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Evangelho Perdido_ A historia o - Marcelo de Lima Lessa

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Prévia do material em texto

Marcelo	de	Lima	Lessa
Autor	de	“Gênesis	Proibido	–	A	Tragédia	de	Adão	e	Lilith”
	
	
EVANGELHO
PERDIDO
A	HISTÓRIA	OCULTA	DE	JESUS
	
	
Renascimento,	espiritualidade	e	conspiração:
a	emocionante	trajetória	do	filho	de	Deus	sob	uma
perspectiva	nunca	antes	vista.
EVANGELHO	PERDIDO:	A	HISTÓRIA	OCULTA	DE	JESUS
©2016	Marcelo	de	Lima	Lessa
Todos	os	direitos	reservados
	
	
Supervisão	geral:	Betti	Pellizzer
Diagramação	e	capa:	Equipe	Editora	Raredes
Imagem	da	capa:	Gene	D.	Austin	–	Crown	of	Thorns	and	nails
Vetores	internos:	Freepik	–	br.freepik.com
Revisão	de	Texto:	Luciana	Papale	/	Anna	Torres	/	Victor	Anziani
Editor	Responsável:	Anna	Torres
	
L638e
	
Lessa,	Marcelo	de	Lima
Evangelho	Perdido:	A	história	oculta	de	Jesus/Marcelo	de	Lima	Lessa	–	2ª	edição	–	Rio	do	Sul:	Raredes,
2019.
	
Livro	eletrônico.
	
1.	Ficção	brasileira	2.	Literatura	brasileira	3.	Misticismo	4.	Angelologia	I.	Autor.	II.	Título.
	
CDD	869.93
Todos	os	direitos	reservados,	proibida	a	reprodução	total	ou	parcial	desta	obra,	sem	a	expressa	autorização
por	 escrito	 da	 editora	 ou	 do	 autor,	 sejam	 quais	 forem	 os	 meios	 empregados,	 com	 exceção	 de	 resenhas
literárias,	 que	 podem	 reproduzir	 algumas	 partes	 do	 livro,	 desde	 que	 citada	 a	 fonte.	 Os	 infratores	 serão
punidos	na	forma	da	lei.
	
Esta	é	uma	obra	de	ficção.
	
Direitos	desta	edição	reservados	à:
Editora	Raredes
Rua	Pedro	Frankenberger,	281	–	Bela	Aliança
Rio	do	Sul	–	SC
CEP	89.161-313
www.raredes.com.br
editora.raredes@gmail.com
http://www.raredes.com.br
mailto:editora.raredes@gmail.com
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
Agradeço	 a	 todos	 que	 tornaram	 este	 projeto	 possível,	 dentre	 eles,	 meus
amigos	 e	 leitores,	 sem	 os	 quais	 eu	 não	 teria	 motivação	 para	 continuar	 a
escrever.
À	 bailarina	 Íhsis	 Nur,	 pela	 graciosa	 assessoria	 nas	 linhas	 dedicadas	 à
dança	do	ventre	engendrada	pela	inebriante	personagem	Salomé.
E	aos	abnegados	e	inquebrantáveis	espíritos	obreiros	que	servem	na	ação
pastoral	da	Câmara	de	Guf,	a	“Tesouraria	das	Almas”,	aos	quais	este	 livro	é
dedicado.
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
“Seres	luminosos	nós	somos,	não	essa	matéria	rude...”
“The	Empire	Strikes	Back”	(trecho	do	filme	homônimo)
	
“Se	as	pessoas	que	amamos	são	tiradas	de	nós,	o	jeito	de	mantê-las	vivas	é
continuar	amando-as;	os	prédios	queimam,	as	pessoas	morrem,	mas	o	amor
verdadeiro	é	para	sempre”
“The	Crow”	(trecho	do	filme	homônimo)
Sumário
Sumário
Vez	mais;	réu	confesso
Prelúdio
A	Conceição	Virginal
Um	guerreiro	sem	armas
A	queda	das	Presenças
Uma	voz	no	deserto
Pedras	em	peixes
Mirian	Magdalena
A		adúltera	de	Edom
A	Grota	dos	Leprosos
A	caminho	de	Jerusalém
Sejam	diferentes
Conspiração	no	Sinédrio
Jardim	de	Getsêmani
Condenado	Sem	Culpa
Marte	caiu
O	trono	de	Magdalena
Até	o	final	dos	tempos
Vez	mais,	réu	confesso
Eu	sempre	achei	que	o	amor	verdadeiro	é	imortal.	Ele	transpõe	a	matéria
e,	por	si	só,	suplanta	a	própria	razão.	Nada,	conosco,	acontece	por	acaso	e,	desde
que	Abel	partiu	da	Terra	pelas	traidoras	mãos	do	irmão	Caim,	muitos	passaram
a,	 nela,	 ir	 e	 vir,	 até	 que	 as	 suas	 almas	 finalmente	 encontrassem	 a	 derradeira
evolução	que	as	tornasse	aptas	para	a	vida	definitiva	no	Éden	Espiritual[1].
O	primeiro	homem	—	Adão	—	e	a	primeira	mulher	—	Lilith	—	estavam
fadados	a	se	amar	para	sempre,	mas	diante	das	tragédias	que	marcaram	as	suas
vidas,	 a	 raça	 humana	 acabou	 dividida	 entre	 a	 adoração	 a	Deus	 e	 a	 afronta	 às
rígidas	leis	Dele;	o	bem	e	o	mal,	por	assim	dizer.
Não	há	—	não	entre	nós	—	homem	santo	ou	isento	de	pecado.	Aliás,	cá
estamos	 apenas	 para	 dosarmos	 a	 força	 da	 nossa	 fé,	 pois	 disso	 dependerá	 o
término	 —	 aqui	 —	 ou	 a	 continuidade	 —	 acolá	 —	 das	 lidas	 que	 nos	 foram
reservadas.
Embora	muitos	pranteiem	a	morte	física,	entendo	que	ela	nada	mais	é	do
que	o	fim	de	um	ciclo,	onde	a	vida	—	que,	por	graça,	nos	é	perene	—	seguirá
contínua,	seja	na	felicidade	do	paraíso,	seja	nos	frios	calabouços	da	Câmara	de
Guf,	 a	 “Tesouraria	 das	 Almas”,	 onde	 muitos	 espíritos	 permanecem	 presos	 e
suspensos	à	espera	de	uma	possível	chance	de	redenção.
Adão	e	Lilith,	assim	como	muitos	de	nós,	foram	separados	pelo	ciúme	e
pelo	orgulho,	características	que,	com	o	passar	dos	séculos,	quase	chacinaram	a
humanidade:	“Querida,	sempre	estiveste	em	minha	mente;	eu	desejaria	 jamais
tê-la	 deixado	 ir...”,	 pranteava	 o	 primeiro	 homem	 ao	 se	 lembrar	 de	 tê-la	 visto
fugir	do	seu	leito.
Mas	o	Eterno	foi	sapiente	ao	transformar	o	primeiro	jardim	em	passagem
e,	 assim,	 dar-nos	 uma	 nova	 oportunidade;	 pois,	 ao	 contrário	 dos	 anjos,	 nós
viveremos	para	sempre,	seja	na	graça	ou	fora	dela.
Pois	para	que	os	homens	pudessem	continuar	a	sua	saga,	Deus	despachou
para	 a	 Terra	 o	 Seu	 leão	 como	 cordeiro,	 a	 fim	 de	 que,	 diante	 de	 um	 ato	 de
sacrifício,	 o	 ser	 humano	 finalmente	 entendesse	 que	 Ele	 —	 embora	 muitos
tenham	 tentado	 fazer	 ver	 o	 contrário	 —	 é	 amor.	 E	 essa,	 em	 verdade,	 foi	 a
mensagem	deixada	por	Jesus	de	Nazaré:	o	amor	do	Pai.
Ao	 final	 da	 vida	 terrena,	 os	 nossos	 únicos	 legados	 serão	 os	 atos	 pelos
quais	 seremos	 sabatinados,	disso	não	há	como	 fugirmos.	Assim,	a	ausência	de
uma	 religião	 ou	 crença	 pode	 até	 ser	 compreensível,	 mas	 a	 falta	 de	 fé	 numa
energia	 maior	 que	 nos	 regula	 é	 algo	 que,	 a	 meu	 ver,	 não	 se	 coaduna	 com	 a
equação	cósmica	da	nossa	própria	existência.
Comprometer-se	com	a	evangelização;	ajudar	o	homem	a	se	aproximar	de
Deus;	e	dar	às	pessoas	um	melhor	conhecimento	sobre	a	mensagem	de	 fé;	 são
essas	 as	 três	 tônicas	 que	 permeiam	 este	 livro,	 onde	 as	 perguntas	 deixadas	 em
“Gênesis	Proibido	–	A	Tragédia	de	Adão	e	Lilith”,	finalmente	encontram	as	suas
respostas.
“Evangelho	 Perdido	 –	 A	 História	 Oculta	 de	 Jesus”	 é	 uma	 adaptação
ficcional	 baseada	 em	 fatos	 históricos.	 Em	 razão	 disso,	 personagens	 e	 pontos
geográficos	foram	propositalmente	redesenhados,	a	fim	de	dar,	ao	enredo,	uma
visão	 inovadora,	 ainda	 que	 fiel	 aos	 acontecimentos	 descritos	 nos	 inúmeros
Evangelhos,	sejam	eles	oficiais	ou	não.
Vez	mais	 eu	peço	perdão	por	bulir	 com	 temas	 tão	 sagrados	—	o	 intuito
não	 é	 ruim,	 acreditem	—	 e	 também	 pelas	 minhas	 faltas,	 as	 quais,	 bem	 sei	 e
assumo,	não	são	poucas.
Enfim,	espero	que,	desta	vez,	eu	finalmente	me	forme	na	Universidade	da
Vida	e	que,	cada	vez	mais,	eu	aprenda	e	evolua	com	os	erros	e	acertos	que	nela
cometi.
	
Em	1980,	um	desenho	 feito	pelo	menino	Marcelo	de	Lima	Lessa,	 inconscientemente	 retratando,	aos	oito
anos	de	idade,	o	grande	protagonista	deste	livro:	Jesus	de	Nazaré.
Prelúdio
PERVERTIDA	E	DISTORCIDA,	mesmo	após	o	dilúvio	universal	que	deveria	 ter
limpado	o	mundo,	a	humanidade	continuava	a	brindar	o	Céu	com	espetáculos	de
maldade	cada	vez	mais	impactantes.
Um	Deus	que	deveria	ser	uno	passou	a	ser	invulgarmente	multiplicado	nos
mais	diversos	altares,	tornando	a	fé	e	a	crença	partidas.
Há	 muito	 derrotado	 pelo	 ousado	 querubim	 Caliel[2],	 Lúcifer	 não	 havia
mais	 retornado	 à	 Terra,	 entretanto,	 ele	 jamais	 deixou	 de	 influenciar	 os	 passos
daqueles	que	por	ela	caminhavam,	afinal,	as	pérfidas	energias	vindas	do	Inferno
e	 as	 odiosas	 doenças	 aqui	 plantadas	 por	 Baalberith[3]	 repercutiam	 facilmente
sobre	 a	 fraqueza	 dos	 homens.	 Some-se	 a	 isso	 a	 influência	 negativa	 dos	 vários
espíritos	obsessores	fugidos	da	Câmara	de	Guf[4]	que	atormentavam	aqueles	cuja
aura	era	pífia	e	descrente.
Mas	 duas	 grandes	 promessas	 haviam	 sido	 feitas	 por	 Deus	 no	 passado.
Uma,	ao	primogênito	Adão,	alusiva	à	vinda	de	um	salvador;	e	outra,	a	Noé	—
descendente	 daquele	 —	 de	 que	 o	 mundo	 nunca	 mais	 seria	 enxurrado.	 Foi
pensando	nelas	que	o	Elevado	depositou	uma	alma	ungida	ao	Arcanjo	Miguel	e
o	mandou	em	missão	para	um	mundo	que	precisava	de	 imediata	redenção,	sob
pena	de	se	consumir	na	própria	perfídia.
Esse	guerreiro	nato,	cujas	mãos	ainda	tinham	manchas	de	sangue	humano
e	 angélico,	mudaria	 o	 seu	 foco	 de	 ação,	 deixando	de	 ladouma	 furiosa	 espada
flamejante	para	dar	nova	exegese	à	Lei	ditada	no	Sinai[5],	a	qual,	durante	séculos,
foi	 distorcida	 em	 atos	 de	 desmedida	 violência	 por	 alguns	 extremistas	 que,
dizendo-se	sacerdotes,	estavam,	em	grande	maioria,	divorciados	do	real	dever	de
fidelidade	ao	Criador.
Ao	deixar	a	planície	etérea,	o	marechal	da	milícia	celeste	sabia	que	o	seu
encargo	seria	por	tempo	certo,	mas	os	detalhes	dele	só	lhe	seriam	revelados	com
o	 suplantar	 dos	 anos	 —	 num	 total	 de	 trinta	 —	 pelos	 misteriosos	 meandros
advindos	do	Pai	de	todos.
Ainda	 assim,	 alguns	 velhos	 conhecidos	 de	 outrora,	 cujos	 espíritos
condenados	 estiveram	 na	 lúgubre	 Tesouraria	 das	Almas,	 estavam	 prestes	 a	 ter
uma	nova	chance	pelas	mãos	do	filho	feito	homem	do	Senhor,	o	qual,	a	partir	de
certa	 idade,	passaria	a	usar	os	poderes	Dele	não	apenas	para	curar	o	corpo	das
pessoas,	mas	também	seu	espírito.
E	os	caminhos	a	percorrer	não	seriam	fáceis;	nada	fáceis.	Deus	daria	boas
armas	ao	filho,	mas	também	o	poria	a	dura	prova,	pois	da	fé	dele	dependeria	o
destino	de	muitos,	ou	melhor,	de	todos	os	homens	e	mulheres	nascidos	e	ainda
por	nascer.
Capítulo	1
A	Conceição	Virginal
JÁ	ERA	NOITE	quando	José,	entorpecido	pelo	excesso	de	vinho,	cambaleava
junto	 ao	 sopé	 de	 uma	 das	 colinas	 que	 cercava	 a	 aldeia	 de	Nazaré[6].	 Pela	 sua
cabeça	 doída	 e	 confusa	 passeavam	 inúmeras	 cenas	 recentes,	 principalmente	 as
de	quando	a	menina	Maria,	cuja	idade	não	era	tão	distante	da	de	Sara,	uma	das
filhas	 do	 seu	 primeiro	 casamento,	 lhe	 fora	 prometida	 como	 esposa	 pelo
Sacerdote	Zacarias.
Mas	após	ter	visto	a	estranha	proeminência	junto	à	barriga	daquela	que	lhe
havia	sido	destinada	—	uma	gravidez	extemporânea!	—	sua	primeira	reação	foi
a	de	emprestar	cumprimento	à	rígida	 lei	mosaica[7]	e	deixar	com	que	as	pedras
justiçassem	 a	 sua	 maculada	 honra	 pré-nupcial.	 Entretanto,	 os	 judiados	 olhos
daquele	 velho	 carpinteiro	 já	 haviam	 tido	 o	 desprazer	 de	 presenciar	 execuções
similares	e,	tendo	ele	um	bom	coração,	sentiu	enorme	desconforto	em	imaginar
aquela	 jovem	 indefesa	 ser	 massacrada	 pelos	 seus	 concidadãos,	 afinal,	 a
possibilidade	de	ela	ter	sido	violentada	por	algum	soldado	romano	não	era	nula,
principalmente	diante	do	notório	assédio	que	ela	sofria	por	parte	do	decurião[8]
local,	o	atrevido	Iulius	Panthera.
Somava-se	 a	 isso	 o	 fato	 de	 argumento	 da	 tal	 gestação	 estar	 sendo
creditada	ao	toque	do	Elevado	se	mostrar	pouco	verossímil,	tamanho	o	grau	de
insensatez	 daquele	 aparente	 delírio	 vindo	 de	 alguém	 que,	 havia	 pouco	 tempo,
nada	mais	 era	 do	 que	 uma	 simples	 criança,	 a	 alternativa	menos	 hostil	 que	 lhe
restou	foi	a	de	não	denunciar	a	noiva	e	partir	sozinho,	pois,	mesmo	sendo	viúvo,
os	 seus	 seis	 filhos	 receberiam	 a	 tutela	 de	 um	 irmão	 que,	 com	 ele,	 mantinha
sociedade	 num	 negócio	 de	 construção	 braçal.	 Quanto	 à	 pequena	 Maria,	 que
Deus,	em	Sua	misericórdia,	se	apiedasse	dela.
Pois,	prestes	a	ser	vencido	pelos	rigores	da	bebida,	José	encontrou	refúgio
sob	 a	 fronde	 de	 um	 carvalho,	 desabando,	 logo	 em	 seguida,	 debaixo	 dele;	 e	 já
estando	na	iminência	de	perder	os	sentidos,	percebeu	que	algo	incomum	surgiu
de	 trás	 dos	 arbustos	 ali	 fincados,	 algo	 que	 expandia	 uma	 luz	 extraordinária,
estranha	à	negritude	que	por	lá	pairava	apenas	maculada	pelo	incômodo	estrilo
dos	 grilos.	 Ao	 friccionar	 as	 pálpebras	 para	 tentar	 identificar	 o	 que	 via,	 notou
quando	 uma	 emanação	 fantasmagórica	 surgiu	 repentinamente	 diante	 de	 si,
trazendo,	como	numa	grande	tocha,	extrema	claridade	àquela	escuridão.
Em	 pé	 e	 na	 sua	 frente,	 estava	 o	 que,	 à	 primeira	 vista,	 pareceu	 ser	 uma
jovem	mulher,	cujos	cabelos	curtos	e	 ruivos	contrastavam	com	a	 toga	azul	e	a
couraça	dourada	que	lhe	cobriam	partes	do	corpo.	Percebendo	que,	das	costas	do
estranho	—	ou	seria	estranha?	—,	ergueram-se	enormes	asas	que	obstruíram	o
revérbero	 lunar,	 José	 se	manteve	 vergado	 e	 receou	 pela	 própria	 vida,	 afinal,	 a
entidade	também	carregava	uma	espada	coruscante	na	cintura.
—	Nada	 tema,	 filho	de	Davi[9]...	—	adiantou-se	a	aparição,	 levantando	a
mão	direita.
—	Quem	sois	vós?	—	inquiriu	José,	acuado	e	com	a	voz	ainda	viscosa.
—	Eu	 sou	 aquele	 vindo	 a	mando	 e	 ordem	do	Altíssimo,	O	que	 inicia	 e
finda	todas	as	coisas;	seja	aqui	ou	além	daqui.
—	 Então	 viestes	 me	 punir-me	 pelos	 meus	 pensamentos	 impuros?	 —
receou,	em	alusão	à	ideia	de	fuga	que	tinha	em	mente.
—	 Não	 te	 subestimes	 José.	 Eu	 vim	 apenas	 ajudar-te	 a	 melhor
compreender	 os	 rumos	 operados	 pelo	 Senhor	—	 respondeu	 o	 ser	 com	 a	 fala
levemente	metalizada	pelo	frio	da	noite.	—	Embora	virgem,	a	tua	futura	consorte
foi	 tocada	 pela	 força	 do	Criador,	 e	 a	 criança	 que	 ela	 já	 traz	 no	 ventre	 virá	 ao
mundo	para	fiar	a	dívida	que	os	teus	possuem	para	com	Ele.	E	o	filho	que	dela
nascerá	 será	 o	 prometido	 ungido	 que	 reinará	 sobre	 os	 nascidos	 e	 os	 ainda	 por
nascer.
—	Estais	a	vos	referir	àquele	esperado	pelo	meu	povo,	o	“Messias[10]”?	—
balbuciou,	incrédulo.
—	Sim	—	anuiu.	—	Por	isso,	retoma	a	tua	lucidez	e	zela	por	ambos,	pois
essa	é	a	missão	que	o	Grandíssimo	tem	para	ti	até	que	os	teus	dias	se	findem	na
Terra.
Ainda	 de	 joelhos	 e	 comovido,	 José	 fechou	 forçosamente	 os	 olhos	 e	 fez
menção	de	chorar,	mas,	do	anjo	ali	presente,	ouviu	uma	última	instrução:
—	E	lembra:	por	ser	ele	o	filho	do	Altíssimo,	deverá	receber	o	nome	de
Jesus,	que	significa	“a	eternidade	de	Deus”	—	alertou	o	mensageiro,	esboçando
partir.
—	“Jesus”	—	repetiu.	—	Mas	espere,	senhor!	—	apelou.	—	E	vós,	quem
sois?
—	 Eu	 me	 chamo	 Gabriel.	 E	 sou	 apenas	 um	 servo;	 assim	 como	 tu	 —
concluiu	o	celeste	antes	de	bater	as	asas	e	se	pulverizar	no	breu.
Ainda	atordoado	com	o	que	havia	acabado	de	presenciar,	José	abandonou
o	bornal	 quase	 seco	 e	 tomou	o	 caminho	da	morada	de	Maria	 a	 fim	de,	 com	a
mente	agora	esclarecida,	aclamá-la	como	esposa	perante	todos.	E	o	“mensageiro
do	pacto”	aludido	no	passado,	por	Deus,	a	Adão,	ao	que	 tudo	 indicava,	estava
prestes	a	aportar	na	Terra.
	
*	*	*
	
Rompendo	 a	 greta	 de	 luz[11]	 ainda	 posta	 no	 alto	 do	 palácio	 divino,	 o
príncipe-primeiro	dos	anjos	regressou	da	Terra	a	fim	de	prestar	contas	ao	Senhor.
Os	querubins	da	Guarda	Negra[12]	o	assediaram	com	o	costumeiro	festejo	e,	após
mimoseá-los	 um	 a	 um,	 o	 encarregado-mor	 dos	 serviços	 postais	 ganhou	 a
antecâmara	 dos	 aposentos	 de	 Deus.	 Lá	 chegando,	 cruzou	 com	 o	 Arcanjo
Metatron	que,	deveras	apressado,	deixava	os	santos	cômodos.	Ao	ver	a	exaltação
do	recém-chegado,	o	escriba	real	se	adiantou	de	forma	extrovertida.
—	Cansado,	Gabriel?
—	 A	 fadiga	 é	 algo	 que	 não	 se	 adéqua	 a	 um	 mensageiro	 de	 Deus	 —
respondeu,	sorrindo	e	sem	perder	o	passo.
—	É	muito	bom	saber	disso,	pois	Ele	acabou	de	me	ditar	um	documento	e,
adianto-te,	tu	deverás	ser	o	portador	ao	destinatário	dele.
—	Outra	missão?	—	estranhou.
Metatron	 apenas	 assentiu	 com	 a	 cabeça	 e,	 escorado	 pelos	 ajudantes	 de
ordens	 do	 Elevado,	 licenciou	 Gabriel	 para	 ir	 ter	 com	 o	 Pai,	 que,	 estando	 de
costas	para	um	cômodo	oval	posto	atrás	de	Si,	foi,	de	pronto,	reverenciado	pelo
filho.
—	Cá	estou;	de	volta	e	aos	Vossos	serviços.
—	Cumpriste	com	o	teu	encargo?	—	indagou	o	Regulador.
—	 Sim,	 Meu	 Senhor.	 Tanto	 o	 sacerdote	 Zacarias	 como	 a	 menina	 de
Nazaré	 foram	 notificados	 dentro	 dos	 dois	 intervalos	 que	 estipulastes.	 E	 até
mesmo	 o	 bom	 homem	 José,	 confuso,	 conforme	 o	 originalmente	 previsto,
também	foi	apaziguado	e	a	rigor	instruído.
—	Tudo	então	corre	bem.	Pois	agora	eu	tenho	mais	dois	serviços	para	ti;
um	burocrático,	e	outro	de	guarda	—	disse	Deus	voltando-Se	ao	filho.
Sério,	o	Altíssimo	caminhou	vagarosamente	na	direção	do	anjo,	entregou-
lhe	um	alvará	selado	com	uma	magna	de	ouro,	o	qual,	de	fato,	não	aparentava	se
tratar	de	uma	simples	missiva.
—	Toma.	Leva	esta	ordem	de	soltura	para	o	tesoureiro-mor	da	Câmara	deGuf;	e	a	entrega	em	mãos	—	determinou.
Surpreso	por	se	tratar	de	uma	missão	típica	de	Justiça	—	e	não	de	correio
que	era	a	sua	especialidade	—	Gabriel	ponderou,	intrigado.
—	Referi-Vos	ao	gestor	da	“Tesouraria	das	Almas”,	Senhor?
—	O	próprio	—	anuiu.	—	E	para	nela	 ingressar,	deverás	apresentar	este
passe	aos	arcanjos	que	a	guardam	—	esclareceu,	entregando	um	cetro	trabalhado
em	 ouro,	 único	 passaporte	 que	 emprestava	 acesso	 àquela	 secreta	 fortificação
espiritual.
—	E	o	que	eu	haverei	de	fazer	com	o	beneficiado	da	ordem,	Senhor?
—	 Segue	 as	 instruções	 do	 tesoureiro-mor	 e	 leva	 a	 alma	 que	 te	 será
confiada	 à	 província	 terrena	 constante	 do	 alvará.	 Nela	 chegando,	 dirige-te	 ao
palácio	de	um	nobre	chamado	Judah	de	Migdal	e	toca	o	ventre	da	esposa	dele,	a
qual	já	está	à	espera	desse	espírito.
—	Será	feito.	E	quando	a	ação	de	guarda?	—	insistiu,	curioso.
—	Após	entregar	a	dita	alma,	permanece	na	Terra	e	vigia	o	casal	que	 já
acautela	o	teu	irmão	feito	homem[13].	E	providencia,	usando	o	grau	de	força	que
se	 fizer	 necessário,	 para	 que	 nada	 de	 ruim	 aconteça	 com	 eles,	 principalmente
com	a	criança.	Me	fiz	claro?
—	Claro	como	a	luz!
—	 Vai,	 então.	 Desejo	 êxito	 em	 tuas	 tarefas	 —	 concluiu	 o	 Infinito	 ao
reacomodar-Se,	circunspeto,	no	sólio	imponente.
Gabriel	prestou-Lhe	respeito	e	deixou	a	galeria	munido	de	um	passaporte
de	 trânsito	e	uma	ordem	de	 libertação	dirigida	a	uma	alma	decerto	 importante,
que	pelo	visto	estaria	prestes	a	reencarnar	no	mundo	físico.	Embora	estranhando
as	incumbências,	o	anjo-mor	haveria	de	cumprir	o	deliberado,	pois	com	Miguel
fora	do	Céu	e	prestes	a	nascer	na	Terra	com	o	corpo	de	um	humano,	ele	 tinha
passado	a	ser	o	braço	direito	do	Senhor.
E	 lá	 foi	o	grão-estafeta	novamente,	veloz	 e	preciso,	 a	 fim	de	preparar	o
terreno	para	o	tão	aguardado	nascimento	do	Cristo.
	
*	*	*
	
Sob	a	música	alegre	e	as	efusivas	palmas	dos	parentes	presentes,	a	menina
Maria	 teve	 o	 véu	 do	 rosto	 suspenso	 e	 o	 semblante	 formalmente	 revelado	 ao
prometido	 José	que,	 com	um	beijo	 comedido	na	 face	direita	 da	noiva,	 selou	o
acordo	ao	qual,	perante	os	sacerdotes,	ele	havia	assumido	na	sinagoga.
A	beleza	daquela	donzela	—	ainda	contando	com	doze	anos	—	destoava
das	 demais	 aldeãs	 da	mesma	 idade,	 pois	 sua	 tez	 era	 invulgarmente	mais	 clara
que	o	padrão,	contrastando	com	os	vastos	cabelos	enegrecidos	que,	embora	na
oportunidade	presos,	lhe	corriam	sobre	as	costas.
—	Eu	cuidarei	de	ti	e	da	criança;	eu	te	prometo	—	anunciou	José	para	a
recém-tomada	esposa,	que	a	ele	aquiesceu	com	um	sorriso	inocente.
A	jovem	e	os	seus,	então,	se	reconfortaram,	pois	todos	temiam	que,	com
uma	eventual	e	até	então	esperada	recusa	de	José	em	desposá-la,	o	destino	dela
viesse	 a	 ser	 cruel.	 Mas	 quis	 a	 graça	 divina	 que	 um	 homem	 justo,	 cerca	 de
quarenta	anos	mais	velho	que	ela,	abdicasse	de	uma	falsa	vergonha	e	cedesse	aos
desígnios	 de	 Deus	 para	 prover	 aquela	 filha	 pura	 de	 Eva	 e	 uma	 criança	 cujo
nascimento	era,	havia	muito,	esperado	pelo	povo	cativo	de	Israel.
Vencidas	 as	 bodas	 e	 findas	 as	 festas,	 ocorreu	 que,	 alguns	meses	 após	 o
enlace	—	pela	conta	do	tempo,	oito	no	total	—,	uma	agitada	guarnição	romana
aportou	 no	 centro	 da	 cidadela	 e,	 em	meio	 ao	 alvoroço,	 todos	 viram	 quando	 o
indócil	decurião	Iulius	Panthera,	responsável	por	policiar	parte	daquela	área	da
Galileia[14],	bradou	para	quem	o	pudesse	ouvir:
—	Atenção,	habitantes	de	Nazaré!	—	disse	ele,	manejando	as	 rédeas	do
seu	bravio	cavalo.	—	Faço-vos	saber	que	o	imperador	manda	que	se	realize	um
censo	 geral	 de	 tributação,	 donde	 cada	 homem	 deverá	 retornar	 ao	 seu	 local	 de
nascimento	a	fim	de	ser	contado	e	registrado.
Temerosos	com	a	parca	gentileza	dos	soldados	—	principalmente	José,	em
razão	do	antigo	interesse	de	Panthera	pelas	valorosas	virtudes	de	Maria	—,	todos
se	puseram	afoitos	e,	sem	muita	demora,	recolheram	as	mulheres	para	o	interior
de	suas	casas.
—	E	são	essas	as	ordens,	cujo	não	acatamento	 implicará	em	represálias!
Portanto,	 espalhai	 a	 notícia	 e	 obedecei!	—	 concluiu	 em	meio	 àqueles	 grandes
pendões	que	envergavam	a	máxima	“SPQR”.
SPQR.	 Esse	 acrônimo	 lançado	 nos	 pomposos	 estandartes	 das	 legiões
romanas	aludia	à	máxima	“Senatvs	Popvlvsqve	Romanvs”	–	“Senado	e	Povo	de
Roma”	 e,	 naqueles	 dias,	 confundia-se	 com	o	 símbolo	 de	 submissão	que	César
Augusto[15]	impunha	aos	seus	conquistados.
Como	 José	 era	 natural	 da	 cidade	 de	 Belém[16],	 fincada	 ao	 sul	 e	 na
província	da	Judeia[17],	ele	achou	prudente	apanhar	a	esposa,	cuja	gravidez	já	era
avançada,	 e	 partir	 sem	 demora	 para	 se	 alistar,	 afinal,	 não	 seria	 viável	—	 não
naqueles	 dias	 religiosamente	 aluídos	—	 ir	 contra	 um	 édito	 real	 e	 se	 envolver
numa	rusga	com	os	soldados	do	pontífice	romano,	já	que	agora	ele	possuía	uma
venerável	incumbência	pela	frente.
—	Então	irás	mesmo,	José?	—	indagou-lhe	o	irmão	mais	novo,	este	sim,
filho	da	cidadela	de	Nazaré.
—	Eu	não	posso	me	furtar	Cleófas,	pois	agora	temo	pela	sorte	da	minha
família.	 E	 de	 mais	 a	 mais,	 não	 deixarei	Maria	 aqui	 sozinha;	 não	 com	 aquele
decurião	 rondando	 as	 cercanias	 —	 respondeu,	 enquanto	 desamarrava	 o	 seu
sempre	 disposto	 animal	 de	 carga.	 —	 Nós	 aproveitaremos	 a	 companhia	 de
algumas	caravanas	que	partirão	hoje	de	Séforis[18],	mas	a	grata	parte	do	caminho,
eu	e	ela	haveremos	de	fazer	sozinhos.
—	 Tens	 razão,	 creio	 ser	 o	 certo	 —	 concordou.	 —	 Pois	 vai	 e	 não	 te
preocupes,	eu	darei	conta	da	oficina	e	zelarei	pelos	teus	filhos	enquanto	estiveres
fora.
—	Que	assim	seja	—	agradeceu,	sem	esconder	a	preocupação.
Ele	então	se	despediu	dos	rebentos	—	Judas,	José,	Tiago,	Simão,	Lígia	e
Sara	—	e,	com	poucos	recursos	e	mantimentos,	descansou	a	esposa	no	lombo	do
seu	jumento	a	fim	de,	juntos,	enfrentarem	os	rigores	dos	quase	cento	e	sessenta
quilômetros	de	distância	até	o	seu	destino.
—	Estás	pronta	para	ir?	—	indagou	José	à	mulher.
—	Eu	sinto	ser	a	vontade	de	Deus	que	a	criança	nasça	fora	de	Nazaré.	Que
seja	então	cumprido	o	desígnio	Dele	—	respondeu,	sem	demonstrar	medo.
—	Cuida	 bem	 dela,	meu	 genro	—	 interveio	Hannah,	mãe	 de	Maria.	—
Não	deixes	que	nada	de	ruim	aconteça	com	a	minha	menina	e	com	o	filho	que
ela	carrega.
—	 O	 Senhor	 olhará	 por	 nós,	 minha	 sogra,	 estou	 certo	 disso!	 —
tranquilizou-a,	 mesmo	 sabendo	 dos	 perigos	 que	 uma	 viagem	 como	 aquela
poderia	 ofertar,	 como	 a	 distância,	 a	 solidão	 e,	 principalmente,	 as	 nocivas
armadilhas	do	deserto.
—	Quisera	eu	estar	em	condições	de	acompanhar-vos,	mas	a	parca	saúde
que	me	resta	só	me	faria	mais	um	fardo...	—	justificou-se	num	tom	de	bênção.
—	Não	chores,	mãe,	pois	eu	sei	que	nós	estaremos	protegidos	e	em	boas
mãos	—	acalentou-a	Maria.
—	Minha	 filha	querida,	desde	sempre	eu	soube	que	 tu	eras	uma	dádiva,
pois	 mesmo	 idosa,	 tive	 o	 privilégio	 de	 dar-te	 à	 luz	 pelas	 mãos	 de	 Deus.	 E	 o
Senhor,	acredita-me,	estará	sempre	convosco!	—	concluiu	num	abraço	choroso.
Sob	 o	 comovido	 olhar	 dos	 poucos	 aldeões	 que	 lá	 estavam,	 ambos	 se
juntaram	aos	demais	peregrinos	e	partiram	a	caminho	das	distantes	montanhas
de	Judá,	sem	saber	que	o	retorno	deles	ao	povoado	de	Nazaré,	ao	contrário	do
que	se	poderia	prever,	ainda	demoraria	muito	a	ocorrer.
	
*	*	*
	
Seguindo	a	rota	secreta	posta	no	passe	que	havia	auferido	do	Pai,	Gabriel
deixou	o	Céu	e	caiu	num	túnel	contínuo	de	fogo	que	o	 lançou	numa	dimensão
opaca	 e	 sombria,	 o	 Guf,	 totalmente	 inversa	 às	 paisagens	 —	 mesmo	 as	 mais
austeras	—	a	que	ele	estava	acostumado	em	seu	primeiro	lar.
O	 espaço	 navegado	 não	 tinha	 quaisquer	 nuvens,	 e	 a	 escuridão
predominante	 era	 apenas	 quebrada	 por	 alguns	 estranhos	 relampejos	 que
rareavam	no	alto.
Após	 alguns	 instantes	 voando,	 aparentemente	 sem	 rumo,	 o	 anjo
visualizou,	 ainda	 do	 alto,	 uma	 estrutura	 gigantesca	 cerrada	 por	muralhas	 bem
maiores	 que	 as	 do	 palácio	 do	Regulador,	 sendo	 que	 a	 energia	 que	 pulsava	 no
localera	extremamente	negativa,	o	que	lhe	causou	certo	desconforto	no	ar.
Mirando	 algo	 que	 se	 assemelhava	 a	 um	 enorme	 portão,	 Gabriel	 logo
encontrou	 pouso	 no	 solo	 frio,	 sendo,	 de	 imediato,	 interpelado	 por	 dois
abrutalhados	arcanjos	que	davam	vigília	naquele	tétrico	prédio.	Ao	reconhecer	a
fisionomia	do	importante	recém-chegado,	um	deles	o	recepcionou	surpreso.
—	Príncipe	Gabriel,	o	que	faz	no	presídio	de	Guf?
—	Eu	venho	a	serviço,	meus	irmãos.	Viajo	com	este	passaporte	de	Deus	e
por	 deliberação	 Dele	 trago	 um	 alvará	 de	 soltura	—	 esclareceu,	 envergando	 o
documento.
Ao	 observar	 a	 permissão	 real,	 os	 falangistas	 descruzaram	 as	 lanças	 e
abriram	imediato	caminho	para	o	mensageiro	maior,	reverenciando-o	conforme	o
protocolo	hierárquico:
—	 Desculpe	 a	 cautela	 príncipe,	 mas	 desde	 a	 criação	 deste	 complexo
penitenciário	 nós	 nunca	 recebemos	 visitas,	 que	 não	 apenas	 as	 dos	 nossos	 já
conhecidos	oficiais	de	diligências	celestes	—	justificou	um	deles.
—	 Não	 vos	 apoquenteis,	 amigos,	 afinal,	 assim	 como	 vós,	 eu	 também
estou	cumprindo	o	meu	dever.	Mas	ao	ensejo,	como	faço	para	encontrar-me	com
o	tesoureiro-mor?
—	 Ele	 permanece	 na	 grande	 capela	 que	 antecede	 as	 galerias	 dos
ergástulos,	 uma	 de	 nossas	 sentinelas	 irá	 levá-lo	 até	 ele	—	 explicou	 o	 lanceiro
apontando	para	um	outro	que	estava	no	sóbrio	corredor	do	corpo	da	guarda.
—	Agradeço	a	acolhida	e	vos	peço	licença	—	asseverou	o	emissário,	já	se
adiantando	no	interior	da	fortificação.
Os	 dois	 guerreiros	 ficaram	 ressabiados	 com	 aquela	 extraordinária
chegada,	mas	 como	 soldados	 obedientes,	 apenas	 retornaram	 aos	 seus	 postos	 e
nada	disseram.
Num	ritmo	acelerado,	Gabriel	e	o	seu	condutor	transpuseram	uma	soturna
via	erguida	sobre	enormes	blocos	de	rocha	negra,	onde	o	absoluto	silêncio	só	se
fazia	quebrar	pela	coreografia	da	marcha	de	ambos	contra	o	solo.	A	Tesouraria
das	Almas	era	um	lugar	melancólico,	uma	zona	purgatória	onde	o	ar	era	gélido,
pesado	e	quase	asfixiante,	e	que	servia	de	cárcere	para	os	espíritos	atormentados
que,	carentes	de	fé	na	vida	terrena,	haviam	se	apartado	da	retidão	e	necessitavam
se	livrar	daquilo	que	os	impedia	de	evoluir	ao	Éden	Espiritual[19].
Inquieto	 com	 aquele	 ingrato	 ambiente	 e	 ainda	 diante	 de	 um	 elevado
número	 de	 arcanjos	 pouco	 amigáveis	 que	 lá	 davam	 vigília,	 o	 embaixador	 de
Deus	ponderou:
—	Percebo	 que	 a	 segurança	 aqui	 é	 um	 tanto	 ostensiva,	 cabo-da-guarda;
excessiva,	se	me	permite	observar.
—	Houve	várias	fugas	no	passado,	senhor	—	respondeu-lhe	o	graduado.
—	Espíritos	revoltados	e	vingativos	que	não	acataram	a	interrupção	dos	pecados
de	 suas	 vidas	materiais.	 E	 desde	 então,	 o	 tesoureiro-mor	 despachou	 inúmeros
esquadrões	de	lanceiros	atrás	deles	na	Terra,	por	isso	a	segurança	foi	reforçada.
—	 “Espíritos	 revoltados...”	—	 replicou.	—	Os	 tais	 “obsessores”,	 não	 é
mesmo?	Eu	já	ouvi	terríveis	comentários	sobre	eles.
—	Correto	—	 confirmou.	—	Esses	 espíritos	 são	 bem	 difíceis	 de	 serem
recapturados,	 pois	 suas	 energias	 se	 escondem	 facilmente	 nas	 iniquidades	 do
mundo	 material.	 Eles	 atormentam	 e	 influenciam	 os	 comportamentos	 daqueles
que	 lá	 estão,	 principalmente	 no	 campo	 da	 libido	 humana.	 Bem,	 felizes	 talvez
sejamos	nós,	 por	 termos	 apenas	uma	 existência	—	observou	o	 armígero	 sob	 a
concordância	do	príncipe	dos	anjos.
Ao	 chegarem	 na	 grande	 capela	 da	 Tesouraria,	 um	 espaço	 descomunal
cercado	por	milhares	de	estantes	que	iam	do	chão	ao	teto,	eles	se	depararam	com
Razyel,	 arcanjo	 que,	 em	 meio	 a	 uma	 inflexível	 bancada	 abarrotada	 de
cartapácios	e	velas	acesas,	cumpria,	havia	muito,	o	posto	de	tesoureiro	das	almas
ali	presas.
Ao	observar,	diante	de	 si,	o	 irmão	celestial	que	havia	 tempos	não	via,	o
oficial	estranhou	a	sua	chegada,	principalmente	quando	dele	recebeu	uma	ordem
de	 soltura	 vinda	 de	 alguém	 que	 não	 um	 dos	 costumeiros	meirinhos	 que	 lá	 as
apresentavam	 por	 lotes;	 e	 ao	 romper	 delicadamente	 o	 selo	 divino	 pré-posto
naquele	documento,	Razyel	leu	para	si	o	teor,	mostrando-se	surpreso	com	o	seu
conteúdo.
—	Algo	errado?	—	inquiriu	o	mensageiro.
—	Creio	 que	 não,	 Príncipe	 Gabriel.	 É	 que	 se	 trata	 de	 uma	 alma	muito
antiga,	 para	 cá	 trazida	 antes	mesmo	 do	 dilúvio.	 Soa	mais	 estranho,	 é	 que	 ela
nunca	 teve	 direito	 a	 progressão	 —	 explicou.	 —	 Enfim,	 eu	 irei	 confirmar	 a
localização	dela	nos	 livros,	mas	creio	que	deva	estar	 suspensa	nos	níveis	mais
baixos.
Após	um	acurado	exame	em	diversas	anotações	que	 remetiam	a	 séculos
terrestres,	Razyel	e	Gabriel	deixaram	aquelas	dependências	e	passaram	a	descer
por	 infindáveis	 lances	 de	 escada,	 até	 que	 finalmente	 aportaram	 num	 corredor
estreito	e	escuro	da	seção	leste,	apenas	iluminado	pela	presença	do	vigia	daquela
ala,	o	Arcanjo	Marcyal.
—	Príncipe;	tesoureiro-mor?	—	assustou-se	o	guarda.
—	Salve,	 soldado!	—	disse	o	oficial	em	voz	baixa	e	sem	pompas.	—	O
nosso	 visitante	 é	 portador	 de	 um	 alvará	 individual	 especialmente	 emitido	 para
uma	alma	que,	em	meus	registros,	consta	estar	numa	das	últimas	solitárias	deste
flanco	—	esclareceu	Razyel	sob	o	eco	que	se	fazia	no	ambiente.
—	Deixe-me	examiná-lo,	senhor	—	respondeu	o	miliciano	ao	folhear	o	rol
nominal	 de	 presos.	 —	 Sim,	 o	 nome	 confere	 com	 o	 da	 ordem	 que	 Vossa
Excelência	 tem	 em	 mãos;	 por	 favor,	 acompanhem-me	 para	 o	 consentâneo
cumprimento.
Os	três	celestes	se	dirigiram	até	a	última	cela	que,	pelo	alfabeto	angélico,
descrevia	o	número	dois	e	a	qual,	com	certa	dificuldade,	foi	sendo,	aos	poucos
aberta	pelo	guardião.	A	luminosidade	natural	vinda	do	corpo	deles	fez	com	que	o
interior	do	ambiente	 fosse	paulatinamente	clareado,	 revelando-lhes,	 em	meio	a
colunas	 fúnebres,	 a	 opaca	 silhueta	 de	 uma	mulher	 deitada	 de	 costas	 que,	 pelo
visto,	lá	jazia	havia	muitos	séculos.	Ao	mirá-la	de	costas,	o	guarda	do	cárcere	se
posicionou	e	procedeu	à	obrigatória	 liturgia	de	 libertação,	 lendo	 ipsis	 litteris	 o
que	constava	do	documento	que	tinha	em	mãos:
	
“Pela	 força	 conferida	 ao	 presente,	 o	 Criador	 faz	 saber	 ao
excelentíssimo	Arcanjo	Razyel,	major-em-armas	da	 legião	Animus,
designado	como	tesoureiro-mor	da	Câmara	de	Guf,	ser	de	expressa
vontade	Dele,	que	seja	posta	em	liberdade	e	 incontinente	 levada	à
aldeia	terrena	de	Magdala[20],	província	fincada	na	costa	ocidental
do	 chamado	 Mar	 da	 Galileia,	 a	 alma	 da	 réproba	 que,	 em	 sua
primeira	existência	física,	recebeu	o	nome	de	Lilith...”
	
Lilith!	 Pois	 ao	 descobrir	 a	 graça	 daquela	 importante	 reclusa,	 Gabriel
sentiu	um	calafrio	percorrer	o	corpo,	afinal,	ele	conhecia	muito	bem	a	história	da
temida	 dama	 da	 noite	 que,	 no	 passado,	 tantos	 dissabores	 havia	 causado,	 não
apenas	ao	esposo	Adão,	mas	também	ao	próprio	Deus.
	
“...	Pois	 fica	 também	decretado	que	a	beneficiária	 seja	entregue	à
cautela	 do	 celeste	 Gabriel,	 príncipe-primeiro	 dos	 anjos,	 para	 as
providências	decorrentes	da	soltura	e,	por	ser	essa	a	expressão	do
que	quer	e	manda	o	Altíssimo,	eu,	Arcanjo	Metatron,	oficial-maior
de	escrivania	do	palácio	real,	o	escrevi	e	selei	em	ouro.”
	
Ao	término	da	leitura,	a	segregada,	que	ainda	se	fazia	cobrir	por	uma	fina
camada	 de	 gelo,	 abriu	 os	 olhos	 num	 único	 ímpeto.	 E	 depois	 de	 anos	 presa
naquele	 gélido	 calabouço,	 ela	 finalmente	 obteve	 autorização	 para	 deixar	 a
clausura	e	enfrentar	um	mundo	totalmente	diferente	daquele	em	que	havia	vivido
e,	sobre	o	cadáver	do	ex-marido	Adão,	feito	a	passagem	devorada	pelo	fogo	que
os	consumiu	juntos.
A	 primeira	 mulher	 posta	 na	 Terra,	 doravante	 num	 outro	 corpo	 e	 numa
outra	vida,	estava	prestes	a	ter	uma	chance	de	redenção.
	
*	*	*
	
Durante	o	dia,	o	sol	castigava	José	e	a	esposa;	e	à	noite,	o	calor	vindo	das
fogueiras	 lhes	 trazia	 conforto.	 De	 alguns	 mercadores	 que	 encontravam	 nas
trilhas,	 o	 homem	 comprava	 um	 ou	 outro	 mantimento	 de	 fácil	 conservação	 e
rápido	 consumo,	 afim	 de	 que	 a	 jornada,	 a	 qual	 transpunha	 grandes	 regiões
desérticas,	lhes	fosse	menos	penosa.
Embora	já	íntimos	da	solidão	da	estrada,	foi	no	oitavo	dia	de	viagem	que
algo	atípico	lhes	aconteceu.	No	cair	da	noite,	e	em	meio	a	um	caminho	fechado	e
traiçoeiro,	o	casal	sagrado	acabou	emboscado	por	três	homens	de	aparência	rude
e	 agressiva,	 verdadeiros	 salteadores	 da	 senda,	 que	 haviam	 se	 acostumado	 a
atacar	os	viajantes	incautos	que	porventura	viessem	a	encontrar.	A	investida	dos
mesmos	 ocorreu	 no	 exato	 momento	 em	 que	 José,	 após	 acender	 uma	 pequena
fogueira,	buscava	um	pouso	adequado	para	poder	acomodar	Maria	e	prender	o
animal	que	lhe	servia	de	montaria.
—	Ora,	quem	vem	lá?	—	tripudiou	o	mais	encorpado	dos	ladrões.
O	 carpinteiro	 e	 a	 mulher	 ficaram	 acuados,	 já	 que	 o	 trejeito	 daqueles
malfeitores	era	um	prenúncio	do	que	eles	aparentemente	tencionavam.
—	Nós	viajamos	em	paz;	eu	e	minha	esposa,	que	está	prestes	a	dar	à	luz...
—	apelou	José	na	tentativa	de	sensibilizá-los.
—	Esposa?	Pois	eu	pensei	que	fosse	tua	neta!	—	divertiu-se	um	deles,	em
razão	 da	 crassa	 diferença	 de	 idade	 entre	 ambos.	—	E	 por	 acaso	 trazes	 algum
dinheiro	 contigo,	 velho?	 —	 indagou	 o	 mesmo,	 cuja	 enorme	 cicatriz	 que	 lhe
cortava	a	face	impunha	temor.
—	Eu	 só	 tenho	 algumas	moedas,	 ficai	 com	elas	 e	 deixai	 que	 sigamos	o
nosso	caminho	—	respondeu,	remexendo	a	bolsa	e	ofertando-lhes	o	pouco	valor
material	que	carregava.
—	E	porventura	nos	julga	dignos	dessa	ninharia?	—	berrou	o	líder	deles
ao	desferir	um	violento	golpe	no	rosto	de	José,	o	qual,	atordoado,	caiu	ao	chão	e
perdeu	os	sentidos	ao	chocar	a	cabeça	contra	uma	pedra.
—	Mas	veja	o	que	nós	temos	aqui,	uma	delicada	jovenzinha!	—	riu	o	mais
forte	ao	tomar	a	virgem	e	colocá-la	em	pé	diante	de	si.
Fragilizada	ante	o	próprio	estado	físico	e	atemorizada	com	o	que	ocorria,
Maria	segurou	a	barriga	com	uma	das	mãos	e	ergueu	instintivamente	a	outra,	na
pretensa	 tentativa	 de	 repudiar	 aquele	 homem	 imenso,	 cujas	 intenções	 para
consigo	pareciam	ser	as	mais	pérfidas	possíveis.
Seu	esposo,	ferido	e	inerte,	nada	podia	fazer	para	protegê-la;	e	clamar	por
socorro	 naquela	 despovoada	 imensidão	 seria	 inútil,	 até	 porque,	 o	 pânico	 lhe
havia	tolhido,	sumariamente,	a	voz.
Limitando-se	 a	 recuar,	 ela	 se	 viu	 encurralada	 por	 uma	 enorme	 parede
rochosa	 que	 a	 impediu	 de	 continuar	 se	 afastando	 e,	 diante	 de	 si,	 enxergava
apenas	 aquele	 arremedo	 de	 monstro	 humano,	 malcheiroso	 pela	 bebida	 e
envergando	 vestes	 imundas.	 Vencida	 pelo	 medo	 e	 pelo	 desespero,	 a	 jovem
começou	a	se	agachar,	oportunidade	em	que	os	outros	dois	se	aproximaram	do
maioral	 para	 coadjuvar	 um	 crime	 cujo	 grau	 de	 aberração	 sequer	 poderia	 ser
definido.
Pois	estando	numa	posição	mais	baixa	em	relação	àquele	malfazejo,	Maria
entrou	numa	espécie	de	transe,	passando	então	a	focar	os	seus	pensamentos	em
algo	 que	 pudesse	 lhe	 trazer	 um	 pouco	 de	 acalento	 para	 tentar	 enfrentar	 a
desgraça	que	estava	por	vir.	Mas	num	repente	que	teve	da	própria	realidade,	ela
foi	 surpreendida	 por	 um	 vertiginoso	 facho	 de	 fogo	 que	 inesperadamente	 se
ergueu	do	chão	por	trás	do	perverso	homenzarrão	e,	numa	só	passada,	o	partiu	ao
meio.	Assustada	com	a	violência	da	cena,	Maria	esboçou	perder	os	sentidos,	não
sem	antes	ver	aquela	mesma	língua	fulgurante	—	entre	uma	nuvem	de	areia	que
se	levantou	—	calar	os	urros	terrificantes	dos	outros	dois	facínoras.
A	 imaculada	 não	 se	 conteve	 e	 desfaleceu,	 sendo	 que	 o	 silêncio,	 após
aquele	ímpar	momento	de	tensão,	foi,	aos	poucos,	retornando.	Estacionado	bem
diante	dela,	ali	se	revelou	o	grande	mensageiro	de	Deus,	com	a	sua	afiada	espada
de	fogo	erguida	e	bem	segura	numa	das	mãos.
Igualmente	 desacordado,	 José	 foi	 gentilmente	 posto	 pelo	 tal	 anjo	 no
lombo	 do	 seu	 animal.	 Erguida	 nos	 braços	 pela	 mesma	 entidade,	 Maria	 ficou
segura.	 Tomando	 as	 rédeas	 do	 jumento	 que	 havia	 se	 recusado	 fugir,	 aquela
sentinela	celeste	que	 lhes	dava	guarida	os	 levou	daquele	 lugar	ermo,	deixando
para	trás	três	cadáveres	lacerados	e	à	mercê	dos	mais	baixos	calabouços	do	Guf.
O	 Príncipe	 Gabriel,	 que	 pouco	 antes	 havia	 retornado	 de	 Magdala	 após
fazer	a	entrega	do	espírito	recém-liberto	de	Lilith,	seguia	à	risca	as	orientações
do	Senhor,	vigiando	o	casal	à	distância	desde	que	haviam	partido	de	Nazaré.	No
caminho,	 o	mensageiro	 olhava,	 vez	 ou	 outra,	 para	 a	 barriga	 daquela	 jovem	 e,
com	 um	 singelo	 sorriso	 no	 rosto,	 lembrava-se	 do	 bom	 irmão	 Miguel,	 cuja
essência,	agora,	estava	num	ser	forjado	da	mesma	matéria	que	séculos	antes	ele
próprio	havia	auferido	nos	quatro	cantos	da	Terra	para	que	o	Criador	moldasse	o
primeiro	homem.
Na	 manhã	 seguinte	 os	 dois	 despertaram	 ao	 lado	 de	 um	 bornal	 que
continha	água	fresca	e	de	pequenos	cestos	com	uvas	passas	e	castanhas,	como	se
nada	lhes	tivesse	acontecido.	Mas,	afinal,	teria	aquilo	sido	um	pesadelo?	Talvez
não,	pois	os	trejeitos	da	aparição	foram	descritos	por	Maria	ao	esposo,	fazendo
com	 que	 este,	 nela	 identificasse	 o	 mesmo	 ser	 misterioso	 que,	 meses	 antes,	 o
havia	 visitado	 para	 dar	 paz	 ao	 seu	 atormentado	 coração;	 e	 ela,	 o	 que	 havia
anunciado	a	vinda	do	seu	filho.
—	Aqueles	 homens	 horríveis,	 José.	 Fomos	 salvos...	—	 disse	 a	menina,
ainda	aparentemente	emocionada.
—	 É	 mais	 um	 sinal	 de	 Deus,	 mulher;	 o	 terceiro	 ao	 que	 me	 parece	—
ponderou.	 —	 Bem,	 sigamos,	 então,	 adiante,	 afinal,	 já	 estamos	 próximos	 de
Belém.
Embora	 aquele	 dia	 de	 viagem,	 o	 último,	 houvesse	 sido	 tranquilo,	 assim
que	 a	 tarde	 caiu	 no	 sul	 da	 Judeia,	 Maria	 sentiu	 a	 criança	 se	 encaixar	 na	 sua
região	pélvica,	o	que,	mal	sabia	ela,	era	um	prenúncio	do	nascimento.	Inúmeras
contrações	passaram	a	 tomar	 conta	do	 seu	 corpo,	 e	o	desconforto	 causado	por
elas	fez	com	que	José,	um	tanto	nervoso,	se	pusesse	a	buscar	um	lugar	adequado
para	 tentar	 abrigá-la;	 afinal,	 a	 noite	 se	 avizinhava	 e,	 para	 piorar,	 uma	 garoa
ardida	 havia	 começado	 a	 cair	 sobre	 eles.	 Ainda	 que	 o	 centro	 da	 cidade	 já
estivesse	 próximo,	 e	 José,	 por	 ser	 um	 nativo,	 pudesse	 facilmente	 encontrar
abrigo,	o	tempo	urgia,	pois	a	parição	parecia	ser	iminente.
Pois	ainda	na	estrada	e	em	meio	à	chuva	que	começou	a	piorar,	de	longe
avistou	 alguém	que	 saiu	 do	 que	 lhe	 pareceu	 ser	 uma	 espécie	 de	 gruta	 fincada
entre	as	pedras,	uma	mulher	idosa	de	trejeitos	simples	e	simpáticos.
—	Venham	cá,	meus	filhos!	—	bradou	a	estranha	ao	acenar	para	eles.	—
Protejam-se	e	aqueçam-se	um	pouco.
Mesmo	à	distância,	José	não	percebeu	qualquer	hostilidade	nela	e,	no	afã
de	acalentar	a	esposa,	aceitou	o	convite	e	a	 levou	para	aquela	caverna,	onde	a
anciã	os	recepcionou:
—	Sede	bem-vindos	—	disse	ela.	—	E	nada	temais,	pois,	no	passado,	este
lugar	 serviu	 de	 estábulo	 para	 os	 pastores	 em	 trânsito	 de	Betânia[21]	 até	 Belém,
mas	já	faz	um	bom	tempo	que	ele	está	abandonado	—	esclareceu	a	senhora	já	no
interior	do	abrigo,	cuja	iluminação	interna,	embora	presente,	não	teve	a	origem
de	pronto	identificada.
—	A	minha	esposa	está	prestes	a	dar	 à	 luz,	nós	precisamos	de	ajuda	—
asseverou	José,	aflito.
—	Pois	então	vinde	para	mais	perto,	deita-a	sobre	esse	monte	de	feno	—
ofertou	a	velha	calmamente.
—	 A	 senhora	 pode	 auxiliar	 de	 alguma	 forma?	 —	 indagou	 José,	 ao
cuidadosamente	acomodar	Maria.
—	Bem,	 faz	muito	 tempo	 que	 eu	 não	 assisto	 alguém	 num	 parto.	Muito
tempo...	—	respondeu,	passando	as	mãos	nos	cabelos	já	descobertos	e	soltos	da
virgem.	—	Mas	saibas	que	a	melhor	ajuda	é	aquela	vinda	de	ti	mesma,	menina.
Pois	assim,	quando	sentires	as	contrações	aumentarem,	apenas	faças	força	para
fora.	Está	bem?	—	orientou-a.	—	A	jovem	assentiu	com	um	suave	movimento
de	cabeça	e	esboçou	um	sorriso,	dando	mostras	de	que	havia	compreendido.	—
Ótimo!	 Agora,	 relaxa	 e	 deixa	 que	 tudo	 aconteça	 naturalmente	 —	 disse	 a
desconhecida	sob	o	ansioso	olhar	de	José.
Poiscontrariando	a	severa	lei	da	dor	que	havia	sido	posta	em	Eva,	Maria
se	 mostrava	 imune	 ao	 sofrimento	 da	 parição;	 afinal,	 ali,	 nascia	 o	 rebento	 de
Deus,	 e	 com	 o	 auxílio	 daquela	 estranha,	 pariu	 uma	 criança	 saudável,	 a	 qual
ganhou	o	mundo,	não	chorando,	mas	sorrindo.
—	Meu	filho...	—	sussurrou	a	mãe,	feliz	ao	vê-lo.	—	Jesus!
—	Abençoada	és	tu,	menina,	o	Senhor	livrou-te	da	dor	do	parto.	E	saúdo	a
ti	 e	 ao	 teu	marido,	 pois	 recebestes	um	menino	 forte,	muito	 forte	—	afirmou	a
parteira,	num	tom	envolvente	e	igualmente	misterioso.
O	casal	 ficou	 tão	entretido	com	o	exitoso	nascimento,	que	não	percebeu
quando	a	idosa	amarrou	o	cordão	umbilical	que	unia	a	mãe	à	criança	com	dois
finos	fios	de	ouro	e,	com	um	belo	punhal	cravejado	de	esmeraldas	que	tirou	da
cintura,	o	seccionou	sem	quaisquer	dificuldades.
A	 chuva	 que	 ainda	 caía	 parou	 de	maneira	 inesperada,	 dando	 azo	 a	 uma
grande	estrela	que	se	fincou	acima	da	caverna.	A	dita	senhora	então	se	levantou
e,	 vagarosamente,	 deixou	a	gruta,	 sem	que	 José	ou	Maria	 se	 apercebessem.	 Já
estando	na	entrada	dela,	olhou	para	o	alto	e	desfez	o	seu	disfarce,	de	pronto	se
revelando	como	sendo	um	anjo,	um	príncipe-primeiro	da	ordem	das	virtudes.	Foi
então	 que	 Rafael,	 que	 centenas	 de	 anos	 antes	 havia	 auxiliado	 Eva	 a	 trazer	 os
gêmeos	 Caim	 e	 Luluvah	 ao	 mundo,	 recepcionou	 alguns	 pastores	 que	 lá
chegaram	atraídos	pelo	fulgor	do	astro	que	havia	repousado	sobre	aquela	gruta.
—	Entrai	e	contemplai	o	“rei	dos	reis”	que	aqui	nasceu!
Feito	 isso,	 o	 celeste	 cobriu	 a	 cabeça	 com	 um	 capuz	 esverdeado	 e
desapareceu	no	ar,	deixando	atônitos	os	espectadores	que	lá	estavam.
Os	 pastores	 entraram	 na	 gruta	 e	 se	 depararam	 com	 uma	 menina
acalentando	um	 recém-nascido	que	 se	 recusava	 a	 chorar.	No	afã	de	proteger	 a
família,	José	ficou	arisco	ao	vê-los,	mas	ao	ouvir	deles	que	um	anjo	de	Deus	os
havia	 licenciado	 para	 saudar	 o	 novo	monarca	 que	 tinha	 acabado	 de	 chegar	 ao
mundo,	 ele	 desarmou	 o	 coração	 e	 permitiu	 que	 todos	 se	 aproximassem	 e	 o
adorassem.	 Nem	 mesmo	 quando	 a	 noite	 findou,	 o	 brilho	 daquela	 magnífica
estrela	de	Belém	se	consumiu.	Era	dia	vinte	e	cinco	do	mês	de	dezembro,	 três
mil	setecentos	e	sessenta	anos	haviam	se	passado	desde	que	Deus	havia	deixado
o	Céu	para	criar	a	Terra.
	
*	*	*
	
Já	 era	 manhã	 quando	 uma	 caravana	 de	 astrólogos	 vindos	 da	 Pérsia	 foi
vista	entrando	nos	limites	de	Jerusalém[22],	o	que	chamou	a	atenção	da	guarda[23]
do	rei	Herodes	I[24],	um	edomita[25]	e	judeu	convertido	nomeado	por	Roma	para
impor	suas	leis	no	território	palestino.
—	Magos	em	Jerusalém?	—	surpreendeu-se	ao	tomar	ciência	da	nova.
—	Sim,	majestade;	vindos	dos	desertos	do	leste	—	assentiu	o	capitão	da
milícia.	—	Perguntamos	quais	seriam	os	negócios	deles	por	aqui,	e	aquele	que
alegou	 se	 chamar	 Baltazar	 nos	 disse	 que	 há	 cerca	 de	 três	 meses	 eles
acompanham	 uma	 estrela	 menor	 que	 busca	 alinhamento	 com	 outras	 duas
maiores.
—	 “Estrelas”	 —	 repetiu	 o	 regente,	 ao	 coçar	 as	 feridas	 que	 mantinha
escondidas	sob	as	vestes.
—	Correto,	senhor.	E	ao	que	parece,	eles	falavam	por	enigmas,	aludindo	a
astros	que	estranhamente	chamavam	de	“pai”	e	“mãe”.
—	Certamente	faziam	referência	a	Júpiter	e	a	Vênus	—	interferiu	um	dos
adivinhos	 da	 corte,	 ao	 lembrar	 de	 um	 antigo	 presságio	 feito	 pelo	 profeta
Isaías[26],	 o	 qual	 dava	 conta	 de	 que	 uma	 estrela	—	 entre	 duas	—	 anunciaria	 o
nascimento	do	rei	puro	dos	judeus,	um	imperador	estranho	à	linhagem	edomita
que,	envergando	o	sangue	real	de	Davi,	salvaria	o	cativo	povo	de	Deus.
—	Sim,	a	tal	profecia	—	bradou	o	monarca,	visivelmente	nervoso.
—	E,	senhor...	Causou-me	espécie	o	fato	de	que	eles	foram	uníssonos	em
dizer	 que	 aqui	 estavam	 para	 visitar	 um	 rei	 —	 afirmou	 o	 chefe	 da	 guarda
mercenária.
—	“Um”	rei	ou	“o”	rei?	—	insistiu	Herodes.
—	Meu...	—	gaguejou	o	oficial.	—	Segundo	eles,	o	nobre	a	que	aludiam
estaria	prestes	a	nascer.	E	em	Belém	—	completou	com	latente	desconforto.
Herodes	ficou	aterrorizado,	afinal	tudo	parecia	se	encaixar.	Na	sequência,
ele	deu	ordens	ao	armígero:
—	Capitão	Khamal,	 encontres	 esses	magos	 e	 os	 espreites.	 E	 caso	 o	 tal
“rei”	seja	identificado,	mantém	vigilância	sobre	ele	e	avisa-me	imediatamente!
—	Será	feito!	—	assentiu	o	miliciano,	ao	deixar	o	palácio-fortaleza.
Khamal	 se	 imiscuiu	 na	 cidade	 a	 fim	 de	 conseguir	 informações	 sobre	 o
destino	dos	três	adivinhos	e,	ao	preço	de	uma	moeda	aqui	e	outra	acolá,	soube
que	eles	haviam	saído	da	cidade	logo	após	terem	reabastecido	a	frota.
—	Eles	seguiram	o	curso	do	pórtico	—	disse	um	cambista	fazendo	alusão
à	entrada	da	urbe.	—	E	eu	ouvi,	de	um	dos	servos	da	comitiva,	que	estariam	a
caminho	de	Belém.
Seguindo	 a	 pista	 auferida,	 o	 vil	 capitão	 da	 guarda	 transpôs	 a	 Porta	 dos
Jardins[27]	a	 fim	de	 tentar	alcançar	os	seus	alvos.	Já	era	final	de	 tarde,	dentre	o
intervalo	 em	 que	 vira	 os	 magos	 pela	 manhã,	 cerca	 de	 seis	 ou	 sete	 horas	 já
haviam	se	passado,	talvez	tempo	suficiente	para	estarem	bem	longe	dali.	Tendo	a
noite	finalmente	caído,	o	agente	real	não	se	deu	por	vencido	e,	ao	aportar	numa
região	rochosa,	já	beirando	a	cidade	de	Belém,	viu	o	comboio	estacionado	diante
de	 uma	 gruta,	 onde	 uma	 mulher,	 ou	 melhor,	 uma	 menina,	 tinha	 uma	 criança
recém-nascida	nos	braços.
—	 Será	 esse	 o	 tal	 rei	 dos	 judeus?	 —	 pensou	 ironicamente	 ao	 ver	 os
magos,	iluminados	por	tochas,	ofertarem	presentes	a	ele.	—	Se	for,	o	seu	reinado
está	prestes	a	terminar	—	sussurrou,	com	um	sorriso	funesto	no	rosto.
Tudo	então	se	fechava.	Bastaria	uma	tímida	guarnição	para	colocar	fim	a
todos	os	que	lá	estavam,	inclusive	os	pomposos	membros	daquela	intrusa	frota
persa.	Como	 Jerusalém	não	 estava	muito	 distante,	 seria	 uma	 questão	 de	 horas
para	que	 tudo	estivesse,	por	assim	dizer,	 “definitivamente	 resolvido”	em	nome
de	Herodes	I.
O	 sinistro	 oficial,	 até	 então	 camuflado	 por	 trás	 de	 alguns	 arbustos,
levantou-se	 para	 retornar	 ao	 palácio	 e	 executar	 o	 tramado,	 mas,	 ao	 se	 virar,
deparou-se	 com	 uma	 presença	 quimérica,	 a	 qual,	 de	 pronto,	 o	 interpelou	 pelo
nome.
—	Khamal?
O	espião	 sequer	 teve	 tempo	hábil	 para	 tomar	 fôlego	ou	 envergar	 armas,
pois	ao	arregalar	os	olhos	diante	daquele	ser,	teve	a	cabeça	desraigada	do	corpo,
o	qual,	sem	o	suporte	do	sistema	nervoso	central,	caiu	instantaneamente	inerte.
Com	a	 sua	 espada	 resplandecente	 segura	 na	mão	direita,	 a	mesma	 arma
que,	 dias	 antes,	 havia	 destroçado	 três	 violentadores	 que	 tencionavam	 atentar
contra	Maria,	 o	Anjo	Gabriel	 se	mantinha	 firme	 em	 sua	 vigília	 e,	mesmo	não
sendo	um	vingador[28],	ele	estava	a	agir	como	um.	Na	qualidade	de	mensageiro,
ele	 não	 era,	 por	 assim	 dizer,	 “um	 anjo	 de	 armas”,	mas	 quando	 necessário,	 as
dominava	 como	 poucos.	 Que	 o	 dissessem	 os	 seus	 finados	 irmãos	 Belial	 e
Belphegor	—	este,	ex-líder	da	ordem	dos	principados	—	os	quais	foram	mortos
pelas	 suas	 mãos	 na	 Segunda	 Batalha	 Etérea	 que	 culminou	 com	 a	 queda	 de
Lúcifer	e	um	terço	dos	anjos	que	o	seguiram,	em	revolta,	quando	do	nascimento
de	Adão.
Pelo	 visto,	Herodes	 I	 não	 seria	 avisado.	Mas,	 por	 prudência,	 caberia	 ao
carteiro	celeste	acelerar	a	partida	do	casal	e	da	criança	daquelas	bandas,	afinal,	o
perigo	ali	lhes	haveria	de	ser	constante.
Não	 demorou	 muito,	 e	 os	 três	 reis	 magos,	 igualmente	 preocupados,
retomaram	 o	 caminho	 que	 lhes	 cabia;	 afinal,	 eles	 desconfiavam	 que	 Herodes
tentaria	interceptá-los,	como	de	fato	havia	tentado.
Tão	 logo	 José,	Maria	 e	 Jesus	 se	 recolheram	 ao	 estábulo	 e	 dormiram,	 o
velho	 foi,	 sem	 demora,	 visitado	 por	 um	 sono	 deveras	 agitado,	 e	 vendo-se
perambulando	perdido	numa	cidade	onde	as	pessoas	corriam	desesperadas	e	sem
rumo,	sentiu	um	toque	no	seu	ombro	esquerdo.	Pois	sem	virar	o	rosto,	ouviu	do
misterioso	interlocutor:
—	Um	vento	de	morte	se	aproxima	daqui,	meu	amigo.	Portanto,toma	a
mulher	e	o	menino	e	foge	ainda	hoje	para	o	vale	do	Nilo[29].
Ao	 tentar	 identificar	 o	 autor	 do	 aviso,	 uma	 luz	 desmedida	 repercutiu
fortemente	sobre	ele,	fazendo	com	que	acordasse	de	forma	repentina.	Assustada,
Maria	também	despertou	e	foi,	de	pronto,	alertada.
—	 Mulher,	 eu	 creio	 que	 aquele	 santo	 anjo	 de	 Deus	 falou	 comigo
novamente	—	asseverou,	arfando.	—	Ele	me	disse	que,	onde	estamos,	corremos
perigo;	portanto,	pega	o	menino,	e	vamos	fugir.
—	Mas	fugir	para	onde,	José?	—	indagou	ainda	sonolenta.
—	Para	longe,	Maria...	Para	o	Egito[30]!
	
*	*	*
	
Preocupado	 com	 a	 demora	 de	 Khamal,	 o	 Rei	 Herodes	 mandou	 alguns
batedores	atrás	dele,	 tal	não	sendo	a	sua	surpresa	ao	constatar	que	os	mesmos,
horas	depois,	retornaram	munidos	de	notícias	pouco	alvissareiras.
—	 Senhor,	 seguimos	 os	 rastros	 deixados	 pelo	 Capitão	 Khamal	 e	 o
encontramos	morto	além	dos	muros	da	cidade,	próximo	ao	antigo	estábulo	que
antecede	Belém.	E	o	que	é	estranho,	a	cabeça	dele	foi	extirpada	do	corpo,	mas	os
seus	pertences	estavam	intocados	—	lamentou	um	graduado.	—	Entretanto...,	a
arma	usada	para	o	 feito...	Confesso	que	 jamais	havia	visto	um	corte	dotado	de
tamanha	precisão	—	ponderou	confuso.
—	 Assassinado	 por	 uma	 arma	 especial,	 quiçá	 “santa”?	—	 interpelou	 o
monarca.	—	Pois	pelo	que	eu	estou	a	perceber,	algo	de	verdadeiramente	perigoso
repercute	sobre	nós...	—	ponderou,	preocupado.
—	Ordens,	senhor?	—	indagou	um	dos	guardas.
—	Ordens...	—	repetiu.	—	Sim,	eu	as	tenho.	Essa	tal	criança	já	se	revelou
numa	 séria	 ameaça,	 e	 precisa	 ser	 exterminada	 o	 mais	 rápido	 possível.	—	 Os
soldados	 olharam	 uns	 para	 os	 outros	 como	 se	 já	 previssem	 o	 teor	 da
determinação	que	estava	por	vir.	—	Pois	hei	de	acabar	com	as	esperanças	desses
agitadores	 de	 uma	 vez	 por	 todas.	 Escriba	 real!	—	 bradou	 em	 cólera.	—	Que
fique	consignado	que	eu,	o	Rei	Herodes	I,	imbuído	do	dever	de	manter	segura	a
coroa	 da	 Judeia,	 sentencio	 de	 morte	 todos	 os	 recém-nascidos	 das	 cercanias,
sejam	eles	do	sexo	que	forem.
Ídmas,	o	escrivão	do	palácio,	anotou,	trêmulo,	o	tal	decreto,	cuja	carga	de
crueldade	 havia	 transposto	 todas	 as	 sandices	 já	 anteriormente	 encetadas	 pelo
monarca,	como,	por	exemplo,	o	assassinato	da	esposa	e	a	degola	de	dois	filhos
seus	 com	 ela.	 Mas	 por	 serem	 mercenários,	 os	 soldados	 se	 entregavam	 por
qualquer	preço	e,	tendo	Herodes	lhes	ofertado	cinquenta	denários[31]	a	mais	pela
atroz	missão,	eles	deixaram	o	alcácer	ávidos	por	sangue.
Pois	o	cruento	monarca,	 já	muito	doente	e	com	várias	gangrenas	ocultas
sob	os	trajes	reais,	haveria	de	pagar	muito	caro	pela	autoria	daquelas	mortes	que,
por	obra	dele,	estavam	prestes	a	acontecer.
	
