Mosaicos de ouro de São João e
dos pais fundadores da igreja foram acrescentados às
paredes enquanto mil pinturas de Rogério e sua família
cobriam o teto. O que torna esse prédio surpreendente e
único é que o teto é feito de muqarnas islâmicas, ou seja,
formas e facetas de madeira em formato de favo de mel.
É o teto islâmico mais complexo remanescente desse
período. Em uma catedral dedicada a Cristo, e
alardeando o poder dos normandos, Rogério II escolheu
fundir a arquitetura italiana com os luxuosos mosaicos
bizantinos e arrematou com um tour de force islâmico.
O teto é muito elevado. Se usarmos binóculos
possantes só distinguiremos pinturas isoladas de Rogério
e sua corte jogando xadrez ou caçando, em duelos com
lanças e lutando, participando de danças e procissões. As
figuras pintadas que recobrem o teto de madeira se
parecem com aquelas dos vitrais cristãos e das
iluminuras dos manuscritos, e ainda com a arte secular
islâmica, com grandes olhos amendoados e corpos
estilizados. As diversas atividades realizadas têm origem
no “ciclo principesco” islâmico, como visto na Pyxis de al-
Mughira, na Espanha. Rogério foi astuto ao empregar
esse tema islâmico bem conhecido em sua catedral. O
teto pintado existe para mostrar a integração de
diferentes culturas na Sicília normanda, onde o
cristianismo era a religião oficial, mas o árabe era o
idioma da corte. A fusão de temas e estilos sugere que
Rogério integrou todas as culturas que, agora, exaltam
seu direito e poder para governar. Os mosaicos cristãos
sustentam o teto islâmico, como se o cristianismo fosse
forte o suficiente para reconhecer e apoiar a coexistência
com o islamismo.
Figuras religiosas isoladas também empregaram a arte
para expressar ideias novas e persuasivas. Monges e
freiras cristãs copiavam infindáveis manuscritos bíblicos
com iluminuras para igrejas, catedrais e bibliotecas de
patronos ricos. Por volta do século XII, produziam-se
livros com iluminuras que expressavam ideias religiosas
entrelaçadas com novos pensamentos sobre o cosmos e
o misticismo. Um exemplo marcante é Scivias, de
Hildegard de Bingen. Concluído em 1152, é um relato
ilustrado de suas 26 visões. Hildegard era uma monja
beneditina influente do convento de Rupertsberg, na
Alemanha, fundado por ela. Hildegard descendia de
família nobre e era muito bem relacionada. Ela se
correspondia com o rei da Inglaterra e a imperatriz da
Grécia. O próprio papa afirmara que as visões que ela
tivera desde a infância eram genuínas e divinas. Em
Scivias, ela concebeu o cristianismo por meio do
misticismo, explorando o poder do feminino em suas
pinturas de mulheres aladas gigantescas representando
Eclésia, a igreja-mãe, e Sinagoga, a sinagoga. Ela se via
como uma profetisa, comunicando-se através de suas
visões.
As pinturas de Hildegard não seguiam o método
egípcio de pintura da figura humana, numa junção de
elementos-padrão (um olho, um pé) com base em um
conhecimento prévio da forma humana. Tampouco
seguiam os gregos, que estudavam a natureza de perto,
pintando cuidadosamente o que era visto. Em vez disso,
ela pintava o que sentia e vivenciava, criando uma
versão do reino de Deus sobrenatural, sem fundamento
no mundo concreto. As formas não tinham de ser
realistas, contanto que transmitissem o sentimento que
ela desejava expressar. Em Scivias, Hildegard
representou suas visões sobrenaturais descendo e
penetrando em sua mente como tentáculos de fogo
vindos do céu. Pintou-se com sua placa de cera, sentada
na igreja. As visões a penetravam e ela as desenhava
instintivamente, ainda que guiada pela mão de Deus. Seu
escriba, Volmar, está perto dela, anotando suas palavras
para compor o texto correspondente.
Ainda existem 35 versões de Scivias e Hildegard foi
uma força poderosa dentro da igreja, escrevendo e
ilustrando diversos livros e mais de sessenta hinos. A
obra Scivias foi copiada e distribuída, mas o acesso a ela
foi necessariamente limitado, pois cada edição era
trabalhosa, toda copiada à mão. Na outra ponta da
escala estavam as novas catedrais do papa, gigantescos
marcos públicos do poder firmados pela Igreja Católica.
Capítulo 9 - Canteiros, moai e
materiais
É raiar do dia no norte da França, no ano 1219. Vinte
canteiros se reúnem em seu alojamento, um abrigo
improvisado onde comem e conservam uma fogueira
acesa para mantê-los aquecidos antes de iniciarem os
trabalhos. Eles são parte de uma equipe de 200 homens
vigorosos que trabalham na obra da catedral de Chartres.
É um trabalho de reconstrução no novo estilo, visto pela
primeira vez na igreja do abade Suger, em Saint-Denis, a
80 quilômetros dali. Foram mais de 25 anos de obra e ela
está quase acabada. No interior da catedral, diferentes
equipes instalam janelas imensas ao longo da nave. Eles
criam imagens com pedaços de vidro multicolorido, o
azul para o reino celeste de Deus e o vermelho para o
sangue de Cristo. A luz que se insinua pelas janelas
concluídas dá um tom arroxeado ao interior e ilumina as
histórias representadas, como a vida dos santos, deCristo, da Virgem Maria. Outros operários pintam as
paredes internas de amarelo-girassol, bem vibrante,
enchendo a catedral de luminosidade apesar do dia
nublado.
Os canteiros trabalham no portal norte, talhando
esculturas para decorar a entrada ornamentada. No total,
serão 1.800 esculturas na catedral, algumas tão elevadas
que seus autores não conseguem mais avistá-las. Essas
não foram esculpidas para olhos humanos, mas para
Deus, e contribuem para o prédio como um todo, como
uma afirmação do poder e da presença do cristianismo.
Os criadores das esculturas para a catedral foram
homenageados em uma das janelas. Na parte inferior da
janela em honra a São Chéron, vemos os canteiros, com
martelo e cinzel na mão, cortando a pedra e trabalhando
nas esculturas.
*
Se a arte sacra do século XII facilitava a transmissão
do poder simbólico e sobrenatural de Deus e seu
conjunto de santos e anjos, então o século XIII
presenciou um retorno sistemático à representação da
carne e do sangue, recolocando as figuras de volta ao
mundo real. Deus não deveria mais ser temido, mas
compreendido. A catedral de Chartres é um dos melhores
exemplos do novo estilo gótico, um estilo que via a
escultura, o vitral e a arquitetura, todos trabalhando
juntos para criar um edifício único e destacado para
celebrar a glória de Deus. Essas imensas igrejas cheias
de luz trocavam a arquitetura pesada de pedra de seus
antecessores românicos em favor de paredes de vidro e
arcos pontiagudos que direcionavam os olhos para o céu.
A escultura gótica se espalhou pela Europa na primeira
metade do século XIII, ocupando catedrais góticas ainda
mais altas. Esculturas de santos e profetas cada vez
maiores ganharam vida à medida que os canteiros as
esculpiam cada vez mais livres dos pilares ou dos painéis
que as sustentavam, conforme aparecem nos portais de
Chartres.
Nem todas as esculturas de Chartres eram de figuras
divinas. Em torno da borda externa do portal norte, há
doze esculturas de mulheres. Seis delas, enfileiradas em
cada lado do arco de entrada, mostram mulheres lendo
livros de oração e lavando, penteando e enrolando lã. As
esculturas das mulheres trabalhando são especialmente
vigorosas, pois é possível perceber o esforço necessário
para transformar a lã em fios. Uma mulher, sentada com
as pernas separadas para se equilibrar, se empenha para
passar os pentes pela lã, o corpo se contorcendo com o
esforço. Essas mulheres representam o rebanho de Deus
e estão ali trabalhando com devoção silenciosa. Parecem
“saltar para fora” da arquitetura, desafiando a gravidade
conforme se curvam em volta do arco pontiagudo da
entrada. Não conhecemos o autor dessas esculturas
porque a produção da arte gótica raramente se referia a
um único indivíduo e era executada por um imenso
contingente anônimo.
Chartres é uma obra-prima do estilo gótico,
conservando grande parte de suas esculturas e vitrais
originais. Era fundamental que os artistas contassem
com os melhores materiais para trabalhar. Na Europa, a
arte estava diretamente a serviço de Deus e os materiais
mais refinados eram trazidos para criá-la: o mármore,
das pedreiras italianas, o marfim e o ouro, do sul e da
África Ocidental. O ouro era usado havia muito tempo na
Europa e no Oriente Médio nos mosaicos bizantinos e
penetrou na Europa por meio dos mercados de troca no
Egito, abastecidos por caravanas de camelos que
cruzavam o Saara ou pelo mar, vindo da Tanzânia e de
Moçambique. O ouro era negociado pelas nações
africanas em troca de artigos de consumo básico (sal) e
de luxo (contas de vidro), mas também era usado por
elas nas próprias criações artísticas.
Neste capítulo, veremos como as diferentes
sociedades forneciam internamente e importavam
materiais para seus artistas. O ouro era valorizado no sul
da África, mas era negociado no oeste africano pelo
cobre, metal mais robusto. Em Rapa Nui, na Polinésia,
uma pedra de coloração diferente era extraída em dois
locais em pontos opostos da ilha para criar figuras
totêmicas colossais. No Oriente Médio, ouro e pigmentos
caros eram usados nas pinturas dos manuscritos,
enquanto na China menos era mais, e o branco da folha
usada pelo artista era tão importante quanto o desenho
feito sobre ela.
Mapungubwe, perto da atual fronteira entre a África do
Sul, o Zimbábue e Botsuana, era uma cidade
extremamente rica no século XIII. À época em que
Chartres era erguida em calcário, os artistas de
Mapungubwe usavam ouro para criar esculturas de
animais muito valorizados como o boi, o gato selvagem e
o rinoceronte. Cada animal consiste em um núcleo de
madeira revestido com folhas de ouro marteladas e
pregadas. As esculturas eram enterradas nos túmulos
reais junto a coroas e cetros de ouro, expressando o
poder e a riqueza do governante.
Em Ifé, na África Ocidental, a capital espiritual do povo
iorubá e hoje na Nigéria, os artistas preferiam trabalhar
com barro, latão e cobre. Eles usavam as rotas de
comércio que cruzavam o Saara para vender o ouro
obtido localmente em troca de metais mais fortes do
norte da África para suas esculturas. Supõe-se que o líder
espiritual da cidade, Ooni, tenha sido retratado em
muitas das cabeças de latão datadas mais ou menos da
mesma época dos animais de Mapungubwe. Várias
dessas cabeças têm cicatrizes ritualistas, com linhas
verticais estreitas seguindo o contorno da fronte, dos
olhos e das maçãs do rosto, até a ponte nasal e sob os
lábios. As linhas direcionam nossos olhos para baixo até
a boca do Ooni, chamando a atenção para os lábios
simétricos e carnudos. O olhar do Ooni é sereno e firme.
Uma coroa ornamentada, a princípio pintada de
vermelho, repousa bem no alto da fronte de uma
escultura. Outros exemplares exibem fileiras de orifícios
em volta da raiz dos cabelos sugerindo talvez o
acréscimo de contas representando cabelos. Algumas
cabeças apresentam orifícios em intervalos regulares
contornando a boca e o queixo, talvez para indicar uma
barba frisada ou um véu cobrindo a boca do líder divino.
A milhares de quilômetros da África Ocidental, em
uma ilha polinésia pequena e distante chamada Rapa Nui
(também conhecida como ilha de Páscoa), outra cultura
produzia esculturas de ancestrais e líderes importantes.
Não eram esculturas delicadas, moldadas em metal, mas
imensas figuras em blocos de pedra, chamadas moai,
extraídas de pedreiras vulcânicas e “encaminhadas”
pelas encostas até os vários destinos litorâneos com o
uso de cordas para levá-las de um lado para o outro. As
figuras de pedra gigantescas, algumas medindo mais de
dez metros e pesando mais de oitenta toneladas, eram
içadas até as plataformas especialmente construídas. De
costas para o oceano, esses gigantes de pedra cinzenta
miravam o interior. Alguns foram rematados com
imensos topetes de pedra vermelha extraída de uma
pedreira diferente e acrescentados depois da estátua
pronta. Mesmo tendo sido criadas há mais de seis
séculos, as estátuas surpreendem pela consistência do
estilo, com queixos pronunciados e bem marcados, olhos
encovados, lóbulos da orelha compridos e narizes
avantajados. Os corpos são bastante simplificados com
mamilos e umbigos salientes, braços entalhados e
colados à lateral do corpo e mãos pousadas sob a
barriga.
No total, são 125 moai ao longo da costa de Rapa Nui,
mas há outras centenas deles caídos no local da pedreira
e nas proximidades, em Rano Raraku, somando quase
900 ao todo. Olhos brancos feitos de coral com pupilas
pretas de obsidiana foram acrescentados para dar-lhes
mais vida, talvez para cerimônias importantes. Se as
pessoas se reunissem de frente para as figuras, teriam a
experiência de ver os moai emoldurados, tendo a
rebentação e o mar encapelado como pano de fundo. É
muito provável que os primeiros habitantes da ilha
tenham chegado de barco, vindos da América do Sul, mil
anos antes. Atravessaram a imensidão do oceano,
levando suas tradições e conhecimentos sobre escultura
monumentalem pedra.
Eram muito caros os materiais usados pelos pintores
de iluminuras de livros em centros específicos nas
cidades de Mossul e Bagdá, no Iraque de hoje. Até a
destruição de Bagdá pelos mongóis em 1258, as oficinas
islâmicas produziam famosos manuscritos com
iluminuras de textos seculares, incluindo o Maqamah
(Assembleias). Essa coleção de histórias humorísticas,
escritas por Abu Muhammad al Qasim ibn Ali al-Hariri no
século XI, recontava as histórias do desonesto Abu Zayd.
A versão ilustrada mais famosa é a de Yahya ibn Mahmud
al-Wasiti e data de 1237. Al-Wasiti trabalhava sobre
pergaminho feito de pele de animal, usando cores vivas e
folhas de ouro caríssimas. Noventa e nove pinturas
(algumas tão largas a ponto de ocuparem duas páginas)
davam vida às histórias. Vemos galinhas no telhado da
mesquita durante a oração e um camelo pronto para
morder, com os dentes à mostra. Figuras se amontoam
numa sombra, bebendo e ouvindo música, enquanto
outras se aglomeram numa ponte para assistir ao enterro
de uma vítima da peste. Há mercados de escravos,
acampamentos e procissões de peregrinos em direção a
Meca. Há lutas, bate-bocas e brigas conjugais. É pela
atenção dada ao detalhe e às figuras islâmicas
contemporâneas cheias de personalidade que o livro é
tão apreciado hoje, mas, naquela época, os materiais
caros e o número de ilustrações também o teriam
limitado como um livro especialmente luxuoso.
Mongóis da Mongólia invadiram o Oriente Médio e a
China, destruindo grande parte do que viam pela frente,
arrasando completamente cidades como Bagdá e
matando milhares de pessoas. Às vezes, os artistas eram
poupados do genocídio. Os de Bagdá, por exemplo, foram
forçados a se mudar para a Mongólia para trabalhar para
o novo senhor. A China sucumbiu ao domínio mongol na
década de 1270. A pintura floresceu na nova corte e os
artistas chineses foram bem aceitos, mas, no princípio, o
gosto mongol era por retratos coloridos e esculturas
enfeitadas, em vez das paisagens monocromáticas,
tranquilas e contemplativas dos literati chineses.
Os literati já existiam havia mil anos à época da
invasão mongol, mas ironicamente foi durante o reinado
mongol que esse movimento passou a dominar a pintura
chinesa. Os literati altamente conceituados eram muito
instruídos e com frequência trabalhavam como
funcionários do governo. No tempo livre, se empenhavam
para sobressair na poesia, na caligrafia e na pintura.
Talvez por limitação de tempo, certos literati dedicavam
a vida a pintar apenas um motivo em particular, como
ameixeiras em floração, pássaros regionais ou touceiras
de bambu.
De início, muitos literati perderam a posição na corte
sob o regime mongol. Eles se recolheram em casas no
campo, onde podiam pintar sem interrupções. Um desses
artistas foi Zhao Mengfu (1254-1322), que trabalhou em
pinturas de paisagens em sua cidade natal, Wuxing (hoje
Huzhou) por dez anos após a conquista mongol. Em
1286, porém, Zhao foi persuadido a juntar-se à
administração Yuan (mongol) como funcionário do alto
escalão e, a partir de então, precisava contrabalançar
seus compromissos oficiais com a paixão pela pintura e a
poesia. Ele manteve amizade com artistas e estudiosos e
montou uma coleção de arte própria. Talvez Zhao tenha
até conversado sobre arte com Marco Polo, o explorador
e comerciante italiano que esteve na corte mongol de
Kublai Khan, à mesma época que Zhao, por quatro anos.
No ano em que retornou à corte, Zhao se casou pela
segunda vez. A nova esposa era Guan Daosheng (1262-
1319), artista bem-sucedida que contava com o apoio e o
mecenato tanto de homens quanto de mulheres na corte
mongol. O casal de artistas costumava trabalhar em
conjunto na poesia, na caligrafia e nas pinturas, e Guan
era bem conhecida por suas paisagens, como as
Touceiras de bambu sob a neblina e a chuva, de 1308.
Nessa pintura em pergaminho, moitas rendadas de
bambu brotam ao longo de um rio. Um nevoeiro baixo
cobre metade dos bambus, efeito criado com uma faixa
do tecido em branco para sugerir uma neblina densa
pairando sobre o rio.
Guan inventou a tradição de pintar bambus às
margens dos rios, e a evocação livre de touceiras de
bambu, água e condições atmosféricas em tinta preta se
descortinava à medida que o leitor desenrolava
lentamente o pergaminho da direita para a esquerda. Os
literati carregavam de significado suas delicadas
paisagens monocromáticas, e o uso repetido do bambu
como principal elemento por Guan era visto como a
incorporação do desejo de Confúcio pela resistência, do
curvar sem quebrar, especialmente durante a dominação
desafiadora dos invasores mongóis.
O estilo de Guan permaneceu influente até o século
XX. A arte chinesa era profundamente enraizada na
tradição e até bem pouco tempo depositava-se grande
valor na continuação dos estilos e dos temas. Na Europa,
o simbolismo medieval predominara por quase mil anos.
Mas tudo isso estava em vias de mudar conforme uma
geração de artistas fazia um giro de 360° para voltar ao
naturalismo da Grécia e da Roma clássicas.
Capítulo 10 - O berço do
Renascimento
Ano de 1305, em Pádua, na Itália, e Giotto mostra a seu
assistente onde ele deve espalhar o gesso fresco do dia
na parede da capela. Pretende pintá-lo enquanto ainda
está úmido, empregando uma técnica chamada buon
fresco, na qual as cores se fundem no gesso, formando
uma pintura mural luminosa. É um desafio e tanto saber
exatamente a quantidade de gesso a ser aplicada. Ele
precisa pintar todo o trecho demarcado no mesmo dia,
ou o gesso secará sem que as cores sejam absorvidas,
conservando-se na superfície. Mas ele sabe o que está
fazendo, pois há mais de dois anos vinha pintando
afrescos na capela privativa de Enrico Scrovegni. Logo a
capela estará terminada, com paredes de afrescos e o
teto cintilando com estrelas de ouro em um céu de azul
profundo.
Enrico, o mecenas de Giotto, herdou a fortuna do pai,
Reginaldo, que era agiota. Segundo a igreja, o ato de
emprestar dinheiro a juros é um pecado mortal, e Enrico
quer “dormir em paz”. Grande parte de sua herança está
empenhada nessa capela suntuosa em glória a Deus, e
ele solicitou a Giotto que incluísse um retrato dele,
Enrico, nos afrescos. No Juízo Final, que hoje ocupa a
parede de trás, Enrico apresenta um modelo da capela à
Virgem Maria, enquanto conduz os virtuosos ao paraíso.
Enrico pediu também a Giotto que pintasse seu pai no
inferno, pendurado numa forca. Seu intento é deixar
claro que está do lado dos anjos, ao contrário de
Reginaldo.
Giotto toma distância para contemplar sua obra. Um
imenso andaime de madeira ocupa grande parte da
capela, mas ele ainda consegue ver os afrescos além
dele, recobrindo as paredes. Assim como o ambicioso
Juízo Final, ele pintou cenas da vida da Virgem Maria e de
Cristo. Ainda que sejam cenas bíblicas, Giotto as
registrou na Pádua do século XIV e tentou captar as
expressões de todos como pessoas vivas, respirando e
sentindo.
*
Giotto (Giotto di Bondone, 1266/76-1337) viajou por
toda a Itália para realizar sua obra, pintando retábulos e
afrescos em Nápoles, Roma, Pádua, Assis e Florença, sua
terra natal. Nessa época, a Itália não era um país
unificado, mas uma série de cidades-Estados e reinos,
cada um com leis próprias. Artistas como Giotto tinham
que se adequar a elas, estabelecendo oficinas
temporárias e empregando artistas locais para ajudá-los
no cumprimento de cada obra contratada. Giotto
aprendera a fazê-lo com Cimabue (Cenni di Pepo, por
volta de 1240-1302), artista influente, que o treinara na
adolescência e fora o responsável por levá-lo para Roma
pela primeira vez.
Em Roma, Giotto e Cimabaue viram pinturas de Pietro
Cavallini (cerca de 1250-1330), um dos primeiros
defensores da volta ao estudo do corpo humano com
base na vida real, sem copiá-lo das pinturas dos ícones
ou dos manuscritos com iluminuras. Por que isso? Na
Itália, as pessoas começavam a ser influenciadas por um
novoramo da filosofia, o humanismo. Os humanistas
valorizavam a arte e a filosofia da Grécia e da Roma
antigas acima de qualquer outra coisa produzida
posteriormente. Eles também acreditavam na
responsabilidade do homem por viver uma boa vida na
terra, em vez de vivê-la no paraíso depois. Saíram em
busca de textos latinos e gregos antigos que haviam
sobrevivido em mosteiros distantes e sentavam-se até
altas horas discutindo os méritos de filósofos gregos
como Platão. O humanismo era popular nos círculos
intelectuais nas cidades italianas e, agora, estudiosos
seculares superavam os monges como os principais
pensadores de sua época. Sob a influência do
humanismo, os artistas começaram a se distanciar da
representação estilizada das figuras, conforme vimos nas
pinturas medievais como o ícone da Virgem de Vladimir,
e retomaram o estudo da arte clássica e do corpo
humano real. Por exemplo, o Juízo Final de Cavallini, na
igreja de Santa Cecília (parcialmente remanescente nos
dias atuais), inclui figuras trajando túnicas que recobrem
os joelhos e os antebraços, sugerindo corpos de verdade
por baixo. São corpos proporcionais com rostos
expressivos e verossímeis.
Esse afresco do final do século XIII contém vários
elementos em comum com o Juízo Final de Giotto e pode
tê-lo influenciado. No entanto, no ciclo das histórias que
se revelam por toda a Capela Scrovegni, Giotto deu um
passo à frente, criando cenas cheias de dramaticidade,
de fato dando vida à Bíblia. Braços esticados, bocas de
admiração, lágrimas caindo. Na Lamentação,
vivenciamos a tristeza das mulheres segurando o Cristo
morto pelos ombros curvados, mãos postas e cabeças
baixas. O tecido cai sobre os corpos, obedecendo à
gravidade, revelando costas curvadas pelo luto e braços
torneados.
É na obra de Cavallini e Giotto que vemos a retomada
do naturalismo clássico na Itália. Desde o século XVI,
biógrafos como Giorgio Vasari enalteceram esses pintores
por suas “observações das coisas da Natureza”. Vasari
destacou Giotto pela abertura “dos portões da verdade”.
Esses pintores eram influenciados pelo mundo à sua
volta, visto por um olhar humanista, e não pela arte
religiosa medieval de seus antecessores.
Na Itália, muitos dos artistas de destaque da época
trabalhavam para a principal igreja da ordem
franciscana, São Francisco de Assis. Cimabue, Giotto e
Cavallini têm obras criadas ali, assim como Simone
Martini (1284-1344) e a família Lorenzetti. A oficina de
Giotto pintou um ciclo da vida de Cristo, reutilizando em
certos lugares cenas da Capela Scrovegni. Artistas bem-
sucedidos como Giotto mantinham oficinas para fazer
frente à demanda. Provavelmente Giotto criou o desenho
original para o ciclo de afrescos, mas grande parte teria
sido pintada por assistentes, desde crianças aprendizes e
jovens artistas ambiciosos até mãos mais maduras.
Talvez ele só voltasse para acrescentar rostos e detalhes
de acabamento.
Na igreja, o excepcional ciclo de São Francisco inclui
28 cenas da vida do santo. O foco é a narração da
história, e as figuras realistas parecem com as de
Cavallini e Giotto, embora não se saiba ao certo quem as
pintou. Essas pinturas foram concebidas para uma
congregação para efeito de estudo e, como na Capela
Scrovegni de Giotto, elas falavam diretamente com a
plateia, refletindo suas expressões e fazendo-a se sentir
parte da ação. Numa cena de Natal, com São Francisco
abençoando um bebê, nós, como espectadores, ficamos
de pé dentro do coro junto a uma multidão para
testemunhar monges franciscanos cantando para
celebrar a natividade. Para as mulheres peregrinas da
congregação, essa deve ter sido uma experiência
inusitada porque sua presença não era admitida na área
do coro.
Fora da Itália, outros artistas também experimentaram
o naturalismo. Em Constantinopla (Istambul), na Igreja
Ortodoxa Grega de São Salvador, há uma cena da
ressurreição que, em cada detalhe, é tão dramática
quanto o Juízo Final de Giotto. A pintura Anastasis, de
autor desconhecido e criada por volta da mesma época,
mostra um Cristo descalço e vigoroso puxando Adão e
Eva de seus sepulcros para se juntar a Ele nos céus.
Derrotado, Satanás está amarrado sob os pés do Cristo,
próximo às portas quebradas do inferno. O afresco ocupa
metade do domo, acima de mosaicos bizantinos de
santos, que parecem imóveis, como os ícones, em suas
túnicas em cores sólidas, sem movimento. Esse encontro
explosivo de estilos contrastantes ajuda a visualizar o
tamanho da mudança mental e visual ora em
andamento.
Os primeiríssimos exemplares dessa nova e
emocionante expressão de naturalismo seriam
encontrados na Itália. Ali, formara-se um clima especial
graças ao interesse crescente pelo humanismo, à grande
riqueza e à rivalidade acirrada. Cidades, igrejas e
mecenas competiam entre si para atrair os melhores
artistas e encomendar as obras de arte mais
impressionantes. Essas obras se concentravam cada vez
mais no mundo natural e expressavam um interesse
renovado por tudo o que fosse clássico, dos mitos gregos
à crescente verossimilhança das esculturas do corpo
humano.
Para analisarmos como esse interesse renovado pelo
mundo natural levou ao Renascimento (a “renascença”
da arte), teremos que, por ora, seguir por um caminho
específico. Minha intenção é mostrar o alcance e a
envergadura do Renascimento porque ele durou mais de
200 anos e continua a influenciar artistas pelo mundo
inteiro na atualidade. Mas, para fazê-lo, temos de
suspender nossa visão inclusiva de mundo por alguns
capítulos. Notoriamente, por muito tempo essa visão
restrita não foi alvo de maior preocupação: a história da
arte ocidental simplesmente ignorou a arte para além da
Europa. Historiadores da arte muitas vezes nem
chegaram a considerá-la como arte. Hoje, no século XXI,
a arte do mundo inteiro, expressa por uma vasta gama
de realizadores, é defendida e respeitada. Neste livro, já
vimos diversos exemplos e há muitos outros à frente.
Em alguns dos capítulos seguintes, porém, vamos
conhecer os artistas e os mecenas responsáveis pelo
Renascimento europeu, um florescimento sem paralelo
das artes nos séculos XIV, XV e XVI. Cientistas, filósofos,
matemáticos e artistas criaram uma sociedade de
elevada curiosidade e inventividade, introduzindo o
estudo da perspectiva e da ótica, e uma compreensão
científica da anatomia, reintroduzindo o desenho a partir
de modelos vivos e naturais. O legado permanente do
Renascimento, incluindo o Renascimento nórdico na
Alemanha, na Bélgica e na Holanda, é a arte criada nesse
período e sua influência posterior sobre a formação e a
prática da arte ocidental que durou 400 anos.
O início do Renascimento trouxe uma novidade para a
arte sacra: o retábulo.** Ele foi criado quando os padres
começaram a oficiar parte da missa de costas para a
congregação. Para ajudar na concentração, grandes
pinturas distribuídas em painéis eram colocadas sobre o
altar para atrair os olhares dos fiéis. Um exemplar de um
dos primeiros é a Maestà, de Duccio (Duccio di
Buoninsegna, em atividade entre 1278-1319), pintura
majestosa da Virgem Maria no trono, com o Cristo no
colo, cercada por santos e anjos, datada de 1308-1311.
Ainda que há muito tempo a obra tenha sido
desmembrada, a Maestà já compreendeu setenta painéis
incríveis e ocupou o altar central da catedral de Siena, na
Itália.
Duccio fora discípulo de Cimabue, como Giotto. Na
Maestà, ele pintou numerosos espectadores em torno da
Virgem e do Cristo, elevados em diferentes níveis como
se estivessem sobre bancos para uma foto escolar. Há ali
uma quantidade avassaladora de ouro e também uma
profusão de detalhes realistas. São João Batista veste
uma túnica de lã esfarrapada e Santa Catarina usa véu e
manto de brocado trabalhado. As figuras de Duccio não
chegam a ter o peso físico que Giotto conferia às suas, e
a Virgem de Duccio ainda apresenta as características
exageradas da pintura icônica bizantina, de nariz
compridoe olhos amendoados. No entanto, ela é bem
mais realista do que a Virgem de autoria do mestre
Cimabue, que, em comparação, parece muito
bidimensional e estilizada.
O corpo dirigente da catedral fez Duccio assinar um
contrato para a obra da Maestà. A catedral se
comprometia a suprir os materiais, inclusive a imensa
quantidade de ouro necessária. De sua parte, Duccio não
deveria assumir nenhuma outra encomenda e somente
ele e sua oficina teriam permissão para trabalhar na
pintura.
Vinte anos mais tarde, a catedral de Siena passou por
grandes obras e novos artistas foram contratados para
criar quatro retábulos adicionais para ladear a Maestà de
Duccio. Cada um deles foi dedicado a um dos santos
padroeiros da cidade, e Simone Martini recebeu a
incumbência de pintar o retábulo de Santo Ansano.
Martini mantinha a própria oficina e colaborou nesse
retábulo com seu cunhado, Lippo Memmi (em torno de
1291-1356). Martini escolheu representar o momento da
concepção de Cristo, conhecido como Anunciação, em
que o anjo Gabriel desce dos céus para dar a boa-nova a
Maria sobre sua gravidez divina. Maria recua assustada
com aquela intrusão. A julgar pela túnica esvoaçante de
Gabriel, ele chegara naquele instante. Suas palavras
estão talhadas no fundo em folha de ouro e se estendem
de sua boca até o halo resplandecente da Virgem. Santo
Ansano observa, de um painel lateral, segurando a
bandeira branca e preta da cidade de Siena.
O estilo de Martini é diferente de tudo o que vimos na
pintura até agora. Suas figuras são alongadas, com
ombros estreitos e rostos pálidos. Parecem esculturas
góticas esguias, e uma atmosfera gótica predomina
nesse retábulo. Martini terminou trabalhando para a
corte de fala francesa do rei de Nápoles, no sul da Itália
e, por fim, partiu de mudança para a França. Por meio de
artistas como Martini, o estilo gótico, que vimos primeiro
na Catedral de Chartres, se traduziu em pintura e hoje é
conhecido como gótico internacional. Esse estilo
pomposo usava cores vivas e folhas de ouro e era
popular nas cortes reais. As pinturas do estilo gótico
internacional eram incrivelmente detalhadas, mas era
comum as cenas não serem realistas em termos de
escala. O estilo floresceu no norte da Europa, conforme
veremos no próximo capítulo.
** Painel de madeira ou mármore atrás ou acima do altar. (N.T.)
Capítulo 11 - Luzes do Norte
Ricardo II, rei da Inglaterra, adentra a catedral da Abadia
de Westminster, em Londres, em um dia do inverno de
1397. Ele segue em direção à pequenina capela bem ao
fundo da nave. Nela, o espaço exíguo permite a entrada
de uma só pessoa por vez para rezar, sendo, portanto,
muito particular. Ele passa pelas capelas de Santo
Edmundo, Santo Eduardo o Confessor e São João Batista
antes de chegar à sua. No interior, o novo retábulo
resplandece sob a luz de velas. Não é enorme, mas do
tamanho de um livro grande, e é articulado no meio. O
rei sorri ao se aproximar e se identificar na pintura,
ajoelhado em total devoção, em frente a três santos,
aqueles das capelas pelas quais ele acaba de passar.
Na pintura, ele oferece suas orações à Virgem e ao
Menino Jesus. Eles ocupam o painel frontal,
sofisticadamente idealizados, cercados por anjos
delicados, com imensas asas emplumadas. Esse díptico
(obra em painel duplo) foi extremamente dispendioso,
moldado em folhas de ouro e tinta ultramarina cara, cada
figura pintada com tamanha delicadeza que ele consegue
ver fios ondulados da barba grisalha de Santo Eduardo.
Os anjos andam sobre um tapete de flores e todos usam
o emblema real, um cervo branco e sua magnífica
galhada. Ele usa o mesmo emblema do cervo branco
sobre o manto de fios de ouro, e um colar pesado de
vagens de giesta, assim como os anjos. Essa simbologia
o liga à França, onde as vagens de giesta fazem parte da
libré do rei francês, exatamente como o cervo branco faz
parte da sua. Ricardo nascera na França, empregou um
artista francês para pintar o retábulo, e a França era a
terra natal de sua jovem noiva, portanto ele se sente feliz
com a inclusão das vagens de giesta.
*
Essa pintura, de autor anônimo, data mais ou menos
de 1395 e é conhecida como o Díptico Wilton. É um
exemplar magnífico do gótico internacional. Os rostos
elegantes e os dedos alongados de Ricardo e da Virgem
relembram a Anunciação de Simone Martini, e a atenção
redobrada aos detalhes e as matérias-primas caras
tornam a obra um precursor do luxuoso Livro das horas,
produzido para o duque de Berry pelos irmãos Limbourg.
Os irmãos Limbourg, a saber, Pol, Herman e Jean de
Limbourg, usaram o melhor azul ultramarino ao iniciarem
o Livro das horas, ricamente decorado, por volta de
1410. Ele foi pintado sobre o mais refinado vélum branco,
cortado da parte central do couro de novilho para
assegurar a inexistência de rugas, e é do tamanho
aproximado de um livro moderno de capa dura. O livro
contém doze páginas com os doze meses do ano,
repletas de detalhes da vida na corte. Um livro inteiro de
preces se segue a essas páginas de calendário, mas são
elas que fascinam os espectadores de hoje. As cenas são
suntuosas e decorativas, longe de serem realistas. As
figuras variam significativamente em forma e proporção,
bem parecidas com as dos manuscritos iluminados
medievais. No entanto, certos aspectos dos meses são
extremamente detalhados, até os pelos dos porcos na
pastagem em novembro e os chapéus emplumados dos
cortesãos em abril. O gótico internacional está ligado à
arte medieval e renascentista e, em última análise, essas
pinturas são um híbrido dos dois estilos. Ambos
representam tanto a iluminação refinada quanto os
primórdios de uma tradição de um Renascimento
nórdico, indicando uma observação direta da natureza.
É possível que o duque de Berry e Ricardo II fossem
ricos o suficiente para encomendar livros iluminados
caros e retábulos exclusivos, mas, na virada do século
XV, era a corte francesa do duque de Borgonha, Felipe o
Calvo, irmão mais velho do duque de Berry, a mais rica
da Europa. Felipe construiu um mosteiro em Champmol,
perto de sua capital Dijon, para garantir um local
apropriado para o túmulo de sua família. O claustro do
mosteiro media 100 metros de largura e Felipe pediu ao
principal escultor de sua corte, o artista neerlandês Claus
Sluter (1340-1405), para desenhar algo vistoso para o
centro. Não era uma incumbência fácil porque o claustro
cercava um terreno pantanoso. A solução de Sluter foi
fazer quatro fundações de pedra a quatro metros de
profundidade no solo e usar a água deslocada para
formar um poço que rodeava a base como uma piscina.
Sobre a base, ele construiu um pedestal de pedra
cercado por seis profetas de tamanho natural e anjos
menores. Brotando do topo erguia-se uma coluna
delgada de pedra, coberta de ouro, apoiando o Cristo na
cruz.
A Grande cruz, também conhecida como o Poço de
Moisés, de 1395-1403, alongava-se por onze metros em
direção ao céu. Ela permaneceu no lugar por mais de três
séculos, mas hoje restam somente o pedestal e os
profetas. Originalmente, os profetas foram pintados por
outro artista da corte, Jean Malouel (por volta de 1365-
1415), e as listras azuis e brancas ainda são visíveis na
túnica longa de Davi. Todos eles adotam posturas
vibrantes, os pés se curvando sobre as bordas estreitas,
como se pudessem pisar fora a qualquer momento.
Apesar de as figuras estarem fixadas no pedestal, na
parte traseira elas são, ainda assim, muito mais ousadas
e soltas do que as esculturas góticas em Chartres.
