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Marcelo de Lima Lessa Autor de “Gênesis Proibido – A Tragédia de Adão e Lilith” EVANGELHO PERDIDO A HISTÓRIA OCULTA DE JESUS Renascimento, espiritualidade e conspiração: a emocionante trajetória do filho de Deus sob uma perspectiva nunca antes vista. EVANGELHO PERDIDO: A HISTÓRIA OCULTA DE JESUS ©2016 Marcelo de Lima Lessa Todos os direitos reservados Supervisão geral: Betti Pellizzer Diagramação e capa: Equipe Editora Raredes Imagem da capa: Gene D. Austin – Crown of Thorns and nails Vetores internos: Freepik – br.freepik.com Revisão de Texto: Luciana Papale / Anna Torres / Victor Anziani Editor Responsável: Anna Torres L638e Lessa, Marcelo de Lima Evangelho Perdido: A história oculta de Jesus/Marcelo de Lima Lessa – 2ª edição – Rio do Sul: Raredes, 2019. Livro eletrônico. 1. Ficção brasileira 2. Literatura brasileira 3. Misticismo 4. Angelologia I. Autor. II. Título. CDD 869.93 Todos os direitos reservados, proibida a reprodução total ou parcial desta obra, sem a expressa autorização por escrito da editora ou do autor, sejam quais forem os meios empregados, com exceção de resenhas literárias, que podem reproduzir algumas partes do livro, desde que citada a fonte. Os infratores serão punidos na forma da lei. Esta é uma obra de ficção. Direitos desta edição reservados à: Editora Raredes Rua Pedro Frankenberger, 281 – Bela Aliança Rio do Sul – SC CEP 89.161-313 www.raredes.com.br editora.raredes@gmail.com http://www.raredes.com.br mailto:editora.raredes@gmail.com Agradeço a todos que tornaram este projeto possível, dentre eles, meus amigos e leitores, sem os quais eu não teria motivação para continuar a escrever. À bailarina Íhsis Nur, pela graciosa assessoria nas linhas dedicadas à dança do ventre engendrada pela inebriante personagem Salomé. E aos abnegados e inquebrantáveis espíritos obreiros que servem na ação pastoral da Câmara de Guf, a “Tesouraria das Almas”, aos quais este livro é dedicado. “Seres luminosos nós somos, não essa matéria rude...” “The Empire Strikes Back” (trecho do filme homônimo) “Se as pessoas que amamos são tiradas de nós, o jeito de mantê-las vivas é continuar amando-as; os prédios queimam, as pessoas morrem, mas o amor verdadeiro é para sempre” “The Crow” (trecho do filme homônimo) Sumário Sumário Vez mais; réu confesso Prelúdio A Conceição Virginal Um guerreiro sem armas A queda das Presenças Uma voz no deserto Pedras em peixes Mirian Magdalena A adúltera de Edom A Grota dos Leprosos A caminho de Jerusalém Sejam diferentes Conspiração no Sinédrio Jardim de Getsêmani Condenado Sem Culpa Marte caiu O trono de Magdalena Até o final dos tempos Vez mais, réu confesso Eu sempre achei que o amor verdadeiro é imortal. Ele transpõe a matéria e, por si só, suplanta a própria razão. Nada, conosco, acontece por acaso e, desde que Abel partiu da Terra pelas traidoras mãos do irmão Caim, muitos passaram a, nela, ir e vir, até que as suas almas finalmente encontrassem a derradeira evolução que as tornasse aptas para a vida definitiva no Éden Espiritual[1]. O primeiro homem — Adão — e a primeira mulher — Lilith — estavam fadados a se amar para sempre, mas diante das tragédias que marcaram as suas vidas, a raça humana acabou dividida entre a adoração a Deus e a afronta às rígidas leis Dele; o bem e o mal, por assim dizer. Não há — não entre nós — homem santo ou isento de pecado. Aliás, cá estamos apenas para dosarmos a força da nossa fé, pois disso dependerá o término — aqui — ou a continuidade — acolá — das lidas que nos foram reservadas. Embora muitos pranteiem a morte física, entendo que ela nada mais é do que o fim de um ciclo, onde a vida — que, por graça, nos é perene — seguirá contínua, seja na felicidade do paraíso, seja nos frios calabouços da Câmara de Guf, a “Tesouraria das Almas”, onde muitos espíritos permanecem presos e suspensos à espera de uma possível chance de redenção. Adão e Lilith, assim como muitos de nós, foram separados pelo ciúme e pelo orgulho, características que, com o passar dos séculos, quase chacinaram a humanidade: “Querida, sempre estiveste em minha mente; eu desejaria jamais tê-la deixado ir...”, pranteava o primeiro homem ao se lembrar de tê-la visto fugir do seu leito. Mas o Eterno foi sapiente ao transformar o primeiro jardim em passagem e, assim, dar-nos uma nova oportunidade; pois, ao contrário dos anjos, nós viveremos para sempre, seja na graça ou fora dela. Pois para que os homens pudessem continuar a sua saga, Deus despachou para a Terra o Seu leão como cordeiro, a fim de que, diante de um ato de sacrifício, o ser humano finalmente entendesse que Ele — embora muitos tenham tentado fazer ver o contrário — é amor. E essa, em verdade, foi a mensagem deixada por Jesus de Nazaré: o amor do Pai. Ao final da vida terrena, os nossos únicos legados serão os atos pelos quais seremos sabatinados, disso não há como fugirmos. Assim, a ausência de uma religião ou crença pode até ser compreensível, mas a falta de fé numa energia maior que nos regula é algo que, a meu ver, não se coaduna com a equação cósmica da nossa própria existência. Comprometer-se com a evangelização; ajudar o homem a se aproximar de Deus; e dar às pessoas um melhor conhecimento sobre a mensagem de fé; são essas as três tônicas que permeiam este livro, onde as perguntas deixadas em “Gênesis Proibido – A Tragédia de Adão e Lilith”, finalmente encontram as suas respostas. “Evangelho Perdido – A História Oculta de Jesus” é uma adaptação ficcional baseada em fatos históricos. Em razão disso, personagens e pontos geográficos foram propositalmente redesenhados, a fim de dar, ao enredo, uma visão inovadora, ainda que fiel aos acontecimentos descritos nos inúmeros Evangelhos, sejam eles oficiais ou não. Vez mais eu peço perdão por bulir com temas tão sagrados — o intuito não é ruim, acreditem — e também pelas minhas faltas, as quais, bem sei e assumo, não são poucas. Enfim, espero que, desta vez, eu finalmente me forme na Universidade da Vida e que, cada vez mais, eu aprenda e evolua com os erros e acertos que nela cometi. Em 1980, um desenho feito pelo menino Marcelo de Lima Lessa, inconscientemente retratando, aos oito anos de idade, o grande protagonista deste livro: Jesus de Nazaré. Prelúdio PERVERTIDA E DISTORCIDA, mesmo após o dilúvio universal que deveria ter limpado o mundo, a humanidade continuava a brindar o Céu com espetáculos de maldade cada vez mais impactantes. Um Deus que deveria ser uno passou a ser invulgarmente multiplicado nos mais diversos altares, tornando a fé e a crença partidas. Há muito derrotado pelo ousado querubim Caliel[2], Lúcifer não havia mais retornado à Terra, entretanto, ele jamais deixou de influenciar os passos daqueles que por ela caminhavam, afinal, as pérfidas energias vindas do Inferno e as odiosas doenças aqui plantadas por Baalberith[3] repercutiam facilmente sobre a fraqueza dos homens. Some-se a isso a influência negativa dos vários espíritos obsessores fugidos da Câmara de Guf[4] que atormentavam aqueles cuja aura era pífia e descrente. Mas duas grandes promessas haviam sido feitas por Deus no passado. Uma, ao primogênito Adão, alusiva à vinda de um salvador; e outra, a Noé — descendente daquele — de que o mundo nunca mais seria enxurrado. Foi pensando nelas que o Elevado depositou uma alma ungida ao Arcanjo Miguel e o mandou em missão para um mundo que precisava de imediata redenção, sob pena de se consumir na própria perfídia. Esse guerreiro nato, cujas mãos ainda tinham manchas de sangue humano e angélico, mudaria o seu foco de ação, deixando de ladouma furiosa espada flamejante para dar nova exegese à Lei ditada no Sinai[5], a qual, durante séculos, foi distorcida em atos de desmedida violência por alguns extremistas que, dizendo-se sacerdotes, estavam, em grande maioria, divorciados do real dever de fidelidade ao Criador. Ao deixar a planície etérea, o marechal da milícia celeste sabia que o seu encargo seria por tempo certo, mas os detalhes dele só lhe seriam revelados com o suplantar dos anos — num total de trinta — pelos misteriosos meandros advindos do Pai de todos. Ainda assim, alguns velhos conhecidos de outrora, cujos espíritos condenados estiveram na lúgubre Tesouraria das Almas, estavam prestes a ter uma nova chance pelas mãos do filho feito homem do Senhor, o qual, a partir de certa idade, passaria a usar os poderes Dele não apenas para curar o corpo das pessoas, mas também seu espírito. E os caminhos a percorrer não seriam fáceis; nada fáceis. Deus daria boas armas ao filho, mas também o poria a dura prova, pois da fé dele dependeria o destino de muitos, ou melhor, de todos os homens e mulheres nascidos e ainda por nascer. Capítulo 1 A Conceição Virginal JÁ ERA NOITE quando José, entorpecido pelo excesso de vinho, cambaleava junto ao sopé de uma das colinas que cercava a aldeia de Nazaré[6]. Pela sua cabeça doída e confusa passeavam inúmeras cenas recentes, principalmente as de quando a menina Maria, cuja idade não era tão distante da de Sara, uma das filhas do seu primeiro casamento, lhe fora prometida como esposa pelo Sacerdote Zacarias. Mas após ter visto a estranha proeminência junto à barriga daquela que lhe havia sido destinada — uma gravidez extemporânea! — sua primeira reação foi a de emprestar cumprimento à rígida lei mosaica[7] e deixar com que as pedras justiçassem a sua maculada honra pré-nupcial. Entretanto, os judiados olhos daquele velho carpinteiro já haviam tido o desprazer de presenciar execuções similares e, tendo ele um bom coração, sentiu enorme desconforto em imaginar aquela jovem indefesa ser massacrada pelos seus concidadãos, afinal, a possibilidade de ela ter sido violentada por algum soldado romano não era nula, principalmente diante do notório assédio que ela sofria por parte do decurião[8] local, o atrevido Iulius Panthera. Somava-se a isso o fato de argumento da tal gestação estar sendo creditada ao toque do Elevado se mostrar pouco verossímil, tamanho o grau de insensatez daquele aparente delírio vindo de alguém que, havia pouco tempo, nada mais era do que uma simples criança, a alternativa menos hostil que lhe restou foi a de não denunciar a noiva e partir sozinho, pois, mesmo sendo viúvo, os seus seis filhos receberiam a tutela de um irmão que, com ele, mantinha sociedade num negócio de construção braçal. Quanto à pequena Maria, que Deus, em Sua misericórdia, se apiedasse dela. Pois, prestes a ser vencido pelos rigores da bebida, José encontrou refúgio sob a fronde de um carvalho, desabando, logo em seguida, debaixo dele; e já estando na iminência de perder os sentidos, percebeu que algo incomum surgiu de trás dos arbustos ali fincados, algo que expandia uma luz extraordinária, estranha à negritude que por lá pairava apenas maculada pelo incômodo estrilo dos grilos. Ao friccionar as pálpebras para tentar identificar o que via, notou quando uma emanação fantasmagórica surgiu repentinamente diante de si, trazendo, como numa grande tocha, extrema claridade àquela escuridão. Em pé e na sua frente, estava o que, à primeira vista, pareceu ser uma jovem mulher, cujos cabelos curtos e ruivos contrastavam com a toga azul e a couraça dourada que lhe cobriam partes do corpo. Percebendo que, das costas do estranho — ou seria estranha? —, ergueram-se enormes asas que obstruíram o revérbero lunar, José se manteve vergado e receou pela própria vida, afinal, a entidade também carregava uma espada coruscante na cintura. — Nada tema, filho de Davi[9]... — adiantou-se a aparição, levantando a mão direita. — Quem sois vós? — inquiriu José, acuado e com a voz ainda viscosa. — Eu sou aquele vindo a mando e ordem do Altíssimo, O que inicia e finda todas as coisas; seja aqui ou além daqui. — Então viestes me punir-me pelos meus pensamentos impuros? — receou, em alusão à ideia de fuga que tinha em mente. — Não te subestimes José. Eu vim apenas ajudar-te a melhor compreender os rumos operados pelo Senhor — respondeu o ser com a fala levemente metalizada pelo frio da noite. — Embora virgem, a tua futura consorte foi tocada pela força do Criador, e a criança que ela já traz no ventre virá ao mundo para fiar a dívida que os teus possuem para com Ele. E o filho que dela nascerá será o prometido ungido que reinará sobre os nascidos e os ainda por nascer. — Estais a vos referir àquele esperado pelo meu povo, o “Messias[10]”? — balbuciou, incrédulo. — Sim — anuiu. — Por isso, retoma a tua lucidez e zela por ambos, pois essa é a missão que o Grandíssimo tem para ti até que os teus dias se findem na Terra. Ainda de joelhos e comovido, José fechou forçosamente os olhos e fez menção de chorar, mas, do anjo ali presente, ouviu uma última instrução: — E lembra: por ser ele o filho do Altíssimo, deverá receber o nome de Jesus, que significa “a eternidade de Deus” — alertou o mensageiro, esboçando partir. — “Jesus” — repetiu. — Mas espere, senhor! — apelou. — E vós, quem sois? — Eu me chamo Gabriel. E sou apenas um servo; assim como tu — concluiu o celeste antes de bater as asas e se pulverizar no breu. Ainda atordoado com o que havia acabado de presenciar, José abandonou o bornal quase seco e tomou o caminho da morada de Maria a fim de, com a mente agora esclarecida, aclamá-la como esposa perante todos. E o “mensageiro do pacto” aludido no passado, por Deus, a Adão, ao que tudo indicava, estava prestes a aportar na Terra. * * * Rompendo a greta de luz[11] ainda posta no alto do palácio divino, o príncipe-primeiro dos anjos regressou da Terra a fim de prestar contas ao Senhor. Os querubins da Guarda Negra[12] o assediaram com o costumeiro festejo e, após mimoseá-los um a um, o encarregado-mor dos serviços postais ganhou a antecâmara dos aposentos de Deus. Lá chegando, cruzou com o Arcanjo Metatron que, deveras apressado, deixava os santos cômodos. Ao ver a exaltação do recém-chegado, o escriba real se adiantou de forma extrovertida. — Cansado, Gabriel? — A fadiga é algo que não se adéqua a um mensageiro de Deus — respondeu, sorrindo e sem perder o passo. — É muito bom saber disso, pois Ele acabou de me ditar um documento e, adianto-te, tu deverás ser o portador ao destinatário dele. — Outra missão? — estranhou. Metatron apenas assentiu com a cabeça e, escorado pelos ajudantes de ordens do Elevado, licenciou Gabriel para ir ter com o Pai, que, estando de costas para um cômodo oval posto atrás de Si, foi, de pronto, reverenciado pelo filho. — Cá estou; de volta e aos Vossos serviços. — Cumpriste com o teu encargo? — indagou o Regulador. — Sim, Meu Senhor. Tanto o sacerdote Zacarias como a menina de Nazaré foram notificados dentro dos dois intervalos que estipulastes. E até mesmo o bom homem José, confuso, conforme o originalmente previsto, também foi apaziguado e a rigor instruído. — Tudo então corre bem. Pois agora eu tenho mais dois serviços para ti; um burocrático, e outro de guarda — disse Deus voltando-Se ao filho. Sério, o Altíssimo caminhou vagarosamente na direção do anjo, entregou- lhe um alvará selado com uma magna de ouro, o qual, de fato, não aparentava se tratar de uma simples missiva. — Toma. Leva esta ordem de soltura para o tesoureiro-mor da Câmara deGuf; e a entrega em mãos — determinou. Surpreso por se tratar de uma missão típica de Justiça — e não de correio que era a sua especialidade — Gabriel ponderou, intrigado. — Referi-Vos ao gestor da “Tesouraria das Almas”, Senhor? — O próprio — anuiu. — E para nela ingressar, deverás apresentar este passe aos arcanjos que a guardam — esclareceu, entregando um cetro trabalhado em ouro, único passaporte que emprestava acesso àquela secreta fortificação espiritual. — E o que eu haverei de fazer com o beneficiado da ordem, Senhor? — Segue as instruções do tesoureiro-mor e leva a alma que te será confiada à província terrena constante do alvará. Nela chegando, dirige-te ao palácio de um nobre chamado Judah de Migdal e toca o ventre da esposa dele, a qual já está à espera desse espírito. — Será feito. E quando a ação de guarda? — insistiu, curioso. — Após entregar a dita alma, permanece na Terra e vigia o casal que já acautela o teu irmão feito homem[13]. E providencia, usando o grau de força que se fizer necessário, para que nada de ruim aconteça com eles, principalmente com a criança. Me fiz claro? — Claro como a luz! — Vai, então. Desejo êxito em tuas tarefas — concluiu o Infinito ao reacomodar-Se, circunspeto, no sólio imponente. Gabriel prestou-Lhe respeito e deixou a galeria munido de um passaporte de trânsito e uma ordem de libertação dirigida a uma alma decerto importante, que pelo visto estaria prestes a reencarnar no mundo físico. Embora estranhando as incumbências, o anjo-mor haveria de cumprir o deliberado, pois com Miguel fora do Céu e prestes a nascer na Terra com o corpo de um humano, ele tinha passado a ser o braço direito do Senhor. E lá foi o grão-estafeta novamente, veloz e preciso, a fim de preparar o terreno para o tão aguardado nascimento do Cristo. * * * Sob a música alegre e as efusivas palmas dos parentes presentes, a menina Maria teve o véu do rosto suspenso e o semblante formalmente revelado ao prometido José que, com um beijo comedido na face direita da noiva, selou o acordo ao qual, perante os sacerdotes, ele havia assumido na sinagoga. A beleza daquela donzela — ainda contando com doze anos — destoava das demais aldeãs da mesma idade, pois sua tez era invulgarmente mais clara que o padrão, contrastando com os vastos cabelos enegrecidos que, embora na oportunidade presos, lhe corriam sobre as costas. — Eu cuidarei de ti e da criança; eu te prometo — anunciou José para a recém-tomada esposa, que a ele aquiesceu com um sorriso inocente. A jovem e os seus, então, se reconfortaram, pois todos temiam que, com uma eventual e até então esperada recusa de José em desposá-la, o destino dela viesse a ser cruel. Mas quis a graça divina que um homem justo, cerca de quarenta anos mais velho que ela, abdicasse de uma falsa vergonha e cedesse aos desígnios de Deus para prover aquela filha pura de Eva e uma criança cujo nascimento era, havia muito, esperado pelo povo cativo de Israel. Vencidas as bodas e findas as festas, ocorreu que, alguns meses após o enlace — pela conta do tempo, oito no total —, uma agitada guarnição romana aportou no centro da cidadela e, em meio ao alvoroço, todos viram quando o indócil decurião Iulius Panthera, responsável por policiar parte daquela área da Galileia[14], bradou para quem o pudesse ouvir: — Atenção, habitantes de Nazaré! — disse ele, manejando as rédeas do seu bravio cavalo. — Faço-vos saber que o imperador manda que se realize um censo geral de tributação, donde cada homem deverá retornar ao seu local de nascimento a fim de ser contado e registrado. Temerosos com a parca gentileza dos soldados — principalmente José, em razão do antigo interesse de Panthera pelas valorosas virtudes de Maria —, todos se puseram afoitos e, sem muita demora, recolheram as mulheres para o interior de suas casas. — E são essas as ordens, cujo não acatamento implicará em represálias! Portanto, espalhai a notícia e obedecei! — concluiu em meio àqueles grandes pendões que envergavam a máxima “SPQR”. SPQR. Esse acrônimo lançado nos pomposos estandartes das legiões romanas aludia à máxima “Senatvs Popvlvsqve Romanvs” – “Senado e Povo de Roma” e, naqueles dias, confundia-se com o símbolo de submissão que César Augusto[15] impunha aos seus conquistados. Como José era natural da cidade de Belém[16], fincada ao sul e na província da Judeia[17], ele achou prudente apanhar a esposa, cuja gravidez já era avançada, e partir sem demora para se alistar, afinal, não seria viável — não naqueles dias religiosamente aluídos — ir contra um édito real e se envolver numa rusga com os soldados do pontífice romano, já que agora ele possuía uma venerável incumbência pela frente. — Então irás mesmo, José? — indagou-lhe o irmão mais novo, este sim, filho da cidadela de Nazaré. — Eu não posso me furtar Cleófas, pois agora temo pela sorte da minha família. E de mais a mais, não deixarei Maria aqui sozinha; não com aquele decurião rondando as cercanias — respondeu, enquanto desamarrava o seu sempre disposto animal de carga. — Nós aproveitaremos a companhia de algumas caravanas que partirão hoje de Séforis[18], mas a grata parte do caminho, eu e ela haveremos de fazer sozinhos. — Tens razão, creio ser o certo — concordou. — Pois vai e não te preocupes, eu darei conta da oficina e zelarei pelos teus filhos enquanto estiveres fora. — Que assim seja — agradeceu, sem esconder a preocupação. Ele então se despediu dos rebentos — Judas, José, Tiago, Simão, Lígia e Sara — e, com poucos recursos e mantimentos, descansou a esposa no lombo do seu jumento a fim de, juntos, enfrentarem os rigores dos quase cento e sessenta quilômetros de distância até o seu destino. — Estás pronta para ir? — indagou José à mulher. — Eu sinto ser a vontade de Deus que a criança nasça fora de Nazaré. Que seja então cumprido o desígnio Dele — respondeu, sem demonstrar medo. — Cuida bem dela, meu genro — interveio Hannah, mãe de Maria. — Não deixes que nada de ruim aconteça com a minha menina e com o filho que ela carrega. — O Senhor olhará por nós, minha sogra, estou certo disso! — tranquilizou-a, mesmo sabendo dos perigos que uma viagem como aquela poderia ofertar, como a distância, a solidão e, principalmente, as nocivas armadilhas do deserto. — Quisera eu estar em condições de acompanhar-vos, mas a parca saúde que me resta só me faria mais um fardo... — justificou-se num tom de bênção. — Não chores, mãe, pois eu sei que nós estaremos protegidos e em boas mãos — acalentou-a Maria. — Minha filha querida, desde sempre eu soube que tu eras uma dádiva, pois mesmo idosa, tive o privilégio de dar-te à luz pelas mãos de Deus. E o Senhor, acredita-me, estará sempre convosco! — concluiu num abraço choroso. Sob o comovido olhar dos poucos aldeões que lá estavam, ambos se juntaram aos demais peregrinos e partiram a caminho das distantes montanhas de Judá, sem saber que o retorno deles ao povoado de Nazaré, ao contrário do que se poderia prever, ainda demoraria muito a ocorrer. * * * Seguindo a rota secreta posta no passe que havia auferido do Pai, Gabriel deixou o Céu e caiu num túnel contínuo de fogo que o lançou numa dimensão opaca e sombria, o Guf, totalmente inversa às paisagens — mesmo as mais austeras — a que ele estava acostumado em seu primeiro lar. O espaço navegado não tinha quaisquer nuvens, e a escuridão predominante era apenas quebrada por alguns estranhos relampejos que rareavam no alto. Após alguns instantes voando, aparentemente sem rumo, o anjo visualizou, ainda do alto, uma estrutura gigantesca cerrada por muralhas bem maiores que as do palácio do Regulador, sendo que a energia que pulsava no localera extremamente negativa, o que lhe causou certo desconforto no ar. Mirando algo que se assemelhava a um enorme portão, Gabriel logo encontrou pouso no solo frio, sendo, de imediato, interpelado por dois abrutalhados arcanjos que davam vigília naquele tétrico prédio. Ao reconhecer a fisionomia do importante recém-chegado, um deles o recepcionou surpreso. — Príncipe Gabriel, o que faz no presídio de Guf? — Eu venho a serviço, meus irmãos. Viajo com este passaporte de Deus e por deliberação Dele trago um alvará de soltura — esclareceu, envergando o documento. Ao observar a permissão real, os falangistas descruzaram as lanças e abriram imediato caminho para o mensageiro maior, reverenciando-o conforme o protocolo hierárquico: — Desculpe a cautela príncipe, mas desde a criação deste complexo penitenciário nós nunca recebemos visitas, que não apenas as dos nossos já conhecidos oficiais de diligências celestes — justificou um deles. — Não vos apoquenteis, amigos, afinal, assim como vós, eu também estou cumprindo o meu dever. Mas ao ensejo, como faço para encontrar-me com o tesoureiro-mor? — Ele permanece na grande capela que antecede as galerias dos ergástulos, uma de nossas sentinelas irá levá-lo até ele — explicou o lanceiro apontando para um outro que estava no sóbrio corredor do corpo da guarda. — Agradeço a acolhida e vos peço licença — asseverou o emissário, já se adiantando no interior da fortificação. Os dois guerreiros ficaram ressabiados com aquela extraordinária chegada, mas como soldados obedientes, apenas retornaram aos seus postos e nada disseram. Num ritmo acelerado, Gabriel e o seu condutor transpuseram uma soturna via erguida sobre enormes blocos de rocha negra, onde o absoluto silêncio só se fazia quebrar pela coreografia da marcha de ambos contra o solo. A Tesouraria das Almas era um lugar melancólico, uma zona purgatória onde o ar era gélido, pesado e quase asfixiante, e que servia de cárcere para os espíritos atormentados que, carentes de fé na vida terrena, haviam se apartado da retidão e necessitavam se livrar daquilo que os impedia de evoluir ao Éden Espiritual[19]. Inquieto com aquele ingrato ambiente e ainda diante de um elevado número de arcanjos pouco amigáveis que lá davam vigília, o embaixador de Deus ponderou: — Percebo que a segurança aqui é um tanto ostensiva, cabo-da-guarda; excessiva, se me permite observar. — Houve várias fugas no passado, senhor — respondeu-lhe o graduado. — Espíritos revoltados e vingativos que não acataram a interrupção dos pecados de suas vidas materiais. E desde então, o tesoureiro-mor despachou inúmeros esquadrões de lanceiros atrás deles na Terra, por isso a segurança foi reforçada. — “Espíritos revoltados...” — replicou. — Os tais “obsessores”, não é mesmo? Eu já ouvi terríveis comentários sobre eles. — Correto — confirmou. — Esses espíritos são bem difíceis de serem recapturados, pois suas energias se escondem facilmente nas iniquidades do mundo material. Eles atormentam e influenciam os comportamentos daqueles que lá estão, principalmente no campo da libido humana. Bem, felizes talvez sejamos nós, por termos apenas uma existência — observou o armígero sob a concordância do príncipe dos anjos. Ao chegarem na grande capela da Tesouraria, um espaço descomunal cercado por milhares de estantes que iam do chão ao teto, eles se depararam com Razyel, arcanjo que, em meio a uma inflexível bancada abarrotada de cartapácios e velas acesas, cumpria, havia muito, o posto de tesoureiro das almas ali presas. Ao observar, diante de si, o irmão celestial que havia tempos não via, o oficial estranhou a sua chegada, principalmente quando dele recebeu uma ordem de soltura vinda de alguém que não um dos costumeiros meirinhos que lá as apresentavam por lotes; e ao romper delicadamente o selo divino pré-posto naquele documento, Razyel leu para si o teor, mostrando-se surpreso com o seu conteúdo. — Algo errado? — inquiriu o mensageiro. — Creio que não, Príncipe Gabriel. É que se trata de uma alma muito antiga, para cá trazida antes mesmo do dilúvio. Soa mais estranho, é que ela nunca teve direito a progressão — explicou. — Enfim, eu irei confirmar a localização dela nos livros, mas creio que deva estar suspensa nos níveis mais baixos. Após um acurado exame em diversas anotações que remetiam a séculos terrestres, Razyel e Gabriel deixaram aquelas dependências e passaram a descer por infindáveis lances de escada, até que finalmente aportaram num corredor estreito e escuro da seção leste, apenas iluminado pela presença do vigia daquela ala, o Arcanjo Marcyal. — Príncipe; tesoureiro-mor? — assustou-se o guarda. — Salve, soldado! — disse o oficial em voz baixa e sem pompas. — O nosso visitante é portador de um alvará individual especialmente emitido para uma alma que, em meus registros, consta estar numa das últimas solitárias deste flanco — esclareceu Razyel sob o eco que se fazia no ambiente. — Deixe-me examiná-lo, senhor — respondeu o miliciano ao folhear o rol nominal de presos. — Sim, o nome confere com o da ordem que Vossa Excelência tem em mãos; por favor, acompanhem-me para o consentâneo cumprimento. Os três celestes se dirigiram até a última cela que, pelo alfabeto angélico, descrevia o número dois e a qual, com certa dificuldade, foi sendo, aos poucos aberta pelo guardião. A luminosidade natural vinda do corpo deles fez com que o interior do ambiente fosse paulatinamente clareado, revelando-lhes, em meio a colunas fúnebres, a opaca silhueta de uma mulher deitada de costas que, pelo visto, lá jazia havia muitos séculos. Ao mirá-la de costas, o guarda do cárcere se posicionou e procedeu à obrigatória liturgia de libertação, lendo ipsis litteris o que constava do documento que tinha em mãos: “Pela força conferida ao presente, o Criador faz saber ao excelentíssimo Arcanjo Razyel, major-em-armas da legião Animus, designado como tesoureiro-mor da Câmara de Guf, ser de expressa vontade Dele, que seja posta em liberdade e incontinente levada à aldeia terrena de Magdala[20], província fincada na costa ocidental do chamado Mar da Galileia, a alma da réproba que, em sua primeira existência física, recebeu o nome de Lilith...” Lilith! Pois ao descobrir a graça daquela importante reclusa, Gabriel sentiu um calafrio percorrer o corpo, afinal, ele conhecia muito bem a história da temida dama da noite que, no passado, tantos dissabores havia causado, não apenas ao esposo Adão, mas também ao próprio Deus. “... Pois fica também decretado que a beneficiária seja entregue à cautela do celeste Gabriel, príncipe-primeiro dos anjos, para as providências decorrentes da soltura e, por ser essa a expressão do que quer e manda o Altíssimo, eu, Arcanjo Metatron, oficial-maior de escrivania do palácio real, o escrevi e selei em ouro.” Ao término da leitura, a segregada, que ainda se fazia cobrir por uma fina camada de gelo, abriu os olhos num único ímpeto. E depois de anos presa naquele gélido calabouço, ela finalmente obteve autorização para deixar a clausura e enfrentar um mundo totalmente diferente daquele em que havia vivido e, sobre o cadáver do ex-marido Adão, feito a passagem devorada pelo fogo que os consumiu juntos. A primeira mulher posta na Terra, doravante num outro corpo e numa outra vida, estava prestes a ter uma chance de redenção. * * * Durante o dia, o sol castigava José e a esposa; e à noite, o calor vindo das fogueiras lhes trazia conforto. De alguns mercadores que encontravam nas trilhas, o homem comprava um ou outro mantimento de fácil conservação e rápido consumo, afim de que a jornada, a qual transpunha grandes regiões desérticas, lhes fosse menos penosa. Embora já íntimos da solidão da estrada, foi no oitavo dia de viagem que algo atípico lhes aconteceu. No cair da noite, e em meio a um caminho fechado e traiçoeiro, o casal sagrado acabou emboscado por três homens de aparência rude e agressiva, verdadeiros salteadores da senda, que haviam se acostumado a atacar os viajantes incautos que porventura viessem a encontrar. A investida dos mesmos ocorreu no exato momento em que José, após acender uma pequena fogueira, buscava um pouso adequado para poder acomodar Maria e prender o animal que lhe servia de montaria. — Ora, quem vem lá? — tripudiou o mais encorpado dos ladrões. O carpinteiro e a mulher ficaram acuados, já que o trejeito daqueles malfeitores era um prenúncio do que eles aparentemente tencionavam. — Nós viajamos em paz; eu e minha esposa, que está prestes a dar à luz... — apelou José na tentativa de sensibilizá-los. — Esposa? Pois eu pensei que fosse tua neta! — divertiu-se um deles, em razão da crassa diferença de idade entre ambos. — E por acaso trazes algum dinheiro contigo, velho? — indagou o mesmo, cuja enorme cicatriz que lhe cortava a face impunha temor. — Eu só tenho algumas moedas, ficai com elas e deixai que sigamos o nosso caminho — respondeu, remexendo a bolsa e ofertando-lhes o pouco valor material que carregava. — E porventura nos julga dignos dessa ninharia? — berrou o líder deles ao desferir um violento golpe no rosto de José, o qual, atordoado, caiu ao chão e perdeu os sentidos ao chocar a cabeça contra uma pedra. — Mas veja o que nós temos aqui, uma delicada jovenzinha! — riu o mais forte ao tomar a virgem e colocá-la em pé diante de si. Fragilizada ante o próprio estado físico e atemorizada com o que ocorria, Maria segurou a barriga com uma das mãos e ergueu instintivamente a outra, na pretensa tentativa de repudiar aquele homem imenso, cujas intenções para consigo pareciam ser as mais pérfidas possíveis. Seu esposo, ferido e inerte, nada podia fazer para protegê-la; e clamar por socorro naquela despovoada imensidão seria inútil, até porque, o pânico lhe havia tolhido, sumariamente, a voz. Limitando-se a recuar, ela se viu encurralada por uma enorme parede rochosa que a impediu de continuar se afastando e, diante de si, enxergava apenas aquele arremedo de monstro humano, malcheiroso pela bebida e envergando vestes imundas. Vencida pelo medo e pelo desespero, a jovem começou a se agachar, oportunidade em que os outros dois se aproximaram do maioral para coadjuvar um crime cujo grau de aberração sequer poderia ser definido. Pois estando numa posição mais baixa em relação àquele malfazejo, Maria entrou numa espécie de transe, passando então a focar os seus pensamentos em algo que pudesse lhe trazer um pouco de acalento para tentar enfrentar a desgraça que estava por vir. Mas num repente que teve da própria realidade, ela foi surpreendida por um vertiginoso facho de fogo que inesperadamente se ergueu do chão por trás do perverso homenzarrão e, numa só passada, o partiu ao meio. Assustada com a violência da cena, Maria esboçou perder os sentidos, não sem antes ver aquela mesma língua fulgurante — entre uma nuvem de areia que se levantou — calar os urros terrificantes dos outros dois facínoras. A imaculada não se conteve e desfaleceu, sendo que o silêncio, após aquele ímpar momento de tensão, foi, aos poucos, retornando. Estacionado bem diante dela, ali se revelou o grande mensageiro de Deus, com a sua afiada espada de fogo erguida e bem segura numa das mãos. Igualmente desacordado, José foi gentilmente posto pelo tal anjo no lombo do seu animal. Erguida nos braços pela mesma entidade, Maria ficou segura. Tomando as rédeas do jumento que havia se recusado fugir, aquela sentinela celeste que lhes dava guarida os levou daquele lugar ermo, deixando para trás três cadáveres lacerados e à mercê dos mais baixos calabouços do Guf. O Príncipe Gabriel, que pouco antes havia retornado de Magdala após fazer a entrega do espírito recém-liberto de Lilith, seguia à risca as orientações do Senhor, vigiando o casal à distância desde que haviam partido de Nazaré. No caminho, o mensageiro olhava, vez ou outra, para a barriga daquela jovem e, com um singelo sorriso no rosto, lembrava-se do bom irmão Miguel, cuja essência, agora, estava num ser forjado da mesma matéria que séculos antes ele próprio havia auferido nos quatro cantos da Terra para que o Criador moldasse o primeiro homem. Na manhã seguinte os dois despertaram ao lado de um bornal que continha água fresca e de pequenos cestos com uvas passas e castanhas, como se nada lhes tivesse acontecido. Mas, afinal, teria aquilo sido um pesadelo? Talvez não, pois os trejeitos da aparição foram descritos por Maria ao esposo, fazendo com que este, nela identificasse o mesmo ser misterioso que, meses antes, o havia visitado para dar paz ao seu atormentado coração; e ela, o que havia anunciado a vinda do seu filho. — Aqueles homens horríveis, José. Fomos salvos... — disse a menina, ainda aparentemente emocionada. — É mais um sinal de Deus, mulher; o terceiro ao que me parece — ponderou. — Bem, sigamos, então, adiante, afinal, já estamos próximos de Belém. Embora aquele dia de viagem, o último, houvesse sido tranquilo, assim que a tarde caiu no sul da Judeia, Maria sentiu a criança se encaixar na sua região pélvica, o que, mal sabia ela, era um prenúncio do nascimento. Inúmeras contrações passaram a tomar conta do seu corpo, e o desconforto causado por elas fez com que José, um tanto nervoso, se pusesse a buscar um lugar adequado para tentar abrigá-la; afinal, a noite se avizinhava e, para piorar, uma garoa ardida havia começado a cair sobre eles. Ainda que o centro da cidade já estivesse próximo, e José, por ser um nativo, pudesse facilmente encontrar abrigo, o tempo urgia, pois a parição parecia ser iminente. Pois ainda na estrada e em meio à chuva que começou a piorar, de longe avistou alguém que saiu do que lhe pareceu ser uma espécie de gruta fincada entre as pedras, uma mulher idosa de trejeitos simples e simpáticos. — Venham cá, meus filhos! — bradou a estranha ao acenar para eles. — Protejam-se e aqueçam-se um pouco. Mesmo à distância, José não percebeu qualquer hostilidade nela e, no afã de acalentar a esposa, aceitou o convite e a levou para aquela caverna, onde a anciã os recepcionou: — Sede bem-vindos — disse ela. — E nada temais, pois, no passado, este lugar serviu de estábulo para os pastores em trânsito de Betânia[21] até Belém, mas já faz um bom tempo que ele está abandonado — esclareceu a senhora já no interior do abrigo, cuja iluminação interna, embora presente, não teve a origem de pronto identificada. — A minha esposa está prestes a dar à luz, nós precisamos de ajuda — asseverou José, aflito. — Pois então vinde para mais perto, deita-a sobre esse monte de feno — ofertou a velha calmamente. — A senhora pode auxiliar de alguma forma? — indagou José, ao cuidadosamente acomodar Maria. — Bem, faz muito tempo que eu não assisto alguém num parto. Muito tempo... — respondeu, passando as mãos nos cabelos já descobertos e soltos da virgem. — Mas saibas que a melhor ajuda é aquela vinda de ti mesma, menina. Pois assim, quando sentires as contrações aumentarem, apenas faças força para fora. Está bem? — orientou-a. — A jovem assentiu com um suave movimento de cabeça e esboçou um sorriso, dando mostras de que havia compreendido. — Ótimo! Agora, relaxa e deixa que tudo aconteça naturalmente — disse a desconhecida sob o ansioso olhar de José. Poiscontrariando a severa lei da dor que havia sido posta em Eva, Maria se mostrava imune ao sofrimento da parição; afinal, ali, nascia o rebento de Deus, e com o auxílio daquela estranha, pariu uma criança saudável, a qual ganhou o mundo, não chorando, mas sorrindo. — Meu filho... — sussurrou a mãe, feliz ao vê-lo. — Jesus! — Abençoada és tu, menina, o Senhor livrou-te da dor do parto. E saúdo a ti e ao teu marido, pois recebestes um menino forte, muito forte — afirmou a parteira, num tom envolvente e igualmente misterioso. O casal ficou tão entretido com o exitoso nascimento, que não percebeu quando a idosa amarrou o cordão umbilical que unia a mãe à criança com dois finos fios de ouro e, com um belo punhal cravejado de esmeraldas que tirou da cintura, o seccionou sem quaisquer dificuldades. A chuva que ainda caía parou de maneira inesperada, dando azo a uma grande estrela que se fincou acima da caverna. A dita senhora então se levantou e, vagarosamente, deixou a gruta, sem que José ou Maria se apercebessem. Já estando na entrada dela, olhou para o alto e desfez o seu disfarce, de pronto se revelando como sendo um anjo, um príncipe-primeiro da ordem das virtudes. Foi então que Rafael, que centenas de anos antes havia auxiliado Eva a trazer os gêmeos Caim e Luluvah ao mundo, recepcionou alguns pastores que lá chegaram atraídos pelo fulgor do astro que havia repousado sobre aquela gruta. — Entrai e contemplai o “rei dos reis” que aqui nasceu! Feito isso, o celeste cobriu a cabeça com um capuz esverdeado e desapareceu no ar, deixando atônitos os espectadores que lá estavam. Os pastores entraram na gruta e se depararam com uma menina acalentando um recém-nascido que se recusava a chorar. No afã de proteger a família, José ficou arisco ao vê-los, mas ao ouvir deles que um anjo de Deus os havia licenciado para saudar o novo monarca que tinha acabado de chegar ao mundo, ele desarmou o coração e permitiu que todos se aproximassem e o adorassem. Nem mesmo quando a noite findou, o brilho daquela magnífica estrela de Belém se consumiu. Era dia vinte e cinco do mês de dezembro, três mil setecentos e sessenta anos haviam se passado desde que Deus havia deixado o Céu para criar a Terra. * * * Já era manhã quando uma caravana de astrólogos vindos da Pérsia foi vista entrando nos limites de Jerusalém[22], o que chamou a atenção da guarda[23] do rei Herodes I[24], um edomita[25] e judeu convertido nomeado por Roma para impor suas leis no território palestino. — Magos em Jerusalém? — surpreendeu-se ao tomar ciência da nova. — Sim, majestade; vindos dos desertos do leste — assentiu o capitão da milícia. — Perguntamos quais seriam os negócios deles por aqui, e aquele que alegou se chamar Baltazar nos disse que há cerca de três meses eles acompanham uma estrela menor que busca alinhamento com outras duas maiores. — “Estrelas” — repetiu o regente, ao coçar as feridas que mantinha escondidas sob as vestes. — Correto, senhor. E ao que parece, eles falavam por enigmas, aludindo a astros que estranhamente chamavam de “pai” e “mãe”. — Certamente faziam referência a Júpiter e a Vênus — interferiu um dos adivinhos da corte, ao lembrar de um antigo presságio feito pelo profeta Isaías[26], o qual dava conta de que uma estrela — entre duas — anunciaria o nascimento do rei puro dos judeus, um imperador estranho à linhagem edomita que, envergando o sangue real de Davi, salvaria o cativo povo de Deus. — Sim, a tal profecia — bradou o monarca, visivelmente nervoso. — E, senhor... Causou-me espécie o fato de que eles foram uníssonos em dizer que aqui estavam para visitar um rei — afirmou o chefe da guarda mercenária. — “Um” rei ou “o” rei? — insistiu Herodes. — Meu... — gaguejou o oficial. — Segundo eles, o nobre a que aludiam estaria prestes a nascer. E em Belém — completou com latente desconforto. Herodes ficou aterrorizado, afinal tudo parecia se encaixar. Na sequência, ele deu ordens ao armígero: — Capitão Khamal, encontres esses magos e os espreites. E caso o tal “rei” seja identificado, mantém vigilância sobre ele e avisa-me imediatamente! — Será feito! — assentiu o miliciano, ao deixar o palácio-fortaleza. Khamal se imiscuiu na cidade a fim de conseguir informações sobre o destino dos três adivinhos e, ao preço de uma moeda aqui e outra acolá, soube que eles haviam saído da cidade logo após terem reabastecido a frota. — Eles seguiram o curso do pórtico — disse um cambista fazendo alusão à entrada da urbe. — E eu ouvi, de um dos servos da comitiva, que estariam a caminho de Belém. Seguindo a pista auferida, o vil capitão da guarda transpôs a Porta dos Jardins[27] a fim de tentar alcançar os seus alvos. Já era final de tarde, dentre o intervalo em que vira os magos pela manhã, cerca de seis ou sete horas já haviam se passado, talvez tempo suficiente para estarem bem longe dali. Tendo a noite finalmente caído, o agente real não se deu por vencido e, ao aportar numa região rochosa, já beirando a cidade de Belém, viu o comboio estacionado diante de uma gruta, onde uma mulher, ou melhor, uma menina, tinha uma criança recém-nascida nos braços. — Será esse o tal rei dos judeus? — pensou ironicamente ao ver os magos, iluminados por tochas, ofertarem presentes a ele. — Se for, o seu reinado está prestes a terminar — sussurrou, com um sorriso funesto no rosto. Tudo então se fechava. Bastaria uma tímida guarnição para colocar fim a todos os que lá estavam, inclusive os pomposos membros daquela intrusa frota persa. Como Jerusalém não estava muito distante, seria uma questão de horas para que tudo estivesse, por assim dizer, “definitivamente resolvido” em nome de Herodes I. O sinistro oficial, até então camuflado por trás de alguns arbustos, levantou-se para retornar ao palácio e executar o tramado, mas, ao se virar, deparou-se com uma presença quimérica, a qual, de pronto, o interpelou pelo nome. — Khamal? O espião sequer teve tempo hábil para tomar fôlego ou envergar armas, pois ao arregalar os olhos diante daquele ser, teve a cabeça desraigada do corpo, o qual, sem o suporte do sistema nervoso central, caiu instantaneamente inerte. Com a sua espada resplandecente segura na mão direita, a mesma arma que, dias antes, havia destroçado três violentadores que tencionavam atentar contra Maria, o Anjo Gabriel se mantinha firme em sua vigília e, mesmo não sendo um vingador[28], ele estava a agir como um. Na qualidade de mensageiro, ele não era, por assim dizer, “um anjo de armas”, mas quando necessário, as dominava como poucos. Que o dissessem os seus finados irmãos Belial e Belphegor — este, ex-líder da ordem dos principados — os quais foram mortos pelas suas mãos na Segunda Batalha Etérea que culminou com a queda de Lúcifer e um terço dos anjos que o seguiram, em revolta, quando do nascimento de Adão. Pelo visto, Herodes I não seria avisado. Mas, por prudência, caberia ao carteiro celeste acelerar a partida do casal e da criança daquelas bandas, afinal, o perigo ali lhes haveria de ser constante. Não demorou muito, e os três reis magos, igualmente preocupados, retomaram o caminho que lhes cabia; afinal, eles desconfiavam que Herodes tentaria interceptá-los, como de fato havia tentado. Tão logo José, Maria e Jesus se recolheram ao estábulo e dormiram, o velho foi, sem demora, visitado por um sono deveras agitado, e vendo-se perambulando perdido numa cidade onde as pessoas corriam desesperadas e sem rumo, sentiu um toque no seu ombro esquerdo. Pois sem virar o rosto, ouviu do misterioso interlocutor: — Um vento de morte se aproxima daqui, meu amigo. Portanto,toma a mulher e o menino e foge ainda hoje para o vale do Nilo[29]. Ao tentar identificar o autor do aviso, uma luz desmedida repercutiu fortemente sobre ele, fazendo com que acordasse de forma repentina. Assustada, Maria também despertou e foi, de pronto, alertada. — Mulher, eu creio que aquele santo anjo de Deus falou comigo novamente — asseverou, arfando. — Ele me disse que, onde estamos, corremos perigo; portanto, pega o menino, e vamos fugir. — Mas fugir para onde, José? — indagou ainda sonolenta. — Para longe, Maria... Para o Egito[30]! * * * Preocupado com a demora de Khamal, o Rei Herodes mandou alguns batedores atrás dele, tal não sendo a sua surpresa ao constatar que os mesmos, horas depois, retornaram munidos de notícias pouco alvissareiras. — Senhor, seguimos os rastros deixados pelo Capitão Khamal e o encontramos morto além dos muros da cidade, próximo ao antigo estábulo que antecede Belém. E o que é estranho, a cabeça dele foi extirpada do corpo, mas os seus pertences estavam intocados — lamentou um graduado. — Entretanto..., a arma usada para o feito... Confesso que jamais havia visto um corte dotado de tamanha precisão — ponderou confuso. — Assassinado por uma arma especial, quiçá “santa”? — interpelou o monarca. — Pois pelo que eu estou a perceber, algo de verdadeiramente perigoso repercute sobre nós... — ponderou, preocupado. — Ordens, senhor? — indagou um dos guardas. — Ordens... — repetiu. — Sim, eu as tenho. Essa tal criança já se revelou numa séria ameaça, e precisa ser exterminada o mais rápido possível. — Os soldados olharam uns para os outros como se já previssem o teor da determinação que estava por vir. — Pois hei de acabar com as esperanças desses agitadores de uma vez por todas. Escriba real! — bradou em cólera. — Que fique consignado que eu, o Rei Herodes I, imbuído do dever de manter segura a coroa da Judeia, sentencio de morte todos os recém-nascidos das cercanias, sejam eles do sexo que forem. Ídmas, o escrivão do palácio, anotou, trêmulo, o tal decreto, cuja carga de crueldade havia