*	*	*
	
O	 silêncio	 que	 pairava	 sobre	 a	 adormecida	 cidade	 de	 Jerusalém	 foi
rompido	 pelo	 som	 de	 inúmeros	 cascos	 que	 se	 chocavam	 velozmente	 contra	 o
chão.	Relinchando	agressivamente,	os	cavalos	da	milícia	 real	 transportavam	os
arautos	da	morte,	cujas	armas	envergavam	sede	por	sangue	inocente,	e	foi	então
que	a	paz	daqueles	lares	humildes	foi	de	uma	só	feita	rompida.
Os	soldados	se	puseram	a	cumprir	a	cruel	sentença	do	rei	e	a	matar	todas
as	crianças	de	pouca	 idade,	a	maioria	em	seus	berços	ou	nos	braços	das	mães,
cujo	desespero	as	punha	 insanas.	Os	homens	que	 tentavam	opor	 resistência	ao
ato	eram	mortos	de	forma	gratuita,	tamanha	a	agressividade	daquele	vil	exército
que	parecia	ter	saído	do	próprio	Inferno.
Ao	 término	da	 chacina	 operada	por	Herodes	 I,	 a	 Judeia	 experimentou	o
mais	atroz	banho	de	sangue	da	sua	história,	cujas	consequências,	ao	menos	para
o	tirano,	seriam	graves,	bem	graves.
	
*	*	*
	
Jany-El	era	procurador	do	prefeito	do	Éden	Espiritual,	o	Arcanjo	Zuriel.
Este,	ante	a	inesperada	chegada	de	centenas	de	almas	vindas	da	região	da	Judeia,
e	 não	 possuindo	 registros	 de	 batalhas	 ou	 ações	 dos	 vingadores	 por	 lá,
surpreendeu-se	sobremaneira	e	emprestou	parte	dos	fatos	ao	seu	interlocutor	no
Céu,	no	afã	de	auferir	algum	posicionamento	superior	a	respeito.
Após	uma	breve	perquirição,	Jany-El	descobriu	que	a	referida	adversidade
teria	ocorrido	em	 razão	de	uma	 investida	ordenada	pelo	Rei	Herodes	 I,	o	qual
tencionava	assassinar	o	futuro	Messias,	cujo	avatar,	naquela	região	da	Terra,	 já
era	titulado	pelo	Arcanjo	Miguel.
Numa	 audiência	 com	 o	 Altíssimo,	 o	 representante	 do	 alcaide	 do	 novo
paraíso	ficou	deveras	apreensivo	com	a	furiosa	reação	Dele:
—	Aquele	 tirano	 selvagem!	 Como	 ousou	 fazer	 o	 que	 fez?	—	 bradou	 o
Etéreo,	fazendo	o	salão	do	trono	tremer.	—	Pois	é	chegado	o	tempo	de	Herodes
responder	 por	 todos	 os	 males	 que	 já	 causou,	 seja	 em	 obras	 ou	 mesmo	 em
pensamentos.
—	 Meu	 Senhor,	 o	 Prefeito	 Zuriel	 requer	 orientações	 sobre	 a	 grande
quantidade	de	almas	que	aportou	no	Éden	Espiritual	sem	se	desligar	da	matéria,
por	isso	eu	tomei	a	cautela	de	vir	consultá-Lo	sobre	o	destino	delas.
—	Que	sigam	na	ala	de	transição	curativa	até	segunda	ordem.
—	Transmitirei	o	determinado,	Senhor.	E	quanto	ao	tal	humano;	Herodes?
—	O	seu	destino	já	foi	traçado.	E	pela	morte	das	crianças	eu	decreto	luto
de	dez	anos	terrenos	até	que	a	Judeia	se	limpe	do	sangue	delas	—	asseverou.	—
E	Jany-El,	ao	deixar-me,	diz	a	Laoviah	que	eu	quero	vê-lo	imediatamente.
—	Sim,	Senhor	—	acatou	dando	meia	volta.
Ao	 ganhar	 a	 antecâmara,	 o	 arcanjo	 emprestou	 a	 recém-auferida
deliberação	 ao	 dito	 ajudante	 de	 ordens	 da	Guarda	Negra,	 pouco	mais	 que	 um
meninote	em	aparência,	que,	de	pronto,	apresentou-se	ao	Elevado,	e	Dele	ouviu:
—	Laoviah,	despacha	dois	oficiais	de	 justiça	até	a	Câmara	de	Guf.	Eles
deverão	dar	ciência	a	Razyel	que,	em	breve,	lá	irá	aportar	uma	alma	marcada,	a
qual	deverá	ser,	sumariamente,	levada	ao	 furnorum[32],	onde	deverá	permanecer
cerrada	e	esquecida	até	o	dia	do	julgamento	final.
—	Como	queira	—	assentiu	o	querubim,	já	sabedor	de	que	aquele	destino
era	apenas	reservado	aos	humanos	dotados	de	uma	perversão	tal,	que	sequer	as
frias	celas	da	Tesouraria	das	Almas	os	admitia	para	uma	pena	pré-estabelecida.
—	E	mais,	 filho,	chama	o	capitão	da	Guarda	aqui,	eu	 tenho	um	encargo
especial	para	ele.
“Capitão	 Caliel”,	 pensou	 Laoviah,	 pávido.	 Pois	 diante	 daquela
convocação,	 o	 trágico	 fim	 do	 Rei	 Herodes	 I,	 autor	 de	 tantos	 crimes	 e	 atos
aberrantes,	parecia	estar	definitiva	e	dolorosamente	selado.
	
*	*	*
	
Satisfeito	 com	 o	 odioso	massacre	 das	 crianças,	 o	 traiçoeiro	 regente	 dos
judeus	embebia-se	com	um	vinho	cuja	cor	escarlate	remetia	ao	sangue	que,	por
obra	dele,	havia	 jorrado	naquelas	bandas.	Convicto	de	que,	dentre	os	 inúmeros
assassinados,	estava	o	anunciado	redentor	que	lhe	tomaria	o	trono,	ele	se	deixou
tomar	pelos	excessos	e,	após	ter	expulsado	a	corte	para	se	revigorar	—	“O	forte
só	 é	 forte	 sozinho!”,	 berrava	—	Herodes	 I	 se	 esparramou	no	 assento	 real	 e	 se
rejubilou.
—	Malditas	crianças	—	balbuciava	em	meio	a	um	gole	e	outro	da	bebida.
—	Que	morram	todas!	—	finalizou,	jogando	um	copo	no	meio	do	salão	vazio.
Mesmo	estando	entorpecido	pela	ação	da	bebida,	ele	percebeu,	com	certo
espanto,	 que	 por	 trás	 das	 cortinas	 transparentes	 que	 cercavam	 a	 galeria	 real,
pequenos	 rostos	 infantis	 começaram	 a	 brotar,	 logo	 sumindo	 quando	 eram
diretamente	encarados.
Herodes	 se	 levantou	 sem	 muita	 firmeza	 e,	 buscando	 identificar	 o	 que
enxergava	por	 entre	 os	 véus,	 esboçou	 se	 aproximar.	O	vento	 então	 começou	 a
erguê-los	e	misturá-los,	 revelando	novamente,	diversas	 faces	de	crianças,	cujas
aparências	 não	 denotavam	 ser	 tão	 diferentes	 daquelas	 que	 haviam	 sido
executadas	por	ordem	dele.	E	quanto	mais	o	monarca	se	aproximava,	mais	elas
se	 expunham	e	 se	 escondiam,	 rindo	 como	 se	 zombassem	do	 estado	deplorável
em	que	ele	se	encontrava.	Seriam	alucinações	causadas	pelo	excesso	do	vinho?
Pois	 de	 parcas,	 aquelas	 risadas	 se	 tornaram	 estridentes,	 generalizadas	 e,
como	numa	desafinada	sinfonia,	invadiram	a	mente	mórbida	do	rei.	Já	estando,	o
rei,	naiminência	de	esmaecer,	de	repente,	 fez-se	um	silêncio	abrupto,	e	aquele
bando	de	crianças	que	o	cercava	simplesmente	sumiu.
—	Eu	devo	estar	ficando	louco...	—	refletiu	para	si	próprio,	ao	golpear	as
cortinas	na	tentativa	de	encontrar	ao	menos	um	daqueles	espectros	que	pareciam
assombrá-lo.	—	Louco!	—	completou	escumando.
Mas	ao	se	virar	para	retornar	ao	trono,	ele	viu,	estagnada	diante	de	si,	uma
menina	de	bem	pouca	idade,	a	qual,	demonstrando	certa	passividade,	levantou	o
belo	 rosto	 devagar	 e,	 passando	 a	 rir	 copiosamente	 para	 ele,	 a	 pequenina	 se
manteve	com	as	mãos	para	trás	e	balançando	o	corpo,	como	se	pedisse	atenção
pelos	gracejos	que	fazia.
Encolerizado,	o	maligno	rei	sacou	um	punhal	que	mantinha	secretamente
preso	 num	bracelete	 e	 passou	 a	 cambalear	 na	 direção	 da	menina,	mas	 quando
finalmente	 se	 achegou	 da	 tal	 criança,	 aquele	 riso	 pueril	 sumiu,	 dando	 lugar	 a
uma	expressão	facial	aterrorizante	e	digna	de	pavor.
Assustado,	ele	caminhou	para	trás	e	deu	às	costas	para	aquela	aparição,	tal
não	sendo	a	sua	surpresa	ao	lidar	de	frente	com	outras	tantas	crianças,	cerca	de
dez	 ao	 total,	 os	 quais,	 envergando	 vestimentas	 negras	 com	 adornos	 dourados,
tinham	o	semblante	bem	menos	simpático	do	que	o	daquela.
Vendo-se	 cercado,	 ele	 deixou	 a	 faca	 cair,	 momento	 no	 qual	 um	 dos
pequenos	presente,	exatamente	o	primeiro	que	lhe	havia	chamado	a	atenção,	fez
surgir,	 do	 ar,	 uma	 foice	 de	 fogo	 que,	 de	 imediato,	 lhe	 transpassou	 a	 perna
esquerda.	Embora	emitindo	um	urro	lancinante,	ninguém	pareceu	ouvi-lo.	Ainda
se	 equilibrando	 com	 latente	 dificuldade,	 viu	 outra	 daquelas	 criaturas	 se
aproximar	e	lhe	arrancar	a	perna	direita,	fazendo-o	finalmente	tombar	ao	chão.
Como	 mariposas	 na	 luz,	 aquelas	 entidades	 avançaram	 com	 ferocidade
sobre	o	corpo	doente	de	Herodes	I	e,	com	suas	lâminas	fulgurantes,	começaram
a	 esquartejá-lo	 com	 uma	 violência	 incrível,	 fazendo	 com	 que,	 ao	 final	 da
investida,	 apenas	pedaços	da	carne	apodrecida	 remanescessem	espalhadas	pelo
salão.
Após	ter	matado	centenas	de	crianças	inocentes,	Deus	usou	as	Suas	—	o
implacável	Capitão	Caliel	e	mais	dez	pequenos	camareiros	da	Guarda	Negra	—
para	desforrar	àquelas,	cujos	espíritos	acalentados	e	em	recuperação	já	estavam
em	 paz	 no	 Éden	 Espiritual.	 Tão	 logo	 concluíram	 a	missão	—	 para	 eles,	 algo
similar	 a	 uma	 peraltice	 —,	 aqueles	 onze	 sanguinários	 querubins	 deixaram	 o
palácio	e	ganharam	as	alturas	com	divisada	rapidez,	cortando	a	luz	refletida	na
lua	e	sumindo	sem	deixar	rastros	no	meio	da	escuridão	que	encobria	a	cidade	de
Jerusalém.
Inesperadamente	 desperto	 por	 um	 terrível	 pesadelo,	 um	 dos	 filhos	 do
finado,	 o	 príncipe	 Herodes	 Antipas,	 deixou	 o	 leito,	 assustado,	 e	 ganhou	 as
galerias	que	davam	acesso	ao	espaço	do	trono,	pois	algo	parecia	ter	acontecido.
Lá	 chegando,	 ele	 se	deparou	 com	os	 restos	do	que	outrora	havia	 sido	o	pai	 e,
temeroso	 com	 a	 severidade	 de	 um	 inquérito	 romano	 a	 respeito,	 afinal	 aquela
cena	de	morte	beirava	o	surreal,	ele	e	os	demais	irmãos	decidiram	cremar	o	que
havia	 sobrado	 do	 rei	 e,	 em	 seguida,	 reportar	 a	 César	 Augusto	 que	 ele	 havia
morrido	em	razão	das	graves	doenças	que	o	acometiam.
Herodes	 I	 havia	 sido,	 enfim,	 destruído;	 fulminado	 em	 razão	 dos	 seus
próprios	pecados.	E	pelos	crimes	dele,	os	seus	três	filhos	acabaram	dividindo	a
coroa	 de	 Israel.	 O	 despótico	 Herodes	 Arquelau	 ficou	 com	 a	 Judeia,	 donde
acabaria	 banido	 e	 substituído	 pelo	 político	 romano	 Copônio;	 Filipe,	 com	 a
Traconítida;	e	Herodes	Antipas,	o	mais	astuto	deles,	com	a	Pereia	e	a	Galileia,
esta	última,	a	nação	onde	Jesus,	muito	em	breve,	haveria	de	se	fazer	homem.
	
Capítulo	2
Um	guerreiro	sem	armas
A	NOTÍCIA	DA	AUSÊNCIA	de	Miguel	correu	 depressa	 e,	 no	Quartel	General
dos	 arcanjos,	 muitos	 ficaram	 apreensivos.	 Embora	 a	 dolorosa	 cerimônia	 de
emasculação	 dos	 vigilantes[33]	 tivesse,	 de	 certa	maneira,	 pacificado	 o	 Céu,	 era
certo	que	alguns	celestes	desgostosos	não	teriam	muito	a	perder	num	levante	de
menor	 escala;	 dentre	os	quais,	 o	próprio	 anjo	Azeyzel,	 havia	muito,	 ávido	por
encontrar	alguma	 falha	na	segurança	da	sua	cela,	ocupada	desde	que	ele	havia
sido	 repatriado	da	Terra	 e	 preso	 por	 traição	 aos	mandamentos	 do	Eterno.	Pois
agora,	vendo,	diante	de	si,	uma	oportunidade	de	agir	—	o	escrivão-real	passando
por	um	dos	corredores	do	cárcere	após	findar	o	 interrogatório	de	um	detido	—
ele	não	se	fez	de	rogado.
—	Salve,	Metatron!	—	disse-lhe	o	prisioneiro.
Ao	dirigir	o	olhar	para	o	 local	de	onde	vinha	o	brado,	o	dito	 arcanjo	 se
deixou	trair	por	um	instante:
—	Azeyzel?	—	 respondeu	parando	 a	marcha.	—	Pelo	que	percebo,	 não
ficaste	tão	apático	quanto	os	demais	—	completou	em	referência	à	euforia	que	a
deposta	potência	ainda	mantinha,	mesmo	após	ter	sido	castrada	em	razão	de	ter
bulido	com	as	humanas	num	passado	não	tão	recente.
—	A	apatia	nunca	foi	uma	característica	minha,	caro	irmão.	Mas	me	diz,	a
quantas	 andam	 os	 vossos	 preciosos	 livros?	 —	 indagou	 em	 alusão	 aos	 seis
cartapácios	sobre	a	história	do	nascimento	da	humanidade	que	Metatron,	havia
muito,	compilava	por	ordem	de	Miguel.
—	Escrevem-se	sozinhos	—	retrucou	secamente.
—	 Isso	 é	 bom.	Mas	 embora	 eu	 tenha	 dito	muita	 coisa	 quando	 do	meu
primeiro	interrogatório,	existem	alguns	pontos	de	relevo	que	inicialmente	omiti,
mas	que	agora	gostaria	de	compartilhar	contigo.
Obcecado	 pelo	 desejo	 de	 deixar	 a	 sua	 obra	 cada	 vez	 mais	 completa,
Metatron	resolveu	dar-lhe	atenção	e	se	aproximou	do	alvéolo.
—	E	por	que	desejas	falar	somente	agora?	—	desconfiou.
—	Irmão,	 eu	 já	não	 represento	perigo	algum	—	disse,	mostrando-lhe	 as
costas	marcadas	pelo	ferro	quente	que	lhe	havia	tolhido	as	asas.	—	Mas	se,	por
acaso,	eu	conseguisse	progredir	para	um	regime	mais	brando,	talvez	eu	pudesse
ajudar-te	em	mais	alguma	coisa,	além	de	dar	melhor	forma	à	tua	preciosa	escrita.
—	De	fato,	há	muito	que	aí	estás	sem	causar	incidentes	—	assentiu.	—	Eu
não	posso	comutar	a	 tua	pena,	mas	não	vejo	problemas	em	ter-te	na	biblioteca
prestando	pequenos	serviços,	afinal,	tolhido,	não	tens	como	fugir.
—	Pois	então,	Metatron,	mostra	um	pouco	de	piedade	e	me	ajuda	a	sair
temporariamente	 deste	 lugar,	 nem	 que	 seja	 para	 limpar	 as	 estantes	 da	 grande
livraria	—	sugestionou	com	aparente	humor.
—	 No	 momento	 tenho	 outros	 afazeres,	 mas	 quem	 sabe	 eu	 peticione
solicitando	o	que	me	pedes	—	esclareceu	na	sequência.
A	segregada	potência	agradeceu	com	um	singelo	movimento	de	cabeça	e
se	 deu,	 aparentemente,	 por	 satisfeita	 pela	 atenção	 recebida	 e,	 com	 um	 sorriso
falso,	viu	o	arcanjo	se	afastar	e	sumir	nas	austeras	galerias.
Azeyzel	estava	inquieto,	pois	mesmo	depois	de	tanto	tempo	de	prisão,	ele
ainda	 tinha	 a	 ex-companheira	 na	mente,	 a	 inebriante	 Layla-Li[34].	 E	 por	 conta
disso,	ele	faria	de	tudo	para	tentar	escapar	do	Céu	e	ir	procurá-la,	onde	quer	que
a	alma	perdida	dela,	finda	na	época	do	dilúvio	universal,	estivesse.
	
*	*	*
	
Não	fosse	pela	constante	proteção	do	sempre	presente	Gabriel,	certamente
a	 família	 abençoada	 não	 teria	 vencido	 a	 perigosa	 marcha	 de	 mais	 de
quatrocentos	quilômetros	até	as	fronteiras	de	Gazzah,	vilarejo	egípcio	que,	assim
como	os	bairros	hebreus	de	Matarieh	e	Heliópolis,	lhes	serviria	de	lar	pelos	dez
anos	seguinte,	período	necessário	para	que	as	bandas	da	Judeia	se	limpassem	do
sangue	inocente	que	Herodes	I	havia	derramado.
Alguns	anos	após	a	morte	da	mítica	rainha	Cleópatra,	o	Egito	passou	ao
jugo	 de	 Roma,	 e	 foi	 nessa	 realidade	 que	 José,	 Maria	 e	 o	 menino	 Jesus	 lá
chegaram;	exaustos,	mas	incólumes.
Como	 se	 previa,	 as	 ruas	 estavam	 infestadas	 de	 soldados	 romanos
pertencentes	às	Legiões	lá	estacionadas,	os	quais	se	encarregavam	de	policiar	a
cidade	 e	 pregar	 nas	 cruzes	 os	 insurgentes	 mais	 afoitos.	 Os	 centuriões	 que
serviam	no	Egito	eram	deveras	experientes,	mas	a	grata	maioria	da	soldadescaera	 recém-arregimentada,	 principalmente	 a	 destacada	 para	 as	 áreas	 hebreias,
consideradas	mais	hostis.
Assistido	pela	 solidariedade	dos	 seus	compatriotas,	 José	conseguiu,	para
si,	um	casebre	humilde	onde	passou	a	oferecer	serviços	de	carpinteiro,	e	Maria,
de	lavadeira.	Tudo	parecia	conspirar	para	uma	vida	normal,	sem	quaisquer	luxos
ou	maiores	teres,	até	que	Jesus,	cujo	brilho	da	alma	era	perceptível,	finalmente
começou	a	dar	mostras	de	que	era	especial.
Como	 de	 costume,	 a	 menina	 Maria,	 agora	 já	 contando	 com	 treze	 para
quatorze	 anos	 de	 idade,	 percorria	 as	 vielas	 para	 entregar	 as	 roupas	 que	 lavava
para	 as	 senhoras	 egípcias	 e,	 mesmo	 ainda	 bem	 pequeno,	 Jesus	 seguia	 sempre
junto	dela,	preso	a	um	conjunto	de	panos	 trançados	que	o	deixavam	seguro	no
colo	da	mãe.
Sempre	que	podia,	a	virgem	deixava	alguma	esmola	para	o	velho	Jendayi,
um	 egípcio	 cego	 que	 costumava	 mendigar	 nas	 imediações	 da	 urbe.	 Embora
maltratado	 e	malcheiroso,	 isso	 não	 a	 impedia	 de	 se	 achegar	 e	 lhe	 entregar	 ao
menos	 um	 pequeno	 pedaço	 de	 pão,	 ato	 que	 causava	 repulsa	 aos	 mais
conservadores,	 mormente	 os	 que	 acreditavam	 na	 impureza	 dele	 em	 razão	 dos
seus	 pecados	 pretéritos,	 o	 que,	 sob	 certo	 ponto	 de	 vista,	 não	 deixava	 de	 ser
verdade.	Mas	enfim,	o	pobre	nada	mais	era	do	que	uma	vítima	do	paganismo	que
o	havia	acometido	no	passado.
—	Muito	obrigado,	que	os	“deuses”	te	acompanhem	—	respondia	mesmo
sem	poder	enxergá-la.
Pois	naquele	dia,	ao	se	afastar	do	ancião	com	o	filho	no	colo,	Maria	parou
mais	à	 frente	para	acomodar	Jesus	e	o	privou	rapidamente	de	um	arremedo	de
xale	que	 lhe	 cobria	 a	 cabeça.	O	vento	passou	 sorrateiro	 e	 levou	aquela	manta,
fazendo	 com	 que	Maria	 esboçasse	 reavê-la	 ainda	 no	 ar.	Mas	 após	 dar	 alguns
passos,	ela	percebeu	que	aquele	pedaço	de	pano	havia	ganho	velocidade	e,	logo
adiante,	impactado	o	rosto	daquele	pedinte.	Ao	se	reaproximar	constatou	quando
o	dito	mendigo	sentiu	o	fragmento	da	veste	cair	sobre	a	sua	face,	o	qual,	ao	ser
retirado,	revelou	que	as	escaras	que	lhe	vedavam	os	olhos	haviam	desaparecido.
Assustada,	Maria	não	 teve	coragem	de	permanecer	ali	por	muito	 tempo,
pois,	ao	observar	o	olhar	limpo	e	marejado	daquele	velho	a	fitá-la	com	emoção,
ficou	atônita	e	se	afastou,	afinal,	com	a	chegança	dos	curiosos,	ela	 temeu	pelo
juízo	que	fizessem	dela	e	do	filho,	a	quem,	em	segredo,	sabia	ser	o	profetizado
Messias.
Ao	retornar	para	casa,	ela	relatou	o	ocorrido	ao	esposo	e,	olhando	para	o
menino	 ainda	 pequeno,	 ambos	 perceberam	 que	 a	 missão	 dele	 era
verdadeiramente	sagrada.	Instado	sobre	como	tudo	se	sucederia	dali	por	diante,
José	respondeu:
—	Isso	é	apenas	o	começo,	Maria.	Apenas	o	começo.
	
*	*	*
	
A	 casa	 de	 Judah	 de	 Migdal,	 príncipe	 da	 província	 de	 Magdala,	 havia
ganhado	novo	brilho	com	o	nascimento,	alguns	dias	antes,	da	pequena	Mirian.
Era	 ela,	 em	 segredo,	 a	 detentora	da	 alma	 entregue	 aos	 cuidados	de	Gabriel	 na
Câmara	de	Guf,	o	espírito	 liberto	da	primeira	mulher	moldada	na	Terra,	Lilith,
ex-esposa	de	Adão.
Entretanto,	 doze	 anos	 antes,	 o	 soberano	 de	 Magdala	 já	 havia	 sido
agraciado	com	outra	filha,	Martha,	a	qual,	desprovida	de	beleza	e	contaminada
pela	 inveja	desde	os	 tenros	anos,	 jamais	haveria	de	enxergar	 a	nova	 irmã	com
bons	 olhos.	 Martha	 era	 cruel	 e	 moralmente	 distorcida,	 judiava	 de	 pequenos
animais	 e,	 na	mesma	 toada,	 dos	 próprios	 servos	 do	 pai,	 os	 quais	 destratava	 e
desprezava.
Pois	Mirian	haveria	de	ser	o	oposto	dela,	e	quando	os	anos	começaram	a
ser	 superados,	 ela	 passou	 a	 mostrar	 incrível	 familiaridade	 com	 as	 plantas	 e
flores,	 sempre	 dispostas	 como	 enfeites	 nos	 seus	 longos	 cabelos	 negros.	 Ela
também	 tinha	 por	 costume	 colocar	 frutas	 da	 própria	 mesa,	 numa	 bandeja,	 e
distribuí-las	entre	os	empregados	da	casa	e,	não	raro,	escapava	do	palácio	e	fazia
o	mesmo	com	os	menos	favorecidos.	Certa	feita,	a	sua	perversa	irmã	queimou	a
mão	 de	 um	 dos	 servos	 de	 Judah	 e,	mesmo	 ainda	 tendo	 cerca	 de	 sete	 anos	 de
idade,	Mirian	fragmentou	um	galho	de	Aloe	Vera[35]	e	besuntou	a	ferida,	a	qual,
em	poucos	dias,	regrediu	e	sumiu	de	maneira	inacreditável.
Entretanto,	 Mirian	 havia	 nascido	 com	 uma	 doença	 um	 tanto
incompreendida	 naqueles	 dias,	 a	 epilepsia.	Em	 razão	 disso,	Martha	 via	 as	 não
raras	crises	convulsivas	da	irmã	como	algo	antinatural,	 talvez	ligado	ao	mundo
oculto,	o	que	a	mantinha	longe	dela.
Mirian	 aparentava	 ter	 os	 olhos	 azuis	 perdidos	 e,	 mesmo	 cercada	 de
riquezas,	 não	 se	 mostrava	 feliz	 com	 a	 abastada	 vida	 que	 levava,	 pois	 o	 seu
coração,	 embora	 bom	 e	 caridoso,	 parecia	 vazio.	 E	 mesmo	 ainda	 criança,	 ela
chamava	 a	 atenção	 de	muitos	 reis	 que	 desejavam	vê-la	 como	 a	 prometida	 dos
seus	filhos,	o	que	incomodava,	em	muito,	a	sua	desafortunada	irmã.	Mas	Judah
recusava	todas	as	investidas,	e	de	igual	forma,	os	polpudos	dotes,	pois,	no	fundo,
acreditava	 que	 os	 caminhos	 da	 filha	menor	 seriam	 outros	 que	 não	 os	 de	 uma
mera	consorte	passiva.
E	 assim,	 lidando	 com	os	 elementos	 da	Terra,	 ela	 haveria	 de	 suplantar	 a
infância,	oportunidade	em	que	a	vida	 começaria	 a	 testá-la.	Mirian	de	Magdala
ainda	não	sabia,	mas	aquela	seria	a	primeira	e	a	última	chance	que	Deus	daria	à
sua	alma,	que	havia	muito	tinha	sido	marcada,	ainda	no	início	dos	tempos.
	
*	*	*
	
Enfim,	passaram-se	dez	anos	desde	que	a	família	sagrada	havia	fugido	de
Jerusalém	após	um	aviso	do	anjo	Gabriel.	E	nas	bandas	do	Egito,	o	cenário	atual
retratava	um	grupo	de	 crianças	gazeteiras	penduradas	na	 fronde	de	um	grande
choupo-preto,	 onde	 uma	 delas,	 equilibrando-se	 no	 galho	mais	 alto,	 flexionava
um	arco	rudimentar	que	abrigava	uma	flecha	cuja	ponta	metalizada	refletia	em
razão	da	luz	solar.
O	 arqueiro,	 um	 pré-adolescente	 de	 tez	 bem	 morena	 e	 sobrancelhas
grossas,	 mostrava	 particular	 intimidade	 com	 o	 artefato	 e,	 soltando
confiantemente	 a	 seta	 nele	 posta,	 viu	 quando	 ela	 cortou	 em	 cheio	 uma	 das
frondes	pinadas	do	alvo;	uma	grande	tamareira	que	já	exagerava	nos	frutos.
Tão	logo	um	dos	folíolos	se	espatifou	no	chão	seco,	os	meninos	e	meninas
correram,	ariscos,	para	resgatá-lo,	afinal	aquelas	tâmaras	agridoces	estavam	lhes
apetecendo	os	olhos	e,	agora	ali	dispostas,	seriam	devoradas	sem	qualquer	modo
ou	cerimônia.
Vendo	 os	 amigos	 satisfeitos,	 o	 tal	 “arqueiro”	 pôs	 a	 arma	 nas	 costas	 e
desceu,	com	destreza,	da	árvore,	não	demorando	muito	a	ser	agraciado	com	um
galho	 cheio	 de	 frutos	 suculentos,	 apenas	 capturados	 graças	 à	 sua	 ímpar
habilidade	 com	 aquele	 instrumento	 impulsor	 manufaturado,	 dificilmente
manejado	por	alguém	que	não	um	adulto.
Mas	enquanto	os	jovens	rumavam	para	o	vilarejo,	eles	se	desconcertaram
ao	 perceber	 que	 o	 velho	 pai	 de	 um	 deles,	 enfezado	 e	 à	 procura	 do	 filho
conhecidamente	 travesso,	os	surpreendeu	com	os	rostos	ainda	melados	por	 tais
frutas.	 Embora	 todos	 se	 pusessem	 a	 correr	 assustados,	 um	 dos	 garotos,
exatamente	o	autor	da	dita	façanha,	ficou	imóvel	ao	mirar	o	genitor	diante	de	si.
E	 ao	 ouvir	 o	 seu	 nome	 ser	 firmemente	 bradado,	 “Jesus!”,	 abaixou	 a	 cabeça	 e
quedou-se	silente.
—	Tu	não	deverias	estar	na	escola	comunal[36]?	E	quantas	vezes	eu	 já	 te
disse	que	não	te	quero	bulindo	com	armas?	—	bradou	José,	ao	tomar-lhe	o	arco
das	mãos	e	parti-lo	ao	meio	numa	das	pernas.
—	Mas,	pai,	dessa	vez,	a	minha	intenção	era	 justa;	eu	só	queria	saciar	a
fome	dos	meus	amigos...
—	A	 fome	 ou	 a	 gulodice?	—	 indagou	 num	 tom	 espirituoso.	—	Pois	 tu
devias	usar	as	habilidades	que	tens	para	aperfeiçoar-te	na	leitura	e	ajudar-me	no
ofício,	e	não	para	exibir-te	com	peças	que	podem	ferir	ou	até	matar	alguém	—
ponderou,	preocupado.
—	Tens	razão,	peço-te	desculpas.
—	Desculpas,	desculpas...	—	repetiu	José	ao	tomá-lo	pelo	braço.	—	Não
sei	 se	 já	 percebeste,	 mas	 essa	 tem	 sido	 a	 tua	 expressão	 predileta	 nos	 últimos
tempos,	não	é,	Jesus?O	rapazote	assentiu	calado	e	fechou	o	rosto.
Embora	 fosse	 um	 tanto	 peralta,	 como,	 aliás,	 eram	 todos	 os	 meninos
daquela	 idade,	 José	 acabou	 desarmando	 o	 coração,	 e	 não	 conseguiu	 continuar
com	a	severidade	daquela	reprimenda.
—	Bem,	vamos	para	casa,	a	tua	mãe	já	estava	a	perguntar	por	ti.	E	sorte
não	ter	sido	ela	a	te	encontrar,	pois	bem	sabes	que	Maria	é	muito	mais	severa	do
que	eu	—	disse	o	carpinteiro,	sorrindo.
Jesus	era	deveras	apegado	aos	pais	e,	 junto	a	José,	auferia	uma	proteção
ímpar.	Não	porque	este	—	embora	já	tendo	ultrapassado	a	casa	dos	sessenta	anos
de	 idade	—	ainda	 fosse	 um	homem	 fisicamente	 forte,	mas	 porque	 o	 amor	 e	 a
dedicação	que	o	mesmo	e	a	mulher	 tinham	para	consigo	suplantavam	qualquer
outro	sentimento.
Ao	chegarem	no	portão	do	humilde	casebre	onde	viviam,	Jesus	viu	Maria,
agora	uma	mulher	de	vinte	e	três	anos,	preparando	a	ceia.
—	Mãe!	—	bradou,	festivo,	ao	entrar	correndo	no	quintal.
—	 Jesus!	 Onde	 tu	 estavas?	 Eu	 e	 teu	 pai	 já	 estávamos	 preocupados	—
disse	ela,	sempre	atenta	às	traquinagens	do	filho.
O	rapaz	diminuiu	o	passo	e,	de	soslaio,	encarou	José.
—	Ele	já	estava	a	caminho	de	casa,	eu	não	tive	trabalho	em	encontrá-lo	—
esclareceu,	piscando	ao	rebento.
—	Tu	estás	com	o	rosto	todo	lambuzado	menino;	vai	te	lavar	—	ordenou
Maria,	já	o	tomando	pelos	ombros.	Jesus	obedeceu	e	se	debruçou	num	tanque	de
madeira,	e	a	sua	mãe,	no	afã	de	auxiliá-lo,	o	cercou	pelas	costas.	—	Ao	menos
deste	graças	pelas	 tâmaras	que	comeste?	—	disse	ela,	ao	facilmente	perceber	a
efetiva	origem	daquelas	manchas.
Envergonhado	pela	falta	—	“eu	fui	descoberto!”	—,	Jesus	fechou	os	olhos
e	declamou:
—	“Bendito	és	tu,	ó	Deus,	pelos	frutos	que	criaste”.
—	 Agora	 sim!	 Aliás,	 antes	 tarde	 do	 que	 nunca,	 não	 é,	 meu	 filho?	 —
ponderou,	ao	mandá-lo	se	sentar	à	mesa.
Percebendo	que	o	sol	já	estava	à	pique,	o	menino	fez	menção	de	avançar
sobre	 a	 ceia,	 afinal,	 ele	 tinha	outros	 “planos”	para	 aquela	 tarde.	Mas,	 ao	 fazer
isso,	acabou	novamente	repreendido,	desta	vez	pelo	pai:
—	Não	estás	se	esquecendo	de	nada,	Jesus?
Estagnando	a	mão	sobre	um	pedaço	de	pão,	o	arteiro	guri	respondeu:
—	 Mas,	 meu	 pai,	 eu	 acabei	 de	 lavar	 as	 mãos.	 Por	 que	 devo	 lavá-las
novamente?
—	Porque	é	um	costume	do	nosso	povo	que	deves	seguir.
Aparentemente	 contrariado,	 Jesus	 verteu	 água	 por	 três	 vezes	 sobre	 cada
uma	das	mãos	e,	após	enxugá-las,	abaixou	a	cabeça	e	repetiu:
—	“Venturoso	é	o	Senhor,	os	mandamentos	sagrados	Dele	vindos,	e	o	pão
que	vem	do	trigo	da	terra”	—	rezou	de	forma	automática	e	sem	ainda	aceitar	a
severidade	de	todas	aquelas	liturgias.
José	 e	 Maria	 olharam,	 orgulhosos,	 para	 o	 filho	 e	 se	 puseram	 a	 cear,
satisfeitos,	 não	 apenas	 pela	 boa	 saúde	 dele,	 mas	 pela	 sua	 inteligência	 e	 pelo
acatamento	—	ainda	que	de	certa	forma	forçado	—	das	coisas	sagradas.
Mas	Jesus	ainda	era	um	garoto	e,	como	um,	engoliu	a	 refeição	a	 fim	de
honrar	 um	 compromisso	 que	 tinha	 para	 logo	 mais.	 Assim,	 “inocentemente”
ofertando-se	para	ir	até	a	cidade	entregar	as	roupas	que	a	mãe	havia	lavado,	ele,
vez	mais,	desobedeceu	a	José	e	levou	consigo	um	gládio	de	madeira	que,	algum
tempo	antes,	havia	cunhado	à	revelia	do	pai.	Embora	disposto	a	cumprir	com	a
tarefa	 assumida,	 Jesus	 apenas	 omitiu	 o	 fato	 de	 que	 também	 iria	 encontrar	 um
amigo	um	tanto	inusitado,	o	que	talvez	não	agradasse	os	seus	pais.
Sempre	ativo	e	muito	comunicativo,	aliás,	até	por	demais,	Jesus	interagia
facilmente	com	qualquer	pessoa,	até	mesmo	com	as	consideradas	 inimigas	dos
judeus	e,	correndo	pelas	ruas	da	urbe	egípcia,	não	demorou	muito	para	que	ele
visualizasse	uma	guarnição	de	soldados	romanos	próxima	a	um	poço	d’água.	E
em	 meio	 a	 ela,	 um	 miliciano	 jovem	 e	 bem	 feito	 de	 rosto,	 mas	 com	 uma
perceptível	 deficiência	 no	 olho	 esquerdo,	 a	 qual,	 mesmo	 assim,	 não	 lhe
prejudicava	a	lida,	principalmente	num	lugar	distante	de	Roma.
Jesus	o	fitou	de	longe	e	escondeu	a	trouxa	de	roupas	atrás	de	alguns	vasos
de	barro.	O	soldado	o	replicou	com	rigor	e,	deixando	a	companhia,	premiu	o	seu
pilo,	a	famigerada	lança	padrão	da	Legião	Romana,	e	foi	na	direção	do	menino
que,	 ao	perceber	a	manobra,	 correu	para	dentro	de	um	beco	na	 tentativa	de	 se
esconder.	 O	 miliciano	 ganhou	 facilmente	 aquele	 espaço	 e,	 procurando	 pelo
fugitivo,	foi	surpreendido	com	um	forte	golpe	dado	na	sua	panturrilha,	que	o	fez
vergar	o	corpo.
—	Ora,	seu	judeuzinho	danado,	venha	até	aqui	e	eu	te	darei	uma	lição!	—
bradou	aquele	soldado	com	a	face	ruborizada.
—	Se	 és	 tão	 bom	 com	 essa	 arma;	 roga	 a	Marte[37]	 e	 vem	 pegar-me!	—
provocou	 o	 garoto	 ao,	 vez	 mais,	 investir	 contra	 ele	 com	 aquele	 gládio	 de
madeira.
Com	 o	 cabo	 da	 sua	 lança,	 a	 qual	 era	 de	 verdade,	 o	 armígero	 passou	 a
obstar	 os	 rápidos	 golpes	 efetuados	 contra	 si	 pelo	 menino.	 De	 fato,	 Jesus
demonstrava	uma	habilidade	 ímpar	com	a	“espada”	e,	quando	a	usava,	mesmo
que	 brincando,	 parecia	 incorporar	 o	 grande	 guerreiro	 celestial	 que	 ele,	 em
verdade,	 era.	 O	 instinto	 de	 combate	 lhe	 surgia	 com	 frequência,	 mormente
quando	 cunhava	 arcos,	 flechas,	 floretes	 ou	 fingia	 ser	 o	 comandante	 de	 um
exército	 imaginário	 com	 as	 demais	 crianças	 que	 o	 seguiam.	 José	 o	 repreendia
sempre,	mas	o	menino,	do	mesmo	 jeito	que	apresentava	 incrível	 facilidade	em
decorar	 as	 leis	 mosaicas,	 parecia	 ter	 verdadeira	 fascinação	 pelas	 guerras
fantasiosas	que	vivenciava	com	os	amigos.
Pois	 aquele	 jovem	 soldado	 romano,	 chamado	 Quiricus	 Longinus,	 havia
conhecido	Jesus	na	praça	da	cidade	e,	tendo	crescido	numa	família	na	qual,	até
certa	 idade,	 havia	 cuidado	 dos	 irmãos	 menores,	 “adotou”	 o	 pequeno	 como
amigo.	 E	 foi	 pensando	 na	 família	 que	 havia	 ficado	 em	 Jerusalém,	 que	 o
legionário	perdeu	momentaneamente	a	atenção	e	acabou	tendo	o	equilíbrio	das
pernas	 comprometido	 por	 astuta	 manobra	 do	 garoto,	 caindo	 no	 chão	 sob	 os
brados	de	êxito	dele:	“Marte	caiu;	marte	caiu!”.	O	soldado	então	se	“rendeu”	ao
vencedor	e	sorriu	ao	ver	a	satisfação	no	rosto	do	menino,	de	quem	parecia	muito
gostar.
—	Meu	 jovem	 amigo,	 a	 cada	 dia	 que	 passa,	 a	 tua	 habilidade	 bélica	 só
aumenta!	—	disse,	suplantado.	—	E	cá	estou	a	temer	pelo	meu	futuro;	pois,	caso
lideres	um	exército	com	a	mesma	força	que	a	tua,	serás	capaz	de	derrubar	César!
—	riu.
Jesus	 processou	 aquele	 comentário	 visivelmente	 zombeteiro	 e,	 por	 um
instante,	 ficou	 desconcertado,	 como	 se	 estivesse	 prevendo	 que,	 num	 futuro
próximo,	 ele,	 de	 fato,	 lideraria	 o	 povo	 num	 levante	 moral	 contra	 o	 império
romano,	o	qual	mudaria	o	rumo	da	história	do	mundo.
—	Achas	mesmo	que,	ao	invés	de	carpinteiro,	eu	seria	um	bom	soldado?
—	Já	o	és,	jovem	Jesus!	Agora,	a	ajuda-me	a	levantar.	Afinal,	não	condiz
com	 um	 legionário	 romano	 ficar	 à	 mercê	 de	 um	 pirralho	 assim	 como	 tu!	—
Percebendo	que	o	garoto	ficou	ressabiado,	ele	continuou.	—	Algo	te	incomoda?
—	Sabe,	amigo	Longinus,	um	dia	eu	haverei	de	ser	um	grande	soldado!
—	 disse	 quebrando	 o	 silêncio.	—	 Só	 não	 sei	 ao	 certo	 quais	 armas	 usar...	—
completou,	fazendo	pouco	daquele	arremedo	de	espada	que	tinha	em	mãos.
—	Pois	saibas	que	um	bom	soldado	é,	antes	de	tudo,	um	bom	seguidor	de
ordens.	Portanto,	elege	o	teu	comandante	e	faz	o	que	ele	disser,	somente	assim
serás	 um	 bom	 soldado!	 E	 enquanto	 esse	 dia	 não	 chega,	 cumpra	 com	 as	 tuas
tarefas,	 pois	 o	 teu	 pai	 pode	 não	 gostar	 dessa	 beligerância	 toda	 que	 carregas
dentro	de	ti.
—	Meu	Pai...	—	respondeu,	olhando	para	o	alto.	—	Um	dia	Ele	terá	muito
orgulho	de	mim,	pois	foi	para	cumprir	com	a	lida	Dele	que	eu	nasci.
—	O	que	disseste,	menino?
—	 Nada...	 —	 desconversou,	 voltando	 a	 si.	 —	 E	 tens	 mesmo	 razão,	 é
melhor	eu	correr,	pois	se	José	desconfiar	que	saí	de	casa	com	esta	espada	que	fiz,
certamente	terei	problemas.
—	Bem,	até	breve,	então.	E	não	te	esqueças	do	que	eu	disse!	—	pontuou
Longinus	ao	se	despedir.
E	 láse	 foi	 Jesus;	 tomou	 a	 trouxa	 de	 roupas	 que	 havia	 deixado	 nas
proximidades	e,	para	a	sua	sorte,	conseguiu	entregá-las	ainda	intactas.
A	caminho	de	casa,	ele	novamente	envergou	a	sua	“arma”	de	brinquedo	e
se	 pôs	 a	 manuseá-la	 em	 instinto,	 golpeando	 o	 ar	 num	 pontuado	 balé	 bélico,
similar	àqueles	originalmente	aprendidos	pelos	arcanjos-cadetes	em	Vigilum,	no
alto	do	Céu:	 “Marcha,	 afundo;	 estocada...	Marcha,	 afundo,	 estocada!”,	 repetia,
sem	sequer	entender	o	sentido	daquelas	palavras.
Mas	do	mesmo	 jeito	que	ele	 tinha	as	 suas	 tarefas,	 José	 também	tinha	as
dele,	 e	 foi	 ainda	 na	 estrada,	 que	 o	 velho,	 de	 longe,	 viu	 o	 filho	 “bailando”	 e
munido	daquele	objeto	que	o	havia	proibido	de	bulir.	De	manobra	em	manobra,
Jesus	se	viu	diante	do	pai	e,	não	tendo	mais	como	obstar	a	justa	severidade	dele,
acabou	voltando	para	casa	com	as	nádegas	um	tanto	quentes,	pois	bastaram	duas
ou	 três	 lambadas	 com	aquela	 “espada”	 para	 que	 ele	 se	 convencesse	 de	 que	 as
armas	que	deveria	usar	dali	por	diante	deveriam	ser	outras.
A	 partir	 daquele	 dia,	 Jesus	 decidiu	 tentar	 controlar	 o	 seu	 temperamento
ousado	 e,	 pensando	 na	 conversa	 que	 teve	 com	 o	 romano	 Longinus,	 imaginou
como	seria	se	tornar	um	guerreiro;	um	guerreiro	sem	armas.
	
*	*	*
	
Recém-saído	 do	 palácio	 do	 Eterno,	 o	 escriba-real	 tinha	 acabado	 de,	 lá
lavrar,	uma	importante	certidão	na	qual	Maria	havia	sido	agraciada	com	o	título
celeste	de	“mãe	dos	homens”,	comenda	outrora	pertencente	a	Eva,	de	quem	ela
diretamente	 descendia.	 A	morte	 trágica	 das	 crianças	 pelas	mãos	 de	Herodes	 I
havia	atingido	a	mãe	de	Jesus	em	demasia	e,	pela	força	das	suas	orações,	Deus	a
fez	 aceitar	 o	 encargo	 e	 acatar	 os,	 por	 vezes	 incompreendidos,	 desígnios	 do
destino.
E	 no	 caminho	 de	 volta	 ao	 Quartel-General,	 onde	 o	 documento	 seria
cerrado	 com	 honras,	 o	 arcanjo	 foi	 interceptado	 por	 um	 mensageiro	 que	 lhe
reportou	que	dois	arcontes[38]	queriam	vê-lo,	afinal,	examinando	uma	petição	por
ele	outrora	protocolada,	a	qual	versava	sobre	a	progressão	de	regime	de	Azeyzel,
eles	estavam	prestes	a	emitir	um	veredito.
A	sentença	original,	outrora	dada	ao	vigilante,	era	corporal	e	constritiva,	o
que	não	significava	que	o	preso,	conforme	o	seu	comportamento	carcerário,	não
pudesse	ter	certas	regalias,	como	a	de,	por	exemplo,	trabalhar	nas	áreas	internas
do	quartel.	A	liberdade	plena	estava	fora	de	questão;	apenas	Deus	poderia	dá-la,
mas	os	delegados	do	Senhor	tinham	o	múnus	de	analisar	pedidos	como	aquele,
os	quais	eram	impetrados	pelos	procuradores	celestes	em	favor	dos	condenados.
E	já	estando	diante	do	escrivão-real,	um	dos	famosos	arcontes	ponderou:
—	Metatron,	eu	não	vejo	no	que	um	anjo	sem	asas	lhe	possa	ser	útil.
—	 Ele	 carrega	 informações	 importantes,	 Daurah	 —	 respondeu	 ao
interlocutor.	 —	 Muitas	 delas,	 preciosas	 para	 os	 meus	 compêndios	 que	 ainda
então	sendo	escritos,	e	por	ordem	expressa	do	nosso	Marechal	Miguel,	registre-
se	—	retrucou	o	escriba.
Haudax,	 que	 havia	 muito	 se	 ocupava	 de	 interrogar	 alguns	 espíritos
desencarnados	 que	 chegavam	 ao	 Guf,	 olhou	 para	 o	 seu	 irmão	 de	 armas	 e
resolveu	 assentir,	 dando	 a	 entender	 que	 não	 se	 opunha	 ao	 pleito,	 desde	 que	 a
permanência	de	Azeyzel	ficasse	limitada	a	pequenos	serviços,	como	no	átrio	da
biblioteca.
—	 Bem,	 a	 tua	 petição	 foi	 deferida...	 Soldado!	 —	 bradou	 Daurah	 ao
ordenança.	—	Traz	o	prisioneiro	para	a	audiência	admonitória,	a	fim	de	que	ele
tome	ciência	das	condições	do	novo	regime	—	assentou	ao	lançar	uma	chancela
no	documento.
Azeyzel,	havia	muito	trancafiado	numa	cela,	estava	prestes	a	dar	um	passo
perigoso.	Os	seus	demais	irmãos	presos	estavam	mentalmente	mortos,	dentre	os
quais,	 Semyaza[39]	 e	 o	 belo	 Samael[40],	 mas	 ele,	 não	 se	 sabe	 como,	 havia
conseguido	 se	 manter	 incólume	 ao	 pesadelo	 da	 pós-emasculação.	 O	 que
ocorreria	 dali	 por	 diante,	 graças	 a	 um	 ato	 de	 altruísmo	 de	Metatron,	 mudaria
efetivamente	a	vida	de	muitos,	fossem	eles	anjos	ou	mesmo	humanos.
	
*	*	*
	
Maria	estranhou	o	fato	de	que,	após	chegar	em	casa,	Jesus	pôs-se	quieto
na	oficina	do	pai.	Mas	ao	vê-lo	apalpar	o	próprio	assento,	 logo	desconfiou	que
ele	 havia	 aprontado	 outra	 das	 suas.	 Ela,	 por	 vezes,	 lidava	 com	 um	 estranho
conflito	sobre	o	filho,	pois	como	poderia	o	Messias,	o	legítimo	herdeiro	do	trono
de	Davi,	ser	tão	traquinas?	Mas	tencionando	novamente	orientá-lo,	resolveu	ter
com	ele.
—	Jesus?
—	Sim,	mãe	—	respondeu,	surpreso,	e	tentando	ocultar	o	incômodo.
Ela	se	achegou	e	disse:
—	Eu	estava	aqui	a	observar-te...	E	só	agora	me	dei	conta	de	que,	com	a
idade	 que	 tens	 hoje,	 eu	 já	 estava	 prestes	 a	 receber-te	 de	 Deus	 —	 disse	 ao,
carinhosamente,	abraçá-lo.
—	E	o	que	isso	significa?	—	indagou,	curioso.
—	Que	tu	já	és	um	rapaz	crescido,	tem	quase	onze	anos	de	idade;	por	isso,
precisas	ser	mais	obediente	e	mais	dado	às	coisas	de	Deus.
—	Eu	sei.	Perdoa-me	se	dou	tantos	dissabores	a	ti	e	a	José.
—	Não	foi	isso	que	eu	quis	dizer	—	ponderou.	—	És	inteligente	e	muito
habilidoso,	no	entanto,	necessitas	ser	menos	menino	e	mais	homem.
Jesus	abaixou	a	cabeça,	pois	se	sentia	culpado.
—	Sabe,	mãe...	—	respondeu,	cabisbaixo.	—	Um	dia	eu	serei	um	soldado
muito	poderoso,	o	maior	que	já	existiu,	e	eu	vou	dar	a	minha	vida	para	que	as
pessoas	não	precisem	mais	lutar	entre	si.
—	Esse	 teu	 espírito	beligerante	 às	vezes	me	assusta,	 filho	—	ponderou,
agora	preocupada.	—	Eu	ainda	não	sei	de	onde	vem	tanta	disposição	para	bulir
com	espadas	e	sonhar	com	guerras	e	exércitos,	mas	deves	entender,	de	uma	vez
por	todas,	que	a	arma	mais	poderosa	que	um	homem	pode	ter	é	o	conhecimento
da	palavra	de	Deus,	que,	se	bem	empregado,	pode	suplantar	qualquer	obstáculo.
Nesse	mesmo	instante,	José	ingressou	na	oficina	e	surpreendeu	a	esposa	e
Jesus	conversando.
—	Hum...	—	murmurou	 satisfeito.	—	Eu	espero	que	estejas	ouvindo	os
conselhos	de	tua	mãe	—	disse,	ao	lavar	as	mãos	numa	tina.
—	Sim,	está	—	respondeu	Maria.	—	E	ele	agora	haverá	de	focar	os	seus
talentos	de	outra	forma.	Não	é,	filho?
O	garoto	concordou	e	sorriu	ao	pai,	o	qual,	sem	demora,	o	acolheu	num
abraço	e	arrematou:
—	Tu	 tens	 um	 futuro	próspero,	 Jesus.	Por	 isso,	 concentra-te	 em	Deus	 e
luta,	sim,	a	tua	guerra,	mas	com	armas	de	fé	que	libertem	o	nosso	povo	do	jugo
daqueles	 que	 ofendem	 ao	 Senhor	 e	 ousam	 se	 arvorar	 Nele!	 —	 apelou	 com
seriedade.
Com	o	cenário	já	apaziguado,	os	três	foram	cear	como	de	costume	e,	por
volta	das	nove	horas	da	noite,	 recolheram-se	para	o	 repouso.	Entretanto,	assim
que	a	madrugada	chegou,	José	ouviu	um	barulho	incomum	vindo	dos	fundos	da
casa.	Atraído	pela	luz	que	lá	emergia,	ele	se	levantou	sem	chamar	a	atenção	de
Maria	e	do	filho	e,	ao	ganhar	a	porta	dos	fundos,	foi	surpreendido	por	um	velho
conhecido	de	outrora.
—	Há	quanto	tempo,	meu	amigo!	—	disse	o	anjo	Gabriel,	ao	devolver,	à
mesa	da	oficina,	uma	ferramenta	manufaturada	que	examinava.
—	Tu!	–	respondeu	José,	surpreso	e	em	voz	baixa.	—	Bem,	se	vieste	até
aqui,	creio	que	teremos	novas	—	ponderou,	arisco.
—	De	 fato.	Dez	 anos	 já	 se	 passaram	 desde	 que	 eu	 vos	 alertei	 sobre	 os
perigos	 que	 o	 menino	 então	 corria,	 e	 dez	 anos	 foram	 necessários	 para	 que	 o
banho	 de	 sangue	 que	manchou	 a	 Judeia	 se	 esvaísse.	—	Passivo,	 o	 carpinteiro
ouvia	 a	 tudo	 atento.	—	É	chegada	 a	hora	de	 ficares	novamente	 junto	dos	 teus
outros	 filhos	 e,	 mais	 ainda,	 voltar	 com	 a	 tua	 nova	 família	 para	 Nazaré.	 E
acalenta-te,	pois	Deus	estará	convosco	na	viagem	de	volta.
Ao	perceber	que	o	mensageiro	esboçava	ir	embora,	José	o	interpelou:
—	Espere,	senhor!	E	quanto	ao	meu	filho?	Diga-me	se,	acaso,	eu	ou	a	mãe
erramos	de	alguma	forma.	Refiro-me	a	essa	inclinação	dele	por	lutas	e	batalhas.
Pois,	afinal,	Jesus	não	haveria	de	ser	um	mensageiro	da	paz?
Mesmo	 já	 estando	de	 costas,	Gabriel	 estacionou	o	passo	 e	 sorriu	 com	o
canto	da	boca	e,	voltando	a	metade	do	rosto	a	José,	esclareceu:
—Jesus	vem	de	uma	boa	forja	—	disse,	 referindo-se	subliminarmente	a
Miguel.	—	E	tranquiliza-te;	no	momento	certo,	ele	mudará	a	estratégia.
—	Felicito-me	 ao	 saber!	Mas,	 senhor...	—	 insistiu	—,	 permita-me	 fazer
uma	última	pergunta.	Eu	ainda	o	verei	novamente?
Ainda	meio	oculto,	o	anjo-mor	lhe	respondeu:
—	Sim.	Mas	neste	plano,	apenas	por	mais	uma	vez.
Abrindo	as	grandes	asas,	o	príncipe	saltou	do	chão	e	ganhou	o	firmamento
numa	velocidade	similar	à	da	luz.
Vencida	aquela	etapa	preliminar,	o	menino	Jesus	finalmente	começaria	a
se	transformar	num	homem	de	verdade.
	
*	*	*
	
Munida	 dos	 poucos	 pertences,	 a	 sacra	 família	 ensaiou	 uma	 partida
repentina	já	ao	nascer	do	dia,	sendo	que	Jesus	sequer	teve	tempo	de	se	despedir
dos	 amigos	 que	 tanto	 prezava.	Mas	 ao	 aportarem	 na	 saída	 da	 cidade,	 José	 se
distraiu	 ao	 falar	 com	 o	 filho	 e,	 sem	 querer,	 esbarrou	 no	 cavalo	 de	 um	 dos
soldados	que	lá	dava	guarda.	Irritado,	o	romano	percebeu	e	se	voltou,	agressivo,
para	 ele,	 tencionando	 agredi-lo	 com	 uma	 vara.	 Pois	 antes	 que	 o	 instrumento
pudesse	atingir	José,	um	outro	militar	obstou-lhe	o	braço	e	o	segurou	com	força.
—	Não	tens	vergonha	de	bater	num	velho,	Cartaphilus?
Embora	conhecido	pela	exacerbada	rudeza,	aquele	áspero	 legionário	não
teve	 como	 suplantar	 a	 intervenção,	 afinal,	 o	 soldado	 que	 o	 havia	 contido	—
Longinus	—	era	mais	 forte	 e	 respeitado	 entre	os	demais.	Mesmo	visivelmente
contrariado,	Cartaphilus	recolheu	a	sua	fúria	e	os	deixou	ali:	“Maldito	amigo	dos
judeus...”,	balbuciou	à	distância.
Ao	ver	Jesus	acuado,	o	bom	soldado	o	interpelou:
—	E	então,	meu	amigo.	Estás	de	partida?
O	menino	deixou	a	guarida	do	pai	e	correu	na	direção	do	militar,	o	qual	se
agachou	para	melhor	recepcioná-lo.
—	Eu	não	 tive	 tempo	de	me	despedir	de	ninguém;	 tão	pouco	de	 ti...	—
respondeu,	entristecido.
—	Jesus,	a	nossa	vida	nos	leva	a	plagas	distantes,	para	lá	e	para	cá;	mas	as
boas	amizades,	estas	sim,	são	para	sempre	—	pontuou	Longinus,	ao	devolvê-lo	à
cautela	 dos	 pais.	 —	 Pois	 segue	 em	 paz,	 meu	 amigo,	 e	 que,	 um	 dia,	 o	 teu
“exército”	jamais	colida	com	o	meu	—	ponderou,	aparentemente	emocionado.
E	 ao	 ver	 Jesus	 se	 afastar,	 Longinus	 levantou	 a	 lança	 e	 bradou	 com
emoção:
—	Marte	caiu!
José	 agradeceu	 o	 soldado	 com	 um	 movimento	 positivo	 de	 cabeça	 e,
retomando	 o	 filho	 pelas	 mãos,	 pôs-se,	 finalmente,	 a	 caminho	 de	 Nazaré,
província	onde	tudo	havia	começado.
No	caminho,	reminiscências	do	que	haviam	vivido	até	então,	desde	a	noite
em	que	Gabriel	lhe	havia	tirado	as	dúvidas	sobre	a	inusitada	gravidez	de	Maria,
até	a	última	e	ainda	recente	aparição	do	grão	mensageiro	celeste.	José	preparou	o
filho	revelando	a	ele	que	tinha	seis	irmãos	por	parte	de	pai,	além	de	uma	grande
família,	da	qual	estavam,	havia	muito,	apartados.	Jesus	ouvia	a	tudo	com	atenção
e,	convicto	de	que	seria	outro	dali	por	diante,	procurou	se	portar	de	maneira	séria
e	receptiva.
Após	alguns	 rigores,	mas	 sem	quaisquer	 adversidades,	 a	 família	 aportou
na	região	agora	gerida	pelo	outrora	príncipe,	Herodes	Antipas	e,	 reconhecendo
as	vias	que	pouco	haviam	mudado,	José	e	os	seus	chegaram	no	vilarejo	onde	ele
e	Cleófas	haviam	estabelecido	o	meio	laboral	de	sustento.
Ao	rever	o	irmão,	envelhecido	mas	ainda	acompanhado	da	esposa	Maria.
—	José?	—	surpreendeu-se.	—	José!	—	disse	Cleófas,	ao	largar	um	feixe
de	madeira	que	tinha	em	mãos	e	partir,	feliz,	na	direção	do	irmão.
Ambos	então	se	abraçaram	e,	suplantando	uma	distância	de	mais	de	dez
anos,	 encontraram	 real	 acalento	 nos	 braços	 um	 do	 outro.	 Vagarosamente,	 os
demais	 filhos	homens	de	José,	 trabalhadores	artesanais	como	o	velho	pai,	 logo
miraram	 a	 cena	 e	 foram	 se	 aproximando,	 deixando-se	 entregar	 pela	 mesma
emoção	que	tinha	acabado	de	tomar	conta	do	tio.	Jesus	ficou	um	pouco	arisco,
mas	ante	a	felicidade	de	José,	logo	se	aproximou	da	nova	família	e	experimentou
uma	boa	 recepção,	mormente	 a	do	meio-irmão	Tiago,	o	qual	não	era	 tão	mais
velho	 que	 ele.	 Tanto	 Lígia	 quanto	 Sara	 já	 haviam	 contraído	 núpcias	 e,
lembrando-se	 do	 pouco,	 mas	 proveitoso	 tempo	 que	 haviam	 passado	 sob	 os
cuidados	 de	 Maria,	 a	 receberam	 como	 se,	 apesar	 da	 pouca	 idade,	 mãe	 delas
fosse.
—	Seja	bem-vindo	de	volta,	meu	pai!	—	disse	Judas,	primogênito	de	José.
—	 E	 esse,	 então,	 é	 meu	 irmão	 caçula?	—	 perguntou	 ele,	 ao	 tomar	 Jesus	 nos
braços.
O	jovenzinho	logo	se	afeiçoou	dos	irmãos,	e	tudo	então	parecia	conspirar
para	a	edificação	de	um	clã	próspero	e	feliz.
Os	 dias	 se	 passaram,	 e	 a	 nova	 da	 volta	 de	 José	 se	 espalhou,	 sendo
providenciado	 um	 pequeno	 festejo	 que	 atraiu	 diversos	 parentes	 vindos	 de
Naím[41]	 e	 das	 montanhas	 de	 Judá.	 E	 tal	 não	 foi	 a	 surpresa	 de	 Maria,	 ao
reencontrar	 a	 prima	 Isabel,	 a	 qual,	 embora	 viúva	 de	 Zacarias	 havia	 já	 alguns
anos,	trazia,	consigo,	o	filho,	apenas	alguns	meses	mais	velho	que	Jesus.
—	Isabel!	Rejubilo-me	em	saber	que	estás	bem	e	com	saúde!	—	disse	a
virgem,	ao	achar	acalento	nos	braços	da	prima.
—	 Pois	 eu	 é	 que	 fico	 feliz	 em	 poder	 afagar	 a	 escolhida	 de	 Deus!	 —
respondeu	num	tom	de	reverência.	—	E	veja,	menina	Maria,	este	é	o	meu	filho,
João,	gestado	na	mesma	época	da	vinda	do	teu	—	concluiu,	apontando	o	garoto.
Maria	chamou	Jesus	para	apresentá-lo	ao	primo.	Pois	ao	vê-lo	diante	de	si,
João,	que	desde	cedo	era	sensitivo,	deu,	involuntariamente,	um	passo	para	trás,
pois,	no	recém-chegado,	notou	uma	estranha	e	poderosa	força	espiritual.
—	 Nós	 ficaremos	 alguns	 dias	 hospedados	 em	 Nazaré,	 espero	 que	 os
nossos	filhos	se	aproximem	e	fortaleçam	laços	—	ponderou	Isabel.
Percebendo	que	 João	 havia	 ficado	 ressabiado,	 Jesus	 lhe	 estendeu	 a	mão
como	se	o	convidasse	a	acompanhá-lo.	O	garoto,	então,	desfez	a	cisma	e	se	pôs	a
seguir	o	primo,	que,	havia	pouco,	ainda	se	divertia	com	Tiago.
Embora	fossem	estranhos	um	ao	outro,	era	certo	que	ambos	tinham	uma
forte	ligação	antes	mesmo	de	nascerem,	afinal,	o	Anjo	Gabriel	havia	anunciado	a
vinda	deles	em	espaços	distintos	de	 tempo	—	seis	meses	—,	primeiramente,	 a
Zacarias	e,	na	sequência,	a	Maria.	O	filho	de	Deus	ainda	não	sabia	ao	certo,	mas
a	sua	ordem	de	missão	na	Terra	seria	auferida	pelas	mãos	daquele	seu	primo,	o
qual,	anos	mais	tarde,	seria	conhecido	não	apenas	pelo	simplório	prenome	João,
mas	como	João,	o	“Batista”	do	mítico	Rio	Jordão[42].
Pois	aqueles	dias	em	que	os	dois	primos	passaram	 juntos	 foram	deveras
proveitosos.	 Embora	 mediamente	 escolado	—	 naquele	 tempo,	 as	 lições	 eram
auferidas	 nas	 famílias	 e	 nos	 ajuntamentos	 comunais	 e	 religiosos	 —,	 Jesus
também	aprendeu	muito	com	João,	cuja	base	do	ensino	era	rígida	e	advinda	da
sinagoga	 onde	 o	 seu	 finado	 pai,	 o	 sacerdote	 Zacarias,	 havia	 tido	 importante
destaque.	Jesus	declinava	com	facilidade	as	citações	de	Isaías;	ao	passo	que	João
tinha	predileção	pelas	de	Elias,	de	quem,	futuramente,	viria	a	copiar	os	trejeitos
de	rezar	e	o	modo	de	se	vestir.
Ambos	desenvolveram	profícuo	laço	de	irmandade,	mas	João	só	atestou	a
realeza	de	Jesus	quando	este,	correndo	com	o	primo	numa	das	vielas	de	Nazaré,
parou	 repentinamente	 junto	 a	 um	 casebre	 para	 interpelar	 um	menino	 aleijado
que,	avesso	à	folia	das	demais	crianças,	apenas	as	observava	pela	janela	da	sua
humilde	morada	e,	ao	lado	dele,	jazia,	havia	muito,	uma	gaiola	malfeita	e	vazia.
Ao	ver	Jesus	e	João	na	rua,	o	garoto	se	mostrou	um	tanto	arredio,	afinal,
os	anos	de	solidão	o	haviam	tornado	amargo,	mormente	diante	daqueles	em	que
enxergava	algo	que	parecia	não	possuir.
—	 O	 que	 fazes	 aí	 sozinho?	 —	 indagou-lhe	 Jesus.	 —	 O	 menino	 não
respondeu	de	pronto	e,	segurando	algumas	pequenas	pedras	nas	mãos,	continuou
a	olhá-los	sem	muita	simpatia.	Percebendo	que	ele	não	mexia	o	corpo	da	cintura
para	 baixo,	 o	 filho	 de	 Maria	 insistiu.	—	 Por	 que	 não	 vens	 aqui	 fora	 brincar
conosco?
Irritado	diante	daquela	indagação,	o	meninote	disparou	ríspido:
—	E	por	acaso	não	percebes	queeu	não	posso	andar?
Jesus	o	fitou	silente	e	se	aproximou.	E,	achegando-se	da	janela,	envolveu
as	mãos	cerradas	do	menino	e	disse	a	ele:
—	Tu	não	andas	porque	não	quer.
Sentido	 uma	 demasiada	 energia	 vinda	 do	 interlocutor,	 o	 paralítico	 logo
repuxou	as	suas	mãos	e,	ao	abri-las,	viu	quando	aquelas	pedras	se	transformaram
em	pequenas	rolinhas	que	voaram	para	a	tal	gaiola	vazia	e,	após	emitirem	alguns
arrulhos,	saltaram	para	fora	e	sumiram	no	ar.
Estupefato,	ele	arregalou	os	olhos	e	encarou	Jesus,	que	o	reinquiriu:
—	Como	te	chamas?
—	Ba...	Baruch...	—	respondeu,	gaguejando.
—	Baruch.	O	teu	nome	significa	bênção.	E	se	agora	acreditas	que	podes
conseguir	uma,	levanta-te	e	vem	aqui	fora	conosco.
Emprestando	 guarida	 às	 palavras	 que	 havia	 acabado	 de	 ouvir,	 o	 garoto
apoiou	os	braços	na	cadeira	e	finalmente	se	ergueu.
—	Vês?	—	indagou	Jesus.	—	O	teu	único	mal	se	chamava	falta	de	fé.
—	Mas...	Mas	como	fizeste	isso?	—	titubeou	Baruch.
—	Eu	nada	fiz...	—	Sorriu-lhe,	o	ungido.	—	Quem	o	fez	foste	tu	mesmo
—	concluiu,	ao	apontar-lhe	o	dedo.
João	 ficou	 boquiaberto	 e,	 no	 primo,	 viu	 alguém	 verdadeiramente
diferenciado.	 Os	 aldeões	 ficaram	 maravilhados	 com	 a	 imprevista	 sorte	 do
pequeno	Baruch,	 o	 qual,	 agradecido	 a	 Jesus	 por	 ter	 perdido	 a	 carapaça	de	 dor
que	 lhe	 cobria,	 jamais	 revelou	 algo	 que,	 ante	 a	 ignorância	 de	muitos,	 pudesse
comprometer	o	amigo.
Tais	atos,	por	alguns	chamados	de	milagres,	não	eram	novidade	na	vida	do
filho	 de	 José	 e	 Maria,	 que	 desde	 os	 tenros	 anos,	 já	 os	 realizava	 sob	 a	 égide
divina,	e	nos	anos	futuros,	muitos,	muitos	outros	ainda	estariam	por	vir.
	