Sluter e Malouel usaram a tinta azul à vontade na
Grande cruz. Empregaram o pigmento de azurita mais
barato nas primeiras camadas e cobriram com o azul
ultramarino de alta qualidade os mantos e as túnicas dos
profetas. Um potinho com apenas 25 gramas de
ultramarino, o peso de uma pilha AA, equivalia ao que
Sluter ganhava por semana. Seria possível comprar oito
quilos de tinta branca de chumbo pelo mesmo valor. O
ultramarinoera obtido a partir da moagem do mineral
lápis-lazúli, muito caro, para formar um pigmento ou pó
colorido. Era importado de minas situadas no Badakshan
(hoje Afeganistão) via Bagdá e Veneza. A azurita, dez
vezes mais barata, era obtida mais perto, nas minas
alemãs e eslovacas.
Sob os auspícios dos duques de Borgonha e de Berry,
os artistas levavam um estilo de vida que, de modo
geral, estaria reservado aos nobres. O duque de Berry
deu a Pol Limbourg (por volta de 1386-1416) uma
mansão, e todos os irmãos receberam roupas e
presentes, além do salário. O duque de Borgonha pagou
a Sluter e Malouel um dinheiro extra quando ambos
ficaram gravemente enfermos, para que pudessem quitar
as despesas médicas. A maioria dos artistas não vivia
com esse tipo de segurança. Cabia a eles o sustento das
próprias oficinas, conseguir encomendas e equilibrar o
custo dos materiais com possíveis vendas no mercado
aberto. Assim, não era de surpreender que os artistas
tendessem a se concentrar em cidades onde nobres e
comerciantes ricos comprassem suas obras.
Uma dessas cidades foi Tournai, hoje na Bélgica, mas
que naquela época fazia parte das terras do duque de
Borgonha. A arte da pintura nessa região é hoje
conhecida, no seu conjunto, como arte flamenga ou
neerlandesa. Robert Campin (por volta de 1378-1444)
viveu e trabalhou em Tournai, onde mantinha uma
grande oficina. Seu tríptico (pintura em três painéis) da
Anunciação (1427-1432) é conhecido hoje como Retábulo
de Mérode. No painel central, a Virgem está sentada
junto à lareira, lendo, enquanto Gabriel desce das alturas
para transmitir sua mensagem. A pintura é cheia de
detalhes simbólicos, por exemplo, os lírios no vaso azul e
branco representam a pureza da Virgem. No painel à
esquerda, vemos os doadores da pintura rezando. (Esses
doadores financiaram a execução do retábulo.) À direita,
José aparece cercado por suas ferramentas de
carpinteiro. Para além dele, pelas janelas abertas, vemos
figuras humanas bem pequenas circulando pela praça da
cidade. Campin foi um dos primeiros a acrescentar essa
visão detalhada às suas pinturas. Quanta diferença em
relação ao Livro das horas estilizado de Limbourg! Era
como se estivéssemos olhando por uma janela de
verdade para a rua mais ao longe, e isso nos faz sentir
como se tivéssemos adentrado o mundo da Virgem. Esse
nível de observação define o Retábulo de Mérode como
um dos primeiros exemplares da arte do Renascimento
nórdico.
Os retábulos em painéis articulados eram a norma na
arte flamenga, contrastando com as pinturas em painéis
fixos vistos na Itália. E, enquanto na Itália os artistas
trabalhavam com têmpera, os flamengos usavam tinta a
óleo. O pigmento misturado com óleo, como o óleo de
linhaça, vinha sendo usado no norte da Europa por vários
séculos, mas foi somente no século XV que ele ocupou o
centro do palco, sendo empregado por todos os
principais artistas flamengos. As obras foram exportadas
para a Itália, e logo os artistas italianos começaram a
experimentá-la também, conforme veremos no próximo
capítulo. Ao contrário da têmpera de secagem rápida, o
que proporcionava um acabamento liso brilhante, a
pintura a óleo levava dias para secar e podia ser aplicada
em camadas de tinta. Cada camada tinha de secar antes
que a outra fosse aplicada, portanto a pintura a óleo era
um processo lento, mas permitia que os artistas criassem
cores com uma profundidade e uma sutileza impossíveis
de serem obtidas com a têmpera.
Em Gante (na Bélgica de hoje), dois irmãos criaram o
mais fantástico retábulo flamengo do século XV
empregando pintura a óleo. O Retábulo de Gante (1426-
1432) foi iniciado por Hubert van Eyck (por volta de
1385-1426) e concluído por Jan van Eyck (cerca de 1390-
1441). Enquanto o Retábulo de Mérode foi feito para
devoção pessoal, o Retábulo de Gante foi criado para a
Igreja de São João (hoje Catedral de São Bavo). Ele
compreende 24 painéis, com as folhas pintadas de
ambos os lados, frente e verso.
Quando os painéis do Retábulo de Gante são
desdobrados, eles se estendem por cinco metros. No
centro, há um Cristo maior que o tamanho natural, com
um manto vermelho, sentado num trono dourado, a mão
elevada, numa bênção. Adão e Eva observam de painéis
laterais, sua nudez certamente chocante para a época.
Apesar de ambos usarem folhas para cobrir a genitália,
ainda é possível distinguir pelos púbicos encaracolados
por cima delas. O retábulo fechado conta a história da
Anunciação pelos painéis centrais. Os doadores,
Elisabeth Borluut e seu marido Joos Vijd, rezam na parte
de baixo. Eles não são jovens e Van Eyck não os poupou,
portanto eles estão de joelhos, à nossa frente, como
pessoas reais, sem idealização. Van Eyck os pintou em
nichos arquitetônicos, ou espaços rasos. Ao lado deles,
duas “esculturas” ocupam espaços do mesmo tipo. As
“esculturas” são, evidentemente, pintadas. Van Eyck
ressalta suas habilidades, mostrando que a pintura pode
confundir a vista e convencê-lo de que está olhando para
pessoas reais e esculturas reais em salas reais. Lembra-
se de quando Plínio valorizou os gregos antigos por sua
habilidade com o trompe l’oeil no capítulo 3? Os artistas
do Renascimento estavam confrontando os gregos com o
próprio jogo deles.
Jan van Eyck estabeleceu-se em Bruges, em 1431. Sua
obra era altamente valorizada pelo incrível ilusionismo e
por sua capacidade de recriar diferentes texturas, do
caimento pesado de um brocado à casca das laranjas
importadas. Em seu quadro Casal Arnolfini (1434), vemos
essas laranjas no peitoril da janela da casa do abastado
comerciante italiano Giovanni Arnolfini e sua esposa
Constanza Trenta. De pé, o casal parece estar
recepcionando convidados. A luminosidade do dia se
insinua pela porta e pelas janelas abertas, e essa luz
harmoniosa nos faz acreditar na ilusão do duplo retrato
[retrato rebatido], apesar do fato de que as cabeças do
casal têm notoriamente tamanhos diferentes. Ela
também nos faz acreditar na vida após a morte. O
chapéu preto de Giovanni e a vela solitária ardendo no
candelabro de latão trabalhado acima da sua cabeça
sugerem que ele está de luto pela jovem esposa que
morrera, aos vinte anos, um ano antes dessa pintura.
Rogier van der Weyden (1400-1464), ex-aluno de
Campin, mudou-se para Bruxelas (hoje na Bélgica) para
estabelecer a própria oficina. Os retratos de Van der
Weyden se comparavam aos de Van Eyck pela atenção
aos detalhes, mas os superavam na transmissão das
emoções. Em sua Descida da cruz (por volta de 1435),
vemos a profundidade da expressão que era capaz de
alcançar. O painel pintado foi encomendado para o altar-
mor da Capela de Nossa Senhora Extramuros, em
Leuven, perto de Bruxelas, e foi pago pela Guilda ou
Confraria dos Besteiros. Dez figuras com trajes da época
contrastam com o fundo de ouro. O ouro não é batido
sobre a superfície como na pintura icônica. Ele fica por
trás das figuras, como se elas fossem atores sobre um
palco de pouca profundidade, bem na frente. O recorte
do próprio painel de madeira foi feito de modo a incluir o
alto da cruz de Cristo. No alto da escada, por trás da
cruz, um homem segura um alicate, o lembrete vivo de
sua tarefa de arrancar os pregos, para que, assim, o
Cristo possa ser retirado e sepultado. Três homens
seguram o corpo sem vida, os rostos voltados para baixo,
os olhos marejados de lágrimas. A mãe de Cristo, Maria,
desmaia e cai ao chão, sua postura copiando a do filho,
com suas mãos quase se tocando, em um retrato duplo
de morte e pesar. O posicionamento de seus braços
lembra a curvatura de arcos, um reconhecimento visual
da guilda que encomendara a obra.
Pinturas a óleo como essa tornaram a arte flamenga
procuradíssima. Obras avulsas (não encomendadas)
eram vendidas em feiras internacionais na Antuérpia (na
Bélgica de hoje) e noutros lugares, e exportadas para
ávidos colecionadores na Itália. Van der Weyden e Van
Eyck foram considerados os artistas maisimportantes de
sua geração, os mestres da ilusão, exatamente como os
pintores gregos antigos que os antecederam. Na Itália,
esse ilusionismo foi mais impulsionado ainda graças a
novos avanços no campo da perspectiva.
Capítulo 12 - Questão de
perspectiva
Ano de 1444. Ao lado do arquiteto Michelozzo, Cosme de
Médici observa um terreno, longe da Via Larga, em
Florença. Eles discutem os projetos para o novo e
ambicioso palácio de Cosme, um edifício clássico, de
vários andares e um pátio central. A princípio, Cosme
indicara o célebre arquiteto Brunelleschi para concebê-lo,
mas rejeitou seus projetos por serem muito vistosos.
Cosme possui uma imensa fortuna como dirigente do
banco dos Médicis, mas seu pai sempre o aconselhara a
não ostentar. Ele optou, então, pelos projetos mais
comedidos de Michelozzo, que ainda assim incluíam
espaço para sua coleção de pinturas, esculturas e livros
cada vez maior.
Para o pátio, Cosme pretende contratar um dos
principais escultores da época, Donatello, e pedir a ele
para esculpir uma figura do pastor Davi, da Bíblia, e
colocá-la sobre um pedestal no centro. É algo ousado,
pois as esculturas normalmente ocupam nichos nos
prédios, e não o centro do palco. A história de Davi e
Golias é a da astúcia contra a força bruta. Por esse
motivo, faz tempo que Davi foi adotado pelos orgulhosos
florentinos como símbolo de sua cidade, uma cidade que
conserva independência do papa e das cidades-Estados
rivais. Donatello já esculpiu um Davi, instalado no
Palazzo della Signoria, sede do governo de Florença.
Nessa escultura, ele enfatizou a juventude e a beleza de
Davi em vez de suas qualidades nobres e trajou-o com
uma túnica ajustada ao corpo e um manto jogado sobre a
coxa. Parece mais uma escultura clássica grega do que
qualquer outra obra da história recente. Cosme imagina
como Donatello concretizará a nova incumbência. Ele
sabe que o novo Davi se destacará porque será de
bronze, algo ao alcance somente das famílias mais ricas
de banqueiros, quiçá apenas os Médicis.
*
O Davi de bronze de Donatello (Donato di Niccolò di
Betto Bardi, por volta de 1386-1466), criado na década
de 1440, é uma homenagem à beleza e à juventude
masculinas. De pé, está inteiramente nu, exceto pelo par
de botas até os joelhos e dedos à mostra. Seu capacete
mais parece um chapéu de aba larga com folhas em
volta da copa, com cachos fartos no cabelo que
ultrapassa a altura dos ombros. Ele traz a mão esquerda
apoiada no quadril e o pé esquerdo sobre a cabeça
cortada de Golias. O corpo de Davi, sem um único pelo,
brilha conforme sua pele de bronze polido reflete a luz.
Ele está ali isolado, sem fazer parte da arquitetura,
exigindo os olhares. Ninguém fora capaz de executar
uma escultura como aquela por muito mais de mil anos.
A última vez que uma nova escultura de figura masculina
ganhou um pedestal tinha sido com os romanos no
poder. Mesmo com origem bíblica, o verdadeiro motivo
da escultura é a beleza masculina e uma valorização
clássica do corpo.
Cosme de Médici era um humanista, com boa
formação nas ideias e na arte clássicas. Ele sustentou
Donatello ao longo de sua carreira, oferecendo-lhe
alimentação, residência e trabalho regular. Na Itália
dessa época, a grande maioria das obras de arte
resultava de encomendas diretas. As guildas mais ricas
da cidade requisitavam esculturas de artistas como
Donatello para decorar igrejas. Famílias abastadas
compravam áreas dentro das igrejas para suas capelas
mortuárias e contratavam artistas para embelezá-las. As
famílias ricas lutavam para superar umas às outras.
Pelos próximos três capítulos, veremos como três
cidades-Estados rivais, Florença, Veneza e Roma,
sustentaram artistas e contribuíram para o
Renascimento. No século XV, Roma confirmou seu lugar
como o epicentro da Igreja Católica, e a cidade se
beneficiou enormemente dos bolsos abarrotados do
papa. A opulência de Veneza foi construída com o
comércio internacional, enquanto Florença era uma
república, governada por um corpo dirigente de
comerciantes bem-sucedidos que valorizavam sua
liberdade. Em cada cidade, a arte floresceu numa
proporção jamais vista desde os tempos clássicos.
Em Florença, os Médicis formavam a família mais rica
e poderosa, e muitos artistas se beneficiaram do seu
mecenato. O frade Fra Angelico (Guido di Pietro, por volta
de 1395-1455) foi um deles. Cosme de Médici financiou a
transferência de dezessete frades para o convento de
São Marcos da cidade. Construiu para eles um novo
mosteiro e uma biblioteca notável, abastecida por ele
com livros clássicos e teológicos. Os dominicanos faziam
voto de pobreza, mas isso não os impedia de enfeitar
seus mosteiros com obras de arte, especialmente quando
um dos mais talentosos pintores de Florença vivia entre
eles. Fra Angelico passou a década de 1440 trabalhando
com seus assistentes para cobrir São Marcos de afrescos
em glória a Deus. Uma crucificação dominava a Casa do
Capítulo, e cada um dos 41 quartos austeros, conhecidos
como celas, foi pintado com cenas espirituais. No alto da
escadaria, uma grande Anunciação exibe o anjo Gabriel
resplandecente com asas multicoloridas que se abrem
até o final da espinha dorsal, em faixas nas cores vinho,
verde-azulado, pêssego, limão e branco. Outra
Anunciação pintada em uma das celas é mais sóbria, as
paredes do recinto simples e arqueado onde a Virgem se
ajoelha combinam com as paredes de gesso da cela
como se o espaço dela fosse uma extensão do quarto do
frade. Arte, vida e fé se interligavam, e as pinturas de Fra
Angelico eram, acima de tudo, recursos visuais para a
devoção. Cosme usou o dinheiro para fortalecer sua
piedade, da mesma forma como Enrico Scrovegni e
Felipe o Calvo tinham feito antes dele. Cosme possuía
até uma cela exclusiva em São Marcos onde se recolhia
para rezar.
Os artistas se valiam das encomendas feitas pelos
Médicis e pela igreja para experimentar uma nova
técnica que se tornaria o eixo central da arte
renascentista: a perspectiva. Lorenzo Ghiberti (por volta
de 1378-1455) levou cinquenta anos criando dois pares
de portas trabalhadas, cobertas de relevos bíblicos, para
o batistério de Florença, concluindo-os, finalmente, em
1452. Donatello trabalhou como seu assistente no
primeiro conjunto, mas quando partiu para Siena para ali
experimentar o novo conceito matemático da
perspectiva, Ghiberti refez as próprias concepções para o
segundo conjunto de portas, incorporando, assim, a nova
técnica.
O que é, de fato, perspectiva? É uma forma de recriar
uma visão tridimensional real em uma superfície plana,
fazendo alguns objetos parecerem mais próximos do que
outros. Brunelleschi e Masaccio (Tommaso di Ser
Giovanni di Simone, 1401-1428) experimentaram a
perspectiva em Florença antes de Leon Battista Alberti
publicar os princípios que a sustentavam em seu livro
Della Pittura [Sobre a pintura], em 1435. Ainda que a
perspectiva tenha revolucionado a pintura, é mais fácil
captarmos seus fundamentos comparando os dois
conjuntos de portas de Ghiberti. No primeiro conjunto, as
Portas do Norte (com 28 cenas do Novo Testamento), o
chão de cada cena parece uma concha, projetando cada
imagem para fora. No segundo conjunto, as Portas do
Leste (com dez cenas maiores do Antigo Testamento), o
chão parece inclinar-se para dentro, para o interior da
cena. Nesse segundo conjunto, as figuras se encolhem ao
recuarem na distância e as construções têm sua escala
reduzida. Ao empregar um horizonte fixo e um ponto de
fuga (um local imóvel naquele horizonte) todas as linhas
de cada cena confluem para aquele ponto, informando o
posicionamento das paredes, a altura dos telhados, os
ângulos dos ladrilhos no piso. Assim, cria-se uma cena
que se desdobra na arte conforme ela parece ser na
realidade, quando olhada de uma única posição. A
geometria sustenta toda a experiência visual, trazendo
ordem e controle. A perspectiva é a peça final do quebra-
cabeça para criara melhor verossimilhança em uma
superfície plana, o trompe l’oiel definitivo.
Piero della Francesca (por volta de 1415/20-1492)
tinha fascínio por descobertas científicas importantes na
arte e escreveu tratados sobre perspectiva e corpos
geométricos. Paolo Uccello (Paolo di Dono, 1397-1475)
tinha igual obsessão por perspectiva. Seus desenhos
parecem modelos matemáticos tridimensionais, e ele
usava as encomendas para exibir sua pesquisa. Na
Batalha de São Romano (por volta de 1438-1440) há
lanças quebradas caídas pelo campo de batalha,
enfatizando as linhas da perspectiva geométrica que
ajudam a dar profundidade à pintura. Em O dilúvio, um
afresco em meia-lua na igreja de Santa Maria Novella, em
Florença (por volta de 1447), figuras desesperadas se
agarram à beirada de uma imensa arca. A arca parece
mais uma parede impenetrável do que um barco
flutuando, mas atendeu à intenção de Uccello de
enfatizar as leis da perspectiva. Ela se estende até o
ponto de fuga, que é marcado por um raio vermelho.
Uccello inclui também objetos que só costumavam ser
vistos em exercícios de desenho, como a moldura circular
de cabeça chamada mazzocchi que Uccello coloca em
torno do pescoço e na cabeça de duas figuras,
empregando a geometria da perspectiva para fazê-las
parecer tridimensionais. O corvo bicando os olhos de um
cadáver à direita não chama tanta atenção quanto os
mazzocchi, ou as laterais incrivelmente recuadas da arca.
A perspectiva é o verdadeiro cerne dessa pintura
fantástica.
Muitos dos maiores artistas de Florença executaram
obras para a igreja de Santa Maria Novella, dentre eles
Masaccio, Uccello, Sandro Botticelli (Alessandro di
Mariano Filipepi, cerca de 1445-1510) e Domenico
Ghirlandaio (Domenico di Tommaso Bigordi, 1449-1494).
Botticelli pintou a Adoração dos Magos para o altar da
nova capela mortuária de Gaspare di Zanobi del Lama,
por volta de 1476 (embora hoje esteja na Galeria Uffizi,
em Florença). Por essa época, a perspectiva tornara-se
parte integral da pintura, não mais algo a ser destacado.
As ruínas antigas que se estendem ao fundo na Adoração
dos Magos seguem as leis da perspectiva, sem as exibir.
Ao contrário, Botticelli usou essa pintura para cair nas
graças dos Médicis. Del Lama pertencia à mesma guilda
dos banqueiros que os Médicis, e talvez tenha sido essa a
razão para Botticelli incluir tantos retratos deles na
pintura. Cosme de Médici é imortalizado como um dos
sábios, ajoelhando-se diante da Virgem e o Menino Jesus,
ao centro. A essa altura, Cosme já era falecido, assim
como seu filho Piero (outro dos sábios na pintura). O neto
de Cosme, Giuliano de Médici, aparece bem à esquerda,
em trajes da última moda, um jovem orgulhoso de peito
estufado. À direita, logo atrás de dois sábios, está
Lorenzo de Médici, com um manto curto preto. Ele é o
irmão mais velho de Giuliano, e Botticelli o pintou como o
próximo da fila a estar com Jesus Menino, posição
apropriada para um jovem que acabara de herdar os
negócios da família. Era um retrato lisonjeador de
Lorenzo, e ele se tornou o mecenas mais constante de
Botticelli por muitos anos. Botticelli se coloca na extrema
direita da pintura, olhando diretamente para o
espectador como se estivesse dizendo: e então, o que
acha?
Lorenzo contava apenas vinte anos quando seu pai
Piero faleceu, deixando-o no controle do banco
internacional dos Médicis e como líder de facto de
Florença. Em abril de 1478, uma família florentina rival,
os Pazzi, tentou assassinar Lorenzo enquanto ele estava
na igreja. Os Pazzi conseguiram matar o irmão dele,
Giuliano, mas Lorenzo escapou e vingou-se dos
conspiradores. Ordenou que fossem colocados para fora
das janelas da Signoria, onde ficaram pendurados em
forcas improvisadas até morrerem estrangulados.
Botticelli recebeu a encomenda de pintar retratos em
tamanho real de todos os conspiradores na parede da
prisão, ao lado da Signoria. Os retratos não existem mais,
mas deviam causar uma visão horripilante, um lembrete
para que a população não se atrevesse com os Médicis.
A despeito das infindáveis disputas políticas, das
guerras entre as várias cidades-Estados e dos problemas
com seu império financeiro, Lorenzo manteve o
mecenato dos artistas e poetas, estabelecendo uma
universidade em Florença e criando postos para
estudiosos gregos que haviam ficado sem trabalho,
depois de escaparem de Constantinopla quando ela caiu
na mão dos turcos. Isso constituiu uma extensão dos
interesses de Lorenzo pelo humanismo, uma força ainda
dominante em Florença. O próprio lema de Lorenzo, “Le
temps revient” (o tempo volta), referia-se a esse
interesse continuado pela Grécia e Roma clássicas, além
de apontar para a palavra que usamos hoje quando nos
referimos àquela época: Renascença ou Renascimento.
Os artistas de Florença reagiram a essa sede
insaciável pela arte e ideias antigas recriando esculturas
de corpo inteiro, como o clássico Davi de Donatello, e
pintando os mitos gregos, como O nascimento de Vênus
de Botticelli (1485-1486). Por outro lado, os artistas
venezianos viviam no presente, como parte de uma
cidade dinâmica, apinhada de comerciantes de todo o
mundo conhecido. No capítulo seguinte, veremos que,
enquanto os artistas venezianos começaram a empregar
a perspectiva florentina, eles também incrementaram a
cor. Em seus ciclos de narrativa épica, eles jogaram luz
sobre os muitos grupos que moravam, trabalhavam e
negociavam nessa próspera cidade-Estado.
Capítulo 13 - O Oriente
encontra o Ocidente
Gentile Bellini sopra as mãos para aquecê-las antes de
pegar no pincel. Ele dá pequeninas pinceladas na tela
para engrossar a barba castanha do sultão Mehmet II. É
primavera em Constantinopla, mas ainda faz frio. Há seis
meses, Bellini partiu de sua cidade natal, Veneza, numa
galera (navio) com dois assistentes, em setembro de
1479. O sultão otomano solicitara um pintor retratista
como parte das negociações de paz em andamento entre
seu reino e Veneza. Os dois territórios – um deles um
império em franca expansão e o outro uma cidade-
Estado italiana abastada – estavam em guerra havia
quinze anos, algo desastroso para o comércio veneziano
e os cofres da cidade. Bellini foi o escolhido para ir a
Constantinopla, um enorme sacrifício para Veneza, uma
vez que ele é considerado o principal artista de sua
geração.
Na capital otomana, Bellini vivenciou a cultura
islâmica, que antes só conhecera pelos produtos
luxuosos negociados em Veneza, como tapetes, livros e
veludos. Ele fazia esboços dos passantes na rua e
pintava escribas trabalhando. A corte de Mehmet
fervilhava de intelectuais e estudiosos que traduziam os
escritos dos filósofos e historiadores antigos gregos e
persas. Esses estudiosos relataram a Bellini que Mehmet
escrevia poesias e falava diversos idiomas. Na verdade,
Bellini achara o líder bastante reservado quando esteve
com ele e havia rumores de que estivesse doente.
Bellini concluiu uma série de esboços do sultão e
agora dá os retoques finais em um retrato a óleo, em que
o sultão aparece por trás de um arco arquitetônico
enfeitado e um parapeito (mureta) coberto por um tecido
ricamente ornado com joias. Para as sessões de pose, o
sultão vestia um cafetã vermelho pesado, fortemente
transpassado no peito, e um manto de pele sem mangas.
Na cabeça, ele usa o fez, pequeno chapéu de feltro
vermelho usado por todos os homens otomanos, com
uma faixa de tecido branca enrolada à sua volta. Bellini
tem ciência de que sua pintura faz parte das negociações
de paz e, portanto, ele não realça os pés de galinha que
marcam o rosto do sultão de cinquenta anos. No entanto,
ele foi empregado para captar as feições do sultão, assim
ele não evita a sobremordida nem o nariz aquilino e o
queixo retraído, embora consiga suavizá-los.
*
Certamente, Mehmet II ficou satisfeito com o retrato
porque concedeu o grau de cavaleiro a Gentile Bellini
(1429-1507) e presenteou-o com uma corrente de ouromaciço. Mehmet, que convidava artistas italianos para
sua corte desde a década de 1450, admirava o realismo
dos retratistas italianos e como pareciam manter o
modelo vivo, mesmo após sua morte. Ao encomendar um
retrato por um artista italiano, ele também reconhecia
suas conexões internacionais e sua posição como líder
mundial. Na pintura, ele conservou o traje otomano, mas
foi pintado como um homem renascentista. Isso é quase
verdadeiro, já que ele apreciava o humanismo e se
cercou de estudiosos gregos, islamitas e italianos, todos
bons conhecedores dos textos da antiguidade clássica.
Na década de 1450, ele tinha conquistado a Grécia e
passou algum tempo em Atenas, onde ficou fascinado
pelo Partenon, transformado por ele em mesquita. Se
Mehmet não tivesse morrido um ano depois que Bellini
concluiu o retrato, ele provavelmente teria tentado
conquistar a Itália para unificar as terras daquele que um
dia fora o grandioso império romano.
À semelhança dos imperadores romanos anteriores a
ele, o retrato de Mehmet foi reproduzido em medalhas de
bronze que circularam amplamente. Várias dessas
medalhas foram confeccionadas na Itália e enviadas a
Mehmet como presentes diplomáticos. Lorenzo de Médici
enviou uma em agradecimento por Mehmet entregar um
dos conspiradores da família Pazzi que tinham tentado
matá-lo.
Mehmet também encomendou retratos a pintores
persas e turcos de sua corte em Constantinopla, a antiga
capital bizantina do Império Romano do Oriente. A
encomenda de retratos italianos e turcos indicava que
ele desejava mostrar o alcance de sua influência tanto no
Ocidente quanto no Oriente. Somente algumas
miniaturas restam nos dias de hoje. Elas têm pouca
noção de profundidade espacial do tipo encontrado no
retrato europeu, mas são ricas em detalhes e
padronagens. Numa pintura de aquarela, supostamente
de autoria do pintor turco Sinan Beg (em atividade entre
as décadas de 1470-1480), Mehmet é visto em perfil de
três quartos. A parte de cima da orelha do sultão é
pressionada pelo peso do turbante. Retratos como esse
se baseavam, de fato, em aspectos do naturalismo
italiano, combinando-os com as tradições da pintura em
miniatura persa e turca. Criou-se, assim, um novo estilo
híbrido que expressava o império multicultural de
Mehmet, e ele permaneceu influente por um bom tempo
no século XVI.
Havia também interação entre os artistas na corte.
Um desenho com aquarela, pena e tinta de um escriba
sentado da época em que Bellini estava em
Constantinopla (e, portanto, muitas vezes atribuído a ele)
mostra como o mecenato de Mehmet estimulava uma
fusão de estilos. Sentado com as pernas cruzadas, o
escriba usa um manto de veludo e um turbante. Sua
presença marcante, como um corpo no espaço, sugere
que um artista europeu seja o autor da pintura, talvez
com um modelo vivo. Por outro lado, a padronagem
decorativa, a escrita árabe à direita e o uso de papel e
tinta sugerem que o artista também conhecia a pintura
em miniatura persa e turca. Misturando ainda mais as
tradições, Beg cria uma imagem similar, dessa vez de um
pintor sentado. Beg emprega um estilo mais decorativo e
aplainado, conservando as tradições da pintura em
miniatura. A figura flutua no espaço, mas não é menos
detalhada, e o rosto é modelado de forma natural, como
um retrato italiano. Muitas vezes essa pintura é vista
como uma cópia quase fiel do escriba sentado, mas e se
eles tivessem sido pintados ao mesmo tempo, por dois
artistas bem-sucedidos na mesma corte, ambos
experimentando os estilos um do outro?
É possível que, ao voltar para casa, Bellini tenha se
surpreendido pelas semelhanças entre Constantinopla e
Veneza, já que as duas cidades eram centros comerciais
de grande porte e viviam apinhadas de gente de culturas
diferentes, falando diversas línguas. O cardeal grego
Bessarion prestou grande homenagem a Veneza ao
denominá-la “outra Bizâncio”, equiparando-a a
Constantinopla. O diplomata francês Philippe de
Commynes descreveu Veneza como “a cidade mais
triunfante que já vi, capaz de honrar embaixadores e
estrangeiros”. Negociantes flamengos, ávidos por
comprar produtos luxuosos vindos de Constantinopla e
da Rota da Seda, se esbarravam com embaixadores
orientais. Islamitas, judeus e cristãos se misturavam na
praça central, onde os prédios fundiam a arquitetura
gótica europeia com a islâmica e onde domos e mosaicos
bizantinos cobriam a igreja católica de São Marcos. A
quantidade de alemães e dálmatas residentes em Veneza
era suficiente para que formassem as próprias confrarias,
chamadas Scuole [escolas]. Cada grupo (ou Scuola) tinha
a própria sede e zona de comércio na cidade.
Bellini se especializou em pinturas narrativas que
cobriam as paredes das ricas Scuole e dos prédios do
governo, incluindo o Palácio do Doge. Ao lado de artistas
como Vittore Carpaccio (cerca de 1465-1525), Bellini
homenageou o cotidiano de Veneza ao situar cenas de
procissões religiosas, milagres e histórias da Bíblia contra
o pano de fundo contemporâneo da cidade, exibindo sua
diversidade de residentes. Essas pinturas são
incrivelmente detalhadas, como se oferecessem um
relato testemunhal das verdadeiras procissões e
milagres. Na Procissão na Praça de São Marcos de 1496,
pintada para a Scuola Grande di San Giovanni
Evangelista, vemos integrantes dessa Scuola em
procissão em torno da praça, em frente à basílica
bizantina de São Marcos e ao palácio gótico e islâmico do
doge. O cotidiano prossegue à volta deles: quatro
comerciantes gregos com chapéu de aba preto discutem
negócios à esquerda da praça, enquanto três homens de
turbante estão diante da basílica. Em O milagre da
relíquia da cruz na ponte Rialto, de Carpaccio (1494),
pintado para a mesma Scuola, o evento religioso do título
acontece numa loggia (sacada coberta) de primeiro
andar na extrema esquerda. Nossa vista, porém, é
desviada para a ação no Grand Canal, a principal via de
comunicação de Veneza. Vemos mercadores armênios e
homens turcos negociando na ponte Rialto, o centro do
comércio veneziano, e um gondoleiro africano
conduzindo uma gôndola pelo canal movimentado. As
diversas Scuole que apoiavam a pintura narrativa
acolhiam a diversidade de uma cidade construída sobre
uma rede de comércio internacional que se estendia do
norte da Europa até Constantinopla e pela Ásia e África.
Ainda que Gentile Bellini fosse honrado como o
principal artista veneziano de seu tempo, são as pinturas
de seu irmão caçula Giovanni (por volta de 1430-1516)
as mais conceituadas hoje em dia. Ambos se valeram das
primeiras explorações do pai Jacopo no campo da
perspectiva florentina e da cor veneziana. A essa,
Giovanni acrescentou a luminosidade, uma forma de
fazer as pinturas brilharem com vida, empregando
velaturas para obter a cor. Vimos essa técnica pela
primeira vez nas pinturas de pintores renascentistas
nórdicos como Jan van Eyck que, por volta do final do
século XV, eram cada vez mais exportadas para a Itália.
Em seu trabalho com tinta a óleo sobre painéis de
madeira, Giovanni Bellini deu nova vida aos retratos e às
cenas religiosas venezianas. Ele recebeu a incumbência
de pintar o novo doge, Leonardo Loredano, em 1501, e o
retrato finalizado mostra Loredano em seus trajes oficiais
de gala, de pé, por trás de um parapeito de pedra, sobre
um fundo azul vibrante. Giovanni Bellini capta o brilho da
caríssima seda adamascada em branco e dourado,
dando-lhe exatamente o caimento necessário em dobras
até a densa fileira de botões semelhantes a conchas, que
fecha a veste. A luz parece vir da direita do doge e realça
o friso de ouro de seu corno ducale (gorro rígido com bico
na parte de trás) da mesma forma como é absorvida pela
pele envelhecida. As feições do doge são sérias a
despeito do olhar distante, e sua boca é resoluta, ou seja,
o retrato de um homem pintado com cada centímetro de
sua autoridade preservada. Ele esteve originalmente
pendurado na câmara do conselho no Paláciodo Doge,
acima das pinturas de história narrativa de Gentile
Bellini, situando Loredano em uma extensa linha de
líderes que haviam conservado a independência de
Veneza e administrado sua riqueza por séculos.
Ao compararmos o retrato do sultão, de Gentile Bellini,
com o do Doge, é possível apreciar a grande habilidade
de seu irmão Giovanni. O sultão é realista e está sentado
por trás de um parapeito, e o mesmo pode ser dito do
Doge. Entretanto, parece que a qualquer momento o
Doge pode se virar e olhar para nós com seu olhar duro.
Esquecemos que estamos diante de uma pintura e
sentimos como se estivéssemos olhando para um
homem presente ali na sala conosco.
O artista alemão Albrecht Dürer (1471-1528) esteve
em Veneza e elogiou Giovanni Bellini como “o melhor de
todos os pintores”. A cidade era um chamariz para
artistas ambiciosos e Dürer passou duas temporadas em
Veneza, ansioso por estudar a arte renascentista em
primeira mão e encontrar mecenas ricos. Na segunda
vez, ele pintou sua primeira obra importante, a Festa do
rosário (1506). Apesar das dificuldades com as
autoridades e os rivais invejosos, essa pintura firmou sua
reputação em Veneza. O Doge e o patriarca, chefe da
Igreja Católica em Veneza, foram conhecer a pintura no
ateliê de Dürer e, mais tarde, o pintor escreveu que o
Doge tinha pedido para que ele ficasse e trabalhasse
para a cidade (ele recusou). A Festa do rosário foi
instalada na igreja de São Bartolomeu, associada à
Fondaco dei Tedeschi, o centro de comércio e de acolhida
para todos os negociantes alemães.
A Festa do rosário reverencia a paleta veneziana de
Giovanni Bellini com seus azuis-claros e amarelos
luminosos. Os dois artistas inspiraram-se no naturalismo
e na atenção aos detalhes, vistos nas pinturas dos
primórdios do Renascimento nórdico. No entanto, em
contraste com as cenas tranquilas de Giovanni, a pintura
de Dürer é pura ação. A Virgem, o Menino Deus e os
anjos, todos oferecem guirlandas de rosas a uma
congregação de joelhos que inclui o papa e o imperador
Frederico III. De alguma forma, a despeito dos anjos
voejando pelos céus sobre nuvens inverossímeis e a
Virgem tocando a cabeça do imperador, Dürer consegue
fazer a improvável cerimônia ao ar livre parecer real. A
pirâmide central das formas, com o papa em ouro, o
imperador em vermelho e a Virgem em azul, parece
inteiramente natural. Assim é, em grande parte, porque
Dürer pinta a relva sob seus joelhos, as árvores
retorcidas que emolduram a cena e as montanhas
distantes ao fundo com tanta precisão que
menosprezamos os elementos mais artificiais.
Veneza era um cadinho de nacionalidades e culturas,
com diversos mecenas abastados que encomendavam
arte em grande escala. A maioria dos artistas venezianos
não sentia necessidade de viajar para outras cidades-
Estados à procura de trabalho, mas não era esse o caso
em outras partes da Itália. Cada vez mais, muitos dos
artistas italianos mais ambiciosos decidiam se mudar
para Roma para tentar trabalhar para o papa. No capítulo
seguinte, seguiremos três dos maiores artistas do
Renascimento que optaram por deixar a cidade de
Florença em busca de encomendas lucrativas. Esses
artistas são tão familiares para nós hoje que os
conhecemos simplesmente pelo primeiro nome:
Michelangelo, Leonardo e Rafael.
Capítulo 14 - O retorno de
Roma
É meia-noite do dia 14 de maio de 1504, e um homem
nu gigantesco começa a passar pelas ruas silenciosas de
Florença. O homem é Davi, a mais ambiciosa escultura
de Michelangelo até aquele momento. Ele levou dois
anos para esculpi-la e quase esse mesmo tempo o
conselho dirigente da catedral precisou para chegar a um
consenso sobre a localização da estátua. Michelangelo
assinou um contrato para fazer a escultura colossal ser
instalada no alto da fachada da catedral, mas, por fim, o
conselho decidiu dar a ela uma localização mais pública.
Ela devia ser colocada do lado externo do Palazzo della
Signoria, sede do governo florentino.