transposto todas as sandices já anteriormente encetadas pelo monarca, como, por exemplo, o assassinato da esposa e a degola de dois filhos seus com ela. Mas por serem mercenários, os soldados se entregavam por qualquer preço e, tendo Herodes lhes ofertado cinquenta denários[31] a mais pela atroz missão, eles deixaram o alcácer ávidos por sangue. Pois o cruento monarca, já muito doente e com várias gangrenas ocultas sob os trajes reais, haveria de pagar muito caro pela autoria daquelas mortes que, por obra dele, estavam prestes a acontecer. * * * O silêncio que pairava sobre a adormecida cidade de Jerusalém foi rompido pelo som de inúmeros cascos que se chocavam velozmente contra o chão. Relinchando agressivamente, os cavalos da milícia real transportavam os arautos da morte, cujas armas envergavam sede por sangue inocente, e foi então que a paz daqueles lares humildes foi de uma só feita rompida. Os soldados se puseram a cumprir a cruel sentença do rei e a matar todas as crianças de pouca idade, a maioria em seus berços ou nos braços das mães, cujo desespero as punha insanas. Os homens que tentavam opor resistência ao ato eram mortos de forma gratuita, tamanha a agressividade daquele vil exército que parecia ter saído do próprio Inferno. Ao término da chacina operada por Herodes I, a Judeia experimentou o mais atroz banho de sangue da sua história, cujas consequências, ao menos para o tirano, seriam graves, bem graves. * * * Jany-El era procurador do prefeito do Éden Espiritual, o Arcanjo Zuriel. Este, ante a inesperada chegada de centenas de almas vindas da região da Judeia, e não possuindo registros de batalhas ou ações dos vingadores por lá, surpreendeu-se sobremaneira e emprestou parte dos fatos ao seu interlocutor no Céu, no afã de auferir algum posicionamento superior a respeito. Após uma breve perquirição, Jany-El descobriu que a referida adversidade teria ocorrido em razão de uma investida ordenada pelo Rei Herodes I, o qual tencionava assassinar o futuro Messias, cujo avatar, naquela região da Terra, já era titulado pelo Arcanjo Miguel. Numa audiência com o Altíssimo, o representante do alcaide do novo paraíso ficou deveras apreensivo com a furiosa reação Dele: — Aquele tirano selvagem! Como ousou fazer o que fez? — bradou o Etéreo, fazendo o salão do trono tremer. — Pois é chegado o tempo de Herodes responder por todos os males que já causou, seja em obras ou mesmo em pensamentos. — Meu Senhor, o Prefeito Zuriel requer orientações sobre a grande quantidade de almas que aportou no Éden Espiritual sem se desligar da matéria, por isso eu tomei a cautela de vir consultá-Lo sobre o destino delas. — Que sigam na ala de transição curativa até segunda ordem. — Transmitirei o determinado, Senhor. E quanto ao tal humano; Herodes? — O seu destino já foi traçado. E pela morte das crianças eu decreto luto de dez anos terrenos até que a Judeia se limpe do sangue delas — asseverou. — E Jany-El, ao deixar-me, diz a Laoviah que eu quero vê-lo imediatamente. — Sim, Senhor — acatou dando meia volta. Ao ganhar a antecâmara, o arcanjo emprestou a recém-auferida deliberação ao dito ajudante de ordens da Guarda Negra, pouco mais que um meninote em aparência, que, de pronto, apresentou-se ao Elevado, e Dele ouviu: — Laoviah, despacha dois oficiais de justiça até a Câmara de Guf. Eles deverão dar ciência a Razyel que, em breve, lá irá aportar uma alma marcada, a qual deverá ser, sumariamente, levada ao furnorum[32], onde deverá permanecer cerrada e esquecida até o dia do julgamento final. — Como queira — assentiu o querubim, já sabedor de que aquele destino era apenas reservado aos humanos dotados de uma perversão tal, que sequer as frias celas da Tesouraria das Almas os admitia para uma pena pré-estabelecida. — E mais, filho, chama o capitão da Guarda aqui, eu tenho um encargo especial para ele. “Capitão Caliel”, pensou Laoviah, pávido. Pois diante daquela convocação, o trágico fim do Rei Herodes I, autor de tantos crimes e atos aberrantes, parecia estar definitiva e dolorosamente selado. * * * Satisfeito com o odioso massacre das crianças, o traiçoeiro regente dos judeus embebia-se com um vinho cuja cor escarlate remetia ao sangue que, por obra dele, havia jorrado naquelas bandas. Convicto de que, dentre os inúmeros assassinados, estava o anunciado redentor que lhe tomaria o trono, ele se deixou tomar pelos excessos e, após ter expulsado a corte para se revigorar — “O forte só é forte sozinho!”, berrava — Herodes I se esparramou no assento real e se rejubilou. — Malditas crianças — balbuciava em meio a um gole e outro da bebida. — Que morram todas! — finalizou, jogando um copo no meio do salão vazio. Mesmo estando entorpecido pela ação da bebida, ele percebeu, com certo espanto, que por trás das cortinas transparentes que cercavam a galeria real, pequenos rostos infantis começaram a brotar, logo sumindo quando eram diretamente encarados. Herodes se levantou sem muita firmeza e, buscando identificar o que enxergava por entre os véus, esboçou se aproximar. O vento então começou a erguê-los e misturá-los, revelando novamente, diversas faces de crianças, cujas aparências não denotavam ser tão diferentes daquelas que haviam sido executadas por ordem dele. E quanto mais o monarca se aproximava, mais elas se expunham e se escondiam, rindo como se zombassem do estado deplorável em que ele se encontrava. Seriam alucinações causadas pelo excesso do vinho? Pois de parcas, aquelas risadas se tornaram estridentes, generalizadas e, como numa desafinada sinfonia, invadiram a mente mórbida do rei. Já estando, o rei, naiminência de esmaecer, de repente, fez-se um silêncio abrupto, e aquele bando de crianças que o cercava simplesmente sumiu. — Eu devo estar ficando louco... — refletiu para si próprio, ao golpear as cortinas na tentativa de encontrar ao menos um daqueles espectros que pareciam assombrá-lo. — Louco! — completou escumando. Mas ao se virar para retornar ao trono, ele viu, estagnada diante de si, uma menina de bem pouca idade, a qual, demonstrando certa passividade, levantou o belo rosto devagar e, passando a rir copiosamente para ele, a pequenina se manteve com as mãos para trás e balançando o corpo, como se pedisse atenção pelos gracejos que fazia. Encolerizado, o maligno rei sacou um punhal que mantinha secretamente preso num bracelete e passou a cambalear na direção da menina, mas quando finalmente se achegou da tal criança, aquele riso pueril sumiu, dando lugar a uma expressão facial aterrorizante e digna de pavor. Assustado, ele caminhou para trás e deu às costas para aquela aparição, tal não sendo a sua surpresa ao lidar de frente com outras tantas crianças, cerca de dez ao total, os quais, envergando vestimentas negras com adornos dourados, tinham o semblante bem menos simpático do que o daquela. Vendo-se cercado, ele deixou a faca cair, momento no qual um dos pequenos presente, exatamente o primeiro que lhe havia chamado a atenção, fez surgir, do ar, uma foice de fogo que, de imediato, lhe transpassou a perna esquerda. Embora emitindo um urro lancinante, ninguém pareceu ouvi-lo. Ainda se equilibrando com latente dificuldade, viu outra daquelas criaturas se aproximar e lhe arrancar a perna direita, fazendo-o finalmente tombar ao chão. Como mariposas na luz, aquelas entidades avançaram com ferocidade sobre o corpo doente de Herodes I e, com suas lâminas fulgurantes, começaram a esquartejá-lo com uma violência incrível, fazendo com que, ao final da investida, apenas pedaços da carne apodrecida remanescessem espalhadas pelo salão. Após ter matado centenas de crianças inocentes, Deus usou as Suas — o implacável Capitão Caliel e mais dez pequenos camareiros da Guarda Negra — para desforrar àquelas, cujos espíritos acalentados e em recuperação já estavam em paz no Éden Espiritual. Tão logo concluíram a missão — para eles, algo similar a uma peraltice —, aqueles onze sanguinários querubins deixaram o palácio e ganharam as alturas com divisada rapidez, cortando a luz refletida na lua e sumindo sem deixar rastros no meio da escuridão que encobria a cidade de Jerusalém. Inesperadamente desperto por um terrível pesadelo, um dos filhos do finado, o príncipe Herodes Antipas, deixou o leito, assustado, e ganhou as galerias que davam acesso ao espaço do trono, pois algo parecia ter acontecido. Lá chegando, ele se deparou com os restos do que outrora havia sido o pai e, temeroso com a severidade de um inquérito romano a respeito, afinal aquela cena de morte beirava o surreal, ele e os demais irmãos decidiram cremar o que havia sobrado do rei e, em seguida, reportar a César Augusto que ele havia morrido em razão das graves doenças que o acometiam. Herodes I havia sido, enfim, destruído; fulminado em razão dos seus próprios pecados. E pelos crimes dele, os seus três filhos acabaram dividindo a coroa de Israel. O despótico Herodes Arquelau ficou com a Judeia, donde acabaria banido e substituído pelo político romano Copônio; Filipe, com a Traconítida; e Herodes Antipas, o mais astuto deles, com a Pereia e a Galileia, esta última, a nação onde Jesus, muito em breve, haveria de se fazer homem. Capítulo 2 Um guerreiro sem armas A NOTÍCIA DA AUSÊNCIA de Miguel correu depressa e, no Quartel General dos arcanjos, muitos ficaram apreensivos. Embora a dolorosa cerimônia de emasculação dos vigilantes[33] tivesse, de certa maneira, pacificado o Céu, era certo que alguns celestes desgostosos não teriam muito a perder num levante de menor escala; dentre os quais, o próprio anjo Azeyzel, havia muito, ávido por encontrar alguma falha na segurança da sua cela, ocupada desde que ele havia sido repatriado da Terra e preso por traição aos mandamentos do Eterno. Pois agora, vendo, diante de si, uma oportunidade de agir — o escrivão-real passando por um dos corredores do cárcere após findar o interrogatório de um detido — ele não se fez de rogado. — Salve, Metatron! — disse-lhe o prisioneiro. Ao dirigir o olhar para o local de onde vinha o brado, o dito arcanjo se deixou trair por um instante: — Azeyzel? — respondeu parando a marcha. — Pelo que percebo, não ficaste tão apático quanto os demais — completou em referência à euforia que a deposta potência ainda mantinha, mesmo após ter sido castrada em razão de ter bulido com as humanas num passado não tão recente. — A apatia nunca foi uma característica minha, caro irmão. Mas me diz, a quantas andam os vossos preciosos livros? — indagou em alusão aos seis cartapácios sobre a história do nascimento da humanidade que Metatron, havia muito, compilava por ordem de Miguel. — Escrevem-se sozinhos — retrucou secamente. — Isso é bom. Mas embora eu tenha dito muita coisa quando do meu primeiro interrogatório, existem alguns pontos de relevo que inicialmente omiti, mas que agora gostaria de compartilhar contigo. Obcecado pelo desejo de deixar a sua obra cada vez mais completa, Metatron resolveu dar-lhe atenção e se aproximou do alvéolo. — E por que desejas falar somente agora? — desconfiou. — Irmão, eu já não represento perigo algum — disse, mostrando-lhe as costas marcadas pelo ferro quente que lhe havia tolhido as asas. — Mas se, por acaso, eu conseguisse progredir para um regime mais brando, talvez eu pudesse ajudar-te em mais alguma coisa, além de dar melhor forma à tua preciosa escrita. — De fato, há muito que aí estás sem causar incidentes — assentiu. — Eu não posso comutar a tua pena, mas não vejo problemas em ter-te na biblioteca prestando pequenos serviços, afinal, tolhido, não tens como fugir. — Pois então, Metatron, mostra um pouco de piedade e me ajuda a sair temporariamente deste lugar, nem que seja para limpar as estantes da grande livraria — sugestionou com aparente humor. — No momento tenho outros afazeres, mas quem sabe eu peticione solicitando o que me pedes — esclareceu na sequência. A segregada potência agradeceu com um singelo movimento de cabeça e se deu, aparentemente, por satisfeita pela atenção recebida e, com um sorriso falso, viu o arcanjo se afastar e sumir nas austeras galerias. Azeyzel estava inquieto, pois mesmo depois de tanto tempo de prisão, ele ainda tinha a ex-companheira na mente, a inebriante Layla-Li[34]. E por conta disso, ele faria de tudo para tentar escapar do Céu e ir procurá-la, onde quer que a alma perdida dela, finda na época do dilúvio universal, estivesse. * * * Não fosse pela constante proteção do sempre presente Gabriel, certamente a família abençoada não teria vencido a perigosa marcha de mais de quatrocentos quilômetros até as fronteiras de Gazzah, vilarejo egípcio que, assim como os bairros hebreus de Matarieh e Heliópolis, lhes serviria de lar pelos dez anos seguinte, período necessário para que as bandas da Judeia se limpassem do sangue inocente que Herodes I havia derramado. Alguns anos após a morte da mítica rainha Cleópatra, o Egito passou ao jugo de Roma, e foi nessa realidade que José, Maria e o menino Jesus lá chegaram; exaustos, mas incólumes. Como se previa, as ruas estavam infestadas de soldados romanos pertencentes às Legiões lá estacionadas, os quais se encarregavam de policiar a cidade e pregar nas cruzes os insurgentes mais afoitos. Os centuriões que serviam no Egito eram deveras experientes, mas a grata maioria da soldadescaera recém-arregimentada, principalmente a destacada para as áreas hebreias, consideradas mais hostis. Assistido pela solidariedade dos seus compatriotas, José conseguiu, para si, um casebre humilde onde passou a oferecer serviços de carpinteiro, e Maria, de lavadeira. Tudo parecia conspirar para uma vida normal, sem quaisquer luxos ou maiores teres, até que Jesus, cujo brilho da alma era perceptível, finalmente começou a dar mostras de que era especial. Como de costume, a menina Maria, agora já contando com treze para quatorze anos de idade, percorria as vielas para entregar as roupas que lavava para as senhoras egípcias e, mesmo ainda bem pequeno, Jesus seguia sempre junto dela, preso a um conjunto de panos trançados que o deixavam seguro no colo da mãe. Sempre que podia, a virgem deixava alguma esmola para o velho Jendayi, um egípcio cego que costumava mendigar nas imediações da urbe. Embora maltratado e malcheiroso, isso não a impedia de se achegar e lhe entregar ao menos um pequeno pedaço de pão, ato que causava repulsa aos mais conservadores, mormente os que acreditavam na impureza dele em razão dos seus pecados pretéritos, o que, sob certo ponto de vista, não deixava de ser verdade. Mas enfim, o pobre nada mais era do que uma vítima do paganismo que o havia acometido no passado. — Muito obrigado, que os “deuses” te acompanhem — respondia mesmo sem poder enxergá-la. Pois naquele dia, ao se afastar do ancião com o filho no colo, Maria parou mais à frente para acomodar Jesus e o privou rapidamente de um arremedo de xale que lhe cobria a cabeça. O vento passou sorrateiro e levou aquela manta, fazendo com que Maria esboçasse reavê-la ainda no ar. Mas após dar alguns passos, ela percebeu que aquele pedaço de pano havia ganho velocidade e, logo adiante, impactado o rosto daquele pedinte. Ao se reaproximar constatou quando o dito mendigo sentiu o fragmento da veste cair sobre a sua face, o qual, ao ser retirado, revelou que as escaras que lhe vedavam os olhos haviam desaparecido. Assustada, Maria não teve coragem de permanecer ali por muito tempo, pois, ao observar o olhar limpo e marejado daquele velho a fitá-la com emoção, ficou atônita e se afastou, afinal, com a chegança dos curiosos, ela temeu pelo juízo que fizessem dela e do filho, a quem, em segredo, sabia ser o profetizado Messias. Ao retornar para casa, ela relatou o ocorrido ao esposo e, olhando para o menino ainda pequeno, ambos perceberam que a missão dele era verdadeiramente sagrada. Instado sobre como tudo se sucederia dali por diante, José respondeu: — Isso é apenas o começo, Maria. Apenas o começo. * * * A casa de Judah de Migdal, príncipe da província de Magdala, havia ganhado novo brilho com o nascimento, alguns dias antes, da pequena Mirian. Era ela, em segredo, a detentora da alma entregue aos cuidados de Gabriel na Câmara de Guf, o espírito liberto da primeira mulher moldada na Terra, Lilith, ex-esposa de Adão. Entretanto, doze anos antes, o soberano de Magdala já havia sido agraciado com outra filha, Martha, a qual, desprovida de beleza e contaminada pela inveja desde os tenros anos, jamais haveria de enxergar a nova irmã com bons olhos. Martha era cruel e moralmente distorcida, judiava de pequenos animais e, na mesma toada, dos próprios servos do pai, os quais destratava e desprezava. Pois Mirian haveria de ser o oposto dela, e quando os anos começaram a ser superados, ela passou a mostrar incrível familiaridade com as plantas e flores, sempre dispostas como enfeites nos seus longos cabelos negros. Ela também tinha por costume colocar frutas da própria mesa, numa bandeja, e distribuí-las entre os empregados da casa e, não raro, escapava do palácio e fazia o mesmo com os menos favorecidos. Certa feita, a sua perversa irmã queimou a mão de um dos servos de Judah e, mesmo ainda tendo cerca de sete anos de idade, Mirian fragmentou um galho de Aloe Vera[35] e besuntou a ferida, a qual, em poucos dias, regrediu e sumiu de maneira inacreditável. Entretanto, Mirian havia nascido com uma doença um tanto incompreendida naqueles dias, a epilepsia. Em razão disso, Martha via as não raras crises convulsivas da irmã como algo antinatural, talvez ligado ao mundo oculto, o que a mantinha longe dela. Mirian aparentava ter os olhos azuis perdidos e, mesmo cercada de riquezas, não se mostrava feliz com a abastada vida que levava, pois o seu coração, embora bom e caridoso, parecia vazio. E mesmo ainda criança, ela chamava a atenção de muitos reis que desejavam vê-la como a prometida dos seus filhos, o que incomodava, em muito, a sua desafortunada irmã. Mas Judah recusava todas as investidas, e de igual forma, os polpudos dotes, pois, no fundo, acreditava que os caminhos da filha menor seriam outros que não os de uma mera consorte passiva. E assim, lidando com os elementos da Terra, ela haveria de suplantar a infância, oportunidade em que a vida começaria a testá-la. Mirian de Magdala ainda não sabia, mas aquela seria a primeira e a última chance que Deus daria à sua alma, que havia muito tinha sido marcada, ainda no início dos tempos. * * * Enfim, passaram-se dez anos desde que a família sagrada havia fugido de Jerusalém após um aviso do anjo Gabriel. E nas bandas do Egito, o cenário atual retratava um grupo de crianças gazeteiras penduradas na fronde de um grande choupo-preto, onde uma delas, equilibrando-se no galho mais alto, flexionava um arco rudimentar que abrigava uma flecha cuja ponta metalizada refletia em razão da luz solar. O arqueiro, um pré-adolescente de tez bem morena e sobrancelhas grossas, mostrava particular intimidade com o artefato e, soltando confiantemente a seta nele posta, viu quando ela cortou em cheio uma das frondes pinadas do alvo; uma grande tamareira que já exagerava nos frutos. Tão logo um dos folíolos se espatifou no chão seco, os meninos e meninas correram, ariscos, para resgatá-lo, afinal aquelas tâmaras agridoces estavam lhes apetecendo os olhos e, agora ali dispostas, seriam devoradas sem qualquer modo ou cerimônia. Vendo os amigos satisfeitos, o tal “arqueiro” pôs a arma nas costas e desceu, com destreza, da árvore, não demorando muito a ser agraciado com um galho cheio de frutos suculentos, apenas capturados graças à sua ímpar habilidade com aquele instrumento impulsor manufaturado, dificilmente manejado por alguém que não um adulto. Mas enquanto os jovens rumavam para o vilarejo, eles se desconcertaram ao perceber que o velho pai de um deles, enfezado e à procura do filho conhecidamente travesso, os surpreendeu com os rostos ainda melados por tais frutas. Embora todos se pusessem a correr assustados, um dos garotos, exatamente o autor da dita façanha, ficou imóvel ao mirar o genitor diante de si. E ao ouvir o seu nome ser firmemente bradado, “Jesus!”, abaixou a cabeça e quedou-se silente. — Tu não deverias estar na escola comunal[36]? E quantas vezes eu já te disse que não te quero bulindo com armas? — bradou José, ao tomar-lhe o arco das mãos e parti-lo ao meio numa das pernas. — Mas, pai, dessa vez, a minha intenção era justa; eu só queria saciar a fome dos meus amigos... — A fome ou a gulodice? — indagou num tom espirituoso. — Pois tu devias usar as habilidades que tens para aperfeiçoar-te na leitura e ajudar-me no ofício, e não para exibir-te com peças que podem ferir ou até matar alguém — ponderou, preocupado. — Tens razão, peço-te desculpas. — Desculpas, desculpas... — repetiu José ao tomá-lo pelo braço. — Não sei se já percebeste, mas essa tem sido a tua expressão predileta nos últimos tempos, não é, Jesus?O rapazote assentiu calado e fechou o rosto. Embora fosse um tanto peralta, como, aliás, eram todos os meninos daquela idade, José acabou desarmando o coração, e não conseguiu continuar com a severidade daquela reprimenda. — Bem, vamos para casa, a tua mãe já estava a perguntar por ti. E sorte não ter sido ela a te encontrar, pois bem sabes que Maria é muito mais severa do que eu — disse o carpinteiro, sorrindo. Jesus era deveras apegado aos pais e, junto a José, auferia uma proteção ímpar. Não porque este — embora já tendo ultrapassado a casa dos sessenta anos de idade — ainda fosse um homem fisicamente forte, mas porque o amor e a dedicação que o mesmo e a mulher tinham para consigo suplantavam qualquer outro sentimento. Ao chegarem no portão do humilde casebre onde viviam, Jesus viu Maria, agora uma mulher de vinte e três anos, preparando a ceia. — Mãe! — bradou, festivo, ao entrar correndo no quintal. — Jesus! Onde tu estavas? Eu e teu pai já estávamos preocupados — disse ela, sempre atenta às traquinagens do filho. O rapaz diminuiu o passo e, de soslaio, encarou José. — Ele já estava a caminho de casa, eu não tive trabalho em encontrá-lo — esclareceu, piscando ao rebento. — Tu estás com o rosto todo lambuzado menino; vai te lavar — ordenou Maria, já o tomando pelos ombros. Jesus obedeceu e se debruçou num tanque de madeira, e a sua mãe, no afã de auxiliá-lo, o cercou pelas costas. — Ao menos deste graças pelas tâmaras que comeste? — disse ela, ao facilmente perceber a efetiva origem daquelas manchas. Envergonhado pela falta — “eu fui descoberto!” —, Jesus fechou os olhos e declamou: — “Bendito és tu, ó Deus, pelos frutos que criaste”. — Agora sim! Aliás, antes tarde do que nunca, não é, meu filho? — ponderou, ao mandá-lo se sentar à mesa. Percebendo que o sol já estava à pique, o menino fez menção de avançar sobre a ceia, afinal, ele tinha outros “planos” para aquela tarde. Mas, ao fazer isso, acabou novamente repreendido, desta vez pelo pai: — Não estás se esquecendo de nada, Jesus? Estagnando a mão sobre um pedaço de pão, o arteiro guri respondeu: — Mas, meu pai, eu acabei de lavar as mãos. Por que devo lavá-las novamente? — Porque é um costume do nosso povo que deves seguir. Aparentemente contrariado, Jesus verteu água por três vezes sobre cada uma das mãos e, após enxugá-las, abaixou a cabeça e repetiu: — “Venturoso é o Senhor, os mandamentos sagrados Dele vindos, e o pão que vem do trigo da terra” — rezou de forma automática e sem ainda aceitar a severidade de todas aquelas liturgias. José e Maria olharam, orgulhosos, para o filho e se puseram a cear, satisfeitos, não apenas pela boa saúde dele, mas pela sua inteligência e pelo acatamento — ainda que de certa forma forçado — das coisas sagradas. Mas Jesus ainda era um garoto e, como um, engoliu a refeição a fim de honrar um compromisso que tinha para logo mais. Assim, “inocentemente” ofertando-se para ir até a cidade entregar as roupas que a mãe havia lavado, ele, vez mais, desobedeceu a José e levou consigo um gládio de madeira que, algum tempo antes, havia cunhado à revelia do pai. Embora disposto a cumprir com a tarefa assumida, Jesus apenas omitiu o fato de que também iria encontrar um amigo um tanto inusitado, o que talvez não agradasse os seus pais. Sempre ativo e muito comunicativo, aliás, até por demais, Jesus interagia facilmente com qualquer pessoa, até mesmo com as consideradas inimigas dos judeus e, correndo pelas ruas da urbe egípcia, não demorou muito para que ele visualizasse uma guarnição de soldados romanos próxima a um poço d’água. E em meio a ela, um miliciano jovem e bem feito de rosto, mas com uma perceptível deficiência no olho esquerdo, a qual, mesmo assim, não lhe prejudicava a lida, principalmente num lugar distante de Roma. Jesus o fitou de longe e escondeu a trouxa de roupas atrás de alguns vasos de barro. O soldado o replicou com rigor e, deixando a companhia, premiu o seu pilo, a famigerada lança padrão da Legião Romana, e foi na direção do menino que, ao perceber a manobra, correu para dentro de um beco na tentativa de se esconder. O miliciano ganhou facilmente aquele espaço e, procurando pelo fugitivo, foi surpreendido com um forte golpe dado na sua panturrilha, que o fez vergar o corpo. — Ora, seu judeuzinho danado, venha até aqui e eu te darei uma lição! — bradou aquele soldado com a face ruborizada. — Se és tão bom com essa arma; roga a Marte[37] e vem pegar-me! — provocou o garoto ao, vez mais, investir contra ele com aquele gládio de madeira. Com o cabo da sua lança, a qual era de verdade, o armígero passou a obstar os rápidos golpes efetuados contra si pelo menino. De fato, Jesus demonstrava uma habilidade ímpar com a “espada” e, quando a usava, mesmo que brincando, parecia incorporar o grande guerreiro celestial que ele, em verdade, era. O instinto de combate lhe surgia com frequência, mormente quando cunhava arcos, flechas, floretes ou fingia ser o comandante de um exército imaginário com as demais crianças que o seguiam. José o repreendia sempre, mas o menino, do mesmo jeito que apresentava incrível facilidade em decorar as leis mosaicas, parecia ter verdadeira fascinação pelas guerras fantasiosas que vivenciava com os amigos. Pois aquele jovem soldado romano, chamado Quiricus Longinus, havia conhecido Jesus na praça da cidade e, tendo crescido numa família na qual, até certa idade, havia cuidado dos irmãos menores, “adotou” o pequeno como amigo. E foi pensando na família que havia ficado em Jerusalém, que o legionário perdeu momentaneamente a atenção e acabou tendo o equilíbrio das pernas comprometido por astuta manobra do garoto, caindo no chão sob os brados de êxito dele: “Marte caiu; marte caiu!”. O soldado então se “rendeu” ao vencedor e sorriu ao ver a satisfação no rosto do menino, de quem parecia muito gostar. — Meu jovem amigo, a cada dia que passa, a tua habilidade bélica só aumenta! — disse, suplantado. — E cá estou a temer pelo meu futuro; pois, caso lideres um exército com a mesma força que a tua, serás capaz de derrubar César! — riu. Jesus processou aquele comentário visivelmente zombeteiro e, por um instante, ficou desconcertado, como se estivesse prevendo que, num futuro próximo, ele, de fato, lideraria o povo num levante moral contra o império romano, o qual mudaria o rumo da história do mundo. — Achas mesmo que, ao invés de carpinteiro, eu seria um bom soldado? — Já o és, jovem Jesus! Agora, a ajuda-me a levantar. Afinal, não condiz com um legionário romano ficar à mercê de um pirralho assim como tu! — Percebendo que o garoto ficou ressabiado, ele continuou. — Algo te incomoda? — Sabe, amigo Longinus, um dia eu haverei de ser um grande soldado! — disse quebrando o silêncio. — Só não sei ao certo quais armas usar... — completou, fazendo pouco daquele arremedo de espada que tinha em mãos. — Pois saibas que um bom soldado é, antes de tudo, um bom seguidor de ordens. Portanto, elege o teu comandante e faz o que ele disser, somente assim serás um bom soldado! E enquanto esse dia não chega, cumpra com as tuas tarefas, pois o teu pai pode não gostar dessa beligerância toda que carregas dentro de ti. — Meu Pai... — respondeu, olhando para o alto. — Um dia Ele terá muito orgulho de mim, pois foi para cumprir com a lida Dele que eu nasci. — O que disseste, menino? — Nada... — desconversou, voltando a si. — E tens mesmo razão, é melhor eu correr, pois se José desconfiar que saí de casa com esta espada que fiz, certamente terei problemas. — Bem, até breve, então. E não te esqueças do que eu disse! — pontuou Longinus ao se despedir. E láse foi Jesus; tomou a trouxa de roupas que havia deixado nas proximidades e, para a sua sorte, conseguiu entregá-las ainda intactas. A caminho de casa, ele novamente envergou a sua “arma” de brinquedo e se pôs a manuseá-la em instinto, golpeando o ar num pontuado balé bélico, similar àqueles originalmente aprendidos pelos arcanjos-cadetes em Vigilum, no alto do Céu: “Marcha, afundo; estocada... Marcha, afundo, estocada!”, repetia, sem sequer entender o sentido daquelas palavras. Mas do mesmo jeito que ele tinha as suas tarefas, José também tinha as dele, e foi ainda na estrada, que o velho, de longe, viu o filho “bailando” e munido daquele objeto que o havia proibido de bulir. De manobra em manobra, Jesus se viu diante do pai e, não tendo mais como obstar a justa severidade dele, acabou voltando para casa com as nádegas um tanto quentes, pois bastaram duas ou três lambadas com aquela “espada” para que ele se convencesse de que as armas que deveria usar dali por diante deveriam ser outras. A partir daquele dia, Jesus decidiu tentar controlar o seu temperamento ousado e, pensando na conversa que teve com o romano Longinus, imaginou como seria se tornar um guerreiro; um guerreiro sem armas. * * * Recém-saído do palácio do Eterno, o escriba-real tinha acabado de, lá lavrar, uma importante certidão na qual Maria havia sido agraciada com o título celeste de “mãe dos homens”, comenda outrora pertencente a Eva, de quem ela diretamente descendia. A morte trágica das crianças pelas mãos de Herodes I havia atingido a mãe de Jesus em demasia e, pela força das suas orações, Deus a fez aceitar o encargo e acatar os, por vezes incompreendidos, desígnios do destino. E no caminho de volta ao Quartel-General, onde o documento seria cerrado com honras, o arcanjo foi interceptado por um mensageiro que lhe reportou que dois arcontes[38] queriam vê-lo, afinal, examinando uma petição por ele outrora protocolada, a qual versava sobre a progressão de regime de Azeyzel, eles estavam prestes a emitir um veredito. A sentença original, outrora dada ao vigilante, era corporal e constritiva, o que não significava que o preso, conforme o seu comportamento carcerário, não pudesse ter certas regalias, como a de, por exemplo, trabalhar nas áreas internas do quartel. A liberdade plena estava fora de questão; apenas Deus poderia dá-la, mas os delegados do Senhor tinham o múnus de analisar pedidos como aquele, os quais eram impetrados pelos procuradores celestes em favor dos condenados. E já estando diante do escrivão-real, um dos famosos arcontes ponderou: — Metatron, eu não vejo no que um anjo sem asas lhe possa ser útil. — Ele carrega informações importantes, Daurah — respondeu ao interlocutor. — Muitas delas, preciosas para os meus compêndios que ainda então sendo escritos, e por ordem expressa do nosso Marechal Miguel, registre- se — retrucou o escriba. Haudax, que havia muito se ocupava de interrogar alguns espíritos desencarnados que chegavam ao Guf, olhou para o seu irmão de armas e resolveu assentir, dando a entender que não se opunha ao pleito, desde que a permanência de Azeyzel ficasse limitada a pequenos serviços, como no átrio da biblioteca. — Bem, a tua petição foi deferida... Soldado! — bradou Daurah ao ordenança. — Traz o prisioneiro para a audiência admonitória, a fim de que ele tome ciência das condições do novo regime — assentou ao lançar uma chancela no documento. Azeyzel, havia muito trancafiado numa cela, estava prestes a dar um passo perigoso. Os seus demais irmãos presos estavam mentalmente mortos, dentre os quais, Semyaza[39] e o belo Samael[40], mas ele, não se sabe como, havia conseguido se manter incólume ao pesadelo da pós-emasculação. O que ocorreria dali por diante, graças a um ato de altruísmo de Metatron, mudaria efetivamente a vida de muitos, fossem eles anjos ou mesmo humanos. * * * Maria estranhou o fato de que, após chegar em casa, Jesus pôs-se quieto na oficina do pai. Mas ao vê-lo apalpar o próprio assento, logo desconfiou que ele havia aprontado outra das suas. Ela, por vezes, lidava com um estranho conflito sobre o filho, pois como poderia o Messias, o legítimo herdeiro do trono de Davi, ser tão traquinas? Mas tencionando novamente orientá-lo, resolveu ter com ele. — Jesus? — Sim, mãe — respondeu, surpreso, e tentando ocultar o incômodo. Ela se achegou e disse: — Eu estava aqui a observar-te... E só agora me dei conta de que, com a idade que tens hoje, eu já estava prestes a receber-te de Deus — disse ao, carinhosamente, abraçá-lo. — E o que isso significa? — indagou, curioso. — Que tu já és um rapaz crescido, tem quase onze anos de idade; por isso, precisas ser mais obediente e mais dado às coisas de Deus. — Eu sei. Perdoa-me se dou tantos dissabores a ti e a José. — Não foi isso que eu quis dizer — ponderou. — És inteligente e muito habilidoso, no entanto, necessitas ser menos menino e mais homem. Jesus abaixou a cabeça, pois se sentia culpado. — Sabe, mãe... — respondeu, cabisbaixo. — Um dia eu serei um soldado muito poderoso, o maior que já existiu, e eu vou dar a minha vida para que as pessoas não precisem mais lutar entre si. — Esse teu espírito beligerante às vezes me assusta, filho — ponderou, agora preocupada. — Eu ainda não sei de onde vem tanta disposição para bulir com espadas e sonhar com guerras e exércitos, mas deves entender, de uma vez por todas, que a arma mais poderosa que um homem pode ter é o conhecimento da palavra de Deus, que, se bem empregado, pode suplantar qualquer obstáculo. Nesse mesmo instante, José ingressou na oficina e surpreendeu a esposa e Jesus conversando. — Hum... — murmurou satisfeito. — Eu espero que estejas ouvindo os conselhos de tua mãe — disse, ao lavar as mãos numa tina. — Sim, está — respondeu Maria. — E ele agora haverá de focar os seus talentos de outra forma. Não é, filho? O garoto concordou e sorriu ao pai, o qual, sem demora, o acolheu num abraço e arrematou: — Tu tens um futuro próspero, Jesus. Por isso, concentra-te em Deus e luta, sim, a tua guerra, mas com armas de fé que libertem o nosso povo do jugo daqueles que ofendem ao Senhor e ousam se arvorar Nele! — apelou com seriedade. Com o cenário já apaziguado, os três foram cear como de costume e, por volta das nove horas da noite, recolheram-se para o repouso. Entretanto, assim que a madrugada chegou, José ouviu um barulho incomum vindo dos fundos da casa. Atraído pela luz que lá emergia, ele se levantou sem chamar a atenção de Maria e do filho e, ao ganhar a porta dos fundos, foi surpreendido por um velho conhecido de outrora. — Há quanto tempo, meu amigo! — disse o anjo Gabriel, ao devolver, à mesa da oficina, uma ferramenta manufaturada que examinava. — Tu! – respondeu José, surpreso e em voz baixa. — Bem, se vieste até aqui, creio que teremos novas — ponderou, arisco. — De fato. Dez anos já se passaram desde que eu vos alertei sobre os perigos que o menino então corria, e dez anos foram necessários para que o banho de sangue que manchou a Judeia se esvaísse. — Passivo, o carpinteiro ouvia a tudo atento. — É chegada a hora de ficares novamente junto dos teus outros filhos e, mais ainda, voltar com a tua nova família para Nazaré. E acalenta-te, pois Deus estará convosco na viagem de volta. Ao perceber que o mensageiro esboçava ir embora, José o interpelou: — Espere, senhor! E quanto ao meu filho? Diga-me se, acaso, eu ou a mãe erramos de alguma forma. Refiro-me a essa inclinação dele por lutas e batalhas. Pois, afinal, Jesus não haveria de ser um mensageiro da paz? Mesmo já estando de costas, Gabriel estacionou o passo e sorriu com o canto da boca e, voltando a metade do rosto a José, esclareceu: —Jesus vem de uma boa forja — disse, referindo-se subliminarmente a Miguel. — E tranquiliza-te; no momento certo, ele mudará a estratégia. — Felicito-me ao saber! Mas, senhor... — insistiu —, permita-me fazer uma última pergunta. Eu ainda o verei novamente? Ainda meio oculto, o anjo-mor lhe respondeu: — Sim. Mas neste plano, apenas por mais uma vez. Abrindo as grandes asas, o príncipe saltou do chão e ganhou o firmamento numa velocidade similar à da luz. Vencida aquela etapa preliminar, o menino Jesus finalmente começaria a se transformar num homem de verdade. * * * Munida dos poucos pertences, a sacra família ensaiou uma partida repentina já ao nascer do dia, sendo que Jesus sequer teve tempo de se despedir dos amigos que tanto prezava. Mas ao aportarem na saída da cidade, José se distraiu ao falar com o filho e, sem querer, esbarrou no cavalo de um dos soldados que lá dava guarda. Irritado, o romano percebeu e se voltou, agressivo, para ele, tencionando agredi-lo com uma vara. Pois antes que o instrumento pudesse atingir José, um outro militar obstou-lhe o braço e o segurou com força. — Não tens vergonha de bater num velho, Cartaphilus? Embora conhecido pela exacerbada rudeza, aquele áspero legionário não teve como suplantar a intervenção, afinal, o soldado que o havia contido — Longinus — era mais forte e respeitado entre os demais. Mesmo visivelmente contrariado, Cartaphilus recolheu a sua fúria e os deixou ali: “Maldito amigo dos judeus...”, balbuciou à distância. Ao ver Jesus acuado, o bom soldado o interpelou: — E então, meu amigo. Estás de partida? O menino deixou a guarida do pai e correu na direção do militar, o qual se agachou para melhor recepcioná-lo. — Eu não tive tempo de me despedir de ninguém; tão pouco de ti... — respondeu, entristecido. — Jesus, a nossa vida nos leva a plagas distantes, para lá e para cá; mas as boas amizades, estas sim, são para sempre — pontuou Longinus, ao devolvê-lo à cautela dos pais. — Pois segue em paz, meu amigo, e que, um dia, o teu “exército” jamais colida com o meu — ponderou, aparentemente emocionado. E ao ver Jesus se afastar, Longinus levantou a lança e bradou com emoção: — Marte caiu! José agradeceu o soldado com um movimento positivo de cabeça e, retomando o filho pelas mãos, pôs-se, finalmente, a caminho de Nazaré, província onde tudo havia começado. No caminho, reminiscências do que haviam vivido até então, desde a noite em que Gabriel lhe havia tirado as dúvidas sobre a inusitada gravidez de Maria, até a última e ainda recente aparição do grão mensageiro celeste. José preparou o filho revelando a ele que tinha seis irmãos por parte de pai, além de uma grande família, da qual estavam, havia muito, apartados. Jesus ouvia a tudo com atenção e, convicto de que seria outro dali por diante, procurou se portar de maneira séria e receptiva. Após alguns rigores, mas sem quaisquer adversidades, a família aportou na região agora gerida pelo outrora príncipe, Herodes Antipas e, reconhecendo as vias que pouco haviam mudado, José e os seus chegaram no vilarejo onde ele e Cleófas haviam estabelecido o meio laboral de sustento. Ao rever o irmão, envelhecido mas ainda acompanhado da esposa Maria. — José? — surpreendeu-se. — José! — disse Cleófas, ao largar um feixe de madeira que tinha em mãos e partir, feliz, na direção do irmão. Ambos então se abraçaram e, suplantando uma distância de mais de dez anos, encontraram real acalento nos braços um do outro. Vagarosamente, os demais filhos homens de José, trabalhadores artesanais como o velho pai, logo miraram a cena e foram se aproximando, deixando-se entregar pela mesma emoção que tinha acabado de tomar conta do tio. Jesus ficou um pouco arisco, mas ante a felicidade de José, logo se aproximou da nova família e experimentou uma boa recepção, mormente a do meio-irmão Tiago, o qual não era tão mais velho que ele. Tanto Lígia quanto Sara já haviam contraído núpcias e, lembrando-se do pouco, mas proveitoso tempo que haviam passado sob os cuidados de Maria, a receberam como se, apesar da pouca idade, mãe delas fosse. — Seja bem-vindo de volta, meu pai! — disse Judas, primogênito de José. — E esse, então, é meu irmão caçula? — perguntou ele, ao tomar Jesus nos braços. O jovenzinho logo se afeiçoou dos irmãos, e tudo então parecia conspirar para a edificação de um clã próspero e feliz. Os dias se passaram, e a nova da volta de José se espalhou, sendo providenciado um pequeno festejo que atraiu diversos parentes vindos de Naím[41] e das montanhas de Judá. E tal não foi a surpresa de Maria, ao reencontrar a prima Isabel, a qual, embora viúva de Zacarias havia já alguns anos, trazia, consigo, o filho, apenas alguns meses mais velho que Jesus. — Isabel! Rejubilo-me em saber que estás bem e com saúde! — disse a virgem, ao achar acalento nos braços da prima. — Pois eu é que fico feliz em poder afagar a escolhida de Deus! — respondeu num tom de reverência. — E veja, menina Maria, este é o meu filho, João, gestado na mesma época da vinda do teu — concluiu, apontando o garoto. Maria chamou Jesus para apresentá-lo ao primo. Pois ao vê-lo diante de si, João, que desde cedo era sensitivo, deu, involuntariamente, um passo para trás, pois, no recém-chegado, notou uma estranha e poderosa força espiritual. — Nós ficaremos alguns dias hospedados em Nazaré, espero que os nossos filhos se aproximem e fortaleçam laços — ponderou Isabel. Percebendo que João havia ficado ressabiado, Jesus lhe estendeu a mão como se o convidasse a acompanhá-lo. O garoto, então, desfez a cisma e se pôs a seguir o primo, que, havia pouco, ainda se divertia com Tiago. Embora fossem estranhos um ao outro, era certo que ambos tinham uma forte ligação antes mesmo de nascerem, afinal, o Anjo Gabriel havia anunciado a vinda deles em espaços distintos de tempo — seis meses —, primeiramente, a Zacarias e, na sequência, a Maria. O filho de Deus ainda não sabia ao certo, mas a sua ordem de missão na Terra seria auferida pelas mãos daquele seu primo, o qual, anos mais tarde, seria conhecido não apenas pelo simplório prenome João, mas como João, o “Batista” do mítico Rio Jordão[42]. Pois aqueles dias em que os dois primos passaram juntos foram deveras proveitosos. Embora mediamente escolado — naquele tempo, as lições eram auferidas nas famílias e nos ajuntamentos comunais e religiosos —, Jesus também aprendeu muito com João, cuja base do ensino era rígida e advinda da sinagoga onde o seu finado pai, o sacerdote Zacarias, havia tido importante destaque. Jesus declinava com facilidade as citações de Isaías; ao passo que João tinha predileção pelas de Elias, de quem, futuramente, viria a copiar os trejeitos de rezar e o modo de se vestir. Ambos desenvolveram profícuo laço de irmandade, mas João só atestou a realeza de Jesus quando este, correndo com o primo numa das vielas de Nazaré, parou repentinamente junto a um casebre para interpelar um menino aleijado que, avesso à folia das demais crianças, apenas as observava pela janela da sua humilde morada e, ao lado dele, jazia, havia muito, uma gaiola malfeita e vazia. Ao ver Jesus e João na rua, o garoto se mostrou um tanto arredio, afinal, os anos de solidão o haviam tornado amargo, mormente diante daqueles em que enxergava algo que parecia não possuir. — O que fazes aí sozinho? — indagou-lhe Jesus. — O menino não respondeu de pronto e, segurando algumas pequenas pedras nas mãos, continuou a olhá-los sem muita simpatia. Percebendo que ele não mexia o corpo da cintura para baixo, o filho de Maria insistiu. — Por que não vens aqui fora brincar conosco? Irritado diante daquela indagação, o meninote disparou ríspido: — E por acaso não percebes queeu não posso andar? Jesus o fitou silente e se aproximou. E, achegando-se da janela, envolveu as mãos cerradas do menino e disse a ele: — Tu não andas porque não quer. Sentido uma demasiada energia vinda do interlocutor, o paralítico logo repuxou as suas mãos e, ao abri-las, viu quando aquelas pedras se transformaram em pequenas rolinhas que voaram para a tal gaiola vazia e, após emitirem alguns arrulhos, saltaram para fora e sumiram no ar. Estupefato, ele arregalou os olhos e encarou Jesus, que o reinquiriu: — Como te chamas? — Ba... Baruch... — respondeu, gaguejando. — Baruch. O teu nome significa bênção. E se agora acreditas que podes conseguir uma, levanta-te e vem aqui fora conosco. Emprestando guarida às palavras que havia acabado de ouvir, o garoto apoiou os braços na cadeira e finalmente se ergueu. — Vês? — indagou Jesus. — O teu único mal se chamava falta de fé. — Mas... Mas como fizeste isso? — titubeou Baruch. — Eu nada fiz... — Sorriu-lhe, o ungido. — Quem o fez foste tu mesmo — concluiu, ao apontar-lhe o dedo. João ficou boquiaberto e, no primo, viu alguém verdadeiramente diferenciado. Os aldeões ficaram maravilhados com a imprevista sorte do pequeno Baruch, o qual, agradecido a Jesus por ter perdido a carapaça de dor que lhe cobria, jamais revelou algo que, ante a ignorância de muitos, pudesse comprometer o amigo. Tais atos, por alguns chamados de milagres, não eram novidade na vida do filho de José e Maria, que desde os tenros anos, já os realizava sob a égide divina, e nos anos futuros, muitos, muitos outros ainda estariam por vir. * * * Cerca de mil e trezentos anos antes do dia em que Jesus completou doze anos de idade, Deus, através do profeta Moisés, libertou o povo hebreu do cativeiro no Egito, terra cuja base populacional advinha do clã de Cam, o filho expulso de Noé. Desde então, os descendentes daquele tronco passaram a comemorar tal evento numa festa chamada Páscoa, solenidade religiosa que culminava com uma peregrinação em massa para o Templo de Jerusalém, o qual era fincado sobre o Monte Moriá[43], bem a leste da cidade santa. Fiel e agora possuindo melhores condições financeiras, José arregimentou a família e partiu de Nazaré com outros peregrinos, a fim de acamparem nas redondezas da urbe e se prepararem para o ritual de sacrifícios que, segundo a lei, deveriam todos oferecer ao Senhor. De toda as viagens feitas por Jesus, aquela foi a menos extenuante, haja vista a companhia das demais crianças da caravana, que se divertiam durante o trajeto e pouco sentiam os rigores da peregrinação. Durante o longo caminho, ele se lembrou da infância no Egito e de quando tomava a liderança dos demais amigos, sendo que, nessa nova oportunidade, parecia repetir aquela mesmíssima postura. Após chegarem e edificarem as suas tendas, os aldeões de Nazaré rumavam para Jerusalém no intuito de trocar os seus dinheiros pelo shekel hebraico, única moeda aceita no Templo e que se prestava a comprar um animal para o sacrifício sagrado. Aliás, os sacerdotes do Sinédrio[44] se fartavam durante essa época do ano, graças ao lucro elevado que tinham em razão da chegada em massa dos fiéis, mostrando que a fé em Deus, ao menos para eles, tinha um preço bem alto. Jesus, por sua vez, ficou impressionado com as altas muralhas da cidade e a grande presença de soldados romanos, o que o fez se lembrar do legionário Longinus, a quem parecia instintivamente procurar em meio àquela agitada multidão. Por um instante, o menino perdeu a visão em meio aos bois, ovelhas e carneiros que lá estavam, afinal, o sacrifício os aguardava pelas mãos dos sacerdotes, os quais, alegando a descendência de Aarão[45], usavam vestes brancas e se responsabilizavam pelos ritos diários do Templo. Mas Jesus não via aquela estranha liturgia com tanta simpatia. Não com relação à simbologia dela, mas sim, com referência ao abate conciso dos animais, pelos quais ele nutria especial afeição. E após observar, contrariado, um dos sacerdotes degolar um ovino não muito gordo que coube à sua família, ele acompanhou, à distância, a queima das entranhas dele nos grandes chifres de bronze do altar, afinal, a tradição assim o exigia. O cheiro da carnificina era insuportável, e sequer o incenso e a mirra com canela esbraseados eram capazes de minimizá-lo. Tão logo o tal rito se findou, o restante do corpo do animal — desprezado pelos sacerdotes diante da pouca monta — foi levado de volta ao acampamento dos aldeões de Nazaré para, juntamente aos outros trazidos pelas demais famílias, ser assado e consumido numa comemoração, pois o início da jornada de retorno à cidade só haveria de ocorrer na manhã seguinte. Quanto à pele dos bichos, mormente a dos cordeiros, ficavam em poder dos sacrificantes, que teriam um bom lucro na revenda. Como visto, desde então já se usava o santo nome de Deus para o patrocínio de privilégios pessoais sujos, algo que, no futuro, o próprio Jesus revelaria crassa ojeriza. Tendo em vista a grandeza do comboio, os segmentos dele — jovens e adultos — eram divididos, e as famílias não viajavam unidas, afinal, os mais moços aproveitavam o evento para adquirir maior responsabilidade. E sendo Jesus um pré-adolescente, os seus pais não tiveram como se opor ao costume. Mas no fim daquela mesma madrugada, após o banquete festivo, o menino de Nazaré despertou antes de o sol nascer e, sem dar parte a ninguém, retornou à cidade e ficou nos portões do Templo aguardando o momento certo para poder entrar, pois parecia ter sido, para lá, levado por um magnetismo involuntário, o qual nem ele sabia ao certo explicar. E o calor do dia então adveio, e os peregrinos finalmente partiram. Mas tal não foi a surpresa de José e Maria ao, na primeira parada da caravana, já próximo ao cair da noite, procurarem o filho junto à ala dos menores e não o encontrarem. Embora conhecidamente peralta, Jesus nunca lhes havia saído, efetivamente, das vistas, pois mesmo que desse as suas costumeiras escapadelas com os amigos, ele jamais se apartava daquela forma. Seus pais ficaram deveras angustiados e, em desespero, regressaram a Jerusalém a fim de tentar encontrá-lo incólume, ainda que pela estrada. Finda a parte de um dia de viagem pautado pela tristeza no coração, eles chegaram na cidade e, após procurá-lo, sem sucesso, nos poucos acampamentos que ainda a rodeavam, o casal ingressou na urbe para continuar a lida. A virgem estava desconsolada; recusava-se até mesmo a beber água, afinal, que fim teria tido aquele que havia sido profetizado como Messias? Pois não tão longe dali, várias plateias haviam sido formadas diante dos escribas e dos mestres da Lei, os quais, ao longo do dia, se faziam circundar por dezenas de jovens ávidos em aprendê-la. Numa delas, um dos doutores fazia alusão a Samuel, o profeta que havia ungido os reis Saul[46] e Davi e, conforme as escrituras sagradas, citava um trecho de Natan[47]. — “E disse o grande juiz, que o Senhor Deus levantaria um descendente de Davi que estabeleceria o reino dos céus na Terra...”