*	*	*
	
Cerca	de	mil	e	trezentos	anos	antes	do	dia	em	que	Jesus	completou	doze
anos	 de	 idade,	 Deus,	 através	 do	 profeta	 Moisés,	 libertou	 o	 povo	 hebreu	 do
cativeiro	no	Egito,	terra	cuja	base	populacional	advinha	do	clã	de	Cam,	o	filho
expulso	 de	 Noé.	 Desde	 então,	 os	 descendentes	 daquele	 tronco	 passaram	 a
comemorar	 tal	 evento	 numa	 festa	 chamada	 Páscoa,	 solenidade	 religiosa	 que
culminava	com	uma	peregrinação	em	massa	para	o	Templo	de	Jerusalém,	o	qual
era	fincado	sobre	o	Monte	Moriá[43],	bem	a	leste	da	cidade	santa.
Fiel	e	agora	possuindo	melhores	condições	financeiras,	José	arregimentou
a	 família	 e	 partiu	 de	Nazaré	 com	 outros	 peregrinos,	 a	 fim	 de	 acamparem	 nas
redondezas	da	urbe	e	se	prepararem	para	o	 ritual	de	sacrifícios	que,	 segundo	a
lei,	deveriam	todos	oferecer	ao	Senhor.
De	 toda	as	viagens	 feitas	por	Jesus,	aquela	 foi	a	menos	extenuante,	haja
vista	a	companhia	das	demais	crianças	da	caravana,	que	se	divertiam	durante	o
trajeto	e	pouco	sentiam	os	rigores	da	peregrinação.	Durante	o	longo	caminho,	ele
se	 lembrou	 da	 infância	 no	 Egito	 e	 de	 quando	 tomava	 a	 liderança	 dos	 demais
amigos,	sendo	que,	nessa	nova	oportunidade,	parecia	repetir	aquela	mesmíssima
postura.
Após	 chegarem	 e	 edificarem	 as	 suas	 tendas,	 os	 aldeões	 de	 Nazaré
rumavam	 para	 Jerusalém	 no	 intuito	 de	 trocar	 os	 seus	 dinheiros	 pelo	 shekel
hebraico,	única	moeda	aceita	no	Templo	e	que	se	prestava	a	comprar	um	animal
para	o	sacrifício	sagrado.	Aliás,	os	sacerdotes	do	Sinédrio[44]	se	fartavam	durante
essa	época	do	ano,	graças	ao	lucro	elevado	que	tinham	em	razão	da	chegada	em
massa	 dos	 fiéis,	 mostrando	 que	 a	 fé	 em	 Deus,	 ao	 menos	 para	 eles,	 tinha	 um
preço	bem	alto.
Jesus,	por	sua	vez,	ficou	impressionado	com	as	altas	muralhas	da	cidade	e
a	 grande	 presença	 de	 soldados	 romanos,	 o	 que	 o	 fez	 se	 lembrar	 do	 legionário
Longinus,	 a	 quem	 parecia	 instintivamente	 procurar	 em	 meio	 àquela	 agitada
multidão.
Por	 um	 instante,	 o	menino	 perdeu	 a	 visão	 em	meio	 aos	 bois,	 ovelhas	 e
carneiros	 que	 lá	 estavam,	 afinal,	 o	 sacrifício	 os	 aguardava	 pelas	 mãos	 dos
sacerdotes,	 os	 quais,	 alegando	 a	 descendência	 de	 Aarão[45],	 usavam	 vestes
brancas	e	se	responsabilizavam	pelos	ritos	diários	do	Templo.
Mas	Jesus	não	via	aquela	estranha	 liturgia	com	tanta	simpatia.	Não	com
relação	 à	 simbologia	 dela,	 mas	 sim,	 com	 referência	 ao	 abate	 conciso	 dos
animais,	pelos	quais	ele	nutria	especial	afeição.	E	após	observar,	contrariado,	um
dos	sacerdotes	degolar	um	ovino	não	muito	gordo	que	coube	à	sua	família,	ele
acompanhou,	 à	 distância,	 a	 queima	 das	 entranhas	 dele	 nos	 grandes	 chifres	 de
bronze	 do	 altar,	 afinal,	 a	 tradição	 assim	 o	 exigia.	 O	 cheiro	 da	 carnificina	 era
insuportável,	e	sequer	o	incenso	e	a	mirra	com	canela	esbraseados	eram	capazes
de	minimizá-lo.
Tão	logo	o	tal	rito	se	findou,	o	restante	do	corpo	do	animal	—	desprezado
pelos	sacerdotes	diante	da	pouca	monta	—	foi	levado	de	volta	ao	acampamento
dos	 aldeões	 de	 Nazaré	 para,	 juntamente	 aos	 outros	 trazidos	 pelas	 demais
famílias,	 ser	assado	e	consumido	numa	comemoração,	pois	o	 início	da	 jornada
de	retorno	à	cidade	só	haveria	de	ocorrer	na	manhã	seguinte.	Quanto	à	pele	dos
bichos,	 mormente	 a	 dos	 cordeiros,	 ficavam	 em	 poder	 dos	 sacrificantes,	 que
teriam	um	bom	lucro	na	 revenda.	Como	visto,	desde	então	 já	se	usava	o	santo
nome	 de	 Deus	 para	 o	 patrocínio	 de	 privilégios	 pessoais	 sujos,	 algo	 que,	 no
futuro,	o	próprio	Jesus	revelaria	crassa	ojeriza.
Tendo	 em	vista	 a	 grandeza	 do	 comboio,	 os	 segmentos	 dele	—	 jovens	 e
adultos	—	 eram	 divididos,	 e	 as	 famílias	 não	 viajavam	 unidas,	 afinal,	 os	mais
moços	 aproveitavam	 o	 evento	 para	 adquirir	 maior	 responsabilidade.	 E	 sendo
Jesus	um	pré-adolescente,	os	seus	pais	não	tiveram	como	se	opor	ao	costume.
Mas	 no	 fim	 daquela	 mesma	 madrugada,	 após	 o	 banquete	 festivo,	 o
menino	de	Nazaré	despertou	antes	de	o	sol	nascer	e,	sem	dar	parte	a	ninguém,
retornou	à	cidade	e	 ficou	nos	portões	do	Templo	aguardando	o	momento	certo
para	 poder	 entrar,	 pois	 parecia	 ter	 sido,	 para	 lá,	 levado	 por	 um	 magnetismo
involuntário,	o	qual	nem	ele	sabia	ao	certo	explicar.
E	o	calor	do	dia	então	adveio,	e	os	peregrinos	finalmente	partiram.	Mas	tal
não	 foi	 a	 surpresa	 de	 José	 e	 Maria	 ao,	 na	 primeira	 parada	 da	 caravana,	 já
próximo	 ao	 cair	 da	 noite,	 procurarem	o	 filho	 junto	 à	 ala	 dos	menores	 e	 não	o
encontrarem.
Embora	 conhecidamente	 peralta,	 Jesus	 nunca	 lhes	 havia	 saído,
efetivamente,	das	vistas,	pois	mesmo	que	desse	as	suas	costumeiras	escapadelas
com	os	amigos,	ele	jamais	se	apartava	daquela	forma.	Seus	pais	ficaram	deveras
angustiados	e,	em	desespero,	regressaram	a	Jerusalém	a	fim	de	tentar	encontrá-lo
incólume,	 ainda	 que	 pela	 estrada.	 Finda	 a	 parte	 de	 um	dia	 de	 viagem	pautado
pela	 tristeza	 no	 coração,	 eles	 chegaram	 na	 cidade	 e,	 após	 procurá-lo,	 sem
sucesso,	nos	poucos	acampamentos	que	ainda	a	rodeavam,	o	casal	ingressou	na
urbe	para	continuar	a	lida.
A	 virgem	 estava	 desconsolada;	 recusava-se	 até	 mesmo	 a	 beber	 água,
afinal,	que	fim	teria	tido	aquele	que	havia	sido	profetizado	como	Messias?
Pois	não	 tão	 longe	dali,	várias	plateias	haviam	sido	 formadas	diante	dos
escribas	e	dos	mestres	da	Lei,	os	quais,	ao	longo	do	dia,	se	faziam	circundar	por
dezenas	 de	 jovens	 ávidos	 em	 aprendê-la.	 Numa	 delas,	 um	 dos	 doutores	 fazia
alusão	a	Samuel,	o	profeta	que	havia	ungido	os	reis	Saul[46]	e	Davi	e,	conforme
as	escrituras	sagradas,	citava	um	trecho	de	Natan[47].
—	“E	disse	o	grande	juiz,	que	o	Senhor	Deus	levantaria	um	descendente
de	Davi	que	estabeleceria	o	reino	dos	céus	na	Terra...”.
Os	 doutos	 se	 puseram	 a	 discutir	 a	 máxima	 entre	 si,	 ponderando	 que	 o
referido	líder	israelita	talvez	estivesse	aludindo	ao	filho	de	Davi	e	Betsabá[48],	o
notável	Rei	Salomão.	Mas	de	forma	inusitada,	um	dos	jovens	que	ali	estava	deu
um	 passo	 à	 frente	 e,	 mostrando	 reverência	 aos	 sábios,	 ousou	 tomar-lhes	 a
palavra.
—	 Rabino,	 se	 me	 permite,	 eu	 creio	 que	 o	 profeta	 Natan	 não	 fazia
referência	ao	terceiro	rei	de	Israel.
Os	 demais,	 tantos	 os	 jovens	 quanto	 os	 adultos,	 mostraram-se	 surpresos
com	aquela	intervenção.
—	E	a	quem	então	achas	que	oproclamador	fazia	alusão?	—	indagou	um
dos	mestres	ali	presentes.
—	 Certamente	 ao	 rei	 ungido	 que	 Deus	 fez	 referência	 ao	 seu	 primeiro
filho...	—	respondeu,	de	pronto,	o	menino.
—	“Primeiro	filho?”	—	replicou	o	idoso.
—	Sim.	Pois	disse	o	Senhor,	ao	primogênito	Adão,	que	orasse	até	que	o
redentor	surgisse	de	sua	casa	e	o	salvasse.	E	mais...	que,	da	descendência	dele,
seriam	benditas	todas	as	famílias	da	Terra.
—	Falas	do	Messias	que	trará	a	salvação	ao	povo	de	Israel,	menino?
—	Eu	falo	daquele	que	nos	exporá	a	um	reino	sem	fronteiras;	a	um	reino
de	 amor	 que	 haverá	 de	 permear	 o	 coração	 de	 todos.	 Pois	 o	 verdadeiro	 eleito
haverá	 de	 ser	 o	 anjo	 do	 pacto,	 o	 filho	 do	 fogo	 sagrado	 que	 trará	 a	 derradeira
salvação	aos	filhos	do	homem	—	pontuou,	efusivo.
—	E	quando	ele	haverá	de	chegar?	—	perguntou	um	deles.
—	Rabi,	ao	que	sinto,	ele	já	está	entre	nós...
—	 Pois	 então	 crês	 que	 o	 ungido	 já	 é	 nascido	 e	 nos	 libertará	 do	 látego
romano?	—	insistiu	o	curioso	letrado.
—	 Os	 romanos	 são	 conquistadores,	 mas	 também	 são	 homens.	 E	 não
apenas	os	homens	de	Deus	serão	libertos,	mas	também	os	que	se	apartaram	Dele
e	precisam	retornar	ao	Seu	reino.
—	E	como	achas	que	se	entra	nesse	reino?	—	questionou	um	espectador.
—	 Entra-se	 nele	 ouvindo	 o	 interior	 da	 própria	 alma,	 reparando	 faltas
simples	 e	 seguindo	 o	 lado	 certo;	 valorizando	 e	 respeitando	 o	 espírito,
equilibrando	as	falhas	e	preservando	o	santuário	da	vida.	Entrar	no	reino	de	Deus
é	considerar	o	silêncio	e	ouvir	antes	de	falar,	pois	aquele	que	grita	não	consegue
ouvir	o	que	o	seu	“eu”	tem	a	lhe	dizer.
Boquiabertos,	 os	 escribas	 ficaram	 impressionados	 com	 a	 sabedoria
daquele	meninote	e	encerraram	a	leitura,	oportunidade	em	que,	guiada	pelo	amor
que	lhe	trasbordava	o	coração,	Maria	foi	atraída	para	as	colunas	do	Templo	e,	ao
lado	 do	 esposo,	 viu	 quando	 os	 demais	 se	 achegavam	 daquele	 garoto	—	 sim,
Jesus,	o	seu	rebento	fugido	—	cuja	aura,	ao	menos	para	ela,	resplandecia	naquele
ambiente.
—	Jesus;	filho!	—	gritou	emocionada,	ao	correr	na	direção	dele	e	abraçá-
lo	com	os	olhos	encharcados.	—	Nós	estávamos	desesperados	atrás	de	ti!
Pois	o	menino,	que	naqueles	dias	já	possuía	um	pouco	menos	do	tamanho
da	mãe,	olhou-a	e	respondeu:
—	Mãe,	desculpa	por	ter	atormentado	o	teu	coração;	mas	se	fiz	o	que	fiz,
agi	apenas	no	dever	que	carrego	em	obedecer	ao	meu	Pai.
—	Pois	eu	não	me	 lembro	de	 ter-te	mandado	retornar	ao	Templo,	Jesus!
—	pontuou	José.	—	E	mais,	sem	avisar-nos!	—	concluiu,	visivelmente	nervoso.
—	Perdão,	senhor,	mas	eu	estava	fazendo	alusão	àquele	que,	antes	de	ti,	é
o	Pai	do	primeiro	homem	e	também	o	Pai	de	todos	nós.
Sabedores	 dos	 desígnios	 primários	 dele,	 José	 e	Maria	 assentiram	 e	 não
mais	 o	 repreenderam,	 afinal,	 ao	 que	 tudo	 indicava,	 Jesus	 estava	 despertando	 a
consciência	para	a	missão	que,	dentro	em	breve,	ele	haveria	de	iniciar	no	mundo.
	
*	*	*
	
Pois	o	 inexpugnável	arco	do	 tempo	girou	e	 se	estagnou	dez	anos	depois
daquela	Páscoa,	e	ele	parou	no	exato	dia	em	que	José	contava	com	setenta	e	sete
anos;	e	Jesus,	um	homem	feito,	vinte	e	dois.
Embora	velho,	José	ainda	guardava	a	aparência	da	média	idade	e,	à	revelia
da	família,	mantinha	em	segredo,	uma	artrite	degenerativa	contra	a	qual	 lutava
havia	alguns	anos.	O	valoroso	homem	sempre	foi	um	trabalhador	braçal	e,	nessa
qualidade,	acabou	tendo	as	juntas	comprometidas,	mas	por	ser	um	brigador	nato,
recusava-se	a	se	entregar.
Naquela	 oportunidade,	 Jesus	 havia	 saído	 com	 os	 seus	 irmãos	 e	 o	 tio
Cleófas	 para	 entregar	 alguns	 bancos	 no	 espaço	 que	 servia	 como	 sinagoga	 na
cidade	e,	já	sendo	final	de	tarde,	José	se	sentiu	um	tanto	indisposto	e	foi	se	deitar
mais	 cedo.	Maria,	 ao	 seu	 turno,	 estava	 na	 morada	 da	 enteada	 Sara,	 pois	 esta
havia	dado	à	luz	havia	alguns	dias,	e	a	imaculada	a	assistia	e	auxiliava.
Tão	logo	encontrou	encosto	para	a	sua	cabeça,	José	se	sentiu	tonto	e	notou
um	 brilho	 invulgar	 diante	 de	 si,	 o	 mesmo	 que,	 havia	 muitos	 anos,	 lhe	 havia
surpreendido	aos	pés	dos	montes	de	Nazaré	e	na	sua	casa	no	Egito.	E	tal	não	foi
sua	surpresa	ao	perceber	que,	à	sua	 frente,	estava	o	mesmo	anjo	que	 lhe	havia
orientado,	limpado	a	mente	e	salvado	a	vida	numa	estrada	rumo	a	Belém.
—	Se	eu	bem	me	recordo,	disseste	que	nos	veríamos	apenas	por	mais	uma
vez	nesta	vida	—	ponderou	José.
—	Tens	uma	boa	memória,	meu	amigo	—	respondeu	Gabriel,	 já	ao	lado
dele.	—	Pois	adianto-te:	a	grande	missão	que	o	Altíssimo	 te	deu	 foi	concluída
com	êxito.
—	Rejubilo-me	—	disse	satisfeito.	—	E	já	que	o	dizes,	sinto	que	minha
lida	não	foi	em	vão.
—	E	não	foi,	José.	O	menino	se	transformou	num	homem	e,	daqui	a	oito
anos	contados	do	dia	de	hoje,	ele	finalmente	receberá	o	plano	de	Deus.
—	Então	apenas	me	resta	agradecer	ao	Senhor	pelo	grato	privilégio	que,
em	vida,	eu	auferi.
—	O	Elevado	sabe	bem	disso	e	mandou-me	aqui	para	agraciar-te,	afinal,
na	Terra,	foste	o	tutor	do	filho	Dele.
José	esboçou	um	sorriso	sincero,	como	se	quisesse	agradecer	ao	Altíssimo
pela	oportunidade	de	ter	criado	aquele	que	haveria	de	mudar	o	mundo.	Gabriel
elevou	 o	 dedo	 indicador	 direito	 e	 tocou	 os	 lábios	 do	 velho	 carpinteiro,	 que
fechou	os	olhos	de	maneira	serena	e	visivelmente	indolor.
Mensageiro	 de	 inúmeros	 talentos,	 Gabriel	 havia	 recebido,	 de	 Deus,	 a
incumbência	 de	 ser	 o	 anjo	 da	 morte	 dos	 bons	 reis	 e,	 embora	 José	 fosse	 um
simples	artesão,	a	majestade	que	ele	tinha	envergado	em	vida	—	e	também	a	sua
descendência	longínqua	—	lhe	deu	créditos	de	sobra	para	auferir	tal	benesse.
Tão	logo	tudo	se	consumou,	um	querubim	surgiu	e	tomou	a	alma	de	José
pelas	mãos,	a	qual,	ao	finalmente	se	ver	 livre	das	capas	materiais,	soube	que	a
sua	vida	estava	prestes	 a	 continuar	num	outro	plano;	pois	 embora	o	 camareiro
houvesse	lhe	tomado	a	mão	direita,	o	espírito	de	seu	antepassado	Davi	logo	lhe
tomou	 a	 esquerda,	 a	 fim	 de	 que	 o	Éden	Espiritual	 recebesse	 o	 seu	mais	 novo
habitante.
Embora	tivesse	olhado	por	José	e	Maria	por	muitos	anos,	e	assim,	criado
certo	afeto	por	eles,	Gabriel	passaria	a	se	focar	apenas	em	Jesus.	E	ainda	que	o
Altíssimo	houvesse	determinado	que,	nos	piores	momentos,	o	avatar	de	Miguel
estaria	sozinho,	o	anjo-mor	havia	se	encarregado	de	permanecer	por	perto	até	a
aferição	de	um	chamado	divino,	o	que	em	breve	ocorreria.
Ao	voltarem	da	lida	e	constatarem	que	o	pai	havia	finalmente	partido,	os
filhos	de	 José	pratearam	em	demasia.	Seguindo	a	 tradição	 judaica,	 o	 corpo	do
finado	foi	 lavado	e	ungido	com	bálsamo,	com	a	 finalidade	de,	numa	mortalha,
seguir	ao	sepulcro	que	lhe	cabia.	Jesus	foi	o	responsável	por	olear	o	corpo.	De
forma	inconsciente,	 tomou	aquela	resina	odorífera	e,	no	peito	do	pai,	desenhou
um	 símbolo	 estranho,	 como	 se,	 no	 fundo,	 quisesse	 assegurar	 a	 ele	 uma	 já
providenciada	 entrada	 no	 paraíso.	 No	 colo	 de	 José,	 Jesus	 fez	 lançar	 uma
inscrição	 simples,	 algo	 similar	 a	 uma	 grafia	 contínua	 e	 cruzada	 entre	 si,
incompreensível	 para	 os	 homens,	 mas	 que	 aludia,	 em	 essência,	 à	 assinatura
angélica	 do	 Príncipe	 Miguel,	 passaporte	 válido	 e	 seguro	 para	 ingressar	 em
qualquer	plaga,	aqui	ou	além	de	aqui.
	
	
Durante	o	cortejo,	que	 foi	 acompanhado	por	 inúmeros	 filhos	de	Nazaré,
Jesus	se	pegou	pensando	no	pai	terreno	e	no	quanto	havia	aprendido	pelas	mãos
dele.	A	 compreensão	 e	 bondade	de	 José	 para	 com	o	 filho	 tinha	 sido	 acima	da
média	 para	 a	 época,	 pois,	 em	 sua	 vida,	 melhor	 amigo	 ele	 não	 havia	 tido.	 O
romano	Longinus	e	os	colegas	de	infância	lhe	tinham	sido	queridos,	mas	o	velho
foi	 o	maior	 exemplo	 de	 coragem	 e	 honradez	 já	 vistos	 por	 ele.	Desta	 feita,	 no
momento	em	que	o	corpo	foi	levado	para	o	sepulcro,	Jesus	se	ajoelhou	e	pediu	a
Deus:
—	Receba,	Senhor,	o	maior	pai	que	um	homem	na	Terra	já	teve.
Após	o	 féretro,	Maria	 foi	 tomada	por	 uma	grande	 tristeza,	 afinal,	 ela	 se
casou	 com	 José	 ainda	 menina	 e,	 durante	 os	 anos	 que	 comele	 conviveu,	 foi
plenamente	respeitada	em	suas	virtudes,	assim	como	queria	o	Senhor.
Os	dias	se	passaram	e,	doravante	envergando	apenas	vestes	soturnas,	ela
parecia	se	calar	para	o	mundo.	 Jesus,	que	por	muito	 tempo	assistiu,	passivo,	o
sofrimento	da	genitora,	decidiu	tentar	confortá-la:
—	Mãe?	—	indagou-a	ao	vê-la	chorar	em	silêncio.	Ela	não	respondeu	com
palavras,	 mas	 ao	 perceber	 que	 o	 filho	 a	 interpelava,	 tentou	 forçar	 um	 sorriso
entre	as	próprias	lágrimas.	—	Estás	bem?
—	 Sim,	 meu	 filho...	 —	 respondeu,	 sem	 conseguir	 esconder	 a
consternação.
—	 Percebo	 que	 ainda	 choras	 pela	 passagem	 de	 José,	 não?	—	 indagou
acolhendo-a	nos	braços.
Maria	 não	 se	 conteve	 diante	 daquela	 indagação	 e	 desabou	 a	 chorar,
perdendo,	de	pronto,	a	condição	de	responder	à	pergunta.	Jesus	a	abraçou	com
mais	 intensidade	 e	 a	 levou	 para	 um	 banco	 que	 ficava	 nos	 fundos	 da	 casa,
fazendo	 com	 que	 ela	 se	 sentasse.	 Era	 um	 espaço	 aberto,	 nem	 grande,	 nem
pequeno;	onde	parte	do	 sol	 repercutia	 sem	muito	 rigor.	Percebendo	que	a	mãe
tinha	diminuído	o	pranto	por	estar	segura	em	seus	braços,	ele	continuou:
—	 Mãe,	 José	 não	 está	 morto...	 —	 ponderou	 sorrindo.	 —	 Deus,	 ao
degredar	os	seus	primeiros	filhos	no	início	dos	dias,	fez	da	Terra	que	habitamos
apenas	um	lugar	de	passagem,	uma	espécie	de	graduação	pela	qual	os	homens	e
as	mulheres	devem	transpor	antes	de	atingir	a	verdadeira	vida,	a	qual,	asseguro-
te,	não	é	a	deste	plano.
Ainda	 apoiada	 no	 ombro	 do	 filho,	 Maria	 se	 acalmou	 um	 pouco	 e
continuou	a	escutá-lo.
—	Eu	sei	que	é	costume	chorar	pelo	próximo	que	nos	deixa,	pois	é	nato	ao
homem,	ligar-se	afetivamente	às	coisas	palpáveis;	aquelas	materializadas	diante
de	si.	E	quando	alguém	nos	deixa,	a	primeira	sensação	que	temos	é	a	de	perda,
de	 tristeza.	Mas	 não	 pode	 ser	 assim	—	 asseverou,	 agora	mais	 firme.	—	 Pelo
contrário,	nós	devemos	nos	rejubilar,	pois	na	maioria	das	hipóteses,	a	passagem
nada	mais	 é	do	que	o	 fim	de	um	ciclo	de	ensino	e	o	 início	de	uma	graduação
superior,	sendo	que,	no	caso	de	José,	a	pureza	dele	já	o	remeteu	a	uma	dimensão
onde	 a	 paz	 é	 a	 única	 regra.	 —	 Jesus	 então	 enxugou	 as	 lágrimas	 da	 mãe	 e
concluiu:	—	Muitos	 dos	 que	 aqui	 vêm	 ter,	 certamente	 retornarão,	 já	 que	 a	 lei
divina	 da	 causa	 e	 do	 efeito	 é,	 de	 fato,	 implacável.	Mas	 para	 os	 que	 em	 vida
apenas	 praticaram	 o	 bem	 e	 honraram	 o	 amor	 e	 a	 caridade,	 a	 transposição	 da
matéria	nada	mais	é	do	que	uma	espécie	de	galardão,	pois,	com	ela,	findam-se	as
dores	e	se	inicia	a	verdadeira	vida	que	Deus	nos	reserva	em	Seu	reino.
—	 Fazes	 tudo	 ficar	 tão	 claro,	 meu	 filho	—	 disse	 ela,	 já	 melhorando	 a
feição.	—	Vendo	dessa	forma,	não	há,	de	fato,	como	eu	me	manter	triste.
—	Felicito-me	por	isso,	afinal,	saibas	que	o	teu	esposo,	o	meu	querido	pai,
continua	vivo,	bem	e	forte,	e	a	serviço	do	Senhor.	—	Maria	finalmente	voltou	a
sorrir.	—	E	lembra-te,	mãe:	não	chores	com	tristeza	a	partida	daqueles	que	foram
retos.	Ao	levá-los	daqui,	Deus	nada	mais	faz	do	que	recompensá-los	com	a	vida
eterna,	uma	vida	livre	de	moléstias,	melancolias	e	maiores	abrolhos	—	finalizou,
mostrando-lhe	as	mãos	judiadas	pelo	trabalho	braçal.
A	 imaculada	 acariciou	 o	 rosto	 de	 Jesus	 e	 acatou	 aquele	 importante
ensinamento,	 pois	 tudo	 lhe	 pareceu	 óbvio.	 Ela	 então	 passou	 a	 evitar	 as
vestimentas	escuras,	já	que	tal	comportamento,	segundo	lecionou	o	filho,	apenas
traria	mais	dor	para	os	que	aqui	tinham	ficado;	e	pela	oração	sincera,	a	virgem
vez	 mais	 se	 aproximou	 daquele	 por	 quem	 nutria	 inigualável	 respeito,	 o	 seu
amado	José.
Entretanto,	 haveria	 de	 ocorrer	 que,	 num	 dia	 não	 tão	 distante	 daquele,
Maria	se	lembraria	daquelas	palavras	ao	presenciar,	com	o	coração	dilacerado,	o
Eterno	 levar	 embora	o	 seu	único	e	mui	 amado	 filho	de	 sangue,	 cujo	 sacrifício
seria	necessário	para	que	a	raça	humana	quitasse	a	sua	dívida	com	Ele.
Com	 a	 morte	 de	 José,	 os	 seus	 descendentes	 logo	 tomaram	 frente	 do
negócio	de	construção	artesanal	da	família	e,	no	prazo	aludido	por	Gabriel,	oito
anos	contados	dali,	Jesus	finalmente	deixou	a	oficina	para	exercer	outro	tipo	de
ofício,	um	que	traria	uma	nova	opção	a	rígida	lei	civil	dos	profetas	passados.
	
*	*	*
	
E	do	mesmo	 jeito	 que	 a	 tristeza	 se	 abateu	 em	Nazaré,	 ela	 não	demorou
muito	a	pairar	sobre	as	terras	de	Magdala.
Judah,	que	já	era	viúvo	havia	seis	anos,	se	deixou	vencer	pelas	agruras	da
idade	 e	 padeceu	 de	 morte	 natural.	 Sua	 filha	 mais	 velha,	 Martha,	 já	 havia
contraído	 núpcias	 com	 o	 promíscuo	 varão	 de	 um	 rico	mercador	 da	 cidade	 de
Joppa[49],	o	qual,	havia	muito,	alimentava	um	desejo	ilícito	pela	jovem	cunhada,
que	embora	adulta,	ainda	era	a	moça	da	casa.
Mirian	 era	 muito	 apegada	 ao	 pai	 e,	 vendo-o	 falecer,	 sentiu	 que	 a	 sua
invejosa	 irmã	 teria	 o	 caminho	 livre	 para	 investir	 contra	 ela,	 algo	 que	 só	 não
havia	ocorrido	em	razão	ao	temor	reverencial	nutrido	ante	o	genitor	de	ambas.
Pois	numa	das	noites	que	se	seguiram	àquele	dia	doloroso,	Mirian	estava
em	 seu	 quarto,	 como	 de	 costume	 e,	 deitada,	 prestes	 a	 dormir,	 não	 percebeu
quando	um	vulto	sorrateiro	lá	ingressou,	a	fim	de,	num	campo	agora	livre,	tentar
odiosamente	burlar	 o	último	acesso	que	 a	mantinha	pura.	Ao	notar	que	 estava
sendo	observada,	ela	se	ergueu	assustada.
—	Issachar,	o	que	fazes	aqui?	—	indagou,	ao	ver	o	ardiloso	cunhado.
—	 Não	 te	 apoquentes;	 eu	 estava	 apenas	 a	 admirar-te	 —	 disse	 ele,
aparentemente	embriagado	e	se	achegando	do	leito	dela.
Percebendo	 as	 más	 intenções	 do	 marido	 da	 irmã,	 Mirian	 tentou	 se
esquivar	dele,	contudo,	ele	foi	mais	rápido	e	deitou	um	punhal	afiado	sobre	o	seu
pescoço.
—	 Não	 resistas	 —	 sussurrou.	 —	 Pois	 hoje	 finalmente	 conhecerás	 um
homem	de	verdade	—	asseverou,	arfando	bem	próximo	a	ela.
Acuada	e	com	medo,	Mirian	sentiu	quando	Issachar	começou	a	percorrer
o	seu	corpo	com	uma	das	mãos	asquerosas.
—	Agora	fica	quieta.	Quieta!	—	disse,	forçando-a	a	se	deitar.
Percebendo	o	 instinto	de	sobrevivência	emergir,	Mirian	 tentou	se	manter
calma	até	que	vislumbrasse	uma	oportunidade	de	se	 livrar	dele,	afinal,	bastaria
um	 pequeno	 movimento,	 e	 a	 sua	 garganta	 seria	 aberta	 de	 um	 lado	 ao	 outro.
Resistir	ativamente,	portanto,	não	lhe	parecia	uma	boa	saída;	não	sem	a	figura	do
pai	por	perto.
Ao	se	perder	nos	robustos	seios	da	moça,	 Issachar	se	deitou	sobre	ela	e,
capturado	pela	luxúria,	diminuiu	a	pressão	da	lâmina.	Percebendo	que	ele	havia
levantado	a	túnica	para	pressionar	o	emporcalhado	sexo	no	seu,	Mirian	deixou-
se	aparentemente	dominar	e,	prestes	a	ser	violada,	conseguiu	tomar-lhe	o	punhal
e,	sem	muito	pensar,	fincou-o	de	uma	só	feita	nas	costas	do	agressor,	que	deu	um
urro	imoderado	ao	experimentar	o	rigor	do	golpe.
Desperta	em	razão	do	brado	que	ecoou	no	palácio,	Martha	correu	para	o
quarto	 da	 irmã	 e	 viu	 o	 esposo	 deitado	 com	 uma	 enorme	 ferida	 nas	 costas,	 já
morto	e	coberto	de	sangue.	Com	a	lâmina	ainda	nas	mãos,	Mirian	mantinha-se
inerte	no	canto	do	cômodo,	como	se	estivesse	em	estado	de	choque.
—	Assassina!	—	gritou	Martha.	—	Sua	assassina!	—	bradou,	ao	se	lançar
no	corpo	do	marido.
Enquanto	a	confusão	ocorria,	um	dos	empregados	que	lá	estava,	sabedor
da	 má	 fama	 de	 Issachar	 e	 do	 ódio	 de	Martha	 pela	 caçula,	 tomou	Mirian	 nos
braços	 e	 tentou	 tirá-la	 dali,	 pois	 sem	 a	 proteção	 do	 pai,	 ela	 certamente	 seria
morta	 por	 ordem	 da	 irmã.	Mas	 a	 raiva	 não	 impediu	Martha	 de	 obstar	 aquela
evasão	e,	com	o	poder	que	agora	lhe	cabia,	mandou	prender	Mirian	na	torre	mais
alta	de	Magdala,	a	fim	de	dar	a	ela	um	destino	não	tão	diferente	do	de	Issachar,
cujo	óbito	apenas	servia	de	desculpa	para	ela,	finalmente,	castigar	a	irmã.
No	 dia	 seguinte,	 enquanto	 os	 funerais	 do	 seu	 algoz	 corriam,	 Mirian
percebeu	que	a	porta	da	sua	cela	estava	sendo	forçada	e,	assustada,	viu	quando
Zeevi,	um	servo	fiel	de	seu	pai,	nela	entrou	rapidamente.—	Vem,	princesa!	Depressa!	—	disse	ele,	envolvendo-a	com	os	braços.
—	Zeevi?	O	que	está	acontecendo?	—	perguntou	Mirian	assustada.
—	 Estão	 para	 inumar	 o	 esposo	 de	 tua	 irmã.	 Entretanto,	 ela	 deixou
transparecer	 que	 tem	 intenções	 pouco	 nobres	 para	 contigo,	 pois	 há	 pouco
mandou	um	emissário	buscar	Calistrato,	aquele	grego	mercador	de	escravas.
—	Um	mercador	de	escravas?
—	 Sim.	 E	 antes	 que	 ela	 te	 venda;	 eu	 te	 levarei	 daqui!	 —	 esclareceu,
ganhando	os	corredores	onde	uma	das	sentinelas,	pelas	hábeis	mãos	dele,	 jazia
morta.
Ao	 deixar	 a	 torre,	 Mirian	 foi	 levada	 para	 o	 estábulo	 e,	 sempre
acompanhada	pelo	seu	protetor,	fugiu	rapidamente	de	Magdala.
—	 Mas	 para	 onde	 nós	 vamos?	 —	 perguntou	 confusa.	 —	 Martha	 não
descansará	enquanto	não	me	encontrar.
—	Por	ora,	nós	iremos	para	Séforis	—	disse	ele,	soltando	dois	cavalos.	—
Sei	que	eu	não	tenho	muita	saúde.	—	Zeevi	era	tuberculoso.	—	Mas	possuo	uma
irmã	que	lá	reside	e	certamente	haverá	de	te	esconder.
—	 Eu	 não	 queria	 matá-lo,	 Zeevi	—	 apelou	 assustada	—,	mas	 não	 tive
escolha!
—	Princesa,	aquele	homem	era	um	devasso,	 todos	sabiam	disso,	mas	no
momento,	é	bom	que	aceites	que	o	teu	destino	reside	fora	daqui,	pois	a	tua	irmã
sempre	te	quis	morta.
Ajudados	 por	 outros	 servos,	 ambos	 deixaram	 rapidamente	 o	 palácio	 de
Migdal	 e	 rumaram	 para	 Séforis,	 onde	Mirian	 tentaria	 desaparecer	 e	 se	manter
oculta,	sabe-se	lá	como	e	por	quanto	tempo.
Para	 Issachar,	 o	 preço	 por	 ter	 tentado	macular	 a	 sagrada	 honra	 de	 uma
mulher	foi	a	sua	própria	vida	miserável.
Capítulo	3
A	queda	das	Presenças
JÁ	 CAMINHANDO	 EM	 LIBERDADE	 VIGIADA	 pelos	 imensos	 corredores	 do
Quartel-General	 dos	 arcanjos,	 Azeyzel,	 recém-ingresso	 num	 regime	 de	 prisão
mais	 brando	 graças	 à	 intervenção	 de	 Metatron,	 trazia	 consigo	 alguns
pergaminhos	 sem	 importância	 que	 deveriam	 ser	 recolocados	 nas	 respectivas
estantes	 da	 biblioteca.	 Havia	 algum	 tempo,	 ele	 tinha	 conseguido	 aquilo	 que
desejava,	a	progressão	por	bom	comportamento,	e,	aos	poucos,	auferia	confiança
para	circular	mais	tranquilamente.
Enquanto	cumpria	a	tarefa	numa	das	alas	de	acesso	à	livraria,	ele	olhava,
arisco,	 para	 os	 lados,	 no	 intuito	 de	 verificar	 se	 ninguém	 o	 espreitava.	 Em	 seu
íntimo,	 o	 alijado	 vigilante	 tinha	 planos	 obscuros,	 pois	 havia	 muito	 planejava
escapar	do	seu	cárcere	e,	se	encontrasse	alguns	dos	segredos	mágicos	da	extinta
ordem	 angélica	 das	 presenças[50]	 —	 várias	 anotações	 sobre	 elas	 estavam
escondidas	 naquelas	 dependências	—,	 ele	 talvez	 pudesse	 ter	 as	 asas	 de	 volta,
bem	 como	 o	 conjunto	 sexual	 que	 lhe	 havia	 sido	 brutalmente	 trinchado	 pelos
lanceiros	 em	 represália	 ao	 contato	 promíscuo	 que	 ele	 havia	 ousado	 ter	 com
mulheres	na	Terra.
Enfim,	 surgiu	 uma	 oportunidade	 de	 agir.	 Vendo-se	 sozinho	 nas
inexoráveis	dependências	da	 livraria,	mesmo	que	cercado	por	enormes	estátuas
de	 arcanjos	 já	 mortos	 que	 pareciam	 vigiá-lo,	 ele	 caminhou	 devagar	 até	 o
afastado	salão	de	Prohibitum,	onde	o	ingresso	era	restrito	e	controlado	por	uma
detalhada	fechadura	de	seis	chaves,	cujas	cópias	ficavam	em	poder	de	Metatron
e	 de	 Miguel.	 Entretanto,	 aquele	 maquinário	 tinha	 sido	 confeccionado	 havia
muito	 tempo	 numa	 importante	 casa	 de	 armas	 celeste,	 a	 mesma	 onde	 ele	 e	 o
irmão	Semyaza,	igualmente	preso,	costumavam	dar	expediente	como	mestres.
—	Ora,	 ora...	 Se	 não	me	 trai	 a	memória,	 fui	 eu	mesmo	 quem	 projetou
parte	desse	 interessante	mecanismo...	—	sussurrou,	ao	examinar	o	 tal	cadeado.
—	Deixe-me	ver	—	completou,	ao	procurar,	em	volta	de	si,	algum	instrumento
que	pudesse	auxiliá-lo.
Após	 uma	 breve	 busca	 pela	 antessala,	 ele	 vislumbrou	 algumas	 penas
metálicas	usadas	para	escrituração	e,	tomando	duas	delas,	entortou-as	de	modo	a
criar	 um	 arremedo	 de	 chave,	 a	 qual,	 graças	 a	 sua	 ímpar	 destreza,	 não	 o
decepcionou	 em	 suas	 intenções.	 Pois	 ao	 fazer	 alguns	movimentos	 cíclicos	 em
cada	 um	 dos	 seis	 orifícios,	 Azeyzel	 ouviu	 o	 clique	 final	 que	 liberou	 o	 seu
ingresso	naquele	salão	colossal.
Sem	 alarde,	 ele	 ganhou	 o	 interior	 do	 compartimento	 e	 fechou
vagarosamente	 o	 portão,	 a	 fim	 de	 se	 manter	 oculto.	 A	 majestade	 daquele
ambiente	 era	 estupenda;	 nele,	 havia	 estantes	 que	 pareciam	 ser	 infinitas,	 sem
contar	as	obras	de	arte	que	lá	jaziam.	Mas	o	seu	foco	logo	o	direcionou	para	um
pequeno	 gradil	 aberto	 que	 emprestava	 passagem	 a	 uma	 espécie	 de	 cubículo
inferior,	 acessível	 por	 um	 pequeno	 lance	 de	 escadas,	 onde	 pareciam	 ficar	 os
documentos	mais	raros.
Diminuindo	 a	 silhueta	 para	 ali	 entrar,	 Azeyzel	 experimentou	 certa
decepção	 ao,	 nas	 parcas	 prateleiras	 lá	 dispostas,	 encontrar	 apenas	 planos	 das
legiões	militares	e	algumas	 listas	sócio-políticas	de	determinados	anjos	outrora
investigados	por	subversão,	dentre	os	quais,	ele	próprio.
—	 Tanto	 esforço	 para	 nada...	 —	 balbuciou,	 ao	 fazer	 pouco	 daqueles
relatórios	que	davam	a	 ele	o	 status	de	 líder	 dos	descontentes	que,	 no	passado,
haviam	desejado	derrubar	o	portal	palaciano	para	 imigrar	à	Terra	em	busca	da
formosura	das	humanas.
Sem	 ter	 encontrado	 o	 que	 originalmente	 procurava,	 ele	 deixou	 aquelas
pastas	onde	as	havia	encontrado	e	voltou	pelos	mesmos	degraus,	expandindo	luz
do	 próprio	 corpo	 para	 iluminar	 o	 caminho,	 afinal,	 o	 ambiente	 era	 escuro	 e
sombrio.	Já	estando	de	volta	ao	nível	superior,	mas	ainda	no	interior	do	austero
salão,	Azeyzel	 teve	a	sua	atenção	chamada	para	o	 fundo	de	um	corredor,	onde
um	enorme	globo	descansava	sobre	uma	coluna	cercada	por	adereços	de	metal
similares	a	gavetas.	Num	deles,	sob	a	forma	de	uma	maçaneta	arredondada,	jazia
a	expressão	“Archangeli	Custos”	–	arcanjos	guardiões.
De	 pronto,	 o	 exilado	 percebeu	 que	 se	 tratava	 de	mais	 um	 trinco,	 talvez
montado	por	outra	potência	que	não	ele,	e	a	qual	sequer	viva	estaria.	Mas	qual
seria	o	segredo	dele?	O	tal	cadeado	não	envergava	orifícios,	mas	tão	somente	um
acionador	circular	que	podia	 ser	girado	para	a	esquerda	ou	para	a	direita.	Mas
sem	 o	 código,	 o	 que	 fazer?	 Sim,	 pois	 ele	 sabia	 que	 as	 travas	 angélicas	 mais
rebuscadas,	 como	 aquela	 aparentava	 ser,	 tinham	 um	mecanismo	 de	 segurança
contingencial	 e,	 caso	 fossem	 erroneamente	 forçadas,	 quebrariam	 a	 tranca
primária	 e	 acionariam	 outras	 tantas,	 tornando	 a	 abertura	 praticamente
impossível.	 Some-se	 a	 isso	 que	 o	 tal	 obstáculo	 poderia	 ser	 armadilhado,
perigando	avançar-lhe	o	braço	e	ceifá-lo	ao	meio.
Dúvidas.
Entretanto,	Azeyzel	não	era	um	simples	celeste	da	ordem	das	potências.
Como	renomado	mestre-armeiro,	ele	foi	um	dos	mais	requisitados	metalúrgicos
do	Céu	e,	como	poucos,	tinha	a	astúcia	aguçada	para	enigmas.	Diante	disso,	ele
pensou	 por	mais	 alguns	 instantes	 e,	 engenheiro	 de	 formação	 que	 também	 era,
decidiu	 fazer	 uso	 de	 uma	 antiga	 fórmula	 lógica	 baseada	 na	 separação	 de
fonemas.
Azeyzel	dividiu	as	seis	vogais	das	dez	consoantes	da	máxima	“Archangeli
Custos”.	Aquelas,	diante	das	regras	matemáticas	celestes,	aludiam	ao	positivo;	e
as	últimas,	ao	negativo.	E,	considerando	o	caminho	mais	comum	de	uma	chave,
ele	classificou	as	 letras	positivas	—	vogais	—	para	a	direita;	e	as	negativas	—
consoantes	—	para	a	esquerda.	Assim,	seis	movimentos	à	direita	e	outros	dez	à
esquerda.
Tenso,	 ele	decidiu	 arriscar	 a	 combinação	e,	 ao	 concluir	 as	 seis	 rotações,
verificou	que	a	maçaneta	teve	a	estrutura	retraída	em	parte,	mantendo-se	inerte.
Feito	 isso,	 ele	operou	as	dez	 torções	à	 esquerda	e,	para	 a	 sua	 surpresa,	 a	peça
retraiu-se	novamente	e	encaixou-se	no	molde,	sem	que	nada	ocorresse.
Crente	de	que	talvez	tivesse	feito	algo	errado,	Azeyzel	deu	alguns	passos
para	trás	com	o	intuito	de	observar	o	acessório	à	distância,	quando	percebeu	que
o	globo	posto	 sobre	 a	 coluna	 começou	a	girar	 para	 cima	e	 cintilar.	Após	mais
alguns	instantes,	a	peçada	base	se	ergueu	e	revelou	uma	gaveta	funda,	na	qual
estava	 posto	 um	 velho	 calhamaço	 que	 envergava	 a	 expressão:	 “Praesentia
Agitur”	–	Tratado	das	Presenças!
Pronto!	 Lá	 estava	 o	 tão	 aspirado	 livro	 proibido	 da	 velha	 casta	 das
presenças,	 onde	 parte	 dos	 seus	 sortilégios	 haviam	 sido	 preservados.	 Surpreso,
Azeyzel	 tomou	aquele	material	nas	mãos	e,	cuidadosamente,	o	 levou	para	uma
mesa,	sempre	olhando	para	os	lados	a	fim	de	se	assegurar	que	não	era	vigiado.
Ao	 folhear	 as	 primeiras	 páginas	 e	 nelas	 ler	 algumas	notas,	 ele	 foi	 tomado	por
uma	 sensação	 muito	 estranha,	 talvez	 um	 arremedo	 de	 saudosismo	 de	 épocas
passadas	e	bem	distantes	daquela.
—	É	esquisito	como	tudo	aparenta	ser	tão	recente,	pois	parece	que	foi	há
pouco	tempo	que	Pyriel	e	os	seus	anjos	magos	foram	esmagados	pela	armada	de
Deus...	—	balbuciou,	 já	 folheando	 aquele	 compêndio.	—	Bem,	 tomara	 que	 eu
encontre	 as	 respostas	 que	 tanto	 procuro	 —	 sussurrou,	 deixando-se
instintivamente	 levar	pelas	 reminiscências	de	um	passado	muito	distante,	onde
uma	das	treze	ordens	angélicas	havia	sido	brutalmente	extinta.	As	lembranças	de
como	 tudo	 tinha	 acontecido	 começaram	 à	 lhe	 voltar	 a	 mente,	 como	 num
sorrateiro	passe	de	mágica.
	
*	*	*
	
Bem	antes	da	 fatídica	 rebelião	de	Lúcifer	e	do	degredo	de	um	terço	dos
anjos,	 a	paz	celeste	não	era	em	regra	 rompida.	Fora	algumas	desordens	aqui	e
acolá,	sempre	reprimidas	pelos	 implacáveis	destacamentos	dos	arcanjos,	o	Céu
vivia	 num	 clima	 de	 aparente	 normalidade.	 Entretanto,	 algo	 naqueles	 tempos
longínquos	estava	prestes	a	mudar,	e	para	sempre.
Foi	 numa	 das	 reuniões	 ordinárias	 com	 Deus,	 que	 o	 ainda	 alto	 serafim
Lúcifer	 observou	 o	 irmão	 Pyriel,	 o	 príncipe-primeiro	 da	 ordem	 das	 presenças,
envergar	 um	 olhar	 estranhamente	 perdido,	 pois	 pouca	 atenção	 havia	 dado	 às
liturgias	 discutidas.	 Findo	 o	 encontro,	 ele	 achou	 por	 bem	 fazer	 uma	 visita	 de
cortesia	 ao	 confrade,	 talvez	 para	 desvendar	 a	 possível	 motivação	 daquele
aparente	desconforto.
Os	 anjos	 da	 Presença.	 Eles	 compunham	 a	 ordem	 dos	 dramaturgos,	 dos
artistas	que	abrilhantavam	os	coliseus,	e	dos	dançarinos	que	davam	espeque	às
orquestras	dos	Tronos.	Mestres	da	arte	e	da	pintura,	eles	faziam	uso	de	uma	tinta
à	 base	 de	 hematita	 que	 embelezava	 os	 seus	 templos	 e	 monumentos,	 e	 de	 um
extrato	da	mesma	matéria;	 tatuavam	belíssimos	desenhos	na	própria	pele,	 algo
que	celeste	algum,	dada	a	ação	invasiva	e	bastante	dolorida	do	processo,	fazia.
Eram	 eles,	 enfim,	 os	 únicos	 anjos	 cujo	 sangue	 envergava	 uma	 oleosidade
aromática,	 que	misturada	 à	 resina,	 gerava	 uma	 espécie	 de	 incenso	 que,	 ao	 ser
seco	e	queimado,	trazia	particular	perfume	aos	seus	domínios.
Ao	 ganhar	 o	 grandioso	 corredor	 do	 mosteiro	 de	 Artium,	 a	 casa	 das
Presenças,	Lúcifer	observou	Pyriel	sentado	num	trono	pomposo	que	lhe	permitia
manter	 os	 cotovelos	 apoiados.	 Na	 mão	 esquerda,	 ele	 mantinha	 aceso	 um
pequeno	 pomo	 de	 fogo	 rodopiando,	 o	 qual	 encarava	 detidamente.	 Pois	 ao
perceber	a	chegada	do	líder	dos	serafins,	Pyriel	pontuou:
—	 Observa,	 meu	 caro	 Lúcifer	 —	 disse	 ele,	 mirando	 aquele	 rotativo
conglomerado	em	chamas.	—	A	preciosa	matéria	da	nossa	forja:	o	fogo.
O	serafim	deu	alguns	passos	na	direção	dele	e	o	fitou	ressabiado.
—	Mas	eu	estava	aqui	a	pensar...	Esse	 fogo?	De	onde	 foi	ele	 tirado?	—
concluiu,	 sorrindo	 maliciosamente	 e	 fazendo	 o	 tal	 foco	 se	 autoconsumir	 de
forma	inesperada.
Lúcifer	circundou	Pyriel	e,	dado	o	teor	daquela	estranha	conversa,	sentou-
se	ao	lado	dele	e	disse:
—	Eu	me	recordo	de	quando	nasci	pelas	mãos	do	Senhor,	pois	outrora	fui
um	conglomerado	desse	mesmo	fogo.	Mas	confesso	que	jamais	fui	tão	a	fundo,	a
ponto	 de	 questionar	 a	 efetiva	 origem	 dele	 —	 esclareceu,	 apoiando	 o	 queixo
numa	das	mãos.
—	Tenho	 refletido	e	estudado	muito	 sobre	 isso	—	respondeu-lhe	Pyriel.
—	Sempre	que	um	de	nós	morre,	Deus	doma	esse	mesmíssimo	 fogo	e	 replica
mais	um	anjo	no	Céu.
—	E	o	que	pretendes	dizer	com	isso?
—	Que	 todos	 nós	 nascemos	 pela	 força	 das	mãos	 Dele,	 isso	 é	 um	 fato.
Mas...	E	se	o	Criador,	porventura,	viesse	a	nos	faltar?	Quem	então	forjaria	mais
anjos?	 —	 indagou	 já	 se	 erguendo.	 Ao	 perceber	 que	 Lúcifer	 havia	 ficado
intrigado	com	a	ousadia	daquela	estranha	tese,	Pyriel	tentou	minimizar	o	tom	da
conversa.	 —	 Não	 me	 julgues	 mal,	 irmão.	 Trata-se	 apenas	 de	 uma	 indagação
meramente	 acadêmica,	 a	 qual	 agora	 divido	 contigo	—	 justificou,	 ao	 passar	 as
mãos	pelos	seus	compridos	e	sempre	perfumados	cabelos	alourados.
—	É	estranha	essa	ponderação.	Eu	prefiro	não	pensar	em	tal	possibilidade,
afinal,	acredito	que	a	energia	do	nosso	Pai	há	de	ser	infinita	—	replicou	Lúcifer
de	maneira	segura.
Pyriel,	 já	 estando	 de	 costas	 para	 o	 grande	 serafim,	 virou-lhe	 a	 face	 e,
esboçando	um	sorriso	cáustico,	disse:
—	Mas	ainda	“academicamente”	falando,	quem	te	assegura	isso?	—	Pois
antes	 que	Lúcifer	 pudesse	 dizer	 alguma	 coisa,	 o	 arisco	 príncipe	 das	Presenças
voltou-se	 para	 ele	 e	 vez	 mais	 se	 adiantou.	—	 Peço-te	 escusas,	 confrade,	 por
vezes	 eu	me	 supero	 em	 indiscrição	—	ponderou	 com	o	 semblante	 agora	mais
leve.	—	Mas	 já	 que	 vieste	 me	 visitar,	 acompanha-me	 até	 um	 dos	 anfiteatros.
Gostaria	de	mostrar-te	o	ensaio	de	um	novo	espetáculo.
Lúcifer	anuiu	e	seguiu	Pyriel,	mas	estava	intrigado	com	aquela	conversa	e,
no	fundo,	não	lhe	faltava	razão.	De	forma	secreta,	o	místico	líder	das	Presenças
estava,	 havia	 muito,	 enveredando-se	 em	 terrenos	 perigosos.	 Estava	 obcecado
pelos	 segredos	 da	 concepção	 e	 a	 relação	 dela	 com	 os	 anjos	 e,	 desde	 então,
tentava	 desenvolver	 suas	 faculdades	 internas	 a	 fim	 de	 conhecer	 plenamente	 a
própria	natureza	e	dominar	certos	poderes	que	julgava	ter	dentro	de	si.
Embora	 a	 aproximação	 dos	 aspectos	 ocultos	 do	 Senhor	 fosse	 proibida,
Pyriel	passou	a	exercitar	fragmentos	nervosos	que	os	anjos	ainda	não	usavam	e,
envergando	 magnetismos	 extraídos	 da	 força	 de	 Deus,	 os	 quais	 passou	 a
paulatinamente	repassar	aos	demais	celestes	da	sua	casta,	o	líder	das	Presenças
foi,	aos	poucos,	potencializando	os	seus	poderes.
De	início,	ele	começou	a	movimentar	pequenos	objetos	sem	tocá-los,	até
que,	com	o	passar	do	tempo,	conseguiu	atingir	um	equilíbrio	energético	que	lhe
deu	um	controle	absoluto	sobre	o	sentido	da	existência.	Sua	mente	foi	inundada
por	ideais	inéditos,	e	a	sanha	pelo	poder	passou	a	lhe	atormentar.
Mas	 antes	 de	 dar	 um	 passo	 maior,	 o	 da	 criação,	 era	 necessário	 um
pequeno	teste.	E	em	breve,	ele	haveria	de	ocorrer.
	
*	*	*
	
E	 aconteceu	 que	 um	 alto	 anjo	 da	 presença	 chamado	 Barakyel	 foi
convocado	às	pressas	ao	salão	de	Artium	e,	em	razão	da	hierarquia,	reverenciou
o	Príncipe	Pyriel	 que	 lá	 estava,	 sozinho.	Barakyel,	 uma	espécie	de	vice-gestor
das	Presenças,	estranhou	o	fato	de	o	superior	ter	lhe	estendido	a	mão	direita,	algo
que	não	era	comum	ao	protocolo	angélico.	Ao	estender	a	sua	em	resposta,	ele	foi
surpreendido	 pelo	 líder	 que,	 com	 a	mão	 esquerda	 até	 então	 oculta,	 sacou	 um
florete	de	fogo	e,	com	ele,	arrancou-lhe	a	metade	do	braço.
A	 severa	 acústica	 do	 local	 fez	 com	 que	 ninguém	 se	 apercebesse	 do
ocorrido	e,	sem	nada	entender,	Barakyel	caiu	de	joelhos,	aterrorizado	e,	o	que	é
pior,	sem	parte	do	membro	superior.
—	 Estás	 fora	 de	 si,	 senhor?	 Por	 que	 fizeste	 isso?	 —	 balbuciou	 com
dificuldade	em	razão	da	extremada	dor	que	experimentava.
Pyriel,	 em	 contrapartida,	 manteve-se	 silente	 e,	 com	 uma	 incomum
amabilidade	 no	 rosto,	 aproximou-se	 vagarosamente	 do	 irmão,	 o	 seu	 lugar-
tenente.	Sem	encontrar	resistência,	tomou-lhe	gentilmente	o	braço	ferido	e,	com
a	ponta	do	dedo,	fez,	dele,	se	expandir	uma	onda	energética	que	o	recompôs	aos
poucos,	deixando	o	recém-chegado	ainda	mais	boquiaberto	do	que	já	estava.
—	Mas	o	que...	—	gaguejou.	—	O	que	é	 isso?	—	 indagou,	 ao	perceberque	o	seu	membro	decepado	havia	sido	integralmente	refeito.
—	Isso	se	chama	mágica,	Barakyel.	Mágica!
	
*	*	*
	
Os	anjos	em	geral,	mormente	os	serafins,	eram	grandes	apreciadores	das
tragédias	teatrais	encenadas	pelas	Presenças	e,	de	tempos	em	tempos,	lotavam	as
arenas	para	assistir	à	performance	dos	talentosos	irmãos.
Ocorreu	que,	nos	novos	espetáculos,	passou	a	se	 tornar	uma	constante	o
uso	 de	 efeitos	 visuais	 nunca	 antes	 vistos,	 os	 quais,	 pela	 realidade,	 pareciam
desafiar	 a	 ordem	 das	 coisas.	 Creditados	 à	 ficção,	 atos	 como	 o	 da
desmaterialização	 passaram	 a	 ser	 aplaudidos	 com	 veemência.	 “Estariam,	 as
Presenças,	atingindo	o	clímax	da	evolução	artística?”,	 refletiam	os	estupefatos
espectadores.
Pois	 Lúcifer	 continuava	 intrigado	 e,	 sem	 chamar	 a	 atenção,	 introduziu
alguns	 espiões	 naquela	 ordem	 a	 fim	 de	 farejar	 algo	 que	 revelasse	 as	 reais
intenções	de	Pyriel.	Afinal,	seria	ele	apenas	um	entusiasta	da	arte	ou	um	traidor
em	potencial?
Em	 segredo,	 Pyriel	 continuava	 a	 aperfeiçoar	 ainda	 mais	 as	 habilidades
daquilo	 que	 chamava	 de	 “mágica”	 e,	 magnetizando	 as	 plateias,	 vendia	 como
fantástico	o	que	já	beirava	o	real.	Muitas	fórmulas	passaram	então	a	ser,	por	ele,
escrituradas	num	 tratado,	 a	 fim	de	que	 aqueles	 estudos	não	 se	perdessem.	E	o
que	havia	 sido	apenas	uma	curiosidade	sobre	a	origem	dos	anjos,	passou	a	 ser
uma	 obsessão	 para	 aquele	 celeste	 que,	 de	 artista,	 passou	 a	 mago,	 um	 mago
obscuro	que	distorcia	suas	intenções.	Ao	recriar	parte	do	braço	do	seu	auxiliar,
Pyriel	transpôs	um	limite	defeso	a	qualquer	anjo,	já	que	o	poder	de	cura,	restrito
à	virtude	Rafael,	não	se	poderia	ser	confundido	com	o	da	recriação,	exclusivo	de
Deus.
Após	auferir	uma	pequena	parcela	dos	poderes	divinos	ao	se	alimentar	da
força	 motora	 vinda	 do	 Senhor,	 ele	 passou	 a	 doutrinar	 os	 seus,	 os	 quais,	 sem
alardear	as	novas,	não	mais	precisavam	de	asas	para	se	deslocar	e,	 sem	operar
força	motora,	iam	e	vinham	de	uma	plaga	a	outra,	como	se	desaparecessem	aqui
e	surgissem	acolá.
Enfim,	 a	matéria	 se	 transformava	 em	energia	 e	 se	 reconstituía	 em	outro
local.	Pyriel,	então,	arrebatou	a	autoridade	do	teletransporte.
	
*	*	*
	
Passado	 certo	 ciclo	 temporal,	 Pyriel	 finalmente	 resolveu	 reunir	 quatro
grandes	anjos	da	Presença	na	 távola	de	Artium,	pois	 lá,	após	muito	 imiscuir-se
nas	ciências	proibidas,	pretendia	quebrar	a	barreira	da	concepção	e	replicar	anjos
por	 si	 só.	E	diante	delas,	 num	magnífico	 cenário,	 anunciou	o	que	havia	muito
planejava:
—	Irmãos,	eu	vos	convoquei	para	transpormos	o	último	obstáculo	que	nos
separa	de	uma	condição	divina	—	anunciou	efusivo.	—	E	pelo	poder	místico	da
concentração,	 aliado	 aos	 ritos	 mágicos	 que	 venho	 desenvolvendo,	 estou
plenamente	convencido	de	que	estamos	prontos	para	conceber	a	partir	do	fogo.
—	 Príncipe,	 se	 o	 que	 pretendes	 fazer	 for	 auferido,	 haveremos	 de	 ser	 a
ordem	angélica	mais	poderosa	do	Céu	—	acentuou	uma	das	Presenças.
—	Se	o	que	eu	desejo	finalmente	se	concretizar,	vos	asseguro	que	a	nossa
casta	 terá	 um	 exército	 bem	 maior	 que	 a	 dos	 arcanjos!	 —	 respondeu	 Pyriel,
estendendo-lhes	as	mãos	e	convidando-os	a	formarem	um	círculo.
Os	quatro,	até	então	meros	entusiastas	da	magia	negra,	ficaram	eufóricos
com	a	 revelação,	pois	 criar	uma	nova	armada	 só	poderia	 significar	uma	coisa:
sublevação	para	conquista.
Enfim,	 diante	 da	 concentração	 geral,	 cada	 uma	 daquelas	 Presenças
contribuiu	com	uma	força	distinta.	Unidas,	elas	começaram	a	ressoar	um	dialeto
estranho,	o	mesmo	que	Lilith,	num	futuro	ainda	muito	distante	daquele,	viria	a
entoar	 em	 seus	 sortilégios,	 e,	 após	 entrarem	 em	 transe,	 expeliram,	 dos	 seus
corpos,	 diversos	 focos	 energéticos	 que,	 convergindo	 para	 um	 ponto	 central	 na
mesa,	começaram	a	moldar	uma	forma	de	fogo	similar	à	deles	próprios.
Os	 relampejos	 de	 luz	 expandidos	 eram	 extraordinários,	 e	 nem	mesmo	o
temor	das	consequências	daquele	perigoso	ato	obstou	a	ousadia	dos	anjos	magos,
cujo	anseio	pelo	poderio	ilimitado	lhes	passou	a	ser	uma	obsessão.	Pois	ao	fim
do	 ritual,	viu-se	posto	no	meio	deles	um	arremedo	de	ser	vivente,	em	brasa,	o
qual	 se	 mexia	 com	 dificuldade.	 As	 presenças,	 dali	 por	 diante,	 finalmente
criariam	a	vida,	ação	que,	até	então,	era	exclusiva	da	seara	de	Deus.
—	 Nós	 conseguimos,	 está	 feito!	 —	 desabafou	 Pyriel,	 sem	 esconder	 o
aparente	cansaço	pelo	cerimonial.
Entretanto,	 visando	 preservar	 a	 casta	 caso	 algo	 de	 errado	 acontecesse
naquela	solenidade,	ele	proibiu	que	Barakyel,	seu	substituto	direto,	participasse
do	 rito.	 Esse	 foi	 o	 seu	 erro.	 Enciumado	 por	 ter	 sido	 preterido,	 ele	 observou	 a
cerimônia	escondido	e,	estupefato,	viu	o	pecaminoso	resultado	dela.	Tocado	pela
inveja,	ele	não	manteria	aquele	segredo	guardado	por	muito	tempo.
	
*	*	*
	
As	estranhas	habilidades	artísticas	que	as	Presenças	passaram	a	apresentar
começaram	 a	 chamar	 atenção.	A	 rotatividade	 do	 uso	 dos	 anfiteatros	 foi	 sendo
restrita	a	alguns	espaços	menores,	fato	este	que	levantou	a	suspeita	dos	espiões
de	 Lúcifer.	 Ninguém	 de	 fora	 da	 casta	 ainda	 sabia,	 mas	 os	 maiores	 coliseus
haviam	 sido	 fechados	 e	 passaram	 a	 ser	 usados	 para	 esconder	 a	 raça	 bastarda
criada	pelas	Presenças,	a	qual	crescia	assustadoramente.
Deus,	havia	muito,	sentia	um	distúrbio	na	sintonia	da	criação.	Constatando
que	o	 foco	vinha	dos	domínios	das	Presenças,	 convocou	Miguel	em	segredo	e
determinou	 uma	 investigação	 mais	 detalhada,	 sem	 alardear	 aos	 demais.	 O
príncipe	 percebeu	 que	 o	 Pai	 estava	 aparentemente	 abatido,	 entretanto	 preferiu
não	entrar	nesse	mérito	com	Ele.
De	outra	banda,	Lúcifer	já	havia	se	adiantado	nesse	particular	e,	com	base
nos	informes	que	auferira,	assediou	o	enciumado	lugar-tenente	de	Pyriel	e	dele
obteve	o	que	precisava.	Barakyel,	cego	por	acreditar	 ter	sido	preterido,	acabou
delatando	as	pouco	ortodoxas	intenções	do	seu	príncipe,	cujo	poder	de	criação	já
estava	esbarrando	no	do	Elevado.	Com	isso,	o	serafim-mor	tratou	de	participar
aquela	 traição	 a	Miguel,	mesmo	 sem	 saber	 que	 ele	 já	 estava	 à	 frente	 de	 uma
inquisição	sigilosa	contra	as	Presenças.
—	 Respeito	 a	 tua	 discrição,	 irmão...	 —	 disse	 Lúcifer,	 ao	 saber	 do
inquérito.	—	Pois	se	o	Senhor	 tivesse	me	pedido	sigilo,	eu	também	zelaria	por
ele	—	concluiu.
—	Felicito-me	em	saber	que	entendes	—	disse	Miguel,	 ao	perceber	que
Lúcifer	 não	 havia	 ficado	 ostensivamente	 melindrado.	 —	 Mas	 como	 Pyriel
conseguiu	auferir	todo	esse	poder?	—	arrematou	confuso.
—	Eu	ainda	não	sei	ao	certo.	Barakyel	me	confidenciou	que	o	seu	príncipe
lhe	moldou	um	novo	braço	após	ceifá-lo	com	um	golpe	de	espada.
Miguel	ficou	surpreso	com	a	revelação.
—	Um	braço?
—	Sim	—	anuiu	Lúcifer	com	um	aceno	positivo	da	cabeça.
—	E	se	ele	conseguiu	fazer	isso,	já	deve	ter	ido	bem	mais	longe.
—	E	 foi...	—	 respondeu	 o	 serafim	 com	 um	 olhar	 incisivo.	—	Barakyel
disse	que	as	Presenças	estão	forjando	corpos	de	fogo	similares	aos	nossos,	mas
não	foi	preciso	nem	me	dizer	onde	ou	em	que	condições	eles	seriam	utilizados.
—	Corpos	de	fogo!?	—	surpreendeu-se	novamente	o	arcanjo.
—	De	certo.	E	outrora,	Pyriel	deixaou	escapar	uma	estranha	tese	pessoal,
sobre	um	Céu	desprovido	de	Deus...
O	guerreiro	segurou	a	própria	espada	e	ponderou:
—	Isso	soa	perigoso.	Creio	ser	chegado	o	momento	de	ele	prestar	contas.
—	Tenhas	 cuidado,	Miguel.	Eu	 acho	que	 isso	deve	 ser	 feito	de	maneira
discreta,	a	fim	de	que	as	coisas	não	escapem	do	nosso	controle.
—	Tens	razão	—	assentiu.	—	E	se,	ao	acaso,	restar	comprovada	a	infâmia
de	uma	pretensa	lesa-majestade,	eu	temo	pelo	destino	de	Pyriel	e	da	ordem	das
Presenças.
—	Irás	atrás	dele?	—	indagou	o	primogênito	de	Deus.
—	Certamente.	Não	há	alternativa.	Mas	antes,	darei	parte	disso	ao	nosso
Pai,	afinal,	o	cetro	real	não	pode	correr	perigo	nesse	ínterim.
Lúcifer	então	se	despediu	de	Miguel	e	deixou	Barakyel	aos	cuidados	de
dois	lanceiros,	preventivamentepreso.
Ao	 saber	 do	 ocorrido,	 o	 Elevado	 não	 demonstrou	 demasiada	 surpresa,
afinal,	aquela	revelação	nada	mais	era	do	que	a	comprovação	das	Suas	suspeitas
iniciais.	Mantendo	 a	mesma	 estratégia,	 Ele	 orientou	Miguel	 a	 ir	 até	Artium	 e
“convidar”	 Pyriel	 para	 uma	 audiência	 com	 os	 arcontes	 e,	 quem	 sabe,	 resolver
aquele	 impasse	sem	maiores	problemas;	problemas	“mais	violentos”	por	assim
dizer.
—	“Instruam	um	processo;	deem	um	veredito	preliminar	 e	me	 tragam	a
conclusão”	—	assentou	o	Senhor.
Feito	isso	Miguel	convocou	dois	arcontes	e	mandou	que	eles	se	dirigissem
ao	 teatro	 das	 Presenças.	 Ao	 perceber	 que	 os	 delegados	 do	 Senhor	 haviam	 lá
chegado	 com	 um	 nada	 agradável	 destacamento	 de	 lanceiros,	 o	 ousado	 Pyriel,
ciente	de	que	já	havia	sido	descoberto,	os	recebeu	sem	deixá-los	esperar.
—	Lanceiros	aqui	em	minha	casa?	Pois	seria,	eu,	tão	digno	de	uma	escolta
dessa	magnitude?	—	asseverou	aos	arcanjos	como	se	já	soubesse	da	vinda	deles.
—	Temos	ordens	divinas	de	levar-te	até	Vigilum,	príncipe	—	disse	Haudax
de	maneira	aparentemente	cortês.
—	Bem,	se	“Deus”	dá	uma	ordem,	ela	deve	ser	cumprida!	—	respondeu
Pyriel,	 já	 fitando	 os	 seus,	 como	 se	 os	 estivesse	 licenciando	 a	 fazer	 algo	 pré-
combinado	e	que	mudaria	tudo	dali	por	diante.
	
*	*	*
	
Na	sede	do	quartel	dos	arcanjos,	Pyriel	sofria	um	duro	interrogatório,	mas
com	a	habilidade	de	um	ator,	ele	se	esquivava	de	dar	respostas	diretas	e,	fazendo
pouco	 dos	 arcontes,	 vez	 ou	 outra	 dizia	 frases	 sem	 sentido,	 como	 se	 estivesse
atuando	 numa	 peça.	Mas	 o	 celeste	 admitiu,	 entretanto,	 que	 havia	 atingido	 um
plano	místico	diferenciado.
—	Pois	então,	príncipe,	diga-nos	no	que	consiste	esse	plano?	—	pontuou	o
Arcanjo	Daurah.
—	 Em	 três	 dogmas,	 caro	 arconte:	 autoconhecimento,	 aprendizado	 e
utilização	da	ciência.
—	E	o	que	pretende	fazer	com	eles?
—	Manter	o	equilíbrio	das	coisas	e	celebrar	a	vida!
—	E	Vossa	Excelência	crê	ser	certo	tomar	para	vós	o	equilíbrio	do	nosso
ciclo	vital?
—	 Eu	 apenas	 acredito	 que	 o	 corpo	 e	 a	 mente	 podem	 ser	 melhor
exercitados,	e	que	a	meditação	pode	nos	levar	a	caminhos	outros	que	não	os	da
mera	servidão.
—	E	o	que	isso	significa?
—	 Que	 nós	 não	 podemos	 ficar	 adstritos	 a	 uma	 única	 fonte	 vital	 —
defendeu.	—	Irmãos,	é	difícil	perceber	que	estamos	aptos	a	auferir	o	poder	da
criação?	—	Os	arcontes	 se	entreolharam,	e	a	mais	alta	Presença,	 sem	se	 inibir
com	 eles,	 continuou	 a	 discursar.	—	Digam-me	 sem	 temor,	 que	mal	 existe	 em
ousar,	em	saber?
—	Nós	somos	apenas	servidores,	Pyriel	—	interferiu	Miguel,	que	a	tudo
assistia	à	distância.	—	E	nessa	qualidade,	não	devemos	ousar	acima	do	que	nos	é
permitido.
O	 príncipe	 cativo	 se	mostrou	 enervado	 com	 aquela	 observação	 e,	 ainda
estando	com	os	pulsos	livres,	bateu	com	os	braços	sobre	o	apoio	da	cadeira	em
que	estava.
—	Será	que	é	tão	difícil	entenderem	isso?	—	insistiu.	—	Deus	age	através
de	nós,	Seus	dez	príncipes-primeiros.	E	diante	disso,	não	podemos	nos	limitar	a
uma	 lealdade	obtusa	de	submissão,	pois	o	poderio	que	se	manifesta	através	de
nós	também	há	de	ser	divino.
—	O	que	estás	a	dizer?	—	perguntou	Haudax.
—	 Que	 o	 que	 eu	 fiz	 visa	 nos	 alinhar	 ao	 caminho	 natural	 da	 vida,	 da
evolução.	Entendei!	Não	devemos	 temer	o	que	nos	 torna	mais	 fortes,	 já	que	o
poder	é	algo	nosso.	Portanto,	esqueçais	a	hierarquia	cega	e	aceiteis	aquele	que,
embora	não	sendo	Deus,	também	pode	vos	dar	o	conhecimento.
—	Domar	esse	poder	é	algo	que	não	nos	é	lícito,	príncipe!	—	continuou	o
arconte,	agora	com	um	pouco	mais	de	firmeza.
—	Nós	 desenvolvemos	 um	 novo	 conceito,	 as	 Presenças	 querem	 apenas
exercer	as	suas	forças	interiores	e	tornar	a	vida	possível.	E	é	por	isso	que	nós	não
devemos	nos	limitar	a	um	único	caminho	—	retrucou	Pyriel.
—	Então,	isso	é	o	que	chamou	de	“magia”?	—	insistiu	o	inquisidor.
—	 Chama	 da	 forma	 que	 quiseres,	 Haudax,	 eu	 apenas	 desenvolvi
faculdades	que	estão	ocultas	em	todos	nós,	inclusive	em	ti.	E,	de	mais	a	mais,	é
preciso	admitir	que	é	muito	egoísmo	mantê-las	adstritas	apenas	a	uma	força.
—	Basta	 disso!	—	bradou	Miguel,	 nervoso.	—	Creio	 que	 temos	 provas
suficientes	de	que,	embora	sejas	um	anjo	precedente,	 transpuseste	os	caminhos
da	ciência	e	buscaste	meios	alternativos	para	aferir	poder.
Pyriel	se	mostrou	deveras	decepcionado	com	a	recalcitrância	dos	arcanjos
e	se	calou.	O	inquérito	prosseguiu	de	forma	rápida	e,	ao	final,	foi	entregue	aos
cuidados	do	procurador	de	 justiça	celeste,	o	mítico	serafim	Baalberith,	a	quem
caberia	 ofertar	 uma	 já	 certa	 denúncia.	 Sem	 prejuízo	 disso,	 os	 arcanjos
entenderam	que	seria	prudente	alijar	as	Presenças	a	fim	de,	ao	menos	até	o	final
do	julgamento,	nada	viesse	a	perturbar	a	ordem	celestial.
Miguel	 não	 acreditou	 que	 as	 coisas	 iriam	 tão	 longe	 e,	 por	 cautela,
despachou	uma	centúria	para	reforçar	o	cerco	ao	palácio	de	Artium.	Mas	o	que
ele	mal	sabia,	era	que	o	astuto	Pyriel	já	havia	preparado	um	plano	contingencial
para	 tentar	 garantir	 a	 continuidade	 da	 pecaminosa	 ordem	 dos	 magos.	 E	 no
momento	certo,	um	levante	sem	precedentes	ocorreria	no	Céu.
	
*	*	*
	
No	Fórum	localizado	na	primeira	torre	de	Vidiam[51],	Pyriel	jazia	algemado
entre	 dois	 lanceiros	 e,	 à	 sua	 frente,	 estavam	 três	 dos	 seus	 juízes:	 Jofiel,
presidente	 da	 audiência	 e	 árbitro	 das	 causas	 mais	 graves,	 e	 Jeliel	 e	 Melahel,
arcontes-substitutos.	 E,	 na	 condição	 de	 amicus	 curiae[52],	 o	 querubim	 Caliel,
capitão	da	Guarda	Civil	da	Câmara,	representando	a	divindade	e	corte	angélica.
O	Eterno	aparentava	estar	estranhamente	fatigado,	o	que	talvez	se	devesse
à	 energia	 que	 o	 príncipe	 das	 Presenças	 havia	 lhe	 subtraído	 de	 forma	 ilícita.
Ainda	 assim,	 o	 mago-mor	 seria,	 agora,	 submetido	 a	 um	 tribunal	 de	 iguais.	 E
quanto	às	presenças	em	Artium,	estas	não	se	mostraram	surpresas	com	a	chegada
dos	 soldados	 mandados	 por	 Miguel	 e,	 como	 se	 nada	 estivesse	 ocorrendo,
permaneceram	silentes	e	misteriosamente	passivas.
Enfim,	a	audiência	estava	prestes	a	começar.	Todos	os	príncipes-primeiros
estavam	nas	bancadas	do	Tribunal	e,	tão	logo	soou	o	toque	triplo	pela	trombeta
de	 Israfel[53],	 o	 arrogante	 Baalberith,	 representante	 da	 Procuradoria	 de	 Justiça,
subiu	na	bancada	e	rezou	o	libelo.
	