O bloco de mármore grande e estreito que a igreja
fornecera a Michelangelo estava longe do ideal. Dois
outros escultores já haviam tentado trabalhá-lo e
desistido, dada a impossibilidade de usá-lo segundo as
condições da catedral. Michelangelo recebia seis florins
de ouro (em torno de mil libras esterlinas hoje),
acrescidos de materiais e auxiliares, para executar a
nova escultura. Agora, o gigantesco Davi está ali, nu
como um deus grego, e a funda que leva no ombro é o
único indício de seu papel na história bíblica de Davi e
Golias.
O desejo de Michelangelo é ver Davi competindo com
as esculturas gregas e romanas da antiguidade, em
particular com as figuras colossais nuas de Castor e Pólux
que ele conheceu no complexo de banhos do imperador
Constantino. O seu Davi tem cachos desalinhados e um
rosto de beleza clássica. O corpo é esguio e musculoso,
as mãos fortes como as de um escultor, com veias
salientes. Davi foi esculpido para ser visto a uma grande
altura, daí a cabeça e as mãos serem maiores do que
deveriam ser normalmente. Agora elas estão amarradas
com cordas e a escultura por inteiro repousa sobre uma
plataforma com rodas, que transporta a escultura do
pátio de Michelangelo para o Pallazo della Signoria. Os
quarenta homens reunidos ao redor da estátua
sustentam a tensão das cordas, enquanto Davi,
lentamente, inicia sua jornada.
*
Na adolescência, Michelangelo Buonarroti (1475-1564)
foi aprendiz na nova escola de escultura de Lorenzo de
Médici, em Florença. Lorenzo sustentava artistas em
todos os estágios de carreira e, aos quinze anos, o “pavio
curto” Michelangelo tornou-se parte de sua família e
residiu no palácio Médici por dois anos. Ali, no pátio, ele
deve ter tido a oportunidade de estudar o Davi de bronze
de Donatello. A escultura de Donatello é da altura de um
adolescente, já o Davi de Michelangelo tem mais do que
o triplo em tamanho. Com cinco metros de altura, ele é
mais alto do que um ônibus de dois andares, e era a
maior escultura feita na Itália desde o tempo dos
romanos.
Michelangelo era um jovem artista ambicioso, capaz
de pintar e esculpir. Ao terminar a escultura de Davi, ele
foi contratado para pintar uma das duas cenas de
batalha para o Salão da Câmara do Conselho [Salão dos
Quinhentos]. Leonardo da Vinci (1452-1519) viera de
Milão para Florença para pintar a outra cena, mas, no
final, nenhuma das duas foi concluída. Michelangelo
mudou-se para Roma e Leonardo começou a pintar a
esposa de um rico negociante de seda, Lisa del
Giocondo, que hoje conhecemos como Mona Lisa.
Com o emprego da velatura e de excelentes pincéis,
Leonardo conseguia misturar as cores a ponto de ser
impossível distinguir onde uma terminava e outra
começava. Essa técnica era conhecida como sfumato,
significando esfumado ou embaçado. Na Mona Lisa, a
esposa do comerciante está sentada, com as mãos
sobrepostas, usando um vestido bordado com fio de
ouro, e os cabelos soltos sob um véu transparente. O
corpo está em ângulo, mas a cabeça virada a faz olhar
de frente. Com um vestígio de sorriso nos lábios, seus
olhos fitam os nossos calmamente. Por trás dela, uma
paisagem fantasiosa se esvai na distância, dando à
pintura uma qualidade onírica.
Leonardo jamais entregou a pintura à Lisa ou ao seu
marido, conservando-a consigo até a morte. Ainda que
hoje seja avaliada como uma obra-prima, é possível que
Leonardo a tenha considerado inacabada. Em termos
relativos, ele concluía poucas das pinturas que
começava, frustrando os que as haviam encomendado.
Muitas vezes, ele experimentava diferentes tipos de
tinta, nem sempre com êxito (a cena de batalha no Salão
da Câmara do Conselho começou a escorrer pela parede
antes mesmo de ser concluída). Leonardo era fascinado
pelo mundo. Ele mantinha cadáveres retalhados para que
pudesse estudá-los e fez esboços de todos os estágios da
vida, do feto à velhice e à deformidade. Estudou o voo
dos pássaros e traduziu-o em desenhos para um
protótipode helicóptero. Criou maquinário para guerras,
soluções para distribuição de água e fortificações para a
cidade. Da Vinci era canhoto e fazia suas anotações ao
contrário, da direita para a esquerda, provavelmente
para evitar manchá-las ou protegê-las de olhos curiosos
(é preciso um espelho para lê-las).
Leonardo pintou retratos a óleo primorosos de várias
mulheres e prometeu pintar Isabella d’Este, esposa de
Francesco Gonzaga, governante de Mântua, uma
pequena cidade-Estado italiana muito rica. Isabella e
Francesco tinham se casado quinze anos antes e desde
então ela se tornara uma colecionadora de arte
insaciável. Ela criou um studiolo, uma sala de estudo
com decoração rebuscada, repleta de pinturas
encomendadas dos principais artistas, e uma grotta ou
sala das coleções, onde ela exibia arte antiga, livros e
medalhas. Era um feito inédito para uma mulher daquela
época. Ela tinha implorado a Leonardo que pintasse seu
retrato e ele concordara, mas somente dois desenhos em
giz se concretizaram. Isabella mantinha uma
correspondência impressionante com diversos
informantes especializados em arte por toda a Itália,
seguindo as atividades de Leonardo através das cartas
de um monge de Florença e sabendo das esculturas de
Michelangelo à venda por intermédio de seu agente de
arte em Roma.
Sob o papado de Júlio II, e pela primeira vez desde a
antiguidade, Roma rapidamente estava se tornando a
cidade italiana mais importante para a arte. Júlio
assumira o poder em 1503 e estava determinado a
tornar Roma a maior cidade da Europa. Ele
compreendera que a arte era essencial para alcançar tal
posição. Ele encomendou os projetos mais ambiciosos e
contratou os melhores artistas disponíveis. Seu
mecenato se espelhava no dos Médicis da Florença do
século XV. Lorenzo de Médici apoiara muitos artistas,
inclusive Michelangelo e Leonardo, mas falecera em
1492. Seu primogênito, Piero, não possuía as mesmas
habilidades de liderança, e em dois anos a família Médici
tinha sido banida de Florença. O tempo de Lorenzo “o
Magnífico” terminara. Com os Médicis eLivross, Roma
tornou-se o novo centro do Renascimento.
Michelangelo, Leonardo e o jovem e promissor pintor
Rafael (Raffaello Santi, 1483-1520) se mudaram para
Roma. Michelangelo chegou primeiro, quando o papa o
contratou para criar seu mausoléu monumental, de três
andares, e coberto com mais de quarenta estátuas.
Michelangelo trabalhava nessa obra quando a escultura
antiga Laocoonte foi descoberta na escavação de um
vinhedo em Roma, e o papa o enviou lá para dar uma
olhada. À época de sua realização, Plínio o Velho afirmara
que Laocoonte era a melhor escultura existente, mas era
dada como perdida até aquele momento. O papa
adquiriu imediatamente a escultura para seu jardim de
esculturas no Vaticano (a sede da Igreja Católica) onde
Michelangelo podia estudá-la à sua conveniência.
O mausoléu do papa trouxe muitos problemas para
Michelangelo. No final, ele levou quarenta anos para
concluir o projeto, que foi muito reduzido quando Júlio
morreu. No entanto, como Michelangelo trabalhara nele
no princípio, as pessoas ficaram com inveja do seu
talento. De acordo com o primeiro biógrafo de
Michelangelo, Ascanio Condivi, o arquiteto Donato
Bramante persuadiu o papa a dar a Michelangelo uma
nova incumbência, interrompendo seu trabalho no
mausoléu. A esperança de Bramante era de que isso
frustrasse Michelangelo de tal forma que sua ira o
levasse a sair de Roma para sempre. A nova encomenda
era pintar todo o teto da Capela Sistina. Botticelli,
Ghirlandaio e outros artistas tinham pintado os afrescos
das paredes inferiores trinta anos antes, quando o teto
fora pintado de azul com estrelas douradas espalhadas
em toda a sua extensão, representando o cosmos. Agora,
o papa queria cobrir o céu inteiro com figuras bíblicas.
A essa altura, Michelangelo já realizara várias
pinturas, mas deve ter se sentido amedrontado com
aquela encomenda, para não falar da raiva por ter de
interromper o trabalho no mausoléu para assumi-la. Não
era de surpreender que ele quisesse aprontar o teto o
mais rápido possível. O único problema era a extensão
de 40 metros e os mais de 13 metros de largura, ou seja,
praticamente do tamanho de um campo de futebol
society. O teto era curvo, e o ponto mais elevado distava
20 metros do chão. A primeira tarefa de Michelangelo foi
inventar um modo de chegar lá em cima, e ele desenhou
o próprio andaime de madeira. Empregando a técnica do
afresco, ele pintava sobre o gesso úmido, que tinha de
ser aplicado a cada manhã. Para garantir a proporção das
figuras e manter cada seção alinhada, ele trabalhava
com base em desenhos de tamanho natural, chamados
“cartone” [folha de papel bem grande]. Os esboços
nessas grandes folhas eram pregados em intervalos
regulares. Depois, os “cartone” eram sustentados sobre o
trecho do dia em gesso úmido e carvão em pó era
passado sobre eles, deixando pontinhos pretos que
recriavam os contornos dos desenhos.
Iniciado em 1508, Michelangelo levou quatro anos
para concluir o teto da Capela Sistina. Nove painéis
recontando o Gênesis, o primeiro livro da Bíblia,
ocupavam toda a extensão do teto. Deus ilumina o
mundo e dá vida a Adão e Eva estendendo a mão divina.
Em seguida, o casal é expulso do Paraíso e Deus pune a
humanidade, desencadeando o grande dilúvio.
Michelangelo pintou as figuras como se fossem formas
esculturais, como o Laocoonte, dando-lhes peso e
solidez, trabalhando cuidadosamente com o escorço, ou
seja, quando vistas do chão as figuras parecem estar de
fato sentadas ou deitadas ao longo da curvatura do teto.
Descendo pelas paredes laterais, sibilas e profetas
gigantescos estão todos sentados num cenário
arquitetônico pintado que engana a vista, levando-nos a
pensar que o teto é uma abóbada de cornijas e colunas.
As sibilas (profetisas que previam o futuro) são bem
maiores do que as figuras de Deus, de Adão e de Eva.
Elas exibem uma compreensão surpreendente da
musculatura do corpo humano, embora muitas, como a
sibila da Líbia, pareçam masculinizadas, com costas
largas e antebraços fortes. Michelangelo optou por
desenhar nus masculinos, e não femininos, e sendo gay e
solteiro seu conhecimento das formas femininas era
limitado. Vinte belos Ignudi (homens nus), que relaxam e
se reclinam pelo teto emoldurando os painéis centrais,
parecem ter merecido mais atenção.
Michelangelo trabalhava no alto de seu andaime, com
os braços estendidos, o pescoço pendido para trás,
pintando contra a gravidade. Nesse ínterim, Rafael
pintava em condições muito mais favoráveis exatamente
do outro lado do pátio (de 1509 a 1511). Aos 25 anos,
Rafael pintou afrescos nos aposentos privativos do papa.
Um aposento, hoje conhecido como Stanza della
Segnatura (Sala do Tribunal), foi destinado à biblioteca
papal. A temática do desenho refletia os quatro ramos do
conhecimento humanista: filosofia, teologia, literatura e
justiça. Em vez de criar alegorias da filosofia ou da justiça
(figuras simbolizando essas áreas do conhecimento),
Rafael pintou gente de verdade, dando vida aos autores
dos livros que forrariam as paredes abaixo dos afrescos.
Rafael homenageou pensadores históricos e
contemporâneos, pintando-os em locais que evocavam a
Grécia antiga e a Roma de então. Sua parede de afrescos
com filósofos, cientistas e matemáticos é hoje conhecida
como A escola de Atenas. Rafael pintou um arco através
do qual percebemos um interior arejado cheio de
esculturas. Filósofos de todas as idades se reúnem para
conversar, com Platão se dirigindo ao discípulo
Aristóteles, no centro. Platão aparece como um ancião,
de cabelos e barbas brancas, e é possível que seja um
retrato de Leonardo. Com o solitário carrancudo que
apoia o cotovelo sobre um bloco de pedra, mais à frente,
Rafael retrata Michelangelo (sob a forma do filósofo
grego Heráclito), e chega a incluir o próprio retrato, a
figura de um jovem com boné preto, vislumbradopor trás
de Ptolomeu bem à direita.
Depois de concluir a Capela Sistina e os aposentos
papais, Michelangelo voltou para Florença, onde os
Médicis haviam reconquistado o controle da cidade.
Rafael ficou em Roma, feliz em poder desfrutar de sua
posição na corte e assumir novas incumbências para o
papa Júlio II e seu sucessor, papa Leão X. O novo papa
era filho de Lorenzo de Médici, e ele desejava deixar sua
marca pessoal na Capela Sistina. Mas como seria
possível competir com o teto de Michelangelo? Sua
solução foi encomendar a Rafael um conjunto de
tapeçarias a serem penduradas abaixo do teto. As
tapeçarias representavam a vida de São Pedro e São
Paulo, os fundadores da Igreja Católica. Elas custaram
dez vezes mais do que o valor pago a Michelangelo pelo
teto. Apesar do custo, vários conjuntos dessas tapeçarias
foram bordados em Bruxelas com base nos mesmos
“cartone” detalhados. O rei inglês Henrique VIII viria a
encomendar um conjunto para seu palácio em
Westminster. Ele as solicitou poucos anos depois de ter
definitivamente arrancado a Inglaterra do controle do
papa e fundado a Igreja Anglicana. Teremos de esperar
até o capítulo 16 para conhecer a corte de Henrique VIII,
mas no próximo veremos como a inquietação religiosa já
agitava o norte dos Alpes. Isso impactou os artistas, pois
o protestantismo começou a crescer e o reformador
religioso Martim Lutero acusou a rica Igreja Católica de
corrupção.
Capítulo 15 - Fogo e enxofre
Ano de 1515. Na pequena cidade de ‘s-Hertogenbosch
nos Países Baixos, Hieronymus Bosch pousa o pincel e
considera finalizada a pintura à sua frente. Talvez ele
devesse dizer pinturas, porque são três painéis de
carvalho a serem emoldurados juntos em um tríptico, em
que os painéis da direita e da esquerda se fecham sobre
a imagem central. Na parte externa, ele pintou um pobre
viajante perseverando no seu caminho apesar dos
perigos e tentações que o cercam. Já no interior, as
pessoas não são tão inteligentes. Elas avidamente
agarram punhados de feno de uma carroça carregada,
ignorando o Cristo, que paira numa nuvem ao alto,
julgando-as. O diabo encaminha a carroça de feno para o
inferno, mas ninguém percebe, nem mesmo o papa, que
segue atrás a cavalo, cego pela ganância. No painel
esquerdo, o pecado deles se inicia, com Eva colhendo a
maçã no Jardim do Paraíso. À direita, há uma evocação
fantasiosa do inferno, com homens estripados, devorados
por cães e trespassados por estacas.
Em geral, os painéis articulados são pintados para
igrejas e contam histórias da vida de Cristo. O carro de
feno, no entanto, não se destina a um ambiente religioso,
e Bosch tem dúvidas se alguma igreja o exibiria! É uma
sátira sobre a estupidez humana. A seu ver,
comportamentos egoístas e grosseiros são uma
passagem sem volta para o inferno. Bosch relembra um
tríptico anterior de sua autoria que tinha o pecado
igualmente como tema. Nessa pintura, o Jardim das
delícias terrenas, Adão e Eva também ocupam o painel
esquerdo. A paisagem fértil do Paraíso se expande para o
painel central e, nesse falso paraíso, homens e mulheres
se divertem no calor do sol, fazendo sexo à vontade e se
refestelando com os morangos maduros. Bosch queria
que fosse como um sonho, os corpos brancos e negros
nus diminuídos por pássaros gigantescos e frutos
avantajados, a pintura como um todo como uma fruta
madura demais, doce, porém quase estragada. O sonho
vira um pesadelo no painel da direita. Uma harpa e um
alaúde viram crucifixos, enquanto um homem-pássaro
enorme engole figuras inteiras. Bosch estudou pássaros e
animais a fundo, bem como feras grotescas nos
manuscritos iluminados e em gravuras de colegas
artistas. No entanto, ele ainda acha que as melhores
criaturas que pinta são frutos de sua imaginação e as
coloca para trabalhar no sentido de revelar as
profundezas a que a humanidade pode sucumbir.
*
Bosch nasceu como Hieronymus van Aken (por volta
de 1450-1516), filho de alemães que imigraram para os
Países Baixos. Ficou conhecido como Bosch porque sua
cidade natal era ‘s-Hertogenbosch. (Muitos artistas
perdiam seu nome de batismo dessa forma.) É possível
que a ascendência de Bosch o tenha levado a estudar as
gravuras de artistas alemães como Martin Schongauer
(em atividade de 1471 a 1491). A árvore rebuscada na
parte frontal do Jardim das delícias terrenas, suas folhas
de palmeira buscando os céus, é semelhante a uma
gravada por Schongauer. É possível que ele também
tenha se inspirado no poema popular Roman de la Rose,
de Guilherme de Lorris. O poema é ambientado em um
sonho dentro de um jardim, repleto de aves canoras e
fontes tilintantes. Bosch, porém, inseriu a condenação no
sonho, criando seu viés mordaz baseado no Juízo Final da
Bíblia.
Bosch morreu em 1516, enquanto Rafael terminava os
“cartone” detalhados para as tapeçarias caríssimas do
papa Leão X. Nessa época, Mathis Gothardt, agora
conhecido como Matthias Grünewald (1470-1528), era
um dos mais destacados artistas da Alemanha, junto a
Albrecht Dürer (que conhecemos quando ele esteve em
Veneza, no capítulo 13). Grünewald se especializou em
pinturas de cenas da crucificação, e elas provavelmente
foram tão chocantes quanto as cenas de depravação de
arregalar os olhos pintadas por Bosch ao serem
instaladas pela primeira vez nas igrejas e nos mosteiros.
A mais conhecida crucificação de Grünewald (1512-1516)
cobriu os painéis fechados do Retábulo de Issenheim,
uma obra imponente de múltiplos painéis, executada
para o altar-mor da capela do hospital no mosteiro de
Santo Antônio, na Alsácia. Nesse retábulo, ele nos
oferece o Cristo mais torturado da arte ocidental. A
imagem, em tamanho maior do que o natural, aparece
pregada numa cruz rudimentar, tendo ao fundo uma
paisagem sombria. Os dedos do Cristo, em espasmos de
dor, se contorcem na direção de Deus. O corpo
definhado, vestido apenas com um pedaço de pano
esfarrapado, está coberto de ferimentos e cravado de
espinhos, e a pele adquiriu um tom pútrido de cinza
esverdeado, como se começasse a gangrenar. De olhos
fechados, a boca aberta de dor, a coroa de espinhos
criou filetes de sangue que escorrem pelo rosto,
empapando a barba.
Ao pé da cruz, sua mãe Maria desmaia, com as mãos
unidas em oração. Santo Antônio e São Sebastião
observam, nos painéis laterais, como testemunhas
impotentes. O hospital em Issenheim tratava daqueles
acometidos pelo Fogo de Santo Antônio, o ergotismo,
uma doença que se alastrou no século XVI. As vítimas
eram levadas à loucura, conforme a gangrena atacava
suas mãos e pés. O Cristo de Grünewald, com o corpo
decadente, parece encarnar, a um tempo, a dor deles e a
sua própria.
Abertos, os painéis externos do Retábulo de Issenheim
mostravam uma atmosfera mais animada. A Anunciação
e a Natividade, à esquerda, contrabalançavam com a
Ressurreição do Cristo, à direita, com seu corpo
recuperado e envolto por uma luz dourada. Essas cenas
internas só eram exibidas à congregação em
determinados dias do ano, e no dia de comemoração de
Santo Antônio também se dobravam de volta para
revelar duas outras pinturas de Grünewald,
representando a tortura do santo por monstros com
chifres e penas. Essas pinturas internas ladeiam uma
escultura dourada do santo, obra de Nicolau de
Haguenau (por volta de 1445/60-1538).
Entretanto, falta à escultura de Nicolau de Haguenau,
no cerne do retábulo, a expressão apaixonada das
pinturas de Grünewald. Os escultores costumavam ser
empregados para criar as estatuetas centrais escondidas
dentro dos retábulos. O melhor escultor alemão da época
era Veit Stoss (1447-1533), que trouxe vida à madeira
com toda a habilidade que vimos Claus Sluter aplicar à
pedra no capítulo 11. Stoss esculpiu estatuetas para o
interior dos retábulos e também para serem expostas
nas igrejas. Ele empregava os maiores troncos de tília
para suas esculturas mais ambiciosas, como a
Anunciação do Rosário (1517-1518), que fica no coro da
igrejade São Lourenço, em Nuremberg, na Alemanha.
Um rosário oval, mais alto do que o Davi de
Michelangelo, contorna duas esculturas compactas do
anjo Gabriel e da Virgem Maria. Stoss esvaziou o interior
das esculturas para aliviar o peso (e reduzir o risco delas
se partirem). Ele esculpiu fundo na madeira para criar
cachos de cabelo e dobras generosas de tecido, e usou
tintas caras para fazer suas esculturas parecerem de
carne e osso.
Muitos artistas do norte da Europa dessa geração se
envolveram com a política da época. Tornaram-se
ardentes seguidores de Martim Lutero, um reformador
religioso da Universidade de Wittenberg, na Alemanha,
que ousou desafiar a Igreja Católica com acusações de
corrupção e ganância. Em 1517, Lutero tornou públicas
suas acusações pregando-as na porta de uma igreja de
Wittemberg, dando início, assim, à Reforma Protestante.
Artistas como Grünewald, Dürer e Lucas Cranach (1472-
1553) se apressaram em aderir à causa luterana, com
Dürer e Cranach pintando retratos de Lutero e Cranach
ilustrando seus panfletos inflamados. Bosch o teria
aprovado, pois Lutero acreditava que os seres humanos
tinham uma tendência natural para o pecado e só
poderiam ser redimidos pela fé em Deus e por uma
bússola moral própria. Eles não deveriam poder comprar
o perdão do papa com o gerador de receita que foi a
venda papal das “indulgências”, uma forma de ter os
pecados perdoados mediante o pagamento de uma taxa.
A prensa foi um grande trunfo para Lutero por lhe
permitir a rápida distribuição de seus panfletos e ideias
para uma rede internacional de simpatizantes. A prensa
com tipos móveis tinha sido inventada por Johannes
Gutenberg por volta de 1450 na Alemanha e
rapidamente se espalhou pela Europa. (Antes dessa data
todos os livros eram manuscritos.) Imagens talhadas em
blocos de madeira podiam ser gravadas ao lado do texto
tipografado, e muitas cópias eram obtidas de forma
rápida e barata. Em 1521, Lutero juntou o texto de Philip
Melanchthon e as talhas de Cranach para o seu Passional
Christi und Antichristi, uma série compacta do tipo
compare e contraste de treze pares de imagens, em que
a riqueza e os excessos da Igreja Católica eram
contrapostos à vida virtuosa de Cristo. Conforme a
Reforma ganhava fôlego, os protestantes começaram a
desafiar o uso de imagens devocionais, exatamente
como vimos os iconoclastas ortodoxos fazerem no
capítulo 7, mas no princípio Lutero usou os melhores
artistas para ajudar a fortalecer e disseminar suas ideias
religiosas. As gravuras de Cranach são um exemplo de
como a imagem poderia ser colocada a serviço dessa
nova religião para criar uma propaganda poderosa.
Cranach representou um Cristo descalço açoitando os
vendilhões do templo, enquanto a imagem oposta
mostrava o papa sobre um estrado elevado, sentado
num trono almofadado, observando o dinheiro entrando
enquanto assinava as indulgências. Em outro par de
imagens, Cristo reza do lado de fora, enquanto o papa
aproveita um suntuoso banquete. Nas talhas de Cranach,
o papa muitas vezes aparece elevado, assediado por
cardeais com mantos rebuscados, retirados da vida entre
a população. Ele é mostrado com todas as benesses do
cargo, participando de cerimônias teatrais. Por outro
lado, o Cristo circula livremente entre seus seguidores,
contando parábolas ou curando os enfermos. A proporção
do mausoléu do papa Júlio II, no qual Michelangelo ainda
trabalhava quando Cranach criou essas xilogravuras, dá
uma ideia do gosto da Igreja pela grandiosidade e pelo
excesso.
Dürer, grande amigo de Cranach, também fez
xilogravuras e usou a técnica para sua série Apocalipse,
criando algumas das mais expressivas xilogravuras já
vistas. No final das contas, entretanto, a xilogravura era
limitada em termos de sutileza e de tonalidade, e Dürer
cada vez mais optou por gravuras em metal. Seguindo os
contornos de um desenho, usava-se um instrumento
chamado buril para gravar uma imagem sobre uma folha
de cobre, chamada placa. A tinta era esfregada nos
sulcos e colocava-se papel úmido por cima. A placa e o
papel eram então passados por uma prensa calcográfica
que os empurrava juntos, fazendo com que a tinta fosse
transferida dos sulcos para o papel. Quando o papel era
retirado, obtinha-se uma impressão inversa do desenho
gravado na placa de cobre. Era um processo passível de
centenas de reproduções antes que as linhas da placa
começassem a borrar e ela tivesse de ser abandonada ou
refeita.
Dürer viveu em Nuremberg e foi o mais talentoso
gravador do século XVI. Ele não almejava a comunicação
em massa com suas gravuras (ao contrário de Lutero e
Cranach), mas sim a maior disseminação possível de sua
arte, orientada para um mercado apreciador de
qualidade. Diferentemente das pinturas e esculturas, que
em sua maioria eram feitas sob encomenda, a esperança
dos gravadores era que suas obras fossem populares.
Eles viajavam pelo país ou até mais além para vender
gravuras isoladas ou séries delas nas feiras das cidades.
O amor de Dürer pela natureza preenchia suas gravuras,
muitas vezes repletas de animais e pássaros observados
em detalhe. O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, de 1513, é
uma gravura grande que lhe rendeu enorme sucesso.
Com base em um texto humanista de Erasmo de
Roterdam, ele mostra um cavaleiro cristão a cavalo,
determinado a manter seu rumo a despeito das
tentativas do diabo para distraí-lo. O nível do
detalhamento faz a gravura ter vida, pois é possível
distinguir o brilho da pelagem do cavalo e da armadura
do cavaleiro. Dürer consegue conferir à gravura toda a
textura e o detalhe de uma pintura sem usar uma única
cor. Agnes, esposa de Dürer, e sua criada Susanna
vendiam gravuras como essa nas feiras alemãs, e
quando os três viajaram para os Países Baixos, em 1520-
1521, essa foi uma das muitas gravuras que levaram.
Eles vendiam cópias a mecenas, trocavam-nas por obras
de outros artistas e usavam-nas para trocar por materiais
caros como o ultramarino.
Como ávido colecionador de gravuras e obras de arte,
Dürer trocava desenhos com Rafael e adquiriu uma
miniatura do Cristo da adolescente Susanna Horenbout
em Gante (vamos reencontrá-la em breve). Durante a
visita aos Países Baixos, ele pagava para que abrissem os
retábulos e ele pudesse estudá-los, inclusive o Retábulo
de Gante, que vimos no capítulo 11. Ele a denominou
“uma pintura preciosíssima, cheia de reflexão”. Dürer foi
também um dos primeiros neerlandeses a testemunhar a
riqueza do material enviado do “Novo Mundo” pelo
conquistador espanhol Hernan Cortez, ao ser exibido no
Palácio Coudenberg em Bruxelas, em 1520, como parte
de uma excursão pela Europa.
As esculturas da Mesoamérica (hoje América Central)
surpreenderam Dürer, que chamou a nação dos Astecas
de a “nova terra do ouro”. “Por todos os dias de minha
vida”, escreveu, “nada vi que alegrasse mais o meu
coração do que essas coisas, porque vi entre elas obras
de arte maravilhosas, e muito me admirei com os tipos
sutis de homens em terras estrangeiras.” Para os
europeus do início do século XVI, o mundo se expandia
rapidamente e, conforme veremos no capítulo seguinte,
Dürer era um grande entusiasta disso.
Capítulo 16 - Os bárbaros
estão chegando
Montezuma II, governante dos astecas, reflete sobre o
que acabou de ouvir. O ano é 1520 e um grupo de
espanhóis liderados por Hernan Cortez, que aportaram
na costa de seu reino há poucos meses, encontraram e
derreteram uma imensa quantidade de ouro em
esculturas e equipamentos de guerra astecas. E para
quê? Para embarcar o ouro de volta ao seu país
empobrecido. Eles não têm respeito, pragueja ele, são
gananciosos como porcos selvagens. Ao invadir cidades
inimigas, os astecas respeitam a arte que encontram, ele
pensa. As esculturas toltecas dos chacmools (estátuas
reclinadas), de cores vibrantes, hoje estão nos templos
de sua cidade para guardar corações sacrificados, e os
artistas do Vale de Tehuacán, conquistado por ele, agoratrabalham para ele nos projetos de maior destaque.
Os olhos espanhóis se arregalaram desde que
chegaram à cidade de Tenochtitlán. É como se jamais
tivessem visto nada tão grandioso: casas construídas
com pedras surgindo de hidrovias interligadas; interiores
cobertos de esculturas em relevo de madeira; imensas
esculturas de pedra representando deuses nos templos
em forma de pirâmide. Coatlicue, em particular, parece
assustá-los, e Montezuma não se surpreende: a deusa é
uma das gigantescas esculturas de pedra do Templo
Mayor no recinto sagrado, no centro da cidade. Ela não
tem cabeça (foi decapitada), e duas cobras coral formam
uma máscara escamosa que lhe permite ver à frente e
atrás através dos olhos delas. No pescoço, Coatlicue usa
um colar de mãos e corações humanos, oferecidos a ela
em sacrifícios passados e, na cintura, uma caveira
pendurada.
*
Por fim, o conquistador Cortez matou Montezuma II e
arrasou a cidade de Tenochtitlán, por ele reconstruída
como Cidade do México. Cortez desejara destruir os
deuses astecas para introduzir o cristianismo, religião
predominante na Espanha, um império em franca
expansão. Os espanhóis derreteram muitos objetos de
ouro e prata para poder levar as barras para a Europa e
ordenaram a destruição das esculturas de pedra.
Felizmente, Coatlicue foi poupada por ter sido soterrada,
e só redescoberta séculos depois, mas inúmeras outras
se perderam. Cortez enviou objetos menores para a
Europa, como crânios recobertos de obsidiana e ouro,
serpentes de duas cabeças forradas de mosaicos de
turquesa, fantasias enfeitadas com as valorizadas penas
de quetzal. Enquanto Dürer via tudo isso como “obras de
arte maravilhosas”, Cortez as enviou para a Europa como
curiosidades. Talvez os artistas tenham apreciado o
mistério e a “magia” das obras astecas, mas, para
pessoas como Cortez, não passavam de ativos
financeiros: curiosidades a serem exibidas ou uma fonte
lucrativa de materiais preciosos.
Por outro lado, os astecas respeitavam a arte de seus
adversários, à semelhança dos romanos com a arte
grega. Os astecas empregaram artistas mixtecos
originários de estados conquistados como Oaxaca e
criaram uma metalurgia de altíssima qualidade. Eles
também reutilizavam e estudavam a arte de outras
culturas como a dos chacmools toltecas e as cabeças
olmecas (vimos essas esculturas gigantescas no capítulo
2). Para os astecas, os espanhóis deviam parecer
bárbaros, derretendo artefatos preciosos e destruindo
esculturas e prédios culturais.
Nem todo país europeu era tão bárbaro ao abordar
terras estrangeiras. No início do século XVI, os
portugueses também navegavam em grande escala e
também buscavam ouro. Por volta de 1520, já tinham
explorado a costa ocidental da África, dobrado o Cabo da
Boa Esperança e estabelecido rotas de comércio até a
Índia. Em torno de 1543 haviam chegado ao Japão. A arte
produzida nessa época registra a extensão desses
encontros transculturais.
Em 1521, Dürer se tornara amigo íntimo de Rodrigo
Fernandez d’Almada, secretário de comércio
internacional de Portugal na Antuérpia. Dürer adquiriu
para si obras de arte africana, gastando três florins
(cerca de 500 libras esterlinas hoje) em dois saleiros de
marfim de Serra Leoa. (Para contextualizar valores, Dürer
pagara dois florins pela miniatura de Susanna Horenbout,
e uma pintura pequena de sua autoria seria vendida pelo
mesmo valor.) Saleiros feitos por escultores sapi de Serra
Leoa eram vendidos aos portugueses há várias décadas
na época em que foram importados pela Antuérpia, o
centro do comércio intercontinental dos portugueses no
norte da Europa. Os artistas esculpiam o marfim em
profundidade para criar um recipiente esférico central – o
saleiro – que era sustentado por um conjunto de figuras.
Recobertos de entalhes detalhados, esses saleiros não
eram para uso, mas para serem olhados e admirados
como objetos de arte.
Quando Portugal estreitou os laços com a África
Ocidental, houve certo intercâmbio, resultando em
saleiros afro-portugueses em que esculturas de homens,
mulheres e animais africanos se misturavam às de
comerciantes, soldados e navios portugueses e ainda
cenas bíblicas. Hoje, o nome dos artistas criadores
desses saleiros é desconhecido, mas eram artífices
altamente qualificados e se adaptavam rapidamente às
necessidades de seus novos mecenas. Eles usavam
gravuras de livros de orações e diários de viagens
europeus para criar uma fusão das duas culturas.
Saleiros comparáveis a esses também foram
produzidos no estado de Benin (hoje parte da Nigéria) por
artistas edo e owo. Em um exemplar do século XVI,
quatro comerciantes portugueses muito bem trajados
circundam o saleiro, com uma pequena nau portuguesa
completa, com o cordame e um vigia empoleirado
espiando no alto. A escultura dos saleiros do Benin não
tem o mesmo refinamento da de Serra Leoa, mas as
figuras são ricas em detalhes, desde as contas do
crucifixo à volta do pescoço de um dos comerciantes às
suas botas decoradas. São figuras que têm mais em
comum com os painéis em relevo de bronze e latão feitos
no Benin nessa época.
Os comerciantes portugueses compravam marfim em
troca de manilhas de latão e cobre, uma forma de moeda
parecida com um bracelete pesado de metal que podia
ser derretida para criar obras de arte. Benin e Portugal
tinham uma boa relação comercial, e os artistas de Benin
registravam as reuniões e as trocas históricas entre os
portugueses e o obá (rei de Benin) sobre placas
retangulares de latão e bronze, exibidas nos pilares do
palácio do obá. Os artistas de Benin trabalhavam com o
bronze desde o século XIII, tendo aprendido seu ofício
com a gente de Ifé, que conhecemos no capítulo 9. Eles
trabalhavam em guildas específicas, a saber, uma para o
bronze e outra para o marfim, e moravam na rua Igun,
perto do palácio do obá.
As placas faziam um relato da vida do obá,
glorificando-o de forma semelhante às das esculturas em
relevo de Assurbanipal, que vimos no capítulo 2. São
registros de batalhas importantes assim como reuniões
entre os representantes da corte e os comerciantes
portugueses. Em muitas delas o obá aparece fortemente
armado com um robusto capacete chapeado e um fio de
presas de leopardo em volta do pescoço e da testa. Ele
parece invencível, sempre ladeado por subalternos,
brandindo escudos e lanças. Os portugueses são
identificados com facilidade: alguns usam bigode e todos
têm barba. Os cabelos compridos e lisos emolduram o
rosto estreito, com o chapéu arredondado acima do nariz
pontudo. O colete ajustado é usado sobre a túnica
enfeitada, com um saiote pregueado.
Por volta da década de 1540, os portugueses já
haviam navegado até o Japão, e se estabelecera um fluxo
regular de navios portugueses pelos portos japoneses até
o país banir o comércio estrangeiro, no início do século
XVII. Os artistas japoneses reagiram à chegada dos
portugueses com uma nova forma de arte em tela em
que figuravam os namban-jin (“os bárbaros do sul”), e
essas telas, que chegavam a ter quatro metros e muitas
vezes eram feitas em pares, tornaram-se extremamente
procuradas por colecionadores japoneses. As melhores
telas originaram-se na escola Kano em Quioto, uma das
escolas mais famosas na história da pintura japonesa.
Fundada um século antes por Kano Masanobu (1434-
1530), ela continuou até o século XIX. Kano Masanobu
começou trabalhando com o estilo de pincelada chinês,
mas a escola logo desenvolveu uma tradição própria e
representava cenas do cotidiano usando o estilo japonês
yamato-e, cheio de cores brilhantes e o uso irrestrito de
folhas de ouro. O uso do ouro simplificava as
composições (a forma como a obra de arte é organizada),
substituindo céus e nuvens, estradas e paisagens. A
atenção era concentrada no que restava, especialmente
nas figuras humanas. Os comerciantes portugueses eram
representados com bombachas, calças folgadas
diferenciadas, usadas pelos europeus para repelirmosquitos, enquanto é possível identificar marinheiros
indianos, malaios e africanos entre os tripulantes dos
navios de comércio portugueses.
Por essa época, houve também dentro da Europa um
intercâmbio de ideias culturais, à medida que artistas de
diversos países migraram para as cortes reais mais
abastadas. Susanna Horenbout (1503-c.1554), ainda
adolescente, mudou-se para a Inglaterra com seu irmão
Lucas (por volta de 1495-1544). Ela crescera trabalhando
na oficina do pai Gerard, em Gante, e era conhecida por
sua habilidade com pinturas em miniatura, pinturas
pequeníssimas de figuras religiosas ou retratos de
nobres, muitas vezes medindo somente alguns
centímetros. Horenbout e seu irmão tinham sido
convidados para ir para a Inglaterra pelo cardeal Wolsey,
conselheiro de Henrique VIII, e ambos pintaram muitas
miniaturas do rei. Em 1526, quatro anos depois de juntar-
se à corte de Henrique, Horenbout aperfeiçoou a imagem
do rei. Enquanto o irmão pintara Henrique aos 35 anos
com um rosto volumoso e feições comprimidas, ela afilou
mais o maxilar do rei e acrescentou viço ao seu olhar.