. Os doutos se puseram a discutir a máxima entre si, ponderando que o referido líder israelita talvez estivesse aludindo ao filho de Davi e Betsabá[48], o notável Rei Salomão. Mas de forma inusitada, um dos jovens que ali estava deu um passo à frente e, mostrando reverência aos sábios, ousou tomar-lhes a palavra. — Rabino, se me permite, eu creio que o profeta Natan não fazia referência ao terceiro rei de Israel. Os demais, tantos os jovens quanto os adultos, mostraram-se surpresos com aquela intervenção. — E a quem então achas que oproclamador fazia alusão? — indagou um dos mestres ali presentes. — Certamente ao rei ungido que Deus fez referência ao seu primeiro filho... — respondeu, de pronto, o menino. — “Primeiro filho?” — replicou o idoso. — Sim. Pois disse o Senhor, ao primogênito Adão, que orasse até que o redentor surgisse de sua casa e o salvasse. E mais... que, da descendência dele, seriam benditas todas as famílias da Terra. — Falas do Messias que trará a salvação ao povo de Israel, menino? — Eu falo daquele que nos exporá a um reino sem fronteiras; a um reino de amor que haverá de permear o coração de todos. Pois o verdadeiro eleito haverá de ser o anjo do pacto, o filho do fogo sagrado que trará a derradeira salvação aos filhos do homem — pontuou, efusivo. — E quando ele haverá de chegar? — perguntou um deles. — Rabi, ao que sinto, ele já está entre nós... — Pois então crês que o ungido já é nascido e nos libertará do látego romano? — insistiu o curioso letrado. — Os romanos são conquistadores, mas também são homens. E não apenas os homens de Deus serão libertos, mas também os que se apartaram Dele e precisam retornar ao Seu reino. — E como achas que se entra nesse reino? — questionou um espectador. — Entra-se nele ouvindo o interior da própria alma, reparando faltas simples e seguindo o lado certo; valorizando e respeitando o espírito, equilibrando as falhas e preservando o santuário da vida. Entrar no reino de Deus é considerar o silêncio e ouvir antes de falar, pois aquele que grita não consegue ouvir o que o seu “eu” tem a lhe dizer. Boquiabertos, os escribas ficaram impressionados com a sabedoria daquele meninote e encerraram a leitura, oportunidade em que, guiada pelo amor que lhe trasbordava o coração, Maria foi atraída para as colunas do Templo e, ao lado do esposo, viu quando os demais se achegavam daquele garoto — sim, Jesus, o seu rebento fugido — cuja aura, ao menos para ela, resplandecia naquele ambiente. — Jesus; filho! — gritou emocionada, ao correr na direção dele e abraçá- lo com os olhos encharcados. — Nós estávamos desesperados atrás de ti! Pois o menino, que naqueles dias já possuía um pouco menos do tamanho da mãe, olhou-a e respondeu: — Mãe, desculpa por ter atormentado o teu coração; mas se fiz o que fiz, agi apenas no dever que carrego em obedecer ao meu Pai. — Pois eu não me lembro de ter-te mandado retornar ao Templo, Jesus! — pontuou José. — E mais, sem avisar-nos! — concluiu, visivelmente nervoso. — Perdão, senhor, mas eu estava fazendo alusão àquele que, antes de ti, é o Pai do primeiro homem e também o Pai de todos nós. Sabedores dos desígnios primários dele, José e Maria assentiram e não mais o repreenderam, afinal, ao que tudo indicava, Jesus estava despertando a consciência para a missão que, dentro em breve, ele haveria de iniciar no mundo. * * * Pois o inexpugnável arco do tempo girou e se estagnou dez anos depois daquela Páscoa, e ele parou no exato dia em que José contava com setenta e sete anos; e Jesus, um homem feito, vinte e dois. Embora velho, José ainda guardava a aparência da média idade e, à revelia da família, mantinha em segredo, uma artrite degenerativa contra a qual lutava havia alguns anos. O valoroso homem sempre foi um trabalhador braçal e, nessa qualidade, acabou tendo as juntas comprometidas, mas por ser um brigador nato, recusava-se a se entregar. Naquela oportunidade, Jesus havia saído com os seus irmãos e o tio Cleófas para entregar alguns bancos no espaço que servia como sinagoga na cidade e, já sendo final de tarde, José se sentiu um tanto indisposto e foi se deitar mais cedo. Maria, ao seu turno, estava na morada da enteada Sara, pois esta havia dado à luz havia alguns dias, e a imaculada a assistia e auxiliava. Tão logo encontrou encosto para a sua cabeça, José se sentiu tonto e notou um brilho invulgar diante de si, o mesmo que, havia muitos anos, lhe havia surpreendido aos pés dos montes de Nazaré e na sua casa no Egito. E tal não foi sua surpresa ao perceber que, à sua frente, estava o mesmo anjo que lhe havia orientado, limpado a mente e salvado a vida numa estrada rumo a Belém. — Se eu bem me recordo, disseste que nos veríamos apenas por mais uma vez nesta vida — ponderou José. — Tens uma boa memória, meu amigo — respondeu Gabriel, já ao lado dele. — Pois adianto-te: a grande missão que o Altíssimo te deu foi concluída com êxito. — Rejubilo-me — disse satisfeito. — E já que o dizes, sinto que minha lida não foi em vão. — E não foi, José. O menino se transformou num homem e, daqui a oito anos contados do dia de hoje, ele finalmente receberá o plano de Deus. — Então apenas me resta agradecer ao Senhor pelo grato privilégio que, em vida, eu auferi. — O Elevado sabe bem disso e mandou-me aqui para agraciar-te, afinal, na Terra, foste o tutor do filho Dele. José esboçou um sorriso sincero, como se quisesse agradecer ao Altíssimo pela oportunidade de ter criado aquele que haveria de mudar o mundo. Gabriel elevou o dedo indicador direito e tocou os lábios do velho carpinteiro, que fechou os olhos de maneira serena e visivelmente indolor. Mensageiro de inúmeros talentos, Gabriel havia recebido, de Deus, a incumbência de ser o anjo da morte dos bons reis e, embora José fosse um simples artesão, a majestade que ele tinha envergado em vida — e também a sua descendência longínqua — lhe deu créditos de sobra para auferir tal benesse. Tão logo tudo se consumou, um querubim surgiu e tomou a alma de José pelas mãos, a qual, ao finalmente se ver livre das capas materiais, soube que a sua vida estava prestes a continuar num outro plano; pois embora o camareiro houvesse lhe tomado a mão direita, o espírito de seu antepassado Davi logo lhe tomou a esquerda, a fim de que o Éden Espiritual recebesse o seu mais novo habitante. Embora tivesse olhado por José e Maria por muitos anos, e assim, criado certo afeto por eles, Gabriel passaria a se focar apenas em Jesus. E ainda que o Altíssimo houvesse determinado que, nos piores momentos, o avatar de Miguel estaria sozinho, o anjo-mor havia se encarregado de permanecer por perto até a aferição de um chamado divino, o que em breve ocorreria. Ao voltarem da lida e constatarem que o pai havia finalmente partido, os filhos de José pratearam em demasia. Seguindo a tradição judaica, o corpo do finado foi lavado e ungido com bálsamo, com a finalidade de, numa mortalha, seguir ao sepulcro que lhe cabia. Jesus foi o responsável por olear o corpo. De forma inconsciente, tomou aquela resina odorífera e, no peito do pai, desenhou um símbolo estranho, como se, no fundo, quisesse assegurar a ele uma já providenciada entrada no paraíso. No colo de José, Jesus fez lançar uma inscrição simples, algo similar a uma grafia contínua e cruzada entre si, incompreensível para os homens, mas que aludia, em essência, à assinatura angélica do Príncipe Miguel, passaporte válido e seguro para ingressar em qualquer plaga, aqui ou além de aqui. Durante o cortejo, que foi acompanhado por inúmeros filhos de Nazaré, Jesus se pegou pensando no pai terreno e no quanto havia aprendido pelas mãos dele. A compreensão e bondade de José para com o filho tinha sido acima da média para a época, pois, em sua vida, melhor amigo ele não havia tido. O romano Longinus e os colegas de infância lhe tinham sido queridos, mas o velho foi o maior exemplo de coragem e honradez já vistos por ele. Desta feita, no momento em que o corpo foi levado para o sepulcro, Jesus se ajoelhou e pediu a Deus: — Receba, Senhor, o maior pai que um homem na Terra já teve. Após o féretro, Maria foi tomada por uma grande tristeza, afinal, ela se casou com José ainda menina e, durante os anos que comele conviveu, foi plenamente respeitada em suas virtudes, assim como queria o Senhor. Os dias se passaram e, doravante envergando apenas vestes soturnas, ela parecia se calar para o mundo. Jesus, que por muito tempo assistiu, passivo, o sofrimento da genitora, decidiu tentar confortá-la: — Mãe? — indagou-a ao vê-la chorar em silêncio. Ela não respondeu com palavras, mas ao perceber que o filho a interpelava, tentou forçar um sorriso entre as próprias lágrimas. — Estás bem? — Sim, meu filho... — respondeu, sem conseguir esconder a consternação. — Percebo que ainda choras pela passagem de José, não? — indagou acolhendo-a nos braços. Maria não se conteve diante daquela indagação e desabou a chorar, perdendo, de pronto, a condição de responder à pergunta. Jesus a abraçou com mais intensidade e a levou para um banco que ficava nos fundos da casa, fazendo com que ela se sentasse. Era um espaço aberto, nem grande, nem pequeno; onde parte do sol repercutia sem muito rigor. Percebendo que a mãe tinha diminuído o pranto por estar segura em seus braços, ele continuou: — Mãe, José não está morto... — ponderou sorrindo. — Deus, ao degredar os seus primeiros filhos no início dos dias, fez da Terra que habitamos apenas um lugar de passagem, uma espécie de graduação pela qual os homens e as mulheres devem transpor antes de atingir a verdadeira vida, a qual, asseguro- te, não é a deste plano. Ainda apoiada no ombro do filho, Maria se acalmou um pouco e continuou a escutá-lo. — Eu sei que é costume chorar pelo próximo que nos deixa, pois é nato ao homem, ligar-se afetivamente às coisas palpáveis; aquelas materializadas diante de si. E quando alguém nos deixa, a primeira sensação que temos é a de perda, de tristeza. Mas não pode ser assim — asseverou, agora mais firme. — Pelo contrário, nós devemos nos rejubilar, pois na maioria das hipóteses, a passagem nada mais é do que o fim de um ciclo de ensino e o início de uma graduação superior, sendo que, no caso de José, a pureza dele já o remeteu a uma dimensão onde a paz é a única regra. — Jesus então enxugou as lágrimas da mãe e concluiu: — Muitos dos que aqui vêm ter, certamente retornarão, já que a lei divina da causa e do efeito é, de fato, implacável. Mas para os que em vida apenas praticaram o bem e honraram o amor e a caridade, a transposição da matéria nada mais é do que uma espécie de galardão, pois, com ela, findam-se as dores e se inicia a verdadeira vida que Deus nos reserva em Seu reino. — Fazes tudo ficar tão claro, meu filho — disse ela, já melhorando a feição. — Vendo dessa forma, não há, de fato, como eu me manter triste. — Felicito-me por isso, afinal, saibas que o teu esposo, o meu querido pai, continua vivo, bem e forte, e a serviço do Senhor. — Maria finalmente voltou a sorrir. — E lembra-te, mãe: não chores com tristeza a partida daqueles que foram retos. Ao levá-los daqui, Deus nada mais faz do que recompensá-los com a vida eterna, uma vida livre de moléstias, melancolias e maiores abrolhos — finalizou, mostrando-lhe as mãos judiadas pelo trabalho braçal. A imaculada acariciou o rosto de Jesus e acatou aquele importante ensinamento, pois tudo lhe pareceu óbvio. Ela então passou a evitar as vestimentas escuras, já que tal comportamento, segundo lecionou o filho, apenas traria mais dor para os que aqui tinham ficado; e pela oração sincera, a virgem vez mais se aproximou daquele por quem nutria inigualável respeito, o seu amado José. Entretanto, haveria de ocorrer que, num dia não tão distante daquele, Maria se lembraria daquelas palavras ao presenciar, com o coração dilacerado, o Eterno levar embora o seu único e mui amado filho de sangue, cujo sacrifício seria necessário para que a raça humana quitasse a sua dívida com Ele. Com a morte de José, os seus descendentes logo tomaram frente do negócio de construção artesanal da família e, no prazo aludido por Gabriel, oito anos contados dali, Jesus finalmente deixou a oficina para exercer outro tipo de ofício, um que traria uma nova opção a rígida lei civil dos profetas passados. * * * E do mesmo jeito que a tristeza se abateu em Nazaré, ela não demorou muito a pairar sobre as terras de Magdala. Judah, que já era viúvo havia seis anos, se deixou vencer pelas agruras da idade e padeceu de morte natural. Sua filha mais velha, Martha, já havia contraído núpcias com o promíscuo varão de um rico mercador da cidade de Joppa[49], o qual, havia muito, alimentava um desejo ilícito pela jovem cunhada, que embora adulta, ainda era a moça da casa. Mirian era muito apegada ao pai e, vendo-o falecer, sentiu que a sua invejosa irmã teria o caminho livre para investir contra ela, algo que só não havia ocorrido em razão ao temor reverencial nutrido ante o genitor de ambas. Pois numa das noites que se seguiram àquele dia doloroso, Mirian estava em seu quarto, como de costume e, deitada, prestes a dormir, não percebeu quando um vulto sorrateiro lá ingressou, a fim de, num campo agora livre, tentar odiosamente burlar o último acesso que a mantinha pura. Ao notar que estava sendo observada, ela se ergueu assustada. — Issachar, o que fazes aqui? — indagou, ao ver o ardiloso cunhado. — Não te apoquentes; eu estava apenas a admirar-te — disse ele, aparentemente embriagado e se achegando do leito dela. Percebendo as más intenções do marido da irmã, Mirian tentou se esquivar dele, contudo, ele foi mais rápido e deitou um punhal afiado sobre o seu pescoço. — Não resistas — sussurrou. — Pois hoje finalmente conhecerás um homem de verdade — asseverou, arfando bem próximo a ela. Acuada e com medo, Mirian sentiu quando Issachar começou a percorrer o seu corpo com uma das mãos asquerosas. — Agora fica quieta. Quieta! — disse, forçando-a a se deitar. Percebendo o instinto de sobrevivência emergir, Mirian tentou se manter calma até que vislumbrasse uma oportunidade de se livrar dele, afinal, bastaria um pequeno movimento, e a sua garganta seria aberta de um lado ao outro. Resistir ativamente, portanto, não lhe parecia uma boa saída; não sem a figura do pai por perto. Ao se perder nos robustos seios da moça, Issachar se deitou sobre ela e, capturado pela luxúria, diminuiu a pressão da lâmina. Percebendo que ele havia levantado a túnica para pressionar o emporcalhado sexo no seu, Mirian deixou- se aparentemente dominar e, prestes a ser violada, conseguiu tomar-lhe o punhal e, sem muito pensar, fincou-o de uma só feita nas costas do agressor, que deu um urro imoderado ao experimentar o rigor do golpe. Desperta em razão do brado que ecoou no palácio, Martha correu para o quarto da irmã e viu o esposo deitado com uma enorme ferida nas costas, já morto e coberto de sangue. Com a lâmina ainda nas mãos, Mirian mantinha-se inerte no canto do cômodo, como se estivesse em estado de choque. — Assassina! — gritou Martha. — Sua assassina! — bradou, ao se lançar no corpo do marido. Enquanto a confusão ocorria, um dos empregados que lá estava, sabedor da má fama de Issachar e do ódio de Martha pela caçula, tomou Mirian nos braços e tentou tirá-la dali, pois sem a proteção do pai, ela certamente seria morta por ordem da irmã. Mas a raiva não impediu Martha de obstar aquela evasão e, com o poder que agora lhe cabia, mandou prender Mirian na torre mais alta de Magdala, a fim de dar a ela um destino não tão diferente do de Issachar, cujo óbito apenas servia de desculpa para ela, finalmente, castigar a irmã. No dia seguinte, enquanto os funerais do seu algoz corriam, Mirian percebeu que a porta da sua cela estava sendo forçada e, assustada, viu quando Zeevi, um servo fiel de seu pai, nela entrou rapidamente.— Vem, princesa! Depressa! — disse ele, envolvendo-a com os braços. — Zeevi? O que está acontecendo? — perguntou Mirian assustada. — Estão para inumar o esposo de tua irmã. Entretanto, ela deixou transparecer que tem intenções pouco nobres para contigo, pois há pouco mandou um emissário buscar Calistrato, aquele grego mercador de escravas. — Um mercador de escravas? — Sim. E antes que ela te venda; eu te levarei daqui! — esclareceu, ganhando os corredores onde uma das sentinelas, pelas hábeis mãos dele, jazia morta. Ao deixar a torre, Mirian foi levada para o estábulo e, sempre acompanhada pelo seu protetor, fugiu rapidamente de Magdala. — Mas para onde nós vamos? — perguntou confusa. — Martha não descansará enquanto não me encontrar. — Por ora, nós iremos para Séforis — disse ele, soltando dois cavalos. — Sei que eu não tenho muita saúde. — Zeevi era tuberculoso. — Mas possuo uma irmã que lá reside e certamente haverá de te esconder. — Eu não queria matá-lo, Zeevi — apelou assustada —, mas não tive escolha! — Princesa, aquele homem era um devasso, todos sabiam disso, mas no momento, é bom que aceites que o teu destino reside fora daqui, pois a tua irmã sempre te quis morta. Ajudados por outros servos, ambos deixaram rapidamente o palácio de Migdal e rumaram para Séforis, onde Mirian tentaria desaparecer e se manter oculta, sabe-se lá como e por quanto tempo. Para Issachar, o preço por ter tentado macular a sagrada honra de uma mulher foi a sua própria vida miserável. Capítulo 3 A queda das Presenças JÁ CAMINHANDO EM LIBERDADE VIGIADA pelos imensos corredores do Quartel-General dos arcanjos, Azeyzel, recém-ingresso num regime de prisão mais brando graças à intervenção de Metatron, trazia consigo alguns pergaminhos sem importância que deveriam ser recolocados nas respectivas estantes da biblioteca. Havia algum tempo, ele tinha conseguido aquilo que desejava, a progressão por bom comportamento, e, aos poucos, auferia confiança para circular mais tranquilamente. Enquanto cumpria a tarefa numa das alas de acesso à livraria, ele olhava, arisco, para os lados, no intuito de verificar se ninguém o espreitava. Em seu íntimo, o alijado vigilante tinha planos obscuros, pois havia muito planejava escapar do seu cárcere e, se encontrasse alguns dos segredos mágicos da extinta ordem angélica das presenças[50] — várias anotações sobre elas estavam escondidas naquelas dependências —, ele talvez pudesse ter as asas de volta, bem como o conjunto sexual que lhe havia sido brutalmente trinchado pelos lanceiros em represália ao contato promíscuo que ele havia ousado ter com mulheres na Terra. Enfim, surgiu uma oportunidade de agir. Vendo-se sozinho nas inexoráveis dependências da livraria, mesmo que cercado por enormes estátuas de arcanjos já mortos que pareciam vigiá-lo, ele caminhou devagar até o afastado salão de Prohibitum, onde o ingresso era restrito e controlado por uma detalhada fechadura de seis chaves, cujas cópias ficavam em poder de Metatron e de Miguel. Entretanto, aquele maquinário tinha sido confeccionado havia muito tempo numa importante casa de armas celeste, a mesma onde ele e o irmão Semyaza, igualmente preso, costumavam dar expediente como mestres. — Ora, ora... Se não me trai a memória, fui eu mesmo quem projetou parte desse interessante mecanismo... — sussurrou, ao examinar o tal cadeado. — Deixe-me ver — completou, ao procurar, em volta de si, algum instrumento que pudesse auxiliá-lo. Após uma breve busca pela antessala, ele vislumbrou algumas penas metálicas usadas para escrituração e, tomando duas delas, entortou-as de modo a criar um arremedo de chave, a qual, graças a sua ímpar destreza, não o decepcionou em suas intenções. Pois ao fazer alguns movimentos cíclicos em cada um dos seis orifícios, Azeyzel ouviu o clique final que liberou o seu ingresso naquele salão colossal. Sem alarde, ele ganhou o interior do compartimento e fechou vagarosamente o portão, a fim de se manter oculto. A majestade daquele ambiente era estupenda; nele, havia estantes que pareciam ser infinitas, sem contar as obras de arte que lá jaziam. Mas o seu foco logo o direcionou para um pequeno gradil aberto que emprestava passagem a uma espécie de cubículo inferior, acessível por um pequeno lance de escadas, onde pareciam ficar os documentos mais raros. Diminuindo a silhueta para ali entrar, Azeyzel experimentou certa decepção ao, nas parcas prateleiras lá dispostas, encontrar apenas planos das legiões militares e algumas listas sócio-políticas de determinados anjos outrora investigados por subversão, dentre os quais, ele próprio. — Tanto esforço para nada... — balbuciou, ao fazer pouco daqueles relatórios que davam a ele o status de líder dos descontentes que, no passado, haviam desejado derrubar o portal palaciano para imigrar à Terra em busca da formosura das humanas. Sem ter encontrado o que originalmente procurava, ele deixou aquelas pastas onde as havia encontrado e voltou pelos mesmos degraus, expandindo luz do próprio corpo para iluminar o caminho, afinal, o ambiente era escuro e sombrio. Já estando de volta ao nível superior, mas ainda no interior do austero salão, Azeyzel teve a sua atenção chamada para o fundo de um corredor, onde um enorme globo descansava sobre uma coluna cercada por adereços de metal similares a gavetas. Num deles, sob a forma de uma maçaneta arredondada, jazia a expressão “Archangeli Custos” – arcanjos guardiões. De pronto, o exilado percebeu que se tratava de mais um trinco, talvez montado por outra potência que não ele, e a qual sequer viva estaria. Mas qual seria o segredo dele? O tal cadeado não envergava orifícios, mas tão somente um acionador circular que podia ser girado para a esquerda ou para a direita. Mas sem o código, o que fazer? Sim, pois ele sabia que as travas angélicas mais rebuscadas, como aquela aparentava ser, tinham um mecanismo de segurança contingencial e, caso fossem erroneamente forçadas, quebrariam a tranca primária e acionariam outras tantas, tornando a abertura praticamente impossível. Some-se a isso que o tal obstáculo poderia ser armadilhado, perigando avançar-lhe o braço e ceifá-lo ao meio. Dúvidas. Entretanto, Azeyzel não era um simples celeste da ordem das potências. Como renomado mestre-armeiro, ele foi um dos mais requisitados metalúrgicos do Céu e, como poucos, tinha a astúcia aguçada para enigmas. Diante disso, ele pensou por mais alguns instantes e, engenheiro de formação que também era, decidiu fazer uso de uma antiga fórmula lógica baseada na separação de fonemas. Azeyzel dividiu as seis vogais das dez consoantes da máxima “Archangeli Custos”. Aquelas, diante das regras matemáticas celestes, aludiam ao positivo; e as últimas, ao negativo. E, considerando o caminho mais comum de uma chave, ele classificou as letras positivas — vogais — para a direita; e as negativas — consoantes — para a esquerda. Assim, seis movimentos à direita e outros dez à esquerda. Tenso, ele decidiu arriscar a combinação e, ao concluir as seis rotações, verificou que a maçaneta teve a estrutura retraída em parte, mantendo-se inerte. Feito isso, ele operou as dez torções à esquerda e, para a sua surpresa, a peça retraiu-se novamente e encaixou-se no molde, sem que nada ocorresse. Crente de que talvez tivesse feito algo errado, Azeyzel deu alguns passos para trás com o intuito de observar o acessório à distância, quando percebeu que o globo posto sobre a coluna começou a girar para cima e cintilar. Após mais alguns instantes, a peçada base se ergueu e revelou uma gaveta funda, na qual estava posto um velho calhamaço que envergava a expressão: “Praesentia Agitur” – Tratado das Presenças! Pronto! Lá estava o tão aspirado livro proibido da velha casta das presenças, onde parte dos seus sortilégios haviam sido preservados. Surpreso, Azeyzel tomou aquele material nas mãos e, cuidadosamente, o levou para uma mesa, sempre olhando para os lados a fim de se assegurar que não era vigiado. Ao folhear as primeiras páginas e nelas ler algumas notas, ele foi tomado por uma sensação muito estranha, talvez um arremedo de saudosismo de épocas passadas e bem distantes daquela. — É esquisito como tudo aparenta ser tão recente, pois parece que foi há pouco tempo que Pyriel e os seus anjos magos foram esmagados pela armada de Deus... — balbuciou, já folheando aquele compêndio. — Bem, tomara que eu encontre as respostas que tanto procuro — sussurrou, deixando-se instintivamente levar pelas reminiscências de um passado muito distante, onde uma das treze ordens angélicas havia sido brutalmente extinta. As lembranças de como tudo tinha acontecido começaram à lhe voltar a mente, como num sorrateiro passe de mágica. * * * Bem antes da fatídica rebelião de Lúcifer e do degredo de um terço dos anjos, a paz celeste não era em regra rompida. Fora algumas desordens aqui e acolá, sempre reprimidas pelos implacáveis destacamentos dos arcanjos, o Céu vivia num clima de aparente normalidade. Entretanto, algo naqueles tempos longínquos estava prestes a mudar, e para sempre. Foi numa das reuniões ordinárias com Deus, que o ainda alto serafim Lúcifer observou o irmão Pyriel, o príncipe-primeiro da ordem das presenças, envergar um olhar estranhamente perdido, pois pouca atenção havia dado às liturgias discutidas. Findo o encontro, ele achou por bem fazer uma visita de cortesia ao confrade, talvez para desvendar a possível motivação daquele aparente desconforto. Os anjos da Presença. Eles compunham a ordem dos dramaturgos, dos artistas que abrilhantavam os coliseus, e dos dançarinos que davam espeque às orquestras dos Tronos. Mestres da arte e da pintura, eles faziam uso de uma tinta à base de hematita que embelezava os seus templos e monumentos, e de um extrato da mesma matéria; tatuavam belíssimos desenhos na própria pele, algo que celeste algum, dada a ação invasiva e bastante dolorida do processo, fazia. Eram eles, enfim, os únicos anjos cujo sangue envergava uma oleosidade aromática, que misturada à resina, gerava uma espécie de incenso que, ao ser seco e queimado, trazia particular perfume aos seus domínios. Ao ganhar o grandioso corredor do mosteiro de Artium, a casa das Presenças, Lúcifer observou Pyriel sentado num trono pomposo que lhe permitia manter os cotovelos apoiados. Na mão esquerda, ele mantinha aceso um pequeno pomo de fogo rodopiando, o qual encarava detidamente. Pois ao perceber a chegada do líder dos serafins, Pyriel pontuou: — Observa, meu caro Lúcifer — disse ele, mirando aquele rotativo conglomerado em chamas. — A preciosa matéria da nossa forja: o fogo. O serafim deu alguns passos na direção dele e o fitou ressabiado. — Mas eu estava aqui a pensar... Esse fogo? De onde foi ele tirado? — concluiu, sorrindo maliciosamente e fazendo o tal foco se autoconsumir de forma inesperada. Lúcifer circundou Pyriel e, dado o teor daquela estranha conversa, sentou- se ao lado dele e disse: — Eu me recordo de quando nasci pelas mãos do Senhor, pois outrora fui um conglomerado desse mesmo fogo. Mas confesso que jamais fui tão a fundo, a ponto de questionar a efetiva origem dele — esclareceu, apoiando o queixo numa das mãos. — Tenho refletido e estudado muito sobre isso — respondeu-lhe Pyriel. — Sempre que um de nós morre, Deus doma esse mesmíssimo fogo e replica mais um anjo no Céu. — E o que pretendes dizer com isso? — Que todos nós nascemos pela força das mãos Dele, isso é um fato. Mas... E se o Criador, porventura, viesse a nos faltar? Quem então forjaria mais anjos? — indagou já se erguendo. Ao perceber que Lúcifer havia ficado intrigado com a ousadia daquela estranha tese, Pyriel tentou minimizar o tom da conversa. — Não me julgues mal, irmão. Trata-se apenas de uma indagação meramente acadêmica, a qual agora divido contigo — justificou, ao passar as mãos pelos seus compridos e sempre perfumados cabelos alourados. — É estranha essa ponderação. Eu prefiro não pensar em tal possibilidade, afinal, acredito que a energia do nosso Pai há de ser infinita — replicou Lúcifer de maneira segura. Pyriel, já estando de costas para o grande serafim, virou-lhe a face e, esboçando um sorriso cáustico, disse: — Mas ainda “academicamente” falando, quem te assegura isso? — Pois antes que Lúcifer pudesse dizer alguma coisa, o arisco príncipe das Presenças voltou-se para ele e vez mais se adiantou. — Peço-te escusas, confrade, por vezes eu me supero em indiscrição — ponderou com o semblante agora mais leve. — Mas já que vieste me visitar, acompanha-me até um dos anfiteatros. Gostaria de mostrar-te o ensaio de um novo espetáculo. Lúcifer anuiu e seguiu Pyriel, mas estava intrigado com aquela conversa e, no fundo, não lhe faltava razão. De forma secreta, o místico líder das Presenças estava, havia muito, enveredando-se em terrenos perigosos. Estava obcecado pelos segredos da concepção e a relação dela com os anjos e, desde então, tentava desenvolver suas faculdades internas a fim de conhecer plenamente a própria natureza e dominar certos poderes que julgava ter dentro de si. Embora a aproximação dos aspectos ocultos do Senhor fosse proibida, Pyriel passou a exercitar fragmentos nervosos que os anjos ainda não usavam e, envergando magnetismos extraídos da força de Deus, os quais passou a paulatinamente repassar aos demais celestes da sua casta, o líder das Presenças foi, aos poucos, potencializando os seus poderes. De início, ele começou a movimentar pequenos objetos sem tocá-los, até que, com o passar do tempo, conseguiu atingir um equilíbrio energético que lhe deu um controle absoluto sobre o sentido da existência. Sua mente foi inundada por ideais inéditos, e a sanha pelo poder passou a lhe atormentar. Mas antes de dar um passo maior, o da criação, era necessário um pequeno teste. E em breve, ele haveria de ocorrer. * * * E aconteceu que um alto anjo da presença chamado Barakyel foi convocado às pressas ao salão de Artium e, em razão da hierarquia, reverenciou o Príncipe Pyriel que lá estava, sozinho. Barakyel, uma espécie de vice-gestor das Presenças, estranhou o fato de o superior ter lhe estendido a mão direita, algo que não era comum ao protocolo angélico. Ao estender a sua em resposta, ele foi surpreendido pelo líder que, com a mão esquerda até então oculta, sacou um florete de fogo e, com ele, arrancou-lhe a metade do braço. A severa acústica do local fez com que ninguém se apercebesse do ocorrido e, sem nada entender, Barakyel caiu de joelhos, aterrorizado e, o que é pior, sem parte do membro superior. — Estás fora de si, senhor? Por que fizeste isso? — balbuciou com dificuldade em razão da extremada dor que experimentava. Pyriel, em contrapartida, manteve-se silente e, com uma incomum amabilidade no rosto, aproximou-se vagarosamente do irmão, o seu lugar- tenente. Sem encontrar resistência, tomou-lhe gentilmente o braço ferido e, com a ponta do dedo, fez, dele, se expandir uma onda energética que o recompôs aos poucos, deixando o recém-chegado ainda mais boquiaberto do que já estava. — Mas o que... — gaguejou. — O que é isso? — indagou, ao perceberque o seu membro decepado havia sido integralmente refeito. — Isso se chama mágica, Barakyel. Mágica! * * * Os anjos em geral, mormente os serafins, eram grandes apreciadores das tragédias teatrais encenadas pelas Presenças e, de tempos em tempos, lotavam as arenas para assistir à performance dos talentosos irmãos. Ocorreu que, nos novos espetáculos, passou a se tornar uma constante o uso de efeitos visuais nunca antes vistos, os quais, pela realidade, pareciam desafiar a ordem das coisas. Creditados à ficção, atos como o da desmaterialização passaram a ser aplaudidos com veemência. “Estariam, as Presenças, atingindo o clímax da evolução artística?”, refletiam os estupefatos espectadores. Pois Lúcifer continuava intrigado e, sem chamar a atenção, introduziu alguns espiões naquela ordem a fim de farejar algo que revelasse as reais intenções de Pyriel. Afinal, seria ele apenas um entusiasta da arte ou um traidor em potencial? Em segredo, Pyriel continuava a aperfeiçoar ainda mais as habilidades daquilo que chamava de “mágica” e, magnetizando as plateias, vendia como fantástico o que já beirava o real. Muitas fórmulas passaram então a ser, por ele, escrituradas num tratado, a fim de que aqueles estudos não se perdessem. E o que havia sido apenas uma curiosidade sobre a origem dos anjos, passou a ser uma obsessão para aquele celeste que, de artista, passou a mago, um mago obscuro que distorcia suas intenções. Ao recriar parte do braço do seu auxiliar, Pyriel transpôs um limite defeso a qualquer anjo, já que o poder de cura, restrito à virtude Rafael, não se poderia ser confundido com o da recriação, exclusivo de Deus. Após auferir uma pequena parcela dos poderes divinos ao se alimentar da força motora vinda do Senhor, ele passou a doutrinar os seus, os quais, sem alardear as novas, não mais precisavam de asas para se deslocar e, sem operar força motora, iam e vinham de uma plaga a outra, como se desaparecessem aqui e surgissem acolá. Enfim, a matéria se transformava em energia e se reconstituía em outro local. Pyriel, então, arrebatou a autoridade do teletransporte. * * * Passado certo ciclo temporal, Pyriel finalmente resolveu reunir quatro grandes anjos da Presença na távola de Artium, pois lá, após muito imiscuir-se nas ciências proibidas, pretendia quebrar a barreira da concepção e replicar anjos por si só. E diante delas, num magnífico cenário, anunciou o que havia muito planejava: — Irmãos, eu vos convoquei para transpormos o último obstáculo que nos separa de uma condição divina — anunciou efusivo. — E pelo poder místico da concentração, aliado aos ritos mágicos que venho desenvolvendo, estou plenamente convencido de que estamos prontos para conceber a partir do fogo. — Príncipe, se o que pretendes fazer for auferido, haveremos de ser a ordem angélica mais poderosa do Céu — acentuou uma das Presenças. — Se o que eu desejo finalmente se concretizar, vos asseguro que a nossa casta terá um exército bem maior que a dos arcanjos! — respondeu Pyriel, estendendo-lhes as mãos e convidando-os a formarem um círculo. Os quatro, até então meros entusiastas da magia negra, ficaram eufóricos com a revelação, pois criar uma nova armada só poderia significar uma coisa: sublevação para conquista. Enfim, diante da concentração geral, cada uma daquelas Presenças contribuiu com uma força distinta. Unidas, elas começaram a ressoar um dialeto estranho, o mesmo que Lilith, num futuro ainda muito distante daquele, viria a entoar em seus sortilégios, e, após entrarem em transe, expeliram, dos seus corpos, diversos focos energéticos que, convergindo para um ponto central na mesa, começaram a moldar uma forma de fogo similar à deles próprios. Os relampejos de luz expandidos eram extraordinários, e nem mesmo o temor das consequências daquele perigoso ato obstou a ousadia dos anjos magos, cujo anseio pelo poderio ilimitado lhes passou a ser uma obsessão. Pois ao fim do ritual, viu-se posto no meio deles um arremedo de ser vivente, em brasa, o qual se mexia com dificuldade. As presenças, dali por diante, finalmente criariam a vida, ação que, até então, era exclusiva da seara de Deus. — Nós conseguimos, está feito! — desabafou Pyriel, sem esconder o aparente cansaço pelo cerimonial. Entretanto, visando preservar a casta caso algo de errado acontecesse naquela solenidade, ele proibiu que Barakyel, seu substituto direto, participasse do rito. Esse foi o seu erro. Enciumado por ter sido preterido, ele observou a cerimônia escondido e, estupefato, viu o pecaminoso resultado dela. Tocado pela inveja, ele não manteria aquele segredo guardado por muito tempo. * * * As estranhas habilidades artísticas que as Presenças passaram a apresentar começaram a chamar atenção. A rotatividade do uso dos anfiteatros foi sendo restrita a alguns espaços menores, fato este que levantou a suspeita dos espiões de Lúcifer. Ninguém de fora da casta ainda sabia, mas os maiores coliseus haviam sido fechados e passaram a ser usados para esconder a raça bastarda criada pelas Presenças, a qual crescia assustadoramente. Deus, havia muito, sentia um distúrbio na sintonia da criação. Constatando que o foco vinha dos domínios das Presenças, convocou Miguel em segredo e determinou uma investigação mais detalhada, sem alardear aos demais. O príncipe percebeu que o Pai estava aparentemente abatido, entretanto preferiu não entrar nesse mérito com Ele. De outra banda, Lúcifer já havia se adiantado nesse particular e, com base nos informes que auferira, assediou o enciumado lugar-tenente de Pyriel e dele obteve o que precisava. Barakyel, cego por acreditar ter sido preterido, acabou delatando as pouco ortodoxas intenções do seu príncipe, cujo poder de criação já estava esbarrando no do Elevado. Com isso, o serafim-mor tratou de participar aquela traição a Miguel, mesmo sem saber que ele já estava à frente de uma inquisição sigilosa contra as Presenças. — Respeito a tua discrição, irmão... — disse Lúcifer, ao saber do inquérito. — Pois se o Senhor tivesse me pedido sigilo, eu também zelaria por ele — concluiu. — Felicito-me em saber que entendes — disse Miguel, ao perceber que Lúcifer não havia ficado ostensivamente melindrado. — Mas como Pyriel conseguiu auferir todo esse poder? — arrematou confuso. — Eu ainda não sei ao certo. Barakyel me confidenciou que o seu príncipe lhe moldou um novo braço após ceifá-lo com um golpe de espada. Miguel ficou surpreso com a revelação. — Um braço? — Sim — anuiu Lúcifer com um aceno positivo da cabeça. — E se ele conseguiu fazer isso, já deve ter ido bem mais longe. — E foi... — respondeu o serafim com um olhar incisivo. — Barakyel disse que as Presenças estão forjando corpos de fogo similares aos nossos, mas não foi preciso nem me dizer onde ou em que condições eles seriam utilizados. — Corpos de fogo!? — surpreendeu-se novamente o arcanjo. — De certo. E outrora, Pyriel deixaou escapar uma estranha tese pessoal, sobre um Céu desprovido de Deus... O guerreiro segurou a própria espada e ponderou: — Isso soa perigoso. Creio ser chegado o momento de ele prestar contas. — Tenhas cuidado, Miguel. Eu acho que isso deve ser feito de maneira discreta, a fim de que as coisas não escapem do nosso controle. — Tens razão — assentiu. — E se, ao acaso, restar comprovada a infâmia de uma pretensa lesa-majestade, eu temo pelo destino de Pyriel e da ordem das Presenças. — Irás atrás dele? — indagou o primogênito de Deus. — Certamente. Não há alternativa. Mas antes, darei parte disso ao nosso Pai, afinal, o cetro real não pode correr perigo nesse ínterim. Lúcifer então se despediu de Miguel e deixou Barakyel aos cuidados de dois lanceiros, preventivamentepreso. Ao saber do ocorrido, o Elevado não demonstrou demasiada surpresa, afinal, aquela revelação nada mais era do que a comprovação das Suas suspeitas iniciais. Mantendo a mesma estratégia, Ele orientou Miguel a ir até Artium e “convidar” Pyriel para uma audiência com os arcontes e, quem sabe, resolver aquele impasse sem maiores problemas; problemas “mais violentos” por assim dizer. — “Instruam um processo; deem um veredito preliminar e me tragam a conclusão” — assentou o Senhor. Feito isso Miguel convocou dois arcontes e mandou que eles se dirigissem ao teatro das Presenças. Ao perceber que os delegados do Senhor haviam lá chegado com um nada agradável destacamento de lanceiros, o ousado Pyriel, ciente de que já havia sido descoberto, os recebeu sem deixá-los esperar. — Lanceiros aqui em minha casa? Pois seria, eu, tão digno de uma escolta dessa magnitude? — asseverou aos arcanjos como se já soubesse da vinda deles. — Temos ordens divinas de levar-te até Vigilum, príncipe — disse Haudax de maneira aparentemente cortês. — Bem, se “Deus” dá uma ordem, ela deve ser cumprida! — respondeu Pyriel, já fitando os seus, como se os estivesse licenciando a fazer algo pré- combinado e que mudaria tudo dali por diante. * * * Na sede do quartel dos arcanjos, Pyriel sofria um duro interrogatório, mas com a habilidade de um ator, ele se esquivava de dar respostas diretas e, fazendo pouco dos arcontes, vez ou outra dizia frases sem sentido, como se estivesse atuando numa peça. Mas o celeste admitiu, entretanto, que havia atingido um plano místico diferenciado. — Pois então, príncipe, diga-nos no que consiste esse plano? — pontuou o Arcanjo Daurah. — Em três dogmas, caro arconte: autoconhecimento, aprendizado e utilização da ciência. — E o que pretende fazer com eles? — Manter o equilíbrio das coisas e celebrar a vida! — E Vossa Excelência crê ser certo tomar para vós o equilíbrio do nosso ciclo vital? — Eu apenas acredito que o corpo e a mente podem ser melhor exercitados, e que a meditação pode nos levar a caminhos outros que não os da mera servidão. — E o que isso significa? — Que nós não podemos ficar adstritos a uma única fonte vital — defendeu. — Irmãos, é difícil perceber que estamos aptos a auferir o poder da criação? — Os arcontes se entreolharam, e a mais alta Presença, sem se inibir com eles, continuou a discursar. — Digam-me sem temor, que mal existe em ousar, em saber? — Nós somos apenas servidores, Pyriel — interferiu Miguel, que a tudo assistia à distância. — E nessa qualidade, não devemos ousar acima do que nos é permitido. O príncipe cativo se mostrou enervado com aquela observação e, ainda estando com os pulsos livres, bateu com os braços sobre o apoio da cadeira em que estava. — Será que é tão difícil entenderem isso? — insistiu. — Deus age através de nós, Seus dez príncipes-primeiros. E diante disso, não podemos nos limitar a uma lealdade obtusa de submissão, pois o poderio que se manifesta através de nós também há de ser divino. — O que estás a dizer? — perguntou Haudax. — Que o que eu fiz visa nos alinhar ao caminho natural da vida, da evolução. Entendei! Não devemos temer o que nos torna mais fortes, já que o poder é algo nosso. Portanto, esqueçais a hierarquia cega e aceiteis aquele que, embora não sendo Deus, também pode vos dar o conhecimento. — Domar esse poder é algo que não nos é lícito, príncipe! — continuou o arconte, agora com um pouco mais de firmeza. — Nós desenvolvemos um novo conceito, as Presenças querem apenas exercer as suas forças interiores e tornar a vida possível. E é por isso que nós não devemos nos limitar a um único caminho — retrucou Pyriel. — Então, isso é o que chamou de “magia”? — insistiu o inquisidor. — Chama da forma que quiseres, Haudax, eu apenas desenvolvi faculdades que estão ocultas em todos nós, inclusive em ti. E, de mais a mais, é preciso admitir que é muito egoísmo mantê-las adstritas apenas a uma força. — Basta disso! — bradou Miguel, nervoso. — Creio que temos provas suficientes de que, embora sejas um anjo precedente, transpuseste os caminhos da ciência e buscaste meios alternativos para aferir poder. Pyriel se mostrou deveras decepcionado com a recalcitrância dos arcanjos e se calou. O inquérito prosseguiu de forma rápida e, ao final, foi entregue aos cuidados do procurador de justiça celeste, o mítico serafim Baalberith, a quem caberia ofertar uma já certa denúncia. Sem prejuízo disso, os arcanjos entenderam que seria prudente alijar as Presenças a fim de, ao menos até o final do julgamento, nada viesse a perturbar a ordem celestial. Miguel não acreditou que as coisas iriam tão longe e, por cautela, despachou uma centúria para reforçar o cerco ao palácio de Artium. Mas o que ele mal sabia, era que o astuto Pyriel já havia preparado um plano contingencial para tentar garantir a continuidade da pecaminosa ordem dos magos. E no momento certo, um levante sem precedentes ocorreria no Céu. * * * No Fórum localizado na primeira torre de Vidiam[51], Pyriel jazia algemado entre dois lanceiros e, à sua frente, estavam três dos seus juízes: Jofiel, presidente da audiência e árbitro das causas mais graves, e Jeliel e Melahel, arcontes-substitutos. E, na condição de amicus curiae[52], o querubim Caliel, capitão da Guarda Civil da Câmara, representando a divindade e corte angélica. O Eterno aparentava estar estranhamente fatigado, o que talvez se devesse à energia que o príncipe das Presenças havia lhe subtraído de forma ilícita. Ainda assim, o mago-mor seria, agora, submetido a um tribunal de iguais. E quanto às presenças em Artium, estas não se mostraram surpresas com a chegada dos soldados mandados por Miguel e, como se nada estivesse ocorrendo, permaneceram silentes e misteriosamente passivas. Enfim, a audiência estava prestes a começar. Todos os príncipes-primeiros estavam nas bancadas do Tribunal e, tão logo soou o toque triplo pela trombeta