∷ 	∷ 	∷
	
“Meritíssimos	 arcontes,	 pelo	 rito	 de	 instrução	 especial	 e	 por	 seu
procurador	 ora	 constituído,	 irá	 a	 Ordem	 de	 Diabolus[54]	 contra	 o	 anjo	 da
presença,	 Pyriel,	 príncipe-primeiro	 da	 consentânea	 casta,	 nos	 termos
acusatórios	seguintes:
Por	 delação	 e	 por	 confissão,	 o	 réu	 é	 acusado	 de	 incidir	 no	 hediondo
crime	de	lesa-majestade,	pois	ousou	se	erguer	contra	a	regra	da	concepção	da
vida,	a	 fim	de	suplantar	o	Criador,	além	de	 fomentar	e	defender	a	abominável
tese	de	que	Ele	poderia	ser	dispensável.
Esta	Procuradoria	 irá	demonstrar	que	o	acusado	assim	agiu	por	odiosa
soberba,	 imbuído	na	crença	de	que	subiria	ao	 trono	de	Deus	usando	algo	que
ousou	chamar	de	“magia”.
Nesses	termos,	apresentamos	a	denúncia,	a	qual	requeremos	incontinente
recebimento	 para	 que	 o	 réu	 seja	 submetido	 a	 julgamento,	 mirando	 a	 sua
condenação	 à	 pena	máxima,	 qual	 seja,	 a	 de	morte	 por	 esquartejamento	 a	 ser
executada	pelos	lanceiros	da	seção	de	arcanjos.
Por	 oportuno,	 postulamos	 a	 inquirição	 em	 plenário	 da	 primeira
testemunha,	o	Anjo	da	Presença	Barakyel,	nos	termos	das	tábuas	legais”.
	
∷ 	∷ 	∷
	
Pois	 cumprida	 essa	 formalidade,	 deflagrou-se	 então	 o	 que	 deveria	 ser	 o
maior	julgamento	da	história	dos	anjos.
	
*	*	*
	
Na	casa	de	Artium,	tudo	estava	aparentemente	calmo.	Entretanto,	o	plano
nefasto	 de	 Pyriel	 estava	 prestes	 a	 ser	 iniciado.	 Ciente	 de	 que	 seria	 preso	—
como,	de	fato,	foi	—	o	príncipe-primeiro	das	presenças	licenciou	os	seus	irmãos
a	agirem	tão	logo	soube	da	chegada	dos	arcontes.	Ao	usar	a	expressão	“se	Deus
lhe	dá	uma	ordem,	ela	certamente	deve	ser	cumprida”,	a	presença-mor	estava	nasentrelinhas	 se	 referindo	 a	 ela	 própria,	 como	 se	 estivesse	 ordenando	 um	 revide
aos	que	viessem	a	atentar	contra	a	secreta	ordem	dos	magos,	cujo	“deus”,	agora,
era	ele.
Pois	 estando	 os	 arcanjos	 a	 postos	 nos	 domínios	 das	 Presenças,	 eles,	 de
repente,	notaram	quando	um	estranho,	cujo	corpo	flamejava,	surgiu	caminhando
cabisbaixo	pela	grande	escadaria	de	Artium.	Crendo	que	ali	talvez	estivesse	um
artista	 envergando	 algum	 tipo	 de	 vestimenta	 teatral,	 um	 dos	 soldados	 investiu
contra	ele,	alertando-o	para	não	ir	adiante.
—	Alto!	Nós	temos	ordens	para	que	ninguém	deixe	esse	recinto!
Pois	 ao	 mirar	 o	 rosto	 do	 ser,	 tal	 não	 foi	 a	 surpresa	 do	 miliciano	 ao
vislumbrar,	 por	 entre	 o	 capuz	 que	 ele	 trajava,	 uma	 face	 inteiramente	 feita	 de
fogo.
Ao	 recuar	 alguns	 passos,	 aquele	mesmo	 arcanjo,	 e	 outros	 tantos	 que	 ali
davam	guarda,	viram	surgir	uma	grandiosa	turba	por	trás	dos	muros	da	província
das	Presenças,	cujas	asas,	ao	invés	de	penas	afiadas,	chamuscavam.
O	arcanjo	então	sacou	a	sua	espada	fulgurante	e	tentou	golpear	o	estranho,
mas	ela	simplesmente	o	transpassou	sem	causar-lhe	qualquer	dano	físico,	afinal,
ele	 não	 tinha	 carne,	 não	 tinha	 sangue,	 era	 somente	 fogo.	Mas	 ao	 contrário,	 os
militares	envergavam	matéria	corpórea	diversa	—	sangue	além	de	chamas	—	e,
pegos	 de	 surpresa,	 foram	 atacados	 por	 aquelas	 criaturas	 espúrias,	 as	 quais
surgiam	aos	milhares.
Enquanto	a	instrução	processual	transcorria	em	Vidiam,	o	plano	de	Pyriel
—	 e	 também,	 uma	 guerra	 inesperada	—	 eclodia.	 Sentindo-se	 acuadas	 ante	 a
prisão	do	líder,	as	Presenças	interpretaram	a	linguagem	corporal	do	seu	príncipe
e	 puseram	 os	 bastardos	 em	 liberdade	 com	 o	 intuito	 de,	 ao	 usar	 magia	 negra,
tentarem	suplantar	quem	quer	que	lhes	fizesse	oposição	para,	ao	fim,	implantar
um	novo	reinado	no	Céu.
Pois	 a	 primeira	missão	 já	 lhes	 era	 conhecida:	 libertar	 o	 futuro	 rei	 deles,
Pyriel,	quiçá	o	próximo	regente	no	lugar	de	Deus.
	
*	*	*
	
Num	 ímpeto,	 a	 austeridade	 do	 depoimento	 do	 Anjo	 Barakyel	 foi
abruptamente	interrompida.	Alertados	pelo	estranho	movimento	vindo	das	áreas
externas	 do	 Fórum,	 os	 espectadores	 da	 tribuna	 foram	 surpreendidos	 com	 a
notícia	 de	 que	 estranhos	 haviam	 sido	 soltos	 em	 Artium	 e,	 blindando	 as
Presenças,	 rumavam	 para	 as	 torres	 de	Vidiam	 destruindo	 tudo	 o	 que	 se	 punha
diante	deles.
Contido	por	severas	algemas	energéticas,	Pyriel	ergueu	vagarosamente	a
cabeça	 e	 esboçou	 um	 sorriso	 ardiloso,	 como	 se	 apenas	 aguardasse	 pelo	 seu
resgate,	o	qual,	ao	que	tudo	indicava,	não	tardaria	a	chegar.
Miguel	 se	 ergueu	 depressa	 e	 ficou	 estupefato	 com	 o	 que	 viu:	 entes
armados	 e	 forjados	 tão	 somente	 de	 fogo.	 Sem	 demora,	 ele	 deu	 um	 sinal	 ao
corneteiro,	 o	 qual	 entoou	 um	 chamado	 contingencial	 que	 repercutiu	 em
Vigilum[55],	onde	grande	parte	das	legiões	estava	estacionada.	Entretanto,	àquela
altura,	e	diante	daqueles	seres,	elas	talvez	não	fizessem	muita	diferença.
Assim	que	os	rebentos	das	Presenças	se	aproximaram	da	torre	onde	ficava
o	Fórum,	muitos	espectadores	tomaram	armas	para	se	defender,	afinal,	o	cenário
externo	aludia	ao	de	uma	batalha	campal	desenfreada,	pois	os	bastardos	estavam
dilacerando	os	seus	obstáculos	a	fim	de	ganhar	o	interior	do	prédio.	Percebendo
que	os	 ataques	 aos	 invasores	 eram	 inúteis	—	as	 espadas	angélicas	os	varavam
sem	lhes	causar	danos	—,	os	fiéis	operaram	uma	retirada	em	massa,	pois	nada
parecia	suplantar	aqueles	invasores.
Miguel	 tentava	 abrir	 caminho	 sem	 muito	 sucesso,	 pois	 embora	 a	 sua
habilidade	o	livrasse	dos	severos	golpes	que	eram	dados	contra	si,	os	poucos	que
ele	conseguia	acertar	eram	 indiferentes	aos	“soldados”	de	Pyriel.	Diante	disso,
ele	 achou	 por	 bem	 retornar	 ao	 Quartel-General	 e	 buscar	 descobrir	 algo	 que
pudesse	 fazer	 efetiva	 frente	 àquelas	 abominações,	 as	 quais	 pareciam
indestrutíveis.	Como	ele,	centenas	de	outros	anjos	tiveram	a	mesma	iniciativa	e
deixaram	 o	 plenário,	 onde	 o	 príncipe	 das	 Presenças	 acabou	 resgatado	 sem
quaisquer	dificuldades.
—	 Cercai	 a	 torre	 e	 matai	 quem	 se	 aproximar!	 —	 ordenou	 aos	 seus
asseclas.	—	Daqui,	nós	iremos	até	o	palácio	de	Deus	e	poremos	um	fim	nisso	de
uma	vez	por	todas!	—	asseverou	Pyriel,	no	domínio	da	situação.
A	 estratégia	 parecia	 boa,	 pois	 a	 grata	 parte	 das	 presenças	 já	 havia
escapado	 de	 Artium	 e	 seguia	 protegida	 pelos	 seres	 de	 fogo	 que	 lhes	 abriam
passagem.	 Entretanto,	 aquela	 era	 a	 morada	 dos	 serafins,	 e	 o	 primeiro	 deles,
Lúcifer,	jamais	se	deixaria	vencer	sem	lutar.
	
*	*	*
	
Tão	logo	o	alarde	eclodiu,	a	Guarda	Negra	selou	os	aposentos	de	Deus,	O
qual,	naquele	instante,	demonstrava	estar	bem	mais	enfraquecido,	afinal,	o	poder
despendido	pelas	nefastas	obras	de	Pyriel	havia	Lhe	abatido	misteriosamente.	Os
querubins	da	Câmara	 eram	sanguinários	por	 instinto,	 portanto,	 com	vida,	 nada
atravessaria	aqueles	portões.
Reunidos	 em	 Vigilum,	 militares	 e	 membros	 das	 demais	 castas	 corriam
contra	 o	 tempo	 para	 encontrar	 uma	 estratégia	 que	 lhes	 desse	 uma	 chance	 de
resistência,	 pois	 combater	 alvos	 inatingíveis	 como	 aqueles	 estava	 fora	 de
questão.
Ciente	 de	 vários	 detalhes	 do	 inquérito	 levado	 a	 cabo	 pela	 polícia	 dos
arcanjos,	Baalberith	teve	um	repente	inusitado	e	ponderou	que	os	bastardos	nada
mais	eram	do	que	produtos	da	mágica	das	Presenças,	magia	esta	que,	a	princípio
branda,	converteu-se	em	negra	para	inverter	a	ordem	da	criação.
—	 Baalberith	 tem	 razão!	 —	 assentiu	 Lúcifer,	 arisco.	 —	 Se	 nós
conseguirmos	 atingir	 aqueles	 que	 lhes	 deram	 a	 vida,	 talvez	 a	 força	 deles	 se
dissipe.
—	É	uma	tese	aceitável,	príncipe;	talvez	a	mais	sensata	no	momento...	—
interviu	o	Arconte	Jofiel.	—	Mas	como	faremos	isso?
—	 Se	 eles	 são	 feitos	 apenas	 de	 fogo,	 não	 são	 imunes	 à	 ação	 do	 gelo.
Entretanto,	as	bandas	de	Vidiam	destoam	pelas	suas	extensas	cortinas	de	chamas,
as	quais	talvez	os	fortaleçam	ainda	mais	—	ponderou	Lúcifer	—,	mas	creio	que
algo	em	menor	escala	pode	ser	tentado.
—	 Bioluminescência	 pura?	 —	 sugeriu	 o	 Mestre	 Azeyzel;	 químico,
arquiteto	e	engenheiro	da	ordem	das	Potências.
—	Sim.	Talvez	seja	a	única	forma	de	burlarmos	parte	das	nossas	próprias
fortificações	—	disse	Lúcifer.
—	 Mas	 sobre	 o	 que	 estão	 falando?	 —	 perguntou	 Miguel,	 um	 tanto
nervoso	e	aparentemente	confuso.
—	Em	contraste	de	 temperaturas,	marechal	—	esclareceu	o	príncipe	dos
serafins.	—	Mas,	infelizmente,	essas	cargas	frias	me	são	limitadas	—	lamentou.
—	 Bem,	 se	 conseguirmos	 abrir	 caminho	 dessa	 forma,	 talvez	 tenhamos
condições	de	igualdade	num	confronto	direto	com	as	próprias	Presenças,	pois	eu
não	 creio	 que	 elas	 terão	 condições	 de	 formar	 uma	 nova	 armada	 de	 forma	 tão
rápida	—	concordou	Miguel.
—	O	plano	é	bom,	mas	se	ainda	tivéssemos	alguns	dos	nossos	no	plenário
talvez	 eles	 conseguissem	 abater	 algumas	 das	 Presenças	 lá	 postas	 e,	 com	 isso,
enfraquecer	o	foco	que	alimenta	os	tais	seres	—	completou	o	armeiro.
—	 Tens	 razão,	 Azeyzel.	 Mas	 durante	 o	 ataque,	 houve	 uma	 evasão	 em
massa	e,	quem	quer	que	tenha	lá	ficado,	neste	momento	já	deve	estar	morto	—
lamentou	o	primeiro	serafim.
De	 repente,	 um	 dos	 príncipes-primeiros	 ali	 presentes,	 até	 então	 quieto,
tomou	forçosamente	a	palavra	e,	elevando	o	adorno	de	um	belíssimo	colar	que
envergava	sobre	o	pescoço,	revelou	com	um	sorriso	ousado.
—	Eu	não	contaria	com	isso,	Lúcifer...	—	Pois,	ao	olharem	para	Beelzebu,
o	 formoso	 gestor	 dos	 querubins,	 talvez	 o	 anjo	 mais	 belo	 do	 Céu,	 este	 lhes
revelou	 o	 que	 havia	 acabado	 de	 descobrir.	—	 Senhores,	 um	 dos	 partícipes	 da
tribuna	ainda	está	em	Vidiam	e,	neste	exato	momento,	escondido	e	à	espera	de
uma	chance	para	agir.
—	Mas	quem?	—	indagou	Lúcifer,	ansioso.
—	 O	 capitão	 da	 Guarda	 Negra.	 Embora	 tenhamos	 todos	 debandado,
alguém	que	sabemos	ser	um	tanto	 inconsequente	 lá	permaneceu.Meus	 irmãos,
participo-vos	que	o	Lorde	Caliel	ainda	está	no	mosteiro	—	concluiu,	ao	envergar
a	cintilação	positiva	do	seu	colar	das	constelações[56].
	
*	*	*
	
No	interior	da	primeira	 torre	de	Vidiam,	Pyriel	 reiterava	ordens	para	que
os	bastardos	de	fogo	cercassem	inteiramente	a	morada	dos	serafins.	A	estratégia
era	 usá-los	 como	 escudo	 até	 a	morada	 de	 Deus,	 afinal,	 o	 príncipe	 subversivo
sentia	que	o	Elevado	estava	abalado	pela	força	que	lhe	havia	sido	rapinada,	algo
que	 jamais	 tinha	 acontecido.	Mas	 a	 sua	 preocupação	 principal	 era	 proteger	 as
quatro	Presenças	que,	com	ele,	haviam	criado	os	alados	de	fogo,	pois	sem	o	foco
mágico	deles	cinco,	as	criaturas,	como	já	se	esperava,	certamente	pereceriam.
Entretanto,	 o	 seu	 aparente	 empenho	 acabou	 comprometendo	 a	 sua
perspicácia	 e,	 de	 uma	 coluna	 a	 outra,	 um	pequeno	 e	 astuto	 querubim	 saltitava
com	divisada	 rapidez,	como	se	a	cada	 toque	dos	pés	dele	no	chão	emergissem
notas	musicais	crescentes	e	decrescentes.
Caliel	 era	 o	 único	 anjo	 estranho	 à	 ordem	 das	 Presenças	 que	 lá
permaneceu,	 e	 certamente,	 tentaria	 fazer	 algo	 para	 desestruturar	 as	 pérfidas
intenções	 de	 Pyriel.	 Ainda	 escondido,	 ele	 recebeu	 de	 Beelzebu	 informações
psíquicas	 sobre	 o	 planejado	 contra-ataque,	 pois	 tão	 logo	 as	 legiões	 se
aproximassem,	Lúcifer	 tentaria	abrir	caminho	com	a	sua	energia	 fria,	cabendo,
então,	a	Caliel,	a	 tarefa	de	 tentar	exterminar	as	cinco	grandes	presenças	dentro
do	Fórum,	sem	se	deixar	pegar	pelos	inexpugnáveis	seres	de	fogo.
—	 Essa	 reação	 já	 era	 esperada	 —	 disse	 Pyriel,	 ao	 ser	 informado	 da
reaproximação	dos	fiéis.	—	Deixai	que	venham,	eles	serão	presas	fáceis.
Assim	que	os	militares	se	aproximaram	cobrindo	os	demais,	uma	grande
cortina	de	chamas	se	ergueu	diante	deles.	Beelzebu	segurou	firmemente	o	colar
das	constelações	e	 transmitiu	novas	 instruções	a	Caliel,	o	qual	deveria	agir	 tão
logo	um	comando	lhe	fosse	dado.
Lúcifer	 abriu	 caminho	 por	 entre	 os	 escudeiros	 da	 infantaria	 e,	 após
envergar	 o	 máximo	 de	 força	 que	 pôde,	 expeliu	 uma	 onda	 fria	 que,	 como	 o
esperado,	descompôs	boa	parte	daqueles	corpos	em	chamas.	Era,	enfim,	o	sinal
de	ataque.
Vislumbrando	 a	 cena,	 a	 armada	 sentiu	 confiança	 e	 investiu	 contra	 o
“exército”	de	Pyriel,	com	escopo	de	tentar	auferir	acesso	aos	espaços	internos	de
Vidiam,	onde	estavam	encasteladas	a	grande	maioria	das	Presenças;	dentre	elas,
as	 quatro	 que,	 com	 o	 príncipe,	 haviam	 concebido	 os	 bastardos	 pela	 força	 da
magia.
Enquanto	 os	 seres	 de	 fogo	 destruíam	 inúmeros	 fiéis,	 alguns	 poucos
tentavam,	em	vão,	transpor	espaços	a	fim	de	ganhar	o	interior	da	primeira	torre.
Tendo	em	vista	que	a	frente	de	batalha,	ou	melhor,	da	chacina,	estava	na	parte
exterior	dos	templos,	as	Presenças	se	mantiveram	cerradas	na	crença	de	que	suas
criações	suplantariam	o	ataque,	afinal,	nada	parecia	poder	superar	os	bastardos.
—	Eles	não	conseguirão	nos	dominar.	Enquanto	estivermos	juntos,	a	força
dos	nossos	filhos	se	manterá	—	bradou	Pyriel.
Mas	 sem	 que	 eles	 percebessem,	 um	 pequeno	 foco	 de	 luz	 começou	 a
sobrevoar	a	tribuna,	chamando	a	atenção	dos	que	lá	estavam.	E	sobre	a	grande
mesa	 do	 plenário,	 pousou	 o	 intrépido	 querubim	 Caliel,	 cujo	 peso	 da	 chave-
mestra	que	carregava	no	pescoço	parecia	pender-lhe	o	corpo	para	baixo.
—	Ora,	se	não	é	o	bravo	capitão	da	Câmara	—	tripudiou	o	príncipe	das
Presenças,	 ao	 perceber	 que	 o	 pequenino	 não	 havia	 fugido	 com	 os	 demais.	—
Mas	eu	não	creio	que	este	seja	um	bom	momento	para	visitas...	—	provocou-o,
com	certa	ironia.
Caliel	 não	 se	 deixou	 apavorar	 e,	 com	 a	 rapidez	 que	 lhe	 era	 peculiar,
começou	 a	 revoar	 o	 salão	 em	 círculos,	 atraindo	 inúmeras	 Presenças	 que	 lá
estavam.	Incautas,	elas	investiram	sem	sucesso	contra	o	camareiro-mor,	o	qual	se
pôs	a	abatê-las	e	assim,	contribuir	para	que	o	círculo	mágico	que	dava	vida	aos
bastardos	fosse	arranhado.	Ao	liquidar	os	seus	primeiros	alvos,	Caliel	foi	ávido
na	direção	da	távola	de	Pyriel	e,	de	uma	só	feita,	dilacerou	os	anjos	da	Presença
Issiel	e	Kharyel,	dois	dos	partícipes	da	cerimônia	que	havia	criado	os	estranhos
alados.
Impressionado	com	a	manobra	de	Caliel,	o	príncipe	rebelde	sentiu	que	a
força	 das	 criaturas	 havia	 sido,	 de	 pronto,	 consumida	 em	 dois	 quintos.	 Na
vargem,	os	guerreiros,	que	até	então	eram	meros	alvos,	passaram	a	ver	centenas
de	 oponentes	 se	 autoconsumirem	 no	 ar,	 o	 que	 deu	 mostras	 de	 que	 a	 tese	 de
Baalberith	estava	certa:	da	vida	das	cinco	principais	Presenças,	dependia	a	dos
bastardos.
Encontrando	 as	 brechas	 que	 precisavam,	 Miguel,	 Lúcifer	 e	 alguns
soldados	começaram	a	rodopiar	velozmente	pelo	ar	e,	confundindo	os	inimigos,
conseguiram	se	aproximar	dos	dutos	inferiores	das	seis	torres.	Aproveitando-se
das	peculiaridades	do	conhecido	terreno,	voaram	pelo	seu	interior,	explodiram	o
chão	 da	 tribuna	 e	 nela	 ingressaram,	 colocando	 em	 polvorosa	 as	 acuadas
Presenças	que	lá	estavam.
Com	um	caminho	aberto	e	a	força	reversa	diminuta,	a	paridade	de	armas
foi	finalmente	alcançada	e,	avessos	às	artes	bélicas,	os	anjos	magos	foram	presas
fáceis.	Cientes	do	êxito	da	manobra,	parte	da	legião	que	havia	ficado	em	Artium
invadiu	aquelas	edificações	e	arrasou	sumariamente	as	Presenças	lá	escondidas.
Com	o	violento	passamento	dos	rebeldes,	os	bastardos	começaram	a	sumir
com	 rapidez	 no	 campo,	 deixando	 aquela	 poderosa	 barreira	 de	 fogo
comprometida	e	proporcionando	uma	aproximação	maciça	das	torres.	Tão	logo
Arisy-El	e	Jostiel,	os	dois	outros	membros	da	távola	mágica,	foram	mortos	por
Miguel	e	Lúcifer,	a	guerra	passou	a	ter	o	tempo	contado.
Pyriel,	 que	 havia	 pouco	 ainda	 achava	 que	 seria	 o	 próximo	Deus,	 estava
amedrontado,	afinal,	nem	mesmo	a	sua	mágica	tinha	sido	hábil	a	protegê-lo.	E	se
eram	 as	 cinco	 Presenças	 os	 vetores	 dela,	 a	 fonte	 daquele	 poderio	 proibido	 se
esvaiu	tão	logo	elas	começaram	a	ser	dizimadas.
Percebendo	 que	 o	 seu	mundo	 ruía,	 o	 príncipe	 se	 viu	 premido	 pelos	 que
estavam	 ávidos	 em	 justiçá-lo	 e	 tentou	 escapar.	 Encurralado	 diante	 dos	 que	 o
subjugaram,	Pyriel	soube	que	o	seu	destino	estava	selado,	pois	se	ficasse	vivo,	o
perigo	da	magia	viveria	nele.
—	Eu	ia	mudar	 toda	a	nossa	existência,	seus	 tolos!	—	disse	coagido.	—
Mas	 prefiro	 encarar	 a	 minha	 morte	 a	 sobreviver	 a	 uma	 derrota,	 agora
consubstanciada	 no	 passamento	 de	 minha	 ordem.	 —	 O	 anjo	 mago	 encarou
Miguel	e	Lúcifer	e,	a	este	último,	fez	lembrar.	—	Tu	és	o	primeiro	entre	nós.	Não
permitas	 que	 a	 nossa	 espécie	 seja	 alijada	 do	 conhecimento	 e	 da	 sabedoria.	—
Com	essas	palavras,	o	príncipe	das	Presenças	deu	alguns	passos	para	trás,	sacou
uma	adaga	e,	como	nobre	que	era,	tratou	de	dar	cabo	honroso	da	própria	vida,	no
que	não	 enfrentou	 a	 resistência	 de	 seus	 demais	 confrades.	Bastou	uma	 incisão
em	cada	pulso	para	que	ele	caísse	de	joelhos	e,	aos	poucos,	visse	o	próprio	corpo
se	 desfazer.	 Porém,	 antes	 de	 desfalecer,	 Pyriel	 encarou	 o	 líder	 seráfico
novamente	e	balbuciou.	—	Não	 te	esqueças,	Lúcifer.	Tu	és	o	zelador	da	nossa
força.
O	 serafim	 se	 enfureceu	 com	 aquela	 observação	 e	 golpeou	 o	 pouco	 que
restava	do	irmão,	cujas	cinzas	se	desfizeram	no	ar	e	levaram	consigo	os	últimos
seres	de	fogo	que	ainda	resistiam	na	área	do	conflito.
Miguel	 ficou	 deveras	 confuso	 com	 a	 expressão	 de	 Lúcifer,	 pois	 nela
enxergou	ódio.	Mas	que	ódio	seria	aquele?	De	Pyriel?	Da	ousadia	dele?	Ou	algo
que	lhe	era	nato,	mas	ainda	oculto?	Bem,	num	futuro	ainda	distante,	o	marechal
dos	arcanjos	teria	a	sua	dura	resposta.
A	primeira	 guerra	 no	Céu	 teve	 um	 saldo	 catastrófico:	milhares	 de	 anjos
mortos	 e	 uma	 ordem	 inteira	 extinta.	 Pyriel	 tinha	 um	 plano	 odioso	 que	 visava
depor	o	Criador	e	 impor	as	presenças	como	autônomas	e	autossuficientes,	mas
ele	falhou.
Findo	 o	 conflito,	 Deus	 mandou	 arrasar	 a	 casa	 de	 Artium	 e,	 a	 Miguel,
confiou	a	essência	de	todos	os	sortilégiospraticados	pelas	presenças,	bem	como
a	guarda	 do	 espólio	 delas	 numa	 área	 cerrada	 da	 biblioteca	 do	Quartel-General
dos	arcanjos.
Depois	daquele	conflito,	pouco	se	ouviu	falar	nas	Presenças,	pois,	com	o
tempo,	elas	acabaram,	de	certa	forma,	esquecidas.	A	arte	em	geral	morreu	com
aquela	ordem,	e	muito	pouco	daquilo	sobreviveu.	E	após	aquele	levante,	o	Céu
só	seria	novamente	banhado	em	sangue	com	a	insurreição	motivada	pela	criação
do	homem,	onde	Lúcifer	e	um	terço	dos	celestes	haveriam	de	cair,	forçosamente,
em	desterro.
	
*	*	*
	
Ainda	oculto	naquela	ala	da	biblioteca	dos	arcanjos,	Azeyzel	voltou	a	si
num	repente	e,	após	ter	rememorado	passo	a	passo	a	trágica	história	da	ascensão
e	queda	das	Presenças,	da	qual	havia	sido	partícipe,	ele	fechou	abruptamente	o
velho	 livro	 proibido,	 não	 sem	 antes	 arrancar	 algumas	 páginas	 que	 o
interessavam.	E	como	as	lembranças	vieram;	elas	logo	partiram.
—	Obrigado,	Pyriel...	—	balbuciou	para	si	mesmo.
Olhando	 em	 sua	 volta,	 a	 Potência	 se	 levantou	 e	 recolocou	 o	 tomo	 na
mesma	gaveta	de	onde	o	havia	tirado.	Embora	ele	não	tivesse	conseguido	tudo,
aquilo	 já	 era	 um	 começo;	 o	 começo	da	 execução	 de	 um	plano	 que	 culminaria
com	a	sua	fuga	do	Céu.
	
Capítulo	4
Uma	voz	no	deserto
NAQUELES	DIAS	DA	MOCIDADE	DE	JESUS,	Lúcifer	vivia	apenas	de	amarguras.
Suas	sucessivas	derrotas	o	haviam	deixado	desgostoso	e,	embora	há	muito	preso
nas	profundezas	do	Inferno,	a	sua	sanha	em	destruir	o	homem	simplesmente	não
findava.
Diante	do	seu	séquito	sombrio,	a	única	coisa	que	lhe	apetecia	era	o	fato	de
que	 os	 descendentes	 de	 Noé,	 frutos	 da	 má	 semente	 de	 Noemah[57],	 haviam
contaminado	grata	parte	da	humanidade,	a	qual	vivia	apenas	para	burlar	as	leis
do	Eterno.
Nas	 terras	 más	 por	 ele	 geridas,	 a	 escuridão	 e	 o	 fogo	 se	 confundiam	 e,
como	se	buscasse	respostas	para	perguntas	que	sequer	tinha,	o	príncipe	deposto
dos	 serafins	 fitava	 os	 seus	 vastos	 domínios	 com	 certa	 inquietude.	 Mas	 num
estranho	repente,	os	anjos	derrubados	lá	presentes,	que	iam	e	vinham	sem	rumo
certo,	 começaram	 a	 ter	 os	movimentos	 paulatinamente	 desacelerados,	 até	 que,
num	dado	momento,	cessaram	de	vez.
Incomodado	 com	o	 ocorrido,	Lúcifer	 se	 viu	 diante	 de	 um	 reino	 imóvel,
como	se	os	seus	demais	irmãos	perdidos	tivessem	se	tornado	estátuas	de	minério
rochoso.
Pois	em	meio	ao	grande	salão	negro,	um	incomum	ponto	de	luz	surgiu	de
maneira	inadvertida	e,	após	atingir	certo	corpo,	revelou,	ao	banido	monarca,	um
Ente	 que	 havia	 muito	 o	 visitava	 apenas	 em	 seus	 mais	 ocultos	 pensamentos.
Lúcifer	 se	 ergueu,	 incrédulo	 e	 devagar,	 pois	 as	 palavras	 lhe	 haviam	 fugido.
Acuado	e	surpreso,	o	combalido	creditou	tal	cena	a	uma	possível	alucinação.
—	Pai?
—	Vejo	que	finalmente	tens	um	trono	só	teu	—	disse	o	espectro	de	Deus,
ao	estacionar	diante	dele.
Ainda	procurando	uma	explicação	plausível	para	tudo	aquilo,	Lúcifer	não
se	conteve	e	inquiriu	a	imagem	do	Elevado.
—	 Mas	 o	 que	 viestes	 fazer	 aqui?	 Tripudiar	 do	 teu	 primogênito	 ou
finalmente	dar	cabo	dele?	—	provocou-Lhe.
—	Percebo	que	nem	mesmo	esse	tempo	todo	de	degredo	foi	o	suficiente
para	acalmar	o	teu	coração.
—	Coração	este	que	partistes	ao	preterir-me	perante	o	tal	Adão;	se	é	que
eu	bem	me	lembro	—	replicou	na	sequência.
O	reflexo	do	Altíssimo	deu	alguns	passos	na	direção	do	antigo	serafim	da
aurora,	fazendo	com	que	ele,	instintivamente,	recuasse.
—	Nada	 temas,	meu	 filho,	 se	 eu	 te	 quisesse	morto,	 certamente	 nós	 não
estaríamos	conversando.	Eu	vim	até	aqui	apenas	para	parlamentar	contigo.
—	Parlamentar?	—	indagou	perplexo.
—	Sim	—	anuiu	calmamente.	—	E	dar-te	uma	oportunidade	de	 tentares
cumprir	a	jura	que	me	fizeste	quando	da	tua	queda.
—	Eu	 creio	 que	 já	 cumpri	 aquele	meu	 voto	—	 retrucou	Lúcifer.	—	Os
homens	 são	 fracos	 e	 pervertidos;	 eles	 dão	 mostras	 disso	 desde	 que	 foram
criados,	e	sob	o	meu	expresso	protesto,	frise-se	bem	—	respondeu,	circundando
o	seu	sólio.
—	 Pois	 parece-me	 que	 a	 perversão	 e	 a	 fraqueza	 não	 são	 características
apenas	deles,	pois	não?	—	indagou	o	Altíssimo,	ao	encarar	o	que	havia	sobrado
dos	anjos	 rebeldes	expulsos	do	Céu	após	o	homem	ter	sido	concebido.	Lúcifer
declinou	e	se	pôs	a	ouvi-Lo.	—	Bem,	eu	vim	para	dizer-te	que,	em	breve,	deixar-
te-ei	livre;	tu	e	teu	confrade,	o	outrora	procurador-geral	da	Ordem	de	Diabolus.
—	Baalberith?	Mas	por	quê?
—	 Existe	 alguém	 na	 Terra;	 um	 descendente	 de	 Davi	 a	 quem	 deverão
encontrar.
—	Isso	não	me	parece	ser	tão	difícil.
—	Isso	caberá	a	ti	descobrir.
—	E	o	que	mais?
—	Caso	consigas	vertê-lo,	a	Terra	que	tanto	queres	finalmente	será	tua.
—	E	se	eu	não	conseguir?
—	Bem	 sabes	 que,	 cedo	 ou	 tarde,	 serás	 julgado	 por	mim;	 o	 teu	 destino
está	preso	a	isso.	Portanto,	creio	que	não	tens	muito	a	perder.
—	E	quanto	a	Baalberith?	Por	que	ele?
Deus	mirou	os	caídos	estagnados	e	fitou	as	severas	feridas	que	neles	ainda
envergavam.	 Sabedor	 de	 que	 havia	 sido	 Baalberith	 a	 trazer	 as	 doenças	 aos
homens,	esclareceu:
—	Leva-o	como	teu	lugar-tenente.	Talvez	ele	te	seja	útil.
Lúcifer	refletiu	por	um	instante	e,	ainda	mostrando	certo	inconformismo,
ousou	enfrentar	Deus.
—	Eu	me	 recuso	a	entender	 tudo	 isso	—	asseverou	confuso.	—	A	esses
humanos	miseráveis	que	vivem	a	desacatar-Te,	Tu	sempre	estendes	a	mão	e	lhes
dá	graças.	E	a	mim,	o	Teu	primeiro	filho	que	só	Te	desobedeceu	por	uma	vez,
tratas	com	desdém	e	punição.	Por	quê?
Pois	o	Eterno,	que	já	dava	as	costas	ao	banido	líder	dos	serafins,	parou	por
um	instante	e,	virando-lhe	a	face,	respondeu	com	uma	pergunta.
—	E	por	acaso,	alguma	vez	me	pediste	perdão?	—	O	velho	decaído	cerrou
os	olhos	e	abaixou	a	cabeça	sem	mais	ponderar.	Sua	soberba,	ali	posta	às	claras
pelo	próprio	Pai,	o	 fez	concluir	que	era	essa	a	diferença	dele	para	com	alguns
homens:	 a	 ausência	 de	 arrependimento.	 E	 ante	 ao	 silêncio	 dele,	 o	 Altíssimo
arrematou.	 —	 Procura	 o	 tal	 homem	 a	 que	 fiz	 referência	 no	 deserto	 das
montanhas	fincadas	ao	sul	de	um	lugar	chamado	Israel.	Eu	não	irei	interferir	—
finalizou,	o	Senhor.
A	 sacra	 imagem	Dele	 então	 se	 desfez	 e,	 no	 alto	 da	 capela	 infernal,	 um
pequeno	 sulco	 se	 abriu.	 Baalberith	 despertou	 sem	 nada	 entender	 e	 Lúcifer,
inquebrantável	 na	 sua	 sanha	 por	 eliminar	 o	 homem,	 tomou-o	 consigo	 e	 partiu
rumo	ao	local	citado	pelo	Altíssimo,	deixando	para	trás	um	Inferno	congelado.
Pois	aqueles	dois	anjos	caídos	acusadores	—	frise-se,	os	mais	poderosos
deles	—,	estavam	novamente	 livres.	E	 se	 eles	 iriam	 ter	 êxito	no	desafio	dado,
isso	ainda	era	um	mistério.
	
*	*	*
	
Tão	logo	chegou	fugida	a	Séforis,	Mirian	foi	acolhida	por	Esther,	irmã	do
servo	Zeevi,	o	qual,	anos	após,	faleceria	em	razão	da	tuberculose	que	carregava.
Segundo	notícias	 chegadas	 tempos	depois	de	Magdala,	Martha	não	demorou	a
descobrir	que	 tinha	 lepra,	doença	que	desenvolvia	havia	muito	 tempo	sem	que
soubesse,	 e,	 em	 razão	 da	 extremada	 vergonha	 que	 passou	 a	 ter	 de	 si,	 acabou
fechando-se	 para	 todos	 e	 ceifou	 a	 própria	 vida:	 saltou	 para	 a	 morte	 física	 da
mesma	 torre	 em	 que	 havia	 aprisionado	 a	 irmã.	 Faltou-lhe,	 por	 assim	 dizer,
coragem	espiritual	para	sobreviver	às	duradouras	consequências	resultantes	das
diversas	más	ações	que	havia	praticado.
Mas	 enfim,	 o	 que	 seria	 feito	 dela?	 Qual	 o	 destino	 de	 uma	 perversa
suicida?
No	lugar	dos	costumeiros	ajudadores	do	novo	Éden	que	recepcionavam	os
que	 deixavam	 a	 Terra,	 o	 espírito	 de	 Martha	 foi	 arremessado	 numa	 estrada
sombria,	cujo	único	fim	culminava	na	tétrica	Tesouraria	das	Almas.	Embora	ela,
em	 vida,	 tivesse	 esperado	 que	 a	 sua	 dor	 fosse	 ceifada	 com	 a	 morte,	 ocorreu
exatamente	o	contrário.
Embora	fisicamente	extinta,	ela	se	arrastava	com	extrema	dificuldade	por
aquele	caminho,	afinal,	ainda	experimentava	as	dores	causadas	pelos	seus	ossos
fraturados.	Essa	marcha	 angustiante	—	para	 nós,	 talvez	 rápida,	 levando-se	 em
conta	a	discrepância	de	tempo	e	espaçodas	nossas	dimensões	—,	aos	suicidas,
poderia	significar	centenas	de	anos	terrestres,	talvez	um	caminho	quase	sem	fim.
Pois	demorou	muito	para	que	o	espírito	inquieto	de	Martha,	acompanhado
de	 outras	 tantas	 almas	 aflitas	 e	 igualmente	 destroçadas,	 chegasse	 ao	 penoso
destino	que	lhe	cabia	e,	ao	finalmente	aportar	na	capela	do	Guf,	ela	foi	triada	e
posta	diante	do	austero	tesoureiro	Razyel,	o	qual	leu	seus	direitos.
—	Mulher,	tu	estás	carregada	de	ódio	e	sentimentos	negativos.	E	deverias
saber	que,	salvo	em	defesa	própria,	apenas	Deus	pode	tirar	uma	vida.	Pois	agora,
antes	 de	 aplicar	 a	 penalidade	 que	 te	 cabe,	 eu	 te	 indago	 para	 que	 conste	 dos
registros:	queres	ajuda?
Embora	 aparentemente	 estranha,	 essa	 pergunta	 fazia	 parte	 do	 rito	 de
admissão	 na	Tesouraria,	 pois	 todos	 os	 que	 para	 lá	 iam	 envergavam	 rancores	 e
mágoas,	 estando	 avessos	 a	 qualquer	 oferta	 de	 auxílio.	 Em	 caso	 positivo,	 algo
raríssimo	de	se	ocorrer,	o	Guf	possuía	uma	ação	pastoral	formada	por	espíritos
que	 lá	 davam	 expediente	 para	 resgatar	 aqueles	 que	 eventualmente	 os
chamassem.	 Mas	 transtornada	 ante	 ao	 infausto	 fim	 que	 lhe	 havia	 cabido,	 ela
retorceu	 ainda	mais	 a	 face	 e,	 visivelmente	 deformada	 pelas	 graves	 lesões	 que
teve	em	vida,	potencializou	ainda	mais	o	sofrimento	que	envergava.
—	Não;	eu	não	quero.
—	Foi	 o	 que	 pensei	—	pontuou	Razyel	 sem	 encará-la.	—	Pois,	 por	 ter
burlado	a	norma	alusiva	à	preciosidade	do	sopro	divino	da	vida;	tu,	que	na	Terra
tiveste	o	nome	de	Martha	de	Migdal,	serás	sentenciada	a	cumprir	uma	pena	de
prisão	celular	por	um	mil	novecentos	e	noventa	e	seis	anos	ordinários,	ao	final
dos	 quais	 serás,	 vez	mais,	 reconduzida	 a	 esta	 bancada	 para	 uma	 audiência	 de
revisão	—	afirmou	lançando	algumas	notas	num	livro	de	controle	carcerário.	—
Guardas,	levai-a	à	cela	dois,	nível	inferior	leste,	a	mesma	que	pertenceu	àquela
que	essa	segregada	tanto	odiou.
Pois,	 enfim,	 coube	 a	 ela	 o	 mesmo	 espaço	 que,	 por	 séculos,	 havia	 sido
ocupado	pela	psique	de	 sua	 irmã	Mirian,	 a	 encarnação	da	alma	de	Lilith.	Mas
Martha	não	haveria	de	dormir;	sequer	seria	congelada.	Sua	consciência	suicida
haveria	de	lhe	perseguir,	e	suas	dores	continuariam	até	que	o	arrependimento	a
visitasse;	se	visitasse.	Essa	era	a	pena	para	os	suicidas.	Embora	pensassem	que	a
vida	se	extinguiria	com	a	morte,	ela	continuaria	real	e	ainda	bem	mais	dolorosa.
	
*	*	*
	
Desde	então	vivendo	modestamente	em	Séforis,	embora	auferindo	haveres
dos	 pesqueiros	 herdados	 de	 Magdala,	 Mirian	 se	 mudou	 para	 a	 cidade	 de
Cafarnaum[58]	em	busca	de	novos	ares,	onde,	por	puro	altruísmo,	se	 tornou	um
misto	de	curandeira	e	comadre,	ajudando	as	mulheres	na	parição	e	assistindo	os
doentes	em	razão	das	suas	habilidades	com	as	plantas	e	ervas.
Entretanto,	 Mirian	 lutava,	 havia	 muito,	 contra	 a	 epilepsia	 e,	 embora	 já
contando	com	trinta	anos	e	ainda	sendo	extremamente	bem-feita	para	a	idade	—
o	que	 era	 bem	 raro	naqueles	 dias	—,	 ela	 jamais	 havia	 se	 entregado	 a	 alguém,
tamanho	 o	 temor	 que	 sentia	 em	 experimentar	 um	 assalto	 ao	 seu	 corpo	 ou	 ser
rejeitada	em	razão	da	moléstia,	cujos	efeitos	eram	assustadores.	Some-se	a	isso
que	alguns	cidadãos,	a	maioria	deles,	não	a	enxergava	com	bons	olhos,	dada	as
práticas	não	convencionais	a	que	ela,	por	via	inconsciente,	até	então	se	dedicava.
Mirian	não	sabia,	mas	a	origem	daquela	doença	lhe	havia	sido	impingida
enquanto	 viveu	 no	 corpo	 de	 Lilith,	 em	 razão	 de	 um	 severo	 trauma	 sofrido	 na
Lua,	ao	se	debater	braviamente	no	parto	de	Asmodeu[59],	o	primeiro	nefilim[60].
Embriagada	pela	magia	das	Presenças	e	pelo	sangue	venenoso	de	Samael[61],	ela
nada	experimentou	em	sua	primeira	vida,	mas	carregou	graves	resquícios	para	a
segunda	 como	 parte	 da	 sua	 pena.	 E	 assim	 ela	 vivia,	 embora	 caridosa	 e
benevolente,	 constantemente	 triste	 pela	 solidão	 e	 pelo	 medo	 de	 enfrentar	 o
mundo.
Mas	na	cidadela,	 ela	 tinha	ouvido	 falar	de	um	Deus	maior	do	que	 tudo;
entretanto,	 diante	 das	 agruras	 que	 já	 havia	 experimentado,	 não	 conseguia,	 por
fraqueza	espiritual,	enxergar	um	propósito	firme	para	crer	Nele.	E	por	lidar	com
doentes	das	mais	variadas	ordens,	crianças	inclusive,	Mirian	custava	a	crer	que
uma	 força	 divina	 pudesse	 permitir	 que	 as	 pessoas	 sofressem	 tanto.	 Que	 o
dissesse	o	pequeno	Yigal,	filho	de	uma	meretriz	chamada	Joana,	tetraplégico	de
nascença,	 e	 de	 quem	 ela	 se	 apiedava.	 Embora	 tivesse	 sido	 uma	 das	 amantes
prediletas	 de	Cusa,	 um	alto	 intendente	 da	 corte	 de	Herodes	Antipas,	 Joana	 foi
expulsa	 de	 Tiberíades	 assim	 que	 engravidou	 dele	 e,	 entregue	 à	 própria	 sorte,
sustentava	a	si	e	ao	desafortunado	filho	fazendo	uso	da	extremada	beleza	e,	com
ela,	praticando	o	comércio	do	próprio	corpo.
Muitas	desgraças	Mirian	via	e	vivia	à	sua	volta.	Mas	o	sentido	disso	tudo
isso	estava	prestes	a	mudar.
	
*	*	*
	
Manejando	uma	plaina	afiada	sobre	um	pedaço	irregular	de	madeira	bruta,
aquele	 artesão,	 cuja	 tez	 era	 escurecida	 pelo	 sol	 e	 pela	 descendência,	 dava
mostras	de	que	possuía	especial	habilidade	com	a	ferramenta.
Embora	 tivesse	uma	compleição	física	pouco	avantajada	se	comparada	à
de	um	romano,	com	cerca	de	um	metro	e	setenta	de	altura,	seus	braços	eram	bem
fortes;	afinal,	a	árdua	lida	o	havia	forjado	daquela	forma.	E	usando	um	arremedo
de	turbante	para	aplacar	o	suor	que	já	lhe	corria	a	testa,	Jesus,	com	trinta	anos	de
idade,	 observou,	 satisfeito,	 que	 aquela	 trave	 serviria	 bem	para	 dar	 base	 a	 uma
mesa	que	lhe	havia	sido	encomendada	por	um	mercador	de	Naím.
Tentando	debelar	o	calor	que	castigava	Nazaré	naqueles	dias,	ele	pausou	o
trabalho	e	 lavou	o	 rosto	com	um	pouco	da	água	que	a	sua	 irmã	Lígia	 lá	havia
deixado.	Mas	ao	sentir	o	frescor	percorrer	a	sua	face	e	molhar	superficialmente	a
barba	arredondada	que	cultivava,	ele	percebeu	quando,	diante	de	si,	pousou	uma
pomba	 branca	 cujos	 olhos	 brilhavam	 como	 dois	 diamantes.	 De	 repente,	 um
clarão	extremo	dela	surdiu,	e	Jesus	ouviu	uma	voz	metálica	ressoar:	“Carrega	a
tua	fé	e	busca	pelo	teu	primo	João;	ele	tem	algo	especial	para	ti”.	E	após	alguns
instantes,	 a	 luz	 recuou,	 e	 a	 ave	 levantou	 voo,	 deixando	 para	 trás	 um	 extenso
rastro	de	 fogo,	que	 logo	desapareceu	no	horizonte	que	marcava	o	 rumo	para	o
mar	da	Galileia.
Quando	Maria	adentrou	nos	aposentos	do	filho	e	o	viu,	ansioso,	arrumar
uma	bolsa	com	algumas	mudas	de	roupa,	ela	sentiu	que	o	momento	tão	esperado
finalmente	 havia	 chegado.	Maria	 sorriu	 para	 o	 rebento,	 e	 ele	 a	 olhou	 como	 se
quisesse	dizer	algo;	algo	que	sequer	sabia	o	que	era.	Mas	antes	que	Jesus	tivesse
qualquer	reação,	a	virgem	declamou:
—	Não	digas	nada,	meu	filho...	—	asseverou,	passando	as	mãos	delicadas
pelos	 seus	 longos	 cabelos	 negros	 que	 estavam	 presos.	 —	 Vai	 e	 segue	 o	 teu
caminho,	e	quando	precisares	de	acalento,	 sempre	 terás	a	mim,	o	colo	daquela
que,	mesmo	menina,	te	trouxe	ao	mundo	e	cuidou	de	ti	com	zelo	e	amor.
Jesus	 abraçou	 afetuosamente	 a	mãe	 e	 partiu	 confiante,	 levando	 consigo
tudo	 o	 que	 havia	 aprendido	 durante	 a	 vida.	 Na	 “bainha”,	 ao	 invés	 da	 afiada
espada	de	fogo	comum	a	todo	arcanjo,	apenas	a	fé	nas	palavras	de	Deus...
	
*	*	*
	
Em	Hasbaya,	 encosta	 do	mesmo	monte[62]	 onde	Azeyzel	 e	 o	 seus	 anjos
vigilantes	 haviam	 descido	 séculos	 antes	 para	 testar	 os	 homens,	 nascia	 uma
torrente	 cristalina	 que	 se	 juntava	 aos	 lagos	 Hula	 e	 Tiberíades,	 desaguando	 no
Mar	Morto[63]:	o	Rio	Jordão.
Naqueles	dias	religiosamente	 turbulentos,	os	 leitos	do	Jordão	serviam	de
palco	 para	 um	 polêmico	 pregador	 que	 dava	 grande	 importância	 ao	 ritual	 do
batismo,	onde	a	 imersão	em	água	simbolizava	uma	mudança	de	vida	perante	o
Criador.	 Envergando	 uma	 longa	 barba	 rebelde,	 vestindo	 um	 cinto	 de	 couro	 e
trajes	 feitos	 de	 pele	 de	 camelo,	 o	 pastor	 João,	 na	 época,	 alcunhado	 de	 João
Batista,	 vociferava	duramente	 ante	 a	 uma	multidão	que	nelevia	uma	presença
firme	e	digna	de	crédito.
—	Arrependei-vos	e	purificai-vos!	Pois	aqueles	que,	entre	vós,	estiverem
embriagados	de	iniquidades	jamais	terão	acesso	ao	reino	do	Senhor!	—	gritava,
ao	 imergir,	na	água,	aqueles	que	aceitavam	o	chamado	batismo,	rito	unificador
sem	precedentes	na	 cultura	 judaica,	 como	passagem	para	uma	nova	vida;	 uma
que	tivesse	a	bênção	e	a	graça	do	Eterno.	—	Extirpai	os	vossos	pecados	e	sede
chamados	 de	 filhos	 de	 Deus!	—	 insistia,	 ao	 vê-los	 tomar	 de	 volta	 a	 margem
ocidental	do	Jordão.
Pois	em	meio	a	muitos	curiosos,	dúvidas,	por	vezes,	emanavam,	como	a
de	um	astuto	fariseu[64]	que	o	indagou	de	maneira	inusitada.
—	És	tu	o	esperado	Messias?
—	Não;	não	sou	eu!	—	respondeu	sem	perder	o	foco	no	que	fazia.	—	O
verdadeiro	Messias	está	a	caminho	e	haverá	de	nos	guiar	entre	as	trevas	—	disse,
ao	abaixar	e	erguer	uma	mulher	nas	águas	do	rio.
—	Dizem	que	és	o	profeta	Elias[65]	reencarnado.	Negas	isso?	—	inquiriu,
com	vigor,	um	arrogante	saduceu[66]	que	lá	estava.
—	Elias	não	está	morto!	—	bradou	João.	—	Ele	é	um	arauto	de	Deus	que
foi	levado	pelos	anjos	e	irá	voltar	quando	do	juízo	final	—	completou	nervoso.
E,	 indiretamente,	 não	 lhe	 faltava	 razão.	 O	 profeta	 Elias,	 porta-voz	 do
Eterno	e	responsável	pelo	épico	desafio	aos	vaticinadores	de	Baal[67],	havia	sido
arrebatado	séculos	antes	naquele	mesmo	rio	por	uma	guarnição	de	arcanjos	que,
numa	 carruagem	 feita	 de	 fogo,	 o	 levaram,	 ainda	 vivo,	 para	 o	 Ministério	 dos
Grandes	Estudos	do	Éden	Espiritual,	onde	ele	permaneceria	se	preparando	para	o
dia	 em	 que	 o	 Guf	 fosse	 temporariamente	 fechado	 e	 um	 julgamento	 geral,
visando	regeneração	e	mudança	ocorresse,	já	que	lhe	caberia	o	papel	de	auxiliar
os	arcontes	que	executariam	essa	empreitada.
—	Diga-nos	então	quem	tu	és!	—	insistiu	o	mesmo	indagador.
—	 Eu	 sou	 apenas	 um	 errante	 do	 deserto	 que	 vos	 batiza	 com	 água	 —
respondeu	 mais	 calmo.	 —	 Mas	 haverá	 de	 vir	 um,	 bem	 mais	 forte,	 o	 filho
encarnado	 de	 Deus,	 que	 vos	 batizará	 com	 o	 fogo;	 o	 fogo	 que	 irá	 queimar	 e
jamais	se	apagará	—	afirmou,	erguendo	uma	das	mãos	com	o	punho	cerrado.
—	Pois	 enquanto	 aguardamos	 esse	 bravo,	 peço	 que	me	 recebas	 com	 os
braços	abertos	—	interferiu,	de	maneira	inusitada,	um	viajante	que,	envergando
uma	surrada	túnica	de	linho	listrada,	lá	repentinamente	aportou.
Inquieto	 com	 a	 ousadia	 daquela	 fala,	 João	 ignorou	 os	 fariseus	 e	 os
saduceus	que	o	estavam	provocando	e	tentou	se	aproximar	de	tal	homem,	o	qual,
já	ganhando	as	margens	do	 Jordão,	 também	 foi	 de	 embate	 ao	profeta.	E	 ao	 se
aproximar	 do	 estranho,	 o	 evangelista	 felicitou-se	 de	 forma	 inesperada,	 algo
incomum	ao	seu	temperamento	conhecidamente	rude.
—	 Jesus?	—	 indagou,	 ao	 reconhecer	 as	 feições	 do	 primo.	—	 Jesus!	—
repetiu,	acelerando	os	passos	e	indo	ao	encontro	do	bem	quisto	recém-chegado.
—	Primo	João,	felicito-me	em	encontrar-te	depois	de	tantos	anos!	—	disse
o	filho	de	Maria,	após	 ter	percorrido	cem	quilômetros	de	estrada	e	 três	dias	de
caminhada	para	vê-lo.	—	E	eu	que	sempre	te	imaginei	substituindo	o	teu	pai	na
linhagem	 sacerdotal,	 agora	 te	 encontro	 como	 um	 respeitado	 pregador	 —
ponderou,	fazendo	referência	ao	finado	Zacarias.
—	Deus	me	deu	outros	misteres	não	menos	nobres,	como	agora	podes	ver
—	esclareceu,	aludindo	aos	 ritos	que	ali	 fazia.	—	Até	hoje	 rogo	para	que	meu
pai	 não	me	 tenha	 tido	 como	 um	 desertor	—	 lamentou	 saudoso.	—	Mas	 e	 tu,
primo?	O	que	fazes	tão	longe	de	Nazaré?
—	Bem	 sei	 que	 há	muito	 não	 nos	 vemos	—	 justificou-se.	—	Mas	 uma
estranha	força	me	moveu	até	aqui	para	auferir	algo	de	especial	pelas	tuas	mãos.
—	 Jesus;	 Jesus!	Ainda	 vejo	 em	 ti	 aquela	mesma	 força	 que	 te	 destacava
entre	nós.	Mas	hoje	eu	não	passo	de	um	pobre	pregador,	que	nada	mais	faz	do
que	lavar	os	pecados	alheios.
—	Pois	se	é	um	banho	de	fé	que	me	podes	dar,	saibas	que	eu	o	aceito	de
bom	 grado,	 afinal,	 creio	 que	 foi	 para	 isso	 que	 eu,	 certamente	 guiado	 por	 um
poder	superior,	deixei	o	meu	ofício	e	a	minha	família.
João	Batista	convidou	Jesus	para	adentrar	o	Jordão	e,	estando	ambos	com
a	 água	 pela	 cintura,	 aquele	 se	 pôs	 ao	 lado	 do	 filho	 de	Maria	 e	 lhe	 segurou	 as
mãos,	imergindo-o	a	fim	de	completar	a	liturgia.
Assim	que	Jesus	se	viu	coberto	pela	água,	o	mundo	pareceu	parar.	Embora
aquela	 manobra	 não	 tivesse	 demorado	 mais	 do	 que	 alguns	 segundos	 para	 os
demais	espectadores,	a	sua	mente	ficou	estagnada	e,	sem	muito	entender,	viu-se
ainda	como	um	alto	arcanjo	no	 início	da	criação	do	mundo.	Na	sequência,	 lhe
vieram	imagens	da	viagem	que	havia	feito	pelos	quatro	cantos	da	Terra	em	busca
da	matéria	árida	que	forjou	Adão;	dos	anos	em	que	ajudou	o	primeiro	homem	a
transformar-se	num	e,	finalmente,	do	palácio	de	Deus	onde	recebeu	um	beijo	que
o	pôs	em	coma	e	o	fez	renascer:	“Tu	és	o	meu	anjo,	o	filho	eterno,	o	mensageiro
do	pacto”.
João,	que	ainda	tinha	o	primo	em	mãos,	auferiu	indiretamente	repentes	das
mesmas	visões	que	ele,	e	crendo	estar	diante	do	prometido,	levantou-lhe	o	corpo
para	 fora	 d’água,	 sendo	 tocado	 por	 um	 brilhante	 clarão	 que	 se	 elevou	 do	 rio,
fazendo	com	que	olhasse,	assustado,	para	aqueles	que	os	cercavam.	E	foi	então
que	 aquela	 mesma	 pomba,	 cujos	 olhos	 brilhavam	 como	 pedras	 preciosas,
ressurgiu	 inesperadamente	 e	 pousou	 no	 ombro	 direito	 de	 Jesus,	 encarando-o	 e
voando	em	seguida.	Feito	isso,	um	fulgor	tomou	conta	do	corpo	do	ungido.	Pois
maravilhado	com	o	que	viu,	João	admitiu:
—	Eis	 aqui	 o	 cordeiro	de	Deus,	 o	 justiçador	 que	 fará	 o	 império	do	mal
decair;	aquele	que	irá	tirar	os	pecados	do	mundo	e	quitar	a	dívida	de	Adão.
Pois	a	profecia	feita	pelo	Altíssimo	ao	seu	primogênito	na	Terra,	aquela	de
que	um	homem	nasceria	da	sua	casa	para	salvá-lo	e,	por	via	de	consequência,	a
toda	a	humanidade,	havia	sido,	finalmente,	cumprida.
Estranhando	aquele	espetáculo,	os	saduceus	e	os	fariseus	que	lá	estavam
para	inquirir	João	se	retiraram	incomodados	e	receosos.	Iniciava-se	ali,	então,	a
fatal	rusga	deles	com	o	mestre	de	Nazaré.
	
*	*	*
	
A	noite	já	havia	caído	quando	Jesus	e	o	primo	conversavam	diante	de	uma
fogueira	 que	 se	 consumia	 próxima	 ao	 rio.	 Ciente	 de	 que	 o	 caminho	 para	 o
aguardado	Messias	havia	sido	finalmente	aberto,	o	primeiro	revelou:
—	Estou	convicto	da	relevância	do	trabalho	que	irei	fazer,	mas	é	certo	que
precisarei	 ser	 muito	 forte	 para	 não	 sucumbir	 às	 fraquezas	 que	 me	 cercam	—
revelou.	—	E	tu	bem	sabes	que,	sem	um	preparo	espiritual,	eu	talvez	não	resista,
afinal,	aqui	somos	apenas	carne,	e	a	carne	é	fraca	por	demais.
—	 Creio	 então	 que	 deverás	 desintoxicar	 o	 teu	 corpo	 a	 fim	 de	 te
aproximares	 do	 Criador,	 pois	 se	 suplantares	 o	 desejo	 físico,	 estarás	 bem	 apto
para	enfrentar	qualquer	adversidade.
—	 Tens	 razão	 —	 assentiu	 Jesus.	 —	 Por	 isso,	 deverei	 partir	 para
reconhecer	 a	 minha	 dependência	 de	 Deus	 e,	 em	 assim	 agindo,	 renovarei	 as
minhas	forças,	as	quais	precisarei	muito	daqui	por	diante.
—	Faça	isso,	rabi	—	disse	João	num	tom	respeitoso.
Jesus	sorriu	e	se	 levantou,	partindo,	ainda	naquela	noite,	para	o	rigoroso
deserto	 da	 Judeia,	 onde	 haveria	 de	 permanecer,	 em	 jejum,	 por	 quarenta	 dias	 e
quarenta	noites.
	
*	*	*
	
Depois	 que	 conseguiu	 sair	 do	 regime	 fechado,	 Azeyzel	 se	 tornou	 um
exemplo	de	bom	comportamento	carcerário,	passando	a	cumprir	todas	as	tarefas
que	lhe	eram	emprestadas.
Mas	ninguém	ainda	sabia	que	ele	havia	conseguido	furtar	algumas	páginas
do	Tratado	das	Presenças	cerrado	na	biblioteca	dos	arcanjos	e,	no	 silêncio	dos
seus	 regulares	 resguardos,	 as	 estudava	 de	 maneira	 quase	 que	 obsessiva.	 As
fórmulas	mágicas	deixadas	por	Pyriel	lhe	tomaram	a	mente	e,	influenciado	pelos
fragmentos	 da	 energia	 perdida	 daquele	 suplantado	 príncipe-primeiro,	 ele
conseguiu	decifrar	o	raro	segredo	do	teletransporte,	talvez	o	seu	passaporte	para
tentar	 escapar	 dali.	 Mas	 a	 condenada	 Potência	 aindanão	 estava	 satisfeita.
Azeyzel	 também	 queria	 de	 volta	 as	 asas	 e	 a	 genitália	 que	 lhe	 havia	 sido
trinchada,	tamanha	a	gana	de	novamente	sentir	o	prazer	carnal	que	o	havia	feito
cair	do	Céu	num	passado	distante.
Entretanto,	 um	 pequeno	 pormenor	 emergiu.	 Embora	 os	 sortilégios	 da
criação	 absoluta	 não	 estivessem	ao	 seu	 alcance	—	somente	Miguel	 os	 detinha
—,	 alguns	 indicativos	 de	 regeneração	 parcial	 foram	 por	 ele	 desvendados
naquelas	anotações	proibidas,	mas	nada	que	pudesse	dar	base	a	muita	coisa.	Era
uma	fórmula	restrita	e	bem	difícil,	cuja	limitada	matemática	eclodia	em	apenas
uma	escolha:	ou	as	suas	asas;	ou	o	seu	órgão	sexual.	Por	não	conseguir	esquecer
Layla-Li,	mesmo	sabendo	que	séculos	já	haviam	se	passado	desde	a	morte	dela
no	 dilúvio	 que	 atingiu	 a	 cidade	 de	Nod[68],	 Azeyzel	 optou	 pelo	 último,	 afinal,
caso	conseguisse	 fugir,	 tentaria	 encontrá-la	onde	quer	que	 fosse,	pois,	 no	Céu,
ele	 soube	 que	 os	 homens	 e	 mulheres	 falecidos	 reencarnavam	 de	 tempos	 em
tempos	e,	portanto,	existia	uma	chance	em	mil	de	ela	estar	na	Terra,	quiçá	num
corpo	físico	tão	ou	mais	tentador	que	o	de	outrora.
Pois	 sem	 causar	 alardes,	 ele	 logrou,	 aos	 poucos,	 recriar	 aquilo	 que	 os
lanceiros	haviam	lhe	arrancado	com	ferros	quentes,	a	exemplo	do	que	havia	feito
Pyriel	 com	o	 braço	 decepado	 de	Barakyel	 e,	 por	 debaixo	 das	 vestes,	 agora	 se
sentia	apto	para	tentar	se	aventurar	fora	do	Céu.	E	tal	haveria	de	ocorrer	naquele
ciclo	de	tempo,	após	a	conclusão	das	suas	lidas	periódicas.
Como	de	costume,	um	dos	arcanjos-sentinela	abria	e	fechava	as	celas	dos
presos	que	cumpriam	pena	no	regime	semiaberto,	a	fim	de	que	eles	recebessem
uma	nova	ordem	de	missão	e	passassem	um	período	trabalhando	fora	do	cárcere.
Ao	aportar	na	enxovia	de	Azeyzel,	o	guarda	o	chamou	como	de	praxe	e,
ante	 o	 silêncio	 verificado,	 adentrou	 no	 cárcere.	 Ao	 examiná-lo,	 e	 vê-lo
inteiramente	vazio,	ele	constatou	que	o	chão	da	masmorra	estava	estranhamente
queimado	 e,	 assustado	 —	 as	 fugas	 tentadas	 eram	 raras,	 e	 as	 consumadas
impossíveis	—,	deu	o	alarma.
O	oficial	do	dia	foi,	de	pronto,	ao	seu	socorro.
—	O	que	houve,	soldado?	—	indagou-lhe	um	primeiro-tenente.
—	 Senhor,	 eu	 não	 sei	 como	 reportar,	 mas	 o	 prisioneiro	 sumiu!	 —
respondeu	o	praça,	deveras	surpreso.
—	Mas	isso	não	é	possível!	Vinde!	—	bradou	para	os	demais	vigias	que	lá
chegaram,	ariscos.	—	Vasculhai	tudo!	—	completou.
Ao	revirarem	aquele	diminuto	aposento	que	possuía,	além	da	entrada,	uma
janela	gradeada	intacta,	os	soldados	encontraram	alguns	escritos	cuja	origem	não
puderam	precisar.	Assim	que	foi	avisado	do	evento,	Metatron	dirigiu-se	depressa
para	 a	 ala	 das	 masmorras	 e,	 ao	 examinar	 o	 chão	 chamuscado	 e	 o	 material
achado,	ficou	deveras	preocupado.
—	Isso	não	é	nada	bom...	—	balbuciou.
—	O	que	descobristes?	—	indagou	o	oficial	que	ali	estava.
—	 As	 Presenças	 —	 lamentou.	 —	 Ao	 que	 me	 parece,	 Azeyzel	 furtou
algumas	páginas	do	tratado	proibido	que	estava	cerrado	na	nossa	biblioteca.
—	 Olhe,	 senhor!	 —	 interferiu	 um	 dos	 carcereiros.	 —	 Veja	 isso!	 —
completou,	 ao	 entregar	 ao	 escriba-mor	 outra	 listagem,	 desta	 feita,	 uma	 com
nomes	estranhos	aos	dos	prisioneiros	celestiais.
—	Isso	está	ficando	cada	vez	pior...	—	preocupou-se	ao	examinar	o	título.
—	Este	documento	é	uma	reprodução	do	rol	de	presos	da	Tesouraria	das	Almas
—	esclareceu	Metatron,	ao	se	referir	ao	achado.	—	Mas	esperai...	“Layla-Li!?”
—	indagou	a	si	próprio	ao	lê-lo.
—	Layla-Li?	—	retrucou	o	oficial.	—	Quem	é	ele?
—	 É	 “ela”,	 tenente;	 uma	 humana	 —	 esclareceu,	 ainda	 inspecionando
visualmente	a	cela.	—	Bem,	por	ora,	reportes	a	fuga	ao	alto	comando	—	disse	o
escrivão	já	esboçando	sair	dali.
—	Em	senhor,	para	onde	vai?	—	indagou	o	encarregado.
—	Falar	 com	Deus	e	 rumar	 ao	presídio	de	Guf.	Talvez,	 lá,	 seja	o	único
lugar	onde	eu	consiga	auferir	informações	que	nos	levem	ao	destino	do	fugitivo
—	finalizou	num	tom	enigmático.
	