Susanna deu ênfase ao peito largo, incluiu uma barba
para conferir seriedade e ajustou o chapéu preto, com
um caimento mais jovial. Assim, ela fez Henrique VIII
parecer seguro e poderoso, e essa miniatura tornou-se o
modelo para o “look” oficial do rei. Artistas, como Hans
Holbein, o Jovem (1487/8-1543), seguiram os passos
dela, e essa miniatura se tornou a imagem de referência
dos retratos dos Tudor. Henrique VIII parece ter ficado
grato, pois, quando Susanna se casou com John Parker,
mais tarde naquele mesmo ano, o rei promoveu Parker
de uma posição inferior na corte a guardião do Palácio de
Westminster como presente de casamento.
As miniaturas atingiram o auge no século XVI. Eram
trocadas entre a realeza e nobreza europeias como
presentes diplomáticos, e os melhores artistas flamengos
e holandeses eram muito requisitados na Inglaterra. O
valor desses artistas estava em sua atenção aos
detalhes, um legado do Renascimento nórdico, e na
capacidade de trabalhar numa escala diminuta. Mais
tarde, Horenbout trabalhou junto a outra artista
flamenga, Levina Teerlinc (década de 1510-1576), para a
rainha Catarina Parr, a sexta esposa de Henrique VIII.
Catarina encomendou muitas miniaturas para dar a
amigos e aliados, e elas se tornaram acessórios
elegantes nos vestidos, usadas como joias.
O alemão Holbein pintou Henrique VIII por diversas
vezes, mas é uma de suas encomendas particulares, um
imenso retrato duplo chamado Os embaixadores, de
1533, que mais nos cativa hoje. Pintado no ano em que
Henrique VIII se separou de Roma e fundou a Igreja
Anglicana, é um retrato do embaixador francês em
Londres, Jean de Dinteville, e seu amigo íntimo Georges
de Selve, bispo de Lavaur. De pé, usando trajes
refinados, apoiam-se em um móvel com prateleiras
repletas de objetos exóticos, científicos e musicais,
incluindo um tapete turco, um alaúde, um globo celeste e
outro terrestre e um hinário luterano. É tudo tão
detalhado que sentimos como se Dinteville pudesse
alcançar um dos globos a qualquer momento. Por trás da
dupla, a cortina pesada foi afastada para revelar um
pequeno crucifixo de prata e, no primeiro plano do
quadro, em ousada exibição de ilusão, uma imagem de
caveira distorcida, que só se torna clara quando vista de
determinado ângulo (do canto direito inferior). Será que
Dinteville posicionou o quadro numa escadaria, para que
se pudesse ver a caveira ao subi-la? Seria a mortalidade
o tema principal de Os embaixadores, com objetos e
roupas elegantes, tudo transitório, e somente Deus
eterno? Por que acrescentar o livro protestante de Martim
Lutero ao retrato de um bispo católico? São perguntas
sem resposta que hoje ainda nos fascinam.
Holbein era um artista da corte, trabalhando ao lado
dos Horenbout e de Teerlinc. Pelo mundo inteiro, a
realeza empregou os melhores artistas internacionais
para exaltar seus reinos e reinados. O sultão Suleiman o
Magnífico, que reinou sobre o império otomano por mais
de quarenta anos (1520-1566), mantinha muitos artistas
na corte, como turcos, islamitas e europeus, e seu
mecenato promoveu uma época áurea na arte otomana.
Uma equipe de artistas, hoje anônimos, se empenhou na
execução do merecidamente magnífico Süleymannâme
(O livro de Suleiman), uma crônica suntuosa dos
primeiros 35 anos do sultão no poder. O livro, um poema
épico em persa de autoria de Arif, contém 65 pinturas de
página inteira, muitas delas representando um Suleiman
idealizado, participando de várias batalhas sangrentas. A
cabeça de uma das vítimas explode numa nuvem de
sangue ao ser golpeada pelo sabre de um soldado
otomano. Outra é pisoteada até a morte por um elefante
enquanto Suleiman observa. Panos de fundo de ouro e
uma perspectiva plana dão às pinturas a sensação de
mosaicos bizantinos, mas a padronagem detalhada em
toda a extensão é originária da arte islâmica e a riqueza
das cores, das miniaturas persas. Essa fusão de estilos é
apropriada à arte que registra um império que se
estende da Argélia e Egito até a Síria, Hungria e o Mar
Negro.
Na segunda metade do século XVI, uma corte europeia
excedeu as demais no mecenato artístico. A corte
espanhola de Felipe II, que reinou por mais de quarenta
anos a partir de 1556, atraiu alguns dos melhores
artistas estrangeiros, incluindo Ticiano e Anguissola, que
conheceremos no próximo capítulo.
Capítulo 17 - O reinado na
Espanha
Ano de 1555, em Cremona, norte da Itália. Sofonisba
Anguissola observa Minerva e Lúcia, duas de suas cinco
irmãs, jogando xadrez. Sofonisba é a irmã mais velha, e
com um pedaço de carvão e está esboçando as meninas,
tentando captar suas expressões. Ela cresceu tendo
aulas particulares de desenho e pintura e agora é uma
artista.
Sofonisba já as pintou jogando xadrez antes. No Jogo
de xadrez, Minerva e Lúcia estão uma de frente para a
outra e o tabuleiro no meio, sobre uma mesa estreita,
coberta por um tapete turco estampado. Europa, a irmã
caçula, assiste ao jogo. Minerva ergue a mão direita em
protesto e Lúcia olha para se certificar de que todos
estão observando, antes da sua jogada. As regras do
xadrez acabam de ser atualizadas na Itália, criando uma
rainha com amplos poderes (o jogo que hoje
conhecemos). Talvez a mão de Lucia esteja sobre essa
peça, ao usar esse trunfo em seu benefício. Europa ri
ante a reclamação de Minerva.
No Jogo de xadrez, Sofonisba baseou a expressão de
Europa em um desenho feito há algum tempo, ao captar
a irmã rindo enquanto estudava o alfabeto. O pai das
meninas, Amilcare, enviou o desenho para o famoso
Michelangelo, pedindo sua opinião. Amilcare tinha
ambições em relação às filhas e promovia com
entusiasmo a arte de Sofonisba. Michelangelo respondeu
com um desafio, para ver se ela seria capaz de desenhar
um menino chorando, cena que ele considerava mais
difícil de captar. E, assim, ela esboçou em carvão seu
irmão mais novo Asdrubale, cuja curiosidade o levou a
ter os dedos mordidos por um lagostim na cesta da irmã.
No esboço, ele traz a mão recolhida e contorcida pelo
choque, enquanto a boca se abre para chorar e o cenho
se franze transmitindo a dor. É um desenho cheio de
expressão. Michelangelo ficou tão impressionado que o
enviou de presente a Cosme de Médici, junto a um
desenho dele. Menino mordido por um lagostim acabaria
na coleção do bibliotecário humanista Fúlvio Orsini em
Roma, servindo de influência para outros artistas ao
mostrar como um único momento podia ser captado sem
perder sua vivacidade.
*
Sofonisba Anguissola (1532-1625) era extremamente
habilidosa em captar emoções fugazes, criando retratos
pessoais do dia a dia, as pinturas de gênero. Ela seguiu o
exemplo deixado pelos artistas flamengos e desencadeou
uma nova tendência na Itália. É possível que ela tenha
feito esboços regulares da vida real a fim de desenvolver
a habilidade refinada para captaremoções e expressões,
e seu quadro Jogo de xadrez, assim como o do Menino
mordido por um lagostim, exibe toda a vivacidade e a
vitalidade do momento vivido.
Anguissola era ambiciosa, mas sua origem nobre a
impedia de ser vista vendendo seus trabalhos. Assim,
quando o rei Felipe II requisitou sua presença na corte
espanhola em 1559, ela parecia estar diante de uma
grande oportunidade. A corte de Felipe II era a mais
poderosa da Europa. Ali, Anguissola se tornou dama de
companhia da terceira esposa de Felipe, Elizabeth, e
artista respeitada, retratando vários membros da família
real, inclusive Felipe.
Felipe II transformou as artes na Espanha, tornando-a
internacionalmente respeitada durante seu longo
reinado, de 1556 a 1598. Muitos artistas estrangeiros
foram convidados à sua corte e ele colecionou obras de
toda a Europa. O rei acumulou 1.500 pinturas, e as
exibições de arte em seus diversos palácios
estabeleceram o padrão para as modernas galerias da
atualidade. O vasto império de Felipe abrangeu a Europa,
as Américas e as Filipinas, e incluiu os Países Baixos (hoje
Bélgica e Holanda), onde ele viveu por uma década antes
de regressar à Espanha em 1559, ano em que Anguissola
juntou-se à sua corte. Nunca mais ele voltaria a se
aventurar fora de seu país. O ressentimento em relação
ao domínio espanhol nos Países Baixos aumentou por
toda a década de 1560, e por volta de 1568 os dois
países estavam em guerra.
Felipe II estudara arte neerlandesa e admirava seu
naturalismo detalhado. Ele adquiriu muitos exemplares e
possuía a maior coleção de obras de Hieronymus Bosch,
incluindo o Jardim das delícias terrenas, que vimos no
capítulo 15. A tia de Felipe enviou-lhe a Descida da cruz,
depois que ele a admirou. (Também a admiramos no
capítulo 11.) Essas obras de arte estão hoje no Museu do
Prado em Madri, na Espanha, porque Felipe as incorporou
à sua coleção há quatro séculos.
Ainda que Felipe adquirisse muitas obras de pintores
neerlandeses, a maioria dos artistas da corte era italiana,
como Anguissola. Os artistas italianos eram capazes de
pintar uma imagem e enchê-la de emoção. Anguissola
tornou-se uma inspiração para artistas mulheres que
desejavam seguir seu exemplo, como Lavinia Fontana,
que conheceremos no próximo capítulo.
À época em que Anguissola juntou-se à corte de Felipe
II, outro artista italiano, Ticiano (Tiziano Vecelli, 1490-
1576), finalizava um ciclo grandioso de pinturas
mitológicas chamadas “Poesias” para o rei. Em Veneza,
os retábulos do jovem artista Ticiano eram os maiores
que a cidade já vira, com figuras cheias de energia e
expressão, cores ricas e arrojadas. Ele estudara com os
irmãos Bellini e era famoso pelos retratos realistas. No
entanto, com a idade, seu estilo se tornou mais solto e
vibrante, e ele passou os últimos anos de vida
trabalhando nas encomendas de Felipe II.
As “Poesias” de Ticiano se basearam na mitologia
clássica do poeta romano Ovídio em Metamorfoses e
levaram onze anos para serem concluídas. O que a
fervorosíssima corte católica de Felipe II teria feito delas?
São, em sua essência, pinturas obscenas magnificamente
pintadas. São mais de vinte mulheres ao longo das seis
telas, todas nuas ou com seios e coxas à mostra. Duas
das “Poesias” exibem Júpiter, rei dos deuses, uma
representação de Felipe II. Em ambas as cenas, Júpiter
viola uma deusa. Usa um disfarce de chuva de ouro para
possuir Dânae e outro de touro ao raptar Europa. São
afirmações enfáticas de poder: do domínio de Felipe
sobre grande parte da Europa e da supremacia
continuada dos homens sobre as mulheres.
El Greco (“o grego”, nascido Doménikos
Theotokópoulos, 1541-1614), um dos principais artistas
do século XVI, foi excluído do generoso mecenato de
Felipe II, mesmo com sua mudança para a Espanha em
busca de encomendas reais. El Greco nasceu em Creta e
era de descendência grega. Mudou-se para Veneza com
cerca de vinte anos, depois de treinar e trabalhar como
pintor de ícones, segundo a tradição da Virgem de
Vladimir que vimos no capítulo 8. Ao viajar pela Itália,
seu estilo rígido de pintura se tornou mais relaxado e ele
adotou as cores vibrantes de Ticiano, com quem esteve
por algum tempo como aluno já mais experiente.
Em última análise, El Greco foi um artista preso entre
dois tipos de pintura completamente diferentes e suas
obras italianas não entusiasmam hoje. Somente depois
de se mudar para a Espanha, onde viveu por quase
quarenta anos até sua morte, é que seu estilo maduro
tomou forma, uma mistura curiosa de tudo o que
absorvera ao longo da vida. Suas pinturas mais tardias
explodem de cor, guardam um desprezo intencional pela
perspectiva (derivado de seus estudos como pintor de
ícones) e impressionam pela carga emocional e
espiritual, pintadas como se estivessem numa nação
açoitada em um frenesi religioso causado pela Inquisição
espanhola.
El Greco foi cortado do mecenato de Felipe depois de
pintar o Martírio de São Maurício e a legião tebana, de
1579 a 1582, para a capela do rei no palácio do Escorial.
Considerada imprópria por exibir nus masculinos e rostos
conhecidos de líderes militares, a pintura foi rapidamente
substituída. A despeito desse revés, as pinturas religiosas
visionárias de El Greco logo o tornaram um dos artistas
mais requisitados da Espanha. O país se encontrava nas
garras do misticismo católico, no qual fiéis seguidores
acreditavam poder falar com Deus diretamente por meio
de visões. Na Visão de São João de El Greco (de 1608 a
1614), não faz sentido ele tentar criar uma situação
crível para suas imagens porque a verdade a ser
transmitida é espiritual, e não física (conforme acontece
na pintura dos ícones). O legado dos azuis e vermelhos
de Ticiano dão vigor aos trajes desalinhados de São João
que cai de joelhos, as pernas entreabertas e os braços
erguidos, o queixo voltado para cima, os olhos revirados,
vivenciando a visão. O corpo é trabalhado a fim de
maximizar a expressão. As coxas do santo têm o
tamanho de pernas inteiras e o pescoço sustenta uma
cabeça incrivelmente pequena. Por trás dele, um céu que
parece vivo mergulha por toda a tela. Em seus últimos
trabalhos como esse, o estilo de El Greco é de tamanha
intensidade que nenhum artista ousou seguir seus
passos até o século XX.
Na Itália, Veneza permaneceu como um centro de arte
importantíssimo. Agora, com Ticiano trabalhando quase
em caráter exclusivo para Felipe II, as encomendas eram
atribuídas a artistas mais jovens como Tintoretto (Jacopo
Robusti, 1518-1594) e Veronese (Paolo Caliari, 1528-
1588). Elas encheram as Scuole, as igrejas e os palácios
de Veneza com telas suntuosas e vigorosas como A
última ceia de Veronese, de 1573 (renomeada Banquete
na casa de Levi), pintada para um convento veneziano. A
exuberância pictórica de Tintoretto e Veronese foi
contrabalançada por outros italianos que passaram a
vida inteira dentro de mosteiros e conventos. Irmã
Plautilla Nelli (Polissena Nelli, 1523-1588) entrou para o
convento dominicano de Santa Catarina em Florença aos
catorze anos. Autodidata, ela aprendeu observando as
obras de arte expostas ao público na cidade. Nelli tornou-
se prioresa do convento e dirigiu um grupo de artistas
que vendia pinturas e esculturas para outros centros
religiosos e também para a nobreza florentina. Sua
versão pessoal de A última ceia (por volta de 1568), com
a alvura da toalha de mesa e a simplicidade na
ambientação, tem mais a ver com a versão de Leonardo
da Vinci do que com a de Veronese, seu contemporâneo.
É a primeira A última ceia conhecida de autoria feminina
e foi instalada no refeitório do convento (salão de jantar).
Ela é imensa, medindo quase sete metros, mas Nelli não
lutava por um reconhecimento público como os
competitivos artistas venezianos. Seu objetivo primordial
era criar condições para as irmãs, suas companheiras, se
conectarem com o tema retratado, e ela recorreu a
exemplos históricos no lugar de ideias contemporâneaspara dar suporte à meditação delas.
Na época em que Nelli concluiu A última ceia, o
Renascimento terminara por completo. Entre os artistas,
a conversa agora girava em torno do estilo, ou maniera,
e as pinturas se tornaram mais rebuscadas e exageradas.
Estilo, ou como algo aparenta, era mais importante do
que como realmente pareceria se esboçado com base na
vida real. Braços e pernas ficaram mais alongados e as
poses, mais complicadas. Hoje em dia, esses artistas,
como Parmigianino (Francesco Mazzola, 1503-1540) e
Pontormo (Jacopo Carucci, 1494-1557) são conhecidos
como maneiristas em seu conjunto.
Giambologna (Jean de Boulogne, 1529-1608) foi um
maneirista que definiu Florença, direta e firmemente,
como o centro europeu da escultura no século XVI. A
ironia é que ele não era italiano, mas nascera em
Flandres (hoje parte da Bélgica). Viajara para a Itália,
então com 21 anos, determinado a estudar escultura
clássica em Roma. As esculturas helenistas, que
captavam a explosão do movimento, como Laocoonte,
eram para ele especialmente fascinantes. Na jornada
para casa, foi persuadido a ficar em Florença pelos
Médicis, que ainda governavam a cidade. Seu nome foi
italianizado para Giambologna pelos novos mecenas
italianos.
Giambologna tornou-se o escultor mais influente em
Florença, criando obras tecnicamente espantosas que
foram bem além daquilo que escultores clássicos e
renascentistas julgariam ser possível. A obra-prima que
lhe deu fama foi a escultura Sansão decapitando um
filisteu, em tamanho maior que o natural, datada de
1560-1562, originalmente a peça central de uma fonte. É
uma aula magistral de movimento em pedra, os dois
corpos trabalhados e contorcidos para criar a
dramaticidade da peça como um todo. De pé, Sansão
brande a queixada de asno como arma na mão direita. O
corpo nu, os músculos retesados, prevendo a execução
do golpe fatal, com o tronco retorcido pelo esforço. Com
a mão direita, Sansão puxa para trás a cabeça do filisteu
agachado, enquanto o homem se contorce debaixo dele
tentando se libertar. Nessa escultura, tudo diz respeito a
movimento, na medida em que os dois corpos se
enroscam um no outro. É preciso rodear a estátua para
poder vê-la sob todos os ângulos, um redemoinho
dramático de ação, uma declaração de bravata
escultural.
O maneirismo é um termo generalista inventado no
século XVIII para situar o período entre o Renascimento e
o início do Barroco. Alguém como Giambologna, com
esculturas cheias de movimento e dramaticidade teatral,
poderia facilmente ser tomado como um escultor do
Barroco primitivo. Ele foi o precursor da arte de gigantes
do Barroco como Caravaggio e Bernini, dois artistas que
nos surpreenderão com sua teatralidade nos próximos
capítulos.
Capítulo 18 - O teatro da vida
É 1595 e Caravaggio está de mudança e prestes a
ocupar seus novos aposentos na casa do cardeal del
Monte, em Roma. O cardeal comprara suas pinturas A
adivinha e Os trapaceiros no ano anterior e, agora,
Caravaggio vai trabalhar para ele. O pintor reflete sobre a
sorte que tem. Veio para Roma somente há três anos,
então um “pavio curto” de 21 anos, empregado como
pintor de flores e frutas no ateliê de Cavaliere d’Arpino.
Agora tem um cardeal como mecenas.
Caravaggio adora pintar rapazes bonitos de lábios
carnudos e olhos brilhantes, sedutores e provocantes. Ele
tem em mente uma nova pintura, inspirada em um
desenho visto recentemente na coleção de um dos
conhecidos do cardeal, Fúlvio Orsini, bibliotecário do
cardeal Farnese. O desenho é Menino mordido por um
lagostim, de Sofonisba Anguissola. Na versão de
Caravaggio, Rapaz mordido por um lagarto, ele pinta um
adolescente, e não uma criança pequena. Seu desejo,
porém, é transmitir a mesma ideia de choque: a mão
direita sendo recolhida e sacudida, na tentativa de se
livrar do bicho que a mordeu, o cenho do jovem crispado
de dor, a boca aberta. Caravaggio pode vê-la agora,
cerejas maduras espalhadas pela mesa em frente ao
rapaz, uma flor atrás da orelha. A delícia da juventude e
a mordida afiada do amor.
Ele gosta de pintar esses jovens, mas sabe que
precisa de encomendas maiores se pretende fazer frente
a Cavaliere d’Arpino e tornar-se o pintor mais requisitado
em Roma. O cardeal del Monte pode ser a pessoa certa
para ajudá-lo no seu intento.
*
Michelangelo Merisi de Caravaggio (1571-1610) residiu
com o cardeal del Monte por cinco anos. Por essa época,
havia outro rival desejoso do título de maior artista de
Roma, Annibale Carracci (1560-1609). Carracci, assim
como Caravaggio, era do norte da Itália, e chegara de
Bolonha, onde mantinha um ateliê e uma academia de
arte bem-sucedidos com o irmão Agostino e o primo
Ludovico. Lá ele havia defendido a volta ao desenho mais
natural e real, contrastando com os exageros artificiais
dos maneiristas, e estudara a obra de Ticiano e Veronese.
Ele chegara em 1594, já como artista de sucesso, e
rapidamente foi beneficiado com encomendas
respeitáveis. Enquanto Caravaggio estudava a coleção de
desenhos do bibliotecário de Farnese, Carracci pintava os
afrescos de um teto inteiro do palácio do cardeal Farnese.
Nele fervilham histórias de amor da mitologia antiga com
deuses nus e deusas saltitando em paisagens
idealizadas, cada cena emoldurada por “esculturas”
totalmente pintadas em um trompe l’oiel perfeito. O teto
fora concebido para complementar a coleção
impressionante de esculturas antigas de Farnese, muitas
das quais eram exibidas em nichos logo abaixo. No
entanto, seu real objetivo pode ter sido provar que a
pintura, e não a escultura, era a arte maior, um debate
permanente conhecido como paragone que apimentava
os textos teóricos contemporâneos.
Roma efervescia de tanto talento artístico na virada do
século XVII. Por que tantos artistas ainda se mudavam
para Roma? Era a sede dos bolsos mais abarrotados e
das encomendas mais expressivas, à medida que o poder
da Igreja Católica voltava a aumentar. Artistas vinham
também de toda a Europa para estudar arte clássica e o
brilho renascentista de Michelangelo e Rafael. Em Roma,
eles competiram por encomendas ou foram jogados um
contra o outro, criando pinturas para o mesmo local. Em
julho de 1600, Carracci recebeu a incumbência de pintar
os afrescos do teto e o retábulo da capela de Tibério
Cerasi na Santa Maria del Popolo, em Roma. Dois meses
mais tarde, Cerasi, advogado rico e tesoureiro geral do
papa, encomendou a Caravaggio a pintura de dois
grandes painéis para ladear o mesmo altar.
O retábulo de Carracci, A assunção da Virgem, é uma
aula magistral de movimento harmonioso. A Virgem sobe
aos céus, os braços abertos. Uma luz divina lhe confere
um halo dourado, enquanto os anjos a levam para o alto.
Ao nos aproximarmos da capela, ela parece nos dar boas-
vindas, de braços abertos, um contraste e tanto diante
dos painéis pintados por Caravaggio nas paredes
adjacentes. Em vez dos azuis, vermelhos e dourados
transcendentes, caímos diretamente por terra, na paleta
de marrons, brancos e ocres de Caravaggio. Há
vislumbres de vermelho (para atrair a atenção,
rivalizando com a Assunção), mas seus dois painéis têm
raízes na terra, no mundo real, a despeito da temática
sacra.
À direita, na Conversão de São Paulo, vemos São Paulo
estatelado no chão de frente para um cavalo malhado
que segue seu caminho, contornando-o. São Paulo ergue
as mãos para o céu, o corpo sob o efeito dramático do
escorço, os olhos cegos pela luz divina, e é como se ele
estivesse ali mesmo, à nossa frente. O uso extraordinário
que Caravaggio faz do efeito de luz e sombra lança São
Paulo no nosso espaço. Seus braços parecem esculpidos,
ocupando, de fato, um espaço, ao contrário dos da
Virgem na Assunção de Carracci, que permanecem como
parte da superfície pintada. À esquerda, na Crucificação
de São Pedro, Caravaggio foi ainda além, e a energia é
tamanha no zigue-zague da composição que ela parece
viva. Para nós, hoje, criados para consumircinema e
televisão, o realismo dramático de Caravaggio se conecta
conosco de uma forma que o estilo clássico idealizado de
Carracci não consegue. É um exemplo de como temos de
ser cuidadosos ao observar a arte e compreender que
trazemos as experiências pessoais para esse momento.
Caravaggio nos fala em alto e bom som, e os artistas
contemporâneos ainda se sensibilizam com suas
poderosas telas cheias de dramaticidade.
Hoje, Caravaggio e Carracci são chamados de artistas
barrocos. Barroco é um termo geral, aplicado a toda a
arte do século XVII. Há em seu cerne um sentido de
teatralidade, de movimento, de ação, tipificado pelas
pinturas eletrizantes de Caravaggio. Entretanto, naquela
época, era o estilo clássico de Carracci, enraizado na
escultura antiga, na mitologia grega e no Renascimento,
que dominava o ensino nas novas academias de arte. De
forma semelhante, os primeiros biógrafos da arte
preferiram o idealismo de Carracci ao realismo
surpreendente de Caravaggio e, consequentemente, o
estilo de Carraci se tornou a aspiração de todo aluno de
arte pelos três séculos seguintes.
À época das obras da capela de Cerasi, Caravaggio e
Carracci eram rivais absolutos. Vários imitadores do
estilo dramático de Caravaggio brotaram quase que
imediatamente pela Europa e ficaram conhecidos como
os Caravaggisti [caravagistas]. A academia de Carracci
em Bolonha garantia um suprimento permanente de
classicistas para fazer frente a eles, como Guido Reni
(1575-1642). Lavinia Fontana (1552-1614) também
cresceu em Bolonha, mas era impedida de frequentar a
academia de Carracci por ser mulher. Felizmente, seu
pai, Próspero Fontana, era um dos principais pintores
maneiristas de Bolonha e a ensinou em casa.
Mesmo casada e com onze filhos, Lavinia Fontana era
a provedora da casa, pintando cenas religiosas, retábulos
e retratos da nobreza bolonhesa, enquanto tocava a
própria oficina. A Universidade de Bolonha, fundada em
1088, avançara muito na formação de mulheres e, por
conseguinte, a cidade liderava o apoio às mulheres
artistas. Lavinia estabelecia o preço de suas obras, algo
impossível para mulheres artistas antes dela, e trabalhou
em encomendas para os Médici e Felipe II de Espanha,
conscientemente competindo com o legado de Sofonisba
Anguissola. Seus primeiros biógrafos afirmam que ela
ganhava o mesmo que os principais pintores da época, e
relatos da igreja observam que ela teria recebido mais
pelo retábulo da catedral de Bolonha do que a família
Carracci por uma obra semelhante.
Depois de uma carreira brilhante em Bolonha, Fontana
mudou-se com toda a família para Roma em 1604 para
atender ao papa. Uma de suas primeiras pinturas em
Roma foi Minerva nua. A deusa romana da guerra veste
um tipo de combinação transparente tecida com ouro,
que reflete a luz. Ela usa um capacete com plumas
vermelhas e brancas e está se vestindo para a guerra.
Apesar do corpo nu, visível sob a combinação, Minerva
não é apresentada como um objeto passivo de beleza.
Ela é vista de lado, caminhando na direção do peitoral
que logo usará, a coxa robusta, nádegas e bíceps
expressando a força física. Essa pintura foi elogiada em
um poema contemporâneo de Ottaviano Rabasco e
Fontana ficou bastante famosa em Roma, sendo aceita
pela Academia de São Lucas, só de artistas masculinos, e
vivendo na cidade até sua morte, em 1614.
À época em que Fontana faleceu, a Roma de Carracci
e Caravaggio também já não existia. Carracci morrera em
1609, aos 49 anos, depois de um colapso nervoso, e foi
sepultado ao lado de Rafael, no Panteão. Caravaggio
sumiu de Roma depois de matar Ranuccio Tomassoni em
um duelo ilegal e morreu na Toscana em 1610, aos 38
anos. Mas seus estilos sobreviveram na obra dos
caravagistas e dos pintores da academia clássica.
O pintor Orazio Gentileschi, um dos amigos de
Caravaggio, foi caravagista. Sua filha, Artemisia (1593-
1653), cresceu no meio de artistas, e o talento precoce
foi alimentado pelo pai. Ainda adolescente, ela já pintava
cenas bíblicas grandes como Susana e os anciãos (1610),
baseada numa história em que dois homens espiam a
jovem Susanna enquanto ela se banha, na esperança de
se aproveitarem dela. Para Artemísia Gentileschi, a vida
imitou a arte, quando dois homens (um deles um artista
que trabalhava com seu pai) a estupraram aos dezessete
anos de idade. Após um longo processo judicial, os dois
foram banidos de Roma, mas nunca saíram de lá. Ela, por
sua vez, mudou de cidade e casou-se com outro pintor
em Florença e ali viveu por sete anos antes de voltar
para Roma.
O período passado em Florença garantiu a Gentileschi
a reputação de pintora excepcional. Ela reagiu à obra de
Caravaggio, criando pinturas muito concretas e reais. Ela
reinterpretou um tema pintado por Caravaggio em 1599,
Judith degolando Holofernes, atribuindo uma
credibilidade muito maior à viúva judia Judith, que
golpeia o pescoço do general assírio Holofernes, bêbado,
prestes a destruir Betúlia, sua terra natal. A primeira
versão de Gentileschi (1612-1613) mostra Holofernes
deitado na cama, com a cabeça voltada para o
espectador, com Judith e sua criada Abra, as duas outras
figuras na tenda escura. Ciente de que uma mulher como
Judith não teria forças para enfrentar um guerreiro,
Gentileschi situa a criada segurando-o embaixo enquanto
Judith passa a espada pelo pescoço dele. Judith agarra
um punhado de cabelos do soldado com a mão esquerda
e manuseia a espada, com um joelho sobre a cama para
manter o equilíbrio. Em sua pintura, Gentileschi transfere
a energia que Caravaggio dá a Holofernes agonizante
para as duas mulheres que o assassinam.
No espaço de um ano, a jovem de vinte anos pintou a
cena novamente, dessa vez para Cosme II de Médici. Na
segunda versão, ela deu mais força ainda a Judith, que
agora torce o corpo inteiro por trás de uma espada mais
longa. O sangue mancha os lençóis e espirra do pescoço
degolado, respingando nos braços, no vestido e nos seios
de Judith. Gentileschi não hesita em mostrar como é, de
fato, o corpo de uma mulher em ação. O cenho franzido e
o queixo dobrado indicam sua tensão com a lâmina, e os
seios são comprimidos e deslocados dentro do corpete
quando ela se vira. É inevitável pensar que Gentileschi
deve ter passado um bom tempo em frente ao espelho
estudando essa pose para tornar a cena o mais realista
possível.
Com esse quadro, ela confirmou seu lugar como um
dos grandes nomes da pintura barroca. Tornou-se a
primeira mulher a ser aceita na Academia de Arte de
Florença e conseguiu manter um ateliê fora de casa,
tarefa nada fácil para uma mulher daquele tempo. Suas
representações de mulheres como heroínas verossímeis
da história, ativas e empenhadas, são um contraste
gritante com aquelas pintadas por artistas masculinos
bem-sucedidos da época, que ainda costumavam pintá-
las como objetos passivos do desejo.
As carreiras de Gentileschi e Fontana representam um
divisor de águas para as mulheres artistas. Antes delas,
houve mulheres artistas bem-sucedidas, que pintaram
reis e rainhas como Susanna Horenbout e Sofonisba
Anguissola, ou estiveram à frente de escolas de pintura
como Plautilla Nelli. No entanto, como podemos notar
nos capítulos até agora, elas aparecem como exceção e
não como regra. Com Gentileschi e Fontana, porém, há
uma mudança. Elas assumem temas tradicionalmente
pintados por homens, cenas bíblicas e nus femininos, e
os apresentam sob um ponto de vista diferente,
transferindo o poder para as mulheres representadas,
que parecem fortes e seguras. Ambas foram
reconhecidas como talentos excepcionais em seu tempo
de vida, tornando-se as primeiras mulheres a entrar para
as academias de arte exclusivas para homens em Roma
e Florença. Gentileschi e Fontana provaram que as
pintoras podiam se equiparar aos homens e ser aceitas
por seus colegas (masculinos). Você verá o impacto
exercido por elas conforme mais e mais artistas mulheres
aparecerem no livro daqui em diante.Capítulo 19 - Novas formas de
olhar
É 1614 e Peter Paul Rubens, de pé, vê-se diante da nave
branca elevadíssima da Catedral de Nossa Senhora em
Antuérpia. Ele se posicionou entre duas colunas, olhando
para uma capela próxima ao altar-mor. Acima do altar da
capela, em uma moldura dourada, está a sua Descida da
cruz. A pintura é enorme, com mais de três metros de
altura, e é ladeada por dois painéis que se fecham sobre
a figura central do Cristo.
Rubens observa a pintura. Ela exibe três sustentáculos
do Cristo: a Virgem Maria, Simeão e o crucifixo em que
foi morto. No painel esquerdo, ele vê Maria, vestida como
uma dama flamenga elegante, a mão pousada sobre o
ventre, abrigando o Cristo ainda por nascer. No painel
direito, vê o velho Simeão, que segura o Cristo ainda
bebê. O que acaba chamando atenção, porém, é o painel
central do crucifixo. O corpo sem vida do Cristo é
removido conforme o sol se põe no Gólgota, perto de
Jerusalém, e gotas de sangue mancham o tecido branco
suspenso por trás dele. Rubens usou esse tecido para
acrescentar uma faixa de luz no centro da pintura,
mergulhando de cima, à direita, até o plano inferior à
esquerda. São muitas as mãos a segurá-lo – o operário
no alto da cruz chega a usar os dentes para manter o
tecido no lugar. João Evangelista sustenta o corpo de
Cristo por baixo. João está preparado para assumir o seu
legado, com sua túnica vermelha volumosa, simbolizando
o sangue do Cristo sacrificado.
*
Rubens (1577-1640) foi um artista excepcional que
aliou as lições aprendidas na Itália às necessidades de
seus mecenas do Norte Europeu. Diplomata de alto
escalão e pintor da corte, ele foi um humanista
conhecido pela ética no trabalho e pela energia. Ele
liderava um ateliê extremamente bem-sucedido na
Antuérpia, empregando assistentes para concluir
pinturas com base em seus esboços a óleo e atraindo
artistas do calibre de Antoon Van Dyck, que
conheceremos mais adiante neste capítulo.
Ainda bem jovem, na Itália, pintando para o duque de
Mântua, Rubens fez esboços de esculturas clássicas em
Roma, inclusive o Laocoonte. Ele usou essa compreensão
da forma para conferir profundidade e solidez aos corpos
na Descida da cruz. Rubens recorreu às cores quentes de
Ticiano para o vermelho e o dourado nos mantos, às
linhas precisas de Rafael (por meio de Veronese) para as
figuras nos painéis laterais e à dramaticidade de
Caravaggio para os operários por cima da cruz. Como um
contraponto norte-europeu, parece haver também uma
deferência à Descida da cruz de Rogier van der Weyden
na posição arqueada dos braços do Cristo e sua cabeça
pendente.
Rubens passou grande parte de sua vida de mudança
entre as cortes reais da Europa, trabalhando como
diplomata e criando ciclos de pinturas para a realeza
europeia. Conforme já vimos, as cortes abastadas da
Europa muitas vezes empregavam artistas de países
estrangeiros, como Holbein na Inglaterra e Anguissola na
Espanha. De forma semelhante, os imperadores mogóis
na Índia optaram por reforçar suas oficinas na corte com
artistas persas do Irã. Um desses artistas foi Aqa Riza
(Reza Abbasi, em atividade de 1580 a 1635), um pintor
safávida que trabalhou para o quarto imperador mogol,
Jahangir. Artistas como Riza trouxeram para a corte
indiana as tradições persas da padronagem de superfície
linear e da composição formal. Riza dirigiu a oficina de
pintura da corte de Jahangir em Allahabad (hoje Pryagraj,
na Índia), mas sua carreira decaiu com o crescimento do
interesse de Jahangir pelo naturalismo europeu. O filho
de Riza, Abu’l Hasan (1588 até cerca de 1630), porém,
tornou-se o mais respeitado artista da corte de sua
geração.
Por muito tempo, as oficinas das cortes persa e mogol
foram empreendimentos coletivos, com muitos artistas
trabalhando no anonimato, em livros ricamente
ilustrados. Por volta do século XVII, entretanto, essas
oficinas começaram a se assemelhar às europeias.
Tornaram-se competitivas e hierarquizadas, com pelo
menos um mestre para cada dez pintores empregados, e
os artistas mogóis foram cada vez mais valorizados
individualmente. Assim como os artistas do Ocidente,
eles começaram a assinar suas obras, incluindo
autorretratos nas cenas e desenvolvendo estilos pessoais
únicos.
O interesse de Jahangir pelo naturalismo surgiu da
recente disponibilidade de arte ocidental na Índia. Seu
pai, Akbar, reunira uma coleção de pinturas e gravuras
ocidentais, muitas vezes presenteadas por europeus
buscando fechar acordos comerciais. O naturalismo das
gravuras europeias começou a se espalhar pela pintura
mogol, conferindo solidez às figuras e profundidade às
cenas, possibilitando a expressão de relações emocionais
mais fortes. Ainda um menino de treze anos, Hasan
copiara a imagem de São João da gravura da Crucificação
(1511) de Dürer, replicando atentamente os dedos
entrelaçados e unidos em oração e os olhos pesarosos.
