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CARLeS AUGUS + © VAILA + + I
fflANUAL DE
DÊrn®N©L©GIA
Diante das fronteiras da loucura, existe uma zona
intermediária, um claro-escuro onde a realidade parece
preservada, mas a natureza das relações estabelecidas
por lúcifer, a vivência fantasmática quer arrastar a
lucidez. Por isso, lutar contra o brilhante da alva
significa romper frieza, indiferença e isolamentos,
agressividade, cólera e errância.
O senhor das luzes, o Sol do meio-dia, apaga a
radiação que não deve brilhar: "ego Dominus vocavi te
in iustitia et adprehendimanum tuam et servaviet dedite
in foedus populi in lucem gentium ut aperires oculos
caecorum et educeres de conclusione vinctum de domo
carceris sedentes in tenebrís ego Dominus hoc est
nomen meum gloriam meam alteri non dabo et laudem
meam sculptilibus”
WWW. F® N +E E D1 + ® RI AL.Cffi01 .BR
ISBN 978-85-63607-45-4
Satanás,
DEmêNies e
legiões
um ÍT1ANUAL DE DEm®N©L©GIA
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I
Satanás,
DEmêNies e
LEGIÕES
um IT1ANUAL Df rn©N©k©GIA
2011
© Fonte Editorial
Capa: epreparação: Edu\RDO Dl- Pl« )l-NÇA
Formato 14x21 cm - 494 páginas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Vailatti, Carlos Augusto
Manual de Demonologia. Carlos Augusto Vailatti. São
Paulo. 2011. Fonte Editorial.
ISBN 978-85-63607-45-4
1 . Demônios2. Satanás 3. Exorcismo
I Título
CDD236
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio
eletrônico e mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos,
sem permissão expressa da editora.
(Lei n" 9.610 de 19.2.1998)
Todos os direitos reservados à
FONTE EDITORIAL I.TDA.
Rua Barão de Itapctininga, 140 loja 4
0 11)42-000 São Paulo - SP
Tel.: 11 3151-4252
www.fonteeditorial.com.br
e-mail: contato@fontecditorial.com.br
http://www.fonteeditorial.com.br
mailto:contato@fontecditorial.com.br
DEDICA + ® RIA
>4 Deus, Aquele que com a batuta do Seu infinito poder, rege a
sinfonia do Universo. À minha mãe, Antonia. Ao meu pai, Augusto
(in memoriam). / minha sogra, Rachel (in memoriam), guerreira
incansável das fileiras do exército de Cristo. À minha amada
esposa, Noeli. E a todos aqueles que se interessam pelos estudos
bíblicos e teológicos.
sumARi®
INTRODUÇÃO............................................................................................ 25
i. Determinação do Campo de Estudo.........................................................25
ii. Especificação dos Objetivos....................................................................26
iii. Pertinência e Oportunidade da Obra...................................................... 27
iv. Metodologia Empregada.........................................................................-30
CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE SATANÁS,
DEMÔNIOS E EXORCISMOS.....................................................................35
1.1. Considerações Sobre Satanás......................................................... 37
1.1.1. Definição do Termo.............................................................................37
1.1.2. Satanás no Antigo Testamento.......................................................... 38
1.1.3. Satanás no Novo Testamento.............................................................44
1.1.4. Satanás e o Seu Nome Grego: Diabo...............................................45
1.1.5. Satanás e os Seus Outros Nomes......................................................47
1.1.6. Satanás e os Demônios.....................................................................51
1.2. Considerações Sobre os Demônios..............................................53
1.2.1. Fatores que Complicam a Compreensão Demonológica........... 53
1.2.2. Os Demônios no Antigo Testamento.................................................56
1.2.3. Identificando os Demônios.................................................................58
1.2.4. Os Demônios no Período do Grego Clássico.................................. 73
1.2.5. Os Demônios na LXX......................................................................... 79
1.2.6. Os Demônios no I Século d.C............................................................ 83
1.3. Considerações Sobre Exorcismos............................................... 96
1.3.1. Definindo o Termo.............................................................................. 96
1.3.2. Exorcismos noAT e nos Apócrifos.....................................................97
1.3.3. Exorcismos nos Manuscritos do Mar Morto.................................... 105
1.3.4. Exorcismos nos Pseudepígrafos.......................................................114
1.3.5. Exorcismos e Exorcistas na Tradição do Judaísmo.....................116
1.3.6. Exorcismos e Exorcistas no Contexto Pagão..................................129
1.3.7. Os Papiros Mágicos Gregos........................................................... 141
1.3.8. Jesus, o Exorcista-Mor.................................................................... 147
1.4. Conclusão.............................................................................-........157
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CAPÍTULO II-ANÁLISE EXEGÉTICA DE MC 5.1-20............................. 161
2.1. Análise Sincrônica.........................................................................163
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2.2. Análise Diacrônica............................................................................268
2.3. Conclusão..........................................................................................310
8
CAPÍTULO III-ANÁLISE HERMENÊUTICA DE MC 5.1-20................. 313
3.1. A Interpretação dos Pais da Igreja e de Outros Autores da Era
Patrística...................................................................................................315
3.2. A Interpretação Antropológica de René Girard........................331
3.3. A Interpretação Parabólico-Alegórica de André Chouraqui...344
3.4. A Interpretação Contextualizada de Fiódor Dostoiévski....... 353
3.5. A Interpretação Sociopolítica de Myers e Carter...................... 356
3.6. A Interpretação Psicológica de Freud e Oesterreich.............. 368
3.7. A Interpretação da “Territorialidade Espiritual” de C. Peter
Wagner...................................................................................... 374
3.8. A Interpretação do Simbolismo Mágico-Religioso de Mircea
Eliade........................................................................................................ 383
3.9. Conclusão......................................................................................... 391
CAPÍTULO IV - ANÁLISE HISTÓRICA DE MC 5.1-20.......................... 393
4.1. Uma História de Gerasa....................................................................395
4.2. Uma História da Decápolis...............................................................401
4.3. Uma História das Legiões Romanas............................................ 416
4.4. Conclusão..........................................................................................453
CONCLUSÃO FINAL................................................................................457
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................461
ABREVIATURAS
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19
Uma mini-história do diabo
Eduardo de Proença
Nenhuma pessoa teve sua existência mais questionada na
modernidade que o diabo, nem Deus. No século XIX era motivo de
piada, jornais estampavam charges sobre o diabo, ridicularizando-o e
o colocando como a grande crendice dos ignorantes. Mais do que
enfraquecer os poderes de Deus e sua influência no homem e no
mundo, a modernidade lançou mão definitivamente na crença no diabo.
Mas vem o século XX, a maldade do homem em duas guerras
sangrentas e ainda o efeito do genocídio praticado por um líder
chamado Adolf Hitler, fez as pessoas pensarem se seria possível
tanta maldade junta vir única e exclusivamente da mente humana: é
o renascimento do diabo.
Filmes como Psicose de Alfred Hitchcock e o Exorcista
de William Friedkin, além de outros de menos qualidade, do mesmo
gênero, colocam o diabo em cena, ele é o grande protagonista da
maldade no mundo.
Idéias milenaristas e o pleno desenvolvimento do movimento
fundamentalista iniciado no século XX faz com que a idéia do
renascimento do diabo e suas derivações como o anticristo
floresçam em um ritmo compatível com a fértil imaginação humana.
A história do diabo, da personificação do mal, não nasceu
pronta, mas foi construída marginalmente a própria idéia
desenvolvida por Deus nas paginas da Sagrada Escritura. O Deus
cristão, o Pai apresentado por Jesus Cristo não é o mesmo revelado
nas páginas de Juizes ou Josué, o Deus iracundo, déspota, mas
um Deus de amor, acalentador que reconcilia-se com seus filhos
incondicionalmente, apenas motivados pelo amor. Tantos e tantos
anos de desenvolvimento da narrativa bíblica para essa transição
do deus irado para o Deus de amor, mas que não faz sucesso hoje
no meio evangélico, que prefere ao primeiro em detrimento do
segundo. Assim foi a história do diabo, que começa a aparecer no
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texto bíblico na história de Jó, o acusador, Satanás, presente no
tribunal de Deus para propor uma aposta sobre este servo do Senhor,
aposta esta aceita.
0 desenvolvimento do personagem diabo ou Satanás na
Bíblia hebraica está proporcionalmente ligado ao desenvolvimento
da transcendência de Deus, ou seja, quanto menos Deus se torna
imanente e se faz mais transcendente, mais o a personalidade do
diabo toma corpo, quanto mais ele se afasta da terra em direção ao
céu se torna apenas fonte do bem, mais a relação do diabo com os
homens se torna direta. Deus já não é mais a fonte do mal, de sorte
que versículos como “Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e
crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas.” (Isaias 45:7), já
não faz mais sentido. Todo o mal está nas mãos do diabo, o
adversário de Deus e dos homens.
Nós como cristãos herdamos uma tradição de um judaísmo
tardio, o pacote diabo-mal já vem pronto para nosso corpo
dogmático. Exegeses regadas de pressupostos nos fazem enxergar
inquestionavelmenteuma referencia a queda de Satanás ou Lúcifer
em Ezequiel 28 no oráculo contra o Rei de Tiro, e nem perguntamos:
e se for o Rei de Tiro mesmo e não Satanás? E nem nos damos
conta que o nome Lúcifer nem aparecece na Bíblia, a não ser na
Vulgata de São Jeronimo quando traduz a expressão “estrela d'alva”
e nem é um nome próprio, mas ganha este prestigio quando na
história do cristianismo batizamos o diabo com este nome.
Neste livro o autor com grande profundidade pesquisa sobre
a figura de Satanás na tradição bíblica, vetero e neotestamentária.
Valendo-se do recurso de conhecer as línguas bíblicas, Carlos Vailatti
passeia com maestia e disciplina pelas escrituras sagradas. Em
um primeiro momento faz uma verdadeira “varredura” pela
terminologia bíblica no que se refere ao mal, desde seres míticos e
maléficos, até nas tadições extra-bíblicas Vailatti verdadeiramente
se esmera.
21
Independentemente da posição teológica do leitor, certamente
se renderá ao folego de pesquisador demonstrado pelo autor, e
pela sua honestidade acadêmica e respeito as tradições cristãs
ainda presentes na maioria das igrejas.
Em uma segunda parte do livro faz uma investigação sobre a
narrativa evangélica de Marcos sobre o jovem possesso, o
Gadareno, que nele habitava legiões de demônios. Com cuidado,
minúcia e com grande organização e didática convida a você a
compreender esse emblemático texto de Marcos.
Se o diabo existe ou não creio não ser o objetivo de Vailatti
demonstrar. Porque como diria Santa Teresa de Ávila “se Satanás
pudesse amar, deixaria de ser mau”.
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0 brilhante arrebata os sentidos
Jorge Pinheiro
Em hebraico heilel ben-shachar, e em grego, na Septuaginta,
heosphoros. Lúcifer é a estrela da alva, que brilha de manhã, que a
gente nâo entende porque está all se o dia já vem nascendo. Não
J brilha mais que o sol e, por isso, vai desaparecer quando a luz de
+ verdade, forte, alumiar. Mas se engana quem pensa que essa luz
< meio vesga, que entra olhos a dentro, não veio para alucinar. É o
— brilhante que está ao lado para confundir. É o diá, diacho, diale,
dialho, dianho, adversário que ilumina a alma às avessas.
“Et dices ei haec dicit Dominus Deus tu signaculum similitudinis
® plenus sapientia etperfectus decore in deliciis paradisi Dei fuisti omnis
+ lapis pretiosus operimentum tuum sardius topazius et iaspis chrysolitus
et onyx et berillus sapphyrus et carbunculus et zmaragdus aurum opus
ü decoris tui et foramina tua in die qua conditus es praeparata sunt". (1)
3 É o caluniador das vidas, o que revira o que devia estar de
pé, que faz errar o alvo, que puxa o breque, catatonia, hipotonia,
w» jogo interminável com as mãos diante dos olhos, treme-treme que
® lança os corpos ao chão.
oí É o lúcifer das escrituras antigas, aquele que caiu e que
4 mesmo de dia parecia tão cintilante. É o que leva a luz torta, que
u brilha piscando, a convidar para programas adormecidos na alma.
Mas se ele leva a luz, porque se faz presente no lusco-fusco do
antes do alvorecer?
“Tu cherub extentus etprotegens et posui te in monte sancto
Dei in medio lapidum ignitorum ambulasti perfectus in viis tuis a die
conditionis tuae donee inventa est iniquitas in te in multitudine
negotiationis tuae repleta sunt interiora tua iniquitate et peccasti et
eieci te de monte Dei etperdidi te o cherub protegens de medio lapidum
ignitorum". (2)
E porque hipnotiza com luz mortiça, a língua tropeça, cheia
de ruídos bizarros, de ranger os dentes, de ruído de matraca, e
23
deságua em grito agudo. 0 eu é substituído pelo tu, pelo ele, e o
sim emudece. A língua não comunica, dilacera.
E assim as vidas são cortadas da terra. E a imprecação cai
sobre as cabeças. Como ele caiu, faz os humanos descerem, como
foi cortado por terra, abate as nações! E como pensou subirei ao
céu, acima das estrelas exaltarei meu trono e no monte da
congregação me assentarei, aos lados do norte, assim constrói
torres de Babel nos corações. E como disse marinharei sobre as
alturas das nuvens e serei semelhante ao Altíssimo, convence os
humanos a pugnar o mesmo conflito. Aí está o risco, os humanos
são levados ao s/ieot, ao mais profundo abismo.
E por cortar da terra, heilel ben-shachannvade os corpos com
rituais para caminhar, deitar, levantar. É o delírio, quem sabe o que
ó mentira, o que é verdade? O que é pesadelo, o que é realidade?
A luz de lúcifer alucina. O sono desperta, a boca vomita, as fezes
escapam, o equilíbrio balança e o mundo desaba. O que arrebata
os sentidos está ao lado, chegou piscando. O brilhante, por saber
que será será precipitado no sheol, a sepultura comum, quer
companhia. Ele é o deus das coisas que fogem, o deus deste
mundo. E está ao lado.
"elevatum est cor tuum in decore tuo perdidisti sapientiam tuam
in decore tuo in terram proieci te ante faciem regum dedi te ut cernerent
te in multitudine iniquitatum tuarum et iniquitate negotiationis tuae
polluisti sanctificationem tuam producam ergo ignem de medio tui qui
comedat te etdabo te in cinerem super terram in conspectu omnium
videntium te omnes qui viderint te in gentibus obstupescent super te
nihili factus es et non eris in perpetuum". (3)
Quando a extrema angústia aniquila e retalha, a incapacidade
de tolerar fumega, a divagem e a onipotência fazem parte da ordem
do dia, tome ciência, ele pousou a mão sobre o seu ombro e está
a cochichar no seu ouvido idéias de delírio. É o princípio do fim,
você vai fazer o caminho do sheol.
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+
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I
Diante das fronteiras da loucura, existe uma zona intermediária,
um claro-escuro onde a realidade parece preservada, mas a
natureza das relações estabelecidas por lúcifer, a vivência
fantasmática quer arrastar a lucidez. Por isso, lutar contra o brilhante
da alva significa romper frieza, indiferença e isolamentos,
agressividade, cólera e errância.
O senhor das luzes, o Sol do meio-dia, apaga a radiação
que não deve brilhar: “ego Dominus vocavi te in iustitia etadprehendi
manum tuam et servavi et dedi te in foedus populi in lucem gentium ut
aperires oculos caecorum eteduceres de conclusione vinctum de domo
careens sedentes in tenebris ego Dominus hoc est nomen meum
gloriam meam alteri non dabo et laudem meam sculptilibus” (4).
Notas
1, 2, 3 — Os textos bíblicos citados de Ezequiel 28.12-17 estão em tradução da
Vulgata de Jerônimo.
4-ldem,lsalas 42.6-8.
SA+ANÁS. DÊITlêNieS E LEGIé
INTRODUÇÃO
i. Determinação do Campo de Estudo
O presente livro buscará se concentrar no Evangelho de
Marcos, Evangelho este que, ao longo da história, foi
desprezado pelos estudiosos da Bíblia em geral. No uso
eclesiástico, o Evangelho de Mateus acabou levando vantagem,
pois além de fornecer mais informações para as leituras
litúrgicas, era tradicionalmente usado como o texto base para o
entendimento dos Evangelhos. Depois de Mateus, Lucas era o
Evangelho preferido, porque parecia ser menos judaico e mais
adaptado a uma mentalidade que havia sido influenciada pela
cultura grega, como o fora aquela. Somente por volta de 1900 é
que os estudiosos começaram a devotar maior atenção a esse
Evangelho.1 2
DELORME, J. Leitura do Evangelho Segundo Marcos. [Tradução de
Benôni Lemos], São Paulo, Paulus, 1972, p.7.
2 MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico. Vol.II,
Livro III. [Tradução de Laura Rumchinsky], Rio de Janeiro, Imago, 1998,
p.170.
3
Idem, Ibidem, p. 172.
Todavia, essa concentração no Evangelho de Marcos
ainda é abrangente demais. Sendo assim, a fim de delimitarmos
ainda mais o nosso campo de estudo, nos deteremos numa faceta
específica do ministério do chamado “Jesus Histórico”, isto é,
falaremos sobre o “Jesus Exorcista”, aquele que expulsa os
demônios. Nossa escolha se deve ao seguinte fato: “os
evangelhos sinóticos apresentam sete episódios distintos de
Jesus realizando um exorcismo. Ofato de haver sete ‘amostras’
individuais de um tipo específico de milagre, ou seja, o
exorcismo, favorece o ponto de vista de que este constitui
maioria no ministério de Jesus”. Portanto, creio que tal tema
mereça uma atenção especial, uma vez que “os exorcismos se
destacam entre os milagres de Jesus em geral”.3
25
CAR.LSS AUGUS+® VAILA + + I
Entretanto, por entender que o tema “exorcismo” ainda
seja muito amplo, delimitarei ainda mais o meu campo de
estudo, concentrando essa pesquisa na análise de um relato de
exorcismo específico, o qual já foi chamado de “o mais violento
e maior de todos os exorcismos dos evangelhos”.4 Estou me
referindo ao exorcismo do endemoninhado geraseno, encontrado
em Mc 5.1-20. Nossos esforços se concentrarão principalmente
na análise de tal texto bíblico.
KELBER, Werner H. Mark's Story of Jesus. Philadelphia, Fortress Press,
1988, p.31.
5 Esse livro reproduz, em essência, a minha dissertação de mestrado
apresentada ao Seminário Teológico Servo de Cristo, em São Paulo,
intitulada Legião é o Meu Nome: Uma Análise Exegética, Hermenêutica e
Histórica de Mc 5.1-20, sob a orientação do Prof. Dr. Estevan Frederico
Kirschner, em 2009.
ii. Especificação dos Objetivos
a) Objetivo Fundamental
Há muito tempo tenho acalentado o desejo de realizar um
estudo minucioso sobre algum texto bíblico que tratasse da
temática demonológica. Dediquei, então, dois anos a tal
empreitada, a fim de que pudesse alcançar esse objetivo. Como
resultado dessa pesquisa, surgiu então o tema: Satanás,
Demônios e Legiões: um guia do mal5 Embora outros
estudiosos já tenham se debruçado sobre esse relato de
exorcismo antes de nós, contudo, imaginei que também pudesse
dar a minha modesta contribuição ao estudo dessa perícope.
Então, o resultado dessas pesquisas é o que está sendo
apresentado nesse trabalho.
b) Objetivo Específico
26
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé
Quando comecei a escrever sobre o presente assunto, o
meu objetivo específico foi buscar analisar a perícope sobre o
endemoninhado geraseno encontrada em Mc 5.1-20 através de
uma abordagem tríplice: exegética, hermenêutica e histórica.
Aliás, tal proposta ficará evidenciada ao longo da leitura deste
livro. Vários outros tipos de abordagem poderíam ser
empregados no estudo desse texto, mas, a meu ver, a abordagem
tripartida que oferecemos aqui será suficiente para nos ajudar a
compreendê-lo de forma um tanto quanto satisfatória. Utilizar os
recursos da exegese e da hermenêutica para a compreensão de
qualquer texto bíblico é uma ação simplesmente indispensável,
motivo pelo qual tais recursos são empregados aqui. Além disso,
pelo fato do nosso relato possuir alguns elementos históricos
muito importantes no seu corpo narrativo, julguei necessário
abordá-lo também por meio do viés histórico. A justaposição
dessas três análises, ao fim do nosso estudo, se mostrará
extremamente eficaz e positiva, como teremos a oportunidade de
verificar.
iii. Pertinência e Oportunidade da Obra
Nenhum outro personagem, ao longo dos tempos, tem
sido objeto de tanta discussão, investigação e controvérsia como
o diabo e, conseqüentemente, os demônios. E, por mais que
tentemos ignorar, o fato é que todas as pessoas, quer estejam
conscientes disso ou não, inevitavelmente são afetadas (de
forma positiva ou negativa) pela postura que adotam em relação
a estes seres, visto ser impossível assumir uma posição neutra e
de indiferença quanto a tal assunto. Partindo dessa premissa,
creio ser de fundamental importância questionar que tipo de
postura nós estamos adotando com respeito a toda essa questão
de mo no lógica e, conseqüentemente, quais são as implicações
dessa postura adotada.
Em primeiro lugar, existem aqueles que simplesmente não
crêem na existência do diabo e dos demônios. Tais pessoas
27
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I
acreditam que estes seres sejam folclóricos, mitológicos, frutos
da crendice popular ou, até mesmo, invenções dos cristãos.
Aliás, a Revista Veja há alguns anos atrás mencionou os
seguintes dados estatísticos, os quais não devem ter sofrido
alterações significativas nos dias de hoje: “99% dos brasileiros
crêem em Deus e somente 51 % acreditam que o diabo existe”.6
Acredito que estes 51% que crêem na existência do diabo,
também creiam na existência de demônios, pois ambos estão
intimamente relacionados. Os representantes deste último grupo,
por agirem assim, tornam-se reféns extremamente vulneráveis
aos ataques e artimanhas de tais seres malignos, justamente por
assumirem uma postura que “baixa a guarda” diante das suas
investidas.
6 Revista Veja. Editora Abril - Edição 1.731 - Ano 34-N°50- 19/12/2001,
p. 125. Esse livro não tem o objetivo de abordar as várias nuanças
demonológicas encontradas em nosso rico contexto brasileiro. Para tal
enfoque, sugiro que sejam consultadas, por exemplo, as seguintes obras:
SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e
religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo, Companhia das Letras,
1986; RIBEIRO, Márcia Moisés. Exorcistas e Demônios: demonologia e
exorcismos no mundo luso-brasileiro, século XVIII. Rio de Janeiro, Editora
Campus, 2003; OLIVA, Alfredo dos Santos. A História do Diabo no Brasil.
São Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2007; MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos &
Guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro, Editora Gráfica Universal Ltda.,
1998; OLIVA, Margarida. O Diabo no “Reino de Deus por que proliferam
as seitas? São Paulo, Musa Editora, 1997; MOTT, Luiz. Escravidão,
Homossexualidade e Demonologia. São Paulo, ícone Editora, 1988; ITIOKA,
Neuza. Os Deuses da Umbanda. São Paulo, ABU Editora, 1988.
Em segundo lugar, e em sentido totalmente oposto ao
primeiro, há aqueles que atribuem ao diabo e aos demônios
toda a culpa por tudo o que acontece de ruim no mundo. São
pessoas que estão acostumadas a “demonizar” a causa de todos
os infortúnios, tragédias e imoralidades que acontecem. Em vez
de assumirem a sua parcela de culpa nos casos em que assim for
exigido (pois são seres responsáveis por seus atos), acabam
28
SA + ANÁS, DEmêNIffiS E LEGIî
lançando toda a culpa nas “costas” do diabo e de seu séquito, os
demônios. Tal atitude extremada visa, muitas vezes, auto-
inocentar o indivíduo, enquanto põe indevidamente o adversário
e os seus cúmplices no banco dos réus.
Em terceiro lugar, encontram-se aqueles que crêem que o
diabo e os demônios existem, mas que subestimam o seu poder.
Os partidários de tal pensamento vêem o diabo e os demônios
como seres já fracassados, derrotados e vencidos. Dessa forma,
não os encaram como ameaças reais, poderosas e atuais que os
estão espreitando a todo o tempo, objetivando destruí-los. Nem
é preciso comentar que tal postura é extremamente perigosa,
porque não leva em conta o tamanho perigo que as forças das
trevas representam.
Em quarto lugar, nos deparamos com aqueles que crêem
que o diabo e os demônios existem, mas que superestimam o seu
poder. Os adeptos dessa ideologia, não diferentemente dos
anteriores, também estão incorrendo num gravíssimo risco, o de
supervalorizar o poderio das forças demoníacas. Estas pessoas,
principalmente movidas pelo medo, acabam desenvolvendo uma
espécie de “diabofobia”, ou “demoniofobia”, isto é, um
verdadeiro pânico, simplesmente ao ouvirem o nome desses
“ditos cujos”, pois acreditam equivocadamente que estes seres
sejam imbatíveis e quase todo-poderosos.
E, por fim, há aqueles que acreditam que o diabo e os
demônios existem e que se armam adequadamente de todas as
formas possíveis para poderem combatê-los e vencê-los. Estes
últimos, de forma completamente oposta aos já mencionados
antes, são aqueles cuja postura adotada parece ser a mais sensata
e equilibrada do ponto de vista da fé cristã. Este quinto grupo
sabiamente reconhece que existe um protagonista espiritual do
mal, o qual, juntamente com outros espíritos malignos que o
seguem, os demônios, buscam prejudicar tudo aquilo que temligação com Deus, bem como, visam principalmente separar o
homem dAquele que o criou e que, portanto, detem todos os
direitos sobre a sua vida.
29
CAR.LGS AUGUS+© VAILA + +I
O fato de haver, pelo menos, cinco tipos diferentes de
posturas que podem ser assumidas quanto à crença na existência
ou não do diabo e dos demônios, já basta por si só para legitimar
a escolha da temática demonológica de nosso estudo. Além
disso, outro fator (e não menos importante) também merece aqui
a nossa atenção. Uma vez que as opiniões sobre a existência do
diabo e dos demônios em nossa Terra Brasilis estejam bem
divididas, pois somente metade das pessoas (51%) crê na
existência dessas entidades malignas, logo, penso que seja bem
pertinente e oportuno abordar o tema da expulsão de demônios
em nosso trabalho.
Por fim, é curioso notar que, mesmo vivendo em uma
época pós-moderna e pós-científica como a nossa, mesmo
assim, há muitas pessoas que ainda continuam a acreditar em:
amuletos, búzios, cartas, duendes, fadas, gnomos, patuás,
talismãs, anjos e, sobretudo, demônios. É espantoso constatar
que, mesmo depois de todo esse cientificismo por nós
experimentado, ainda assim, continuamos a crer em tais coisas!
Contudo, devo dizer que embora não creia na maioria dos
elementos acima alistados, todavia, confesso que me incluo
entre aqueles que ainda acreditam, por exemplo, na existência
de anjos e demônios.
E sei também que não estou sozinho nesta minha crença. De
qualquer forma, independentemente da postura adotada pelo
leitor com respeito a este assunto, estou certo de que tal tema
ainda tem a sua relevância para os dias de hoje. Porém, sou
tentado a pensar que esse trabalho será mais bem apreciado por
aqueles que, como eu, ainda aceitam a “ideia” de que os
demônios realmente existem.
iv. Metodologia Empregada
A fim de que possamos cumprir com os nossos objetivos,
devemos empregar uma metodologia que esteja alinhada à nossa
30
SA+ANÁS, DEffiÔNieS Ê LEGIî
proposta de trabalho. Como o presente livro está dividido em
quatro partes principais, eis, portanto, um pequeno esboço sobre
como pretendemos conduzir o nosso tema:
No Capítulo I, Considerações Preliminares Sobre
Satanás, Demônios e Exorcismos, buscaremos delinear os
contornos de Satanás e dos demônios, bem como, o
desenvolvimento dessas personagens ao longo da história bíblica
e não-bíblica. Partiremos das páginas do AT, passando também
pelo Grego Clássico e pela LXX e, por fim, iremos até alguns
dos principais escritos do I Século d.C., tanto extra-bíblicos
quanto bíblicos, sendo que, neste último caso, trataremos dos
escritos neotestamentários. Aliás, por entendermos que tanto
Satanás quanto os demônios possuem um vínculo muito estreito
entre si, optamos, portanto, por considerar ambos em nossa
pesquisa, dando, porém, maior ênfase nestes últimos. Além
disso, consideraremos também, e à parte, os exorcismos, desde a
sua menção no AT e nos Apócrifos, como também nos
Manuscritos do Mar Morto, nos Pseudepígráfos, na Tradição
Judaica, no Contexto Pagão e nos Papiros Mágicos Gregos,
culminando com o Exorcista-Mor, Jesus. Tais prolegômenos
fornecerão a base sobre a qual se assentarão os “tijolos” e a
“argamassa” de toda a nossa obra.
No Capítulo II, Análise Exegética de Mc 5.1-20, faremos a
exegese de nosso texto a partir das tradicionais abordagens
sincrônica e diacrônica, sendo esta última priorizada pelo assim
chamado método histórico-crítico. Nesse capítulo, pedindo
licença para tomar emprestado um termo da anatomia,
tentaremos “dissecar” o nosso texto, todavia, respeitando a
sacralidade de seu “corpo”. A análise minuciosa que faremos
desse “organismo” nos possibilitará entendê-lo em suas várias
nuanças. Portanto, os instrumentos “cirúrgicos” que utilizaremos
31
CAR.L®S AUGUS+® VAILA + + I
nessa divina “autópsia”7 serão, do ponto de vista sincrônico: a
Tradução, a Segmentação e a Estruturação do Texto, seguidos
das Análises Lingüística, Lexicográfica, Morfológica, Estilística
e de Conteúdo. Já do ponto de vista diacrônico, usaremos os
“bisturis” das Críticas Textual, do Gênero Literário, da Fonte e
da Redação. O uso de todas essas preciosas ferramentas nos
permitirá compreender melhor o significado do texto a ser
estudado.
7
Aqui, o termo “autópsia” não é utilizado no sentido médico e de forma
depreciativa, referindo-se ao “exame médico de um cadáver”. Ao contrário, o
termo é usado em seu sentido etimológico, sendo que twróç significa
“mesmo, ele mesmo, próprio” e õi|ílç, “visão”. Portanto, autópsia se refere
nesse contexto ao “exame de si mesmo”. Em outras palavras, nossa exegese
buscará deixar (tanto quanto possível) o próprio texto explicar a si mesmo.
Já no Capítulo III, Análise Hermenêutica de Mc 5.1-20,
oferecerei oito diferentes e interessantes interpretações sobre a
perícope em questão, adicionando também minhas observações
pessoais sobre as mesmas. Começando por alguns dos Pais da
Igreja e por Outros Autores da Era Patrística, darei
prosseguimento a essa jornada passando por autores como René
Girard, André Chouraqui, Dostoiévski, Myers e Carter, Freud e
Oesterreich, C. Peter Wagner e, por fim, Mircea Eliade.
Acredito que toda essa miscelânea hermenêutica complementará
a análise exegética feita anteriormente dando, inclusive, maior
“tempero” à nossa iguaria enquanto a estivermos degustando.
Finalmente, no Capítulo IV, Análise Histórica de Mc 5.1-
20, me dcterei principalmente no estudo de três elementos
históricos centrais do texto, os quais, conforme vejo, formam o
“eixo histórico” em torno do qual todo o nosso relato se
desenvolve. Esses três elementos históricos principais são: a
Cidade de Gerasa, a Região da Decápolis e a Legião Romana.
No que concerne a este último elemento em particular, creio que
o leitor se verá surpreendido pela linha de raciocínio que
32
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî
adotamos em nosso trabalho, ao relacionar a Legião Romana à
Legião Demoníaca citada textualmente em Mc 5.9,15.
Bem, acredito que a essa altura dos acontecimentos, a
“legião” de leitores que nos acompanha esteja, com perdão pelo
trocadilho, com uma “legião” de perguntas e de expectativas
“dentro de si” a respeito do nosso trabalho. Ora, não se preocupe
quanto a isso porque, ao final de nossa pesquisa, tal “legião”
será “expulsa” para bem longe. Pelo menos, é isso o que eu
espero que aconteça a partir das páginas seguintes.
33
CARLffiS AUGUS+® VAILA + +
f í*
CAPÍTUK© I
C © N SI D C RAC © C S
PRCLimiNARÉS S©BRC SATANÁS,
DcmêNies e cx©Rcism©s
CARL®S AUGUS + ffl VAILA + + I
36
SA + ANÁS, D£ffl©Nl®S Ê LÊG1î
CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES
PRELIMINARES SOBRE SATANÁS,
DEMÔNIOS E EXORCISMOS
Embora os termos “Satanás” e “Diabo” não apareçam no
texto de Mc 5.1-20 e em seus paralelos, todavia, como veremos
mais adiante, o termo “Legião” pode subentender a existência de
uma organização hierárquica. E, no caso de uma “legião
demoníaca”, por exemplo, os demônios compõem a base dessa
“pirâmide”, em cujo topo se encontra Satanás, ou o Diabo.8 De
qualquer forma, não podemos tratar de um assunto de natureza
demonológica, como é o nosso, sem incluir este ser maligno em
nossas considerações preliminares, motivo pelo qual as
inserimos aqui.
1.1. Considerações Sobre Satanás
1.1.1. Definição do Termo
O vocábulo “Satanás” vem do hebraico (sãtãn), termo este
que tem sido relacionado etimologicamente a uma variedade de
significados, alguns dos quais pouco convincentes e tidos como
supostos verbos em hebraico e em línguas cognatas. Estas
propostas incluem verbos que significam, por exemplo, “perder-
se”, “revoltar-se”, “cair fora”, “ser injusto”, “incendiar” e
“seduzir”.9 Entretanto, ao que tudo indica, o termo sãtãn pode
g
Como “no tempo de Jesus os fariseus e o povo comum daquele tempo
estavam firmemente convencidos de que havia toda uma hierarquia de
espíritos bons e maus, e que Satã presidia os últimos” é, por conseguinte,
natural inter-relacionarSatanás aos demônios. (Cf. SANFORD, John A. Mal,
o Lado Sombrio da Realidade. [Tradução de Sílvio José Pilon e João Silvério
Trevisan], São Paulo, Paulus, 1988, pp.48,49).
o
TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der.
(eds.). Dictionary of Deities and Demons in the Bible. Grand Rapids, Wm. B.
37
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + +I
ser mais corretamente definido como “adversário, oponente”,* 10
ou ainda como “contrário, contender, competidor, antagonista,
rival, inimigo”.11 12
Eerdmans Publishing Company I Cambridge, Brill Academic Publishers,
1999, p.726. (Na continuação desta obra, os autores explicam detalhadamente
o porquê da incongruência de tais significados supostamente derivados do
termo sãtãn. Cf. Op.Cit., p.726).
10 DAVIDSON, Benjamin. The Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon.
Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1981, p.710. Cf. também:
GESENIUS, H. W. F. Geseniu’s Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old
Testament. [Translated by Samuel Prideaux Tregelles]. Grand Rapids, Baker
Book House, 1979, p.788.
11 SCHÔKJEL, Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português.
[Tradução de Ivo Storniolo e José Bortolini], São Paulo, Paulus, 1997, p. 641.
12 LANDES, George M. A Student’s Vocabulary of Biblical Hebrew. New
York, Charles Scribner’s Sons, 1961, p.29.
13 Segundo Galambush, a Bíblia Hebraica desconhece a existência de um
oponente cósmico de Deus. Apenas no Novo Testamento é que os traços de
tal adversário cósmico serão bem definidos. (Cf. GALAMBUSH, Julie. The
Reluctant Parting: how the new testament’s Jewish writers created a
Christian book. New York, HarperCollins Publishers, 2006, p.262).
1.1.2. Satanás no Antigo Testamento
O termo hebraico sãtãn aparece ao todo vinte e sete vezes
no Antigo Testamento e, pelo que podemos perceber, ainda
não há nesta parte das Escrituras uma figura única definida que
claramente personifique o Mal.13 Isto só é notado mais adiante,
em um desenvolvimento posterior e, principalmente, nos
escritos neotestamentários, através da figura do Diabo. Em
outras palavras, podemos dizer que pouco a pouco, de maneira
sutil, mas ao mesmo tempo real e progressiva, Satanás deixa a
sua “timidez” de lado, coloca os seus “chifres”, “garras” e
“tridente” à mostra e vai se revelando na Bíblia. Talvez, tal
afirmação até espante o leitor, mas é a mais pura verdade. A
Bíblia Hebraica se inicia, ao contrário do que muitos pensam,
38
SA + ANÁS, DEíTl©NI©S Ê LEGIî
dentro de um contexto no qual Satanás está invisivelmente
envolvido - atuando apenas nos bastidores - mas não é assim
que as Escrituras se encerram. No decorrer de toda a Bíblia,
Satanás vai, lentamente, se mostrando aos seres humanos.
Possessões demoníacas, exorcismos e todos os outros sinais
indicativos da presença deste ser Maligno vão se tomando cada
vez mais freqüentes, até se manifestarem por completo.14
14
Elaine Pageis, em seu excelente livro que trata, conforme definido por ela
mesma, da história social de Satanás, faz o seguinte comentário: “Relendo
descrições bíblicas e extrabíblicas sobre anjos, constatei, em primeiro lugar, o
que muitos estudiosos haviam sugerido: que embora eles apareçam com
freqüência na Bíblia Hebraica, Satanás, ao lado de outros anjos decaídos, ou
seres demoníacos, era virtualmente ignorado. Mas, entre certos grupos
judaicos do século I, incluindo com destaque os essênios (que se
consideravam aliados dos anjos) e os seguidores de Jesus, a figura chamada
de Satã, Belzebu ou Belial começou a adquirir também uma importância
fundamental”. (PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o
poder que as forças irracionais exercem na sociedade moderna. [Tradução
de Ruy Jungmann]. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996, p. 15).
15 REIS, Aníbal Pereira. O Diabo. São Paulo, Edições Caminho de Damasco,
1976, p.94.
E esse fenômeno do aparecimento gradual de Satanás
tem o seu apogeu justamente no período neotestamentário,
época esta que coincide com a encarnação de Cristo. Em todo o
Novo Testamento, e mais particularmente nos Evangelhos,
Satanás se manifesta com maior freqüência e regularidade,
principalmente por meio de seus seguidores, os demônios, por
meio dos quais chega até a causar a impressão de que é
onipresente.15
Ora, após esta breve introdução sobre o desaparecimento
veterotestamentário de Satanás como figura que personifica o
Mal, é importante vermos os usos que o Antigo Testamento faz
do vocábulo sãtãn, a fim de que obtenhamos uma compreensão
maior sobre este assunto:
39
CAR.L®S AUGUS+® VAILA + + I
a. Em Nm 22.22,32 encontramos as primeiras
ocorrências do termo hebraico sãtãn na Bíblia,
sendo que lemos, por exemplo, no verso 22, que “o
anjo do Senhor pôs-se-lhe no caminho [de Balaão]
por adversário'' (ARA). Nós podemos notar
que o ser celestial que age aqui como um sãtãn tem
muito pouco em comum com as conceituações
posteriores de Satanás. Ele é o mensageiro de
Yahweh, não seu arquiinimigo, e ele atua de acordo
com a vontade de Yahweh antes do que se opondo a
ela.16 17
16 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der.
(eds.). DDDB, p.727.
17 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der.
(eds.). DDDB, p.729.
b. Em 1 Cr 21.1 lemos que Satanás se levantou
contra Israel e incitou a Davi a levantar o censo [...]”
(ARA). Neste texto vemos que o nome sãtãn, assim
como no texto anterior, aparece sem o artigo
definido. A maioria dos eruditos, nesse caso, entende
sãtãn como o nome próprio “Satanás”, embora
alguns mantenham que o nome se refere a um
adversário humano e outros ainda argumentem que
ele diz respeito a um inominável adversário ou
acusador celestial. Porém, no texto paralelo de 2
Sm 24.1, o autor bíblico declara que “tornou a ira do
íTÍIT’ Senhor a acender-se contra os israelitas, e ele
t :
incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o
censo de Israel e de Judá”. (ARA). É importante
estabelecer aqui porque o cronista, em 1 Cr 21.1,
trocou seu texto fonte, pois sua motivação tem
implicações sobre como nós compreendemos sãtãn
40
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî
nesta passagem. Se o cronista tentou realmente
distanciar Yahweh do comportamento malévolo e
inteligente deste sãtãn por atribuir semelhante
comportamento a um outro ser divino, então nós
podemos ver nesta passagem o começo de uma
dicotomia moral na esfera celestial. Se Yahweh não é
o grande responsável pelo comportamento malévolo
com respeito ao gênero humano, e um outro ser
divino capaz de agir eficazmente, independente de
Yahweh, existe, então pode ser bastante apropriado
traduzir sãtãn pelo nome próprio Satanás.
c. Em Jó 1.6-9 (duas vezes no verso 7), 12 (duas vezes)
e em 2.1-4 (duas vezes no verso 2), 6, 7, o vocábulo
sãtãn aparece sempre acompanhado pelo artigo
definido, ou seja, Em outras palavras, nos
vinte e quatro versículos existentes entre Jó 1.6 a 2.7,
a expressão hasãtãn aparece quatorze vezes. Já a
LXX emprega nestes mesmos versos o equivalente
grego ôiápoÀoç para se referir a Satanás.18 19 Muitos
estudiosos traduzem hasãtãn como “o Acusador”,
que eles entendem ser um título que descreve um
papel ou ofício. Contudo, deve ser notado que
nenhum ofício análogo tem sido convincentemente
identificado no sistema legal do antigo Israel, nem
representa a divina assembléia das culturas da
18 Idem, Ibidem, p.730. Joyce Baldwin comenta que “o relato paralelo de 1
Crônicas 21 mostra como o pensamento teológico se desenvolveu ao longo
dos anos, atribuindo a ‘Satanás’ ou a ‘um adversário’ o que anteriormente era
atribuído ao Senhor". (Cf. BALDWIN, Joyce G. I e II Samuel: introdução e
comentário. [Tradução de Márcio Loureiro Redondo]. São Paulo, Vida Nova,
1996, p.331).
19 Cf. RAHLFS, Alfred. Septuaginta. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft,
1979.
41
CARL©S AUGUS + ® VAILA + +I
circunvizinhança que incluem uma divindade que
tem a tarefa de ser um acusador. Alguns estudiosos
têm argumentado que existiam acusadores-
informantes noantigo período Persa, e que o sãtãn
de Jó 1 e 2 está baseado nestes informantes. A
evidência para isto, todavia, não é conclusiva devido
à incerteza da existência de provas legais
correspondentes.20 Neste ponto, devemos notar que
como o termo hebraico sãtãn é antecedido pelo
artigo definido “o” no contexto de Jó 1 e 2, então,
neste contexto o vocábulo parece mais descrever uma
função do que representar um nome próprio. Embora
o indivíduo que se apresenta como adversário de Jó
possa ser o mesmo que, mais adiante, é chamado de
Satanás, não podemos concluir tal coisa nesta
passagem, pois parece que o termo sãtãn só passa a
desempenhar nitidamente o papel de nome próprio a
partir do período intertestamentário, mais
precisamente no II século a.C.21
20 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der.
(eds.). DDDB, p.728. Isaac Asimov observa que “a influência Persa é
demonstrada na cena de Deus como o chefe de uma numerosa corte de
espíritos assistentes. A diferença da perspectiva Persa repousa no fato de que
Satanás não é chefe co-igual de um grupo de espíritos malignos, mas é
simplesmente um espírito único, tão sujeito a Deus quanto o são os outros.
Satan tem, aparentemente, o importante e proveitoso papel de testar os seres
humanos para ver se sua fé em Deus é fiel, ou meramente superficial. Neste
papel, ele atua apenas com a permissão de Deus e somente tão distante
quanto Deus permite”. (Cf. ASIMOV, Isaac. Asimov's Guide to the Bible.
[The Old and New Testaments]. New York, Wings Books, 1981, p.478.).
Sobre a ideia de que a figura de Satanás se desenvolve sob a influência do
dualismo iraniano, veja: ELIADE, Mircea. Historia de las Creencias y las
Ideas Religiosas. Vol.II. [Traducción de Jesús Valiente Maila]. Barcelona,
Ediciones Paidós Ibérica, S.A., 1988, pp.317,318.
21 WALTON, John, MATTHEWS, Victor & CHAV ALAS, Mark. CBAAT,
p.511.
42
SA+ANÁS, DEffiÔNieS E LEGIé
d. Em Zc 3.1,2 (duas vezes no verso 2) nos deparamos
novamente com a expressão a qual aparece
três vezes nestes dois versos igualmente
acompanhada pelo artigo definido. Aqui, assim
também como em Jó, a LXX traz o termo õiápoÀoç
como equivalente de sãtãn. Em Zc 3.1, porém, nós
encontramos a curiosa frase: “Deus me mostrou o
sumo sacerdote Josué, o qual estava diante do Anjo
do Senhor, e
Satanás estava à mão direita dele, para se lhe opor’'’
(ARA). Nela nós percebemos o substantivo masculino
w acompanhado do artigo definido H e vemos
ainda o termo o qual é prefixado pela
preposição h e seguido do verbo que aparece
no infinitivo do QaL Este uso duplo da raiz stn que
aparece em Zc 3.1 é enfático e deixa transparecer o
caráter oposicionista da personagem do texto. Ao que
tudo indica, Zc 3 refere-se a um ser divino diferente
daquele que aparece em Nm 22 e, também, é incerto
se o sãtãn de Jó 1 e 2 é o mesmo ser celestial de Zc
3. Além disso, 1 Cr 21.1 parece igualmente não se
identificar de forma clara com nenhum dos três
textos anteriores.
e. Por fim, em textos como, por exemplo, 1 Sm 29.4; SI
38.21 (TM), que corresponde ao SI 38.20 em nossas
versões; SI 71.13 e SI 109.4,6, 20,29 o termo sãtãn
aparece de forma bem variada para se referir a **
70
DAVIDSON, Benjamin. AHCL, p.455.
23 TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter W. Van Der.
(eds.). DDDB, p.729.
43
CARL©S AUGUS + 9 VAILA + + I
homens. Assim, mencionamos todas as ocorrências
do termo sãtãn nas Escrituras veterotestamentárias,
bem como, seus significados correspondentes.
1.1.3. Satanás no Novo Testamento
Já no Novo Testamento, o termo hebraico sãtãn aparece
trinta e seis vezes ao todo24 através da sua forma helenizada, isto
é, o substantivo masculino Laravâç. O vocábulo grego aparece
nos seguintes textos: Mt 4.10; 12.26 (duas vezes no verso 26);
Mc 1.13; 3.23 (duas vezes no verso 23), 26; 4.15; Lc 10.18;
24 K.UBO, Sakae. A Reader's Greek-English Lexicon of the New Testament.
Grand Rapids, Andrews University Press and Zondervan, 1975, p.28.
LIDDELL, H. G. & SCOTT, R. An Intermediate Greek-English Lexicon.
(Founded Upon the Seventh Edition of Liddell and Scott’s Greek-English
Lexicon). Oxford, Oxford University Press, 1889, p.724.
11.18; 13.16; 22.3, 31; Jo 13.27; At 5.3; 26.18; Rm 16.20; 1 Co
5.5; 7.5; 2 Co 2.10; 11.14; 12.7; 1 Ts 2.18; 2 Ts 2.9; 1 Tm 1.20;
5.15; Ap 2.9,13 (duas vezes no verso 13), 24; 3.9; 12.9; 20.2,7.
Em Mt 16.23 e Mc 8.33 Pedro é chamado de Satanás por Jesus,
porque ele estava tentando o Mestre a abandonar a Sua missão
como Salvador. Das trinta e seis menções feitas a “Satanás” no
Novo Testamento, 45% delas são encontradas nos Evangelhos.
Estas estatísticas contidas nas Escrituras podem conferir aos
Evangelhos, com justiça, o título de “manual de diabologia”.