*	*	*
	
Os	rigores	do	deserto	da	Judeia	eram	temidos.	De	dia,	o	calor	extenuante;
à	 noite,	 o	 frio	 rigoroso.	 As	 diversas	 montanhas	 daquele	 ambiente	 inóspito
contrastavam	 com	 um	 imenso	mar	 de	 pedregulhos	 estorricados	 que	 se	 faziam
cobrir	por	uma	vegetação	predominantemente	seca,	a	qual	tornava	o	local	rude	e
quase	sempre	solitário.
Pois,	 numa	 das	 cavernas	 formadas	 pelas	 estruturas	 rochosas	 que	 lá
existiam,	 precisamente,	 no	 alto	 do	 monte	 da	 Quarentena,	 dois	 anjos	 caídos
recém-libertos	por	Deus	espreitavam	à	espera	de	alguém,	decerto,	especial.
—	Nós	já	estamos	aqui	há	quase	quarenta	dias	terrestres,	e	nada	de	o	tal
homem,	ao	qual	o	Senhor	fez	menção...	—	pontuou	Baalberith	a	Lúcifer.
—	Paciência,	meu	inquieto	irmão;	paciência.	Ele	virá.
Visivelmente	 agitado,	 Baalberith	 se	 levantou,	 arisco	 e,	 coberto	 por	 uma
capa	 escura	 e	 desgastada	 nas	 pontas,	 atingiu	 a	 entrada	 da	 gruta	 a	 fim	 de
novamente	 observar	 a	 fauna	 desértica	 formada	 por	 serpentes,	 lagartos	 e
escorpiões.	Foi	então	que,	em	meio	a	um	caminho	estreito	fincado	abaixo	deles,
finalmente	surgiu	a	cambaleante	silhueta	de	um	homem	adulto,	protegido	por	um
manto	surrado	que	lhe	cobria	a	cabeça	e	o	protegia	do	sol.
—	Lúcifer!	Olha!	—	asseverou	Baalberith.
O	archote	observou	o	recém-chegado	detidamente	e	nada	mais	disse;	fez-
se	em	luz	e	saltou	do	alto	da	caverna.	E	sem	dizer	uma	única	palavra	ao	irmão
que	havia	ficado	para	trás,	pôs-se	a	espreitar	o	tal	errante,	a	fim	de	encontrar	o
melhor	momento	de	abordá-lo	e	cumprir	a	jura	feita	ao	Pai.
O	 dito	 homem	—	 Jesus	—	 já	 estava	 vagando	 pelo	 deserto	 havia	 quase
quarenta	 dias,	 alimentando-se	 superficialmente	 de	 pequenas	 ervas	 e	 do	 raro
líquido	que	extraía	de	um	ou	outro	pedaço	de	cacto	que	porventura	encontrava.
Pois,	ao	vê-lo	agachar-se	para	tentar	auferir	o	fragmento	de	um	na	relva,	Lúcifer
se	achegou.
—	Não	achas	que	essa	refeição	é	um	tanto	mirrada,	meu	amigo?
Ao	 voltar	 o	 rosto	 para	 o	 caído	 e	 nele	 fixar	 os	 olhos,	 algo	 de	 estranho
aconteceu,	como	se	a	visão	de	ambos	fosse	 invadida	por	um	clarão	 inesperado
que	os	 remeteu	a	outros	 tempos.	Jesus	 ficou	um	tanto	confuso,	de	repente,	viu
uma	cena	não	muito	nítida	de	dois	anjos	se	abraçando;	e	Lúcifer	teve	um	repente
do	mesmo	palco,	do	último	contato	afetuoso	que	havia	 tido	com	Miguel	 antes
deste	 ser	 sugado	 pela	 greta	 de	 luz	 que	 os	 levou	 à	 Terra	 durante	 a	 época	 da
criação	 do	 homem.	 Mas	 num	 instante,	 tudo	 voltou	 ao	 que	 era,	 e	 ambos	 se
encararam	com	divisada	seriedade.
—	 Desculpa	 a	 minha	 reação	 —	 respondeu	 Jesus,	 na	 crença	 de	 estar
sofrendo	 algum	 tipo	 de	 alucinação	 em	 razão	 da	 fome	 que	 sentia.	—	 Eu	 não
imaginava	encontrar	alguém	em	meio	ao	deserto.
Ainda	 tentando	compreender	o	 repente	mental	que	havia	 tido,	o	deposto
serafim	passou	a	encarar	o	homem	e,	encontrando	escora	numa	estrutura	rochosa
lá	fincada,	ponderou:
—	É	estranho	como	algo	em	ti	me	soa	familiar	—	afirmou	seguro.	—	Mas
me	satisfaz	uma	pequena	curiosidade:	de	que	casa	descendes?
—	Da	casa	de	Davi	—	respondeu	com	os	lábios	secos	e	superficialmente
feridos.
—	Davi!	—	repetiu	o	banido	de	 forma	efusiva.	—	O	pequeno	pastor	de
Belém	 que	 suplantou	 o	 último	 nefilim	 liberto	 do	 Inferno[69],	 se	 é	 que	 eu	 me
lembro	da	lenda.
—	O	próprio	—	assentiu	Jesus,	ao	sentar-se	deveras	cansado.
—	E	o	mesmo	que	reinou	sobre	Israel	no	 lugar	de	Saul[70],	pois	não?	—
continuou	 o	 ex-príncipe	 dos	 serafins,	 ao	 ensaiar	 pequenos	 passos	 na	 direção
dele.
—	 Ora,	 pareces	 conhecer	 bem	 a	 história	 das	 escrituras	 sagradas	 —
afirmou	o	fadigado	ungido	já	tendo	o	interlocutor	próximo	de	si.
—	“Escrituras	sagradas”	—	repetiu	Lúcifer,	fazendo	aparente	pouco	caso
da	 terminologia.	—	Digamos	que	eu	conheça	bem	a	sofrida	saga	do	vosso,	ou
melhor,	do	“nosso	povo”	—	corrigiu-se	com	os	braços	abertos.	—	Aliás,	também
me	recordo	que	Davi	vem	de	uma	casa	ainda	bem	mais	antiga,	a	casa	de	Adão;	o
“filhode	Deus”	—	disse,	forçando	a	pronúncia	dessa	última	expressão.
—	É	verdade,	vê-se	que	sabes	 sobre	Ele	—	anuiu	Jesus,	pressionando	o
lado	esquerdo	do	pescoço.
Ao	ouvir	aquela	frase	que	aludia	à	figura	do	próprio	Pai,	o	olhar	frio	do
suplantado	serafim	se	estagnou	no	nada	por	um	instante.	Mas	retomando	o	seu
foco	inicial,	ele	continuou:
—	Bem,	pois	se	Adão	é	pai	de	Davi,	ele,	por	via	de	consequência,	também
é	o	teu	pai,	afinal,	tu	descendes	do	primeiro	homem.
—	Decerto	—	concordou	Jesus.	—	Deus	é	o	Pai	de	todos;	o	meu	e	o	teu
também.
—	Bem,	nisso	eu	não	discordo	de	ti,	meu	judiado	rapaz	—	continuou,	com
o	tom	da	voz,	embora	grave,	sempre	dócil.
—	Mas	o	 que	 fazes	 neste	 deserto?	És	 um	viajante	 ou	 estás	 perdido?	—
inquiriu	Jesus.
—	Eu	 sou	 apenas	 um	viajante	 e	me	 faço	 acompanhar	 de	 um	 irmão	que
está	abrigado	numa	caverna	não	 tão	 longe	daqui.	Ele	 tem,	por	assim	dizer,	um
pequeno	problema	epitelial	que	o	impede	de	se	expor	demasiadamente	ao	sol	—
ponderou	Lúcifer	em	alusão	às	feridas	que	ambos	mascaravam	em	razão	do	rigor
do	ambiente	desértico.	—	Mas	e	tu,	meu	amigo,	o	que	fazes	aqui?
—	Eu	vim	comungar,	buscar	purificação	para	cumprir	um	árduo	desígnio
que	me	aguarda.
—	Um	desígnio!	—	repetiu	o	derrubado,	de	forma	sempre	bem	humorada.
—	Pois	eu	e	meu	irmão,	de	certa	forma,	também	viajamos	em	razão	de	um.	Mas
ao	 ensejo,	 nós	 estamos	 aguardando	 o	 sol	 diminuir	 para	 seguirmos	 o	 nosso
caminho.	 E	 até	 que	 isso	 ocorra,	 que	 tal	 fazeres	 um	 pouco	 de	 companhia	 para
nós?
Jesus	 sentia	algo	de	estranho	naquilo	 tudo,	mas	os	 rigores	do	 tempo	em
que	 ali	 estava	pareciam	 ter	 lhe	 subtraído	os	 freios	 inibitórios	 e,	 quase	que	por
instinto,	decidiu	acompanhar	o	seu	oculto	inimigo.
A	caverna	onde	Baalberith	estava	escondido	ficava	no	alto	de	uma	colina
de	 rochas	 e,	 à	 direita,	 havia	 um	 espaço	 que	 margeava	 um	 grande	 precipício.
Assustado	com	a	aproximação	de	Lúcifer	e	daquele	estranho	—	seria	ele	o	 tal
homem?	—	o	ex-procurador	celeste	recuou	para	o	fundo	da	gruta	e	permaneceu
de	atalaia.
—	 Irmão?	—	 bradou	 Lúcifer,	 ao	 lá	 adentrar	 sem	 muita	 pompa.	—	 Eu
trouxe	comigo	um	viajante,	ele	nos	fará	companhia	até	o	sol	se	pôr.
Baalberith	 se	 aproximou	aos	poucos	e,	 ao	vê-los	de	perto	pela	 fresta	do
seu	 capuz,	 foi	 tomado	por	 um	estranho	déjà	vu,	 como	 se,	 ao	 observar	Lúcifer
com	 a	 mão	 esquerda	 no	 ombro	 daquele	 homem,	 enxergasse	 o	 serafim
acompanhando	Miguel	num	dos	extensos	corredores,	do	agora	distante,	palácio
de	cristal.	—	Achegai-vos	—	disse	ele	com	um	ar	solícito.	—	Apenas	sinto	em
não	 ter	 mais	 água	 ou	 comida	 para	 te	 ofertar	 —	 asseverou,	 dirigindo-se	 ao
homem.
—	Se	é	sincera	a	tua	acolhida,	isso	já	me	basta	—	respondeu-lhe	Jesus.
—	 Pois,	 sim,	 os	 nossos	 dias	 não	 têm	 sido	 fáceis.	 A	 comida	 e	 a	 água
rareiam,	e	quem	muito	tem,	pouco	compartilha	—	continuou	Baalberith,	ao	olhar
sutilmente	para	Lúcifer.
—	Em	verdade,	 amigos,	 eu	 jamais	 entendi	os	motivos	pelos	quais	Deus
permite	que	Seus	filhos	sintam	sede	e	fome.	Aliás,	bom	seria	se	nós,	como	filhos
Dele,	pudéssemos	 transformar	pedras	em	pães,	não	achas?	—	indagou	Lúcifer,
tomando	uma	pedra	na	mão	direita.
Entretanto,	mesmo	 estando	 com	 o	 corpo	 faminto	 e	 deveras	 judiado,	 ele
não	se	verteu	àquela	assertiva.
—	Discordo	de	 ti	—	respondeu	 ironicamente.	—	Nem	só	do	pão	vive	o
homem,	pois	a	palavra	de	Deus	é	o	verdadeiro	alimento	da	alma,	é	ela	que	nos
dá	força	e	estabilidade	para	vivermos	—	explicou.	—	E	se	edificarmos	as	nossas
vidas	na	palavra	Dele,	estaremos	sempre	aptos	a	enfrentar	quaisquer	privações,
mesmo	as	físicas,	e	ainda	assim	permanecemos	fortes.
Baalberith,	outrora	um	dos	maiores	oradores	do	Fórum	celeste,	retorceu	os
lábios	 para	 cima	 em	 silêncio,	 como	 se	 tivesse	 ficado	 surpreso	 com	 a	 astúcia
daquela	pertinente	resposta.
Lúcifer	sorveu	a	observação	e	jogou	a	dita	pedra	no	chão.	Entretanto,	não
desistiu.
—	De	 fato,	 denotas	 ser	 instruído.	Mas	 em	 teus	 olhos,	 eu	 enxergo	 uma
majestade	nata,	como	se	tivesses	nascido	para	liderar	exércitos	e	nações.
—	 Exércitos...	 —	 riu	 novamente	 Jesus.	 —	 Quando	 eu	 era	 menino,
costumava	imaginar	que	lideraria	um.
—	Pois	também	percebo	que	tens	predicados	de	sobra	para,	agora	homem
feito,	tomar	a	frente	de	um	verdadeiro.	Tu	não	achas,	irmão?	—	indagou	Lúcifer
a	Baalberith.
—	 Sim,	 claro!	 E	 vendo-te	 diante	 de	 nós,	 estou	 convicto	 que	 tens
condições	para	guiar-nos	na	conquista	de	todos	os	reinos	e	riquezas	do	mundo.
Basta	dizeres	sim;	e	nós	te	seguiremos	—	replicou	o	exilado	serafim	das	leis.
Não	se	sabe	se	pela	fome	ou	pelo	extenuante	cansaço,	Jesus	passou	a	ser,
inadvertidamente,	 cercado	 por	 visões,	 as	 quais	 lhe	 apresentaram	 palácios
gigantescos	 edificados	 em	 ouro	 e	 pedras	 preciosas.	 Suas	 condições	 físicas	 lhe
trapacearam	os	 sentidos	 e,	 aproveitando-se	 disso,	 Lúcifer	 potencializou	 aquele
cenário	e	fez	com	que	luzes	diversas	convergissem	entre	si	e	revelassem	lugares
ainda	mais	belos.
—	Vê	toda	a	exuberância!	Irmana-te	a	nós	e	tenhas	tudo	isso	aos	teus	pés.
Pois	o	que	mais	vale	nesta	vida	miserável,	 se	não	as	glórias	 e	 as	 fortunas?	—
provocou	o	velho	archote.
Livrando-se	 das	 alucinações,	 Jesus	 logo	 voltou	 a	 si	 e,	 ainda	 revelando
certo	humor,	o	que	lhe	era	peculiar,	ponderou:
—	Nós	não	devemos	nos	curvar	à	opulência,	irmãos,	mas	apenas	ao	poder
de	 Deus!	 —	 respondeu	 num	 tom	 professoral.	 —	 Não	 é	 lícito	 adorarmos	 as
riquezas,	 pois	 aqui	 na	 Terra,	 ao	 contrário	 do	 que	 ocorre	 no	 reino	 do	 Senhor,
“tudo	está;	e	nada	é”!	—	afirmou,	seguro.
Baalberith	se	levantou	arisco,	afinal,	Jesus	parecia	ser	um	advogado	nato,
alguém	 cujos	 argumentos	 e	 domínio	 da	 dialética,	 mesmo	 diante	 de	 um	 anjo
letrado	nos	cânones	legais	como	ele,	pareciam	irrefutáveis.
Mas	Lúcifer,	a	quem	se	poderia	pensar	estar	furioso,	apenas	o	aferia.	E	a
sua	desconfiança	ia	aumentando	a	cada	palavra	que	Jesus	dizia,	afinal,	por	que	o
Altíssimo	os	soltaria	para	testar	aquele	humano	em	especial?
Jesus	então,	finalmente,	se	ergueu,	agora	fazendo	menção	de	ir	embora.
—	Agradeço-vos	a	acolhida,	a	companhia	e	a	breve	conversa.	Mas	agora
eu	devo	continuar	com	a	minha	lida.
Os	 dois,	 agora	 inquietos,	 também	 se	 levantaram	 e	 se	 puseram	 a
acompanhar	Jesus	até	a	saída	da	caverna.
—	 Espera,	 amigo	 —	 obstou-lhe	 Baalberith,	 já	 o	 vendo	 próximo	 do
precipício.	—	Vê-se	que	crês	piamente	na	palavra	divina,	no	que	não	te	censuro.
Mas	antes	que	te	vás,	permita-nos	um	último	repto.
—	 Sim!	 —	 engatou	 Lúcifer,	 arisco.	 —	 Olha	 para	 baixo!	 Se	 acreditas
piamente	 em	 Deus,	 lança-te	 daqui!	 Pois	 se	 a	 tua	 crença	 é	 verdadeira,	 Ele
certamente	te	tomará	nos	braços	e	não	permitirá	que	morras.
Sem	prejuízo	disso,	nem	assim	Jesus	alterou	o	seu	temperamento	sereno	e,
na	mesma	toada	de	outrora,	arrematou	a	ambos:
—	Nada	 do	 que	 disserem	me	 fará	 ceder,	 pois	 se	 eu	 me	 lançar,	 o	 farei
somente	para	pôr	o	Senhor	à	prova;	o	que	me	é,	ou	melhor,	nos	é	defeso.	—	E
dando	mostras	de	que,	inconscientemente,	havia	enxergado	a	verdade	que	estava
por	 trás	 dos	 dois,	 finalizou.	—	E	 se	 sois	 quem	 sois;	 bem	 sabeis	 que	 um	 filho
jamais	deve	pôr	o	pai	à	prova,	afinal,	não	se	dá	ultimatos	a	Deus.
O	Messias	esboçou	um	novo	sorriso	—	um	mais	seguro	—	e	lhes	deu	as
costas,	retomando	o	seu	caminho	por	entre	as	intempéries	do	deserto.	Sua	cabeça
doía,	o	seu	estômago	gemia	e	o	seu	corpo	reclamava	pelo	alimento	físico,	mas
ele	continuou	adiante	e	não	olhou	para	trás.
Ao	vê-lo	se	afastar	da	caverna,	o	rei	do	Inferno	balbuciou	sozinho:
—	“Vai	e	ora,	até	que	o	Redentor	surja	de	tua	casa	um	dia	e	vos	salve”.
—	O	que	disseste,	irmão?	—	perguntou	Baalberith	confuso.
—	“Vai	e	ora,	até	que	o	Redentor	surja	de	tua	casa	um	dia	e	vos	salve”	—
repetiu	pacientemente.	—	Eu	ouvi	Deus	dizer	 isso	 a	Adão	ao	 expulsar	 ele	 e	 a
segunda	mulher	do	Éden.	E	esse	tal	humano	descende	da	casa	dele.	Agora,	eu	é
que	te	pergunto,	Baalberith.	Seriaesse	homem	o	tal	“Redentor”?
—	 Talvez.	 Pois	 ele	 superou	 a	 riqueza,	 o	 poder	 e	 a	 glória	 terrestre	 que
ofertamos,	 coisas	 que	 qualquer	 humano	 haveria	 de	 adorar	—	 ponderou	 sob	 a
aquiescência	de	Lúcifer.
Ambos	 se	 quedaram	 silentes	 e,	 somente	 aí,	 entenderam	 os	motivos	 que
levaram	o	Eterno	a	soltá-los	 temporariamente	do	Inferno.	Se	nem	Lúcifer	ou	o
próprio	Baalberith	 conseguiram	quebrar	moralmente	 aquele	 homem,	 que	 força
seria	capaz	de	fazê-lo?	Mas	aquela,	para	ambos,	havia	sido,	por	assim	dizer,	uma
primeira	 derrota.	Ainda	 soltos,	 eles	 não	 desistiriam	 de	 tentar	 colocar	 todos	 os
percalços	possíveis	na	vida	terrena	do	ungido.
Enfim	terminou	o	quadragésimo	dia	em	que	Jesus	andava	pelo	deserto	e,
já	sem	forças,	caiu	vencido	pela	fraqueza	corporal,	e	surpreendentemente	diante
dele,	 surgiu	um	espectro	que	se	estagnou.	Trêmulo,	o	homem	se	esforçou	para
erguer	o	próprio	rosto	a	fim	de	identificá-lo,	e	viu,	diante	de	si,	o	desconhecido
amigo	de	seu	pai	José,	o	seu	querido	irmão	celeste	numa	outra	vida,	o	príncipe
Gabriel.	Em	seguida,	desfaleceu.
O	anjo-mor	o	levantou	cuidadosamente	e,	de	um	bornal	impregnado	com
a	água	mais	pura	do	mundo,	 saciou-o	da	sede	 física.	Diante	do	estado	deveras
debilitado	 em	 que	 o	 avatar	 de	Miguel	 se	 encontrava,	 ele	 jamais	 se	 lembraria
daquele	momento.	Não	naquela	vida.
—	Venceste	uma	dura	partida,	irmão.	Continua	assim,	firme,	pois	aqueles
que	te	amam	aguardam,	pacientemente,	a	tua	volta	para	o	Céu	—	acalentou-o,	o
mensageiro	de	Deus,	ao	deixá-lo	em	segurança.
Ao	 despertar	 algumas	 horas	 depois,	 Jesus	 percebeu	 que	 as	 feridas	 e	 os
rigores	do	deserto	haviam	recuado.	Refeito	daquela	provação,	ele	se	recolocou	a
caminho	do	Jordão	para	começar	a	arregimentar	aqueles	que	o	acompanhariam
pelos	 próximos	 três	 anos,	 até	 que	 a	 sua	 tarefa	 na	 Terra	 acabasse.	 Era,	 enfim,
chegado	momento	de	escolher	os	seus	primeiros	discípulos.
	
*	*	*
	
Quando	 o	 Eterno	 foi	 cientificado	 da	 fuga	 de	Azeyzel,	 Ele	 não	mostrou
aparente	 zanga.	 Os	 arcanjos	 estranharam	 tal	 atitude,	 mas	 Metatron	 logo
desconfiou	que	tudo	aquilo	talvez	fosse	parte	de	um	quebra-cabeça	ainda	maior.
—	 Ele	 deixou	 o	 regime	 fechado	 por	 uma	 iniciativa	 unicamente	 tua	—
disse	Deus	sem	repreendê-lo	—,	mas	se	tencionas	ir	até	o	presídio	de	Guf,	te	dou
a	minha	licença,	pois	a	chave	que	procuras	talvez	esteja	por	lá.
—	Eu	o	encontrarei	e	o	trarei	de	volta,	Senhor.
Sem	demonstrar	rigor,	o	Eterno	abrandou	a	face	e	esclareceu:
—	Talvez	o	destino	remeta	Azeyzel	a	outras	plagas	que	não	as	masmorras
do	teu	quartel.	Ele	buliu	com	forças	consideradas	proibidas	e,	seja	pelas	Minhas,
pelas	 tuas,	 ou	 pelas	mãos	 dos	 homens,	 ele,	 inexoravelmente,	 haverá	 de	 pagar
pelos	seus	crimes.
Metatron	 não	 entendeu	 aquela	 assertiva	 de	 pronto,	 mas,	 sem	 maiores
delongas,	reverenciou	o	Pai	e	o	deixou.
—	Adeus,	meu	filho...	—	sussurrou	o	Eterno,	ao	vê-lo	sair	do	salão,	como
se	já	soubesse	do	fim	que	o	esperava.
Após	 ter	 uma	 rápida	 conversa	 reservada	 com	 o	 seu	 principal	 oficial	 de
cartório,	 o	 Anjo	 Lamechiel,	Metatron	 partiu	 do	 Céu,	 levando	 consigo	 os	 seis
cartapácios	que	escrevia	sobre	a	história	da	humanidade,	os	quais,	àquela	altura,
estavam	estagnados	no	 capítulo	 referente	 à	 tentação	de	 Jesus	no	deserto.	E	na
tétrica	Tesouraria	das	Almas,	ele,	em	breve,	haveria	de	chegar.
	
*	*	*
	
Assim	como	Gabriel,	ao	ali	aportar	pela	primeira	vez,	o	Arcanjo	Metatron
deixou	um	extenso	túnel	de	fogo	e	foi	cuspido	na	dimensão	secreta	do	Guf,	onde
a	dor	moral	pairava	no	ar	parecia	contagiante;	aliás,	tal	não	poderia	ser	diferente,
dada	a	péssima	energia	que	os	desencarnados	lá	produziam.
Após	 as	 necessárias	 apresentações	 ao	 severo	 corpo	 da	 guarda,	 ele
atravessou	 rapidamente	 o	 portal	 que	 levava	 à	 capela	 da	Tesouraria,	 onde,	 sem
demora,	 foi	 ter	 com	 o	 seu	 irmão	 de	 armas,	 Razyel,	 desde	 sempre	 o	 guardião
daquele	tenebroso	lugar.
—	Layla-Li?	—	retrucou	o	tesoureiro-mor,	ao	ser	inicialmente	perquirido
pelo	visitante.
—	Sim,	major.	Eu	verifiquei,	 ainda	em	Vigilum,	que	após	a	 tragédia	em
Nod,	 a	 alma	 dela	 veio	 para	 cá,	 dadas	 certas	 fornicações	 a	 que	 ela	 praticou	 na
Terra.
—	Layla-Li...	Sim!	Eu	me	lembro	do	nome.	Ela	foi	a	companheira	de	um
dos	anjos	vigilantes	castrados;	Azeyzel	se	não	me	trai	a	lembrança.
—	A	própria	—	assentiu.	—	Mas	agora,	eu	preciso	saber.	Ela	reencarnou
ou	ainda	cumpre	pena	sob	a	vossa	autoridade?
Razyel	 levou	o	escrivão-chefe	aos	grandes	arquivos	da	Tesouraria,	onde,
com	 ele,	 passou	 a	 buscar	 informações	 sobre	 a	 tal	 mulher,	 outrora	 esposa	 do
fugido	líder	dos	vigilantes.	Foi	um	dos	seus	ajudantes	que	localizou	o	prontuário,
o	qual	foi,	de	pronto,	entregue	a	ele.
—	Cá	está.	Entretanto,	pelo	que	consta	dos	autos,	ela	não	está	mais	aqui
—	 esclareceu	Razyel.	—	O	 espírito	 dela	 reencarnou	 há	 cerca	 de	 dezoito	 anos
terrestres.
—	E	para	onde	foi?	—	inquiriu	ansioso.
—	Deixa-me	ver...	Na	última	atualização,	surde	que	ela	foi	solta	em	razão
de	uma	petição	de	clemência	feita	por	Harual	—	concluiu	surpreso.
—	Harual?	Eu	não	me	recordo	de	nenhum	procurador	com	esse	nome.
—	Ele	não	é	um	de	nós,	Metatron.	Harual	é	um	espírito	humano,	bisneto
de	Adão,	e	um	dos	primeiros	a	atingir	o	ápice	de	evolução	no	Éden	Espiritual.
Embora	 muito	 elevado,	 ele,	 ou	 melhor,	 “ela”,	 pois	 se	 trata	 da	 alma	 que
originalmente	pertenceu	a	uma	mulher,	aceitou	um	ministério	um	tanto	ingrato,
que	é	o	de	compor,	como	obreira,	a	nossa	pastoral	de	auxílio.
—	Pastoral	de	auxílio?	E	o	que	é	isso?	—	perguntou	curioso	com	o	teor
daquela	desconhecida	expressão.
—	É	um	grupo	 importante	 formado	por	alguns	espíritos	que	atingiram	o
nível	máximo	de	desenvolvimento	mental,	 e	agora	se	dedicam	a	ajudar	os	que
aqui	rogam	por	socorro.
—	E	a	alma	dela	pleiteou	esse	auxílio?
—	Do	prontuário,	consta	que	Layla-Li	já	reencarnou	seis	vezes,	e	para	cá
voltou	na	mesma	conta,	 sempre	por	 imputações	graves,	 a	última	delas,	por	 ter
assassinado	 dois	 filhos	 ainda	 impúberes.	 Pois	 lhe	 foi	 esclarecido	 que	 a	 sétima
chance	 seria	 a	 sua	 última	 e,	 em	 razão	 disso,	 ela	 pediu	 ajuda	 a	Harual,	 a	 qual
passou	 a	 prepará-la	 para	 essa	 nova	 existência,	 que	 se	 daria	 numa	 província
chamada	Judeia.
—	 Judeia...	 —	 repetiu.	—	 Então	 é	 para	 lá	 que	 devo	 ir.	 Mas	 antes,	 eu
gostaria	de	conversar	com	essa	tal	humana	Harual.
—	Certamente.	Um	dos	guardas	o	 levará	até	a	ação	pastoral,	estou	certo
que	ela	o	receberá.
Metatron	agradeceu	o	irmão	e	seguiu	um	carcereiro	que	o	encaminhou	a
uma	das	mais	altas	torres	do	Guf,	onde	permaneciam	os	obreiros	espirituais.	Ao
aportar	 na	 entrada,	 o	 nobre	 oficial	 de	 escrivania	 observou	 de	 longe	 a	 forma
similar	 de	 uma	 humana	 de	 avançada	 idade.	 Ela	 usava	 uma	 toga	marrom	 bem
simples,	tinha	os	cabelos	escuros	e	curtos	e,	de	estatura,	nada	que	ultrapassasse
um	metro	e	meio	de	altura.
—	Harual?	—	chamou.
O	espírito	se	voltou	para	o	interlocutor	e,	sereno	e	sorrindo,	estendeu-lhe
as	mãos.
—	Venha,	arcanjo;	achegue-se	e	traga	a	vossa	paz.
Metatron	 se	 aproximou	 ressabiado,	 entretanto,	 em	 razão	da	necessidade,
logo	deu	início	ao	diálogo.
—	 Desculpa	 a	 invasão	 e	 a	 oportunidade,	 mas	 eu	 estou	 à	 procura	 de
informações	sobre	uma	alma	que	ajudaste	no	passado,	o	seu	primeiro	nome	de
batismo	foi	Layla-Li.
—	A	concubina	da	combalida	Potência?	—	replicou	Harual	de	pronto.	—
Uma	alma	deveras	perturbada	a	qual	muito	auxiliei.
—	É	muito	 importante	que	 eu	a	 encontre,	 pois	 a	mesma	Potência	 a	que
fizeste	 alusão	 escapou	 da	 prisão	 no	Céu	 e	 certamente	 fugiu	 para	 a	Terra	 atrás
dela.
—	 Layla-Li...	 —	 pronunciou	 calmamente.	 —	 A	 ela,	 foi	 dada	 outra
oportunidade.	A	última.	E	a	chave	dela	remanesceria	numa	escolha:	ou	a	paixão
imoral	pela	carne	ou	caridade	pela	palavra	de	Deus.	E	se	ela	vencesse	essa	etapa
e	não	mais	pecasse,	migraria	para	a	ala	curativa	do	Éden,	a	fim	de	renascer	por
uma	últimavez	e	cumprir	uma	importante	missão	com	as	almas	dos	dois	filhos
que	ela	matou	em	sua	penúltima	vida.
—	Uma	assassina	de	crianças?	Quanta	desgraça!	—	lamentou	o	arcanjo.
—	Mas	te	referiste	a	“uma	escolha”?	—	insistiu.
—	Sim.	Pois,	pelo	que	sei,	esse	anjo	exilado	que	procuras	tentará	ser	um
obstáculo	 à	 evolução	 dela.	 Layla-Li	 está	 presa	 a	 um	 carma	 muito	 antigo	 e,
somente	 ao	 extirpá-lo,	 conseguirá	 se	 libertar	 desses	 ciclos	 seguidos	 de
reencarnação.
—	Desculpa,	mas	falaste	em	carma?	—	perguntou,	estranhando	o	termo.
—	O	carma	é	um	conjunto	de	atitudes	que	enverga	um	fluxo	de	intenções,
as	quais	podem	ser	boas	ou	más.	Se	boas,	bons	frutos	nascerão;	se	más,	os	frutos
podres	se	alastrarão.
—	Então	devo	apressar-me	antes	que	Azeyzel	a	encontre.
—	Mesmo	que	não	consigas	 interceptá-la,	 já	existe	alguém	na	Terra	que
tentará	 se	 encarregar	 de	 resgatá-la.	 As	 vidas	 passadas	 de	 Layla-Li	 carregam
pecados	gravíssimos,	e	apenas	a	voluntariedade	de	uma	remissão	poderá	salvá-
la.	Livre-arbítrio,	meu	caro	 arcanjo,	 lembra-te	que	os	homens	 e	 as	mulheres	o
possuem	desde	que	perderam	o	primeiro	paraíso	em	razão	de	um	pedaço	de	figo
—	arrematou	sorrindo.
—	Bem,	eu	espero	que	ela	faça	a	escolha	certa	—	pontuou.
—	 Embora	 deveras	 distorcida,	 ela	 me	 pediu	 essa	 chance,	 o	 que	 é	 bem
difícil	de	acontecer	por	aqui.	A	cura	efetiva	deve	ser	conquistada	pela	alma,	pois
a	 fé	 suplanta	 não	 apenas	 os	 efeitos,	mas	 também	as	 causas.	Antes	 que	 te	 vás,
deixa-me	 entregar-te	 o	 atual	 código	genético	dela	—	disse	 ela,	 ao	 tocar-lhe	 as
mãos.	—	Pois,	para	o	faro	aguçado	de	um	bom	arcanjo,	ele	certamente	será	útil.
—	Agradeço	muito	a	tua	preciosa	ajuda,	foi	um	grande	prazer	conhecer-te
—	disse,	após	auferir	aquelas	informações.
—	 No	 que	 eu	 puder	 ser	 útil,	 sabes	 onde	 me	 encontrar	 —	 respondeu,
ofertando-lhe	novamente	as	mãos.
Metatron	se	despediu	e	partiu	da	Tesouraria,	pois	a	responsabilidade	pela
fuga	 de	 Azeyzel	 parecia	 incomodá-lo.	 E	 bem	 mais	 do	 que	 isso,	 parecia
assombrá-lo.
	
Capítulo	5
Pedras	em	peixes
EMBORA	ROMA	estivesse	apenas	preocupada	em	evitar	tumultos	e	recolher
impostos	 nos	 territórios	 dominados,	 não	 era	 segredo	 que	 alguns	 focos	 de
insurgência	na	Judeia	incomodavam	Tibério[71],	o	qual	havia	assumido	a	regência
em	razão	do	passamento	de	seu	padrasto,	César	Augusto.	Era	a	chamada	época
dos	 profetas	 e,	 crentes	 na	 vinda	 do	 Messias	 para	 salvá-los,	 o	 povo	 judeu	 se
tornou,	 de	 certa	 forma,	 atrevido,	 chegando	 ao	 ponto	 de	 menoscabar
publicamente	 dos	 dísticos	 reais	 que,	 como	 ordens	 de	 submissão,	 haviam	 sido
forçosamente	fincados	no	grande	Templo	em	Jerusalém.
Tencionando	impor	controle	na	região	—	ou	melhor,	minimizar	problemas
—,	 o	 finado	 imperador,	 por	 influência	 do	 chefe	 da	 Guarda	 Pretoriana,	 Lúcio
Sejano,	havia,	quatro	anos	antes,	nomeado	o	esposo	de	uma	de	suas	filhas	como
procônsul[72]	 da	 província	 romana	 na	 Judeia[73],	 subordinando-o	 apenas	 ao
governador	da	Síria,	Lucius	Vitélio.
Entretanto,	a	incerteza	causada	por	um	partido	subversivo	cujos	membros
eram	conhecidos	por	“zelotes”,	judeus	que	incitavam	a	rebelião	armada	contra	a
opressão	de	Roma,	acabou,	de	certa	maneira,	unindo	o	tetrarca[74]	da	Galileia	ao
prefeito[75]	outrora	indicado	pelo	imperador	Tibério,	o	sul-italiano	Pôncio	Pilatos.
Este,	um	samnita[76]	 da	 ordem	equestre	 e	 detentor	 do	 título	 de	 tribuno[77]	ainda
jovem,	não	mostrava	aparente	satisfação	em	administrar	aquela	parte	tumultuada
do	 mundo,	 pois	 acreditava	 que	 os	 seus	 talentos	 poderiam	 ser	 melhor
aproveitados	em	outras	plagas,	já	que	as	suas	aspirações	políticas	não	poderiam
ser,	 a	 contento,	 executadas	 em	 terras	 notoriamente	 hostis.	 Registre-se	 que	 a
chegada	do	novo	prefeito	romano	em	Jerusalém	não	havia	sido	pacífica,	tendo	os
zelotes	causado	grandes	baixas	nas	coortes	de	infantaria[78]	que	acompanhavam	a
caravana	 do	 tribuno,	 dando	mostras	 que	 o	 trabalho	 de	 administração	 naquelas
terras,	 outrora	 geridas	 por	Valerius	Gratus[79],	 não	 seria	 fácil.	 De	 antemão,	 ele
percebeu	 que	 os	 seus	 sacrifícios	 ao	 deus	 Marte	—	 feitos	 em	 Roma	 antes	 da
viagem	—	pareciam	ter	sido	em	vão.
Pois	 visando	manter	 uma	 boa	 política	 com	Herodes	 Antipas,	 o	 prefeito
romano	e	 a	 esposa	dele,	 a	belíssima	Cláudia	Prócula,	 neta	do	 finado	Augusto,
deixaram	 temporariamente	 a	 cidade	 portuária	 da	 Cesareia[80]	 e	 o	 receberam,
acompanhado	da	mulher	Herodíade[81]	e	da	enteada	Salomé,	numa	grande	ceia	no
palácio	 que	 havia	 pertencido	 ao	 finado	 Rei	 Herodes	 I,	 mais	 precisamente,	 na
fortaleza	 Antônia[82],	 o	 qual,	 havia	 muito	 servia	 de	 residência	 oficial	 para	 os
prefeitos	romanos	em	Jerusalém,	mormente	quando	vinham	aplicar	a	 justiça.	E
naquela	mesma	oportunidade,	o	sacerdote	do	Templo	judeu	nomeado	por	Gratus
oito	anos	antes,	o	saduceu	Josefo	ben	Caifás,	também	se	fazia	presente.
—	Honra-me	sobremaneira	essa	suntuosa	recepção,	prefeito!	—	anunciou
Herodes,	no	afã	de	tentar	bajular	o	romano.
—	 Pois	 tens	 a	 minha	 recíproca,	 Antipas	—	 respondeu-lhe	 Pilatos	 com
aparente	 gentileza.	 —	 A	 distância	 nunca	 nos	 foi	 proveitosa,	 principalmente
quando	 os	 zelotes	 estão	 aumentando	 em	 número	 e	 conspirando	 como	 nunca
contra	Roma.
—	Zelotes...	—	 interferiu	Herodíade	 de	 forma	 impertinente.	—	Fossem
apenas	eles	os	chacais	que	nos	rodeiam...
—	Perdoes	 a	minha	 esposa,	 prefeito,	mas	 ela	 anda	 um	 tanto	 aborrecida
com	a	má	língua	de	alguns	difamadores	do	deserto.
—	Difamadores?	—	insurgiu-se	ela,	elevando	a	voz.	—	Pois	saibas	que	a
língua	 de	 João	Batista	 já	 deveria	 ter	 sido	 arrancada	 de	 sua	 garganta	 há	muito
tempo!	—	asseverou	enfezada.
Cláudia	 Prócula,	 usando	 uma	 brilhosa	 estola	 romana	 que	 a	 embelezava
ainda	mais,	assustou-se	com	aquele	tom;	afinal,	ela	tinha	a	personalidade	calma,
era	 gentil	 e	 educada,	 incapaz	 de	 interferir	—	 ao	menos	 publicamente	—	 num
colóquio	em	que	não	fosse	convidada	a	participar.
—	Pareces	ter	uma	enorme	prevenção	contra	esse	tal	João	Batista,	senhora
—	observou	Pilatos	com	sarcasmo,	afinal,	 ele	 sabia	da	notória	má-fama	moral
dela.	—	Eu	confesso	que	ouvi	 alguns	 relatos	 sobre	 ele,	mas	 até	 então,	 o	 tinha
apenas	como	um	selvagem	que	prega	entre	os	escorpiões.
—	 Ele	 ofende	 a	 mim	 e	 à	 minha	 filha,	 acusando-nos	 de	 práticas	 vis	 e
hediondas	—	bradou	cercada	pela	perturbadora	Salomé,	rebenta	do	seu	primeiro
matrimônio.	—	Mas	o	meu	esposo,	que	de	tudo	aufere	absoluta	ciência,	nada	faz
para	calá-lo	de	uma	vez	por	todas.
—	 O	 problema	 é	 que	 João	 Batista	 não	 viu	 com	 muita	 simpatia	 o
intempestivo	divórcio	de	meu	irmão	Filipe	e	Herodíade	e,	em	razão	de	um	meio
parentesco	dela	comigo[83],	vive	a	acusar-nos	de	incesto	—	esclareceu	em	tom	de
zombaria.	—	Mas	 ele	 é	 um	pobre	mendigo	 adorado	 por	muitos.	Atormentá-lo
seria	 pouco	 sábio,	 afinal,	 nós	 não	 queremos	 problemas	 em	 razão	 de	 assuntos
religiosos.
—	No	que	fazes	muito	bem	—	assentiu	Pilatos.
—	E	perto	de	Barrabás[84]	—	continuou	o	tetrarca	—,	o	líder	dos	zelotes,
ele	não	representa	perigo	algum	—	concluiu,	mirando	a	esposa	de	forma	rude	e
com	o	intuito	de	tentar	fazê-la	se	calar.
—	Barrabás...	—	interessou-se	o	romano.	—	Há	tempos	que	nós	estamos
atrás	desse	tal	rebelde,	desde	que	aqui	cheguei	pelo	que	me	lembro.	Por	vezes,
recuso-me	a	crer	que	ele,	de	 fato,	exista,	e	que	nada	mais	é	do	que	uma	 lenda
criada	 pelos	 insatisfeitos	 para	 dar	 aparente	 força	 moral	 aos	 movimentos
revolucionários.
—	Ele	 existe,	 é	 um	 velho	 ladrão	 e	 assassino	—	 completou	Antipas.	—
Embora	ultimamente	corram	certos	rumores	de	que	a	liderança	dele	vem	sendo
ameaçada	por	uma	espécie	de	lugar-tenente,	um	homem	chamado	Judas,	também
alcunhado	de	“Iscariote”.
—	Iscariote?	—	indagou	o	tribuno	curioso	com	aquela	palavra.
—	Sim.	É	uma	corruptela	da	expressão	“sicário”	ou	o	“homem	da	faca”,
um	 segmento	mais	 agressivo	 dos	 zelotes	 que	 se	 encarregade	 degolar	 os	 seus
inimigos	—	 esclareceu	Herodes,	 ao	 espirituosamente	 correr	 um	 dos	 polegares
sobre	o	próprio	pescoço.
—	 Esses	 homens	 precisam	 ser	 presos,	 eles	 são	 muito	 perigosos	 —
pontuou	o	romano,	aparentemente	preocupado.
—	Além	de	perigosos,	são	astutos	—	interferiu	Caifás	que,	até	então,	se
mantinha	 silente.	 —	 E	 os	 que	 são	 presos	 pela	 Polícia	 do	 Templo[85]	 acabam
revelando	muito	pouco.	Some-se	a	eles	a	malta	de	ladrões	que	infesta	a	cidade,
dentre	 os	 quais,	 um	 chamado	 Dimas,	 o	 qual	 tem	 predileção	 por	 saquear	 os
judeus	 de	maior	 posse	 para	 desafiar-nos.	 O	 Sinédrio	 pôs	 um	 prêmio	 pela	 sua
captura,	mas	ele	enverga	a	simpatia	da	ralé	e,	em	razão	disso,	continua	fora	das
nossas	mãos.
—	 Dimas...	 O	 tal	 que	 rouba	 e	 deixa	 rosas?	—	 retrucou	 o	 prefeito,	 ao
revelar	saber	dos	métodos	do	bandoleiro.
—	O	próprio.	Pois	eu	temo	que	a	sua	postura	sacrílega	ainda	o	leve	à	cruz
—	sugestionou	o	sacerdote.
—	Ladrões...	—	pontuou	Pilatos,	com	aparente	desdém.	—	Mas,	e	sobre
esse	tal	João	Batista,	o	que	a	autoridade	judaica	nos	diz?	—	indagou	o	romano,
voltando	o	rumo	da	conversa.
—	João	 é	deveras	 agressivo	 em	 suas	 falas,	 por	 isso	 tem	a	veneração	de
muitos	 descontentes.	 Ele	 e	 os	 seus	 não	 acatam	 passivamente	 as	 nomeações
sacerdotais	feitas	por	Roma,	inclusive	a	minha,	se	me	permite	dizer.
—	Quanto	 a	 isso,	 saibas	 que	 eu	mantenho	 empenhada	 a	minha	 palavra
inicial,	 e	 no	 que	 depender	 de	mim,	 continuarás	 à	 frente	 da	 função,	 desde	 que
mantenha	o	 teu	Templo-Estado	em	consonância	 com	os	 auspícios	de	César	—
asseverou	o	prefeito	em	razão	da	conhecida	ganância	de	Caifás.
Aliás,	 é	 digno	 de	 menção,	 que	 o	 encargo	 de	 sumo-sacerdote	 era
extremamente	 lucrativo	 naqueles	 dias,	 sendo	 que	 o	 atual	 ocupante	 dele
descendia	 de	 uma	 nobre	 família	 judia,	 cuja	 moral,	 ao	 menos	 diante	 dos
princípios	retos	de	Deus,	não	era	nada	imaculada.	E	para	o	prefeito	romano,	essa
vivência	 colaborativa	 era	 necessária,	 afinal,	 ele	 precisava	 do	 apoio	 dos	 líderes
religiosos	judeus	para	manter	a	paz	e	arrecadar	impostos.
Vencida	 a	 ceia,	 e	 já	 recolhidos	 nos	 suntuosos	 cômodos	 que	 cabiam	 ao
gestor	romano,	Cláudia	Prócula	queixou-se	ao	marido.
—	 Não	 gosto	 dessa	 gente,	 Pôncio.	 Eles	 são	 muito	 estranhos,	 de	 certa
forma,	promíscuos	por	assim	dizer.
—	Promíscuos?	—	repetiu	sem	dar	muita	atenção.
—	Sim.	Não	percebeste	como	Herodes	encara	a	enteada?	Parece	que	ele
está	a	devorá-la	com	os	olhos.
—	Refere-te	à	tal	menina,	Salomé?	—	perguntou,	ao	retirar	parte	da	túnica
que	o	ornava.
—	Menina...	—	 pontuou,	 fazendo	 aparente	 pouco	 caso.	—	 Pois	 aquela
“menina”	parece	ter	a	morte	nos	olhos,	arrepio-me	só	de	lembrar	dela.
—	 Cláudia,	 querida,	 eu	 os	 classificaria	 como	 um	mal	 necessário.	 E	 no
momento	atribulado	em	que	vivemos,	precisamos	deles,	assim	como	eles	de	nós.
—	Eu	 não	 sei.	 Tenho	 um	mau	 pressentimento	 quanto	 a	 eles,	 e	 também
quanto	a	este	lugar	—	desabafou,	aparentemente	incomodada.
—	 A	 tua	 única	 preocupação,	 agora,	 deve	 ser	 com	 o	 nosso	 herdeiro	—
disse	 Pilatos,	 referindo-se	 à	 gravidez	 da	 esposa.	 —	 E	 deixa,	 que	 da	 gestão
política	deste	fim	de	mundo,	cuido	eu	—	finalizou	abraçando-a.
Cláudia	Prócula	aceitou	aquele	afago,	mas	não	desfez	a	feição	temerosa.
Ela	 ainda	 não	 sabia,	 mas	 os	 seus	 medos,	 em	 boa	 verdade,	 não	 eram	 tão
infundados.	 Aliás,	 das	 pérfidas	 ações	 daqueles	 que	 ela	 agora	 dizia	 temer,
eclodiria,	num	futuro	não	tão	distante,	o	destino	de	todos	eles.
	
*	*	*
	
Ainda	 era	 manhã	 quando	 João	 Batista	 viu	 Jesus	 surgir	 na	 linha	 do
horizonte,	egresso	dos	rigores	do	deserto	da	Judeia.	Ao	lado	do	rude	pregador,
estavam	dois	dos	seus	mais	queridos	discípulos,	André	e	o	jovem	João.
Quando	 Jesus	 se	 aproximou	 deles,	 o	 primo	 pôs-se	 de	 joelhos	 e,
respeitosamente,	 lhe	beijou	os	pés	ainda	sujos	de	areia.	O	aprendiz	André,	que
estava	a	consertar	uma	tarrafa,	estranhou	a	atitude	do	mestre,	mas,	por	respeito,
não	a	censurou.	Ao	erguer	o	rosto,	o	pastor	disse	aos	dois.
—	Nada	mais	 tenho	a	ensinar-vos.	Eis	aqui	o	 filho	de	Deus,	 aquele	que
pregará	para	o	mundo!	Portanto,	segui-vos;	ele	agora	é	o	vosso	rabi.
—	João,	muito	me	honra	 ter	sido	 tu	o	portador	das	ordens	do	Eterno	—
disse	o	ungido.
—	 Não	 me	 agradeças,	 apenas	 cumpras	 a	 vontade	 Dele	 e	 redima,	 não
apenas	o	nosso	povo,	mas	o	mundo	todo.
Ambos	se	abraçaram	e	verteram	lágrimas	sinceras,	e	finalmente,	Jesus	se
colocou	a	caminho	da	sua	aguardada	incumbência.
André	e	João	se	puseram	a	segui-lo,	sendo	que	o	segundo,	aparentemente
ressabiado,	olhava	o	novo	mestre	com	certo	receio,	afinal,	ele	parecia	estar	bem
abatido,	resultado	dos	quarenta	dias	que	havia	passado	no	deserto.
—	Estás	a	pensar	se	sou	eu	mesmo	aquele	por	quem	esperáveis?	—	disse
Jesus	 a	 João,	 que	 naquele	 instante,	 imaginava	 exatamente	 o	 que	 lhe	 fora
perguntado.
—	Como	sabes	disso,	rabi?	Por	acaso	consegues	ler	pensamentos?
—	 Não.	 Digamos	 que	 eu	 leia	 a	 linguagem	 corporal	 das	 pessoas	 —
gracejou.	—	E	é	isso	que	a	tua	está	a	me	dizer	—	afirmou	sorrindo.
—	Então	vieste,	finalmente,	nos	libertar?	—	completou	André,	apressando
o	passo	para	ficar	ao	lado	dele.
—	Percebo	que	és	um	pescador,	André	—	ponderou	o	rabi,	em	alusão	à
tarrafa	que	ele	trazia	nos	ombros.	—	Pois	da	mesma	forma	que	enches	a	tua	rede
de	peixes	e	separas	os	bons	dos	ruins,	eu	vim	para	tarefa	similar,	a	de	apartar	os
maus	dos	justos	através	de	uma	ode	de	amor	pela	palavra.	E	quem	a	aceitar,	tal
qual	da	forma	como	dizes,	será,	por	assim	dizer,	liberto.
—	Falas	em	redes	cheias,	mestre.	Mas	ultimamente,	os	peixes	têm	rareado
nestas	regiões,	que	o	diga	o	meu	irmão	mais	velho,	cujo	humor,	em	razão	disso,
não	tem	sido	nada	bom	—	queixou-se	André.
—	E	qual	é	o	nome	do	teu	irmão?	—	perguntou	Jesus.
—	Ele	se	chama	Simão;	nós	somos	filhos	de	Jonas.
—	Então	vamos	visitá-lo;	 quem	sabe	 eu	 consiga	 tirar-lhe	o	 aziúme	com
algo	que	tenho	para	ofertar	a	ele.
André	se	surpreendeu	com	o	agradável	desprendimento	do	novo	professor,
o	qual	diferia,	em	muito,	de	João	Batista,	principalmente	pela	maneira	serena	e
gentil	de	se	expressar.	Entretanto,	achou	por	bem	adverti-lo.
—	Desculpa-me,	rabi,	mas	eu	creio	que,	na	atual	conjuntura,	somente	uma
rede	 abarrotada	 de	 peixes	 seria	 capaz	 de	 aplacar	 o	 extremado	 mau-humor	 de
Simão.
Jesus	achou	graça	naquela	observação	e	afirmou:
—	Vamos	até	ele	então!	Creio	que	o	teu	irmão	terá	uma	surpresa.
Ao	chegarem	próximo	ao	grande	braço	d’água	onde	os	barcos	vindos	do
mar	da	Galileia	aportavam,	os	três	não	demoraram	muito	a	encontrar	o	tão	falado
pescador,	cujos	gritos	de	contrariedade,	como	já	era	de	se	esperar,	o	destacavam
dentre	os	demais.
—	Uma	 noite	 inteira	 de	 trabalho	 e	 nada.	 Nem	 uma	mísera	 tilápia	 para
podermos	 salgar	 —	 reclamava.	 —	 E	 depois,	 ainda	 virão	 aqueles	 malditos
publicanos[86]	exigirem	taxas	pela	nossa	inútil	labuta	—	queixava-se,	ao	saltar	do
barco	 e	 atingir	 o	 raso.	—	Ao	 observar	 o	 irmão	 caçula	 acompanhado	 de	 João,
Simão	deu	continuidade	àquela	 tormentosa	 ladainha.	—	E	 tu?	Ao	 invés	de	me
ajudares	 com	 as	 redes,	 perdes	 o	 teu	 tempo	 com	 aquele	 desatinado	 que	 se
alimenta	de	insetos	—	vociferou,	fazendo	pouco	do	Batista.
Mas	 mesmo	 acreditando	 que	 aquela	 visita	 talvez	 fosse	 inútil,	 André	 se
adiantou	apenas	em	respeito	ao	recém-auferido	professor.
—	Simão,	ouve-me!	Este	é	Jesus,	filho	de	José;	o	nosso	novo	rabi.	E	ele
insiste	que	tem	algo	a	te	oferecer.
—	Oferecer	a	mim?	—	Riu	alto.	—	No	momento,	só	me	interessa	encher
as	tarrafas	para	poder	alimentar	os	nossos	e	saciar	a	sanha	do	fisco	romano.
André	olhou	para	Jesus	como	se	visse	cumprida	a	assertiva	sobre	a	rudeza
do	irmão.
Pois	 o	 escolhido	 deu	 um	 passo	 à	 frente	 e	 entrou	 na	 água,	 a	 fim	 de	 se
aproximar	daquele	pescador	que,	embora	aparentemente	incivil,	não	era	de	todo
ruim	no	quesito	sociabilidade,	mormente	a	auferidaaos	brados,	mais	típica	dos
romanos	do	que	dos	judeus.
—	 Simão,	 por	 acaso	 tu	 sabes	 como	 Deus	 criou	 esses	 peixes	 que	 tanto
desejas?	—	 perguntou	 Jesus,	 ao	 imergir	 uma	 das	 mãos	 na	 água	 e	 retirar	 um
punhado	de	pequenas	pedras.	—	Antes	deles,	Ele	criou	as	estrelas	e,	ao	fazê-las
cair	no	mar,	deu	vida	às	primeiras	criaturas	marinhas	—	esclareceu	com	alegria.
—	Pois,	 leva-me	contigo	e	 joga	as	 redes	mais	uma	vez.	Quem	sabe,	 tu	 tenhas
melhor	sorte	—	sugestionou.
—	E,	por	acaso,	também	és	pescador?	—	bradou	Simão.
—	De	certa	 forma,	 sim...	—	 respondeu-lhe	o	 abnegado	 rabi.	—	Mas	 eu
não	vim	até	aqui	para	pescar	peixes.
—	E	o	que	então	esperas	pescar?	Feras?	—	indagou	com	impertinência.
—	Não,	Simão...	Homens	—	concluiu,	ao	forçar	o	corpo	e	subir	no	barco.
—	E	então?	Tu	não	vens?	—	provocou	Jesus.
Simão	 olhou	 para	 o	 irmão	 e	 para	 João	 e,	 vendo	 latente	 confiança	 nos
rostos	de	ambos,	balbuciou	algumas	lamúrias	desconexas	e	resolveu	arriscar.
—	Tu	és	muito	 estranho,	 forasteiro.	Mas	eu	confesso	que	 fiquei	 curioso
para	ver	onde	queres	chegar	com	estas	tuas	charadas.
O	barco	zarpou	e	logo	ganhou	uma	profundidade	média,	sendo	que	Jesus,
sentado	 na	 popa	 e	 com	 o	 semblante	 tranquilo,	 apenas	 fitava	 Simão,	 o	 qual
parecia	 se	 enervar	 ainda	mais	 com	aquela	 calma	 toda.	Ao	atingirem	um	ponto
considerado	 ideal,	 Simão	 fez	menção	 de	 lançar	 sua	 rede	 ao	mar,	mas	 Jesus	 o
obstou.
—	Espera!
O	 mestre	 levantou	 a	 mão	 direta,	 onde	 ainda	 jaziam	 aquelas	 mesmas
pedrinhas	douradas	colecionadas	na	beira	do	lago	e,	na	sequência,	lançou-as	na
água.
—	 Pronto!	 Agora,	 arremessa	 a	 vossa	 rede	—	 disse,	 seguro,	 voltando	 à
popa	e	nela	encontrando	assento.
Simão	 espremeu	os	 olhos	 em	 razão	do	 sol	 que	 se	 fazia	 rigoroso	 e,	 com
força,	 jogou	o	 tecido	de	malha	que	 impactou,	aberto,	naquele	brilhoso	espelho
d’água.	E,	após	alguns	instantes,	Jesus	o	encarou,	como	se	o	licenciasse	a	trazer
de	volta	a	armadilha.	Pois	 tamanha	foi	a	surpresa	de	Simão	ao	 repuxá-la	e,	no
seu	 pequeno	 convés,	 ver	 um	 amontoado	 de	 peixes	 impactar.	 Incrédulo,	 a
sensatez	simplesmente	lhe	fugiu	naquele	momento.
—	Pedras...	Tu	transformaste	pedras	em	peixes	—	gaguejou.
—	As	pedras	ajudam	a	construir,	a	edificar	—	assentiu.	—	Acompanha-
me,	Simão.	Vem	comigo,	e	sê	como	uma	pedra.
Ao	 vislumbrarem	 o	 barco	 retornar,	 André	 e	 João	 ficaram	maravilhados
com	a	visão	dos	peixes	e	com	o	assombrado	semblante	de	Simão.	O	primeiro,
então,	voltou-se	para	o	irmão	e	falou:
—	Eu	te	disse,	ele	é	quem	nós	esperávamos.
—	O	teu	irmão	está	agora	entre	nós,	André	—	esclareceu	Jesus.	—	E	para
nós,	Simão	agora	será	Pedro,	uma	das	nossas	mais	valiosas	pedras.
	
*	*	*
	
Depois	 do	 milagre	 dos	 peixes,	 os	 quatro	 partiram	 para	 a	 aldeia	 de
Betsaida[87],	 com	 o	 intuito	 de	 dar	 início	 ao	 processo	 de	 evangelização.	 Lá
chegando,	 a	 eles	 se	 juntou	 outro	 peregrino,	 Filipe,	 um	 conhecido	 dos	 irmãos
pescadores.	Impressionado	com	a	desenvoltura	de	Jesus	em	interpretar	as	leis	de
Moisés	 sem	 o	 rigorismo	 e	 a	 hipocrisia	 dos	 fariseus	 e	 saduceus,	 inflexíveis	 e
virtuosos	 apenas	 na	 aparência,	 Filipe	 tratou	 de	 procurar	 o	 amigo	 Natanael	 de
Canaã[88],	 a	 quem	 havia	 conhecido	 na	 Galileia,	 a	 fim	 de	 participar-lhe	 que	 o
herdeiro	de	Davi	parecia	finalmente	ter	chegado.
Ao	encontrá-lo	orando	sob	a	sombra	de	uma	figueira,	tratou	de	convencê-
lo	a	se	juntar	ao	grupo.
—	Eu	falo	sério,	Natanael!	É	ele,	sem	dúvida!	Três	pescadores,	incluindo
o	cético	Simão,	a	quem	muito	conheço,	o	viram	transformar	pedras	em	peixes.
—	Pedras	 em	peixes...	—	desdenhou.	—	E	de	onde	vem	esse	 tal	mago,
Filipe?
—	Ele	é	um	artesão	e	vem	de	Nazaré;	muitos	estão	a	segui-lo	para	ouvir
as	suas	palavras	de	fé	e	de	esperança.
—	Nazaré?	—	Gargalhou.	—	E	 por	 acaso	 aquele	 vilarejo	 insignificante
teria	o	condão	de	parir	algo	que	prestasse?
—	Deixa	de	preconceitos!	—	respondeu	Filipe,	ao	rebater	a	aparente	má-
fama	que	aquela	aldeia	gozava	entre	alguns	judeus.
—	 Eu	 não	 irei	 mais	 discutir	 Natanael,	 vem	 comigo	 e	 vê!	 E	 se	 não	 te
convenceres,	quedar-me-ei	silente.
—	 Filipe,	 Filipe...	—	 lamentou,	 ainda	 incrédulo.	—	 Só	 mesmo	 tu,	 um
sonhador,	para	crer	que	o	esperado	Messias,	um	rei	vindo	da	casa	de	Davi,	sairia
daquele	mísero	 povoado	 agrícola	—	 duvidou.	—	 Pois,	 quanto	 a	mim,	 amigo,
confesso-te	que	já	estou	com	as	esperanças	esvaídas	sobre	a	efetiva	vinda	dele.
Mas	 enfim,	 por	 mera	 comodidade,	 e	 pelo	 laço	 antigo	 de	 amizade,
Natanael	 seguiu	o	amigo	e,	ao	chegar	a	um	pequeno	 lugar	onde	Jesus	se	 fazia
acompanhar	de	Pedro,	 João,	André	e	mais	alguns	seguidores,	 foi,	de	 imediato,
surpreendido	pela	fala	do	rabino,	que	ao	vê-lo	diante	de	si,	interrompeu	um	dos
ensinamentos.
—	Vede,	vós,	amigos,	eis	aqui,	diante	de	nós,	um	israelita	de	coração.	Um
que	ainda	reza	durante	o	dia	e	também	teme	a	Deus.
Surpreso	e	assustado,	o	recém-chegado	o	indagou:
—	Como	sabes	que	sou	filho	de	Israel?	E	mais,	que	eu	estava	a	rezar?
—	Antes	que	o	teu	amigo	Filipe	te	chamasse,	vi-te	orando	sob	a	sombra
de	 uma	 árvore	 antiga,	 a	 qual,	 no	 primórdio	 dos	 tempos,	 carregou	 os	 frutos	 da
ciência.	—	Natanael	 sentiu	 a	 espinha	 gelar.	 Por	 conhecer	 as	 leis	 e	 a	 saga	 de
Adão,	e	concluir	que	Jesus	fazia	alusão	a	uma	figueira,	ele	olhou	para	Filipe	e
tremeu.	—	Mas	já	que	estavas	sob	uma	grande	figueira,	ajuda-me	a	explicar	um
ponto	de	vista	para	os	que	aqui	estão.	Diz,	por	acaso	ela	tinha	muitos	frutos?
—	Sim...	—	titubeou.
—	 Pois	 dá-nos	 a	 tua	 opinião.	 E	 se	 essa	 árvore	 estivesse	 seca	 e	 nada
ofertasse,	num	período	corrido	de	duas	ou	três	colheitas,	por	exemplo,	acharias
justo	ceifá-la	a	fim	de	que	ela	desse	lugar	a	outra?
—	Eu...	creio	que	não.
—	E	por	que	não?
—	Por	 ser,	 a	 árvore,	 uma	obra	 de	Deus,	 entendo	 que	 ela,	mesmo	 fraca,
mereceria	mais	uma	chance,	ainda	que	fosse	a	última.
—	Assim	como	os	homens	—	ponderou	Jesus,	já	se	levantando	e	indo	em
direção	a	Natanael	—,	os	ramos	e	folhas	das	figueiras	se	renovam	a	cada	verão,
assim	 como	 a	 vossa	 fé	 que,	 como	 um	 novo	 figo	 que	 teima	 em	 nascer,	 agora
também	se	renova.
Mirando	Filipe,	Natanael	disse:
—	Tu	estavas	certo.	Eu	vim	e	o	vi.	Ei-lo	aqui	diante	de	nós.
—	Fica	na	nossa	companhia,	Natanael	—	ofertou	Jesus	ao	abraçá-lo.	—
Fica	 e	 sê	 chamado,	 daqui	 por	 diante,	 de	 Bartolomeu[89]	 —	 asseverou,	 sob	 a
concordância	do	mais	novo	discípulo.
	
*	*	*
	
Com	a	arregimentação	de	um	novo	seguidor,	Jesus	decidiu	retornar	com
eles	para	Nazaré,	a	fim	de	visitar	a	mãe,	a	quem	não	via	desde	que	tinha	partido
para	deflagrar	o	seu	ministério.
Maria	se	alegrou	em	ver	o	rebento	bem	e	feliz	e,	ao	seu	turno,	recebeu	os
cinco	 principais	 companheiros	 dele	 como	 se	 filhos	 seus	 fossem.
Coincidentemente,	 na	mesma	noite,	 haveria	 bodas	 na	 cidade	 de	Canaã,	 cidade
natal	 de	Natanael,	 agora	Bartolomeu,	 a	 qual	 ficava	 a	 nordeste	 e	 cerca	 de	 sete
quilômetros	da	vila	de	Nazaré.
Acostumados	à	parca	sociabilidade	de	João	Batista,	André	e	João	ficaram
entusiasmados	quando	Jesus	anunciou	que	 todos	 iriam	para	os	 festejos,	onde	a
dança	e	a	música	não	haveriam	de	faltar.	Pedro	e	os	demais	não	abriram	mão	do
convite	e,	acompanhados	dos	familiares	diretos	do	mestre,	finalmente	tomaram	o
caminho	da	tal	cidade.
Durante	 o	 trajeto	 pela	 estrada	 de	 Séforis,	 chamou-lhes	 a	 atenção	 o
excessivo	apego	de	Jesus	a	Maria,	a	quem	expressava	um	carinho	incomum	de
se	 ver	 naqueles	 dias.	 Aliás,	 ele	 não	 se	 avexava	 em	 dar,	 à	 mãe,	 constantes
demonstrações	 públicas	 de	 afeto,	 abraçando-a	 e	 beijando-a	 com	 anotada
frequência.	Embora	isso	não	fosse	muito	típico	naquela	sociedade,	tal	o	era	para
o	filho	de	Deus,	que	na	mãe	terrena	via	um	porto	seguro,	um	símbolo	do	amor
puro,	 assim	 como	 aquele	 que	 o	 Eterno	 tinha	 para	 consigo	 e	 ele	 para	 com	 a
humanidade.
O	casamento	seria	entre	os	filhos	de	duas	famílias	tradicionais	da	região	e,
aos	 costumes,ele	 transcorria	 sem	 adversidades,	 sendo	 que,	 ao	 verem	 Jesus
dançando,	 os	 demais	 seguiram	 os	 passos	 dele,	 afinal,	 aquela	 série	 ritmada	 de
movimentos	 nada	 tinha	 de	 ofensiva,	 pelo	 contrário,	 era	 um	 costume	 sadio	 do
povo	judeu	desde	os	tempos	de	Noé.
Aconteceu	que,	no	decorrer	da	celebração,	no	terceiro	dia,	o	vinho	servido
aos	convidados	 terminou	antes	do	previsto.	Maria	percebeu	e	olhou	apreensiva
para	o	filho,	afinal,	os	convidados	ainda	chegavam	de	longe,	e	a	mãe	do	noivo
lhe	era	deveras	querida,	sendo	que	a	falta	da	bebida	poderia	significar,	ao	menos
para	os	pais	da	moça	que	contraía	núpcias,	um	sinal	de	má	sorte.
Maria	 se	 dirigiu	 ao	 filho	 e	 lhe	 deu	 parte	 do	 ocorrido.	 Confuso,	 Jesus
respondeu	com	um	ligeiro	movimento	dos	ombros,	indiretamente	dizendo	“Mas
o	que	pode	se	 fazer,	minha	mãe?”.	Pois	a	 imaculada,	um	símbolo	de	grandeza
num	corpo	mirrado,	sorriu	a	ele	e	disse	aos	empregados:
—	 O	 que	 o	 meu	 filho	 disser	 para	 fazer,	 façam!	 Pois	 para	 aqueles	 que
seguirem	o	que	ele	diz,	nada	é	impossível	—	afirmou,	encarando-o	e	retornando
para	o	lugar	que	estava.
Entretanto,	o	teor	daquela	frase	era	bem	mais	significativo	do	que	se	podia
parecer:	“Sigam	o	que	ele	diz	e	nada	será	impossível”,	ou	seja,	sigam	as	palavras
dele	e	tudo	se	realizará;	esse	era	o	sentido	figurado	de	tudo	na	visão	vanguardista
de	Maria.
Ao	 perceber	 a	 genitora	 insistir	 em	 fitá-lo	 com	 o	 canto	 dos	 olhos,	 Jesus
viu-se	 premido	 pelo	 dever	 de	 não	 desfavorecer	 a	 felicidade	 daqueles	 que	 o
haviam	acolhido	tão	bem,	assim	como	aos	seus	novos	amigos.	E	mais,	Maria	deu
a	 entender	 aos	 empregados,	 ainda	 que	 indiretamente,	 que	 a	 palavra	 dele	 era
capaz	de	tudo	para	quem	nela	acreditasse.
Nos	seis	cântaros	vazios	que	lá	estavam,	ele	pediu	a	um	dos	servos	que	os
enchesse	 com	 água.	 Percebendo	 que	 o	 mestre	 estava	 a	 fazer	 algo,	 Pedro	 e
Bartolomeu	se	levantaram	e,	curiosos,	ficaram	por	trás	dele.
—	Mas	estão,	senhor	—	disse	o	serviçal.	—	E	o	meu	amo	certamente	me
repreenderá	se	eu	servir	água	ao	invés	de	vinho.
—	Estão	vazios,	assim	como	vazios	estão	os	corações	de	muitos.	Enche-
os,	 e	 o	 vazio	 que	 tens	 dentro	 de	 ti	 será	 preenchido	 com	 a	 esperança	 de	 dias
melhores.
Confuso,	 o	 servidor	 não	mais	 contestou	 e	 encheu	 os	 vasos	 com	 a	 água.
Feito	isso,	Jesus	fechou	levemente	os	olhos	e	sussurrou:
—	 Faça-se	 a	 boa	 ventura	 dos	 cônjuges,	 hoje	 acolhidos	 em	 santo
matrimônio	perante	Deus.	—	Em	seguida,	determinou	ao	criado:	—	Agora,	toma
uma	jarra	desse	líquido	e	serve-o	ao	pai	da	noiva.
Ainda	incrédulo,	o	servo	acatou,	ressabiado,	e	levou	o	vaso	conforme	lhe
havia	sido	determinado.	Tal	não	foi	a	surpresa	de	Pedro	e	Bartolomeu	—	e	do
empregado,	agora	trêmulo	—	ao	verem	que	o	líquido	vertido	na	taça	do	genitor
da	nubente	estava	 rubro,	era	vinho.	Ao	provar	o	suave	sabor	daquele	néctar,	o
homem	disse	satisfeito	ao	genro	que	ofertava	a	festa:
—	Sei	que	é	costume	servir	o	melhor	vinho	no	início	das	comemorações
e,	quando	todos	estão	entorpecidos,	servir	o	menos	nobre.	Mas	espanta-me	que,
mesmo	 passados	 três	 dias	 do	 início	 dos	 festejos,	 tu	 guardaste	 o	melhor	 vinho
para	o	final.
Sem	entender	o	que	havia	se	passado,	o	noivo	reverenciou	as	palavras	do
sogro	e	com	ele	brindou.
Logo	 depois,	 os	 dois	 discípulos	 reportaram	 o	 feito	 aos	 demais	 que	 lá
estavam,	 afinal,	 os	 poderes	 de	 Jesus	 pareciam	 ser	 sobrenaturais.	 E	 o	 filho	 de
Maria,	pondo-se	novamente	no	lugar	que	lhe	cabia,	sorriu	aos	amigos	e	aceitou
um	pouco	do	mesmo	vinho	que	o	incrédulo	empregado,	com	as	mãos	trêmulas,
serviu	a	ele.
Poucos,	 que	 não	 o	 serviçal,	 Maria,	 Pedro	 e	 Bartolomeu,	 foram
testemunhas	daquele	milagre,	afinal,	o	que	importava	era	manter	a	continuidade
das	 comemorações	 e	 não	 macular	 aquele	 momento	 de	 alegria.	 Mas	 ainda
descrente,	o	servidor	tomou	coragem,	procurou	Jesus	e	o	indagou:
—	Eu	ainda	não	consigo	crer,	senhor.	Não	entendo	como	fizeste	aquilo.
—	Pois	então	não	crês	no	que	os	teus	olhos	veem?
—	Sim;	não.	Eu	não	sei...	—	respondeu	ainda	sem	entender.
—	Como	te	chamas?
—	Eu...	—	hesitou.	—	Eu	me	chamo	Tomé.
—	 Tomé,	 se	 crês	 na	 verdade,	 segue-me.	 E	 se	 o	 fizeres,	 assim	 como
aqueles	cântaros	que	estavam	vazios,	a	tua	fé	também	será	reposta.
E	ali,	então,	Jesus	arregimentou	mais	um	seguidor	fixo,	o	sexto,	que,	com
os	demais,	de	lá	partiu,	tão	logo	o	casamento	findou.
Na	sequência,	o	círculo	só	passou	a	aumentar.	Por	onde	passava,	o	filho	de
Deus	chamava	e	as	pessoas	o	seguiam,	e	quem	o	fazia	não	estranhava	o	poder	da
palavra	dele,	já	que,	daqueles	lábios,	saíam	apenas	boas	novas	de	como	o	nosso
próximo	era	importante.	Embora	Jesus	estivesse	se	cercando	de	apoiadores,	nem
todos	 teriam	 por	 ele	 o	 mesmo	 apreço.	 E	 não	 apenas	 entre	 os	 homens,	 mas
também	entre	os	anjos,	os	mesmos	caídos	que	ainda	tentariam	quebrá-lo.
	
*	*	*
	
Nas	 cavernas	 da	 Judeia,	 um	 ajuntamento	 de	 descontentes	 se	 reunia	 em
segredo.	Imbuídos	apenas	em	atacar	pela	força,	os	zelotes	haviam	arregimentado
um	número	 razoável	de	colaboradores	e,	pelas	mãos	deles,	muitas	armas	eram
forjadas	para	alimentar	o	exército	rebelde	que	aumentava	dia	a	dia.
Quando	o	finado	Judas	de	Gamala[90],	ainda	na	infância	de	Jesus,	liderou
uma	 revolta	 contra	 uma	 guarnição	 romana	 em	 Séforis,	 tal	 movimento	 ficou
marcado	 como	 o	 ponto	 de	 início	 da	 seita	 dos	 zelotes,	 que,	 depois	 de	 anos
adormecida,	passou	a	ser	liderada	pelo	bandido	Barrabás,	nascido	nas	vielas	de
Jopa[91]	e,	desde	cedo,	cunhado	para	odiar	os	seus	conquistadores.	Fervoroso	em
suas	 convicções,	 ele	havia	 crescido	com	outro	garoto	 também	chamado	 Judas,
homem	extremamente	crente	na	 tese	de	que	 tudo	que	fosse	feito	em	nome	dos
escolhidos	 de	 Deus	 era	 justificável,	 inclusive	 o	 assassinato.	 Diante	 disso,	 ele
liderava	os	sicários,	a	ala	mais	radical	dos	zelotes,	uma	espécie	de	ajuntamento
de	“anjos	vingadores”	escalados	para	as	missões	mais	agressivas.
Embora	sendo	um	homem	de	sangue	e	de	armas,	Barrabás	sentia	que,	ao
revés	 de	 João	 Batista,	 era	 ele	 o	 preparador	 para	 a	 vinda	 do	Messias,	 a	 quem
acreditava	 ser	 um	 conquistador,	 e	 não	 um	 simples	 profeta.	 Já	 Judas	 tinha	 a
certeza	de	que	o	ungido	não	haveria	de	ser	apenas	um	guerreiro,	mas	aquele	que,
também	trazendo	a	palavra	de	Deus,	agiria	no	tempo	certo	como	um	verdadeiro
exterminador.
Mas	 enquanto	 ambos	 aguardavam	 a	 vinda	 do	Messias,	 rumores	 sobre	 a
ação	 imiscuída	 de	 espiões	 de	 Pilatos	 se	 espalharam,	 trazendo	 desconforto	 ao
grupo.	 E	 ao	 descobrirem	 que	 um	 dos	 judeus	 recrutados	 havia	 sido	 visto	 na
companhia	de	um	centurião[92]	e,	o	que	é	pior,	surpreendido	com	certa	soma	em
dinheiro	 que	 lhe	 era	 incompatível,	 não	 houve	 sequer	 um	 julgamento.	 Judas
interpelou	 o	 suspeito	 e,	 elevando	 o	 seu	 punhal	 ao	 alto	 como	 se	 pedisse	 uma
bênção	para	aquele	ato,	degolou	o	pretenso	delator,	já	que,	com	as	informações
dele,	cerca	de	quatorze	zelotes	acabaram	mortos	na	cruz.	E	sobre	o	cadáver	do
infeliz,	o	Iscariote	rogou	de	joelhos	e	com	os	olhos	fechados:
—	Deus	é	comigo;	os	traidores	da	fé	não	merecem	viver.
Esse	era	Judas.	Capaz	de	qualquer	coisa	para	trazer	liberdade	aos	judeus,
dono	de	uma	fé	insana,	quase	doentia,	pois	o	que	o	movia	era	apenas	a	figura	do
Messias	da	espada.
	
*	*	*
	
Havia	cerca	de	trinta	anos	terrenos	que	o	Anjo	Gabriel	se	deslocava	com
frequência	entre	o	Céu	e	a	Terra,	principalmente	nos	primeiros	anos	da	vida	de
Jesus,	onde	o	seu	florete	de	fogo	fez	a	diferença	na	segurança	da	sagrada	família.
Após	 ter	 levado	 água	 ao	 ungido	 no	 deserto,	 ele	 finalmente	 voltou	 ao	 seu	 lar,
sendo	que,	chamado	que	foi	por	Deus,	Dele	recebeu	novas.
—	 Como	 anjo	 de	 correio	 que	 és,	 doravante	 focarei	 os	 teus	 préstimos
apenas	para	comunicar-me	com	o	vosso	irmão,	cuja	missão	há	pouco	se	iniciou.
Daqui	por	diante,	estás	licenciado	de	ir	à	Terra	com	a	constância	que	tens	feito,
afinal,	Metatron	saiu	àcaça	de	Azeyzel	e	por	lá	estará.
—	E	sozinho	ele	dará	conta	do	encargo,	Senhor?
—	 No	 momento,	 ele	 está	 só,	 mas	 em	 breve	 outros	 três	 voluntários	 se
juntarão	a	ele	de	forma	paulatina.	E	todos	ficarão	por	perto	zelando	pelo	avatar
de	Miguel,	até	que	a	expiação	se	consume.
—	 Como	 queiras.	 Mas...,	 Senhor	 —	 insistiu	 —,	 e	 o	 que	 será	 feito	 de
Lúcifer	e	Baalberith?	Pondero,	pois	ambos	ainda	estão	livres,	embora	tenham,	a
princípio,	falhado	em	verter	Miguel.
—	Deles,	eu	me	encarregarei	depois.	Entretanto,	existem	outros	que	ainda
deverão	tentar	resistir.	E	quando	o	teu	irmão	terminar	a	missão	que	lhe	foi	dada,
estejas	certo	que	já	tenho	destinos	traçados	para	ambos.
—	Como	queira,	Senhor.
—	 Agora	 vai.	 Congratulo-te	 pelos	 teus	 sucessos,	 e	 logo	 te	 farei	 saber
quem	são	os	que	descerão	à	Terra	para	acompanhar	o	teu	irmão.
O	 príncipe	 dos	 anjos	 deixou	 o	 palácio	 intrigado,	 afinal,	 o	 jogo	 parecia
estar	mudando.	Que	Miguel	voltaria	ao	Céu	em	breve,	era	fato.	Mas	como	e	em
que	circunstâncias,	Gabriel	apenas	descobriria	quando	fosse	visitá-lo	pela	última
vez,	num	longínquo	e	solitário	jardim	chamado	Getsêmani[93].
	