Mais tarde, em Esquilos em um plátano (1605-1608),
nota-se como ele reagiu à perspectiva e ao desenho
realista europeu. Hasan conserva o tradicional fundo em
ouro e a árvore estilizada da obra do pai, mas acrescenta
uma paisagem rochosa que vai se distanciando e um
conjunto de animais bem observados, incluindo um
bando de esquilos vermelhos saltitando pelos galhos.
Hasan continuou a pintar cenas do Jahangirnama, entre
1615 e 1618, a versão oficial das memórias de Jahangir,
na qual o imperador descreveu Hasan como “não tendo,
no presente, rival ou semelhante, [...] tornou-se
verdadeiramente a maravilha da época”.
Os imperadores mogóis apreciavam colecionar arte
ocidental, e os missionários europeus tentaram uma
jogada similar na China, levando consigo pinturas
europeias para a corte imperial. Mas os literati chineses,
os respeitados artistas amadores que vimos pela
primeira vez no capítulo 9, deram pouca atenção à nova
forma de representar o mundo, e a arte ocidental não se
firmou na China até o século XIX.
Segundo o artista Dong Qichang (1555-1636), a arte
na China do século XVII recaía em dois campos. Havia a
escola do Norte, dominada por artistas profissionais
treinados como Cui Zizhong (1574-1644), que de modo
bem geral pintava figuras, e a escola do Sul, dominada
pelos literati como Dong e seu gosto pelas paisagens
monocromáticas. Os escritos de Dong sobre arte
permaneceram imensamente influentes na China por
séculos, mas eram desconhecidos no Ocidente até pouco
tempo. Fazem contraste com o modelo ocidental de
genialidade individual e imitação clássica. Enquanto os
estilos de pintura ocidentais concorrentes eram
modernos por, no máximo, algumas décadas, os artistas
chineses se valiam de tradições milenares. Dong
acreditava que os artistas tinham de absorver a natureza
com viagens para em seguida concretizá-la conforme
explorassem os estilos de grandes artistas chineses do
passado. Eles deveriam criar um estilo pessoal que
expressasse originalidade, ao mesmo tempo
demostrando deferência pelos que os haviam precedido.
Assim, as paisagens de Dong não tentavam replicar a
observação exata extraída da natureza, mas a essência
do que ele havia observado nela, conforme seus
antecessores haviam expressado. Em 1620, ele criou o
álbum Oito cenas de outono, um conjunto silente de
margens de rio, montanhas e neve, com base em
interpretações mais antigas e expondo sua versatilidade
com tinta e pincel. Cada cena contém um poema
reflexivo que dá vida à paisagem, escrito sobre uma área
da pintura deixada em branco de propósito para dar
espaço às divagações do espectador.
Grande parte das explorações europeias do século XVI
tinha sido realizada por portugueses e espanhóis, mas
foram os holandeses que dominaram o comércio
internacional no século XVII. A república holandesa havia
lutado para existir, reavendo suas terras da corte
espanhola, que ainda retinha Flandres no sul dos Países
Baixos. Agora, quando mercadorias como porcelana
chinesa eram embarcadas para a república holandesa, oslucros abarrotavam os bolsos da classe média holandesa
e não a realeza espanhola, transformando cidades e
municípios densamente povoados em redutos abastados.
Isso criou um mercado vigoroso para a arte, uma suposta
idade de ouro holandesa. Entretanto, não se tratava de
arte na escala dos retábulos flamengos de Rubens. Em
vez disso, as pessoas compravam pinturas menores em
feiras, nas lojas e com negociantes de arte e escolhiam
cenas do cotidiano ou de objetos e paisagens à sua volta.
O mercado dominante para a arte não era mais a Igreja
ou o Estado, e os artistas tiveram que corresponder às
necessidades da nova clientela. Grande parte da arte
que temos hoje foi originalmente pintada para clientes de
status elevado, e podemos ter a visão distorcida sobre
como a arte era vivenciada pela gente comum. A arte da
idade de ouro holandesa nos dá condições de ver o tipo
de pintura que estaria nas paredes de casas como as
nossas, se vivêssemos na república holandesa do século
XVII.
A natureza-morta foi um dos novos tipos de pintura
que se tornou popular, e Clara Peeters (por volta de 1588
-1657) se destacou, pintando mesas fartas, desde o café
da manhã a banquetes. Ela se baseou no naturalismo
detalhado do Renascimento nórdico e evocou múltiplas
texturas contrastantes em cada obra: a casca dura de
um pão, o brilho suave de penas, o bojo lustroso de um
jarro de estanho. Em Natureza-morta com gavião,
galinha, porcelana e conchas (1611), um gavião-da-
europa fêmea, de olho dourado flamejante, agarra-se à
alça de um cesto de vime sobre a mesa repleta de
pássaros mortos, incluindo um pato selvagem, dois
pombos depenados e um cardeal. Os pássaros dividem a
mesa com quatro conchas e uma pilha de porcelanas.
Pelo conjunto dos objetos, fica implícito que o dono é
abastado e viajado, já que as conchas são originárias do
Caribe e da África Ocidental e a porcelana foi importada
da China. As pinturas de natureza-morta eram vendidas
logo depois de prontas, ou seja, não eram
encomendadas. Elas eram mais uma expressão dos
anseios e valores de seus proprietários do que uma
marca da propriedade, em si, dos objetos representados.
Alguns preferiam ter pinturas de figura humana em
suas casas, e o estilo descontraído e exuberante de Frans
Hals (1582/3-1666) era muito popular, bem como as
pinturas de Judith Leyster (1609-1660), que
provavelmente estudou na oficina de Hals em Haarlem.
Hals especializou-se em retratos, muitas vezes pintando
um homem de classe média alegre fazendo um brinde,
ou um músico entoando uma melodia. O melhor de Hals
aparecia quando ele captava as expressões
momentâneas da vida, como o estouro de uma
gargalhada, um olhar desconfiado, o sorriso de um
bêbado. Leyster criou cenas de gênero como A proposta,
datado de 1631. Hals influenciou-a no uso de pinceladas
largas e vibrantes, e os caravagistas inspiraram as
sombras escuras que ela usava para impelir as figuras,
tornando-as mais próximas do nosso mundo. As cenas de
Leyster contêm mais profundidade emocional do que as
de Hals, porque ela inseria uma lição de moral em cada
obra. A proposta não era um retrato duplo, mas uma
história de resiliência feminina e do desejo masculino
frustrado. Retrata uma mulher sentada, envolta em um
xale de alvura ímpar que reflete a luz da chama e ilumina
seu rosto. De cabeça baixa, ela concentra-se na costura
e recusa-se a ser distraída pelo homem com chapéu de
pele que toca seu ombro, e a mão direita cheia de
moedas para ela caso concorde com seus avanços.
De volta à Flandres espanhola, Antoon van Dyck
(1599-1641) deixara o emprego com Rubens ao se dar
conta de que enquanto Rubens permanecesse na
Antuérpia, ele sempre seria uma sombra do mestre.
Assim, viajou para a Itália, primeiro para Gênova, depois
Roma e em seguida Palermo, onde ele esboçou uma já
idosa Sofonisba Anguissola, enquanto conversavam
sobre pintura. Raramente permanecendo em um lugar
por mais de dois anos, Van Dyck pintou ao longo de sua
trajetória pelas cortes reais atendendo a encomendas.
Ele captava a opulência e os estilos de vida de seus
modelos, pintando o aventureiro inglês sir Robert Shirley
usando uma vestimenta persa em Roma e o conde de
Arundel e sua esposa, Aletheia Talbot, em casa, em
Sussex, planejando a colonização britânica de
Madagascar e indicando o país em um imenso globo.
Van Dyck tornou-se o principal retratista da Inglaterra
do século XVII. Carlos I o fez cavaleiro em 1632, e Van
Dyck passou a ser seu pintor pelos nove anos seguintes.
Em 1635, ele recebeu a incumbência de pintar o rei sob
três ângulos para que o destacado escultor italiano Gian
Lorenzo Bernini fizesse sua estátua. Van Dyck retratou o
rei de frente, de perfil e em três quartos. O rosto era
estreito, pálido e barbado, os olhos castanhos
ligeiramente caídos. Os lábios são suaves, sem esboçar
sorriso, e os dedos finos sustentam vestes de cetim, sob
golas fartas de renda trabalhada. É tentador visualizar o
destino traçado para Carlos I (decapitado por traição
depois de perder a Guerra Civil Inglesa contra Oliver
Cromwell) no rosto circunspecto, melancólico, quase
assombrado. O brilhantismo de Van Dyck como retratista
estava na sua capacidade de captar o âmago da pessoa,
usando cada pequeno detalhe assimétrico para construir
o retrato de um ser humano e não apenas uma
representação.
Com o crescimento de novos mercados para a arte no
século XVII, especialmente na classe média, tipos de arte
diferentes começaram a surgir. Natureza-morta era um
deles, outro era o de paisagens, para os quais
passaremos a seguir.
Capítulo 20 - A mentira da
terra
É 1648 e Nicolas Poussin, de pé, contempla as duas
pinturas a óleo diante dele. Ambas exibem a morte do
general ateniense Phocion, envenenado por seus
inimigos em 318 a.C. e a quem foi negado um
sepultamento na parte intramuros da cidade. No primeiro
quadro, Paisagem com o sepultamento de Phocion, vê-se
o corpo do general morto sobre uma maca, envolto em
uma mortalha branca e levado por dois homens
cabisbaixos por uma estrada de terra. Eles seguem pela
estrada que serpenteia pelo interior. No segundo quadro,
Paisagem com as cinzas de Phocion recolhidas pela
viúva, uma mulher se agacha nas sombras, juntando as
cinzas do marido com as próprias mãos, enquanto uma
criada vigia. Algumas árvores ocupam o primeiro plano
enquanto, mais além, um templo clássico chama a
atenção para a parte superior, em direção a ruínas
distantes.
Entre uma pintura e outra, Poussin desvia o olhar para
sua caixa cenográfica sobre uma mesa próxima. É como
um teatro em miniatura que exibe cada cena a ser
pintada. Ele passa dias fabricando as figuras e os prédios
de cera, bloqueando a fonte de luz para, em seguida,
cautelosamente direcioná-la a partir de determinado
ângulo e, assim, estudar as sombras formadas. Nada é
deixado ao acaso: ele controla todos os aspectos de cada
cena a fim de obter equilíbrio e harmonia.
Poussin pintou esses dois quadros para um negociante
chamado Cérisier em Lyon, na França, seu país de
nascença. Ele costuma pintar para colecionadores
franceses, ainda que tenha vivido em Roma por 24 anos.
Seus mecenas são todos intelectuais humanistas que
apreciam suas pinturas estudadas e calculadas, em que
a ação clássica foi acalmada e condensada em reflexões
filosóficas sobre a vida.
*
Por que Nicolas Poussin (1594-1665) foi para Roma
aos trinta anos e ficou por lá? Ele não seguiu os passos
de Caravaggio, criando obras espetaculares e teatrais,
nem procurou os bolsos abarrotados do papa para
conseguir encomendas. Não, para Poussin, Roma era o
epicentro da arte clássica que, seguindo o pensar de
Carracci, continuava a fascinar artistas e antiquários (os
estudiosos da arte clássica) por todo o século XVII.
Cada vez mais as cenas religiosas e mitológicas eram
reduzidas pela paisagem em que eram situadas. Por quê?
Até o momento, a paisagem fora pouco mais que um
pano de fundo, algo avistadopelas janelas do
Renascimento nórdico ou à distância, como na Mona Lisa.
Agora, ela rapidamente se tornava a estrela do show, à
medida que a pintura paisagística de Poussin permitia-lhe
apresentar impressões idealizadas do interior da Roma
antiga para seus mecenas e apoiadores humanistas. Ele
recorria aos próprios desenhos, muitas vezes esboçados
nas colinas fora de Roma ao lado de outro pintor francês,
Claude Lorrain, hoje simplesmente conhecido como
Claude (Claude Gellée, 1604/5-1682). Os dois artistas
foram as pedras angulares dessa nova tradição da
pintura de paisagem clássica, extremamente popular nos
séculos XVII e XVIII.
Os colecionadores de Claude não eram os intelectuais
de Poussin, mas a aristocracia da Europa. Nas pinturas
de Claude, as árvores também emolduram a paisagem e
nos direcionam para a vista. Na Paisagem pastoral de
1647, as árvores margeiam o rio, que nos atrai para
dentro da cena ao seguirmos seu trajeto em direção às
montanhas enevoadas ao longe. As pessoas só estão
presentes para efeito de proporção e marcações de cor.
Em muitas de suas cenas, o sol nascente lança um brilho
dourado sobre cada folha e pedaço de relva. A riqueza da
luz matinal paira sobre tudo o que toca, seja por cima,
por baixo ou à frente.
A paisagem não é algo natural, ela não existe
simplesmente. Não é a terra em si, mas uma vista
criteriosamente escolhida, esboçada ou pintada para
contar determinada história da relação de um homem
com a terra. Para Poussin e Claude, ela é pontilhada de
templos romanos fictícios e remonta à aurora do
classicismo. Para os artistas holandeses, por outro lado, a
paisagem refletia aspectos do cotidiano. Moinhos e
igrejas brotam de faixas de terreno plano; barcos e
navios saem para o mar sob céus carregados. Na
Holanda, o crescimento da pintura de paisagens foi
alimentado pelos interesses de colecionadores de classe
média que a adquiriam. Eles não habitavam em palácios
privativos ou nos claustros das catedrais, mas lá fora, no
mundo real, onde seus navios balançavam ancorados e
os moinhos giravam nos campos. Tinham lutado
bravamente por sua terra, combatendo nações rivais e
até o próprio mar, drenando lagos abaixo do nível do mar
para ter mais terra para cultivar.
O ano de 1648 foi o ponto alto das paisagens clássicas
de Poussin e Claude na Itália, mas nos Países Baixos a
data significou o fim de uma guerra de trinta anos que
havia lançado o Imperador Católico Apostólico Romano
contra estados protestantes, dentre eles a República
Holandesa. O Tratado de Westfália, assinado em 1648,
inaugurou uma era de paz. Apesar do custo da guerra, a
era de ouro holandesa não dava sinais de acabar. O
dinheiro circulava, vindo dos territórios e das missões
comerciais pelo mundo, e os negociantes, beneficiários
dos lucros, logo cuidavam de gastar os ganhos em
pinturas para decorar suas casas. Mais de um milhão de
quadros foram produzidos entre 1640 e 1659, e o tipo de
arte mais popular foi a pintura de paisagens.
A carreira de pintores holandeses, como Jacob van
Ruisdael (1628-1682) de Haarlem, foi extremamente
bem-sucedida como especialistas em paisagens. A vasta
planície na Vista de Naarden com a igreja em
Muiderberg, de 1647, faz o céu dominar, com uma
amplidão que nos permite sentir o vento soprando no
rosto conforme as nuvens correm pelo céu, ameaçando
chuva. Pinturas assim eram um sopro de ar fresco para
os compradores comerciantes, entocados em cidades e
vilarejos pela República Holandesa. As pinturas de
paisagens não ofereciam uma reprodução fiel do que
existia, mas eram parecidas. Dunas de areia encaravam
o mar cinzento encapelado e galhos de árvores se
estendiam para céus vibrantes. Eram poucos os vestígios
dos novos sistemas de drenagem para retomar a terra do
mar ou da crescente rede de canais. As paisagens que os
negociantes compravam em quantidade talvez nos
pareçam nostálgicas hoje, uma visão idealizada da vida
no interior, mas provavelmente devem ter parecido
dessa mesma forma para os cidadãos holandeses do
século XVII.
Outros pintores holandeses, como Aelbert Cuyp (1620-
1691), sofreram influência de Claude e pintaram vistas
douradas de cidades costeiras. Em sua Vista de
Dordrecht, de 1655 aproximadamente, um grande navio
de dois mastros ancorado ofusca a frota pesqueira
aglomerada ao longo do cais. Esse navio, navegando com
bandeira holandesa, era capaz de atravessar oceanos e
remetia às redes internacionais de comércio das
Companhias das Índias Ocidentais e Orientais. Enquanto
a Companhia das Índias Orientais operava rotas de
comércio de êxito na Ásia, a Companhia das Índias
Ocidentais era ativa no Brasil, fundando colônias ao
longo da costa para explorar a cana-de-açúcar. O
governador geral da colônia brasileira recrutou artistas
holandeses para mapear essa “nova” terra, e tanto
Albert Eckhout (1610-1666) quanto Frans Post (1612-
1680) passaram uma temporada por lá na década de
1640.
Post pintou as propriedades e as fortalezas da nova
colônia holandesa durante os oito anos de sua
permanência, mas foi o exotismo das paisagens
brasileiras, concluídas ao regressar à República
Holandesa em 1644, que impulsionou sua carreira. Ele
pintou trabalhadores negros desconhecidos em engenhos
de cana-de-açúcar impecáveis, com paisagens
caprichadas, acrescentando palmeiras para dar o toque
“exótico”. Tratava-se claramente de um registro fictício.
Na realidade, a cada ano, milhares de escravos morriam
trabalhando nos engenhos de cana perigosos. À época
em que Post pintou Engenho de cana, em 1659 (uma das
25 versões pintadas), o sonho holandês no Brasil
terminara cinco anos antes, com a retomada da colônia
pelos portugueses.
Apesar do crescimento da pintura de paisagens por
toda a Europa no século XVII, muitos artistas
continuaram a trabalhar com a figura humana. O
autorretrato era uma forma de cartão de visita artístico
muito usado pelos artistas para exibir seus dotes. Em um
autorretrato da década de 1640, a pintora flamenga
Michaelina Wautier (1604-1689), sentada em frente a
uma tela, encarando o espectador, segura a paleta com a
mão esquerda e os pincéis com a direita. Ela usa uma
elegante gola dupla debruada de renda, com saia de
cetim creme e um manto volumoso de veludo, trajes que
não usaria para pintar. Michaelina exibe suas habilidades
ao captar o brilho das pérolas no pescoço e no pulso, a
suave luminosidade do cetim, o rubor nas maçãs do
rosto. Suas pinturas das décadas de 1640 e 1650
apresentam uma capacidade semelhante de dar vida a
seus modelos. Ela tinha, de fato, a habilidade de captar o
brilho nos cabelos, os rostinhos infantis bochechudos e
as marcas profundas do tempo em homens de idade.
Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) temia que
escultores não pudessem competir com pintores como
Wautier por não trabalharem com cores, só com luz e
sombra. Mas comprovou seu engano com as vastas
mostras esculturais do brilhantismo barroco financiadas
por uma sucessão de papas e cardeais. Para a capela do
cardeal Federico Cornaro, na igreja de Santa Maria della
Vittoria em Roma, Bernini criou O êxtase de Santa Teresa
por volta de 1651. Em sua autobiografia, Santa Teresa
relatou suas visões místicas, em que via um lindo anjo
com uma lança de ouro flamejante: “Com ela, ele parecia
estar perfurando meu coração várias vezes até penetrar
minhas entranhas”. Quando ele a puxava de volta,
“deixava-me completamente em chamas com um grande
amor por Deus”. Olhe para ela: a cabeça jogada para
trás, olhos fechados, braços abertos em total abandono,
os dedos do pé estirados em um espasmo, como se todo
o corpo estivesse reagindo à sensação. Segundo um
texto anônimo da época, Bernini “prostituíra” a santa, e
Teresa realmente parece vivenciar o toque divino como
se fosse um orgasmo. Bernini o enfatizou, iluminando a
escultura através de uma janela escondida acima, na
cúpula. Ele chegou a oferecer-lhe uma plateia, esculpindo
retratos em alto-relevodos mecenas nas paredes da
capela, como se as imagens estivessem em camarotes
no teatro, observando a visão em êxtase acontecer no
palco.
Bernini trabalhava com uma equipe numerosa de
assistentes que ampliava proporcionalmente seus
bozzetti (modelos de barro) em esculturas de mármore,
permitindo que o artista criasse obras grandiosas como O
êxtase de Santa Teresa e A fonte dos quatro rios, na
Piazza Navona, em Roma, no mesmo ano. Concebida
para o papa Inocêncio X, cujo palácio da família ficava
em frente à praça, a fonte é uma realização magistral de
figuras, animais e geologia colossais, com um obelisco do
Egito antigo erguendo-se no centro dela.
Justo na época em que Bernini concluía a fonte para
Inocêncio X, o artista espanhol Diego Rogriguez de Silva y
Velázquez (1599-1660) terminava o retrato do pontífice.
O olhar analítico e seu intenso realismo certamente não
deveriam surpreender o papa, visto que Velázquez já
retratara vários integrantes de sua comitiva. O pintor,
porém, talvez tivesse exagerado um pouco para o gosto
do septuagenário. A boca está tensa, como numa careta,
o olhar carrancudo franze a testa e o avermelhado da
pele revela a boa vida. Sentado com uma batina de linho
sob uma pequena capa e um barrete de cetim vermelho,
Inocêncio X parece estar pronto para se levantar a
qualquer instante, impaciente para voltar ao trabalho. A
obra acabada jamais foi exibida publicamente durante a
vida do papa, sendo confinada à galeria do palácio
privativo da família, mas é um retrato magnífico do fardo
pesado do poder e sua influência corruptora.
Velázquez fez cópias do retrato ao voltar para Madri,
em 1651. A essa altura, ele já trabalhara para Felipe IV,
rei da Espanha (e neto de Felipe II) por quase trinta anos
e passara horas estudando a coleção real de arte
italiana, inclusive as atrevidas “Poesias” de Ticiano. À
época em que pintou a filha de Felipe em As meninas,
em 1656, seu estilo era seguro e consolidado.
As meninas é um retrato da Infanta Margarita aos
cinco anos com suas damas de companhia. No entanto, é
também um retrato de Velázquez em ação, ao se incluir
pintando um gigantesco retrato duplo dos pais da
infanta, que só vemos como um reflexo difuso no espelho
na parede do fundo. Velázquez apresentou o ato de
pintar como um tema adequado a uma coleção real. Ao
se colocar dentro de um retrato real, ele enfatizou a
posição elevada dos artistas da corte. Sob esse aspecto,
As meninas é também uma pintura política. Na Espanha
dessa época, os trabalhadores manuais, grupo que
tradicionalmente incluía os artistas, não podiam fazer
parte das categorias mais elevadas da sociedade. Os
artistas faziam campanha para que sua obra fosse vista
como arte liberal, mais em linha com a poesia do que
com trabalho manual. As meninas foi a contribuição de
Velázquez para o debate, e dois anos depois de terminá-
lo, aos 59 anos, ele recebeu a ordem militar mais
elevada, o grau de cavaleiro. Foi um triunfo para o pintor
e, por consequência, para todos os artistas espanhóis.
Infelizmente, para outro grande artista que obtivera um
êxito fantástico ainda em vida, as coisas estavam
tomando outro rumo, já perto dos sessenta anos:
Rembrandt van Rijn.
Capítulo 21 - Natureza-morta
e vida imóvel
É 1658. Rembrandt olha para o quadro no cavalete: um
autorretrato sentado. Nele, o pintor surge da absoluta
escuridão, trajando uma túnica dourada trabalhada e um
manto pesado como o de um rei da Antiguidade, a mão
esquerda segurando uma bengala de prata como se
fosse um cetro. O chapéu sombreia os olhos preocupados
e a barba rala é mais acentuada no queixo, mas a mão (a
direita, aquela que ele usa para pintar) envolve o braço
da cadeira, intensamente iluminada como se fosse a
estrela do espetáculo. Cada vez mais, seus retratos
recebem pinceladas largas. Por vezes, ele chega a usar
uma espátula para aplicar a tinta, trabalhando com
pigmentos grossos para acrescentar textura. Nesse
autorretrato somente seu rosto e a mão direita são
detalhados, como se fossem as únicas coisas
importantes.
Afinal, é essa mão que lhe trouxe a imensa fama. Seus
quadros o permitiram adquirir a propriedade em que
reside, em um bairro rico e elegante de Amsterdã. A
imponente casa de cinco andares foi decorada com todo
tipo de arte e gravuras de artistas como Ticiano e Dürer,
e o ateliê é coalhado de trajes e indumentárias do mundo
inteiro, como sedas chinesas, turbantes persas,
armamento holandês. Suas despesas, porém, o
atropelaram. Aquele que um dia fora o principal pintor da
República Holandesa via-se agora diante da falência e
tendo que vender tudo.
*
Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669), hoje
conhecido como Rembrandt, foi um personagem. Mas
qual deles? Isso dependia do dia. Ao longo da vida, ele
pintou, esboçou e gravou autorretratos e existem hoje
mais de oitenta. Aos 23 anos, ele imitou seu cabelo
castanho rebelde desenhando na tinta molhada com o
outro lado do pincel, contornando as feições aveludadas
com uma energia vigorosa. Aos 25, ele usou um turbante
persa e um roupão de seda acolchoado, com um cão
poodle aos pés, apresentando-se como um artista
ambicioso, ávido por deixar sua marca como estrela
internacional. Ele se apresentava com vestes debruadas
de pele e casacos com aplicações, rindo e bebendo com
a primeira esposa Saskia, e se portava como um burguês
rico com elegantes golas de rufos. Podia se transformar
em qualquer personagem, conservando, ainda assim,
uma imagem penetrante e, por conseguinte, podia fazer
o mesmo para você se o contratasse. Logo Rembrandt se
tornou o artista mais importante para os comerciantes
metropolitanos ricos e para as guildas da cidade, todos
desejosos de um retrato pintado por ele.
Em 1642, Rembrandt recebeu a encomenda de uma
divisão dos arcabuzeiros (a guarda civil armada) para
pintar todo o grupo. Hoje chamado de A ronda noturna,
esse quadro enorme viu Rembrandt reinventar o retrato
em grupo, tornando aquilo que, antes, seria uma
representação linear captada para a posteridade em uma
cena comemorativa da guarda em ação. O capitão Cocq
e seus homens marcham sob uma arcada ao som de um
tambor, armas e lanças ao lado e bandeiras esvoaçando.
Um cachorro late e uma menina se vira para assistir ao
desfile. Esse foi o ápice de Rembrandt. Em 1658, porém,
as encomendas de retratos escassearam, seu estilo mais
solto viu-se ameaçado pela moda do naturalismo
detalhado, e ele, cada vez mais, se dedicou às gravuras.
Rembrandt usava o processo de água-forte nas
gravuras. A água-forte era semelhante à gravação, mas
em vez do trabalhoso esforço de traçar as linhas no
metal, Rembrandt usava o buril para desenhar sobre uma
camada fina de cera previamente derretida sobre a placa
de cobre. Quando o desenho final era mergulhado em um
banho de ácido, a substância corroía o metal exposto
com a raspagem da cera, criando linhas que reteriam a
tinta para a impressão. Rembrandt costumava refazer
suas gravuras várias vezes, eliminando figuras,
acrescentando mais sombras e destaques, usando verniz
para preencher linhas desnecessárias. Grande parte de
sua fama, em vida e depois dela, foi um resultado da
ampla distribuição de suas águas-fortes, magnificamente
tonalizadas, de temas religiosos, como As três cruzes
(1653-1660).
Durante a segunda metade do século XVII, as fortunas
de Amsterdã se desestabilizaram devido a guerras
internas e externas. Um período agitado na China
restringiu a exportação de porcelana, escasseando o
produto na Europa. Essa foi uma boa notícia para as
fábricas holandesas, particularmente para as de Delft,
que passaram a fabricar cópias da porcelana azul e
branca chinesa. As cópias ficaram conhecidas como
porcelana de Delft, e as peças viraram “vacas leiteiras”.
Elas ajudaram a transformar a pequena cidade de 20.000
habitantes em um rico centro de arte. Johannes Vermeer
(1632-1675) nasceu em Delft, e Pieter de Hooch (1629-
1684) mudou-sede Rotterdã para lá em 1650. Vermeer
foi influenciado pelas pinturas de gênero de Gerard ter
Borch (1617-1681), pintor holandês muito viajado que
passara um tempo em Roma e na corte de Felipe IV, na
Espanha, antes de voltar para a República Holandesa. Ter
Borch foi um pintor excepcional de tecidos e representou
cenas da intimidade doméstica abastada, como alguém
tocando alaúde ou lendo uma carta, para exibir sua
habilidade em captar o brilho sutil nas saias de cetim
branco. Vermeer também pintou mulheres tocando
instrumentos ou lendo cartas, mas destaca-se uma
quietude em suas pinturas. Em vez das saias de cetim,
ele reproduzia elementos simples em seus mínimos
detalhes: as tachas no espaldar de uma cadeira, os
vincos no mapa recém-pendurado na parede e a luz
cinzenta e fria sobre sua esposa Catarina grávida, diante
de uma janela, em Mulher de azul lendo uma carta
(1663-1664).
No capítulo anterior, vimos que Poussin colocava
estatuetas de cera dentro de uma caixa cenográfica e
manipulava a fonte de luz para controlar a cena antes de
pintá-la. Muitos acreditam que Vermeer foi mais longe
ainda, graças ao desenvolvimento da ótica,
transformando sua casa em palco para uma câmera
escura. A câmera escura foi a precursora da câmera
fotográfica que conhecemos hoje. Ela refletia a imagem à
sua frente, usando uma lente, projetando-a, de cabeça
para baixo, na parede de um quarto escuro por trás. Isso
permitia a Vermeer experimentar cadeiras, mesas, jarros
e até pessoas em diversas posições, equilibrando os
elementos em cada composição. Considerando sua
notória lentidão como pintor, esse certamente foi um
recurso bastante útil. Como ponto de partida, ele podia
até traçar os contornos da cena projetada na tela em si.
Assim, ele se concentrava naquilo que mais lhe
interessava: captar a forma como a luz transformava as
pessoas e os objetos à sua frente e construir
composições harmoniosas usando poucas cores,
especialmente o azul de Delft e o amarelo ocre.
Pieter de Hooch também recorreu ao ambiente
doméstico como tema, mas em vez de limitar a cena a
um canto de sala como Vermeer, ele se divertia
mostrando janelas e portas abertas, com outras vidas ou
vistas flagradas ao longe. Ele se aventurou também do
lado de fora, nos quintais, pintando bombas d’água e
vassouras, pisos quadriculados e portas abertas como
em Mulher e sua criada em um pátio, concluído em torno
de 1660-1663. Suas cenas foram pintadas em Delft e
Amsterdã, para onde se mudou em 1660 e retratou
inúmeras mulheres, tanto criadas quanto patroas, no dia
a dia, balançando um berço, contando moedas,
ensinando crianças ou cozinhando.
Os quadros de artistas do século XVII como Vermeer,
De Hooch e Ter Borch não nos oferecem relatos da
literatura histórica ou da Bíblia como as de seus pares
italianos. Na escolha dos objetos sobre uma mesa ou da
distribuição das figuras, talvez houvesse alguma moral a
ser extraída, mas os artistas holandeses do século XVII
pareciam se divertir com a falta de história para trazer a
arte em si, ou seja, aspectos ligados à luz, forma,
composição, para o foco da cena. Eles priorizavam o
olhar e a habilidade ótica, o tópico científico em alta na
época. Eles investigavam como o mundo era visto e não
como as histórias imaginariam que ele fosse.
Em contraposição, Elisabetta Sirani (1638-1665) foi
uma artista italiana que pintou essas histórias. Formada
na oficina do pai em Bolonha, assumiu o controle dela e
de seus assistentes homens com apenas dezesseis anos,
quando o pai ficou incapacitado pela gota. Ao longo dos
dez anos seguintes, ela superou o pai, que fora o
discípulo mais destacado de Guido Reni, e tornou-se uma
grande pintora em Bolonha. Como Artemísia Gentileschi,
sua especialidade eram as heroínas fortes extraídas de
fontes bíblicas ou clássicas. Por outro lado, ao contrário
de Gentileschi, ela não pintava com fulgor teatral ou
brilho dramático, mas seguira o caminho clássico do
idealismo visto primeiramente na obra de Annibale
Carracci e passado adiante para aqueles que tinham
estudado na Academia Carracci, como Reni.
Apesar do momento dramático que Sirani escolheu
para Portia ferindo sua coxa (1664), há pouco da paixão
de Gentileschi em suas figuras femininas. Portia, mulher
do senador romano Brutus, se apresenta passivamente
segurando o punhal com que acaba de se ferir, o corpo
relaxado e idealizado. Portia se feriu para mostrar que as
mulheres podiam ser tão corajosas quanto os homens e,
portanto, confiáveis para guardar segredos masculinos,
no caso o tramado assassinato de Júlio César. Sirani não
retrata Portia conversando com as outras mulheres, em
um aposento mais ao fundo, ou implorando a Brutus. Em
vez disso, Sirani se concentra em sua coragem solitária,
em como Portia é senhora do próprio destino. Talvez
Sirani se identificasse com ela, ou seja, uma mulher
tentando abrir caminho em um mundo masculino.
Quatro anos antes desse quadro, Sirani fundara uma
academia feminina de arte, a primeira da Europa.
Bolonha sempre estivera na vanguarda da educação de
mulheres e, por mais que em outras partes da Europa as
mulheres artistas estivessem lentamente começando a
ser reconhecidas pela capacidade profissional, ainda era
um tanto raro que aquelas sem pais artistas se
tornassem artistas. A academia de Sirani foi importante
por facultar o estudo a mulheres de famílias sem origem
artística. Ela treinou suas irmãs mais novas e catorze
outras mulheres para se tornarem pintoras, e deixou
quase duzentos quadros próprios, quando morreu aos 27
anos. Apesar de menosprezada em histórias da arte
posteriores, na época de sua morte Sirani foi equiparada
a Reni. A cidade promoveu sua cerimônia fúnebre e ela
foi enterrada no túmulo do próprio Reni.
Na República Holandesa e em Flandres não existiam
academias como a de Sirani, mas os artistas masculinos
aceitavam mulheres como discípulas. Um desses artistas
foi Jan Davidz de Heem (1606-1684), da Antuérpia,
reconhecido pintor de natureza-morta floral, que admitiu
Maria Oosterwijck (1630-1693) em sua oficina, aos
dezesseis anos de idade. Seu quadro Vanitas (1668) traz
uma disposição de flores semelhante às de De Heem,
acompanhada, porém, de símbolos de mortalidade como
um crânio humano, um rato devorando uma espiga de
milho e uma borboleta atalanta.
A pintura de flores se popularizou, acrescentada ao
mercado de natureza-morta, depois que a “tulipomania”
tomou conta da República Holandesa na década de 1630.
Essa mania por tulipas viu um único bulbo ser vendido ao
preço de uma casa, em uma escalada frenética de
negociações que culminou com a quebra do mercado, a
primeira do gênero. As pinturas dessas e de outras flores
eram agora das mais caras. A valorizada tulipa listrada
muitas vezes era representada ao lado de lírios e rosas
ainda que não florissem na mesma época. Os pintores
recorriam a catálogos ilustrados de flores para retratar
flores das diversas estações. Rachel Ruysch (1664-1750)
se tornou a principal pintora de flores de sua geração,
trabalhando até os oitenta e poucos anos. Enquanto
muitos artistas holandeses competentes combinavam
espécies de florações consultando livros, Ruysch dava
vida às dela. Com pai anatomista e botânico, ela teve
acesso a gravuras coloridas à mão em livros como o de
Maria Sibylla, New Flower Book [Novo livro das flores], de
1680. Ela também revigorava suas pinturas usando luz e
sombra para dar profundidade a cada flor, dispondo-as
em arranjos viçosos.
Em Vaso com flores (1700), um íris azul-escuro é
contrabalançado por uma tulipa listrada de vermelho e
branco, com pétalas desabrochando. Mais abaixo, há
peônias, rosas brancas silvestres e um punhado de
convolvulus de borda azul por baixo de um caule
quebrado, como se uma flor murcha já tivesse sido
retirada do conjunto. Isso enfatiza a mensagem de todo
arranjo floral, ou seja, a beleza e a brevidade da vida.
Sentimentos como esse, e esse tipo dearte, estavam
começando a sair de moda na virada para o século XVIII
na França. No seio da aristocracia francesa, começava a
crescer uma tendência para pinturas decorativas
superficiais em que a morte era desprezada e a vida,
levada como uma fantasia atemporal. Mas o escapismo
luxuoso acabaria cobrando um preço.
Capítulo 22 - O escapismo do
rococó e a vida londrina
É 1717, e Jean-Antoine Watteau está de pé, de costas
para as janelas, no Salão de Reunião da Academia
Francesa em Paris. Diante dele, os principais artistas de
sua geração observam sua pintura mais recente,
Peregrinação à ilha de Citera. Há cinco anos, a Academia
lhe solicitara uma obra, mas ele se ocupara demais,
procurando atender a todas as encomendas particulares,
e o tempo se fora. Era seu desejo também que a obra
fosse a melhor que já tivesse realizado. O quadro será
incorporado ao acervo da Academia, aliás, esse é o preço
da filiação, e será exposto em uma das salas que se
estendem pelo primeiro andar do Louvre (um antigo
palácio real). Ali, ela será vista por artistas que
participam das aulas de desenho vivo, por visitantes
ilustres e por todos os seus pares e rivais.
Agora, o diretor se dirige a ele e explica que há um
problema. Todo artista que entra para a Academia é
inserido em uma categoria: pintura histórica, retrato,
pintura de gênero, paisagem e natureza-morta. E existe
uma hierarquia, com pintura histórica em primeiro lugar
(valorizada por sua capacidade de combinar um tema
intelectual com toque pictórico) e natureza-morta por
último. O problema da Academia era como classificar
Watteau. A pintura em questão, com casais de
aristocratas em Citera, a ilha do amor da Grécia antiga, é
parte paisagem mitológica, parte representação da corte.
A atmosfera é de uma névoa cintilante, enquanto
Afrodite pratica sua magia e pequenos querubins
brincam nas correntes de ar. O que fazer com a obra? O
que fazer com Watteau? Os acadêmicos estão confusos
porque a Academia existe há setenta anos e eles não se
recordam de ter lidado com esse problema antes.