Na grande maioria dessas referências, o vocábulo
Zccrarâç já não se refere mais a seres um tanto quanto incertos
como o seu equivalente veterotestamentário sãtãn. Agora, a
palavra que ainda mantém os significados de “adversário” e
“inimigo”, revela sua relação direta e inequívoca com o seu
outro nome, Diabo.25 Ou seja, no Novo Testamento, Satanás é a
óbvia personificação do Mal. Nesta parte das Escrituras, ele é o
arquiinimigo de Deus e daqueles que foram criados à Sua
imagem e semelhança, os homens.
44
SA+ANÁS, DEíTl©Nl©S E LEGIî
Como já havíamos dito anteriormente, ao longo de toda a
Bíblia Satanás vai aos poucos se mostrando aos seres humanos.
E, no Novo Testamento mais precisamente, ele não se comporta
mais de maneira “tímida” e “velada”, como o fazia no período
veterotestamentário. Antes, ele caminha a passos largos, como
que fazendo questão de “se mostrar” e de “se fazer percebido”
cm várias ocasiões do cotidiano das pessoas. No Novo
Testamento, os demônios, as possessões demoníacas, os
exorcismos e as doenças atribuídas aos espíritos malignos, são
cada vez mais freqüentes e notórios - diferentemente do que
ocorria no período do Antigo Testamento - tomando-se, assim,
urna espécie de “cartão de visitas” do Maligno. Nos livros
neotestamentários Satanás se revela de maneira escancarada. Ele
sai dos bastidores e de trás das cortinas da história bíblica e sobe
ao palco naturalmente, de forma desvelada, para que os
espectadores da platéia o observem. Isto também é notado
através do seu outro nome, “Diabo”, sobre o qual falaremos a
seguir.
1.1.4. Satanás e o Seu Nome Grego: Diabo
Além de Haravâç, outro termo que também é empregado
para se referir ao Maligno, é o termo grego õiápoÀoç. Para
entendermos um pouco mais sobre esse vocábulo devemos nos
dirigir ao período do Grego Clássico, o qual compreende a
época que vai de 900 a.C. até cerca de 330 a.C., época das
conquistas de Alexandre, o Grande. Neste período, o dialeto
ático se destacou, tornando-se a fonte principal do grego do
Novo Testamento. E, além disso, temos que nos dirigir também
ao período do Grego Koiné (isto é, “comum”) que vai de 330
a.C. até aproximadamente 330 d.C. Durante esse período, a
língua grega se tomou universal, sendo livremente empregada
45
CAR.L©S AUGUS+© VAILA + + I
26 • • ' •em todo mundo civilizado e, principalmente, no mundo bíblico
neotestamentário.
Entre o período do Grego Clássico e o do Grego Koiné, o
vocábulo òiápoÀoç aparece na literatura secular, significando,
por exemplo, “predisposto à difamação”, “caluniador” e “acusar
falsamente” em Aristófanes (200 a.C.), Andócides (405 a.C.) e
Plutarco (120 d.C.). E aparece também com o significado de
“falso acusador” e “caluniador” em Xenofonte (401 a.C.) e em
Aristóteles (384-322 a.C.).26 27
26 REGA, Lourenço Stelio. Noções do Grego Biblico. São Paulo, Vida Nova,
1995, p.l.
27 THAYER, Joseph Henry. GELNT, p. 135.
28 Bíblia de Jerusalém, p. 1206.
29 KUBO, Sakae. RGELNT, p.L
Já na LXX, podemos encontrar esse termo em textos
como Est 7.4; 8.1; nos textos já citados de Jó, capítulos 1 e 2; 1
Cr 21.1; Zc 3.1,2; no SI 108.6 (LXX), SI 109.6 nas nossas
versões, e também no livro apócrifo de Sabedoria (Sb 2.24),
ondelemos que “foi por inveja do diabo (ôiápoÀoç) que a morte
entrou no mundo [...]”.28 29
Por fim, o termo grego ôiápoÀoç ocorre no Novo
Testamento trinta e oito vezes. Ele é mencionado em quatorze
dos vinte e sete livros neotestamentários, distribuído da seguinte
forma, a) Nos evangelhos: quinze vezes - Mt 4.1,5,8,11; 13.39;
25.41; Lc 4.2,3,5,6,13; 8.12; Jo 6.70; 8.44; 13.2; b) No livro de
Atos: duas vezes - At 10.38; 13.10; c) Nas epístolas: dezesseis
vezes - Ef 4.27; 6.11; 1 Tm 3.6,7,11 (ôia(3óÀouç -
“caluniadoras” - em 1 Tm 3.11); 2 Tm 2.26; 3.3 (ôrépoÂ.oi -
“caluniadores”); Tt 2.3 (õiapóÀovç - “caluniadores”); Hb 2.14;
Tg 4.7; 1 Pd 5.8; 1 Jo 3.8 (três vezes), 10; Jd 9; d) No
Apocalipse: cinco vezes - Ap 2.10; 12.9,12; 20.2,10.
Esses números são muito interessantes, pois nos mostram
que das trinta e oito menções feitas ao Diabo no Novo
Testamento, cerca de 40% delas são encontradas somente nos
46
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî
Evangelhos. De fato, nos Evangelhos estão concentradas as
maiores ocorrências da atividade diabólica/demoníaca de toda a
Bíblia.
No Novo Testamento, o termo grego ôtápoÀoç parece
conservar o mesmo significado básico do período do Grego
Clássico, significando “caluniador”, “difamador”.30 31 * Ao que tudo
indica, o termo é derivado de diabállõ, que quer dizer:
GARRIDO, Constantino Ruiz. (trad.). Vocabulário Griego del Nuevo
Testamento. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2001, p.43.
31 THAYER, Joseph Henry. GEL NT, p. 135.
3" TAMEZ, Elsa y FOULKES, Irene W. de. Diccionario Conciso Griego-
Espanol del Nuevo Testamento. Stuttgart, United Bible Societies, 1978,
pp.31, 32, 42.
’ SAYÉS, José Antônio. El Demonio, Realidad o Mito? Madrid, San Pablo,
1997, p.31.
■7 1
“arremessar sobre” ou “através de”, “impelir sobre”. O termo é
composto pela preposição grega dia, “através de, por (meio de)”
c é também formado pelo verbo grego bállõ, “lançar, atirar,
derrubar”. A seguir, veremos outros nomes que são atribuídos
a Satanás.
1.1.5. Satanás e os Seus Outros Nomes
Além dos já citados (sãtãn), Saxavaç (Satanás) e
õiápoÀoç (diábolos), o arquiinimigo de Deus e dos homens
possui também outros nomes pelos quais é conhecido nas
Escrituras, alguns dos quais mencionaremos abaixo:
a) □IDT (bã’al zebüb) ou BeeACepouA.
(Beelzeboid). Este nome possui significado bem disputado nos
meios acadêmicos, mas, de forma geral, esse termo que é de
origem fenícia, lido em hebraico, significa “senhor dos
estrumes” ou “príncipe das moscas”.33 No AT, o nome bã'al
47
CAR.LSS AUGUS+© VAILA + +I
zebüb aparece, por exemplo, em 2 Rs 1. 2,3,6,16 para se referir
a uma divindade da cidade fdistéia de Ecrom. Já no NT, o
vocábulo Beelzeboid aparece em Mt 10.25; 12.24,27; Mc 3.22;
Lc 11. 15,18,19. Neste contexto neotestamentário, Beelzeboid é
visto como um dos nomes do próprio Satanás, embora haja
quem entenda que o nome também possa se referir a algum
“príncipe dos demônios” a ele subordinado.34
Cf. THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.100. Cf. ainda: GESENIUS, H.
W. F. GHCLOT, p.131.
35 Este verso aparece no contexto de 2 Co 6.14-7.1, passagem que, segundo
Jean Pouilly, “diversos exegetas consideram como texto essênio inserido no
corpus das epístolas por um judeu-cristão: o nome Beliar, conhecido em
Qumrã - designação do Príncipe das Trevas - aparece somente aqui na
literatura paulina”. (Cf. POUILLY, Jean. Qumrã. [Tradução de Benôni
Lemos]. São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p. 134).
36 TENNEY, Merril C. The Zondervan Pictorial Bible Dictionary. Grand
Rapids, Zondervan Publishing House, 1963, p.104.
b) (beliya’ al) ou BeXtáX/BcXiáp Qbelial/beliar).
O nome beliya'al é um epíteto de escárnio e desprezo que
aparece freqüentemente por toda a parte no AT, uma ou outra
vez dessa forma, ou em sua variação associada “Filhos de
Belial” (Dt 13.13; Jz 19.22; 20.13; 1 Sm 2.12; 10.27; 30.22; 1
Rs 21.13 etc). O termo significava “irresponsável”, “sem lei”. A
palavra também veio a ser usada como um sinônimo para
“companheiro inútil” ou “imbecil”, um “inútil”. Já no NT, o
apóstolo Paulo emprega o termo BrÀtáp uma vez (2 Co 6.15),35
onde Belial aparece como contrário a Cristo, aproximando-se,
deste modo, do status diabólico do Anticristo. Neste uso
posterior, ele é freqüentemente empregado pelos escritores da
Apocalíptica Judaica tanto para se referir a Satanás como ao
Anticristo.36
48
SA + ANÁS, DEíTlêNieS E LEGIé
c) novripóç (ponerós). Essa expressão grega significa
“malvado, mau, perverso, maligno, pecaminoso”. Porém, há
alguns casos em que a palavra, ao ser precedida pelo artigo, “o
Maligno”, faz alusão a Satanás. Isso pode ser visto, por
exemplo, em Mt 6.13; 13.19,38; Jo 17.15; Ef 6.16; 2 Ts 3.3 etc.
liste nome, sem dúvida alguma, ressalta o caráter perverso e
corrupto de Satanás.
d) ó ápxcov toô KÓopoo toútou (ho árchõn toü kósmou
loútou). O título “o príncipe deste mundo” aparece em Jo 12.31
c 16.11. Em Jo 14.30 esse título aparece sem o pronome
demonstrativo. Tal nomenclatura faz referência a Satanás como
o governante maligno deste mundo, o qual exerce a sua função
com ares de “chefe de estado”, juntamente com o seu “corpo
governante”, os demônios.
e) áp/oma Tf|ç è^oootaç roí) áépoç (árchonta tês
eksousías toü aéros). Esse título, “príncipe das potestades do ar”
(Ef 2.2), também referente a Satanás, é curioso, pois nos mostra
que em Efésios “os lugares celestiais” têm espaço não somente
para Cristo e os crentes, mas também para os poderes hostis. Isto
pode ser explicado sobre a base de uma compreensão do cosmos
que vê os céus como 0 lugar da habitação de todo espírito que há
no mundo. Tal ponto de vista é encontrado no AT em Jó 1.6ss e
cm Dn 10.13,21; e no pensamento apocalíptico em passagens
tais como 2 Macabeus 5.2; E em 1 Enoque LXI.10; XC.21,24.
Enquanto o título anterior descreve Satanás como governante
sobre a terra, este título o mostra como governante de um reino
aéreo e, portanto, invisível, imperceptível aos olhos humanos.
*38
f) i|+úoTr)<; (pseústês). Em Jo 8.44 vemos que Satanás é
chamado não somente de pseústês, “mentiroso”, mas também de
TAMEZ, Elsa y FOULKES, Irene W. de. DCGENT, p. 146.
KITCHEN, Martin. Ephesians. [New Testament Readings]. London,
Routledge, 1994, p.58.
49
CAR.L®S AUGUS+® VA1LA + + I
ó TTccrrip aÜToü (Ao patêr autoü), isto é, “o pai dela (da mentira)”.
Tal título é absolutamente contrário àquele que é auto-atribuído
por Jesus em Jo 14.6. Neste verso, Jesus diz: ’Eytó el|n...T]
áÀfjOeia (Egõ eimi...hê alêtheia), “eu sou a verdade”. Tal título
cristológico, alêtheia, se contrapõe em extremo ao adjetivo
satânico pseústès.
g) tÒu ôpÚKoma, ó õcfuç ó áp%aToç (tòn drákonta, ho ófis
ho archalos). Estes dois títulos, “o dragão, a antiga serpente”,
referências óbvias ao Maligno, são encontrados em Ap 20.2 ao
lado de dois outros nomes já citados, Diabo e Satanás. O nome
“antiga serpente” é uma alusão clara a Gn 3.1-5ss, onde lemos
sobre a tentação de Adão e Eva e a sua respectiva queda. É
digno de nota que em Gn 3.13, quando Eva diz: “a serpente me
enganou” (ARC), após ter sucumbido à tentação, a palavra
“enganou” é derivada do verbo hebraico NÜ3 (nãshã’),
“trapacear, enganar”. Tal verbo subentende a existência de um
ser dotado de inteligência por trás da serpente, capaz de iludir e
de enganar. Portanto, tal verbo não se refere ao mero ofídio do
episódio da tentação, mas o transcende, apontando para aquele
que o está manipulando como uma marionete nos bastidores, ou
seja, Satanás. Além disso, deve ser observado também que a
palavra (’êbâ) “inimizade” em Gn 3.15, onde aparece
novamente ligada à serpente, pode ser traduzida como “intenção
hostil”, sendo usada novamente em Nm 35.21 onde é aplicada a
39
40
39 Neste momento, me vem à memória uma declaração bem humorada feita
certa vez pelo pastor Atila Brandão de Oliveira em uma de suas pregações:
“Deram tanta comida ao diabo que, no Antigo Testamento, ele é chamado de
serpente, mas no Novo Testamento, ele cresceu tanto quejá é chamado de
grande dragão”. Este adjetivo “grande” é tirado de Ap 12. 3,9. Além disso, é
digno de nota o fato de o dragão ser visto como um ser mitológico sengundo
as antigas concepções orientais.
40 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.248.
50
SA + ANÁS, D£ffi©NI®S E LEGIî
homens.41 Mais uma vez, seria insensato entender que tal
vocábulo fosse aplicado para descrever a “intenção hostil” entre
um animal e um ser humano. Tal termo alude ao ódio entre
indivíduos, e não entre animal/homem. Neste caso, tal intenção
hostil só pode proceder do Maligno.42
Idem, Ibidem, p. 12.
42 Robert Alter faz os seguintes comentários sobre o termo inimizade
encontrado em Gn 3.15: “embora a serpente não seja de jeito nenhum
‘satânica’, como nas lendas das tradições judaico-cristãs posteriores, a
maldição registra um horror primitivo da humanidade diante deste ser
rastejante, de olhar viscoso, e representante venenoso do reino animal. Este é
o primeiro momento em que um rompimento entre o homem e o reino animal
é registrado. Por trás dele pode-se encontrar, na longa distância da mediação
cultural, os mitos cananitas de uma serpente marinha primordial”. (Cf.
ALTER, Robert. Genesis: translation and commentary. New York, W. W.
Norton & Company, Inc., 1996, p. 13.).
1.1.6. Satanás e os Demônios
Conforme já foi adiantado no início deste capítulo,
apesar de os termos “Satanás” e “Diabo” não aparecerem no
texto de Mc 5.1-20 e em seus paralelos, porém, o termo
“Legião” pode subentender a existência de uma organização
hierárquica. E, em se tratando de uma “legião demoníaca”, os
demônios são aqueles que formam a base dessa “pirâmide”, em
cujo topo se encontra Satanás, ou o Diabo. Por este motivo é que
resolvemos inserir esse tópico no qual falaremos sobre o vínculo
existente entre Satanás e os demônios.
Ora, ao ler as páginas do Antigo Testamento, ficamos
simplesmente surpresos por ver que não há uma única referência
feita à relação existente entre a personificação do mal conhecida
como Satanás (o Diabo) e os demônios. Porém, na medida em
que avançamos em nossa pesquisa, tal relação começa a adquirir
contornos mais claros.
51
CAR.LSS AUGUS+© VAILA + + I
Ao consultarmos a literatura pseudepigráfica (V-I século
a.C.), por exemplo, nos deparamos com alguns textos que
descrevem a existência de um vínculo entre Satanás e os
demônios. No livro da Ascensão de Isaías II, 2, lemos: “E
Manassés não serviu ao Deus de seu pai e dedicou-se ao culto de
Satanás, de seus anjos e de seus poderes”.43 Já I Enoque VI, 1-4
nos fala sobre uma hierarquia espiritual de anjos caídos
(demônios), na qual encontramos Semjaza (o demônio superior)
e mais dezoito demônios subalternos.44 No Testamento de Levi
XVIII, 4, encontramos escrito: “Ele [o sacerdote-messias]
acorrentará Belial, e dará aos seus filhos o poder de enfrentar os
espíritos maus”.45 No Testamento de Dã VI, 1, nos deparamos
com o seguinte conselho: “Assim, meus filhos, temei o Senhor!
E guardai-vos de Satã e dos seus espíritos!”.46 Finalmente, um
dos textos que expressam o conceito de hierarquia, bem como, o
vínculo existente entre Satanás e os demônios de maneira
formidável, se encontra no livro dos Segredos de Enoque XXIX,
2-4:
PR.OENÇA, Eduardo de. (org.). Apócrifos e Pseitdo-Epígrafos da Bíblia.
[Tradução de Claudio J. A. Rodrigues], São Paulo, Fonte Editorial Ltda.,
2005, p. 132.
44 Idem, Ibidem, p.261.
45 Idem, Ibidem, p.349.
46 Idem, Ibidem,
47 Idem, Ibidem, p. 116.
(...) Satanail foi, com seus anjos, precipitado das alturas.
E um dos anjos, tendo saído de sua hierarquia c se
desviado para uma hierarquia debaixo da sua, concebeu
um pensamento impossível: colocar o seu trono acima
das nuvens que se encontram sobre a terra, para que seu
poder se igualasse ao meu.
Prccipitci-o do alto com seus anjos, e ele pôs-sc a voar
por cima do abismo continuamcntc.47
52
SA+ANÁS, DEfflÔNieS E LEGIé
No Novo Testamento encontramos também algumas
referências ao vínculo existente entre Satanás e os demônios. As
seguintes expressões exemplificam tal fato: “Belzebú (...),
príncipe dos demônios” (Mc 3.22ss); “o diabo e seus anjos” (Mt
25.41); “(...) o Diabo, (...) Satanás (...), e os seus anjos” (Ap
12.9). Além disso, o Diabo (Satanás) também aparece vinculado
a certas ordens hierárquicas espirituais do mal no texto clássico
de Ef 6.11,12.
Bem, creio que estes poucos exemplos extraídos
respectivamente das literaturas pseudepigráfica e
neotestamentária já são suficientes o bastante para nos mostrar
que, a partir do período intertestamentário, Satanás e os
demônios passam a ser associados. Além do mais, este primeiro
começa a ser visto como chefe (líder hierárquico) dos últimos.
Tal constatação é deveras importante para o nosso trabalho,
como veremos mais adiante.
Assim, nós concluímos esta seção que buscou levantar
algumas considerações referentes a Satanás. A seguir,
consideraremos alguns aspectos que dizem respeito aos
demônios.
1.2. Considerações Sobre os Demônios
1.2.1. Fatores que Complicam a Compreensão
Demonológica
É um tanto quanto complicado falar sobre a identidade, a
natureza e o papel dos demônios, sobretudo no Antigo
Testamento, devido a, pelo menos, três fatores: a) terminologia;
b) desenvolvimentos históricos; e c) questões teóricas.48 A
maneira como estes fatores forem compreendidos, irá afetar a
nossa concepção demonológica veterotestamentária como um
todo. Portanto, vejamos estes itens um pouco mais de perto.
Sigo aqui o The Anchor Bible Dictionary. (Cf. FREEDMAN, David Noel
(ed.). ABD. Vol.IL [D-G]. New York, Doubleday, 1992, pp.138,139).
53
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I
a) Terminologia
O uso do termo “demônio” principalmente no Antigo
Testamento é problemático por duas razões principais: primeira,
parece que não há um único termo no hebraico bíblico que possa
ser consistentemente e inquestionavelmente traduzido como
“demônio”. A ausência de tal ferramenta lingüística constitui-se,
portanto, nosso primeiro obstáculo. Segunda, muitos termos
usados como referência aos demônios são hapax legomena
(termos que ocorrem uma única vez em um texto) ou aparecem
somente em uns poucos exemplos. Ou seja, essa escassez de
dados não nos permite muitas vezes a comparação e a correlação
com outros textos bíblicos, o que muito dificulta a nossa
compreensão demonológica.
b) Desenvolvimentos Históricos
O próprio Antigo Testamento carece de uma simples ou
coerente apresentação dos demônios. Muitos estudiosos
concordam que opiniões sobre os demônios no Antigo Israel se
tornam cada vez mais complexas e negativas, contudo, eles
diferem entre si sobre como isto aconteceu. Várias
possibilidades têm sido sugeridas: 1) A crença geral em
demônios como espíritos malignos independentes foi sempre
parte da teologia israelita (particularmente no nível popular) a
qual foi simplesmente desenvolvida em períodos posteriores. 2)
A crença geral em demônios como espíritos ambivalentes ou
aspectos de Deus era parte original da teologia de Israel que em
tempos posteriores veio a separar os seres espirituais em “bons”
espíritos (anjos) e “maus” espíritos (demônios) 49 3) A crença
Esta é também a opinião de Nelson Kilpp em um de seus artigos
intitulado: Os Poderes Demoníacos no Antigo Testamento. Neste interessante
artigo, ao falar sobre aquilo que ele chama de “os traços demoníacos de
54
SA + ANÁS, DÊIT1©NI©S E LEGIî
geral em demônios como figuras malignas independentes foi um
desenvolvimento tardio que surgiu quando se tomou
teologicamente inaceitável apresentar os acontecimentos ruins
do cotidiano como aspectos de Deus. 4) A crença geral em
demônios refletida nos textos poéticos (deber, qeteb)5<}
gradualmente diminuiu, enquanto a crença em outros tipos de
demônios aumentou (as várias formas da figura de Satanás e as
multidões de demônios e anjos malignos representados no
período intertestamentário).
c) Questões Teóricas
Algumas questões tomam difícil a compreensão
demonológicarelacionada ao Antigo Testamento. Dentre elas
destacamos as seguintes: 1) Muitos dos estudos sobre os
demônios no AT usam materiais comparativos, particularmente
aqueles de outras culturas do Antigo Oriente Próximo.
Evidências lingüísticas e arqueológicas têm provido ajuda no
Deus”, Kilpp analisa três textos: Gn 32.23-33 (Jacó luta com Deus nas
proximidades do rio Jaboc), Ex 4.24-26 (Javé ataca Moisés e tenta matá-lo) e
Ex 12.21-23 (Parte do relato sobre a origem da Páscoa) e os conclui com
algumas observações espantosas. Ele identifica: a) o ser (Deus) que lutou
com Jacó (Gn 32) com um espírito fluvial; b) aquele (Deus) que tentou matar
Moisés no caminho (Ex 4) com um demônio do deserto e c) o misterioso ser
(Deus) identificado como “exterminador” dos primogênitos (Ex 12) como um
demônio destruidor. (Cf. GARMUS, Ludovico, (ed.). Diabo, Demônio e
Poderes Satânicos. [Série Estudos Bíblicos]. Petrópolis, Editora Vozes, 2002,
pp.25-27.). De acordo com G. Fohrer, “fenômenos misteriosos, medonhos e
horrificantes foram incorporados à descrição do próprio Deus ou associados a
um ser celestial ou espírito enviado por lahweh. Conseqüentemente, lahweh
assumiu feições ‘demoníacas’ (...) - ou, mais exatamente, veio a aparecer
numa luz irracional e numinosa - e o limite entre seres celestiais e demônios
ficou obscurecido. Por isso, os demônios são raramente mencionados [no
AT]”. (Cf. FOHRER, Georg. História da Religião de Israel. [Tradução de
Josué Xavier], São Paulo, Ed. Academia Cristã Ltda / Paulus, 2006, p.228).
50 O vocábulo deber significa “pestilência, praga mortal, peste”; e qeteb
quer dizer “destruição”.
55
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I
esclarecimento de alguns aspectos do conhecimento
veterotestamentário sobre os demônios. Contudo, estas
evidências também levantam questões sobre o grau de
comparação legítima possível entre culturas separadas pela
língua, tempo, geografia e teologia. 2) Muito da linguagem
sobre os demônios no AT e no Antigo Oriente Próximo aparece
em materiais poéticos com referência a fenômenos naturais. Este
contexto levanta a questão de como referências poéticas a
fenômenos naturais podem ser interpretados - como referências
literais aos fenômenos físicos, como simbolizações ou
personificações poéticas, ou como referências aos reais
demônios ou divindades. 3) A tradução em geral do intercâmbio
dos termos com “demônios” é problemática. Isso ocorre porque
as traduções em geral são influenciadas por muitos fatores:
evidência filológica c tendência, teologia e decisões antecipadas
com respeito a conhecimentos do termo “demônio” e as próprias
formas de interpretar cada texto particular. 4) Identificações e
conhecimentos dos demônios no AT são fortemente
influenciados pelo contexto mais amplo dentro do qual os
demônios são analisados: contextos passados têm incluído
magia e bruxaria, religião “popular”, rituais oficiais
apotropaicos, simbolismo poético e psicologia da religião.
Todavia, a despeito de todos estes “obstáculos” que
aparecem à nossa frente, ainda assim, nos atrevemos a tentar
compreender um pouco mais sobre este complexo mundo
demonológico encontrado principalmente no AT. Aliás, já que
introduzimos a problemática da complexa hermenêutica
demonológica referente ao AT, mergulhemos agora um pouco
mais fundo nesta questão.
1.2.2. Os Demônios no Antigo Testamento
Todo estudioso da Bíblia já deve ter notado a enorme
escassez de referências aos demônios nas páginas do Antigo
56
SA + ANÁS, DErtlÔNieS E LEGIî
Testamento51 52 e, conseqüentemente, deve ter observado também
(ou não, devido à sua falta) maior escassez ainda quanto aos
relatos de exorcismos. Sem querer ser irônico, me parece que
tanto os demônios como também os próprios exorcismos foram,
ambos, “exorcizados” das páginas do AT e banidos para bem
longe. Aliás, esse fato me parece ser bastante óbvio, pois, não
havendo demônios, como conseqüência lógica, não há também
exorcismos a serem feitos. Ou seja, a inexistência da primeira
cláusula já exclui automaticamente a segunda. Tal constatação
me dá a impressão de que se Jesus vivesse no período do Antigo
Testamento, o seu ministério taumatúrgico e, mais
especificamente, sua atividade exorcística, se veriam em sérios
apuros, pois ele não encontraria demônios para exorcizar, ou
então, encontraria muito poucos deles. Entretanto, quando
saltamos para as páginas do Novo Testamento e, mais
precisamente, para os Evangelhos, percebemos que estes textos
estão simplesmente impregnados de narrativas referentes aos
demônios. No AT os demônios estão “escondidos”. Ali eles
raramente “dão as caras”. Já no NT, sobretudo nos Evangelhos,
temos que tomar muito cuidado, pois a cada capítulo, se não
prestarmos a atenção, podemos “esbarrar” em muitos deles.
51 Segundo a Tradição Cabalística Judaica, os espíritos malignos tiveram a
sua origem durante o Shahat, formando assim uma legião de demônios. (Cf.
YOJAI, Simeón Bar. (Rabbi). El Zohar: el libro dei esplendor. [Traducción
de Caries Giol]. Barcelona, Ediciones Obelisco, 2004, pp.97,98).
52 Esta expressão alemã quer dizer: “contexto de vida de Jesus”. (Cf.
DEMOSS, Matthew S. Dicionário Gramatical do Grego do Novo
Testamento. [Tradução de Paulo Sartor Jr.]. São Paulo, Editora Vida, 2004,
p.160).
Como no próximo capítulo nos concentraremos na
análise exegética de Mc 5.1-20, então, como preâmbulo
necessário para efetuar tal análise dentro do Sitz im Leben
Jesu,51 devemos antes situar a referida perícope dentro de seu
contexto mais amplo. Isto quer dizer, em outras palavras, que
devemos buscar entender as narrativas sobre demônios,
57
CARLOS AUGUS + ® VAILA + +I
encontradas nos Evangelhos, a partir da sua fonte primária
localizada no AT. Tal fonte nos fornecerá o pano de fundo que
será a base para a nossa compreensão demonológica do NT,
condição sine qua non para o nosso estudo. Seguindo esse
roteiro, veremos a seguir as informações que o AT nos fornece
sobre os demônios e, em seguida, com base nesses dados,
veremos se o AT nos fornece também armas de defesa ou de
proteção contra tais seres demoníacos. Em particular, nos
interessará saber se os exorcismos faziam parte de tais
mecanismos de defesa contra a presença ameaçadora dos
demônios.
1.2.3. Identificando os Demônios53
53 Para obter mais informações sobre os demônios, tanto no AT quanto no
NT, consulte: HAAG, Herbert. Breve Diccionario de la Bihlia. Barcelona,
Editorial Herder, 1992, pp. 161-164. Veja ainda: BOURRAT, Marie Michèle
y SÒUPA, Anne. Pero, Existe el Diablo? [Traducción de José Salgado].
Bilbao, Ediciones Mensajero, S.A., 1997.
Já foi dito anteriormente que não há um só termo no
hebraico bíblico que possa ser inquestionavelmente traduzido
por “demônio”. Contudo, isto não quer dizer que não existam
outros termos hebraicos que possam ser utilizados como
referências (ainda que indiretas) a ele. Baseado nisso,
inventariamos logo abaixo uma relação de tais seres demoníacos
encontrados nas páginas do AT, no intuito de aprofundarmos a
nossa compreensão sobre este assunto:
a) Duas Categorias Gerais de Demônios
• Dntá (shêdim) Dt 32.17; SI 106.37. Segundo
Unger, o significado etimológico deste termo não
está muito bem estabelecido, mas ele acredita que o
vocábulo seja derivado da raiz shudh “governar, ser
58
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIî
senhor”, como o árabe sala.54 Já Bauer entende que
este nome deve ter alguma relação com o acádico
shedu, “anjo protetor”.55 Porém, ao que tudo indica,
a palavra shêd (singular de shèdim) tem ligação
com o vocábulo babilônico shêdu, “demônio (bom
ou mal)”.56 Talvez, este significado ambivalente do
termo possa ser explicado como sendo resultado de
uma teologia original mesopotâmica, a qual via os
demônios como espíritos ambivalentes, dotados de
traços positivos e negativos, os quais seriam um mero
reflexo do comportamento bom ou mau dos seres
humanos.
UNGER, Merril F. Biblical Demonology: a study of the spiritual forcesbehind the present world unrest. Wheaton, Scripture Press Publications, Inc.,
1973, p.59. Unger também escreveu outro livro sobre demonologia, o qual
trata deste assunto nos dias atuais. (Cf. UNGER, Merrill F. Demons in the
World Today. Wheaton, Tyndale House Publishers, Inc., 1988).
55 BAUER, Johannes B. Dicionário Biblico-Teológico. [Tradução de
Fredericus Antonius Stein]. São Paulo, Edições Loyola, 2000, p.92.
56 HARRIS, R. Laird (org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo
Testamento. [Tradução de Márcio Loureiro Redondo, Luiz A.T. Sayão e
Carlos Osvaldo C. Pinto], São Paulo, Vida Nova, 1998, p. 1527.
57 A BHS observa em nota marginal que o hebraico hase’irim é
provavelmente a forma mais correta a ser utilizada no lugar de hase'arim, a
forma como a expressão aparece em 2 Rs 23.8. (Cf. ELLIGER, K. &
RUDOLPH, W. (eds.). Bíblia Hebraica Stuttgartensia. Stuttgart, Deutsche
Bibelgesellschaft, 1997, p.667.).
• DTltôl (se'irim) Lv 17.7; Dt 32.2; 2 Rs 23.8;57 2 Cr
11.15; Is 13.21; Is 34.14. Esse termo que, como o
anterior, também aparece aqui em sua forma plural,
se'irim, é derivado do hebraico sã'ir, “bode”. O
vocábulo parece significar “demônio (cabeludo)”,
59
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I
SR(em forma de bode). De acordo com Unger, estes
seres eram vistos inquestionavelmente como objetos
de culto. Ele ainda argumenta que o fato da LXX
traduzir se’irim por ôaip.óvia em Is 13.21 e 34.14
prova que os Judeus de Alexandria consideravam tais
seres como demônios mesmo.* 59
HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.353. Cf. também:
MCDANIEL, Ferris L. A Reader's Hebrew-English Lexicon of the Old
Testament. Dallas, edited by author, 1975, p.14; LANDES, George M. SVBH,
?927'
UNGER, Merril F. BD, p.60. Não é nosso propósito discutir nessa obra
sobre a legitimidade ou não do uso do termo grego daimonia, por exemplo,
como a tradução mais apropriada do hebraico se'irim. Contudo, creio ser
proveitoso e oportuno citar aqui algumas observações encontradas no
Dictionary of Deities and Demons in the Bible a esse respeito: “Durante o
período intertestamentário e durante a ascensão da literatura judaica em
grego, os termos daimon e daimonion começaram a assumir entre os judeus
a conotação negativa de ‘demônio em aliança com o Diabo’. A inspiração
para esta substituição no significado foi o encontro durante e após o Exílio
com o dualismo zoroastriano. Esta cosmologia postulava dois campos
espirituais guerreando, controlados por seus líderes, o deus zoroastriano e o
diabo, e comandados por arcanjos e arquidemônios e suas graduações de
espíritos inferiores. Eles brigavam a respeito da lealdade dos humanos,
lealdade expressada nos comportamentos justos ou injustos e finalmente na
vida eterna ou na destruição ardente. Os deuses antigos das nações e suas
divindades serviçais, os espíritos inferiores da natureza e do cosmos, foram
‘demonizados’, rebaixados à classe de espíritos maus, tentando humanos a
pecar e seduzindo-os da verdadeira fé pelas falsas doutrinas de outras
religiões. Eventual mente, porém, houve um fim, uma vitória de Deus, um
salvador que conduz os poderes opostos à destruição, um Julgamento Final e
uma Nova Era. Círculos dentro do judaísmo usaram esta estrutura para
reavaliar antigos mitos e produziram após o Exílio as tensões dualísticas do
judaísmo, visíveis na literatura pós-exílica e intertestamentária e também no
Cristianismo”. (Cf. TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST,
Pieter W. Van Der. (eds.). DDDB, p.238).
60
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé
b) Fenômenos Naturais com Traços Demoníacos
• "IXH (deber) SI 91.6; Os 13.14; Hab 3.5. O termo
hebraico deber significa “praga, pestilência”. Este
substantivo masculino refere-se a qualquer tipo de
peste que resulte em morte e, com exceção de uns
cinco casos, todos os usos deste vocábulo aludem à
peste enviada por Deus como forma de castigo.
Contudo, ao que tudo indica, nas referências acima
citadas (com a possível exceção de Hab 3.5) a
pestilência também é demonizada devido às suas
graves conseqüências na vida dos seres humanos em
geral.
60
61
• (qeteb) Dt 32.24; SI 91.6; Is 28.2; Os 13.14. O
vocábulo qeteb significa basicamente “destruição”.
Esse termo aparece, por exemplo, no curioso
contexto do SI 91. Devido às referências a
62
63
LANDES, George M. SVBH, p.26.
61 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.399. Quanto a essa questão da
pestilência ser enviada por Deus, Nelson Kilpp diz muito acertadamente que
“no Antigo Testamento, o Deus de Israel exige ser adorado como Deus único.
Esta exclusividade do Deus bíblico é responsável pela falta de um dualismo
radical entre o bem e o mal e também pela inexistência de uma demonologia
no Antigo Testamento. Sendo Javé único, ele se apresenta como um Deus
ambivalente: ele causa o bem, mas também está na origem do mal”. (Cf.
GARMUS, Ludovico, (ed.). Diabo, Demônio e Poderes Satânicos, p.25).
62 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p. 139.
63 Roy Stewart comenta: “a afirmação de que o Salmo 91, especialmente os
versos 5-7, faz referência específica aos demônios é provavelmente correta; a
afirmação de que Moisés compôs o Salmo enquanto subia ao Monte Sinai,
para protegê-lo de seus atormentadores demoníacos, certamente é incorreta”.
61
CARL®S AUGUS + ® VAILA + +1
pestilências e doenças que estão presentes nesse
texto, muitos comentaristas tratam todo o salmo
como se fosse uma polêmica contra o uso de
fórmulas mágicas usadas para repelir demônios. De
fato, o Talmude sugere que o Salmo seja utilizado no
caso de ataques demoníacos. E dentro deste contexto,
o “tns (pahad layla), “terror noturno”
(v.5), pode se referir ao demônio da noite, lilit,
enquanto que a fü (hêts yci'up
yômãm), “seta que voa de dia” (v.5) pode descrever
os ardis dos demônios perversos.64 A ? ^2X3
"13*7 (deber bã’ôpel yahalôke), “peste que se
propaga nas trevas” (v.6) pode ter afinidade com o
demônio Nantar, enquanto que a □ ''“1712
(Cf. STEWART, Roy A. Rabbinic Theology: an introductory study.
Edinburgh and London, Oliver and Boyd Ltd., 1961, p. 61).
64 Segundo Keel, “a ‘flecha voadora pelo dia’ pode aludir a uma das flechas
transmissoras da enfermidade (cf. SI 38.3) de Reshef, deus da guerra e da
peste. Aqui, o ‘senhor das flechas’ (...) fica reduzido à condição de demônio”.
(Cf. KEEL, Othmar. La Iconografia dei Antiguo Oriente y el Antiguo
Testamento. [Biblioteca de Ciências Bíblicas y Orientales], [Traducción de
Andrés Piquer], Madrid, Editorial Trotta, S.A.,2007, p.81).
65 PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. The Wycliffe Bible
Commentary. Chicago, Moody Press, 1987, p.529.
66 É curioso observar que semelhante uso do Salmo 91 também pode ser
encontrado em larga escala em nossa religiosidade brasileira. Nela, o costume
(qeteb yãshüd tsãhàrãyim), “destruição que ataca
ao meio-dia” (v.6) pode se referir a um demônio de
um só olho, também mencionado na tradição
rabínica. Mesmo que estas idéias estivessem ausentes
dos pensamentos do autor, elas faziam parte
integrante do salmo em seu uso real entre os judeus.65
Em outras palavras, o Salmo 91 é uma espécie de
Manual de exorcismo da tradição rabínica judaica.66
62
SA+ANÁS, DEfflffiNlffiS E LEGIé
=■^7. (reshep) Dt 32.24; Jó 5.7; SI 76.4; SI 78.48;
Hab 3.5. O vocábulo reshep significa
“pestilência”.67 Mas, além disso, também pode ser
traduzido como “chama, relâmpago, faísca”.68 É
interessante observar como os pagãos, devido às suas
crenças animistas, povoaram a realidade de espíritos.
Por exemplo, o hebraico reshep, “pestilência”,
parece ter relação com o ugarítico rshp, o “deus da
pestilência”.69 Desta forma, o fenômeno da natureza
foi demonizado neste último caso. Já em Jó 5.7 foi
sugerido que o termo reshep que ali aparece, não se
refere a faíscas literais, mas a Reshep, o deus da
febre e das epidemias.70 Por fim, em uma inscrição
bilíngüe da cidade de Idalião em Chipre, um príncipe
chamado Ba‘alram erigiu uma imagem, cuja
dedicatória emgrego era xcu ’ Akóà.Xcdvi tco’ ApvKXoi
(tõ Apóllõni tõ Amykloí) e em fenício era
supersticioso de manter a Bíblia aberta no Salmo 91, funciona como uma
espécie de “amuleto”, “patuá” ou “talismã”. Nesse contexto da nossa
religiosidade sincrética, o Salmo 91 aparece exposto em muitas casas,
hospitais, lojas e outros ramos do comércio como um instrumento de
proteção contra o “olho gordo”, a “inveja” e outras coisas ruins que possam
prejudicar as pessoas, incluindo os espíritos malignos.
67 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.347.
68 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.1460.
69 Idem, /ózó/cw, pp.788,789.
70 Idem, Ibidem, p.1460.
(Resheph de Amyklae). A inscrição dizia:
“Este é um molde de ouro que Milkyaton, rei de
Kitião e Idalião, filho de Ba‘alram, deu ao seu deus,
Resheph de Mikal, em Idalião, no mês de Bul, no
segundo ano de seu reinado sobre Kitião e Idalião,
63
CAR.L®S AUGUS + ffi VAILA + + I
porque ele ouviu a sua voz: ele pôde abençoar (a
ele)!”.71
DRIVER, S.R. A Critical and Exegetical Commentaiy on Deuteronomy.
Edinburgh, T. & T. Clark Ltd., 1986, p.368.
72 LANDES, George M. SVBH, p.28.
73 O Testamento de Salomão 18.1,2 fala sobre demônios “com cabeças em
forma de cachorros, ... [outros] em forma de humanos ou de touros ou de
dragões com rostos de pássaros ou feras ou esfinge”. (Cf. Testamento de
Salomão. Apud: TOORN, Karel Van Der, BECKING, Bob & HORST, Pieter
W. Van Der. (eds.). DDDB, p.237.). Segundo o Dicionário Judaico de
Lendas e Tradições, “demônios podem assumir forma animal, e o folclore
judaico menciona fantásticas criaturas animais, tais como Behemot e Leviatã,
cuja carne será comida no grande banquete dos dias messiânicos”. (Cf.
UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. [Tradução
de Paulo Geiger]. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p.26). É digno de
nota que Ap 9.7ss fala sobre os gafanhotos (demoníacos) que saíram do
abismo, os quais pareciam cavalos aparelhados para a guerra, tendo rostos
• ins (pahad layla) SI 91.5. Já foi dito que
esta expressão que significa “terror noturno” pode ser
uma referência ao demônio da noite, lilit. Porém,
deve-se acrescentar ainda que os povos antigos de
uma forma geral acabaram temendo a noite devido a
fatos ruins que aconteciam durante o período
noturno, tais como mortes e roubos, por exemplo (Ex
12.30; SI 121.6; 1 Ts 5.2,5; 2 Pd 3.10a etc), e, por
fim, acabaram por demonizá-la.
• “TJ3 (bãrãd) SI 78.48; Is 28.2. O vocábulo bãrãd
significa “saraiva”. Certamente, o caráter destrutivo
de tal fenômeno da natureza, visto principalmente no
prejuízo causado às lavouras e ao gado, foi
responsável por tê-lo transformado num aspecto
demoníaco.
72
c) Animais com Feições Demoníacas 73
64
SA+ANÁS, D€ÍT1®NI®S £ LEGIî
fàlüqahf Pr 30.15. Aqui o termo 'ãlüqah
faz referência à “sanguessuga” ou “sanguessuga de
cavalo”. Tal verme era muitas vezes associado a
vampiros demoníacos. Todavia, esse texto
provavelmente está se referindo a algum tipo de
parasita que se alimenta de sangue, sem uma relação
clara com seres demoníacos.74
parecidos com rostos humanos, cabelos semelhantes ao de mulheres, dentes
como os de leões e caudas semelhantes às dos escorpiões (Cf. Ap 9.1-11). Já
Ap 16.13 (ARC) fala sobre “três espíritos imundos, semelhantes a rãs”. Pelo
que podemos perceber, tais seres demoníacos eram muitas vezes vistos como
seres compostos (híbridos), constituídos dos aspectos assustadores dos
animais, incluindo, às vezes, rostos ou corpos humanos. Isto nos faz lembrar
dos seres mitológicos, tais como o Minotauro (monstro que era em parte
humano e em parte touro) ou os Centauros (que tinham a cabeça e o torso de
homem, mas que da cintura para baixo eram cavalos). Todavia, não podemos
afirmar com certeza se tais elementos da mitologia grega influenciaram a
narrativa bíblica do Apocalipse ou não.
74 OROPEZA, B. J. 99 Perguntas Sobre Anjos, Demônios e Batalha
Espiritual. [Tradução de Josué Ribeiro], São Paulo, Mundo Cristão, 2000,
p. 192.
75 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.355.
76 SHERBOK, Dan Cohn. A Concise Encyclopedia of Judaism. Oxford,
Oneworld Publications, 1998, p. 174.
77 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p. 139.
• □’’EHfó (serãpim) Nm 21.6,8; Is 14.29; Is 30.6. O
vocábulo serãpim significa “serpente abrasadora”
ou “serpente alada”.75 De acordo com a A Concise
Encyclopedia of Judaism, éerãp era uma criatura
sobrenatural descrita como um homem alado ou uma
figura semelhante a uma serpente.76 O The Anchor
Bible Dictionary inclui estes seres na categoria de
animais demoníacos.77 Já em Is 6.12 os serãpim são
65
CARLOS AUGUS + © VA1LA + + 1
membros de uma corte celestial (de anjos) e ficam ao
redor do trono divino.
• (tsiyyim) SI 72.9; 74.14; Is 13.21; 23.13;
34.14; Jr 50.39. O termo 2 (tsi), forma singular de
tsiyyim, parece também significar “demônio”
(habitante de um lugar deserto). Bauer afirma que
tais seres apresentam íntimas relações com o deserto
787980
78 HOLLADAY, William L. (ed.). Op.Cit., p.305.
79 BAUER, Johannes B. DBT, p.92.
80 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD, p. 139.
81 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p. 138.
79e seus habitantes.
• □'ink (’õhim) Is 13.21. Embora esse termo que
significa “criaturas uivantes” também seja incluído
OM
em uma categoria de animais demoníacos, contudo,
é mais provável que a expressão se refira a animais
tais como a hiena, e não a demônios em si.
• HÍIT nÍ23 (benõt ya'anah) Is 13.21. O termo
significa “avestruzes”, mas é mais provável que a
referência seja a uma espécie de coruja.81
• □’’"K (’iyyiní) Is 13.22. A palavra ’iyyim,“hienas”, é
mais um exemplo de animal (carnívoro) que,
provavelmente devido à sua característica como
animal de rapina e devido aos seus assustadores
uivos, acabou sendo demonizado.
• □’’Sfl (tannirrí) Is 13.22; 34.13. Os tannim,
“chacais”, são os cachorros selvagens das regiões
66
SA + ANÁS, DEffl®Nl®S E LEGIî
quentes do mundo antigo. Eles tinham o hábito de
caçar de forma secreta, em pequenos bandos, à noite.
Dentre os seus hábitos alimentares, destaca-se o fato
de serem comedores de carniça.82 Conhecendo tais
características, não é muito difícil imaginar porque
tal animal também foi demonizado.
82 TENNEY, Merril C. (ed.). ZPBD, p.43.
83 MCDANIEL, Ferris L. RHELOT, p.42.
84 DAVIDSON, Benjamin. AHCL, p.418.
85 UNTERMAN, Alan. DJLT, p. 152.
86 FREEDMAN, David Noel (ed.). Qp.C/í., p.535.
• k* (liwyatan) Jó 3.8; Jó 41.1; Is 27.1. Talvez,
entre os animais demoníacos, este e os dois
seguintes, sejam aqueles sobre os quais haja maior
consenso quanto ao fato de serem associados a
demônios. Entretanto, de forma mais particular, o
termo liwyãtãn, “leviatã”, significa “serpente”,83 ou
pode ser traduzido ainda como “monstro-marinho”,
“grande serpente” ou “crocodilo”.84 Seja como for, o
fato é que de acordo com as lendas e tradições
judaicas o Leviatã simboliza Samael, o príncipe do
mal, o qual será destruído nos tempos futuros.85
Caza’zel) Lv 16.8,10,26. De uma forma
geral, os estudiosos afirmam que o nome ‘âzã’zêl
pode significar “abismo profundo, destruição,
remoção completa” ou ainda “deus irado”.86 Todavia,
além destes significados, 'ãzã/zêl pode ser traduzido
também como “bode emissário” e ainda, conforme
entenderam algumas versões antigas (dentre as quais,
a LXX e a Vulgata), o “bode que se vai”,
considerando tal termo como derivado de duas
67
CARL®S AUGUS + ® VA1LA + +I
palavras hebraicas: fêz, “bode”, e 'ãzal, “virar-se”.87
Este vocábulo pode fazer referência a um espírito
maligno ou ao próprio diabo.88 A literatura judaica
descreve ‘ãzã/zêl como o chefe dos demônios, que
habita na terra, o qual foi banido para o deserto, e
também o vê como o líder dos anjos caídos que
encabeçaram a rebelião dos anjos de Gênesis 6 (1 En
IX.4; Apocalipse de Abraão 14.5-7).89
87 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.1099.
1,8 Idem, Ibidem.