de Israfel[53], o arrogante Baalberith, representante da Procuradoria de Justiça, subiu na bancada e rezou o libelo. ∷ ∷ ∷ “Meritíssimos arcontes, pelo rito de instrução especial e por seu procurador ora constituído, irá a Ordem de Diabolus[54] contra o anjo da presença, Pyriel, príncipe-primeiro da consentânea casta, nos termos acusatórios seguintes: Por delação e por confissão, o réu é acusado de incidir no hediondo crime de lesa-majestade, pois ousou se erguer contra a regra da concepção da vida, a fim de suplantar o Criador, além de fomentar e defender a abominável tese de que Ele poderia ser dispensável. Esta Procuradoria irá demonstrar que o acusado assim agiu por odiosa soberba, imbuído na crença de que subiria ao trono de Deus usando algo que ousou chamar de “magia”. Nesses termos, apresentamos a denúncia, a qual requeremos incontinente recebimento para que o réu seja submetido a julgamento, mirando a sua condenação à pena máxima, qual seja, a de morte por esquartejamento a ser executada pelos lanceiros da seção de arcanjos. Por oportuno, postulamos a inquirição em plenário da primeira testemunha, o Anjo da Presença Barakyel, nos termos das tábuas legais”. ∷ ∷ ∷ Pois cumprida essa formalidade, deflagrou-se então o que deveria ser o maior julgamento da história dos anjos. * * * Na casa de Artium, tudo estava aparentemente calmo. Entretanto, o plano nefasto de Pyriel estava prestes a ser iniciado. Ciente de que seria preso — como, de fato, foi — o príncipe-primeiro das presenças licenciou os seus irmãos a agirem tão logo soube da chegada dos arcontes. Ao usar a expressão “se Deus lhe dá uma ordem, ela certamente deve ser cumprida”, a presença-mor estava nasentrelinhas se referindo a ela própria, como se estivesse ordenando um revide aos que viessem a atentar contra a secreta ordem dos magos, cujo “deus”, agora, era ele. Pois estando os arcanjos a postos nos domínios das Presenças, eles, de repente, notaram quando um estranho, cujo corpo flamejava, surgiu caminhando cabisbaixo pela grande escadaria de Artium. Crendo que ali talvez estivesse um artista envergando algum tipo de vestimenta teatral, um dos soldados investiu contra ele, alertando-o para não ir adiante. — Alto! Nós temos ordens para que ninguém deixe esse recinto! Pois ao mirar o rosto do ser, tal não foi a surpresa do miliciano ao vislumbrar, por entre o capuz que ele trajava, uma face inteiramente feita de fogo. Ao recuar alguns passos, aquele mesmo arcanjo, e outros tantos que ali davam guarda, viram surgir uma grandiosa turba por trás dos muros da província das Presenças, cujas asas, ao invés de penas afiadas, chamuscavam. O arcanjo então sacou a sua espada fulgurante e tentou golpear o estranho, mas ela simplesmente o transpassou sem causar-lhe qualquer dano físico, afinal, ele não tinha carne, não tinha sangue, era somente fogo. Mas ao contrário, os militares envergavam matéria corpórea diversa — sangue além de chamas — e, pegos de surpresa, foram atacados por aquelas criaturas espúrias, as quais surgiam aos milhares. Enquanto a instrução processual transcorria em Vidiam, o plano de Pyriel — e também, uma guerra inesperada — eclodia. Sentindo-se acuadas ante a prisão do líder, as Presenças interpretaram a linguagem corporal do seu príncipe e puseram os bastardos em liberdade com o intuito de, ao usar magia negra, tentarem suplantar quem quer que lhes fizesse oposição para, ao fim, implantar um novo reinado no Céu. Pois a primeira missão já lhes era conhecida: libertar o futuro rei deles, Pyriel, quiçá o próximo regente no lugar de Deus. * * * Num ímpeto, a austeridade do depoimento do Anjo Barakyel foi abruptamente interrompida. Alertados pelo estranho movimento vindo das áreas externas do Fórum, os espectadores da tribuna foram surpreendidos com a notícia de que estranhos haviam sido soltos em Artium e, blindando as Presenças, rumavam para as torres de Vidiam destruindo tudo o que se punha diante deles. Contido por severas algemas energéticas, Pyriel ergueu vagarosamente a cabeça e esboçou um sorriso ardiloso, como se apenas aguardasse pelo seu resgate, o qual, ao que tudo indicava, não tardaria a chegar. Miguel se ergueu depressa e ficou estupefato com o que viu: entes armados e forjados tão somente de fogo. Sem demora, ele deu um sinal ao corneteiro, o qual entoou um chamado contingencial que repercutiu em Vigilum[55], onde grande parte das legiões estava estacionada. Entretanto, àquela altura, e diante daqueles seres, elas talvez não fizessem muita diferença. Assim que os rebentos das Presenças se aproximaram da torre onde ficava o Fórum, muitos espectadores tomaram armas para se defender, afinal, o cenário externo aludia ao de uma batalha campal desenfreada, pois os bastardos estavam dilacerando os seus obstáculos a fim de ganhar o interior do prédio. Percebendo que os ataques aos invasores eram inúteis — as espadas angélicas os varavam sem lhes causar danos —, os fiéis operaram uma retirada em massa, pois nada parecia suplantar aqueles invasores. Miguel tentava abrir caminho sem muito sucesso, pois embora a sua habilidade o livrasse dos severos golpes que eram dados contra si, os poucos que ele conseguia acertar eram indiferentes aos “soldados” de Pyriel. Diante disso, ele achou por bem retornar ao Quartel-General e buscar descobrir algo que pudesse fazer efetiva frente àquelas abominações, as quais pareciam indestrutíveis. Como ele, centenas de outros anjos tiveram a mesma iniciativa e deixaram o plenário, onde o príncipe das Presenças acabou resgatado sem quaisquer dificuldades. — Cercai a torre e matai quem se aproximar! — ordenou aos seus asseclas. — Daqui, nós iremos até o palácio de Deus e poremos um fim nisso de uma vez por todas! — asseverou Pyriel, no domínio da situação. A estratégia parecia boa, pois a grata parte das presenças já havia escapado de Artium e seguia protegida pelos seres de fogo que lhes abriam passagem. Entretanto, aquela era a morada dos serafins, e o primeiro deles, Lúcifer, jamais se deixaria vencer sem lutar. * * * Tão logo o alarde eclodiu, a Guarda Negra selou os aposentos de Deus, O qual, naquele instante, demonstrava estar bem mais enfraquecido, afinal, o poder despendido pelas nefastas obras de Pyriel havia Lhe abatido misteriosamente. Os querubins da Câmara eram sanguinários por instinto, portanto, com vida, nada atravessaria aqueles portões. Reunidos em Vigilum, militares e membros das demais castas corriam contra o tempo para encontrar uma estratégia que lhes desse uma chance de resistência, pois combater alvos inatingíveis como aqueles estava fora de questão. Ciente de vários detalhes do inquérito levado a cabo pela polícia dos arcanjos, Baalberith teve um repente inusitado e ponderou que os bastardos nada mais eram do que produtos da mágica das Presenças, magia esta que, a princípio branda, converteu-se em negra para inverter a ordem da criação. — Baalberith tem razão! — assentiu Lúcifer, arisco. — Se nós conseguirmos atingir aqueles que lhes deram a vida, talvez a força deles se dissipe. — É uma tese aceitável, príncipe; talvez a mais sensata no momento... — interviu o Arconte Jofiel. — Mas como faremos isso? — Se eles são feitos apenas de fogo, não são imunes à ação do gelo. Entretanto, as bandas de Vidiam destoam pelas suas extensas cortinas de chamas, as quais talvez os fortaleçam ainda mais — ponderou Lúcifer —, mas creio que algo em menor escala pode ser tentado. — Bioluminescência pura? — sugeriu o Mestre Azeyzel; químico, arquiteto e engenheiro da ordem das Potências. — Sim. Talvez seja a única forma de burlarmos parte das nossas próprias fortificações — disse Lúcifer. — Mas sobre o que estão falando? — perguntou Miguel, um tanto nervoso e aparentemente confuso. — Em contraste de temperaturas, marechal — esclareceu o príncipe dos serafins. — Mas, infelizmente, essas cargas frias me são limitadas — lamentou. — Bem, se conseguirmos abrir caminho dessa forma, talvez tenhamos condições de igualdade num confronto direto com as próprias Presenças, pois eu não creio que elas terão condições de formar uma nova armada de forma tão rápida — concordou Miguel. — O plano é bom, mas se ainda tivéssemos alguns dos nossos no plenário talvez eles conseguissem abater algumas das Presenças lá postas e, com isso, enfraquecer o foco que alimenta os tais seres — completou o armeiro. — Tens razão, Azeyzel. Mas durante o ataque, houve uma evasão em massa e, quem quer que tenha lá ficado, neste momento já deve estar morto — lamentou o primeiro serafim. De repente, um dos príncipes-primeiros ali presentes, até então quieto, tomou forçosamente a palavra e, elevando o adorno de um belíssimo colar que envergava sobre o pescoço, revelou com um sorriso ousado. — Eu não contaria com isso, Lúcifer... — Pois, ao olharem para Beelzebu, o formoso gestor dos querubins, talvez o anjo mais belo do Céu, este lhes revelou o que havia acabado de descobrir. — Senhores, um dos partícipes da tribuna ainda está em Vidiam e, neste exato momento, escondido e à espera de uma chance para agir. — Mas quem? — indagou Lúcifer, ansioso. — O capitão da Guarda Negra. Embora tenhamos todos debandado, alguém que sabemos ser um tanto inconsequente lá permaneceu.Meus irmãos, participo-vos que o Lorde Caliel ainda está no mosteiro — concluiu, ao envergar a cintilação positiva do seu colar das constelações[56]. * * * No interior da primeira torre de Vidiam, Pyriel reiterava ordens para que os bastardos de fogo cercassem inteiramente a morada dos serafins. A estratégia era usá-los como escudo até a morada de Deus, afinal, o príncipe subversivo sentia que o Elevado estava abalado pela força que lhe havia sido rapinada, algo que jamais tinha acontecido. Mas a sua preocupação principal era proteger as quatro Presenças que, com ele, haviam criado os alados de fogo, pois sem o foco mágico deles cinco, as criaturas, como já se esperava, certamente pereceriam. Entretanto, o seu aparente empenho acabou comprometendo a sua perspicácia e, de uma coluna a outra, um pequeno e astuto querubim saltitava com divisada rapidez, como se a cada toque dos pés dele no chão emergissem notas musicais crescentes e decrescentes. Caliel era o único anjo estranho à ordem das Presenças que lá permaneceu, e certamente, tentaria fazer algo para desestruturar as pérfidas intenções de Pyriel. Ainda escondido, ele recebeu de Beelzebu informações psíquicas sobre o planejado contra-ataque, pois tão logo as legiões se aproximassem, Lúcifer tentaria abrir caminho com a sua energia fria, cabendo, então, a Caliel, a tarefa de tentar exterminar as cinco grandes presenças dentro do Fórum, sem se deixar pegar pelos inexpugnáveis seres de fogo. — Essa reação já era esperada — disse Pyriel, ao ser informado da reaproximação dos fiéis. — Deixai que venham, eles serão presas fáceis. Assim que os militares se aproximaram cobrindo os demais, uma grande cortina de chamas se ergueu diante deles. Beelzebu segurou firmemente o colar das constelações e transmitiu novas instruções a Caliel, o qual deveria agir tão logo um comando lhe fosse dado. Lúcifer abriu caminho por entre os escudeiros da infantaria e, após envergar o máximo de força que pôde, expeliu uma onda fria que, como o esperado, descompôs boa parte daqueles corpos em chamas. Era, enfim, o sinal de ataque. Vislumbrando a cena, a armada sentiu confiança e investiu contra o “exército” de Pyriel, com escopo de tentar auferir acesso aos espaços internos de Vidiam, onde estavam encasteladas a grande maioria das Presenças; dentre elas, as quatro que, com o príncipe, haviam concebido os bastardos pela força da magia. Enquanto os seres de fogo destruíam inúmeros fiéis, alguns poucos tentavam, em vão, transpor espaços a fim de ganhar o interior da primeira torre. Tendo em vista que a frente de batalha, ou melhor, da chacina, estava na parte exterior dos templos, as Presenças se mantiveram cerradas na crença de que suas criações suplantariam o ataque, afinal, nada parecia poder superar os bastardos. — Eles não conseguirão nos dominar. Enquanto estivermos juntos, a força dos nossos filhos se manterá — bradou Pyriel. Mas sem que eles percebessem, um pequeno foco de luz começou a sobrevoar a tribuna, chamando a atenção dos que lá estavam. E sobre a grande mesa do plenário, pousou o intrépido querubim Caliel, cujo peso da chave- mestra que carregava no pescoço parecia pender-lhe o corpo para baixo. — Ora, se não é o bravo capitão da Câmara — tripudiou o príncipe das Presenças, ao perceber que o pequenino não havia fugido com os demais. — Mas eu não creio que este seja um bom momento para visitas... — provocou-o, com certa ironia. Caliel não se deixou apavorar e, com a rapidez que lhe era peculiar, começou a revoar o salão em círculos, atraindo inúmeras Presenças que lá estavam. Incautas, elas investiram sem sucesso contra o camareiro-mor, o qual se pôs a abatê-las e assim, contribuir para que o círculo mágico que dava vida aos bastardos fosse arranhado. Ao liquidar os seus primeiros alvos, Caliel foi ávido na direção da távola de Pyriel e, de uma só feita, dilacerou os anjos da Presença Issiel e Kharyel, dois dos partícipes da cerimônia que havia criado os estranhos alados. Impressionado com a manobra de Caliel, o príncipe rebelde sentiu que a força das criaturas havia sido, de pronto, consumida em dois quintos. Na vargem, os guerreiros, que até então eram meros alvos, passaram a ver centenas de oponentes se autoconsumirem no ar, o que deu mostras de que a tese de Baalberith estava certa: da vida das cinco principais Presenças, dependia a dos bastardos. Encontrando as brechas que precisavam, Miguel, Lúcifer e alguns soldados começaram a rodopiar velozmente pelo ar e, confundindo os inimigos, conseguiram se aproximar dos dutos inferiores das seis torres. Aproveitando-se das peculiaridades do conhecido terreno, voaram pelo seu interior, explodiram o chão da tribuna e nela ingressaram, colocando em polvorosa as acuadas Presenças que lá estavam. Com um caminho aberto e a força reversa diminuta, a paridade de armas foi finalmente alcançada e, avessos às artes bélicas, os anjos magos foram presas fáceis. Cientes do êxito da manobra, parte da legião que havia ficado em Artium invadiu aquelas edificações e arrasou sumariamente as Presenças lá escondidas. Com o violento passamento dos rebeldes, os bastardos começaram a sumir com rapidez no campo, deixando aquela poderosa barreira de fogo comprometida e proporcionando uma aproximação maciça das torres. Tão logo Arisy-El e Jostiel, os dois outros membros da távola mágica, foram mortos por Miguel e Lúcifer, a guerra passou a ter o tempo contado. Pyriel, que havia pouco ainda achava que seria o próximo Deus, estava amedrontado, afinal, nem mesmo a sua mágica tinha sido hábil a protegê-lo. E se eram as cinco Presenças os vetores dela, a fonte daquele poderio proibido se esvaiu tão logo elas começaram a ser dizimadas. Percebendo que o seu mundo ruía, o príncipe se viu premido pelos que estavam ávidos em justiçá-lo e tentou escapar. Encurralado diante dos que o subjugaram, Pyriel soube que o seu destino estava selado, pois se ficasse vivo, o perigo da magia viveria nele. — Eu ia mudar toda a nossa existência, seus tolos! — disse coagido. — Mas prefiro encarar a minha morte a sobreviver a uma derrota, agora consubstanciada no passamento de minha ordem. — O anjo mago encarou Miguel e Lúcifer e, a este último, fez lembrar. — Tu és o primeiro entre nós. Não permitas que a nossa espécie seja alijada do conhecimento e da sabedoria. — Com essas palavras, o príncipe das Presenças deu alguns passos para trás, sacou uma adaga e, como nobre que era, tratou de dar cabo honroso da própria vida, no que não enfrentou a resistência de seus demais confrades. Bastou uma incisão em cada pulso para que ele caísse de joelhos e, aos poucos, visse o próprio corpo se desfazer. Porém, antes de desfalecer, Pyriel encarou o líder seráfico novamente e balbuciou. — Não te esqueças, Lúcifer. Tu és o zelador da nossa força. O serafim se enfureceu com aquela observação e golpeou o pouco que restava do irmão, cujas cinzas se desfizeram no ar e levaram consigo os últimos seres de fogo que ainda resistiam na área do conflito. Miguel ficou deveras confuso com a expressão de Lúcifer, pois nela enxergou ódio. Mas que ódio seria aquele? De Pyriel? Da ousadia dele? Ou algo que lhe era nato, mas ainda oculto? Bem, num futuro ainda distante, o marechal dos arcanjos teria a sua dura resposta. A primeira guerra no Céu teve um saldo catastrófico: milhares de anjos mortos e uma ordem inteira extinta. Pyriel tinha um plano odioso que visava depor o Criador e impor as presenças como autônomas e autossuficientes, mas ele falhou. Findo o conflito, Deus mandou arrasar a casa de Artium e, a Miguel, confiou a essência de todos os sortilégiospraticados pelas presenças, bem como a guarda do espólio delas numa área cerrada da biblioteca do Quartel-General dos arcanjos. Depois daquele conflito, pouco se ouviu falar nas Presenças, pois, com o tempo, elas acabaram, de certa forma, esquecidas. A arte em geral morreu com aquela ordem, e muito pouco daquilo sobreviveu. E após aquele levante, o Céu só seria novamente banhado em sangue com a insurreição motivada pela criação do homem, onde Lúcifer e um terço dos celestes haveriam de cair, forçosamente, em desterro. * * * Ainda oculto naquela ala da biblioteca dos arcanjos, Azeyzel voltou a si num repente e, após ter rememorado passo a passo a trágica história da ascensão e queda das Presenças, da qual havia sido partícipe, ele fechou abruptamente o velho livro proibido, não sem antes arrancar algumas páginas que o interessavam. E como as lembranças vieram; elas logo partiram. — Obrigado, Pyriel... — balbuciou para si mesmo. Olhando em sua volta, a Potência se levantou e recolocou o tomo na mesma gaveta de onde o havia tirado. Embora ele não tivesse conseguido tudo, aquilo já era um começo; o começo da execução de um plano que culminaria com a sua fuga do Céu. Capítulo 4 Uma voz no deserto NAQUELES DIAS DA MOCIDADE DE JESUS, Lúcifer vivia apenas de amarguras. Suas sucessivas derrotas o haviam deixado desgostoso e, embora há muito preso nas profundezas do Inferno, a sua sanha em destruir o homem simplesmente não findava. Diante do seu séquito sombrio, a única coisa que lhe apetecia era o fato de que os descendentes de Noé, frutos da má semente de Noemah[57], haviam contaminado grata parte da humanidade, a qual vivia apenas para burlar as leis do Eterno. Nas terras más por ele geridas, a escuridão e o fogo se confundiam e, como se buscasse respostas para perguntas que sequer tinha, o príncipe deposto dos serafins fitava os seus vastos domínios com certa inquietude. Mas num estranho repente, os anjos derrubados lá presentes, que iam e vinham sem rumo certo, começaram a ter os movimentos paulatinamente desacelerados, até que, num dado momento, cessaram de vez. Incomodado com o ocorrido, Lúcifer se viu diante de um reino imóvel, como se os seus demais irmãos perdidos tivessem se tornado estátuas de minério rochoso. Pois em meio ao grande salão negro, um incomum ponto de luz surgiu de maneira inadvertida e, após atingir certo corpo, revelou, ao banido monarca, um Ente que havia muito o visitava apenas em seus mais ocultos pensamentos. Lúcifer se ergueu, incrédulo e devagar, pois as palavras lhe haviam fugido. Acuado e surpreso, o combalido creditou tal cena a uma possível alucinação. — Pai? — Vejo que finalmente tens um trono só teu — disse o espectro de Deus, ao estacionar diante dele. Ainda procurando uma explicação plausível para tudo aquilo, Lúcifer não se conteve e inquiriu a imagem do Elevado. — Mas o que viestes fazer aqui? Tripudiar do teu primogênito ou finalmente dar cabo dele? — provocou-Lhe. — Percebo que nem mesmo esse tempo todo de degredo foi o suficiente para acalmar o teu coração. — Coração este que partistes ao preterir-me perante o tal Adão; se é que eu bem me lembro — replicou na sequência. O reflexo do Altíssimo deu alguns passos na direção do antigo serafim da aurora, fazendo com que ele, instintivamente, recuasse. — Nada temas, meu filho, se eu te quisesse morto, certamente nós não estaríamos conversando. Eu vim até aqui apenas para parlamentar contigo. — Parlamentar? — indagou perplexo. — Sim — anuiu calmamente. — E dar-te uma oportunidade de tentares cumprir a jura que me fizeste quando da tua queda. — Eu creio que já cumpri aquele meu voto — retrucou Lúcifer. — Os homens são fracos e pervertidos; eles dão mostras disso desde que foram criados, e sob o meu expresso protesto, frise-se bem — respondeu, circundando o seu sólio. — Pois parece-me que a perversão e a fraqueza não são características apenas deles, pois não? — indagou o Altíssimo, ao encarar o que havia sobrado dos anjos rebeldes expulsos do Céu após o homem ter sido concebido. Lúcifer declinou e se pôs a ouvi-Lo. — Bem, eu vim para dizer-te que, em breve, deixar- te-ei livre; tu e teu confrade, o outrora procurador-geral da Ordem de Diabolus. — Baalberith? Mas por quê? — Existe alguém na Terra; um descendente de Davi a quem deverão encontrar. — Isso não me parece ser tão difícil. — Isso caberá a ti descobrir. — E o que mais? — Caso consigas vertê-lo, a Terra que tanto queres finalmente será tua. — E se eu não conseguir? — Bem sabes que, cedo ou tarde, serás julgado por mim; o teu destino está preso a isso. Portanto, creio que não tens muito a perder. — E quanto a Baalberith? Por que ele? Deus mirou os caídos estagnados e fitou as severas feridas que neles ainda envergavam. Sabedor de que havia sido Baalberith a trazer as doenças aos homens, esclareceu: — Leva-o como teu lugar-tenente. Talvez ele te seja útil. Lúcifer refletiu por um instante e, ainda mostrando certo inconformismo, ousou enfrentar Deus. — Eu me recuso a entender tudo isso — asseverou confuso. — A esses humanos miseráveis que vivem a desacatar-Te, Tu sempre estendes a mão e lhes dá graças. E a mim, o Teu primeiro filho que só Te desobedeceu por uma vez, tratas com desdém e punição. Por quê? Pois o Eterno, que já dava as costas ao banido líder dos serafins, parou por um instante e, virando-lhe a face, respondeu com uma pergunta. — E por acaso, alguma vez me pediste perdão? — O velho decaído cerrou os olhos e abaixou a cabeça sem mais ponderar. Sua soberba, ali posta às claras pelo próprio Pai, o fez concluir que era essa a diferença dele para com alguns homens: a ausência de arrependimento. E ante ao silêncio dele, o Altíssimo arrematou. — Procura o tal homem a que fiz referência no deserto das montanhas fincadas ao sul de um lugar chamado Israel. Eu não irei interferir — finalizou, o Senhor. A sacra imagem Dele então se desfez e, no alto da capela infernal, um pequeno sulco se abriu. Baalberith despertou sem nada entender e Lúcifer, inquebrantável na sua sanha por eliminar o homem, tomou-o consigo e partiu rumo ao local citado pelo Altíssimo, deixando para trás um Inferno congelado. Pois aqueles dois anjos caídos acusadores — frise-se, os mais poderosos deles —, estavam novamente livres. E se eles iriam ter êxito no desafio dado, isso ainda era um mistério. * * * Tão logo chegou fugida a Séforis, Mirian foi acolhida por Esther, irmã do servo Zeevi, o qual, anos após, faleceria em razão da tuberculose que carregava. Segundo notícias chegadas tempos depois de Magdala, Martha não demorou a descobrir que tinha lepra, doença que desenvolvia havia muito tempo sem que soubesse, e, em razão da extremada vergonha que passou a ter de si, acabou fechando-se para todos e ceifou a própria vida: saltou para a morte física da mesma torre em que havia aprisionado a irmã. Faltou-lhe, por assim dizer, coragem espiritual para sobreviver às duradouras consequências resultantes das diversas más ações que havia praticado. Mas enfim, o que seria feito dela? Qual o destino de uma perversa suicida? No lugar dos costumeiros ajudadores do novo Éden que recepcionavam os que deixavam a Terra, o espírito de Martha foi arremessado numa estrada sombria, cujo único fim culminava na tétrica Tesouraria das Almas. Embora ela, em vida, tivesse esperado que a sua dor fosse ceifada com a morte, ocorreu exatamente o contrário. Embora fisicamente extinta, ela se arrastava com extrema dificuldade por aquele caminho, afinal, ainda experimentava as dores causadas pelos seus ossos fraturados. Essa marcha angustiante — para nós, talvez rápida, levando-se em conta a discrepância de tempo e espaçodas nossas dimensões —, aos suicidas, poderia significar centenas de anos terrestres, talvez um caminho quase sem fim. Pois demorou muito para que o espírito inquieto de Martha, acompanhado de outras tantas almas aflitas e igualmente destroçadas, chegasse ao penoso destino que lhe cabia e, ao finalmente aportar na capela do Guf, ela foi triada e posta diante do austero tesoureiro Razyel, o qual leu seus direitos. — Mulher, tu estás carregada de ódio e sentimentos negativos. E deverias saber que, salvo em defesa própria, apenas Deus pode tirar uma vida. Pois agora, antes de aplicar a penalidade que te cabe, eu te indago para que conste dos registros: queres ajuda? Embora aparentemente estranha, essa pergunta fazia parte do rito de admissão na Tesouraria, pois todos os que para lá iam envergavam rancores e mágoas, estando avessos a qualquer oferta de auxílio. Em caso positivo, algo raríssimo de se ocorrer, o Guf possuía uma ação pastoral formada por espíritos que lá davam expediente para resgatar aqueles que eventualmente os chamassem. Mas transtornada ante ao infausto fim que lhe havia cabido, ela retorceu ainda mais a face e, visivelmente deformada pelas graves lesões que teve em vida, potencializou ainda mais o sofrimento que envergava. — Não; eu não quero. — Foi o que pensei — pontuou Razyel sem encará-la. — Pois, por ter burlado a norma alusiva à preciosidade do sopro divino da vida; tu, que na Terra tiveste o nome de Martha de Migdal, serás sentenciada a cumprir uma pena de prisão celular por um mil novecentos e noventa e seis anos ordinários, ao final dos quais serás, vez mais, reconduzida a esta bancada para uma audiência de revisão — afirmou lançando algumas notas num livro de controle carcerário. — Guardas, levai-a à cela dois, nível inferior leste, a mesma que pertenceu àquela que essa segregada tanto odiou. Pois, enfim, coube a ela o mesmo espaço que, por séculos, havia sido ocupado pela psique de sua irmã Mirian, a encarnação da alma de Lilith. Mas Martha não haveria de dormir; sequer seria congelada. Sua consciência suicida haveria de lhe perseguir, e suas dores continuariam até que o arrependimento a visitasse; se visitasse. Essa era a pena para os suicidas. Embora pensassem que a vida se extinguiria com a morte, ela continuaria real e ainda bem mais dolorosa. * * * Desde então vivendo modestamente em Séforis, embora auferindo haveres dos pesqueiros herdados de Magdala, Mirian se mudou para a cidade de Cafarnaum[58] em busca de novos ares, onde, por puro altruísmo, se tornou um misto de curandeira e comadre, ajudando as mulheres na parição e assistindo os doentes em razão das suas habilidades com as plantas e ervas. Entretanto, Mirian lutava, havia muito, contra a epilepsia e, embora já contando com trinta anos e ainda sendo extremamente bem-feita para a idade — o que era bem raro naqueles dias —, ela jamais havia se entregado a alguém, tamanho o temor que sentia em experimentar um assalto ao seu corpo ou ser rejeitada em razão da moléstia, cujos efeitos eram assustadores. Some-se a isso que alguns cidadãos, a maioria deles, não a enxergava com bons olhos, dada as práticas não convencionais a que ela, por via inconsciente, até então se dedicava. Mirian não sabia, mas a origem daquela doença lhe havia sido impingida enquanto viveu no corpo de Lilith, em razão de um severo trauma sofrido na Lua, ao se debater braviamente no parto de Asmodeu[59], o primeiro nefilim[60]. Embriagada pela magia das Presenças e pelo sangue venenoso de Samael[61], ela nada experimentou em sua primeira vida, mas carregou graves resquícios para a segunda como parte da sua pena. E assim ela vivia, embora caridosa e benevolente, constantemente triste pela solidão e pelo medo de enfrentar o mundo. Mas na cidadela, ela tinha ouvido falar de um Deus maior do que tudo; entretanto, diante das agruras que já havia experimentado, não conseguia, por fraqueza espiritual, enxergar um propósito firme para crer Nele. E por lidar com doentes das mais variadas ordens, crianças inclusive, Mirian custava a crer que uma força divina pudesse permitir que as pessoas sofressem tanto. Que o dissesse o pequeno Yigal, filho de uma meretriz chamada Joana, tetraplégico de nascença, e de quem ela se apiedava. Embora tivesse sido uma das amantes prediletas de Cusa, um alto intendente da corte de Herodes Antipas, Joana foi expulsa de Tiberíades assim que engravidou dele e, entregue à própria sorte, sustentava a si e ao desafortunado filho fazendo uso da extremada beleza e, com ela, praticando o comércio do próprio corpo. Muitas desgraças Mirian via e vivia à sua volta. Mas o sentido disso tudo isso estava prestes a mudar. * * * Manejando uma plaina afiada sobre um pedaço irregular de madeira bruta, aquele artesão, cuja tez era escurecida pelo sol e pela descendência, dava mostras de que possuía especial habilidade com a ferramenta. Embora tivesse uma compleição física pouco avantajada se comparada à de um romano, com cerca de um metro e setenta de altura, seus braços eram bem fortes; afinal, a árdua lida o havia forjado daquela forma. E usando um arremedo de turbante para aplacar o suor que já lhe corria a testa, Jesus, com trinta anos de idade, observou, satisfeito, que aquela trave serviria bem para dar base a uma mesa que lhe havia sido encomendada por um mercador de Naím. Tentando debelar o calor que castigava Nazaré naqueles dias, ele pausou o trabalho e lavou o rosto com um pouco da água que a sua irmã Lígia lá havia deixado. Mas ao sentir o frescor percorrer a sua face e molhar superficialmente a barba arredondada que cultivava, ele percebeu quando, diante de si, pousou uma pomba branca cujos olhos brilhavam como dois diamantes. De repente, um clarão extremo dela surdiu, e Jesus ouviu uma voz metálica ressoar: “Carrega a tua fé e busca pelo teu primo João; ele tem algo especial para ti”. E após alguns instantes, a luz recuou, e a ave levantou voo, deixando para trás um extenso rastro de fogo, que logo desapareceu no horizonte que marcava o rumo para o mar da Galileia. Quando Maria adentrou nos aposentos do filho e o viu, ansioso, arrumar uma bolsa com algumas mudas de roupa, ela sentiu que o momento tão esperado finalmente havia chegado. Maria sorriu para o rebento, e ele a olhou como se quisesse dizer algo; algo que sequer sabia o que era. Mas antes que Jesus tivesse qualquer reação, a virgem declamou: — Não digas nada, meu filho... — asseverou, passando as mãos delicadas pelos seus longos cabelos negros que estavam presos. — Vai e segue o teu caminho, e quando precisares de acalento, sempre terás a mim, o colo daquela que, mesmo menina, te trouxe ao mundo e cuidou de ti com zelo e amor. Jesus abraçou afetuosamente a mãe e partiu confiante, levando consigo tudo o que havia aprendido durante a vida. Na “bainha”, ao invés da afiada espada de fogo comum a todo arcanjo, apenas a fé nas palavras de Deus... * * * Em Hasbaya, encosta do mesmo monte[62] onde Azeyzel e o seus anjos vigilantes haviam descido séculos antes para testar os homens, nascia uma torrente cristalina que se juntava aos lagos Hula e Tiberíades, desaguando no Mar Morto[63]: o Rio Jordão. Naqueles dias religiosamente turbulentos, os leitos do Jordão serviam de palco para um polêmico pregador que dava grande importância ao ritual do batismo, onde a imersão em água simbolizava uma mudança de vida perante o Criador. Envergando uma longa barba rebelde, vestindo um cinto de couro e trajes feitos de pele de camelo, o pastor João, na época, alcunhado de João Batista, vociferava duramente ante a uma multidão que nelevia uma presença firme e digna de crédito. — Arrependei-vos e purificai-vos! Pois aqueles que, entre vós, estiverem embriagados de iniquidades jamais terão acesso ao reino do Senhor! — gritava, ao imergir, na água, aqueles que aceitavam o chamado batismo, rito unificador sem precedentes na cultura judaica, como passagem para uma nova vida; uma que tivesse a bênção e a graça do Eterno. — Extirpai os vossos pecados e sede chamados de filhos de Deus! — insistia, ao vê-los tomar de volta a margem ocidental do Jordão. Pois em meio a muitos curiosos, dúvidas, por vezes, emanavam, como a de um astuto fariseu[64] que o indagou de maneira inusitada. — És tu o esperado Messias? — Não; não sou eu! — respondeu sem perder o foco no que fazia. — O verdadeiro Messias está a caminho e haverá de nos guiar entre as trevas — disse, ao abaixar e erguer uma mulher nas águas do rio. — Dizem que és o profeta Elias[65] reencarnado. Negas isso? — inquiriu, com vigor, um arrogante saduceu[66] que lá estava. — Elias não está morto! — bradou João. — Ele é um arauto de Deus que foi levado pelos anjos e irá voltar quando do juízo final — completou nervoso. E, indiretamente, não lhe faltava razão. O profeta Elias, porta-voz do Eterno e responsável pelo épico desafio aos vaticinadores de Baal[67], havia sido arrebatado séculos antes naquele mesmo rio por uma guarnição de arcanjos que, numa carruagem feita de fogo, o levaram, ainda vivo, para o Ministério dos Grandes Estudos do Éden Espiritual, onde ele permaneceria se preparando para o dia em que o Guf fosse temporariamente fechado e um julgamento geral, visando regeneração e mudança ocorresse, já que lhe caberia o papel de auxiliar os arcontes que executariam essa empreitada. — Diga-nos então quem tu és! — insistiu o mesmo indagador. — Eu sou apenas um errante do deserto que vos batiza com água — respondeu mais calmo. — Mas haverá de vir um, bem mais forte, o filho encarnado de Deus, que vos batizará com o fogo; o fogo que irá queimar e jamais se apagará — afirmou, erguendo uma das mãos com o punho cerrado. — Pois enquanto aguardamos esse bravo, peço que me recebas com os braços abertos — interferiu, de maneira inusitada, um viajante que, envergando uma surrada túnica de linho listrada, lá repentinamente aportou. Inquieto com a ousadia daquela fala, João ignorou os fariseus e os saduceus que o estavam provocando e tentou se aproximar de tal homem, o qual, já ganhando as margens do Jordão, também foi de embate ao profeta. E ao se aproximar do estranho, o evangelista felicitou-se de forma inesperada, algo incomum ao seu temperamento conhecidamente rude. — Jesus? — indagou, ao reconhecer as feições do primo. — Jesus! — repetiu, acelerando os passos e indo ao encontro do bem quisto recém-chegado. — Primo João, felicito-me em encontrar-te depois de tantos anos! — disse o filho de Maria, após ter percorrido cem quilômetros de estrada e três dias de caminhada para vê-lo. — E eu que sempre te imaginei substituindo o teu pai na linhagem sacerdotal, agora te encontro como um respeitado pregador — ponderou, fazendo referência ao finado Zacarias. — Deus me deu outros misteres não menos nobres, como agora podes ver — esclareceu, aludindo aos ritos que ali fazia. — Até hoje rogo para que meu pai não me tenha tido como um desertor — lamentou saudoso. — Mas e tu, primo? O que fazes tão longe de Nazaré? — Bem sei que há muito não nos vemos — justificou-se. — Mas uma estranha força me moveu até aqui para auferir algo de especial pelas tuas mãos. — Jesus; Jesus! Ainda vejo em ti aquela mesma força que te destacava entre nós. Mas hoje eu não passo de um pobre pregador, que nada mais faz do que lavar os pecados alheios. — Pois se é um banho de fé que me podes dar, saibas que eu o aceito de bom grado, afinal, creio que foi para isso que eu, certamente guiado por um poder superior, deixei o meu ofício e a minha família. João Batista convidou Jesus para adentrar o Jordão e, estando ambos com a água pela cintura, aquele se pôs ao lado do filho de Maria e lhe segurou as mãos, imergindo-o a fim de completar a liturgia. Assim que Jesus se viu coberto pela água, o mundo pareceu parar. Embora aquela manobra não tivesse demorado mais do que alguns segundos para os demais espectadores, a sua mente ficou estagnada e, sem muito entender, viu-se ainda como um alto arcanjo no início da criação do mundo. Na sequência, lhe vieram imagens da viagem que havia feito pelos quatro cantos da Terra em busca da matéria árida que forjou Adão; dos anos em que ajudou o primeiro homem a transformar-se num e, finalmente, do palácio de Deus onde recebeu um beijo que o pôs em coma e o fez renascer: “Tu és o meu anjo, o filho eterno, o mensageiro do pacto”. João, que ainda tinha o primo em mãos, auferiu indiretamente repentes das mesmas visões que ele, e crendo estar diante do prometido, levantou-lhe o corpo para fora d’água, sendo tocado por um brilhante clarão que se elevou do rio, fazendo com que olhasse, assustado, para aqueles que os cercavam. E foi então que aquela mesma pomba, cujos olhos brilhavam como pedras preciosas, ressurgiu inesperadamente e pousou no ombro direito de Jesus, encarando-o e voando em seguida. Feito isso, um fulgor tomou conta do corpo do ungido. Pois maravilhado com o que viu, João admitiu: — Eis aqui o cordeiro de Deus, o justiçador que fará o império do mal decair; aquele que irá tirar os pecados do mundo e quitar a dívida de Adão. Pois a profecia feita pelo Altíssimo ao seu primogênito na Terra, aquela de que um homem nasceria da sua casa para salvá-lo e, por via de consequência, a toda a humanidade, havia sido, finalmente, cumprida. Estranhando aquele espetáculo, os saduceus e os fariseus que lá estavam para inquirir João se retiraram incomodados e receosos. Iniciava-se ali, então, a fatal rusga deles com o mestre de Nazaré. * * * A noite já havia caído quando Jesus e o primo conversavam diante de uma fogueira que se consumia próxima ao rio. Ciente de que o caminho para o aguardado Messias havia sido finalmente aberto, o primeiro revelou: — Estou convicto da relevância do trabalho que irei fazer, mas é certo que precisarei ser muito forte para não sucumbir às fraquezas que me cercam — revelou. — E tu bem sabes que, sem um preparo espiritual, eu talvez não resista, afinal, aqui somos apenas carne, e a carne é fraca por demais. — Creio então que deverás desintoxicar o teu corpo a fim de te aproximares do Criador, pois se suplantares o desejo físico, estarás bem apto para enfrentar qualquer adversidade. — Tens razão — assentiu Jesus. — Por isso, deverei partir para reconhecer a minha dependência de Deus e, em assim agindo, renovarei as minhas forças, as quais precisarei muito daqui por diante. — Faça isso, rabi — disse João num tom respeitoso. Jesus sorriu e se levantou, partindo, ainda naquela noite, para o rigoroso deserto da Judeia, onde haveria de permanecer, em jejum, por quarenta dias e quarenta noites. * * * Depois que conseguiu sair do regime fechado, Azeyzel se tornou um exemplo de bom comportamento carcerário, passando a cumprir todas as tarefas que lhe eram emprestadas. Mas ninguém ainda sabia que ele havia conseguido furtar algumas páginas do Tratado das Presenças cerrado na biblioteca dos arcanjos e, no silêncio dos seus regulares resguardos, as estudava de maneira quase que obsessiva. As fórmulas mágicas deixadas por Pyriel lhe tomaram a mente e, influenciado pelos fragmentos da energia perdida daquele suplantado príncipe-primeiro, ele conseguiu decifrar o raro segredo do teletransporte, talvez o seu passaporte para tentar escapar dali. Mas a condenada Potência aindanão estava satisfeita. Azeyzel também queria de volta as asas e a genitália que lhe havia sido trinchada, tamanha a gana de novamente sentir o prazer carnal que o havia feito cair do Céu num passado distante. Entretanto, um pequeno pormenor emergiu. Embora os sortilégios da criação absoluta não estivessem ao seu alcance — somente Miguel os detinha —, alguns indicativos de regeneração parcial foram por ele desvendados naquelas anotações proibidas, mas nada que pudesse dar base a muita coisa. Era uma fórmula restrita e bem difícil, cuja limitada matemática eclodia em apenas uma escolha: ou as suas asas; ou o seu órgão sexual. Por não conseguir esquecer Layla-Li, mesmo sabendo que séculos já haviam se passado desde a morte dela no dilúvio que atingiu a cidade de Nod[68], Azeyzel optou pelo último, afinal, caso conseguisse fugir, tentaria encontrá-la onde quer que fosse, pois, no Céu, ele soube que os homens e mulheres falecidos reencarnavam de tempos em tempos e, portanto, existia uma chance em mil de ela estar na Terra, quiçá num corpo físico tão ou mais tentador que o de outrora. Pois sem causar alardes, ele logrou, aos poucos, recriar aquilo que os lanceiros haviam lhe arrancado com ferros quentes, a exemplo do que havia feito Pyriel com o braço decepado de Barakyel e, por debaixo das vestes, agora se sentia apto para tentar se aventurar fora do Céu. E tal haveria de ocorrer naquele ciclo de tempo, após a conclusão das suas lidas periódicas. Como de costume, um dos arcanjos-sentinela abria e fechava as celas dos presos que cumpriam pena no regime semiaberto, a fim de que eles recebessem uma nova ordem de missão e passassem um período trabalhando fora do cárcere. Ao aportar na enxovia de Azeyzel, o guarda o chamou como de praxe e, ante o silêncio verificado, adentrou no cárcere. Ao examiná-lo, e vê-lo inteiramente vazio, ele constatou que o chão da masmorra estava estranhamente queimado e, assustado — as fugas tentadas eram raras, e as consumadas impossíveis —, deu o alarma. O oficial do dia foi, de pronto, ao seu socorro. — O que houve, soldado? — indagou-lhe um primeiro-tenente. — Senhor, eu não sei como reportar, mas o prisioneiro sumiu! — respondeu o praça, deveras surpreso. — Mas isso não é possível! Vinde! — bradou para os demais vigias que lá chegaram, ariscos. — Vasculhai tudo! — completou. Ao revirarem aquele diminuto aposento que possuía, além da entrada, uma janela gradeada intacta, os soldados encontraram alguns escritos cuja origem não puderam precisar. Assim que foi avisado do evento, Metatron dirigiu-se depressa para a ala das masmorras e, ao examinar o chão chamuscado e o material achado, ficou deveras preocupado. — Isso não é nada bom... — balbuciou. — O que descobristes? — indagou o oficial que ali estava. — As Presenças — lamentou. — Ao que me parece, Azeyzel furtou algumas páginas do tratado proibido que estava cerrado na nossa biblioteca. — Olhe, senhor! — interferiu um dos carcereiros. — Veja isso! — completou, ao entregar ao escriba-mor outra listagem, desta feita, uma com nomes estranhos aos dos prisioneiros celestiais. — Isso está ficando cada vez pior... — preocupou-se ao examinar o título. — Este documento é uma reprodução do rol de presos da Tesouraria das Almas — esclareceu Metatron, ao se referir ao achado. — Mas esperai... “Layla-Li!?” — indagou a si próprio ao lê-lo. — Layla-Li? — retrucou o oficial. — Quem é ele? — É “ela”, tenente; uma humana — esclareceu, ainda inspecionando visualmente a cela. — Bem, por ora, reportes a fuga ao alto comando — disse o escrivão já esboçando sair dali. — Em senhor, para onde vai? — indagou o encarregado. — Falar com Deus e rumar ao presídio de Guf. Talvez, lá, seja o único lugar onde eu consiga auferir informações que nos levem ao destino do fugitivo — finalizou num tom enigmático. * * * Os rigores do deserto da Judeia eram temidos. De dia, o calor extenuante; à noite, o frio rigoroso. As diversas montanhas daquele ambiente inóspito contrastavam com um imenso mar de pedregulhos estorricados que se faziam cobrir por uma vegetação predominantemente seca, a qual tornava o local rude e quase sempre solitário. Pois, numa das cavernas formadas pelas estruturas rochosas que lá existiam, precisamente, no alto do monte da Quarentena, dois anjos caídos recém-libertos por Deus espreitavam à espera de alguém, decerto, especial. — Nós já estamos aqui há quase quarenta dias terrestres, e nada de o tal homem, ao qual o Senhor fez menção... — pontuou Baalberith a Lúcifer. — Paciência, meu inquieto irmão; paciência. Ele virá. Visivelmente agitado, Baalberith se levantou, arisco e, coberto por uma capa escura e desgastada nas pontas, atingiu a entrada da gruta a fim de novamente observar a fauna desértica formada por serpentes, lagartos e escorpiões. Foi então que, em meio a um caminho estreito fincado abaixo deles, finalmente surgiu a cambaleante silhueta de um homem adulto, protegido por um manto surrado que lhe cobria a cabeça e o protegia do sol. — Lúcifer! Olha! — asseverou Baalberith. O archote observou o recém-chegado detidamente e nada mais disse; fez- se em luz e saltou do alto da caverna. E sem dizer uma única palavra ao irmão que havia ficado para trás, pôs-se a espreitar o tal errante, a fim de encontrar o melhor momento de abordá-lo e cumprir a jura feita ao Pai. O dito homem — Jesus — já estava vagando pelo deserto havia quase quarenta dias, alimentando-se superficialmente de pequenas ervas e do raro líquido que extraía de um ou outro pedaço de cacto que porventura encontrava. Pois, ao vê-lo agachar-se para tentar auferir o fragmento de um na relva, Lúcifer se achegou. — Não achas que essa refeição é um tanto mirrada, meu amigo? Ao voltar o rosto para o caído e nele fixar os olhos, algo de estranho aconteceu, como se a visão de ambos fosse invadida por um clarão inesperado que os remeteu a outros tempos. Jesus ficou um tanto confuso, de repente, viu uma cena não muito nítida de dois anjos se abraçando; e Lúcifer teve um repente do mesmo palco, do último contato afetuoso que havia tido com Miguel antes deste ser sugado pela greta de luz que os levou à Terra durante a época da criação do homem. Mas num instante, tudo voltou ao que era, e ambos se encararam com divisada seriedade. — Desculpa a minha reação — respondeu Jesus, na crença de estar sofrendo algum tipo de alucinação em razão da fome que sentia. — Eu não imaginava encontrar alguém em meio ao deserto. Ainda tentando compreender o repente mental que havia tido, o deposto serafim passou a encarar o homem e, encontrando escora numa estrutura rochosa lá fincada, ponderou: — É estranho como algo em ti me soa familiar — afirmou seguro. — Mas me satisfaz uma pequena curiosidade: de que casa descendes? — Da casa de Davi — respondeu com os lábios secos e superficialmente feridos. — Davi! — repetiu o banido de forma efusiva. — O pequeno pastor de Belém que suplantou o último nefilim liberto do Inferno[69], se é que eu me lembro da lenda. — O próprio — assentiu Jesus, ao sentar-se deveras cansado. — E o mesmo que reinou sobre Israel no lugar de Saul[70], pois não? — continuou o ex-príncipe dos serafins, ao ensaiar pequenos passos na direção dele. — Ora, pareces conhecer bem a história das escrituras sagradas — afirmou o fadigado ungido já tendo o interlocutor próximo de si. — “Escrituras sagradas” — repetiu Lúcifer, fazendo aparente pouco caso da terminologia. — Digamos que eu conheça bem a sofrida saga do vosso, ou melhor, do “nosso povo” — corrigiu-se com os braços abertos. — Aliás, também me recordo que Davi vem de uma casa ainda bem mais antiga, a casa de Adão; o “filhode Deus” — disse, forçando a pronúncia dessa última expressão. — É verdade, vê-se que sabes sobre Ele — anuiu Jesus, pressionando o lado esquerdo do pescoço. Ao ouvir aquela frase que aludia à figura do próprio Pai, o olhar