*	*	*
	
Findas	 as	 bodas	 de	 Canaã	 o	 grupo	 retornou	 para	 Cafarnaum,	 de	 onde
iniciaram	 uma	 peregrinação	 que	 chegaria	 nas	 imediações	 da	 grande	 cidade	 de
Jerusalém.	 Por	 onde	 passava,	 Jesus	 continuava	 a	 pregar,	 ao	 ponto	 de	 os
ajuntamentos	 em	 volta	 dele	 começarem	 a	 chamar	 a	 atenção	 dos	 soldados
romanos.	 “Mais	 um	 agitador	 judeu...”,	 caçoavam.	 Mas	 em	 contrapartida,	 ele
certamente	não	era	mais	um.
Sempre	comunicativo	e	caminhando	por	entre	as	pessoas,	Jesus	destoava
pela	 alegria,	 pela	 linguagem	 acessível	 e	 pela	 sinceridade	moral.	 Acostumados
aos	 fariseus,	 os	 humildes	 passaram	 a	 ver,	 diante	 de	 si,	 um	 pregador	 diferente,
que	ao	invés	de	falar	apenas	de	pecados	e	castigos,	entoava	temas	sobre	o	amor	e
o	reino	de	Deus.	E	nas	suas	andanças	—	agora	já	nas	cercanias	de	Jerusalém	—,
ele	foi	instado	nesse	particular	por	um	dos	seus	atentos	espectadores.
—	Mestre,	como	é	a	nação	de	Deus?
Embora	já	tivesse	falado	sobre	ela,	ainda	menino,	no	Templo,	diante	dos
doutores,	 o	 mestre	 não	 se	 fez	 de	 rogado	 e,	 com	 uma	 linguagem	 menos
rebuscada,	respondeu	a	dúvida.
—	 A	 nação	 de	 Deus	 se	 assemelha	 a	 este	 grão	 de	 mostarda-branca!	—
esclareceu	ao	mostrar	um	fragmento	da	semente.
—	Como	assim,	rabi?	—	insistiu	o	observador.
—	O	grão	 é	 pequeno,	 assim	 como	 a	 fé	 de	 algumas	 pessoas.	Mas	 se	 for
plantado	 e	 regado,	 haverá	 de	 crescer	 e	 se	 fará	 numa	 grande	 árvore,	 onde
inúmeras	aves	haverão	de	encontrar	bom	pouso.	Pois	para	entender	o	significado
de	tudo,	compares	as	aves	com	as	pessoas	e	o	grão	que	se	tornou	árvore	com	a
nação	de	Deus,	a	qual	não	está	aqui	ou	acolá,	mas	dentro	do	espírito	que	habita
em	cada	um	de	nós!
—	Mas	onde	fica	esse	lugar?
—	 Num	 plano	 à	 parte,	 onde	 a	 justiça	 é	 feita	 aos	 que	 cumprirem	 os
mandamentos	divinos.
—	Referes-te	às	leis	de	Moisés?	—	perguntou	um	fiel.
—	Eu	me	refiro	às	leis	do	Sinai	e,	principalmente,	à	maior	norma	de	Deus.
—	E	qual	é	ela?
—	Amá-Lo	 acima	 de	 tudo,	 e	 ao	 teu	 próximo	 como	 a	 ti	mesmo,	 afinal,
Deus	não	é	ameaça,	é	perdão.	Eu	não	vim	para	quebrar	as	leis,	mas	sim	devolver
a	elas	o	sentido	original	e	com	isso	restaurar	a	fé.
—	Mestre,	e	o	que	é	fé?	—	inquiriu	uma	mulher.
—	Pensa	neste	mesmo	grão	de	mostarda	que	tenho	em	mãos	—	afirmou
Jesus	com	entusiasmo.	—	Se	a	tua	fé	se	aproximar	de	metade	do	tamanho	dele,
tu	encararás	uma	amoreira	e	dirás:	“arranca-te!”,	e	ela	se	soltará	do	chão	e	irá	na
tua	direção!	 Isso	é	 fé!	É	a	confiança	 inquebrantável	que	depositamos	no	poder
dos	feitos	de	Deus	sobre	as	leis	da	Terra!
Ali	 também	 estava	 um	 cego	 chamado	 Bartimeu,	 cuja	 presença	 se	 fazia
anunciar	 pelo	 tilintar	 de	 um	pequeno	 chocalho	que	 ele	 trazia	 junto	 à	 ponta	 do
cajado.	Tentando	abrir	caminho	entre	os	demais,	o	velho	passou	a	se	guiar	pela
voz	de	Jesus,	para	quem	então	falou:
—	As	vossas	palavras	me	fazem	crer	que	és	o	herdeiro	do	rei	Davi.	Pois,
te	 peço	 humildemente	 que	 caminhes	 até	 mim	 e	 permitas	 que	 eu	 peça	 a	 tua
bênção	—	apelou.
Alguns	 discípulos	 ficaram	 nervosos	 com	 aquela	 situação,	 mormente	 o
sisudo	Pedro,	mas	Jesus	o	desestimulou	e	 tomou	a	direção	do	cego.	Pois	ao	se
aproximar	 do	 rabi,	 Bartimeu	 procurou	 a	 mão	 direita	 dele	 e,	 ao	 encontrá-la,
levou-a	junto	ao	próprio	rosto.
—	Tens	as	mãos	muito	sofridas,	senhor;	mãos	de	um	trabalhador	braçal.
—	E	acreditas	que	essas	mãos	judiadas	podem	fazer	algo	por	ti?
—	Senhor,	enquanto	eu	te	ouvia	ensinar,	visualizei	facilmente	em	minha
mente	o	reino	a	que	fizeste	alusão.	Rogo	então,	sempre	com	respeito	às	coisas	de
Deus,	que	me	licencies	a	ver	a	luz	que	irriga	o	dia.
—	E	crês	realmente	que	eu	possa	ajudar-te?
—	Eu	 pedi	 que	 vieste	 até	mim,	 e	 tu	 o	 fizeste.	 Pois,	 para	mim,	 tu	 és	 a
amoreira	da	parábola.
Jesus	 então	 colocou	 os	 polegares	 sobre	 as	 pálpebras	 maltratadas	 de
Bartimeu	e,	após	fazer	alguns	movimentos	circulares,	disse	a	ele:
—	A	tua	fé,	grande	como	o	Sol,	acabou	de	libertar-te	da	escuridão!	Agora
abre	os	olhos	e	revê	a	luz	que	tanto	aspiras.
De	 nula,	 a	 visão	 do	 tal	 cego	 passou	 a	 turva;	 e	 de	 turva,	 passou,	 aos
poucos,	 a	 encontrar	 sintonia,	 até	 finalmente	 se	 estabelecer,	 límpida.	 Num
repente,	Bartimeu	largou	o	cajado	e	se	dirigiu	sozinho	para	uma	fonte	de	água	ali
existente.	 Sentando-se	 próximo	 dela,	 colocou	 as	 suas	 mãos	 naquele	 líquido
corrente	e	enxaguou	o	 rosto	como	se	o	 lavasse	de	 todo	o	 incômodo	que	havia
experimentado	 durante	 a	 vida	 desde	 que	 a	 cegueira	 lhe	 havia	 acometido	 na
infância.	 Agora	 sentado	 e	 tendo	 uma	 plateia	 estupefata	 à	 sua	 volta,	 ele	 fitou
Jesus	à	distância	e	o	descreveu	fisicamente.
—	Eu	consigo	ver	agora,	diante	de	mim,	um	homem	com	a	majestade	no
rosto.	 Ele	 tem	 os	 cabelos	 negros	 separados	 na	 altura	 dos	 ombros	 e	 a	 pele
marcada	pelo	sol.	Nele	 também	enxergo	serenidade	e	uma	barba	espessa,	além
de	um	olhar	afetuoso	e	expressivo.	Pois	agora	eu	vejo	e	atesto,	és	o	prometido
que	Deus	afiançou	ao	nosso	pai	Adão.
Tomé	 então	 presenciou	 Jesus	 fazer	 mais	 um	milagre,	 o	 que	 o	 fez	 crer,
agora	sem	maiores	dúvidas,	que	o	ungido	estava	diante	de	todos,	 inclusive	dos
que	a	princípio	não	conseguiam	enxergá-lo.	Satisfeito,	ele	sussurrou:
—	De	fato,	eis	aí	o	verdadeiro	portador	da	palavra.	O	nosso	salvador.
	
∷ 	∷ 	∷
	
“Doravante,	empresto-te	o	poder	da	vida,	das	palavras	e	da	compaixão,	e	quem
tiver	fé,	será	curado	pelo	teu	toque.”
	
(Gênesis	Proibido)
	
∷ 	∷ 	∷
	
Embora	o	povo	estivesse	começando	a	admirar	 Jesus	em	razão	dos	 seus
feitos,	 logo	 ocorreu	 que	 certo	 segmento	 passou	 a	 vislumbrar	 aqueles	 eventos
com	particular	desconfiança.	Atentos	para	qualquer	ação	que	viesse	a	colocá-los
em	xeque	perante	o	submisso	povo	judeu,	os	espiões	do	Sinédrio	atentaram	para
aquela	 inusitada	visita	de	 Jesus	às	 redondezas	da	cidade,	bem	como	os	 efeitos
dela	sobre	a	massa.
Entretanto,	 um	 respeitado	 fariseu	 daquela	 seita	 teve	 o	 privilégio	 de,	 em
meio	aos	demais,	assistir	a	uma	das	palestras	do	 rabi	de	Nazaré.	E	enquanto	a
maioria	dos	seus	desprezava	o	galileu,	o	bom	Juiz	Nicodemus,	judeu	de	grande
influência	no	Sinédrio,	resolveu	procurar	Jesus	em	segredo	e,	sabendo	que	ele	e
os	 seus	discípulos	estavam	acampados	próximos	ao	 jardim	de	Getsêmani	para,
no	 dia	 seguinte,	 iniciarem	 uma	 nova	 romaria	 de	 volta	 a	 Cafarnaum,	 decidiu
visitá-lo	quando	a	noite	caiu.
Percebendo	 que	 o	 fariseu	 se	 aproximava	 na	 escuridão	 acompanhado	 de
outras	duas	pessoas	—	empregados	—,	Pedro	se	assustou	e	fez	menção	de	sacar
a	 sua	 espada.	 Mas	 Jesus	 o	 desestimulou	 e	 se	 levantou	 para	 receber	 aquele
magistrado	com	o	respeito	inerente	ao	que	ele	representava	na	crença	judaica.
E	não	foi	preciso	que	Nicodemus	dissesse	uma	única	palavra,	pois	Jesus,
logo	na	sequência,	oconvidou	para	se	sentar	junto	a	um	espaço	donde	jazia	uma
cristalina	corrente	d’água	próxima	ao	jardim.
—	Desculpai	 o	 adiantado	da	 hora,	 rabi.	O	 caso	 é	 que	 eu	 assisti	 a	 vossa
explanação	 hoje	 à	 tarde,	 e	 confesso	 que	 fiquei	 muito	 impressionado	 com	 a
interpretação	que	destes	à	palavra	de	Deus.	E	aquele	conhecido	cego,	Bartimeu...
Ninguém	 pode	 realizar	 uma	 cura	 como	 aquela	 se	 não	 estiver	 verdadeiramente
acompanhado	do	Altíssimo.
—	 Aquele	 cego	 sempre	 enxergou.	 O	 que	 eu	 fiz,	 foi	 apenas	 tirá-lo	 da
escuridão	—	esclareceu.
—	Mas	como	operastes	aquilo?
—	Eu	já	vos	disse,	apenas	lhe	abri	os	olhos	—	sorriu	timidamente.
—	Sei	que	sois	da	parte	de	Deus,	isso	é	fato.	Mas	vós	também	falais	sobre
o	reino	Dele,	e	foi	por	isso	que	eu	vim	até	aqui,	afinal,	manejais	com	habilidade
a	nossa	Lei.	E	se	estiverdes	disposto,	eu	gostaria	de	saber	mais	um	pouco	sobre	a
vossa	visão	do	reino	do	Pai	Eterno.	Como	se	adentra	nele?
—	Qual	a	vossa	graça?	—	perguntou	Jesus	ao	nobre.
—	Nicodemus	ben	Gurion,	ao	vosso	dispor	—	respondeu	solicito.
Olhando	para	baixo	e	em	seguida	para	o	alto,	Jesus	respondeu	a	indagação
de	maneira	serena:
—	Mestre	Nicodemus,	eis	uma	verdade	inquebrantável.	Ninguém	poderá
entrar	no	reino	de	Deus	sem	antes	renascer	em	espírito.
—	Mas	como	é	possível,	a	um	homem,	renascer?	Por	acaso	haveríamos	de
voltar	ao	ventre	de	nossas	mães?
—	Não.	—	Achou	 graça,	 o	 nazareno.	—	Em	 verdade	 vos	 digo,	 ou	 nós
nascemos	carne	e	seremos	carne;	ou	renascemos	espírito	e	seremos	espírito,	mas
num	outro	plano.
—	Poderias	me	explicar	melhor?
—	 Todos	 os	 que	 andam	 sobre	 a	 Terra	 nasceram	 carne,	 e	 a	 carne
invariavelmente	se	destrói.	E	os	que	renascem	após	aqui	ter,	serão	espíritos,	os
quais	não	se	consumem	ou	se	destroem,	afinal,	são	ligados	ao	espaço.	—	Jesus
se	 levantou	 sem	 pressa	 e	 continuou	 a	 sua	 explanação.	—	Bem	 sabes	 que	 este
plano	já	foi	parte	do	reino	de	Deus.	Mas	o	pecado	apartou	o	homem	Dele	e	tudo
foi	 perdido,	 ou	 seja,	 depois	 disso,	 nós	 fomos	 impelidos	 a	 nascer	 carne	 para
mostrarmos	se	somos	ou	não	merecedores	da	vida	eterna	no	reino	do	Senhor	e,
se	 fracassarmos,	 continuaremos	 indo	 e	 vindo,	 até	 limparmos	definitivamente	 a
nossa	alma.
—	Então	crês	em	vida	após	a	morte?
—	A	mansão	 de	Deus	 tem	muitas	moradas,	 e	 ao	 contrário	 do	 que	 pode
parecer,	 vida	 e	morte	 não	 são	 conceitos	 antagônicos,	 eles	 se	 completam,	 pois
mesmo	os	mortos	ainda	vivem	—	disse	seguro.	—	E	eu	creio	que	saibas,	como
mestre	que	és,	que	há	um	palco	diferente	deste	à	espera	desses	assim	chamados
mortos.	Os	aprovados	na	escola	da	vida	certamente	irão	nele	ter,	e	os	reprovados,
ante	a	regra	da	causa	e	do	efeito,	renascerão	novamente	em	carne	para	trabalhar
e	tentar	completar	um	novo	ciclo	de	evolução.
—	E	qual	o	vosso	papel	nisso	tudo?
—	Eu	não	vim	julgar	ou	condenar	os	homens,	mas	tão	somente	salvá-los.
Deus	é	tão	misericordioso,	que	deu	um	dos	filhos	em	sacrifício	à	causa	humana,
pois	 se	 isso	 não	 tivesse	 ocorrido,	 estejas	 certo	 de	 que,	 nem	 a	 Terra	 e	 nem	 os
homens,	mais	existiriam.
—	E	serias	tu	esse	filho?	—	perguntou	num	tom	respeitoso.
Jesus	 respirou	 fundo,	 apoiou	 as	 mãos	 sobre	 os	 joelhos	 e	 novamente	 se
sentou.	E	ao	fazer	isso,	esclareceu:
—	Eu	 sou	 aquele	que	 abrirá	 as	portas	 que	 estavam	 fechadas	 e	 saciará	 a
fome	daqueles	que	a	têm.	Eu	curo	o	rei	que	quer	ser	curado	e	ajudo	o	mendigo
que	quer	ser	ajudado.	Por	isso,	aquele	que	acreditar	na	palavra	de	Deus	não	será
condenado,	e	quem	não	acreditar,	por	via	óbvia,	já	está	condenado.
—	Condenado,	rabi?
—	É	uma	equação	bem	simples,	Mestre	Nicodemus.	Quem	procura	a	luz
irá	para	a	luz;	quem	procura	as	trevas	irá	para	as	trevas.	E	quem	acreditar	no	que
falo,	mesmo	estando	morto,	viverá.
—	Acho	que	entendi	o	teu	ponto	de	vista.
Pois	 o	 nobre	 fariseu	 deu-se	 por	 satisfeito	 e,	 naquela	 noite,	 empenhou
respeito	e	amizade	a	Jesus:
—	Agradeço-te	pela	acolhida	e	pela	lição	—	disse	o	nobre	visitante.
—	Eu	é	que	fico	satisfeito	em	saber	que,	mesmo	dentre	os	intérpretes	da
lei,	ainda	existem	aqueles	que	não	cerraram	a	alma	para	o	amor.
Ainda	 assim,	 Nicodemus	 haveria	 de	 ser	 minoria	 entre	 os	 judeus	 do
Sinédrio,	 os	 quais,	 em	 Jesus,	 passariam	 a	 ver	 apenas	 um	 inimigo,	 alguém	que
haveria	de	ameaçar	o	soberbo	e	hipócrita	modo	de	vida	deles.
	
*	*	*
	
No	 alto	 de	 uma	 enorme	 muralha	 fincada	 em	 Jerusalém,	 um	 conhecido
arcanjo	com	uma	bolsa	de	tecido	mineral	a	tiracolo	punha-se	a	espreitar	a	cidade.
Empoleirado	como	uma	ave	e	feito	em	luz	para	os	humanos,	Metatron	procurava
pacientemente	uma	sintonia	que	o	levasse	aos	seus	alvos:	Azeyzel	e	Layla-Li.
De	 repente,	 ele	 percebeu	 que,	 do	 outro	 lado	 de	 uma	 via	 movimentada,
estava	uma	jovem	com	uma	criança	no	colo,	a	qual,	de	forma	estática,	o	fitava	de
longe.	Mas	como	isso	seria	possível,	se	ele	estava	camuflado	aos	homens?	Pois	a
tal	moça	usava	vestes	humildes,	tinha	um	véu	surrado	sobre	a	cabeça	e,	em	meio
à	agitada	multidão,	destacava-se	por	manter-se	imóvel;	estagnada.
Num	 piscar	 de	 olhos,	 ela	 acabou	 se	 imiscuindo	 entre	 os	 demais
transeuntes	e,	ao	tentar	novamente	localizá-la,	Metatron	a	perdeu	de	vista.	E	ao
enfrentar	 aquele	 dilema	—	quem	 seria	 ela?	—,	 foi	 surpreendido	 por	 uma	 voz
feminina	que	surgiu	de	trás	dele	e	disse:	“Irmão?”.	Ele	então	se	virou	assustado
e,	 finalmente	 reconhecendo	 a	 tal	 “moça”	 e	 a	 “criança”	 que	 havia	 visto	 havia
pouco,	revelou	estupefato.
—	Príncipe?	Capitão!	O	que	fazeis	aqui?
Sim,	 diante	 dele	 estava	 o	 nobre	 Beelzebu,	 príncipe-primeiro	 dos
querubins,	usando	roupas	que	o	assemelhavam	a	uma	mulher	vinda	do	povo.	E
no	 colo	 dele,	 ou	 melhor,	 dela,	 dada	 a	 sua	 aparência	 física	 notadamente
feminizada,	outra	surpresa:	o	também	querubim	Caliel,	o	camareiro-mor	de	Deus
e	 capitão	 da	 inexpugnável	 Guarda	 Negra!	 Ambos	 envergavam	 roupas	 que	 os
faziam	parecer	humanos	comuns,	como	se	fossem	mãe	e	filha	ou,	em	razão	da
aparente	parca	idade	de	Beelzebu,	irmãs.
—	 Seriam	 ambos	 parte	 dos	 alistados	 pelo	 Senhor?	 —	 indagou-lhes
surpreso.
—	Sim.	Nós	 fomos	 os	 voluntários	 para	 acompanhar	 a	 ti	 e	 ao	 avatar	 de
Miguel	até	que	a	tarefa	dele	entre	na	fase	final,	donde	então	virão	outros	dois	nos
ajudar.	 Na	 verdade,	 o	 Capitão	 Caliel	 se	 ofereceu	 para	 vir	 antes	 de	mim,	mas
quando	 eu	 soube	 que	 ele	 voltaria	 à	 Terra,	 ofereci-me,	 de	 imediato,	 para
acompanhá-lo,	 afinal,	 devo	 a	 vida	 a	 ele	—	 esclareceu,	 enaltecendo	 o	 heroico
resgate	 que	 o	 pequeno	 engendrou	 ao	 invadir	 o	 Inferno	 no	 dia	 do	 dilúvio
universal	e	de	lá	repatriá-lo	de	volta	para	o	Céu	e	junto,	Nataniel,	o	arcanjo	cego
preso	nas	masmorras	de	Lúcifer.
—	 Bem,	 irmãos,	 creio	 que	 toda	 ajuda	 será	 bem-vinda.	 Eu	 só	 não
imaginava	que	ela	seria	tão	seleta	e	viria	tão	depressa	—	felicitou-se	ante	a	fama
de	ambos.
—	De	início,	eu	e	Caliel	fomos	instados	a	ir	até	a	aldeia	de	Cafarnaum	e
procurar	o	tal	Jesus,	nome	pelo	qual	Miguel	aqui	responde.	E	o	Senhor	também
nos	 entregou	 algumas	 instruções	 nesta	 carta,	 cujo	 selo	 real	 só	 poderá	 ser
quebrado	 quando	 a	 paixão	 estiver	 efetivamente	 começando	—	 esclareceu,	 ao
mostrar	um	documento	cerrado	ao	arcanjo.
—	 Rejubilo-me	 em	 saber,	 afinal,	 Lúcifer	 e	 Baalberith	 também	 estão
soltos,	 e	 isso	 pode	 significar	 percalços,	 principalmente	 se	 eles	 encontrarem
Azeyzel	antes	de	mim,	ou	melhor,	de	nós.
—	Pois	 sim,	ainda	 temos	a	questão	desse	 fugitivo	de	Vigilum.	Mas	 algo
me	diz	que	a	tua	busca	convergirá	na	mesma	que	a	nossa	—	disse	Beelzebu.	—
Então	vamos	adiante,	deixemos	que	o	destino	se	encarregue	do	cumprimento	das
nossas	missões.
Metatron	 se	 lembrou	 que	 Harual	 o	 havia	 alertado	 de	 que	 haveria	 mais
alguém	 encarregado	 de	 ajudar	 Layla-Li	 na	Terra	 e,	 diante	 do	 quilate	 dos	 seus
companheiros,	 decidiu	 acatar	 a	 sugestão	 do	 príncipe	 dos	 querubins.	 Por	 fim,
disfarçando-se	 igualmente	num	humano,	 isto	é,fragmentando	as	asas	em	 luz	e
cobrindo-se	com	vestes	ordinárias,	ajuntou-se	a	eles	e	formou	o	trio	que	tentaria
fazer	a	diferença	no	conflito	entre	as	forças	do	bem	e	do	mal.
Quanto	ao	quarto	anjo	desse	quadro,	ele	desceria	à	Terra	tempos	depois	e
se	 apresentaria	 em	missão	num	vale	 chamado	Aceldama,	 quando	 a	 história	 de
Jesus	já	estivesse	prestes	a	ter	o	seu	desfecho.
	
Capítulo	6
Mirian	Magdalena
IGUALMENTE	IMISCUÍDOS	ENTRE	OS	HOMENS,	dois	anjos	caídos	aproveitavam	a
auferida	liberdade	para	tentar	cumprir	o	desafio	que	Deus	havia	feito	a	um	deles.
Embora	 a	 primeira	 tentativa	 tenha	 sido	 frustrada,	 Lúcifer	 e	 Baalberith
ainda	estavam	soltos	e,	em	suas	andanças	pelas	terras	que	circundavam	a	Judeia,
eles	 não	 demoraram	 muito	 a	 ter	 informações	 sobre	 aquele	 cuja	 fé	 os	 havia
derrotado	no	interior	de	uma	caverna.	Ele	se	chamava	Jesus,	vinha	de	uma	aldeia
chamada	Nazaré	e,	para	muitos,	era	tido	como	o	filho	de	Deus.	O	filho	de	Deus!
Ora,	 matematicamente,	 quem	 senão	 um	 anjo,	 poderia	 envergar	 tal	 condição?
Sim,	pois	o	Eterno	havia	tido	apenas	três	filhos	humanos:	Adão,	Lilith	e	Virago,
que	depois	passou	a	se	chamar	Eva.	Soma-se	a	isso	o	peculiar	faro	angélico	de
ambos	 ao	 terem	vislumbrado	na	 figura	viva	de	 Jesus	 a	 aura	de	Miguel	que	os
havia	expulsado	do	Céu	e	ainda	pisado	sobre	a	cabeça	da	estrela	da	manhã.
Eles	 também	 estranharam	 o	 fato	 de	 o	 Altíssimo	 não	 tê-los	 mandado
novamente	ao	Inferno	depois	do	“fracasso”	que	tiveram	e,	nessa	toada,	passaram
a	crer	que	Ele	ainda	desejava	submeter	o	filho	feito	homem	—	foi	esse	o	melhor
resultado	dedutivo	que	chegaram	—	a	algum	 tipo	de	provação	ou,	quem	sabe,
manter	 a	 paridade	 de	 armas	 entre	 as	 duas	 forças	 a	 fim	 de	 verificar	 qual	 delas
sairia	vencedora.
—	 Custo	 crer	 nessa	 tese,	 Lúcifer.	 O	 que	 levaria	 o	 Príncipe	 Miguel	 a
submeter-se	a	um	papel	ridículo	desses?
—	A	fé	cega,	meu	descrente	Baalberith	—	respondeu	com	a	peculiaridade
que	lhe	era	comum.	—	Eu	ainda	não	sei	ao	certo,	mas	juntando	as	peças	do	que
averiguamos,	 fica	 claro	 que,	 se	marechal	 voltou	 à	Terra,	 ele	 o	 fez	 para	 provar
que	 os	 homens	 ainda	 merecem	 redenção.	 Aliás,	 caso	 não	 lembres,	 foi	 ele,
Miguel,	que	ajudou	o	nosso	Pai	a	moldar	o	primeiro	deles	e,	no	mesmo	passo,
auxiliou	 aqueles	 dois	 humanos	 que,	 com	 um	 pequeno	 empurrão	 nosso,	 foram
expulsos	do	Jardim	do	Éden.
—	Sim,	mas	nós	precisamos	saber	qual	é,	efetivamente,	o	plano	de	Deus.
Dar	um	trono	na	Terra	a	um	arcanjo	feito	homem	ou	entregá-lo	em	sacrifício	a
uma	causa	muito	maior?	—	sugestionou	o	acusador	celeste.
—	Eu	não	acredito	na	 tese	do	 sacrifício,	pois	Miguel	é	um	guerreiro	—
ponderou	Lúcifer.	—	Talvez	ele	 tenha	assumido	essa	 forma	 infeliz	para	 liderar
um	levante	contra	os	opressores,	a	fim	de	estabelecer	a	paz	entre	os	homens.
—	 Levando	 essa	 ideia	 em	 consideração,	 melhor	 seria	 que	 ele	 não
sobrevivesse	a	tempo	de	fazer	isso.	Pois	se	Miguel	está	na	pele	de	um	humano,
talvez	 ele	 agora	 tenha	 as	 mesmas	 fraquezas	 que	 qualquer	 um	 —	 alertou
Baalberith.
—	Nisso	 eu	 concordo	 contigo	—	assentiu	Lúcifer.	—	Creio,	 assim,	 que
devemos	focar	esforços	no	sentido	de	impedir	que	uma	guerra	ocorra,	pois	com
Miguel	à	frente	de	um	exército,	as	chances	de	os	humanos	saírem	vencedores	é
quase	que	absoluta.
—	Talvez	seja	melhor	abarcarmos	a	 tese	do	sacrifício,	ainda	que	ela	me
pareça	obscura	e	perigosa	—	observou	o	caído	tribuno.	—	Ou	seja,	obstarmos	as
aspirações	bélicas	desse	tal	Jesus,	para	que	ele	tenha	um	destino	penoso,	e	o	que
é	melhor,	pelas	próprias	mãos	daqueles	que	ele	tenciona	salvar.
—	 Exato!	 E	 começaremos	 acompanhando	 os	 passos	 dos	 escravos	 da
cobiça.	E	será	pelas	mãos	deles	que	o	 impediremos	de	 reinar	 sobre	a	Terra	—
concluiu	Lúcifer.
Assim,	 crentes	de	que	estavam	 fazendo	a	 coisa	 certa	—	e	 indiretamente
estavam,	afinal	era	esse	o	plano	original	de	Deus	—,	ambos	passariam	a	viver
junto	 daqueles	 que	 tanto	 desprezavam:	 os	 homens.	 Era,	 enfim,	 a	 eterna	 rusga
entre	o	certo	e	o	errado	que,	vez	mais,	ganharia	voz.
	
*	*	*
	
No	casebre	de	Joana	em	Cafarnaum,	Mirian	estava	deveras	agitada,	pois	a
saúde	 de	 Yigal,	 o	 filho	 tetraplégico	 da	 amiga,	 parecia	 estar	 pior	 do	 que	 de
costume.	Com	o	corpo	integralmente	atrofiado,	o	menino	mal	conseguia	respirar,
talvez	em	razão	de	alguma	moléstia	oportunista	que	o	tivesse	acometido.	E	nada,
nem	as	ervas,	nem	tão	pouco	os	chás	que	lhe	eram	ministrados	pareciam	abreviar
aquele	sofrimento.
Mirian	 olhava	 quase	 sem	 esperanças	 para	 Joana,	 a	 qual	 creditava	 a	má
sorte	 do	 filho	 aos	 vários	 pecados	 que	 ela,	 por	 ter	 se	 tornando	 uma	 prostituta,
carregava	 consigo.	Embora	 fosse	 uma	mulher	 de	 bom	coração,	 o	 comércio	 da
carne	era	visto	com	grandes	reservas	e,	por	conta	do	desprezo	de	muitos,	Joana
enxergava	em	Mirian	a	única	pessoa	que,	vez	ou	outra,	conseguia	minimizar	os
sofrimentos	daquele	pobre	menino.
—	Eu	não	sei	mais	o	que	fazer,	Joana	—	lamentou.	—	Desculpa-me,	mas
eu	já	tentei	de	tudo.
—	 Mirian,	 eu	 ouvi	 falar	 de	 um	 homem	 vindo	 de	 Nazaré	 que	 cura	 os
impuros	e	traz	visão	aos	cegos.	E	ontem,	eu	soube	que	ele	chegou	a	Cafarnaum	e
se	hospedou	na	casa	do	pescador	Simão.	Tu	me	acompanharias	até	ele,	nem	que
seja	para	o	meu	filho	ouvir	uma	simples	palavra	de	consolo?	—	rogou.
Mirian	olhou,	aparentemente	incrédula,	para	a	amiga,	mas	ficou	comovida
com	o	pedido;	o	pleito	de	uma	mãe	desesperada.	Para	ela,	Jesus	talvez	sequer	as
recebesse,	mas	àquela	altura,	não	custaria	tentar.	E	com	a	ajuda	de	dois	vizinhos,
elas	enrolaram	Yigal	numa	manta	e,	com	o	auxílio	de	uma	trave,	puseram-se	a
carregá-lo	pelas	ruas	numa	espécie	de	maca.
Chegando	nas	proximidades	da	casa	de	Simão,	agora	chamado	Pedro,	elas
viram	 um	 grande	 ajuntamento	 de	 pessoas,	 afinal,	 o	 rabi	 lá	 estava	 a	 ensinar,	 e
centenas	de	pessoas	se	amontoavam	para	ouvir	as	lições	dele.
—	 Nós	 não	 conseguiremos	 atravessar	 por	 essa	 multidão,	 Joana	 —
preocupou-se	Mirian.	—	Existem	muitas	pessoas	aqui.
—	Mirian,	mesmo	 sendo	 eu	uma	pecadora,	 a	 vida	 ainda	não	me	 tirou	 a
esperança.	E	seja	qual	for	o	destino	que	o	Deus	de	Israel	tem	para	o	meu	filho,
eu	gostaria	que	ele	apenas	recebesse	uma	bênção	desse	homem,	nada	mais.
—	Está	bem,	vejo	que	nada	haverá	de	 te	 impedir.	Pois	permaneças	aqui
com	o	menino,	e	eu	tentarei	sensibilizá-lo	de	alguma	forma.
—	Não!	Fica	aqui	com	Yigal.	Quem	sabe,	ao	ouvir	o	apelo	de	uma	mãe
aflita,	 ele	 se	 apiede	 de	mim	 e	 diga	 algumas	 palavras	—	disse,	 sob	 a	 relutante
concordância	da	amiga.
Pois	 lá	 foi	 Joana,	 tentando	 desesperadamente	 abrir	 caminho	 por	 entre	 o
povaréu	 que	 cercava	 a	 casa	 de	 Pedro.	 Nesse	 ínterim,	 algumas	 mulheres	 a
reconheceram	em	razão	das	vestes	ligeiramente	transparentes	que	as	prostitutas
eram	 obrigadas	 a	 usar	 e,	 diante	 disso,	 tentaram	 impedi-la	 de	 se	 aproximar	 do
rabi,	puxando-a	pelos	cabelos	e	jogando-a	ao	chão.
Mirian	 percebeu	 o	 que	 ocorria	 com	 Joana	 e,	 entregando	 a	 cautela	 do
garoto	 aos	 vizinhos	 que	 a	 acompanhavam,	 correu	 na	 direção	 da	 amiga	 com	 o
escopo	de	resgatá-la	da	sanha	imoderada	daqueles	que	a	estavam	agredindo.
Mas,	 estando	 em	 meio	 à	 turba,	 e	 sendo	 também	 obstada	 por	 alguns
aldeões	 que	 a	 acusavam	 de	 ser	 uma	 bruxa,	 Mirian	 começou	 a	 ter	 agressivas
contrações	musculares	e	invulgares	cargas	elétricas	no	cérebro,	as	quais	fizeram
com	que	ela	caísse	e	passasse	a	ter	terríveis	convulsões.	Ao	vê-la	se	debater	fora
de	 si,	 os	 seus	 acusadores	 passaram	 a	 gritar	 que	 ela	 estava	 tomada	 pelos	 “sete
demônios”,	como	se	eles,	de	fato,	soubessem	o	que	era	um	“demônio[94]”.
Pois	o	alvoroço	chamou	a	atenção	dos	discípulos	mais	próximos	de	Jesus,
que	 o	 alertaram	 sobre	 o	 que	 acontecia.	O	mestre	 se	 levantou	 e	 passou	 a	 abrir
caminho	até	o	lugar	onde	a	desordem	ocorria	e,	ao	nele	aportar,	viu	Mirian	caída
no	chão,	contorcendo-se	em	razão	da	crise	que	a	acometia.	Nesse	meio	 tempo,Joana	conseguiu	se	livrar	das	pessoas	que	a	seguravam	e,	mesmo	estando	ferida,
jogou-se	aos	pés	de	Jesus,	para	quem,	de	pronto,	implorou:
—	Meu	senhor,	 tende	piedade	de	nós!	Somos	apenas	mulheres	sozinhas,
mas	em	meu	nome	e	no	dela,	 rogo	o	vosso	auxílio!	—	bradou	em	desespero	e
com	a	excessiva	pintura	dos	olhos	já	lhe	borrando	a	face.	—	E	por	misericórdia,
ajuda	também	ao	meu	pequeno	filho	doente.
—	Essa	mulher	é	uma	mundana!	—	urrou	um	velho	que	 lá	estava.	—	E
essa	que	a	acompanha	está	possessa;	afasta-te	delas,	rabi!
Sem	 demora,	 Jesus	 acolheu	 Joana	 em	 seu	 peito	 e,	 indignado	 pelo
preconceito	dos	que	lá	estavam,	respondeu	rispidamente	ao	tal	homem:
—	Não	são	os	 saudáveis	que	precisam	de	médicos,	mas	sim	os	doentes.
Eu	não	vim	até	aqui	para	chamar	pelos	justos,	mas	pelos	pecadores;	e	se	não	tens
uma	palavra	de	amor	para	dizer,	 cala-te	e	 retira-te	daqui,	pois	 se	não	o	 fizeres
por	si	só,	eu	o	farei	por	ti	—	finalizou	num	tom	agressivo.
Pois	ao	ver	Mirian	tremer	de	forma	incontrolável	e	expelir	espuma	pelos
cantos	 da	 boca,	 Jesus	 logo	 soube	 que	 não	 se	 tratava	 de	 “demônio”	 algum
conforme	quis	fazer	ver	aquele	ignorante,	mas	sim	uma	herança	da	vida	passada
dela,	algo	que	a	mesma,	sob	a	forma	de	uma	moléstia,	carregava	como	marca.
Sabedora	da	doença	da	amiga,	Joana	se	dirigiu,	nervosa,	até	ela	e	 tentou
segurá-la	 pelos	 braços,	 mas	 Mirian	 estava	 agitada	 por	 demais,	 como	 se	 um
relâmpago	a	 tivesse	atingido.	Jesus	então	se	aproximou	rapidamente	e,	de	uma
só	 vez,	 pôs	 firmemente	 as	 duas	mãos	 no	 colo	 dela	 e	 gritou:	 “Para	 o	mal	 que
carregas,	eu	agora	trago-te	a	cura!”.	E	naquele	instante,	tudo	mudou.
Pois	 ali	 estavam	 dois	 avatares,	 o	 de	 Lilith	 e	 o	 de	Miguel,	 os	 quais,	 no
início	 da	 criação	 do	mundo,	 já	 haviam	 tido	 um	contato	 físico	 similar.	Embora
estranhando	 a	 visão	 que	 lhe	 inundou	 a	 cabeça	—	 um	 anjo	 e	 um	 arremedo	 de
mulher	ainda	disforme	sendo	tocada	no	chão	para	receber	a	ciência	—,	Jesus	se
afastou	 dela,	 oportunidade	 em	 que	 todos	 puderam	 perceber	 que	 os	 fortes
espasmos	que	a	haviam	acometido	simplesmente	desapareceram.	Os	olhos	dela
voltaram	a	ficar	fixos	e	serenos	e,	de	acelerada,	a	respiração	de	Mirian	passou	a
ficar	cada	vez	mais	pausada.
	
∷ 	∷ 	∷
	
“Liberado	por	Deus,	Miguel	se	aproximou	da	estrutura	ainda		quente	e	fincou	as
mãos	nela,	passando	então	a	lhe	transmitir	todo	o	conhecimento	da	Terra
conforme	orientação	do	Altíssimo.”
	
(Gênesis	Proibido)
	
∷ 	∷ 	∷
	
Assistindo	 a	 tudo,	 Joana	 abraçou	 a	 amiga	 ainda	 inerte	 e,	 emocionada,
continuou:
—	Senhor,	por	favor,	olha	também	para	o	meu	pobre	filho	e	dá	a	ele	um
pouco	de	esperança,	nem	que	seja	a	última.
—	E	onde	está	o	teu	filho?	—	indagou-lhe	o	mestre.
—	Ele	não	pode	andar.	Está	próximo	daqui,	preso	a	uma	rede	que	fizemos
para	trazê-lo	até	ti.
Jesus	segurou	Joana	pelos	ombros	e	anunciou:
—	A	 tua	 fé	 é	 muito	 grande,	 mulher.	 E	 em	 razão	 dela,	 enfrentaste	 teus
medos	em	nome	do	amor	que	tens	pelo	teu	filho.	Pois	saibas	que	eu	não	irei	até
ele;	ele	é	que,	já	redimido,	virá	até	nós!	—	disse	ao	apontar	para	o	lado.
De	um	modo	que	a	 todos	ali	surpreendeu,	aquele	menino	cuja	 idade	não
passava	dos	dez	anos,	surgiu	ereto	diante	deles;	ainda	levemente	atrofiado,	mas
se	soltando	aos	poucos	e	andando	em	passos	curtos.	Movimentando	os	lábios	de
forma	pausada,	todos	lá	ouviram	quando	Yigal	conseguiu,	com	certa	dificuldade,
balbuciar	a	palavra	“mãe”.
Joana	se	atracou	emocionada	ao	filho,	afinal,	desde	que	havia	nascido,	ele
jamais	havia	feito	um	movimento	ou	pronunciado	uma	única	palavra.	Mirian,	ao
seu	 turno,	 logo	 começou	 a	 voltar	 a	 si,	 sentindo-se	 limpa	 como	 nunca.	 E	 a
epilepsia,	 moléstia	 que	 a	 tinha	 perseguido	 desde	 os	 tenros	 anos,	 finalmente	 a
havia	abandonado.
Jesus	 se	 levantou	 e	 sorriu	 a	 ambas,	 deixando-as	 sem	 reação.	 Joana	 teve
um	repente	e	se	reaproximou	do	rabi.	E	após	beijar-lhe	as	mãos,	disse	chorando:
—	Quanta	bondade,	meu	senhor...	E	justo	para	comigo.
—	Mas	por	que	estás	a	dizer	isso?	—	indagou,	tocando-lhe	gentilmente	o
rosto.	—	O	que	tens	de	diferente	dos	outros?
—	Eu...	—	titubeou	—,	eu	sou	uma	prostituta,	senhor	—	disse,	vertendo	a
cabeça	envergonhada.
—	Não	—	discordou	Jesus.	—	Não	és	uma	prostituta.
—	 Mas	 como	 não,	 senhor?	 Não	 consegues	 ver?	 —	 indagou	 Joana
alertando-o	para	a	sua	pintura,	tatuagem	e	vestes	características.
—	Tu	“eras”	uma	prostituta	—	concluiu,	ao	despedir-se	delas.
Ainda	 caída,	 Mirian	 observou	 Yigal	 dando	 os	 seus	 primeiros	 passos.
Assustada	 e	 estranhando	 tudo	o	que	havia	 acontecido,	 ela	 sequer	 conseguia	 se
expressar.
—	Mirian,	 Mirian!	 Ele	 curou	 a	 ti	 também!	—	 vociferava	 Joana,	 agora
tomada	de	felicidade.	—	Eu	te	disse,	ele	é	o	salvador;	é	o	filho	de	Deus.
A	fugitiva	de	Magdala	ainda	tentava	se	recompor	naquele	chão	batido	e,
por	um	instante,	de	longe,	os	olhos	azulados	dela	cruzaram	com	os	castanhos	de
Jesus,	afinal,	eles	já	haviam	se	visto	antes,	mas	em	outra	vida.	Pois	aquele	medo
e	 aquela	 inquietude	 que	 a	 perseguiam	 desde	 a	 infância	 finalmente	 tinham
desaparecido.	E	a	partir	daquele	dia,	tanto	ela	como	Joana	haveriam	de	ter	uma
nova	vida,	uma	vida	de	amor	ao	Cristo.
	
*	*	*
	
No	Éden	Espiritual,	a	claridade	do	que	para	nós	é	o	dia,	jamais	terminava.
O	breu	noturno,	típico	do	nosso	mundo,	não	repercutia	naquelas	bandas	onde	a
luz	reinava	absoluta.
Pois	 um	 dos	 mais	 antigos	 habitantes	 daquele	 plano	 havia	 pedido	 uma
audiência	 com	 o	 administrador	 do	 paraíso,	 o	 Arcanjo	 Zuriel.	 Ao	 saber	 que	 o
primeiro	homem	desejava	falar-lhe,	o	prefeito	ficou	receoso,	afinal,	desde	que	lá
havia	 chegado,	 o	 espírito	 de	Adão	 nada	mais	 fez	 do	 que	 trabalhar	 em	prol	 de
todos.	Aliás,	ele	se	mostrou	um	excelente	empreendedor	braçal,	 já	que,	de	sua
lida,	foram	erguidos	inúmeros	edifícios	que	serviam	de	morada	e	ministério	para
os	habitantes	daquele	plano.
Zuriel	 fez	 questão	 de	 recepcionar	 o	 nobre	 visitante	 no	 grandioso	 arco
dourado	que	dava	acesso	à	prefeitura	e,	dando-lhe	as	mãos	e	com	ele	sentando-se
nas	extensas	bancadas	lá	existentes,	pôs-se	a	ouvi-lo.
—	E	no	que	eu	posso	ajudar	o	filho	de	Deus?	—	indagou	com	simpatia.
—	Eu	apenas	vim	parlamentar;	buscar	algumas	respostas.
—	 Para	 respostas,	 antes	 se	 fazem	 necessárias	 as	 perguntas	—	 pontuou
Zuriel	sempre	espirituoso.
—	Sim...	—	sorriu-lhe	Adão.	—	É	verdade.
—	Bem,	se	aquilo	que	procuras	saber	estiver	em	minha	alçada	esclarecer,
terei	imenso	prazer	em	poder	ajudar.
Adão	 parecia	 nervoso;	 inquieto	 melhor	 seria.	 Zuriel	 também	 sentia	 o
mesmo,	 afinal	 o	 espírito	 do	 primeiro	 homem	 ainda	 trazia	 consigo	 as	 mesmas
feições	do	rosto	de	Deus	e,	de	certa	forma,	aquilo	intimidava	o	arcanjo.
—	Eu	sei	que	o	nosso	tempo	é	diferente	do	da	Terra.	E	também	sei	que	os
que	aqui	vêm	ter	já	se	livraram	do	que	os	prendia	ao	mundo	material.
—	 De	 fato,	 Adão.	 Pois	 para	 transições	 menos	 nobres	 existem	 outros
espaços;	outros	métodos.
—	E	é	sobre	isso	que	eu	gostaria	de	falar.	Dessas	“transições”.
—	Da	de	alguém	em	especial?	—	indagou-lhe	Zuriel.
—	De	 certa	 forma,	 sim.	Eu	 ainda	me	 lembro	 de	 quando	me	 despedi	 da
matéria,	consumido	pelo	fogo	que	fui	—	esclareceu	saudoso.	—	E	também	me
recordo	 que	 o	 fiz	 tendo	 a	 minha	 última	 respiração	 expelida	 na	 boca	 de	 uma
mulher;	a	minha	mulher.
—	Sim,	continue	—	disse	o	arcanjo.
—	Eu	sou	feliz	aqui	—	esclareceu	o	homem.	—	Reencontrei	a	grata	parte
da	minha	família	e	trabalho	para	o	coletivo,	para	a	constante	evolução	de	todos.
Mas	eu	ainda	sinto	falta	de	algo.
—	De	algo	ou	de	alguém?	—	questionou	o	prefeito	fitando-o.
—	Receio	que	seja	de	alguém	—	respondeu	com	um	suspiro.	—	Zuriel,	eu
sei	 que	 Lilith	 e	 eu	 morremos	 juntos,	 pois	 fomos	 naturalmente	 cremados	 pelo
fogo	solar	que	a	matou	após	eu	ter	feito	a	passagem.	E	também	sei	que,	logo	que
vim	para	cá,	renasci	em	espírito.	Mas	e	ela?	Onde	está?
O	prefeito	engoliu	seco	e	tentou	ponderar.
—	Adão,não	compete	a	mim	traçar	a	pista	de	prisioneiros.	Infelizmente,
essa	é	uma	resposta	que	eu	não	tenho	como	te	dar.
—	Que	seja!	—	acatou	aparentemente	contrariado.	—	Mesmo	assim,	eu
gostaria	de	saber	a	 tua	opinião.	Por	acaso	acreditas	que	eu	possa	a	encontrá-la
novamente?
—	 A	 tua	 assertiva	 é	 de	 complicada	 análise	 —	 disse	 o	 prefeito	 se
levantando.	—	Se	ela	não	veio	para	o	Éden	Espiritual,	certamente	foi	despachada
para	as	zonas	inferiores,	afinal,	o	histórico	dela	clamava	por	isso.
—	 Sim,	 eu	 entendo	 e	 aceito.	 Mas	 mesmo	 passado	 tanto	 tempo,	 não
acreditas	na	possibilidade	de	ela	ter	tido	uma	chance	de	se	redimir?
—	Não	posso	responder-te.	O	Guf,	ou	a	“Tesouraria	das	Almas”	como	o
chamam,	é	fechado	aos	de	fora	e,	salvo	os	nossos	obreiros	que	lá	servem,	muito
pouco	se	sabe	sobre	o	que	efetivamente	ocorre	naquelas	dependências.
—	Será	que	ela	ainda	está	presa?
—	 Eu	 conheço	 a	 vossa	 história	 e	 sei	 das	 iniquidades	 da	 tua	 primeira
mulher.	 Mas	 também	 sei	 que	 o	 espírito	 dela	 não	 era	 de	 todo	 obscuro,	 o	 que
certamente	a	 salvou	da	extinção	e	 lhe	deu	créditos	para	aspirar	ao	menos	uma
nova	vida	em	carne.
—	Então	acreditas	ainda	ser	possível	que	eu	volte	a	vê-la?
—	Quem	sabe	do	futuro	é	apenas	o	nosso	Pai.	E	se	for	a	vontade	Dele	que
ela	se	junte	a	ti	novamente,	nada	poderá	evitar	isso.
—	Zuriel,	eu	seria	capaz	de	enfrentar	uma	eternidade	no	Guf	apenas	para
poder	 encontrá-la	 novamente.	 Aliás,	 na	 noite	 em	 que	 nós	 dois	 fizemos	 a
transposição,	algo	me	diz	que	ela	pediu	perdão	a	Deus	e	Ele	aceitou.	Entretanto,
nós	 dois	 seguimos	 caminhos	 diferentes,	 e	 Lilith	 ainda	 deve	 estar	 na	 tal
“Tesouraria”,	quem	sabe	esperando	por	uma	nova	chance.
—	Pode	ser,	meu	amigo,	lá,	ou	talvez	na	própria	Terra,	já	buscando	uma
nova	admissão	para	a	luz.
—	Por	que	dizes	isso?
—	O	meu	procurador	no	Céu	me	reportou	que	o	 teu	bom	amigo	Miguel
deixou	 os	 domínios	 celestes	 para	 executar	 um	 importante	 trabalho	 para	Deus.
Uma	missão	pouco	convencional	para	um	anjo,	pois	me	parece	que	ele	renasceu
em	carne	para	uma	espécie	de	sacrifício.
—	Miguel	está	na	Terra?
—	Sim,	e	apenas	em	matéria.	Aliás,	me	consta	que	uma	renovação	moral
sem	precedentes	está	para	ocorrer	por	lá,	e	quem	sabe	não	seja	essa	a	chance	que
Lilith	tanto	esperou	para	poder	redimir-se	contigo.
—	Eu	faço	votos	de	que	estejas	certo	quanto	a	isso.	Pois,	caso	contrário,
eu	irei	peticionar	ao	nosso	Pai	para	tentar	visitá-la	na	prisão.
—	 Foquemos	 energias	 positivas	 para	 que	 isso	 não	 seja	 necessário.	 Sê
paciente	e	deixa	com	que	os	meandros	de	Deus	se	encarreguem	de	unir-vos	de
novo,	se	essa	for	da	vontade	Dele.
—	 Eu	 quero	 acreditar	 que	 sim,	 afinal,	 esse	 era	 o	 Seu	 plano	 original.
Ademais,	estou	certo	que	o	nosso	Pai	a	ouviu	e	lhe	estenderá	clemência.
Zuriel	assentiu	com	a	cabeça	e	vez	mais	sorriu.
Ao	que	tudo	indicava,	o	amor	de	Adão	por	Lilith	ainda	estava	intacto.	E
mesmo	que	o	destino	dela	ainda	estivesse	nebuloso,	uma	coisa	era	certa:	onde
quer	 que	 ela	 estivesse,	 o	 sentimento	 do	 primeiro	 homem	 haveria	 de	 fazer	 a
diferença	em	qualquer	processo	de	evolução	que	ela	tivesse	que	passar.
	
*	*	*
	
Logo	após	aquele	inusitado	encontro	com	Joana	e	Mirian,	Jesus	continuou
em	 Cafarnaum	 anunciando	 as	 boas	 novas	 de	 fé	 e	 amor,	 arregimentando
seguidores	por	onde	passava.	Embora	os	saduceus	e	os	fariseus	já	estivessem	no
encalço	 dele,	 nada	 parecia	 obstar	 aquelas	 palavras	 de	 chegar	 a	 quem	 delas
necessitava.
Ao	findar	mais	um	ministério	na	praia	da	Galileia,	 Jesus	e	os	discípulos
estavam	 à	 beira-mar	 quando,	 de	 repente,	 vislumbraram	 um	 conglomerado	 de
pessoas	no	local	onde	ficava	a	coletoria	de	impostos	—	a	taxa	marítima	e	a	taxa
de	 fronteira	—,	 os	 quais	 eram	 recolhidos	 em	 nome	 do	 tetrarca	 da	 Judeia.	 A
guarda	 que	 dava	 apoio	 aos	 publicanos	 costumava	 hostilizar	 os	mais	 humildes,
fato	 este	 que	 sempre	 incomodou	 Pedro,	 o	 qual	 nutria	 verdadeira	 ojeriza	 pelos
judeus	 que,	 assim	 como	 o	 ali	 presente	 Levi,	 ministravam	 aos	 romanos	 em
desfavor	do	próprio	povo	subjugado.
De	 longe,	 Jesus	 observava	 Levi,	 e	 na	 fisionomia	 dele,	 percebeu,	 de
antemão,	 que	 algo	 o	 tornava	 diferente	 dos	 demais	 coletores.	 Ele	 orava	 e
frequentava	 a	 sinagoga,	mas,	 em	 contrapartida,	 era	 odiado	 por	 servir	 a	Roma,
afinal,	 não	 abria	 mão	 da	 vida	 de	 posses	 que	 a	 função	 lhe	 proporcionava.	 O
nazareno	então	se	achegou	e	o	encarou	calado.	Percebendo	a	manobra,	Levi,	de
forma	seca,	se	adiantou.
—	Tens	algo	a	declarar?	—	indagou	em	genérica	alusão	aos	impostos	que
recolhia.
—	 Sim	 —	 respondeu-lhe	 o	 recém-chegado.	 —	 Eu	 tenho	 a	 declarar	 o
irrestrito	amor	que	Deus	tem	por	ti.
—	O	que	disseste?	—	retrucou	surpreso.
—	O	amor	de	Deus;	Levi,	filho	de	Alfeu.
—	Mas	como	tu	sabes	o	meu	nome	e	o	de	minha	família?	—	perguntou	o
cobrador,	ao	se	erguer	da	bancada.
—	Percebe-se	facilmente	que	não	és	feliz.	E	embora	vivas	com	conforto,
mesmo	assim	tens	a	tristeza	estampada	no	rosto.
Levi	estranhou	tudo	aquilo,	mas,	por	instinto,	tentou	se	justificar:
—	Pois	saibas	que	eu	também	sou	crente	ao	Senhor,	mas	por	ser	letrado,
acabei	arregimentado	como	publicano.	Mas	não	penses	que	sinto	orgulho	do	que
faço.
—	Então	sejas	sincero	consigo	mesmo.	Crês	em	Deus	ou	não?	—	insistiu
o	rabi.
—	Sim,	por	certo	que	creio.	Entretanto,	sinto	vergonha	de	olhar	para	Ele	e
pedir	perdão,	pois	eu	sei	e	admito,	sou	um	pecador	aos	olhos	do	Senhor.
—	E	por	admitires	isso,	já	serás	exaltado.	Mas	deves	saber	que	ninguém
pode	servir	a	dois	senhores	—	advertiu	o	mestre.
—	Como	assim	“a	dois	senhores”?
—	 Ou	 serves	 a	 Deus	 —	 ponderou	 apontando	 para	 o	 alto	 —,	 ou	 ao
dinheiro.	—	Apontou	para	as	moedas.	—	Não	há	meio	termo.
Levi	olhou	para	as	pessoas	que	o	encaravam	e	ficou	intrigado.
—	A	decisão	é	apenas	 tua.	Se	quiseres	seguir	quem	em	verdade	 te	ama,
abandona	essa	banca	e	torna-te	um	de	nós.	E	se	aceitares	o	meu	convite,	daqui
por	diante	serás	chamado	Mateus.
—	 Mateus...	 —	 replicou	 Levi	 com	 os	 olhos	 já	 marejando.	 —	 Essa
expressão	significa...
—	Significa	“dádiva	de	Deus”!	—	completou	Jesus,	estendendo-lhe,	com
confiança,	a	mão	direita.
—	Eu	não	creio	no	que	estou	vendo	—	sussurrou	Pedro	ao	irmão	André.
—	Ele	está	a	verter	um	maldito	publicano!	—	concluiu	incrédulo.
—	E	então,	Levi;	vens	ou	não?	—	insistiu	o	rabi.
—	Não!	—	respondeu	seguro.	—	Não	me	chames	assim.	Doravante	serei
Mateus,	assim	como	dizes.	E	vinde!	—	disse,	agora	voltando-se	para	os	demais
discípulos.	—	Estão	todos	convidados	para	cear	comigo	na	casa	de	meu	irmão,
pois,	a	partir	de	hoje,	eu	vos	seguirei	até	o	fim	dos	meus	dias.
E	 tal	 assim	ocorreu,	Levi,	 o	 odiado	 publicano	 de	Cafarnaum,	 tornou-se,
num	repente,	o	discípulo	Mateus.
Como	 o	 combinado,	 assim	 que	 o	 sol	 caiu,	 Jesus	 e	 os	 seguidores	 mais
próximos	foram	até	a	casa	do	irmão	de	Mateus,	um	fariseu	chamado	Jairo,	onde
haveriam	 de	 se	 reunir	 para	 celebrar	 a	 mais	 nova	 conversão.	 O	 velho	 Jairo	 já
havia	ouvido	 falar	dos	 feitos	de	 Jesus	e,	por	não	 ser	 radical,	 embora	 fosse	um
tanto	conservador,	desejou	conhecê-lo	melhor	e	ouvir	as	suas	palavras,	afinal,	o
seu	próprio	irmão	agora	haveria	de	ser	um	dos	peregrinos	dele.
Pois	 estando	 a	 ceia	 em	 pleno	 curso,	 percebeu-se	 uma	 invulgar
movimentação	na	entrada	daquela	morada,	sendo	que,	ao	 tentar	verificar	o	que
ocorria,	 os	 presentes	 foram	 surpreendidos	 pela	 ação	 de	 duas	 mulheres	 que
praticamente	invadiram	o	recinto	à	procura	de	Jesus.	Os	olhos	exageradamente
azuis	 de	 uma	 delas	 logo	 cruzaram	 com	 os	 do	mestre,	 o	 qual,	 de	 pronto,	 nela
reconheceu	a	jovem	que	havia	curado	naquela	mesma	manhã,	a	tal	que,	segundo
as	más	línguas	da	praça,	estaria	possuída	pelos	“sete	demônios”.
—	Mas	o	que	essas	duas	pecadoras	fazem	em	minha	casa?	—	vociferou
Jairo,	ao	ostensivamente	desprezá-las.
Percebendo	hostilidade	no	dono	da	casa,	Jesus	o	desencorajou	a	continuar
com	 aquelas	 palavras	 rudese,	 assim,	 permitiu	 que	 elas	 se	 achegassem,	 o	 que
ambas	fizeram	aparentemente	assustadas.
Pois	 uma	 delas,	 Mirian,	 trazia	 consigo	 um	 pequeno	 vaso	 de	 alabastro
tomado	por	um	raro	unguento	oriundo	de	Magdala	—	essência	de	nardo[95]	—,	o
qual,	pelo	elevado	valor,	estava,	havia	muito,	guardado.	Ela	então	se	pôs	aos	pés
de	Jesus,	oportunidade	em	que	começou	a	chorar	impulsivamente.	O	assassínio
do	parvo	marido	de	 sua	 irmã,	 embora	em	 legítima	defesa,	pesava-lhe	 sobre	os
ombros	e,	sentindo	que	essa	culpa	também	poderia	ser	minimizada	pelo	rabino,
ela	passou	a	enxurrar	os	pés	dele	com	o	produto	sincero	do	seu	pranto.
Joana,	que	estava	perto	e	a	assistindo,	logo	se	achegou	dele	e	desamarrou
os	seus	longos	cachos	negros	e,	humildemente,	os	ofertou	ao	salvador.
—	Além	da	minha	eterna	gratidão,	eu	não	tenho	muito	para	dar-te,	a	não
ser	os	meus	 cabelos	para	 secar	os	vossos	pés	—	disse	 ela,	 ao	 enxugá-los	 com
latente	respeito	e	sob	as	rigorosas	vistas	de	todos	os	que	ali	estavam.
Feito	isso,	Mirian	tomou	o	óleo	de	nardo	que	portava	consigo	e	passou	a
ungir	os	pés	de	Jesus,	como	se	os	estivesse	consagrando.	Mas,	ainda	contrariado
com	tudo	aquilo,	Jairo	não	conseguiu	se	manter	silente	e	vociferou:
—	Mestre!	Então	crês	ser	certo	socializar-se	com	mulheres	dessa	estirpe?
Uma	prostituta	e	uma	feiticeira?
Jesus	sorriu	e	o	encarou,	ilustrando	então	o	que	pensava:
—	Jairo,	tu	me	recebeste	em	tua	morada	e	sequer	um	jarro	com	água	para
molhar	os	pés	me	deste.	Já	esta	mulher	está	a	ungir-me	com	um	bálsamo	raro,	o
qual	 poderia	 ter	 sido	 vendido	 ou	 escambiado	 por	 algo	 de	 grande	 monta.	 Por
assim	dizer,	ela	não	tem	a	cobiça	ou	a	soberba	dos	muitos	ditos	“santos”.
O	 fariseu	 se	 calou	 e,	 doravante	 encorajada	 pelo	 bom	 pregador,	Mirian,
ainda	chorosa,	quebrou	o	silêncio:
—	Muito	obrigada	por	amar-me	da	 forma	que	sou,	mesmo	carregada	de
pecados	 desta	 e	 de	 outras	 vidas	 —	 disse	 ao	 derramar	 nos	 pés	 dele	 aquele
dispendioso	óleo	aromático.
—	Como	te	chamas,	mulher?	—	perquiriu	o	mestre.
—	Eu	me	chamo	Mirian,	senhor.
—	E	de	onde	vens?
—	Eu	nasci	em	Magdala.
—	 Magdala	 —	 repetiu	 espirituoso.	 —	 Mirian	 de	 “Magdala”	 —
acrescentou.	—	Mirian	“Magdalena”	—	finalizou,	sorrindo	pra	ela.
—	E	tu?	—	perguntou	dirigindo-se	à	outra.
—	Eu	sou	Joana,	outrora	alcunhada	“Joana	de	Cusa”,	nativa	de	Tiberíades.
E	pelo	que	fizeste	pelo	meu	filho,	serei	hoje	e	sempre	vossa	fiel	seguidora.
Mas	ao	ver	o	 inconformismo	em	Jairo,	 Jesus	disse,	não	apenas	para	ele,
mas	para	todos	os	que	calados	os	observavam.
—	Estas	duas	mulheres	foram	chamadas	de	“pecadoras”.	Pois	eu	vos	digo
que,	se	um	pastor	perder	duas	das	suas	cem	ovelhas	e	abandonar	a	maioria	para
reaver	 as	 perdidas	 e	 com	 elas	 voltar	 sãs	 e	 seguras,	 ele	 deverá	 regozijar-se,
“vejam,	eu	achei	 as	minhas	ovelhinhas	perdidas”.	Pois	o	mesmo	ocorreu	aqui.
Haverá	maior	 júbilo	no	Céu	por	duas	mulheres	que	se	arrependem,	do	que	por
outras	noventa	e	oito	que	não	necessitam	de	qualquer	reparo.
Jairo	 ouviu	 silente	 e,	 admoestado	 pelo	 teor	 daquela	 verdade,	 verteu	 a
cabeça.
E	diante	de	todos	ali,	Jesus	havia	auferido	mais	duas	seguidoras,	Mirian,
agora	 chamada	 de	 Mirian	 “Magdalena”;	 e	 a	 ex-prostituta	 Joana;	 as	 quais,
juntamente	a	outras	que	ainda	estavam	por	chegar,	o	acompanhariam	até	o	final
dos	seus	dias	na	Terra.
	
*	*	*
	
No	 palácio	 de	 Herodes	 Antipas,	 uma	 reunião	 estava	 a	 definir	 o
compromisso	do	casamento	de	Salomé.	A	fim	de	garantir	boas	participações	nos
lucros	 de	 uma	 das	 mais	 rendosas	 rotas	 comerciais	 da	 região,	 Herodes	 havia
consentido	 nas	 intenções	 de	 um	 rico	 mercador	 de	 Pereia[96]	 chamado	 Chilo
Lazzar-Sah,	o	qual,	embora	bem	mais	velho	que	Salomé,	tencionava	desposá-la
da	 forma	 que	 fosse.	 A	 única	 imposição	 do	 tetrarca	 além	 do	 dote,	 que	 era
vultuoso,	era	que	ambos	deveriam	fixar	morada	em	Tiberíades,	sede	do	governo
de	Antipas	e	ainda,	no	próprio	castelo	de	Herodes,	que	em	segredo,	não	desejava
tirar	a	enteada	das	vistas,	pois	por	ela	nutria	notório	desejo.
Indiferente	 a	 tudo	 o	 que	 lá	 se	 passava,	 Salomé	 não	 deu	 a	 mínima
importância	para	o	casamento	arranjado	que	lhe	havia	sido	imposto,	afinal,	não
seria	 aquela	 cerimônia	 que	 poria	 fim	 as	 suas	 escapadelas	 com	 os	 capitães	 da
guarda	 ou	 com	 quem	 quer	 que	 lhe	 apetecesse	 os	 olhos.	 Ela	 era	 indiferente	 a
qualquer	coisa	que	não	patrocinasse	a	sua	luxúria	e,	sabedora	da	atração	que	o
padrasto	tinha	por	ela,	na	hora	certa	faria	uso	de	algum	subterfúgio	sexual	para
tentar	atender	aos	caprichos	da	mãe,	cuja	obstinação	em	acabar	com	João	Batista
era	 notória.	 E	 para	 tanto,	 a	 moça	 atingiria	 as	 consequências	 que	 fossem
necessárias,	mesmo	que	elas	transpusessem	qualquer	barreira	moral	ou	familiar.
Naqueles	 dias	 longínquos,	 o	 selo	 do	 compromisso	 de	 noivado	 já	 era
considerado	o	casamento	propriamente	dito,	mormente	com	a	compensação	do
dote,	e	o	povo	humilde	da	Judeia,	que	desprezava	o	rei,	a	esposa	dele	e	a	própria
Salomé,	 recebeu	a	nova	 com	 latente	 escárnio,	 pois	 tinham	Herodíade	 e	 a	 filha
em	baixíssima	conta,	em	razão	da	conhecida	promiscuidade	a	que	ambas	eram
dadas.
João	 Batista	 se	 pôs	 a	 discursar	 com	 maior	 veemência	 em	 desfavor	 da
esposa	de	Antipas,	a	qual,	na	verdade,	era	meio-sobrinha	deste.	E	para	se	casar
com	 ela,	 Herodes	 foi	 obrigado	 a	 divorciar-se	 de	 Fasélia,	 filha	 do	 rei	 nabateu
Aretas	 IV[97],	 o	 que	 gerou	 instabilidade	 política	 e	 desagradou	 os	 judeus,
potencializando	ainda	mais	os	focos	locais	de	sublevação.
Ao	 saber	 da	 nova,	 Cláudia	 Prócula	 confidenciou	 ao	 esposo	 que	 sentia
pena	 do	 comerciante	 da	 Pereia,	 pois	 comparava	 a	 perfídia	 de	 Salomé,	 cuja
libertinagem	 era	 conhecida	 graças	 à	 língua	 comprida	 dos	 que	 com	 ela	 se
deitavam,	à	de	uma	víbora.	Pilatos	não	deu	muita	atenção	à	esposa,	afinal,	não
lhe	 interessavam	 os	 negócios	 pessoais	 de	Herodes,	 desde	 que	 os	mesmos	 não
conflitassem	com	os	de	Roma.
Pois	 na	 noite	 em	 que	 a	 corte	 comemorava	 o	 noivado	 de	 Salomé,	 João
Batista	rumou	ao	paço	de	Tiberíades	juntamente	a	centenas	de	seguidores	para	os
quais	prometia	um	inflamado	discurso	contra	o	rei	deles.	Atraídos	pela	gritaria
vinda	das	ruas,	Herodes	e	Herodíade	ganharam	o	alpendre	para	ver	a	origem	de
tudo	 aquilo,	 oportunidade	 em	 que,	 ao	 se	 depararem	 com	 os	 urros	 do	 Batista,
ficaram	sem	reação.
—	O	pecado	 vive	 nessa	 casa	maldita!	—	gritava	 João.	—	Renunciai	 às
vossas	práticas,	ou	sereis	ceifados	pela	fúria	de	Deus.
—	 Desaparece	 daqui,	 homem	 infame	 e	 desprezível!	 —	 contra-atacou
Herodíade,	visivelmente	nervosa.
—	Mulher,	 com	que	 autoridade	me	 repreendes?	Logo	 tu,	 que	 violaste	 o
sexto	mandamento	 ditado	 a	Moisés.	 E	 tu,	 cujos	 inúmeros	 leitos	me	 fogem	 as
contas,	não	tem	moral	para	admoestar	quem	quer	que	seja,	afinal	tu	te	colocaste
acima	da	Lei,	e	por	isso	zomba	do	povo	de	Israel.	—	Pois	ao	notar	que	Salomé
havia	surgido,	arisca,	ao	lado	da	mãe,	João	foi	ainda	mais	duro.	—	E	tu,	menina.
Não	dês	guarida	às	perversidades	de	vossa	mãe,	e	arrepende-te	das	tuas	práticas
enquanto	 é	 tempo.	 E	 se	 não	 quiseres	 ter	 o	mesmo	 fim	 que	 o	 dela,	 procura	 o
cordeiro	de	Deus	para	tirar-te	do	abismo	em	que	estás.
—	Herodes!	—	irritou-se	Herodíade	sem	alardear.	—	Se	não	fizeres	nada
com	o	Batista,	esses	cães	que	o	acompanham	derrubarão	a	porta	do	palácio	e	nos
apedrejarão	até	a	morte.
—	 Atentai,	 povo	 de	 Israel!	—	 insistia	 o	 pastor	 do	 deserto.	—	 Pois	 os
governantes	que	zombam	e	desrespeitam	a	Lei	de	Deus	só	podem	nos	trazer	uma
coisa:	a	desgraça.
Premido	 pelas	 circunstâncias	 e	 diminuído	 pelos	 olhares	 venenosos	 dos
seus	convidados,	Herodes	finalmente	cedeu	aos	apelos	da	mulher	e	deu	ordens
para	que	o	capitão	da	guarda	detivesse	João	Batista.
—	Podes	prender	o	meu	corpo,	mas	jamais	prenderás	o	meu	espírito!	—
vociferou	o	pregador	em	resposta	ao	ato.
Entretanto,	ao	perceber	que	a	turba	esboçava	reagir	violentamenteao	édito
do	 rei,	 João	 tratou	 de	 impedi-los	 e	 os	mandou	 em	 busca	 daquele	 que,	 depois
dele,	haveria	de	guiá-los.
—	Não	 lamenteis	 por	 mim.	 Lamentai	 pelos	 que	 já	 estão	 condenados	 e
insistem	 em	 não	 comutar	 a	 própria	 pena.	 Procurai	 Jesus	 de	Nazaré,	 e	 ele	 vos
trará	 a	 vida	 eterna	 —	 ponderou,	 desprezando	 o	 guarda	 mercenário	 que	 o
continha	pelo	braço.
O	pastor	do	deserto	foi,	então,	arrastado	pelas	ruas	e,	já	estando	no	interior
do	 palácio,	 jogado	 numa	 espécie	 de	 gaiola	 funda,	 gradeada	 por	 cima	 e	 com
acesso	 apenas	 pelas	 galerias	 mais	 baixas	 da	 fortaleza	 de	 Antipas,	 logo	 na
primeira	noite	de	privação	dele,	Salomé	dirigiu-se	para	as	masmorras	a	 fim	de
provocá-lo,	afinal,	a	ousadia	dela	parecia	não	ter	quaisquer	limites.	E	estando	ele
acorrentado	 junto	 à	 parede,	 a	 princesa	 fez	 com	 que	 um	 dos	 guardas	 lhe
franqueasse	acesso	à	cela,	o	que	ocorreu	sem	qualquer	resistência.	João	Batista
tinha	a	idade	de	Jesus,	trinta	anos,	mas	era	mais	alto	e	encorpado	e	tinha	a	pele
bem	mais	curtida	pelo	 sol.	Ele	envergava	uma	beleza	considerada	 selvagem,	a
qual,	em	boa	verdade,	acabou	atraindo	a	jovem	para	aquele	ergástulo.
Vendo-o	privado	dos	movimentos	por	estar	acorrentado,	ela	adentrou	no
cárcere	bem	devagar,	quase	que	desfilando	do	alto	dos	seus	quase	um	metro	e
sessenta	e	oito	de	altura.	Sua	 tez	nevada,	mesmo	no	breu,	conseguia	contrastar
com	 os	 seus	 olhos	 esverdeados,	 e	 os	 cabelos	 excessivamente	 escuros	 lhe
escorriam	pelos	ombros,	os	quais	se	faziam	cobrir	por	adornos	dourados	que	os
trançavam	na	quase	totalidade.	Ela	não	era	apenas	bela;	era	bela	e	fatal.
Seminua,	Salomé	passou	a	tentar	o	inquebrantável	Batista.
—	Não	te	agradas	o	meu	corpo,	homem	bravio?	—	balbuciou,	gemendo	e
roçando-se	nele.	—	Por	acaso	não	há	fogo	em	ti	que	te	motive	a	abnegar	a	tua
crença	 e	 possuir	 uma	 mulher	 de	 verdade?	—	 insistiu,	 friccionando	 as	 pontas
tesas	 dos	 seus	 seios	 junto	 às	 judiadas	 costas	 dele.	—	Pois	 saibas	 que	 esse	 teu
cheiro	bruto	e	essa	linguagem	truculenta	me	excitam	—	finalizou,	premindo	uma
das	pernas	entre	as	dele.
Percebendo	que	o	preso	 se	mantinha	 imóvel	 e	 não	 tirava	 a	visão	de	um
ponto	fixo	na	parede,	ela	não	se	fez	de	rogada	e	deitou-se	sobre	um	amontoado
de	palha	que	jazia	à	frente	dele,	revelando	o	seu	sexo	e	o	latente	desejo	de	ser
possuída	ali,	em	meio	a	rudeza	de	um	insalubre	calabouço.
Negando-se	ser	vencido	pelo	impulso,	o	Batista	descongelou	a	expressão	e
a	fitou	com	seriedade.
—	Menina...	—	murmurou.	—	Esses	 teus	 belos	 olhos	 ocultam	 pecados
horrendos,	desta	e	das	outras	existências	que	tiveste.	E	eles	também	revelam	que
esta	é	a	última	chance	que	terás	para	se	redimir.	Ouve	pois	o	meu	conselho,	sai
deste	 lugar	 e	 vai	 à	 procura	 daquele	 que	 poderá	 acolher-te,	 pois	 somente	 ele
poderá	evitar	com	que	a	tua	alma	fique	presa	na	escuridão	para	sempre.
Salomé	ouviu	e	retorceu	a	face.	Fechou	as	pernas	rapidamente	e	levantou-
se	com	o	ódio	escancarado	no	rosto.
—	Homem	algum	teve	o	desplante	de	me	recusar!	—	disse	ela,	rangendo
os	dentes.	—	Tampouco	um	assim	como	 tu,	que	mais	parece	um	mendigo...	E
saibas	 que	 me	 inspiras	 e	 também	 me	 enoja,	 e	 essa	 rejeição	 terá	 um	 preço,
Batista.	Um	preço	muito	alto.
João	ouviu,	fechou	os	olhos	e	disse:
—	Deus,	olha	pelos	caminhos	dessa	pobre	criança.	Faz	com	que	ela	saia
das	trevas	e	encontre	um	caminho	que	a	liberte	de	si	mesma.
Salomé,	avessa	àquelas	palavras	que	parecia	não	entender,	se	aproximou
do	profeta	e	cuspiu	ferozmente	na	sua	face.
—	Seu	tolo,	simplório,	sujo	—	disse	com	a	voz	baixa,	mas	envolvida	em
cólera.	—	Ainda	terás	notícias	minhas,	eu	prometo	—	asseverou	no	mesmo	tom
e	já	deixando	a	cela.
Embora	 João	 não	 soubesse,	 a	 sua	 árdua	 jornada	 na	 Terra,	 graças	 à
maledicência	da	peçonhenta	Salomé,	estava	bem	próxima	do	fim.
	