89 Para estas referências, veja: PROENÇA, Eduardo de. (org.). Apócrifos e
Pseudo-Epigrafosda Bíblia. [Tradução de Claudio J. A. Rodrigues]. São
Paulo, Fonte Editorial Ltda., 2005. É bem propício citarmos aqui a opinião da
tradição judaica quanto ao significado do termo ‘ãzõ’zê/: “Destino do bode
expiatório que carregava os pecados de Israel para o deserto no Yom Kippur
(Lv 16). Dois bodes idênticos eram selecionados para o ritual. Um era
escolhido, por sorteio, como oferenda a Deus, e o outro era enviado para
Azazel, no deserto, para ser lançado de um penhasco. O sumo sacerdote
recitava para o povo uma confissão de pecados sobre a cabeça do bode
expiatório, e uma linha escarlate era enrolada, parte em volta de seus chifres,
parte em volta de uma rocha no topo do penhasco. Quando o bode caía, a
linha tomava-se branca, indicando que os pecados do povo haviam sido
perdoados [...]. Embora a palavra Azazel possa se referir a um lugar, ou ao
bode, também foi explicada como sendo o nome de um demônio. Os pecados
de Israel estariam, pois, sendo devolvidos à sua fonte de impureza. Os
cabalistas viam no bode um suborno às forças do mal, para que Satã não
acusasse Israel e, ao contrário, falasse em sua defesa [...].”. (UNTERMAN,
Alan. DJLT, p.38). Será que o episódio dos porcos que caem de um
despenhadeiro ao mar (Cf. Mt 8.30-32; Mc 5.11-13; Lc 8.32,33) não pode ter
sofrido alguma influência (por mais remota que seja) desta narrativa sobre o
bode Azazel, o qual era lançado de um penhasco e que era considerado a
origem de todo o pecado de acordo com a literatura judaica? Bem, esta é uma
questão a ser pensada.
(lilit) Is 34.14. Incluí Lilite na categoria de
animais demoníacos porque, na literatura judaica, ela
68
SA + ANÁS, DEm®NI©S Ê LÊGIé
é descrita como um pássaro.90 Aliás, para ser mais
exato, lilit é um demônio feminino (ou uma
“demônia”, se preferir) relacionado à vida sexual,
que pode fazer referência também ao “pesadelo” ou à
“coruja da floresta”.91 92 Já na literatura ugarítica, lilit
recebe sacrifícios e é invocada em um hino, no qual
ela é chamada de “a noiva de véu” e de “nossa
senhora”. Segundo o folclore judaico, Lilite foi a
primeira mulher de Adão e a rainha demônia da
noite. Trata-se de uma personagem sedutora que
possui cabelos compridos e que voa como uma
coruja noturna visando atacar aqueles que dormem
sozinhos, no intuito de ter fdhos demônios dos
homens por meio de suas poluções noturnas, para
roubar crianças e para fazer mal a bebês recém-
nascidos. Se não conseguir consumir crianças
humanas, ela come até mesmo sua própria prole
demoníaca.93 Porém, é possível que esta que era vista
90 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.It. [D-G],p.l39.
91 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p. 176.
92 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.788.
93 UNTERMAN, Alan. DJLT, p. 153. Unterman ainda fornece quatro formas
de proteger as crianças contra os ataques de Lilite: 1) pregar amuletos com as
palavras “Adão e Eva excluindo Lilite” nas paredes da casa em que uma
mulher se prepara para o nascimento de seu ftlho; 2) Colocar na porta do
quarto das crianças os nomes dos três anjos (Sanvi, Sansanvi e Samangelaf)
escritos sobre ela; 3) Cercar o quarto das crianças com um círculo de carvões
ardentes; e 4) Bater de leve três vezes no nariz da criança pronunciando uma
fórmula de proteção contra ela. (UNTERMAN, Alan. DJLT, p.154). É
curioso mencionar aqui que, tal como acontece aos porcos de Mc 5.13 que
veremos adiante, Lilite também é lançada ao mar (porém, pelo Senhor), local
este que acaba se tornando a sua casa, conforme uma antiga lenda judaica.
(Cf. GORION, M. J. Bin. As Lendas do Povo Judeu. [Tradução de Marianne
Amsdorff, J. Guinsburg e Evelina Holander], São Paulo, Editora Perspectiva
S.A., 1980, p.53). Para saber mais sobre Lilite, veja: HURWITZ, Siegmund.
Lilith: a primeira Eva. [Tradução de Daniel Costa], São Paulo, Fonte
69
CARL®S AUGUS + ® VA1LA + + I
como um demônio noturno fosse apenas um animal
noturno, tal como um morcego ou uma coruja.
d) Seres Associados ao Mundo Subterrâneo
• FIIB (mãwet) Jó 18.13; 28.22; 38.17; Is 28.15, 18; Jr
9.20 (9.21 em Português); Os 13.14; Hab 2.5. O
vocábulo mãwet pode significar “morte, moribundo,
Morte (personificada), o reino dos mortos”. A
própria característica trágica deste terrível
acontecimento da nossa existência (a morte), pode ter
sido a responsável por enquadrá-la em uma categoria
demoníaca.
94
• (debar beliya'al) SI 41.9 (41.8 em
Português). Este vocábulo que é traduzido como
“peste maligna” (ARA) pode ser situado também
dentro da classe de Fenômenos Naturais com Traços
Demoníacos (Veja item b, acima).
• HiH^a (melek ballãhôt) Jó 18.14. Tal
expressão significa “rei dos terrores”. Ela aparece na
fala de Bildade, um dos companheiros de Jó. A
expressão ocorre num contexto em que Bildade
descreve o fim dos homens perversos, dizendo que o
paradeiro final de tais homens será cair nas mãos do
rei dos terrores (cf. Jó 18.14, 21). Ao que tudo indica
Editorial, 2006; MEYERS, Carol, CRAVEN, Toni & KRAEMER, Ross S.
(eds.). Women in Scripture: a dictionary of named and unnamed women in
the Hebrew Bible, the Apocryphal / Deuterocanonical books, and the New
Testament. Grand Rapids / Cambridge, William B. Eerdmans Publishing
Company, 2000, p.531.
94 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.820.
70
SA + ANÁS, DEfflÔNieS E LEGIî
este ser enigmático pode ser uma referência à morte
(personificada aqui) ou a algum tipo de demônio que
atormentará o homem perverso em sua vida pós-
túmulo como castigo pelo tipo de vida que ele teve
aqui na terra.95
75 Pfeiffer e Harrison entendem que o “rei dos terrores” seja uma referência à
própria morte. (Cf. PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. WBC,
p.475.).
96 FREEDMAN, David Noel (ed.). ABD. Vol.II. [D-G], p. 139.
97 BAUER, Johannes B. DBT, p.93.
78 As sete pragas mencionadas em Dt 28.22 também são consideradas como
sete espíritos malignos. (Cf. FREEDMAN, David Noel (ed.). Op. Cit., p. 139).
Driver explica que as primeiras quatro pragas serviam para afetar os seres
humanos e as três últimas para prejudicar as colheitas. (Cf. DRIVER, S.R. A
Criticai and Exegetical Commentary on Deuteronomy, p.3O8). Os
“mensageiros de males” citados no SI 78.49 também são identificados como
demônios. (Cf. MAYHUE, Richard L. False Prophets and the Deceiving
Spirit. MSJ. Vol.4, n°2. Sun Valley, Master’s Seminary Press, 1993, p. 143).
• (r^pa’im) Jó 26.5; SI 88.11; Pr 2.18; 9.18; Is
14.9; 26.14,19. Nem todos os intérpretes situam os
r^pa’im, as “sombras da morte”, na categoria de
seres malignos ou demônios assombrosos. Contudo,
Bauer explica que devido à rejeição, no AT, do culto
aos antepassados, tais “espíritos dos mortos” (como
ele entende os T^pa’im) acabaram sendo
demonizados.
96
97
e) Termos Adicionais98
• (hets) SI 91.5; Jó 6.4. Esta “seta” ou “flecha”
provavelmente faz alusão a objetos pontiagudos que
eram lançados entre rivais durante algum combate ou
71
CARL©S AUGUS+® VAILA + +I
batalha, os quais acabaram adquirindo um aspecto
demoníaco devido aos males que causavam nas
pessoas atingidas. Ou talvez, tal palavra possa se
referir a algum ataque demoníaco desferido contra
alguém.
• (’èlilirrí) Lv 26.1; Is 19.3. O termo ’èlilim
significa “deuses” (ídolos), “zero” (algo sem valor),
“vãos”. Esse termo aparece na Bíblia para
descrever objetos inúteis de adoração, tais como
deuses e ídolos, por exemplo. Tal vocábulo, na LXX,
nos mostrará claramente que houve um processo de
demonização dos deuses pagãos.
99
• □’’ÉX (’ittiní) Is 19.3. Esse vocábulo, que está
relacionado a algum tipo de ocultismo, é um hapax
legomenon, ocorrendo somente em Is 19.3 no plural.
O termo significa “encantadores, mágicos,
adivinhadores”. A ligação dos ’ittim com questões
demonológicas já é, por si só, evidente.
100
• nÍDk Çôbôt) Is 8.19. A palavra ’ôbôt quer dizer
“espíritos dos mortos”. A ARC traduz o termo por
“espíritos familiares”. Os “espíritos familiares” e
adivinhos eram muito consultados naquela época,
quandoas pessoas experimentavam momentos de
declínio espiritual em sua fé em Yahweh. Assim
como os espiritualistas hoje, eles pretendiam manter
comunicação com os mortos. Tais ’ôbôt acabaram
101
102
99 LANDES, George M. SVBH, p.39.
100 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.56.
101 HOLLADAY, William L. (ed.). CHALOT, p.6.
102 PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. WBC, p.619.
72
SA+ANÁS, DÊrtlêNieS £ LEGIî
também por adquirir características demoníacas no
AT.
• ■’piH" (yidde'õni) 1 Sm 28.9; Is 19.3. Essa
expressão quer dizer “espírito familiar, mágico,
agoureiro, adivinho”.103 Todavia, tais significados
possuem uma conotação ambígua. Não está muito
claro se yidde'õni está descrevendo um espírito
familiar ou um ser humano, no caso, um adivinho.
103 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p.597.
Assim, nós concluímos este item que buscou identificar,
senão todos, pelo menos a maior parte dos seres e figuras
demoníacas ou que foram demonizadas no Antigo Testamento.
A seguir, trataremos da figura do demônio dentro de suas
concepções no período do Grego Clássico e na LXX, para que a
partir de então possamos tratar de seu significado no período
neotestamentário, uma vez que tais fontes literárias
influenciaram de forma decisiva o significado e a compreensão
do termo “demônio” no NT.
1.2.4. Os Demônios no Período do Grego Clássico
Antes de qualquer coisa, devemos lembrar que o período
do Grego Clássico compreende a época que vai de 900 a.C. até
cerca de 330 a.C. Neste período, havia vários termos que
estavam associados com aquela figura que, mais tarde, seria
conhecida como “demônio”, tal como concebemos o termo nos
dias de hoje. Nesta época, uma característica animista sublinhou
o conceito grego de õaípwv (daimõn). Tal traço persistiu entre
os gregos. No período histórico especialmente, ele foi
obviamente combatido pelos mais instruídos e principalmente
pelos círculos filosóficos dos quais nós tiramos quase todo o
nosso conhecimento de todos os níveis do pensamento grego.
73
CARL©S AUGUS + ® VAILA + + I
Porém, mesmo estes círculos têm sido orientados por idéias
populares e, assim, dão testemunho da opinião comum de que
houve um desenvolvimento gradual no significado e na
compreensão deste termo grego.104
104 KITTEL, Gerhard, (ed.). Theological Dictionary of the New Testament.
[Translated and Edited by Geoffrey W. Bromiley]. Vol.II. [A-H]. Grand
Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1999, p. 1.
105 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R„ Sargovám, in: IGEL, p. 171.
De início, podemos dizer que o termo ôaíp.wu é usado
tanto para se referir a divindades maiores quanto para
divindades menores, além de ser usado também em um sentido
filosófico. Por fim, opiniões animistas sublinham igualmente o
uso posterior do termo, o que exige de nós atenção redobrada
quanto a este assunto. Vejamos, a seguir, um breve histórico dos
principais termos referentes ao “demônio” no Grego Clássico:
a) O verbo Saipovám (daimonáõ), “estar sob o poder de
um ôaípwv (daímõny\ também é visto na expressão
Ôaipovâv KdKÔtç (daimonân kakôisf “sofrer devido
a uma divina visitação” e em Ésquilo (525-456 a.C.)
o termo significa “estar mergulhado em desgraça
enviada do céu”. No sentido absoluto de “estar
possuído, estar louco”, o verbo pode ser encontrado
nos escritos de Euripides (480-406 a.C.) e de
Xenofonte (401 a.C.).105
b) Já o termo Saipóviov (daimónion), que significa
“divindade” (Lat. numen) ou “divina operação”,
aparece em Heródoto (484-408 a.C.) e no já citado
Euripides. No sentido de “uma fatalidade” ocorre em
Demóstenes (385-322 a.C.). E como “um ser divino
inferior”, “um demônio”, é encontrado em Xenofonte
e em Platão (427-347 a.C.). No NT tal vocábulo irá
74
SA + ANÁS, DEm®NI©S E LEGIé
adquirir o significado de “demônio”, um “espírito
maligno”.106
106 Cf. Idem., Saipóviov, in: IGEL, p. 171.
107 Em sua Teogonia, o poeta grego Hesíodo também emprega os termos
ôaipóui (daimóni), “espírito” e Saípova 8iov (daímona díon), “nume
divino”. (Cf. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. [Estudo e Tradução
de Jaa Torrano]. São Paulo, Editora Iluminuras Ltda., 1995, pp. 142,160.).
108 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R.., ôaipóvtoç, in: IGEL, pp. 171,172.
c) Quanto à palavra Socipóvioç (daimónios), cujo
significado básico é “pertencer a um ôaípcov
(íZazmõn)”, constatamos que a mesma é encontrada
no vocativo Satpóvie (daimónie), Saipovíp
(daimoníê), principalmente na forma de repreensão
ou censura, significando, por exemplo: “seu infeliz!”,
“seu maldito!”, “senhora!”; e, de forma mais rara,
como forma de admiração: “nobre senhor!”, “homem
excelente!”, em Hesíodo (85 0 a.C.?). O termo
também ocorre exprimindo compaixão: Saipóvte
àvôpcôv (daimónie andrõn), “pobre infeliz!”, em
Heródoto. Em Aristófanes (444-380 a.C.) e
também em Platão aparece de uma forma irônica: cS
Satpcoví’ òcvSpov, (5 Saipcovi,’ co Socipóvi’ àvTpcórtcov (õ
daimõni andron, õ daimõni, õ daimóni antrõpõri),
“meu bom camarada! bom senhor!”. Além disso, em
Heródoto e no Grego Âtico, a palavra também
aparece referindo-se a “algo que procede da
divindade, enviado do céu, divino, miraculoso”.
Xenofonte fala sobre eí pf] ti ôatpóvtov ei (ei mê ti
daimónion ei), se isto não é “uma intervenção
divina”. Tucídides (423 a.C.) fala sobre xá Satpóvia
(tá daimónia), as “visitações do céu”. Já Platão
emprega o termo para se referir a pessoas, “divino,
107
108
75
CAR-LffiS AUGUS + ® VA1LA + +I
excelente”. E Aristófanes emprega o vocábulo para
significar “força divina”, “maravilhosamente”.109
Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R„ Satpóvtoç, in: /GEL, p. 172. Para
obter um quadro geral do significado do termo Satgóvtoç no Grego Clássico,
veja: FEYERABEND, Karl. Pocket Dictionary Classical Greek. [Classical
Greek-English], Berlin, Langenscheidt KG, S.d., p.86.
110 Quanto ao significado etimológico de Sa'tpcnv, o ponto de vista mais
comum é que seja derivado de daiomai, “dividir, repartir”. Ele pode estar
conectado com a ideia do deus dos mortos como aquele que divide os
cadáveres [talvez se referindo ao seu estado de decomposição]. (Cf.
BROWN, Colin, (ed.). NIDNTT. Vol.l. [A-F], [Translated by Lothar Coenen,
Erich Beyreuther and Hans Bietenhard]. Grand Rapids, Zondervan, 1986,
p.450). Já Foerster afirma que a etimologia da palavra é incerta. Segundo ele,
a raiz AAI [Soúopat] é fundamental, embora o sentido seja incerto. Contudo,
Foerster, citando W. Porzig, diz que talvez este esteja correto em sugerir para
o termo daimõn a ideia de “desfazer” ou “rasgar em pedaços”, e por essa
razão, ele concebe o Saípcnv como “aquele que consome o corpo”. A
conclusão de Foerster é que tal conceito pode certamente ser sustentado com
uma base animista. (Cf. FOERSTER, W. Satpoiv, in KITTEL, Gerhard,
(ed.). TDNT. Vol.II. [A- H], p.2).
d) Um dos significados do vocábulo ôaipcov
(daímõn) é “divindade”. Com este sentido ele
aparece, por exemplo, em Homero (Séc. IX ou VIII
a.C.), upòç Saipova (pròs daímona), “contra a
vontade da divindade” e em Heródoto (Séc. V a.C.),
tt]v |iEyíoTT|v Saipova f|yevrai (tên megísten
daímona hègentai), “[ísis] que eles consideram a
maior divindade tutelar”. O termo também aparece
para se referir a um “intermediário entre deuses e
homens”, “demônio” e “gênio”. Ele também aparece
assim, por exemplo, em Platão (Séc. IV a.C.), toíç 3è
pépeaiv éKáoTOtç 0eòv f| Saípovoc f] kocí two. ppcua
ánoSoTéov (toís dè méresin hekástois theòn ê
daímona ê kaí tina hêrõa apodotéon), “é preciso
110
76
SA+ANÁS, D£fflffiNI®S £ LEGIî
atribuir a cada parte um deus ou um gênio ou um
herói”.111 Um terceiro significado que é dado ao
termo é “alma de um morto tomada nume tutelar”.
Assim aparece em Ésquilo (Séc. V a.C.), tòv §è
Saípova Aapetov àYKaÀeioSe (tòn dè daímona
Dareion ankaleísthé), “invocai Dario, nosso nume
tutelar”. Em quarto lugar, o termo também chegou a
significar “gênio benéfico ou maléfico”, “protetor (de
um homem)”. Com tal sentido nós encontramos o
termoem Aristófanes (Séc. V a.C.), [tqSéKOTE ttioip
’ àya9oí> Saípovoç (mêdépote píoim agathoú
daimonos), “que jamais eu beba em honra de teu
protetor”. Em quinto lugar, o vocábulo também
significava “lote de cada um”, “sorte”, “destino”.
Mais uma vez citamos Aristófanes, Kocud Saípova
Koà owTvxiav (katà daímona kai syntychían),
“conforme o destino ou o acaso”. Finalmente, o
Além disso, em Eutífron, Platão narra o diálogo entre Eutífron e Sócrates,
sendo que num determinado momento, Eutífron fala para o grande filósofo
sobre: “esse daímõn (Soctpcov) que tu dizes ouvir a todo o momento”. (Cf.
1’LORIDO, Janice, (ed.). Platão. São Paulo, Editora Nova Cultural
Ltda., 1999, p.36). Na sua Apologia de Sócrates, I, Platão relata as seguintes
palavras de seu mestre: “[...] uma inspiração que me vem de um deus ou de
um gênio [daimõri] [...] é uma voz que se produz e, quando se produz, sempre
me desvia do que vou fazer, nunca me estimula. Ela é que me obstrui a
atividade política”. (Cf. FLORIDO, Janice, (ed.). Sócrates. [Tradução de
Enrico Corvisieri], Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1999, p.59). Já Xenofonte, em seus Ditos
<• Feitos Memoráveis de Sócrates, Livro I, diz que “corria a voz, ateada pelo
próprio Sócrates, de que o inspirava um demônio [daimõn]”, e ainda:
“Sócrates falava o que sentia, dizendo-se inspirado por um demônio
\daimõn\. E de acordo com as revelações desse demônio [daimõn]
aconselhava aos amigos o fazer certas coisas, o abster-se de outras. Só tinham
a ganhar os que ouviam”. (Cf. FLORIDO, Janice, (ed.). Sócrates. [Tradução
de Mirtes Coscodai], Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1999, pp.79,80).
77
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I
termo aparece no NT, fazendo referência à “força
sobrenatural do mal”, o “demônio”.112
Baseei todo o item no verbete Saípmv, in: MALHADAS, Daisi,
DEZOTTI, Maria Celeste Consol in & NEVES, Maria Helena de Moura,
(orgs.). DGP. Cotia, Ateliê Editorial, 2006, p. 194.
1 1 T
Cf. THAYER, Joseph Henry. Satpovi^opat, in: GELNT, p. 123.
114 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R., SaipovíÇopai, in: IGEL, p. 171. Para
obter uma interpretação tríplice sobre o significado da possessão demoníaca
no Antigo Israel, consulte: WILSON, Robert R. Profecia e Sociedade no
Antigo Israel. [Tradução de João Rezende Costa]. São Paulo, Targumim /
Paulus, 2006, pp.53-64. Já para uma ampla discussão sobre a possibilidade de
a possessão demoníaca ocorrer também em cristãos, veja: DICKASON, C.
Fred. Demom Possession & the Christian. Wheaton, Crossway Books, 1993,
pp.73-213 e também o artigo que escrevi a respeito, em: VAILATTI, Carlos
Augusto. Cristãos Genuínos Podem Ser Possuídos por Demônios? São
Paulo, Publicação do autor, 2010. Disponível na internet no seguinte
endereço eletrônico:
http://www.artigocientifico.tebas.kinghost.net/artigos/?mnu=l&smnu=5&arti
go=3320.
e) Por fim, passemos os nossos olhos brevemente sobre
o vocábulo SaipovrÇopai {daimonízomai),“estar sob
o poder de um demônio”. Ele ocorre com tal
significado em Filemon, o cômico (330 a.C.); e
referindo-se a alguém que é “insano” ou “demente”,
aparece em Plutarco (45-125 d.C.). Embora esta
concepção de daimonízomai em Plutarco esteja
situada em uma época bem posterior à do Período do
Grego Clássico (ele foi contemporâneo dos apóstolos
Paulo e João, por exemplo), contudo, é importante
citá-la aqui, pois se trata da opinião de um não-
cristão sobre o vocábulo. Esta opinião é interessante,
uma vez que na época do NT, daimonízomai já
significava “estar possuído por um demônio ou
espírito maligno”.
113
114
78
http://www.artigocientifico.tebas.kinghost.net/artigos/?mnu=l&smnu=5&arti
SA + ANÁS, DEmèNieS £ LEGIé
Bem, terminados estes breves, mas indispensáveis
apontamentos, a respeito dos termos ligados direta ou
mdiretamente à figura do “demônio” no período do Grego
('lássico, vejamos agora a figura dos demônios na LXX.
1.2.5. Os Demônios na LXX115
Baseio-me em: RAHLFS, Alfred. Septuaginta. Stuttgart, Deutsche
Bibelgesellschaft, 1979.
116 GRAYBILL, John B., Septuagint, in: TENNEY, Merril C. (ed.). ZPBD,
p.771.
Uma vez que a LXX foi escrita aproximadamente entre o
111 e o II Séculos a.C., logo, me parece ser bastante óbvio
mencioná-la depois do período do Grego Clássico, o qual a
antecede cronologicamente. Sabemos da tamanha influência que
a LXX exerceu sobre os escritores do NT, pois, quando o NT
cita o AT, como ele freqüentemente o faz, a forma da citação
muitas vezes segue a LXX.116
Ao analisarmos essa tradução grega do AT, incluindo os
livros apócrifos, nós poderemos encontrar mais de uma dezena
de referências feitas aos demônios. Então, vejamos tais
ocorrências seguindo a ordem seqüencial em que aparecem nos
livros na Bíblia.
Em Dt 32.17, a LXX traduz o hebraico □’’’W (shêdim)
pelo grego ÔccLgovíoiç (daimoníois), dizendo: “Sacrifícios
ofereceram aos demônios, não a Deus [...]”. (ARA).
No livro apócrifo de Tobias, nós podemos encontrar
referências ao termo “demônio”, pelo menos em duas ocasiões.
Em Tb 3.8 lemos sobre: Ao|ioôauç to irovripòv’ ôatpóvtov
(Asmodaus tòponêròn daimónion), isto é, “[...] Asmodeu, o pior
dos demônios”. (BJ)', e Tb 6.8 fala a respeito de um ôaLpóinov tj
TTVfôpa irouripóv (daimónion êpneüma ponêrón), ou seja, “[...]
um demônio ou [...] um espírito mau [...]”. (BJ). Este último
79
CARL©S AUGUS+® VAILA + +I
texto de Tobias nos será muito útil mais adiante, quando
fizermos nossas considerações acerca dos exorcismos, pois ele
está situado dentro do contexto de uma narrativa sobre uma
prática exorcística.
No SI 90.6 (LXX), [SI 91.6 em nossas versões], a
expressão ôctipovíou peoripppivoô (daimoníou mesêmbrinoú),
“do demônio do meio-dia”, traduz o hebraico “1W^
□ÇOjp (qeteb yãshüd tsãhârãyim), “destruição que ataca ao
meio-dia”. Embora já tenhamos citado esse verso anteriormente
em seu contexto original hebraico e já tenhamos dito, inclusive,
que tal “destruição que ataca ao meio-dia” possa se referir a um
demônio de um só olho, o que chama a nossa atenção aqui é o
fato da Septuaginta provavelmente estar demonizando um
fenômeno natural, isto é, a LXX demoniza as altas temperaturas
existentes nas regiões desérticas, em função do mal-estar que
estas deveríam causar até mesmo em seus habitantes mais
acostumados com esse tipo de clima.117
A meu ver, a expressão encontrada na LXX, “do demônio do meio-dia”,
pode ser uma referência demonizadora feita ao clima quente. Sabe-se que há
na Palestina uma corrente de ar seca e quente que procede do deserto da
Arábia (leste), chamada siroco, que é tão quente e seca que, quando
prevalece, queima toda a plantação. Além disso, no Vale do Jordão, ao
mesmo tempo em que os termômetros marcam no inverno em média 25°, no
verão eles podem marcar 45° à sombra. (Cf. RONIS, Osvaldo. Geografia
Bíblica: contribuição para o estudo de geografia histórica das terras
bíblicas. Rio de Janeiro, Juerp, 1999, p.61).
No SI 95.5 (LXX), [SI 96.5 em nossas versões],
encontramos escrito: õrt irávreç oí 9eoi rcòv èQvwu ôat|j.óma ò
ôè KÚpioç touç oúpavouç cttoÍt|O6v (hoti pántes hoi theoi tõn
ethnõn daimónia, ho dè kyrios toüs ouranoüs epoíèseri), “porque
todos os deuses dos povos [são] demônios, mas o Senhor fez os
céus”. Aqui, a LXX traduz o termo hebraico (’élilim),
“ídolos”, “vãos”, por õaipóuia {daimónia), “demônios”! Em
outras palavras, os judeus de Alexandria, ao traduzirem este
80
SA+ANÁS, DEffl®NI®S E LEGIî
trecho do Salmo para o grego, acabaram demonizando de uma
Ibrma geral todas as divindades pagãs, isto é, toda forma de
118politeísmo!
No SI 105.37 (LXX), [SI 106.37 em nossas versões em
português], o salmista declara: Kai. eOunav rouç uloòç aúrtôv'
mu ràç QuyaTépaç aÓTWV tolç ôaipovíoiç (kai éthysan toüs
huioüs autõn kai tàs thygatéras autõn tois daimoníois), “e
sacrificaram os seus filhos e as suas filhas aos demônios”. Aqui
a LXX traduz novamenteo vocábulo hebraico D* 1*W (shêdim)
pelo grego õaipoiúoiç (daimoníois).
118 Acredito serem oportunas aqui as palavras de Keel: “o homem do Antigo
Oriente Próximo, assim como o homem de qualquer época, tinha seus
próprios inimigos totalmente particulares [Ou seja, os inimigos e as suas
crenças eram demonizados]”. (Cf. KEEL, Othmar. La Iconografia dei
Antiguo Oriente y el Antiguo Testamento. \BCBO\. [Traducción de Andrés
Piquer], Madrid, Editorial Trotta, S.A.,2007, p.75).
1 19 A BJ segue o hebraico e traduz: “os bodes ali dançarão”. Já a ARC e a
ARA seguem o significado mais mitologizado do vocábulo seirim, trazendo:
“e os sátiros pularão ali”.
1"° Relembro aqui as palavras de Unger: “A tradução de seirim em ambas as
passagens [i.e., Is 13.21 e 34.14] por daimónia é conclusiva de que os judeus
de Alexandria consideraram-nos serem demônios”. (Cf. UNGER, Merril F.
Biblical Demonology, p.60).
Em Is 13.21, a LXX traduz o termo hebraico DTiltS
(se'irim) pelo grego ôaipóvia (daimónia), dizendo: Kai
oaipónia (km òp/fiooiuai. (kai daimónia ekeí orchêsontai), “e
os demônios ali dançarão”.119
Em Is 34.14, a LXX traduz mais uma vez o termo
hebraico (sã’ir), “bode” (forma singular de se’irim,
“bodes”) como ôatpóvLa (daimónia), “demônios”, na forma
plural.120
No livro do profeta Isaías nós ainda encontramos mais
duas referências aos demônios. A primeira delas, em Is 65.3, é
particularmente enigmática, pois o verso diz: “povo que de
81
CAR.L®S AUGUS+® VA1LA + +I
contínuo me irrita abertamente, sacrificando em jardins e
queimando incenso sobre altares de tijolos” (X7L4). É
interessante notar que tanto a ARA quanto a ARC concluem o
verso com a palavra “tijolos” (o que também faz a BJ, mas
utilizando a palavra “lajes” em vez de “tijolos”). Todavia, a
LXX estranhamente dá continuidade ao verso, acrescentando
ainda depois da palavra “tijolos”, a frase: tolç ôaqj.ovíoi,ç a ovk
eoTLv (tois daimoníois, hà ouk éstin), ou seja, “aos demônios,
que não são [existem]”! É curioso observar este acréscimo feito,
o qual simplesmente desmoraliza e rebaixa a figura dos
demônios, uma vez que eles “não são [existem]”. Já em Is 65.11,
a LXX utiliza a palavra ôaíjiovt (daímoni), “demônio”, como
tradução do vocábulo hebraico *13 (gad), “sorte”. Ao que tudo
indica, Gade aqui deve ser uma divindade da sorte, cujo
significado equivale ao da deusa grega Tique. O ritual descrito
no verso onze é o lectisterium, ou seja, um rito segundo o qual a
comida era espalhada diante da imagem da divindade.121
HAMILTON, Victor P„ gad, in: HARRIS, R. Laird (org.). DITAT,
p.246. A BJ traz uma nota referente a este verso, segundo a qual Gad é
apontado como o “deus arameu da fortuna”.
Por fim, queremos fazer duas últimas menções aos
demônios na LXX. Elas aparecem no livro apócrifo de Baruque.
Em Br 4.7, o autor faz os seguintes comentários referentes a
Israel: “pois havíeis exasperado a quem vos fez [Deus]
sacrificando a Saipovíoiç kcíl ou Qrcô (Jafrncwioís kai ou theõ)
“demônios e não a Deus” (BJ). E em Br 4.35, o autor fala sobre
a redenção de Jerusalém e a respeito do castigo que sobreviría
sobre os povos e cidades que a oprimiram. Sobre estes últimos o
texto diz: “pois um fogo lhe advirá da parte do Eterno por
longos dias, e ela será habitada virò ôaqiovícov tòv trÀfíova
Xpóvov (hypò daimoníõn tòn pleíõna chrónon) “por demônios
durante muito tempo” (BJ).
82
SA + ANÁS, DEfTl©NI®S E LEGIé
Assim, concluímos a nossa abordagem feita sobre os
demônios na LXX, e, em vista do que dissemos acima, cinco
observações são importantes. Primeira, a LXX sempre traduz o
vocábulo shêdim por daimoníois (cf. Dt 32.17; SI 105.37
| LXX]). Segunda, a LXX é a única a fazer uma referência a um
daimónion dentro de um contexto que descreve um ritual de
exorcismo nos apócrifos (cf. Tb 6.8). Terceira, a LXX parece
demonizar o sol quente da Palestina (cf. SI 90.6 [LXX];
compare com o SI 121.6a: “De dia não te molestará o sol [...]”, o
qual é seguido pelo v.7a, que diz: “O Senhor te guardará de todo
D"J (rãr) mar [+Í7M]). Quarta, a LXX demoniza claramente
todos os deuses pagãos (cf. SI 95.5 [LXX]; Is 65.11). E a quinta
e mais surpreendente de todas as observações, a LXX acrescenta
uma referência aos demônios, onde o texto hebraico
simplesmente não diz nada a esse respeito (Is 65.3)! Em suma,
a LXX, por meio de sua leitura e conseqüente tradução
tendenciosamente demonológicas, contribuiu signifícativamente
para a criação de uma base sólida intertestamentária para a fértil
crença demonológica que surgirá no período do NT.
A seguir, falaremos sobre a crença em demônios no I
século d.C.
1.2.6. Os Demônios no I Século d.C.
O I século d.C. é especialmente relevante para a nossa
pesquisa a respeito dos demônios, pois é dentro desse período
que os acontecimentos narrados em Mc 5.1-20 se descortinam.
Ou melhor ainda, é dentro desse período também que toda a
atividade exorcística de Jesus, como relatada principalmente nos
sinóticos, se desenvolve. Portanto, é absolutamente
indispensável que tracemos aqui o perfil da crença
demonológica desta época, a fim de que obtenhamos êxito em
nossa compreensão posterior da citada passagem marcana.
83
CARL©S AUGUS + ® VAILA + +I
E para que alcancemos o nosso objetivo, nos valeremos de
algumas citações demonológicas encontradas em duas
personagens da história antiga em particular: Filo, de Alexandria
e Flávio Josefo. Em seguida, veremos tais menções no próprio
Novo Testamento.
a) Filo, o Judeu (c. 20 a.C. - 42 d.C.)122
122 Filo foi um “filósofo judeu que misturou o pensamento
veterotestamentário com o estoicismo e o platonismo gregos. Muito da
primitiva pregação da Bíblia foi influenciada por sua obra”. (Cf.
ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã. [Tradução de
Darci Dusilek e Arsenio Firmino de Novaes Netto], Rio de Janeiro, Juerp,
1995, p.69).
123 PIKE, Edgar Royston. Diccionario de Religiones. [Adaptación de Elsa
Cecilia Frost], México, Fondo de Cultura Econômica, 2001, p. 190.
124 KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A- H], p.9.
Filo cria em um Deus que é Espírito puro e em uma
multidão de forças divinas, demônios ou anjos, os quais
cumprem as suas ordens.123 Todavia, esta conjunção indicativa
de incerteza, “ou” (anjos ou demônios), é que particularmente
nos interessa.
A demonologia de Filo é caracterizada pelo fato de que
ele considera todo o cosmos como tendo espíritos. Ele designa o
ar como a residência dos Saípoveç (daímones), “demônios”.
Para ele, anjos e demônios são seres do mesmo caráter, ainda
que somente alguns, à distância do que é terrestre, sejam usados
por Deus como mensageiros, enquanto que outros se tornam
homens de diferentes classes. Assim, Filo descansa na tradição
helenística, compartilhando sua terminologia como contrária à
bíblica e igualando anjos e demônios.124
Filo emprega o vocábulo Socípcov {daimõn), “demônio”,
em vários contextos. Mencionaremos aqui apenas alguns. Ele
utiliza o termo, por exemplo, com o significado de “destino” e
84
SA + ANÁS, DEfflfBNlffiS £ LEGIî
também usa a palavra para se referir a um “espírito protetor”, ou
àyaOon Saípovoç (agathoú daímonos), “do bom demônio”.
Além disso, o termo ainda era usado por ele para se referir a
“divindades menores”, Saípovocç ÈvoAíovç (daimonas enalíous),
“demônios dos mares”. Por fim, os manes de uma esposa
assassinada também são chamados ôaípoveç (daímones),
“demônios”.123 * 125
123 KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A-H], p.9. De acordo com
Antônio Geraldo da Cunha, os manes eram as “almas dos mortos, divindades
infernais que os romanos invocavam sobre as sepulturas”. A palavra é uma
substantivação da palavra latina manis, “bom, benévolo, favorável”. (Cf.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira S/A, 1982,
p.495).
126 CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e
Filosofia. [Tradução de João Marques Bentes].Vol. 2. [D-G]. São Paulo,
Editora Hagnos, 2001, p.766.
127 Baseio-me aqui principalmente no artigo “Sottpcov in Josephus and Philo”
de FOERSTER, W. in: KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A-H], p.10.
Em vista do que escrevemos nestas poucas linhas acima,
nos parece, de fato, que Filo procurou combinar a erudição
filosófica com a fé dos hebreus.126 No entanto, tal amálgama
resultou numa espécie de ambivalência demonológica, na qual
anjos e demônios são vistos como pares.
Vejamos, porém, o que outra importante personagem do
I século d.C., ou seja, Josefo, tem a nos dizer sobre o assunto.
b) Flávio Josefo (c. 37-100 d.C.)127
85
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I
Flávio Josefo,128 assim como Filo, também se move no
mundo dos costumes e das concepções helenísticas, mas com
uma impressionante exceção. Para ele, o adjetivo Satpóvioç
(daimónios) significa “terrível”. Ele fala, por exemplo, sobre um
cmpcjiopà Soapóvtoç (symphorà daimónios), “terrível acidente”
(terremoto), em Guerras Judaicas, I, 373. Somente em relação a
Saul, Josefo fala de um Ôatpóvtov Kveôpa {daimónion pneúma),
“espírito terrível”, em Antiguidades Judaicas VI, 214,
aproximando-se assim do costume dos Rabis da Palestina. Tò
Saipóviov (Tò daimónion) é usado geralmente para se referir ao
“divino” em Contra Ápio, II, 263 e Guerras Judaicas, 1, 69.
Aocípcov (Daimõn) pode ser usado para uma “desgraça
individual” em Vida, 402, e para “destino” em Guerras
Judaicas, I, 628. Aaípoveç (Daímones) são “espíritos dos
mortos”, e certamente dos santos mortos, em Guerras judaicas,
VI, 47 - um discurso de Tito a seus soldados. Eles são também
os espíritos dos mortos que procuram vingança, em
Antiguidades Judaicas, XIII, 317. A concepção romana dos
manes é emprestada, assim como em Filo com sua referência
aos SocíipovEç (daímones), de um só indivíduo, em Antiguidades
Judaicas, XIII, 416. Aaípcov (Daimõn) é usado para o espírito
protetor cm Antiguidades Judaicas, XVI, 210. Somente uma vez
Josefo chama os demônios de Satpoveç (daímones), em
Antiguidades Judaicas, VIII, 45; em outro lugar eles são
chamados sempre Satpóvta (daimónia). Josefo menciona
demônios no discurso da depressão de Saul, que ele atribui aos
Socipóviot (daimónia'), Antiguidades Judaicas, VI, 166,168 e
211. Josefo também os menciona em relação ao poder mágico
de Salomão, com o qual amarra os demônios que têm a sua
128 Flavio Josefo é o seu nome latino (Flavius Josephus). Seu verdadeiro
nome (judaico) era Yoseph ben Mattityahu. (Cf. FITTIPALDI, Mário, (ed.).
Seleções de Flávio Josefo. [Tradução de Vicente Pedroso]. São Paulo,
Edameris, 1974, p.7).
86
SA + ANÁS, DEFT1©NI©S E LEGIé
habitação nos homens e os expulsa, Antiguidades Judaicas,
VIII, 45-48.
Em todo caso, porém, Josefo é impressionantemente
coerente em chamar os espíritos malignos ôatpóvta (daimónia),
embora ele use ôatpcov (daímõn) no sentido helenístico.
c) O Novo Testamento
No NT o vocábulo Saípcov (daímõn) ocorre somente em
Mt 8.31, e no plural, SaípovEç (daímones), “demônios”, no
contexto da passagem sobre os endemoninhados gadarenos.129
Por outro lado, nós encontramos constantemente o termo
Ôoapóviov (daimónion), o qual é relatado sessenta e três vezes ao
todo na literatura neotestamentária.130 A grande maioria destas
referências (53) se encontra nos Evangelhos: Mateus (11),
Marcos (13), Lucas (23), João (6). As outras dez referências
estão distribuídas entre Atos (1), 1 Coríntios (4), 1 Timóteo (1),
Tiago (1) e Apocalipse (3).131 Esses dados são muito
importantes, pois através deles ficamos sabendo que pouco mais
de 84% das ocorrências do termo daimónion no NT estão
concentradas apenas nos Evangelhos. Enquanto que nos
Evangelhos parece haver uma verdadeira epidemia
demonológica generalizada (através das várias possessões
Aparentemente, os judeus evitaram usar o termo Saípcov porque ele
estava associado muito proximamente com os “elementos religiosos
positivos” dos pagãos. (Cf. SMITH, Charles R. The New Testament Doctrine
of Demons. GJ. Vol. 10, n°2. Winona Lake. Grace Theological Seminary
Press, 1969, p.26).
130 BIETENHARD, H„ Satpóvtov, in: BROWN, Colin, (ed.). NIDNTT.
Vol.l.[A-F], p.452.
131 Cf. Satpóvtov, in: BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.).
Diccionario Exegético del Nuevo Testamento. Vol.l. [cc-k], [Traducción de
Constantino Ruiz-Garrido]. Salamanca, Ediciones Slgueme, 2005, p.815.
87
CARL©S AUGUS+® VAILA + + I
demoníacas, exorcismos e curas de doenças atribuídas a
demônios), a qual se alastra por cada uma de suas páginas, no
restante do NT, contudo, tal epidemia é “minimizada” e
“controlada”. Isto quer dizer que, se quisermos compreender a
demonologia neotestamentária de forma mais profunda, temos
que nos deter no estudo dos Evangelhos, onde a proliferação
demoníaca ocorre em larga escala.
Além disso, é relevante mencionar que em todo o Novo
Testamento se fala do demônio, sob os seus mais variados
nomes, cerca de 511 vezes.132 Isto nos dá uma idéia da
importância que o tema tem para o NT, contrastando claramente
com o que ocorre no AT. Sendo assim, simplesmente dizer que
o assunto “demônio” é algo periférico na fé cristã não é correto.
Seria mais adequado dizer que não é o tema central, mas uma
verdade, mesmo não sendo central, pode ser essencial.133
132 x t r f .SAYES, José Antônio. El Demonio, Realidad o Mito? Madrid, San
Pablo, 1997, p.48.
I 33 Idem, Ibidem, p. 168.
134 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k],
p.816.
Além do termo Saiqóviov {daimónion), encontramos
também algumas expressões sinônimas, dentre as quais
destacamos uveuga {pneúma), “espírito” (especialmente,
riveopa àKá0apxov [pneúma akátharton], “espírito impuro” e
nvebpa Ttoi/qpóv [pneúma ponerón], “espírito maligno”) e ainda
áyyeXoç (toô ôiocpóÀoü), ángelos {toü diahólou), “anjo (do
diabo)” que ocorre com menor freqüência.134 *
Diferentemente do que vimos até agora, aos poucos,
vemos delineada uma nova figura do demônio no Novo
Testamento, bem distinta daquela desenhada, por exemplo,
durante o Período do Grego Clássico. No NT, o demônio já
adquire um caráter essencialmente maligno. Aliás, como bem
escreveu Van Der Loos: “Gradualmente o abismo entre
88
SA + ANÁS, DEm©Nl©S E LEGIî
divindade e demônio foi-se alargando. O Judaísmo, o
Cristianismo e o Islã só vêem no demônio uma força inimiga de
Deus e do homem. Da mesma maneira que o anjo, como espírito
bom, pertence ao reino da luz, ao Reino de Deus; o demônio
'135 pertence ao reino da escuridão, ao reino de Satanás”.
Não é nossa intenção fazer aqui um inventário detalhado
de todas as passagens neotestamentárias que fazem alusão ao(s)
demônio(s), contudo, iremos vê-las, como um todo, em blocos,
como segue: 1) Nos Sinóticos e em Atos; 2) No Corpus
Paulinum; 3) Nos Escritos Joaninos; e 4) Nas Epístolas Gerais
(excluindo-se as três epístolas de João).
1) Nos Sinóticos e em Atos *137
LOOS, H. Van Der. 7%e Miracles of Jesus, in: Novum Testamentum,
Suplementos, Tomo IX, Leiden, Brill, 1965, p. 341. Apud: QUEVEDO,
Oscar G. Antes que os Demônios Voltem. São Paulo, Edições Loyola, 1997,
pp. 266,267.
Para obter outras informações sobre a atividade demoníaca no NT, veja:
RUANO, Argimiro. La Carne de Jesús: el mistério de su encarnación.
Burgos, Editorial Monte Carmelo, 2003, pp. 163-167.
137 Incluí Atos neste bloco pelo fato de sua autoria ser tradicionalmente
atribuída a Lucas. Sendo assim, como Atos é visto como o segundo volume
da obra “Lucas-Atos”, é natural inserí-lo neste conjunto.
Tais itens são baseados parcialmente no verbete Satpóvtov, in: BALZ,
Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.j. DENT. Vol.l. [a- k], pp.817-822.
1 39 Como declarou Michael Brown com muita propriedade: “O ministério de
cura de Jesus está intrinsecamente ligado ao ministério de libertação dos
89
A partir de uma leitura dos Evangelhos sinóticos, nós
podemos fazer, dentre outras, as seguintes constatações
demonológicas em seu caráter geral:138 1) Os inúmeros
testemunhossobre o Satpóvtov (daimónion) se encontram, em
grande parte, nos relatos acerca das curas miraculosas realizadas
por Jesus (p.ex., Mc 1.23-28; 3. 23-27; 9.14-29; Lc 4. 40,41; Mt
9.32-34);139 2) O termo Satpóvtov (daimónion) é empregado no
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + +1
lugar de Tiveôqa (pneúma) algumas vezes e, mais
freqüentemente, no lugar de nvevpa àKá0apxov (pneúma
akáthartori) (cf. Mc 7.25,30; Lc 10. 17, 20); 3) É inquestionável
o fato de que o Jesus histórico atuou como médico e exorcista
itinerante. Assim como seus contemporâneos, ele atribuía a
demônios a causa das enfermidades do corpo e da mente. Logo,
a cura consiste na expulsão do(s) intruso(s) (cf. Mt 12.43-45;
Mc 7.26; Lc 11.14); 4) Através dos métodos exorcísticos da
medicina antiga, Jesus cura diversos tipos de enfermidades (Lc
7.21; Mc 9.14-29; Lc 13.10-17); 5) As expulsões de demônios e
as curas de várias doenças são vistas como a mesma coisa para o
homem daquela época (Mc 1.32-34); 6) Embora apresentem, em
geral, uma certa resistência no início, os demônios têm que
ceder diante do comando de expulsão ordenado por Jesus (Mc
1.24s; Mc 5.7); 7) As esperanças escatológicas do judaísmo
antigo se cumprem na vitória de Jesus sobre os demônios (Mc
3.27; Lc 13.32; Mc 9.38-40); 8) Jesus reconhece a legitimidade
dos exorcistas judeus e chega até mesmo a permitir que um
estranho expulse demônios em seu nome (Mt 12.27; Lc 9.49s);
9) O cristianismo primitivo atribui seus exorcismos de efeito
curativo à capacidade concedida por Jesus aos seus discípulos
para expulsar demônios (Mt 10.1; Mc 13.14,15); 10) Os
demônios são concebidos como seres pessoais (Mc 1.24,34;
3.11; 5.7); 11) Certos comportamentos anormais são atribuídos à
ação direta dos demônios sobre o indivíduo possuído (Mc 1.26;
Lc 8.29); 12) Nos Evangelhos sinóticos é comum encontrar a
confissão de fé na vitória escatológica de Jesus sobre o universo
demoníaco (Mt 25.41; 28.18 etc).
Já o livro de Atos emprega uma única vez o vocábulo
Satpóviov (daimónion), no episódio em que os atenienses que
demônios, e as doenças estão freqüentemente associadas com o poder
satânico nos Evangelhos”. (Cf. BROWN, Michael L. Israel 's Divine Healer.
Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1995, p.227).