frio do suplantado serafim se estagnou no nada por um instante. Mas retomando o seu foco inicial, ele continuou: — Bem, pois se Adão é pai de Davi, ele, por via de consequência, também é o teu pai, afinal, tu descendes do primeiro homem. — Decerto — concordou Jesus. — Deus é o Pai de todos; o meu e o teu também. — Bem, nisso eu não discordo de ti, meu judiado rapaz — continuou, com o tom da voz, embora grave, sempre dócil. — Mas o que fazes neste deserto? És um viajante ou estás perdido? — inquiriu Jesus. — Eu sou apenas um viajante e me faço acompanhar de um irmão que está abrigado numa caverna não tão longe daqui. Ele tem, por assim dizer, um pequeno problema epitelial que o impede de se expor demasiadamente ao sol — ponderou Lúcifer em alusão às feridas que ambos mascaravam em razão do rigor do ambiente desértico. — Mas e tu, meu amigo, o que fazes aqui? — Eu vim comungar, buscar purificação para cumprir um árduo desígnio que me aguarda. — Um desígnio! — repetiu o derrubado, de forma sempre bem humorada. — Pois eu e meu irmão, de certa forma, também viajamos em razão de um. Mas ao ensejo, nós estamos aguardando o sol diminuir para seguirmos o nosso caminho. E até que isso ocorra, que tal fazeres um pouco de companhia para nós? Jesus sentia algo de estranho naquilo tudo, mas os rigores do tempo em que ali estava pareciam ter lhe subtraído os freios inibitórios e, quase que por instinto, decidiu acompanhar o seu oculto inimigo. A caverna onde Baalberith estava escondido ficava no alto de uma colina de rochas e, à direita, havia um espaço que margeava um grande precipício. Assustado com a aproximação de Lúcifer e daquele estranho — seria ele o tal homem? — o ex-procurador celeste recuou para o fundo da gruta e permaneceu de atalaia. — Irmão? — bradou Lúcifer, ao lá adentrar sem muita pompa. — Eu trouxe comigo um viajante, ele nos fará companhia até o sol se pôr. Baalberith se aproximou aos poucos e, ao vê-los de perto pela fresta do seu capuz, foi tomado por um estranho déjà vu, como se, ao observar Lúcifer com a mão esquerda no ombro daquele homem, enxergasse o serafim acompanhando Miguel num dos extensos corredores, do agora distante, palácio de cristal. — Achegai-vos — disse ele com um ar solícito. — Apenas sinto em não ter mais água ou comida para te ofertar — asseverou, dirigindo-se ao homem. — Se é sincera a tua acolhida, isso já me basta — respondeu-lhe Jesus. — Pois, sim, os nossos dias não têm sido fáceis. A comida e a água rareiam, e quem muito tem, pouco compartilha — continuou Baalberith, ao olhar sutilmente para Lúcifer. — Em verdade, amigos, eu jamais entendi os motivos pelos quais Deus permite que Seus filhos sintam sede e fome. Aliás, bom seria se nós, como filhos Dele, pudéssemos transformar pedras em pães, não achas? — indagou Lúcifer, tomando uma pedra na mão direita. Entretanto, mesmo estando com o corpo faminto e deveras judiado, ele não se verteu àquela assertiva. — Discordo de ti — respondeu ironicamente. — Nem só do pão vive o homem, pois a palavra de Deus é o verdadeiro alimento da alma, é ela que nos dá força e estabilidade para vivermos — explicou. — E se edificarmos as nossas vidas na palavra Dele, estaremos sempre aptos a enfrentar quaisquer privações, mesmo as físicas, e ainda assim permanecemos fortes. Baalberith, outrora um dos maiores oradores do Fórum celeste, retorceu os lábios para cima em silêncio, como se tivesse ficado surpreso com a astúcia daquela pertinente resposta. Lúcifer sorveu a observação e jogou a dita pedra no chão. Entretanto, não desistiu. — De fato, denotas ser instruído. Mas em teus olhos, eu enxergo uma majestade nata, como se tivesses nascido para liderar exércitos e nações. — Exércitos... — riu novamente Jesus. — Quando eu era menino, costumava imaginar que lideraria um. — Pois também percebo que tens predicados de sobra para, agora homem feito, tomar a frente de um verdadeiro. Tu não achas, irmão? — indagou Lúcifer a Baalberith. — Sim, claro! E vendo-te diante de nós, estou convicto que tens condições para guiar-nos na conquista de todos os reinos e riquezas do mundo. Basta dizeres sim; e nós te seguiremos — replicou o exilado serafim das leis. Não se sabe se pela fome ou pelo extenuante cansaço, Jesus passou a ser, inadvertidamente, cercado por visões, as quais lhe apresentaram palácios gigantescos edificados em ouro e pedras preciosas. Suas condições físicas lhe trapacearam os sentidos e, aproveitando-se disso, Lúcifer potencializou aquele cenário e fez com que luzes diversas convergissem entre si e revelassem lugares ainda mais belos. — Vê toda a exuberância! Irmana-te a nós e tenhas tudo isso aos teus pés. Pois o que mais vale nesta vida miserável, se não as glórias e as fortunas? — provocou o velho archote. Livrando-se das alucinações, Jesus logo voltou a si e, ainda revelando certo humor, o que lhe era peculiar, ponderou: — Nós não devemos nos curvar à opulência, irmãos, mas apenas ao poder de Deus! — respondeu num tom professoral. — Não é lícito adorarmos as riquezas, pois aqui na Terra, ao contrário do que ocorre no reino do Senhor, “tudo está; e nada é”! — afirmou, seguro. Baalberith se levantou arisco, afinal, Jesus parecia ser um advogado nato, alguém cujos argumentos e domínio da dialética, mesmo diante de um anjo letrado nos cânones legais como ele, pareciam irrefutáveis. Mas Lúcifer, a quem se poderia pensar estar furioso, apenas o aferia. E a sua desconfiança ia aumentando a cada palavra que Jesus dizia, afinal, por que o Altíssimo os soltaria para testar aquele humano em especial? Jesus então, finalmente, se ergueu, agora fazendo menção de ir embora. — Agradeço-vos a acolhida, a companhia e a breve conversa. Mas agora eu devo continuar com a minha lida. Os dois, agora inquietos, também se levantaram e se puseram a acompanhar Jesus até a saída da caverna. — Espera, amigo — obstou-lhe Baalberith, já o vendo próximo do precipício. — Vê-se que crês piamente na palavra divina, no que não te censuro. Mas antes que te vás, permita-nos um último repto. — Sim! — engatou Lúcifer, arisco. — Olha para baixo! Se acreditas piamente em Deus, lança-te daqui! Pois se a tua crença é verdadeira, Ele certamente te tomará nos braços e não permitirá que morras. Sem prejuízo disso, nem assim Jesus alterou o seu temperamento sereno e, na mesma toada de outrora, arrematou a ambos: — Nada do que disserem me fará ceder, pois se eu me lançar, o farei somente para pôr o Senhor à prova; o que me é, ou melhor, nos é defeso. — E dando mostras de que, inconscientemente, havia enxergado a verdade que estava por trás dos dois, finalizou. — E se sois quem sois; bem sabeis que um filho jamais deve pôr o pai à prova, afinal, não se dá ultimatos a Deus. O Messias esboçou um novo sorriso — um mais seguro — e lhes deu as costas, retomando o seu caminho por entre as intempéries do deserto. Sua cabeça doía, o seu estômago gemia e o seu corpo reclamava pelo alimento físico, mas ele continuou adiante e não olhou para trás. Ao vê-lo se afastar da caverna, o rei do Inferno balbuciou sozinho: — “Vai e ora, até que o Redentor surja de tua casa um dia e vos salve”. — O que disseste, irmão? — perguntou Baalberith confuso. — “Vai e ora, até que o Redentor surja de tua casa um dia e vos salve” — repetiu pacientemente. — Eu ouvi Deus dizer isso a Adão ao expulsar ele e a segunda mulher do Éden. E esse tal humano descende da casa dele. Agora, eu é que te pergunto, Baalberith. Seriaesse homem o tal “Redentor”? — Talvez. Pois ele superou a riqueza, o poder e a glória terrestre que ofertamos, coisas que qualquer humano haveria de adorar — ponderou sob a aquiescência de Lúcifer. Ambos se quedaram silentes e, somente aí, entenderam os motivos que levaram o Eterno a soltá-los temporariamente do Inferno. Se nem Lúcifer ou o próprio Baalberith conseguiram quebrar moralmente aquele homem, que força seria capaz de fazê-lo? Mas aquela, para ambos, havia sido, por assim dizer, uma primeira derrota. Ainda soltos, eles não desistiriam de tentar colocar todos os percalços possíveis na vida terrena do ungido. Enfim terminou o quadragésimo dia em que Jesus andava pelo deserto e, já sem forças, caiu vencido pela fraqueza corporal, e surpreendentemente diante dele, surgiu um espectro que se estagnou. Trêmulo, o homem se esforçou para erguer o próprio rosto a fim de identificá-lo, e viu, diante de si, o desconhecido amigo de seu pai José, o seu querido irmão celeste numa outra vida, o príncipe Gabriel. Em seguida, desfaleceu. O anjo-mor o levantou cuidadosamente e, de um bornal impregnado com a água mais pura do mundo, saciou-o da sede física. Diante do estado deveras debilitado em que o avatar de Miguel se encontrava, ele jamais se lembraria daquele momento. Não naquela vida. — Venceste uma dura partida, irmão. Continua assim, firme, pois aqueles que te amam aguardam, pacientemente, a tua volta para o Céu — acalentou-o, o mensageiro de Deus, ao deixá-lo em segurança. Ao despertar algumas horas depois, Jesus percebeu que as feridas e os rigores do deserto haviam recuado. Refeito daquela provação, ele se recolocou a caminho do Jordão para começar a arregimentar aqueles que o acompanhariam pelos próximos três anos, até que a sua tarefa na Terra acabasse. Era, enfim, chegado momento de escolher os seus primeiros discípulos. * * * Quando o Eterno foi cientificado da fuga de Azeyzel, Ele não mostrou aparente zanga. Os arcanjos estranharam tal atitude, mas Metatron logo desconfiou que tudo aquilo talvez fosse parte de um quebra-cabeça ainda maior. — Ele deixou o regime fechado por uma iniciativa unicamente tua — disse Deus sem repreendê-lo —, mas se tencionas ir até o presídio de Guf, te dou a minha licença, pois a chave que procuras talvez esteja por lá. — Eu o encontrarei e o trarei de volta, Senhor. Sem demonstrar rigor, o Eterno abrandou a face e esclareceu: — Talvez o destino remeta Azeyzel a outras plagas que não as masmorras do teu quartel. Ele buliu com forças consideradas proibidas e, seja pelas Minhas, pelas tuas, ou pelas mãos dos homens, ele, inexoravelmente, haverá de pagar pelos seus crimes. Metatron não entendeu aquela assertiva de pronto, mas, sem maiores delongas, reverenciou o Pai e o deixou. — Adeus, meu filho... — sussurrou o Eterno, ao vê-lo sair do salão, como se já soubesse do fim que o esperava. Após ter uma rápida conversa reservada com o seu principal oficial de cartório, o Anjo Lamechiel, Metatron partiu do Céu, levando consigo os seis cartapácios que escrevia sobre a história da humanidade, os quais, àquela altura, estavam estagnados no capítulo referente à tentação de Jesus no deserto. E na tétrica Tesouraria das Almas, ele, em breve, haveria de chegar. * * * Assim como Gabriel, ao ali aportar pela primeira vez, o Arcanjo Metatron deixou um extenso túnel de fogo e foi cuspido na dimensão secreta do Guf, onde a dor moral pairava no ar parecia contagiante; aliás, tal não poderia ser diferente, dada a péssima energia que os desencarnados lá produziam. Após as necessárias apresentações ao severo corpo da guarda, ele atravessou rapidamente o portal que levava à capela da Tesouraria, onde, sem demora, foi ter com o seu irmão de armas, Razyel, desde sempre o guardião daquele tenebroso lugar. — Layla-Li? — retrucou o tesoureiro-mor, ao ser inicialmente perquirido pelo visitante. — Sim, major. Eu verifiquei, ainda em Vigilum, que após a tragédia em Nod, a alma dela veio para cá, dadas certas fornicações a que ela praticou na Terra. — Layla-Li... Sim! Eu me lembro do nome. Ela foi a companheira de um dos anjos vigilantes castrados; Azeyzel se não me trai a lembrança. — A própria — assentiu. — Mas agora, eu preciso saber. Ela reencarnou ou ainda cumpre pena sob a vossa autoridade? Razyel levou o escrivão-chefe aos grandes arquivos da Tesouraria, onde, com ele, passou a buscar informações sobre a tal mulher, outrora esposa do fugido líder dos vigilantes. Foi um dos seus ajudantes que localizou o prontuário, o qual foi, de pronto, entregue a ele. — Cá está. Entretanto, pelo que consta dos autos, ela não está mais aqui — esclareceu Razyel. — O espírito dela reencarnou há cerca de dezoito anos terrestres. — E para onde foi? — inquiriu ansioso. — Deixa-me ver... Na última atualização, surde que ela foi solta em razão de uma petição de clemência feita por Harual — concluiu surpreso. — Harual? Eu não me recordo de nenhum procurador com esse nome. — Ele não é um de nós, Metatron. Harual é um espírito humano, bisneto de Adão, e um dos primeiros a atingir o ápice de evolução no Éden Espiritual. Embora muito elevado, ele, ou melhor, “ela”, pois se trata da alma que originalmente pertenceu a uma mulher, aceitou um ministério um tanto ingrato, que é o de compor, como obreira, a nossa pastoral de auxílio. — Pastoral de auxílio? E o que é isso? — perguntou curioso com o teor daquela desconhecida expressão. — É um grupo importante formado por alguns espíritos que atingiram o nível máximo de desenvolvimento mental, e agora se dedicam a ajudar os que aqui rogam por socorro. — E a alma dela pleiteou esse auxílio? — Do prontuário, consta que Layla-Li já reencarnou seis vezes, e para cá voltou na mesma conta, sempre por imputações graves, a última delas, por ter assassinado dois filhos ainda impúberes. Pois lhe foi esclarecido que a sétima chance seria a sua última e, em razão disso, ela pediu ajuda a Harual, a qual passou a prepará-la para essa nova existência, que se daria numa província chamada Judeia. — Judeia... — repetiu. — Então é para lá que devo ir. Mas antes, eu gostaria de conversar com essa tal humana Harual. — Certamente. Um dos guardas o levará até a ação pastoral, estou certo que ela o receberá. Metatron agradeceu o irmão e seguiu um carcereiro que o encaminhou a uma das mais altas torres do Guf, onde permaneciam os obreiros espirituais. Ao aportar na entrada, o nobre oficial de escrivania observou de longe a forma similar de uma humana de avançada idade. Ela usava uma toga marrom bem simples, tinha os cabelos escuros e curtos e, de estatura, nada que ultrapassasse um metro e meio de altura. — Harual? — chamou. O espírito se voltou para o interlocutor e, sereno e sorrindo, estendeu-lhe as mãos. — Venha, arcanjo; achegue-se e traga a vossa paz. Metatron se aproximou ressabiado, entretanto, em razão da necessidade, logo deu início ao diálogo. — Desculpa a invasão e a oportunidade, mas eu estou à procura de informações sobre uma alma que ajudaste no passado, o seu primeiro nome de batismo foi Layla-Li. — A concubina da combalida Potência? — replicou Harual de pronto. — Uma alma deveras perturbada a qual muito auxiliei. — É muito importante que eu a encontre, pois a mesma Potência a que fizeste alusão escapou da prisão no Céu e certamente fugiu para a Terra atrás dela. — Layla-Li... — pronunciou calmamente. — A ela, foi dada outra oportunidade. A última. E a chave dela remanesceria numa escolha: ou a paixão imoral pela carne ou caridade pela palavra de Deus. E se ela vencesse essa etapa e não mais pecasse, migraria para a ala curativa do Éden, a fim de renascer por uma últimavez e cumprir uma importante missão com as almas dos dois filhos que ela matou em sua penúltima vida. — Uma assassina de crianças? Quanta desgraça! — lamentou o arcanjo. — Mas te referiste a “uma escolha”? — insistiu. — Sim. Pois, pelo que sei, esse anjo exilado que procuras tentará ser um obstáculo à evolução dela. Layla-Li está presa a um carma muito antigo e, somente ao extirpá-lo, conseguirá se libertar desses ciclos seguidos de reencarnação. — Desculpa, mas falaste em carma? — perguntou, estranhando o termo. — O carma é um conjunto de atitudes que enverga um fluxo de intenções, as quais podem ser boas ou más. Se boas, bons frutos nascerão; se más, os frutos podres se alastrarão. — Então devo apressar-me antes que Azeyzel a encontre. — Mesmo que não consigas interceptá-la, já existe alguém na Terra que tentará se encarregar de resgatá-la. As vidas passadas de Layla-Li carregam pecados gravíssimos, e apenas a voluntariedade de uma remissão poderá salvá- la. Livre-arbítrio, meu caro arcanjo, lembra-te que os homens e as mulheres o possuem desde que perderam o primeiro paraíso em razão de um pedaço de figo — arrematou sorrindo. — Bem, eu espero que ela faça a escolha certa — pontuou. — Embora deveras distorcida, ela me pediu essa chance, o que é bem difícil de acontecer por aqui. A cura efetiva deve ser conquistada pela alma, pois a fé suplanta não apenas os efeitos, mas também as causas. Antes que te vás, deixa-me entregar-te o atual código genético dela — disse ela, ao tocar-lhe as mãos. — Pois, para o faro aguçado de um bom arcanjo, ele certamente será útil. — Agradeço muito a tua preciosa ajuda, foi um grande prazer conhecer-te — disse, após auferir aquelas informações. — No que eu puder ser útil, sabes onde me encontrar — respondeu, ofertando-lhe novamente as mãos. Metatron se despediu e partiu da Tesouraria, pois a responsabilidade pela fuga de Azeyzel parecia incomodá-lo. E bem mais do que isso, parecia assombrá-lo. Capítulo 5 Pedras em peixes EMBORA ROMA estivesse apenas preocupada em evitar tumultos e recolher impostos nos territórios dominados, não era segredo que alguns focos de insurgência na Judeia incomodavam Tibério[71], o qual havia assumido a regência em razão do passamento de seu padrasto, César Augusto. Era a chamada época dos profetas e, crentes na vinda do Messias para salvá-los, o povo judeu se tornou, de certa forma, atrevido, chegando ao ponto de menoscabar publicamente dos dísticos reais que, como ordens de submissão, haviam sido forçosamente fincados no grande Templo em Jerusalém. Tencionando impor controle na região — ou melhor, minimizar problemas —, o finado imperador, por influência do chefe da Guarda Pretoriana, Lúcio Sejano, havia, quatro anos antes, nomeado o esposo de uma de suas filhas como procônsul[72] da província romana na Judeia[73], subordinando-o apenas ao governador da Síria, Lucius Vitélio. Entretanto, a incerteza causada por um partido subversivo cujos membros eram conhecidos por “zelotes”, judeus que incitavam a rebelião armada contra a opressão de Roma, acabou, de certa maneira, unindo o tetrarca[74] da Galileia ao prefeito[75] outrora indicado pelo imperador Tibério, o sul-italiano Pôncio Pilatos. Este, um samnita[76] da ordem equestre e detentor do título de tribuno[77] ainda jovem, não mostrava aparente satisfação em administrar aquela parte tumultuada do mundo, pois acreditava que os seus talentos poderiam ser melhor aproveitados em outras plagas, já que as suas aspirações políticas não poderiam ser, a contento, executadas em terras notoriamente hostis. Registre-se que a chegada do novo prefeito romano em Jerusalém não havia sido pacífica, tendo os zelotes causado grandes baixas nas coortes de infantaria[78] que acompanhavam a caravana do tribuno, dando mostras que o trabalho de administração naquelas terras, outrora geridas por Valerius Gratus[79], não seria fácil. De antemão, ele percebeu que os seus sacrifícios ao deus Marte — feitos em Roma antes da viagem — pareciam ter sido em vão. Pois visando manter uma boa política com Herodes Antipas, o prefeito romano e a esposa dele, a belíssima Cláudia Prócula, neta do finado Augusto, deixaram temporariamente a cidade portuária da Cesareia[80] e o receberam, acompanhado da mulher Herodíade[81] e da enteada Salomé, numa grande ceia no palácio que havia pertencido ao finado Rei Herodes I, mais precisamente, na fortaleza Antônia[82], o qual, havia muito servia de residência oficial para os prefeitos romanos em Jerusalém, mormente quando vinham aplicar a justiça. E naquela mesma oportunidade, o sacerdote do Templo judeu nomeado por Gratus oito anos antes, o saduceu Josefo ben Caifás, também se fazia presente. — Honra-me sobremaneira essa suntuosa recepção, prefeito! — anunciou Herodes, no afã de tentar bajular o romano. — Pois tens a minha recíproca, Antipas — respondeu-lhe Pilatos com aparente gentileza. — A distância nunca nos foi proveitosa, principalmente quando os zelotes estão aumentando em número e conspirando como nunca contra Roma. — Zelotes... — interferiu Herodíade de forma impertinente. — Fossem apenas eles os chacais que nos rodeiam... — Perdoes a minha esposa, prefeito, mas ela anda um tanto aborrecida com a má língua de alguns difamadores do deserto. — Difamadores? — insurgiu-se ela, elevando a voz. — Pois saibas que a língua de João Batista já deveria ter sido arrancada de sua garganta há muito tempo! — asseverou enfezada. Cláudia Prócula, usando uma brilhosa estola romana que a embelezava ainda mais, assustou-se com aquele tom; afinal, ela tinha a personalidade calma, era gentil e educada, incapaz de interferir — ao menos publicamente — num colóquio em que não fosse convidada a participar. — Pareces ter uma enorme prevenção contra esse tal João Batista, senhora — observou Pilatos com sarcasmo, afinal, ele sabia da notória má-fama moral dela. — Eu confesso que ouvi alguns relatos sobre ele, mas até então, o tinha apenas como um selvagem que prega entre os escorpiões. — Ele ofende a mim e à minha filha, acusando-nos de práticas vis e hediondas — bradou cercada pela perturbadora Salomé, rebenta do seu primeiro matrimônio. — Mas o meu esposo, que de tudo aufere absoluta ciência, nada faz para calá-lo de uma vez por todas. — O problema é que João Batista não viu com muita simpatia o intempestivo divórcio de meu irmão Filipe e Herodíade e, em razão de um meio parentesco dela comigo[83], vive a acusar-nos de incesto — esclareceu em tom de zombaria. — Mas ele é um pobre mendigo adorado por muitos. Atormentá-lo seria pouco sábio, afinal, nós não queremos problemas em razão de assuntos religiosos. — No que fazes muito bem — assentiu Pilatos. — E perto de Barrabás[84] — continuou o tetrarca —, o líder dos zelotes, ele não representa perigo algum — concluiu, mirando a esposa de forma rude e com o intuito de tentar fazê-la se calar. — Barrabás... — interessou-se o romano. — Há tempos que nós estamos atrás desse tal rebelde, desde que aqui cheguei pelo que me lembro. Por vezes, recuso-me a crer que ele, de fato, exista, e que nada mais é do que uma lenda criada pelos insatisfeitos para dar aparente força moral aos movimentos revolucionários. — Ele existe, é um velho ladrão e assassino — completou Antipas. — Embora ultimamente corram certos rumores de que a liderança dele vem sendo ameaçada por uma espécie de lugar-tenente, um homem chamado Judas, também alcunhado de “Iscariote”. — Iscariote? — indagou o tribuno curioso com aquela palavra. — Sim. É uma corruptela da expressão “sicário” ou o “homem da faca”, um segmento mais agressivo dos zelotes que se encarregade degolar os seus inimigos — esclareceu Herodes, ao espirituosamente correr um dos polegares sobre o próprio pescoço. — Esses homens precisam ser presos, eles são muito perigosos — pontuou o romano, aparentemente preocupado. — Além de perigosos, são astutos — interferiu Caifás que, até então, se mantinha silente. — E os que são presos pela Polícia do Templo[85] acabam revelando muito pouco. Some-se a eles a malta de ladrões que infesta a cidade, dentre os quais, um chamado Dimas, o qual tem predileção por saquear os judeus de maior posse para desafiar-nos. O Sinédrio pôs um prêmio pela sua captura, mas ele enverga a simpatia da ralé e, em razão disso, continua fora das nossas mãos. — Dimas... O tal que rouba e deixa rosas? — retrucou o prefeito, ao revelar saber dos métodos do bandoleiro. — O próprio. Pois eu temo que a sua postura sacrílega ainda o leve à cruz — sugestionou o sacerdote. — Ladrões... — pontuou Pilatos, com aparente desdém. — Mas, e sobre esse tal João Batista, o que a autoridade judaica nos diz? — indagou o romano, voltando o rumo da conversa. — João é deveras agressivo em suas falas, por isso tem a veneração de muitos descontentes. Ele e os seus não acatam passivamente as nomeações sacerdotais feitas por Roma, inclusive a minha, se me permite dizer. — Quanto a isso, saibas que eu mantenho empenhada a minha palavra inicial, e no que depender de mim, continuarás à frente da função, desde que mantenha o teu Templo-Estado em consonância com os auspícios de César — asseverou o prefeito em razão da conhecida ganância de Caifás. Aliás, é digno de menção, que o encargo de sumo-sacerdote era extremamente lucrativo naqueles dias, sendo que o atual ocupante dele descendia de uma nobre família judia, cuja moral, ao menos diante dos princípios retos de Deus, não era nada imaculada. E para o prefeito romano, essa vivência colaborativa era necessária, afinal, ele precisava do apoio dos líderes religiosos judeus para manter a paz e arrecadar impostos. Vencida a ceia, e já recolhidos nos suntuosos cômodos que cabiam ao gestor romano, Cláudia Prócula queixou-se ao marido. — Não gosto dessa gente, Pôncio. Eles são muito estranhos, de certa forma, promíscuos por assim dizer. — Promíscuos? — repetiu sem dar muita atenção. — Sim. Não percebeste como Herodes encara a enteada? Parece que ele está a devorá-la com os olhos. — Refere-te à tal menina, Salomé? — perguntou, ao retirar parte da túnica que o ornava. — Menina... — pontuou, fazendo aparente pouco caso. — Pois aquela “menina” parece ter a morte nos olhos, arrepio-me só de lembrar dela. — Cláudia, querida, eu os classificaria como um mal necessário. E no momento atribulado em que vivemos, precisamos deles, assim como eles de nós. — Eu não sei. Tenho um mau pressentimento quanto a eles, e também quanto a este lugar — desabafou, aparentemente incomodada. — A tua única preocupação, agora, deve ser com o nosso herdeiro — disse Pilatos, referindo-se à gravidez da esposa. — E deixa, que da gestão política deste fim de mundo, cuido eu — finalizou abraçando-a. Cláudia Prócula aceitou aquele afago, mas não desfez a feição temerosa. Ela ainda não sabia, mas os seus medos, em boa verdade, não eram tão infundados. Aliás, das pérfidas ações daqueles que ela agora dizia temer, eclodiria, num futuro não tão distante, o destino de todos eles. * * * Ainda era manhã quando João Batista viu Jesus surgir na linha do horizonte, egresso dos rigores do deserto da Judeia. Ao lado do rude pregador, estavam dois dos seus mais queridos discípulos, André e o jovem João. Quando Jesus se aproximou deles, o primo pôs-se de joelhos e, respeitosamente, lhe beijou os pés ainda sujos de areia. O aprendiz André, que estava a consertar uma tarrafa, estranhou a atitude do mestre, mas, por respeito, não a censurou. Ao erguer o rosto, o pastor disse aos dois. — Nada mais tenho a ensinar-vos. Eis aqui o filho de Deus, aquele que pregará para o mundo! Portanto, segui-vos; ele agora é o vosso rabi. — João, muito me honra ter sido tu o portador das ordens do Eterno — disse o ungido. — Não me agradeças, apenas cumpras a vontade Dele e redima, não apenas o nosso povo, mas o mundo todo. Ambos se abraçaram e verteram lágrimas sinceras, e finalmente, Jesus se colocou a caminho da sua aguardada incumbência. André e João se puseram a segui-lo, sendo que o segundo, aparentemente ressabiado, olhava o novo mestre com certo receio, afinal, ele parecia estar bem abatido, resultado dos quarenta dias que havia passado no deserto. — Estás a pensar se sou eu mesmo aquele por quem esperáveis? — disse Jesus a João, que naquele instante, imaginava exatamente o que lhe fora perguntado. — Como sabes disso, rabi? Por acaso consegues ler pensamentos? — Não. Digamos que eu leia a linguagem corporal das pessoas — gracejou. — E é isso que a tua está a me dizer — afirmou sorrindo. — Então vieste, finalmente, nos libertar? — completou André, apressando o passo para ficar ao lado dele. — Percebo que és um pescador, André — ponderou o rabi, em alusão à tarrafa que ele trazia nos ombros. — Pois da mesma forma que enches a tua rede de peixes e separas os bons dos ruins, eu vim para tarefa similar, a de apartar os maus dos justos através de uma ode de amor pela palavra. E quem a aceitar, tal qual da forma como dizes, será, por assim dizer, liberto. — Falas em redes cheias, mestre. Mas ultimamente, os peixes têm rareado nestas regiões, que o diga o meu irmão mais velho, cujo humor, em razão disso, não tem sido nada bom — queixou-se André. — E qual é o nome do teu irmão? — perguntou Jesus. — Ele se chama Simão; nós somos filhos de Jonas. — Então vamos visitá-lo; quem sabe eu consiga tirar-lhe o aziúme com algo que tenho para ofertar a ele. André se surpreendeu com o agradável desprendimento do novo professor, o qual diferia, em muito, de João Batista, principalmente pela maneira serena e gentil de se expressar. Entretanto, achou por bem adverti-lo. — Desculpa-me, rabi, mas eu creio que, na atual conjuntura, somente uma rede abarrotada de peixes seria capaz de aplacar o extremado mau-humor de Simão. Jesus achou graça naquela observação e afirmou: — Vamos até ele então! Creio que o teu irmão terá uma surpresa. Ao chegarem próximo ao grande braço d’água onde os barcos vindos do mar da Galileia aportavam, os três não demoraram muito a encontrar o tão falado pescador, cujos gritos de contrariedade, como já era de se esperar, o destacavam dentre os demais. — Uma noite inteira de trabalho e nada. Nem uma mísera tilápia para podermos salgar — reclamava. — E depois, ainda virão aqueles malditos publicanos[86] exigirem taxas pela nossa inútil labuta — queixava-se, ao saltar do barco e atingir o raso. — Ao observar o irmão caçula acompanhado de João, Simão deu continuidade àquela tormentosa ladainha. — E tu? Ao invés de me ajudares com as redes, perdes o teu tempo com aquele desatinado que se alimenta de insetos — vociferou, fazendo pouco do Batista. Mas mesmo acreditando que aquela visita talvez fosse inútil, André se adiantou apenas em respeito ao recém-auferido professor. — Simão, ouve-me! Este é Jesus, filho de José; o nosso novo rabi. E ele insiste que tem algo a te oferecer. — Oferecer a mim? — Riu alto. — No momento, só me interessa encher as tarrafas para poder alimentar os nossos e saciar a sanha do fisco romano. André olhou para Jesus como se visse cumprida a assertiva sobre a rudeza do irmão. Pois o escolhido deu um passo à frente e entrou na água, a fim de se aproximar daquele pescador que, embora aparentemente incivil, não era de todo ruim no quesito sociabilidade, mormente a auferidaaos brados, mais típica dos romanos do que dos judeus. — Simão, por acaso tu sabes como Deus criou esses peixes que tanto desejas? — perguntou Jesus, ao imergir uma das mãos na água e retirar um punhado de pequenas pedras. — Antes deles, Ele criou as estrelas e, ao fazê-las cair no mar, deu vida às primeiras criaturas marinhas — esclareceu com alegria. — Pois, leva-me contigo e joga as redes mais uma vez. Quem sabe, tu tenhas melhor sorte — sugestionou. — E, por acaso, também és pescador? — bradou Simão. — De certa forma, sim... — respondeu-lhe o abnegado rabi. — Mas eu não vim até aqui para pescar peixes. — E o que então esperas pescar? Feras? — indagou com impertinência. — Não, Simão... Homens — concluiu, ao forçar o corpo e subir no barco. — E então? Tu não vens? — provocou Jesus. Simão olhou para o irmão e para João e, vendo latente confiança nos rostos de ambos, balbuciou algumas lamúrias desconexas e resolveu arriscar. — Tu és muito estranho, forasteiro. Mas eu confesso que fiquei curioso para ver onde queres chegar com estas tuas charadas. O barco zarpou e logo ganhou uma profundidade média, sendo que Jesus, sentado na popa e com o semblante tranquilo, apenas fitava Simão, o qual parecia se enervar ainda mais com aquela calma toda. Ao atingirem um ponto considerado ideal, Simão fez menção de lançar sua rede ao mar, mas Jesus o obstou. — Espera! O mestre levantou a mão direta, onde ainda jaziam aquelas mesmas pedrinhas douradas colecionadas na beira do lago e, na sequência, lançou-as na água. — Pronto! Agora, arremessa a vossa rede — disse, seguro, voltando à popa e nela encontrando assento. Simão espremeu os olhos em razão do sol que se fazia rigoroso e, com força, jogou o tecido de malha que impactou, aberto, naquele brilhoso espelho d’água. E, após alguns instantes, Jesus o encarou, como se o licenciasse a trazer de volta a armadilha. Pois tamanha foi a surpresa de Simão ao repuxá-la e, no seu pequeno convés, ver um amontoado de peixes impactar. Incrédulo, a sensatez simplesmente lhe fugiu naquele momento. — Pedras... Tu transformaste pedras em peixes — gaguejou. — As pedras ajudam a construir, a edificar — assentiu. — Acompanha- me, Simão. Vem comigo, e sê como uma pedra. Ao vislumbrarem o barco retornar, André e João ficaram maravilhados com a visão dos peixes e com o assombrado semblante de Simão. O primeiro, então, voltou-se para o irmão e falou: — Eu te disse, ele é quem nós esperávamos. — O teu irmão está agora entre nós, André — esclareceu Jesus. — E para nós, Simão agora será Pedro, uma das nossas mais valiosas pedras. * * * Depois do milagre dos peixes, os quatro partiram para a aldeia de Betsaida[87], com o intuito de dar início ao processo de evangelização. Lá chegando, a eles se juntou outro peregrino, Filipe, um conhecido dos irmãos pescadores. Impressionado com a desenvoltura de Jesus em interpretar as leis de Moisés sem o rigorismo e a hipocrisia dos fariseus e saduceus, inflexíveis e virtuosos apenas na aparência, Filipe tratou de procurar o amigo Natanael de Canaã[88], a quem havia conhecido na Galileia, a fim de participar-lhe que o herdeiro de Davi parecia finalmente ter chegado. Ao encontrá-lo orando sob a sombra de uma figueira, tratou de convencê- lo a se juntar ao grupo. — Eu falo sério, Natanael! É ele, sem dúvida! Três pescadores, incluindo o cético Simão, a quem muito conheço, o viram transformar pedras em peixes. — Pedras em peixes... — desdenhou. — E de onde vem esse tal mago, Filipe? — Ele é um artesão e vem de Nazaré; muitos estão a segui-lo para ouvir as suas palavras de fé e de esperança. — Nazaré? — Gargalhou. — E por acaso aquele vilarejo insignificante teria o condão de parir algo que prestasse? — Deixa de preconceitos! — respondeu Filipe, ao rebater a aparente má- fama que aquela aldeia gozava entre alguns judeus. — Eu não irei mais discutir Natanael, vem comigo e vê! E se não te convenceres, quedar-me-ei silente. — Filipe, Filipe... — lamentou, ainda incrédulo. — Só mesmo tu, um sonhador, para crer que o esperado Messias, um rei vindo da casa de Davi, sairia daquele mísero povoado agrícola — duvidou. — Pois, quanto a mim, amigo, confesso-te que já estou com as esperanças esvaídas sobre a efetiva vinda dele. Mas enfim, por mera comodidade, e pelo laço antigo de amizade, Natanael seguiu o amigo e, ao chegar a um pequeno lugar onde Jesus se fazia acompanhar de Pedro, João, André e mais alguns seguidores, foi, de imediato, surpreendido pela fala do rabino, que ao vê-lo diante de si, interrompeu um dos ensinamentos. — Vede, vós, amigos, eis aqui, diante de nós, um israelita de coração. Um que ainda reza durante o dia e também teme a Deus. Surpreso e assustado, o recém-chegado o indagou: — Como sabes que sou filho de Israel? E mais, que eu estava a rezar? — Antes que o teu amigo Filipe te chamasse, vi-te orando sob a sombra de uma árvore antiga, a qual, no primórdio dos tempos, carregou os frutos da ciência. — Natanael sentiu a espinha gelar. Por conhecer as leis e a saga de Adão, e concluir que Jesus fazia alusão a uma figueira, ele olhou para Filipe e tremeu. — Mas já que estavas sob uma grande figueira, ajuda-me a explicar um ponto de vista para os que aqui estão. Diz, por acaso ela tinha muitos frutos? — Sim... — titubeou. — Pois dá-nos a tua opinião. E se essa árvore estivesse seca e nada ofertasse, num período corrido de duas ou três colheitas, por exemplo, acharias justo ceifá-la a fim de que ela desse lugar a outra? — Eu... creio que não. — E por que não? — Por ser, a árvore, uma obra de Deus, entendo que ela, mesmo fraca, mereceria mais uma chance, ainda que fosse a última. — Assim como os homens — ponderou Jesus, já se levantando e indo em direção a Natanael —, os ramos e folhas das figueiras se renovam a cada verão, assim como a vossa fé que, como um novo figo que teima em nascer, agora também se renova. Mirando Filipe, Natanael disse: — Tu estavas certo. Eu vim e o vi. Ei-lo aqui diante de nós. — Fica na nossa companhia, Natanael — ofertou Jesus ao abraçá-lo. — Fica e sê chamado, daqui por diante, de Bartolomeu[89] — asseverou, sob a concordância do mais novo discípulo. * * * Com a arregimentação de um novo seguidor, Jesus decidiu retornar com eles para Nazaré, a fim de visitar a mãe, a quem não via desde que tinha partido para deflagrar o seu ministério. Maria se alegrou em ver o rebento bem e feliz e, ao seu turno, recebeu os cinco principais companheiros dele como se filhos seus fossem. Coincidentemente, na mesma noite, haveria bodas na cidade de Canaã, cidade natal de Natanael, agora Bartolomeu, a qual ficava a nordeste e cerca de sete quilômetros da vila de Nazaré. Acostumados à parca sociabilidade de João Batista, André e João ficaram entusiasmados quando Jesus anunciou que todos iriam para os festejos, onde a dança e a música não haveriam de faltar. Pedro e os demais não abriram mão do convite e, acompanhados dos familiares diretos do mestre, finalmente tomaram o caminho da tal cidade. Durante o trajeto pela estrada de Séforis, chamou-lhes a atenção o excessivo apego de Jesus a Maria, a quem expressava um carinho incomum de se ver naqueles dias. Aliás, ele não se avexava em dar, à mãe, constantes demonstrações públicas de afeto, abraçando-a e beijando-a com anotada frequência. Embora isso não fosse muito típico naquela sociedade, tal o era para o filho de Deus, que na mãe terrena via um porto seguro, um símbolo do amor puro, assim como aquele que o Eterno tinha para consigo e ele para com a humanidade. O casamento seria entre os filhos de duas famílias tradicionais da região e, aos costumes,ele transcorria sem adversidades, sendo que, ao verem Jesus dançando, os demais seguiram os passos dele, afinal, aquela série ritmada de movimentos nada tinha de ofensiva, pelo contrário, era um costume sadio do povo judeu desde os tempos de Noé. Aconteceu que, no decorrer da celebração, no terceiro dia, o vinho servido aos convidados terminou antes do previsto. Maria percebeu e olhou apreensiva para o filho, afinal, os convidados ainda chegavam de longe, e a mãe do noivo lhe era deveras querida, sendo que a falta da bebida poderia significar, ao menos para os pais da moça que contraía núpcias, um sinal de má sorte. Maria se dirigiu ao filho e lhe deu parte do ocorrido. Confuso, Jesus respondeu com um ligeiro movimento dos ombros, indiretamente dizendo “Mas o que pode se fazer, minha mãe?”. Pois a imaculada, um símbolo de grandeza num corpo mirrado, sorriu a ele e disse aos empregados: — O que o meu filho disser para fazer, façam! Pois para aqueles que seguirem o que ele diz, nada é impossível — afirmou, encarando-o e retornando para o lugar que estava. Entretanto, o teor daquela frase era bem mais significativo do que se podia parecer: “Sigam o que ele diz e nada será impossível”, ou seja, sigam as palavras dele e tudo se realizará; esse era o sentido figurado de tudo na visão vanguardista de Maria. Ao perceber a genitora insistir em fitá-lo com o canto dos olhos, Jesus viu-se premido pelo dever de não desfavorecer a felicidade daqueles que o haviam acolhido tão bem, assim como aos seus novos amigos. E mais, Maria deu a entender aos empregados, ainda que indiretamente, que a palavra dele era capaz de tudo para quem nela acreditasse. Nos seis cântaros vazios que lá estavam, ele pediu a um dos servos que os enchesse com água. Percebendo que o mestre estava a fazer algo, Pedro e Bartolomeu se levantaram e, curiosos, ficaram por trás dele. — Mas estão, senhor — disse o serviçal. — E o meu amo certamente me repreenderá se eu servir água ao invés de vinho. — Estão vazios, assim como vazios estão os corações de muitos. Enche- os, e o vazio que tens dentro de ti será preenchido com a esperança de dias melhores. Confuso, o servidor não mais contestou e encheu os vasos com a água. Feito isso, Jesus fechou levemente os olhos e sussurrou: — Faça-se a boa ventura dos cônjuges, hoje acolhidos em santo matrimônio perante Deus. — Em seguida, determinou ao criado: — Agora, toma uma jarra desse líquido e serve-o ao pai da noiva. Ainda incrédulo, o servo acatou, ressabiado, e levou o vaso conforme lhe havia sido determinado. Tal não foi a surpresa de Pedro e Bartolomeu — e do empregado, agora trêmulo — ao verem que o líquido vertido na taça do genitor da nubente estava rubro, era vinho. Ao provar o suave sabor daquele néctar, o homem disse satisfeito ao genro que ofertava a festa: — Sei que é costume servir o melhor vinho no início das comemorações e, quando todos estão entorpecidos, servir o menos nobre. Mas espanta-me que, mesmo passados três dias do início dos festejos, tu guardaste o melhor vinho para o final. Sem entender o que havia se passado, o noivo reverenciou as palavras do sogro e com ele brindou. Logo depois, os dois discípulos reportaram o feito aos demais que lá estavam, afinal, os poderes de Jesus pareciam ser sobrenaturais. E o filho de Maria, pondo-se novamente no lugar que lhe cabia, sorriu aos amigos e aceitou um pouco do mesmo vinho que o incrédulo empregado, com as mãos trêmulas, serviu a ele. Poucos, que não o serviçal, Maria, Pedro e Bartolomeu, foram testemunhas daquele milagre, afinal, o que importava era manter a continuidade das comemorações e não macular aquele momento de alegria. Mas ainda descrente, o servidor tomou coragem, procurou Jesus e o indagou: — Eu ainda não consigo crer, senhor. Não entendo como fizeste aquilo. — Pois então não crês no que os teus olhos veem? — Sim; não. Eu não sei... — respondeu ainda sem entender. — Como te chamas? — Eu... — hesitou. — Eu me chamo Tomé. — Tomé, se crês na verdade, segue-me. E se o fizeres, assim como aqueles cântaros que estavam vazios, a tua fé também será reposta. E ali, então, Jesus arregimentou mais um seguidor fixo, o sexto, que, com os demais, de lá partiu, tão logo o casamento findou. Na sequência, o círculo só passou a aumentar. Por onde passava, o filho de Deus chamava e as pessoas o seguiam, e quem o fazia não estranhava o poder da palavra dele, já que, daqueles lábios, saíam apenas boas novas de como o nosso próximo era importante. Embora Jesus estivesse se cercando de apoiadores, nem todos teriam por ele o mesmo apreço. E não apenas entre os homens, mas também entre os anjos, os mesmos caídos que ainda tentariam quebrá-lo. * * * Nas cavernas da Judeia, um ajuntamento de descontentes se reunia em segredo. Imbuídos apenas em atacar pela força, os zelotes haviam arregimentado um número razoável de colaboradores e, pelas mãos deles, muitas armas eram forjadas para alimentar o exército rebelde que aumentava dia a dia. Quando o finado Judas de Gamala[90], ainda na infância de Jesus, liderou uma revolta contra uma guarnição romana em Séforis, tal movimento ficou marcado como o ponto de início da seita dos zelotes, que, depois de anos adormecida, passou a ser liderada pelo bandido Barrabás, nascido nas vielas de Jopa[91] e, desde cedo, cunhado para odiar os seus conquistadores. Fervoroso em suas convicções, ele havia crescido com outro garoto também chamado Judas, homem extremamente crente na tese de que tudo que fosse feito em nome dos escolhidos de Deus era justificável, inclusive o assassinato. Diante disso, ele liderava os sicários, a ala mais radical dos zelotes, uma espécie de ajuntamento de “anjos vingadores” escalados para as missões mais agressivas. Embora sendo um homem de sangue e de armas, Barrabás sentia que, ao revés de João Batista, era ele o preparador para a vinda do Messias, a quem acreditava ser um conquistador, e não um simples profeta. Já Judas tinha a certeza de que o ungido não haveria de ser apenas um guerreiro, mas aquele que, também trazendo a palavra de Deus, agiria no tempo certo como um verdadeiro exterminador. Mas enquanto ambos aguardavam a vinda do Messias, rumores sobre a ação imiscuída de espiões de Pilatos se espalharam, trazendo desconforto ao grupo. E ao descobrirem que um dos judeus recrutados havia sido visto na companhia de um centurião[92] e, o que é pior, surpreendido com certa soma em dinheiro que lhe era incompatível, não houve sequer um julgamento. Judas interpelou o suspeito e, elevando o seu punhal ao alto como se pedisse uma bênção para aquele ato, degolou o pretenso delator, já que, com as informações dele, cerca de quatorze zelotes acabaram mortos na cruz. E sobre o cadáver do infeliz, o Iscariote rogou de joelhos e com os olhos fechados: — Deus é comigo; os traidores da fé não merecem viver. Esse era Judas. Capaz de qualquer coisa para trazer liberdade aos judeus, dono de uma fé insana, quase doentia, pois o que o movia era apenas a figura do Messias da espada. * * * Havia cerca de trinta anos terrenos que o Anjo Gabriel se deslocava com frequência entre o Céu e a Terra, principalmente nos primeiros anos da vida de Jesus, onde o seu florete de fogo fez a diferença na segurança da sagrada família. Após ter levado água ao ungido no deserto, ele finalmente voltou ao seu lar, sendo que, chamado que foi por Deus, Dele recebeu novas. — Como anjo de correio que és, doravante focarei os teus préstimos apenas para comunicar-me com o vosso irmão, cuja missão há pouco se iniciou. Daqui por diante, estás licenciado de ir à Terra com a constância que tens feito, afinal, Metatron saiu àcaça de Azeyzel e por lá estará. — E sozinho ele dará conta do encargo, Senhor? — No momento, ele está só, mas em breve outros três voluntários se juntarão a ele de forma paulatina. E todos ficarão por perto zelando pelo avatar de Miguel, até que a expiação se consume. — Como queiras. Mas..., Senhor — insistiu —, e o que será feito de Lúcifer e Baalberith? Pondero, pois ambos ainda estão livres, embora tenham, a princípio, falhado em verter Miguel. — Deles, eu me encarregarei depois. Entretanto, existem outros que ainda deverão tentar resistir. E quando o teu irmão terminar a missão que lhe foi dada, estejas certo que já tenho destinos traçados para ambos. — Como queira, Senhor. — Agora vai. Congratulo-te pelos teus sucessos, e logo te farei saber quem são os que descerão à Terra para acompanhar o teu irmão. O príncipe dos anjos deixou o palácio intrigado, afinal, o jogo parecia estar mudando. Que Miguel voltaria ao Céu em breve, era fato. Mas como e em que circunstâncias, Gabriel apenas descobriria quando fosse visitá-lo pela última vez, num longínquo e solitário jardim chamado Getsêmani[93]. * * * Findas as bodas de Canaã o grupo retornou para Cafarnaum, de onde iniciaram uma peregrinação que chegaria nas imediações da grande cidade de Jerusalém. Por onde passava, Jesus continuava a pregar, ao ponto de os ajuntamentos em volta dele começarem a chamar a atenção dos soldados romanos. “Mais um agitador judeu...”, caçoavam. Mas em contrapartida, ele certamente não era mais um. Sempre comunicativo e caminhando por entre as pessoas, Jesus destoava pela alegria, pela linguagem acessível e pela sinceridade moral. Acostumados aos fariseus, os humildes passaram a ver, diante de si, um pregador diferente, que ao invés de falar apenas de pecados e castigos, entoava temas sobre o amor e o reino de Deus. E nas suas andanças — agora já nas cercanias de Jerusalém —, ele foi instado nesse particular por um dos seus atentos espectadores. — Mestre, como é a nação de Deus? Embora já tivesse