*	*	*
	
E	 já	 estando	 Jesus	 e	 os	 seus	 discípulos	 se	 preparando	 para	 deixar
Cafarnaum	e	voltar	a	Nazaré,	outras	pessoas,	além	de	Magdalena,	Joana	e	o	filho
curado,	juntavam-se	a	ele.
Sentado	numa	pedra	e	à	espera	da	efetiva	partida,	o	rabi	não	percebeu	de
pronto	quando,	pelo	caminho	da	estrada	por	onde	haveriam	de	seguir,	surgiu,	do
nada,	 uma	 pequena	 criança,	 uma	menininha,	 que,	 saltitando	 e	 se	 equilibrando
com	certa	dificuldade,	parecia	tomar	apressadamente	a	direção	dele.
Notando	 que	 a	 pequena	 iria	 de	 embate	 ao	 seu	 mestre,	 Pedro,	 que	 era
robusto	e	bem	forte,	adiantou-se	no	trajeto	e	a	tomou	do	chão,	erguendo-a	apenas
com	uma	das	mãos	à	altura	do	seu	próprio	rosto.
—	Aonde	 tu	pensas	que	vais,	menina?	E	onde	 estão	os	vossos	pais	 que
não	cuidam	para	que	fiques	junto	deles?
Pois	ao	passar	o	dedo	indicador	da	mão	esquerda	nos	lábios	da	pequena,
talvez	 com	o	 intuito	de	 com	ela	gracejar,	 ela	o	 fitou	 com	 latente	 reprovação	 e
deu-lhe	uma	furiosa	dentada	no	indicador.
Em	 razão	 da	 dor	 que	 sentiu,	 Pedro	 a	 deixou	 cair	 e,	 abismado,	 pôde
perceber	que	a	 tal	menina,	de	forma	 inexplicável,	manteve-se	no	ar	por	alguns
segundos	antes	de	chegar	ao	chão	amortecida	e	em	segurança.
Percebendo	a	notável	destreza	daquela	manobra,	o	agora	assustado	Pedro
não	 teve	 tempo	hábil	de	esboçar	qualquer	 reação	proativa,	pois	 logo	 surgiram,
diante	dele,	uma	moça	e	um	rapaz	de	elevada	estatura.	A	primeira,	dizendo-se
irmã	da	pequena	travessa,	adiantou-se	e	pediu-lhe	desculpas.
—	Perdoa-nos	 senhor	—	rogou-lhe	a	 jovem.	—	A	nossa	 irmã	é	deveras
ativa	 e,	 como	 percebeste,	 um	 tanto	 travessa	 e	 desobediente	 —	 arrematou
acautelando-a	com	os	braços.
“Mas	o	que	significa	isso?”,	pensou	Pedro.	“Uma	menina	que	amortece	a
própria	 queda	 no	 ar?”,	 perquiriu	 a	 si	 mesmo	 enquanto	 tentava	 minimizar	 o
incômodo	causado	pela	forte	mordida	que	havia	levado,	a	qual	mais	parecia	ter
sido	dada	por	um	animal	selvagem.
Ao	 perceber	 o	 que	 ali	 se	 passava,	 Jesus	 disse	 algumas	 palavras	 que
fizeram	o	rústico	pescador	interromper	o	seu	intrigante	raciocínio.
—	Pedro,	não	sejas	tão	rígido	e	não	os	impeçais.	Deixa	que	venha	a	mim
essa	pequena	criança.
—	Pequena	criança...	—	murmurou	rabugento.	—	Ela	merecia	umas	boas
palmadas,	isso	sim	—	concluiu,	ainda	incomodado	pela	situação.
Pois	o	 inusitado	 trio	—	em	verdade,	o	Arcanjo	Metatron	e	os	querubins
Beelzebu	 e	Caliel	 disfarçados	 de	 simples	 romeiros	—,	 ali	 havia	 chegado	 para
tentar	fazer	parte	do	rol	de	seguidores	de	Jesus,	e	com	isso,	manter	as	coisas	em
ordem	 até	 o	 dia	 da	 expiação.	 E	 o	 escriba	 celeste	 ainda	 tinha	 outra	 missão:
encontrar	Azeyzel	e	identificar	o	avatar	de	Layla-Li.
Percebendo	o	 caminho	 livre,	Caliel	 correu	para	 os	 braços	de	 Jesus.	 já	 o
fazendo	sabedor	de	que,	por	 trás	daquela	 forma	humana,	estava	o	príncipe	dos
arcanjos,	 o	 seu	 amigo	 e	 grande	 companheiro	 de	 inúmeras	 proezas	 no	 Céu.
Embora	 arisco	 com	 Simão	 Pedro	 —	 e	 essa	 rusga	 entre	 eles	 haveria	 de	 ser
constante	—	o	capitão	disfarçado	entregou-se	ao	rabi	e	interpretou	muito	bem	o
papel	de	criança	comum,	esbanjando	meiguice	e	conquistando-o	de	pronto.
—	E	quem	sois	vós?	—	perguntou	o	mestre,	ao	perceber	a	aproximação	de
Beelzebu	e	Metatron.
—	Nós...	—	balbuciou	receoso	o	último.
—	 Nós	 somos	 irmãos,	 senhor	 —	 adiantou-se	 rapidamente	 o	 líder	 dos
querubins,	ao	perceber	que	o	arcanjo	havia	titubeado	diante	do	seu	marechal.	—
Apenas	peregrinos	que	ouviram	sobre	os	teus	feitos	e	decidiram	seguir-te.
—	Peregrinos...	—	repetiu	Jesus,	sorrindo	de	forma	levemente	sarcástica,
no	 que	 pôs	 os	 três	 celestes	 tensos.	 Mas	 em	 seguida,	 ele	 esboçou	 um	 sorriso
compreensivo;	minimizou	a	tensão	e,	com	Caliel	no	colo,	disse.	—	Se	é	do	vosso
desejo	e	vontade,	ficai	conosco.	Aliás,	é	muito	bom	que	a	família	de	Deus	se	una
à	dos	homens	—	ponderou,	como	se	soubesse	quem	eles	eram.
—	Mestre	—	interrompeu	André	—,	nós	estamos	prontos	para	ir.
—	Bem,	a	nossa	viagem	é	longa	e	talvez	tenhamos	alguns	percalços	pela
frente	—	anunciou	o	rabi,	ao	restituir	a	tal	“criança”	a	Pedro	e	novamentefitar
aqueles	 dois	 recém-chegados,	 ainda	 desconfortáveis	 quanto	 à	 identidade	 que
tiveram	que	fraudar.
Ao	ver	novamente	a	braveza	no	rosto	daquela	pequena,	o	pescador	ficou
temeroso	em	levar	outra	mordida	—	o	que	fatalmente	haveria	de	ocorrer!	—	e,
de	 pronto,	 entregou-a	 aos	 cuidados	 da	 primeira	 pessoa	 que	 viu	 diante	 de	 si,
Magdalena,	 como	 Mirian	 passou	 a	 ser	 chamada	 e	 de	 quem	 ele	 também	 não
esboçava	muita	 simpatia,	 afinal,	 Pedro	 não	 via	 com	 bons	 olhos	 a	 presença	 de
mulheres	que	não	as	da	família	no	grupo	dos	seguidores.	O	mascarado	querubim
ficou,	a	princípio,	receoso	no	colo	de	Magdalena,	pois	ele	logo	sentiu	que	estava
nos	braços	de	Lilith,	a	qual,	sem	ter	boas	lembranças,	conheceu	ainda	serpente,
no	primeiro	Éden.	Mas	o	olhar	dela	estava	tão	sereno	e	diferente,	que	ele	acabou
se	rendendo	e	aceitando	a	cautela.
Metatron,	entretanto,	ficou	inquieto.
—	 Príncipe	 Beelzebu,	 me	 parece	 que	 ele	 desconfiou	 de	 nós.	 E	 ouso	 ir
adiante,	creio	até	que	nos	reconheceu...	—	disse-lhe	ao	pé	do	ouvido.
—	Deixemos	isso	para	depois.	O	importante	é	que	nós	fomos	aceitos	no
grupo	 e,	 de	 mais	 a	 mais,	 temos	 nossas	 missões	 a	 cumprir	 —	 respondeu
sussurrando.
O	 escrivão	 anuiu	 sem	 esconder	 a	 preocupação.	 Enfim,	 onde	 estaria
Azeyzel?	E	em	que	mulher	o	espírito	de	Layla-Li	estaria	oculto?	Pois	em	muito
breve	ele	haveria	de	descobrir.
	
*	*	*
	
Nos	arredores	de	Jerusalém,	os	zelotes	andavam	um	tanto	receosos,	alguns
dos	seus	membros	haviam	sido	delatados	e	mortos	na	cruz,	sendo	que	os	demais
temiam	que	outros	traidores	ainda	estivessem	entre	eles.
Barrabás	 então	 propôs	 que	 os	 ataques	 aos	 publicanos	 passassem	 a	 ser
decididos	por	um	conselho	menor	e	executados	por	forças	de	assalto	rápido,	para
evitar	 que	 os	 romanos	 tivessem	 tempo	 de	 reagir	 ou	 organizar	 algum	 tipo	 de
defesa.	 Com	 isso	 eles	 desmoralizariam	 os	 soldados	 e	 desorganizariam	 as	 suas
forças,	principalmente	as	policiais.
Durante	a	palestra,	Judas	Iscariote	mantinha	os	olhos	fechados	e	mexia	a
cabeça	 de	 trás	 para	 frente,	 como	 se	 orasse	 em	 silêncio.	 Percebendo	 isso,
Barrabás	o	interpelou	no	intuito	de	tentar	auferir	dele	uma	opinião	sobre	o	que
era	ali	discutido.	Ainda	assim,	o	sicário-mor	mantinha-se	inerte,	dando	mostras
de	 que	 sua	 obsessão	 religiosa	 estava	 acima	 de	 qualquer	 coisa.	 Pois	 alguns
instantes	 depois,	 ele	 despertou	 daquele	 transe	 e,	 diante	 de	 todos,	 emitiu	 um
parecer	sobre	o	discutido.
—	Eu	discordo	em	parte.	Creio	que	devemos	nos	manter	escondidos	por
certo	período,	a	fim	de	que	os	romanos	pensem	que	o	movimento	morreu.	E	no
momento	 certo	 nós	 haveremos	 de	 nos	 levantar	 guiados	 pelo	 Messias	 e	 os
esmagaremos	sem	piedade	—	sugestionou	com	a	mão	sob	o	punhal	embainhado.
—	 Judas,	 aqui	 tu	 és	 uma	 liderança	 respeitada.	 Mas	 se	 nós	 baixarmos
guarda	de	uma	única	vez,	as	consequências	podem	ser	drásticas	para	a	moral	do
partido.
—	 Barrabás,	 drástico	 será	 o	 nosso	 destino	 se	 os	 romanos	 não	 forem
eliminados	—	respondeu	Judas,	enervado.	—	E	eu	mantenho	a	minha	crença	de
que	 o	 descendente	 de	 Davi	 em	 breve	 erguerá	 a	 sua	 espada	 sobre	 essa
abominação	 chamada	 Roma,	 uma	 feitora	 de	 escravos	 que	 insiste	 em	 querer
subjugar	o	mundo.
A	tua	crença	no	Messias	é	justa,	todos	partilham	dela.	Por	outro	lado,	não
podemos	nos	 fiar	 apenas	nisso,	 afinal,	 ninguém	 sabe	quando	 ele	 chegará;	 se	 é
que	chegará.
Judas	Iscariote	não	apreciou	as	palavras	de	Barrabás,	as	quais	classificou
como	desprovidas	de	 fé.	E	para	não	causar	maiores	polêmicas,	 assentiu	com	a
maioria	e	ao	final	ponderou.
—	 Eu	 não	 irei	 contra	 vós,	 meus	 suicidas	 irmãos.	 Mas	 sabeis	 que	 não
seremos	nós,	os	zelotes,	que	faremos	a	diferença	nessa	batalha.	Somente	o	novo
Josué[98]	conseguirá	fazer	com	que	os	romanos	componham	um	único	corpo	que
terá	a	cabeça	ceifada	por	um	só	golpe.
—	 Mas	 enquanto	 ele	 não	 chega,	 seremos	 nós	 os	 guardiães	 da	 terra
prometida	 —	 pontuou	 Barrabás	 sem	 alongar	 a	 discussão.	 —	 E	 então?	 Estás
conosco?	—	insistiu	sob	o	tenso	olhar	dos	demais.
—	Eu	estarei	sempre	ao	lado	dos	que	se	opõe	a	Roma	e	que	zelam	pelo
santo	nome	de	Deus	—	respondeu	Judas.
—	Então	fica	decidido;	agiremos	em	investidas	rápidas.
O	sicário	ficou	inquieto,	contrariado,	melhor	dizendo.	Barrabás	percebeu
isso	e,	findo	o	encontro,	resolveu	ir	ter	com	ele.
—	 Judas,	 se	 eu	 faço	 o	 que	 faço,	 é	 visando	 o	 bem	 do	 partido.	 Nós	 não
podemos	recuar	agora.
—	Eu	não	te	censuro.	Mas	confesso	que	ando	um	tanto	confuso,	creio	que
preciso	me	reencontrar	em	minhas	crenças.
—	A	vida	me	forjou	apenas	para	 lutar,	e	é	 isso	que	eu	farei	até	o	dia	da
minha	morte.	Sugiro	que	então	vá	se	reencontrar,	pois	decerto	não	estás	preso	a
nós	—	disse	o	líder	dos	zelotes	de	maneira	incisiva.
—	 Eu	 vou,	 Barrabás,	 mas	 haverei	 de	 retornar.	 E	 quando	 o	 fizer,	 serei
testemunha	viva	da	destruição	de	Roma	pelas	mãos	do	ungido,	o	qual	certamente
não	haverá	de	ser	tu.
Judas	lhe	deu	as	costas	e	deixou	o	esconderijo,	pondo-se	a	vagar	por	entre
os	caminhos	que,	de	cidade	em	cidade,	o	fariam	chegar	até	a	longínqua	Galileia,
afinal	 o	 seu	 íntimo	 clamava	 por	 uma	providência	 divina	 e	 não	 apenas	 por	 um
insignificante	levante	de	alguns	poucos	descontentes.
“Revolução	 com	 fé”,	 era	 isso	 que	 Judas	 queria;	 era	 isso	 que	 Judas
esperava.
	
Capítulo	7
A		adúltera	de	Edom
COMO	O	ESPERADO,	os	discursos	de	 João	Batista	galgados	nos	pecados	de
Herodíade	 e	 da	 filha	 Salomé	 o	 levaram	 à	 prisão.	 E	 independentemente	 dessa
medida,	o	ódio	da	rainha	pelo	pregador	do	deserto	aumentava	dia	a	dia,	ao	ponto
de	ela	constantemente	pressionar	Herodes	a	ceder	aos	seus	apelos	e	finalmente
mandar	executá-lo.
Entretanto,	nada	o	convencia	em	contrário,	afinal,	ele	parecia	nutrir	certo
respeito	por	João,	a	quem	intimamente	considerava	um	bom	profeta	e	o	invejava
pela	conhecida	popularidade.	Ademais,	as	masmorras	do	palácio	pareciam	estar
de	bom	tamanho	para	aquele,	por	assim	dizer,	“reverenciado	subversivo”.
Mas	 Herodíade	 não	 estava	 satisfeita.	 Os	 não	 raros	 brados	 do	 preso
ecoavam	 como	 adagas	 afiadas	 pelos	 corredores	 do	 alcácer,	 e	 farta	 de	 ouvir
aquelas	 palavras	 rudes	 dirigidas	 contra	 si,	 ela	 finalmente	 resolveu	 colocar	 em
prática	um	plano	imoral	e	maligno.
Embora	convicta	de	que	Salomé	estava	noiva,	e	pelas	regras	vigentes	na
época,	de	fato,	casada,	Herodíade	sabia	que	a	obsessão	de	Herodes	pela	filha	era
gritante,	ao	ponto	de,	numa	noite,	ele	balbuciar	o	nome	da	enteada	enquanto	se
deleitava	com	ela.	Traiçoeira,	a	esposa	fingiu	não	perceber	tal	confusão	e,	como
uma	vil	cafetina,	se	aproveitaria	desta	feita	para	armar	a	morte	de	João,	da	forma
que	fosse.	Salomé,	pérfida	como	a	mãe,	aceitaria	fazer	parte	do	plano,	afinal,	a
recusa	de	João	Batista	em	se	deitar	com	ela	ainda	lhe	estava	presa	na	garganta.
Pois	 uma	 semana	 antes	 dos	 efetivos	 festejos	 do	 casamento	 da	 filha,
Herodíade	 promoveu	 um	 jantar	 para	 a	 corte	 a	 fim	 de,	 propositalmente,	 tentar
vergar	o	marido	numa	cilada	e	chantageá-lo.	Assim	ela	deu	ordens	para	que,	em
determinado	momento	 da	 festa,	 os	músicos	 entoassem	 uma	 canção	 sutilmente
sensual,	 a	 qual	 serviria	 de	 cenário	 para	 um	 peculiar	 balé	 a	 ser	 executado	 por
Salomé,	já	que	isso	o	apeteceria.
E	foi	o	que	então	ocorreu	naquela	noite.	Ao	ouvir	as	notas	sopradas	por
um	dos	flautistas	e	sentir	como	se	um	vento	gelado	lhe	atingisse	a	pele,	Salomé
tomou	um	generoso	gole	de	vinho,	levantou-se	vagarosamente	e,	com	as	unhas
dos	belíssimos	pés	cintilando	como	se	fossem	brilhosas	opalas	brancas,	desfilou
até	o	centro	do	salão	onde	todos	podiam	observá-la.
Ela	 usava	 uma	 tiara	 dourada	 e	 um	 cinto	 de	 ouro	 com	 pedrarias,	 o	 qual
amparava	a	conta	de	sete	véus	transparentes	que	quase	não	lhe	cobriam	as	partes.
E	com	os	seios	propositalmente	à	mostra,	abriu	os	braços	ornados	por	braceletes
que,	como	guizos,	passaram	a	acompanhar	acadência	daqueles	instrumentos	e	a
pautar	os	passos	de	uma	dança	provocativa	e	quase	erótica	que	se	deflagrava.
Forjada	 pela	 escola	 das	 melhores	 dançarinas	 do	 Oriente,	 Salomé	 tinha
domínio	 total	 sobre	 o	 próprio	 corpo	 e,	 valendo-se	 disso,	 passou	 a	 ritmar	 os
passos	de	modo	a	estimular	o	imaginário	dos	observadores,	em	especial,	o	do	rei
Herodes.	Ainda	que	a	dança	fosse	originalmente	uma	arte	dos	anjos,	ela	abusava
daqueles	movimentos	 para	 envolver	 os	 seus	 alvos	 com	 a	 sinuosidade	 de	 uma
serpente	ávida	pela	presa,	ao	passo	em	que	ia	retirando,	um	a	um,	aqueles	parcos
véus	que	a	cobriam.
A	 música	 ganhava	 fôlego	 e	 ritmo,	 fazendo	 com	 que,	 na	 sequência,	 ela
passasse	a	executar	uma	série	de	movimentos	exóticos	pautados	por	ondulações
que	iam	do	seu	tronco	ao	abdômen,	e	que	faziam	pulsar	cada	vez	mais	o	cálido
sangue	 dos	 excitados	 espectadores,	 cujos	 pensamentos	 passeavam	 entre	 a
volúpia	e	a	devassidão.
Tão	logo	se	aproximou	do	desatinado	tetrarca,	ela	lhe	deu	propositalmente
as	costas	e,	 remexendo	 tão	somente	o	ventre,	 fez	com	que	as	suas	voluptuosas
nádegas	 ficassem	 invulgarmente	 trêmulas,	de	modo	a	derrubá-lo	pela	 libido.	E
com	o	aumento	do	ritmo	da	música,	Salomé	passou	a	circundar	Herodes	com	a
finalidade	de	capturá-lo	pela	lascívia,	o	que	não	tardou	a	ocorrer.
Pois	tão	logo	a	nota	final	foi	tocada,	ela	retirou	o	último	véu	que	mantinha
entre	as	pernas	e	o	lançou	na	altura	da	cabeça	do	padrasto	—	esse	era	o	sinal	—,
deixando-o	 experimentar	 o	 inebriante	 aroma	 do	 seu	 cio,	 para,	 somente	 então,
despejar-se	sobre	as	almofadas	que	lá	jaziam	e	pô-lo	finalmente	submisso.
Herodes	Antipas	ficou	completamente	fora	de	si.
Herodíade	percebeu	que	o	momento	era	aquele	e	tratou	de	levar	o	marido
para	os	aposentos	de	ambos,	onde	o	deitou	na	cama	e	continuou	a	estimulá-lo.	E
na	medida	em	que	o	corpo	dele	respondia,	ela	desapareceu	por	entre	as	cortinas	e
deixou	 que	 a	 própria	 filha	 tomasse	 a	 frente	 da	 empreitada.	 Ao	 ver	 Salomé
totalmente	 nua,	 Herodes,	 embriagado	 pela	 bebida	 e	 enlouquecido	 pelo
imoderado	 desejo,	 entrou	 em	 crasso	 delírio	 e,	 ao	 finalmente	 tocá-la,	 ficou
totalmente	à	mercê	dela.
—	Desejas	este	corpo?	—	gemeu	ela	de	modo	a	enfeitiçá-lo	ainda	mais.
—	 Sim...	 Eu	 o	 quero	—	 asseverou,	 ao	 sentir	 o	 amadeirado	 perfume	 de
sândalo	que	impregnava	a	pele	dela.
—	E	ao	acaso	achas	que	vou	me	entregar	a	ti	gratuitamente;	sem	auferir
nada	em	troca?	—	indagou,	agora	esboçando	um	leve	recuo.
—	 Eu	 te	 darei	 o	 que	 quiseres	 —	 apelou,	 desesperado	 por	 tocá-la
novamente.
—	Tu	não	podei	dar-me	aquilo	que	quero...	—	tripudiou	com	falsidade.	—
Não	tens	poder	para	tanto.
—	 Ouve-me,	 Salomé!	 —	 asseverou,	 tentando	 desesperadamente
convencê-la.	—	Eu	sou	a	única	força	da	Galileia,	tenho	o	poder	de	realizar	todos
os	teus	desejos	—	apelou	com	a	voz	ainda	pastosa	pela	bebida.
—	Todos?	—	sussurrou,	vez	mais	se	aproximando	dele.
—	 Todos	—	 assentiu	 com	 vigor.	—	 Quaisquer	 que	 sejam...	—	 ofertou
com	latente	passividade.
—	 Pois	 saibas	 que	 eu	 tenho	 uma	 imaginação	 fértil,	 muito	 fértil...	 —
provocou,	com	a	voz	melosa	e	passeando	as	mãos	pelas	suas	largas	ancas.
—	Então	não	ponhas	limites	no	que	queres.	Pede	e	terás!
—	Empenhas	a	tua	palavra?	A	palavra	do	monarca	da	Galileia?
—	 Eu	 nunca	 falei	 tão	 sério	 em	 toda	 a	 minha	 vida	 —	 rendeu-se.	 —
Salomé,	tu	és	a	minha	obsessão.
—	Obsessão...	—	repetiu	ela.	—	Pois	saibas	que,	ao	final	da	noite,	far-te-
ei	saber	o	meu	pleito.	E	até	 lá,	perde-te	em	mim	e	encontra	o	prazer	que	tanto
desejas.
Herodes	ficou	alucinado,	afinal,	Salomé	era	uma	mulher	cujos	predicados
físicos	beiravam	o	surreal:	corpo	lúbrico,	cabelos	negros,	olhos	exageradamente
esverdeados	e	seios	que	pareciam	afrontar	a	gravidade.
Pois	 ele,	 enfim,	 deleitou-se	 das	 mais	 variadas	 formas,	 cego	 ante	 as
catastróficas	consequências	daquela	promíscua	interação.	O	tetrarca	nunca	teria
coragem	 de	 possuí-la	 sóbrio,	 afinal,	 ele	 sabia	 do	 compromisso	 de	 noivado	 da
enteada	e	dos	resultados	que	aquele	colóquio,	caso	fosse	revelado	ou	descoberto,
poderiam	lhe	trazer,	na	condição	de	titular	de	uma	coroa	subordinada	a	Roma.
Após	 desvendar	 cada	 parte	 do	 corpo	 sensual	 de	 Salomé,	 Herodes
finalmente	 sentiu	 o	 extraordinário	 clímax	que	havia	muito	 desejava,	 e	 com	 tal
beldade,	 não	 o	 experimentar	 seria	 algo	 improvável	 a	 um	 homem	 ordinário.
Herodes,	então,	quedou-se	inerte	na	cama	e	ficou	quase	sem	os	sentidos,	arfando
vagarosa	e	pausadamente.
Percebendo	que	parte	do	plano	havia	sido	vencido,	ela	então	se	deitou	ao
lado	 dele	 e,	 indiferente	 ao	 que	 havia	 feito,	 assim	 ficou,	 espreitando-o	 até	 o
nascer	do	dia.
Tão	logo	os	primeiros	raios	de	sol	repercutiram	naqueles	cômodos	reais,
Herodíade,	 conforme	 havia	 previamente	 combinado	 com	 a	 filha,	 entrou	 no
quarto	 e,	 sorrateiramente,	 sentou-se	 ao	 lado	 do	marido,	 o	 qual,	 derrotado	 pelo
excesso	de	prazer	que	havia	auferido,	ainda	dormia.	Salomé,	nua	e	ao	lado	dele,
percebeu	 a	 presença	 da	 mãe,	 e	 com	 ela	 passou	 a	 fitar	 o	 régio.	 Tão	 logo	 ele
despertou	com	a	cabeça	dolorida,	assustou-se	ao	se	ver	premido	pelo	fulminante
olhar	das	duas.
—	Então,	 finalmente	 conseguiste	 o	 que	 querias,	 não	 é,	meu	 esposo?	—
ponderou	Herodíade,	ao	referir-se	ao	corpo	da	filha.
Confuso	e	tentando	voltar	a	si,	ele	percebeu,	tarde	demais,	que	havia	caído
numa	armadilha.
—	Bem,	agora	só	me	resta	denunciar-te	a	Pilatos	e	a	Caifás,	afinal,	eu	não
acredito	 que	 eles	 verão	 com	 bons	 olhos	 o	 fato	 de	 o	 nobre	 e	 “judaizado”[99]
tetrarca	da	Galileia	ter	tomado	a	própria	enteada	como	mulher	—	satirizou.	—	E
Salomé,	por	ser	minha	filha,	certamente	 irá	relatar	com	detalhes	a	violência	de
que	 foi	vítima	—	disse	de	maneira	confiante	e	cantada,	afinal,	 ela	 sabia	que	o
marido	tinha	a	personalidade	fraca	e,	por	vezes,	temia	a	própria	sombra,	quiçá	o
prefeito	romano	e	a	fúria	dos	sinedristas.
—	Não	podeis	fazer	isso	comigo!	—	desesperou-se.	—	Salomé,	poupa-me
dessa	 desgraça,	 ninguém	 jamais	 poderá	 saber	 do	 que	 aconteceu	 essa	 noite	—
apelou	Herodes,	aparentemente	em	vão.
—	 Como	 bem	 sabes,	 tudo	 na	 vida	 tem	 um	 preço	 —	 respondeu-lhe	 a
dissimulada	dançarina.	—	Eu	não	vos	denunciarei,	 afinal,	 és	marido	de	minha
mãe	e	tens	uma	dívida	comigo.	E	se	porventura	saldá-la,	asseguro-te	que	tudo	o
que	aconteceu	essa	noite	será	esquecido.
—	Pois	então	pede!	Pede!	—	implorou,	quase	caindo	de	joelhos.
—	Eu	quero;	agora	e	sem	demora...
—	 Sim,	 o	 que	 desejas?	 Fala	 de	 uma	 vez!	 —	 apelou	 demasiadamente
nervoso.
—	Eu	desejo	a	vida	daquele	cão	que	 insultou	a	mim	e	à	minha	mãe.	Eu
desejo	a	cabeça	de	João	Batista.
Herodes	ouviu	e	não	acreditou.
—	Tu	estás	fora	de	si?	—	replicou	descrente.	—	Queres	a	cabeça	de	um
homem	pelo	preço	do	teu	silêncio?
—	Me	 desculpa,	 meu	 padrasto;	 eu	 acho	 que	 usei	 mal	 as	 palavras...	—
justificou-se	com	um	sorriso	aparentemente	inocente	no	rosto.	—	Eu	não	desejo.
Eu	exijo	a	cabeça	dele	cortada	e	a	mim	servida	numa	bandeja	de	ouro	—	bradou
encolerizada.
Ao	fitar	Herodíade,	ele	constatou	que	ambas	estavam	em	vantagem.	Fosse
ele	o	finado	pai,	Herodes	I,	matá-las	talvez	fosse	uma	boa	saída.	Mas	isso	estava
fora	de	cogitação,	pois	além	de	covarde,	ele	talvez	selasse	o	seu	infeliz	destino
como	monarca,	afinal,	como	justificar	a	Roma	um	duplo	homicídio	real	naqueles
dias?	Um	acidente?	Não,	seria	muito	perigoso.	E	acresça-se	a	 isso	que	ele	não
tencionava	 terminar	os	dias	como	o	pai,	um	conhecido	assassino	de	parentes	e
crianças.
—	Bem,	então	eu	fui	traído	pelo	meu	desejo	—	lamentou	cabisbaixo.
Pois	 entre	 encarar	 a	 vergonha	 pública	 de	 ter	 se	 deitado	 com	 a	 própria
enteada,	e	a	tirar	vida	de	um	miserável	pastor	do	deserto,	Herodes	não	teve	outra
escolha:	optou	pela	última.	Após	vestir	a	sua	túnica,	ele	chamou	pelo	fiel	servo
Cusa[100]	 e	 transmitiu-lhe	 a	 inusitada	 ordem,	 cujo	 cumprimento	 haveria	 de	 ser
imediato.
Ainda	nasmasmorras,	João	dormia,	quando	foi	inesperadamente	desperto
pelo	 seu	 abrutalhado	 carrasco.	 Ao	 perceber	 a	 afiada	 cimitarra	 dele	 fora	 da
bainha,	soube	que	a	sua	tão	esperada	liberdade	espiritual	havia	chegado.
O	golpe	que	 lhe	ceifou	a	cabeça	 foi	 tão	 rápido,	que	ele	 sequer	o	 sentiu.
Aliás,	 ele	 somente	 sentiu	 a	 guarida	 do	 espírito	 de	 Elias,	 que	 lá	 estava	 para
resgatá-lo	e	guiá-lo	a	salvo	para	o	Éden	Espiritual	onde	já	era	aguardado.
João	 Batista	 viveu	 uma	 vida	 de	 entrega	 e	 de	 sujeição	 a	 Deus;	 foi
celibatário,	 fez	 voto	 de	 pobreza	 e	 alimentava	 a	 alma	 apenas	 de	 palavras	 de
esperança.	Sua	morte,	ao	contrário	do	que	Herodes	poderia	prever,	foi	recebida
com	 fúria	 pelos	 seus	 seguidores,	 os	 quais,	 em	 represália,	 passaram	 a	 acampar
nos	 portões	 do	 palácio	 e	 entoar	 agressivas	 palavras	 de	 repulsa	 ao	mesmo.	 Por
outro	 lado,	 aquele	 segredo	 imundo	 dele	 com	 a	 filha	 de	 Herodíade	 havia	 sido
preservado.
Satisfeita	 com	 o	 prêmio,	 Salomé	 teve	 a	 audácia	 de	 demarcá-lo	 com	 os
próprios	 fluídos,	 tamanho	 o	 grau	 de	 abominação	 a	 que	 ela	 já	 se	 dava.	 Ao
saberem	do	ocorrido	—	afinal,	a	cabeça	de	João	ficou	um	dia	inteiro	em	poder
da	 princesa	 antes	 de	 ser	 descartada	 numa	 fossa	 comunal	—,	 os	 humildes	 de
Tiberíades	 passaram	 a	 nutrir	 crassa	 repulsa	 por	 ela,	 a	 quem	Herodes	 passou	 a
temer	em	silêncio,	afinal,	ao	menos	para	o	público,	a	execução	do	pastor	se	tinha
se	dado	em	razão	da	prática	de	crimes	contra	a	coroa.
Pelo	visto,	Salomé	não	parecia	ter	sangue,	mas	veneno	nas	veias.	E	pelo
curso	da	história,	 tudo	 levava	a	crer	que	a	vida	dela	seria	como	a	da	sua	mãe,
quiçá	 pior,	 pautada	 por	 pecados,	 aberrações	 e	 iniquidades	 das	 mais	 variadas
formas.	Mas	 poderia	 uma	 alma	 obscura	 como	 aquela	 ter	 salvação?	Bem,	 uma
inusitada	manobra	do	destino	estava	próxima	a	responder	tudo	isso.
	
*	*	*
	
Após	uma	breve	visita	 à	 cidade	de	Nazaré,	 Jesus	e	os	 seus	haveriam	de
retornar	a	Cafarnaum,	onde	muitos	mais	ainda	queriam	ouvi-lo.	Ao	grupo,	que	já
beirava	 os	 setenta	 membros,	 havia	 se	 juntado	 a	 mãe	 do	 salvador,	Maria,	 que
deixou	os	 afazeres	 para	 acompanhar	 o	 filho	 em	 suas	 peregrinações	 e,	 de	 certa
forma,	ficar	mais	tempo	ao	lado	dele.	Ela	era	muito	bem	quista,	pois	todos	nela
enxergavam	a	mãe	de	todas	as	horas	e,	tê-la	nas	romarias,	trazia	paz	e	segurança
moral.
Por	outro	lado,	é	de	se	considerar	que	a	iniciativa	dela	pesou	em	razão	de
um	incidente	ocorrido	um	dia	antes	na	 tímida	sinagoga	de	Nazaré,	onde	Jesus,
após	 ler	 um	 trecho	 da	 profecia	 escrita	 pelo	 profeta	 Isaías	 sobre	 a	 vinda	 do
Messias,	concluiu	que	as	escrituras	estavam	cumpridas	e	deu	a	entender	que	ele
era	o	ungido.	Enfurecidos,	os	fiéis	esboçaram	expulsá-lo	do	recinto	e	apedrejá-lo
na	 encosta	 do	 vilarejo.	 Entretanto,	 Maria,	 deveras	 respeitada	 em	 razão	 da
memória	 do	 esposo	 José,	 pôs-se	 diante	 dele	 e	 impediu	 a	 desgraça.	 Pois
acreditando	 que	 o	 filho	 talvez	 estivesse	 mais	 seguro	 com	 ela,	 a	 imaculada
decidiu	segui-lo,	como	assim	o	fez.
Já	transcorria	o	dia	de	domingo	e,	numa	parada	de	descanso	dos	romeiros,
a	virgem	percebeu	que	Magdalena	nutria	particular	apreço	pelas	crianças	e,	em
especial,	 por	 uma	 que	 recentemente	 havia	 se	 juntado	 a	 eles	 na	 companhia	 de
irmãos	 mais	 velhos.	 Caliel,	 a	 aludida	 “criança”,	 era	 um	 anjo	 polêmico,	 pois
embora	envergasse	a	frieza	de	um	exterminador	de	nações,	a	sua	aparência	física
o	aproximava	de	uma	pequena	garotinha	indefesa	e,	como	uma,	não	costumava
desprezar	demonstrações	de	carinho	para	consigo.
Pois	 estranhamente	 tentada	a	 se	 aproximar	da	nova	discípula	do	 filho,	 a
qual	soube	ser	oriunda	da	aldeia	de	Magdala,	Maria	se	achegou	solícita	e	disse:
—	Elas	são	adoráveis	nessa	idade,	não	achas?	—	ponderou	em	relação	a
Caliel,	a	quem,	sequer	de	longe,	desconfiava	ser	um	querubim.
—	 Sim...	 —	 Sorriu	 Magdalena.	 —	 Parece	 que	 não	 carregam	 qualquer
maldade	 —	 concluiu	 sem	 também	 saber	 do	 longo	 histórico	 de	 matanças	 do
pequenino.
—	 Ela	 é	 tua	 filha?	 —	 indagou	 a	 imaculada	 ante	 a	 visível	 aparência
feminizada	do	pequeno	celeste.
—	 Infelizmente	 não.	 A	 vida	 não	 me	 deu	 o	 privilégio	 de	 ser	 mãe	 —
respondeu	em	tom	de	lamento.
—	Pois	saibas	que	nunca	é	tarde	—	ponderou	a	virgem	de	modo	afável.
—	Talvez	para	mim	o	seja	—	respondeu	aparentando	 tristeza	e	soltando
Caliel	junto	à	grama.
Maria	se	manteve	serena	e	não	replicou	aquela	observação.
—	A	senhora	é	a	mãe	dele,	não?	—	demandou	Magdalena,	referindo-se	ao
mestre.
—	De	Jesus?	Sim,	eu	sou.
—	Perdoa-me	a	liberdade,	mas	aparentas	ser	tão	jovem.
—	Eu	dei	à	luz	a	ele	ainda	muito	menina;	eu	devia	ter	de	doze	para	treze
anos	 de	 idade	 —	 respondeu	 com	 saudosismo.	 —	 Mas	 me	 desculpa	 a
indiscrição...	—	insistiu	Maria.	—	Eu	não	sei	se	é	impressão	minha,	mas	pareces
carregar	uma	grande	tristeza	dentro	de	si.
Magdalena	suspirou	e	logo	respondeu:
—	Confesso-te	que	ela	já	me	foi	maior.	Mas	graças	ao	teu	filho,	eu	passei
a	 ter	um	novo	 foco	na	vida,	pois	pelas	mãos	dele,	descobri	o	 sentido	do	amor
verdadeiro,	aquele	que	é	dado	sem	que	se	tencione	auferir	nada	em	troca.
—	Jesus	tem	esse	dom	desde	menino	—	esclareceu	orgulhosa.	—	Tu	és	a
jovem	vinda	de	Magdala,	pois	não?
—	Sim...
—	E	tens	família	por	lá?
—	 Eu	 já	 tive.	 Mas	 hoje	 não	 me	 restou	 mais	 nada	 que	 não	 algumas
lembranças	e	os	haveres	deixados	pelo	meu	pai.
—	Referes-te	a	tua	querência	com	certa	mágoa.
—	É	que	nem	todas	as	memórias	que	eu	tenho	dela	são	boas,	senhora.
—	Não	 necessitas	 ser	 tão	 formal	 comigo	—	 licenciou-a.	—	Chama-me
apenas	de	Maria.
—	Maria...	—	sorriu	intimidada.
—	Pois	saibas	que	todas	as	famílias	têm	más	lembranças,	Magdalena.	—
Notando	que	ela	 recalcitrava	em	dizer	algo	que	parecia	 incomodá-la,	a	mãe	de
Jesus	tentou	estimulá-la.	—	Filha,	caso	queiras	desabafar,	estou	à	disposição.	—
Magdalena	sentiu	um	apelo	forte	e	verdadeiro	vindo	dela	e,	então,	deixou	verter
uma	 lágrima	 tímida.	—	 E	 se	 é	 para	 livrar-se	 daquilo	 que	 vos	 incomoda,	 não
derrube	apenas	uma,	mas	tantas	lágrimas	quantas	forem	necessárias.
Sentindo	 guarida,	 ela	 então	 se	 pôs	 a	 chorar	 com	 maior	 intensidade,
fazendo	com	que	Maria	a	amparasse	num	generoso	abraço,	como	se	a	mãe	dela
de	fato	fosse.
—	Abre	o	teu	coração,	diz	o	que	sentes	e,	certamente,	haverá	de	sentir-se
melhor.
—	Eu...	—	titubeou.	—	Eu	matei	um	homem	—	revelou	chorosa	e	com
certo	temor	na	fala.
Maria	mostrou-se	surpresa	com	o	teor	daquela	revelação,	mas	nem	assim
deixou	de	albergá-la.
—	Mas	como	isso	ocorreu?
—	 Ele...	—	Hesitou	 em	meio	 ao	 pranto.	—	 Ele	 tentou	me	 estuprar	—
completou	 soluçando.	—	 Tudo	 foi	 tão	 rápido,	 eu	 não	 tive	 escolha.	 E	 quando
percebi,	ele	já	estava	morto	diante	de	mim.	—	Tentando	refrear	o	choro,	ela	se
esforçou	para	continuar.	—	Eu	não	sei	se	consegues	imaginar	o	quão	terrificante
é	se	ver	à	frente	de	um	agressor	que	tenciona	roubar-te	a	castidade.
Sempre	com	a	face	tranquila,	Maria	respondeu:
—	Magdalena,	eu	creio	que	sei	como	tu	te	sentiste.
—	Sabes?	—	indagou	surpresa.
—	Sim.	Quando	 Jesus	 ainda	 estava	 em	meu	 ventre,	 eu	 e	 o	meu	 finado
esposo	fomos	atacados	no	deserto,	a	caminho	de	Belém.	Alguns	homens	rudes	o
agrediram,	e	ele	acabou	perdendo	os	sentidos.	E	um	deles,	o	maior	e	mais	hostil,
estava	prestes	a	investir	contra	mim.	Mas	no	entanto...
—	No	entanto?	—	repetiu,	curiosa	com	o	desfecho	daquela	lembrança.
—	Esse	 é	 um	 segredo	 que	 apenas	 eu	 e	meu	 saudoso	 José	 sabíamos	—
confessou.	—	 No	 entanto	 surgiu	 diante	 de	 nós	 um	 grande	 anjo	 de	 Deus	 e	 o
impediu,	 ou	 melhor,	 o	 matou;	 matou	 todos	 eles	 —	 revelou	 com	 a	 face
impressionada	pela	recordação.
—	Um	anjo	de	Deus?	—	interessou-se.
Maria	gracejou	de	forma	comedida	e	respondeu:
—	 Bem,	 não	 me	 tomes	 por	 desatinada	 —	 continuou,	 oscilando
espirituosamente	 a	 cabeça.	—	Mas	 é	 verdade.	 Eu	 estava	 na	 iminência	 de	 ser
atacada	 quandoentão	 um	 ser	 de	 luz	 surgiu	 repentinamente	 com	 uma	 espada
brilhante	e	fez	o	que	fez...	—	revelou	erguendo	um	dos	braços	como	se	revivesse
aquela	marcante	cena	pretérita.	Magdalena	ficou	surpresa	com	aquela	inusitada
revelação;	não	se	sentia	mais	só	em	sua	dor.	—	E	se	esse	anjo	teve	a	licença	de
Deus	 para	me	 defender,	 não	 quero	 crer	 que	 escusa	 similar	 não	 possa	 ter	 sido
estendida	a	ti,	afinal,	tu	estavas	numa	situação	de	perigo	idêntica	à	minha.
—	Mas	eu	tirei	a	vida	dele!	E	já	me	foi	dito	que	a	Lei	de	Deus	considera
isso	um	pecado	mortal.
—	Sim,	e	não	estás	errada.	Mas	não	permita	que	tua	consciência	te	puna
de	 forma	 sumária.	 Busca	 encontrar-te	 com	 Senhor	 e	 pede	 a	 Ele	 perdão,	 pois
somente	assim	conseguirás	extirpar	essa	dor	que	carregas	dentro	de	ti.
—	E	achas	que	Ele	me	perdoaria?	—	perguntou	menos	nervosa.
—	Quem	pede	com	fé,	recebe;	e	se	o	que	dizes	vem	do	teu	coração,	estou
certa	que	Ele	jamais	te	faltará.
—	Mas	como	eu	haverei	de	encontrar-me	com	Deus?
—	Confessa-te	com	o	meu	filho.	Ele	achará	um	meio	de	te	guiar	até	Ele.
Mais	 confiante,	 Magdalena	 agradeceu	 afetuosamente	 Maria	 e	 procurou
pelo	rabi	que,	naquele	momento,	estava	a	certa	distância	das	duas.
Já	era	final	de	tarde	e,	enquanto	alguns	descansavam,	Jesus	se	entretinha
com	 uma	 canção	 entoada	 por	 Metatron,	 que	 munido	 de	 uma	 flauta	 feita	 de
madeira,	 estava	muito	 bem	 a	 interpretar	 o	 papel	 de	 um	 ser	 humano	 ordinário.
Com	 os	 olhos	 fechados,	 em	 razão	 da	 força	 sentimental	 daquela	 cantiga,	 uma
tradicional	 composição	 angélica	 e	 uma	 das	 marchas	 prediletas	 do	 Príncipe
Miguel,	ele	ainda	assim	percebeu	quando	ela	se	achegou.
—	Mestre?
—	 Magdalena...	 —	 respondeu	 ele	 com	 os	 olhos	 ainda	 fechados,	 mas
reconhecendo	a	suave	sonoridade	da	voz	dela.
—	Mestre,	perdoa-me	se	eu	incomodo,	mas	eu	gostaria	de	falar-te	apenas
por	um	instante...	—	solicitou	com	recato.
—	 Não	 é	 incômodo	 algum,	 senta-te	 a	 meu	 lado	 —	 respondeu,	 ao
instintivamente	dispensar	o	flautista.	—	Magdalena	acatou	o	convite	e	o	encarou
com	a	mesma	humildade	de	outrora,	quase	que	se	desculpando	pela	inoportuna
investida.	—	Percebo	que	o	 teu	 semblante	 está	mais	 sereno.	Mas	 ainda	deixas
transparecer	certo	ressentimento,	certa	dor...	—	observou,	perspicaz.
—	Pois	é	sobre	essa	dor	que	eu	gostaria	de	falar.
—	Então	abre	o	coração	—	licenciou-a	sempre	disposto.
—	 Mestre,	 eu	 estava	 a	 conversar	 com	 a	 vossa	 mãe	 Maria.	 E	 acabei
confessando	a	ela	um	pecado	grave	que	carrego	há	anos.
—	E	o	que	fizeste	de	tão	tormentoso	para	que	sofras	tanto?
—	 Eu...	 —	 balbuciou	 abaixando	 a	 cabeça.	 —	 Eu	 tirei	 a	 vida	 de	 um
homem	 —	 finalizou,	 cerrando	 forçosamente	 os	 olhos.	 —	 Mas	 eu	 asseguro,
apenas	me	defendi.
—	Magdalena...	—	falou	sério.	—	E	por	acaso	tu	não	sabes	que	a	Lei	de
Deus	diz	que	a	um	homem	é	defeso	matar	o	outro?
—	Sim...	—	lamentou.	—	E	aceito	que	já	estou	condenada	por	isso.
Entrementes,	Jesus	tentou	minimizar-lhe	a	culpa.
—	Pois,	falando	em	normas,	tu	por	acaso	sabes	o	que	a	Lei	de	Moisés	diz
sobre	aquele	que	é	pego	roubando?
—	Não,	mestre.	Admito	que	 sei	muito	pouco	 sobre	 isso,	 quase	não	 tive
acesso	ao	ensino	religioso,	embora	eu	saiba	ler	e	escrever	em	vários	idiomas.
—	Então,	preste	atenção	ao	que	eu	te	direi:	“Se	o	roubador	for	ferido	de
sangue;	aquele	que	o	feriu	não	será	réu	de	sangue”.
—	Mas	isso	não	se	contrapõe	ao	mandamento	a	que	fizeste	alusão?
—	Não	sob	certo	ponto	de	vista	—	ponderou.	—	Pois	aquele	que	fere	para
defender	a	vida	tenciona	salvar	uma,	que	é	a	sua	própria.
—	Então	acreditas	que	nem	tudo	está	perdido	para	mim?
Jesus	vez	mais	sorriu	e	continuou	a	explicação.
—	Não	sei	se	tu	sabes,	mas	até	mesmo	os	anjos	matam	em	nome	de	Deus
—	esclareceu	sob	o	distante	e	acanhado	olhar	dos	três	recém-arregimentados	ao
grupo,	em	verdade,	três	celestes	mascarados,	um	dos	quais,	Caliel,	o	mais	hábil
matador	do	Céu.
—	Sim,	eu	soube	há	pouco	—	respondeu	em	alusão	ao	segredo	que	Maria
havia	lhe	confidenciado.
—	Pois	então.	Se	Deus	nos	dá	a	vida,	e	a	vida	é	o	maior	bem	que	temos,
nós	não	podemos	abrir	mão	dela,	ainda	que	indiretamente.	E	se	tu	defendeste	a
tua,	 nada	mais	 fizeste	 do	 que	 zelar	 por	 esse	 bem	 sagrado	 que	 te	 foi	 dado.	—
Percebendo	que	 ela	 ainda	 aparentava	 estar	 confusa,	 Jesus	 tentou	 se	 fazer	mais
claro.	 —	 Magdalena.	 Entendas	 que	 o	 nosso	 corpo	 físico	 é	 um	 templo,	 é	 o
santuário	do	Espírito	Santo.	Assim,	aquele	que	mata	gratuitamente	se	aparta	de
Deus,	 mas	 aquele	 que	 deixa	 de	 zelar	 pelo	 seu	 templo,	 também	 o	 faz.	 Enfim,
tolerar	um	ataque	de	morte	contra	si	próprio	é	um	pecado	tão	ou	mais	severo	do
que	aquele	que	te	assombra.
—	Acho	que	estou	começando	a	entender	o	que	dizes.
—	Então,	 sepulta	 de	 vez	 as	 tuas	 dúvidas.	 Se	 tivesse	 agido	 por	 ódio	 ou
indiferença,	 serias	 culpada	 pelo	 sangue	 vertido.	 Mas	 se	 não	 querias	 pura	 e
simplesmente	a	morte	do	teu	agressor	e	desejavas	apenas	defender	esse	santuário
a	que	fiz	menção,	não	vejo	reparos	que	te	possam	ser	feitos.
—	Mas	ainda	assim,	eu	pratiquei	um	pecado,	não	é?
—	O	ato	não	apaga	o	sentido	da	ação,	afinal,	uma	vida	foi	perdida.	Houve,
de	fato,	um	pecado,	e	as	consequências	para	 ti	 foram	o	medo,	a	 tristeza	e	essa
culpa	que	ainda	carregas.	Mas	 saibas	que,	no	 teu	caso	específico,	 escolheste	 a
tua	vida	num	momento	de	desespero.	Dos	males,	o	menor.
—	Então	eu	não	sou	uma	assassina,	mestre?	—	indagou	agitada.
—	Assassino	 é	 aquele	 que	 mata	 por	 desprezo	 e	 por	 rancor,	 são	 nesses
sentimentos	 que	 residem	 as	 raízes	 do	mal.	 E	 tu,	 pelo	 que	 disseste,	 não	 agiste
dessa	forma.	Mataste,	sim;	mas	não	como	uma	assassina;	afinal,	a	autoproteção
foi	um	ato	de	preservação	da	vida	que	fulminou	a	ilegitimidade	da	tua	ação.	Não
te	esqueças	Magdalena:	Deus	julga	o	intento	e	não	a	ação	física.
—	Mestre,	tiraste	outro	peso	de	mim	—	satisfez-se.	—	Então	eu	posso	me
considerar	perdoada?
—	 A	 tua	 justificativa	 já	 te	 serviu	 de	 perdão,	 pois	 Deus,	 ao	 contrário
daqueles	que	aplicam	a	justiça	dos	homens,	não	é	cego.
Magdalena	carregava	essa	última	mácula	dentro	de	si,	a	qual,	pela	verdade
da	 isenção,	 foi	 extirpada	 graças	 àquelas	 sábias	 palavras	 de	 Jesus.	 Ela	 sentiu
vontade	 de	 abraçá-lo	 efusivamente,	 mas	 o	 recato	 não	 permitiu.	 Ainda	 assim,
tomou	forçosamente	as	mãos	dele	e,	nelas,	deitou	a	própria	face.
—	Como	 pode	 existir	 alguém	 como	 tu?	 Tão	 bom;	 tão	 inteligente	 e	 tão
caridoso?	Pois	deverias	ser	rei;	o	nosso	rei!
Jesus	 ouviu	 àquelas	 palavras	 tomadas	 de	 emoção	 e	 ponderou	 sem
desmerecê-las.
—	 O	 reino	 que	 os	 justos	 procuram	 não	 está	 aqui.	 Portanto,	 vede-me
apenas	como	um	pastor	que	busca	arregimentar	um	 rebanho,	o	qual	haverá	de
encontrar	bom	pasto	no	paraíso,	onde	a	paz	e	 a	 concórdia	não	 são	 leis	postas,
mas	regras	de	vida.
—	 Mestre,	 quisera	 eu	 ser	 um	 homem,	 pois	 assim	 poderia	 ajudar-te	 a
construir	a	tua	igreja	—	desabafou,	em	alusão	ao	caráter	patriarcal	da	sociedade
de	então.
—	Pois	eu	te	digo	que	os	tijolos	do	meu	templo	serão	formados	por	todos
os	que	creem	em	mim.	E	se	 tu	acreditas,	 também	será	um	deles;	quiçá,	o	mais
forte.
Ela,	vez	mais,	ficou	extremamente	grata	e,	na	figura	de	Jesus,	encontrou	o
foco	 para	 a	 sua	 vida.	 Mirian	 Magdalena	 havia	 se	 apaixonado	 pela	 majestade
dele,	 algo	 que	 transpunha	 a	 mera	 atração	 carnal	 tão	 comum	 entre	 os	 seres
humanos.	Embora	fosse	demasiadamente	bela	para	os	padrões	convencionais	das
mulheres	 israelitas	—	 dona	 de	 longos	 cabelos	 negros,	 olhos	 bem	 claros	 e	 um
capitoso	nariz	 levemente	 aquilino	que	 lhe	 coroava	o	 conjunto	—,	 Jesus	 estava
imune	a	quaisquer	sentimentos	corporais	que	ultrapassassem	o	amor	puro,	afinal,
como	arcanjo	que	ele	originalmente	era,	 estava,	 inconscientemente,	preso	à	 lei
restritiva	de	Deus	sobre	as	mulheres:	“a	mulher	pertence	apenas	ao	homem”.
E	foi	por	isso	que,	durante	todo	o	período	de	sua	vida,	o	rabi	de	Nazaré	se
manteve	emcontinência	aos	seus	princípios,	apaixonando-se	e	amando	sempre,
mas	dentro	das	regras	que	unissem	apenas	os	corações,	não	os	corpos.
	
*	*	*
	
Tão	logo	o	casamento	de	Salomé	ocorreu,	ela	e	Lazzar-Sah	passaram	a	ter
morada	 fixa	 no	 palácio	 de	 Antipas	 conforme	 havia	 sido	 anteriormente
convencionado.	 O	 tetrarca,	 ainda	 ressabiado	 com	 a	 sordidez	 da	 esposa	 e	 da
enteada,	passou	a	se	focar	mais	nos	assuntos	de	Estado;	afinal,	a	morte	de	João
Batista	 havia	 lhe	 poupado	 do	 escárnio,	 mas	 acabou	 lhe	 trazendo	 problemas
outros,	 como	 a	 ostensiva	 revolta	 dos	 seguidores	 dele	 que,	 vez	 ou	 outra,	 eram
brutalmente	 reprimidos	 pela	 guarda	 mercenária	 em	 razão	 das	 suas	 investidas.
Sua	esposa	Herodíade	era	uma	mulher	de	inúmeros	leitos,	e	ainda	que	o	fogo	do
marido	tivesse	se	exaurido	após	o	famigerado	colóquio	com	Salomé,	isso	pouco
importava	para	a	rainha,	afinal,	ela	sabia	em	quais	alcovas	caçar	os	seus	prazeres
mundanos.	 E	 embora	 já	 estivesse	 na	 casa	 dos	 quarenta	 anos	 de	 idade,	 ela	 era
extremamente	bem	lapidada,	e	ficar	sem	um	amante	era	algo	improvável;	se	não,
impossível.
Conquanto	o	desconfiado	consorte	da	Princesa	Salomé	estivesse	em	teto
alheio,	 ele	 carregou	 consigo	 vários	 servos	 fiéis,	 os	 quais,	 como	 moscas,
passaram	 a	 rondá-la	 a	 fim	 de	 mantê-lo	 informado	 sobre	 a	 rotina	 dela,
principalmente	 quando	 de	 suas	 costumeiras	 viagens	 para	 tratar	 de	 assuntos
profissionais	nas	inúmeras	rotas	de	comércio	que	lhe	pertenciam.
Pois	 aconteceu	 que,	 alguns	 dias	 depois,	 Salomé	 se	 banhava	 sozinha	 na
grande	 piscina	 do	 palácio,	 a	 qual	 ficava	 na	 parte	 térrea	 e	 não	 tão	 longe	 dos
acessos	que	davam	aos	portões	laterais.	Do	lado	de	fora	do	salão,	estavam	alguns
criados	de	Lazzar-Sah,	os	quais,	em	regra	armados,	estavam	sempre	à	espreita.
De	certa	maneira	entediada,	afinal	os	 tais	“guardiães”	estavam	atrapalhando	as
suas	 costumeiras	 escapadas	 sexuais,	 ela	 se	 ergueu,	 enfadonha,	 daquela	 terma
particular	e,	após	 ter	 se	autoestimulado,	deixou	 revelar	o	 seu	corpo	nu	e	ainda
molhado.	Enquanto	se	secava,	ela	sentiu	uma	leve	brisa	gelada	vinda	por	trás	de
si,	a	qual	lhe	arrepiou	a	pele.	Olhando	para	os	lados	e	nada	vendo	—	as	aias	a
haviam	deixado	sozinha	conforme	o	determinado	—,	ela	ficou,	de	certa	maneira,
incomodada,	para	não	dizer,	assustada.
Salomé	deu	mais	alguns	passos,	ressabiada,	procurando	por	algo	que	não
conseguia	ver,	quando,	de	repente,	uma	voz	grave	e	baixa	invadiu	aquele	recinto.
—	 Parece	 que	 foi	 ontem	 que	 eu	 te	 vi	 assim	 pela	 primeira	 vez;	 nua	 e
encantadora	naquela	bela	lagoa	dourada	na	cidade	perdida	de	Nod...
Ao	 se	 virar	 rapidamente	 para	 tentar	 identificar	 o	 autor	 daquela	 fala,
Salomé	 teve	uma	 extraordinária	 surpresa	que	 a	 pôs	 em	estado	de	 choque.	Sua
mente	foi	invadida	por	várias	imagens	de	suas	vidas	passadas,	culminando	com
uma	 despedida	 forçada	 e	 um	 encantamento	 que	 a	 fez	 se	 esquecer	 do
companheiro,	mas,	 naquele	 instante,	 ela	 se	 lembrou	de	 tudo.	Ao	 romper	o	 seu
forçado	silêncio	diante	daquele	intruso,	Salomé	o	fez	com	uma	expressão	dita	de
maneira	involuntária	e	ao	mesmo	tempo	surpresa.
—	Azeyzel!
Pois	 parte	 daquele	 grandioso	 mistério	 se	 findou	 naquele	 momento.
Iniciado	 em	 magia	 negra,	 o	 ainda	 fugitivo	 celeste	 havia	 procurado
exaustivamente	pelo	avatar	de	sua	inesquecível	amante,	a	inebriante	e	renascida
Layla-Li!	E	 sim,	 no	 corpo	 de	Salomé,	 cujos	 pecados	 nos	 parcos	 anos	 daquela
vida	 já	eram	 incontáveis,	 estava	oculto	o	espírito	original	de	 sua	companheira,
liberto	da	Câmara	de	Guf	para	tentar,	na	Terra,	a	sua	última	redenção.
E	 foi	 naquele	 confuso	 cenário	 que	 ela	 passou	 a	 reexperimentar	 vários
momentos	 das	 seis	 vidas	 que	 havia	 tido	 antes	 daquela,	 mormente	 os	 piores,
terminando	com	o	assassinato	dos	dois	filhos	pelas	próprias	mãos.
Nesse	 instante,	Azeyzel	 se	 aproximou	 dela	 e	 a	 tomou	 efusivamente	 nos
braços.
—	 Voltei,	 minha	 querida!	 E	 dessa	 vez,	 para	 levar-te	 comigo	—	 disse,
abraçando-a	e	beijando-a	com	intenso	frenesi,	na	verdade,	um	furor	de	séculos.
Deixando-se	 momentaneamente	 levar	 pelo	 ímpeto	 da	 aura	 lasciva	 de
Layla-Li,	ela	se	agarrou	ao	vigilante	e	cruzou	com	força	as	suas	pernas	entre	as
nádegas	 dele,	 fazendo	 com	 que	 o	 reconquistado	 sexo	 de	 Azeyzel	 reagisse	 de
pronto.
Mesmo	estando	confusa,	a	primeira	reação	de	Salomé	foi	a	de	se	entregar
em	pecaminoso	prazer,	tamanha	paixão	que	aquele	anjo	lhe	tinha	impingido	em
sua	primeira	vida.	E	sentindo	a	 reciprocidade	dela,	ele	a	possuiu	em	pé	e	com
um	furor	abrasante.
Mas	 ao	 sentir	 o	 exilado	 dentro	 de	 si,	 vez	mais	 um	 repente	 de	 todos	 os
pecados	 que	 havia	 praticado,	 bem	 como	 das	 tormentosas	 passagens	 que	 havia
tido	na	Tesouraria	das	Almas.	E	finalmente	lembrando	da	conversa	sincera	que
teve	com	a	obreira	Harual	antes	de	ganhar	a	liberdade,	ela	emitiu	um	grito	doído,
como	se	uma	adaga	afiada	tivesse	lhe	transposto	o	coração.
Alertados	 pelo	 alto	 som	 do	 brado,	 os	 servos	 de	 Lazzar-Sah	 forçaram	 a
entrada	e	surpreenderam	Salomé	e	o	estranho	em	pleno	ato	sexual,	o	qual,	ao	que
tudo	indicava,	estava	sendo	por	ela	consentido.	Fiéis	ao	mestre,	que	ali	parecia
estar	sendo	traído,	eles	investiram	braviamente	na	direção	dos	dois,	oportunidade
em	 que,	 desordenada	 com	 tudo	 aquilo,	 ela	 se	 livrou	 do	 inusitado	 parceiro	 e
tomou	 uma	 peça	 da	 cobertura	 de	 seda	 que	 estava	 prestes	 a	 vestir,	 saindo,	 a
seguir,	em	desabalada	carreira	pelo	térreo	do	palácio.
Azeyzel	 agora	 não	 passava	 de	 um	meio-anjo,	 sequer	 asas	 tinha,	 e	 lutar
contra	 homens	 armados	 talvez	 não	 lhe	 fosse	 vantajoso.	 Diante	 disso,	 ele
astuciosamente	se	camuflou	em	luz	e	conseguiu	despistar	dois	dos	guardiães	de
Lazzar-Sah,	 ao	 passo	 que	 os	 demais,	 três	 deles,	 ávidos	 por	 justiçar	 a	 atacada
honra	do	seu	amo,	se	puseram	a	perseguir	Salomé.
Perdida	e	com	a	mente	desordenada,	a	princesa	sequer	 teve	o	 ímpeto	de
subir	 as	 escadarias	 para	 buscar	 a	 guarida	 dos	 seus,	 pondo-se	 então	 a	 correr
tresloucada	 em	 direção	 à	 saída	 dos	 fundos	 do	 palácio,	 ganhando	 as	 ruas	 de
Tiberíades	seminua	e	em	completo	descontrole	emocional.
Enquanto	 iam	 atrás	 dela,	 os	 servos	 de	 Lazzar-Sah	 a	 acusavam
publicamente	 de	 traição,	 imputando-lhe,	 de	 forma	 sumária,	 a	mortal	 pecha	 de
adúltera.
Ao	embrenhar-se	pelas	vielas	lotadas	de	judeus,	Salomé	tentava,	de	algum
modo,	reencontrar-se,	pois	a	sua	mente	estava	a	trapacear	e	a	levá-la	para	cada
uma	das	suas	vidas	findas.	Ao	ser	reconhecida	e	apontada	como	a	maligna	filha
de	Herodíade,	os	radicais	passaram	também	a	persegui-la	e	exigirem,	na	mesma
conta,	o	sangue	dela	pelo	de	João	Batista.
—	É	Salomé!	—	gritavam.	—	Pegai	essa	rameira	maldita	e	apedrejai-a	até
a	morte	—	entoavam	com	ódio	nas	palavras.
Arisca,	 ela	 vez	 ou	 outra	 tropeçava	 e	 caía	 e,	 embora	 conseguisse	 se
levantar	 depressa,	 àquela	 altura,	 um	 sem	 número	 de	 amargurados	 a	 estava
acossando,	 e	 talvez	 nem	mesmo	 o	 exército	 do	 padrasto	 conseguisse	 aplacar	 a
fúria	deles.
E	foi	nesse	cenário	confuso,	derrubando	bancas	pelas	ruas	e	empurrando
os	 mais	 incautos	 para	 fugir	 de	 algo	 que	 sequer	 sabia	 ao	 certo,	 que	 Salomé
ganhou	uma	via	e	 tropicou	pela	última	vez,	caindo	violentamente	sobre	a	 terra
batida	e	esbarrando	nos	pés	de	uma	inusitada	pessoa,	talvez	a	única	que	pudesse
salvá-la	dos	seus	furiosos	perseguidores.
De	 rápida	 passagem	 por	 Tiberíades,	 a	 qual	 antecedia	 a	 cidade	 de
Cafarnaum,	 Jesus	 e	 parte	 dos	 discípulos	 haviam	 adentrado	 na	 cidade	 para
comprar	 mantimentos,	 tal	 não	 sendo	 a	 surpresa	 deles	 ao	 se	 depararem	 com
aquele	cenário	beligerante.
Trêmula	 ao	 extremo,	 Salomé	 mal	 conseguia	 erguer	 o	 rosto	 e,	 ao
instintivamente	tocar	nas	sandálias	de	Jesus,	caiu	num	transe	que	a	colocou	em
coma.	Metatron,	que	seguia	logo	atrás	com	discípulos,	adiantou-se	no	terreno	e	a
tomou	no	colo,identificando,	pelo	cheiro	do	sangue	que	dela	vertia	em	razão	dos
ferimentos,	o	tão	procurado	código	genético	de	Layla-Li.
—	Entregai-a	a	nós!	Ela	merece	ser	apedrejada!	—	gritavam	uns.
—	Adúltera,	que	sejas	morta!	—	bradavam	outros.
Perfurando	a	multidão	com	o	olhar,	Jesus	tomou	à	frente	do	impasse.
—	O	que	fez	esta	mulher	para	receber	tanto	ódio?
Nesse	 instante,	 o	 encarregado	de	Lazzar-Sah	 lá	 chegou	 e,	 com	a	 espada
erguida,	 vociferou	 em	 grego	 algumas	 palavras	 que	 esbarravam	 num	 afamado
bordão	judaico:	“sozinho	com	sozinha;	nu	com	nua	e	em	outro	leito”.
Embora	 Jesus	 não	 fosse	 tão	 letrado	 —	 era	 um	 camponês	 que	 tinha
fluência	apenas	no	aramaico,	embora	possuísse	certo	conhecimento	do	hebraico
e	do	grego	—,	aquela	frase	fazia	genérica	alusão	à	severa	lei	mosaica,	isto	é,	ao
delito	de	adultério,	por	aqueles	dias,	punido	com	a	morte.
Salomé	 era	 de	 Edom,	 uma	 espécie	 de	 descendência-prima	 da	 nação
judaica,	 assim,	 era	 tida	como	“meio”	 judia	e,	 apenas	por	 isso,	 a	 severidade	da
Lei	de	Moisés	também	haveria	de	recair	sobre	ela.
—	Queremos	o	sangue	dela	pelo	do	Batista!	—	interferiu	outro	popular,
tomando	 uma	 pedra	 nas	 mãos,	 no	 que	 foi	 seguido	 pelos	 demais	 que	 ali	 se
amontoavam.
Percebendo	que	a	multidão	em	fúria	 tomava	corpo,	Jesus	cruzou	olhares
com	 Metatron	 e,	 sutilmente,	 deu	 a	 entender	 para	 que	 este,	 com	 Salomé
inconsciente	no	colo,	se	colocasse	por	trás	dele.	Esboçando	sacar	a	espada	curta
diante	 do	 impasse,	 Pedro	 a	 levou	 novamente	 à	 bainha,	 ao	 perceber	 que	 o	 seu
mestre,	a	exemplo	dos	demais,	também	tinha	tomado	uma	pedra	do	chão.
—	De	fato,	é	de	Lei	que	o	adúltero	haverá	de	ser	morto	—	bradou	Jesus,
tomando	 a	 dianteira	 dos	 seus.	 —	 Pois	 se	 ela	 merece	 o	 severo	 castigo	 da
lapidação[101],	também	o	merecem	todos	os	que	profanaram	a	mesma	Lei.
—	O	que	estás	a	dizer,	estranho?	—	bradou	um	afoito	popular	ameaçando
avançar	contra	ele.
—	Eu	estou	a	dizer,	Raviv	—	afirmou	Jesus,	inusitadamente	referindo-se
àquele	homem	pelo	nome	—,	que	apedrejados	também	devem	ser	aqueles	que,
como	 tu,	 já	 se	 deitaram	 com	 uma	 virgem	 comprometida	 —	 disse	 sob	 o
atemorizado	olhar	daquele	insurgente	—	ou	como	tu,	Phineas	—	asseverou,	já	se
dirigindo	a	outro	—,	que	tomaste	os	bens	de	teu	pai	e	o	amaldiçoaste	—	bradou,
ao	segurar	com	firmeza	aquela	mesma	pedra	e	encarar	aqueles	para	os	quais	se
dirigia.	 Pois	 ao	 perceber	 que	 a	 multidão	 passou	 a	 recuar	 diante	 das	 suas
revelações,	verdades	que	apenas	ele	via	por	trás	da	soberba	dos	pecadores	que	lá
estavam,	ele	foi	ainda	mais	duro.	—	E	então?	Ireis	ou	não	matar	essa	infratora?
—	desafiou.	—	Nem	tu,	Elad?	Que	deu	 falso	 testemunho	para	beneficiar-te	da
má-sorte	de	uma	pobre	viúva?	—	insistiu,	desmascarando	os	que	lá	estavam.	—
E	tu,	Deena?	—	indagou	sarcasticamente	a	uma	das	mais	agressivas	insurgentes.
—	Será	 que	 não	merece	 a	morte,	 uma	 devassa	 que,	 assim	 como	 tu,	 se	 dá	 em
prazer	às	 feras?	—	asseverou,	 revelando,	diante	de	 todos,	que	ela	 se	 rendia	ao
execrável	 pecado	 da	 bestialidade.	 A	 multidão	 ficou	 chocada	 e,	 admoestada,
passou	a	perder	força.	E	enfim,	Jesus	deu	o	golpe	decisivo.	—	E	enfim,	que	tal
tu,	 Barzilai?	—	 desafiou,	 agora,	 o	 servo	 do	 esposo	 da	 fugitiva,	 o	mesmo	 que
havia	 esbanjado	 soberba	 ao	 envergar	 o	 idioma	 grego.	 —	 Tu,	 que	 com	 esse
mesmo	gládio	constrangeu	a	própria	filha	a	ser	tua	mulher	—	finalizou,	diante	de
um	cabisbaixo	e	acuado	acusador.	—	Vamos!	Jogai	as	pedras!	—	provocou.	—
Jogai...	e	elas,	graças	a	implacável	justiça	de	Deus,	irão	se	voltar	para	as	vossas
próprias	cabeças.
Os	acompanhantes	do	mestre	perceberam	que	ele	havia	tomado	o	controle
da	 situação,	 afinal,	 diante	 da	 parcela	 de	 divindade	 que	 carregava,	 havia	 sido
capaz	de	enxergar	os	ilícitos	de	todos	os	que	lá	se	ajuntavam.
—	Ninguém?	—	continuou,	ao	enfrentá-los	com	aquele	 fragmento	ainda
erguido	para	o	alto.
E	percebendo	que	havia	acuado	todos	os	que	lá	ficaram,	temerosos	em	ter
os	graves	pecados	publicamente	revelados,	Jesus	finalmente	 jogou	a	pedra	que
tinha	em	mãos	no	chão	e	a	viu	se	pulverizar.
Confiante,	ele	e	os	discípulos	perceberam	quando	 todos	começaram	a	se
afastar,	vencidos	que	haviam	sido	pelos	seus	 inquebrantáveis	argumentos.	Pois
Metatron,	embora	 imponente	em	razão	dos	seus	mais	de	dois	metros	de	altura,
tamanho	médio	de	um	arcanjo,	não	quis	arriscar	e,	mesmo	percebendo	a	tensão
diminuir,	ponderou	ao	rabi.
—	 Senhor,	 acho	 melhor	 tirarmos	 esta	 mulher	 daqui.	 E	 depois	 do	 que
aconteceu,	seria	melhor	que	também	deixássemos	a	cidade.
—	Ele	tem	razão,	rabi	—	disse	André	—,	com	a	morte	de	João	Batista,	o
povo	tem	andado	nervoso,	e	não	seria	prudente	nos	arriscarmos	novamente.
—	E	quanto	a	essa	menina?	Ela	parece	morta	—	indagou	Pedro	nervoso.
—	Não,	ela	ainda	vive	—	respondeu	Metatron.	—	Mas	se	nós	a	deixarmos
aqui,	aí	 sim	ela	correrá	perigo	de	morte.	Senhor,	permite	que	eu	e	minha	 irmã
cuidemos	 dela	 —	 pleiteou,	 aludindo	 ao	 igualmente	 disfarçado	 príncipe	 dos
querubins.
Jesus	 olhou	 para	 Salomé	 e	 sentiu	 que	 a	 ajuda	 que	 ela	 precisava	 não	 se
resumia	 apenas	 a	 livrar-se	 da	 sanha	 daqueles	 rudes	 revoltos;	 ela	 precisava,
também,	 ser	 salva	 da	 perdição	 da	 sua	 alma.	 Com	 um	 simples	 movimento	 de
cabeça,	 ele	 concordou	 com	 o	 pleito	 e	 todos	 deixaram	 Tiberíades	 sob	 o	 ainda
impressionado	olhar	de	muitos	que	presenciaram	aquele	acontecimento.
Azeyzel	 havia	 escapado,	 mas	 o	 avatar	 de	 Layla-Li	 foi	 encontrado	 num
inusitado	golpe	de	sorte.	Metatron	tentaria	mantê-la	por	perto	e	usá-la	como	isca,
a	 fim	 de	 tentar	 colocar	 as	 suas	mãos	 no	 fugitivo	 celeste,	 ao	 passo	 que,	 agora
junto	de	Jesus,	ela	talvez	encontrasse	o	caminho	aludido	pela	obreira	Harual.	Ou
seja,	de	um	jeito	ou	de	outro,	ela	estaria	segura.
Tão	 logo	 a	 notícia	 da	 fuga	 de	 Salomé	 chegou	 ao	 conhecimento	 de
Herodíade,	 ela	 entrou	 em	 desespero.	 Entretanto,	 Antipas	 ficou	 intimamente
satisfeito,	 afinal,	 sem	o	 testemunho	da	enteada,	 a	 rainha	havia	 ficado,	de	certa
forma,	enfraquecida	para	chantageá-lo.	Em	razão	do	depoimento	dos	servos	de
Lazzar-Sah,	 sedimentou-se	 que	 ela	 havia	 sido	 flagrada	 em	 adultério	 com	 um
desconhecido	 e,	 mesmo	 para	 os	 edomitas,	 isso	 era	 um	 crime	 de	 morte.	 Para
tentar	 manter	 as	 aparências,	 Herodes	 Antipas	 despachou	 algumas	 guarnições
atrás	dela,	mas	já	previamente	orientadas	por	Cusa	a	não	serem	tão	rigorosas	nas
buscas.
Crente	 na	 versão	 dos	 seus,	 o	 esposo	 dela	 considerou	 as	 bodas
sumariamente	 desfeitas	 e,	 levando	 consigo	 a	 própria	 vergonha,	 partiu	 de
Tiberíades	para	nunca	mais	voltar.
	