90
SA+ANÁS, DEméNieS Ê LEGIî
escutam a Paulo e o vêem como um kocijocyyeáeòç140
(katangeleüs) “pregador” de estranhos Saipovícov (daimoníõrí)
“deuses” ou “divindades” (At 17.18). Nesta passagem, o termo
aparece sem conotações negativas (cf., porém, 1 Co 10.20s),
referindo-se a uma divindade pagã. Aliás, quando Paulo chama
aos atenienses SeioiôaipovéaTspot (deisidaimonésteroí), ele
está, na realidade, elogiando sua “religiosidade” (At 17.22; cf.
At 25.19, SeioiSatpovia [deisidaimonía\, “religião”).
|
Essa expressão é um hapax legomenon, ocorrendo somente aqui em todo
o Novo Testamento.
141 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k],
p.822.
Estes itens acima catalogados, embora não reflitam todas
as nuanças demonológicas encontradas nos sinóticos e em Atos,
nos dão, contudo, a dimensão da importância da figura do
demônio nestes livros.
2) No Corpus Paulinum
O apóstolo Paulo emprega o termo Satpóvtov
(daimónion) em apenas uma única passagem, mas o menciona
quatro vezes (cf. 1 Co 10.20,21). Para Paulo não é apenas o
gentil que oferece sacrifícios aos ôatpoviotç (daimoníois) (1 Co
10.20), ou seja, aos seus deuses (cf. Dt 32.17), mas também o
cristão que participa dos banquetes cultuais pagãos, se entrega à
esfera dos Satpovícov (daimoníõn), isto é, aos deuses dos gentios
(1 Co 10.21).141
Segundo Bultmann, algumas expressões encontradas nos
escritos paulinos, tais como, “principados, potestades,
dominações, príncipes deste mundo, deus deste século etc” (Rm
8.38; Cl 1.16; 1 Co 2.6; 2 Co 4.4) são termos mitológicos
derivados do gnosticismo. E ele ainda completa, dizendo que
91
CARL©S AUGUS + ffi VAILA + +I
não há razão para duvidar que os cristãos primitivos
reconheceram estas forças como seres demoníacos reais.142
BULTMANN, Rudolf. Primitive Christianity: in its contemporary
setting. [Translated by R. H. Fuller], New York, Living Age Books, 1959,
p.190. Segundo Richardson, “os pregadores cristãos encontraram no mundo
grego a crença numa variedade de legómenoi theói, os assim chamados
deuses, que Paulo [...] considerava daimónia (1 Co 8.5; 10.19-21). Mas além
desses que eram adorados nos cultos pagãos, havia também espíritos
elementares que personificavam forças da natureza, verdadeiros
governadores do kósmos”. (Cf. RICHARDSON, Alan. Introdução à Teologia
do Novo Testamento. [Tradução de Jaci Correia Maraschin], São Paulo, Aste,
1966, p.211,212).
143 É curioso notar que enquanto nos sinóticos os relatos sobre exorcismos
superabundant em João não há referência a um único caso de exorcismo.
Contudo, tal “silêncio exorcístico joanino” não quer dizer que João não
92
Contudo, Paulo segue dizendo que os demônios das
crenças populares judaicas são os áyyEÀoi (ángeloí) contra
concupiscência (cf. Gn 6.2) dos quais o apóstolo pede que as
mulheres cubram sua cabeça como sinal de e^oooía (eksousíd),
“poder” (1 Co 11.10). Um áyyEXoq (ángelos) de Satanás
atormenta a Paulo com uma enfermidade (2 Co 12.7). O próprio
Satanás destruirá a quem vive em incesto (1 Co 5.5; cf. 1 Tm
1.20). Ainda que os demônios continuem exercendo sua obra de
sedução (Ef 2.2), eles devem continuar sendo combatidos pelos
cristãos (Ef 6.12) e o temor aos demônios desaparece através da
confiança no amor de Deus em Cristo Jesus (Rm 8.38s). Além
disso, desde agora Deus tem despojado os demônios
radicalmente de seu poder, por meio da morte, ressurreição e
exaltação de Jesus e os tem submetido ao poder do Seu Filho (1
Co 15.24-28; F1 2.9s; Cl 2.10,15; cf. Ef 1.20-22; 4.8-10; Hb
2.8,14). O batismo nos faz participantes do senhorio de Jesus
sobre os demônios (Cl 2.10-15; cf. Rm 6.3-11). Por fim, os
cristãos se assentarão algum dia no divino tribunal para julgar
aos “anjos”, ou seja, aos demônios (1 Co 6.3).
3) Nos Escritos Joaninos143
SA + ANÁS, DErtlêNieS E LEGIé
No quarto Evangelho, Jesus é acusado freqüentemente
pelos judeus de estar possuído por um ôaipóviov (daimónion)
(cf. Jo 7.20; 8.48,52; 10.20). Em outras palavras, ele mesmo é
“demonizado” pelos seus próprios conterrâneos, pelo fato de seu
ensino e suas obras entrarem em choque frontal contra a
ideologia judaica, representada, sobretudo, pelos fariseus e
saduceus. Aliás, embora os relatos sobre exorcismos estejam
estranhamente ausentes no evangelho de João, esse autor,
porém, é o único dos evangelistas a descrever uma “possessão
demoníaca” (ou melhor dizendo, “possessão satânica”), a qual é
realizada pelo próprio Zaxavâç (Satanás) em um indivíduo,
mais precisamente falando, em Judas (Jo 13.2, 26,27). O texto
parece sugerir uma espécie de possessão que ocorre em dois
estágios durante a última ceia: primeiro, o diabo lança
[ftepÀ.r|KÓi:og (beblekotos), “tendo lançado”] no coração de Judas
que traia a Jesus (v.2); e, segundo, após a aceitação de tal
sugestão diabólica, Satanás então EÍo-qÀôev (eisêlthen), “entrou”
nele (v.27).144 Além disso, é curioso notar o uso dos termos
StápoXoç (v.2) e Soccavâç (v.27), os quais são utilizados de
forma intercambiável para se referir ao mesmo ser que possui o
corpo de Judas Iscariotes, isto é, o Maligno.145
levasse a sério tais casos de possessão demoníaca, os quais eram tão comuns
em seu tempo.
144 C.H. Dodd sugere que João, utilizando a narrativa de Marcos, pode ter
transferido o aspecto interior e espiritual da situação imediatamente anterior à
traição de Judas (como descrita em Marcos), para o contexto dos discursos da
Última Ceia. (Cf. DODD, C.H. A Interpretação do Quarto Evangelho.
[Tradução de José Raimundo Vidigal], São Paulo, Teológica / Paulus, 2003,
p.526).
145
Este caso sui generis no qual o próprio Satanás possui o corpo de um
homem ocorre num momento crucial da história, há apenas algunsdias da
crucificação de Jesus. É intrigante notar que Satanás, no papel de “chefe dos
demônios”, não delega a possessão de Judas a algum demônio subalterno, o
que pode dar a entender que ele não queria correr o menor risco de fracassar
em seu plano de conduzir Jesus ao Calvário. A magnitude da situação exigia
93
CAR.LSS AUGUS + ffi VAILA + +I
Na primeira epístola joanina, os cristãos são atacados por
entidades demoníacas, cuja atuação consiste em ensinar uma
falsa doutrina, sobretudo, cristológica (1 Jo 4.1-3).* * * * * * * * * * * 146 João ainda
afirma que contra o espírito do erro (1 Jo 4.6) e do Anticristo (1
Jo 4.3) se encontra o Espírito da verdade (1 Jo 4.6). Entretanto,
deve-se tomar muito cuidado com os nvevpaixx (pneúmata),
“espíritos” (1 Jo 4.1).
perícia na sua execução. Sendo assim, o próprio “patrão” executa o serviço,
sem delegá-lo a nenhum “operário”. Falhas seriam inadmissíveis neste
maligno plano de entregar Jesus para ser crucificado. Portanto, quem melhor
poderia realizar tal intento, senão o próprio Satanás? Todavia, o Maligno
pensou erroneamente que, ao entregar Jesus para ser crucificado (tarefa que
seria realizada por intermédio de Judas), estaria frustrando o plano redentor
de Deus para a humanidade. Ele mal sabia que, ao fazê-lo, estaria justamente
contribuindo para o cumprimento do plano redentor de Deus. (Note ainda
que, segundo o mesmo João, não é Judas e nem tampouco Satanás quem
entrega Jesus para ser crucificado, mas é o próprio Jesus quem se auto-
entrega, cf. Jo 10.17,18)!
146 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k],
p.823.
147 Novamente, baseio-me no verbete Ôatpóvtov, in: BALZ, Horst &
SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [a-k],p.823,824.
148 Idem, Ibidem, p.823.
No que se refere ao Apocalipse,147 148 148 este denomina
ôaqióvux (daimónia) aos deuses pagãos (Ap 9.20) e identifica a
divindade-mor grega, Zeus, com Satanás (Ap 2.13). Das bocas
da trindade demoníaca (Ap 16.13), isto é, do dragão (Satanás, cf.
Ap 12), da besta e do falso profeta, saem três espíritos imundos
metamorfoseados em rãs. Trata-se dos Kveúpaia Saipovicov
(pneúmata daimoníõn), “espíritos de demônios” que seduzem os
reis terrenos para que venham para a guerra escatológica (Ap
16.14). Depois da derrota da Babilônia (Roma), os Saqiovia e
os espíritos imundos habitarão em lugares em ruínas (Ap 18.2).
Neste último caso, vemos que crenças populares judaicas se
associam com as esperanças de uma apocalíptica cristã anti-
148romana.
94
SA + ANÁS, DEfflffiNI®S E LEGIé
Aliás, deve-se dizer que muitas passagens do Apocalipse
são entendidas somente no âmbito da demonologia judaica.
Prova disso é que a queda dos anjos e das estrelas (cf. Gn 6.1-4;
I En VI. 1-4) trazem os demônios à terra (Ap 8.10; 9.1; 12.4,9).
O dragão, que de acordo com Ap 12.9 se identifica com a
serpente, o diabo e Satanás, é, juntamente com seu séquito
angelical, o oponente de Miguel e de seus anjos (Ap 12.7-9). O
lugar de castigo dos demônios presos é o ápwaoç (abyssos),
“abismo” (Ap 9.1; 20.1). O príncipe dos demônios é
Abadom/Apoliom (Ap 9.11). Além disso, entre as figuras
demoníacas acham-se os cavaleiros apocalípticos (Ap 6.1-8),
que possivelmente devem ser entendidos como seres que trazem
guerra, revolução, fome e pestilência (Ap 9.1-11).149 Porém, tal
como o diabo, os demônios serão destinados algum dia para o
fogo eterno (Ap 19.20; 20.10-14).
Nogueira fala sobre “os demônios-soldados de Apocalipse 9”. (Cf.
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Experiência Religiosa e Critica
Social no Cristianismo Primitivo. São Paulo, Paulinas, 2003, pp.221-238).
4) Nas Epístolas Gerais
Por fim, as chamadas epístolas gerais (excluindo-se as
epístolas de João, cf. acima) também abordam o antigo tema
mitológico judaico (cf. Gn 6.1-4) da queda e prisão dos anjos
que outrora foram desobedientes (1 Pd 3.19; 2 Pd 2.4; Jd 6,9).
Vemos nesses escritos que os Saipóvia (daimónia) crêem em
Deus e tremem diante dele (Tg 2.19), bem como, notamos
também que através da ressurreição e ascensão de Jesus, os
poderes espirituais bons e malignos se encontram a ele
subordinados (1 Pd 3.21 s; cf. Ef 1.20s).
Assim, concluímos este apanhado geral sobre os
demônios no I século A.D., tomando como base os relatos de
Filo, Josefo e o próprio NT. A seguir, consideraremos os
exorcismos, sem o que não poderemos compreender
95
CARLOS AUGUS + ® VAILA + +I
adequadamente a figura de Jesus em seu papel de exorcista e,
principalmente, não poderemos interpretar apropriadamente o
mais famoso caso de exorcismo do NT, situado em Mc 5.1-20 e
paralelos.
1.3. Considerações Sobre Exorcismos
Nosso objetivo nesse item é analisar a prática exorcística
em seus mais variados contextos a fim de que, como dissemos
acima, possamos ter um retrato adequado da figura de Jesus
dentro de seu papel taumatúrgico como exorcista e também para
que possamos situar a perícope que trata da cura do
endemoninhado geraseno (Mc 5.1-20 e paralelos) dentro de seu
pano de fundo apropriado. Para isso, consideraremos como
testemunhas desses vários relatos de exorcismos: o Antigo
Testamento (incluindo os Apócrifos); os Manuscritos do Mar
Morto (II Séc. a.C. ao Séc. I A.D.); a Tradição Judaica; o
Contexto Pagão; os Papiros Mágicos Gregos (PMG) (II Séc.
a.C. ao V Séc. A.D.); e, por fim, o próprio Jesus, como figura
paradigmática exorcistica.150
Para obter informações sobre relatos de exorcismos em tempos mais
recentes, como, por exemplo, entre os séculos XVI e XVIII, confira o item
exorcism, em: MUCHEMBLED, Robert. A History of the Devil: from Middle
Ages to the Present. [Translated by Jean Birrell], Cambridge, Polity Press,
2003, p.337.
151 HARRIS, R. Laird (org.). DITAT, p. 134.
1.3.1. Definindo o Termo
Ao que tudo indica, não há um termo específico no
hebraico bíblico que possa ser usado com o significado de
“exorcismo”. Contudo, existe o vocábulo (’ãshap) que
além de significar “astrólogo, encantador e necromate”, por
exemplo, significa também “exorcista”.151 Todas as ocorrências
deste termo encontram-se em Daniel (1.20; 2.2 [em hebraico];
96
SA+ANÁS, DEm©N!©S E LEGIî
2.10,27; 4.4; 5. 7,11,15 [em aramaico]) e, além do mais, é
provável que o termo seja um empréstimo da Babilônia,
associado ao termo assírio shiptu, “conjuração”.152 153 Contudo,
existe outro termo que também aparece em Daniel (2.27; 4.4;
5.7,11), o vocábulo "IT2 (gãzer), o qual, além de significar
“adivinho”, também adquiriu o significado posterior de
“exorcista” no texto de Qumrã. Aliás, como a raiz da qual este
termo é derivado significa “decretar”, um gãzer é, portanto,
aquele que exorciza decretando a expulsão do demônio. ’ Já no
grego, nos deparamos com o verbo E^opKÍÇco (eksorkízo), que no
grego ático significava “enviar para fora da fronteira, banir”.154
No NT, o verbo eksorkízõ significa basicamente “esconjurar” e
o substantivo è^opKtavriç (eksorkistês), refere-se ao “que
expulsa os espíritos”, “exorcista” (cf. At 19.13).155
Idem, Ibidem.
153 VERMES, Geza. Jesús, el Judio. [Traducción de José Manuel Alvarez
Florez y Ângela Pérez], Barcelona, Muchnik Editores, S.A., 1984, p.73. Veja
também: GESENIUS, H. W. F. GHCLOT, pp. 166,167.
154 Cf. LIDDELL, H. G. & SCOTT, R., e^opidÇco, in: IGEL, p.276.
155 RUSCONI, Carlo. DGNT, p.179.
156 Guignebert também vê um fragmento de uma fórmula de exorcismo no
texto aramaico de Jr 10.11, o qual está situado no meio do texto hebraico.
Esse autor traduz assim esse verso: “Eis aqui como lhes falarei: os deuses que
1.3.2. Exorcismos no AT e nos Apócrifos
Já dissemos anteriormente que tanto os demônios como
também os próprios exorcismos foram, ambos, “exorcizados”
das páginas do AT e banidos para bem longe. Dissemos ainda
que este fato é bastante óbvio, pois, não havendo demônios,
conseqüentemente não haverá também exorcismos a serem
efetuados. Portanto, os dois únicos relatos sobre exorcismos, um
encontrado em 1 Samuel e o outro encontrado no livro apócrifo
deTobias, nos são particularmente preciosos.156 Devido, então,
97
CARLGS AUGUS+® VAILA + + I
a toda essa enorme “lacuna exorcística” - se é que podemos
assim denominar essa estranha ausência de exorcismos no AT -
parece-nos apropriado nos determos um pouco mais nestas
poucas passagens bíblicas que tratam do assunto.
a) Davi Exorciza o Espírito Maligno que Atormenta
Saul
No contexto de 1 Sm 16.14-23, mais precisamente no
verso 23, lemos o seguinte: “E sucedia que, quando o espírito
maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a
harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor,
e o espírito maligno se retirava dele” (ARA).
É interessante observar que 1 Sm 16.14 fala sobre o
niTT’ FIKE (rüah-rã'â mê’êt yehwãh), “espírito
maligno, da parte do Senhor”. Aqui, a preposição mê’êt
significa “proveniente de, da parte de, de”.157 Tal significado
nos traz novamente à memória o fato de que a religião
monoteísta israelita foi a grande responsável por este conceito
ambivalente de Deus. Ou seja, se há um único Deus, então tanto
o bem quanto o mal (neste caso, o “espírito maligno”) só podem
advir dele. O texto diz ainda que o espírito maligno vinha
(’el), “sobre, para dentro de” Saul (v.23). A LXX traz aqui a
preposição feni (epi) que conserva basicamente os mesmos
significados. Tais preposições são indicativas de que Saul estava
não têm feito o céu e a terra serão exterminados da terra e de debaixo do
céu”. (Cf. GUIGNEBERT, Charles. El Mundo Judio Hacia Los Tiempos de
Jesus. [Tradução de Vicente Clavel], México, Unión Tipográfica Editorial
Hispano-Americana, 1959, p.99).
157 DAVIDSON, Benjamin. AHCL, p.54.
98
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî
possuído pelo espírito maligno.158 Contudo, após Davi dedilhar
a harpa (provavelmente tocando e cantando algum salmo), a
I ,XX diz que o espírito maligno à^íaimo àrc’ abron (aphistato
ap’ autoü), isto é, “afastava-se dele”, ou ainda, “deixava de
ocupá-lo”. Tal frase indica claramente a libertação demoníaca de
Saul.
158 Segundo Klaus Berger, “no judaísmo da época do Novo Testamento, as
pessoas buscam orientação na experiência de Davi, que expelira o demônio
de Saul com um salmo; elas passam a interpretar todos os salmos de Davi
neste mesmo sentido [i.e., entendendo os inimigos relatados em muitos
salmos como poderes invisíveis]. Nos novos salmos e hinos compostos na
época, os autores concebem os inimigos igualmente como poderes
espirituais”. (Cf BERGER, Klaus. È Possível Acreditar em Milagres?
[Tradução de Luis Henrique Dreher]. São Paulo, Paulinas, 2004, pp. 189,190).
Porém, devemos nos lembrar de que em uma outra
ocasião, Davi tentou “exorcizar” novamente o espírito maligno
que atormentava a Saul, mas desta vez não obteve êxito (cf. 1
Sm 18.10,11). Tal fracasso particular de Davi encontra eco nas
páginas do Novo Testamento, onde lemos sobre o fracasso
coletivo dos discípulos de Jesus em sua tentativa de exorcizar
um demônio (cf. Mt 17.14-21; Mc 9.14-29; Lc 9.37-43a).
Por incrível que pareça, esta mesma escassez de narrativas
sobre exorcismos no AT, também se repete nos livros apócrifos.
Entre os apócrifos, o único relato de um exorcismo ocorre no
livro de Tobias (escrito aproximadamente entre 225 e 175 a.C.),
em Tb 6.2-9; 8.1-3. Portanto, devido à raridade de tais narrativas
exorcísticas nas páginas dos apócrifos, e, devido também à
importância destas para a formação, consolidação e perpetuação
das crenças e práticas exorcísticas neotestamentárias, resolvi
transcrever na íntegra tais passagens com o objetivo de analisá-
las um pouco mais a fundo.
99
CARL®S AUGUS + ® VAILA + +I
b) Tobias e a Sua Iniciação no Conhecimento
Exorcístico
2Partiu, pois, Tobias em companhia do anjo, e o cão os
seguia. Caminharam juntos e aconteceu que, numa noite,
acamparam à margem do rio Tigre. 3Tobias desceu ao rio para
lavar os pés, quando saltou da água um grande peixe, que queria
devorar-lhe o pé. Ele gritou 4c o anjo lhe disse: “Agarra o peixe
c segura-o firme!”. Tobias dominou o peixe c o arrastou para a
terra. 5E o anjo acrescentou: “Abre o peixe, tira-lhe o fcl, o
coração e o fígado c guarda-os; joga fora os intestinos, pois o
fel, o coração e o fígado são remédios úteis."16O jovem abriu o
peixe, tirou-lhe o fel, o coração c o fígado. Assou uma parte do
peixe e comeu-a, c salgou o resto. Depois continuaram juntos a
caminhada, até chegarem perto da Média. 7Então Tobias
perguntou ao anjo: "Azarias, meu irmão, que remédio há no
coração, no fígado e no fel do peixe? ” * Respondeu ele: "Se se
queima o coração ou o fígado do peixe diante de um homem ou
de uma mulher atormentados por um demônio ou por um
espírito mau, a fumaça afugenta todo o mal e o faz desaparecer
para sempre. 9Quanto ao fel, untando com ele os olhos de um
homem que tem manchas brancas, e soprando sobre as
manchas, ele fica curado.” (Tb 6.2-9, BJ - os itálicos são
meus).
159 PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego.
Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1976, p.77.
160 Cf. THAYER, Joseph Henry. ÇáppccKOV, in: GELNT, p.650.
Uma leitura atenta deste relato nos revela algumas
medidas apotropaicas (do grego anorpónaioç [apotrópaios],
“que conjura os males”)159 usadas contra os demônios, as quais
nos permitem fazer algumas observações. Primeira, “o fel, o
coração e o fígado” do peixe, são vistos como “remédio”, isto é,
0áp|i.aKov (fármakon - LXX), “droga”, “encantamento”160
contra o demônio (v.7). É claro que essa “receita” combina
100
SA+ANÁS, DE1T1®NI®S £ LEGIî
elementos de magia e medicina antigas, as quais retratam o uso
da época.161 Segunda, essa receita apotropaica não é dada a
fobias por um homem, mas pelo áyY£À,oç (ángelos), “anjo”
Azarias (vv.4, 5, 7-9), sendo, portanto, possuidora de
credibilidade. Terceira, o vocábulo “demônio” é tido como
sinônimo de “espírito maligno”, conforme vemos na frase
ôai|ioviov f] TivEÚpaToç novspov (daimoniou ê pneúmatos
poneroü), “por um demônio ou um espírito maligno” (v.8).
Quarta, a fumaça produzida pela queima do coração ou do
fígado do peixe, (fieó^ETai (feúksetaif “afugenta” todo o mal e o
faz desaparecer e’iç hòv aicova (eis tòn aiõna), “para sempre”.
Isso demonstra a eficácia de tal procedimento exorcístico. Em
último lugar, Azarias revela uma propriedade terapêutica
existente no fel do peixe, o qual parece curar alguma doença
oftalmológica (?) da pessoa (v.9).162 Não está claro no texto se
essa doença também é causada pelo demônio ou se ela possui
outra origem. De qualquer forma, o texto parece narrar, a meu
ver, uma espécie de ritual de iniciação mágica ou exorcística,
uma vez que Tobias é chamado de natSíov (paidíori) e
rcaiSápiov (paidáriorí) - termos intercambiáveis que significam
basicamente “menino, infante” - algumas vezes no texto (cf. vv.
2,3,5,7) em vez de ser chamado mais apropriadamente veocvíoiç
161 STORNIOLO, Ivo & BORTOLINI, José. Ccwm Ler o Livro de Tobias: a
família gera vida. São Paulo, Paulus, 2006, p.41. Outra “receita” usada para
manter os maus espíritos afastados era manter uma lamparina queimando
(acesa). (Cf. HEATON, E. W. Everyday Life in Old Testament Times. New
York, Charles Scribner’s Sons, 1956, p.73). Benson lembra ainda a
importância das cruzes e crucifixos, após o advento do cristianismo, como
amuletos usados para manter os espíritos malignos afastados. (Cf. BENSON,
George Willard. The Cross: its history and symbolism. New York, Dover
Publications, Inc., 2005, p. 115).
162 Como disseram Stomiolo e Bortolini: “O episódio do peixe é central
neste livro, pois dele dependerá a solução das dificuldades [que irão aparecer
durante a narrativa]”. (Cf. STORNIOLO, Ivo & BORTOLINI, José. Op.Cit.,
p.40).
101
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I
(neanías), “jovem”. É como se Tobias fosse iniciado no
conhecimento mágico ou exorcístico desde pequeno pelo anjo.
Ao analisarmos o texto seguinte, teremos uma surpresa quanto a
este aspecto.
c) Tobias, o Exorcista
’Quando acabaram dccomer c beber, decidiram ir dormir;
conduziram, pois, o jovem [Tobias] ao aposento [de Sara],
2 Recordou-se Tobias dos conselhos de Rafael [outro nome dado
ao anjo Azarias, cf. Tb 7.9] e, tirando o fígado e o coração do
peixe de dentro do saco onde os guardara, colocou-os sobre as
brasas do perfumador. 2 O cheiro do peixe expulsou o demônio,
que fugiu pelos ares até o Egito. Rafael seguiu-o, prendeu-o e
acorrentou-o imediatamente. (Tb 8.1-3, BJ - os itálicos e
acréscimos entre colchetes são meus).
Em Tb 6.2-9 o infante Tobias é, como sugerimos, apenas
iniciado teoricamente no conhecimento exorcístico e mágico
pelo anjo Azarias. Contudo, aqui em Tb 8.1-3, vemos Tobias
colocar em prática o conhecimento teórico que havia aprendido
anteriormente.
A fim de que compreendamos melhor esta resumida
perícope que trata de um caso prático de exorcismo, temos que
situá-la primeiro dentro de seu contexto mais amplo.
O contexto é o seguinte: o anjo Rafael dirige-se com
Tobias até a região da Média. Chegando lá, Rafael lhe diz que
pernoitariam na casa de Ragüel, parente de Tobias e pai da bela
jovem Sara (Tb 6.10,11). O anjo declara a Tobias que este
deveria desposar a jovem, valendo-se do costume do levirato
(Tb 6.12; cf. Dt 25.5-10), uma vez que ela tivera sete maridos,
mas, segundo contava-se, um Socipóviov {daimónion) “demônio”
(Tb 6.14, LXX) havia matado a todos os sete na noite de
núpcias, assim que tentaram entrar no aposento dela com o
propósito de consumar o ato conjugal (Compare com: Mt 22.23-
33; Mc 12.18-27; Lc 20.27-40 - os saduceus e a ressurreição).
102
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S £ LEGIé
Isto ocorreu porque o demônio amava a jovem Sara e, por esse
motivo, não permitia que ninguém se aproximasse dela (Tb
6.14,15). Dito de outra forma, o demônio cometeu alguns crimes
passionais, matando os sete maridos de Sara, pois tinha ciúmes
dela.163 Tobias temia ter o mesmo fim que os sete maridos
tiveram (Tb 6.15) e, por isso, sentiu-se inseguro diante das
palavras do anjo. Todavia, Rafael encoraja Tobias, orientando-
lhe que, ao entrar no quarto nupcial, tome o fígado e o coração
do peixe e os coloque sobre as brasas do perfumador (Tb
6.16,17; cf. Tb 6.2-9). Segundo o anjo, tal ritual faria com que o
aroma exalado pelo fígado e coração fritos afugentasse o
Soctpóviov (daimónion) “demônio” (Tb 6.17, LXX) assim que
ele sentisse aquele odor (Tb 6.17,18). É a partir destes
acontecimentos antecedentes relatados em Tb 6.10-18 que o
exorcismo narrado em Tb 8.1-3 deve ser compreendido.
Particularmente, entendo que o relato sinótico que trata da questão entre
os saduceus e a ressurreição, seja um midrash de Tb 6. 14,15; 7.11. Contudo,
embora o texto fonte (o livro de Tobias) insira a figura do demônio na
narrativa, os saduceus, porém, o excluem de sua fala, uma vez que eles não
acreditam em anjos e nem em espíritos, ou seja, “demônios” (cf. At 23.8).
Por fim, os evangelistas conservaram este relato sinótico em seu texto tal
como ele saiu dos lábios dos saduceus, isto é, sem mencionar o demônio.
Temos aqui um curioso efeito inverso. Embora, como já vimos
anteriormente, os judeus de Alexandria demonizassem os deuses das nações
pagãs, os saduceus, porém, acompanhados pelos sinóticos, “desdemonizam”
o relato de Tobias, excluindo o “demônio” da narrativa.
Portanto, já que este esclarecimento contextual foi feito,
podemos então chegar às seguintes conclusões a respeito do
exorcismo narrado em Tb 8.1-3:
Ia) Tobias aparece aqui como alguém que já é mais velho,
pois ele é chamado de veocvíokov (neanískõn), “jovem” (Tb 8.1,
LXX), termo este bem distinto daquele naiSíov (paidíon),
“menino”, usado em Tb 6.2. Talvez, entre a viagem feita a
Rages (Tb 6.13) e o episódio do exorcismo (Tb 8.1-3) tenham
103
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I
transcorrido vários anos, o que justificaria a mudança do termo
paidíon para neanískõn. Esse termo é interessante, pois ele nos
mostra que foi um jovem, e não um ancião, quem realizou o
exorcismo.
2a) A prática apotropaica de Tobias dá resultado, pois ele
ekcíAuctev (ekõlyseri) “expulsa” o Saipóviov (daimónion)
“demônio”, o qual foge pelos ares até o Egito (Tb 8.3a).164
Uma variação da frase “pelos ares até o Egito” seria “para as regiões
elevadas do Egito”. (Cf. nota da BJ, p.TiT). Esse demônio que foge para as
regiões do Egito é identificado como sendo Asmodeu. (Cf. STORNIOLO,
Ivo & BORTOLINI, José. Como Ler o Livro de Tobias: a família gera vida,
p.43).
3a) Após o demônio ter sido expulso através da prática
exorcística de Tobias, o anjo Rafael o segue e o prende (Tb
8.3b), prisão esta que é reflexo de um dos temas centrais da
apocalíptica judaica, a qual trata da prisão dos anjos
desobedientes (cf. 2 Pd 2.4; Jd 6).
4a) Finalmente, tenho por mim que a causa desta narrativa
exorcística relatada no livro de Tobias pode ser encontrada na
demonização de um fato comum ocorrido no cotidiano das
pessoas. Deixe-me explicar melhor este ponto. Acredito que
esse relato que fala sobre o “demônio assassino” que matou os
sete maridos de Sara (cf. Tb 6.14-18), sem o qual não haveria,
portanto, a perícope do exorcismo em Tb 8.1-3, possa ter se
originado em algum conto popular que tratava do tema do
“amante ciumento” ou do “marido traído”. Se estivermos certos
em nossa interpretação, então isto quer dizer que esse tema
acabou adquirindo uma conotação demoníaca, talvez, a fim de
descrever até que ponto pode chegar um homem que é ciumento
ou um marido que se sente ou é traído. Ou seja, uma pessoa
nestas condições pode chegar ao ponto de cometer um crime
104
SA + ANÁS, DÊin®NI©S E LÊGIé
passional. Assim, tal conto popular teria transformado o
indivíduo ciumento ou traído desse conto numa espécie de
demônio serial killer.
1.3.3. Exorcismos nos Manuscritos do Mar Morto
A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto - escritos
aproximadamente entre 200 a.C. e 70 A.D. - já foi definida pelo
biblista e arqueólogo William F. Albright como o acontecimento
bíblico-arqueológico mais importante dos tempos modernos.165
Sem dúvida alguma, Albright estava certo ao fazer tal
afirmação. E, para o nosso estudo em particular, tais
manuscritos adquirem uma relevância ainda maior, pois ao
tratarem das crenças e práticas provenientes de uma seita judaica
que foi contemporânea de Jesus (os chamados essênios), nos
fornecem vários textos que tratam da demonologia e, mais
particularmente, de relatos de exorcismos.166 Sendo assim, não
podendo ignorar o conteúdo de tais manuscritos, vejamos alguns
relatos de exorcismos narrados nos mesmos.
Cf. ALLEGUE, Jaime Vázquez. (ed.). La “Regia De La Comimidad" de
Qumrán. Salamanca, Ediciones Sígueme, 2006, p. 11.
166 Para César Vidal, os exorcismos realizados por Jesus não são
propriamente exorcismos, pois, segundo ele, “o exorcismo requer um ritual
minimamente elaborado. No caso de Jesus, nos é dito que os demônios saíam
mediante uma simples repreensão. A diferença se manteve entre os
seguidores de Jesus, como demonstra o episódio do exorcista judeu Ceva
(Atos 19.11-20)”. (Cf. VIDAL, César. Jesus y Los Manuscritos dei Mar
Muerto. Barcelona, Editorial Planeta S.A., 2006, p. 187). O autor se
equivoca, porém, ao dizer que Ceva era um exorcista, pois ele era, na
verdade, um “sumo sacerdote” (Cf. At 19.14). Além disso, em nenhum
momento do contexto dessa passagem é dito que Ceva ou algum de seus sete
filhos seguia a Jesus. J. Jeremias comenta que “a teologia dos essênios
repousa essencialmente sobre a doutrina dos dois espiritos, o espírito de Deus
e o espírito de Belial, isto é, do diabo”. (Cf. JEREMIAS, Joachim. A
Mensagem Central do Novo Testamento. [Tradução de João Rezende Costa],
São Paulo, Editora Academia Cristã Ltda., 2005, p. 125).
105
CAR.L9S AUGUS+® VAILA + + I
a) Abraão, o Patriarca Exorcista
Entre os manuscritos de Qumrã, encontramos o relato do
Gênesis Apócrifo, no qual Abraão é descrito como alguém
dotado de poderes terapêuticos e como um exorcista. A seguir,transcrevemos o trecho que descreve Abraão nestes dois papéis:
“l6[...] Essa noite, lhe enviou Deus Altíssimo {ao rei do
Egito} uni espírito castigador, para afligi-lo a ele e a todos os
membros de sua casa; um espirito ^maligno que o afligia a ele
e a todos os membros de sua casa. E não pôde aproximar-se
dela {de Sara}, nem menos ainda ter relações sexuais com ela,
apesar de estar com ela l8dois anos. Ao final de dois anos se
agravaram c intensificaram os castigos c as pragas contra ele e
contra todos os membros de sua casa. E mandou l9chamar todos
[os sábios] do Egito, c todos os magos, junto com todos os
curandeiros do Egito, para ver se podiam curá-lo daquela praga,
[a ele] c aos membros 20de sua casa. Porém, todos os
curandeiros e magos, e todos os sábios, não puderam levantar-
se para curá-lo. Porque o espírito os atacou a todos 21 e
fugiram. [...] Então, HRK.NWS veio a mim {Abraão} c me
pediu que fosse e rezasse pelo 22rci, c impusesse minhas mãos
sobre ele para que vivesse. Porque [me havia visto] cm um
sonho. Porém, Ló lhe disse: Abraão, meu tio, não pode rezar
pelo ' rei enquanto Sara, sua mulher, está com ele. Vai agora e
diz ao rei que reenvie sua mulher ao seu próprio marido, c ele
rezará por ele e viverá. 25[...] {HRKNWS disse ao rei do Egito}
Que devolvam, pois, te rogo, Sara a Abraão, seu marido, 26e
esta praga e o espírito de males purulentos deixarão de afligir-
te. 28[...] agora reza por mim {o rei do Egito} epor minha casa,
para que seja expulso de nós este espirito maligno. Eu
{Abraão} rezei por [...] 29e impus minhas mãos sobre a sua
cabeça. A praga foi removida dele; foi expulso [dele o espírito]
106
SA + ANÁS, DEIT1®NI©S £ LEGIî
maligno e viveu”. (IQap.Gen. XX. 16-23, 25, 26, 28, 29 - os
itálicos e os acréscimos entre {} são meus).167
Texto extraído de: MARTINEZ, Florentino García. Textos de Qumran.
[Tradução de Valmor da Silva]. Petrópolis, Vozes, 1994, pp.276,277.
168 Jean Pouilly comenta: “Abraão faz um exorcismo, impondo as mãos e
orando. Esse rito não é conhecido como tal pelo Antigo Testamento.
Entretanto, a imposição das mãos é mencionada nele duas vezes (Nm 8.10 e
27.18-23), mas sempre no quadro de consagração de homens para função
importante. No Evangelho, ao contrário, essa maneira de fazer exorcismo tem
vários paralelos: Mc 5.23; 6.5; 7.32; 8.23-25; 16.18; Lc4.39-41; 13.13. Ouso
essênio desse rito - mas seria próprio dos essênios? - pode ter influenciado o
uso cristão, mas devemos ser muito prudentes nesse gênero de analogias, seja
o que for que alguns pensem sobre tal rito”. (Cf. POUILLY, Jean. Qumrã,
p.123).
Como pode ser percebido, esse texto extraído do Gênesis
Apócrifo é um midrash da narrativa bíblica de Gn 12.10-20,
que, por sua vez, encontra eco também em Gn 20.1-18 e em Gn
26.1-12 (com Isaque). A passagem veterotestamentária de Gn 12
fala sobre grandes pragas que Deus enviou a faraó pelo fato
deste ter tomado a mulher de Abrão, Sarai, como sua esposa.
Todavia, o texto de IQap.Gen.XX chama-nos a atenção por
descrever o conhecido patriarca como aquele que ora pelo rei do
Egito impondo-lhe as mãos sobre a cabeça. Tal prática obtém
como resultado a expulsão do espírito maligno de faraó e de sua
casa (IQap.Gen. XX.28,29).168 É digno de nota que o rei do
Egito é visto como um endemoninhado neste texto. Ou seja,
mais uma vez, seguindo a mentalidade judaica, os “outros” (os
idólatras) são demonizados. Perceba ainda outro detalhe
interessante no texto apócrifo, a respeito do qual já nos
referimos anteriormente. Deus é quem envia “um espírito
castigador”, “um espírito maligno”, sobre faraó e os membros de
sua casa (1 Qap.Gen. XX. 16,17). Aqui vemos novamente o
tema da ambivalência divina de forma explícita.
107
CARLOS AUGUS+ffi VAILA + +I
b) Daniel, o Sábio Exorcista
A assim chamada “Oração de Nabônides (ou de
‘Nabonido’)”, que também é encontrada nos manuscritos de
Qumrã, ao que tudo indica, parece descrever um relato de
exorcismo realizado pelo sábio Daniel. Devido à importância
que tal relato tem para o nosso estudo, iremos citá-lo abaixo. O
texto, porém, encontra-se bem fragmentado, como pode ser
percebido pelos colchetes espalhados pelo seu corpo:
“'Palavra da oração que rezou Nabônides, rei do pa[ís de
Babi]lônia, [grande] rei, [quando foi afligido] 2por uma
inflamação maligna, por decreto do Dc[us Altís]simo, em
Tema. [Eu, Nabônides,] fui afligido [por uma inflamação
maligna] 3durante sete anos, e fui relegado longe [dos homens
até que rezei ao Deus Altíssimo] 4<? meu pecado o perdoou um
exorcista. Era um [homem] judeu d[os desterrados, o qual me
disse:] 5Proclama por escrito para que se dê glória, exal[tação e
honra] ao nome do dc[us Altíssimo. E eu escreví assim:
Quando] 6fui afligido por uma inflamação ma[ligna e
permanecí] em Tema [por decreto do Deus Altíssimo, eu] 7rezci
durante sete anos [ante todos] os deuses de prata c de ouro, [de
bronze c de ferro,] sde madeira, de pedra c de argila, porque [eu
pensava] que eram deuses [,..]”(4QPr.Nab. - os itálicos são
. 169
MARTÍNEZ, Florentino García. Textos de Qumran, p.334.
1 70 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, pp.72,73.
meus).
De acordo com o erudito judeu, Geza Vermes, o exorcista
citado neste fragmento da quarta caverna de Qumrã, ainda que
não seja mencionado nominalmente no corpo do documento, é
Daniel, quem, segundo ele, é uma figura investida
postumamente do dom de curar.* 170 Aliás, o vocábulo “exorcista”
que aparece neste texto apócrifo, ocorre outras quatro vezes em
108
SA+ANÁS, DEH1©NI©S E LEGIé
Daniel (2.27; 4.4; 5.7,11), sendo usado normalmente para
descrever mágicos, astrólogos ou adivinhos. Porém, como
pondera Vermes, o termo "ITD (gãzer) que aparece neste texto
de Qumrã, significa “exorcista”. Tal vocábulo é, ainda segundo
Vermes, derivado de uma raiz hebraica que significa “decretar”,
o que significa que um gãzer é, por conseguinte, alguém que
exorciza, decretando a expulsão do demônio. Este mesmo verbo
é empregado pelo galileu Hanina ben Dosa contra a rainha dos
demônios (Agrath), a fim de expulsá-la.171 Tal relato nos chama
a atenção ainda pelo fato de combinar três elementos: doença
(vv.1-3), pecado e demônio (v.4). Curiosamente, esse tema
tríplice também pode ser visto no relato sinótico que trata da
cura de um paralítico (cf. Mt 9.1-8; Mc 2.1-12; Lc 5.17-26).
Porém, embora esses textos não mencionem explicitamente
nenhum “demônio” ou “exorcismo”, entretanto, eles estão
inseridos dentro do contexto do I século d.C., período este cuja
crença popular atribuía ao demônio a causa das enfermidades
(cf. p.ex., Mc 9.17,25; Lc 13.11). Assim, a “Oração de
Nabônides” lança alguma luz sobre a compreensão dos
Evangelhos e sobre as crenças populares existentes na época do
Segundo Templo. De forma geral, 4QPr.Nab. parece ser um
midrash de Dn 4.28-37.
171 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, Cf. também: SCHIAVO, Luigi.
Dois Mil Demônios na Decápole. Exegese, história, conflitos e
interpretações de Mc 5,1-20. Dissertação de Mestrado em Ciências da
Religião, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São
Paulo, 1999, p. 152.
172 Estes Salmos de Exorcismo Apócrifos (HQPsApa) são formados por
cinco coleções fragmentadas de Salmos, os quais pertencem ao chamado
“Fragmento A”. (Cf. MARTÍNEZ, Florentino García. Textos de Qumran,
pp.422-424).
c) Salmos de Exorcismo Apócrifos172
109
CARLffiS AUGUS + ® VA1LA + +I
Alguns salmos encontrados na décima primeira caverna
de Qumrã também possuem um conteúdo fortemente voltado
para o exorcismo. Porém, devido ao fato dos textos não se
encontrarem em bom estado, possuímos apenas fragmentos dos
mesmos. Abaixo, transcrevo as “Coleções I- IV” dos Salmos de
Exorcismo Apócrifos, situadas dentro do “Fragmento A”, as
quais são extraídas da obra Textos de Qumran, de Florentino
García Martinez. Apenas omito a “Coleção V”, a qual é, com
exceção de alguns pequenos detalhes, praticamente idêntica ao
Salmo 91.0 estado precário destes manuscritospode ser notado
pelas várias reconstruções do texto [entre colchetes] encontradas
no corpo dos documentos. Mas, por entender que tais textos,
ainda assim, podem lançar alguma luz sobre o conhecimento
demonológico e exorcístico do I século d.C., resolvi mencioná-
los aqui:
Fragmento A.173
173 Todos os itálicos dos textos são meus.
*[...] e quem o chora 2[...] o juramento 3[.„] por YHWH
4[...] o dragão 5[...] a ter[ra...] 6[...] conju[rando...} 7[...] a [...]
8[...] este [...] 9[...] aos demô[nios...} *°[...] e habita[rá...]
Quanto a este primeiro parágrafo de HQPsApa vemos
que, sem dúvida alguma, trata-se de um caso de exorcismo.
Todavia, a fragmentação do manuscrito não nos permite fazer
maiores considerações.
Coleção I.
\De Davi. Sobre as palavras de conjuro] em nome de
[YHWH ...] 3[...] de Salomão, e invocará [o nome de YHWH}
‘’'[para que o livre de toda praga dos es]píritos, dos demônios,
[Lilit,} "[bufos e chacais.} Estes são os demônios, e o prín[cipe
110
SA+ANÁS, DEIT1®NI®S £ LEGIî
de hostili\dade 6[é Belial} que [domina} sobre o abismo [de
tre}vas.
Os fragmentos da Coleção I já nos possibilitam tecer
alguns comentários. Esse texto nos permite ver Davi como um
exorcista e talvez também Salomão (?). Neste Salmo, o nome
inefável, o Tetragrama (YHWH), é invocado a fim de que
aquele que o pronuncia possa se ver livre dos demônios e dos
males causados por eles. E interessante notar aqui a relação
entre os “espíritos” e os “demônios” com animais tais como os
“bufos” e os “chacais”, que são demonizados. Por fim, Belial,
figura bem conhecida nos textos de Qumrã,174 aparece em
destaque como o “chefe demoníaco”.
174 Cf. ALLEGUE, Jaime Vázquez. (ed.). La “Regia De La Comunidad” de
Qumrán, nota 281, p. 133.
Coleção II.
'[...E lhe dirás: Quem] 2és? [Fizeste tu os céus e] os
abismos [e tudo o que contêm,] 3a terra e tu[do o que há sobre
a] terra? Quem fe[z estes sinais] 4e estes prodífgios sobre a]
terra? E ele, YHWH, [o que} 'fez tu[do isto por seu poder,}
conjurando a todos os [anjos a vir em sua ajuda,} 6a toda
semen[te santa] que está em sua presença, [e ele que julga] 7[os
filhos do] céu, c [toda a] terra [por causa deles], porque
enviaram sobre 8[toda a terra] o pecado, e sobre todo ho[mcm o
mal. Porém] eles conhecem 9[suas ações maravilho]sas, que
nenhum deles [pode fazer ante YHW]H. Sc não l0[trcmcm] ante
YHWH, para [...e] destruir a alma, "[os julgará] YHWH e
temerão este grande [castigo (?).] "[Perseguirá] um dentre vós
[mil...] dos que servem a YHWH l3[...] grande, E [...] ... [...].
Essa Coleção, embora mostre YHWH “conjurando a
todos os anjos a vir em sua ajuda”, não mostra, entretanto,
demônios sendo exorcizados. Mas o teor do texto diz respeito ao
juízo de YHWH que recairá sobre “aqueles que enviaram sobre
111
CARL©S AUGUS + ® VAILA + + I
toda a terra o pecado, e sobre todo homem o mal”, isto é, os
demônios. Logo, tal salmo devia ser empregado pela
comunidade de Qumrã a fim de afugentar os demônios e,
certamente também, exorcizá-los. Como já nos referimos antes,
uma prática comum do judaísmo na época do Novo Testamento
era a utilização de salmos com fins exorcísticos, baseando-se,
sobretudo, no exorcismo que Davi havia feito em Saul (1 Sm
16.14-23).
Coleção III.
1 [e] grande [...] conjurando [...] 2c o grande [...E enviará
um anjo] poderoso e te ex[pulsará de] 3toda a terra. [...] céus
[...] 4Golpeará YHWH um gol[pepoderoso que épara destruir-
te \para sempre,] 5e no furor de sua cólera [enviará] contra ti
um anjo poderoso [para executar] b[todas as suas orde]ns, (um)
que [não terá piedade] contigo, que [...] 7[...] sobre todos estes,
que te [arremessará] no grande abismo, 8[no Xeol] mais
profundo. Lon[ge da morada da luz] habitarás, pois é escuro
9em extremo o grande [abismo. Não dominarás] mais sobre a
terra l0[mas estarás trancado] para sempre. [Maldito serás tu]
com as maldições do Abadão, 11 [c castigado pelo] furor da ira
de Y[HWH. Tu dominarás sobre] as trevas por todos l2[os
períodos d]as humilhações [...] teu presente l3[...]
Essa terceira coleção novamente remete ao tema do juízo
divino que será exercido sobre as forças do mal. Aqui, contudo,
o texto faz menção a alguém (YHWH) que “enviará um anjo
poderoso e te expulsará (a Belial ?)175 de toda a terra”. Além
disso, (Belial) será arremessado “no grande abismo, no Xeol
mais profundo” e, portanto, “não dominarás mais sobre a terra”.
Tal referência nos traz à memória Ap 20.10, que relata o
175 É quase certo que a referência aqui seja a Belial, como pode ser visto nos
fragmentos da Coleção IV.