falado sobre ela, ainda menino, no Templo, diante dos doutores, o mestre não se fez de rogado e, com uma linguagem menos rebuscada, respondeu a dúvida. — A nação de Deus se assemelha a este grão de mostarda-branca! — esclareceu ao mostrar um fragmento da semente. — Como assim, rabi? — insistiu o observador. — O grão é pequeno, assim como a fé de algumas pessoas. Mas se for plantado e regado, haverá de crescer e se fará numa grande árvore, onde inúmeras aves haverão de encontrar bom pouso. Pois para entender o significado de tudo, compares as aves com as pessoas e o grão que se tornou árvore com a nação de Deus, a qual não está aqui ou acolá, mas dentro do espírito que habita em cada um de nós! — Mas onde fica esse lugar? — Num plano à parte, onde a justiça é feita aos que cumprirem os mandamentos divinos. — Referes-te às leis de Moisés? — perguntou um fiel. — Eu me refiro às leis do Sinai e, principalmente, à maior norma de Deus. — E qual é ela? — Amá-Lo acima de tudo, e ao teu próximo como a ti mesmo, afinal, Deus não é ameaça, é perdão. Eu não vim para quebrar as leis, mas sim devolver a elas o sentido original e com isso restaurar a fé. — Mestre, e o que é fé? — inquiriu uma mulher. — Pensa neste mesmo grão de mostarda que tenho em mãos — afirmou Jesus com entusiasmo. — Se a tua fé se aproximar de metade do tamanho dele, tu encararás uma amoreira e dirás: “arranca-te!”, e ela se soltará do chão e irá na tua direção! Isso é fé! É a confiança inquebrantável que depositamos no poder dos feitos de Deus sobre as leis da Terra! Ali também estava um cego chamado Bartimeu, cuja presença se fazia anunciar pelo tilintar de um pequeno chocalho que ele trazia junto à ponta do cajado. Tentando abrir caminho entre os demais, o velho passou a se guiar pela voz de Jesus, para quem então falou: — As vossas palavras me fazem crer que és o herdeiro do rei Davi. Pois, te peço humildemente que caminhes até mim e permitas que eu peça a tua bênção — apelou. Alguns discípulos ficaram nervosos com aquela situação, mormente o sisudo Pedro, mas Jesus o desestimulou e tomou a direção do cego. Pois ao se aproximar do rabi, Bartimeu procurou a mão direita dele e, ao encontrá-la, levou-a junto ao próprio rosto. — Tens as mãos muito sofridas, senhor; mãos de um trabalhador braçal. — E acreditas que essas mãos judiadas podem fazer algo por ti? — Senhor, enquanto eu te ouvia ensinar, visualizei facilmente em minha mente o reino a que fizeste alusão. Rogo então, sempre com respeito às coisas de Deus, que me licencies a ver a luz que irriga o dia. — E crês realmente que eu possa ajudar-te? — Eu pedi que vieste até mim, e tu o fizeste. Pois, para mim, tu és a amoreira da parábola. Jesus então colocou os polegares sobre as pálpebras maltratadas de Bartimeu e, após fazer alguns movimentos circulares, disse a ele: — A tua fé, grande como o Sol, acabou de libertar-te da escuridão! Agora abre os olhos e revê a luz que tanto aspiras. De nula, a visão do tal cego passou a turva; e de turva, passou, aos poucos, a encontrar sintonia, até finalmente se estabelecer, límpida. Num repente, Bartimeu largou o cajado e se dirigiu sozinho para uma fonte de água ali existente. Sentando-se próximo dela, colocou as suas mãos naquele líquido corrente e enxaguou o rosto como se o lavasse de todo o incômodo que havia experimentado durante a vida desde que a cegueira lhe havia acometido na infância. Agora sentado e tendo uma plateia estupefata à sua volta, ele fitou Jesus à distância e o descreveu fisicamente. — Eu consigo ver agora, diante de mim, um homem com a majestade no rosto. Ele tem os cabelos negros separados na altura dos ombros e a pele marcada pelo sol. Nele também enxergo serenidade e uma barba espessa, além de um olhar afetuoso e expressivo. Pois agora eu vejo e atesto, és o prometido que Deus afiançou ao nosso pai Adão. Tomé então presenciou Jesus fazer mais um milagre, o que o fez crer, agora sem maiores dúvidas, que o ungido estava diante de todos, inclusive dos que a princípio não conseguiam enxergá-lo. Satisfeito, ele sussurrou: — De fato, eis aí o verdadeiro portador da palavra. O nosso salvador. ∷ ∷ ∷ “Doravante, empresto-te o poder da vida, das palavras e da compaixão, e quem tiver fé, será curado pelo teu toque.” (Gênesis Proibido) ∷ ∷ ∷ Embora o povo estivesse começando a admirar Jesus em razão dos seus feitos, logo ocorreu que certo segmento passou a vislumbrar aqueles eventos com particular desconfiança. Atentos para qualquer ação que viesse a colocá-los em xeque perante o submisso povo judeu, os espiões do Sinédrio atentaram para aquela inusitada visita de Jesus às redondezas da cidade, bem como os efeitos dela sobre a massa. Entretanto, um respeitado fariseu daquela seita teve o privilégio de, em meio aos demais, assistir a uma das palestras do rabi de Nazaré. E enquanto a maioria dos seus desprezava o galileu, o bom Juiz Nicodemus, judeu de grande influência no Sinédrio, resolveu procurar Jesus em segredo e, sabendo que ele e os seus discípulos estavam acampados próximos ao jardim de Getsêmani para, no dia seguinte, iniciarem uma nova romaria de volta a Cafarnaum, decidiu visitá-lo quando a noite caiu. Percebendo que o fariseu se aproximava na escuridão acompanhado de outras duas pessoas — empregados —, Pedro se assustou e fez menção de sacar a sua espada. Mas Jesus o desestimulou e se levantou para receber aquele magistrado com o respeito inerente ao que ele representava na crença judaica. E não foi preciso que Nicodemus dissesse uma única palavra, pois Jesus, logo na sequência, oconvidou para se sentar junto a um espaço donde jazia uma cristalina corrente d’água próxima ao jardim. — Desculpai o adiantado da hora, rabi. O caso é que eu assisti a vossa explanação hoje à tarde, e confesso que fiquei muito impressionado com a interpretação que destes à palavra de Deus. E aquele conhecido cego, Bartimeu... Ninguém pode realizar uma cura como aquela se não estiver verdadeiramente acompanhado do Altíssimo. — Aquele cego sempre enxergou. O que eu fiz, foi apenas tirá-lo da escuridão — esclareceu. — Mas como operastes aquilo? — Eu já vos disse, apenas lhe abri os olhos — sorriu timidamente. — Sei que sois da parte de Deus, isso é fato. Mas vós também falais sobre o reino Dele, e foi por isso que eu vim até aqui, afinal, manejais com habilidade a nossa Lei. E se estiverdes disposto, eu gostaria de saber mais um pouco sobre a vossa visão do reino do Pai Eterno. Como se adentra nele? — Qual a vossa graça? — perguntou Jesus ao nobre. — Nicodemus ben Gurion, ao vosso dispor — respondeu solicito. Olhando para baixo e em seguida para o alto, Jesus respondeu a indagação de maneira serena: — Mestre Nicodemus, eis uma verdade inquebrantável. Ninguém poderá entrar no reino de Deus sem antes renascer em espírito. — Mas como é possível, a um homem, renascer? Por acaso haveríamos de voltar ao ventre de nossas mães? — Não. — Achou graça, o nazareno. — Em verdade vos digo, ou nós nascemos carne e seremos carne; ou renascemos espírito e seremos espírito, mas num outro plano. — Poderias me explicar melhor? — Todos os que andam sobre a Terra nasceram carne, e a carne invariavelmente se destrói. E os que renascem após aqui ter, serão espíritos, os quais não se consumem ou se destroem, afinal, são ligados ao espaço. — Jesus se levantou sem pressa e continuou a sua explanação. — Bem sabes que este plano já foi parte do reino de Deus. Mas o pecado apartou o homem Dele e tudo foi perdido, ou seja, depois disso, nós fomos impelidos a nascer carne para mostrarmos se somos ou não merecedores da vida eterna no reino do Senhor e, se fracassarmos, continuaremos indo e vindo, até limparmos definitivamente a nossa alma. — Então crês em vida após a morte? — A mansão de Deus tem muitas moradas, e ao contrário do que pode parecer, vida e morte não são conceitos antagônicos, eles se completam, pois mesmo os mortos ainda vivem — disse seguro. — E eu creio que saibas, como mestre que és, que há um palco diferente deste à espera desses assim chamados mortos. Os aprovados na escola da vida certamente irão nele ter, e os reprovados, ante a regra da causa e do efeito, renascerão novamente em carne para trabalhar e tentar completar um novo ciclo de evolução. — E qual o vosso papel nisso tudo? — Eu não vim julgar ou condenar os homens, mas tão somente salvá-los. Deus é tão misericordioso, que deu um dos filhos em sacrifício à causa humana, pois se isso não tivesse ocorrido, estejas certo de que, nem a Terra e nem os homens, mais existiriam. — E serias tu esse filho? — perguntou num tom respeitoso. Jesus respirou fundo, apoiou as mãos sobre os joelhos e novamente se sentou. E ao fazer isso, esclareceu: — Eu sou aquele que abrirá as portas que estavam fechadas e saciará a fome daqueles que a têm. Eu curo o rei que quer ser curado e ajudo o mendigo que quer ser ajudado. Por isso, aquele que acreditar na palavra de Deus não será condenado, e quem não acreditar, por via óbvia, já está condenado. — Condenado, rabi? — É uma equação bem simples, Mestre Nicodemus. Quem procura a luz irá para a luz; quem procura as trevas irá para as trevas. E quem acreditar no que falo, mesmo estando morto, viverá. — Acho que entendi o teu ponto de vista. Pois o nobre fariseu deu-se por satisfeito e, naquela noite, empenhou respeito e amizade a Jesus: — Agradeço-te pela acolhida e pela lição — disse o nobre visitante. — Eu é que fico satisfeito em saber que, mesmo dentre os intérpretes da lei, ainda existem aqueles que não cerraram a alma para o amor. Ainda assim, Nicodemus haveria de ser minoria entre os judeus do Sinédrio, os quais, em Jesus, passariam a ver apenas um inimigo, alguém que haveria de ameaçar o soberbo e hipócrita modo de vida deles. * * * No alto de uma enorme muralha fincada em Jerusalém, um conhecido arcanjo com uma bolsa de tecido mineral a tiracolo punha-se a espreitar a cidade. Empoleirado como uma ave e feito em luz para os humanos, Metatron procurava pacientemente uma sintonia que o levasse aos seus alvos: Azeyzel e Layla-Li. De repente, ele percebeu que, do outro lado de uma via movimentada, estava uma jovem com uma criança no colo, a qual, de forma estática, o fitava de longe. Mas como isso seria possível, se ele estava camuflado aos homens? Pois a tal moça usava vestes humildes, tinha um véu surrado sobre a cabeça e, em meio à agitada multidão, destacava-se por manter-se imóvel; estagnada. Num piscar de olhos, ela acabou se imiscuindo entre os demais transeuntes e, ao tentar novamente localizá-la, Metatron a perdeu de vista. E ao enfrentar aquele dilema — quem seria ela? —, foi surpreendido por uma voz feminina que surgiu de trás dele e disse: “Irmão?”. Ele então se virou assustado e, finalmente reconhecendo a tal “moça” e a “criança” que havia visto havia pouco, revelou estupefato. — Príncipe? Capitão! O que fazeis aqui? Sim, diante dele estava o nobre Beelzebu, príncipe-primeiro dos querubins, usando roupas que o assemelhavam a uma mulher vinda do povo. E no colo dele, ou melhor, dela, dada a sua aparência física notadamente feminizada, outra surpresa: o também querubim Caliel, o camareiro-mor de Deus e capitão da inexpugnável Guarda Negra! Ambos envergavam roupas que os faziam parecer humanos comuns, como se fossem mãe e filha ou, em razão da aparente parca idade de Beelzebu, irmãs. — Seriam ambos parte dos alistados pelo Senhor? — indagou-lhes surpreso. — Sim. Nós fomos os voluntários para acompanhar a ti e ao avatar de Miguel até que a tarefa dele entre na fase final, donde então virão outros dois nos ajudar. Na verdade, o Capitão Caliel se ofereceu para vir antes de mim, mas quando eu soube que ele voltaria à Terra, ofereci-me, de imediato, para acompanhá-lo, afinal, devo a vida a ele — esclareceu, enaltecendo o heroico resgate que o pequeno engendrou ao invadir o Inferno no dia do dilúvio universal e de lá repatriá-lo de volta para o Céu e junto, Nataniel, o arcanjo cego preso nas masmorras de Lúcifer. — Bem, irmãos, creio que toda ajuda será bem-vinda. Eu só não imaginava que ela seria tão seleta e viria tão depressa — felicitou-se ante a fama de ambos. — De início, eu e Caliel fomos instados a ir até a aldeia de Cafarnaum e procurar o tal Jesus, nome pelo qual Miguel aqui responde. E o Senhor também nos entregou algumas instruções nesta carta, cujo selo real só poderá ser quebrado quando a paixão estiver efetivamente começando — esclareceu, ao mostrar um documento cerrado ao arcanjo. — Rejubilo-me em saber, afinal, Lúcifer e Baalberith também estão soltos, e isso pode significar percalços, principalmente se eles encontrarem Azeyzel antes de mim, ou melhor, de nós. — Pois sim, ainda temos a questão desse fugitivo de Vigilum. Mas algo me diz que a tua busca convergirá na mesma que a nossa — disse Beelzebu. — Então vamos adiante, deixemos que o destino se encarregue do cumprimento das nossas missões. Metatron se lembrou que Harual o havia alertado de que haveria mais alguém encarregado de ajudar Layla-Li na Terra e, diante do quilate dos seus companheiros, decidiu acatar a sugestão do príncipe dos querubins. Por fim, disfarçando-se igualmente num humano, isto é,fragmentando as asas em luz e cobrindo-se com vestes ordinárias, ajuntou-se a eles e formou o trio que tentaria fazer a diferença no conflito entre as forças do bem e do mal. Quanto ao quarto anjo desse quadro, ele desceria à Terra tempos depois e se apresentaria em missão num vale chamado Aceldama, quando a história de Jesus já estivesse prestes a ter o seu desfecho. Capítulo 6 Mirian Magdalena IGUALMENTE IMISCUÍDOS ENTRE OS HOMENS, dois anjos caídos aproveitavam a auferida liberdade para tentar cumprir o desafio que Deus havia feito a um deles. Embora a primeira tentativa tenha sido frustrada, Lúcifer e Baalberith ainda estavam soltos e, em suas andanças pelas terras que circundavam a Judeia, eles não demoraram muito a ter informações sobre aquele cuja fé os havia derrotado no interior de uma caverna. Ele se chamava Jesus, vinha de uma aldeia chamada Nazaré e, para muitos, era tido como o filho de Deus. O filho de Deus! Ora, matematicamente, quem senão um anjo, poderia envergar tal condição? Sim, pois o Eterno havia tido apenas três filhos humanos: Adão, Lilith e Virago, que depois passou a se chamar Eva. Soma-se a isso o peculiar faro angélico de ambos ao terem vislumbrado na figura viva de Jesus a aura de Miguel que os havia expulsado do Céu e ainda pisado sobre a cabeça da estrela da manhã. Eles também estranharam o fato de o Altíssimo não tê-los mandado novamente ao Inferno depois do “fracasso” que tiveram e, nessa toada, passaram a crer que Ele ainda desejava submeter o filho feito homem — foi esse o melhor resultado dedutivo que chegaram — a algum tipo de provação ou, quem sabe, manter a paridade de armas entre as duas forças a fim de verificar qual delas sairia vencedora. — Custo crer nessa tese, Lúcifer. O que levaria o Príncipe Miguel a submeter-se a um papel ridículo desses? — A fé cega, meu descrente Baalberith — respondeu com a peculiaridade que lhe era comum. — Eu ainda não sei ao certo, mas juntando as peças do que averiguamos, fica claro que, se marechal voltou à Terra, ele o fez para provar que os homens ainda merecem redenção. Aliás, caso não lembres, foi ele, Miguel, que ajudou o nosso Pai a moldar o primeiro deles e, no mesmo passo, auxiliou aqueles dois humanos que, com um pequeno empurrão nosso, foram expulsos do Jardim do Éden. — Sim, mas nós precisamos saber qual é, efetivamente, o plano de Deus. Dar um trono na Terra a um arcanjo feito homem ou entregá-lo em sacrifício a uma causa muito maior? — sugestionou o acusador celeste. — Eu não acredito na tese do sacrifício, pois Miguel é um guerreiro — ponderou Lúcifer. — Talvez ele tenha assumido essa forma infeliz para liderar um levante contra os opressores, a fim de estabelecer a paz entre os homens. — Levando essa ideia em consideração, melhor seria que ele não sobrevivesse a tempo de fazer isso. Pois se Miguel está na pele de um humano, talvez ele agora tenha as mesmas fraquezas que qualquer um — alertou Baalberith. — Nisso eu concordo contigo — assentiu Lúcifer. — Creio, assim, que devemos focar esforços no sentido de impedir que uma guerra ocorra, pois com Miguel à frente de um exército, as chances de os humanos saírem vencedores é quase que absoluta. — Talvez seja melhor abarcarmos a tese do sacrifício, ainda que ela me pareça obscura e perigosa — observou o caído tribuno. — Ou seja, obstarmos as aspirações bélicas desse tal Jesus, para que ele tenha um destino penoso, e o que é melhor, pelas próprias mãos daqueles que ele tenciona salvar. — Exato! E começaremos acompanhando os passos dos escravos da cobiça. E será pelas mãos deles que o impediremos de reinar sobre a Terra — concluiu Lúcifer. Assim, crentes de que estavam fazendo a coisa certa — e indiretamente estavam, afinal era esse o plano original de Deus —, ambos passariam a viver junto daqueles que tanto desprezavam: os homens. Era, enfim, a eterna rusga entre o certo e o errado que, vez mais, ganharia voz. * * * No casebre de Joana em Cafarnaum, Mirian estava deveras agitada, pois a saúde de Yigal, o filho tetraplégico da amiga, parecia estar pior do que de costume. Com o corpo integralmente atrofiado, o menino mal conseguia respirar, talvez em razão de alguma moléstia oportunista que o tivesse acometido. E nada, nem as ervas, nem tão pouco os chás que lhe eram ministrados pareciam abreviar aquele sofrimento. Mirian olhava quase sem esperanças para Joana, a qual creditava a má sorte do filho aos vários pecados que ela, por ter se tornando uma prostituta, carregava consigo. Embora fosse uma mulher de bom coração, o comércio da carne era visto com grandes reservas e, por conta do desprezo de muitos, Joana enxergava em Mirian a única pessoa que, vez ou outra, conseguia minimizar os sofrimentos daquele pobre menino. — Eu não sei mais o que fazer, Joana — lamentou. — Desculpa-me, mas eu já tentei de tudo. — Mirian, eu ouvi falar de um homem vindo de Nazaré que cura os impuros e traz visão aos cegos. E ontem, eu soube que ele chegou a Cafarnaum e se hospedou na casa do pescador Simão. Tu me acompanharias até ele, nem que seja para o meu filho ouvir uma simples palavra de consolo? — rogou. Mirian olhou, aparentemente incrédula, para a amiga, mas ficou comovida com o pedido; o pleito de uma mãe desesperada. Para ela, Jesus talvez sequer as recebesse, mas àquela altura, não custaria tentar. E com a ajuda de dois vizinhos, elas enrolaram Yigal numa manta e, com o auxílio de uma trave, puseram-se a carregá-lo pelas ruas numa espécie de maca. Chegando nas proximidades da casa de Simão, agora chamado Pedro, elas viram um grande ajuntamento de pessoas, afinal, o rabi lá estava a ensinar, e centenas de pessoas se amontoavam para ouvir as lições dele. — Nós não conseguiremos atravessar por essa multidão, Joana — preocupou-se Mirian. — Existem muitas pessoas aqui. — Mirian, mesmo sendo eu uma pecadora, a vida ainda não me tirou a esperança. E seja qual for o destino que o Deus de Israel tem para o meu filho, eu gostaria que ele apenas recebesse uma bênção desse homem, nada mais. — Está bem, vejo que nada haverá de te impedir. Pois permaneças aqui com o menino, e eu tentarei sensibilizá-lo de alguma forma. — Não! Fica aqui com Yigal. Quem sabe, ao ouvir o apelo de uma mãe aflita, ele se apiede de mim e diga algumas palavras — disse, sob a relutante concordância da amiga. Pois lá foi Joana, tentando desesperadamente abrir caminho por entre o povaréu que cercava a casa de Pedro. Nesse ínterim, algumas mulheres a reconheceram em razão das vestes ligeiramente transparentes que as prostitutas eram obrigadas a usar e, diante disso, tentaram impedi-la de se aproximar do rabi, puxando-a pelos cabelos e jogando-a ao chão. Mirian percebeu o que ocorria com Joana e, entregando a cautela do garoto aos vizinhos que a acompanhavam, correu na direção da amiga com o escopo de resgatá-la da sanha imoderada daqueles que a estavam agredindo. Mas, estando em meio à turba, e sendo também obstada por alguns aldeões que a acusavam de ser uma bruxa, Mirian começou a ter agressivas contrações musculares e invulgares cargas elétricas no cérebro, as quais fizeram com que ela caísse e passasse a ter terríveis convulsões. Ao vê-la se debater fora de si, os seus acusadores passaram a gritar que ela estava tomada pelos “sete demônios”, como se eles, de fato, soubessem o que era um “demônio[94]”. Pois o alvoroço chamou a atenção dos discípulos mais próximos de Jesus, que o alertaram sobre o que acontecia. O mestre se levantou e passou a abrir caminho até o lugar onde a desordem ocorria e, ao nele aportar, viu Mirian caída no chão, contorcendo-se em razão da crise que a acometia. Nesse meio tempo,Joana conseguiu se livrar das pessoas que a seguravam e, mesmo estando ferida, jogou-se aos pés de Jesus, para quem, de pronto, implorou: — Meu senhor, tende piedade de nós! Somos apenas mulheres sozinhas, mas em meu nome e no dela, rogo o vosso auxílio! — bradou em desespero e com a excessiva pintura dos olhos já lhe borrando a face. — E por misericórdia, ajuda também ao meu pequeno filho doente. — Essa mulher é uma mundana! — urrou um velho que lá estava. — E essa que a acompanha está possessa; afasta-te delas, rabi! Sem demora, Jesus acolheu Joana em seu peito e, indignado pelo preconceito dos que lá estavam, respondeu rispidamente ao tal homem: — Não são os saudáveis que precisam de médicos, mas sim os doentes. Eu não vim até aqui para chamar pelos justos, mas pelos pecadores; e se não tens uma palavra de amor para dizer, cala-te e retira-te daqui, pois se não o fizeres por si só, eu o farei por ti — finalizou num tom agressivo. Pois ao ver Mirian tremer de forma incontrolável e expelir espuma pelos cantos da boca, Jesus logo soube que não se tratava de “demônio” algum conforme quis fazer ver aquele ignorante, mas sim uma herança da vida passada dela, algo que a mesma, sob a forma de uma moléstia, carregava como marca. Sabedora da doença da amiga, Joana se dirigiu, nervosa, até ela e tentou segurá-la pelos braços, mas Mirian estava agitada por demais, como se um relâmpago a tivesse atingido. Jesus então se aproximou rapidamente e, de uma só vez, pôs firmemente as duas mãos no colo dela e gritou: “Para o mal que carregas, eu agora trago-te a cura!”. E naquele instante, tudo mudou. Pois ali estavam dois avatares, o de Lilith e o de Miguel, os quais, no início da criação do mundo, já haviam tido um contato físico similar. Embora estranhando a visão que lhe inundou a cabeça — um anjo e um arremedo de mulher ainda disforme sendo tocada no chão para receber a ciência —, Jesus se afastou dela, oportunidade em que todos puderam perceber que os fortes espasmos que a haviam acometido simplesmente desapareceram. Os olhos dela voltaram a ficar fixos e serenos e, de acelerada, a respiração de Mirian passou a ficar cada vez mais pausada. ∷ ∷ ∷ “Liberado por Deus, Miguel se aproximou da estrutura ainda quente e fincou as mãos nela, passando então a lhe transmitir todo o conhecimento da Terra conforme orientação do Altíssimo.” (Gênesis Proibido) ∷ ∷ ∷ Assistindo a tudo, Joana abraçou a amiga ainda inerte e, emocionada, continuou: — Senhor, por favor, olha também para o meu pobre filho e dá a ele um pouco de esperança, nem que seja a última. — E onde está o teu filho? — indagou-lhe o mestre. — Ele não pode andar. Está próximo daqui, preso a uma rede que fizemos para trazê-lo até ti. Jesus segurou Joana pelos ombros e anunciou: — A tua fé é muito grande, mulher. E em razão dela, enfrentaste teus medos em nome do amor que tens pelo teu filho. Pois saibas que eu não irei até ele; ele é que, já redimido, virá até nós! — disse ao apontar para o lado. De um modo que a todos ali surpreendeu, aquele menino cuja idade não passava dos dez anos, surgiu ereto diante deles; ainda levemente atrofiado, mas se soltando aos poucos e andando em passos curtos. Movimentando os lábios de forma pausada, todos lá ouviram quando Yigal conseguiu, com certa dificuldade, balbuciar a palavra “mãe”. Joana se atracou emocionada ao filho, afinal, desde que havia nascido, ele jamais havia feito um movimento ou pronunciado uma única palavra. Mirian, ao seu turno, logo começou a voltar a si, sentindo-se limpa como nunca. E a epilepsia, moléstia que a tinha perseguido desde os tenros anos, finalmente a havia abandonado. Jesus se levantou e sorriu a ambas, deixando-as sem reação. Joana teve um repente e se reaproximou do rabi. E após beijar-lhe as mãos, disse chorando: — Quanta bondade, meu senhor... E justo para comigo. — Mas por que estás a dizer isso? — indagou, tocando-lhe gentilmente o rosto. — O que tens de diferente dos outros? — Eu... — titubeou —, eu sou uma prostituta, senhor — disse, vertendo a cabeça envergonhada. — Não — discordou Jesus. — Não és uma prostituta. — Mas como não, senhor? Não consegues ver? — indagou Joana alertando-o para a sua pintura, tatuagem e vestes características. — Tu “eras” uma prostituta — concluiu, ao despedir-se delas. Ainda caída, Mirian observou Yigal dando os seus primeiros passos. Assustada e estranhando tudo o que havia acontecido, ela sequer conseguia se expressar. — Mirian, Mirian! Ele curou a ti também! — vociferava Joana, agora tomada de felicidade. — Eu te disse, ele é o salvador; é o filho de Deus. A fugitiva de Magdala ainda tentava se recompor naquele chão batido e, por um instante, de longe, os olhos azulados dela cruzaram com os castanhos de Jesus, afinal, eles já haviam se visto antes, mas em outra vida. Pois aquele medo e aquela inquietude que a perseguiam desde a infância finalmente tinham desaparecido. E a partir daquele dia, tanto ela como Joana haveriam de ter uma nova vida, uma vida de amor ao Cristo. * * * No Éden Espiritual, a claridade do que para nós é o dia, jamais terminava. O breu noturno, típico do nosso mundo, não repercutia naquelas bandas onde a luz reinava absoluta. Pois um dos mais antigos habitantes daquele plano havia pedido uma audiência com o administrador do paraíso, o Arcanjo Zuriel. Ao saber que o primeiro homem desejava falar-lhe, o prefeito ficou receoso, afinal, desde que lá havia chegado, o espírito de Adão nada mais fez do que trabalhar em prol de todos. Aliás, ele se mostrou um excelente empreendedor braçal, já que, de sua lida, foram erguidos inúmeros edifícios que serviam de morada e ministério para os habitantes daquele plano. Zuriel fez questão de recepcionar o nobre visitante no grandioso arco dourado que dava acesso à prefeitura e, dando-lhe as mãos e com ele sentando-se nas extensas bancadas lá existentes, pôs-se a ouvi-lo. — E no que eu posso ajudar o filho de Deus? — indagou com simpatia. — Eu apenas vim parlamentar; buscar algumas respostas. — Para respostas, antes se fazem necessárias as perguntas — pontuou Zuriel sempre espirituoso. — Sim... — sorriu-lhe Adão. — É verdade. — Bem, se aquilo que procuras saber estiver em minha alçada esclarecer, terei imenso prazer em poder ajudar. Adão parecia nervoso; inquieto melhor seria. Zuriel também sentia o mesmo, afinal o espírito do primeiro homem ainda trazia consigo as mesmas feições do rosto de Deus e, de certa forma, aquilo intimidava o arcanjo. — Eu sei que o nosso tempo é diferente do da Terra. E também sei que os que aqui vêm ter já se livraram do que os prendia ao mundo material. — De fato, Adão. Pois para transições menos nobres existem outros espaços; outros métodos. — E é sobre isso que eu gostaria de falar. Dessas “transições”. — Da de alguém em especial? — indagou-lhe Zuriel. — De certa forma, sim. Eu ainda me lembro de quando me despedi da matéria, consumido pelo fogo que fui — esclareceu saudoso. — E também me recordo que o fiz tendo a minha última respiração expelida na boca de uma mulher; a minha mulher. — Sim, continue — disse o arcanjo. — Eu sou feliz aqui — esclareceu o homem. — Reencontrei a grata parte da minha família e trabalho para o coletivo, para a constante evolução de todos. Mas eu ainda sinto falta de algo. — De algo ou de alguém? — questionou o prefeito fitando-o. — Receio que seja de alguém — respondeu com um suspiro. — Zuriel, eu sei que Lilith e eu morremos juntos, pois fomos naturalmente cremados pelo fogo solar que a matou após eu ter feito a passagem. E também sei que, logo que vim para cá, renasci em espírito. Mas e ela? Onde está? O prefeito engoliu seco e tentou ponderar. — Adão,não compete a mim traçar a pista de prisioneiros. Infelizmente, essa é uma resposta que eu não tenho como te dar. — Que seja! — acatou aparentemente contrariado. — Mesmo assim, eu gostaria de saber a tua opinião. Por acaso acreditas que eu possa a encontrá-la novamente? — A tua assertiva é de complicada análise — disse o prefeito se levantando. — Se ela não veio para o Éden Espiritual, certamente foi despachada para as zonas inferiores, afinal, o histórico dela clamava por isso. — Sim, eu entendo e aceito. Mas mesmo passado tanto tempo, não acreditas na possibilidade de ela ter tido uma chance de se redimir? — Não posso responder-te. O Guf, ou a “Tesouraria das Almas” como o chamam, é fechado aos de fora e, salvo os nossos obreiros que lá servem, muito pouco se sabe sobre o que efetivamente ocorre naquelas dependências. — Será que ela ainda está presa? — Eu conheço a vossa história e sei das iniquidades da tua primeira mulher. Mas também sei que o espírito dela não era de todo obscuro, o que certamente a salvou da extinção e lhe deu créditos para aspirar ao menos uma nova vida em carne. — Então acreditas ainda ser possível que eu volte a vê-la? — Quem sabe do futuro é apenas o nosso Pai. E se for a vontade Dele que ela se junte a ti novamente, nada poderá evitar isso. — Zuriel, eu seria capaz de enfrentar uma eternidade no Guf apenas para poder encontrá-la novamente. Aliás, na noite em que nós dois fizemos a transposição, algo me diz que ela pediu perdão a Deus e Ele aceitou. Entretanto, nós dois seguimos caminhos diferentes, e Lilith ainda deve estar na tal “Tesouraria”, quem sabe esperando por uma nova chance. — Pode ser, meu amigo, lá, ou talvez na própria Terra, já buscando uma nova admissão para a luz. — Por que dizes isso? — O meu procurador no Céu me reportou que o teu bom amigo Miguel deixou os domínios celestes para executar um importante trabalho para Deus. Uma missão pouco convencional para um anjo, pois me parece que ele renasceu em carne para uma espécie de sacrifício. — Miguel está na Terra? — Sim, e apenas em matéria. Aliás, me consta que uma renovação moral sem precedentes está para ocorrer por lá, e quem sabe não seja essa a chance que Lilith tanto esperou para poder redimir-se contigo. — Eu faço votos de que estejas certo quanto a isso. Pois, caso contrário, eu irei peticionar ao nosso Pai para tentar visitá-la na prisão. — Foquemos energias positivas para que isso não seja necessário. Sê paciente e deixa com que os meandros de Deus se encarreguem de unir-vos de novo, se essa for da vontade Dele. — Eu quero acreditar que sim, afinal, esse era o Seu plano original. Ademais, estou certo que o nosso Pai a ouviu e lhe estenderá clemência. Zuriel assentiu com a cabeça e vez mais sorriu. Ao que tudo indicava, o amor de Adão por Lilith ainda estava intacto. E mesmo que o destino dela ainda estivesse nebuloso, uma coisa era certa: onde quer que ela estivesse, o sentimento do primeiro homem haveria de fazer a diferença em qualquer processo de evolução que ela tivesse que passar. * * * Logo após aquele inusitado encontro com Joana e Mirian, Jesus continuou em Cafarnaum anunciando as boas novas de fé e amor, arregimentando seguidores por onde passava. Embora os saduceus e os fariseus já estivessem no encalço dele, nada parecia obstar aquelas palavras de chegar a quem delas necessitava. Ao findar mais um ministério na praia da Galileia, Jesus e os discípulos estavam à beira-mar quando, de repente, vislumbraram um conglomerado de pessoas no local onde ficava a coletoria de impostos — a taxa marítima e a taxa de fronteira —, os quais eram recolhidos em nome do tetrarca da Judeia. A guarda que dava apoio aos publicanos costumava hostilizar os mais humildes, fato este que sempre incomodou Pedro, o qual nutria verdadeira ojeriza pelos judeus que, assim como o ali presente Levi, ministravam aos romanos em desfavor do próprio povo subjugado. De longe, Jesus observava Levi, e na fisionomia dele, percebeu, de antemão, que algo o tornava diferente dos demais coletores. Ele orava e frequentava a sinagoga, mas, em contrapartida, era odiado por servir a Roma, afinal, não abria mão da vida de posses que a função lhe proporcionava. O nazareno então se achegou e o encarou calado. Percebendo a manobra, Levi, de forma seca, se adiantou. — Tens algo a declarar? — indagou em genérica alusão aos impostos que recolhia. — Sim — respondeu-lhe o recém-chegado. — Eu tenho a declarar o irrestrito amor que Deus tem por ti. — O que disseste? — retrucou surpreso. — O amor de Deus; Levi, filho de Alfeu. — Mas como tu sabes o meu nome e o de minha família? — perguntou o cobrador, ao se erguer da bancada. — Percebe-se facilmente que não és feliz. E embora vivas com conforto, mesmo assim tens a tristeza estampada no rosto. Levi estranhou tudo aquilo, mas, por instinto, tentou se justificar: — Pois saibas que eu também sou crente ao Senhor, mas por ser letrado, acabei arregimentado como publicano. Mas não penses que sinto orgulho do que faço. — Então sejas sincero consigo mesmo. Crês em Deus ou não? — insistiu o rabi. — Sim, por certo que creio. Entretanto, sinto vergonha de olhar para Ele e pedir perdão, pois eu sei e admito, sou um pecador aos olhos do Senhor. — E por admitires isso, já serás exaltado. Mas deves saber que ninguém pode servir a dois senhores — advertiu o mestre. — Como assim “a dois senhores”? — Ou serves a Deus — ponderou apontando para o alto —, ou ao dinheiro. — Apontou para as moedas. — Não há meio termo. Levi olhou para as pessoas que o encaravam e ficou intrigado. — A decisão é apenas tua. Se quiseres seguir quem em verdade te ama, abandona essa banca e torna-te um de nós. E se aceitares o meu convite, daqui por diante serás chamado Mateus. — Mateus... — replicou Levi com os olhos já marejando. — Essa expressão significa... — Significa “dádiva de Deus”! — completou Jesus, estendendo-lhe, com confiança, a mão direita. — Eu não creio no que estou vendo — sussurrou Pedro ao irmão André. — Ele está a verter um maldito publicano! — concluiu incrédulo. — E então, Levi; vens ou não? — insistiu o rabi. — Não! — respondeu seguro. — Não me chames assim. Doravante serei Mateus, assim como dizes. E vinde! — disse, agora voltando-se para os demais discípulos. — Estão todos convidados para cear comigo na casa de meu irmão, pois, a partir de hoje, eu vos seguirei até o fim dos meus dias. E tal assim ocorreu, Levi, o odiado publicano de Cafarnaum, tornou-se, num repente, o discípulo Mateus. Como o combinado, assim que o sol caiu, Jesus e os seguidores mais próximos foram até a casa do irmão de Mateus, um fariseu chamado Jairo, onde haveriam de se reunir para celebrar a mais nova conversão. O velho Jairo já havia ouvido falar dos feitos de Jesus e, por não ser radical, embora fosse um tanto conservador, desejou conhecê-lo melhor e ouvir as suas palavras, afinal, o seu próprio irmão agora haveria de ser um dos peregrinos dele. Pois estando a ceia em pleno curso, percebeu-se uma invulgar movimentação na entrada daquela morada, sendo que, ao tentar verificar o que ocorria, os presentes foram surpreendidos pela ação de duas mulheres que praticamente invadiram o recinto à procura de Jesus. Os olhos exageradamente azuis de uma delas logo cruzaram com os do mestre, o qual, de pronto, nela reconheceu a jovem que havia curado naquela mesma manhã, a tal que, segundo as más línguas da praça, estaria possuída pelos “sete demônios”. — Mas o que essas duas pecadoras fazem em minha casa? — vociferou Jairo, ao ostensivamente desprezá-las. Percebendo hostilidade no dono da casa, Jesus o desencorajou a continuar com aquelas palavras rudese, assim, permitiu que elas se achegassem, o que ambas fizeram aparentemente assustadas. Pois uma delas, Mirian, trazia consigo um pequeno vaso de alabastro tomado por um raro unguento oriundo de Magdala — essência de nardo[95] —, o qual, pelo elevado valor, estava, havia muito, guardado. Ela então se pôs aos pés de Jesus, oportunidade em que começou a chorar impulsivamente. O assassínio do parvo marido de sua irmã, embora em legítima defesa, pesava-lhe sobre os ombros e, sentindo que essa culpa também poderia ser minimizada pelo rabino, ela passou a enxurrar os pés dele com o produto sincero do seu pranto. Joana, que estava perto e a assistindo, logo se achegou dele e desamarrou os seus longos cachos negros e, humildemente, os ofertou ao salvador. — Além da minha eterna gratidão, eu não tenho muito para dar-te, a não ser os meus cabelos para secar os vossos pés — disse ela, ao enxugá-los com latente respeito e sob as rigorosas vistas de todos os que ali estavam. Feito isso, Mirian tomou o óleo de nardo que portava consigo e passou a ungir os pés de Jesus, como se os estivesse consagrando. Mas, ainda contrariado com tudo aquilo, Jairo não conseguiu se manter silente e vociferou: — Mestre! Então crês ser certo socializar-se com mulheres dessa estirpe? Uma prostituta e uma feiticeira? Jesus sorriu e o encarou, ilustrando então o que pensava: — Jairo, tu me recebeste em tua morada e sequer um jarro com água para molhar os pés me deste. Já esta mulher está a ungir-me com um bálsamo raro, o qual poderia ter sido vendido ou escambiado por algo de grande monta. Por assim dizer, ela não tem a cobiça ou a soberba dos muitos ditos “santos”. O fariseu se calou e, doravante encorajada pelo bom pregador, Mirian, ainda chorosa, quebrou o silêncio: — Muito obrigada por amar-me da forma que sou, mesmo carregada de pecados desta e de outras vidas — disse ao derramar nos pés dele aquele dispendioso óleo aromático. — Como te chamas, mulher? — perquiriu o mestre. — Eu me chamo Mirian, senhor. — E de onde vens? — Eu nasci em Magdala. — Magdala — repetiu espirituoso. — Mirian de “Magdala” — acrescentou. — Mirian “Magdalena” — finalizou, sorrindo pra ela. — E tu? — perguntou dirigindo-se à outra. — Eu sou Joana, outrora alcunhada “Joana de Cusa”, nativa de Tiberíades. E pelo que fizeste pelo meu filho, serei hoje e sempre vossa fiel seguidora. Mas ao ver o inconformismo em Jairo, Jesus disse, não apenas para ele, mas para todos os que calados os observavam. — Estas duas mulheres foram chamadas de “pecadoras”. Pois eu vos digo que, se um pastor perder duas das suas cem ovelhas e abandonar a maioria para reaver as perdidas e com elas voltar sãs e seguras, ele deverá regozijar-se, “vejam, eu achei as minhas ovelhinhas perdidas”. Pois o mesmo ocorreu aqui. Haverá maior júbilo no Céu por duas mulheres que se arrependem, do que por outras noventa e oito que não necessitam de qualquer reparo. Jairo ouviu silente e, admoestado pelo teor daquela verdade, verteu a cabeça. E diante de todos ali, Jesus havia auferido mais duas seguidoras, Mirian, agora chamada de Mirian “Magdalena”; e a ex-prostituta Joana; as quais, juntamente a outras que ainda estavam por chegar, o acompanhariam até o final dos seus dias na Terra. * * * No palácio de Herodes Antipas, uma reunião estava a definir o compromisso do casamento de Salomé. A fim de garantir boas participações nos lucros de uma das mais rendosas rotas comerciais da região, Herodes havia consentido nas intenções de um rico mercador de Pereia[96] chamado Chilo Lazzar-Sah, o qual, embora bem mais velho que Salomé, tencionava desposá-la da forma que fosse. A única imposição do tetrarca além do dote, que era vultuoso, era que ambos deveriam fixar morada em Tiberíades, sede do governo de Antipas e ainda, no próprio castelo de Herodes, que em segredo, não desejava tirar a enteada das vistas, pois por ela nutria notório desejo. Indiferente a tudo o que lá se passava, Salomé não deu a mínima importância para o casamento arranjado que lhe havia sido imposto, afinal, não seria aquela cerimônia que poria fim as suas escapadelas com os capitães da guarda ou com quem quer que lhe apetecesse os olhos. Ela era indiferente a qualquer coisa que não patrocinasse a sua luxúria e, sabedora da atração que o padrasto tinha por ela, na hora certa faria uso de algum subterfúgio sexual para tentar atender aos caprichos da mãe, cuja obstinação em acabar com João Batista era notória. E para tanto, a moça atingiria as consequências que fossem necessárias, mesmo que elas transpusessem qualquer barreira moral ou familiar. Naqueles dias longínquos, o selo do compromisso de noivado já era considerado o casamento propriamente dito, mormente com a compensação do dote, e o povo humilde da Judeia, que desprezava o rei, a esposa dele e a própria Salomé, recebeu a nova com latente escárnio, pois tinham Herodíade e a filha em baixíssima conta, em razão da conhecida promiscuidade a que ambas eram dadas. João Batista se pôs a discursar com maior veemência em desfavor da esposa de Antipas, a qual, na verdade, era meio-sobrinha deste. E para se casar com ela, Herodes foi obrigado a divorciar-se de Fasélia, filha do rei nabateu Aretas IV[97], o que gerou instabilidade política e desagradou os judeus, potencializando ainda mais os focos locais de sublevação. Ao saber da nova, Cláudia Prócula confidenciou ao esposo que sentia pena do comerciante da Pereia, pois comparava a perfídia de Salomé, cuja libertinagem era conhecida graças à língua comprida dos que com ela se deitavam, à de uma víbora. Pilatos não deu muita atenção à esposa, afinal, não lhe interessavam os negócios pessoais de Herodes, desde que os mesmos não conflitassem com os de Roma. Pois na noite em que a corte comemorava o noivado de Salomé, João Batista rumou ao paço de Tiberíades juntamente a centenas de seguidores para os quais prometia um inflamado discurso contra o rei deles. Atraídos pela gritaria vinda das ruas, Herodes e Herodíade ganharam o alpendre para ver a origem de tudo aquilo, oportunidade em que, ao se depararem com os urros do Batista, ficaram sem reação. — O pecado vive nessa casa maldita! — gritava João. — Renunciai às vossas práticas, ou sereis ceifados pela fúria de Deus. — Desaparece daqui, homem infame e desprezível! — contra-atacou Herodíade, visivelmente nervosa. — Mulher, com que autoridade me repreendes? Logo tu, que violaste o sexto mandamento ditado a Moisés. E tu, cujos inúmeros leitos me fogem as contas, não tem moral para admoestar quem quer que seja, afinal tu te colocaste acima da Lei, e por isso zomba do povo de Israel. — Pois ao notar que Salomé havia surgido, arisca, ao lado da mãe, João foi ainda mais duro. — E tu, menina. Não dês guarida às perversidades de vossa mãe, e arrepende-te das tuas práticas enquanto é tempo. E se não quiseres ter o mesmo fim que o dela, procura o cordeiro de Deus para tirar-te do abismo em que estás. — Herodes! — irritou-se Herodíade sem alardear. — Se não fizeres nada com o Batista, esses cães que o acompanham derrubarão a porta do palácio e nos apedrejarão até a morte. — Atentai, povo de Israel! — insistia o pastor do deserto. — Pois os governantes que zombam e desrespeitam a Lei de Deus só podem nos trazer uma coisa: a desgraça. Premido pelas circunstâncias e diminuído pelos olhares venenosos dos seus convidados, Herodes finalmente cedeu aos apelos da mulher e deu ordens para que o capitão da guarda detivesse João Batista. — Podes prender o meu corpo, mas jamais prenderás o meu espírito! — vociferou o pregador em resposta ao ato. Entretanto, ao perceber que a turba esboçava reagir violentamenteao édito do rei, João tratou de impedi-los e os mandou em busca daquele que, depois dele, haveria de guiá-los. — Não lamenteis por mim. Lamentai pelos que já estão condenados e insistem em não comutar a própria pena. Procurai Jesus de Nazaré, e ele vos trará a vida eterna — ponderou, desprezando o guarda mercenário que o continha pelo braço. O pastor do deserto foi, então, arrastado pelas ruas e, já estando no interior do palácio, jogado numa espécie de gaiola funda, gradeada por cima e com acesso apenas pelas galerias mais baixas da fortaleza de Antipas, logo na primeira noite de privação dele, Salomé dirigiu-se para as masmorras a fim de provocá-lo, afinal, a ousadia dela parecia não ter quaisquer limites. E estando ele acorrentado junto à parede, a princesa fez com que um dos guardas lhe franqueasse acesso à cela, o que ocorreu sem qualquer resistência. João Batista tinha a idade de Jesus, trinta anos, mas era mais alto e encorpado e tinha a pele bem mais curtida pelo sol. Ele envergava uma beleza considerada selvagem, a qual, em boa verdade, acabou atraindo a jovem para aquele ergástulo. Vendo-o privado dos movimentos por estar acorrentado, ela adentrou no cárcere bem devagar, quase que desfilando do alto dos seus quase um metro e sessenta e oito de altura. Sua tez nevada, mesmo no breu, conseguia contrastar com os seus olhos esverdeados, e os cabelos excessivamente escuros lhe escorriam pelos ombros, os quais se faziam cobrir por adornos dourados que os trançavam na quase totalidade. Ela não era apenas bela; era bela e fatal. Seminua, Salomé passou a tentar o inquebrantável Batista. — Não te agradas o meu corpo, homem bravio? — balbuciou, gemendo e roçando-se nele. — Por acaso não há fogo em ti que te motive a abnegar a tua crença e possuir uma mulher de verdade? — insistiu, friccionando as pontas tesas dos seus seios junto às judiadas costas dele. — Pois saibas que esse teu cheiro bruto e essa linguagem truculenta me excitam — finalizou, premindo uma das pernas entre as dele. Percebendo que o preso se mantinha imóvel e não tirava a visão de um ponto fixo na parede, ela não se fez de rogada e deitou-se sobre um amontoado de palha que jazia à frente dele, revelando o seu sexo e o latente desejo de ser possuída ali, em meio a rudeza de um insalubre calabouço. Negando-se ser vencido pelo impulso, o Batista descongelou a expressão e a fitou com seriedade. — Menina... — murmurou. — Esses teus belos olhos ocultam pecados horrendos, desta e das outras existências que tiveste. E eles também revelam que esta é a última chance que terás para se redimir. Ouve pois o meu conselho, sai deste lugar e vai à procura daquele que poderá acolher-te, pois somente ele poderá evitar com que a tua alma fique presa na escuridão para sempre. Salomé ouviu e retorceu a face. Fechou as pernas rapidamente e levantou- se com o ódio escancarado no rosto. — Homem algum teve o desplante de me recusar! — disse ela, rangendo os dentes. — Tampouco um assim como tu, que mais parece um mendigo... E saibas que me inspiras e também me enoja, e essa rejeição terá um preço, Batista. Um preço muito alto. João ouviu, fechou os olhos e disse: — Deus, olha pelos caminhos dessa pobre criança. Faz com que ela saia das trevas e encontre um caminho que a liberte de si mesma. Salomé, avessa àquelas palavras que parecia não entender, se aproximou do profeta e cuspiu ferozmente na sua face. — Seu tolo, simplório, sujo — disse com a voz baixa, mas envolvida em cólera. — Ainda terás notícias minhas, eu prometo — asseverou no mesmo tom e já deixando a cela. Embora João não soubesse, a sua árdua jornada na Terra, graças à maledicência da peçonhenta Salomé, estava bem próxima do fim. * * * E já estando Jesus e os seus discípulos se preparando para deixar Cafarnaum e voltar a