Por fim, é lançada a proposta de introduzir uma nova
categoria e nela classificar sua obra. O nome será fêtes
galantes [festas galantes], significando cenas da corte ao
ar livre. Então Watteau entra para a Academia como
pintor de fêtes galantes.
*
Jean-Antoine Watteau (1684-1721) inspirou-se em
Ticiano e Rubens para compor as fêtes galantes. Ele
encenava histórias de amor em paisagens clássicas, sob
céus suaves e sonhadores, suavizando as cores com
sombreados em pastel para complementar os interiores
em rococó dourado nas casas de seus mecenas. Suas
pinturas de extremo bom gosto foram logo copiadas em
vasos de porcelana, caixas de rapé e biombos, vendidos
aos milhares à aristocracia europeia. Foram ainda
replicadas em gravuras e disseminadas pela Europa,
influenciando artistas tão diferentes entre si como
Thomas Gainsborough e François Boucher.
Assim como Watteau, Boucher (1703-1770) era de
família pobre e não estudara na Academia. Naquela
época, os principais artistas costumavam ter uma
formação clássica. Começavam estudando a forma com
esboços de esculturas gregas e romanas antes de passar
para modelos vivos e, assim, obter uma perfeita
compreensão do corpo. Em seguida, esperava-se que
eles trabalhassem na direção dos escalões mais altos da
hierarquia acadêmica e aspirassem à pintura da história
antiga ou de cenas mitológicas. Boucher, porém, foi
treinado pelo pai e começou a vida como gravador,
criando águas-fortes com base nas pinturas de Watteau.
Sua formação artística foi mais voltada para o trabalho
direto na pintura do que para o esboço de troncos
humanos de mármore no Louvre. No entanto, como
Watteau, Boucher tornou-se também um acadêmico. Sua
pintura de admissão foi Rinaldo e Armida (1734), uma
sedutora reinterpretação de um poema do século XVI em
que a feiticeira Armida engana Rinaldo para que ele se
apaixone por ela.
Depois de aceito, o quadro Rinaldo e Armida foi
colocado na grande salle, o coração da Academia, onde
as pinturas e as esculturas da mais alta qualidade eram
expostas. Boucher teve direito a um ateliê próprio na ala
norte do Louvre, assim como outros acadêmicos, e lá ele
pintou cenas domésticas em interiores sofisticados,
destinadas a agradar a aristocracia que, cada vez mais,
ansiava por novos produtos de luxo para exibir sua
riqueza e gosto refinado.
Do ponto de vista sóbrio do século XIX, a arte de
Watteau e Boucher recebeu, em seu conjunto, o título
pejorativo de “rococó”. Era superficial e descontraída,
erótica e frívola, uma arte escapista para uma sociedade
escapista que ainda veria seu fim sob o fio da guilhotina.
O rococó foi o oposto do classicismo. Ao admirar Rubens
e priorizar a cor sobre o traço, os pintores do rococó
ofereciam uma alternativa à arte dos acadêmicos
formados no estilo clássico.
Ao longo do século XVIII, em artigos sobre arte nas
revistas e nos jornais, o traço era contraposto à cor e o
intelecto contra a lealdade à natureza. O escritor Denis
Diderot deixou bem claro o lado de sua preferência.
Desde 1737, a Academia promovia exposições regulares
gratuitas no Salon Carré, uma sala enorme do Louvre,
bem no final dos aposentos da Academia, onde o público
tinha acesso direto da rua. Diderot reavaliou essas
exposições bianuais, conhecidas como Salões, e
dispensou as pinturas de Boucher como “perda de tempo
e de talento”, criticando as “nádegas rosadas, cheias de
covinhas”. Diderot preferia, de longe, artistas que
apresentavam composições sóbrias e austeras como as
de Jean-Siméon Chardin (1699-1779). “Eis aqui o
verdadeiro pintor”, observou com efusividade. “Essa
magia vai além da compreensão.”
Se as pinturas de Boucher eram um conjunto
superficial de artifícios e erotismo destinado às alcovas
aristocráticas, as de Chardin ofereciam momentos
sóbrios do cotidiano. No Salão de 1737, ele expôs duas
pinturas de gênero, Menina com uma peteca e O castelo
de cartas. Ambas representam crianças brincando
quando deveriam estar ocupadas com outra coisa: a
tesoura de costura da menina pendurada numa fita azul
atada à cintura e o jovem criado que faz uma pausa na
faxina para montar um castelo de cartas. As pinturas
sugerem que a frivolidade e a diversão são passageiras e
fazem com que as obrigações mais urgentes fiquem de
lado. Menina com uma peteca e O castelo de cartas
foram compradas pelo primeiro-ministro da Saxônia (na
Alemanha). O Salão logo se tornou um acontecimento de
grande importância na agenda parisiense e atraía
colecionadores internacionais. Foi ele que deu origem à
exposição de arte contemporânea na Europa.
Em anos posteriores, Chardin pintou uma série de
autorretratos usando pastéis – lápis de giz colorido
popularizado como material para confecção de retratos
pela artista italiana Rosalba Carriera (1675-1757).
Carriera passara um ano em Paris, de 1720 a 1721,
trocando trabalhos com Watteau e captando as feições
do rei Luís XV em pastel. O pastel é um material ingrato:
ele suja, se esfarela e é difícil de usar. Antes de Carriera,
ele só era usado em esboços. No entanto, Carriera o
usou na mistura de tons de pele para dar às maçãs do
rosto um viço natural e brilho às roupas. Ela ficou na
França só por um ano, mas seus retratos influenciaram
imensamente o desenvolvimento da arte do rococó e ela
se tornou membro da Academia Francesa. Mais tarde,
Carriera regressou a Veneza e seu ateliê atraiu a nobreza
europeia que visitava a cidade como parte do Grand
Tour, nome dado à viagem pelo continente europeu que
jovens aristocratas europeus faziam, principalmente os
homens, para completar sua formação clássica.
Educados em latim e grego, era profundo o seu
conhecimento da mitologia e do pensamento clássico, e
viajavam para a Itália a fim de estudar a arte e a
arquitetura romanas in loco. Roma era o destino final,
mas muitas paradas convenientes aconteciam ao longo
do caminho, como Paris,Florença e Veneza.
Muitos dos que passavam por Veneza no Grand Tour
ficavam extasiados com a cidade, que surgia das águas
como uma miragem. Se o artista desejasse um ângulo do
Palácio do Doge ou do Grand Canal para sua residência
senhorial inglesa, um único ateliê deveria ser procurado:
o de Canaletto (Giovanni Antonio Canal, 1697-1768).
Canaletto estudara com o pai, pintor de cenários teatrais,
mas logo optou por criar fascinantes vedute (quadros
panorâmicos) de sua cidade para uma expressiva
clientela inglesa. O cônsul britânico Joseph Smith era seu
agente, e juntos fizeram da compra de um Canaletto o
ponto alto da experiência no Grand Tour, ainda que a
demanda excedesse a oferta e, por vezes, só uma
propina garantisse a execução do quadro.
Por muito tempo a aristocracia se fiou na pintura de
retratos como forma de registrar sua imagem para a
posteridade. Com o crescimento da pintura de paisagens
(inclusive as vedute), esses dois gêneros de arte se
fundiram na obra de Thomas Gainsborough (1727-1788).
Sr. e Sra. Andrews (1750) é ambientado no vale do rio
Stour, na Inglaterra. A colheita já terminou, mas não há
lavradores à vista. A área cultivada se funde com os
campos, e na lateral esquerda a jovem sra. Frances
Andrews aparece sentada ereta, ainda que um tanto
insegura de si, calçando tamancos e vestindo uma saia
azul sem um respingo de lama. Ela tem dezoito anos e
acaba de se casar. O marido, sr. Robert Andrews, é sete
anos mais velho. Bem à vontade, ele se encosta no
banco, com uma perna cruzada sobre a outra e a mão no
bolso. A espingarda de cano longo foi incluída no retrato
como se ele tivesse saído para caçar. O colo da sra.
Andrew ficou por pintar. Estaria vazio para abrigar
alguma caça ou, quem sabe, um bebê, um futuro
herdeiro fosse acrescentado mais tarde? O estilo do
quadro pode ser o de um retrato de casal em ambiente
externo natural, mas é uma enganação. Não é possível
que Frances andasse até o banco com aqueles saltos! Em
última análise, a pintura é uma declaração de
propriedade. A união do casal criou um patrimônio
considerável em terras de aproximadamente 12
quilômetros quadrados que se estendem por trás deles.
Gainsborough iniciava sua carreira quando pintou esse
retrato. Ele e Robert Andrews eram da mesma idade e
tinham frequentado a mesma escola. Gainsborough veio
a se tornar um dos principais pintores de sua geração,
famoso pelos retratos e paisagens e membro fundador da
Real Academia de Londres. Em 1750, porém, sentia-se
satisfeito por pintar o interior de Essex e não mais
Londres, uma cidade, então, cheia de problemas.
Salteadores roubavam carruagens em plena luz do dia
em Piccadilly, e hordas de soldados e marinheiros
dispensados aderiam ao crime para sobreviver. Aqueles
confinados nas favelas da cidade consumiam gim em
quantidades cada vez maiores. William Hogarth (1697-
1764), com um foco nos aspectos mais sombrios da vida
londrina, faz um contraste chocante com Gainsborough e
seu escapismo aristocrático.
Hogarth era de família pobre e começou como
aprendiz com um gravurista. Mesmo sendo pintor
autodidata e tendo criado muitos retratos e peças de
conversação (retratos de grupo em contextos informais),
foram as gravuras que o tornaram um nome conhecido e
uma pedra no sapato na esfera do governo. Em 1751,
Hogarth publicou Beer Street [rua da cerveja] e Gin Lane
[avenida do gim], oferecendo as reproduções a um xelim
cada, valor intencionalmente baixo. As gravuras
circulavam nas feiras europeias havia séculos (no
capítulo 15, vimos Dürer vendendo as dele nessas
feiras), mas eram vendidas como obras de arte. As
gravuras de Hogarth, por mais que hoje sejam
valorizadas como arte, eram críticas sociais mordazes,
criadas para alcançar o maior público possível.
A Inglaterra importava o gim da República Holandesa
havia sessenta anos, e muitos membros da classe
operária estavam entregues a ele. O romancista Henry
Fielding, amigo de Hogarth, relatara as consequências
nefastas da epidemia do gim em janeiro de 1751, e
Hogarth publicou essas duas gravuras exatamente um
mês depois. (As leis sobre o gim acabaram sendo
reescritas após a campanha de Fielding e Hogarth.) Em
Gin Lane, uma mulher em estado de total embriaguez
deixa o bebê cair tragicamente de seus braços. Um
cantor esquelético, ainda com o copo de gim na mão,
parece ter dado o último suspiro. Em sua cesta, a
partitura de uma balada, “A derrocada da sra. Gin”. A sra.
Gin é vista fazendo suas maldades pelos arredores da
cidade caótica de Hogarth: um homem dependurado na
viga de uma casa abandonada, enquanto uma mulher é
colocada no caixão. Somente o agiota faz bons negócios.
Por outro lado, Beer Street oferece uma alternativa
patriótica, alegre e irreverente à morte e à destruição
causada pelo gim. A cerveja faz crescer a barriga, mas
Hogarth a coloca como a bebida de homens e mulheres
trabalhadores e honestos. Nessa realidade alternativa, o
agiota leva a pior enquanto a cidade prospera.
Hogarth foi um observador incrível da natureza
humana e tinha um tino para os tiques e afetações de
todas as classes da sociedade. Em Casamento à la mode
(1743), ele conta, em seis quadros, a história do
casamento arranjado entre a filha de um rico vereador
(conselheiro) da cidade e o filho, aparentemente sifilítico,
de um conde empobrecido. No quarto quadro, A toalete,
um criado negro serve chocolate quente enquanto a
esposa recebe o amante em seu quarto. Um menino
negro menor, usando um turbante emplumado, brinca
com estatuetas da coleção do conde, já falecido, prestes
a serem leiloadas para fazer um dinheiro extra. Tudo é
exibição, desde os criados negros “exóticos” ao castrato
e o flautista que entretêm seus convidados pedantes.
Afinal, Hogarth desejava ter suas cenas da Inglaterra
contemporânea avaliadas entre as maiores pinturas de
todos os tempos, e ficou muito irritado quando não o
conseguiu. Ele faleceu quatro anos antes da fundação da
Real Academia de Artes em Londres, mas, considerando
sua rejeição a teóricos e acadêmicos, é bem provável
que não viesse a ser um de seus membros. Hogarth era
realista demais – um homem das ruas – para agradar aos
acadêmicos de ambos os lados do Canal da Mancha.
Capítulo 23 - A Real Academia:
em casa e longe dela
É 1772 e grande parte dos membros fundadores da nova
Real Academia de Artes em Londres se aglomera na sala
de desenho vivo. É noite e a única iluminação vem do
grande lustre a óleo preso ao teto. Abaixo, sobre uma
plataforma rasa, estão dois modelos vivos masculinos
sentados. Um deles já está despido e sendo posicionado
por George Moser, o artista encarregado das escolas da
Academia. Moser coloca a mão do modelo no laço de
corda pendente do teto para ajudá-lo a manter o braço
erguido, sustentando a posição desconfortável. O
desenho vivo é parte essencial da formação acadêmica
no século XVIII e, sem ele, nenhum artista pode sonhar
com o estrelato.
O primeiro diretor da Real Academia, Joshua Reynolds,
em um elegante paletó preto forrado de cetim branco, e
sua reluzente trombeta de ouvido de prata, não observa
o modelo, mas sim escuta o que diz o secretário. Nesse
ínterim, os membros da Academia, de peruca e meias,
preenchem as bancadas de desenho semicirculares. O
pintor paisagista Richard Wilson se apoia em uma
extremidade, à direita, de preto, e o artista visitante
chinês Tan-che-qua está por trás do pintor de história
americana Benjamim West, bem descontraído. Tan-che-
qua não se dirige a West, mas olha em direção à parede
mais distante, para dois retratos de mulheres artistas.
São as únicas “mulheres” que vemos na sala, pois essa é
uma sessão de desenho vivo e as mulheres estão
estritamente proibidas de entrar.
*
A reunião acima, na verdade, não aconteceu. Ou, pelo
menos, não com essa composição, dado se tratar da
cena de um quadro, Os acadêmicos da Real Academia
(1771-1772). É um retrato de grupo de autoria de um dos
primeirosacadêmicos, o alemão Johann Zoffany (1733-
1810), que se colocou no canto inferior esquerdo,
segurando a paleta. O certo é que as duas mulheres nos
retratos pintados, Mary Moser (1744-1819) e Angelica
Kauffman (1741-1807), jamais estiveram na sala de
desenho vivo, mesmo sendo também fundadoras da
Academia. (Alguns dos integrantes homens,
especialmente Gainsborough, o maior rival de Reynolds,
também não fizeram parte do quadro definitivo.)
Os acadêmicos da Real Academia é uma interpretação
moderna da A escola de Atenas de Rafael, vista no
capítulo 14. A pintura reúne dezenas de acadêmicos,
artisticamente posicionados em uma composição
chamada de retrato de grupo. Zoffany era mestre nisso
e, tão logo finalizou o quadro, recebeu uma encomenda
da rainha Charlotte para pintar outro no mesmo feitio. O
tema era a Tribuna (sala das obras-primas), na recém-
inaugurada Galeria Uffizi, em Florença, que fervilhava de
ingleses em seu Grand Tour. Na Tribuna dos Uffizi (1772-
1777), há quadros distribuídos pela sala octogonal de
cima a baixo. A galeria Uffizi abrigava o acervo dos
Médicis e, na pintura de Zoffany, algumas peças foram
destacadas para uma observação mais atenta.
Há uma ligação entre Os acadêmicos da Real
Academia e Tribuna dos Uffizi. O foco de ambas as telas
recai sobre homens artistas e aristocratas, e as mulheres
somente são incluídas como imagens a serem
observadas. Na Tribuna, homens de peruca cercam a
escultura nua da Vênus de Médici helenista e a Vênus de
Urbino de Ticiano. Já em Os acadêmicos, as duas
mulheres, embora membros, não aparecem como
participantes ativas, posando como modelos na sala de
desenho vivo ou conversando com Reynolds sobre
teorias da arte. Ao contrário, elas estão presentes como
retratos de cabeça e ombros, como objetos a serem
olhados. (A figura feminina seguinte a se tornar
acadêmica foi Laura Knight, em 1936, quase dois séculos
depois. O lugar permaneceu um universo masculino até
bem pouco tempo.)
Mary Moser, filha do acadêmico George Moser, foi uma
notável pintora de flores, enquanto Angelica Kauffman
destacou-se como retratista, aspirante ao primeiro
escalão da hierarquia acadêmica, o de pintora histórica.
Suíça de nascença, Kauffman viajou com o pai, um pintor
contratado (que trabalhava para outros artistas).
Angelica era musicista talentosa, mas optou pela pintura,
realizando seu primeiro autorretrato conhecido aos doze
anos. Aos vinte, morou na Itália (Florença, Bolonha e
Roma), antes de se mudar para Londres em 1766, onde
ficaria por quinze anos. Ela foi aceita pelas academias de
arte dessas quatro cidades, o que atesta sua capacidade,
e conquistou seguidores fiéis e alguns mecenas
influentes, incluindo a rainha Charlotte. Mesmo sem
permissão para praticar com modelos vivos nus, algo
visto como essencial para a pintura histórica, ela obteve
êxito pintando temas mitológicos e históricos como
Zeuxis escolhendo modelos para a pintura de Helena de
Troia (1775-1780) e A tristeza de Telêmaco (1783).
Angelica obteve enorme sucesso, e suas gravuras
inspiradoras circularam pela Europa, levando o
embaixador dinamarquês em Londres a observar em
1781 como o mundo inteiro se tornara “louco por
Angelica”.
Joshua Reynolds (1723-1792) foi um retratista que
elevou seus modelos a status de heróis e heroínas e
competia com pinturas de história mitológica como as de
Kauffman nas exposições da Academia. Entretanto,
quando seu colega acadêmico Benjamim West
transformou uma cena contemporânea da Batalha de
Quebec em uma notável tela histórica com A morte do
general Wolfe, em 1770, Reynolds ficou horrorizado. Até
então os temas históricos eram clássicos e edificantes,
nunca atuais e realistas. West conservou os uniformes
dos soldados da época e incluiu um guerreiro mohawk
sentado, com tatuagens bem detalhadas e acessórios de
contas, sugerindo que o pintor fizera estudos mais
detidos sobre aquele homem. Apesar das preocupações
de Reynolds, West conferiu à cena da época a seriedade
de uma pintura histórica clássica. Seu general moribundo
jaz qual o Cristo morto na Descida da cruz de Rubens
(vista no capítulo 19), uma morte mais idealizada do que
real. A morte do general Wolfe ganhou enorme
popularidade, tornando-se uma gravura de alta
vendagem, e West assumiu o posto de diretor da
Academia quando, mais tarde, Reynolds deixou o cargo.
Nas exposições anuais, a Academia exibia as novas
obras dos acadêmicos, sendo o equivalente inglês do
Salão francês. Acessível a qualquer um que tivesse um
xelim sobrando (cerca de cinco libras esterlinas hoje), a
Academia tornou-se o coração do mundo da arte londrina
enquanto competia com Paris. Nem todo acadêmico
estava convencido de que a exposição se equiparava ao
Salão e decidiram agir por conta própria. John Singleton
Copley (1738-1815) foi um seguidor norte-americano de
West e se tornou acadêmico em 1779. Ele sempre
enfurecia Reynolds e os demais acadêmicos expondo
seus quadros de história moderna em salas alugadas
para garantir um foco exclusivo para sua obra. Custava
um xelim para ver A morte do major Peirson (1784), um
quadro encomendado por John Boydell que viria a ter
uma circulação bem maior como gravura. Boydell
esperava duplicar as vendas de sua gravura em relação
às vendas de A morte do general Wolfe, de West, que
alcançaram quinze mil libras (três milhões colossais de
libras hoje).
O major Peirson não era muito conhecido antes de sua
morte, mas, ainda assim, a cena de Copley era cheia de
vigor patriótico e lealdade. Peirson morrera durante um
ataque às tropas francesas em Jersey. Na interpretação
de Copley sobre os acontecimentos, conforme o major
branco sucumbe, seu criado negro empunha a arma e
atira no criminoso. A aba do casaco do criado revira
quando ele mira o alvo, e a atitude do corpo espelhando
as linhas diagonais dos soldados avançando e as
mulheres e crianças fugindo dá uma sensação de impulso
repentino ecoado pelas imensas bandeiras inglesas
agitadas. Essas diagonais imprimem velocidade à
batalha, levando o espectador ao centro da ação.
Nem todos os acadêmicos ficaram na Inglaterra. Ainda
jovem, William Hodges (1744-1797) passou três anos a
bordo do navio do capitão Cook, Resolution. Ele
acompanhou Cook em sua segunda viagem de volta ao
mundo de 1772 a 1775, pintando a flora, a fauna e os
tipos humanos que conheceu no Taiti, na Nova Zelândia e
em Rapa Nui. Na época, o Iluminismo estava no auge, o
tempo do conhecimento científico em franca expansão,
quando os europeus desejavam ver, compreender e
classificar o mundo inteiro (um mundo que estavam, ao
mesmo tempo, explorando por meio da construção
agressiva de impérios). O botânico Joseph Banks, que
navegara com Cook na primeira viagem, deveria
acompanhá-lo novamente. Banks convocara os serviços
de Zoffany como seu pintor de bordo, mas Cook se
recusou a acomodar todo o séquito de Banks e o
botânico desistiu da viagem, bem como Zoffany. Zoffany
foi para Florença, trabalhar para a rainha Charlotte, e
Hodges o substituiu como artista oficial na segunda
viagem.
Os quadros de Hodges sobre a Oceania, finalizados ao
regressar à Inglaterra, não são interpretações precisas da
paisagem tropical encontrada. Ao contrário, ele a banhou
com as atmosferas douradas de Claude e a transformou
em vistas pitorescas que os europeus podiam assimilar.
Os quadros procuravam acompanhar o gosto europeu
contemporâneo conforme exemplificado na Grã-Bretanha
pelo pintor paisagista Richard Wilson (1714-1782), com
quem Hodges havia estudado. Os quadros de Hodges
realçavam observações detalhadas da vegetação da ilha
e muitas vezes incluíam edificações ou barcos usados
pelos habitantes da ilha, mas, no final, Hodges era
levado por preconceitos europeus. Os taitianos nos
barcos em Vista da baía de Matavai na ilha de Otaheite,
datado de 1776, têm pele escura e remam em canoas de
guerra ao longo da costa, defendendo o litoral da ilha.
Por outro lado,as mulheres do quadro de mesma
temática Vista da baía de Otaheite Peha têm pele clara.
Elas se banham nuas nas águas calmas de um remanso,
e só mesmo a tatuagem nas nádegas de uma delas
distingue-as das mulheres europeias. Palmeiras esguias e
uma escultura taitiana ti’i (bem aumentada) foram
acrescentadas como elementos exóticos a uma paisagem
que, de outra forma, seria uma paisagem familiar de um
curso d’água sinuoso emoldurado por árvores e
montanhas distantes. O conhecido relato do navegador
francês Louis-Antoine Bougainville sobre o Taiti, publicado
em inglês em 1771, descrevia o Taiti como uma nova
Citera, a ilha do amor que conhecemos na obra de
Watteau no capítulo anterior. Hodges conserva essa
ideia, e o espectador na Inglaterra tinha como
contemplar as mulheres e a paisagem, apreciando a
posse visual de ambas.
Os dois quadros de Hodges foram expostos na Real
Academia em 1776 ao lado do Retrato de Omai, de
Reynolds, uma “imagem” de Mai, habitante da ilha de
Raiatea (conhecido em Londres como Omai), na
Polinésia. Omai juntou-se a Cook em sua segunda viagem
e tornou-se parte da sociedade inglesa ao chegar a
Londres. Esse não fora um retrato encomendado. Na
verdade, Reynolds havia previsto que o público da
exposição anual estaria curioso para ver o estrangeiro
“exótico”. Hoje a representação distorcida de Mai feita
por Reynolds pode parecer de mau gosto e até racista.
Ele vestiu o jovem Mai descalço com túnicas brancas
volumosas e um turbante, com tatuagens visíveis
somente nas mãos. Sua pele é bem mais clara do que no
retrato de Mai feito por Hodges, que dá ao jovem nariz e
boca avantajados, diferentes dos traços ocidentalizados
do retrato de Reynolds, e há uma sensação de escrutínio
visual encoberto por Reynolds em favor de um esplendor
teatral.
Esculturas ti’i iguais à que vimos no quadro de
Hodges, Vista da baía de Otaheite Peha, foram trazidas
para a Inglaterra nas viagens de Cook. Hoje avaliamos
essas peças como esculturas, mas elas não eram vistas
dessa forma no século XVIII, mas como curiosidades
antropológicas, exóticas e diferentes aos olhos
ocidentais, conforme ocorreu com Mai. Não eram
consideradas arte na Europa porque seus autores
anônimos não visavam uma representação real. Seja
naturalista ou idealista, com pinceladas soltas ou trompe
l’oeil, toda a arte do século XVIII era julgada pela
maestria da imitação, a capacidade de copiar o mundo
natural, que (conforme vimos) teve sua origem na arte
clássica grega e romana.
Hoje, duas figuras ti’i, um homem e uma mulher,
estão no Museu Pitt Rivers, em Oxford. Nelas, vemos
somente traços essenciais em vez de feições mais
detalhadas. As cabeças são desproporcionais e as pernas
curtas arqueadas, com olhos e dedos marcados por
linhas. Só depois que artistas modernos como Paul
Gauguin encontraram obras semelhantes em feiras
mundiais no final do século XIX e começaram a tê-las
como fonte de inspiração, o Ocidente, aos poucos,
passou a apreciar o valor estético dessa arte.
(Seguiremos Gauguin até o Taiti no capítulo 29.) Mesmo
nessa época, o contexto original dessas obras nunca foi
reconhecido e não sabemos se essas figuras
representavam divindades polinésias, se estariam ligadas
a sistemas de crenças ou se tinham, a princípio, um
propósito artístico.
Ninguém acreditava que os nativos das ilhas tivessem
se envolvido com as formas da arte ocidental durante as
viagens de Cook. Portanto, supunha-se que uma série de
aquarelas figurativas sobre os primeiros encontros entre
oficiais navais britânicos e a população polinésia seriam
de autoria de algum tripulante britânico. Só em 1997
uma carta de Banks revelou que Tupaia, o alto sacerdote
de Raiatea, tinha aprendido a desenhar no estilo
ocidental ao acompanhar Cook durante sua primeira
viagem. As aquarelas posteriores de Tupaia mostram
Banks em seus calções e sapatos de fivela trocando uma
lagosta espinhosa com um maori tatuado, vestindo um
manto de linho. Tupaia também pintou a vestimenta de
um chefe de cerimônias fúnebres, reduzindo-a à sua
forma essencial, algo que os artistas ocidentais levariam
mais 150 anos para alcançar. Isto porque, conforme
vimos anteriormente, as academias europeias ainda
eram reféns das tradições e do ensino clássicos. Essa
abordagem foi exemplificada pelos quadros de David, a
nova estrela do neoclássico francês.
Capítulo 24 - Liberdade,
igualdade e fraternidade?
É 1785 e Jacques-Louis David finalmente terminou a tela
O juramento dos Horácios. São mais de quatro metros de
largura e, nela, a família dos Horácios se prepara para a
guerra. Os quatro homens são de tamanho natural – três
irmãos saúdam suas espadas que o pai, Horácio,
sustenta no alto. Estão prestando o juramento de
defender Roma, enquanto o pai fita os céus como se
invocando os deuses para abençoar a obediência dos
filhos.
David baseou o quadro em uma história antiga em que
dois grupos de irmãos lutam para resolver uma
desavença entre Roma e uma cidade próxima, Alba. Ele
situou a família dos Horácios em um interior clássico
austero com três arcos emoldurando os grupos
familiares. À esquerda, os jovens irmãos imberbes,
prontos para a batalha, de capacete e peitoral. O pai,
barbado e forte, de pé em frente ao arco central, envolto
em um manto vermelho para chamar a atenção.
Encostadas no terceiro arco, as figuras femininas da
família e seus filhos, um contraponto emocional frente à
resiliência férrea dos homens.
Agora, David precisa encontrar uma forma de levar o
quadro para a Academia em Paris a tempo de participar
do Salão, onde será exposto. Não será nada fácil. Ainda
que ele estivesse trabalhando nessa obra para o rei
francês Luís XVI, ele a pintou em Roma, sede da
escultura clássica e berço do Neoclassicismo.
*
Na França, O juramento dos Horácios deu nova vida ao
classicismo. As cidades romanas soterradas, Pompeia e
Herculano, tinham sido descobertas no começo do século
e alguns livros influentes sobre arte clássica, publicados.
Essa redescoberta é hoje conhecida como
Neoclassicismo. Os quadros neoclássicos de Jacques-
Louis David (1748-1825) baseavam-se em histórias da
Antiguidade e, como pinturas históricas, classificavam-se
no nível mais elevado da rígida hierarquia da arte da
Academia Francesa.
Na Academia, as regras eram estritas, e somente
quatro mulheres de cada vez eram aceitas e, como na
Real Academia, nenhuma delas podia entrar na sala de
desenho vivo. As pintoras Adélaïde Labille-Guiard (1749-
1803) e Elisabeth Vigée Lebrun (1755-1842) integraram a
Academia. No mesmo Salão em que David expôs O
juramento dos Horácios, Labille-Guiard apresentou seu
imenso Autorretrato com duas alunas, uma afirmação
enfática sobre a necessidade de formar e apoiar
mulheres artistas. No Salão seguinte, ela expôs o Retrato
de madame Adélaïde, uma pintura da tia do rei, seu
mecenas constante.
O Salão era um lugar caótico, com quadros nas
paredes de cima a baixo e uma multidão se
acotovelando, em busca do melhor ângulo de visão. Os
artistas tinham de chamar a atenção do espectador
distraído de qualquer maneira, por meio da escala da
obra, usando cores brilhantes ou assegurando uma
reputação tamanha que garantisse o melhor
posicionamento na parede, que os acadêmicos dos dois
lados do Canal chamavam “na linha” (um metro acima
da altura da cabeça). Era onde estavam os quadros de
David. O que diz muito sobre a reputação de Labille-
Guiard e Vigée Lebrun é saber que, quando o Salão de
1787 foi aberto, os retratos delas estavam logo acima da
Morte de Sócrates, de David, e não “nas alturas” com os
artistas menos conhecidos que tinham suas obras
empurradas para o teto.
A entrada de Vigée Lebrun no Salão de 1787 foi com
um retrato lisonjeador de Maria Antonieta e seus filhos.
Tinha sido encomendado pela família real em uma
tentativa desesperada de salvar a reputação de Maria
Antonieta, vista pelo povo como frívola e inacessível. A
importância do quadro paraa família pode ser avaliada
pela soma recebida por Vigée Lebrun, maior do que o
valor pago pelos maiores quadros históricos da época.
Entretanto, nesse período, o clima político andava tão
delicado, que o quadro de Vigée Lebrun só foi pendurado
depois que o Salão abriu oficialmente, para minimizar a
possibilidade de um tumulto do público. Vigée Lebrun
ainda pagaria por ser a pintora favorita de Maria
Antonieta, pois, quando a Revolução Francesa eclodiu
dois anos mais tarde, ela precisou se exilar para escapar
da guilhotina.
Os retratos da aristocracia saíram rapidamente de
moda na França, à medida que o país se aproximava da
deposição do rei, sendo substituídos pelas cenas
neoclássicas sóbrias e moralizantes de David e outros.
Conforme já constatamos, o Neoclassicismo de David se
originara em Roma, onde o veneziano Antônio Canova
(1757-1822) também mantinha um ateliê. Esses artistas
defenderam um retorno ao classicismo moldado pelos
textos influentes de Johann Joachim Winckelmann.
Em livros como History of the Art of Antiquity [História
da arte da antiguidade], publicado pela primeira vez em
1764, Winckelmann escreveu sobre escultura clássica
com entusiasmo, dando vida às obras, identificando
nelas uma beleza universal, estimulando artistas
contemporâneos como Canova a seguir os passos dos
gregos antigos. Winckelmann possuía uma perspectiva
muito pessoal sobre a beleza na arte. Ele era um homem
branco europeu em uma época em que esses homens
classificavam tudo em nome do Iluminismo, rotulando e,
portanto, ordenando e controlando o mundo à sua volta.
A homossexualidade de Winckelmann fundamentou suas
descrições de nus masculinos clássicos, muitas vezes
com emoção incontida. Segundo ele, os nus gregos mais
bonitos eram masculinos, elogiando o Apolo de
Belvedere como o “ideal máximo da arte”. Suas
impressões se transformaram no marco fundamental
sobre o qual se ergueu a disciplina moderna da história
da arte ocidental. Segundo ele, toda a arte posterior
deveria aspirar ao ideal grego de “simplicidade nobre e
grandeza serena”. Os britânicos, em seu Grand Tour,
tinham avaliado a escultura barroca muito teatral e
queriam uma arte sóbria, atemporal, para suas
residências neoclássicas. Os colecionadores franceses
desejavam uma arte oposta ao rococó decadente. Na
visão de Winckelmann, a volta aos valores clássicos
traria tudo isso, com o mármore branco evocando formas
ideais. Para Winckelmann, ao olhar para essas esculturas
da perfeição física masculina, de ação em suspenso e
músculos expostos, o frisson do erotismo também estava
sempre por perto.
Canova apoiou-se fortemente nas ideias de
Winckelmann, sem, no entanto, dominar por completo a
habilidade, do início do barroco, de esculpir estátuas
soltas, tridimensionais (visto na obra de Giambologna, no
capítulo 17) ou do fascínio pelo amor no rococó. Todas
essas ideias desempenharam um papel em suas obras
como Psiquê reanimada pelo beijo de Cupido (1787-
1793), escultura elegante e erótica dos amantes
improváveis. A mortal Psiquê é abraçada por Cupido, o
amante alado, seu corpo praticamente nu buscando
alcançá-lo enquanto ele a acaricia. Cupido é uma versão
atualizada dos belos jovens gregos que tanto ocuparam a
pena de Winckelmann.
Foram infindáveis os monumentos dedicados a heróis
masculinos brancos no século XVIII, desde a estátua
equestre de bronze do czar russo Peter I, em São
Petesburgo, por Etienne Maurice Falconet (1716-1791),
até a escultura de tamanho natural de George
Washington, em Richmond, nos Estados Unidos, de Jean-
Antoine Houdon (1741-1828). Mas o período também foi
de escultores que começaram a trabalhar com modelos
negros. Um busto de um homem negro desconhecido,
talvez um atleta, da primeira fase do escultor britânico
do Grand Tour, Francis Harwood (1727-1783), mostra o
escultor empregando pedra negra em vez de mármore
para preservar a semelhança. Houdon esculpiu uma
mulher negra para uma fonte concebida por ele para o
duque de Chartres. Moldada em chumbo, ela era a criada
de uma mulher branca de mármore, em seu banho.
Existe ainda hoje somente um molde de estudo pintado,
já que a fonte foi abandonada quando a Revolução
começou e o duque foi guilhotinado em 1793.
Na Inglaterra, o poeta e artista visionário William Blake
(1757-1827) complementava sua renda como gravurista
para editores de livros. Em 1796, ele ilustrou Narrative of
a Five Years’ Expedition against the Revolted Negroes of
Surinam [Narrativa da expedição de cinco anos contra os
negros revoltosos do Suriname], de John Stedman, que
detalhava a tortura brutal e o assassinato de escravos da
lavoura na colônia holandesa do Suriname, na América
do Sul. Em uma gravura colorida, Blake ilustrou um
castigo especialmente bárbaro: um negro amarrado,
preso a uma forca por um gancho que atravessa suas
costelas. Por trás dele, crânios em estacas pontilham a
paisagem, enquanto um navio de comércio holandês se
afasta da baía, levando o açúcar produzido pelos
escravos para as ávidas mesas europeias. O livro de
Stedman foi adotado por britânicos antiescravagistas e
essa gravura se tornou uma das peças mais significativas
e amplamente reproduzidas da arte antiescravagista.
No passado, pessoas negras só eram incluídas em
quadros preenchendo um de dois papéis: o de criado
“exótico” elegante, em retratos de grupo como nos de
Hogarth, que vimos no capítulo 22, ou o de rei africano
Baltazar, um dos três reis magos que seguiram a estrela
de Belém, trazendo presentes para o Cristo, como nas
versões da Adoração dos Magos, de Dürer, Bosch e
Rubens. Entretanto, mais para o encerramento do século
XVIII, quando a França se tornou uma democracia (de
curta duração) após a Revolução, os artistas começaram
a pintar modelos negros como indivíduos. Um dos
exemplos mais expressivos é o Retrato do deputado
Belley, de Anne-Louis Girodet (1767-1824), exposto no
Salão de 1798. Belley era filho de escravos vindos do
Senegal, libertados depois de muitos anos de trabalho.
Ele serviu no exército revolucionário francês, chegando
ao posto de capitão. Mais tarde, tornou-se deputado na
Convenção Nacional (parlamento provisório francês),
representando a colônia francesa de São Domingos, na
ilha caribenha Hispaniola (hoje Haiti). Belley fez uso de
seu cargo para pleitear contra a escravatura e estava
presente quando a Convenção a aboliu nas colônias
francesas em 1794. À época da exposição desse retrato,
Belley deixara o cargo havia pouco e estava prestes a
voltar para casa, em São Domingos, que aparece no
quadro, como pano de fundo.