112
SA+ANÁS, DEfflffiNlffiS E LEGIé
lançamento do diabo no lago de fogo e enxofre. Além do mais, o
texto menciona ainda Abadão (Abadom), referindo-se
provavelmente ao anjo do abismo chamado em hebraico
“Abadom” e em grego “Apoliom” (cf. Ap 9.11), isto é, outro
nome dado ao diabo. Aqui não está muito claro se será um anjo
ou o próprio Yahweh quem expulsará (Belial).
Coleção IV.
'[...] ... [...] 2que [...] os possuídos [...] 3os voluntários de
tua vcr[dadc, quando Raffael os cura. [...] 4Z>e Davi. So[bre as
palavras de conjjuro em nome de YHWH. [Invoca em to]do
tempo 5 os céus. [Quando] vier sobre ti Beli[al, tu] lhe dirás:
bQuem és tu, [maldito entre] o homem e entre a semente dos
santos? Teu rosto é um rosto 7de vaidade, e teus chifres são
chifres de mise[rável.] Tu cs trcva c não luz, s[ini]qüidadc c não
justiça. [Contra ti,] o chefe do exército. YHWH te [trancará]
9[/?o Xe]ol mais profundo, [fechará] as duas portas de bronze,
pe[las quais] não "’[atravessa] a luz. Não [tc alumiará a luz do]
sol que [se levanta] "[sobre o] justo para [iluminar seu rosto.]
Tu lhe dirás: Acaso [não há um anjo] l2[com o jus]to para ir [ao
juízo quando] o maltrata Sa[tã? E o livrará] l3[o espírito da
ver]dadc das trc[vas porque a jus]tiça está com ele [para
sustcntá-lo no juízo.] I4[...] não [...]
Este último texto, ao que parece, é o que melhor retrata
uma prática exorcística, pois nele encontramos as seguintes
palavras: “Quando vier sobre ti Belial, tu lhe dirás: Quem és tu,
maldito entre o homem e entre a semente dos santos?”. A
continuação do texto, “YHWH te trancará no Xeol mais
profundo, fechará as duas portas de bronze [...]” deixa entrever
que tais palavras eram espécies de “fórmulas mágicas”
utilizadas pelos qumranitas para repelir os demônios e expulsá-
los de sua comunidade.
113
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I
1.3.4. Exorcismos nos Pseudepígrafos
A literatura pseudepigráfica é importante por revelar as
idéias judaicas em voga durante o chamado período
intertestamentário (430 a.C. - 6/4 a.C.).176 Ao longo da literatura
pseudepigráfica alguns textos que parecem aludir a casos de
possessão demoníaca e exorcismos podem ser encontrados.
Destaque especial é dado ao Testamento dos Doze Patriarcas.
Em 1 Enoque VIII, 2, lemos que “Semjaza ensinava os
esconjuros e as poções de feitiços, Armaros a dissipação dos
esconjuros”.177 No Testamento de Levi XVIII, 4, Levi se dirige
aos seus filhos antes de morrer e profetiza-lhes sobre a vinda de
um novo sacerdote, sobre quem é dito que “Ele acorrentará
Belial, e dará aos seus filhos o poder de enfrentar os espíritos
maus”.178 No Testamento de Dã V,l, encontramos escrito que “o
Senhor habitará em vós, e Belial fugirá” e em V,4 vemos que o
Senhor, “Ele mesmo subjugará Belial; e tomará vingança eterna
dos inimigos. Ele resgata de Belial os que estavam presos (as
almas dos santos)”.179 No Testamento de Aser VI, 2, lemos que
“se uma alma estiver em aflição, é porque é atormentada pelo
espírito mau; a este outrora serviu nos prazeres e em obras
depravadas”.180 181 Por fim, o Testamento de Benjamim III, 1,
aconselha: “temei ao Senhor e amai o vosso próximo! Assim, se
os espíritos de Belial vos pressionarem com toda espécie de mal,
não poderão vencer-vos”. 81
176 TENNEY, Merril C. (ed.). ZPBD, p.697.
177 PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB, p.262.
178 Idem, Ibidem, p.349.
179PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB, pp.372,373.
180 Idem, Ibidem, p.389.
181 Idem, Ibidem, p.397.
114
SA + ANÁS, D£m®NI®S £ LEGIé
Contudo, além disso, deve-se fazer menção a um dos
meios mais eficazes usados para afastar demônios, o qual era
recitado como fórmula mágica. No livro de Jubileus nós temos
uma declaração de que Noé, ao receber instrução dos anjos
sobre como subjugar os demônios, “escreveu abaixo todas as
coisas em um livro como nós o instruímos, concernente a todo
tipo de medicina. Desse modo, os espíritos malignos foram
impedidos de causar dano aos filhos de Noé” (Jubileus X,
12,14).182
SURBURG, Raymond F. Introduction to the Intertestamental Period. St.
Louis, Concordia Publishing House, 1975, p.64.
183 A opinião adotada neste livro é a de que os anjos caídos se tomaram
demônios posteriormente. Para saber mais a respeito da origem dos
demônios, consulte: OROPEZA, B. J. 99 Perguntas Sobre Anjos, Demônios e
Batalha Espiritual, pp.58-61. Nesta excelente obra o autor fornece três
teorias sobre a origem dos demônios. Para uma abordagem rabínica sobre a
origem dos demônios, veja: STEWART, Roy A. Rabbinic Theology’: an
introductory’ study. Edinburgh and London, Oliver and Boyd Ltd., 1961,
pp.59-61.
1 X4 PROENÇA, Eduardo de. (org.). Op.Cit., p.261.
185 Idem, Ibidem, p.261.
Além do mais, vários nomes de anjos caídos (ou
demônios)183 são encontrados nos pseudepígrafos, como, por
exemplo, a lista citada em I Enoque VI, 4, que traz: Semjaza (o
demônio chefe) e os subchefes que cuidavam de grupos de dez
demônios: Arakiba, Rameel, Kokabiel, Tamiel, Ramiel, Danei,
Ezekeel, Narakijal, Azael, Armaros, Batarel, Ananel, Sakeil,
Samsapeel, Satarel, Turel, Jomjael e Sariel.184 É interessante
notar que outros demônios que acompanhavam esta horda
demoníaca mantiveram relações com mulheres e eles também
“ensinavam-lhes bruxarias, exorcismos e feitiços, e
familiariza vam-nas com ervas e raízes”.185 (/ Enoque VII, 1; cf.
Gn 6.1-4).
Todavia, outros nomes demoníacos podem também ser
vistos nos escritos pseudepígrafos, como Azazel, Belial,
115
CARL©S AUGUS + ® VAILA + +I
Beelzebul, Mastema, Samael (chefes dos demônios) e outros.
Essa extensa lista de nomes de demônios encontrada nos
pseudepígrafos adquire grande relevância para o nosso trabalho,
uma vez que nos remete para a declaração demoníaca singular
plural encontrada em Mc 5.9: “Legião é o meu nome, porque
somos muitos”. No próximo capítulo, quando estivermos
tratando da análise exegética de Mc 5.1-20, verificaremos este
verso de forma mais detalhada.
1.3.5. Exorcismos e Exorcistas na Tradição do
Judaísmo
Podemos definir Tradição Judaica como “o conjunto de
ensinos e leis do Judaísmo transmitidos de uma geração para a
outra. Esta tradição oral foi coletada e estabelecida ao longo da
Mishná e do Talmude como escritos rabínicos posteriores”.186
186 SHERBOK, Dan Cohn. A Concise Encyclopedia of Judaism, p. 195.
A “tradição oral”, assim chamada por ter disseminado
ensinamentos do Judaísmo por meio da palavra falada e não
através da palavra escrita, foi a protagonista no papel de
celebrizar e eternizar figuras exorcísticas, tais como, o anjo
Raphael, Davi, Salomão, Eleazar, Hanina ben Dosa e até mesmo
uma planta, chamada Bara, à qual atribuía-se propriedades
exorcísticas. Vejamos tais personagens e os seus exorcismos
com maiores detalhes.
a) Raphael, o Anjo Exorcista
No livro apócrifo de I Enoque encontramos o anjo
Raphael, que recebe uma ordem direta do Senhor para expulsar
Azazel, o príncipe dos demônios, para o deserto, onde deveria
ficar preso até o dia do juízo. Observe o que o texto diz sobre
este anjo exorcista:
116
SA + ANÁS, DEHlffiNIffiS Ê LEGIî
3E a Raphael disse o Senhor: “Amarra Azazel de mãos e
pés e lança-o nas trevas! Cava um buraco no deserto de Dudael
e atira-o ao fundo! Deposita pedras ásperas e pontiagudas por
baixo dele e cobre-o de escuridão! Deixa-o permanecer lá para
sempre e veda-lhe o rosto, para que não veja a luz! 4“No dia do
grande Juízo ele deverá ser arremessado ao tremedal de fogo!
Purifica a terra, corrompida pelos Anjos, e anuncia-lhe a
Salvação, para que terminem os seus sofrimentos e não se
percam todos os filhos dos homens, em virtude das coisas
secretas que os Guardiões revelaram e ensinaram aos seus
filhos! Toda a terra está corrompida por causa das obras
transmitidas por Azazel. A ele atribui todos os pccados!”(/
187 Enoque X, 3,4 - os itálicos são meus).
Esse texto nos mostra Azazel sendo como que
“exorcizado” para o deserto, para longe do convívio das pessoas.
Neste sentido, o anjo Raphael é visto como uma espécie de
“exorcista”, que expulsa para fora do “corpo da sociedade” o
maligno príncipe dos demônios.
b) Davi, o Famoso Exorcista do Rei
Embora já tenhamos falado sobre a fama de Davi como
exorcista anteriormente (1 Sm 16.14-23), creio ser importante
citá-lo novamente, mas, desta vez, conforme o testemunho dado
por Flávio Josefo:
Saul, ao contrário, foi tomado pelo espírito mau, que
parecia querer csganá-lo a todo o instante. Os médicos não
encontraram outro remédio para esse mal, senão mandar cantar
para ele, ao som da harpa, hinos sagrados, por algum músico
competente, quando o demônio o agitasse. Mandaram procurá-
lo por toda parte; disseram-lhe que havia somente um que
PROENÇA, Eduardo de. (org.). APEB, p.263.
117
CARLffiS AUGUS+ffi VAILA + +I
poderia fazê-lo e era um dos filhos de Jessé, de nome Davi [...].
188{Antiguidades Judaicas - VI, 235).
O testemunho de Josefo (c. 37-100 A.D.) é importante
para a compreensão do conhecimento demonológico que havia
no judaísmo do I século. Josefo menciona demônios no relato da
depressão de Saul, a qual ele atribui aos 8atp.óvia (daimónia))*9
É curioso observar neste ponto que o rei que havia sido
escolhido pelo povo, isto é, Saul, é o endemoninhado, enquanto
que o rei escolhido por Deus, Davi, é o exorcista.
c) Salomão, o Exorcista par Excellence
Salomão, principalmente nos escritos de Flávio Josefo,
possui reputação não apenas de sábio, mas também de exorcista
místico, que através da manipulação de vários remédios,
prescreveu receitas altamente eficazes, capazes de expulsar os
demônios de forma definitiva.* 189 190 Além disso, o que nos chama a
atenção neste relato é o fato de Josefo enfatizar que tais “receitas
exorcisticas”, cuja invenção fora atribuída a Salomão, ainda
eram seguidas e colocadas em prática pelos judeus em sua época
(I Século d.C.):
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Vol. 1. [Tradução de Vicente
Pedroso], Rio de Janeiro, CPAD, 1992, p. 135.
189 KITTEL, Gerhard, (ed.). TDNT. Vol.II. [A-H], p.10.
190 Segundo a Sabedoria de Salomão 7.20, Salomão tinha “poder dos
espíritos” (rtVEupdreov píaç), isto é, “poder sobre os espíritos”. (Cf.
ROGERS JR., Cleon L. The Promises to David in Early Judaism. BS.
Vol. 150, n° 599. Dallas, Dallas Theological Seminary Press, 1993, p.299).
Esse grande soberano compôs cinco mil livros de
cânticos e de versos, três mil livros de parábolas, a começar do
hissopo ate o cedro, passando por todos os animais, pássaros,
peixes e todos os que caminham sobre a terra. Deus lhe havia
dado perfeito conhecimento da natureza e de suas propriedades
sobre o que ele escreveu um livro; empregou esse conhecimento
118
SA + ANÁS, DEffl©NI©S E LEGIé
em compor, para utilidade dos homens, diversos remédios,
dentre os quais alguns tinham mesmo a força de expulsar os
demônios [de tal forma], que estes não se atreviam a voltar. Tal
maneira de expulsá-los está ainda em uso entre os da nossa
nação [...] (Antigüidades Judaicas - VIII, 324 - os acréscimos
entre colchetes e os itálicos são meus).191 192
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. Vol. 1., pp. 175,176.
192 BUDGE, E. A. Wallis. Amulets and Talismans. New York, University
Books, 1968, pp.40,424.
193 Idem, Ibidem, p. 181.
194 Idem, Ibidem, p. 280. Veja ainda o excelente estudo de Perkins, segundo
quem, a frase “maior do que Salomão” (Mt 12.42) é, sobretudo,uma
referência ao controle que Jesus exerce sobre os demônios. Perkins entende
que a natureza da sabedoria de Salomão descrita neste verso tem a ver com a
reputação que este tinha como alguém que exercia controle efetivo sobre o
reino demoníaco. Baseado principalmente no contexto da controvérsia de
Belzebú que aparece no mesmo capítulo (Mt 12.22-32), Perkins argumenta
que a “sabedoria” demonstrada por Jesus na expulsão de demônios era
Embora tal relato esteja, sem dúvida alguma, repleto de
fantasias no que concerne à pessoa de Salomão, todavia, trata-se
de um importante testemunho sobre as práticas exorcísticas que
podem ter estado em voga em alguns círculos judaicos mais
místicos no período contemporâneo ao da época
neotestamentária.
Além desse relato citado por Josefo, Budge ainda fala
sobre o desenho do pentagrama que havia no anel mágico de
Salomão, o qual era considerado como um poderoso amuleto
contra todo tipo de mal, incluindo, é claro, os demônios. O
autor fala ainda sobre inscrições encontradas em outros
amuletos, as quais continham “palavras de poder” usadas,
segundo ele, por Salomão, tais como: “Lôfham!” e
“Mahfelôn!”.193 Enfim, lendas sobre os poderes do rei Salomão
como mágico são numerosas, e graças a vários textos da Bíblia,
do Talmude, de Josefo e de Qumrã, tais lendas são bem
conhecidas.194
119
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I
d) Eleazar, o Exorcista Judeu
Ainda de acordo com Flávio Josefo, e, na continuação do
relato sobre a fama de Salomão como exorcista, o autor diz ter
sido testemunha ocular das práticas exorcísticas de um judeu,
chamado Eleazar, o qual praticava exorcismos publicamente na
presença do próprio imperador Vespasiano:
Eu vi pessoalmcntc um dos nossos, chamado Eleazar,
libertar os possesses de espíritos malignos, cm presença de
Vespasiano, de seus filhos c demais guerreiros. A cura se
realizou da seguinte maneira: Eleazar segurou, sob as narinas do
possesso, um anel no qual introduzira uma daquelas raízes
indicadas por Salomão. Fez com que o doente a cheirasse e,
assim, retirou o espírito maligno pelas narinas. No mesmo
instante, o possesso caiu prostrado e Eleazar, pronunciando o
nome de Salomão c os provérbios por ele compostos,
csconjurou o espírito maligno a não voltar mais para aquele
homem. E para mostrar aos presentes que tinha rcalmcntc o
poder de fazer tal coisa, Eleazar colocou uma bacia ou outro
recipiente cheio d’água, não distante dali, e ordenou ao espírito
maligno que, logo que saísse do homem possesso, entornasse a
água c convencesse os espectadores de que havia abandonado o
homem. Isto também aconteceu, rcalmcntc, e assim se
manifestou a sabedoria e a ciência de Salomão. Achei que devia
referir estes fatos para que conheçam todos como é poderoso o
espírito do rei e como ele era agradável a Deus, e para que as
superior à sabedoria empregada por Salomão em seus encantamentos
“exorcísticos”, relatados na Tradição Judaica. Assim, Jesus é “maior do que
Salomão” neste sentido. (Cf. PERKINS, Larry. “Great Than Solomom ”
(Matt 12:42). TrinJ. Vol. 19, n°2. Weaverville, Trinity Journal, Inc., 1998,
pp.207-217).
120
SA+ANÁS, DElTlfflNIffiS £ LEGIî
virtudes excelsas desse rei não ficassem ocultas a ninguém
195 debaixo do sol. (Antiguidades Judaicas - VIII, 2,5).
Esse relato de exorcismo é especialmente importante por
nos fornecer diversas informações sobre uma prática exorcística
realizada no I Século d.C. Gostaríamos de destacar aqui alguns
pontos encontrados nesse relato:
1) Josefo, para legitimar o exorcismo feito por
Eleazar, menciona várias testemunhas oculares
que o presenciaram: a) o próprio Josefo; b) o
imperador Vespasiano; c) os filhos do
imperador; e d) os guerreiros (soldados) de
Vespasiano;
2) O exorcismo é visto como uma prática
terapêutica, pois Josefo dá o nome de “cura” à
prática exorcística realizada por Eleazar;
3) A fama de Salomão é novamente percebida
neste exorcismo, pois, é graças a “uma
daquelas raízes indicadas por Salomão”,
contidas no anel de Eleazar, que o
endemoninhado é liberto; *196
1 QS JOSEFO, Flávio. Antiguidades Judaicas. Apud: WEISER, Afons. O Que
é Milagre na Bíblia. [Tradução de D. Mateus Rocha], São Paulo, Paulinas,
1978, p.86.
196 'E curioso notar a esse respeito que o famoso apologista cristão, Justino
Mártir (c. 100-165 d.C.), “acreditava que oração, jejum, imposição de mãos,
queima de raízes, aspersão de água benta e o nome de Jesus deveríam ser
empregados nos exorcismos (II Apologia, 6)”. (Cf. OROPEZA, B. J. 99
Perguntas Sobre Anjos, Demônios e Batalha Espiritual. [Tradução de Josué
Ribeiro], São Paulo, Mundo Cristão, 2000, nota 20, p.210). A crença de
Justino reflete um ponto de vista sincrético, misturando elementos oriundos
do cristianismo e da crendice popular dos tempos antigos.
121
CARLffiS AUGUS+ffi VAÍLA + + I
4) Eleazar expulsa o demônio “pronunciando o
nome de Salomão e os provérbios por ele
compostos”. Embora Jesus tenha expulsado o
diabo no episódio da tentação no deserto
através de três citações do livro de
Deuteronômio (cf. Mt 4.1-11; Lc 4.1-13;
Compare, p.ex., Mt 4.4 com Dt 8.3; Mt 4.7
com Dt 6.16; Mt 4.10 com Dt 6.13; 10.20), é
impossível sabermos exatamente quais textos
do livro de Provérbios teriam sido utilizados
por Eleazar durante seu exorcismo. Contudo,
acredito que passagens tais como Pr 1.33;
3.26; 14.26,27; 15.29; 19.23; 20.8 e 23.11
poderíam certamente ter sido utilizadas por
ele.
5) Eleazar, ao expulsar o demônio, ordena-o “a
não voltar mais para aquele homem”. Tal
ordem encontra eco nas palavras de Jesus, ao
expulsar o demônio que atormentava um rapaz
desde a sua infância: èyoò íttitccocjcl) ooi,
amou Kai pr|K6Ti eloéÀOflç eLç cíòtÓv. (egõ
epitássõ soi, ékselthe eks autoú kai mêkéti
eisélthês eis autón), “eu te ordeno, sai dele e
não entres mais nele” (Mc 9.25).
6) Eleazar também ordenou ao demônio que,
assim que fosse expulso, desse um sinal de que
isso havia acontecido. Ele ordenou ao demônio
que, “logo que saísse do homem possesso,
entornasse a água”, isto é, derrubasse a bacia
ou o recipiente cheio d’água, a fim de que sua
expulsão fosse confirmada. Segundo David
122
SA+ANÁS. DEmêNieS £ LEGIî
Aune, naqueles tempos antigos acreditava-se
que o demônio devia dar algum sinal físico
que indicasse sua saída do corpo da pessoa,
como, por exemplo, derrubar um copo d’água
ou fazer a vítima espirrar. Ele ainda diz que
drogas também eram usadas em alguns
197 exorcismos.
7) Por fim, é curiosa a referência sobre Eleazar
ter retirado o espírito maligno “pelas narinas”
e o fato de que o possesso “caiu prostrado”
após a sua libertação. Embora não vejamos
nos Evangelhos nenhum relato sobre algum
demônio ter saído por orifícios tais como
“boca”, “ouvidos” ou “narinas”, encontramos,
contudo, menção à “prostração” dos demônios
diante da autoridade de Jesus (cf. Mc 3.11; Lc
8.28).
e) Hanina ben Dosa, o Exorcista Galileu *198
AUNE, David. “Exorcism”, ISBE, 2:242-45. Apud: OROPEZA, B. J.
Op.Cit., p.210.
198 G. Vermes inclui Hanina em um grupo de dez Judeus Ascetas e
Carismáticos daqueles tempos antigos, os quais se encontram dispostos nesta
seqüência: 1) Honi; 2) Menahem, o Essênio; 3) Abba Hilquiá; 4) Hanã; 5)
Simão, o Essênio; 6) Banno; 7) Hanina ben Dosa; 8) Jesus, filho de Ananias;
9) Eleazar; 10) Jacó, de Quefar Secaniá. (Jesus, que não é mencionado neste
grupo, aparece na lista de Personalidades do Novo Testamento). (Cf.
VERMES, Geza. Who's Who in the Age of Jesus. London, Penguin Books,
2005, pp.6,7).
Hanina ben Dosa, segundo fontes rabínicas, viveu em
Arab, uma cidade galiléia situada dentro do distrito de Séforis
(pBer. 7c; bBer. 34b). Segundo parece, essa localidade ficava a
123
CAR.L®S AUGUS + ® VAILA + + I
uns quinze quilômetros ao norte de Nazaré,199 cidade onde Jesus
fora criado (Mt 2.23; Lc 4.16). Ao que tudo indica, Hanina
viveu no I século d.C., sendo, portanto, contemporâneo de Jesus.
Fontes talmúdicas o associam a trêsfiguras históricas deste
período: Nehuniah, oficial do templo, Rabban Gamaliel e
Yohanan ben Zakkai. Se, como parece ser provável, o Gamaliel
aqui em questão fosse Gamaliel, o Velho, de quem o apóstolo
Paulo afirmava ter sido discípulo (At 22.3), e não Gamaliel II,
neto do anterior, então Hanina viveu no período precedente ao
ano 70 d.C.200 *
199 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p. 78.
200 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p.78. A opinião de Vermes de que
Hanina viveu antes do ano 70 d.C. é seguida por Crossan, que afirma que
Hanina viveu antes da destruição do Segundo Templo no I século E.C. (Cf.
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: a vida de um camponês judeu
do Mediterrâneo. [Tradução de André Cardoso]. Rio de Janeiro, Ed. Imago,
1994, p. 183). Todavia, segundo a Mishná, Hanina ben Dosa atuou depois do
ano 70 d.C., mais precisamente, entre 80-120 d.C. (Cf. DANBY, Herbert.
The Mishnah. [Translated from the Hebrew with introduction and brief
explanatory notes by Herbert Danby], Oxford, Oxford University Press,
1988, p. 799). David Flusser também parece situar Hanina numa data
posterior ao ano 70 d.C., pois, de acordo com ele, Hanina viveu uma geração
após Jesus. (Cf. FLUSSER, David. Jesus. [Tradução de Margarida
Goldsztajn], São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 2002, p.87).
">()1 DANBY, Herbert. The Mishnah, p.6.
Seja como for, esse rabino é visto como um poderoso
taumaturgo. Prova disso é que se dizia do rabino Hanina ben
Dosa que ele costumava orar sobre o doente e dizer: “Este
viverá”, ou “Este morrerá”. Diziam-lhe: “Como sabes disso?”.
Ele respondia: “Se a minha oração é fluente em minha boca, eu
sei que ela é aceita; e se ela não é, eu sei que ela é rejeitada”
(Berakoth 5.5). Aliás, a Mishná declara que “quando o
Rabino Hanina ben Dosa morreu cessaram os homens de boas
ações” (Sotah 9.15). A expressão “homens de boas ações” pode
124
SA + ANÁS, DE1T1©NI©S E LEGIî
ter o sentido de “homens de poder” ou “realizadores de
milagres”.202
70? Idem, Ibidem, p.306, nota 1.
203 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p.220. Aqui, a fala de Hanina à demônia
Agrath: “Se eu sou tão estimado no céu (...)” encontra eco no confronto de
Elias com os capitães de Acazias, onde o profeta diz por duas vezes: “Se eu
sou homem de Deus, desça fogo do céu (...)”. (Cf. 2 Rs 1.10, 12). Além
disso, é digno de nota o pedido de Agrath feito para Hanina e a concessão
deste a tal petição (cf. Mc 5.10-13 par.).
E, já que estamos falando sobre milagres, um aspecto em
particular da vida de Hanina deve ser destacado, o qual diz
respeito ao seu papel de exorcista. Para tal, nos reportaremos
novamente a Geza Vermes, quem nos fala sobre uma tradição
preservada no Talmude Babilônico, segundo a qual Hanina se
depara com Agrath, a rainha dos demônios. Essa rainha dos
demônios que costumava atacar as pessoas todas as noites por
meio de seu grande exército de espíritos malignos, passou a
realizar seus ataques apenas duas vezes por semana, graças à
intervenção de Hanina ben Dosa. Eis o relato:
Uma vez [Agrath] se encontrou com o rabino Hanina ben
Dosa e lhe disse: “Se Deus não mc houvesse recomendado
desde o céu, ‘toma cuidado com Hanina c com a sua doutrina!’,
eu teria te atacado”. E ele disse: “Sc eu sou tão estimado no ccu,
ordeno que tu não voltes a passar nunca mais por um lugar
habitado”. E ela lhe disse: Permita-me, por favor, fazê-lo por
tempo limitado”. Ele então lhe concedeu as noites dos sábados e
as noites de quarta-feira.203
Esse relato sobre Hanina ben Dosa possui em seu
conjunto diversos elementos que parecem ecoar nas páginas dos
Evangelhos. E, para o nosso estudo de Mc 5.1-20, em particular,
ele adquire uma importância ainda maior, pois são nítidas as
semelhanças entre este relato encontrado no Talmude
Babilônico e o contexto de Mc 5.7-13:
125
CARLSS AUGUS + ffi VAILA + + I
Jesus e Hanina ben Dosa, dois Galileus Exorcistas
No Evangelho de Marcos
1. Jesus tem a sua identidade conhecida pelos demônios (Filho
do Deus Altíssimo) (5.7);
2. Jesus ordena ao espírito imundo que saia do corpo do homem
que ele estava possuindo (5.8);
3. Os demônios rogam a Jesus que lhes permita entrar numa
manada de porcos (5.12);
4. Jesus concede o pedido dos demônios e permite-lhes entrar
nos porcos, os quais se precipitam de um despenhadeiro ao mar
(5.13).
No Talmude Babilônico
1. Hanina ben Dosa tem a sua identidade conhecida por Agrath,
a rainha dos demônios;
2. Hanina ordena a Agrath que nunca mais ande por um lugar
habitado;
3. Agrath pede a Hanina que lhe permita andar por lugares
habitados por tempo limitado;
4. Hanina concede o pedido de Agrath e permite-lhe andar por
lugares habitados nas noites de sábado e de quarta-feira.
Como podemos notar nessa breve comparação feita entre
a prática exorcística de Jesus e a de Hanina ben Dosa, este
último é uma figura essencial para a compreensão da hipótese
126
SA+ANÁS, DEffl©Nl©S E LEGIé
que associa o judaísmo carismático com a Galiléia,204 e, além
disso, é também uma figura indispensável para o entendimento
do ministério taumatúrgico de Jesus, sobretudo, no que diz
respeito ao seu papel de exorcista.
204 VERMES, Geza. Jesús, el Judio, p.77.
f) Bara, a Planta Exorcista
Talvez, o leitor possa se perguntar: “Por que uma planta
é incluída numa lista que trata de exorcismos e exorcistas na
tradição do judaísmo?”. Porque, como já tivemos a oportunidade
de ver: primeiro, Salomão receitava remédios à base de raízes
para expulsar demônios; segundo, um judeu chamado Eleazar
utilizou tais receitas em um de seus exorcismos; terceiro, Flávio
Josefo nos diz que tal maneira de expulsar os demônios
(utilizando-se raízes receitadas por Salomão) ainda era praticada
em sua época (I século d.C.); quarto, o apologista cristão,
Justino Mártir, também incluía a queima de raízes em suas
práticas exorcísticas; e, quinto, era comum usar drogas à base de
ervas e plantas em alguns exorcismos do mundo antigo.
Portanto, vejamos o relato de Josefo a respeito de uma
planta chamada Bara, a qual possuía, segundo ele, a propriedade
de exorcizar demônios. A meu ver, no relato de Josefo esta
planta parece ser a “personificação” de um exorcista, figura esta
que era comum no I século d.C. Por este motivo, resolvi incluí-
la aqui:
No vale que rodeia Macherom, do lado do norte,
encontra-se, no lugar chamado Bara, uma planta que tem o
mesmo nome e que se parece com uma chama e lança, à tarde,
raios resplandecentes e retira-se, quando a gente a quer apanhar.
O único meio de detê-la é atirar-lhe urina de mulher, ou aquele
sangue supérfluo, que elas, de tempos em tempos, eliminam.
Não se pode tocá-la, sem perigo de morrer, a menos que se
tenha na mão a raiz da mesma planta; encontrou-se um outro
127
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I
meio de colhê-la sem perigo. Cava-se em redor, de modo que
ela fique presa pela raiz à qual amarra-se um cão; este querendo
seguir aquele que o amarrou, arranca a planta e morre
imediatamente, como se resgatasse com sua vida a do seu dono.
Depois disso, pode-se sem perigo manuseá-la; ela tem uma
virtude, que faz [com que] não se tema expor-se a qualquer
perigo, para apanhá-la, isto é, os demônios ou as almas dos
maus, que entram no corpo dos homens vivos, e que os
matariam se não se lhes impedisse, abandonam-nos
imediatamente, quando deles se aproxima essa planta.
(Guerras Judaicas, VII, 526 - os itálicos e os acréscimos entre
colchetes são meus).205
Guerras Judaicas, Livro VII, XXIII, 526. JOSEFO, Flávio. História dos
Hebreus. Vol. 3, p. 199.
206 HARRIS, R. Laird, (org.). DITAT, p.218.
A origem etimológica do nome dessa planta (Bara) não é
dada por Josefo, mas, tenho para mim, que ela possa ter ligação
com a palavra hebraica n^Zl (bãrah), que, dentre outros
significados, quer dizer “expulsar, colocar em fuga”.206 Se
estivermos corretos em nossa interpretação, então o próprio
significado do nome da planta já é, em si mesmo, uma alusão à
sua propriedade exorcística.
Josefoainda diz que a planta “tem uma virtude”, ou seja,
“os demônios ou as almas dos maus, que entram no corpo dos
homens vivos [...] abandonam-nos imediatamente, quando deles
se aproxima essa planta”. Tal relato é interessante por três
motivos: primeiro, porque nos mostra que no I século d.C.
acreditava-se que os “demônios” e as “almas dos maus” fossem
uma mesma coisa (ou melhor, acreditava-se que as almas das
pessoas más que tivessem morrido, se transformavam em
demônios); segundo, a crença de que tal planta tivesse a
“virtude” de exorcizar demônios, parece refletir a crendice
popular da época, repleta de elementos místicos e supersticiosos;
128
SA + ANÁS, D£m®NI©S E LEGIé
e, terceiro, acreditava-se que essa planta fosse realmente eficaz
nos rituais exorcísticos, pois os demônios abandonavam os
corpos das pessoas “imediatamente”, assim que entrassem em
contato com ela.
1.3.6. Exorcismos e Exorcistas no Contexto Pagão
Saindo do contexto judaico e entrando agora no contexto
pagão, duas personagens, em particular, se destacam na prática
dos exorcismos: Apolônio de Tiana e um sírio anônimo da
Palestina. Analisemos estas duas personagens de forma mais
detalhada.
a) Apolônio de Tiana
Apolônio de Tiana (c. 4 a.C. - 90 d.C.) foi um filósofo
grego neopitagórico e um conhecido taumaturgo que viveu no I
século d.C.20 Apolônio era da cidade de Tiana, cidade da
província romana da Capadócia, na Ásia Menor. Desde cedo,
apegou-se à filosofia e ao estilo de vida dos neopitagóricos, uma
combinação sui generis de ascese, fuga do mundo e magia. Ele
percorreu várias regiões como pregador, taumaturgo e vidente
profético. Sua fama chegou, inclusive, a sobrepujar a de muitas
outras figuras que a ele se assemelhavam, tais como,
208 Epimênides, Peregrino Proteu e Alexandre de Abonuteicos.
Apolônio se recusava a provar carne e vinho, andava descalço e
tinha os cabelos compridos. Depois de cinco anos de silêncio e
estudo, ele se dedicou a viajar e se diz que chegou até a
Babilônia (onde conheceu os magos) e à índia (onde foi * *
BARBAGLIO, Giuseppe. Jesús, Hebreo de Galilea: investigación
histórica. [Traducción de Afonso Ortiz García]. Salamanca, Secretariado
Trinitario, 2003, p.342.
208 WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, p.87.
129
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I
discípulo de budistas e brahmanes). Chegou a Roma durante o
reinado de Nero, de onde partiu depois para a Espanha e para a
Etiópia. Segundo conta-se, ele morreu na cidade de Éfeso em
uma idade muito avançada, embora outras fontes afirmem que
ele simplesmente desapareceu.209
PIKE, Edgar Royston. Diccionario de Religiones. [Adaptación de Elsa
Cecilia Frost]. México, Fondo de Cultura Econômica, 2001, p.33. Segundo
A. Weiss, Apolônio morreu com a idade aproximada de cem anos. (Cf.
WEISS, Adolfo. La Ley Universal de Las Sociedades. Buenos Aires,
Editorial Kier, 1949, p.402).
210 PIKE, Edgar Royston. Op.Cit., p.33.
211 WEISER, Afons. Op.Cit., p.87.
Apolônio parece ter sido uma espécie de reformador moral
e religioso que tentou revitalizar o paganismo e que foi adorado
durante séculos como uma pessoa divina (tal como ocorreu
também com Pitágoras). Hegel, e com ele muitos outros
historiadores da Filosofia, afirmam que as histórias milagrosas
tanto sobre Pitágoras, como também sobre Apolônio de Tiana,
foram tentativas de se criar uma personalidade pagã que pudesse
opor-se à de Cristo.210 211
Todavia, como Apolônio era visto por alguns escritores da
Antigüidade? Bem, seu primeiro biógrafo, Moirágenes, o via
como um mago. Já Luciano de Samósata (II século d.C.) o vê
como saltimbanco e enganador. O primeiro a escrever um
trabalho mais amplo sobre Apolônio foi Filóstrato, escritor da
corte do imperador Sétimo Severo, com a obra Vida de Apolônio
de Tiana, em tomo de 200 d.C., a pedido de Júlia Domna,
mulher do imperador. Essa obra é a biografia mais antiga que se
conhece a respeito de um taumaturgo pagão. Filóstrato, ao
contrário das opiniões anteriormente esboçadas, não via em
Apolônio um mago ou um feiticeiro, mas o enxergava como um
homem sábio que fora iluminado divinamente e um taumaturgo
• 711que fora agraciado com poder divino.
Vejamos um famoso relato de exorcismo que é atribuído a
ele:
130
sa+anás. DemêNies e legiã®
Certa feita, estando Apolônio a falar em Atenas sobre as
vítimas da bebida, um jovem se pôs a troçar das coisas que ele
dizia. Então Apolônio olhou para ele e lhe disse: "Não é você
pessoalmente que procede, assim, arrogantemente. E o
demônio que leva você a agir desse modo, sem você se dar
conta”. E de fato, o jovem estava possesso de um demônio, sem
o saber, pois ria à toa de coisas de que ninguém achava graça, e
depois chorava sem nenhum motivo, além de ter o costume de
andar falando ou cantando sozinho. Muitas pessoas pensavam
que era a alegria impetuosa da juventude que o levava a tais
explosões, mas, na realidade, era a boca do demônio que o
fazia... Quando Apolônio o encarou, o espírito que estava nele
começou a gritar de medo e de raiva, como um homem que
estivesse sendo queimado ou torturado. E o espírito jurava que
deixaria o jovem e não voltaria mais a se apoderar de pessoa
alguma. Então Apolônio, cheio de raiva, o repreendeu
severamente... e lhe ordenou que saísse do jovem e mostrasse,
por algum sinal visível, que obedecera. “Eu vou derrubar
aquela estátua que está ali ”, disse o demônio, e apontou para
uma estátua que estava no átrio real, onde o episódio se
passara. Assim que a estátua começou a se mexer e, a seguir,
caiu, ouviu-se um barulho indescritível. O Jovem, porém,
esfregava os olhos, como se acabasse de despertar de um sono.
Olhou para os raios do sol c mostrou uma expressão humilde,
enquanto a atenção de todos se voltava para ele. Depois corrigiu
sua vida, recuperou-se e orientou sua vida, no futuro, pelo
exemplo de Apolônio. (Vida de Apolônio de Tiana, IV, 20 - Os
itálicos são meus).212
PHILOSTRATUS, Flavius. The Life of Apollonius of Tyana.
CONYBEARE, F. C., in The Loeb Classical Library, London, 1960, 5a ed.,
11. Apud: WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, p.88.
Esse relato sobre o exorcismo de Apolônio de Tiana, em
especial, nos mostra que as narrativas helenísticas de exorcismos
131
CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I
pareciam seguir uma estrutura bem definida. Seguindo a opinião
de Afons Weiser,213 a estrutura pode ser assim esquematizada:
WEISER, Afons. Op.Cit., pp. 89,90.
Estrutura de um Relato de Exorcismo Típico
1. Indicação da situação e descrição do estado do possesso;
2. Encontro do Exorcista com o possesso;
3. Tentativa de defesa por parte do demônio;
4. Ordem dada pelo exorcista ao demônio para que saia do
possesso;
5. Saída do demônio acompanhada de demonstração;
6. Reação dos espectadores.
Filóstrato e o Relato Sobre o Exorcismo de Apolônio
1. Apolônio realiza uma conferência em Atenas: um certo jovem
zomba, ri, chora e fala sozinho;
2. Apolônio o encara e fala com ele;
3. O demônio pressente o exorcista, grita e promete sair;
4. Apolônio ordena que o demônio abandone o possesso e o
mostre através de um sinal visível;
132
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî
5. O demônio sai e derruba uma estátua, fazendo barulho;
6. Todos voltam sua atenção para o que fora curado.
Embora Flavius Filostratus, ou simplesmente, Filóstrato,
o autor da Vida de Apolônio de Tiana, tenha vivido entre 175-
245 d.C., e, portanto, a mais de um século de distância de seu
biografado (Apolônio viveu de 4 a.C. a 90 d.C.), contudo, sua
obra é de suma importância para o nosso trabalho, pois nos
permite fazer um balanço entre as supostas práticas exorcísticas
de Apolônio de Tiana e os exorcismos praticados por Jesus.
Porém, algo mais deve ser dito sobre Apolônio, a fim de
que possamos delinear melhor o seu perfil. Eunápio, o pupilo de
Crisanto, um dos instrutores do imperador Juliano, escrevendo
no fim do IV século d.C., disse que Apolônio era mais do que
um filósofo. Ele foi, por assim dizer, Ti Gecov tekoci avQpcoKou
pEcrov (Ti theõn te kai anthrõpou meson), isto é, “um meio
termo entre os deuses e os homens”.214 * Filóstrato, na conclusão
de sua obra (viii, 31), diz que viajou por várias partes do mundo
e que por onde andava se deparava com as Xoyotç ôaipoviotç
(logois daimoniois) “palavras inspiradas” de Apolônio. ’ Certa
vez, Apolônio foi para Pérgamo, na Ásia Menor, e conheceu o
templo de Esculápio. Conta-se que ele curou muitos pacientes
naquele lugar.216 Todavia, devemos nos lembrar que os
endemoninhados não tinham acesso aos templos de Asclépio (ou
Esculápio).217 Portanto, se Apolônio realizou, de fato, milagres
ali, devem ter sido curas, e não exorcismos. E ainda, em outro
MEAD, G.R.S. Apolônio de Tiana. [Tradução de Raul Branco]. Brasília,
Editora Teosófica, 2000, p.44.
2 1 5■ Idem, Ibidem, p.58.
“16 Idem, Ibidem, p.82.
? I 7 WEISER, Afons. O Que é Milagre na Bíblia, p.87.
133
CARL®S AUGUS+ffi VAILA + +I
episódio, quando tentaram atirá-lo a cães raivosos para que estes
o estraçalhassem, Apolônio desapareceu de forma misteriosa.218
RIJCKENBORGH, J. Van. O Nuctemeron de Apolônio de Tiana. Jarinu,
Editora Rosacruz, 2003, p.l 1.
219 Por exemplo, MEAD, G.R.S. Apolônio de Tiana, p.8. Aliás, também
pode ser encontrado no prefácio desta obra uma tentativa de identificar o
“Apoio” mencionado em algumas epístolas paulinas com “Apolônio de
Tiana”. (Cf. Op.Cit., pp. 11-15).
Assim, de posse de tais informações, podemos chegar às
seguintes conclusões: Primeira, os relatos fantásticos sobre a
vida de Apolônio de Tiana, senão todos, pelo menos grande
parte deles, devem ser enxergados como meras lendas repletas
de fantasias, os quais foram produzidos ou coletados (talvez
também adaptados) por Filóstrato com o objetivo de angariar
prestígio diante de Júlia Domna, esposa do imperador Sétimo
Severo, a qual lhe havia encomendado a obra. Segunda, as
histórias miraculosas a respeito de Apolônio de Tiana foram,
certamente, tentativas de se criar uma personalidade
taumatúrgica pagã que pudesse rivalizar-se à pessoa de Cristo.
Terceira, as supostas semelhanças existentes entre as vidas e
ministérios de Apolônio de Tiana e de Jesus, tão defendidas por
alguns,219 devem ser vistas com muitas reservas e, sobretudo,
sob um olhar crítico, pois tais semelhanças não se sustentam
quando submetidas a uma análise bíblico-teológica. Quarta,
Apolônio de Tiana deve ser visto mais como um filósofo
místico-sincrético, a quem a crendice popular atribuiu uma
coleção de feitos notáveis, do que propriamente um taumaturgo,
no sentido mais pleno da palavra. Finalmente, por mais
paradoxal que possa parecer, embora tais relatos apolonistas
estejam repletos de mitos, fantasias e lendas, contudo, ainda
assim são importantes, pois nos fornecem um material auxiliar
que nos permite conhecer, por exemplo, como funcionava a
estrutura das práticas exorcísticas no antigo mundo pagão.
b) O Sírio Anônimo da Palestina
134
SA + ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIé
O escritor grego Luciano de Samósata (c. 120-180 d.C.),
amante da sátira e oponente das crenças religiosas, nos relata em
sua obra Philopseudes, que significa “amigo da mentira”, alguns
casos de exorcismos. Num destes casos, ele coloca na boca de
um certo íon - que defendia a legitimidade de tais histórias de
exorcismo - os seguintes dizeres:
De boa vontade [diz íon] te perguntaria qual é a sua
opinião sobre os que libertam aos endemoninhados de seus
medos conjurando abertamente aos espectros. E isto não
impede que eu te diga: todos conhecem ao sírio da Palestina,
mestre na matéria de libertar endemoninhados, e quem é que
não sabe quantas pessoas caem por terra com os olhos
arregalados e a boca cheia de espuma ao verem a lua; quantos
lunáticos este homem [o sírio] não colocou, novamente, em pé,
e mandou de volta para casa, depois de ter expulsado deles, em
troca de dinheiro, os espíritos malignos? De fato, quando estes
doentes jazem por terra diante dele e ele pergunta ao demônio
de onde ele vem e como c que ele entrou naquele corpo, o
doente não diz uma palavra. E o diabo quem responde, em
grego ou em alguma língua bárbara, dizendo quem é, de onde
veio e como foi que entrou naquela pessoa. Então, ele o expulsa
à força de esconjuros e, quando isso já não adianta, à força de
ameaças. Eu mesmo vi, certa vez, um desses diabos, que era
todo preto e como que defumado, sair de uma pessoa
{Philopseudes, 16 - os itálicos e os acréscimos entre colchetes
220são meus).
Esse intrigante exorcismo relatado por Luciano de
Samósata nos fornece vários elementos relevantes para a nossa *
LUCIANO. [Luciano de Samósata]. Relatos Fantásticos. [Traducción y
Notas de Carlos Garcia Gual, Jaime Curbera, Marisa Del Barrio y Jorge
Bergua], Madrid, Alianza Editorial, S.A., 1998, p. 126.
135
CARLGS AUGUS + ® VAILA + + I
221análise de Mc 5.1-20. Essa narrativa helenística sobre um
caso de exorcismo, ainda que seja inventada, possui muitas
coisas em comum com o relato evangélico que ora estamos
analisando. Algumas observações devem ser feitas aqui:
1) O exorcista protagonista do relato é chamado de
“sírio da Palestina”. Ao que tudo indica, Luciano
parece estar se referindo a um contemporâneo seu
(“todos conhecem ao sírio da Palestina”), pelo que
dificilmente a menção parece fazer alusão a Jesus. 221222
2) O tal “sírio da Palestina” é descrito como sendo uma
figura popular, cujos exorcismos praticados são
vistos como sua especialidade. Segundo íon, ele é
“mestre na matéria de libertar endemoninhados”.
3) As possessões demoníacas, neste relato, são
comprovadas por meio de três comportamentos
anormais, a) As pessoas “caem por terra”; b) Além
221 'Segundo Morton Smith: “E possível que esta paródia tenha sido inspirada
em alguma história do evangelho, como Mc 5.1-19. Mas, é igualmente
possível e mais provável que ambos, Luciano e o evangelho, se basearam em
um conhecimento comum da dramaturgia popular praticada pelos
exorcistas”. (Cf. SMITH, Morton. Jesus the Magician. Northamptonshire,
The Aquarian Press, 1985, p.57).
222 Esta é a opinião de Jaime Curbera, in: LUCIANO. [Luciano de
Samósata]. Relatos Fantásticos, nota 16, p.126. Aliás, segundo Morton
Smith, “em todo momento, o exorcista de Luciano não é representado como
Jesus, mas como um contemporâneo do próprio Luciano. A única
característica que sugere uma paródia de Jesus é a identificação do homem
como ‘o Sírio da Palestina’”. (Cf. SMITH, Morton. JM, p.57). Todavia, tal
referência pode sim dizer respeito a Jesus. Luciano, como satirista que era,
pode muito bem ter trocado intencionalmente a nacionalidade de Jesus -
chamando-o de “sírio”, em vez de “judeu” - justamente como forma de
satirizar a figura de Cristo.
136
sa+anás, DemêNies e lêgiã®
disso, ficam “com os olhos arregalados”; e c) Ficam
223com a “boca cheia de espuma”.
4) Um conceito animista também é visto no relato, pois
se acredita que “ao verem a lua”, muitos (os
chamados “lunáticos”) ficam endemoninhados.*224
5) Este “sírio da Palestina”, depois de exorcizar o
demônio da pessoa, mandava “de volta para casa” o
que fora endemoninhado. Jesus também age assim
em Mc 5.19: “Vai para a tua casa, junto aos teus, e
anuncia-lhes as coisas que o Senhor tem feito a ti, e
como teve misericórdia de ti”.
6) Contudo, este exorcista que era “mestre na matéria de
libertar endemoninhados” expulsava os demônios
“em troca de dinheiro”. O fato de se cobrar dinheiro
em troca da expulsão dos demônios, a princípio, nos
choca. Mas devemos nos lembrar, por exemplo, que
“judeus exorcistas ambulantes eram comuns no
Duas dessas três anormalidades, o “cair por terra” e o “espumar”, também
são vistas em Mc 9.20 e Lc 9.39,42. Porém, o terceiro comportamento, o
“arregalar dos olhos”, também pode estar implícito nestes textos.