Nazaré, outras pessoas, além de Magdalena, Joana e o filho curado, juntavam-se a ele. Sentado numa pedra e à espera da efetiva partida, o rabi não percebeu de pronto quando, pelo caminho da estrada por onde haveriam de seguir, surgiu, do nada, uma pequena criança, uma menininha, que, saltitando e se equilibrando com certa dificuldade, parecia tomar apressadamente a direção dele. Notando que a pequena iria de embate ao seu mestre, Pedro, que era robusto e bem forte, adiantou-se no trajeto e a tomou do chão, erguendo-a apenas com uma das mãos à altura do seu próprio rosto. — Aonde tu pensas que vais, menina? E onde estão os vossos pais que não cuidam para que fiques junto deles? Pois ao passar o dedo indicador da mão esquerda nos lábios da pequena, talvez com o intuito de com ela gracejar, ela o fitou com latente reprovação e deu-lhe uma furiosa dentada no indicador. Em razão da dor que sentiu, Pedro a deixou cair e, abismado, pôde perceber que a tal menina, de forma inexplicável, manteve-se no ar por alguns segundos antes de chegar ao chão amortecida e em segurança. Percebendo a notável destreza daquela manobra, o agora assustado Pedro não teve tempo hábil de esboçar qualquer reação proativa, pois logo surgiram, diante dele, uma moça e um rapaz de elevada estatura. A primeira, dizendo-se irmã da pequena travessa, adiantou-se e pediu-lhe desculpas. — Perdoa-nos senhor — rogou-lhe a jovem. — A nossa irmã é deveras ativa e, como percebeste, um tanto travessa e desobediente — arrematou acautelando-a com os braços. “Mas o que significa isso?”, pensou Pedro. “Uma menina que amortece a própria queda no ar?”, perquiriu a si mesmo enquanto tentava minimizar o incômodo causado pela forte mordida que havia levado, a qual mais parecia ter sido dada por um animal selvagem. Ao perceber o que ali se passava, Jesus disse algumas palavras que fizeram o rústico pescador interromper o seu intrigante raciocínio. — Pedro, não sejas tão rígido e não os impeçais. Deixa que venha a mim essa pequena criança. — Pequena criança... — murmurou rabugento. — Ela merecia umas boas palmadas, isso sim — concluiu, ainda incomodado pela situação. Pois o inusitado trio — em verdade, o Arcanjo Metatron e os querubins Beelzebu e Caliel disfarçados de simples romeiros —, ali havia chegado para tentar fazer parte do rol de seguidores de Jesus, e com isso, manter as coisas em ordem até o dia da expiação. E o escriba celeste ainda tinha outra missão: encontrar Azeyzel e identificar o avatar de Layla-Li. Percebendo o caminho livre, Caliel correu para os braços de Jesus. já o fazendo sabedor de que, por trás daquela forma humana, estava o príncipe dos arcanjos, o seu amigo e grande companheiro de inúmeras proezas no Céu. Embora arisco com Simão Pedro — e essa rusga entre eles haveria de ser constante — o capitão disfarçado entregou-se ao rabi e interpretou muito bem o papel de criança comum, esbanjando meiguice e conquistando-o de pronto. — E quem sois vós? — perguntou o mestre, ao perceber a aproximação de Beelzebu e Metatron. — Nós... — balbuciou receoso o último. — Nós somos irmãos, senhor — adiantou-se rapidamente o líder dos querubins, ao perceber que o arcanjo havia titubeado diante do seu marechal. — Apenas peregrinos que ouviram sobre os teus feitos e decidiram seguir-te. — Peregrinos... — repetiu Jesus, sorrindo de forma levemente sarcástica, no que pôs os três celestes tensos. Mas em seguida, ele esboçou um sorriso compreensivo; minimizou a tensão e, com Caliel no colo, disse. — Se é do vosso desejo e vontade, ficai conosco. Aliás, é muito bom que a família de Deus se una à dos homens — ponderou, como se soubesse quem eles eram. — Mestre — interrompeu André —, nós estamos prontos para ir. — Bem, a nossa viagem é longa e talvez tenhamos alguns percalços pela frente — anunciou o rabi, ao restituir a tal “criança” a Pedro e novamentefitar aqueles dois recém-chegados, ainda desconfortáveis quanto à identidade que tiveram que fraudar. Ao ver novamente a braveza no rosto daquela pequena, o pescador ficou temeroso em levar outra mordida — o que fatalmente haveria de ocorrer! — e, de pronto, entregou-a aos cuidados da primeira pessoa que viu diante de si, Magdalena, como Mirian passou a ser chamada e de quem ele também não esboçava muita simpatia, afinal, Pedro não via com bons olhos a presença de mulheres que não as da família no grupo dos seguidores. O mascarado querubim ficou, a princípio, receoso no colo de Magdalena, pois ele logo sentiu que estava nos braços de Lilith, a qual, sem ter boas lembranças, conheceu ainda serpente, no primeiro Éden. Mas o olhar dela estava tão sereno e diferente, que ele acabou se rendendo e aceitando a cautela. Metatron, entretanto, ficou inquieto. — Príncipe Beelzebu, me parece que ele desconfiou de nós. E ouso ir adiante, creio até que nos reconheceu... — disse-lhe ao pé do ouvido. — Deixemos isso para depois. O importante é que nós fomos aceitos no grupo e, de mais a mais, temos nossas missões a cumprir — respondeu sussurrando. O escrivão anuiu sem esconder a preocupação. Enfim, onde estaria Azeyzel? E em que mulher o espírito de Layla-Li estaria oculto? Pois em muito breve ele haveria de descobrir. * * * Nos arredores de Jerusalém, os zelotes andavam um tanto receosos, alguns dos seus membros haviam sido delatados e mortos na cruz, sendo que os demais temiam que outros traidores ainda estivessem entre eles. Barrabás então propôs que os ataques aos publicanos passassem a ser decididos por um conselho menor e executados por forças de assalto rápido, para evitar que os romanos tivessem tempo de reagir ou organizar algum tipo de defesa. Com isso eles desmoralizariam os soldados e desorganizariam as suas forças, principalmente as policiais. Durante a palestra, Judas Iscariote mantinha os olhos fechados e mexia a cabeça de trás para frente, como se orasse em silêncio. Percebendo isso, Barrabás o interpelou no intuito de tentar auferir dele uma opinião sobre o que era ali discutido. Ainda assim, o sicário-mor mantinha-se inerte, dando mostras de que sua obsessão religiosa estava acima de qualquer coisa. Pois alguns instantes depois, ele despertou daquele transe e, diante de todos, emitiu um parecer sobre o discutido. — Eu discordo em parte. Creio que devemos nos manter escondidos por certo período, a fim de que os romanos pensem que o movimento morreu. E no momento certo nós haveremos de nos levantar guiados pelo Messias e os esmagaremos sem piedade — sugestionou com a mão sob o punhal embainhado. — Judas, aqui tu és uma liderança respeitada. Mas se nós baixarmos guarda de uma única vez, as consequências podem ser drásticas para a moral do partido. — Barrabás, drástico será o nosso destino se os romanos não forem eliminados — respondeu Judas, enervado. — E eu mantenho a minha crença de que o descendente de Davi em breve erguerá a sua espada sobre essa abominação chamada Roma, uma feitora de escravos que insiste em querer subjugar o mundo. A tua crença no Messias é justa, todos partilham dela. Por outro lado, não podemos nos fiar apenas nisso, afinal, ninguém sabe quando ele chegará; se é que chegará. Judas Iscariote não apreciou as palavras de Barrabás, as quais classificou como desprovidas de fé. E para não causar maiores polêmicas, assentiu com a maioria e ao final ponderou. — Eu não irei contra vós, meus suicidas irmãos. Mas sabeis que não seremos nós, os zelotes, que faremos a diferença nessa batalha. Somente o novo Josué[98] conseguirá fazer com que os romanos componham um único corpo que terá a cabeça ceifada por um só golpe. — Mas enquanto ele não chega, seremos nós os guardiães da terra prometida — pontuou Barrabás sem alongar a discussão. — E então? Estás conosco? — insistiu sob o tenso olhar dos demais. — Eu estarei sempre ao lado dos que se opõe a Roma e que zelam pelo santo nome de Deus — respondeu Judas. — Então fica decidido; agiremos em investidas rápidas. O sicário ficou inquieto, contrariado, melhor dizendo. Barrabás percebeu isso e, findo o encontro, resolveu ir ter com ele. — Judas, se eu faço o que faço, é visando o bem do partido. Nós não podemos recuar agora. — Eu não te censuro. Mas confesso que ando um tanto confuso, creio que preciso me reencontrar em minhas crenças. — A vida me forjou apenas para lutar, e é isso que eu farei até o dia da minha morte. Sugiro que então vá se reencontrar, pois decerto não estás preso a nós — disse o líder dos zelotes de maneira incisiva. — Eu vou, Barrabás, mas haverei de retornar. E quando o fizer, serei testemunha viva da destruição de Roma pelas mãos do ungido, o qual certamente não haverá de ser tu. Judas lhe deu as costas e deixou o esconderijo, pondo-se a vagar por entre os caminhos que, de cidade em cidade, o fariam chegar até a longínqua Galileia, afinal o seu íntimo clamava por uma providência divina e não apenas por um insignificante levante de alguns poucos descontentes. “Revolução com fé”, era isso que Judas queria; era isso que Judas esperava. Capítulo 7 A adúltera de Edom COMO O ESPERADO, os discursos de João Batista galgados nos pecados de Herodíade e da filha Salomé o levaram à prisão. E independentemente dessa medida, o ódio da rainha pelo pregador do deserto aumentava dia a dia, ao ponto de ela constantemente pressionar Herodes a ceder aos seus apelos e finalmente mandar executá-lo. Entretanto, nada o convencia em contrário, afinal, ele parecia nutrir certo respeito por João, a quem intimamente considerava um bom profeta e o invejava pela conhecida popularidade. Ademais, as masmorras do palácio pareciam estar de bom tamanho para aquele, por assim dizer, “reverenciado subversivo”. Mas Herodíade não estava satisfeita. Os não raros brados do preso ecoavam como adagas afiadas pelos corredores do alcácer, e farta de ouvir aquelas palavras rudes dirigidas contra si, ela finalmente resolveu colocar em prática um plano imoral e maligno. Embora convicta de que Salomé estava noiva, e pelas regras vigentes na época, de fato, casada, Herodíade sabia que a obsessão de Herodes pela filha era gritante, ao ponto de, numa noite, ele balbuciar o nome da enteada enquanto se deleitava com ela. Traiçoeira, a esposa fingiu não perceber tal confusão e, como uma vil cafetina, se aproveitaria desta feita para armar a morte de João, da forma que fosse. Salomé, pérfida como a mãe, aceitaria fazer parte do plano, afinal, a recusa de João Batista em se deitar com ela ainda lhe estava presa na garganta. Pois uma semana antes dos efetivos festejos do casamento da filha, Herodíade promoveu um jantar para a corte a fim de, propositalmente, tentar vergar o marido numa cilada e chantageá-lo. Assim ela deu ordens para que, em determinado momento da festa, os músicos entoassem uma canção sutilmente sensual, a qual serviria de cenário para um peculiar balé a ser executado por Salomé, já que isso o apeteceria. E foi o que então ocorreu naquela noite. Ao ouvir as notas sopradas por um dos flautistas e sentir como se um vento gelado lhe atingisse a pele, Salomé tomou um generoso gole de vinho, levantou-se vagarosamente e, com as unhas dos belíssimos pés cintilando como se fossem brilhosas opalas brancas, desfilou até o centro do salão onde todos podiam observá-la. Ela usava uma tiara dourada e um cinto de ouro com pedrarias, o qual amparava a conta de sete véus transparentes que quase não lhe cobriam as partes. E com os seios propositalmente à mostra, abriu os braços ornados por braceletes que, como guizos, passaram a acompanhar acadência daqueles instrumentos e a pautar os passos de uma dança provocativa e quase erótica que se deflagrava. Forjada pela escola das melhores dançarinas do Oriente, Salomé tinha domínio total sobre o próprio corpo e, valendo-se disso, passou a ritmar os passos de modo a estimular o imaginário dos observadores, em especial, o do rei Herodes. Ainda que a dança fosse originalmente uma arte dos anjos, ela abusava daqueles movimentos para envolver os seus alvos com a sinuosidade de uma serpente ávida pela presa, ao passo em que ia retirando, um a um, aqueles parcos véus que a cobriam. A música ganhava fôlego e ritmo, fazendo com que, na sequência, ela passasse a executar uma série de movimentos exóticos pautados por ondulações que iam do seu tronco ao abdômen, e que faziam pulsar cada vez mais o cálido sangue dos excitados espectadores, cujos pensamentos passeavam entre a volúpia e a devassidão. Tão logo se aproximou do desatinado tetrarca, ela lhe deu propositalmente as costas e, remexendo tão somente o ventre, fez com que as suas voluptuosas nádegas ficassem invulgarmente trêmulas, de modo a derrubá-lo pela libido. E com o aumento do ritmo da música, Salomé passou a circundar Herodes com a finalidade de capturá-lo pela lascívia, o que não tardou a ocorrer. Pois tão logo a nota final foi tocada, ela retirou o último véu que mantinha entre as pernas e o lançou na altura da cabeça do padrasto — esse era o sinal —, deixando-o experimentar o inebriante aroma do seu cio, para, somente então, despejar-se sobre as almofadas que lá jaziam e pô-lo finalmente submisso. Herodes Antipas ficou completamente fora de si. Herodíade percebeu que o momento era aquele e tratou de levar o marido para os aposentos de ambos, onde o deitou na cama e continuou a estimulá-lo. E na medida em que o corpo dele respondia, ela desapareceu por entre as cortinas e deixou que a própria filha tomasse a frente da empreitada. Ao ver Salomé totalmente nua, Herodes, embriagado pela bebida e enlouquecido pelo imoderado desejo, entrou em crasso delírio e, ao finalmente tocá-la, ficou totalmente à mercê dela. — Desejas este corpo? — gemeu ela de modo a enfeitiçá-lo ainda mais. — Sim... Eu o quero — asseverou, ao sentir o amadeirado perfume de sândalo que impregnava a pele dela. — E ao acaso achas que vou me entregar a ti gratuitamente; sem auferir nada em troca? — indagou, agora esboçando um leve recuo. — Eu te darei o que quiseres — apelou, desesperado por tocá-la novamente. — Tu não podei dar-me aquilo que quero... — tripudiou com falsidade. — Não tens poder para tanto. — Ouve-me, Salomé! — asseverou, tentando desesperadamente convencê-la. — Eu sou a única força da Galileia, tenho o poder de realizar todos os teus desejos — apelou com a voz ainda pastosa pela bebida. — Todos? — sussurrou, vez mais se aproximando dele. — Todos — assentiu com vigor. — Quaisquer que sejam... — ofertou com latente passividade. — Pois saibas que eu tenho uma imaginação fértil, muito fértil... — provocou, com a voz melosa e passeando as mãos pelas suas largas ancas. — Então não ponhas limites no que queres. Pede e terás! — Empenhas a tua palavra? A palavra do monarca da Galileia? — Eu nunca falei tão sério em toda a minha vida — rendeu-se. — Salomé, tu és a minha obsessão. — Obsessão... — repetiu ela. — Pois saibas que, ao final da noite, far-te- ei saber o meu pleito. E até lá, perde-te em mim e encontra o prazer que tanto desejas. Herodes ficou alucinado, afinal, Salomé era uma mulher cujos predicados físicos beiravam o surreal: corpo lúbrico, cabelos negros, olhos exageradamente esverdeados e seios que pareciam afrontar a gravidade. Pois ele, enfim, deleitou-se das mais variadas formas, cego ante as catastróficas consequências daquela promíscua interação. O tetrarca nunca teria coragem de possuí-la sóbrio, afinal, ele sabia do compromisso de noivado da enteada e dos resultados que aquele colóquio, caso fosse revelado ou descoberto, poderiam lhe trazer, na condição de titular de uma coroa subordinada a Roma. Após desvendar cada parte do corpo sensual de Salomé, Herodes finalmente sentiu o extraordinário clímax que havia muito desejava, e com tal beldade, não o experimentar seria algo improvável a um homem ordinário. Herodes, então, quedou-se inerte na cama e ficou quase sem os sentidos, arfando vagarosa e pausadamente. Percebendo que parte do plano havia sido vencido, ela então se deitou ao lado dele e, indiferente ao que havia feito, assim ficou, espreitando-o até o nascer do dia. Tão logo os primeiros raios de sol repercutiram naqueles cômodos reais, Herodíade, conforme havia previamente combinado com a filha, entrou no quarto e, sorrateiramente, sentou-se ao lado do marido, o qual, derrotado pelo excesso de prazer que havia auferido, ainda dormia. Salomé, nua e ao lado dele, percebeu a presença da mãe, e com ela passou a fitar o régio. Tão logo ele despertou com a cabeça dolorida, assustou-se ao se ver premido pelo fulminante olhar das duas. — Então, finalmente conseguiste o que querias, não é, meu esposo? — ponderou Herodíade, ao referir-se ao corpo da filha. Confuso e tentando voltar a si, ele percebeu, tarde demais, que havia caído numa armadilha. — Bem, agora só me resta denunciar-te a Pilatos e a Caifás, afinal, eu não acredito que eles verão com bons olhos o fato de o nobre e “judaizado”[99] tetrarca da Galileia ter tomado a própria enteada como mulher — satirizou. — E Salomé, por ser minha filha, certamente irá relatar com detalhes a violência de que foi vítima — disse de maneira confiante e cantada, afinal, ela sabia que o marido tinha a personalidade fraca e, por vezes, temia a própria sombra, quiçá o prefeito romano e a fúria dos sinedristas. — Não podeis fazer isso comigo! — desesperou-se. — Salomé, poupa-me dessa desgraça, ninguém jamais poderá saber do que aconteceu essa noite — apelou Herodes, aparentemente em vão. — Como bem sabes, tudo na vida tem um preço — respondeu-lhe a dissimulada dançarina. — Eu não vos denunciarei, afinal, és marido de minha mãe e tens uma dívida comigo. E se porventura saldá-la, asseguro-te que tudo o que aconteceu essa noite será esquecido. — Pois então pede! Pede! — implorou, quase caindo de joelhos. — Eu quero; agora e sem demora... — Sim, o que desejas? Fala de uma vez! — apelou demasiadamente nervoso. — Eu desejo a vida daquele cão que insultou a mim e à minha mãe. Eu desejo a cabeça de João Batista. Herodes ouviu e não acreditou. — Tu estás fora de si? — replicou descrente. — Queres a cabeça de um homem pelo preço do teu silêncio? — Me desculpa, meu padrasto; eu acho que usei mal as palavras... — justificou-se com um sorriso aparentemente inocente no rosto. — Eu não desejo. Eu exijo a cabeça dele cortada e a mim servida numa bandeja de ouro — bradou encolerizada. Ao fitar Herodíade, ele constatou que ambas estavam em vantagem. Fosse ele o finado pai, Herodes I, matá-las talvez fosse uma boa saída. Mas isso estava fora de cogitação, pois além de covarde, ele talvez selasse o seu infeliz destino como monarca, afinal, como justificar a Roma um duplo homicídio real naqueles dias? Um acidente? Não, seria muito perigoso. E acresça-se a isso que ele não tencionava terminar os dias como o pai, um conhecido assassino de parentes e crianças. — Bem, então eu fui traído pelo meu desejo — lamentou cabisbaixo. Pois entre encarar a vergonha pública de ter se deitado com a própria enteada, e a tirar vida de um miserável pastor do deserto, Herodes não teve outra escolha: optou pela última. Após vestir a sua túnica, ele chamou pelo fiel servo Cusa[100] e transmitiu-lhe a inusitada ordem, cujo cumprimento haveria de ser imediato. Ainda nasmasmorras, João dormia, quando foi inesperadamente desperto pelo seu abrutalhado carrasco. Ao perceber a afiada cimitarra dele fora da bainha, soube que a sua tão esperada liberdade espiritual havia chegado. O golpe que lhe ceifou a cabeça foi tão rápido, que ele sequer o sentiu. Aliás, ele somente sentiu a guarida do espírito de Elias, que lá estava para resgatá-lo e guiá-lo a salvo para o Éden Espiritual onde já era aguardado. João Batista viveu uma vida de entrega e de sujeição a Deus; foi celibatário, fez voto de pobreza e alimentava a alma apenas de palavras de esperança. Sua morte, ao contrário do que Herodes poderia prever, foi recebida com fúria pelos seus seguidores, os quais, em represália, passaram a acampar nos portões do palácio e entoar agressivas palavras de repulsa ao mesmo. Por outro lado, aquele segredo imundo dele com a filha de Herodíade havia sido preservado. Satisfeita com o prêmio, Salomé teve a audácia de demarcá-lo com os próprios fluídos, tamanho o grau de abominação a que ela já se dava. Ao saberem do ocorrido — afinal, a cabeça de João ficou um dia inteiro em poder da princesa antes de ser descartada numa fossa comunal —, os humildes de Tiberíades passaram a nutrir crassa repulsa por ela, a quem Herodes passou a temer em silêncio, afinal, ao menos para o público, a execução do pastor se tinha se dado em razão da prática de crimes contra a coroa. Pelo visto, Salomé não parecia ter sangue, mas veneno nas veias. E pelo curso da história, tudo levava a crer que a vida dela seria como a da sua mãe, quiçá pior, pautada por pecados, aberrações e iniquidades das mais variadas formas. Mas poderia uma alma obscura como aquela ter salvação? Bem, uma inusitada manobra do destino estava próxima a responder tudo isso. * * * Após uma breve visita à cidade de Nazaré, Jesus e os seus haveriam de retornar a Cafarnaum, onde muitos mais ainda queriam ouvi-lo. Ao grupo, que já beirava os setenta membros, havia se juntado a mãe do salvador, Maria, que deixou os afazeres para acompanhar o filho em suas peregrinações e, de certa forma, ficar mais tempo ao lado dele. Ela era muito bem quista, pois todos nela enxergavam a mãe de todas as horas e, tê-la nas romarias, trazia paz e segurança moral. Por outro lado, é de se considerar que a iniciativa dela pesou em razão de um incidente ocorrido um dia antes na tímida sinagoga de Nazaré, onde Jesus, após ler um trecho da profecia escrita pelo profeta Isaías sobre a vinda do Messias, concluiu que as escrituras estavam cumpridas e deu a entender que ele era o ungido. Enfurecidos, os fiéis esboçaram expulsá-lo do recinto e apedrejá-lo na encosta do vilarejo. Entretanto, Maria, deveras respeitada em razão da memória do esposo José, pôs-se diante dele e impediu a desgraça. Pois acreditando que o filho talvez estivesse mais seguro com ela, a imaculada decidiu segui-lo, como assim o fez. Já transcorria o dia de domingo e, numa parada de descanso dos romeiros, a virgem percebeu que Magdalena nutria particular apreço pelas crianças e, em especial, por uma que recentemente havia se juntado a eles na companhia de irmãos mais velhos. Caliel, a aludida “criança”, era um anjo polêmico, pois embora envergasse a frieza de um exterminador de nações, a sua aparência física o aproximava de uma pequena garotinha indefesa e, como uma, não costumava desprezar demonstrações de carinho para consigo. Pois estranhamente tentada a se aproximar da nova discípula do filho, a qual soube ser oriunda da aldeia de Magdala, Maria se achegou solícita e disse: — Elas são adoráveis nessa idade, não achas? — ponderou em relação a Caliel, a quem, sequer de longe, desconfiava ser um querubim. — Sim... — Sorriu Magdalena. — Parece que não carregam qualquer maldade — concluiu sem também saber do longo histórico de matanças do pequenino. — Ela é tua filha? — indagou a imaculada ante a visível aparência feminizada do pequeno celeste. — Infelizmente não. A vida não me deu o privilégio de ser mãe — respondeu em tom de lamento. — Pois saibas que nunca é tarde — ponderou a virgem de modo afável. — Talvez para mim o seja — respondeu aparentando tristeza e soltando Caliel junto à grama. Maria se manteve serena e não replicou aquela observação. — A senhora é a mãe dele, não? — demandou Magdalena, referindo-se ao mestre. — De Jesus? Sim, eu sou. — Perdoa-me a liberdade, mas aparentas ser tão jovem. — Eu dei à luz a ele ainda muito menina; eu devia ter de doze para treze anos de idade — respondeu com saudosismo. — Mas me desculpa a indiscrição... — insistiu Maria. — Eu não sei se é impressão minha, mas pareces carregar uma grande tristeza dentro de si. Magdalena suspirou e logo respondeu: — Confesso-te que ela já me foi maior. Mas graças ao teu filho, eu passei a ter um novo foco na vida, pois pelas mãos dele, descobri o sentido do amor verdadeiro, aquele que é dado sem que se tencione auferir nada em troca. — Jesus tem esse dom desde menino — esclareceu orgulhosa. — Tu és a jovem vinda de Magdala, pois não? — Sim... — E tens família por lá? — Eu já tive. Mas hoje não me restou mais nada que não algumas lembranças e os haveres deixados pelo meu pai. — Referes-te a tua querência com certa mágoa. — É que nem todas as memórias que eu tenho dela são boas, senhora. — Não necessitas ser tão formal comigo — licenciou-a. — Chama-me apenas de Maria. — Maria... — sorriu intimidada. — Pois saibas que todas as famílias têm más lembranças, Magdalena. — Notando que ela recalcitrava em dizer algo que parecia incomodá-la, a mãe de Jesus tentou estimulá-la. — Filha, caso queiras desabafar, estou à disposição. — Magdalena sentiu um apelo forte e verdadeiro vindo dela e, então, deixou verter uma lágrima tímida. — E se é para livrar-se daquilo que vos incomoda, não derrube apenas uma, mas tantas lágrimas quantas forem necessárias. Sentindo guarida, ela então se pôs a chorar com maior intensidade, fazendo com que Maria a amparasse num generoso abraço, como se a mãe dela de fato fosse. — Abre o teu coração, diz o que sentes e, certamente, haverá de sentir-se melhor. — Eu... — titubeou. — Eu matei um homem — revelou chorosa e com certo temor na fala. Maria mostrou-se surpresa com o teor daquela revelação, mas nem assim deixou de albergá-la. — Mas como isso ocorreu? — Ele... — Hesitou em meio ao pranto. — Ele tentou me estuprar — completou soluçando. — Tudo foi tão rápido, eu não tive escolha. E quando percebi, ele já estava morto diante de mim. — Tentando refrear o choro, ela se esforçou para continuar. — Eu não sei se consegues imaginar o quão terrificante é se ver à frente de um agressor que tenciona roubar-te a castidade. Sempre com a face tranquila, Maria respondeu: — Magdalena, eu creio que sei como tu te sentiste. — Sabes? — indagou surpresa. — Sim. Quando Jesus ainda estava em meu ventre, eu e o meu finado esposo fomos atacados no deserto, a caminho de Belém. Alguns homens rudes o agrediram, e ele acabou perdendo os sentidos. E um deles, o maior e mais hostil, estava prestes a investir contra mim. Mas no entanto... — No entanto? — repetiu, curiosa com o desfecho daquela lembrança. — Esse é um segredo que apenas eu e meu saudoso José sabíamos — confessou. — No entanto surgiu diante de nós um grande anjo de Deus e o impediu, ou melhor, o matou; matou todos eles — revelou com a face impressionada pela recordação. — Um anjo de Deus? — interessou-se. Maria gracejou de forma comedida e respondeu: — Bem, não me tomes por desatinada — continuou, oscilando espirituosamente a cabeça. — Mas é verdade. Eu estava na iminência de ser atacada quandoentão um ser de luz surgiu repentinamente com uma espada brilhante e fez o que fez... — revelou erguendo um dos braços como se revivesse aquela marcante cena pretérita. Magdalena ficou surpresa com aquela inusitada revelação; não se sentia mais só em sua dor. — E se esse anjo teve a licença de Deus para me defender, não quero crer que escusa similar não possa ter sido estendida a ti, afinal, tu estavas numa situação de perigo idêntica à minha. — Mas eu tirei a vida dele! E já me foi dito que a Lei de Deus considera isso um pecado mortal. — Sim, e não estás errada. Mas não permita que tua consciência te puna de forma sumária. Busca encontrar-te com Senhor e pede a Ele perdão, pois somente assim conseguirás extirpar essa dor que carregas dentro de ti. — E achas que Ele me perdoaria? — perguntou menos nervosa. — Quem pede com fé, recebe; e se o que dizes vem do teu coração, estou certa que Ele jamais te faltará. — Mas como eu haverei de encontrar-me com Deus? — Confessa-te com o meu filho. Ele achará um meio de te guiar até Ele. Mais confiante, Magdalena agradeceu afetuosamente Maria e procurou pelo rabi que, naquele momento, estava a certa distância das duas. Já era final de tarde e, enquanto alguns descansavam, Jesus se entretinha com uma canção entoada por Metatron, que munido de uma flauta feita de madeira, estava muito bem a interpretar o papel de um ser humano ordinário. Com os olhos fechados, em razão da força sentimental daquela cantiga, uma tradicional composição angélica e uma das marchas prediletas do Príncipe Miguel, ele ainda assim percebeu quando ela se achegou. — Mestre? — Magdalena... — respondeu ele com os olhos ainda fechados, mas reconhecendo a suave sonoridade da voz dela. — Mestre, perdoa-me se eu incomodo, mas eu gostaria de falar-te apenas por um instante... — solicitou com recato. — Não é incômodo algum, senta-te a meu lado — respondeu, ao instintivamente dispensar o flautista. — Magdalena acatou o convite e o encarou com a mesma humildade de outrora, quase que se desculpando pela inoportuna investida. — Percebo que o teu semblante está mais sereno. Mas ainda deixas transparecer certo ressentimento, certa dor... — observou, perspicaz. — Pois é sobre essa dor que eu gostaria de falar. — Então abre o coração — licenciou-a sempre disposto. — Mestre, eu estava a conversar com a vossa mãe Maria. E acabei confessando a ela um pecado grave que carrego há anos. — E o que fizeste de tão tormentoso para que sofras tanto? — Eu... — balbuciou abaixando a cabeça. — Eu tirei a vida de um homem — finalizou, cerrando forçosamente os olhos. — Mas eu asseguro, apenas me defendi. — Magdalena... — falou sério. — E por acaso tu não sabes que a Lei de Deus diz que a um homem é defeso matar o outro? — Sim... — lamentou. — E aceito que já estou condenada por isso. Entrementes, Jesus tentou minimizar-lhe a culpa. — Pois, falando em normas, tu por acaso sabes o que a Lei de Moisés diz sobre aquele que é pego roubando? — Não, mestre. Admito que sei muito pouco sobre isso, quase não tive acesso ao ensino religioso, embora eu saiba ler e escrever em vários idiomas. — Então, preste atenção ao que eu te direi: “Se o roubador for ferido de sangue; aquele que o feriu não será réu de sangue”. — Mas isso não se contrapõe ao mandamento a que fizeste alusão? — Não sob certo ponto de vista — ponderou. — Pois aquele que fere para defender a vida tenciona salvar uma, que é a sua própria. — Então acreditas que nem tudo está perdido para mim? Jesus vez mais sorriu e continuou a explicação. — Não sei se tu sabes, mas até mesmo os anjos matam em nome de Deus — esclareceu sob o distante e acanhado olhar dos três recém-arregimentados ao grupo, em verdade, três celestes mascarados, um dos quais, Caliel, o mais hábil matador do Céu. — Sim, eu soube há pouco — respondeu em alusão ao segredo que Maria havia lhe confidenciado. — Pois então. Se Deus nos dá a vida, e a vida é o maior bem que temos, nós não podemos abrir mão dela, ainda que indiretamente. E se tu defendeste a tua, nada mais fizeste do que zelar por esse bem sagrado que te foi dado. — Percebendo que ela ainda aparentava estar confusa, Jesus tentou se fazer mais claro. — Magdalena. Entendas que o nosso corpo físico é um templo, é o santuário do Espírito Santo. Assim, aquele que mata gratuitamente se aparta de Deus, mas aquele que deixa de zelar pelo seu templo, também o faz. Enfim, tolerar um ataque de morte contra si próprio é um pecado tão ou mais severo do que aquele que te assombra. — Acho que estou começando a entender o que dizes. — Então, sepulta de vez as tuas dúvidas. Se tivesse agido por ódio ou indiferença, serias culpada pelo sangue vertido. Mas se não querias pura e simplesmente a morte do teu agressor e desejavas apenas defender esse santuário a que fiz menção, não vejo reparos que te possam ser feitos. — Mas ainda assim, eu pratiquei um pecado, não é? — O ato não apaga o sentido da ação, afinal, uma vida foi perdida. Houve, de fato, um pecado, e as consequências para ti foram o medo, a tristeza e essa culpa que ainda carregas. Mas saibas que, no teu caso específico, escolheste a tua vida num momento de desespero. Dos males, o menor. — Então eu não sou uma assassina, mestre? — indagou agitada. — Assassino é aquele que mata por desprezo e por rancor, são nesses sentimentos que residem as raízes do mal. E tu, pelo que disseste, não agiste dessa forma. Mataste, sim; mas não como uma assassina; afinal, a autoproteção foi um ato de preservação da vida que fulminou a ilegitimidade da tua ação. Não te esqueças Magdalena: Deus julga o intento e não a ação física. — Mestre, tiraste outro peso de mim — satisfez-se. — Então eu posso me considerar perdoada? — A tua justificativa já te serviu de perdão, pois Deus, ao contrário daqueles que aplicam a justiça dos homens, não é cego. Magdalena carregava essa última mácula dentro de si, a qual, pela verdade da isenção, foi extirpada graças àquelas sábias palavras de Jesus. Ela sentiu vontade de abraçá-lo efusivamente, mas o recato não permitiu. Ainda assim, tomou forçosamente as mãos dele e, nelas, deitou a própria face. — Como pode existir alguém como tu? Tão bom; tão inteligente e tão caridoso? Pois deverias ser rei; o nosso rei! Jesus ouviu àquelas palavras tomadas de emoção e ponderou sem desmerecê-las. — O reino que os justos procuram não está aqui. Portanto, vede-me apenas como um pastor que busca arregimentar um rebanho, o qual haverá de encontrar bom pasto no paraíso, onde a paz e a concórdia não são leis postas, mas regras de vida. — Mestre, quisera eu ser um homem, pois assim poderia ajudar-te a construir a tua igreja — desabafou, em alusão ao caráter patriarcal da sociedade de então. — Pois eu te digo que os tijolos do meu templo serão formados por todos os que creem em mim. E se tu acreditas, também será um deles; quiçá, o mais forte. Ela, vez mais, ficou extremamente grata e, na figura de Jesus, encontrou o foco para a sua vida. Mirian Magdalena havia se apaixonado pela majestade dele, algo que transpunha a mera atração carnal tão comum entre os seres humanos. Embora fosse demasiadamente bela para os padrões convencionais das mulheres israelitas — dona de longos cabelos negros, olhos bem claros e um capitoso nariz levemente aquilino que lhe coroava o conjunto —, Jesus estava imune a quaisquer sentimentos corporais que ultrapassassem o amor puro, afinal, como arcanjo que ele originalmente era, estava, inconscientemente, preso à lei restritiva de Deus sobre as mulheres: “a mulher pertence apenas ao homem”. E foi por isso que, durante todo o período de sua vida, o rabi de Nazaré se manteve emcontinência aos seus princípios, apaixonando-se e amando sempre, mas dentro das regras que unissem apenas os corações, não os corpos. * * * Tão logo o casamento de Salomé ocorreu, ela e Lazzar-Sah passaram a ter morada fixa no palácio de Antipas conforme havia sido anteriormente convencionado. O tetrarca, ainda ressabiado com a sordidez da esposa e da enteada, passou a se focar mais nos assuntos de Estado; afinal, a morte de João Batista havia lhe poupado do escárnio, mas acabou lhe trazendo problemas outros, como a ostensiva revolta dos seguidores dele que, vez ou outra, eram brutalmente reprimidos pela guarda mercenária em razão das suas investidas. Sua esposa Herodíade era uma mulher de inúmeros leitos, e ainda que o fogo do marido tivesse se exaurido após o famigerado colóquio com Salomé, isso pouco importava para a rainha, afinal, ela sabia em quais alcovas caçar os seus prazeres mundanos. E embora já estivesse na casa dos quarenta anos de idade, ela era extremamente bem lapidada, e ficar sem um amante era algo improvável; se não, impossível. Conquanto o desconfiado consorte da Princesa Salomé estivesse em teto alheio, ele carregou consigo vários servos fiéis, os quais, como moscas, passaram a rondá-la a fim de mantê-lo informado sobre a rotina dela, principalmente quando de suas costumeiras viagens para tratar de assuntos profissionais nas inúmeras rotas de comércio que lhe pertenciam. Pois aconteceu que, alguns dias depois, Salomé se banhava sozinha na grande piscina do palácio, a qual ficava na parte térrea e não tão longe dos acessos que davam aos portões laterais. Do lado de fora do salão, estavam alguns criados de Lazzar-Sah, os quais, em regra armados, estavam sempre à espreita. De certa maneira entediada, afinal os tais “guardiães” estavam atrapalhando as suas costumeiras escapadas sexuais, ela se ergueu, enfadonha, daquela terma particular e, após ter se autoestimulado, deixou revelar o seu corpo nu e ainda molhado. Enquanto se secava, ela sentiu uma leve brisa gelada vinda por trás de si, a qual lhe arrepiou a pele. Olhando para os lados e nada vendo — as aias a haviam deixado sozinha conforme o determinado —, ela ficou, de certa maneira, incomodada, para não dizer, assustada. Salomé deu mais alguns passos, ressabiada, procurando por algo que não conseguia ver, quando, de repente, uma voz grave e baixa invadiu aquele recinto. — Parece que foi ontem que eu te vi assim pela primeira vez; nua e encantadora naquela bela lagoa dourada na cidade perdida de Nod... Ao se virar rapidamente para tentar identificar o autor daquela fala, Salomé teve uma extraordinária surpresa que a pôs em estado de choque. Sua mente foi invadida por várias imagens de suas vidas passadas, culminando com uma despedida forçada e um encantamento que a fez se esquecer do companheiro, mas, naquele instante, ela se lembrou de tudo. Ao romper o seu forçado silêncio diante daquele intruso, Salomé o fez com uma expressão dita de maneira involuntária e ao mesmo tempo surpresa. — Azeyzel! Pois parte daquele grandioso mistério se findou naquele momento. Iniciado em magia negra, o ainda fugitivo celeste havia procurado exaustivamente pelo avatar de sua inesquecível amante, a inebriante e renascida Layla-Li! E sim, no corpo de Salomé, cujos pecados nos parcos anos daquela vida já eram incontáveis, estava oculto o espírito original de sua companheira, liberto da Câmara de Guf para tentar, na Terra, a sua última redenção. E foi naquele confuso cenário que ela passou a reexperimentar vários momentos das seis vidas que havia tido antes daquela, mormente os piores, terminando com o assassinato dos dois filhos pelas próprias mãos. Nesse instante, Azeyzel se aproximou dela e a tomou efusivamente nos braços. — Voltei, minha querida! E dessa vez, para levar-te comigo — disse, abraçando-a e beijando-a com intenso frenesi, na verdade, um furor de séculos. Deixando-se momentaneamente levar pelo ímpeto da aura lasciva de Layla-Li, ela se agarrou ao vigilante e cruzou com força as suas pernas entre as nádegas dele, fazendo com que o reconquistado sexo de Azeyzel reagisse de pronto. Mesmo estando confusa, a primeira reação de Salomé foi a de se entregar em pecaminoso prazer, tamanha paixão que aquele anjo lhe tinha impingido em sua primeira vida. E sentindo a reciprocidade dela, ele a possuiu em pé e com um furor abrasante. Mas ao sentir o exilado dentro de si, vez mais um repente de todos os pecados que havia praticado, bem como das tormentosas passagens que havia tido na Tesouraria das Almas. E finalmente lembrando da conversa sincera que teve com a obreira Harual antes de ganhar a liberdade, ela emitiu um grito doído, como se uma adaga afiada tivesse lhe transposto o coração. Alertados pelo alto som do brado, os servos de Lazzar-Sah forçaram a entrada e surpreenderam Salomé e o estranho em pleno ato sexual, o qual, ao que tudo indicava, estava sendo por ela consentido. Fiéis ao mestre, que ali parecia estar sendo traído, eles investiram braviamente na direção dos dois, oportunidade em que, desordenada com tudo aquilo, ela se livrou do inusitado parceiro e tomou uma peça da cobertura de seda que estava prestes a vestir, saindo, a seguir, em desabalada carreira pelo térreo do palácio. Azeyzel agora não passava de um meio-anjo, sequer asas tinha, e lutar contra homens armados talvez não lhe fosse vantajoso. Diante disso, ele astuciosamente se camuflou em luz e conseguiu despistar dois dos guardiães de Lazzar-Sah, ao passo que os demais, três deles, ávidos por justiçar a atacada honra do seu amo, se puseram a perseguir Salomé. Perdida e com a mente desordenada, a princesa sequer teve o ímpeto de subir as escadarias para buscar a guarida dos seus, pondo-se então a correr tresloucada em direção à saída dos fundos do palácio, ganhando as ruas de Tiberíades seminua e em completo descontrole emocional. Enquanto iam atrás dela, os servos de Lazzar-Sah a acusavam publicamente de traição, imputando-lhe, de forma sumária, a mortal pecha de adúltera. Ao embrenhar-se pelas vielas lotadas de judeus, Salomé tentava, de algum modo, reencontrar-se, pois a sua mente estava a trapacear e a levá-la para cada uma das suas vidas findas. Ao ser reconhecida e apontada como a maligna filha de Herodíade, os radicais passaram também a persegui-la e exigirem, na mesma conta, o sangue dela pelo de João Batista. — É Salomé! — gritavam. — Pegai essa rameira maldita e apedrejai-a até a morte — entoavam com ódio nas palavras. Arisca, ela vez ou outra tropeçava e caía e, embora conseguisse se levantar depressa, àquela altura, um sem número de amargurados a estava acossando, e talvez nem mesmo o exército do padrasto conseguisse aplacar a fúria deles. E foi nesse cenário confuso, derrubando bancas pelas ruas e empurrando os mais incautos para fugir de algo que sequer sabia ao certo, que Salomé ganhou uma via e tropicou pela última vez, caindo violentamente sobre a terra batida e esbarrando nos pés de uma inusitada pessoa, talvez a única que pudesse salvá-la dos seus furiosos perseguidores. De rápida passagem por Tiberíades, a qual antecedia a cidade de Cafarnaum, Jesus e parte dos discípulos haviam adentrado na cidade para comprar mantimentos, tal não sendo a surpresa deles ao se depararem com aquele cenário beligerante. Trêmula ao extremo, Salomé mal conseguia erguer o rosto e, ao instintivamente tocar nas sandálias de Jesus, caiu num transe que a colocou em coma. Metatron, que seguia logo atrás com discípulos, adiantou-se no terreno e a tomou no colo,identificando, pelo cheiro do sangue que dela vertia em razão dos ferimentos, o tão procurado código genético de Layla-Li. — Entregai-a a nós! Ela merece ser apedrejada! — gritavam uns. — Adúltera, que sejas morta! — bradavam outros. Perfurando a multidão com o olhar, Jesus tomou à frente do impasse. — O que fez esta mulher para receber tanto ódio? Nesse instante, o encarregado de Lazzar-Sah lá chegou e, com a espada erguida, vociferou em grego algumas palavras que esbarravam num afamado bordão judaico: “sozinho com sozinha; nu com nua e em outro leito”. Embora Jesus não fosse tão letrado — era um camponês que tinha fluência apenas no aramaico, embora possuísse certo conhecimento do hebraico e do grego —, aquela frase fazia genérica alusão à severa lei mosaica, isto é, ao delito de adultério, por aqueles dias, punido com a morte. Salomé era de Edom, uma espécie de descendência-prima da nação judaica, assim, era tida como “meio” judia e, apenas por isso, a severidade da Lei de Moisés também haveria de recair sobre ela. — Queremos o sangue dela pelo do Batista! — interferiu outro popular, tomando uma pedra nas mãos, no que foi seguido pelos demais que ali se amontoavam. Percebendo que a multidão em fúria tomava corpo, Jesus cruzou olhares com Metatron e, sutilmente, deu a entender para que este, com Salomé inconsciente no colo, se colocasse por trás dele. Esboçando sacar a espada curta diante do impasse, Pedro a levou novamente à bainha, ao perceber que o seu mestre, a exemplo dos demais, também tinha tomado uma pedra do chão. — De fato, é de Lei que o adúltero haverá de ser morto — bradou Jesus, tomando a dianteira dos seus. — Pois se ela merece o severo castigo da lapidação[101], também o merecem todos os que profanaram a mesma Lei. — O que estás a dizer, estranho? — bradou um afoito popular ameaçando avançar contra ele. — Eu estou a dizer, Raviv — afirmou Jesus, inusitadamente referindo-se àquele homem pelo nome —, que apedrejados também devem ser aqueles que, como tu, já se deitaram com uma virgem comprometida — disse sob o atemorizado olhar daquele insurgente — ou como tu, Phineas — asseverou, já se dirigindo a outro —, que tomaste os bens de teu pai e o amaldiçoaste — bradou, ao segurar com firmeza aquela mesma pedra e encarar aqueles para os quais se dirigia. Pois ao perceber que a multidão passou a recuar diante das suas revelações, verdades que apenas ele via por trás da soberba dos pecadores que lá estavam, ele foi ainda mais duro. — E então? Ireis ou não matar essa infratora? — desafiou. — Nem tu, Elad? Que deu falso testemunho para beneficiar-te da má-sorte de uma pobre viúva? — insistiu, desmascarando os que lá estavam. — E tu, Deena? — indagou sarcasticamente a uma das mais agressivas insurgentes. — Será que não merece a morte, uma devassa que, assim como tu, se dá em prazer às feras? — asseverou, revelando, diante de todos, que ela se rendia ao execrável pecado da bestialidade. A multidão ficou chocada e, admoestada, passou a perder força. E enfim, Jesus deu o golpe decisivo. — E enfim, que tal tu, Barzilai? — desafiou, agora, o servo do esposo da fugitiva, o mesmo que havia esbanjado soberba ao envergar o idioma grego. — Tu, que com esse mesmo gládio constrangeu a própria filha a ser tua mulher — finalizou, diante de um cabisbaixo e acuado acusador. — Vamos! Jogai as pedras! — provocou. — Jogai... e elas, graças a implacável justiça de Deus, irão se voltar para as vossas próprias cabeças. Os acompanhantes do mestre perceberam que ele havia tomado o controle da situação, afinal, diante da parcela de divindade que carregava, havia sido capaz de enxergar os ilícitos de todos os que lá se ajuntavam. — Ninguém? — continuou, ao enfrentá-los com aquele fragmento ainda erguido para o alto. E percebendo que havia acuado todos os que lá ficaram, temerosos em ter os graves pecados publicamente revelados, Jesus finalmente jogou a pedra que tinha em mãos no chão e a viu se pulverizar. Confiante, ele e os discípulos perceberam quando todos começaram a se afastar, vencidos que haviam sido pelos seus inquebrantáveis argumentos. Pois Metatron, embora imponente em razão dos seus mais de dois metros de altura, tamanho médio de um arcanjo, não quis arriscar e, mesmo percebendo a tensão diminuir, ponderou ao rabi. — Senhor, acho melhor tirarmos esta mulher daqui. E depois do que aconteceu, seria melhor que também deixássemos a cidade. — Ele tem razão, rabi — disse André —, com a morte de João Batista, o povo tem andado nervoso, e não seria prudente nos arriscarmos novamente. — E quanto a essa menina? Ela parece morta — indagou Pedro nervoso. — Não, ela ainda vive — respondeu Metatron. — Mas se nós a deixarmos aqui, aí sim ela correrá perigo de morte. Senhor, permite que eu e minha irmã cuidemos dela — pleiteou, aludindo ao igualmente disfarçado príncipe dos querubins. Jesus olhou para Salomé e sentiu que a ajuda que ela precisava não se resumia apenas a livrar-se da sanha daqueles rudes revoltos; ela precisava, também, ser salva da perdição da sua alma. Com um simples movimento de cabeça, ele concordou com o pleito e todos deixaram Tiberíades sob o ainda impressionado olhar de muitos que presenciaram aquele acontecimento. Azeyzel havia escapado, mas o avatar de Layla-Li foi encontrado num inusitado golpe de sorte. Metatron tentaria mantê-la por perto e usá-la como isca, a fim de tentar colocar as suas mãos no fugitivo celeste, ao passo que, agora junto de Jesus, ela talvez encontrasse o caminho aludido pela obreira Harual. Ou seja, de um jeito ou de outro, ela estaria segura. Tão logo a notícia da fuga de Salomé chegou ao conhecimento de Herodíade, ela entrou em