No Salão, a receptividade ao retrato de Belley foi
calorosa, e ele foi visto como símbolo dos propósitos da
Revolução Francesa, a saber, liberdade e igualdade. Ele
obteve o mesmo reconhecimento que o busto de
mármore em que está apoiado, do abade Raynal, um
antigo defensor branco da abolição da escravatura,
falecido no ano anterior. Belley usa o uniforme de seu
antigo posto e os cabelos grisalhos escovados para trás.
Girodet não permite que ele seja inteiramente
incorporado à sociedade francesa, acrescentando-lhe um
brinco. No geral, porém, é um retrato afável, em que
Girodet se empenhou por acreditar em Belley e em tudo
o que ele representava. Dessa forma, o retrato
representa o auge do Romantismo, um movimento novo
dramático e sincero que exploraremos no capítulo
seguinte.
Girodet fora assistente de David, mas agora se
colocava como seu rival. Marie Guillemine Benoist (1768-
1826) tinha a mesma idade de Girodet, e também
passara um tempo no ateliê de David, assim como
também foi discípula de Vigée Lebrun. Seu Retrato de
Madeleine ganhou notoriedade ao aparecer no Salão de
1800. Madeleine é uma jovem negra. Sentada, ela olha
diretamente para o espectador, encarando-o com olhos
firmes. Seus trajes são uma túnica branca solta com uma
fita laranja, um xale azul jogado sobre o espaldar da
cadeira. Apresentar uma mulher negra dessa formafoi
algo sem precedentes, ao colocá-la como um sujeito com
direito próprio, sem desempenhar um papel (escravo ou
realeza). Poderia ela simbolizar a Mãe França, recém-
libertada da monarquia, um país que abolira a
escravatura? Será que simbolizava a emancipação para
os negros em geral e para as mulheres? Se ela, de fato,
simbolizou tudo isso, a visão foi momentânea. Ainda que
ganhasse medalhas no Salão, Benoist foi forçada a
abandonar a pintura quando o marido foi promovido. E,
quanto à abolição da escravatura, Napoleão a restaurou
em 1802.
A Revolução Francesa matou um rei e criou um
imperador, com o coração determinado, agora, a
conquistar a Europa (e além), pilhando os tesouros de
cada país. Quando marchou sobre a Espanha, em 1808,
ele já havia preenchido os salões do Louvre com carroças
e mais carroças de obras-primas roubadas. Da Itália,
apossara-se da Vênus de Médici, do Apolo de Belvedere e
do Laocoonte. Na Antuérpia, seus representantes
confiscaram a Descida da cruz, de Rubens, e Napoleão
tentara se apropriar do afresco de Rafael, A escola de
Atenas, das paredes do Vaticano. O quadro de Veronese,
de 10 metros de largura, As bodas de Canãa, do mosteiro
dominicano em Veneza, partiu-se em dois ao cruzar os
Alpes e precisou ser rapidamente restaurado.
Napoleão acabou sendo interceptado, e muitas das
obras de arte foram devolvidas, mas não antes de seus
seis anos de incursão pela Espanha. Essa guerra,
conhecida como Guerra Peninsular ou Guerra de
Independência Espanhola, foi documentada por Francisco
José de Goya y Lucientes (1746-1828). A série de
gravuras resultante, Os desastres da guerra (1810-1815),
é o mais pungente conjunto de obra já criado sobre
guerra. Goya, então já idoso e surdo, concluiu as 82
gravuras usando o novo processo de água-tinta, que
permitia acrescentar áreas tonalizadas (na escala do
cinza, em vez de linhas). Há cenas de fome, de loucura,
de violência inimaginável. Na prancha 39, ele gravou três
corpos desmembrados e castrados, pendurados em uma
árvore; na prancha 5, mulheres encaram soldados de
arma em punho só com pedras e pedaços de pau,
resguardando os filhos nas costas para protegê-los. Os
desastres da guerra foi uma obra tão chocante que Goya
não ousou publicá-la em vida. Só foi oficialmente
publicada em 1863, 35 anos após sua morte.
Capítulo 25 - Do Romantismo
ao Orientalismo
É julho de 1819 e Théodore Géricault pousa o pincel.
Está terminado. Durante os últimos nove meses ele ficou
trancado em seu ateliê, em um frenesi pictórico,
cobrindo uma tela de 7 metros de largura e quase 5
metros de altura com uma cena emocionante de
sobreviventes de um naufrágio. São soldados africanos,
marinheiros mediterrâneos e cadáveres franceses sem
cor, em uma pequena balsa em alto mar. Um negro, de
peito descoberto, é sustentado no alto para acenar uma
bandeira improvisada e atrair a atenção do navio que
passa, mas o vento na pequena vela os leva na direção
errada. Ondas ameaçadoras estão prestes a engolir os
homens e cinco deles já morreram.
Géricault passa os olhos pelo ateliê. Os amigos
deixaram de aparecer, porque o cheiro era insuportável.
Ele pagara para ter cadáveres e poder estudar membros
e tons de pele, e os corpos tinham ficado ali por um bom
tempo. Há desenhos e pinturas referentes à A balsa da
Medusa espalhados por toda parte. A obra tomara-lhe
dias e noites, enquanto entrevistava sobreviventes e
trabalhava em diferentes ideias de composição para dar
vida à trágica situação dos náufragos.
O quadro tem por base o desastre ocorrido em 1816,
quando a fragata francesa Medusa, que encalhara na
costa do Senegal, abandonou 150 tripulantes e
passageiros em uma balsa improvisada. Eles ficaram à
deriva por treze dias até que um navio passasse e os
resgatasse. Restaram somente quinze homens com vida,
e os relatos de casos de canibalismo chegaram ao litoral
com os sobreviventes. Géricault pintou vários homens
tentando alcançar o navio distante, que não passa de
uma vela triangular minúscula no horizonte. Géricault
escuta seus gritos, sente o cheiro da salmoura do mar e
o gosto do medo. A batalha deles é entre a vida e a
morte e ele está determinado a fazer justiça a ela.
*
A balsa da Medusa ganhou a medalha de ouro no
Salão de 1819, mas não foi adquirida pelo acervo de
imediato, talvez devido à posição de destaque dada a um
homem negro numa época em que a França retomara a
participação no mercado de escravos. A reação da crítica
se dividiu entre aqueles que valorizavam o realismo de
Théodore Géricault (1791-1824) e aqueles que sentiam
que elevar um episódio sinistro da vida contemporânea à
categoria de um quadro de história clássica era
demasiado. Para Géricault, A balsa da Medusa
representava sua crença de que o artista não devia ficar
refém das regras da Academia, mas, antes, ser livre para
pintar o que o emocionasse.
Géricault faleceu cinco anos depois, mas seu quadro
foi um toque de clarim para os artistas desejosos de se
expressar e de deixar as emoções moldarem sua obra.
Esses românticos, como se tornaram conhecidos,
rejeitavam o Neoclassicismo e, em vez dele, optavam por
expressar a própria personalidade e suas experiências.
Ao se distanciarem da formação clássica, eles deram
prioridade à cor, à emoção, ao sentimento e às
sensações. O Romantismo foi o primeiro calcanhar de
Aquiles das academias europeias dominantes, que, até
então, tinham controlado a forma como a arte era
ensinada e os estilos considerados importantes.
A pintura de paisagens europeia fora extremamente
influenciada por Claude durante todo o século XVIII, mas,
agora, os artistas românticos buscavam uma experiência
mais profunda, mais espiritual, em que a natureza
arrebatasse os sentidos por completo. Começaram a
expressar estados emocionais pintando despenhadeiros
vertiginosos e mares sem fim. Suas paisagens nos
acordam para a vida, nos preenchendo com uma
sensação de admiração, uma maravilha assustadora do
poder da natureza. É o que se conhece como o sublime.
Intelectuais europeus como Edmund Burke tinham escrito
sobre o sublime no século XVIII, mas ele se expressou
com mais habilidade na arte meio século mais tarde com
Caspar David Friedrich (1774-1840). Para Friedrich, a
paisagem alemã tornou-se um local para contemplação
pessoal e conexão espiritual. Nascido numa família
protestante rígida, muitas de suas paisagens contêm
símbolos religiosos: um crucifixo no alto de uma
montanha; as ruínas de uma abadia em um bosque no
inverno; um monge de pé sobre uma duna de areia
contemplando a imensidão do mar.
Friedrich ampliou os aspectos naturais para aumentar
o sentido do sublime em seus quadros. Em Caminhante
sobre o mar de névoa de 1818, um homem de pé sobre a
extremidade de um penhasco olha para o vale envolto
em nuvens baixas. O vento agita seus cabelos e sentimos
vontade de pedir-lhe que se afaste da beira da rocha. A
paisagem que ele contempla é vasta. Friedrich muitas
vezes evocava o aspecto sublime da natureza, aquele
que nos faz perder o fôlego, para transmitir a divina
majestade do mundo natural.
Na Inglaterra, John Constable (1776-1837) concentrou-
se nas planícies da Suffolk de sua infância inglesa.
Friedrich desejava captar a experiência do sublime, já
Constable visava reproduzir os ares naturais do cotidiano
local. Seu intento era transmitir a vívida inconstância dos
dias do verão inglês, com nuvens passando sobre a
cevada curvada nos campos.
Constable se orgulhava de suas paisagens e queria vê-
las concorrendo com os quadros históricos nas
exposições da Real Academia. Assim, pintou telas
colossais, com cerca de dois metros de largura, como A
carroça de feno, de 1821. Sob um céu instável, uma
carreta puxada por um cavalo segue seu caminho pelas
águas rasas do rio Stour, perto de Flatford Mill,
propriedade do pai de Constable. Cada folha parece viva
sob a luz do sol e, para além do rio, o sombreado no
campo reflete a formação dasnuvens acima. Ainda que
na Inglaterra Constable tivesse uma receptividade
morna, A carroça de feno ganhou a medalha de ouro no
Salão de Paris em 1824. Ele foi aclamado como artista
romântico na França e influenciou outros românticos,
inclusive Eugène Delacroix.
Por essa época, o inglês Thomas Cole (1801-1848) se
estabelecia nos Estados Unidos. Cole não tinha formação
formal e começara como gravurista, mas foi atraído pelas
áreas turísticas recém-desenvolvidas da costa leste
americana – como o rio Hudson, as montanhas Catskill –
e tornou-se pintor de vistas e paisagens. Ele foi o
primeiro a pintar essa temática nos Estados Unidos. Para
os colonos europeus, a terra norte-americana era algo a
ser conquistado e possuído, uma riqueza. Até que os
primeiros hotéis turísticos fossem inaugurados, não tinha
sido considerada uma vista a ser simplesmente
apreciada, e tampouco se considerava que a queda
sublime de uma cachoeira ou as alturas de um pico de
montanha pudessem ser apreciadas a partir de uma
plataforma panorâmica.
Na perspectiva de Cole, havia um problema sério. Ele
não tinha como incluir prédios clássicos antigos, como
Claude fizera, porque eles simplesmente não existiam
nos Estados Unidos. Então, ele recorreu à própria história
do país e incluiu índios americanos. Em 1826, seu amigo
James Fenimore Cooper escrevera o romance histórico O
último dos moicanos, ambientado na Guerra Franco-
Indígena, ocorrida no século anterior. Cole viu ali uma
oportunidade para pintar “composições paisagísticas”, ou
seja, paisagens com um elemento imaginativo para
transmitir um significado mais profundo. Em Cora
ajoelhada aos pés de Tamenund (1827), em um altiplano
de uma região montanhosa, um círculo de índios
americanos presencia Cora, a heroína de Cooper,
implorando pela soltura de sua irmã e companheiros. A
inclusão desse conselho tribal, durante o qual os índios
americanos discutiam questões importantes do dia,
permitiu que Cole abordasse a longa história deles. Para
ele, equivalia aos romanos no Fórum. Era uma história
diferente para a Europa, porém igualmente válida.
No Japão do século XIX, a abordagem de Katsushika
Hokusai (1760-1849) e Utagawa Hiroshige (Ando
Hiroshige, 1797-1858) à paisagem era bem mais simples,
mas as xilogravuras de sua autoria possuíam a mesma
dramaticidade. O Japão permanecera fechado aos
estrangeiros até a década de 1850, mas os holandeses
tinham permissão para enviar navios de comércio, que
levavam livros sobre pintura e gravura paisagística
ocidental, inclusive as vedute italianas, muito admiradas
por sua perspectiva matemática. Elas receberam o nome
de uki-e, ou “imagens flutuantes”, porque os
espectadores japoneses sentiam como se estivessem
penetrando nelas. Essas imagens deram origem às
gravuras de paisagens como gênero no Japão,
executadas nesse estilo por Hokusai e Hiroshige e
conhecidas como ukiyo-e, ou “imagens de um mundo
flutuante”. Era possível comprá-las pelo preço de um
segundo prato de macarrão, e assim todas as famílias,
com exceção das mais pobres, tinham condições de
adquiri-las.
Hokusai vivia em Edo e criou gravuras durante toda a
sua longa vida, contando com a ajuda da filha Katsushika
Oi (por volta de 1800-1866) em seus últimos anos. No
Ocidente, ele é mais conhecido por suas últimas
paisagens do Monte Fuji (vulcão), sendo A grande onda a
mais famosa (1829-1833) de sua série “Trinta e seis
vistas do Monte Fuji”. Nessa gravura colorida, uma onda
estilizada com uma espuma branca em forma de garras
ameaça engolir três barcos, quase imperceptíveis na
imensidão do monstro. O Monte Fuji recoberto de neve,
avistado ao longe, centraliza a gravura, e a espuma do
mar, parecendo uma nevasca, cai sobre a montanha. A
combinação de elementos próximos e distantes é típica
do ukiyo-e, em que cada parte da composição trabalha
no sentido de harmonizar a gravura como um todo.
Quando essas gravuras começaram a aparecer na
Europa, na década de 1850 e 1860, e o Japão se abriu
novamente ao comércio internacional, elas se tornaram
procuradíssimas por artistas jovens em atividade em
Paris. Veremos a influência das gravuras japonesas sobre
artistas como Vincent van Gogh em capítulos posteriores.
No entanto, antes que o ukyio-e chegasse à França, os
artistas tinham que viajar para além da Europa em busca
de novos ângulos e perspectivas. O artista romântico
Eugène Delacroix (1798-1863), que havia posado para
seu herói Géricault em A balsa da Medusa, expôs o seu
político e passional A liberdade guiando o povo no Salão
de 1831. Em 1832, ele saiu da França e viajou para o
Marrocos, no norte da África.
Delacroix acompanhou diplomatas ao Marrocos, mas
ele estava lá para pintar o “Oriente”. “Oriente” era o
termo ocidental para os países além da Europa que
beiravam a costa africana do Mediterrâneo e iam até o
Oriente Médio. O interesse pela região fora reavivado
pela ocupação do Egito por Napoleão na virada do século
e a invasão da Argélia pela França, em 1830. A visita
pessoal ao Maghreb (norte da África) foi arrebatadora
para Delacroix. Assim ele escreveu: “Sou como um
homem em um sonho, vendo coisas temendo que
desapareçam”. Ele permaneceu seis meses no Marrocos,
regressando pela Argélia, e ao partir escreveu: “Roma
não será mais encontrada em Roma”. O “Oriente” se
tornara outro calcanhar de Aquiles para a formação
acadêmica, ainda bastante centrada na arte clássica de
Roma.
O artista francês mais velho Jean-Auguste-Dominique
Ingres (1780-1867) também pintou fantasias orientais,
porém do conforto de seu ateliê, em Roma. Ingres fora
aluno de David e era outra estrela neoclássica. As linhas
precisas e as superfícies reluzentes de Ingres eram
diametralmente opostas à pincelada vigorosa, emocional
e romântica de Delacroix, e os dois artistas costumavam
ser caricaturados pela imprensa como adversários, com a
luta do lápis contra o pincel.
Em 1814, Ingres pintou sua primeira odalisca ou
escrava. A grande odalisca é uma fantasia masculina:
uma mulher nua, em um Oriente imaginado, recostada
na cama, à espera de companhia. Surpreendentemente,
fora encomendada por uma mulher, a rainha Caroline de
Nápoles, como presente para o marido. Era bastante raro
que mulheres encomendassem pinturas de nus
femininos, considerados como prerrogativa dos homens,
que se deleitavam ao observá-las e “possuí-las”. O
marido de Caroline já havia adquirido um Ingres, A
mulher adormecida de Nápoles, em 1808, um nu frontal
de corpo inteiro. O nu encomendado por Caroline
apresentava um ângulo diferente. Para começar, A
grande odalisca está de costas para nós. Talvez sejam
costas meio exageradas, mas é o que acrescenta algo à
sua sensualidade. Em torno da cabeça, ela usa um lenço
amarrado como um turbante e segura um leque de
penas de pavão. Talvez você admire a suavidade das
curvas, mas terá que encarar o olhar dela, ao virar a
cabeça enfeitada, fixando os olhos dela nos seus. É
tentador imaginar se Caroline não teria interferido nessa
composição. A odalisca não é só um objeto a ser olhado
“de graça”: os olhos dela examinam minuciosamente o
espectador enquanto ele a observa.
Delacroix usou desenhos e esboços feitos in loco na
África para o quadro Mulheres de Argel em seu
apartamento, datado de 1834, sua primeira pintura de
salão pautada em suas viagens. As pinturas de Delacroix,
Ingres, Jean-Léon Gérôme (1824-1904) e David Roberts
(1796-1864) se tornaram cada vez mais populares
conforme o “Orientalismo” ganhou terreno. O
Orientalismo foi uma visão distorcida da cultura árabe
para um público ocidental, retratando-a como um mundo
rebuscado de escravas do sexo e homens baforando seus
narguilés. Artistas e colecionadores se apaixonaram pela
ideia do Orientalismo devido às desigualdades que ele
perpetuava, especialmente a ideia de que as mulheres
eram segregadas e vendidas como servas do sexo em
um tempo em que as mulheres europeias tinham cada
vez mais voz na campanhapela igualdade de direitos.
A reação de Delacroix à África foi prolongada,
afetando sua temática e paleta. Joseph Mallord William
Turner, por outro lado, optou por reagir à África moderna
uma única vez, em uma obra-prima tardia baseada em
acontecimentos de sessenta anos passados que ainda
conservavam o poder de chocar quando seu Navio
negreiro foi exposto na Real Academia em 1840.
Capítulo 26 - A realidade dói
É um dia quente de junho de 1840. O jovem estudante
John Ruskin, vestindo casaco, gravata e cartola, está
diante do quadro de Turner, Navio negreiro, na exposição
de verão da Real Academia. Ruskin o absorve, tomado
pelo mar turbulento, o navio balançando, o céu em
chamas com o pôr do sol. Seus olhos se demoram sobre
as águas agitadas em primeiro plano, onde uma perna se
destaca sobre as ondas, com os grilhões presos ao
tornozelo de um escravo. Enquanto observa, consegue
visualizar mãos suplicantes saindo do mar espumoso,
cercadas de peixes e gaivotas famintos. A fome que ele,
Ruskin, tem é pelo poente fogoso, de um vermelho-
sangue, por trás da silhueta do navio sacudido pela
tempestade.
Aos 21 anos, Ruskin interrompe os estudos na
Universidade de Oxford devido a problemas mentais e
está prestes a embarcar para um circuito de um ano pela
Itália. Ele admira a arte de Turner desde que ganhou dos
pais, como presente de aniversário de treze anos, um
guia ilustrado da Itália, repleto de vistas italianas do
pintor. Inclusive, ele possui uma aquarela assinada por
Turner, outro presente de aniversário, e ele espera
conhecer o grande pintor pessoalmente muito em breve.
Na verdade, eles já têm se correspondido, e Ruskin o
achou engraçado e generoso, mesmo sabendo que a
maioria das pessoas o julga grosseiro e despreparado
intelectualmente.
Ruskin se desesperou ao ler as críticas sobre a
exposição de verão. Ainda que ele avalie Turner como o
artista vivo mais importante, os críticos riram de suas
obras mais recentes, comentando que ela havia se
“desTurnerizado” com seus “rompantes de cromomania”.
Ruskin não compreende por que eles não reconhecem o
brilho de Turner.
*
John Ruskin tornou-se o crítico de arte britânico mais
influente do século XIX. Publicou o primeiro volume de
sua obra-prima Modern Painters [Pintores modernos]
somente três anos depois de ver o Navio negreiro
(Traficantes de escravos lançam mortos e moribundos ao
mar – Um tufão se aproxima), obra que ele viria a
adquirir. Em seu livro Modern Painters, ele argumenta
que o verdadeiro tema do Navio negreiro é “o poder, a
majestade e a letalidade do mar aberto, profundo e
ilimitado”. O que ele ignora por completo é o tema
contemporâneo em que Turner fundamentou essa
sublime reflexão sobre “letalidade”: a escravatura.
Joseph Mallord William Turner (1775-1851) apoiou os
abolicionistas, que finalmente tinham conseguido dar um
fim ao envolvimento da Grã-Bretanha com a escravatura
em 1833. Fora uma campanha de mais de cinquenta
anos. O Navio negreiro tem por base os relatos históricos
das atitudes desumanas do capitão do navio negreiro
Zong. Numa viagem de Gana para a Jamaica, em 1781, a
água começou a escassear no navio. No porão, muitos
dos escravos tinham adoecido e, assim, com uma
tempestade à vista, a tripulação recebeu ordens para
lançar ao mar mais de 130 deles, vivos e agrilhoados,
para que os proprietários pudessem reclamar seu
dinheiro junto à seguradora, cuja apólice os reembolsaria
pelos escravos perdidos no mar, e não pelos perdidos por
doença a bordo.
Os críticos não rejeitaram a temática do quadro de
Turner. Na mesma exposição, François Auguste Biard
(1799-1882), com O comércio de escravos, foi elogiado
por seu talento e precisão. O que os críticos não
conseguiam entender, e na verdade tudo o que
conseguiam dizer sobre o assunto, era a forma como o
Navio negreiro fora pintado. O romancista Wiliam
Thackeray o ridicularizou por seu “mar horrível de roxo e
esmeralda”, enquanto outro crítico se referiu à sua
“ardente extravagância de um céu de calêndulas”. Por
outro lado, são as pinturas tardias de Turner como o
Navio negreiro que nos falam mais diretamente nos dias
de hoje. Conforme confrontamos as atitudes deploráveis
dos responsáveis pelo Zong, o sol poente marca, ao
mesmo tempo, o fim do comércio de escravos, o final
trágico daqueles escravos em particular, as profundezas
que os capitães do mar alcançaram por dinheiro e a cruel
insignificância de toda a humanidade diante do poder do
oceano.
As últimas telas de Turner, cheias de intensidade
emocional, foram muitas vezes incompreendidas por
críticos acostumados às obras com verniz acadêmico. Os
românticos, porém, incluindo Turner, haviam
demonstrado que a arte não tinha de ser assim e, na
França, artistas jovens se sentiram confiantes com isso e
confrontaram mais uma vez o gosto acadêmico.
Gustave Courbet (1819-1877) conservou a proporção
e a grandiosidade da pintura histórica, ainda que
escolhesse suas figuras humanas nas origens pobres que
não deixariam marcas na história, como os músicos
itinerantes e pedreiros, os camponeses e os fazendeiros.
Em Enterro em Ornans (1849), mais de cinquenta figuras
acompanham um funeral em Ornans, cidade natal de
Courbet, no leste da França. De tamanho natural, o
conjunto de figuras se estende por uma tela enorme de
mais de seis metros de largura. Sem heróis destacados
nem personagens centrais, Courbet usou os habitantes
do lugar como modelos. Seu desejo era criar uma obra
de realismo inquestionável, a milhões de quilômetros das
cenas neoclássicas de David. Conforme Courbet escreveu
em 1851, “Sou, acima de tudo, um Realista [...] pois
‘Realista’ significa um amante sincero da verdade
honesta”. Ele armou a arte em apoio à classe
trabalhadora, mas seus quadros eram descomedidos
para muitos críticos e eles protestaram, considerando-os
feios demais, deselegantes demais, grandes demais,
socialistas demais.
Os críticos deram preferência à obra de Rosa Bonheur
(1822-1899). Suas telas vigorosas de cavalos de tração e
de reses eram um grande sucesso, e ela se tornou a
artista feminina de maior êxito no século XIX. A feira de
cavalos (1853) é um redemoinho animado de cavalos de
tração Percheron unicamente controlados pelos
negociantes esperançosos. Com mais de cinco metros de
largura, foi o maior quadro de animais já exposto até
então no Salão. No entanto, como mulher, ela ainda era
proibida de participar das aulas de desenho vivo na
Academia, mas regras como essa não valiam nos
abatedouros e nas feiras de cavalos. Na verdade, ela
precisou obter permissão especial para usar calças
compridas para se disfarçar de homem e poder desenhar
em paz. Mas seus esboços vivos posteriores lhe deram
condições para pintar cavalos e outros animais que
parecem bufar e relinchar em suas telas.
Na Inglaterra, uma revolução diferente estava a
caminho, capitaneada por um grupo de artistas precoces
que se intitulava Irmandade Pré-Rafaelita ou
simplesmente PRB, em inglês. Mais uma vez, eles
também rejeitavam o ensino tradicional das academias
de arte. Sentiam que as exposições da Real Academia
eram cheias de obras desproporcionais que seguiam
servilmente estilos afetados de pintura. O desejo deles
era eliminar a história recente e voltar-se para Giotto e
Van Eyck, para um tempo de inocência antes que a arte
se tornasse inteligente demais. John Everett Millais
(1829-1896) entrara para as escolas da Real Academia
em 1840, como o aluno mais jovem que já existira ali,
aos onze anos. Lá ele conheceu Dante Gabriel Rossetti
(1828-1882) e William Holman Hunt (1827-1910) e, em
1848, eles formaram o grupo secreto, a PRB. Em 1850,
Millais expôs Cristo na casa de seus pais na exposição
anual da Academia. Um Cristo menino está na oficina de
carpintaria de José, cada lasca de madeira e restos de
serragem cuidadosamente pintados no chão por varrer.
Cristo aparece pálido e ferido, ao cortar a mão num
prego da porta em que José estátrabalhando, um
presságio de sua posterior crucificação. O quadro levou
os críticos à loucura, pois a sagrada família não parecia
divina, parecia gente comum. O escritor Charles Dickens
vociferou que o Cristo acabara de sair do esgoto, “um
menino ruivo horroroso de camisola, de pescoço torto,
soluçando”. Foi John Ruskin quem acorreu em defesa da
PRB, reforçando que seus quadros não eram “repulsivos
e revoltantes” (Dickens, de novo), e que pela atenção
dada aos detalhes, à natureza, os Pré-Rafaelitas lutavam
por uma verdade mais profunda.
Na época em que a PRB foi criada, a fotografia já era
usada comercialmente há quase uma década. Ela parecia
oferecer a imitação perfeita, já que pela primeira vez na
história os artistas não eram os únicos capazes de
reproduzir imagens do mundo. Ainda que a câmera
escura fosse conhecida há séculos, só depois de 1820 os
inventores descobriram como captar a imagem produzida
por ela. Em 1839, na França, Louis-Jacques-Mandé
Daguerre (1787-1851) fixou as imagens obtidas na
câmera escura numa folha de prata sobre uma placa de
cobre, usando sais fotossensíveis, criando uma imagem
“positiva” do alvo da câmera. A revelação do
daguerreótipo levava alguns minutos, e os primeiros
retratados chegaram a usar apoios cervicais escondidos
para garantir que não se mexessem. No mesmo ano, o
pioneiro da fotografia britânico William Henry Fox Talbot
(1800-1877) fixou suas imagens em “negativos” de
papel, conhecidos como calótipos. As primeiras imagens
não eram tão precisas quanto as do daguerreótipo, mas o
negativo podia ser reproduzido várias vezes como uma
gravura. Os dois processos distintos de “desenhar com a
luz” culminaram no método de colódio, desenvolvido no
início da década de 1850, que captava a vista como
negativo sobre uma lâmina de vidro de onde cópias
exatas podiam ser impressas.
Na década de 1850, as fotografias decolaram como
uma forma barata de retratar e um jeito de dizer “Eu
estive lá”. Os estúdios fotográficos rapidamente se
espalharam pelo mundo, e as câmeras acompanharam
as expedições ao Ártico e no teatro da guerra na Crimeia.
Nessa década, a fotografia foi amplamente utilizada na
corte iraniana de Nasir al-Din Shah, um fotógrafo amador
cheio de entusiasmo.
Naquela época, a fotografia não era vista como forma
de arte, mas como ferramenta para os artistas, como o
aplicativo sketchbook com lápis de hoje, e logo começou
a exercer sua influência. A miniatura persa Retrato do
príncipe ‘Ali Quli Mirza (1856-1857), de Sani’ al-Mulk
(Abu’l Hasan Ghaffari, 1814-1866), parece um retrato
elegante de estúdio de fotografia, em um contexto
rebuscado e mobília cuidadosamente arrumada. De
modo semelhante, na China, o artista Ren Xiong (1820-
1857), da importante Escola de Xangai, pintou um
autorretrato impressionante em que sua cabeça raspada
e peito nu são de uma clareza fotográfica, mas
despontam de trajes tradicionais chineses extremamente
estilizados.
Alguns dos primeiros fotógrafos, porém, começaram,
de fato, a experimentar as possibilidades artísticas da
nova tecnologia. Na França, artistas como Gustave Le
Gray (1820-1884) usaram a câmera para tirar fotos de
paisagens como A grande onda, Sète (1857). Na Grã-
Bretanha, Julia Margaret Cameron (1815-1879) explorou
as possibilidades criativas da câmera nos retratos,
buscando inspiração na arte renascentista. Ela criou
composições de foco pouco definido que transformavam
crianças em anjos e sonhadores e mulheres jovens em
Circe, a feiticeira grega, e na Virgem Maria.
A escultura teve de esperar um pouco mais por sua
revolução, e o estilo neoclássico se conservou popular
por todo o século XIX, dos dois lados do Atlântico. No
entanto, ele foi cada vez mais usado em novas temáticas
esculturais por um grupo corajoso de mulheres
americanas que moravam em Roma, nas décadas de
1850 e 1860. Denominadas “irmandade estranha” pelo
romancista Henry James, as mulheres se mudaram para
Roma em busca do melhor mármore, para ver esculturas
clássicas e por haver ali uma oferta imensa de
assistentes qualificados. O fascínio de um país onde
podiam trabalhar sem amarras, livres das limitações
habituais impostas às mulheres do século XIX, deve ter
sido o ponto decisivo. Harriet Hosmer (1830-1908) foi
uma das primeiras a chegar, em 1852. Mais tarde, ela
escreveu: “Aqui [em Roma] todas as mulheres têm
oportunidade se forem suficientemente ousadas para
aproveitá-la”.
Hosmer estudara anatomia por conta própria em
Boston e conhecia o corpo humano a fundo. Enquanto
criava esculturas angelicais de grande valor comercial
para financiar sua permanência em Roma, ela também
esculpiu mulheres poderosas como Zenóbia acorrentada
(1859). Zenóbia foi rainha de Palmira (na Síria de nossos
dias) no século III, tendo sido acorrentada por seus
captores. Mesmo com a cabeça ligeiramente curvada, ela
está ali, altiva e nobre, aceitando o aprisionamento.
Quando a escultura foi exposta na Inglaterra, em 1862,
os críticos comentaram que uma peça daquelas não
poderia ter sido esculpida por uma mulher. Segundo eles,
teria sido obra de algum antigo tutor ou de artífices
romanos. Na mesma hora, Hosmer processou legalmente
as duas revistas que alegavam a suposta fraude e, de
imediato, lançou uma extensa refutação sob a forma de
artigo, explicando o processo colaborativo do trabalho
com assistentes, algo que se aplicava igualmente a
escultores e escultoras.
O círculo de Hosmer incluía Mary Edmonia Lewis
(1844-1907), que chegara a Roma dos Estados Unidos
em 1865. Ela conseguira o dinheiro para a passagem
vendendo bustos de heróis da Guerra Civil e medalhas de
abolicionistas, numa época em que os Estados Unidos
estavam finalmente libertando os escravos negros. Como
mulher mestiça, filha de pai afro-americano e mãe índia
americana, Lewis sofreu muitos preconceitos nos Estados
Unidos e optou por passar a maior parte de seu tempo
em Roma, só retornando à terra natal para a inauguração
de suas esculturas públicas. Em vez de se submeter a
uma temática tradicional, ela criou esculturas da
emancipação negra, como em Livres para sempre, de
1867. Dois anos mais tarde, a escultura foi instalada no
Templo Tremont, em Boston. Ela representa um homem
negro de pé, com a mão para cima, comemorando a
proclamação da liberdade para todos os escravos pelo
Presidente Lincoln. Uma mulher ajoelhada a seus pés
ergue as mãos em prece e agradecimento.
É possível que Roma tenha sido vanguardista para
artistas mulheres americanas na década de 1860, mas a
França ainda estava ferrenhamente ligada à Academia e
ao Salão. Em 1863, porém, uma exposição explosiva no
coração da ordem estabelecida mudou as coisas para
sempre.
Capítulo 27 - Os
impressionistas
É 1863 e o quadro ambicioso de Edouard Manet
Déjeuner sur l’herbe (Almoço sobre a relva) ocupa um
lugar proeminente em uma exposição de Paris, que está
atraindo mais de mil visitantes por dia. Ele conseguiu
entrar no famoso Salão, mas o único problema é que se
trata do Salão errado. Em 1863, pela primeira vez,
Napoleão III, imperador francês, curvou-se à pressão de
artistas insatisfeitos e declarou que todas as obras de
arte rejeitadas no Salão oficial (quase 3.000) poderiam
ser exibidas em uma exposição isolada no “Salon des
Refusés” (Exposição da arte rejeitada). Que o público
veja por si mesmo por que o júri os recusou! Então, a tela
de Manet se espreme ao lado de muitas outras, julgadas
como inacabadas demais ou ousadas demais pelo júri
conservador do Salão.
A disposição dos quadros parece um quebra-cabeça,
do chão ao teto. Senhoras com seus vestidos bufantes e
homens de cartola espicham o pescoço para ver melhor.
Déjeuner sur l’herbe está situado em posição
privilegiada, no meio de uma parede. O quadro é tido
como a obra mais ultrajante em exibição por apresentar
uma mulher nua em um piquenique com dois homens
completamente vestidos. Artistas homens pintaram
mulheres despidas por séculos,disfarçadas de deusas ou
de ninfas para dar a entender que não eram reais, mas
imaginadas. Mas a mulher do quadro de Manet não é um
nu. Ela é real demais para caber nessa descrição.
Sentada ao lado de homens elegantemente vestidos,
suas roupas estão espalhadas pelo chão. Os visitantes da
exposição não conseguem compreender a relação dela
com aqueles homens, e sua nudez os inquieta. Mas,
estranho mesmo é a forma como ela sustenta friamente
o olhar da plateia parisiense. E ela parece dizer: “O que é
que estão olhando?”.
*
Manet pintou cenas da vida moderna ao longo de toda
a carreira, mas, em última análise, o que ele desejava
era ser aceito pelo Salão (o oficial) e ser avaliado
comparativamente a antecessores como Velázquez e
Hals. Na França, até 1863, o Salão era o único lugar
público para expor pinturas. Os artistas que o dirigiam
ainda se submetiam à hierarquia do século XVIII, ou seja,
com a pintura histórica no topo e natureza-morta por
último, e julgavam a arte predominantemente pela
fidelidade à imagem. A pintura de Manet era viva,
empolgante e imperfeita, as sombras duras, e o tema,
inesperado. Ele incorporava o artista descrito pelo
escritor Charles Baudelaire em seu artigo influente “O
pintor da vida moderna”, publicado no mesmo ano. Esse
artista “toma a si a tarefa de extrair da moda todo e
qualquer elemento que ela contenha de poesia dentro da
história, de destilar o eterno do transitório”. Manet queria
encontrar as verdades essenciais nas matérias do dia a
dia. No entanto, para o público e o júri do Salão, Manet
era só real demais, moderno demais, chocante demais.
Ainda que Manet jamais desistisse de lutar para que
sua obra fosse exposta no Salão, e tendo alcançado o
sucesso lá já no final da vida, foi o “Salon des Refusés”
que abriu as portas para a sua geração de artistas. Era a
primeira vez que uma exposição era organizada onde o
público pudesse julgar a arte por si mesmo. Até aquela
altura, artistas ambiciosos tinham de estudar na
Academia e subir obedientemente pelos escalões da
hierarquia, mostrando sua obra no Salão oficial a
colecionadores importantes. A Academia ainda estava
formando e promovendo artistas que pintavam deusas
mitológicas e pinturas de gênero, como William-Adolphe
Bouguereau (1825-1905). Em sua tela Nascimento de
Vênus (por volta de 1879), a deusa nua flutua no mar
sobre uma concha de vieira, cercada por centauros,
ninfas e querubins. O mar é verde, o céu é azul, todos
são felizes. As figuras de Bouguereau são irretocáveis
como as esculturas clássicas, seu estilo de pintura é
refinado e elegante. Nada há de errado com esses
quadros hoje, só parecem um pouco desinteressantes e
bem ultrapassados. Não parecem ter qualquer conexão
com a época em que foram pintados, um mundo que se
lançava na idade moderna a toda a velocidade.
Na década de 1860, cada vez mais os artistas sentiam
a Academia muito arraigada em seu modus operandi,
muito antiquada. Eles se deram conta de que se se
unissem, o Salão não seria mais o único caminho aberto
para eles. Ao longo dessa década e no início da década
de 1870, um grupo de jovens artistas, dentre eles Claude
Monet (1840-1926), Berthe Morisot (1841-1895), Pierre-
Auguste Renoir (1841-1919) e Camille Pissarro (1830-
1903) tentaram, com graus variados de sucesso, expor
suas obras no Salão, onde Bouguereau reinava soberano.