Curiosamente, o texto paralelo ao de Mc 9.14-29, isto é, Mt 17.14-21, diz,
particularmente no verso 15, que o endemoninhado era um “lunático”. Já a
passagem paralela de Lc 9.37-43 nadadiz a esse respeito.
224 A palavra grega usada para se referir a um “lunático” é o vocábulo
0£Ár|ViáÇop.ai (selêniàzomai), que significa literalmente “estar atacado pela
lua”, ou então, “ser epilético”. (Cf. THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.573).
Segundo Daniel J. Harrington, “o lunático é normalmente tomado como uma
referência aos epiléticos (de quem se pensava na Antigüidade que a doença
estava relacionada às fases da lua). Mas o termo provavelmente incluía mais
do que os epiléticos - todos aqueles que estavam sob a nociva influência da
lua”. (Cf. HARRINGTON, Daniel J. (ed.). The Gospel of Matthew. Vol.l.
[Sacra Pagina]. Collegeville, The Liturgical Press, 1991, p.73).
137
CARL©S AUGUS+® VAILA + + I
mundo antigo”. Aliás, como disse Henri Daniel-
Rops, “havia exorcistas profissionais entre os
rabinos”, os quais, segundo ele, “iam de cidade em
cidade cruzando as estradas da Terra Santa na prática
de sua profissão”.225 226
225 PFEIFFER, Charles F. & HARRISON, Everett F. WBC, p.l 160.
226 ROPS, Henri Daniel. A Vida Diária nos Tempos de Jesus. [Tradução de
Neyd Siqueira], São Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1991,
p.201.
227 Ricardo Mariano, descrevendo um ritual exorcístico da Igreja Universal
do Reino de Deus (IURD), comenta algo que nos faz lembrar este antigo
relato de exorcismo pagão: “[...] uma mulher [...] fica possessa [...]. Logo o
demônio é amarrado e a possessa é levada ao púlpito. O pastor pergunta,
gritando, qual é o nome do demônio que a está possuindo. Vencida a
resistência inicial, recebe a resposta, com a voz cavernosa de sempre: ‘Exu
Capa-Preta’. Insolente, o Exu diz odiá-lo. O pastor, então, escarnece dele,
dizendo estar tremendo de medo. Todos riem. O pastor indaga o que o Exu
está fazendo na vida da possessa. Estou matando-a aos pouquinhos, responde
ele. Segurando-a pelos cabelos, o pastor pergunta com qual doença ele a
infligiu. Descobre que são várias as doenças que a acometem. [...] Do alto de
sua experiência com o fenômeno, o pastor diagnostica que o problema é de
natureza espiritual. [...] Após a expulsão do Exu Capa-Preta, o pastor diz que
ela está curada em nome de Jesus [...]”. (Cf. MARIANO, Ricardo.
Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo,
Edições Loyola, 2005, p.132).
7) Outro aspecto curioso desta narrativa pagã de
exorcismo é o fato de que o exorcista “pergunta ao
demônio de onde ele vem e como é que ele entrou
naquele corpo”. Esse tipo de talk show demoníaco
nos soa bem familiar, uma vez que ainda pode ser
encontrado com freqüência em algumas igrejas
neopentecostais brasileiras em nossos dias.227
8) A tomada de posse da consciência do indivíduo por
parte do demônio também pode ser vista neste relato.
Assim que o exorcista pergunta ao demônio “de onde
138
SA + ANÁS, DÊfflÔNieS E LEGIé
ele vem e como é que ele entrou naquele corpo”,
somos informados de que “o doente não diz uma
palavra”, pois “é o diabo quem responde”.
Encontramos escrito, de forma análoga, em Mc 5.9:
“E perguntava a ele: Qual é o teu nome? E ele
responde: Legião é o meu nome, porque somos
muitos”.228
Para Johnson e Dewelt, Jesus fez esta pergunta ao homem
endemoninhado, mas foi o demônio quem a respondeu: “Qual è o teu nome?
O Senhor fez esta pergunta ao homem aflito. Por qual motivo? Não há nada
tão conveniente como uma calma e simples questão para trazer um louco a si.
Não há forma mais natural de despertar em um homem que está fora de si a
consciência de sua própria personalidade do que fazê-lo dizer seu próprio
nome. O nome do homem torna-se a expressão de seu caráter e um resumo da
história de sua vida. A primeira condição de alguma cura deste homem aflito
era um retomo ao distinto sentimento de sua própria personalidade. E ele
respondeu. O homem foi perguntado, mas o demônio respondeu,
demonstrando seu total domínio sobre ele”. (Cf. JOHNSON, B.W. &
DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST]. Missouri, College Press, 1965,
p. 144). Konya observa corretamente que “o exemplo da conversação de Jesus
com um demônio no episódio do endemoninhado geraseno (...) não pode ser
usado como uma justificativa para se travar diálogo com demônios”. (Cf.
KONYA, Alex. Demônios, uma perspectiva baseada na Bíblia. [Tradução de
Daniel Faliosa]. São Paulo, Editora Batista Regular, 2002, p.76).
9) Esta narrativa pagã que descreve um exorcismo diz
ainda que o diabo responde às perguntas feitas pelo
exorcista “em grego ou em alguma língua bárbara”.
O interessante desse trecho é o fato de o diabo ser
identificado como aquele que fala a língua grega ou
então alguma língua bárbara. Dito de outra forma, o
demônio exorcizado pelo “sírio da Palestina” não fala
o idioma sírio, mas se comunica por meio de idiomas
alheios (pagãos). Talvez, a explicação para isso possa
ser encontrada no fato de que o “nós” sempre se
encontrará ao lado do bem, enquanto que o “eles”
139
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I
estará sempre em situação diametralmente oposta,
isto é, ao lado do mal. Como disse Ivo Pedro Oro:
“Os outros, que não estão no caminho da salvação e
não aderem à verdade, são o inimigo”.229 E Elaine
Pageis ainda complementa esse pensamento quando
fala sobre “certas linhas de falha na tradição cristã
que permitiram o endemoninhamento dos ‘outros’
durante toda a história cristã”.230
ORO, Ivo Pedro. O Outro é o Demônio: uma análise sociológica do
fundamentalismo. São Paulo, Paulus, 1996, p. 127.
230 PAGELS, Elaine. As Origens de Satanás: um estudo sobre o poder que
as forças irracionais exercem na sociedade moderna, p. 18.
10) Esse relato de exorcismo pagão diz ainda que o
exorcista sírio da Palestina, às vezes, via os seus
esforços exorcísticos frustrados, pois ele expulsava o
demônio “à força de esconjuros”. Todavia, o texto
prossegue dizendo que “quando isso já não adianta”,
então o exorcista expulsa o demônio “à força de
ameaças”. Talvez, tais ameaças possam encontrar
também o seu paralelo, por exemplo, em Mc 3.11,12,
quando os espíritos malignos se dirigem a Jesus
identificando-o como “o Filho de Deus” e Jesus os
ameaça para que não divulguem tal informação.
Contudo, a diferença entre os exorcismos do sírio da
Palestina e os exorcismos de Jesus reside no fato de
que Jesus nunca se valeu da “força” para expelir os
demônios. Ele sempre os expulsou com base na sua
própria autoridade.
11) Finalmente, devemos dizer algo sobre as palavras de
íon, quando declara ter visto “um desses diabos, que
era todo preto e como que defumado”. Esta menção à
cor de um desses diabos não deve ser entendida como
140
SA+ANÁS, DEmèNies E LEGIé
uma declaração racista. Antes, devemos ver nela uma
declaração simbólica, a qual associa o mal a esta cor
que, por sua vez, faz referência às trevas. Já a alusão
feita à “defumação” pode ser entendida como sendo
uma referência feita à queima de algum tipo de
substância (uma raiz?), a qual produzia um efeito
exorcístico, tal como o faziam as raízes receitadas
por Salomão, (cf. ainda: Tb 8.1-3).
1.3.7. Os Papiros Mágicos Gregos231
Baseio-me aqui principalmente em: BETZ, Hans Dieter, (ed.). The Greek
Magical Papyri in Translation, including the demotic spells. Vol. One: Texts.
Chicago & London, The University of Chicago Press, 1992. Para obter mais
informações sobre os Papiros Mágicos Gregos, veja: CHEVITARESE,
André Leonardo & CORNELL1, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo e
Helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo Antigo.
São Paulo, Annablume / Fapesp, 2007, pp.81-101. Esta obra reflete, de forma
parcial, as dissertações de mestrado em Ciências da Religião defendidas por
estes autores entre 1998 e 1999.
Os Papiros Mágicos Gregos (a partir daqui PMG)
ganharam este nome dos estudiosos, os quais o empregaram
para se referir ao conjunto de papiros do Egito greco-romano
que contêm em seu corpo uma variedade de encantos e fórmulas
mágicas, hinos e rituais. Os textos sobreviventes vão
principalmente do século II a.C.até o V século d.C.
Os PMG são importantíssimos para o nosso estudo de
Mc 5.1-20, merecendo um tópico à parte em nosso trabalho, pois
eles nos permitem conhecer como funcionavam, sobretudo, as
práticas religiosas do antigo mundo mediterrâneo helenístico. E,
dentre elas, interessa-nos em particular as referências às
fórmulas ou encantamentos utilizados com o fim de repelir
demônios. Notemos alguns textos selecionados dos PMG que
tratam destes assuntos, os quais transcrevemos abaixo:
141
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I
a) PMG IV. 86-87 232233
232 BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, p.38.
233 Ou “Para aqueles que estão possuídos por demônios”, 0 que parece ser a
melhor leitura do papiro. O manuscrito traz Ttpòç 8ai|iovtaÇopévo(u)ç. (Cf.
BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, p.38, nota 26).
234J BETZ, Bans Dieter, (ed.). GMPT, p.62.
235 Morton Smith traz aqui “Jesus Cristo”. (Cf. SMITB, Morton. Jesus the
Magician, p.63).
236 L. Michael White comenta que a expressão “eu te ordeno / conjuro” que
aparece ao longo dos PMG constitui-se tradução do vocábulo grego eksorkizo
(ou simplesmente orkizo), do qual procede 0 termo moderno “exorcismo”.
(Cf. WHITE, L. Michael. De Jesús al Cristianismo: el nuevo testamento y la
fe cristiana: un proceso de cuatro generaciones. [Traducción de José Pérez
Escobar], Navarra, Editorial Verbo Divino, 2004, pp.77,78).
7-20
Filactério contra os demônios: “HOMENOS OHK
KO URIEL IAPHEL, liberta” (adicionar ao usual),
“EHENPEROOU BARBARCHAOUCHE”.
b) PMG IV. 1227-64 234235
Excelente ritual para lançar fora os demônios: Fórmula
a scr pronunciada sobre sua cabeça: Colocar ramos de
azeitona diante dele, / e ficar cm pé atrás dele e dizer: “Salve,
Deus de Abraão; Salve, Deus de Isaque; Salve, Deus de Jacó;
Jesus Crestos, “ o Espírito Santo, o Filho do Pai, que está no
Sétimo céu, / quem está junto ao Sétimo. Venha lao Sabaoth;
que o seu poder lance para fora dele, NN, até que você lance
para longe este demônio impuro, Satã, que está nele. Eu
conjuro236 você, demônio, / quem quer que você seja, por este
deus, SABARBARBATHIOTH SABARBARBATHIOUTH
SABARBARBA-THIONETH SABARBARBAPHAI. Saia,
demônio, quem quer que você seja, e fique longe dele, NN, /
agora, agora; imediatamente, imediatamente. Saia, demônio,
porque eu amarro você com cadeias inquebráveis c
inflexíveis, c cu entrego você para o caos escuro na perdição”.
142
SA+ANÁS, DEfflffiNIffiS Ê LfGl©
Preparação: tome 7 ramos de azeitonas; para seis delas /
amarre junto as duas últimas de cada um, mas para as
restantes use-as como um chicote quando você pronunciar a
conjuração. Após ter lançado para fora o demônio, pendure ao
redor dele, NN, um fílactério, o que foi colocado sobre o
paciente após a expulsão do demônio - um fílactério com
estas coisas [escritas] sobre / uma folha de uma lata de metal:
“BOR PHOR PHORBA PHOR PHORBA BES CHARIN
BAUBO TE PHOR BORPHORBA PHORBARBOR
BAPHORBA PHABRAIE PHORBA PHARBA PHORPHOR
PHORBA / BOPHOR PHORBA PHORPHOR PHORBA
BOBORBORBA PAMPHORBA PHORPHOR PHORBA,
proteja-o, [contra] NN”.
c) PMG IV. 3007-86237
37 BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, pp.96,97.
Um amuleto testado por Pibechis (um mágico lendário
do Egito) para aqueles que estão possuídos por demônios:
Tome óleo de oliva verde com a erva mastigia e a polpa da
fruta de uma lótus, e cozinhe-as com coloridas manjeronas /
enquanto você diz, “IOEL OS SARTHIOMI EMORI
THEOCHIPSOITH SITHEMEOCH SOTHE IOE
M1M1PSOTHIOOPH PHERSOTHI AEEIOYO IOE EO
CHARI PHTHA, sai de NN”. O fílactério: Sobre uma lata
escreva / “IAEO ABRAOTH IOCH PHTHA MESENPSIN
IAO PHEOCH IAEO CHARSOK”, c pcndurc-a no paciente.
Ela é apavorante para todos os demônios, algo que eles
temem. Após colocar [o paciente] diante [de você], faça o
conjuro. Esta é a conjuração: “Eu conjuro você pelo deus dos
Hebreus, / Jesus, IABA IAE ABRAOTH AIA THOTH ELE
ELO AEO EOY IIIBAECH ABARMAS IABARAOU
ABELBEL LONA ABRA MAR01A BRAKION, quem
aparece no fogo, quem está no meio da terra, [na] neve, e [no]
fogo, TANNETIS; deixe seu / anjo, o implacável, descer e
143
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I
deixe-o designar o demônio que voa por aí nesta forma, com a
qual deus formou em seu santo paraíso, porque eu suplico ao
santo deus, [chamando] sobre AMMON IPSENTANCHO
(fórmula). Eu conjuro você, LABRIA IAKOUTH /
ABLANATHANALBA AKRAMM (fórmula) AOTH
IATHABATHRA CHACHTHABRATHA CHAMYN CHEL
ABROOTH OUABRASILOTH HALLELOU IELOSAI
IAEL. Eu conjuro você por aquele que apareceu a Osrael
(forma variante de Israel) em uma coluna de fogo e em uma
nuvem de dia (LXX, Ex 13.21,22), que salvou seu povo de
Faraó e trouxe sobre Faraó as dez pragas por causa de sua
desobediência (LXX, Ex 7.8-11.10). Eu conjuro você, todo
espírito demoníaco, a falar, qualquer que seja a sua espécie,
porque eu conjuro você pelo selo / que Salomão colocou na
língua de Jeremias, e ele falou. Você também diz qualquer que
seja a sua espécie, celestial ou aérea, quer seja terrestre ou
subterrânea, ou mundana inferior ou Ebousaeus ou Cherseus
ou Pharisaeus, diga / qualquer que seja a sua espécie, porque
eu conjuro você por deus, portador de luz, invencível, que
conhece o que está no coração de todo ser vivente, o que
formou do pó a raça humana (LXX, Gn 2.7), o que, após
trazê-los para fora da obscuridade, enche junto com as nuvens,
rega a terra com chuva / c abençoa seus frutos, [aquele] a
quem todos os poderes celestiais dos anjos c arcanjos louvam.
Eu conjuro você pelo grande deus SABAOTH, através de
quem o rio Jordão voltou para trás (LXX, Js 3.13,14; SI 113.3)
c o Mar Vermelho, / que Israel atravessou, tomou-sc
intransponível (LXX, Ex 14.27), porque eu conjuro você por
aquele que introduziu cento e quarenta línguas e as
Segundo Betz, Deissmann deriva estes nomes de demônios da LXX (Gn
15.20,21; Ex 3.8,17 etc). Os Xettociol se tomaram Xspcraioç (“demônio da
terra”), os 0epeÇáioi se tornaram «Eaptoaioç (que, portanto, têm sido
confundidos com os fariseus), e os lepovoaiot se tornaram ’ Epowdioç.
(BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, nota 395, p.96).
239 Muitas fontes judaicas falam de setenta nações e setenta idiomas no
mundo. Mas há autoridades que marcam cento e quarenta idiomas. (Cf.
BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, nota 400, p.97).
144
SA + ANÁS, DEmêNies E LEGIé
distribuiu pelo seu próprio comando. Eu conjuro você por
aquele que queimou com fogo aos obstinados gigantes com
um raio (Gn 6.4; 19.24-29), o qual o céu dos céus louva, quem
as asas do querubim louvam. Eu conjuro você por aquele que
colocou as montanhas ao redor do mar [ou] um muro de areia
e ordenou ao mar que não transbordasse (LXX, Jó 38.10,11; Jr
5.22). O abismo obedeceu (LXX, Pr 8.26-29; Jó 38. 30,34); e
você obedece, / todo espírito demoníaco, porque eu conjuro
você por aquele que faz os quatro ventos se moverem (LXX,
SI 134.7; também Gn 8.1; Nm 11.31; Jó 28.25 etc) junto dos
santos aions, [os] tal como o céu, como o mar, como as
nuvens, portador de luz, [o] invencível. Eu conjuro [você] por
aquele na santa Jerusalém, diante de quem o / fogo
inextinguível queima por todo tempo, com seu santo nome,
IAEOBAPHRENEMOUN (fórmula), aquele diante dc quem a
ardente Geena treme, chamas envolvem, irrompendo numa
explosão distante e todas as montanhas ficam amedrontadas
desde a sua fundação. / Eu conjuro você, todo espírito
demoníaco, por aquele que supervisiona a terra e faz sua
fundação tremer (LXX, SI 103.32), aquele que torna todas as
coisas que não são naquelas que são.240 E eu adjuro você,
àquele que recebe esta adjuração, / a não comer carne de
porco, c todo espírito e demônio, quem quer que seja, estará
sujeito a você. E enquanto estou conjurando, amaldiçoo uma
vez, amaldiçoando o ar desde as extremidades dos pés até a
face, c estará determinado. Mantenha-se puro, para este feitiço
/ é hebraico e está conservado no meio dos homens puros.241
240 Trata-se de uma referência à creatio ex nihilo.
241 'E muito curiosa a ligação que este PMG faz entre se abster de comer
carnede porco (uma prática que indica pureza) e o conseqüente poder sobre
os demônios. Tal como acontece em Mc 5.1-20, esse PMG também insere as
figuras dos demônios, porcos, exorcismo e impureza num mesmo contexto.
242 BETZ, Hans Dieter, (ed.). GMPT, p.313.
d) PMGCXIV. 1-14242
145
CARL®S AUGUS+® VAILA + +I
[Proteja] - lhe, NN, ó Senhor, [de todas] as más obras [c
de toda] visitação demoníaca [c] ... de Hécate e de .../ ataque e
[de toda investida?] no sono ... [de] demônios mudos [e de
toda] forma cpilctica [e de toda] epilepsia / c ... e ....
Todos esses textos encontrados nos PMG são
importantes, pois nos mostram muitas práticas e crenças
referentes aos exorcismos, as quais envolvem, até mesmo, o
próprio Jesus, como pôde ser visto no PMG IV, linha 3020, que
diz: “Eu conjuro você pelo deus dos Hebreus, / Jesus [...]”.243
Em suma, podemos chegar às seguintes conclusões a
respeito destes textos dos PMG que acabamos de citar:
Primeira, os amuletos, talismãs, benzeduras e demais
práticas apotropaicas eram utilizadas em larga escala nos PMG
com o intuito de repelir os demônios que afligiam as pessoas.
Segunda, o sincretismo e as práticas rituais supersticiosas
encontradas nos PMG transformaram tais textos numa espécie
de receituário ou manual exorcístico, os quais contêm ritos que
lembram muito, inclusive, algumas práticas do nosso contexto
neopentecostal brasileiro atual.
E a terceira e, talvez, mais importante conclusão, pelo
fato de lançar luz sobre o nosso tema, é que estas práticas
exorcísticas relatadas nos PMG descrevem como as
comunidades do antigo mundo mediterrâneo helenístico lidavam
com a questão demonológica.
Embora haja, sem dúvida alguma, diferenças entre os
exorcismos encontrados nos Evangelhos e os mencionados nos
PMG, contudo, existem também algumas semelhanças entre
ambos, como, por exemplo:
Para outros textos dos PMG nos quais o nome de Jesus aparece envolvido
em rituais de exorcismo, consulte: SMITH, Morton. Jesus the Magician,
p.63.
146
SA+ANÁS, DEfTlffiNIffiS E LEGIé
1) A ordem de comando para que o demônio saia (PMG
IV. 1240-45; cf. Mc 1.26,27);
2) A “amarração” do demônio por parte do exorcista
(PMG IV. 1245; cf. Mc 3.27);
3) O uso do nome de Jesus para expulsar o demônio
(PMG IV. 3020; cf. Lc 9.49; At 19.13);
4) A alusão às Escrituras no combate contra o mal (PMG
IV. 3030-75; cf. Mt 4. Iss; Lc 4. Iss).
1.3.8. Jesus, o Exorcista-Mor
Depois de termos falado sobre inúmeros exorcistas, tanto
no contexto judaico, como também no contexto pagão, devemos
agora nos dirigir àquele que, a meu ver, constitui-se no
paradigma da prática exorcística, o “exorcista-mor”, Jesus.244
a) Jesus e o Ambiente em que Viveu
Para falarmos sobre a figura aretológica de Jesus,
sobretudo em seu papel de exorcista, temos que retroagir até o I
século d.C. a fim de que o situemos dentro do Sitz im Leben do
Os dizeres de Charlesworth referentes a Jesus: “[ele] praticou curas
(provavelmente também exorcismos)” demonstram claramente o ceticismo
que esse autor tem quanto ao papel de Jesus como exorcista. (Cf.
CHARLESWORTH, James H. Jesus Dentro do Judaísmo: novas revelações
a partir de estimulantes descobertas arqueológicas. [Tradução de Henrique
de Araujo Mesquita], Rio de Janeiro, Editora Imago, 1992, p. 182). Já D.
Scardelai, segundo penso, declarou acertadamente que “de todas as
expressões populares que conhecemos, Jesus estava mais próximo da
corrente de líderes conhecida como carismático-hassídico que aflorava na
Galiléia no século I. O tipo do profeta hassídico (piedoso) que atuava na
Galiléia era dotado, segundo a concepção camponesa, de habilidade para
praticar milagres, curas, cujos poderes tocavam o sagrado de modo peculiar”.
(Cf. SCARDELAI, Donizete. Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus:
Jesus e outros messias. São Paulo, Paulus, 1998, p.315).
147
CAR.L©S AUGUS+® VAILA + + I
qual ele fez parte. Nesse aspecto, creio que Juan Arias possa nos
fornecer um bom resumo sobre o período histórico que
antecedeu a época neotestamentária, o qual, sem dúvida alguma,
contribuiu para que fosse delineado o cenário no qual Jesus
viveu e exerceu o seu ministério itinerante. Eis as palavras de
Arias:
(...) a Palestina esteve muito tempo sob influências
estrangeiras, principalmente fenícias e egípcias. A persa,
sobretudo, foi importante tanto para o desenvolvimento do
monoteísmo como da demonologia. Também eram conhecidas
na Palestina as práticas mágicas gregas. Nos trezentos anos que
separam a conquista de Alexandre da aparição de Jesus, a
Galilcia fora governada por gregos e romanos. Todas essas
culturas aceitavam que o universo é povoado de criaturas
sobrenaturais, como anjos, demônios, espíritos do além-túmulo
etc.245
ARIAS, Juan. Jesus, Esse Grande Desconhecido. [Tradução de Rubia
Prates Goldoni], Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, pp. 175,176. De acordo com
Bultmann: “(...) a concepção do reino de Deus é mitológica (...), como o são
assim mesmo as pressuposições em que se embasa a expectação do reino de
Deus, a saber, a teoria de que o mundo, ainda que criado por Deus, é regido
pelo diabo. Satanás e seu exército, os demônios, são a causa do mal, pecado e
enfermidade. Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de
Jesus como a do Novo Testamento, é, em linhas gerais, mitológica, por
exemplo, (...) a concepção dos milagres, especialmente a ideia da intervenção
de poderes sobrenaturais na vida interior da alma, a ideia de que os homens
podem ser tentados e corrompidos pelo demônio e possuídos por maus
espíritos. A esta concepção de mundo qualificamos de mitológica (...)”. (Cf.
BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e Mitologia. [Tradução de Daniel Costa].
São Paulo, Novo Século, 2000, pp. 13,14). Paliares, ao fazer uma crítica a
esse tipo de racionalismo bultmanniano, declara: “Nós nos recusamos a ver
em Jesus um milagreiro; ao ‘encantamento’ celeste preferimos a seriedade e
autenticidade do drama humano. Facilmente racionalizamos as narrações
sobre os milagres de Jesus, com medo de perder a seriedade do evangelho,
mas também com medo de ficar mal aos olhos dos que manipulam as idéias,
e o que é pior, com medo de ser confundidos com os pobretões ignorantes”.
148
SA+ANÁS, DEm©N!©S Ê LEGIé
Em outras palavras, Arias está dizendo que Jesus
“herdou” esse tipo de cultura que valorizava em extremo o
elemento sobrenatural. Todavia, não é somente esse autor que
pensa assim. John A. Sanford, além de relacionar o ministério de
cura de Jesus ao seu papel de exorcista,* 246 também entende que
a crença demonológica de Jesus não era nada mais, nada menos,
do que o reflexo da fé popular de sua época. Em suas palavras:
(Cf. PALLARES, José Cárdenas. Um Pobre Chamado Jesus: releitura do
evangelho de Marcos. São Paulo, Paulinas, 1988, p.38).
246 Segundo M. Forward, “está claro que Jesus de Nazaré foi lembrado como
agente de cura e exorcista. Na verdade, seu nome hebraico, Yehoshua,
significa ‘Deus é a salvação’ ou mesmo ‘Deus é a cura’”. (Cf. FORWARD,
Martin. Jesus: uma pequena biografia. [Tradução de Merle Scoss]. São
Paulo, Editora Cultrix, 1998, p.97).
247 SANFORD, John A. Mal, o Lado Sombrio da Realidade. [Tradução de
Sílvio José Pilon e João Silvério Trevisan], São Paulo, Paulus, 1988, p.51.
Gustaf Aulén comenta que “Ele (Jesus) rejeitou a visão popular animista dos
demônios, e os considerou todos como sujeitos a Satã, de modo que cada
exorcismo era um julgamento de poder contra o próprio Satã”. (Cf. AULÉN,
Gustaf. Christus Victor: an historical study of the three main types of the
atonement. [Translated by A. G. Hebert]. New York, Macmillan Publishing
Co., Inc., 1969, p.76). Segundo Stewart: “Nos dias de Jesus as doenças eram
normalmente atribuídas à agência demoníaca, não somente os casos de
‘possessão’ (...), mas todos os tipos de enfermidades. Quanto ao mundo dos
espíritos, [o povo] estava seguro de estar cheio dessas malignas influências,
emissárias do mal. Portanto, sempre que umacura era realizada, ela
significava que um desses espíritos tinha sido expulso”. (Cf. STEWART,
James S. The Life and Teaching of Jesus Christ. Nashville, Abingdon Press,
1979, p.93).
Jesus freqüentemente encontrava Satã ou seu bando de
demônios, principalmente no seu trabalho de cura, e
evidentemente concordava com a idéia popular de que muitas,
senão todas, das doenças do corpo e do espírito eram aflições
do poder do mal.247
149
CARLffiS AUGUS + ffi VAILA + + I
Já Freyne, de forma perspicaz, situa a prática exorcística
de Jesus dentro de um contexto de crítica às normas vigentes
estabelecidas, sobretudo, contra o governo romano:
Os exorcismos de Jesus não eram (...) simples histórias
de cura, ainda que cm muitos casos também fossem vistos dessa
maneira, já que no mundo antigo a enfermidade ou as
anormalidades físicas se atribuíam à presença invasora de
espíritos malignos. Ao livrar do demônio aos afetados, Jesus os
rcincorporava de novo ao mundo social do qual haviam sido
excluídos, c ao fazê-lo colocava em discussão de juízo as
normas pelas quais foram primeiro considerados desviados.
Dito brevemente, os exorcismos de Jesus constituíam uma seria
ameaça para as normas c valores preponderantes relacionados
com o poder c o controle na Galiléia herodiana, e também para
248 os chefes supremos romanos que apoiavam essas normas.
Ora, naqueles tempos antigos, época em que as pessoas
não tinham acesso a um sistema de saúde pública eficaz, a
religiosidade popular depositava toda a sua expectativa de cura,
por exemplo, nos acontecimentos milagrosos. Aliás, tal
esperança alicerçada no elemento miraculoso acabou se
estendendo até o período da Idade Média, época esta dentro da
qual Richard Gordon confere aos exorcismos um papel de
destaque:
Na Antioquia, em 1098, o tifo e a disenteria dizimaram
os cruzados, homens e cavalos. O medo generalizado da
infecção fez maravilhas para o índice de conversão ao
cristianismo, espccialmcnte porque o único recurso da saúde
publica era o exorcismo.
248 FREYNE, Sean. Jesús, un Galileo Judio: unalectura nueva dela historia
de Jesús. [Traducción de José Pedro Tosaus], Estella, Editorial Verbo Divino,
2007, pp. 199,200.
249 GORDON, Richard. A Assustadora História da Medicina. [Tradução de
Aulyde Soares Rodrigues], Rio de Janeiro, Ediouro, 1997, p.34. Para uma
150
SA+ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIé
Ora, se em meados da Idade Média o exorcismo ainda
era visto como o único recurso terapêutico disponível às
pessoas, qual não deveria ser, então, a sua importância no
cenário do I século A.D.? Aliás, deve-se dizer que os homens
que detinham o conhecimento das fórmulas exorcísticas
obtinham reputação e prestígio naquela antiga sociedade.
Sabemos que Asclépio, o deus grego da cura, por
exemplo, era invocado por aqueles que precisavam de ajuda, os
quais também o adoravam. Asclépio possuía um santuário sede
em Epidauro (uma cidade da Grécia Antiga), o qual fora erigido
no IV século a.C., sendo que próximo ao templo havia muitos
dormitórios onde os doentes ficavam hospedados, a fim de
descansarem e receberem a cura durante o seu sono. As pessoas
que eram agraciadas com a cura, como forma de gratidão,
doavam ao santuário moldes de ouro ou de prata, os quais
representavam as partes de seus corpos que haviam sido
curadas.* 251 Ou então, demonstravam-se gratos através das
ofertas trazidas ao templo. Asclépio era adorado como deus da
arte, da cura e como salvador, o qual prestava auxílio aos
homens.252
abordagem que analisa em conjunto a demonologia e a medicina, consulte:
RUSSELL, Bertrand. Religion y Ciência. [Traducción de Samuel Ramos],
México, Fondo de Cultura Econômica, 2006, pp.59-76.
GUIGNEBERT, Charles. El Mundo Judio Hacia Los Tiempos de Jesus.
[Tradução de Vicente Clavel]. México, Unión Tipográfica Editorial Hispano-
Americana, 1959, p.99.
251 Essa prática de reproduzir órgãos/partes do corpo humano (em gesso) que
foram curados, como forma de demonstrar gratidão, também é encontrada em
larga escala em nossa religiosidade brasileira. Ela pode ser vista durante a
festa do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, em homenagem a Nossa
Senhora de Nazaré e em várias regiões do Nordeste em homenagem ao Padre
Cícero e também em homenagem à Nossa Senhora Aparecida. Percebe-se,
então, que tais práticas atuais refletem crenças populares muito antigas.
252 LOHSE, Eduard. Contexto e Ambiente do Novo Testamento. [Tradução
de Hans Jõrg Witter]. São Paulo, Edições Paulinas, 2000, p.216. Para saber
151
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I
Saindo do mundo grego e indo para o contexto romano,
vemos, por exemplo, que até mesmo ao imperador romano
Vespasiano (69-79 d.C.) são atribuídas curas miraculosas. Os
historiadores romanos Tácito (c. 55-120 d.C.) e Suetônio (c. 75-
150 d.C.) narram dois milagres ocorridos em Alexandria, os
quais foram realizados por Vespasiano. Segundo eles,
Vespasiano curou um homem de sua cegueira e outro de sua
paralisia.253 Embora tais relatos sejam fantasiosos e tenham
surgido certamente com o propósito de fazer o marketing
pessoal do imperador, contudo, eles são importantes
testemunhos da miséria em que viviam os povos antigos e, além
disso, estas narrativas lendárias também explicam por que o
povo nutria grande simpatia por aqueles que faziam milagres.
Eles eram praticamente sua única esperança.
mais sobre Asclépio e as curas atribuídas a ele, consulte: WEISER, Afons. O
Que é Milagre na Bíblia, pp.39-43.
253 WEISER, Afons. Op.Cíí., pp.53-56.
254 MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico.
Vol.II, Livro III. [Tradução de Laura Rumchinsky]. Rio de Janeiro, Imago,
1998, p.170.
No mundo judaico, de forma semelhante, os taumaturgos
também eram bem quistos, uma vez que eram vistos como
pessoas dotadas de poderes especiais que poderíam ajudar o
povo diante de seu estado de extrema penúria. Os já citados,
Eleazar e Hanina Ben Dosa, são bons exemplos disso.
Assim, é dentro desse contexto pré-científico misticizado
que devemos situar Jesus e os seus milagres, com atenção
especial aos seus exorcismos. Aliás, como afirmou John P.
Meier, “os evangelhos sinóticos apresentam sete episódios
distintos de Jesus realizando um exorcismo. O fato de haver sete
‘amostras’ individuais de um tipo específico de milagre, ou seja,
o exorcismo, favorece o ponto de vista de que este constitui
maioria no ministério de Jesus”.254 Desta forma, os exorcismos
são enquadrados na categoria de milagres, assumindo papel de
destaque no ministério taumatúrgico de Jesus.
152
SA + ANÁS, DE1T1®NI®S Ê LEGIé
b) A Reputação de Jesus Como Taumaturgo-
Exorcista
Várias fontes da antiguidade judaica e greco-romana
mencionam que Jesus e seus discípulos eram conhecidos como
magos-exorcistas.255
AUNE, David. “Demonology”, ISB, 1:923. EVANS, Craig. “Jesus in
Non-Christian Sources”, DJG, pp.364-68. Apud: OROPEZA, B. J. 99
Perguntas Sobre Anjos, Demônios e Batalha Espiritual, p.53.
256 Segundo Adin Steinsaltz, o Talmude sofreu diversas perseguições e
censuras por parte da igreja católica ao longo da Idade Média e, até mesmo
após este período, a tal ponto que “onde o Talmud faz referências críticas a
Jesus ou ao cristianismo em geral, o comentário era completamente
suprimido, e o nome de Cristo era sistematicamente retirado, ainda quando a
referência não fosse negativa”. (Cf. STEINSALTZ, Adin. O Talmude
Essencial. [Tradução de Elias Davidovich], Rio de Janeiro, A. Koogan
Editor, 1989, p. 116). Para obter um bom resumo do conteúdo do Talmude
Babilônico, veja, por exemplo: AUERBACH, Leo. (ed.). The Babylonian
Talmud in Selection. New York, Philosophical Library, Inc.,1944; VIDAL,
César. El Talmud. Madrid, Alianza Editorial S.A., 2003.
257 FONROBERT, Charlotte Elisheva & JAFFEE, Martin S. (eds.). The
Cambridge Companion to Talmud and Rabbinic Literature. Cambridge,
Cambridge University Press, 2007, nota 46, p.267.
Do ponto de vista de uma abordagem negativa sobre a
pessoa e obras de Jesus,algumas tradições judaicas antigas, por
exemplo, afirmavam que “Jesus de Nazaré [...] praticava magia,
seduzia e desviava o povo de Israel” (b. Sanhedrin 43a. compare
com 107b).256 Em outro momento, somos informados por meio
do T. Hullin 2.20-23 e do B. Abodah Zarah 27b, que o Rabi
Ismael se regozija de que seu sobrinho tenha morrido antes de
poder aceitar ser curado em nome de Jesus por um certo Yaacov
ish Kefar Sekhanya.257 Tais concepções judaicas negativas
acerca de Jesus parecem refletir o antagonismo sofrido por ele
pela elite religiosa dos tempos neotestamentários, composta,
sobretudo, por saduceus e fariseus.
153
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I
Contudo, saindo dessa perspectiva extremamente
negativa da pessoa e obras de Jesus e focalizando-o de um
ângulo positivo, encontramos um testemunho muito interessante
e, ao mesmo tempo, controverso, a respeito de Jesus em Flávio
Josefo (c.37-100 d.C.) no chamado testimonium Flaviamim
(testemunho de Flávio), o qual nós transcrevemos abaixo:
Foi nessa época que surgiu Jesus, homem sábio, se é que
se deve chamá-lo de um homem. Pois era um fazedor de
milagres e mestre dos homens que recebem com alegria a
verdade. Atraiu para si muitos judeus e muitos gregos. Era
Cristo. E quando, sob a denúncia de nossos primeiros
cidadãos, Pilatos o condenou à crucificação, aqueles que
primeiro o tinham adorado não deixaram dc fazê-lo, pois ele
apareceu para eles três dias depois, ressuscitado. Como os
profetas divinos tinham anunciado junto a mil outras
maravilhas a seu respeito. E o grupo que recebeu o seu nome
- cristãos - ainda não desapareceu. (Antiguidades Judaicas,
XVIII, 63-64 - os itálicos são meus).258
Embora tais dizeres atribuídos à pena de Josefo sejam
extremamente importantes para se delinear a figura
taumatúrgico-exorcista de Jesus, uma vez que tais dizeres
descrevem Jesus como “um fazedor de milagres” e alguém de
quem se descreve “mil outras maravilhas a seu respeito”,
contudo, tal depoimento Flaviano está cercado de polêmicas e
controvérsias. A opinião prevalecente hoje é a de que o
testimonium Flaviamim tenha sofrido algumas interpelações,
isto é, algumas observações escritas na margem de um
manuscrito por algum leitor cristão piedoso do início do século
LEBEL, Mireille Hadas. Flávio Josefo: o judeu de Roma. [Tradução de
Paula Rosas]. Rio de Janeiro, Imago, 1992, p.258. Para outra tradução do
testimonium Flavianum, consulte: JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus.
Vol. 2. [Tradução de Vicente Pedroso], Rio de Janeiro, CPAD, 1992, p. 156.
154
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî
259IV, as quais foram posteriormente incorporadas ao texto. Ora,
embora tal relato esteja cercado de objeções, todavia, é
importante mencioná-lo em nosso trabalho.
Além das tradições judaicas e de Flávio Josefo, Orígenes
(c. 185-254 d.C.), um dos principais teólogos da igreja grega, em
sua conhecida obra, Contra Celso, também faz alguns
comentários interessantes sobre a prática exorcística de Jesus e
dos cristãos:
Celso declara [...]: os cristãos parecem exercer um poder
pelas invocações dos nomes de certos demônios, aludindo,
penso eu, aos exorcistas que expulsam demônios. [Orígenes:]
Mas parece caluniar evidentemente o Evangelho. Não é por
meio de invocações que eles parecem exercer um poder, mas
pelo nome de Jesus associado à leitura pública das histórias de
sua vida. Esta leitura realmente consegue muitas vezes
expulsar os demônios dos homens, sobretudo quando os
leitores lêem com uma disposição sadia de verdadeira fé. Mas
o poder de Jesus é tão grande contra os demônios que às
vezes, ainda que pronunciado por pessoas más, produz seu
efeito. [...] Em seguida [Celso], acusa o próprio Salvador: Foi
por magia que ele pôde operar os milagres que pareceu
realizar [...]. [Orígenes continua:] c claro que os cristãos não
utilizam nenhuma prática de encantamento, mas invocam o
nome de Jesus juntamente com outras palavras nas quais eles
têm fé, conforme a divina Escritura. (Contra Celso I, 6 - os
itálicos e os acréscimos entre colchetes são meus).* 260
LEBEL, Mireille Hadas. Op.Cit., p.259. Para uma discussão mais
detalhada sobre a polêmica em tomo do testimonium Flavianum, consulte a
mesma autora, in: Op.Cit., pp. 258-262.
260 ORÍGENES. Contra Celso. [Introdução e Notas de Roque Frangiotti;
Tradução de Orlando dos Reis], São Paulo, Paulus, 2004, pp.45,46.
Nesse relato de Orígenes, Celso declara que “foi por
magia que ele [Jesus] pôde operar os milagres que pareceu
155
CARLOSAUGUS+O VAILA++I
realizar”. Tal declaração se assemelha àquela já citada, segundo
a qual “Jesus de Nazaré [...] praticava magia, seduzia e desviava
o povo de Israel” (b. Sanhedrin 43a.).261
Deve-se lembrar aqui que, segundo o Didaqué V, 1 (o livro de instrução
religiosa dos primeiros cristãos, que data de fins do I século d.C.), o caminho
da morte envolvia as “práticas mágicas”. (Cf. STORNIOLO, Ivo &
BALANCIN, Euclides Martins. (Trads.). Didaqué. São Paulo, Paulus, 2007,
p. 17). Para um estudo detalhado sobre a magia do ponto de vista sócio-
antropológico, consulte: MAUSS, Marcei. Sociologia e Antropologia.
[Tradução de Paulo Neves]. São Paulo, Cosac Naify, 2003, pp.47-181.
262 De acordo com E. P. Sanders, “o exorcismo é (...) o tipo de cura mais
proeminente nos Evangelhos sinóticos”. (Cf. SANDERS, E.P. A Verdadeira
História de Jesus. [Tradução de Teresa Martinho Toldy e Marian Toldy].
Cruz Quebrada, Editorial Notícias, 2004, p. 193).
Além desse texto que demonstra claramente o poder de
Jesus sobre os demônios, devemos dizer que até mesmo os não-
cristãos reputavam Jesus como um poderoso exorcista, pois
usavam seu nome nas práticas exorcísticas (cf. Testamento de
Salomão 6.8; 22.20; Contra Celso II, 49; PMG IV, 1234;
compare com Lc 9.49; At 19.13).
Finalmente, os Evangelhos - principalmente os sinóticos
- relatam de forma acentuada o papel de exorcista
desempenhado por Jesus.262
Jesus expulsa um espírito imundo de um homem na
sinagoga de Cafarnaum (Mc 1.21-28; Lc 4.31-37); Ele efetua
muitas curas e exorcismos (Mc 1.32-34; Mt 4.23,24; Lc
4.40,41); Ele é acusado de expulsar os demônios por Belzebu
(Mc 3.22-30; Mt 12.22-32; Lc 11.14-23); Ele liberta o
endemoninhado geraseno da legião de demônios que o possuía
(Mc 5.1-20; Mt 8.28-34; Lc 8.26-39); Ele exorciza o demônio
que possuía a filha da mulher sirofenícia (Mc 7.24-30; Mt
15.21-28); Ele expulsa o demônio de um rapaz, o qual o possuía
desde a sua infancia, causando-lhe a mudez e a surdez (Mc 9.14-
29; Mt 17.14-21; Lc 9.37-43); Ele cura uma mulher de um
156
sa+ànás, DemêNies e legiã®
espírito de enfermidade num dia de sábado na sinagoga (Lc
13.10-17); Ele expulsa o demônio de um homem, o qual lhe
causava a mudez (Mt 9.32-34); E, por fim, Jesus expulsa sete
263demônios de Maria Madalena (Mc 16.9).
Assim, concluímos nossa resumida abordagem sobre
Jesus, o exorcista-mor. Tal abordagem nos mostra de forma
inequívoca que a prática exorcística de Jesus foi um aspecto
central em seu ministério público.
1.4. Conclusão
Tendo em vista tudo o que foi dito até aqui sobre
Satanás, demônios e exorcismos, podemos fazer os seguintes
apontamentos:
Primeiro, Satanás só adquire o status de personificação
do mal de maneira efetiva nas páginas do Novo Testamento,
uma vez que nas Escrituras veterotestamentárias tal contorno
ainda não está bem definido.
Segundo, os demônios praticamente não aparecem nas
páginas do AT hebraico, sendo que só começam a ser mais
notados por meio da LXX, a qual, como vimos, tratou de
demonizar os deuses e ídolos pagãos. Além disso, o vínculo
existente entre Satanás e os demônios, bem como, a relação
hierárquica entre ambos, somente passa a ser percebida a partir
do período intertestamentário, quando então uma espécie de
“configuração organizacional” entre Satanás e os demônios
começa a ser elaborada. Além do mais, a demonologia bíblica *
Embora o trecho de Mc 16.9-20 não faça parte do texto original de
Marcos, não estandonos melhores manuscritos, todavia, é importante
mencioná-lo aqui, uma vez que tal relato descreve sete demônios possuindo o
corpo de uma só pessoa, o que nos faz pensar na “mega-possessão” realizada
no geraseno pela legião demoníaca em Mc 5.1-20.
157
CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I
encontra o ápice de seu desenvolvimento somente no I século
d.C., principalmente através das inúmeras menções
demonológicas encontradas nos escritos do NT.
Terceiro, os exorcismos, em conseqüência da escassez de
referências feitas aos demônios, também não são vistos nas
páginas do AT, com exceção do exorcismo feito por Davi em
relação a Saul, o qual, mesmo assim, está cercado de
controvérsias com relação ao seu real significado. Já nas
literaturas apócrifa e pseudepigráfica, bem como, na tradição
judaica e no contexto pagão, tais relatos exorcísticos encontram-
se em maior número, demonstrando claramente que a prática
exorcística passou por um processo evolutivo ao longo dos
tempos, até adquirir seu “formato final” como encontrado no
NT.
Quarto, Jesus surge no cenário do I século dentro de um
contexto no qual as enfermidades são atribuídas aos demônios,
os quais, por sua vez, também proliferam por toda parte no
mundo antigo. Tais fatores propiciam o ambiente adequado para
que Jesus atue como taumaturgo e, mais precisamente, como
exorcista.
E em quinto e último lugar, a prática exorcística de
Jesus, como relatada nos Evangelhos, encontra certos paralelos
em Eleazar e em Hanina ben Dosa (na tradição judaica) e em
Apolônio de Tiana (no contexto pagão). Porém, deve ser dito
aqui que as diferenças entre Jesus e tais exorcistas são maiores
do que as semelhanças entre ambos. Jesus, ao contrário destes,
nunca usa algum tipo de amuleto, encantamento, raiz, feitiço, ou
mágica para expulsar os demônios, antes, ele os expulsa com
base na sua própria autoridade como Filho de Deus e sem que
precise invocar o nome de qualquer outro “deus” ou
“personagem” em seus exorcismos. Dessa forma, Jesus é visto
como um exorcista sem paralelos na história.264 As suas práticas
264 A tese de PhD de Estevan Frederico Kirschner traz essa mesma conclusão
diante da insistência de eruditos britânicos e alemães de que os exorcismos de
158
sa+anás, DemêNies £ legiã©
exorcísticas possuem um caráter emblemático, pois ele é “o”
Exorcista-Mor.
Jesus e de outros personagens de seu tempo são, em última análise, a mesma
coisa. (Cf. KIRSCHNER, Estevan Frederico. The Place of the Exorcism
Motif Mark's Christology With Special Reference to Mark 3.22-30.
Dissertação de Doutorado, London, London School of Theology, 1988,
p.209).
159
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I
160
CAPÍTUt© II
ANÁLISE EXEGÉTICA DE fflC 5.1-20
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I
162
SA+ANÁS, DE1TI®NI®S E LEGIî
CAPÍTULO II - ANÁLISE EXEGÉTICA
DE MC 5.1-20
2.1. Análise Sincrônica
Nosso próximo passo será fazer a análise sincrônica (de
cróv, “com” + xpóvoç, “tempo”) de Mc 5.1-20. Essa abordagem
“analisa os textos da maneira como se apresentam para o
intérprete, independentemente do processo pelo qual a sua
tradição possa ter passado até alcançar o estágio de evolução
final”.265 Tal análise será composta pelas seguintes etapas:
Tradução, Segmentação e Estruturação do Texto e Análise
Lingüística, Lexicográfica, Morfológica e Estilística.266 Por fim,
trataremos da Análise de Conteúdo. A seguir, eis a minha
tradução de Mc 5.1-20.267
A. O Texto Original de Mc 5.1-20 e a Sua
Tradução
265 WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia.
São Leopoldo, Sinodal / São Paulo, Paulus, 1998, p.337.