*	*	*
	
Ressabiados	 com	 o	 retorno	 repentino	 de	 Jesus,	 os	 demais	 membros	 da
comitiva,	acampados	nas	imediações	da	cidade,	tiveram	a	atenção	chamada	para
uma	 mulher	 desacordada	 que	 um	 dos	 seguidores	 trazia	 nos	 braços.	 Ao	 ver
Metatron	 andar	 de	 forma	 apressada,	Beelzebu	 percebeu	 quando	 ele	 passou	 do
seu	lado	e	sussurrou:	“Eu	a	encontrei”.
Sem	muita	 demora,	 todos	 voltaram	 à	 estrada	 precariamente	 policiada	 e,
nos	braços	do	arcanjo,	a	jovem	seguia	ainda	inerte.	Na	parada	seguinte,	já	ao	cair
da	noite,	Joana	e	Magdalena	se	achegaram	de	Salomé	para	tentar	ajudar	em	algo,
oportunidade	em	que	a	primeira,	ao	vê-la	aparentemente	dormindo,	esboçou	uma
feição	de	notório	espanto.
—	O	que	houve	Joana?	—	indagou	Magdalena.
—	Essa	menina...	—	respondeu	afoita.
—	O	que	tem	ela?
—	 Eu	 me	 recordo	 dela	 ainda	 criança	 no	 palácio	 de	 Tiberíades	 —
esclareceu	a	ex-amante	de	Cusa.	—	Eu	dificilmente	me	engano,	estou	certa	de
que	ela	é	a	enteada	de	Herodes	Antipas,	a	Princesa	Salomé.
Mostrando-se	 surpresa	 com	 a	 revelação,	Magdalena	 achou	 por	 bem	 dar
ciência	desse	fato	a	Jesus,	uma	vez	que	a	refugiada	poderia	 trazer	as	 tropas	do
tetrarca	 contra	 eles.	 Entretanto,	 o	 fato	 é	 que	 haveria	 de	 ocorrer	 exatamente	 o
oposto.
Jesus	 recebeu	 a	 notícia	 com	 tranquilidade,afinal,	 depois	 daquilo	 tudo,
Salomé,	 assim	 como	 Joana,	 não	 seria	 mais	 Salomé.	 Mas	 para	 evitar	 maiores
temores,	 ele	pediu	cautelar	 silêncio	a	 ambas,	no	que	 foi	 atendido.	Metatron	 se
pôs	de	guarda	ao	lado	dela,	pois	sabia	que	Azeyzel	voltaria	atrás	da	alma	da	ex-
companheira,	agora	presa	em	outro	corpo,	tão	belo	quanto	o	de	Layla-Li.
Quando	os	primeiros	 raios	do	sol	nasceram,	Salomé	abriu	 lentamente	os
olhos	 e	 se	 viu	 numa	 terra	 estranha.	 Ao	 invés	 da	 suntuosidade	 a	 que	 estava
acostumada	no	palácio,	apenas	o	firmamento,	pássaros	cantando	e	um	vai	e	vem
de	pessoas	que,	havia	bem	pouco	tempo,	ela	desprezava.	Pedro,	que	limpava	os
dentes	com	algumas	folhas	de	sálvia,	a	fitou,	marrento	e	desconfiado.	Ela	tentou
entender	o	que	se	passava	ali,	mas,	em	verdade,	parecia	ter	experimentado	uma
espécie	 de	 renascimento.	 Sem	 que	 se	 apercebesse,	 alguém	 que,	 naquele
momento,	estava	ao	lado	dela,	tomou	a	iniciativa	da	conversa.
—	Nada	como	despertar	sob	um	belo	teto	como	esse,	não	é	mesmo?
A	 princesa	 ainda	 estava	 confusa,	 mas	 ao	 ver	 a	 figura	 serena	 de	 Jesus
diante	de	si,	tentou	se	levantar	apoiando-se	num	dos	braços,	mas	não	conseguiu.
Percebendo	a	dificuldade	dela,	o	rabi	a	confortou.
—	Está	tudo	bem	agora,	não	faças	tanto	esforço.
—	Onde	eu	estou?	—	indagou,	tentando	recuperar	a	voz.
—	Entre	amigos,	entre	irmãos	—	respondeu	o	mestre	sorrindo.
—	Eu	não	me	lembro	de	nada...
—	Tu	não	sabes	quem	és?
—	Quem	sou	eu...	—	repetiu	apalpando	a	cabeça.	—	Mas	quem	sou	eu?
—	 Isso	 cabe	 apenas	 a	 ti	 decidir.	Quem	 tu	 eras	 talvez	 não	 importe.	Mas
quem	serás	daqui	por	diante,	isso,	sim,	importa	—	disse	o	rabi,		tomando-a	pelas
mãos.
A	verdade	é	que	Salomé	havia,	de	certa	forma,	morrido.	Não	fisicamente,
afinal,	ainda	estava	ali	em	matéria,	mas	ela	havia	renascido	em	vida,	enterrando
todos	os	fantasmas	que	a	atormentavam.
Quando	ela	 tocou	 Jesus	durante	 sua	 fuga,	 teve	apagada	a	 sanha	maligna
que	 a	 caracterizava	 e,	 por	 via	 de	 consequência,	 acabou	 perdendo	 parte	 da	 sua
memória,	remanescendo	apenas	a	necessária	para	que	interagisse	com	as	demais
pessoas.	O	 rabi,	 de	 certa	 forma,	 a	 tinha	 curado	 de	 uma	 doença	 extremamente
grave	e,	na	mesma	toada,	a	libertado	do	que	a	perseguia	desde	que	tinha	vivido
como	Layla-Li	na	cidade	de	Nod,	antes	mesmo	do	dilúvio	universal.
—	Não	sabes	o	vosso	nome?
—	Eu...	não	me	lembro	—	justificou-se.
—	Permite-me,	então,	chamar-te	de	Susana	—	disse	ele,	vertendo	algumas
gotas	de	água	sobre	a	testa	dela.
—	Susana?
—	Sim,	pois,	para	nós,	és	um	“lírio	renascido”	—	explicou	em	metáfora.
—	Fica	conosco	e	renasce	não	apenas	para	ti	mesma,	mas	também	para	o	reino
de	Deus.
Ela	ainda	estava,	de	certa	forma,	túrbida;	Magdalena	então	se	aproximou	e
lhe	 cedeu	 uma	 muda	 de	 roupa,	 afinal,	 ela	 mal	 conseguia	 se	 cobrir	 com	 um
arremedo	de	capa	que	Metatron	lhe	havia	posto.	Salomé,	agora	chamada	Susana,
cujo	significado	era,	de	fato,	“lírio”,	estava	com	o	rosto	sem	pinturas,	pois	havia
se	banhado	e	não	teve	tempo	hábil	para	que	as	suas	aias	a	tornassem	ainda	mais
bela.	Contudo,	a	naturalidade	da	sua	beleza	estava	intacta,	agora	acrescida	de	um
resquício	de	pureza	que	ela	jamais	havia	tido.
Susana	 não	 recusou	 a	 oferta	 da	 veste	 e,	 igualmente	 auxiliada	 pela	 ex-
cortesã	 da	 corte	 de	 Antipas,	 ornou-se	 de	 modo	 a	 imiscuir-se	 entre	 as	 demais
mulheres	 que	 acompanhavam	 Jesus	 na	 caravana	 de	 discípulos,	 a	 fim	 de	 nela
desaparecer.
Pois	não	tão	longe	dali	Beelzebu	se	achegou	de	Metatron	e	o	indagou:
—	Então	é	mesmo	ela?
—	 A	 jovem	 sangrava	 pela	 boca	 quando	 a	 encontramos.	 Toquei	 o	 seu
tecido	conjuntivo,	e	me	foram	reveladas	as	instruções	genéticas	que	a	obreira	do
Guf	me	repassou.	É	ela,	não	há	dúvidas.
—	Ontem,	Caliel	se	aproximou	dela	e	a	sentiu	impregnada	pela	estirpe	de
Herodes	I,	a	quem	ele	próprio	matou	há	alguns	anos.	Mas	e	Azeyzel?	O	viste	por
lá?
—	Não,	mas	acredito	que	ele	deflagrou	tudo	isso,	afinal,	ela	estava	sendo
acusada	 de	 ter	 se	 deitado	 com	 um	 homem	 que	 não	 o	 marido,	 talvez	 ele...	 –
considerou.	—	E	ao	cair	aos	pés	de	Miguel,	ou	melhor,	de	Jesus,	ela	desfaleceu.
—	Se	a	vossa	tese	está	correta,	Azeyzel	não	tardará	a	rondá-la	novamente.
—	E	quando	isso	ocorrer,	eu	haverei	de	colocar	as	mãos	nele.
—	E	essa	tal	menina?
—	Eu	terei	que	ficar	ao	lado	dela;	é	o	meu	chamariz.
Sem	nada	entender,	a	recém-batizada	Susana	se	entretinha	com	a	atenção
que	estava	recebendo	e,	mais	ainda,	com	um	estranho	sentimento	de	gratidão	que
havia	brotado	no	seu	coração,	cuja	 frieza	de	anos	—	ou	melhor,	de	séculos	—
estava	agora	se	esvaindo.
De	outra	banda,	Pedro	andava	ressabiado	com	a	constante	arregimentação
de	mulheres	ao	grupo,	principalmente	aquela,	acolhida	quase	nua	numa	praça	da
grande	 Tiberíades,	 cujo	 marido	 ou	 tutor	 poderia	 estar	 furioso	 em	 busca	 dela.
Forjado	 numa	 sólida	 base	 patriarcal,	 ele	 relutava	 em	 aceitar	 a	 igualdade	 que
Jesus	 emprestava	 às	mulheres,	 afinal,	 na	 cabeça	obtusa	do	pescador,	 ele	 temia
que	elas	auferissem	conhecimentos	outros	que	as	tornassem	aptas	a	suplantar	a
casta	masculina	até	então	dominante.	Some-se	a	isso	que	embora	fiel	e	dado	aos
ensinamentos	 de	 Jesus,	 ele	 ainda	 resistia	 em	 entender	 o	 real	 conceito	 de
reconciliação,	mormente	 para	 prostitutas	 –	 Joana;	 curandeiras	 –	Magdalena;	 e
adúlteras	–	Salomé.
Sempre	 solicito,	 Jesus	 percebeu	 o	 incômodo	 e,	 vez	mais,	 tentou	 fazê-lo
mudar	de	ideia.
—	Pedro,	aceites	que	alguns	mortos	revivem	e	alguns	perdidos	se	acham.
—	Eu	não	entendo,	mestre...
Jesus	o	abraçou	com	afeto	e	o	levou	para	uma	clareira	onde	ficaram	a	sós.
Feito	isso,	o	rabi	continuou	com	a	prosa.
—	Sabe	 Pedro,	 eu	me	 lembro	 que,	 certa	 feita,	 acompanhei	meu	 pai	 até
Gadara[102],	a	fim	de	prestar	serviços	na	morada	de	um	rico	mercador.	Ele	tinha
dois	 filhos,	 sendo	 que	 o	 mais	 novo	 insistia	 em	 ter	 o	 seu	 quinhão	 da	 herança
adiantado.	Convencido,	o	homem	atendeu-lhe	o	pedido	e	 entregou	a	parte	que
cabia	ao	moço,	o	qual,	num	país	distante,	dissipou	toda	a	fortuna	que	lhe	coube.
Depois	 disso,	 a	 fome	 foi	 visitá-lo	 e,	 aqueles	 que	 se	 diziam	 seus	 amigos,	 na
verdade,	eram	amigos	apenas	da	 sua	ventura.	Enfim,	o	pobre	 se	pôs	a	guardar
porcos	e,	acredite,	passou	a	desejar	as	alfarrobas	que	eram	dadas	a	eles,	tamanha
a	miséria	que	lhe	havia	acometido.	—	Pedro	permanecia	atento	ao	que,	do	rabi,
ouvia.	—	Pois,	ele	se	lembrou	de	casa	e	do	pai,	e	de	como	os	empregados	dele
eram	 bem	 tratados.	O	 rapaz	 não	 pensou	 duas	 vezes	 e	 voltou	 para	 o	 seu	 lar	 e,
perante	o	genitor,	assumiu	os	seus	pecados	e	chegou	até	a	dizer-se	indigno	de	ser
seu	filho,	contentando-se	em	ser	apenas	mais	um	servo.
—	E	o	que	fez	o	pai	dele?	—	perguntou	o	pescador	curioso.
—	O	velho,	contrariando	todas	as	expectativas	possíveis,	vestiu	o	rebento
com	a	melhor	roupa	e	mandou	sacrificar	o	melhor	novilho	para	festejar	a	volta
do	filho	que,	para	todos,	havia	sido	dado	como	morto.	Pois	o	irmão	mais	velho
do	jovem,	ao	ver	o	que	ocorria,	mostrou	o	seu	inconformismo	ao	pai,	afinal	ele
continuava	reto	e	temente	aos	princípios	que	lhe	haviam	sido	ensinados	e,	nem
por	isso,	o	pai	lhe	festejava,	já	para	um	fornicador,	um	pecador	como	o	caçula,
foram	dadas	todas	as	pompas.
—	E	não	assistia	razão	ao	irmão	mais	velho?
—	Esse	é	o	foco	da	história.	Pois	o	pai	respondeu	ao	primogênito	que	este
sempre	 esteve	 com	 ele,	 nos	 piores	 e	 nos	 melhores	 momentos	 da	 vida,	 mas
presente,	da	forma	que	fosse.	Já	o	menor	estava	morto	e	reviveu;	estava	perdido
e	 se	 encontrou;	 estava	 pecando	 e	 se	 redimiu,	 daí	 o	 júbilo.	 —	 Pedro	 se
emocionou.	—	Meu	irmão,	eu	te	contei	essa	parábola	para	que	entendas	que	não
existem	faltas	que	não	possam	ser	perdoadas,	afinal,	não	se	alcança	a	perfeição
do	 espírito	 sem	 o	 arrependimento	 dos	 erros	 e	 sem	 o	 reconhecimento	 de	 que
ainda	podemos	recomeçar.	Portanto,	independentemente	do	que	as	três	fizeram,
nesta	ou	em	outras	vidas,	nós	devemos	sempre	estarprontos	a	perdoar,	pois	só
assim	faremos	com	que	elas	se	reconciliem	com	Deus.
—	Eu	é	que	agora	peço	perdão,	mestre	—	lamentou	o	pescador.	—	E	se
não	fosse	pelas	tuas	mãos	e	pelos	teus	ensinamentos,	eu	certamente	continuaria	a
ser	o	bronco	que	sempre	fui.
—	 Aprende	 a	 perdoar,	 Pedro.	 Pois	 as	 culpas	 que	 foram	 arraigadas	 a
Magdalena,	 a	 Joana	 e	 a	 Susana	 também	 são	 nossas,	 afinal,	 diante	 de	 Deus,
somos	todos	iguais.
O	pescador	de	Cafarnaum	aparentou	absorver	aquela	lição,	mas,	no	fundo,
não	 o	 fez.	 Em	 suas	 parábolas,	 Jesus	 tentava	 mostrar	 que	 o	 preconceito	 e	 o
julgamento	eram	como	espelhos,	pois	eles	refletiam	as	falhas	que,	vez	ou	outra,
as	pessoas	viam	apenas	no	próximo,	mas	nunca	em	si	mesmas.
	
Capítulo	8
A	Grota	dos	Leprosos
JUDAS	 ISCARIOTE	 CONTINUAVA	 A	 SUA	 PEREGRINAÇÃO	 e,	 de	 plaga	 em	 plaga,
encontrava	tão	somente	revolta.	O	povo	judeu,	exausto	do	cativeiro,	tolerava	os
desmandos	dos	seus	conquistadores	na	esperança	de	que	o	salvador	não	tardasse
a	vir.
Ele	 atravessou	 a	 Samaria[103],	 galgou	 o	 Tabor[104]	 e	 enfim	 chegou	 a
Tiberíades,	sendo	que,	em	todos	os	lugares	em	que	havia	passado,	tinha	ouvido
falar	da	inusitada	figura	de	um	artesão	de	Nazaré	que	estava	fazendo	milagres	e
curando	as	pessoas.	E	mais,	que	ele	estava	arregimentando	multidões,	tendo	até
quem	o	estivesse	chamado	de	Messias.
Curioso	 com	 a	 notícia,	 Judas	 partiu	 para	 a	 Galileia	 a	 fim	 de	 tentar
encontrar	aquele	sobre	o	qual	o	povo	tanto	falava;	ele	precisava	ver	por	si	só	se	o
tal	Jesus	era	ou	não	o	homem	por	quem	tanto	procurava.
Àquela	 altura,	 a	 fama	 do	 rabi	 havia	 atingido	 todo	 o	 norte	 da	 Judeia	 e,
estando	ele	diante	de	uma	multidão	em	Cafarnaum,	foi	necessário	que	subisse	na
proa	 de	 um	 barco	 para	 poder	 ser	 visto	 por	 todos.	 Percebendo	 uma	 excessiva
movimentação	a	beira-mar,	Judas	se	pôs	entre	os	presentes	e	passou	a	ouvir	as
curiosas	lições	do	nazareno,	o	qual,	em	suas	palavras,	falava	basicamente	de	paz
e	de	amor.	 Incomodado,	ele	ficou	 tentado	a	 intervir,	entretanto,	achou	por	bem
esperar	a	palestra	terminar,	a	fim	de,	quem	sabe,	conversar	com	aquele	homem
que	difundia	ideias	distantes	das	suas.
Pois	um	sicário	astuto	como	Judas	não	teve	dificuldade	em	descobrir	onde
o	 rabino	 estava	 hospedado	 e,	 já	 na	 casa	 de	 Pedro,	 tentou	 ter	 com	 ele.	 No
momento	Jesus	e	os	seus	ceavam	e,	ao	ser	informado	de	que	um	sujeito	deveras
mal-encarado	desejava	vê-lo,	o	mestre	não	se	fez	de	rogado	e,	sem	demonstrar
qualquer	incômodo,	mandou	que	o	fizessem	entrar.
Tão	 logo	 os	 presentes	 visualizaram	 Judas,	 ficaram	 incomodados	 com	 a
aparência	agressiva	dele,	afinal,	o	zelote	ostentava	uma	severa	cicatriz	que	ia	dos
lábios	 à	 altura	 da	 sua	 orelha	 esquerda	 e,	 na	 cintura,	 percebia-se	 que	 ele	 trazia
uma	 adaga	 embainhada.	 Pedro	 se	 levantou,	 arisco,	 ao	 passo	 que	 o	 próprio
forasteiro,	antecipando-se	a	um	mal-entendido,	tratou	de	serenar	os	ânimos.
—	Nada	 temais,	meus	 irmãos.	 Eu	 também	 sou	 judeu	 como	 vós,	 apenas
mais	um	descontente	em	busca	de	respostas	—	disse,	retirando	o	punhal	da	cinta
e	entregando-o	voluntariamente	à	cautela	do	pescador.
Percebendo	 que	 as	 intenções	 dele	 aparentavam	 ser	 sinceras,	 Pedro
guardou	 a	 arma	 e	 o	 deixou	 se	 achegar.	 Jesus	 aparentava	 estar	 avesso	 ao	 que
acontecia,	mas	tomando	um	pequeno	pedaço	de	pão	e	molhando-o	num	copo	de
vinho,	estendeu-o	na	direção	de	Judas	como	se	o	chamasse	para	se	sentar	com
eles.	Ele	não	se	fez	de	rogado	e	assentiu,	afinal,	os	rigores	da	sua	jornada	talvez
fossem	minimizados	com	uma	boa	refeição	e	um	teto	firme.
Após	 o	 jantar,	 onde	 foram	 apenas	 enfrentados	 temas	 recreativos,	 Jesus
sentiu	que	era	chegado	o	momento	de	conversar	com	Judas	a	sós,	afinal,	havia
sido	para	isso	que	o	forasteiro	tinha	ido	vê-lo.
—	Eu	percebo	que	vieste	até	aqui	para	parlamentar	comigo.	Pois	cá	estou,
pronto	para	ouvir-te	—	ofertou-lhe,	durante	uma	caminhada.
—	Senhor,	 eu	 venho	de	 Jerusalém,	 uma	 terra	 um	 tanto	 agitada	 nos	 dias
atuais.	E	nessas	minhas	caminhadas,	ouvi	muita	coisa	sobre	ti	e,	curioso,	decidi
procurar-te.	Entretanto,	creio	que	talvez	eu	tenha	perdido	o	meu	tempo.
—	O	tempo	não	se	perde	amigo;	ele	apenas	se	esvai	—	ponderou	de	forma
espirituosa.
Judas	achou	graça	naquela	observação	cantada,	o	que	 lhe	era	raro.	E	ele
então	continuou.
—	Eu	ouvi	o	teu	discurso	com	atenção,	falaste,	basicamente,	em	paz.	Mas
acreditas	que	paz	é	o	que	teremos	daqui	por	diante?
—	Vê-se	que	apenas	ouviu	as	minhas	palavras.	Mas	não	as	escutou.
—	Perdão?
—	Tu	não	 te	prendeste	ao	 tema	central,	pois,	 se	o	 tivesses	 feito,	 saberia
que	eu	não	vim	apenas	trazer	a	paz,	mas	sim	a	espada.
Quando	ouviu	a	expressão	“espada”,	Judas	mudou	a	fisionomia.
—	Disseste	“espada”?
—	 Sim.	 —	 assentiu.	 —	 Não	 penses	 que	 as	 minhas	 palavras	 serão
estabelecidas	de	forma	pacífica.
—	Então	falas	em	revolução?	—	interessou-se.
—	De	certa	forma,	sim.	Haverá	lutas	longas	e	sangrentas	e,	infelizmente,
muitos	haverão	de	morrer	em	razão	do	nome	de	Deus.
Pois	aquelas	palavras	capturaram	Judas.	Espada;	lutas;	morte.	Seria,	Jesus,
o	 aguardado	 Messias	 da	 Guerra?	 Embriagado	 pela	 sonoridade	 daquelas
expressões,	o	zelote	se	decidiu	naquele	mesmo	momento.
—	Rabi!	Desculpa	a	minha	anterior	falta	de	visão.	E	ao	ensejo,	tu	permites
que	eu	te	siga?
—	 Se	 é	 o	 que	 o	 teu	 coração	 deseja,	 fica	 conosco	—	 assentiu	 o	mestre
tomando-lhe	pelas	mãos.
Pois	impressionado	com	aquela	assertiva,	Judas	talvez	tivesse	encontrado
quem	tanto	procurava.	Entretanto,	assim	como	o	próprio	Jesus	o	havia	alertado,
ele	apenas	ouviu	as	palavras	dele,	e	não	as	escutou.
Embora	a	paz	estivesse	ao	alcance	de	qualquer	um,	não	eram	todos	que	a
acolhiam	 de	 pronto	 e,	 em	 razão	 da	 doutrina	 de	 fé	 pregada	 por	 Jesus,	 a	 cólera
entre	 os	 irmãos,	 ou	 seja,	 entre	 as	 nações,	 logo	 iria	 emergir,	 afinal,	 quantas
guerras	tidas	como	santas	ainda	estariam	por	vir	a	pretexto	do	nome	dele?
Pois,	 na	 verdade,	 a	 espada	 era	 a	 divisão	 entre	 os	 homens	 de	 bem	 e	 os
rebeldes	a	Deus,	que	se	levantariam	para	tentar	derrubar	a	crença	no	verdadeiro
amor,	 e	 para	 estes,	 não	 haveria	 paz	 sem	 guerra	 e,	 embora	 Jesus	 fosse	 o
pacificador,	as	palavras	dele,	de	certa	forma,	iriam	gerar	ebulição	entre	as	pátrias
religiosas.	 Assim,	 Jesus	 não	 seria	 propriamente	 o	 portador	 dessa	 espada,	 mas
sim,	o	motivo	pelo	qual	muitos	ainda	a	haveriam	de	levantá-la.	E	se	Judas	talvez
tivesse	entendido	isso	desde	o	início,	o	cruel	destino	dele	certamente	haveria	de
ser	outro.
	
*	*	*
	
Embora	 um	 tanto	 receoso	 no	 começo,	 o	 bravio	 zelote	 passou	 a
acompanhar	 a	 caravana	 de	 peregrinos	 e,	 a	 princípio,	 satisfez-se,	 pois	 todos	 ali
eram	dados	às	coisas	de	Deus,	assim	como	ele	também	acreditava	ser.
Judas	 achava	 divertido	 ver	 Jesus	 brincar	 com	 as	 crianças	 do	 grupo,	 as
quais,	não	raro,	faziam	uso	de	arremedos	de	impulsores	para	tentar	derrubar	as
frutas	 das	 árvores,	 assim	 como	 o	 mestre,	 enquanto	 menino,	 também	 fazia	 no
Egito.
Uma	das	 jovens	do	ajuntamento,	o	querubim	Beelzebu	disfarçado,	era	o
maior	 arqueiro	 do	 Céu	 e,	 nessa	 qualidade,	 tentava	 pacientemente	 instruir	 os
pequenos	para	 de	 que	 eles	 não	 se	 ferissem	com	aqueles	 instrumentos	 rústicos,
cuja	ponta	das	flechas	era	cega	e	servia	apenas	para	entretê-los.	Embora	experto
na	mesma	arma,	o	 igualmente	mascarado	Caliel	preferiu	sonegar	os	seus	dotes
aos	demais,	pois	 se	os	demonstrasse,	 fatalmente	 seria	descoberto,	afinal,	 como
seria	 possível	 a	 uma	 pequena	 criança,	 que	 sequer	 andar	 direito	 sabia,	 ser	 tão
hábil	com	o	arco	e	a	flecha?
Na	mesma	toada,	Pedro	ainda	mantinha	certo	receio	com	relação	a	Caliel,
o	qual	logo	evoluiu	para	um	arremedo	de	respeito,	principalmente	após	ter	visto
de	 relance	 o	 fragmento	 do	 punhal	 de	 ouro	 que	 a	 pequenina	 trazia	 escondido
sobre	a	bata	 surrada	que	vestia.	Para	o	pescador,	aquela	“menina”	 talvez	 fosse
um	anjo	guardião,pois	demonstrava	ser	diferente	das	demais	crianças,	estando
coincidentemente	por	perto	sempre	que	alguém	parecia	correr	perigo.
Pois	dias	antes,	Pedro	estava	para	vestir	suas	sandálias	pela	manhã	e,	sem
perceber,	 Caliel,	 ali	 chamada	 de	Chaya,	 surgiu	 e	 as	 arrancou	 rapidamente	 das
suas	mãos.	Inicialmente	irritado,	ele	fez	menção	de	repreendê-la,	mas	ao	ver	que
a	pequena	as	balançou	entre	as	mãos	e	afugentou	um	escorpião	que	nela	estava
escondido,	ele	quedou-se	silente	e,	assustado,	a	agradeceu	com	a	cabeça.
Definitivamente	aquela	“criança”,	sempre	sisuda	com	ele,	não	era	daquele
mundo,	não	aquele	que	Pedro	conhecia.	Em	razão	disso,	ele	achou	por	bem	ir	ter
com	 Jesus,	 o	 qual,	 ao	 ouvir	 dele	 sobre	 as	 peripécias	 da	 jovenzinha,	 assim
respondeu.
—	E	por	qual	motivo	um	filho	do	homem	deve	temer	um	filho	de	Deus?
Pedro	 não	 era	 letrado	 como	Magdalena,	 mas	 também	 não	 era	 tolo.	 Ao
ouvir	aquela	observação	não	mais	questionou	o	rabi,	afinal,	ele	foi	indiretamente
instado	 a	 aceitar	 sumariamente	 a	 presença	 daqueles	 três	 estranhos	 no	 grupo,	 e
sem	fazer	maiores	perguntas.
Depois	de	alguns	meses,	até	Judas	efetivamente	amoleceu	o	seu	coração
após	 presenciar	 um	 fato	 que	 ocorreu	 nos	 campos	 próximos	 ao	 monte	 Tabor.
Acampada	 havia	 mais	 de	 três	 dias	 para	 ouvir	 as	 pregações	 de	 Jesus,	 uma
multidão	que	ultrapassava	a	 casa	de	cinco	mil	pessoas	 foi	 alimentada	graças	 a
dois	 cestos	 que	 continham	poucos	 pães	 e	 tilápias.	Ao	 pôr	 as	mãos	 sobre	 eles,
Jesus	deu	graças	ao	Pai	e	 fez	com	que	se	multiplicassem	de	modo	a	alimentar
todos	os	que	 lá	 estavam.	Um	milagre,	 o	primeiro	que	 ele	via	 com	os	próprios
olhos.
Ainda	que	fosse	inclinado	à	guerra,	Judas	começou	a	perceber	a	vida	sob
outro	ponto	de	vista	e,	na	devoção	pela	caridade,	mote	maior	de	Jesus,	encontrou
um	contrapeso	para	a	sua	sanha	de	justiça	pelo	sangue.	Mas,	no	fundo,	ele	ainda
era	 um	 homem	 de	 armas,	 e	 crendo	 piamente	 naquele	 “Messias	 da	 Espada”,
passou	 a	 ponderar	 que	 a	 benevolência	 também	 pudesse	 ser	 uma	 das
características	do	rabi,	o	qual	haveria	de	ser	um	rei	como	nenhum	outro	além	de
Davi.
Foi	pensando	nisso	que	Judas	começou	a	assediar	o	seu	mestre	para	irem	a
Jerusalém,	 onde	 a	 grata	 parte	 dos	 insatisfeitos	 estava.	 Jesus	 ponderou	 que	 o
tempo	da	referida	cidade	estava	próximo	e	que	em	breve	eles	haveriam	de	rumar
para	aquelas	bandas,	desta	feita,	o	ungido	também	tencionava	visitar	Lázaro[105],
seu	 amigo	 de	 muito	 tempo.	 Ouvindo	 isso,	 o	 sicário	 sentiu-se	 ainda	 mais
estimulado	 para	 segui-lo,	 afinal	 ele	 havia	 previsto	 a	 queda	 de	 Roma	 e	 da
fortaleza	Antônia,	pois	a	 força	do	 rabi	parecia	 ser	absoluta	e	 livre	de	qualquer
outro	poderio	posto	sobre	a	Terra.
Mas	o	trabalho	de	Jesus	urgia,	os	dias	lhe	eram	contados,	e,	para	que	os
seus	 dogmas	 fossem	 levados	 adiante,	 ele	 passou	 meses	 direcionando	 os	 seus
ensinamentos	 a	 alguns	 dos	 seguidores	 mais	 próximos	 com	 a	 finalidade	 de
prepará-los	para,	em	nome	dele,	levar	a	palavra	de	Deus	para	quem	a	precisasse
ouvir.
Num	 dia	 especial,	 à	 beira	 do	 mar	 dourado	 da	 Galileia,	 ele	 convocou
quatorze	dos	seus	discípulos	a	fim	de	dar-lhes	autoridade	para,	com	a	prudência
das	serpentes	e	a	simplicidade	dos	pombos,	pregar	e	curar	os	aflitos:	“Que	a	paz
esteja	 convosco!”,	 anunciou.	 “Divulgai,	 em	meu	nome,	 a	 chegada	do	 reino	de
Deus”.
Em	seguida,	o	mestre	os	chamou	um	a	um	e,	ao	final,	notou	que	os	dois
últimos	 nomes	 causaram	 surpresa	 entre	 os	 primeiros.	 E	 foi	 então	 que,	 Simão,
chamado	 Pedro;	 André;	 João;	 Tiago,	 primo	 de	 Jesus;	 Levi,	 chamado	Mateus;
Tiago,	filho	de	Alfeu;	Filipe	de	Betsaida;	Tomé;	Natanael,	chamado	Bartolomeu;
Tadeu;	 Simão[106];	 Judas	 Iscariote;	 Mirian	Magdalena;	 e	 Joana,	 a	 de	 Cusa;	 de
discípulos,	passaram	a	ser	chamados	de	apóstolos.
Quando	 o	 mestre	 lhes	 disse	 “Ide	 e	 dizei	 que	 o	 reino	 de	 Deus	 está
próximo”,	Judas	pensou	que	Jesus	estaria	prestes	a	se	levantar	contra	os	romanos
e	acabar	 com	a	escravidão	na	 Judeia.	Mas	o	 tempo,	 agora	contado,	haveria	de
mostrar	que	ele	estava	errado,	muito	errado.
	
*	*	*
	
Vagando	 sem	 rumo	 pelas	 vias	 de	 Jerusalém,	 um	 meio-anjo	 tentava
reencontrar	a	mulher	que	ele	havia	ido	buscar	na	Terra.	Comunicativo	e	deveras
desprendido,	 Azeyzel	 imiscuiu-se	 entre	 o	 povo	 e	 não	 tardou	 a	 auferir
informações	 sobre	 como	 a	 Princesa	 Salomé	 havia	 desaparecido	 nos	 braços	 de
um	 homem	 um	 tanto	 abrutalhado,	 em	 verdade,	 o	 Arcanjo	 Metatron.	 E	 mais,
soube	também	que	um	exímio	orador	havia	vertido	a	multidão	ávida	por	justiçá-
la.	Uns	disseram	que	ele	era	um	mágico;	 já	outros,	um	profeta.	Pois	entre	uma
andança	 e	 outra,	 ele	 se	 deparou	 com	um	 ambiente	 que	 lhe	 soava	 familiar,	 um
lugar	que,	em	Nod,	ele	frequentava	com	deleite:	uma	taberna.
Pois	 ao	nela	 entrar	 e	 bebericar	 um	copo	de	 vinho	barato,	 coisa	 que	não
fazia	 havia	 séculos,	 ele	 rememorou	 o	 seu	 passado	 e	 como	 ele	 próprio	 havia
ensinado	 os	 homens	 a	 fermentar	 as	 uvas	 e	 auferir	 aquele	 néctar	 que	 se
disseminou	no	mundo.	Lembrou-se	 também	do	 seu	 gêmeo	Semyaza,	 que	 com
ele	veio	do	Céu	para	conhecer	as	formosas	mulheres	da	linhagem	de	Caim	e	por
elas	igualmente	caíram.	E	entre	um	gole	e	outro	daquela	bebida,	eis	que	diante
dele	surgiram	dois	velhos	conhecidos,	os	quais,	também	em	busca	de	respostas,
não	se	fizeram	de	rogados	ao	reencontrar	o	irmão	que	havia	muito	não	viam.
—	Se	eu	bem	me	lembro,	a	última	vez	que	nós	estivemos	juntos	foi	num
lugar	muito	parecido	com	este	—	disse	Baalberith	a	Azeyzel.
Pasmo	 ao	 ver,	 diante	 de	 si,	 o	 ex-procurador	 e	 o	 caído	 príncipe	 dos
serafins,	ele	os	encarou	assustado.
—	Nada	tema,	cara	Potência	—	disse	Lúcifer	ao	tentar	tranquilizá-lo.	—
Só	não	diga	que	estás	aqui	desde	o	dilúvio	que	devastou	a	Terra.
Azeyzel	então	desarmou	o	medo,	sorriu	sem	muita	pompa,	degustou	mais
um	gole	daquele	vinho	e,	na	sequência,	respondeu:
—	 Não,	 muita	 coisa	 aconteceu	 depois	 disso.	 Mas,	 para	 resumir,	 posso
antecipar-vos	que,	no	momento,	eu	não	preciso	mais	mimetizar	as	minhas	asas.
Cientes	 de	 que	 o	 corte	 de	 asas	 era	 uma	 pena	 grave	 prevista	 no	 Código
Criminal	 Celeste,	 ambos	 se	 sentaram	 e	 mostraram	 interesse	 pelos	 detalhes
daquela	revelação.
—	Baalberith	 deve	 lembrar	 bem,	 inclusive	 da	mulher	 que	 eu	 cheguei	 a
desposar	aqui	antes	da	 tormenta	universal.	Entretanto,	 logo	depois,	os	arcanjos
vieram	no	meu	encalço	e	dos	demais	vigilantes	e,	além	das	asas,	eu	e	os	demais
perdemos	a	liberdade	e	também	as	genitálias.
—	Perdeste	a	liberdade?	—	estranhou	Lúcifer.	—	Mas	não	estás	livre?
—	 Livre?	 —	 retrucou	 em	 voz	 baixa.	 —	 Irmãos,	 eu	 sou	 um	 fugitivo;
consegui	escapar	das	masmorras	celestes.
—	Como?	É	 impossível	 escapar	 das	masmorras	 de	Vigilum,	Azeyzel	—
retrucou	Lúcifer	rindo	alto.
—	Não	para	um	mago	—	esclareceu	vertendo	mais	um	gole.
Ao	ouvir	aquela	expressão	—	um	mago!	—	o	monarca	infernal	mudou	a
feição	e	fitou	seriamente	a	Potência,	afinal,	a	magia	havia	morrido	com	a	ordem
das	 Presenças,	 a	 quem	 os	 três,	 na	 primeira	 grande	 guerra	 angélica,	 tinham
ajudado	a	eliminar.
—	O	que	disseste?	—	inquiriu	o	caído,	aparentemente	incrédulo.
—	 Isso	 mesmo	 que	 ouviste.	 Quando	 eu	 perdi	 as	 asas,	 também	 me
arrancaram	as	partes,	afinal,	como	sabem,	fui	um	anjo	“fornicador”.	Mas	mesmo
estando	preso,	engendrei	um	plano	e	consegui	ter	acesso	às	fórmulas	de	Pyriel,
que	 havia	muito	 estavam	 escondidas	 na	 biblioteca	 de	Vigilum	 e	 daí,	 para	 uma
fuga,	e	cá	estou	eu	agora,	diante	de	vós.
—	Um	mago...	—	repetiu	Lúcifer,	escorando-se	no	assento	da	cadeira.
—	Mas	me	diz,	o	que	precisamente	vieste	fazer	aqui?
—	Baalberith	deve	saber	o	motivo	—	afirmou	Azeyzel.
—	Hum...	—	suspirou	com	malícia.	—	Por	acaso	não	seria	aquela	tua	bela
e	 provocante	 amiga?	—	completou	 o	marechal	 do	 Inferno,	 ao	 se	 lembrar	 que,
milênios	 antes,	 ele	 e	 Lucífago	 Rofocale[107]	 haviamencontrado	 Azeyzel	 na
companhia	 de	 Layla-Li	 na	 velha	 taberna	 de	 Metusiu[108],	 estendida	 na	 hoje
destruída	cidade	de	Nod.
—	A	própria	—	concordou	satisfeito.
—	Irmão,	ao	que	me	consta,	um	ser	humano	não	 tem	a	 longevidade	 tão
grande	 como	 a	 nossa.	 E	 diante	 disso,	 não	 existe	 a	 possibilidade	 de	 ela	 ter
sobrevivido	por	tanto	tempo.
—	 É	 aí	 que	 te	 enganas.	 Eles	 é	 que	 têm	 a	 vida	 eterna,	 e	 não	 nós	 —
ponderou	com	razão.
—	 E	 a	 chave	 disso	 é	 a	 tal	 “alma”	—	 completou	 Lúcifer,	 que	 milênios
antes,	havia	assistido	a	criação	do	primeiro	homem.
—	 Sim,	 pois	 eles	morrem	 e	 renascem,	mas	 em	 corpos	 diferentes.	 E	 ao
contrário	do	que	sentem,	eu	me	afeiçoei	deles;	delas,	melhor	dizendo.
—	E	por	acaso	tens	pistas	da	tal	moça?	—	insistiu	Baalberith.
Azeyzel	esboçou	uma	feição	astuta	e	respondeu.
—	Digamos	que	sim.	Mas	em	razão	de	um	pequeno	percalço	involuntário,
eu	a	perdi	temporariamente.	—	Lúcifer	riu	alto	novamente	e	chamou	a	atenção
de	alguns	que	lá	estavam.	Mas	ao	perceberem	que	o	decaído	os	fulminava	com	o
olhar	agressivo	por	entre	o	capuz	que	vestia,	eles	 logo	se	retraíram	com	medo.
—	Nós	dois	tivemos	um	reencontro	turbulento	há	pouco,	e	ela	escapou	de	mim.
E	 um	 homem,	 bem	 grande	 pelo	 que	 eu	 soube,	 a	 levou.	 E	 tal	 só	 foi	 possível,
graças	à	intervenção	de	um	outro,	o	qual	alguns	chamaram,	dentre	outras	coisas,
de	“filho	de	Deus”.	—	Lúcifer	 e	Baalberith	 se	 entreolharam.	—	E	o	que	 soou
mais	 estranho,	 é	 que	 as	 pessoas	 com	 quem	 falei	 me	 esclareceram	 que	 o
grandalhão	 tinha	o	 cabelo	de	um	dos	 lados	da	 cabeça	 raspado...	—	asseverou,
aludindo	ao	penteado	padrão	dos	arcanjos	abaixo	da	patente	de	marechal.
—	Um	 corte	militar...	—	 concluiu	Lúcifer	 pensativo.	—	Mas	 nos	 conte
mais,	e	sem	pressa	—	solicitou,	gentilmente,	o	líder	das	terras	más.
Azeyzel	 detalhou	 como	 havia	 sido	 o	 seu	 reencontro	 com	 o	 avatar	 de
Layla-Li,	 agora	 ocupando	 o	 corpo	 de	 Salomé,	 e	 de	 como	 ela	 lhe	 havia
escapulido	 pelos	 dedos.	 Pela	 descrição	 dos	 partícipes,	 os	 dois	 egressos	 do
Inferno	logo	concluíram	que	o	tal	orador	só	poderia	ser	Jesus	e,	se	não	lhes	traía
a	astúcia,	o	encorpado	haveria	de	 ser	um	arcanjo	disfarçado,	 reforçando	a	 tese
sobre	a	real	identidade	do	Messias.	A	Potência	também	foi	inclinada	a	chegar	no
mesmo	resultado,	afinal,	o	acompanhante	dele	poderia	ser	Metatron,	o	qual	teria
descido	à	Terra	no	encalço	dele.
—	 Isso	 é	 coerente,	 Azeyzel,	 afinal,	 Metatron	 talvez	 tenha	 se	 sentido
responsável	pela	tua	fuga,	pois,	segundo	nos	disseste,	foi	ele	que	peticionou	aos
arcontes	pedindo	a	 tua	progressão.	E	além	do	mais,	parece	que	aqui	 temos	um
arcanjo	ajudando	o	outro.
—	O	que	estás	a	dizer?
—	Que	esse	tal	Jesus,	na	verdade,	só	pode	ser	Miguel.
—	Miguel?	—	insurgiu-se	o	antigo	armeiro	celeste.
—	Sim,	meu	emasculado	amigo.	O	nosso	antigo	marechal	celeste,	aqui	em
sigilosa	missão	no	corpo	de	um	homem	qualquer.
—	De	fato,	quando	eu	progredi,	 fui	 informado	de	que	ele	não	estava	no
Céu,	pois	havia	saído	em	encargo.	Isso	faz	sentido.
—	 Bem,	 então	 sugiro	 que	 se	 irmane	 a	 nós	 nessa	 empreitada.	 Eu	 e
Baalberith	te	ajudaremos	a	encontrar	a	tal	mulher,	e	tu	nos	auxiliará	a	refrear	os
planos	de	Miguel.
—	Mas	como	haveremos	de	agir?
—	Uma	coisa	de	cada	vez,	Azeyzel.	Uma	coisa	de	cada	vez	—	reforçou
Lúcifer,	ao	remexer	sobre	a	cabeça	aquele	imundo	e	aterrador	capuz	negro	que	o
cobria.
	
*	*	*
	
No	pátio	da	austera	fortaleza	Antônia,	as	guarnições	estavam	enfileiradas,
afinal,	 a	 chefia	de	 fração	da	 coorte	 responsável	 pela	guarda	de	Pilatos	 e	 pelos
esquadrões	de	crucificação[109]	de	Jerusalém	estava	prestes	a	ser	alterada.
Deixando	 o	 seu	 posto	 de	 muito	 tempo,	 o	 velho	 centurião-chefe	 Lucius
Pullo	estava	deveras	 satisfeito	com	o	ano	de	 soldo	extra	que	havia	 recebido	e,
com	ele,	pretendia	adquirir	uma	pequena	fazenda	nas	imediações	e	dedicar-se	à
agricultura.
Em	seu	lugar,	assumia	um	oficial	romano	de	quarenta	e	três	anos	de	idade,
já	 experiente	 em	 confrontos	 e	 batalhas	mas	 que	 buscava	 se	 aproximar	 do	 que
havia	 restado	 de	 sua	 família	 em	 Jerusalém	 e	 encontrar	 um	 pouco	 menos	 de
agitação.	Diante	da	tropa,	ele	se	apresentou	formalmente	ao	prefeito	romano.
—	Centurião-chefe	Quiricus	 Longinus,	 último	 posto	 na	 Terceira	 Legião
Gálica,	 apresentando-se	 ao	 comando	 de	 Vossa	 Excelência!	 —	 asseverou
firmemente,	ao	cruzar	o	braço	direito	e	bater	o	punho	contra	a	própria	armadura.
—	Foste	muito	bem	recomendado,	oficial	—	respondeu	Pilatos,	em	razão
da	 fama	 heroica	 dele.	—	Pois	 a	 ti	 agora	 confio	 a	 guarda	 das	 nossas	 casas	 de
gestão	e,	enquanto	eu	estiver	aqui,	da	minha	própria	família	—	finalizou.
Acatando	formalmente	o	encargo,	Longinus	passou	a	 tropa	em	revista	e,
do	 alto	 do	 seu	 cavalo	 branco,	 fitou	 um	 dos	 homens	 que,	 mesmo	 um	 tanto
pequeno,	 parecia	 se	 sobressair	 entre	 os	 demais.	 Encurvado	 pela	 idade	 —	 os
cinquenta	 anos	 lhe	pesavam	—	e	 ainda	 assim	um	simples	 immune[110],	 Servius
Cartaphilus	 era	 o	 responsável	 por	 uma	 das	 unidades	 de	 crucificação	 de
Jerusalém,	a	Décima	Terceira,	e,	mesmo	sabedor	da	prevenção	que	o	seu	agora
comandante	tinha	para	consigo	desde	os	tempos	do	Egito,	onde	serviram	juntos,
nem	 assim	 ele	 se	 fez	 de	 rogado.	 Aliás,	 a	 função	 de	 executor	 lhe	 caía	 com
perfeição,	 pois,	 embora	 inicialmente	 escalado	 para	 ser	 um	 dos	 porteiros	 de
Pilatos,	 ele,	 sem	 demora,	 tratou	 de	 conseguir	 transferência	 para	 um	 serviço
menos	nobre,	afinal,	lhe	apetecia	torturar	os	condenados.
Longinus	premiu	o	seu	olho	bom	—	ele	já	estava	cego	do	esquerdo	—	e
continuou	com	a	marcha.	Entretanto	reencontrar	o	antigo	e	cruel	companheiro	de
Legião	não	 lhe	agradou	nem	um	pouco.	Em	seguida	ele	 foi	vez	mais	 recebido
pelo	 prefeito,	 que	 o	 havia	 convocado	 para	 que	 conhecesse	 aqueles	 a	 quem
deveria	proteger,	Cláudia	Prócula	e	Diocletianus,	filho	de	ambos.
Poucos	 sabiam,	 mas	 a	 vinda	 de	 Longinus	 tinha	 sido	 arranjada	 para,	 de
certa	 forma,	 recompensar	 os	 valorosos	 bons	 anos	 de	 serviço	 que	 ele	 havia
dedicado	 à	 coroa	 romana	 nas	 campanhas	 bélicas	 na	 Síria,	 onde,	 com	 muito
esforço,	galgou	o	posto	que	ocupava.	E	graças	 ao	 respeito	que	havia	ganho,	o
agora	 centurião-chefe	 acreditava	 que	 teria	 um	 pouco	 de	 paz	 naquelas	 plagas,	
onde	se	estabeleceu	numa	casa	em	que	viveria	com	a	família	da	irmã	mais	velha
e	alguns	empregados,	dentre	os	quais,	um	jovem	grego	chamado	Eliseu,	mais	um
filho	do	que	propriamente	um	servo.
De	 acordo	 com	 as	 instruções	 de	 Pilatos,	 Longinus	 soube	 que	 Jerusalém
estava	 mais	 amena,	 tanto	 é	 que	 o	 prefeito	 havia	 trocado	 a	 sua	 mansão	 na
Cesareia	Marítima	pelo	primor	do	palácio	de	Herodes	I,	onde	a	proximidade	dos
sacerdotes	do	Templo	lhe	facilitava	a	missão	de	vigiar	as	polpudas	somas	que	lhe
eram	mensalmente	 repassadas	 como	 tributo	 pela	 permanência	 de	Caifás	 como
sacrificador-mor.
Embora	 os	 ataques	 dos	 zelotes	 estivessem	 controlados,	 a	 vigília	 deveria
ser	mantida	à	 risca,	principalmente	 sobre	a	mítica	 figura	do	bandido	Barrabás,
ainda	 foragido.	 Fora	 isso,	 nada	 que	 não	 algumas	 ebulições	 aqui	 ou	 acolá,
causadas	 pelos	 inúmeros	 profetas	 que	 pululavam	 naqueles	 dias	 e	 que	 eram
reprimidas	pela	Polícia	do	Templo	dos	judeus.
Embora	a	fama	de	Jesus	ainda	fosse	tímida	no	coração	da	Judeia,	afinal,
ele	só	havia	pregado	por	uma	única	vez	nas	imediações	de	Jerusalém	no	começo
do	 seu	 ministério,	 os	 viajantes	 e	 mercadores	 falavam	 efusivamente	 sobre	 as
realizações	daquele	carpinteiro	e,	mesmo	no	Sinédrio,	ele	já	era	objeto	de	debate
entre	 alguns	 círculos,	mormente	 depois	 que	 o	 Juiz	Nicodemus	 passou	 a	 nutrir
notório	respeito	para	com	ele.
Pois	enfim,	depois	de	mais	de	vinte	anos,	 aquele	outrora	 jovem	soldado
romano	 e	 o	 travesso	 menino	 galileu	 que	 havia	 vivido	 no	 Egito,	 finalmente
voltariam	 a	 se	 reencontrar.	 Mas	 em	 quais	 circunstâncias,isso	 era	 ainda	 um
mistério.
	
*	*	*
	
Com	o	passar	dos	meses,	Susana	passou	a	interagir	com	as	demais	pessoas
que	seguiam	Jesus	e,	sempre	vigiada	por	Metatron,	havia	ocultado	na	memória	a
sua	 vida	 mundana	 como	 Salomé.	 Mas,	 sem	 perceber,	 ela,	 às	 vezes,	 via-se
dançando	timidamente	com	as	crianças	do	grupo,	cuja	flauta	doce	daquele	oculto
arcanjo	vez	ou	outra	a	embalava.
De	 Tiberíades,	 Herodíade	 mandou	 emissários	 para	 todos	 os	 lugares	 da
Judeia,	 mas,	 em	 vão,	 nada	 auferia	 sobre	 o	 paradeiro	 da	 filha,	 fato	 este	 que
Herodes	Antipas	via	de	forma	positiva,	afinal,	enquanto	ela	estivesse	sumida	o
seu	segredo	libertino	estaria	oculto.
Naqueles	 dias,	 alguns	 apóstolos	 haviam	 deixado	 o	 ajuntamento	 para
ensinar	 a	 palavra	 de	 Deus	 nas	 cidades	 vizinhas,	 ao	 passo	 que,	 após	 algumas
semanas,	 haveriam	 de	 se	 encontrar	 na	 encosta	 do	Monte	Tabor	 para	 seguirem
viagem	 a	 Betânia	 e	 ao	 centro	 de	 Jerusalém,	 onde	 a	 doutrina	 de	 fé	 haveria	 de
finalmente	 ser	 pregada	 com	maior	 afinco.	 Sabedor	 que	 o	 seu	 destino	 jazia	 na
última	 cidade,	 Jesus	 a	 evitou	 desde	 o	 início	 do	 seu	 ministério,	 as	 poucas
pregações	 foram	 apenas	 nas	 suas	 redondezas,	 afinal,	 ele	 precisava	 preparar
aqueles	que,	depois	dele,	seriam	os	portadores	do	Evangelho	de	Deus.
Seriam	dias	 difíceis	 para	 os	 apóstolos,	 eles	 estariam	privados	 da	 efetiva
presença	do	mestre,	mas,	por	ele	licenciados,	não	tardariam	a	encontrar	aqueles	a
quem	 tanto	 buscavam	 e,	 nas	 vilas	 e	 aldeias,	 experimentariam	 aceitação	 e
resistência,	fé	e	desdém,	acolhida	e	indiferença.
No	entanto,	de	 forma	geral,	o	 trabalho	para	o	qual	haviam	sido	 talhados
haveria	 de	 ter	 o	 esperado	 êxito,	 pois	 ao	 começarem	 a	 curar	 os	 cegos	 e	 os
doentes,	 a	 doutrina	 por	 eles	 professada	 passou	 a	 ser	 multiplicada	 conforme	 o
plano	inicial	de	Jesus.
Mateus	 e	 Judas	 Iscariote	 seguiram	 para	 Giscala[111].	 Pedro	 seguiu	 com
João	para	o	sul	e,	embora	anteriormente	admoestado	por	Jesus,	ainda	assim	ficou
incomodado	 com	 o	 fato	 de	Magdalena	 e	 Joana	 não	 terem	 partido	 no	 mesmo
tempo	 que	 os	 demais,	 afinal	 o	mestre	 havia	 anunciado	 que	 tinha	 uma	missão
especial	para	elas.
Não	obstante	 fosse	 bom	e	 reto,	Pedro	 relutava	 em	aceitar	 o	 fato	 de	 que
ambas	 eram	 suas	 iguais,	 “apóstolas”	 conforme	 o	 rabi	 as	 chamava.	 João	 o
advertiu	sob	o	argumento	de	que	se	Jesus	as	fizera	merecedoras	do	encargo	não
lhes	 seria	 lícito	 discutir	 os	 desígnios	 dele,	 uma	 vez	 que,	 perante	 Deus,	 todos
eram	 iguais,	 fossem	 homens	 ou	 mulheres.	 Esse	 conflito	 de	 gêneros,	 embora
aparentemente	 inofensivo,	 haveria	 de	 futuramente	 interferir	 nos	 destinos	 da
igreja,	 já	 que,	 entre	 o	 grupo,	 Pedro	 tinha	 outros	 partidários	 da	 necessidade	 de
proeminência	masculina	no	processo	de	evangelização.
Pois	agora	em	Nazaré,	Jesus,	sua	mãe	e	alguns	discípulos	lá	ficariam	até
que	chegasse	o	momento	de,	aos	pés	do	Tabor,	o	grupo	se	reunir	e	seguir	para
Jerusalém,	de	acordo	com	o	planejado.
Magdalena	e	Joana	haviam	sido	as	únicas	que	ainda	não	haviam	partido	e,
após	auferirem	do	mestre	o	inusitado	destino	que	haveriam	de	tomar,	se	puseram
a	 arrematar	 algumas	 iguarias,	 como	 mudas	 de	 salsaparrilha	 e	 extratos	 de
damasco,	 afinal,	 com	 parte	 dos	 haveres	 vindos	 dos	 pesqueiros	 de	 Magdala,
Mirian	havia	tomado	a	frente	das	necessidades	financeiras	da	ordem,	cuja	bolsa
se	prestava	à	conveniência	dela	—	da	igreja	—	e	dos	humildes.	Some-se	a	isso
que,	para	a	missão,	ela	contratou	a	um	bom	peso,	dois	carregadores	de	Tiro[112]
para	 transportarem	 uma	 carga	 que	 deveria	 ser	 vigiada	 nos	 arredores	 do	 lugar
onde	iriam,	pois,	de	tempos	em	tempos,	ela	seria	utilizada	no	trabalho	que	urgia.
Susana,	 a	 essa	 altura	 já	 iniciada	 na	 evangelização,	 observava	 a	 tudo
curiosa	e,	mesmo	sem	saber	aonde	as	duas	estavam	indo,	pediu	para	acompanhá-
las.	Jesus	ficou	satisfeito	com	os	bons	passos	que	ela	estava	dando	e,	ao	assentir,
fitou	Metatron	e	o	licenciou	para	seguir	com	as	três.
—	 Sinto	 que	 a	 nossa	 parceria	 está	 prestes	 a	 terminar,	 irmão...	—	 disse
Beelzebu	para	o	arcanjo	ao	vê-lo	arrumar	a	sua	bolsa	para	escoltá-las.
—	E	por	que	dizes	isso?
—	Intuição...	—	retrucou.	—	E	mesmo	que	estejas	armado,	eu	temo	pela
tua	sorte	 sem	Caliel	por	perto	—	ponderou,	enaltecendo	as	virtudes	bélicas	do
camareiro	de	Deus.
—	Caliel	é	quem	deveria	ter	nascido	um	arcanjo;	e	eu	um	querubim	—	riu
timidamente	ao	admitir	a	sua	repulsa	pelas	armas.	—	Mas	eu	fiz	uma	promessa	a
Deus	e	tenho	que	cumpri-la.	E	só	voltarei	ao	Céu	com	Azeyzel	sob	ferros.
—	Mas	e	os	teus	livros?
—	A	história	dos	homens	 está	 sendo	escrita	por	 si	 só.	E	 seja	qual	 for	o
meu	destino,	as	minhas	anotações	estarão	preservadas,	da	forma	que	for.
—	Bem,	desejo	sorte	na	tua	missão.
—	E	eu	na	tua	—	finalizou,	ao	se	despedir	sem	pompas.
Pois	 lá	 se	 foram	os	 quatro	—	Magdalena,	 Joana,	 Susana	 e	Metatron	—
rumo	a	um	vale	 sombrio	e	esquecido	que	 ficava	nos	 limites	de	 Jerusalém.	Era
nele	 que	 habitavam	 os	 considerados	 impuros,	 os	 quais	 eram	 proibidos	 de
frequentar	as	cidades	abertas	sob	pena	de	sumaria	execução[113].
A	 várzea	 dos	 proscritos,	 também	 conhecida	 por	 Grota	 dos	 Leprosos,
ficava	 numa	 depressão	 onde	 apenas	 poucos	 estrangeiros	 iam	 ter.	Assim,	 salvo
um	ou	outro	altruísta	que	para	lá	levava	alguns	restos	de	comida,	ninguém	tinha
coragem	de	ali	entrar,	haja	vista	a	temida	possibilidade	de	contágio,	deformidade
e	morte.
A	 vida	 dos	 leprosos	 era	 extremamente	 difícil[114]	 e,	 fora	 o	 medo	 pela
doença,	o	mau	cheiro	que	advinha	da	maioria	deles	mantinha	os	curiosos	longe
dali.	Eles	tinham	os	corpos,	as	mentes	e	os	espíritos	definhados,	daí	a	dificuldade
de	aproximação,	sendo	que	os	poucos	que	se	arriscavam	a	esmolar	nas	cidadelas
eram	repelidos	com	punhados	de	terra	que	lhes	eram	brutalmente	arremessados,
afinal,	segundo	o	povo,	eles	já	estariam	mortos	e,	como	mortos,	deveriam	voltar
à	poeira	de	onde	vieram.
Após	 alguns	 dias	 de	 exaustiva	 viagem,	 os	 peregrinos	 aportaram	 nos
limites	do	vale	e,	embora	advertidos	para	dele	se	afastar,	nada	os	obstou	a	seguir
adiante.	Susana	e	Metatron	foram	instados	a	ir	até	as	proximidades	de	Betânia	a
fim	 de	 aguardar	 a	 comitiva	 de	 Jesus,	 que	 passaria	 pela	 grota	 a	 fim	 de	 buscar
Magdalena	 e	 Joana,	 mas,	 em	 contrapartida,	 a	 jovem	 fez	 questão	 de	 descer	 a
colina	e	acompanhá-las,	no	que	se	fez	seguir	pelo	arcanjo	que	a	guardava.
Para	acessar	o	vale,	 fazia-se	necessário	 transpor	uma	pequena	estrada	de
pedras	afiadas	e,	ao	perceberem	a	aproximação	daqueles	estranhos,	os	primeiros
doentes	se	puseram	temerosos	e	ariscos.	Eram	homens,	mulheres	e	crianças	sem
qualquer	amparo	social	ou	médico,	os	quais,	acostumados	apenas	com	a	repulsa
e	a	rejeição,	custaram	a	acreditar	nas	boas	intenções	dos	forasteiros.
Magdalena	 insistiu	e	se	colocou	num	ponto	visível,	anunciando	que	eles
haviam	vindo	em	nome	do	filho	do	Deus	único	de	Israel,	a	fim	de	trazer	caridade
e	cura	para	aqueles	que	tivessem	fé.	Diante	disso,	um	daqueles	doentes,	exausto
e	desesperado	com	a	abertura	das	suas	feridas,	aproximou-se	e	deixou	com	que
ela	 viesse	 até	 ele.	 O	 homem	 estava	 visivelmente	 deformado	 e	 o	 seu	 rosto
envergava	crostas	que	pareciam	lhe	tirar	a	própria	condição	humana.	Pois	Mirian
então,	num	gesto	de	bondade	e	entrega,	abriu	os	braços	e	abraçou	aquele	pobre,
causando	comoção	nos	que	lá	estavam	e,	com	certa	dificuldade,	ele	disse	a	ela:
—	–	Eu	sei	que	não	sou	digno,	mas	se	foi	Deus	que	vos	mandou,	eu	aceito
o	que	viestes	nos	trazer.
Joana,	Susana	e	Metatron	desceram	um	pouco	mais	e	foram	de	encontro	a
Mirian	 e	 ao	 velho,	 cujo	 odor	 do	 corpo	 se	 assemelhava	 ao	 da	 podridão.	 Após
tocar-lhe	o	 rosto	coberto	por	 trapos	 imundos,	Magdalena	o	 levou	com	cuidado
para	o	braço	de	um	pequeno	riacho	que	cortava	o	vale	e,	com	recato,	ela	e	Joana
retiraram	vagarosamente	as	vestes	fétidas	que	o	cobriam.Feito	isso	passaram	a
banhá-lo	com	água	misturada	a	salsaparrilha,	 tida	como	ideal	para	as	moléstias
da	 pele,	 e	 após	 o	 untaram	 com	 óleo	 de	 damasco,	 indicado	 para	 hidratação.
Percebendo	 o	 alívio	 visitar	 aquele	 homem	 cujas	 lágrimas	 de	 gratidão	 lhe
brotavam	nos	olhos,	os	demais	então	começaram	a	se	achegar	aos	poucos,	a	fim
de	aceitar	a	filantropia	daquelas	duas	mulheres.
Fazia	 muito	 calor	 naqueles	 dias	 e,	 ao	 ver	 o	 estado	 deplorável	 dos
arremedos	 de	 roupa	 que	 os	 doentes	 usavam,	 Susana	 se	 adiantou	 por	 si	 só	 e,
desprovida	de	qualquer	temor,	as	pegou	uma	a	uma	e	as	imergiu	na	água,	a	fim
de	tentar	deixá-las	mais	dignas	de	serem	vestidas	por	um	ser	humano.	Sabedora
do	 que	 lá	 iam	 encontrar,	 Joana	 havia	 levado	 consigo	 uma	mistura	 de	 óleo	 de
oliva	com	barrela[115]	e,	tencionando	usá-la	como	sabão,	entregou	um	fragmento
do	composto	a	Susana,	que,	sem	demora,	encarregou-se	de	ajudá-las.
Se	 voltássemos	 alguns	meses	 no	 tempo,	 jamais	 imaginaríamos	 que	 uma
mulher	 pervertida	 como	 Salomé	 pudesse	 sequer	 sonhar	 em	 estar	 num	 lugar
terrível	como	aquele.	Mas	agora,	mostrando	que	estava	espiritualmente	disposta
a	 se	 aproximar	 de	 Deus,	 ela	 amarrou	 as	 mangas	 da	 sua	 veste	 simplória	 e,	 a
exemplo	de	Magdalena	e	Joana,	passou	a	fazer	o	mesmo	com	os	demais	doentes,
os	 quais,	 deixando	 o	 medo	 de	 lado,	 começaram	 a	 enfileirar-se	 para	 auferir
aqueles	preciosos	cuidados.
Pois	ao	mandar	as	três	para	a	Grota	dos	Leprosos,	Jesus	sabia	que	aquela
missão	 só	 poderia	 ser	 executada	 por	 pessoas	 cuja	 essência	 fosse	 naturalmente
sensível,	 como	 o	 eram	—	 e	 são	—	 as	mulheres.	 A	 rudeza	 típica	 dos	 homens
talvez	fosse	uma	barreira	para	aqueles	doentes,	os	quais,	na	figura	feminina	e	na
aparente	 fragilidade	das	 recém-chegadas,	 talvez	não	vissem	perigo	contra	 si	 e,
assim,	deporiam	os	seus	temores.	E	nesse	particular,	não	faltava	razão	ao	mestre
Jesus,	 pois	 as	mulheres,	 no	mundo,	 só	 não	 haveriam	de	 conquistar	 aquilo	 que
verdadeiramente	não	quisessem.
E	ocorreu	que	uma	das	leprosas	que	lá	estava,	aparentando	por	baixo	das
suas	severas	feridas	estar	na	casa	dos	quarenta	anos	de	idade,	impressionada	com
a	beleza	física	de	Susana	—	e	a	qual,	no	passado,	também	havia	tido	—,	fez	uma
indagação	com	a	voz	ainda	rouca	pela	pouca	prática	da	fala.
—	És	 tão	 linda,	menina.	 Por	 acaso	 não	 temes	 ficar	 assim	 como	 eu?	—
perguntou	ao	aludir	às	escaras	que	lhe	destroçavam	o	corpo.
—	Não	—	respondeu	ela	sorrindo.	—	Já	faz	algum	tempo	que	eu	não	sei	o
que	é	ter	medo,	pois	aquele	que	tem	Deus	ao	teu	lado	não	conhece	o	medo.
—	Belas	palavras.
—	 Sim,	 elas	 me	 foram	 ditas	 por	 alguém	 especial	 —	 respondeu	 ainda
limpando	aquela	mulher.	—	Alguém	que	me	ensinou	a	amar	por	amar.
—	 De	 onde	 tu	 vens?	 —	 interessou-se	 a	 leprosa,	 a	 quem	 parecia	 não
conversar	com	alguém	há	anos.
—	Eu	não	sei	de	onde	venho,	mas	hoje	certamente	sei	para	onde	vou	—
concluiu	 sempre	 simpática	 e	 sem	 perder	 a	 mão	 ao	 besuntá-la	 com	 o	 óleo	 de
damasco.
Bastou	 uma	 semana	 ali	 para	 que	 a	 vida	 de	 parte	 dos	 habitantes	 do	 vale
mudasse	drasticamente.	É	claro	que	nem	todos	as	aceitaram	e,	ainda	escondidos
em	seus	espaços,	sequer	foram	recepcioná-las.	Entretanto,	nem	isso	as	impediu
de	 agir,	 pois	 percorrendo	 aquelas	 grutas	 escuras,	 elas	 iam	 de	 doente	 a	 doente
com	 o	 objetivo	 de	 levar	 uma	 palavra	 de	 esperança	 até	mesmo	 para	 os	 que	 se
recusavam	a	ouvi-las.	Não	foi	nada	fácil,	mas,	de	um	modo	geral,	elas	atingiram
o	 objetivo	 inicial,	 que	 era	 o	 de	 evangelizar	 o	 maior	 número	 de	 enfermos
possível.
Os	dias	foram	passando	e,	profetizando	apenas	o	amor,	elas	conseguiram
mudar	o	modo	de	vida	daquelas	pessoas,	outrora	atingidas	pela	falta	de	fé	e	pela
individualidade.	O	nome	de	Jesus	passou	a	ser	corrente	e,	sabendo	que	alguém
se	importava	com	eles,	a	luta	pela	vida	voltou	a	fazer	sentido.	A	partir	de	então,
aqueles	 doentes	 passaram	 a	 acreditar	 que	 a	 verdadeira	 existência	 estava	 bem
longe	dali,	num	plano	cósmico	onde	o	sofrimento	não	existia,	e,	para	chegar	lá,
bastava-lhes	 a	 verdadeira	 crença	 no	 filho	 de	Deus,	 que	 lá	 estava	 representado
pelas	ações	e	palavras	daquelas	mulheres.	Aliás,	por	abdicarem	da	vida	mundana
e	 se	 casarem	 com	 a	 doutrina	 de	 Jesus,	 poder-se-ia	 dizer,	 feitas	 as	 devidas
ressalvas	de	tempo	e	espaço	que,	Magdalena,	Joana	e	a	jovem	Susana	foram	as
primeiras	 freiras	da	história	 cristã,	 cujo	 trinômio	“doação,	 entrega	e	caridade”,
ali	as	coroou	como	tais.
	
*	*	*
	
Três	semanas	após	terem	partido,	a	grata	parte	dos	apóstolos,	seguidos	por
centenas	de	fiéis,	começou	a	regressar	ao	Tabor	a	fim	de	reencontrar	o	mestre	e
seguir	viagem.	Efusivos,	 eles	haviam	 tido	 êxito	na	missão	que	 lhes	havia	 sido
dada,	 afinal,	 nos	 lugares	 em	que	 estiveram,	 a	 palavra	de	Deus	 foi	 divulgada	 e
potencializada.
O	rabi	os	recebeu	com	o	costumeiro	carinho	e,	satisfeito	com	o	proceder
dos	emissários,	sentiu	que	as	pedras	da	sua	igreja	estavam	sendo	sedimentadas.
—	Mestre,	 a	 empreitada	 foi	 positiva	—	 disse	 Pedro,	 entusiasmado.	—
Conquanto	alguns	incrédulos	de	costume,	a	maioria	nos	ouviu	e	ofertou	apreço
pela	palavra.
—	 Sim!	—	 completou	 Judas	 Iscariote	 com	 um	 humor	 que	 não	 lhe	 era
típico.	—	Houve	até	quem	me	chamasse	de	rabi.
Mas	verificando	a	ausência	de	Magdalena	e	Joana	—	“afinal,	para	onde	as
duas	haviam	ido?”	—,	o	pescador	assuntou	sem	omitir	a	curiosidade.
—	E	as	nossas	irmãs,	senhor?	Onde	estão?
—	Nós	iremos	encontrá-las	em	breve,	pois	elas	estão	a	meio	caminho	do
nosso	primeiro	destino.
Pedro	 anuiu	 curioso,	 visto	 que,	 embora	 com	 a	 mesma	 missão,	 a	 de
evangelizar,	Magdalena	e	 Joana	 foram	as	únicas	que	partiram	para	um	destino
ainda	desconhecido	dos	demais.
Todos	 então	 se	 uniram	 e	 tomaram	 a	 estrada	 para	 o	 sul,	 a	 fim	 de
reencontrá-las	e	rumarem	para	Betânia	e	Jerusalém.	No	caminho,	Jesus	percebeu
que	Beelzebu,	a	quem	os	peregrinos	chamavam	de	Betseba,	havia	se	afeiçoado
de	Yigal,	o	filho	curado	de	Joana.	Caliel	—	conforme	já	visto,	lá	conhecido	por
Chaya,	 nome	 hebraico	 feminino	 em	 razão	 da	 aparência	 feminizada	 dele	 —
seguia	no	colo	da	virgem	Maria	e,	encantado	com	a	figura	maternal	dela,	fazia
birra	 quando	 alguém	 fazia	 menção	 de	 pegá-lo.	 A	 imaculada	 cresceu	 entre
crianças,	 cuidando	dos	primos	 e	primas,	 e	 por	 elas	 tinha	um	afeto	 ímpar.	Pois
observando	Beelzebu	caminhar	de	mãos	dadas	com	o	agora	purificado	menino,
Jesus	se	achegou.
—	 E	 então,	 Betseba,	 conta-me:	 como	 tem	 sido	 caminhar	 conosco?	 —
indagou	dando	mostras	de	que	no	fundo	sabia	quem	era	ele.
O	 querubim	 o	 fitou	 desconfiado	 e,	 rendendo-se	 ao	 avatar	 de	 Miguel,
acabou	se	entregando.
—	Eu	me	pareço	tão	óbvio	assim,	rabi?
Jesus	achou	graça	na	réplica	e	continuou:
—	Eu	sei	que	estão	aqui	para	me	ajudar.	Tu,	a	pequenina	e	aquele	que	se
disse	 chamar	 Matatias.	 —	 Nome	 pelo	 qual	 o	 Arcanjo	 Metatron	 havia	 se
apresentado	ao	grupo.
Beelzebu,	 ou	 melhor,	 Betseba,	 abaixou	 a	 cabeça	 e	 sorriu,	 arrematando
logo	na	sequência.
—	Eu	acho	que	agora	estou	mais	à	vontade	para	responder	à	tua	pergunta.
Pois	saibas	que	eu	já	caminhei	por	lugares	inimagináveis	—	pontuou,	referindo-
se	ao	seu	degredo	no	Inferno.	—	E	após	muito	viver,	hoje	entendo	por	que	Deus
te	mandou	para	cá.
—	Então	crês	que	eu	sou	da	parte	de	Deus?
—	Tu	és,	bem	sei,	um	dos	filhos	Dele.	E	no	final,	nós	somos	todos	irmãos;
eu,	tu,	Chaya	e	Matatias.
—	Eu	compreendo	o	teu	ponto	de	vista.	Mas	pareces	ter	gostado	muito	do
menino,	pois	não?	—	perguntou	o	rabi,	referindo-se	a	Yigal.
—	 Foi-me	 dito	 que	 ele	 sofreu	 demais.	 E	 vê-lo	 agora	 redimido	 me	 fez
lembrar	de	mim	mesmo,	ou	melhor,	de	mim	“mesma”...	—	corrigiu-se,	em	razão
do	 sexo	 que	 personificava.	 —	 E	 nisso,	 incluo	 até	 a	 pequena	 Chaya,	 que
encontrou	em	tua	mãe	uma	figura	que	ela	até	então	desconhecia.
—	Mas	 estou	bem	certo	 que	 “ela”	 teve	 um	Pai	 que	 lhe

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