Quando eram aceitas, suas obras costumavam ser
colocadas em lugares escondidos, por serem
relativamente menores em comparação aos quadros
históricos e mitológicos colossais que tomavam conta
das paredes (a Venus de Bouguereau media três metros
de altura).
Cada vez mais, esses artistas trabalhavam lado a lado
e, em 1874, realizaram uma exposição independente
como a “Companhia de artistas, pintores, escultores e
gravuristas”, alugando salas no estúdio do fotógrafo
Nadar, no Boulevard des Capucines, em Paris. A amostra
de 165 obras incluiu Impressão: sol nascente, de 1872,
uma paisagem esboçada com um sol vermelho se
erguendo por trás de silhuetas cinzentas de barcos,
cordames e fábricas, a luz banhando a água abaixo e o
céu acima, com toques em tom de pêssego. O crítico
Louis Leroy mirou no título de Monet e apelidou o grupo
de impressionistas. Não se tratava de um elogio. Ele
queria dizer que somente uma impressão fora pintada,
um passar de olhos em algo, um esboço. Que não se
tratava de um quadro totalmente acabado, com uma
composição bem concebida. Outros críticos, como Jules
Castagnary, foram mais condescendentes. “Eles são
impressionistas no sentido de que não retratavam uma
paisagem, mas a sensação produzida por uma
paisagem”, escreveu ele. O nome “Impressionistas”
pegou e, à época da terceira exposição, em 1877, o
próprio grupo já o havia adotado.
Os impressionistas trabalhavam em uma proporção
mais modesta porque muitas vezes sua atividade era ao
ar livre, diante daquilo que desejavam pintar,
reposicionando suas telas a cada dia. Empenhavam-se
em captar um momento no tempo, em revelar como a
luz brincava sobre a água ou como as sombras mudavam
de cor no transcorrer do dia. Com pinceladas rápidas,
tentavam registrar situações em mudança permanente, e
a invenção da tinta em bisnagas (bem mais práticas do
que as cores misturadas à mão no ateliê) foi de grande
benefício, assim como a criação de novos matizes
vibrantes como o azul-cerúleo e o verde-água. Suas
paletas brilhantes também foram influenciadas pelas
teorias de Michel Chevreul, que concebeu um círculo
cromático para mostrar como cores complementares,
como o vermelho e o verde, incrementam o brilho uma
da outra e sua justaposição faz seu brilho parecer ainda
mais intenso.
Esses artistas exploravam todos os aspectos da vida
parisiense moderna, desde as novas avenidas chamadas
de boulevards, recém-construídas pelo barão de
Haussmann, até salas de espetáculos e cafés, parques e
estações de trem, salas de estar e jardins. No entanto,
muitos deles estavam tentando, ao mesmo tempo,
captar a atmosfera de cada cena, desde as nuvens de
fumaça na estação de trem de Monet em Gare Saint-
Lazare (1877) à luz do sol incidindo sobre a geada nos
sulcos em campos do interior em Geada branca (1873),
de Pissarro. Essa era a nova realidade para os
impressionistas, em que o fluxo e a mudança constantes
tomavam o lugar da forma imutável tradicional de
representar o mundo proposta pelo Salão. Por vezes, as
figuras se reduziam a traços de tinta, como em La
Grenouillère de Monet (1869), onde seu foco de atenção
foi a forma como as árvores se refletiam nas águas
irrequietas nesse local popular de banhos no rio Sena. É
como se estivéssemos vendo um fragmento da vida, um
momento instantâneo ou fugaz, e não a vista completa. É
algo bem próximo de como de fato vivenciamos o
mundo, como uma série de vislumbres momentâneos
que nossa memória ajuda a compor em cenas mais
abrangentes.
Muitos dos artistas em questão foram influenciados
pela fotografia, um meio relativamente novo que oferecia
ângulos da vida contemporânea bem discordantes da
pintura do Salão. Edgar Degas (1834-1917) foi pintor e
escultor, mas também tirava as próprias fotografias. Os
ângulos incomuns que ele adotou nas pinturas foram
influenciados por seus experimentos com fotografia e por
gravuras japonesas, que se empenhava em colecionar.
Por exemplo, os membros são cortados na borda do
quadro como em Duas bailarinas no palco (1874), como
se a bailarina já estivesse saindo. O enquadramento de
cenas de Morisot não era diferente.
Morisot e sua irmã Edma alcançaram o sucesso bem
cedo como pintoras, expondo no Salão todo ano, de 1864
a 1867. Morisot conheceu Manet no ano seguinte e
acabou se casando com o irmão dele, Eugène. Edma se
casou com um oficial de marinha e teve de desistir da
pintura, algo de que se lamentava nas cartas escritas à
irmã. Morisot participou de sete das oito exposições
impressionistas, perdendo só uma, logo após o
nascimento da filha, Julie.A sociedade a impedia de ir
desacompanhada a cafés, como os artistas homens
faziam sempre após um dia de pintura, mas ela podia
participar das festas semanais de Manet com bebida
incluída. Suas obras vendiam bem e, em 1877, um crítico
do jornal Le Temps a chamou de “a verdadeiramente
impressionista desse grupo”. Ela pintou a mãe e a irmã
em casa e mulheres lendo, mas também trabalhou ao ar
livre, pintando vistas de parques, viagens de barco e
passeios em família.
A artista americana Mary Cassatt (1844-1926)
também teve êxito logo cedo no Salão. Degas viu seus
quadros lá e convidou-a para se juntar aos
impressionistas, o que ela fez em 1877. “Finalmente”,
escreveu ela, “eu podia trabalhar com total
independência, sem me preocupar com a opinião de um
júri!” Seu quadro Mulher de preto na ópera, de 1880,
abordou um tema popular para os impressionistas, uma
mulher em um camarote no teatro ou na ópera. Em La
Loge (O camarote) (1874), de Renoir, por exemplo, uma
mulher em elegante traje listrado de preto e branco olha
à distância, com um colar de pérolas no pescoço, e
segura um pequeno binóculo dourado de ópera com a
mão enluvada. O homem por trás dela usa o próprio
binóculo de ópera para poder enxergar bem os
espectadores na plateia. Nós a observamos assim como
o homem observa outras mulheres, como se ela fosse um
objeto em exposição. É interessante comparar essa
abordagem com a de Cassatt. Em sua tela, a mulher
sentada sozinha veste preto, fazendo-nos saber que é
viúva. Uma viúva não precisava de companhia para ir ao
teatro e gozava de maior liberdade do que outras
mulheres de sua origem e classe social. A mulher de
Cassatt não nos encara em sua elegância, como um
objeto. Em vez disso, ela se mostra ativamente envolvida
em observar, como o homem no quadro de Renoir. Ela se
concentra: segura com firmeza o leque na mão esquerda,
e a mão direita, sem luva, esforça-se para manter o
binóculo de ópera na posição. Sem que ela se dê conta,
um homem a fita, inclinando-se para fora do camarote
mais à frente no semicírculo, e seu cotovelo espelha o
dela na borda do camarote. Contudo, ela não o percebe e
ele permanece fora de foco, à distância. Dessa forma,
Cassatt controla tanto a forma como vemos a mulher
quanto como observamos o quadro. Ao pintar o homem e
o teatro como um borrão, concentramo-nos na viúva, que
claramente demonstra o controle do próprio olhar.
Eva Gonzalès (1849-1883) também retratou mulheres
e homens na ópera, mas não expôs com os
impressionistas. Como Manet, ela manteve o olhar
treinado no Salão como marca oficial de sucesso. Ela
estudou com ele, e a influência do pintor em suas
primeiras obras é grande, como em Camarote no Théâtre
des Italiens (1874), com um fundo escuro denso e uma
iluminação incômoda. A mulher de Gonzalès também
segura binóculos de ópera e fita confiante o espectador,
enquanto o homem se apresenta de perfil para ser
examinado, em uma nítida inversão de gênero de La
Loge, tela de Renoir do mesmo ano.
Gonzalès e Morisot se beneficiaram do apoio de
Manet, mas nem todas as artistas femininas da época
tiveram tanta sorte. Marie Braquemond (1840-1916) foi
uma pintora talentosa que expôs com os impressionistas,
mas seu marido, o gravurista Félix Braquemond, tanto
promoveu a carreira da esposa quanto a limitou, sendo
que o ciúme dele costumava prevalecer. Já ouviu falar
dela? Não? Então deve ser por essa razão.
As oito exposições impressionistas aconteceram de
1874 a 1886. Em seu conjunto, os 55 artistas que ali
expuseram exerceram um impacto fantástico sobre a
arte. Colocaram-na em um novo caminho, que nos levará
até o século XXI. Eles permitiram que a invenção da
fotografia os libertasse das regras do Renascimento
quanto à perspectiva e à imitação clássica. Lutaram para
captar o que realmente era para ser visto, para
testemunhar o sol passando por locais populares de lazer
ou a fumaça nas estações de trem. Mas, enquanto o
Impressionismo crescia na França, outros artistas
também ampliavam as fronteiras da arte para explorar
os limites do possível. Por vezes, isso lhes causou
problemas. Problemas sérios.
Capítulo 28 - Os artistas
assumem uma posição
No dia 26 de novembro de 1878, o extravagante
americano James Abbott McNeill Whistler caminha em
direção ao tribunal londrino, balançando a bengala. Aos
44 anos, é bem atraente com seus cabelos escuros
encaracolados, monóculo, casaco ajustado e sapatos de
verniz. É o segundo dia do julgamento da ação de
Whistler contra Ruskin. Ele está processando John Ruskin
por uma crítica negativa e apelou à corte de justiça para
defender sua reputação. (Whistler, na verdade, também
poderia usar as mil libras esterlinas que está pleiteando
para quitar as dívidas que não param de crescer.)
Ruskin, então o crítico de arte de maior influência da
Grã-Bretanha, assinara um comentário mordaz sobre a
mais recente exposição de Whistler. Antigo defensor do
estudo cuidadoso da natureza, Ruskin ferveu de raiva ao
mirar Noturno em preto e dourado: o foguete caindo,
pintura que capta o momento fugaz de um fogo de
artifício explodindo sobre o Tâmisa.
Ruskin chamou Whistler de “janota” (homem fútil) e
vociferou que ele ousara cobrar “200 guinéus [cerca de
15.000 libras esterlinas] para jogar um balde de tinta na
cara do público”. Whistler não visava o realismo em
Noturno em preto e dourado. Ele desejava captar o efeito
do padrão das centelhas contra o céu noturno e a
atmosfera da noite. Só Ruskin não viu nada disso.
Whistler assume sua posição na sala do tribunal
apinhada. Ruskin indicou o procurador-geral, sir John
Holker, para defendê-lo. Holker se debruça sobre as
pinturas de Whistler, esforçando-se para compreendê-
las. “Levou muito tempo pintando o Noturno em preto e
dourado?”, pergunta ele. “Quanto tempo levou para se
livrar dele?” O júri gargalha. Whistler não perde a piada e
responde: “Talvez tenha me livrado dele em uns dois
dias”. Holker acha que o encurralou. “E é esse o trabalho
pelo qual cobrou 200 guinéus?” Whistler diz que não, que
aquele valor era pelo conhecimento que reunira ao longo
da vida. Há uma explosão de aplausos e Whistler se
mantém confiante na vitória.
*
De fato, Whistler (1834-1903) venceu a batalha de
difamação mais famosa do século XIX, mas em vez de
fazer jus às mil libras pelos prejuízos, ele ganhou um
único quarto de centavo, além de arcar com todos os
seus custos. Foi uma vitória pírrica, ou seja, um triunfo
que, na verdade, é uma perda. Basta pensar que o juiz
não teve paciência com aqueles dois homens bem-
sucedidos diante dele, brigando por algumas palavras.
Ambos foram prejudicados com o julgamento, mas
Whistler perdeu tudo: a Casa Branca em estilo japonês, o
mobiliário, a coleção de gravuras e de porcelana, os
quadros de seu ateliê, construído para aquela finalidade.
Estava falido.
Nascido nos Estados Unidos, Whistler passara parte de
sua infância na Rússia, onde seu pai prestava consultoria
sobre a nova rede ferroviária do país. Depois, ele estudou
arte nos Estados Unidos e na França, absorvendo os
diferentes climas artísticos de cada país. Simpático aos
Pré-Rafaelitas, Whistler finalmente se fixou na Inglaterra,
tornando-se uma figura de proa no Movimento Estético
na Grã-Bretanha. Artistas e designers ligados ao
movimento acreditavam que a cor, a forma e o traço
criavam obras belas e harmoniosas sem precisar de um
tema figurativo como base. O lema deles era “a arte pela
arte”.
Whistler deu eco à harmonia encontrada na arte
japonesa e a aplicou à pintura a óleo ocidental. Seus
retratos são estudos em branco ou cinza, suas cenas de
rio são atmosferas despojadas em cinzas, azuis e pretos.
Sua arte foi importante por ter tirado a pintura da
representação do mundo real e explorado a linguagem da
pintura em si. Ele era como o musicista clássico
trabalhando com notas e timbres para criar climas e
atmosferas (e não como um cantor esgoelando canções
populares). ConformeWhistler afirmou em uma palestra
posterior, “A natureza contém, em cor e forma, os
elementos de todas as pinturas, como o teclado contém
as notas de todas as músicas. O artista, porém, nasceu
para fazer escolhas [...] até que consiga extrair do caos
uma gloriosa harmonia”. Sua obra daria aos primeiros
artistas do século XX a confiança para ir mais longe ainda
e eliminar o tema de uma vez, criando as primeiras
pinturas abstratas da arte ocidental.
A arte dos contemporâneos de Whistler, que viviam e
trabalhavam na costa leste dos Estados Unidos, não
poderia diferir muito. Winslow Homer (1836-1910) pintou
a versão dos Estados Unidos que o povo ansiava após a
cruel Guerra Civil com seus mais de 600.000 soldados
mortos entre 1861 e 1865. Nascido em Boston, com
formação de gravurista, Homer cobriu a guerra para a
revista popular Harper’s Weekly. Rapidamente ele deixou
a violência para trás para pintar cenas nostálgicas da
vida no interior. Ao longo de todo o período de recessão
da década de 1870, seu elenco de personagens cavalgou
e nadou, pescou e aprendeu a velejar, como em Vento
favorável (1873-1876). Em Os meninos e a melancia, de
1876, três garotos se deliciam com uma melancia
roubada. Um deles segura uma fatia comprida de casca,
enquanto olha, nervoso, para a esquerda, no seu papel
de vigia. Os outros dois se acomodam, de barriga no
chão, comendo a sua parte. Ao pintar meninos brancos e
negros juntos, Homer sugeriu um nível de integração
racial bem distante da realidade nos Estados Unidos. O
país ainda era profundamente segregado, embora a
escravatura tivesse terminado em 1863.
Thomas Eakins (1844-1916), da Filadélfia, procurou
mostrar aos americanos que cor não passava de algo
superficial. Em A clínica Gross, de 1875, Eakins revelou
seu conhecimento de anatomia, mostrando o respeitado
cirurgião Samuel Gross dissecando a perna de um
homem diante de estudantes curiosos em um auditório.
Com a ajuda de quatro homens, o cirurgião explica à
turma como está removendo uma lasca de osso para
salvar a perna do paciente da amputação. Ele ainda
segura o bisturi enquanto fala. Esse nível de realismo
revirou o estômago de muita gente, e A clínica Gross não
obteve permissão para entrar na “Exposição Centenária”
na Filadélfia, em 1876, descartada como violenta, feia e
obscena. Somente após uma campanha de Gross para
incluí-la foi que Eakins conseguiu, e somente nas paredes
do pavilhão médico. O quadro foi exibido como ilustração
de uma cirurgia, e não como retrato de corpos, por
dentro e por fora.
Eakins acreditava na democracia do corpo,
observando sua corporeidade em sujeitos brancos e
negros, com pouco preconceito. No entanto, se a batalha
americana por igualdade era racial, na Rússia era uma
questão de classe social. Em 1861, dois anos antes que o
presidente Lincoln abolisse a escravatura nos Estados
Unidos, o czar Alexandre II liberou todos os camponeses
da servidão (um tipo de escravidão), embora a vida deles
continuasse extremamente difícil. Os artistas sentiam,
cada vez mais, que era seu dever criar uma arte com
propósito social, e treze deles se libertaram da
dominante Academia de São Petersburgo, uma academia
que ainda defendia o Neoclassicismo. O grupo se
intitulou de “Itinerantes”, conforme promoviam suas
exposições em pequenas cidades pelo país, levando sua
arte realista e nacionalista para o povo. Enquanto
Whistler lutava simplesmente para limpar o próprio
nome, os Itinerantes assumiram a causa dos oprimidos e
perseguidos e os defenderam.
À primeira vista, Ilya Repin (Il’ia Efimovich Repin,
1844-1930) parece um Itinerante improvável, pois
passou três anos em Paris enquanto os impressionistas
se uniam. Mas, em 1878, ele se filiou ao grupo. Tornou-se
um membro importante, alguém muito admirado por
outros artistas e pelo escritor realista Leon Tolstói, que
ele pintou por diversas vezes. Assim como Courbet na
França, Repin e os Itinerantes usavam sua arte para
comentar sobre a sociedade, destacando o sofrimento
dos mais necessitados, como na tela de Repin de 1870,
Rebocadores do Volga. Em seu imenso quadro Visitante
inesperado (1884), ele pintou o regresso de um narodnik
(um defensor da reforma) que fora eLivros na Sibéria
pelo governo. De pé, na sala de estar, o homem ainda
está de casaco como um estranho, o rosto quase perdido
nas sombras e os olhos encovados. Os filhos olham para
ele como se fosse uma curiosidade, sem reconhecê-lo. Só
a mãe dele, erguendo-se da cadeira em trajes de viúva,
se aproxima. O assoalho nu sugere que a vida fora dura
na sua ausência.
Por que os artistas escolhiam pintar essas pessoas? Os
Itinerantes desejavam lançar um foco de luz sobre elas e
dar-lhes voz, exatamente como Courbet fizera na França.
Eles também queriam homenagear a vida dessas
pessoas, cientes de que o mundo moderno estava
acabando com tradições existentes há séculos. Para
captar os antigos costumes antes que desaparecessem,
os artistas viajavam pelas novas linhas de trem recém-
construídas até pontos extremos dos países onde a terra
encontra o mar: para Pont-Aven, na Bretanha; para
Zandvoort, nos Países Baixos, e Newlyn, na Inglaterra.
Esses vilarejos costeiros ofereciam acomodações baratas
e modelos prontos, como pescadores e mulheres,
moradores do lugar com trajes tradicionais indo à igreja e
cenários rurais pitorescos. Eles procuravam estar o mais
longe possível do burburinho da vida moderna nas
cidades que então fascinava os impressionistas,
oferecendo aos artistas a oportunidade de captar uma
forma de vida mais tradicional.
Elizabeth Forbes (nascida Elizabeth Armstrong, 1859-
1912) foi uma artista de origem canadense que estudara
em Londres e Nova York antes de viajar para Pont-Aven e
Zandvoort, pintando a Pescadora de Zandvoort, em
1884. Uma jovem de pé, com a mão esquerda na cintura,
sustenta uma travessa de peixes com o braço direito.
Forbes a coloca à frente de uma parede indefinida, de
modo que nossa atenção recai no olhar austero da moça.
Ela olha direto para nós, com o cabelo e o avental
contornados pelo sol de um início de manhã.
A mãe de Forbes a acompanhava em suas viagens e,
juntas, se estabeleceram em Newlyn, na Cornualha,
Inglaterra, onde a artista dividia seu ateliê com pilhas
gigantescas de redes de pesca. Foi durante o tempo em
que morou na Cornualha que conheceu o marido
Stanhope Forbes (1857-1947). O quadro dele Venda de
peixes em praia da Cornualha (1884-1885) foi um
instantâneo agitado da vida costeira, na chegada de uma
frota pesqueira que descarregou seus peixes para serem
leiloados. Uma arraia, uma cavala e outros peixes estão
espalhados aos pés de duas jovens, em prosa com um
pescador grisalho, ainda usando seu sou’wester, um
chapéu de chuva de oleado. Outras mulheres carregam
cestos pesados de pescados, com ondas cinzentas
batendo nos pés. Stanhope Forbes expôs em Londres e
logo despertou a crença da existência de uma “Escola de
Newlyn”. Stanhope e Elizabeth abriram uma galeria, hoje
com o nome de Newlyn Art Gallery, e uma escola de
pintura. A Escola de Newlyn foi a fundação de uma forte
presença artística na área que perdura até hoje.
Muitos artistas franceses optaram por não viajar para
o exterior, cientes de que as realizações mais incríveis da
arte estavam acontecendo no quintal de casa, em Paris.
Os impressionistas pintaram a capital e ali promoveram
sua exposição final em 1886. Nela foi incluído Tarde de
domingo na ilha La Grande Jatte (de 1884-1886), de
Georges Seurat (1859-1891), obra em um estilo
inteiramente novo. Seurat usou a mesma teoria
cromática científica dos impressionistas, mas virou-a de
ponta-cabeça. Ele entendia que se duas cores fossem
misturadas, digamos vermelho e amarelo, uma nova cor
seria obtida, no caso o laranja. Mas e se as cores não
fossem misturadas na tela e, em vez disso, as
aplicássemos com pontos vermelhos e amarelos,
deixando as cores confundirem a vista? E se fosse
aplicada novacamada de pontos de cores
complementares para fazer as cores realmente
vibrarem? O resultado foi Tarde de domingo na ilha La
Grande Jatte, uma tela imensa com mais de três metros
de largura.
La Grande Jatte é uma ilha enorme no rio Sena, nos
arredores de Paris. No quadro de Seurat, um casal de
classe média, parado sob uma sombra, observa o rio
reluzente, empertigados e formais, no melhor traje de
domingo. À volta deles, macacos, cachorros, crianças
correndo, mulheres montando buquês de flores,
trabalhadores relaxando. O crítico Félix Fénéon ficou
extasiado: “A atmosfera é vibrante, com uma
transparência singular; a superfície parece tremer”.
Seurat pintou a tela inteira e a moldura usando pontos.
Os pontos vermelhos alinham-se junto à grama no
quadro, fazendo a superfície verde pipocar e fervilhar
como se estivesse viva. Por outro lado, as pessoas
parecem estáticas, sem vida. Representadas, em sua
maioria, de perfil, como se fossem figuras de um friso,
sentadas ou de pé, sozinhas, isoladas no próprio pedaço
de sombra, um reflexo do anonimato da vida na cidade
moderna.
O estilo deslumbrante de Seurat, conhecido como
pontilhismo, significou uma pausa perfeita no
Impressionismo e inspirou todo um elenco de seguidores.
Fénéon aclamou-o como o início de um novo movimento
da arte chamado Neoimpressionismo. Denominou-o
como uma rejeição às “aparências fugidias” do
Impressionismo e afirmou que ele mostrava um desejo
de captar a essência atemporal de uma cena. Os artistas
que seguiram esse estilo chamamos hoje de pós-
impressionistas: Van Gogh, Gauguin, Cézanne. As obras
deles figuram entre as mais valorizadas no mundo.
Durante o próprio tempo de vida, porém, eles raramente
vendiam um quadro. A despeito dessa falta de apoio do
público, a dedicação à sua arte chegou, por vezes, a ser
perigosa e até fatal.
Capítulo 29 - Os pós-
impressionistas
É final de setembro de 1888 e Vincent van Gogh está
sentado à frente de uma mesa em seu ateliê em Arles,
no sul da França. Diante dele, uma carta inacabada para
o irmão Theo, marchand em Paris. Van Gogh escreve
centenas de cartas por ano e muitas são para Theo. O
irmão ainda o sustenta como artista, pagando o aluguel e
comprando tintas. Em maio, Van Gogh usou o dinheiro de
Theo para alugar a casa em que mora. Ele a chamou de
Casa Amarela e estabeleceu-a como seu “Ateliê do Sul”.
Ele espera que outros, como o amigo Paul Gauguin,
venham juntar-se a ele em Arles e criem uma
comunidade de artistas.
Por ora, sentado ali sozinho, pena à mão, ele conta a
Theo sobre o quadro que acabou de pintar. Chama-se O
café à noite, uma representação do bar noturno acima do
qual ele morava em Arles. O dono está ao lado da mesa
de sinuca, enquanto fregueses desmaiam sobre os copos
de bebida em mesas compartilhadas e um casal
conversa reservadamente ao fundo. O relógio marca a
hora, e é pouco mais de meia-noite. Lampiões a gás
enchem o café com a nova luz artificial que irradia do
teto, em círculos concêntricos. “No meu quadro”, escreve
ele, “tentei expressar a ideia de que o café é um lugar
onde alguém pode se arruinar, enlouquecer ou cometer
um crime.” Ele fala a Theo sobre os verdes ásperos e os
amarelos sulfúricos que usou, sobre a atmosfera
delirante criada. Van Gogh passou três noites inteiras em
claro para pintar o interior do café, usando cores
contrastantes, vermelhos e verdes, para expressar as
emoções dos fregueses bêbados e o torpor de seu estado
de embriaguez.
*
Os primeiros quadros de Van Gogh (1853-1890) foram
retratos sombrios de camponeses holandeses. Conforme
rumou para o sul, dos Países Baixos para Paris e dali para
Arles, suas pinturas se tornaram mais brilhantes e
ousadas. Levou consigo gravuras japonesas para a Casa
Amarela, inclusive Residência com ameixeiras em
Kameido (1857), de Utagawa Hiroshige, e Gueixas em
uma paisagem (década de 1870), de Sato Torakiyo. Van
Gogh comprara as gravuras em feiras na Antuérpia e em
Paris e elas viriam a influenciar seu estilo de pintura, ao
eliminar sombras e usar linhas escuras espessas para
contornar objetos, como em O café à noite.
Por que tantos artistas ocidentais buscaram inspiração
em gravuras japonesas? Elas pareciam oferecer um
caminho além da perspectiva ocidental e das imitações
acadêmicas formais. Os artistas admiravam como seus
pares japoneses interpretavam a paisagem, criando
cenas planas que não tentavam parecer naturais, mas,
antes, capturavam a harmonia inerente à natureza. Eles
sugeriam novas formas de transformar o mundo
tridimensional em uma imagem bidimensional. Van Gogh
demonstrou sua admiração pelas gravuras japonesas
pintando uma versão de Gueixas em uma paisagem, com
o monte Fuji ao fundo, no próprio Autorretrato com
orelha enfaixada, de 1889.
O Autorretrato com orelha enfaixada foi pintado
quando Paul Gauguin (1848-1903), que se juntara a Van
Gogh em Arles, deixou a Casa Amarela depois de dois
meses de desentendimentos. Num acesso de raiva, Van
Gogh cortou o lóbulo da própria orelha. Sua saúde mental
se deteriorou rapidamente e ele andou por hospitais e
manicômios, embora continuasse pintando. Dois anos
depois de O café à noite ele estava morto, suicidando-se
com um tiro nos campos que pintara com tanta
vivacidade em Campo de feno com corvos, em 1890. Ele
vendeu um único quadro em sua vida inteira.
Van Gogh foi um artista que trabalhou muito no
isolamento, mas hoje constatamos que seus quadros
expressivos se equiparam à obra de outros artistas do
norte europeu, em particular Edvard Munch (1863-1944).
Munch nasceu na Noruega, mas estudou em Paris e
depois mudou-se para Berlim, na Alemanha. Arte e vida
estavam intimamente ligadas em sua obra, assim como
na de Van Gogh. O famoso quadro de Munch, O grito
(1893), retrata um grito alucinado de uma imagem
semelhante a uma caveira. Por trás, o sol vermelho
fervilha e o mar se agita por baixo, um estado que reflete
as emoções da figura central, que parece gritar com a
própria alma.
O grito foi o ápice da série de Munch, O friso da vida.
A série expressou o tormento dos homens, os mistérios
das mulheres e a presença iminente da morte. Munch foi
um importante precursor do Expressionismo alemão,
uma forma de arte em que o mundo emocional interno
prevalecia sobre as paisagens ou sujeitos físicos. Ele
recorria às experiências pessoais com doenças e mortes
de entes queridos e à própria depressão para dar forma à
sua arte. Munch registrou em seu diário que a arte não
deveria retratar a tranquilidade de pessoas lendo ou
tricotando, mas, antes, representar “gente de verdade
que respirava, sofria, sentia, amava”.
Tanto Van Gogh quanto Munch reagiram às pressões
do cotidiano moderno. Sofreram com problemas de
rejeição e saúde mental no decorrer da vida, mas hoje a
obra deles fala às pessoas com grande intensidade, ao
tocar diretamente nas emoções e nas ansiedades. A arte
de ambos foi além do Impressionismo, pois reconectou
emoções reprimidas e realidades internas.
Paul Cézanne (1839-1906) também queria ultrapassar
os vislumbres momentâneos do mundo para pintar
verdades essenciais. Estudou em Paris e, mais tarde,
regressou a Aix-en-Provence, no sul da França, onde
nascera. Ele lutou com a pintura ao longo de toda a
carreira, expondo ao lado de Manet no “Salon des
Réfusés” em 1863 e, em seguida, com os
impressionistas, antes de abandonar completamente as
exposições, até sua primeira exibição solo aos 56 anos.
Ele se afastou do mundo da arte para se concentrar na
expressão da essência das formas, suas cores, peso e
formato.
Alguns dos quadros mais conhecidos de Cézanne são
de um único marco local, o Monte Santa Vitória. A
montanha era para ele tão importante quanto o Monte
Fuji para os gravuristas japoneses. Era um símbolo da
Provença que ele emoldurou com pinheiros na década de
1880, tonalizou em roxo na década de 1890 e reduziu a
uma série de marcas coloridas em papel e em tela no
início da década de 1900.Casas quadradas nos campos,
na parte inferior, e a montanha em si se fundem com o
céu e as árvores em primeiro plano, no Monte Santa
Vitória com grande pinheiro (por volta de 1887), para
recriar a experiência de absorver uma paisagem de uma
vez, como se fosse uma colcha de retalhos de formas e
cores. Cézanne falou sobre querer tratar a natureza “por
meio do cilindro, da esfera, do cone”. Essa nova forma de
pintar, de reduzir objetos à sua forma essencial, oferecia
outro caminho para além do Impressionismo e
influenciou muitos artistas, inclusive Pablo Picasso, que
se fundamentou no estilo de Cézanne para criar o
Cubismo, conforme veremos no próximo capítulo.
Paul Gauguin também decidiu sair de Paris para
buscar sua arte, e suas pinturas oferecem uma terceira
via além do Impressionismo, agora por meio de um
interesse renovado no simbolismo. A princípio, ele aderiu
ao êxodo dos artistas no verão para a Bretanha, na costa
noroeste da França, fixando-se em Pont-Aven e pintando
mulheres locais e seus costumes. Ali ele recorreu às
gravuras japonesas como fonte inspiradora e
desenvolveu um estilo de cores uniformes e contornos
fortes que chamou de sintetismo. Assim como muitos
artistas da época, Gauguin queria dar as costas para o
mundo que se modernizava rapidamente e observar as
tradições de gente que morava longe das cidades,
acreditando que seriam vidas vividas com mais
simplicidade e arraigadas com maior profundidade à
natureza. Mas, para Gauguin, a Bretanha não era
distante o suficiente.
Gauguin ansiava por algo ainda mais “primitivo”, uma
fuga à sua realidade para um lugar atemporal e
fantasioso onde se sentisse livre. E assim, rumou para o
Taiti, a ilha tropical pintada por William Hodges em 1775,
que conhecemos no capítulo 23. O Taiti, parte da
Polinésia no Oceano Pacífico, fora colonizada pela França
em 1880. Onze anos depois, Gauguin tomou um navio
para lá. “Parece-me”, escreveu ele para Mette, sua
sofridíssima esposa que ficara na Europa, “que tudo
aquilo que torna a vida na Europa tão problemática não
existe mais, e que amanhã será igual a hoje, e assim
sucessivamente até o fim.”
O Taiti dos quadros de Gauguin é um mito. Ele pintou o
Taiti como se fosse um paraíso intocado, com mulheres
jovens lindas e sexualmente disponíveis, repousando em
clareiras tropicais ou praias arenosas, ou seja, um lugar
para ele desfrutar suas fantasias e voltar-se para a
natureza. A realidade era uma ilha polinésia que se
tornara colônia francesa tomada por doenças sexuais
(inadvertidamente trazidas pelos europeus) e
missionários protestantes. Gauguin continuou a escrever
para Mette enquanto vivia com Tehemana, uma menina
taitiana de 13 anos que se tornou sua vahine, esposa
taitiana. Por várias vezes ele a fez de modelo, pintando-a
em telas rústicas de juta, fundindo natureza e
sexualidade feminina com crenças espirituais locais para
criar suas fantasias coloniais exóticas. A exploração
sexual de meninas menores de idade e sua atitude
colonialista em relação ao Taiti como um lugar que ele
podia reinventar para satisfazer suas necessidades o
transformou em uma figura problemática para a nossa
atualidade.
A obra mais ambiciosa de Gauguin foi De onde
viemos? O que somos? Para onde vamos?, de 1897.
Media seis metros de largura, a mesma medida do ateliê
que construíra na ilha. As mulheres do quadro
representam as várias idades da humanidade. A figura
central colhe uma maçã como se estivesse no Jardim do
Éden da Bíblia, mas está em uma paisagem povoada por
deuses taitianos. O quadro é como um sonho, repleto de
significados escondidos, e não é para ser tomado com
uma cena real, mas simbólica. O simbolismo era outra
forma de distanciar a arte do naturalismo. Tratava-se da
expressão das ideias e das emoções por meio de objetos,
não simplesmente da reprodução dos objetos em si.
Enquanto Gauguin embarcava para sua viagem de
dois meses no Taiti, o artista americano Henry Ossawa
Tanner (1859-1937) se preparava para passar seu
primeiro verão no antigo refúgio de Gauguin, Pont-Aven.
Tanner morou na França por quase cinquenta anos,
encontrando ali um clima menos carregado em termos
raciais do que nos Estados Unidos. Como afro-americano,
ele crescera na Filadélfia, onde o pai mais tarde se tornou
bispo da Igreja Metodista Episcopal Africana. Tanner
estudou na Academia de Artes da Pensilvânia, mas
verificou que os estudantes brancos não o aceitavam
como igual. A despeito do apoio inicial de Thomas Eakins,
que conhecemos no capítulo anterior, ele sofria
preconceito constante nos Estados Unidos e usou o
dinheiro das vendas de suas primeiras obras para
comprar uma passagem só de ida para Paris.
Tanner fez uma viagem curta de volta aos Estados
Unidos, em 1893, para participar do Congresso Mundial
sobre a África, em Chicago, onde proferiu uma palestra
intitulada “O negro americano na arte”. Durante essa
visita, ele pintou A aula de banjo, hoje a sua obra mais
conhecida. É um retrato humano de um velho negro
ensinando um garotinho a tocar banjo. Tanner pintou
cenas de gênero de negros americanos para marcar a
presença deles na história da arte e para representá-los
de modo sério, como pessoas de verdade.
Tanner teve uma carreira bem-sucedida na França,
mas, em outro continente, a arte histórica africana era
tratada de forma bem diferente. Em 9 de fevereiro de
1897, tropas britânicas alcançaram o delta do Níger na
África Ocidental. Ali desembarcaram e se dirigiram para a
cidade de Benin (hoje no estado de Edo, no sul da
Nigéria). Um pequeno pelotão britânico tinha sido
assassinado por guardas de Benin no mês anterior, e
esse novo ataque era uma retaliação extremamente
inflamada. Armados com lançadores de foguetes e
metralhadoras, os britânicos aniquilaram os soldados de
Edo, que revidavam do alto das árvores nas redondezas.
A cidade de Benin foi capturada e o complexo do palácio
real incendiado por completo depois de ter seus tesouros
totalmente saqueados. Entre eles, centenas de bronzes
de Benin, as placas históricas que admiramos no capítulo
16.
Não houve catalogação arqueológica das esculturas
antes que fossem retiradas dos santuários nem das
placas dos depósitos. Em vez disso, o material foi reunido
em pátios e dividido e distribuído de acordo com ideias
ocidentais de valor, com as obras mais rebuscadas sendo
reservadas para a rainha Vitória, como um par de
leopardos de marfim incrustados com manchas de cobre.
As placas mais elaboradas foram levadas de volta para o
Escritório Colonial em Londres para serem vendidas e
assim ajudar a financiar a expedição.
Dois terços dessas placas foram incorporados à
coleção do British Museum, onde houve uma exposição
sete meses mais tarde. As pessoas ficaram maravilhadas
com os bronzes. Os europeus não imaginavam que a arte
africana fosse tão sofisticada ou tecnicamente avançada.
Naquela época, a arte africana sequer era considerada
“arte”. Rotulavam-na de “primitiva” e a arquivavam em
museus etnográficos. E, quando quer que fosse
admirada, era por aqueles que achavam que ela
mostrava um elo mais estreito entre o homem e a
natureza, a inocência quase pueril pela qual Gauguin
ansiava no Taiti. Pelos bronzes de Benin, porém, ficou
óbvio que se desenvolvera, na África, um alto nível
artístico, independente da arte ocidental. Descobriu-se
que a África tinha uma história da arte própria. Os
bronzes de Benin eram as obras-primas do continente. E
os britânicos tinham acabado de roubá-los.
Capítulo 30 - Sobre os ombros
de gigantes
É o ano de 1903, em Berlim, na Alemanha, e Käthe
Kollwitz folheia seu catálogo de gravuras recém-
publicado, com o artigo assinado pelo diretor do Salão de
Gravura de Desdren, Max Lehrs. A gravura é muito
popular na Alemanha, e Kollwitz é uma das expoentes
nessa arte. Suas gravuras são expostas em Berlim, Paris
e Londres, onde colecionadores e museus disputam a
compra das obras.
As gravuras poderosas de Kollwitz

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