266 Sigo aqui (com exceção feita à análise sintática do texto) a ordem
encontrada em: SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese
Bíblica. São Paulo, Paulinas, 2000, pp. 83-172.
267 O texto utilizado para a tradução é o de ALAND, Barbara, ALAND,
Kurt, KARAVIDOPOULOS, Johannes, MARTINI, Carlo M. & METZGER,
Bruce M. The Greek New Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft,
2005.
1. Kat r|A0ov eiç to trépav
rfjç 0aÀáoor|ç elç xqv /wpctv
tcòv TepaoriiAÔV'.
2. Kal é^eÀOÓPTOç airroê èk
1. E vieram para o outro lado
do mar, para a região dos
Gerasenos.
2. E saindo ele do barco, logo
163
CARL®S AUGUS + ® VAILA + + I
toü TrÀoíot) eüGòç üirr|VTr|O6V
aÓTW ck tgjv pvqpeíwv
àvGpwiroç èv irveópaTL
áKaôápTtp,
3. OÇ TT]V koítoÍkt]Glv fí/fv ev
tolç pvripaoiv, Kai oüõè
áÀóoei oükctl oòôeiç èôóvaTO
aÜTÒv ôíjoaL
4. ôià to aÜTÒv iroÀÀáKiç
néõaLç Kai àÀóoeoLV Ô6Ôéo0aL
Kai ôieoKáoQai Útt’ aÒTOü ràç
áÀóocLç Kai tcíç iréôaç
ovvTfTpL(|)9ai, Kai oüôeiç
LO/uev aÜTÒv ôap.áoai/
5. Kai ôià iravTÒç vdktoç Kai
qpx-paç èv tolç pvqpaoLV Kai
èv tolç õpeoiv r]V KpáCcov Kai
KaTaKÓlTTQV éaOTÒV ÀÍ0OLÇ.
6. Kai iõcòv tÒv ’Iqooüv àirò
paKpóOev éõpapev Kai
•frpoocKÚvqoev aÜTtô
7. Kai Kpá^aç (jjGOvf) iicyáÀij
Àéyei, Tí èpoi Kai ooí, Trpoü
UL6 TOÜ 06OÜ TOÜ ÒlJííOTOU;
ÓpKÍCw 06 TÒV 06ÓV, gf| p.6
Paoavíoflç.
8. eÀcycv yàp aÚTCÔ, ’T^eÀGe
to nveüpa tò 0Ka0apTOV 6K
TOÜ áv0pcÓlTOO.
9. Kai ÈTTTípcÓTa aÒTÓv, Tí
óvopá oot; Kai Àeyei aÜTÓ,
Acyicòv òvopá poi, õtl itoààol
eopev.
encontrou-se com ele dos
sepulcros um homem com
espírito imundo,
3. o qual tinha a morada nos
sepulcros, e nem com corrente
ninguém podia prendê-lo,
4. por isso, ele tinha sido preso
muitas vezes com algemas e
correntes, e tinham sido
rompidas por ele as correntes,
e as algemas tinham sido
esmagadas, e ninguém podia
subjugá-lo;
5. e continuamente, de noite e
de dia, estava nos sepulcros e
nos montes gritando e cortando
a si mesmo com pedras.
6. E, vendo a Jesus de longe,
correu e prostrou-se perante
ele,
7. e gritando com forte voz,
disse: “O que a mim e a ti,
Jesus, filho do Deus
Altíssimo? Conjuro a ti por
Deus, não me atormentes”.
8. Pois dizia a ele: “Sai,
espírito imundo, do homem”.
9. E perguntava a ele: “Qual é
o teu nome?” E respondeu-lhe:
“Legião é o meu nome, porque
somos muitos”.
164
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî
10. Kal napeKaÀci auxòv
iroÀÀà iva |1T) aúxà àTrooxeÍÀr]
’éfr) Tf)ç xwpaç.
11. ’Hv ÔÈ CKfl Trpòç XCÔ Õp6L
áyéÀq xoípoúv peyáÀq
P00K0p.6VT|’
12. Kai. irapeKaÀeoav auxòv
Àéyovxcç, né|ii|íov fjpâç eiç
xouç x°Lpobç, 'iva flç aúxouç
f ioéÀôojpev.
13. Kal èiréxpei|í6V aúxoiç. Kal
èÇcÀOóvxa xà irveúpaxa xà
ÓKáôapxa ftoíjÀQov eiç xouç
Xoípouç, Kal coppipcv T] áyéÀri
Kaxà xou Kpripvoíj eiç xpv
QáÀaoaav, wç ôloxÍàlol, Kal
èirvíyovxo c-v xrj ôaÀáoor].
14. Kal oí póoKOVTGÇ aúxouç
ecfibyov Kal àirfiyyeiÀav etç
TT|v itÓàlv Kal eiç xouç
àypoúç- Kal rjÀOov lôeiv xí
éoxLV xò yeyovòç
15. Kal ’épxovxai irpòç xòv
’Irpoúv Kal Qeupoboiv xòv
ôaipovtCópfvov Ka0T|pevov
Ipaxiopévov Kal
oax|)povobvxa, xòv èoxpKÓxa
xòv Àeyicôva, Kal ècfjopfiQqoav.
16. Kal ôtriyTÍoavxo aúxoiç oí
lôóvxfç iTGÕç èyévexo xcô
ôaipoviCopévcü Kal irepl xôv
10. E implorava-lhe muito para
que não os mandasse para fora
da região.
11. E estava ali, perto do
monte, uma grande manada de
porcos pastando;
12. E suplicaram-lhe, dizendo:
“Envia-nos para os porcos, a
fim de que neles entremos”.
13. E permitiu-lhes. E tendo
saído, os espíritos imundos
entraram nos porcos, e
precipitou-se a manada do
despenhadeiro para o mar,
cerca de dois mil, e se
afogaram no mar.
14. E os que tratavam deles
fugiram e anunciaram na
cidade e nos campos; e saíram
para ver o que tinha acontecido
15. E chegam para Jesus e
vêem o endemoninhado
sentado, vestido, e em perfeito
juízo, o que havia tido a legião,
e temeram.
16. E os que tinham visto
relataram a eles como
aconteceu ao endemoninhado e
a respeito dos porcos.
17. E começaram a suplicar-
165
CAR.L©S AUGUS + ® VAILA + + 1
XOÍptüV.
17. Kai qpÇavTO TrapaKaÀelv
aí)TÒv aireAGeiv ànò twv
ôpíwv aVTCÒV.
18. Kai èpPaívovTOç aikov eiç
tò ttàolov irapeKaÀei aikòv ô
ôaipovioGeiç 'iva per’ auToí) rj.
19. Kai ovk àc|)f|K6V aírróv,
àÀÀà Àcyc-i aiiTCÔ, "Y-iraye eiç
ròv oikÓv ooi) irpòç toÒç ooòç
Kai airayytiXov aÒTOiç òoa ô
KÓpióç ooi ireTTOÍriKev Kai
■qÀérioév oe.
20. Kai àníjÀGevKai rp^aTO
Kripúooeiv èv TT| AfKairóÀei
òoa èiroíqocv aÓTiò ó ’Irioouç,
Kai irávTeç èGaúpaCov.
lhe para sair dos territórios
deles.
18. E entrando ele no barco,
suplicava-lhe o que tinha
estado endemoninhado para
que com ele estivesse.
19. E não lhe permitiu, mas
disse-lhe: “Vai para a tua casa,
junto aos teus, e anuncia-lhes
as coisas que o Senhor tem
feito a ti e como teve
misericórdia de ti”.
20. E partiu e começou a
proclamar na Decápolis as
coisas que Jesus fez para ele, e
todos se admiravam.
B. Segmentação e Estruturação do Texto
Pelo fato de Mc 5.1-20 ser um texto narrativo,
segmentaremos o texto, bem como, o estruturaremos tendo
como base os seus sujeitos, ou seja, aqueles que aparecem e
agem no texto. Tal leitura com ênfase nos sujeitos e em suas
ações (dividida por blocos) irá nos ajudar a definir a estrutura
básica para a nossa perícope. Para tanto, ofereço a seguir a
minha proposta estrutural para a passagem em questão.
B.l. O Cenário e as Características do
Endemoninhado (5.1-5)
la Kai rjÀGov eiç tò irèpav Tfjç GaÀáaoriç
b eiç tt|v xúpav tóõv repaoqvwv.
166
sa+anás, DemêNies ê legiã©
la
b
E vieram para o outro lado do mar,
para a região dos Gerasenos.
2a Kal èÇcÀÔóvToç atirou ék toíj ttàoÍou
b eúQuç úirriuTriaev aurcâ c-k twv puripeícov
c àvOpco-rroç év irvfúpaTi aKaSaprcp,
2a E saindo ele do barco,
b logo encontrou-se com ele dos sepulcros
c um homem com espírito imundo,
3a bç KaToÍKT|OLP èv TOLÇ pVlípaOLV,
b Kal oòôè áÀúoei oòkÉtl ouôelç èôúvaTO aúròv Spoai
3a o qual tinha a morada nos sepulcros,
b e nem com corrente ninguém podia prendê-lo,
4a õià to avTÒv iroÀÃáKLç iréôaLç Kal áÀúoeoiv ôeôéoôai
b Kal ÔLeairáoOai úir’ avroO ràç àÀóofiç
c Kal ràç iréõaç auvrerpiijjGai,
d Kal oúôelç lo/urv auxòv ôapáoaL-
4a por isso, ele tinha sido preso muitas vezes com algemas e
correntes,
b e tinham sido rompidas por ele as correntes,
c e as algemas tinham sido esmagadas,
d e ninguém podia subjugá-lo;
5a Kal ôià iravTÒç
b vuktoç Kal rpépaç
c êv tolç pvripaoiu Kal èv tolç ópeotv qv
d KpáCtov
e Kal KaraKoirTuu éavwv ÀíQoiç.
5a e continuamente,
b de noite e de dia,
c estava nos sepulcros e nos montes
d gritando
167
CARL®S AUGUS+ffl VAILA + + I
e e cortando a si mesmo com pedras.
Aqui, neste primeiro bloco, os sujeitos principais da ação
narrada são: Jesus, os seus discípulos (ainda que citados
indiretamente) e o endemoninhado, sendo que a ênfase cai
sobre este último através da descrição detalhada da lastimável
condição em que se encontra, a qual é resultante de seu estado
de homem possuído. No que se refere a Jesus e seus discípulos,
são eles que atravessam o mar a fim de chegarem até a outra
margem, conforme a iniciativa tomada pelo próprio Jesus na
perícope anterior que trata da tempestade que é acalmada (cf.
Mc 4.35-41).
B.2. O Duelo Entre Jesus e os Demônios (5.6-10)
6a Kttl ÍÔÒ)V TOP ’Ir|Oo0v CXTTÒ |iaKpÓ06V
b ’éôpapev
c Kai irpooeKÚvr|oev aura)
6a E, vendo a Jesus de longe,
b correu
c e prostrou-se perante ele,
7a Kai Kpá^aç
b cfxjoufl peyáÀp Àéyfi,
c Tí èpoi Kai ooí, ’Irjoou
d ulè toô 0eoú toô úi|norov;
e ópKÍCa) oe TÒV 0eóv,
f pf) pe paoavíorjç.
7a e gritando
b com forte voz, disse:
c “O que a mim e a ti, Jesus,
d filho do Deus Altíssimo?
e Conjuro a ti por Deus,
f não me atormentes”.
168
SA+ANÁS, DEméNieS E LEGIî
8a
b
c
d
eXryev yàp avuqj,
”E^À9e
to TrveOpa to àicáôapTOU
tK toü àvQpcó-irou.
8a
b
c
d
Pois dizia a ele:
“Sai,
espírito impuro,
do homem”.
9a
b
c
d
e
Kal èirrípcÓTa aÒTOU,
Ti bvopá oo t;
Kal Àcyci aincô,
Aeyubv òvopá pot,
OTL TTOÀÀOÍ èopev.
9a
b
c
d
e
E perguntava a ele:
“Qual é o teu nome?”
E respondeu-lhe:
“Legião é o meu nome,
porque somos muitos”.
10a
b
Kal TTapeKaAei aòrov noÀÀa'
'iva pq airuà àuooTeÍÀT] rijç xwpaç
10a
b
E implorava-lhe muito
para que não os mandasse para fora da região.
Este segundo bloco nos mostra de forma evidente que os
sujeitos principais são Jesus e os demônios. Aqui é narrado o
duelo existente entre ambos, o qual descreve de forma muito
clara e inequívoca a supremacia do Filho do Deus Altíssimo
sobre a Legião demoníaca.
169
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I
B.3. A Manada de Porcos e o Seu Trágico Fim
(5.11-13)
são Jesus, os demônios e os porcos, com especial destaque
dado a estes últimos. Neste trecho, Jesus expulsa os demônios
11a
b
THv Ôè CK6L irpòç Tíô ÓpeL
àyéÀT] /oípcov peyáÀri pooKopévr]-
11a
b
E estava ali, perto do monte,
uma grande manada de porcos pastando;
12a
b
c
Kai napfKáÀfoav aòròv Àéyovreç,
riépi|jov T]pâç eiç touç %oípouç,
'iva c-iç aikoòç eioéÀOwpev.
12a
b
c
E suplicaram-lhe, dizendo:
“Envia-nos para os porcos,
a fim de que neles entremos”.
13a
b
c
d
e
f
g
13a
b
c
d
e
f
g
Kai 61T6Tpfl|jfV atlTOLÇ.
Kai èÇeÀOóvta
rà irveúpara rà àKaOapra eiofiÀQov eiç touç xoípouç,
Kai óípprioev q àycÀq
Kara roí) Kpqpvoí) eiç rqv QáÀaooav,
óç ôioxíXioi,
Kai èirvíyovro èv rf| OaÀáooT].
E permitiu-lhes.
E tendo saído,
os espíritos imundos entraram nos porcos,
e precipitou-se a manada
do despenhadeiro para o mar,
cerca de dois mil,
e se afogaram no mar.
Neste terceiro bloco verifica-se que os sujeitos principais
170
SA+ANÁS, Dem®NI®S £ LEGIî
do homem, os quais entram nos porcos. Estes, por sua vez, se
precipitam de um despenhadeiro e morrem afogados.
B.4. A Reação das Testemunhas Diante do
Milagre (5.14-17)
14a
b
c
d
Kal 01 PÓOKOVTCÇ aÚTOUÇ
Kal àirriYYciÀav elç Tqv itÓàlv Kal elç touç aYpoúç-
Kal fjÀBov lôeiv rí ècniv to y^Vovoç
14a
b
c
d
E os que tratavam deles
fugiram
e anunciaram na cidade e nos campos;
e saíram para ver o que tinha acontecido
15a
b
c
d
e
f
g
15a
b
c
d
e
f
g
16a
b
c
Kal ’ép/oviai TTpòç tov Trpouv
Kal OeaipoüoLV ròv ôaipoviCópePov
Ka9f||J+vov
Ipariopévov
Kal OGJcjjpouoüuTa,
tÒu èaxnKÓra tou Àey iwva,
Kal è(|)opií6r|oav.
E chegam para Jesus
e vêem o endemoninhado
sentado,
vestido,
e em perfeito juízo,
o que havia tido a legião,
e temeram.
Kal ô ltiytÍcjcxvt0 aÓTolç
ol iôóizceç
TTGÒç ÈY^uero tó 0aipoui(o|ieva) Kal irepl túv /oípcov.
16a E relataram a eles
171
CARL©S AUGUS + ® VA1LA + + I
b os que tinham visto
c como aconteceu ao endemoninhado e a respeito dos
porcos.
17a Kai ■qpÇavro irapaKaÀelv aú-rov
b áircÀOciv àirò tgòv ópíwv aÚTÓjv.
17a E começaram a suplicar-lhe
b para sair dos territórios deles.
Neste quarto bloco, nota-se a presença dos seguintes
sujeitos: os porqueiros, os moradores das cidades e dos
campos e o ex-endemoninhado. Aqui se deve fazer referência
especial às testemunhas do milagre ocorrido, as quais serão
responsáveis por desencadear toda a sucessão de fatos que
culminará com a expulsão de Jesus do território gentílico
geraseno.
B.5. O Comissionamento do Ex-Endemoninhado
(5.18-20)
18a
b
c
d
Kai ègpaívovTOÇ aÚTOÜ elç to ttàoiov
uapfKáÀei aÚTÒv
Ó ÔaLgOVLOÔclç
'iva per’ aurou rj.
18a
b
c
d
E entrando ele no barco,
suplicava-lhe
o que tinha estado endemoninhado
para que com ele estivesse.
19a
b
c
d
e
f
Kai ovk à^íjKfv aÒTOV,
áAAà Àéyei avuõ,
"Yirayc ctç tov oikov ood
TTpOÇ TOUÇ OOVÇ
Kai àTTáyYfiÀov aórolç óaa ô KÚpióç ooi -rreTTOÍqKev
Kai qÀéqoév oe
172
SA+ANÁS, DEfllêNieS E LEGIé
19a
b
c
d
e
f
E não lhe permitiu,
mas disse-lhe:
“Vai para a tua casa,
junto aos teus,
e anuncia-lhes as coisas que o Senhor tem feito a ti
e como teve misericórdia de ti”.
20a
b
c
d
Kai àirrjÀOev'
Kai líp^aTO KTipuaoeiv èv -ufj AcKairóÀci
õoa éiroír|oev aúná) ô ’Ir|oouç,
Kai uávTeç éOaúpaCov.
20a
b
c
d
E partiu
e começou a proclamar na Decápolis
as coisas que Jesus fez para ele,
e todos se admiravam.
Por fim, neste quinto e último bloco podemos notar os
seguintes sujeitos que aparecem em nosso texto segmentado e
estruturado: Jesus, o ex-endemoninhado e os habitantes da
Decápolis. A partir desta perspectiva textual que visa focalizar
os sujeitos e as suas respectivas ações, podemos desenhar,
portanto, o seguinte quadro esquemático:
Bloco Mc 5.1-20 Os sujeitos e suas
ações
laE vieram para o outro
lado do mar,
b para a região dos
Gerasenos.
2a E saindo ele do barco,
b logo encontrou-se com
ele dos sepulcros
c um homem com
espírito imundo,
O Cenário e as
Características do
Endemoninhado
(5.1-5)
Jesus e seus discípulos
se aproximam de
Gerasa. Dos sepulcros
sai um homem
endemon inhado.
173
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I
1
3a o qual tinha a
morada nos sepulcros,
b e nem com corrente
ninguém podia prendê-lo,
4a por isso, ele tinha
sido preso
muitas vezes
com algemas
e correntes,
b e tinham sido
rompidas por ele as
correntes,
c e as algemas tinham
sido esmagadas,
d e ninguém podia
subjugá-lo;
5a e continuamente,
b de noite e de dia,
c estava nos sepulcros
e nos montes
d gritando
e e cortando a si
mesmo com pedras.
2
6a E, vendo a Jesus de
longe,
b correu
c e prostrou-se perante
ele,
7a e gritando
b com forte voz, disse:
c “0 que a mim e a ti,
Jesus,
d filho do Deus
Altíssimo?
e Conjuro a ti por
O Duelo entre Jesus e
os Demônios (5.6-10)
Os demônios
reconhecem a
autoridade de Jesus
sobre eles. Jesus inicia
o exorcismo.
174
SA + ANÁS, DÊrtlÔNieS £ LEGIî
Deus,
f não me atormentes”.
8a Pois dizia a ele:
b “Sai,
c espírito impuro,
d do homem”.
9a E perguntava a ele:
b “Qual é o teu nome?”
c E respondeu-lhe:
d “Legião é o meu
nome,
e porque somos
muitos”.
10a E implorava-lhe
muito
b para que não os
mandasse para
fora da região.
3
11a E estava ali, perto do
monte,
b uma grande manada
de porcos pastando;
12a E suplicaram-lhe,
dizendo:
b “Envia-nos para os
porcos,
c a fim de que neles
entremos”.
13a E permitiu-lhes,
b E tendo saído,
c os espíritos imundos
entraram nos porcos,
d e precipitou-se a
manada
e do despenhadeiro
A Manada de Porcos
e o Seu Trágico Fim
(5.11-13)
Jesus exorciza os
demônios. Os
demônios entram nos
porcos. Os porcos
morrem afogados.
175
CAR.LSS AUGUS+© VAILA + +I
para o mar,
f cerca de dois mil,
g e se afogaram no
mar.
4
14a E os que tratavam
deles
b fugiram
c e anunciaram na
cidade e nos campos;
d e saíram para ver o
que tinha acontecido
15a E chegam para Jesus
b e vêem o
endemoninhado
c sentado,
d vestido,
e e em perfeito juízo,
f o que havia tido a
legião,
g e temeram.
16a E relataram a eles
b os que tinham visto
c como aconteceu ao
endemoninhado e a respeito
dos porcos.
17a E começaram a
suplicar-lhe
b para sair dos
territórios deles.
A Reação Das
Testemunhas Diante
do Milagre (5.14-17)
Reação ao milagre:
porqueiros e
moradores
testemunham o
milagre. O que fora
endemoninhado
recobra sua saúde.
5
18a E entrando ele no
barco,
b suplicava-lhe
c o que tinha estado
endemoninhado
d para que com ele
O Comissionamento
do Ex-
Endemoninhado
(5.18-20)
176
sa+anás. DemêNies e legiã®
estivesse.
19a E não lhe permitiu,
b mas disse-lhe:
c “Vai para a tua casa,
d junto aos teus,
e e anuncia-lhes as
coisas que o Senhor tem
feito a ti
f e como teve
misericórdia de ti”.
20a E partiu
b e começou a
proclamar na Decápolis
c as coisas que Jesus
fez para ele,
d e todos se
admiravam.
Jesus não permite que
o ex-endemoninhado o
siga. Este se torna um
missionário. Os
habitantes de
Decápolis se admiram
diante do milagre
ocorrido.
Resumindo, nossa proposta estrutural para a perícope de
Mc 5.1-20 foi esquematizada conforme o seguinte quadro:
1. O Cenário e as Características do Endemoninhado
(5.1-5);
2. O Duelo Entre Jesus e os Demônios (5.6-10);
3. A Manada de Porcos e o Seu Trágico Fim (5.11-13);
4. A Reação das Testemunhas Diante do Milagre (5.14-
17);
177
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I
5. O Comissionamento do Ex-Endemoninhado (5.18-
20).
Todavia, além do nosso ponto de vista pessoal,
gostaríamos de fornecer também a opinião de alguns estudiosos
sobre o assunto, os quais, como teremos a oportunidade de
notar, não divergem entre si de forma tão significativa quanto a
estrutura que adotam para Mc 5.1-20.268 Apresentamos aqui
quatro exemplos.
Todavia, uma estrutura mais reduzida é defendida por A. R. Carmona,
que divide a perícope de Mc 5.1-20 homileticamente em apenas duas partes:
1) o que Jesus pode (fazer); e 2) o que não pode. (Cf. CARMONA, Antonio
Rodríguez. Evangelio de Marcos. [Comentários a la Nueva Biblia de
Jerusalén]. Bilbao, Desclée De Brouwer, 2006, pp.64-66).
269 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST],
Missouri, College Press, 1965, p.140,141. Percebe-se nos itens 1 e 3 a
predileção dos autores pela localidade de Gadara.
a) B. W. Johnson e Don Dewelt
Para estes dois estudiosos, a estrutura de Mc 5.1-20 é bem
enxuta, sendo dividida em três partes conforme segue:
1. O Endemoninhado Gadareno (5.1-8);
2. A Legião e os Porcos (5.9-13);
3. Cristo e os Gadarenos (5.14-20).269
b) Vincent Taylor
Estruturalmente, Taylor encontra os rudimentos de um
quarto ato no drama das cenas, retratando:
178
sa+anás, DemêNies e legiã®
1. Jesus e o Endemoninhado (5.1-10);
2. Os Porcos (5.11-13);
3. As Pessoas da Cidade (5.14-17);
4. O Homem Liberto (5.18-2O).270
TAYLOR, Vincent. The Gospel According to St. Mark. New York,
Macmillan, 1966, p.277.
271 Citado por GUELICH, Robert A., in: Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC].
Dallas, Word Books, Publisher, 1989, p.274.
c) Rudolf Pesch
Pesch também divide a estrutura do texto em quatro
partes, mas de forma distinta de Taylor, com exceção dos itens 3
e 4:
1. O Cenário e a Descrição da Doença (5.1-5);
2. Jesus e os Demônios (5.6-13);
3. As Testemunhas (5.14-17);
4. O Homem Curado (5.18-20).271
d) Robert A. Guelich
Por fim, Guelich, diferentemente dos anteriores, estrutura
a passagem de Mc 5.1-20 dividindo-a em cinco partes e, como
pode ser percebido, minha estrutura é mais parecida com esta,
com exceção dos itens 1 e 5 que possuem pequenas variações
em seu enunciado:
1. O Cenário (5.1-5);
179
CARLOS AUGUS + O VAILA + +I
2. Jesus e os Demônios (5.6-10);
3. Os Porcos (5.11-13);
4. As Testemunhas (5.14-17);
5. A Reação do Homem Curado (5.18-20).272
77? Idem, Ibidem, p.274.
273 Sigo (exceto a morfologia): SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia
de Exegese Bíblica, pp. 126,127.
Assim, concluímos nossa análise estrutural do texto,
percebendo que o mesmo pode possuir vários tipos de estruturas
(cf. exemplos citados), as quais, porém, não apresentam
características tão díspares entre si. A seguir, faremos a análise
lingüística do texto.
C. Análise Lingüística
A análise lingüística de Mc 5.1-20 nos permitirá
compreender, de forma mais apurada, o pensamento do autor.
Isto se dá porque tal análise apontará para mais de uma direção
simultaneamente, uma vez que nossa análise lingüística possui
três facetas (as duas primeiras veremos em conjunto e a última à
parte):
- Análise Lexicográfica: estudo do vocabulário;
- Análise Morfo lógica: estudo de cada palavra
individualmente;
- Análise estilística: estudo das figuras de linguagem.273
C.l. Análise Léxico-Morfológica: estudo do
vocabulário e da palavra em si
180
SA + ANÁS, DEfTl®NI®S E LEGIî
Estudar o vocabulário encontrado em Mc 5.1-20 é uma
tarefa indispensável que nos ajudará a compreender melhor a
teologia de Marcos, bem como, nos permitirá chegar a
conclusões importantes em nosso estudo. Aqui, porém, quando
um mesmo termo ocorrer mais de uma vez no texto, não
repetiremos a sua análise. Assim, o leitor deverá consultar a
primeira ocorrência do termo a fim de verificar o seu
significado. Portanto, analisemos o vocabulário de nossa
perícope obedecendo à ordem em que este aparece no texto.
Marcos 5.1
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Kat
Conjunção coordenativa. Seus significados
básicos são: “e, também, ainda”. Esse
vocábulo cuja ocorrência é muito comum nas
páginas do Novo Testamento, onde aparece
9164 vezes,274 é encontrado 41 vezes ao todo
em nosso texto. É curioso observarmos que
“tanto o hebraico quanto o aramaico se
distinguem pela seqüência de orações em
coordenação, ou melhor: as inflexões
sucessivas, postas lado a lado, são ligadas pela
conjunção (yav), e. Esse tipo deconstrução
se reflete, de modo acentuado, na estilística do
Evangelho conforme Marcos, pela utilização
da conjunção Koà, em correspondência exata
274 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l. [oc-k],
p.2122.
181
CARLffiSAUGUS+ffi VAUA++I
7/5 r
Cf. artigo escrito por BENICIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio
Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão. São Paulo, Fonte
Editorial Ltda., 2007, p. 191.
276 DEMOSS, Matthew S. Dicionário Gramatical do Grego do Novo
Testamento. [Tradução de Paulo Sartor Jr.]. São Paulo, Editora Vida, 2004,
p.130.
277 ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan
Publishing House, 1998, p.75.
ao (vav) hebraico, especialmente, em
77S
função aditiva ou copulativa”. O uso
excessivo dessa conjunção por parte de
Marcos revela o seu estilo marcadamente
paratático. A parataxe, por sua vez, é um
elemento característico das línguas semitas.276
rjÀQov
Verbo no indicativo aoristo ativo, na 3a pessoa
do plural, “vieram”. É derivado do verbo
èpxopai, “ir, vir”.
GLÇ Preposição no acusativo, “para, em direção a”.
Essa preposição aparece duas vezes no v. 1.
TO Artigo definido, no acusativo, neutro,
singular, “o”.
uépav Advérbio de lugar usado como um
substantivo, “outro lado”.277
Tf|Ç
Artigo definido, genitivo, feminino, singular,
“do”. Aparece logo em seguida, ainda no v. 1,
em sua forma no acusativo, xpu.
9aÀáoor|ç Substantivo, genitivo, feminino, singular,
“mar, lago”.278 Devemos considerar o uso do
182
SA+ANÁS, DÊmêNieS £ LEGIî
Marcos 5.2
termo QaXácrariç como um semitismo, o qual
é usado aqui para se referir ao lago de
Genesaré (cf. Mc 4.39,41).279
Xcópav Substantivo, acusativo, feminino, singular,
“região, país”.
TWV Artigo definido, genitivo, masculino, plural,
“dos”.
lVpaar|iADV Adjetivo pronominal, genitivo, masculino,
plural, “Gerasenos”.
GARRIDO, Constantino Ruiz. (trad.). Vocabulário Griego del Nuevo
Testamento. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2001, p.81.
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 156.
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
èÇcÀQómoç
Verbo, particípio, aoristo, na voz ativa,
genitivo, masculino, singular. É derivado do
verbo £^Ép%opat, “sair, vir para fora”.
aòroô Substantivo pronominal, genitivo, masculino,
na 3a pessoa do singular, “ele”.
ÉK Preposição, no dativo, “de, a partir de, de
dentro de”.
TOÜ Artigo definido, no genitivo, neutro, singular,
“do”.
ITÀOÍOU Substantivo, genitivo, neutro, singular, “do
183
CARLOS AUGUS + ffi VAILA++I
Marcos 5.3
barco”.
evGuç
Adjetivo pronominal, no nominativo,
masculino, singular, o qual é usado como
adjetivo adverbial, “imediatamente, logo”. É
muito provável que o emprego excessivo
desse adjetivo em Marcos, dê-se por
influência da conjunção aramaica D' Ê , 280 no momento.
í)Trr|v-cr]O6V
Verbo, indicativo, aoristo, na voz ativa, 3a
pessoa do singular, derivado de bTtavTáco,
“encontrar”.
p.VT]p.6 ÍG)V Substantivo, genitivo, neutro, plural, “dos
sepulcros”.
ãvOpcoiTOÇ Substantivo, nominativo, masculino, singular,
“(um) homem”.
èv Preposição, dativo, “em (com)”.
TtveúpaTi Substantivo, dativo, neutro, singular,
“espírito”.
áKaQápTcp Adjetivo, dativo, neutro, singular, “imundo,
impuro”.
2R0 'Cf. artigo escrito por BENICIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio
Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão. São Paulo, Fonte
Editorial Ltda., 2007, p. 191.
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
184
SA + ANÁS, DEíTl®NI©S Ê LEGIé
KUBO, Sakae. RGELNT, p.32.
OÇ
Adjetivo pronominal relativo, nominativo,
masculino, singular, “o qual”.
TT]V Artigo definido, acusativo, feminino, singular,
“a”.
KaTOÍKT|OLV
Substantivo, acusativo, feminino, singular,
“habitação, moradia, morada”. Trata-se de um
281hapax legomenon.
Verbo, indicativo, imperfeito, voz ativa, na 3a
pessoa do singular, “tinha”.
TOLÇ Artigo definido, dativo, neutro, plural, “os”.
|ivr||J,aoLV Substantivo, dativo, neutro, plural,
“sepulcros”.
oòôè Adjetivo adverbial, “nem”.
àÀÚoei Substantivo, dativo, feminino, singular,
“corrente”.
OLIKtTL Adjetivo adverbial, “já não”.
oóôelç Adjetivo pronominal cardinal, nominativo,
masculino, singular, “nenhum, ninguém”.
èôúvaro Verbo, indicativo, imperfeito, na voz média
ou passiva, na 3a pessoa do singular, “podia”.
aÚTÒv Substantivo pronominal, acusativo,
185
CARLffiS AUGUS+® VAILA + +I
masculino, na 3a pessoa do singular, “a ele”.
ôfjoaL Verbo, infinitivo, aoristo, na voz ativa,
“prender, amarrar”. É derivado do verbo 3éo>.
Marcos 5.4
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
ôià
Preposição no acusativo, “porque, por,
através”. Aqui a construção indica, não a
razão, mas as circunstâncias mencionadas à
guisa de explicação.
TTOÀÀáKLÇ Adjetivo adverbial, “muitas vezes,
freqüentemente”.
iréôaiç Substantivo, dativo, feminino, plural,
“grilhões, algemas para os pés”.
àÀúoeoiv Substantivo, dativo, feminino, plural,
“correntes”.
ôfôéoQai
Verbo no infinitivo, perfeito, na voz passiva,
acusativo, “ter sido preso”. É derivado do
verbo 5êo).
ôieoiráoOaL
Verbo no infinitivo, perfeito, na voz passiva,
no acusativo, “terem sido rompidas,
despedaçadas”.
Útt’ Preposição no genitivo, “por”.
ràç Artigo definido, no acusativo, feminino,
plural, “as”.
àXúocLç Substantivo, no acusativo, feminino, plural,
“correntes”.
iréôaç
Substantivo, no acusativo, feminino, plural,
“grilhões, algemas para os pés”. No início do
verso o substantivo aparece no dativo.
OU VT6T pi(|)0a L
Verbo no infinitivo, perfeito, na voz passiva,
no acusativo, “terem sido esmagadas”.
Derivado de ouvTpípcu, “despedaçar, quebrar
186
SA+ANÁS, DEIT1®NI®S E LEGIî
totalmente, esmagar”.
íoxufv
Verbo, indicativo, imperfeito, na voz ativa,
na 3a pessoa do singular, “podia”. É derivado
do verbo ’laxíco, “ser forte”.
ôapáoat Verbo no infinitivo, aoristo, na voz ativa,
“subjugar, amansar”.
Marcos 5.5
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
navTÒç Adjetivo pronominal, genitivo, masculino,
singular, “continuamente”.
VUKTÒÇ Substantivo no genitivo, feminino, singular,
“de noite”.
riliépaç Substantivo, genitivo, feminino, singular, “de
dia”.
ÕpfOLV Substantivo, dativo, neutro, plural, “montes”.
rjv Verbo, indicativo, imperfeito, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “estava”.
KpáCüJV
Verbo no participio presente, na voz ativa,
nominativo, masculino, singular, “clamando,
gritando”. Este participio, bem como o
seguinte, usado numa construção perifrástica
enfatizam a ação repetida.
KaraKÓiiTCDV’
Verbo no participio presente, na voz ativa,
nominativo, masculino, singular, “cortar em
pedaços”. A preposição no verbo composto é
perfectiva. Sendo assim, seu corpo podia estar
dilacerado e cicatrizado em todas as partes. É
o segundo hapax legomenon de nossa
perícope em estudo.
êauTÒP
Substantivo pronominal, acusativo,
masculino, na 3a pessoa do singular, “a si
mesmo”.
ÀíQoiç Substantivo, dativo, masculino, plural,
187
CARLffiS AUGUS+® VAILA + + I
Marcos 5.6
“pedras”.
Marcos 5.7
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Lôgop
Verbo no particípio aoristo, na voz ativa,
nominativo, masculino, singular, “vendo
(ele)”.
TOP
Artigo definido, no acusativo, masculino,
singular, “a”.
’Ipoouv Substantivo no acusativo, masculino,
singular, “Jesus”.
Ct ITO Preposição no genitivo, “de”.
|iaKpó9ep
Adjetivo adverbial usado como adjetivo
pronominal, genitivo, neutro, singular, “de
longe”.
’éôpapep Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “correu”.
TTpoaeKÚvpoev
Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “prostrou-se, prostrou-
se em adoração”.
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
KpáÇaç Verbo no particípio aoristo, na voz ativa,
nominativo, masculino, singular, “gritando”.
4>copfi Substantivo no dativo, feminino, singular,
“voz”.
p.eyáÀr| Adjetivo no dativo, feminino, singular,
“grande, forte”.
Àéyei Verbo no indicativopresente, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “diz (disse)”.
Tí Adjetivo pronominal interrogativo,
nominativo, neutro, singular, “O que?”.
époi Substantivo pronominal no dativo, na Ia
188
SA + ANÁS, D£IT1©NI®S £ LEGIé
pessoa do singular, “a mim”.
ooí Substantivo pronominal no dativo, na 2a
pessoa do singular, “a ti”.
’Ipoou Substantivo no vocativo, masculino, singular,
“Jesus”.
< \ ulg
Substantivo no vocativo, masculino, singular,
“Filho”.
ôgoü
Substantivo no genitivo, masculino, singular,
“de Deus”.
vip LOTOU
Adjetivo superlativo no genitivo, masculino,
singular, “Altíssimo”. Trata-se de um
semitismo derivado do hebraico *7 fô,
“Deus Altíssimo” ou jí*1 “Altíssimo”.
ôpKÍCo) Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na
Ia pessoa do singular, “conjuro, adjuro”.
06
Substantivo pronominal no acusativo, na 2a
pessoa do singular, “a ti, te”.
06ÓV Substanivo no acusativo, masculino, singular,
“(por) Deus”.
PI Adjetivo adverbial, “não”.
P
Substantivo pronominal no acusativo, na Ia
pessoa do singular, “a mim, me”.
PaoavíoT]ç
Verbo no subjuntivo aoristo, na voz ativa, na
2a pessoa do singular, usado como verbo no
imperativo aoristo, na voz ativa, na 2a pessoa
do singular, “atormentes, tortures”.
Marcos 5.8
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
6À6Y6V Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa,
na 3a pessoa do singular, “dizia, falava”.
yàp Conjunção subordinativa, “pois”.
’'E^gàQg Verbo no imperativo aoristo, na voz ativa, na
189
CARLffiS AUGUS+ffi VAILA + +1
2a pessoa do singular, “sai!”.
irvfüpa Substantivo no vocativo, neutro, singular,
“espírito”.
(XKaQaprov Adjetivo no vocativo, neutro, singular,
“imundo, impuro”.
àvQpcóirou Substantivo no genitivo, masculino, singular,
“do homem”.
Marcos 5.9
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
èirrípcÓTa Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa,
na 3a pessoa do singular, “perguntava”.
óvopá Substantivo no nominativo, neutro, singular,
“(o) nome”.
Aeyiwv Substantivo no nominativo, feminino,
singular, “Legião”.
poi Substantivo pronominal no dativo, na Ia
pessoa do singular, “meu, para mim”.
OTl Conjunção subordinativa, “porque”.
TTOÀÀOÍ Adjetivo pronominal no nominativo,
masculino, plural, “muitos”.
èoprv Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na
Ia pessoa do plural, “somos”.
Marcos 5.10
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
TrapfKáÀci Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa,
na 3a pessoa do singular, “implorava, rogava”.
TTOÀÀà
Adjetivo pronominal no acusativo, neutro,
plural, usado como adjetivo adverbial,
“muito”.
iva Conjunção coordenativa, “para que”.
aurà Substantivo pronominal no acusativo, neutro,
na 3a pessoa do plural, “a eles”.
190
SA + ANÁS, DEmêNieS E LEGIé
ánooTeÍÀT] Verbo no subjuntivo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “mandasse, enviasse”.
Preposição no genitivo, “(para) fora de”.
/cópaç Substantivo no genitivo, feminino, singular,
“região”.
Marcos 5.11
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
’Hv Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa,
na 3a pessoa do singular, “estava”.
Ô6 Conjunção coordenativa, “e”.
6Kei Adjetivo adverbial, “ali”.
upòç Preposição no dativo, “perto de”.
TCÔ Artigo definido no dativo, neutro, singular,
“o”.
õpei Substantivo no dativo, neutro, singular,
“monte”.
áyéÀri Substantivo no nominativo, feminino,
singular, “manada”.
Xoípwu Substantivo no genitivo, masculino, plural,
“de porcos”.
peyáÀri Adjetivo no nominativo, feminino, singular,
“(uma) grande”.
PooKop.évr| Verbo no participio presente, na voz passiva,
nominativo, feminino, singular, “pastando”.
Marcos 5.12
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
irapeicáÀeoav Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do plural, “suplicaram, rogaram”.
Àéyomfç Verbo no participio presente, na voz ativa, no
nominativo, masculino, plural, “dizendo”.
népirpov Verbo no imperativo aoristo, na voz ativa, na
2a pessoa do singular, “envia, manda”.
191
CARL®S AUGUS+® VA1LA + + I
Marcos 5.13
niiâç Substantivo pronominal no acusativo, na Ia
pessoa do plural, “a nós”.
TOÍ)Ç Artigo definido no acusativo, masculino,
plural, “os”.
xoípouç Substantivo no acusativo, masculino, plural,
“porcos”.
(WTOÒç Substantivo pronominal no acusativo,
masculino, na 3a pessoa do plural, “eles”.
6 LoéÀ0(jop.ev Verbo no subjuntivo aoristo, na voz ativa, na
Ia pessoa do plural, “entremos”.
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
fiTérpeiliev Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “permitiu”.
aÓTolç Substantivo pronominal no dativo, neutro, na
3a pessoa do plural, “a eles”.
Verbo no particípio aoristo, na voz ativa, no
nominativo, neutro, plural, “tendo saído”.
rà Artigo definido no nominativo, neutro, plural,
“os”.
irveú|iara Substantivo no nominativo, neutro, plural,
“espíritos”.
áKÚQapra Adjetivo no nominativo, neutro, plural,
“imundos, impuros”.
c loíjÀQov Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do plural, “entraram”.
(opppocv Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “precipitou-se”.
n
Artigo definido no nominativo, feminino,
singular, “a”.
Karà Preposição no genitivo, “para baixo”.
Kpppuoú Substantivo no genitivo, masculino, singular,
“despenhadeiro, precipício”.
192
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S E LEGIé
Marcos 5.14
TT]V
Artigo definido no acusativo, feminino,
singular, “o”.
QáÀaooav Substantivo no acusativo, feminino, singular,
“mar”.
wç Adjetivo adverbial, “cerca de”.
ÔIOXLÀLOL
Adjetivo pronominal cardinal, no nominativo,
masculino, plural, “dois mil”. Este é o terceiro
e último hapax legomenon de nossa perícope.
è-nvíyomo
Verbo no indicativo imperfeito, na voz
passiva, na 3a pessoa do plural, “se afogavam,
se sufocavam”.
rfj Artigo definido no dativo, feminino, singular,
“o”.
QaÀáaor] Substantivo no dativo, feminino, singular,
“mar”.
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
Ol
Artigo definido no nominativo masculino
plural, usado como substantivo pronominal no
nominativo masculino na 3a pessoa do plural e
como adjetivo pronominal relativo no
nominativo masculino, plural, “os”.
PÓOKOVTEÇ
Verbo no participio presente, na voz ativa, no
nominativo, masculino, plural, “que tratavam,
que alimentavam”.
f^uyov Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do plural, “fugiram”.
àuijYycLÀav
Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do plural, “anunciaram, relataram,
trouxeram notícias”.
IlÓÀLV Substantivo no acusativo, feminino, singular,
“cidade”.
àypoúç Substantivo no acusativo masculino, plural,
193
CARLOS AUGUS + © VAILA + + I
Marcos 5.15
“campos”.
rjÀGov Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do plural, “vieram”.
lôetv Verbo no infinitivo aoristo, na voz ativa,
“para ver”.
ècTiv Verbo no indicativo presente, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “é”.
yeyovòç
Verbo no particípio perfeito, na voz ativa, no
nominativo, neutro, singular, “sucedido”. 0
perfeito enfatiza 0 estado ou condição
contínua daquilo que acontecera.
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
’épxovTat
Verbo no indicativo presente, na voz média
ou passiva, na 3a pessoa do plural,
“chegam”.
OecopoOoLV Verbo no indicativo presente, na voz ativa,
na 3a pessoa do plural, “vêem”.
SaipoviCópevov
Verbo no particípio presente, na voz média
ou passiva, no acusativo, masculino,
singular, “endemoninhado”. Refere-se ao
“homem que antes fora (ou que até agora
tinha sido) um endemoninhado”.
KaSfipevov
Verbo no particípio presente, na voz média
ou passiva, no acusativo, masculino,
singular, “sentado”.
IpaTLopéuov
Verbo no particípio perfeito, na voz passiva,
no acusativo, masculino, singular, “vestido”.
0 perfeito enfatiza sua presente condição ou
estado.
ooxjipovoôvTa
Verbo no particípio presente, na voz ativa,
no acusativo, masculino, singular, “em
perfeito juízo, são”.
194
SA+ANÁS, DEffl®NI®S E LEGIî
ÈCJPIKÓ™
Verbo no participio perfeito, na voz ativa, no
acusativo, masculino, singular, “que tinha
tido”. Esse termoexpressa um estado
anterior, ou seja, “tendo tido, mas agora livre
deles (dos demônios)”.
Àeyiôva Substantivo no acusativo, masculino,
singular, “legião”.
è^oPiíOrjoav
Verbo no indicativo aoristo, na voz passiva
depoente, na 3a pessoa do plural, “temeram,
tiveram medo”.
Marcos 5.16
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
õiTiYrpavTO
Verbo no indicativo aoristo, na voz média
depoente, na 3a pessoa do plural,
“relataram”, transmitindo a idéia de “expor
com pormenores”.
LÔÓVTCÇ
Verbo no participio aoristo, na voz ativa, no
nominativo, masculino, plural, “que tinham
visto”.
1TWÇ Adjetivo adverbial interrogativo, “como”.
èyévcco
Verbo no indicativo aoristo, na voz média
depoente, na 3a pessoa do singular,
“aconteceu”.
ôaipoviCo|i€vcü
Verbo no participio presente, na voz média
ou passiva, no dativo, masculino, singular,
“endemoninhado”. (cf. a análise sobre essa
mesma palavra no verso 15, a qual aparece
ali no acusativo).
irepl Preposição no genitivo, “a respeito de”.
Marcos 5.17
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
qp^avro Verbo no indicativo aoristo, na voz média, na
195
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + I
Marcos 5.18
3a pessoa do plural, “começaram”.
'frapaKaÀelv Verbo no infinitivo presente, na voz. ativa,
“suplicar, rogar”.
ànfÀôéip Verbo no infinitivo aoristo, na voz ativa,
“para sair”.
áirò Preposição no genitivo, “de”.
ópíwv Substantivo no genitivo, neutro, plural,
“territórios”.
avTÔv Substantivo pronominal no genitivo,
masculino, na 3a pessoa do plural, “deles”.
Marcos 5.19
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
èp.paívouTOÇ Verbo no particípio presente, na voz ativa, no
genitivo, masculino, singular, “embarcando”.
ttàolov Substantivo no acusativo, neutro, singular,
“barco”.
ô
Artigo definido no nominativo, masculino,
singular, usado como substantivo pronominal
no nominativo, masculino, na 3a pessoa do
singular e usado também como Adjetivo
pronominal relativo, no nominativo,
masculino, singular, “o”.
ÔaLgOVLOOcLÇ
Verbo no particípio aoristo, na voz passiva
depoente, no nominativo, masculino, singular,
“que tinha estado endemoninhado”.
per’ Preposição no genitivo, “com”.
ri Verbo no subjuntivo presente, na voz ativa,
na 3a pessoa do singular, “estivesse”.
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
OUK Adjetivo adverbial, “não”.
acpfiKcv Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
196
SA+ANÁS, DErtlêNieS £ LEGIî
Marcos 5.20
3a pessoa do singular, “permitiu”.
àÀÀà Conjunção superordenativa, “mas”.
"Ynaye Verbo imperativo no presente, na voz ativa, na
2a pessoa do singular, “Vai”.
OLKÓV Substantivo no acusativo, masculino, singular,
“casa”.
oou Substantivo pronominal no genitivo, na 2a
pessoa do singular, “tua”.
oovç Adjetivo pronominal no acusativo, masculino,
na 2a pessoa do plural, “teus”.