desespero. Entretanto, Antipas ficou intimamente satisfeito, afinal, sem o testemunho da enteada, a rainha havia ficado, de certa forma, enfraquecida para chantageá-lo. Em razão do depoimento dos servos de Lazzar-Sah, sedimentou-se que ela havia sido flagrada em adultério com um desconhecido e, mesmo para os edomitas, isso era um crime de morte. Para tentar manter as aparências, Herodes Antipas despachou algumas guarnições atrás dela, mas já previamente orientadas por Cusa a não serem tão rigorosas nas buscas. Crente na versão dos seus, o esposo dela considerou as bodas sumariamente desfeitas e, levando consigo a própria vergonha, partiu de Tiberíades para nunca mais voltar. * * * Ressabiados com o retorno repentino de Jesus, os demais membros da comitiva, acampados nas imediações da cidade, tiveram a atenção chamada para uma mulher desacordada que um dos seguidores trazia nos braços. Ao ver Metatron andar de forma apressada, Beelzebu percebeu quando ele passou do seu lado e sussurrou: “Eu a encontrei”. Sem muita demora, todos voltaram à estrada precariamente policiada e, nos braços do arcanjo, a jovem seguia ainda inerte. Na parada seguinte, já ao cair da noite, Joana e Magdalena se achegaram de Salomé para tentar ajudar em algo, oportunidade em que a primeira, ao vê-la aparentemente dormindo, esboçou uma feição de notório espanto. — O que houve Joana? — indagou Magdalena. — Essa menina... — respondeu afoita. — O que tem ela? — Eu me recordo dela ainda criança no palácio de Tiberíades — esclareceu a ex-amante de Cusa. — Eu dificilmente me engano, estou certa de que ela é a enteada de Herodes Antipas, a Princesa Salomé. Mostrando-se surpresa com a revelação, Magdalena achou por bem dar ciência desse fato a Jesus, uma vez que a refugiada poderia trazer as tropas do tetrarca contra eles. Entretanto, o fato é que haveria de ocorrer exatamente o oposto. Jesus recebeu a notícia com tranquilidade,afinal, depois daquilo tudo, Salomé, assim como Joana, não seria mais Salomé. Mas para evitar maiores temores, ele pediu cautelar silêncio a ambas, no que foi atendido. Metatron se pôs de guarda ao lado dela, pois sabia que Azeyzel voltaria atrás da alma da ex- companheira, agora presa em outro corpo, tão belo quanto o de Layla-Li. Quando os primeiros raios do sol nasceram, Salomé abriu lentamente os olhos e se viu numa terra estranha. Ao invés da suntuosidade a que estava acostumada no palácio, apenas o firmamento, pássaros cantando e um vai e vem de pessoas que, havia bem pouco tempo, ela desprezava. Pedro, que limpava os dentes com algumas folhas de sálvia, a fitou, marrento e desconfiado. Ela tentou entender o que se passava ali, mas, em verdade, parecia ter experimentado uma espécie de renascimento. Sem que se apercebesse, alguém que, naquele momento, estava ao lado dela, tomou a iniciativa da conversa. — Nada como despertar sob um belo teto como esse, não é mesmo? A princesa ainda estava confusa, mas ao ver a figura serena de Jesus diante de si, tentou se levantar apoiando-se num dos braços, mas não conseguiu. Percebendo a dificuldade dela, o rabi a confortou. — Está tudo bem agora, não faças tanto esforço. — Onde eu estou? — indagou, tentando recuperar a voz. — Entre amigos, entre irmãos — respondeu o mestre sorrindo. — Eu não me lembro de nada... — Tu não sabes quem és? — Quem sou eu... — repetiu apalpando a cabeça. — Mas quem sou eu? — Isso cabe apenas a ti decidir. Quem tu eras talvez não importe. Mas quem serás daqui por diante, isso, sim, importa — disse o rabi, tomando-a pelas mãos. A verdade é que Salomé havia, de certa forma, morrido. Não fisicamente, afinal, ainda estava ali em matéria, mas ela havia renascido em vida, enterrando todos os fantasmas que a atormentavam. Quando ela tocou Jesus durante sua fuga, teve apagada a sanha maligna que a caracterizava e, por via de consequência, acabou perdendo parte da sua memória, remanescendo apenas a necessária para que interagisse com as demais pessoas. O rabi, de certa forma, a tinha curado de uma doença extremamente grave e, na mesma toada, a libertado do que a perseguia desde que tinha vivido como Layla-Li na cidade de Nod, antes mesmo do dilúvio universal. — Não sabes o vosso nome? — Eu... não me lembro — justificou-se. — Permite-me, então, chamar-te de Susana — disse ele, vertendo algumas gotas de água sobre a testa dela. — Susana? — Sim, pois, para nós, és um “lírio renascido” — explicou em metáfora. — Fica conosco e renasce não apenas para ti mesma, mas também para o reino de Deus. Ela ainda estava, de certa forma, túrbida; Magdalena então se aproximou e lhe cedeu uma muda de roupa, afinal, ela mal conseguia se cobrir com um arremedo de capa que Metatron lhe havia posto. Salomé, agora chamada Susana, cujo significado era, de fato, “lírio”, estava com o rosto sem pinturas, pois havia se banhado e não teve tempo hábil para que as suas aias a tornassem ainda mais bela. Contudo, a naturalidade da sua beleza estava intacta, agora acrescida de um resquício de pureza que ela jamais havia tido. Susana não recusou a oferta da veste e, igualmente auxiliada pela ex- cortesã da corte de Antipas, ornou-se de modo a imiscuir-se entre as demais mulheres que acompanhavam Jesus na caravana de discípulos, a fim de nela desaparecer. Pois não tão longe dali Beelzebu se achegou de Metatron e o indagou: — Então é mesmo ela? — A jovem sangrava pela boca quando a encontramos. Toquei o seu tecido conjuntivo, e me foram reveladas as instruções genéticas que a obreira do Guf me repassou. É ela, não há dúvidas. — Ontem, Caliel se aproximou dela e a sentiu impregnada pela estirpe de Herodes I, a quem ele próprio matou há alguns anos. Mas e Azeyzel? O viste por lá? — Não, mas acredito que ele deflagrou tudo isso, afinal, ela estava sendo acusada de ter se deitado com um homem que não o marido, talvez ele... – considerou. — E ao cair aos pés de Miguel, ou melhor, de Jesus, ela desfaleceu. — Se a vossa tese está correta, Azeyzel não tardará a rondá-la novamente. — E quando isso ocorrer, eu haverei de colocar as mãos nele. — E essa tal menina? — Eu terei que ficar ao lado dela; é o meu chamariz. Sem nada entender, a recém-batizada Susana se entretinha com a atenção que estava recebendo e, mais ainda, com um estranho sentimento de gratidão que havia brotado no seu coração, cuja frieza de anos — ou melhor, de séculos — estava agora se esvaindo. De outra banda, Pedro andava ressabiado com a constante arregimentação de mulheres ao grupo, principalmente aquela, acolhida quase nua numa praça da grande Tiberíades, cujo marido ou tutor poderia estar furioso em busca dela. Forjado numa sólida base patriarcal, ele relutava em aceitar a igualdade que Jesus emprestava às mulheres, afinal, na cabeça obtusa do pescador, ele temia que elas auferissem conhecimentos outros que as tornassem aptas a suplantar a casta masculina até então dominante. Some-se a isso que embora fiel e dado aos ensinamentos de Jesus, ele ainda resistia em entender o real conceito de reconciliação, mormente para prostitutas – Joana; curandeiras – Magdalena; e adúlteras – Salomé. Sempre solicito, Jesus percebeu o incômodo e, vez mais, tentou fazê-lo mudar de ideia. — Pedro, aceites que alguns mortos revivem e alguns perdidos se acham. — Eu não entendo, mestre... Jesus o abraçou com afeto e o levou para uma clareira onde ficaram a sós. Feito isso, o rabi continuou com a prosa. — Sabe Pedro, eu me lembro que, certa feita, acompanhei meu pai até Gadara[102], a fim de prestar serviços na morada de um rico mercador. Ele tinha dois filhos, sendo que o mais novo insistia em ter o seu quinhão da herança adiantado. Convencido, o homem atendeu-lhe o pedido e entregou a parte que cabia ao moço, o qual, num país distante, dissipou toda a fortuna que lhe coube. Depois disso, a fome foi visitá-lo e, aqueles que se diziam seus amigos, na verdade, eram amigos apenas da sua ventura. Enfim, o pobre se pôs a guardar porcos e, acredite, passou a desejar as alfarrobas que eram dadas a eles, tamanha a miséria que lhe havia acometido. — Pedro permanecia atento ao que, do rabi, ouvia. — Pois, ele se lembrou de casa e do pai, e de como os empregados dele eram bem tratados. O rapaz não pensou duas vezes e voltou para o seu lar e, perante o genitor, assumiu os seus pecados e chegou até a dizer-se indigno de ser seu filho, contentando-se em ser apenas mais um servo. — E o que fez o pai dele? — perguntou o pescador curioso. — O velho, contrariando todas as expectativas possíveis, vestiu o rebento com a melhor roupa e mandou sacrificar o melhor novilho para festejar a volta do filho que, para todos, havia sido dado como morto. Pois o irmão mais velho do jovem, ao ver o que ocorria, mostrou o seu inconformismo ao pai, afinal ele continuava reto e temente aos princípios que lhe haviam sido ensinados e, nem por isso, o pai lhe festejava, já para um fornicador, um pecador como o caçula, foram dadas todas as pompas. — E não assistia razão ao irmão mais velho? — Esse é o foco da história. Pois o pai respondeu ao primogênito que este sempre esteve com ele, nos piores e nos melhores momentos da vida, mas presente, da forma que fosse. Já o menor estava morto e reviveu; estava perdido e se encontrou; estava pecando e se redimiu, daí o júbilo. — Pedro se emocionou. — Meu irmão, eu te contei essa parábola para que entendas que não existem faltas que não possam ser perdoadas, afinal, não se alcança a perfeição do espírito sem o arrependimento dos erros e sem o reconhecimento de que ainda podemos recomeçar. Portanto, independentemente do que as três fizeram, nesta ou em outras vidas, nós devemos sempre estarprontos a perdoar, pois só assim faremos com que elas se reconciliem com Deus. — Eu é que agora peço perdão, mestre — lamentou o pescador. — E se não fosse pelas tuas mãos e pelos teus ensinamentos, eu certamente continuaria a ser o bronco que sempre fui. — Aprende a perdoar, Pedro. Pois as culpas que foram arraigadas a Magdalena, a Joana e a Susana também são nossas, afinal, diante de Deus, somos todos iguais. O pescador de Cafarnaum aparentou absorver aquela lição, mas, no fundo, não o fez. Em suas parábolas, Jesus tentava mostrar que o preconceito e o julgamento eram como espelhos, pois eles refletiam as falhas que, vez ou outra, as pessoas viam apenas no próximo, mas nunca em si mesmas. Capítulo 8 A Grota dos Leprosos JUDAS ISCARIOTE CONTINUAVA A SUA PEREGRINAÇÃO e, de plaga em plaga, encontrava tão somente revolta. O povo judeu, exausto do cativeiro, tolerava os desmandos dos seus conquistadores na esperança de que o salvador não tardasse a vir. Ele atravessou a Samaria[103], galgou o Tabor[104] e enfim chegou a Tiberíades, sendo que, em todos os lugares em que havia passado, tinha ouvido falar da inusitada figura de um artesão de Nazaré que estava fazendo milagres e curando as pessoas. E mais, que ele estava arregimentando multidões, tendo até quem o estivesse chamado de Messias. Curioso com a notícia, Judas partiu para a Galileia a fim de tentar encontrar aquele sobre o qual o povo tanto falava; ele precisava ver por si só se o tal Jesus era ou não o homem por quem tanto procurava. Àquela altura, a fama do rabi havia atingido todo o norte da Judeia e, estando ele diante de uma multidão em Cafarnaum, foi necessário que subisse na proa de um barco para poder ser visto por todos. Percebendo uma excessiva movimentação a beira-mar, Judas se pôs entre os presentes e passou a ouvir as curiosas lições do nazareno, o qual, em suas palavras, falava basicamente de paz e de amor. Incomodado, ele ficou tentado a intervir, entretanto, achou por bem esperar a palestra terminar, a fim de, quem sabe, conversar com aquele homem que difundia ideias distantes das suas. Pois um sicário astuto como Judas não teve dificuldade em descobrir onde o rabino estava hospedado e, já na casa de Pedro, tentou ter com ele. No momento Jesus e os seus ceavam e, ao ser informado de que um sujeito deveras mal-encarado desejava vê-lo, o mestre não se fez de rogado e, sem demonstrar qualquer incômodo, mandou que o fizessem entrar. Tão logo os presentes visualizaram Judas, ficaram incomodados com a aparência agressiva dele, afinal, o zelote ostentava uma severa cicatriz que ia dos lábios à altura da sua orelha esquerda e, na cintura, percebia-se que ele trazia uma adaga embainhada. Pedro se levantou, arisco, ao passo que o próprio forasteiro, antecipando-se a um mal-entendido, tratou de serenar os ânimos. — Nada temais, meus irmãos. Eu também sou judeu como vós, apenas mais um descontente em busca de respostas — disse, retirando o punhal da cinta e entregando-o voluntariamente à cautela do pescador. Percebendo que as intenções dele aparentavam ser sinceras, Pedro guardou a arma e o deixou se achegar. Jesus aparentava estar avesso ao que acontecia, mas tomando um pequeno pedaço de pão e molhando-o num copo de vinho, estendeu-o na direção de Judas como se o chamasse para se sentar com eles. Ele não se fez de rogado e assentiu, afinal, os rigores da sua jornada talvez fossem minimizados com uma boa refeição e um teto firme. Após o jantar, onde foram apenas enfrentados temas recreativos, Jesus sentiu que era chegado o momento de conversar com Judas a sós, afinal, havia sido para isso que o forasteiro tinha ido vê-lo. — Eu percebo que vieste até aqui para parlamentar comigo. Pois cá estou, pronto para ouvir-te — ofertou-lhe, durante uma caminhada. — Senhor, eu venho de Jerusalém, uma terra um tanto agitada nos dias atuais. E nessas minhas caminhadas, ouvi muita coisa sobre ti e, curioso, decidi procurar-te. Entretanto, creio que talvez eu tenha perdido o meu tempo. — O tempo não se perde amigo; ele apenas se esvai — ponderou de forma espirituosa. Judas achou graça naquela observação cantada, o que lhe era raro. E ele então continuou. — Eu ouvi o teu discurso com atenção, falaste, basicamente, em paz. Mas acreditas que paz é o que teremos daqui por diante? — Vê-se que apenas ouviu as minhas palavras. Mas não as escutou. — Perdão? — Tu não te prendeste ao tema central, pois, se o tivesses feito, saberia que eu não vim apenas trazer a paz, mas sim a espada. Quando ouviu a expressão “espada”, Judas mudou a fisionomia. — Disseste “espada”? — Sim. — assentiu. — Não penses que as minhas palavras serão estabelecidas de forma pacífica. — Então falas em revolução? — interessou-se. — De certa forma, sim. Haverá lutas longas e sangrentas e, infelizmente, muitos haverão de morrer em razão do nome de Deus. Pois aquelas palavras capturaram Judas. Espada; lutas; morte. Seria, Jesus, o aguardado Messias da Guerra? Embriagado pela sonoridade daquelas expressões, o zelote se decidiu naquele mesmo momento. — Rabi! Desculpa a minha anterior falta de visão. E ao ensejo, tu permites que eu te siga? — Se é o que o teu coração deseja, fica conosco — assentiu o mestre tomando-lhe pelas mãos. Pois impressionado com aquela assertiva, Judas talvez tivesse encontrado quem tanto procurava. Entretanto, assim como o próprio Jesus o havia alertado, ele apenas ouviu as palavras dele, e não as escutou. Embora a paz estivesse ao alcance de qualquer um, não eram todos que a acolhiam de pronto e, em razão da doutrina de fé pregada por Jesus, a cólera entre os irmãos, ou seja, entre as nações, logo iria emergir, afinal, quantas guerras tidas como santas ainda estariam por vir a pretexto do nome dele? Pois, na verdade, a espada era a divisão entre os homens de bem e os rebeldes a Deus, que se levantariam para tentar derrubar a crença no verdadeiro amor, e para estes, não haveria paz sem guerra e, embora Jesus fosse o pacificador, as palavras dele, de certa forma, iriam gerar ebulição entre as pátrias religiosas. Assim, Jesus não seria propriamente o portador dessa espada, mas sim, o motivo pelo qual muitos ainda a haveriam de levantá-la. E se Judas talvez tivesse entendido isso desde o início, o cruel destino dele certamente haveria de ser outro. * * * Embora um tanto receoso no começo, o bravio zelote passou a acompanhar a caravana de peregrinos e, a princípio, satisfez-se, pois todos ali eram dados às coisas de Deus, assim como ele também acreditava ser. Judas achava divertido ver Jesus brincar com as crianças do grupo, as quais, não raro, faziam uso de arremedos de impulsores para tentar derrubar as frutas das árvores, assim como o mestre, enquanto menino, também fazia no Egito. Uma das jovens do ajuntamento, o querubim Beelzebu disfarçado, era o maior arqueiro do Céu e, nessa qualidade, tentava pacientemente instruir os pequenos para de que eles não se ferissem com aqueles instrumentos rústicos, cuja ponta das flechas era cega e servia apenas para entretê-los. Embora experto na mesma arma, o igualmente mascarado Caliel preferiu sonegar os seus dotes aos demais, pois se os demonstrasse, fatalmente seria descoberto, afinal, como seria possível a uma pequena criança, que sequer andar direito sabia, ser tão hábil com o arco e a flecha? Na mesma toada, Pedro ainda mantinha certo receio com relação a Caliel, o qual logo evoluiu para um arremedo de respeito, principalmente após ter visto de relance o fragmento do punhal de ouro que a pequenina trazia escondido sobre a bata surrada que vestia. Para o pescador, aquela “menina” talvez fosse um anjo guardião,pois demonstrava ser diferente das demais crianças, estando coincidentemente por perto sempre que alguém parecia correr perigo. Pois dias antes, Pedro estava para vestir suas sandálias pela manhã e, sem perceber, Caliel, ali chamada de Chaya, surgiu e as arrancou rapidamente das suas mãos. Inicialmente irritado, ele fez menção de repreendê-la, mas ao ver que a pequena as balançou entre as mãos e afugentou um escorpião que nela estava escondido, ele quedou-se silente e, assustado, a agradeceu com a cabeça. Definitivamente aquela “criança”, sempre sisuda com ele, não era daquele mundo, não aquele que Pedro conhecia. Em razão disso, ele achou por bem ir ter com Jesus, o qual, ao ouvir dele sobre as peripécias da jovenzinha, assim respondeu. — E por qual motivo um filho do homem deve temer um filho de Deus? Pedro não era letrado como Magdalena, mas também não era tolo. Ao ouvir aquela observação não mais questionou o rabi, afinal, ele foi indiretamente instado a aceitar sumariamente a presença daqueles três estranhos no grupo, e sem fazer maiores perguntas. Depois de alguns meses, até Judas efetivamente amoleceu o seu coração após presenciar um fato que ocorreu nos campos próximos ao monte Tabor. Acampada havia mais de três dias para ouvir as pregações de Jesus, uma multidão que ultrapassava a casa de cinco mil pessoas foi alimentada graças a dois cestos que continham poucos pães e tilápias. Ao pôr as mãos sobre eles, Jesus deu graças ao Pai e fez com que se multiplicassem de modo a alimentar todos os que lá estavam. Um milagre, o primeiro que ele via com os próprios olhos. Ainda que fosse inclinado à guerra, Judas começou a perceber a vida sob outro ponto de vista e, na devoção pela caridade, mote maior de Jesus, encontrou um contrapeso para a sua sanha de justiça pelo sangue. Mas, no fundo, ele ainda era um homem de armas, e crendo piamente naquele “Messias da Espada”, passou a ponderar que a benevolência também pudesse ser uma das características do rabi, o qual haveria de ser um rei como nenhum outro além de Davi. Foi pensando nisso que Judas começou a assediar o seu mestre para irem a Jerusalém, onde a grata parte dos insatisfeitos estava. Jesus ponderou que o tempo da referida cidade estava próximo e que em breve eles haveriam de rumar para aquelas bandas, desta feita, o ungido também tencionava visitar Lázaro[105], seu amigo de muito tempo. Ouvindo isso, o sicário sentiu-se ainda mais estimulado para segui-lo, afinal ele havia previsto a queda de Roma e da fortaleza Antônia, pois a força do rabi parecia ser absoluta e livre de qualquer outro poderio posto sobre a Terra. Mas o trabalho de Jesus urgia, os dias lhe eram contados, e, para que os seus dogmas fossem levados adiante, ele passou meses direcionando os seus ensinamentos a alguns dos seguidores mais próximos com a finalidade de prepará-los para, em nome dele, levar a palavra de Deus para quem a precisasse ouvir. Num dia especial, à beira do mar dourado da Galileia, ele convocou quatorze dos seus discípulos a fim de dar-lhes autoridade para, com a prudência das serpentes e a simplicidade dos pombos, pregar e curar os aflitos: “Que a paz esteja convosco!”, anunciou. “Divulgai, em meu nome, a chegada do reino de Deus”. Em seguida, o mestre os chamou um a um e, ao final, notou que os dois últimos nomes causaram surpresa entre os primeiros. E foi então que, Simão, chamado Pedro; André; João; Tiago, primo de Jesus; Levi, chamado Mateus; Tiago, filho de Alfeu; Filipe de Betsaida; Tomé; Natanael, chamado Bartolomeu; Tadeu; Simão[106]; Judas Iscariote; Mirian Magdalena; e Joana, a de Cusa; de discípulos, passaram a ser chamados de apóstolos. Quando o mestre lhes disse “Ide e dizei que o reino de Deus está próximo”, Judas pensou que Jesus estaria prestes a se levantar contra os romanos e acabar com a escravidão na Judeia. Mas o tempo, agora contado, haveria de mostrar que ele estava errado, muito errado. * * * Vagando sem rumo pelas vias de Jerusalém, um meio-anjo tentava reencontrar a mulher que ele havia ido buscar na Terra. Comunicativo e deveras desprendido, Azeyzel imiscuiu-se entre o povo e não tardou a auferir informações sobre como a Princesa Salomé havia desaparecido nos braços de um homem um tanto abrutalhado, em verdade, o Arcanjo Metatron. E mais, soube também que um exímio orador havia vertido a multidão ávida por justiçá- la. Uns disseram que ele era um mágico; já outros, um profeta. Pois entre uma andança e outra, ele se deparou com um ambiente que lhe soava familiar, um lugar que, em Nod, ele frequentava com deleite: uma taberna. Pois ao nela entrar e bebericar um copo de vinho barato, coisa que não fazia havia séculos, ele rememorou o seu passado e como ele próprio havia ensinado os homens a fermentar as uvas e auferir aquele néctar que se disseminou no mundo. Lembrou-se também do seu gêmeo Semyaza, que com ele veio do Céu para conhecer as formosas mulheres da linhagem de Caim e por elas igualmente caíram. E entre um gole e outro daquela bebida, eis que diante dele surgiram dois velhos conhecidos, os quais, também em busca de respostas, não se fizeram de rogados ao reencontrar o irmão que havia muito não viam. — Se eu bem me lembro, a última vez que nós estivemos juntos foi num lugar muito parecido com este — disse Baalberith a Azeyzel. Pasmo ao ver, diante de si, o ex-procurador e o caído príncipe dos serafins, ele os encarou assustado. — Nada tema, cara Potência — disse Lúcifer ao tentar tranquilizá-lo. — Só não diga que estás aqui desde o dilúvio que devastou a Terra. Azeyzel então desarmou o medo, sorriu sem muita pompa, degustou mais um gole daquele vinho e, na sequência, respondeu: — Não, muita coisa aconteceu depois disso. Mas, para resumir, posso antecipar-vos que, no momento, eu não preciso mais mimetizar as minhas asas. Cientes de que o corte de asas era uma pena grave prevista no Código Criminal Celeste, ambos se sentaram e mostraram interesse pelos detalhes daquela revelação. — Baalberith deve lembrar bem, inclusive da mulher que eu cheguei a desposar aqui antes da tormenta universal. Entretanto, logo depois, os arcanjos vieram no meu encalço e dos demais vigilantes e, além das asas, eu e os demais perdemos a liberdade e também as genitálias. — Perdeste a liberdade? — estranhou Lúcifer. — Mas não estás livre? — Livre? — retrucou em voz baixa. — Irmãos, eu sou um fugitivo; consegui escapar das masmorras celestes. — Como? É impossível escapar das masmorras de Vigilum, Azeyzel — retrucou Lúcifer rindo alto. — Não para um mago — esclareceu vertendo mais um gole. Ao ouvir aquela expressão — um mago! — o monarca infernal mudou a feição e fitou seriamente a Potência, afinal, a magia havia morrido com a ordem das Presenças, a quem os três, na primeira grande guerra angélica, tinham ajudado a eliminar. — O que disseste? — inquiriu o caído, aparentemente incrédulo. — Isso mesmo que ouviste. Quando eu perdi as asas, também me arrancaram as partes, afinal, como sabem, fui um anjo “fornicador”. Mas mesmo estando preso, engendrei um plano e consegui ter acesso às fórmulas de Pyriel, que havia muito estavam escondidas na biblioteca de Vigilum e daí, para uma fuga, e cá estou eu agora, diante de vós. — Um mago... — repetiu Lúcifer, escorando-se no assento da cadeira. — Mas me diz, o que precisamente vieste fazer aqui? — Baalberith deve saber o motivo — afirmou Azeyzel. — Hum... — suspirou com malícia. — Por acaso não seria aquela tua bela e provocante amiga? — completou o marechal do Inferno, ao se lembrar que, milênios antes, ele e Lucífago Rofocale[107] haviamencontrado Azeyzel na companhia de Layla-Li na velha taberna de Metusiu[108], estendida na hoje destruída cidade de Nod. — A própria — concordou satisfeito. — Irmão, ao que me consta, um ser humano não tem a longevidade tão grande como a nossa. E diante disso, não existe a possibilidade de ela ter sobrevivido por tanto tempo. — É aí que te enganas. Eles é que têm a vida eterna, e não nós — ponderou com razão. — E a chave disso é a tal “alma” — completou Lúcifer, que milênios antes, havia assistido a criação do primeiro homem. — Sim, pois eles morrem e renascem, mas em corpos diferentes. E ao contrário do que sentem, eu me afeiçoei deles; delas, melhor dizendo. — E por acaso tens pistas da tal moça? — insistiu Baalberith. Azeyzel esboçou uma feição astuta e respondeu. — Digamos que sim. Mas em razão de um pequeno percalço involuntário, eu a perdi temporariamente. — Lúcifer riu alto novamente e chamou a atenção de alguns que lá estavam. Mas ao perceberem que o decaído os fulminava com o olhar agressivo por entre o capuz que vestia, eles logo se retraíram com medo. — Nós dois tivemos um reencontro turbulento há pouco, e ela escapou de mim. E um homem, bem grande pelo que eu soube, a levou. E tal só foi possível, graças à intervenção de um outro, o qual alguns chamaram, dentre outras coisas, de “filho de Deus”. — Lúcifer e Baalberith se entreolharam. — E o que soou mais estranho, é que as pessoas com quem falei me esclareceram que o grandalhão tinha o cabelo de um dos lados da cabeça raspado... — asseverou, aludindo ao penteado padrão dos arcanjos abaixo da patente de marechal. — Um corte militar... — concluiu Lúcifer pensativo. — Mas nos conte mais, e sem pressa — solicitou, gentilmente, o líder das terras más. Azeyzel detalhou como havia sido o seu reencontro com o avatar de Layla-Li, agora ocupando o corpo de Salomé, e de como ela lhe havia escapulido pelos dedos. Pela descrição dos partícipes, os dois egressos do Inferno logo concluíram que o tal orador só poderia ser Jesus e, se não lhes traía a astúcia, o encorpado haveria de ser um arcanjo disfarçado, reforçando a tese sobre a real identidade do Messias. A Potência também foi inclinada a chegar no mesmo resultado, afinal, o acompanhante dele poderia ser Metatron, o qual teria descido à Terra no encalço dele. — Isso é coerente, Azeyzel, afinal, Metatron talvez tenha se sentido responsável pela tua fuga, pois, segundo nos disseste, foi ele que peticionou aos arcontes pedindo a tua progressão. E além do mais, parece que aqui temos um arcanjo ajudando o outro. — O que estás a dizer? — Que esse tal Jesus, na verdade, só pode ser Miguel. — Miguel? — insurgiu-se o antigo armeiro celeste. — Sim, meu emasculado amigo. O nosso antigo marechal celeste, aqui em sigilosa missão no corpo de um homem qualquer. — De fato, quando eu progredi, fui informado de que ele não estava no Céu, pois havia saído em encargo. Isso faz sentido. — Bem, então sugiro que se irmane a nós nessa empreitada. Eu e Baalberith te ajudaremos a encontrar a tal mulher, e tu nos auxiliará a refrear os planos de Miguel. — Mas como haveremos de agir? — Uma coisa de cada vez, Azeyzel. Uma coisa de cada vez — reforçou Lúcifer, ao remexer sobre a cabeça aquele imundo e aterrador capuz negro que o cobria. * * * No pátio da austera fortaleza Antônia, as guarnições estavam enfileiradas, afinal, a chefia de fração da coorte responsável pela guarda de Pilatos e pelos esquadrões de crucificação[109] de Jerusalém estava prestes a ser alterada. Deixando o seu posto de muito tempo, o velho centurião-chefe Lucius Pullo estava deveras satisfeito com o ano de soldo extra que havia recebido e, com ele, pretendia adquirir uma pequena fazenda nas imediações e dedicar-se à agricultura. Em seu lugar, assumia um oficial romano de quarenta e três anos de idade, já experiente em confrontos e batalhas mas que buscava se aproximar do que havia restado de sua família em Jerusalém e encontrar um pouco menos de agitação. Diante da tropa, ele se apresentou formalmente ao prefeito romano. — Centurião-chefe Quiricus Longinus, último posto na Terceira Legião Gálica, apresentando-se ao comando de Vossa Excelência! — asseverou firmemente, ao cruzar o braço direito e bater o punho contra a própria armadura. — Foste muito bem recomendado, oficial — respondeu Pilatos, em razão da fama heroica dele. — Pois a ti agora confio a guarda das nossas casas de gestão e, enquanto eu estiver aqui, da minha própria família — finalizou. Acatando formalmente o encargo, Longinus passou a tropa em revista e, do alto do seu cavalo branco, fitou um dos homens que, mesmo um tanto pequeno, parecia se sobressair entre os demais. Encurvado pela idade — os cinquenta anos lhe pesavam — e ainda assim um simples immune[110], Servius Cartaphilus era o responsável por uma das unidades de crucificação de Jerusalém, a Décima Terceira, e, mesmo sabedor da prevenção que o seu agora comandante tinha para consigo desde os tempos do Egito, onde serviram juntos, nem assim ele se fez de rogado. Aliás, a função de executor lhe caía com perfeição, pois, embora inicialmente escalado para ser um dos porteiros de Pilatos, ele, sem demora, tratou de conseguir transferência para um serviço menos nobre, afinal, lhe apetecia torturar os condenados. Longinus premiu o seu olho bom — ele já estava cego do esquerdo — e continuou com a marcha. Entretanto reencontrar o antigo e cruel companheiro de Legião não lhe agradou nem um pouco. Em seguida ele foi vez mais recebido pelo prefeito, que o havia convocado para que conhecesse aqueles a quem deveria proteger, Cláudia Prócula e Diocletianus, filho de ambos. Poucos sabiam, mas a vinda de Longinus tinha sido arranjada para, de certa forma, recompensar os valorosos bons anos de serviço que ele havia dedicado à coroa romana nas campanhas bélicas na Síria, onde, com muito esforço, galgou o posto que ocupava. E graças ao respeito que havia ganho, o agora centurião-chefe acreditava que teria um pouco de paz naquelas plagas, onde se estabeleceu numa casa em que viveria com a família da irmã mais velha e alguns empregados, dentre os quais, um jovem grego chamado Eliseu, mais um filho do que propriamente um servo. De acordo com as instruções de Pilatos, Longinus soube que Jerusalém estava mais amena, tanto é que o prefeito havia trocado a sua mansão na Cesareia Marítima pelo primor do palácio de Herodes I, onde a proximidade dos sacerdotes do Templo lhe facilitava a missão de vigiar as polpudas somas que lhe eram mensalmente repassadas como tributo pela permanência de Caifás como sacrificador-mor. Embora os ataques dos zelotes estivessem controlados, a vigília deveria ser mantida à risca, principalmente sobre a mítica figura do bandido Barrabás, ainda foragido. Fora isso, nada que não algumas ebulições aqui ou acolá, causadas pelos inúmeros profetas que pululavam naqueles dias e que eram reprimidas pela Polícia do Templo dos judeus. Embora a fama de Jesus ainda fosse tímida no coração da Judeia, afinal, ele só havia pregado por uma única vez nas imediações de Jerusalém no começo do seu ministério, os viajantes e mercadores falavam efusivamente sobre as realizações daquele carpinteiro e, mesmo no Sinédrio, ele já era objeto de debate entre alguns círculos, mormente depois que o Juiz Nicodemus passou a nutrir notório respeito para com ele. Pois enfim, depois de mais de vinte anos, aquele outrora jovem soldado romano e o travesso menino galileu que havia vivido no Egito, finalmente voltariam a se reencontrar. Mas em quais circunstâncias,isso era ainda um mistério. * * * Com o passar dos meses, Susana passou a interagir com as demais pessoas que seguiam Jesus e, sempre vigiada por Metatron, havia ocultado na memória a sua vida mundana como Salomé. Mas, sem perceber, ela, às vezes, via-se dançando timidamente com as crianças do grupo, cuja flauta doce daquele oculto arcanjo vez ou outra a embalava. De Tiberíades, Herodíade mandou emissários para todos os lugares da Judeia, mas, em vão, nada auferia sobre o paradeiro da filha, fato este que Herodes Antipas via de forma positiva, afinal, enquanto ela estivesse sumida o seu segredo libertino estaria oculto. Naqueles dias, alguns apóstolos haviam deixado o ajuntamento para ensinar a palavra de Deus nas cidades vizinhas, ao passo que, após algumas semanas, haveriam de se encontrar na encosta do Monte Tabor para seguirem viagem a Betânia e ao centro de Jerusalém, onde a doutrina de fé haveria de finalmente ser pregada com maior afinco. Sabedor que o seu destino jazia na última cidade, Jesus a evitou desde o início do seu ministério, as poucas pregações foram apenas nas suas redondezas, afinal, ele precisava preparar aqueles que, depois dele, seriam os portadores do Evangelho de Deus. Seriam dias difíceis para os apóstolos, eles estariam privados da efetiva presença do mestre, mas, por ele licenciados, não tardariam a encontrar aqueles a quem tanto buscavam e, nas vilas e aldeias, experimentariam aceitação e resistência, fé e desdém, acolhida e indiferença. No entanto, de forma geral, o trabalho para o qual haviam sido talhados haveria de ter o esperado êxito, pois ao começarem a curar os cegos e os doentes, a doutrina por eles professada passou a ser multiplicada conforme o plano inicial de Jesus. Mateus e Judas Iscariote seguiram para Giscala[111]. Pedro seguiu com João para o sul e, embora anteriormente admoestado por Jesus, ainda assim ficou incomodado com o fato de Magdalena e Joana não terem partido no mesmo tempo que os demais, afinal o mestre havia anunciado que tinha uma missão especial para elas. Não obstante fosse bom e reto, Pedro relutava em aceitar o fato de que ambas eram suas iguais, “apóstolas” conforme o rabi as chamava. João o advertiu sob o argumento de que se Jesus as fizera merecedoras do encargo não lhes seria lícito discutir os desígnios dele, uma vez que, perante Deus, todos eram iguais, fossem homens ou mulheres. Esse conflito de gêneros, embora aparentemente inofensivo, haveria de futuramente interferir nos destinos da igreja, já que, entre o grupo, Pedro tinha outros partidários da necessidade de proeminência masculina no processo de evangelização. Pois agora em Nazaré, Jesus, sua mãe e alguns discípulos lá ficariam até que chegasse o momento de, aos pés do Tabor, o grupo se reunir e seguir para Jerusalém, de acordo com o planejado. Magdalena e Joana haviam sido as únicas que ainda não haviam partido e, após auferirem do mestre o inusitado destino que haveriam de tomar, se puseram a arrematar algumas iguarias, como mudas de salsaparrilha e extratos de damasco, afinal, com parte dos haveres vindos dos pesqueiros de Magdala, Mirian havia tomado a frente das necessidades financeiras da ordem, cuja bolsa se prestava à conveniência dela — da igreja — e dos humildes. Some-se a isso que, para a missão, ela contratou a um bom peso, dois carregadores de Tiro[112] para transportarem uma carga que deveria ser vigiada nos arredores do lugar onde iriam, pois, de tempos em tempos, ela seria utilizada no trabalho que urgia. Susana, a essa altura já iniciada na evangelização, observava a tudo curiosa e, mesmo sem saber aonde as duas estavam indo, pediu para acompanhá- las. Jesus ficou satisfeito com os bons passos que ela estava dando e, ao assentir, fitou Metatron e o licenciou para seguir com as três. — Sinto que a nossa parceria está prestes a terminar, irmão... — disse Beelzebu para o arcanjo ao vê-lo arrumar a sua bolsa para escoltá-las. — E por que dizes isso? — Intuição... — retrucou. — E mesmo que estejas armado, eu temo pela tua sorte sem Caliel por perto — ponderou, enaltecendo as virtudes bélicas do camareiro de Deus. — Caliel é quem deveria ter nascido um arcanjo; e eu um querubim — riu timidamente ao admitir a sua repulsa pelas armas. — Mas eu fiz uma promessa a Deus e tenho que cumpri-la. E só voltarei ao Céu com Azeyzel sob ferros. — Mas e os teus livros? — A história dos homens está sendo escrita por si só. E seja qual for o meu destino, as minhas anotações estarão preservadas, da forma que for. — Bem, desejo sorte na tua missão. — E eu na tua — finalizou, ao se despedir sem pompas. Pois lá se foram os quatro — Magdalena, Joana, Susana e Metatron — rumo a um vale sombrio e esquecido que ficava nos limites de Jerusalém. Era nele que habitavam os considerados impuros, os quais eram proibidos de frequentar as cidades abertas sob pena de sumaria execução[113]. A várzea dos proscritos, também conhecida por Grota dos Leprosos, ficava numa depressão onde apenas poucos estrangeiros iam ter. Assim, salvo um ou outro altruísta que para lá levava alguns restos de comida, ninguém tinha coragem de ali entrar, haja vista a temida possibilidade de contágio, deformidade e morte. A vida dos leprosos era extremamente difícil[114] e, fora o medo pela doença, o mau cheiro que advinha da maioria deles mantinha os curiosos longe dali. Eles tinham os corpos, as mentes e os espíritos definhados, daí a dificuldade de aproximação, sendo que os poucos que se arriscavam a esmolar nas cidadelas eram repelidos com punhados de terra que lhes eram brutalmente arremessados, afinal, segundo o povo, eles já estariam mortos e, como mortos, deveriam voltar à poeira de onde vieram. Após alguns dias de exaustiva viagem, os peregrinos aportaram nos limites do vale e, embora advertidos para dele se afastar, nada os obstou a seguir adiante. Susana e Metatron foram instados a ir até as proximidades de Betânia a fim de aguardar a comitiva de Jesus, que passaria pela grota a fim de buscar Magdalena e Joana, mas, em contrapartida, a jovem fez questão de descer a colina e acompanhá-las, no que se fez seguir pelo arcanjo que a guardava. Para acessar o vale, fazia-se necessário transpor uma pequena estrada de pedras afiadas e, ao perceberem a aproximação daqueles estranhos, os primeiros doentes se puseram temerosos e ariscos. Eram homens, mulheres e crianças sem qualquer amparo social ou médico, os quais, acostumados apenas com a repulsa e a rejeição, custaram a acreditar nas boas intenções dos forasteiros. Magdalena insistiu e se colocou num ponto visível, anunciando que eles haviam vindo em nome do filho do Deus único de Israel, a fim de trazer caridade e cura para aqueles que tivessem fé. Diante disso, um daqueles doentes, exausto e desesperado com a abertura das suas feridas, aproximou-se e deixou com que ela viesse até ele. O homem estava visivelmente deformado e o seu rosto envergava crostas que pareciam lhe tirar a própria condição humana. Pois Mirian então, num gesto de bondade e entrega, abriu os braços e abraçou aquele pobre, causando comoção nos que lá estavam e, com certa dificuldade, ele disse a ela: — – Eu sei que não sou digno, mas se foi Deus que vos mandou, eu aceito o que viestes nos trazer. Joana, Susana e Metatron desceram um pouco mais e foram de encontro a Mirian e ao velho, cujo odor do corpo se assemelhava ao da podridão. Após tocar-lhe o rosto coberto por trapos imundos, Magdalena o levou com cuidado para o braço de um pequeno riacho que cortava o vale e, com recato, ela e Joana retiraram vagarosamente as vestes fétidas que o cobriam.Feito isso passaram a banhá-lo com água misturada a salsaparrilha, tida como ideal para as moléstias da pele, e após o untaram com óleo de damasco, indicado para hidratação. Percebendo o alívio visitar aquele homem cujas lágrimas de gratidão lhe brotavam nos olhos, os demais então começaram a se achegar aos poucos, a fim de aceitar a filantropia daquelas duas mulheres. Fazia muito calor naqueles dias e, ao ver o estado deplorável dos arremedos de roupa que os doentes usavam, Susana se adiantou por si só e, desprovida de qualquer temor, as pegou uma a uma e as imergiu na água, a fim de tentar deixá-las mais dignas de serem vestidas por um ser humano. Sabedora do que lá iam encontrar, Joana havia levado consigo uma mistura de óleo de oliva com barrela[115] e, tencionando usá-la como sabão, entregou um fragmento do composto a Susana, que, sem demora, encarregou-se de ajudá-las. Se voltássemos alguns meses no tempo, jamais imaginaríamos que uma mulher pervertida como Salomé pudesse sequer sonhar em estar num lugar terrível como aquele. Mas agora, mostrando que estava espiritualmente disposta a se aproximar de Deus, ela amarrou as mangas da sua veste simplória e, a exemplo de Magdalena e Joana, passou a fazer o mesmo com os demais doentes, os quais, deixando o medo de lado, começaram a enfileirar-se para auferir aqueles preciosos cuidados. Pois ao mandar as três para a Grota dos Leprosos, Jesus sabia que aquela missão só poderia ser executada por pessoas cuja essência fosse naturalmente sensível, como o eram — e são — as mulheres. A rudeza típica dos homens talvez fosse uma barreira para aqueles doentes, os quais, na figura feminina e na aparente fragilidade das recém-chegadas, talvez não vissem perigo contra si e, assim, deporiam os seus temores. E nesse particular, não faltava razão ao mestre Jesus, pois as mulheres, no mundo, só não haveriam de conquistar aquilo que verdadeiramente não quisessem. E ocorreu que uma das leprosas que lá estava, aparentando por baixo das suas severas feridas estar na casa dos quarenta anos de idade, impressionada com a beleza física de Susana — e a qual, no passado, também havia tido —, fez uma indagação com a voz ainda rouca pela pouca prática da fala. — És tão linda, menina. Por acaso não temes ficar assim como eu? — perguntou ao aludir às escaras que lhe destroçavam o corpo. — Não — respondeu ela sorrindo. — Já faz algum tempo que eu não sei o que é ter medo, pois aquele que tem Deus ao teu lado não conhece o medo. — Belas palavras. — Sim, elas me foram ditas por alguém especial — respondeu ainda limpando aquela mulher. — Alguém que me ensinou a amar por amar. — De onde tu vens? — interessou-se a leprosa, a quem parecia não conversar com alguém há anos. — Eu não sei de onde venho, mas hoje certamente sei para onde vou — concluiu sempre simpática e sem perder a mão ao besuntá-la com o óleo de damasco. Bastou uma semana ali para que a vida de parte dos habitantes do vale mudasse drasticamente. É claro que nem todos as aceitaram e, ainda escondidos em seus espaços, sequer foram recepcioná-las. Entretanto, nem isso as impediu de agir, pois percorrendo aquelas grutas escuras, elas iam de doente a doente com o objetivo de levar uma palavra de esperança até mesmo para os que se recusavam a ouvi-las. Não foi nada fácil, mas, de um modo geral, elas atingiram o objetivo inicial, que era o de evangelizar o maior número de enfermos possível. Os dias foram passando e, profetizando apenas o amor, elas conseguiram mudar o modo de vida daquelas pessoas, outrora atingidas pela falta de fé e pela individualidade. O nome de Jesus passou a ser corrente e, sabendo que alguém se importava com eles, a luta pela vida voltou a fazer sentido. A partir de então, aqueles doentes passaram a acreditar que a verdadeira existência estava bem longe dali, num plano cósmico onde o sofrimento não existia, e, para chegar lá, bastava-lhes a verdadeira crença no filho de Deus, que lá estava representado pelas ações e palavras daquelas mulheres. Aliás, por abdicarem da vida mundana e se casarem com a doutrina de Jesus, poder-se-ia dizer, feitas as devidas ressalvas de tempo e espaço que, Magdalena, Joana e a jovem Susana foram as primeiras freiras da história cristã, cujo trinômio “doação, entrega e caridade”, ali as coroou como tais. * * * Três semanas após terem partido, a grata parte dos apóstolos, seguidos por centenas de fiéis, começou a regressar ao Tabor a fim de reencontrar o mestre e seguir viagem. Efusivos, eles haviam tido êxito na missão que lhes havia sido dada, afinal, nos lugares em que estiveram, a palavra de Deus foi divulgada e potencializada. O rabi os recebeu com o costumeiro carinho e, satisfeito com o proceder dos emissários, sentiu que as pedras da sua igreja estavam sendo sedimentadas. — Mestre, a empreitada foi positiva — disse Pedro, entusiasmado. — Conquanto alguns incrédulos de costume, a maioria nos ouviu e ofertou apreço pela palavra. — Sim! — completou Judas Iscariote com um humor que não lhe era típico. — Houve até quem me chamasse de rabi. Mas verificando a ausência de Magdalena e Joana — “afinal, para onde as duas haviam ido?” —, o pescador assuntou sem omitir a curiosidade. — E as nossas irmãs, senhor? Onde estão? — Nós iremos encontrá-las em breve, pois elas estão a meio caminho do nosso primeiro destino. Pedro anuiu curioso, visto que, embora com a mesma missão, a de evangelizar, Magdalena e Joana foram as únicas que partiram para um destino ainda desconhecido dos demais. Todos então se uniram e tomaram a estrada para o sul, a fim de reencontrá-las e rumarem para Betânia e Jerusalém. No caminho, Jesus percebeu que Beelzebu, a quem os peregrinos chamavam de Betseba, havia se afeiçoado de Yigal, o filho curado de Joana. Caliel — conforme já visto, lá conhecido por Chaya, nome hebraico feminino em razão da aparência feminizada dele — seguia no colo da virgem Maria e, encantado com a figura maternal dela, fazia birra quando alguém fazia menção de pegá-lo. A imaculada cresceu entre crianças, cuidando dos primos e primas, e por elas tinha um afeto ímpar. Pois observando Beelzebu caminhar de mãos dadas com o agora purificado menino, Jesus se achegou. — E então, Betseba, conta-me: como tem sido caminhar conosco? — indagou dando mostras de que no fundo sabia quem era ele. O querubim o fitou desconfiado e, rendendo-se ao avatar de Miguel, acabou se entregando. — Eu me pareço tão óbvio assim, rabi? Jesus achou graça na réplica e continuou: — Eu sei que estão aqui para me ajudar. Tu, a pequenina e aquele que se disse chamar Matatias. — Nome pelo qual o Arcanjo Metatron havia se apresentado ao grupo. Beelzebu, ou melhor, Betseba, abaixou a cabeça e sorriu, arrematando logo na sequência. — Eu acho que agora estou mais à vontade para responder à tua pergunta. Pois saibas que eu já caminhei por lugares inimagináveis — pontuou, referindo- se ao seu degredo no Inferno. — E após muito viver, hoje entendo por que Deus te mandou para cá. — Então crês que eu sou da parte de Deus? — Tu és, bem sei, um dos filhos Dele. E no final, nós somos todos irmãos; eu, tu, Chaya e Matatias. — Eu compreendo o teu ponto de vista. Mas pareces ter gostado muito do menino, pois não? — perguntou o rabi, referindo-se a Yigal. — Foi-me dito que ele sofreu demais. E vê-lo agora redimido me fez lembrar de mim mesmo, ou melhor, de mim “mesma”... — corrigiu-se, em razão do sexo que personificava. — E nisso, incluo até a pequena Chaya, que encontrou em tua mãe uma figura que ela até então desconhecia. — Mas estou bem certo que “ela” teve um Pai que lhe