àTráyyriÀov Verbo no imperativo aoristo, na voz ativa, na
2a pessoa do singular, “anuncia”.
boa
Adjetivo pronominal relativo no acusativo,
neutro, plural, “as coisas”, usado como
Adjetivo pronominal demonstrativo no
acusativo, neutro, plural e ainda como
adjetivo pronominal relativo no acusativo,
neutro, plural.
KÓpióç
Substantivo no nominativo, masculino,
singular, “Senhor”. Temos aqui um
semitismo, derivado dos termos hebraicos:
nirr ou^™.t : T
iretroíqKev Verbo no indicativo perfeito, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “tem feito”.
■qÀérioép
Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “teve misericórdia”. A
mudança do imperfeito para o aoristo é
deliberada. 0 homem recebera bênçãos que
permanecem e que são um benefício
específico na cura dele.
Vocábulo Análise Léxico-Morfológica
197
CAR.L®S AUGUS + ® VAILA + + I
àirfjÀGev Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “partiu”.
qp^ato Verbo no indicativo aoristo, na voz média, na
3a pessoa do singular, “começou”.
Kqpóooetv Verbo no infinitivo presente, na voz ativa,
“proclamar, proclamar como arauto”.
AeKaTróÀei Substantivo no dativo, feminino, singular,
“Decápolis”.
6ir0ÍT|0€P Verbo no indicativo aoristo, na voz ativa, na
3a pessoa do singular, “fez”.
’Iqooôç Substantivo no nominativo, masculino,
singular, “Jesus”.
Adjetivo pronominal no nominativo,
masculino, plural, “todos”.
èOaúpaCov
Verbo no indicativo imperfeito, na voz ativa,
na 3a pessoa do plural, “se admiravam,
maravilhavam-se”.
C.2. Análise Estilística: estudo das figuras de
linguagem
Podemos definir estilística como sendo “o estudo da
linguagem humana em termos claros de tendência e
características do orador e/ou autor”. “
Em nosso caso em particular, aplicaremos tal tipo de
abordagem no intuito de descobrirmos quais são os principais
traços que encontramos em nossa perícope de Mc 5.1-20, os
quais apontam para o estilo marcano. Vejamos os exemplos
abaixo:
a) Polissíndeto
282 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.74.
198
SA+ANÁS, DEIT1©NI©S Ê LEGIé
Polissíndeto é o nome dado à “figura de construção que
consiste em repetir uma conjunção ou uma preposição mais
vezes do que a ordem gramatical exige”.283 284 Como já pudemos
notar anteriormente no início de nossa análise léxico-
morfológica, Marcos usa exageradamente a conjunção
coordenativa Kai (e) na perícope que ora estamos estudando (41
vezes!). Esse uso desmedido serve para “costurar” o pensamento
do autor e dar seqüência ao desenvolvimento do mesmo. Tal
recurso permite que os elementos coordenados interpenetrem-se,
284 conferindo ao relato continuidade, vivacidade e fluidez.
J LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza
Cristina, (eds.). Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.881.
284 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 157.
285 DEMOSS, Matthew S. Op.Cit., p.127.
286 Baxter faz um interessante comentário sobre o emprego desse advérbio
em Marcos: “A palavra ocorre 42 vezes em Marcos; apenas sete em Mateus e
uma em Lucas. Da mesma forma que os registros de Júlio César sobre a
Guerra na Gália estão repletos da palavra ‘rapidamente’, a biografia de Jesus
contada por Marcos repete eutheos”. (Cf. BAXTER, J. Sidlow. Examinai as
Escrituras: período interbíblico e os evangelhos. Vol.V. [Tradução de Neyd
Siqueira]. São Paulo, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1992, p.209).
b) Otiose
Otiose é o nome pelo qual são conhecidas “certas
palavras e unidades gramaticais supérfluas; que não possuem
efeito”.285 286 Em nosso texto encontramos um exemplo conhecido
do uso deste elemento em Mc 5.2: “E saindo ele do barco, logo
(...)”. Aqui, o uso do advérbio eèôuç (logo, imediatamente) não
acrescenta nada ao significado do texto. Juan Mateos,
comentando este verso, explica que “a construção com o
genitivo absoluto torna supérfluo o uso do advérbio, além do
199
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I
mais, criticamente muito duvidoso”.287 Sendo assim, Marcos se
utiliza do advérbio euthys apenas a fím de dar movimento à sua
narrativa, por meio deste “imediatismo cronológico”.
URBAN, Angel, MATEOS, Juan & ALEPUZ, Miguel. Estudios de
Nuevo Testamento: questiones de gramatica y lexica. Madrid, Ediciones
Cristiandad, 1977, p.117.
288 DEMOSS, Matthew S. Op.Cit.,p.ll.
c) Epímone
Epímone é como é chamado “em retórica, a repetição de
um mesmo pensamento duas ou mais vezes, usando-se palavras
similares ou sinônimas”.288 Na perícope que ora estamos
estudando tal recurso estilístico pode ser notado várias vezes.
Por exemplo, a ligação do homem com os sepulcros é
mencionada três vezes: “(...) encontrou-se com ele dos
sepulcros um homem (...)” (v.2), “o qual tinha a morada nos
sepulcros (...)” (v.3) e “(...) estava nos sepulcros (...)” (v.5).
Menciona-se duas vezes a força descomunal do endemoninhado:
“(...) ninguém podia prendê-lo” (v.3) e “(...) ninguém podia
subjugá-lo ” (v.4). Os objetos que foram usados inutilmente na
tentativa de prendê-lo também são enfatizados no texto: “(...) e
nem com corrente ninguém podia prendê-lo” (v.3) e “porisso,
ele tinha sido preso muitas vezes com algemas e correntes, e
tinham sido rompidas por ele as correntes, e as algemas tinham
sido esmagadas (...)” (v.4). Os gritos emitidos pelo
endemoninhado também são realçados por Marcos: “(...) estava
nos sepulcros e nos montes gritando (...) ” (v.5) e “(...) gritando
com forte voz (...)” (v.7). Estes exemplos são suficientes para
percebermos o estilo repetitivo de Marcos que, por meio da
repetição de certos pensamentos e idéias, tenciona realçar a
dramaticidade do estado do homem endemoninhado.
d) Hipérbole
200
SA+ANÁS, DEmêNieS £ LEGIî
A hipérbole é a “figura de retórica que consiste na ênfase
resultante de um exagero deliberado”.289 O objetivo principal de
tal recurso é causar impressão no leitor.290 Em nosso caso, a
descrição enfática da condição do endemoninhado (sua
residência nos sepulcros, sua força descomunal, as tentativas
frustradas de prendê-lo e o fato de estar possuído, não por um
demônio, mas por uma “legião” demoníaca) tornam a narrativa
marcana mais vivida e impressionante. Os leitores desse texto
certamente exclamariam: “Puxa, como era lastimável o estado
desse homem! Nestas condições, somente Jesus poderia tê-lo
curado!”.
289 LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza
Cristina, (eds.). Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.588.
290 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 164.
291 LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza
Cristina, (eds.). Op.Cit., p.876.
292 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etitnológico Nova fronteira da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1997, p.614.
e) Pleonasmo
Pleonasmo é a “repetição, em um enunciado, de palavras
que têm o mesmo sentido”.291 292 Trata-se, na realidade, de uma
“redundância de termos”. Em nossa perícope, tal elemento
também é notado algumas vezes. O notamos, por exemplo, na
frase: “e continuamente, de noite e de dia (...)” (v.5); na
expressão: “e gritando com forte voz (...) ” (v.7) - o que é óbvio,
pois ninguém grita em voz baixa; na resposta dada a Jesus
pelo(s) demônio(s): “(...) Legião é o meu nome, porque somos
muitos” (v.9) - o nome “legião” por si só já indica um grande
contingente, sendo desnecessária a explicação “porque somos
201
CARL®S AUGUS + ® VA1LA + +I
muitos”; na súplica dos demônios (a repetição pode ser melhor
percebida em grego): IIé|ii|/ov f]p.õtç elç touç x°íp°uÇ. 'iva eiç
autouç eLoéÀÔGjgfv. (v.12). Aqui, a preposição eiç aparece duas
vezes ligada ao acusativo, sendo que o sentido do texto é
‘‘Envia-nos para (dentro) dos porcos, a fim de que neles
(dentro) entremos”. Neste caso, portanto, a preposição + o
acusativo têm o sentido fundamental de “dentro, em”.™ Logo,
Marcos é redundante ao descrever o pedido dos demônios de
que lhes seja permitido entrar nos porcos. A primeira parte da
frase: ‘‘Envia-nos para (dentro) dos porcos” já seria suficiente
para tal compreensão. Por fim, notamos a oração: ”(...) e
precipitou-se a manada do despenhadeiro para o mar, cerca de
dois mil, e se afogaram no mar” (v. 13), a qual é extremamente
redundante, pois diz primeiramente que a manada de porcos caiu
“no mar” e, em seguida, diz que se afogaram “no mar”. O final
deste verso, cv ríj OaÀáooq (no mar), é totalmente desnecessário
à compreensão do texto, porque se os porcos haviam se
precipitado no mar e estavam se afogando, tal fato só poderia
ocorrer “no mar”! Em suma, podemos dizer que tais sucessivos
pleonasmos possuem uma finalidade meramente enfática, pois
não acrescentam nada de novo ao texto, mas pretendem chamar
a atenção do leitor.293 294
293 RUSCONI, Carlo. DGNT, p. 150.
294 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 158.
295 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.104.
f) Ironia
Sob o ponto de vista literário, podemos definir ironia
como “uma declaração humorística ou sarcástica, que tenciona
expressar a oposição ao seu sentido literal”.295 * É curioso
observarmos o confronto existente entre Jesus e o demônio, no
202
SA + ANÁS, D£fTl®NI®S Ê LEGIé
qual há uma tentativa de esconjurar Jesus (v.7). Tal tentativa é
absolutamente irônica, pois como se pode esconjurar “por Deus”
o próprio Filho de Deus?296 Outra interessante ironia pode ser
constatada no texto: “os espíritos impuros não querem sair,
enquanto os habitantes pedem que ‘Jesus saia’”. Entretanto,
creio que existem outros dois aspectos irônicos no texto, os
quais vejo como principais em nossa perícope. O primeiro
aspecto diz respeito à comparação entre a força dos gerasenos e
a de Jesus. Enquanto que os primeiros não conseguem prender o
endemoninhado com suas correntes e algemas (vv.3,4), o último
o domina de forma poderosa, sem que necessite de nenhum
recurso humano (vv.6-13ss). O segundo aspecto se refere ao
nome do(s) demônio(s) que ocupa(m) o homem: “Legião”.
Além de ser uma ironia desmedida, é também o cúmulo da
audácia relacionar os demônios à legião romana! Marcos
escreve sua narrativa com uma pena que fora embebida no
tinteiro do sarcasmo, literariamente falando. No entanto, tais
traços estilísticos acentuadamente irônicos têm o propósito de
demonstrar a autoridade incomparável de Jesus sobre os
demônios. * 298
/CIA r
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8. Petrópolis, Vozes, 2002, p.223. Cf.
também: GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I.
[Traducción de Victor A. Martinez de Lapera]. Salamanca, Ediciones
Sígueme, 2005, p.238.
SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia.
Op. Cit., p.225. Da mesma opinião é também: MAGGI, Alberto. Jesús y
Belcebú: Satán y demonios en el Evangelio de Marcos. [Traducción de María
del Carmen Blanco Moreno y Ramón Afonso Díez Aragón], Bilbao, Editorial
Desclée de Brouwer, S.A., 2000, p.149.
298 Para uma abordagem mais detalhada sobre os traços de “ironia” dentro
dos milagres narrados por Marcos, veja: ELLENBURG, Dale. A Review of
Selected Narrative-Critical Conventions in Mark's Use of Miracle Material.
JETS. Vol. 38, n° 2. San Diego, Bethel Theological Seminary West, 1995,
pp. 171-180.
203
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I
g) Metáfora
Dá-se o nome de metáfora a uma “figura de linguagem
na qual um aspecto de uma coisa é mostrado por comparações
implícitas com outra coisa ou simplesmente por identificá-la
com algo a que está sendo comparada”.299 Em nosso caso, o
aspecto particular da impureza é identificado com vários outros
elementos, os quais contribuem para armar um cenário
indelevelmente marcado pela impureza, a qual é vividamente
retratada pelo autor. A esse respeito, julgo serem oportunas as
considerações de Marcus J. Borg:
299 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.l 15.
300 BORG, Marcus J. Jesus: Uncovering the Life, Teachings, and Relevance
of a Religious Revolutionary. New York, HarperCollins Publishers, 2006,
p.95.
O aspecto central desta história cria uma narrativa
metafórica vigorosa. Seus detalhes criam um retrato vivido de
impureza. O homem possuído vive no outro lado do mar da
Galiléia entre os gentios, que são impuros. Ele vive entre os
sepulcros, que são impuros, imundos. Os porcos - animais
impuros - pastam nas proximidades. Os demônios que o
possuem são “Legião”, um termo que aponta para Roma (c
conscqüentcmcnte gentia) possuidora da terra. A impureza era
vista como algo contagioso. Mas, nesta história, Jesus não se
torna impuro pelo contágio da impureza; ou melhor, o
contrário acontece. Os espíritos impuros são exorcizados, os
animais impuros são destruídos e a história termina com o
homem vestido, em seu juízo perfeito c restaurado à
comunidade.300
Esta riquíssima metáfora marcana acerca da impureza
parece ter o objetivo de destacar o binômio pureza/impureza,
realçando o valor desta primeira sobre a última.
204
SA+ANÁS, DE1T1©NI©S £LEGIé
h) Tautologia
Tautologia é o nome dado ao “vício ou figura retórica
que consiste em repetir a mesma ideia utilizando termos
diferentes”.301 Tal recurso estilístico é recorrente em nossa
perícope. Ele pode ser visto, por exemplo, nas frases: “e
continuamente, de noite e de dia f..J”(v.5), “E chegam para
Jesus e vêem o endemoninhado (isto é, “o que fora
endemoninhado”) (...) o que havia tido a legião ” (v. 15) e ainda:
“(...) Vai para a tua casa, junto aos teus” (v. 19). Estas situações
em que uma mesma ideia é repetida têm o propósito de enfatizar
e realçar tais pensamentos diante do leitor, prendendo a sua
atenção em assuntos que têm uma importância especial para o
autor.
LOVISOLO, Elena, ASSIS, Beatriz Helena de & POZZOLI, Thereza
Cristina, (eds.). Dicionário da Língua Portuguesa Larousse Cultural. São
Paulo, Editora Nova Cultural Ltda., 1992, p.1074.
DEMOSS, Matthew S. Op.Cit., p.106. ini
BUTTRICK, George Arthur, (ed.). The Interpreter's Dictionary of the
Bible. An Illustrated Encyclopedia. Vol.3. Nashville, Abingdon Press, 1981,
p.110.
i) Latinismo
Entende-se por latinismo, “uma palavra, idioma ou
construção gramatical derivada do latim”.302 Em nossa perícope,
encontramos os termos Afyunv (substantivo no nominativo, v.9)
e ÀeyiÓDua (substantivo que ocorre no acusativo, v.15). Tais
vocábulos são derivados do latim legio e descreviam a principal
unidade do exército romano.303 Logo mais adiante falaremos
mais detalhadamente sobre este vocábulo, analisando as
implicações históricas, sociais e políticas de tal termo,
principalmente em relação com a perícope a que nos
205
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I
propusemos a analisar. Contudo, devemos mencionar ainda que
vários outros nomes de origem latina, tanto da esfera
administrativa, quanto da militar ou oficial, são utilizados por
Marcos no decorrer de seu Evangelho. Eis alguns exemplos:
Srivocpíctív (latim: denarius = denários, Mc 6.37; 14.5),
KEVTupícov (latim: centurio = centurião, chefe de uma centúria,
isto é, cem homens, Mc 15.39,44,45), KoSpdcvxriç (latim:
quadrantum = (um) quadrante, moeda romana de pouquíssimo
valor, Mc 12.42), ^ecrtxôv (O termo quer dizer: “de jarros”, Mc
7.4) e onEKOiAáTcop (latim: speculator = (um) executor, soldado
romano encarregado da guarda dos prisioneiros, Mc 6.27). Além
desses termos, o vocábulo ([jpaYEXÀóoj (latim: fragellum),
“açoitar”, também é um nome de origem latina usado por
Marcos (cf. Mc 15.15).304 Finalmente, além destes vocábulos,
Benício também menciona as seguintes frases de procedência
latina:
304 Cf. artigo escrito por BENÍCIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio
Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão. São Paulo, Fonte
Editorial Ltda., 2007, p. 187. Cf. também a nota de rodapé em: CULLMAN,
Oscar. A Formação do Novo Testamento. [Tradução de Bertoldo Weber], São
Leopoldo, Sinodal, 2001, p.25.
305 Cf. BENÍCIO, Paulo José, in: Op.Cíú, p.188.
fea%áxooç £%ei, in extremis esse,
Está nas últimas (cf. Mc 5.23);
paitíopaoiv ahxóv feÀccpov, verberibus eum acceperunt,
Receberam-no a tapas (cf. Mc 14.65);
xò ikocvòv ttoieív, satisfacere,
Satisfazer (cf. Mc 15.15);
xiôévxEÇ xà yóvocxa, genua ponere,
Colocando os joelhos (cf. Mc 15.19).305
Segundo Benício, “os latinismos não somente evidenciam
que o Segundo Evangelho foi redigido num ambiente romano
206
SA+ANÁS, DEmêNieS Ê LEGIé
(talvez na Itália) - ou pelo menos que o seu autor estava
familiarizado com o mundo latino - como também indicam
306 diversos pontos de contato entre as línguas grega e latina”.
j) Semitismo
Podemos dar o nome de semitismo a “qualquer
característica das línguas semitas (especialmente o hebraico e o
aramaico) que ressoam no estilo grego do NT e da Septuaginta.
(...) Os semitismos podem ser explicados pela integração de
culturas, incluindo-se o bilingüismo, bem como a influência que
a Septuaginta teve durante o primeiro século. Semitismo é o
termo descritivo mais geral para hebraísmos e aramaísmos, mais
especifícamente”.* 307 Em nossa passagem, alguns vocábulos de
origem semita podem ser observados, como, por exemplo: o já
citado Kai (<?), o qual é derivado do hebraico 1 (vav); o termo
KaxoÍKTioii' {morada, habitação, v.3) que é fartamente
encontrado nas páginas do AT na sua forma hebraica HE/lQ;308
a também já mencionada expressão toô 0 c oü toô ôt|ríoTOu {do
Deus Altíssimo, v.7), que reproduz o hebraico N e
Idem, Ibidem, p. 188. O autor cita: BLASS, F., DEBRUNNER, A. &
REHKOPF, F. Grammatik des Neutestamentlichen Griechisch. 17. Aufl.
Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1990, pp.6-9.
307 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p. 155.
308 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark. [Kregel Reprint Library
Series], Grand Rapids, Kregel Publications, 1977, p.92.
ainda o substantivo masculino KÚpióç {Senhor, v. 19), que é
claramente derivado dos termos hebraicos: HiiT ou A t : t
esse respeito, cito novamente Paulo Benício:
Com a possível exceção de Lucas, é bem provável que
todos os autores dos livros que integram o cânon
207
CARL®S AUGUS + ffi VAILA + + I
neotestamentário fossem de procedência judaica; logo,
pessoas que, embora falando e escrevendo o grego, possuiríam
como língua de berço o aramaico, idioma que lhes marcaria o
modo natural de expressão, influindo no seu vocabulário e nas
suas categorias básicas do pensar, moldando-lhes também, em
vasta medida, o estilo. Daí, pode-se afirmar, com propriedade,
que o Novo Testamento é um livro cuja alma c hebraica, ao
mesmo tempo em que o corpo é hclênico, ou melhor, um livro
em que o corpo semita se exibe cm roupagem grega.309
Cf. artigo escrito por BENÍCIO, Paulo José, in: GOMES, Antonio
Maspoli de Araújo, (org.). Teologia: Ciência e Profissão, pp. 188,189.
310 DEMOSS, Matthew S. DGGNT, p.131.
31 1 MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. [Tradução de I.F.L.
Ferreira]. São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p.238.
Tendo em mente tal fato, podemos dizer então que é
absolutamente natural encontrar tais semitismos em nosso texto.
k) Parrésia
Finalmente, o último recurso estilístico marcano que
gostaríamos de destacar na perícope que estamos estudando é a
parrésia. Trata-se da “recusa intencional (e, talvez, tramada) a
moderar palavras que correm o risco de causar uma reação
negativa de uma audiência, mas que, ao contrário, traz mais
simpatia para o falante e/ou escritor”.310 * Em nossa passagem,
um fato em específico salta diante dos nossos olhos: os
demônios que atormentam o geraseno são chamados de
“legião”. E curioso notar que Marcos não tem a mínima intenção
de omitir tal afirmação (e por sinal, ousada) em seu texto. Muito
pelo contrário, ele até a menciona duas vezes (vv.9,15). O autor
não faz o mínimo esforço para esconder as conotações políticas
que jazem por trás de suas palavras. Dito de outra forma, em Mc
5.1-20 “encontramos imagens que visam recordar a ocupação
O 1 1
militar romana na Palestina”. Mais adiante, veremos este
208
SA + ANÁS, DE1T1©NI®S £ LEGIé
aspecto sociopolítico existente em tomo do nome “legião” com
maiores detalhes.
Em suma, através da análise estilística da perícope de Mc
5.1-20, pudemos constatar que o autor é bem versátil em sua
narrativa. Marcos emprega vários recursos literários em seu
texto, os quais se misturam de forma admirável, a fim de dar à
sua história maior colorido e maior beleza.
D. Análise de Conteúdo
A análise de conteúdo é uma parte do processo exegético
que visa esclarecer o significado do texto em seu todo e em seus
detalhes.312 313 Dito de outra forma, tal análise terá como principal
objetivo fazer uma espécie de comentário versículo por
versículo de Mc 5.1-20, linha de trabalho esta que, segundo
penso, nos proporcionará uma compreensão muito mais
profunda do texto e de seu significado. Vejamos, então, que
surpresas fascinantes o estudo desta passagem nos reserva por
meio desse tipo de análise.
312 WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia.
São Leopoldo, Sinodal / São Paulo, Paulus,1998, p.337.
313 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST],
Missouri, College Press, 1965, p. 139. A mesma opinião é encontrada também
em: GRAY, James Comper & ADAMS, George M. Bible Commentary:
Matthew - Acts. Vol.4, Grand Rapids, Zondervan Publishing House, S.d.,
p.208.
“E vieram para o outro lado do mar, para a região dos
Gerasenos. ” (v.l).
Os fatos descritos em toda esta perícope (5.1-20) são
313situados por Johnson e Dewelt no outono de 28 AD. Trata-se
de uma passagem que tem a sua autoria tradicionalmente
209
CARL®S AUGUS + ® VAILA + +1
atribuída a Pedro.314 Quanto ao v.l, em específico, podemos
dizer que ele é claramente redacional, pois serve para ligar a
perícope do Endemoninhado Geraseno (5.1-20) com a perícope
anterior da Tempestade no Mar da Galiléia (4.35-41). É curioso
notar que Marcos descreve Jesus atravessando esse mar várias
vezes (p.ex., 4.35; 5.1,21; 6.45; 8.13). Tal ênfase descritiva é um
Leitmotiv (isto é, uma ação ou esquema que se repete em
diferentes textos de um mesmo autor ou livro, para os quais
funciona como um fio condutor) que acompanha o ministério de
Jesus na Galiléia.315 Como observou Guelich, ‘“o outro lado’
amarra esta história à anterior por indicar a chegada no destino
dado em 4.35 para a viagem do barco”.316 317 Aliás, gastava-se mais
ou menos duas horas para que se pudesse atravessar esse
‘mar’. E aqui, o vocábulo ‘mar’ é colocado propositalmente
entre aspas, pois, ao que tudo demonstra, as indicações
geográficas fornecidas por Marcos não parecem ser
Neste caso, Pedro teria sido a fonte principal de Marcos. Cf. COOK,
Guillermo y FOULKES, Ricardo. Marcos. [Comentário Biblico Hispano-
Americano], Miami, Editorial Caribe con La Cooperación de La Fraternidad
Teológica Latino-Americana, 1990, p. 143. Cf. também: CRANFIELD, C. E.
B. The Gospel According to St. Mark. Cambridge, Cambridge University
Press, 1983, p. 175.
315 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 179. Gnilka comenta que “o descer Jesus do barco
se corresponde ao subir no verso 18 e mostra de novo a preocupação de
Marcos: criar conexões tanto com o anterior como com o que virá depois”.
(Cf. GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I. [Traducción
de Victor A. Martinez de Lapera]. Salamanca, Ediciones Sígueme, 2005,
p.233).
316 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], Dallas, Word
Books, Publisher, 1989, p.275. Bornkamm, estranhamente cita Mc 5.1 como
referência ao estilo de ensino de Jesus, o qual costumava ensinar sentado.
(Cf. BORNKAMM, Günther. Jesus de Nazaré. [Tradução de José dos Santos
Gonçalves e Nélio Schneider]. São Paulo, Teológica, 2005, p.76).
317 LANE, William L. The Gospel According to Mark Vol.2. [NICNT].
Grand Rapids I Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company,
1974, p. 181. O grifo é meu.
210
sa+anás, DEmêNies ê legiã©
topográficas, mas acima de tudo, teológicas, uma vez que o mar
não é um mar, mas sim o lago de Tiberíades e, além disso, a
região dos gerasenos também possui problemas de ordem
geográfica que prejudicam a sua atestação.318 Contudo, por se
tratar de uma terra gentílica, era um local impuro conforme a
tradição judaica.319 * E já que entramos nesse assunto, a maior
dificuldade de nossa passagem está justamente em identificar a
localidade exata onde os fatos descritos no texto teriam
ocorrido. Os sinóticos nos oferecem três opções: Gadara
(Mateus), Gerasa (Marcos) e Gerasa™ (Lucas). No que diz
respeito ao aspecto geográfico, Gadara estava situada a cerca de
10 km da margem do lago e, na época, era capital da Peréia, que
dava o nome de “terra dos gadarenos” ao local (Mt 8.28).321
Josefo chama este país de “a Gadarite”.322 Contudo, Johnson e
Dewelt afirmam que Gadara está a três horas de jornada ao sul
do lago, não sendo, portanto, provável que o milagre tenha
ocorrido ali.323 Logo, sob o aspecto topográfico, Gadara não
318 MAGGI, Alberto. Jesúsy Belcehú: Satán y demonios en el Evangelio de
Marcos. [Traducción de Maria del Carmen Blanco Moreno y Ramón Afonso
Díez Aragón], Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, S.A., 2000, p.142.
319 Cf. DANBY, Herbert. The Mishnah. [Translated from the Hebrew with
introduction and brief explanatory notes by Herbert Danby]. Oxford, Oxford
University Press, 1988, p.290.
Embora Lucas também mencione “Gerasa” em seu texto sinotico, a
alternativa “Gergesa” aparece proeminentemente em: N L 0 E /' 33 157
205 579 700,xt 1241 1342 syrpal copbo arm eth geo slavmss Diatessaronam
Origen Titus-Bostra Epiphanius Cyrillem Hesychius, motivo pelo qual a
citamos aqui. (Cf. ALAND, Barbara, ALAND, Kurt, KARAVIDOPOULOS,
Johannes, MARTINI, Carlo M. & METZGER, Bruce M. The Greek New
Testament. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2005, p.231).
321 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos. [Tradução de Hans Udo Fuchs].
Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 178.
32? LENSKI, Richard C.H. The Interpretation of St. Matthew's Gospel.
Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1961, p.350.
323 JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [Bible Study
Textbook], Missouri, College Press, 1965, p.140. Entretanto, de acordo com
211
CARLffiS AUGUS+® VAILA + +I
parece ser o local que melhor se encaixe em nosso relato.
Quanto a Gerasa, deve ser dito que esta se situava a
aproximadamente 55 km ou a uns dois dias de jornada do
mar.324 325 Tendo como base essa distância, Fitzmeyer ironiza,
dizendo que “o estouro dos porcos de Gerasa até o Lago
Genesaré deve ter feito deles o rebanho mais energético da o o c
Josefo, a região de Gadara chegava até o lago, sendo que algumas moedas da
cidade que foram encontradas retratavam barcos. (Cf. POHL, Adolf. Op.Cit.,
p.178).
324 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [Word Biblical
Commentary]. Dallas, Word Books, Publisher, 1989, p.275. Cf. também:
GNILKA, Joachim. El Evangelio Segiin San Marcos. Vol. I. [Traducción de
Victor A. Martinez de Lapera]. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2005, p.234;
POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos. [Tradução de Hans Udo Fuchs].
Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 1998, p. 178.
325 FITZMEYER, Joseph A. The Gospel According to Luke I-IX. Vol.28.
[The Anchor Bible]. New York, Doubleday, 1981, p.736.
326 Idem, Ibidem.
327 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [The Anchor Bible], New York, Doubleday, 1999,
p.342. Redding cita T. R. Malty, quem “sugere que Pedro, falando aramaico
com sotaque galileu, falou sobre Ger’sa, e que Marcos, soletrando em letras
gregas, chamou o povo de Gerasenos, e foi imaginado pelos críticos ter
história!”. Certamente, os porcos teriam morrido antes pela
exaustão, do que por afogamento, se tivessem percorrido uma
distância “maratônica” destas! E este mesmo autor ainda
identifica Gerasa com a moderna Jerash, na Transjordânia, uma
cidade da Decápolis nas montanhas de Gileade próxima à
margem do deserto em direção ao leste.326 327 Como pode ser
notado, Gerasa também não nos oferece a melhor localização
para os eventos narrados em nosso texto. Porém, como observa
Joel Marcus de forma convincente, embora Gerasa seja uma
opção geograficamente difícil, todavia, ela é apropriada
simbolicamente, uma vez que a raiz hebraica grs significa
“expulsar”, sendo este um termo comum para se referir ao
exorcismo. Finalmente, nos deparamos com a terceira
212
SA+ANÁS, D£IT1©NI©S E LEGIé
alternativa, Gergesa. Ao que parece, a variante “Gergesenos”, o
mais inferior dos resgistros atestados, é também a mais plausível
geograficamente.328 Pohl comenta que “o pequeno povoado de
Gergesa (...) cujas ruínas até hoje podem ser visitadas à margem
do lago, é considerado o local do evento desde o século III. Dois
quilômetros ao sul há uma ladeira íngreme de 44 m de altura,
distante 30 a 40 m do lago.329 Entretanto, este mesmo autor
ainda cita Eusébio, segundo quem Gergesa não passava de uma
aldeia.330 Sendo assim, acredito que a melhorforma de resolver
esse dilema seja através de um binômio, o binômio:
Texto/Topografia (TT). Do ponto de vista textual, a variante
Gerasenos é vista pelos estudiosos da Crítica Textual como a
leitura mais correta.331 Porém, do ponto de vista topográfico, a
leitura alternativa Gergesenos é a que melhor se encaixa em
nosso relato, pois, como vimos, Gergesa ficava bem próxima do
Mar da Galiléia. De uma distância como esta, os porcos
certamente poderíam mergulhar no lago mais tranqüilamente!
Seja como for, até que novos fatos venham à tona ou até que
novas descobertas arqueológicas sejam feitas, a questão do
“binômio TT” ainda permanecerá em aberto. Mais adiante,
quando falarmos sobre a crítica textual de nossa perícope,
mencionarei estas variantes textuais com o acréscimo de outros
detalhes.
cometido um erro, quando ele estava apenas comunicando com sua habitual
precisão”. (Cf. REDDING, David A. 77n? Miracles of Christ. Westwood,
Fleming H. Revell Company, 1964, p. 185).
328 MARCUS, Joel. Op.Cit., p.342.
329 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p. 178.
330 Idem, Ibidem.
331 METZGER, Bruce M. A Textual Commentary on the Greek New
Testament. London, United Bible Societies, 1975, p.84.
“E saindo ele do barco, logo encontrou-se com ele dos
sepulcros um homem com espírito imundo ” (v.2)
213
CARL®S AUGUS+® VAILA + +I
É interessante notar, já de início neste verso, o contraste
entre o verbo rjÀQov', “vieram”, que aparece na terceira pessoa do
plural (v.l) e a expressão è^ÀQóvroç avroô, “saindo ele”, que é
encontrada aqui no singular (v.2). Enquanto que o primeiro
sugere a presença dos discípulos (cf. 4.35-41), a segunda
focaliza a sua atenção somente em Jesus. Pohl explica essa
mudança brusca do plural (Jesus e os discípulos) para o singular
(somente Jesus) de uma forma teologicamente muito correta:
“(...) para os olhos do narrador, desaparecem os que
acompanham Jesus. Seu relato é cristocêntrico”.332 333 O
desaparecimento dos discípulos é, na verdade, um exemplo do
recurso narrativo conhecido como “economia do relato”. Trata-
se de um artifício literário que faz permanecer em cena somente
os elementos essenciais, ou seja, tudo o que é supérfluo e serve
tão somente para contextualizar ou dar verosimilhança ao
POHL, Adolf. Op.Cit., pp.l80,181.
333 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São
Paulo, Paulinas, 2000, p. 119.
334 Segundo A. N. Wilson: “O endemoninhado da caverna (é como ele
chama ao geraseno) (...) parece muito real. Mais real, curiosamente, do que
Jesus”. (Cf. WILSON, A. N. Jesus, uma biografia. [Tradução de Ruy
Jungmann], Rio de Janeiro, Ediouro, 1993, p. 182).
335 LENSKI, Richard C.H. The Interpretation of St. Mark’s Gospel.
Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1964, p.206.
O O 1
episódio desaparece sem maiores comentários. Outro fato que
nos salta aos olhos neste verso é a menção feita a apenas “um
homem” (àvOpcoiroç), o qual encontra-se com Jesus.334 Enquanto
Lucas segue Marcos de perto e também cita somente um
endemoninhado em seu relato (Lc 8.27), Mateus, porém, faz
referência a ôúo ôatpoviCópevoi, “dois endemoninhados” (Mt
8.28). Para Lenski, não há nenhuma contradição nisso, pois um
dos dois era evidentemente o líder e o porta-voz, enquanto que o
outro era apenas o seu companheiro.335 Outra coisa que nos
214
SA+ANÁS, DEffl©N!©S E LEGIé
chama a atenção é o fato do homem sair 6K tôv pi/rmeítov, “dos
sepulcros”, em direção a Jesus. Já mencionamos anteriormente
em nossa análise estilística que a referência aos sepulcros é
recorrente na passagem (cf. vv. 2,3,5). Segundo a mishná, entrar
em contato com uma região onde houvesse sepulturas tomaria a
pessoa impura (Mishná, tratado Oholoth, 2.3). E, além disso,
a mishná também ensina que “se um homem passar por um país
gentio, em região montanhosa ou rochosa, ele se toma impuro”
(Mishná, tratado Oholoth, 18.6).336 337 Percebe-se, portanto, um
cenário de grande impureza em nosso texto, pois além do
endemoninhado estar numa terra gentia (e Jesus também
estava!), ele também vinha de um local que era cerimonialmente
impuro: dos sepulcros. Adin Steinsaltz, em seu comentário feito
ao Talmude, nos ajuda a compreender porque os sepulcros são
considerados elementos impuros: “(...) pode-se dizer que o que
está vivo e são não tem impureza e que a impureza aumenta
quando algo se aproxima da morte. Assim, de acordo com a
terminologia talmúdica, a coisa mais impura, ‘a suprema causa
de impureza’ (avi avot ha-tumà), é um cadáver (...). O objeto
impuro não é apenas impuro em si mesmo, mas também
transmite sua poluição ao que entra em contato com ele. (...) A
poluição usualmente passa pelo toque do objeto impuro, mas, às
vezes, até por ficar sob o mesmo teto ou por transportar o objeto
poluído sem tocá-lo diretamente”.338 E Joel Marcus, citando
Bratcher, declara que “as pessoas eram muitas vezes enterradas
em cavernas abertas dentro das rochas, grandes o suficiente para
uma pessoa entrar em pé, e normalmente altas o suficiente
dentro para permitir que uma pessoa permanecesse na vertical.
336 DANBY, Herbert. The Mishnah. [Translated from the Hebrew with
introduction and brief explanatory notes by Herbert Danby]. Oxford, Oxford
University Press, 1988, p.652.
337 Idem, Ibidem, p.675.
338 STEINSALTZ, Adin. O Talmude Essencial. [Tradução de Elias
Davidovich]. Rio de Janeiro, A. Koogan Editor, 1989, pp.269,270.
215
CARLOS AUGUS+© VAILA + + I
Um lugar assim poder ia prover abrigo para um homem que não
tivesse outro lugar para morar. Os túmulos, portanto, eram
lugares ritualmente impuros por causa da presença de restos
mortais. (...) Esta impureza fazia do cemitério um lugar ideal
para a morada dos ‘espíritos impuros’”.339 Por último, o verso
ainda diz que o homem estava èv ttveúpaTt aKaOapm), “em
(com) espírito imundo (impuro)”. Em outras palavras, “a terra
impura é habitação adequada ao espírito impuro”.340 Nesta
situação de impureza tríplice, representada por: terra pagã,
túmulos e possessão demoníaca, o resultado seria uma separação
total de Deus, sem esperança.341
MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction and
Commentary. Vol.27. [AB]. New York, Doubleday, 1999, p.342. Segundo
Deissmann, “que os ôaipóvio. permanecem perto do túmulo é uma idéia do
Judaísmo pós-bíblico: estes demônios dos túmulos auxiliam os homens nas
práticas mágicas”. (Cf. DEISSMANN, G. Adolf. Bible Studies: contributions
chiefly from papyri and inscriptions to the history of the language, the
literature, and the religion of hellenistic Judaism and primitive Christianity.
[Translated from german by Alexander Grieve]. Peabody, Hendrickson
Publishers, 1988, p.281).
340 SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JUNIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8. Petrópolis, Vozes, 2002, p.222. Lockyer
comenta que “sua impureza pertencente [do endemoninhado] por meio da
constante submissão ao maligno se tomava grandemente acentuada pela
presença dos espíritos impuros”. (Cf. LOCKYER, Herbert. All the Miracles
of the Bible. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1961, p. 188).
341 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p. 181.
“O qual tinha a morada nos sepulcros, e nem com
corrente ninguém podia prendê-lo ” (v.3)
Neste verso, outro dado é fornecido a respeito da ligação
do homem com os sepulcros: eles eram a sua KaToitcqaiv’,
“morada”. Pohl descreve esta situação nestes termos: “Uma
porção de homens se arremessava contra ele, para domá-lo
216
SA+ANÁS, DEIT1®NI®S E LEGIî
como um animal selvagem. (...) Por último, o expulsaram, de
modo que só lhe restaram as cavernas dos túmulos. Os mortos
não lhe faziam nenhum mal, mas também não o protegiam de si
mesmo”.342 William Barclay, citando W.M. Thomson em seu
livro The Land and the Book, nos fornece um interessante
comentário sobre o perfil de alguns loucos que existiam na
região do Oriente Médio, no século XIX, os quais nos lembram
o nosso relato:
342 Idem, Ibidem, p. 181.343 BARCLAY, William. The Gospel of Matthew. Vol.l. Philadelphia, The
Westminster Press, 1958, p.328. Segundo Renan, “em nossos dias, na Síria,
considera-se loucos ou possuídos pelo demônio (essas duas idéias são a
mesma coisa, medjoun) pessoas que apresentam apenas alguma esquisitice”.
O autor ainda prossegue, dizendo que a frase Daemonium habes, “tens
demônio” - que aparece em textos tais como: Mt 11.18; Lc 7.33; Jo 7.20;
8.48, 52; 10.20 - deve ser traduzida por “você é louco”, sendo dito em árabe:
Medjnoun enté. Por fim, Renan ainda argumenta que o verbo daimonan
também possui, durante toda a Antigüidade clássica, o sentido de “estar
louco”. (Cf. RENAN, Ernest. Vida de Jesus. [Tradução de Eliana Maria de A.
Martins]. São Paulo, Martin Claret, 1992, p.265, incluindo a nota 28).
Há alguns casos muito semelhantes nos dias de hoje -
maníacos furiosos e perigosos, que perambulam sobre as
montanhas e dormem em cavernas e túmulos. Em seus piores
paroxismos eles são bastante indomáveis e prodigiosamente
fortes (...). E este é um dos traços mais comuns desta loucura,
que as vítimas se recusam a usar roupas. Eu tenho visto, muitas
vezes, eles totalmente nus nas ruas lotadas de Beirute c Sidon.
Há também casos em que eles correm freneticamente por todo o
país e assustam toda a vizinhança.343
Além desse item, dois outros elementos chamam a nossa
atenção neste verso. Primeiramente, a tentativa de prender o
endemoninhado com uma corrente. O termo utilizado aqui para
“corrente” é o vocábulo áÀúoei, que faz referência a “uma
217
CARLffiS AUGUS + ® VAILA + + I
cadeia, um laço, pelo qual o corpo, ou alguma parte dele (as
mãos, os pés) é presa”.3 4 Este homem, assim como os escravos
daquela época, andava amarrado com grilhões e correntes.344 345
Há, sem dúvida alguma, uma forte conotação política aqui,
através da qual nós podemos ver o poder dominante, Roma,
tratando as classes dominadas como escravos. Porém, trataremos
deste assunto com maiores pormenores mais adiante.
Finalmente, o verso nos diz que “ninguém podia prendê-lo”.
Aqui, a palavra “prendê-lo” é derivada do verbo 5éco, “amarrar,
sujeitar com correntes”.346 Tal verbo faz parte do vocabulário
específico dos exorcismos.347 De acordo com Myers, “este
exorcismo constitui, assim, outro episódio-chave na luta de
Jesus, o mais forte, para ‘amarrar o homem forte’. No exorcismo
da sinagoga [Mc 1.21-28], ele se identificava com a classe
escriba, agora ele se identifica com os exércitos de César”.348
Assim, o verso termina mostrando a impotência dos homens e
de seus mecanismos humanos em sua tentativa de controlar o
endemoninhado. Para Kertelge, esta descrição do
144344 THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.29.
345 PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho
de Marcos. [Tradução de Afonso Maria Ligório Soares]. Aparecida, Editora
Santuário, 2002, p.77.
346 BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). Diccionario Exegético
del Nuevo Testamento. Vol.l. (OC-K). [Traducción de Constantino Ruiz-
Garrido]. Salamanca, Ediciones Sigueme, 2005, p.883. Aqui, o verbo Sèco
também pode ser traduzido por “domar”, sendo um termo usado para se
referir aos animais (cf. Tg 3.7). (Cf. MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebú:
Satán y demonios en el Evangelio de Marcos. [Traducción de Maria dei
Carmen Blanco Moreno y Ramón Afonso Díez Aragón], Bilbao, Editorial
Desclée de Brouwer, S.A., 2000, p. 144).
347 RABUSKE, Irineu J. Jesus Exorcista: estudo exegético e hermenêutico
de Mc 3,20-30. São Paulo, Edições Paulinas, 2001, p.263.
34R MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. [Tradução de I.F.L.
Ferreira], São Paulo, Edições Paulinas, 1992, p.240.
218
sa+anás, DemèNies e legiã®
endemoninhado refere-se às características de um louco
furioso.349
349 O artigo de Karl Kertelge, intitulado: Diabos e demônios, exorcismos em
perspectiva bíblica, foi reunido com outros artigos de outros autores que
também tratam da temática demonológica, e foi transformado em livro. (Cf.
KASPER, Walter, LEHMANN, Karl, KERTELGE, Karl & MISCHO,
Johannes. Diabo - Demônios - Possessão. [Tradução de Silvino Amhold],
São Paulo, Edições Loyola, 1992, pp.33,34).
350 ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan
Publishing House, 1998, p.76.
3S 1 WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X. Grand
Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1957, p. 101.
"por isso, ele tinha sido preso muitas vezes com algemas
e correntes, e tinham sido rompidas por ele as correntes, e as
algemas tinham sido esmagadas, e ninguém podia subjugá-lo ”
(v-4)
Este verso, que mais parece uma repetição amplificada
do anterior, nos fornece algumas informações interessantes.
Primeiramente, somos informados de que o endemoninhado
havia sido preso troÀÀáKiç, “muitas vezes”. Isto significa que o
seu estado de endemoninhamento já era algo rotineiro. Além
disso, ele fora preso “com algemas e correntes”. Aqui, a palavra
“algemas” é a tradução de iréôatç, que se refere a “grilhões para
os pés, cadeias”.350 * Já o outro termo, àÀóoeoLv, “correntes”, é
entendido por Wuest como um instrumento que prende as
“mãos”, uma vez que é dito que “o endemoninhado estava preso o c t
tanto pelas suas mãos como pelos seus pés”. Robertson ainda
sugere que as algemas (grilhões) poderíam ter sido cordas, e não
219
CARLffiS AUGUS + ffi VAILA + +I
exatamente cadeias. Seja como for, este cenário que descreve
sucessivas tentativas frustradas de imobilização do
endemoninhado, serve para chamar a atenção do leitor para a
tamanha periculosidade do endemoninhado, bem como, prepara
os leitores para a descrição subseqüente da libertação
sobrenatural do homem, a qual se dará por intermédio do poder
de Jesus. Uma história bem contada tem que possuir
dramatic idade em seu enredo, a fim de que os ouvintes/leitores
estejam presos à trama que é narrada. Nesse quesito, Marcos
sabe realmente como prender a atenção de seus leitores.
Finalmente, chama-nos também a atenção o uso repetitivo do
infinitivo no verso 4. As expressões: ôeôéoôai (“ter sido
preso”), ôieonáoQai (“terem sido rompidas”), ouvTcrpLcliQai
(“terem sido esmagadas”) e ôapáoai (“subjugar”) aparecem
todas no infinitivo. Dessas, as primeiras três aparecem no
infinitivo perfeito na voz passiva, o perfectum (acabado), que
exprime o resultado da ação; e a última aparece no infinitivo
aoristo (pontual), que traz a idéia absoluta, pura do ato verbal.* 353
Quanto à questão do uso da voz passiva, Joel Marcus diz o
seguinte: “talvez Marcos escolha o passivo porque o homem não
está no controle de sua vida, mas é a vítima de forças externas.
Nós podemos quase que falar de um ‘endemoninhado passivo’
aqui”.354 De qualquer forma, a passividade do homem enquanto
possuído, demonstra claramente que ele tem a sua vontade
escravizada fortemente pelos demônios.355
ROBERTSON, Archibald Thomas. The Gospel According to Matthew
and the Gospel According to Mark. Vol. I. [WPNT], Nashville, Broadman
Press, 1930, p.295.
353 Cf. MURACHCO, Henrique. Língua Grega: visão semântica, lógica,
orgânica e funcional. Vol.l. São Paulo, Discurso Editorial / Editora Vozes,
2007, p.301.
354 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary, p.343.
355 Aliás, o nome dos demônios que escravizam esse homem por meio de sua
possessão, legião, é bem sugestivo, pois devemos lembrar que “o proprietário
220
SA+ANÁS, DEHlêNieS E LEGIî
“E continuamente, de noite e de dia, estava nos
sepulcros e nos montes gritando e cortando a si mesmo com
pedras", (v.5).
Aqui, o adjetivo pronominal uavròç, “continuamente”,
descreve a triste rotina em que vivia este miserável homem.
Quanto à frase: vuktòç kocl rip-épocç, “de noite e de dia", ela
significa, segundo Swete, “em intervalos durante a noite e o
dia”, pois, segundo ele, caso fosse sem intervalos,
ininterruptamente, deveria ser empregada aqui a expressão 3ià
kocvtóç (cf. Dt33.10 [LXX]; Lc 24.53; Hb 9.6).356 Por outro
lado, a indicação temporal “noite e (...) dia" também reflete a
contagem judaica de um pôr-do-sol até o outro pôr-do-sol.357
Além disso, uma nova informação topográfica nos é fornecida
aqui. O texto diz que o endemoninhado estava èv rotç ópeotv,
“nos montes”. Segundo Alberto Maggi, o homem buscava uma
salvação na proteção das divindades que, conforme a cultura da
época, residiam nos montes (Ex 3.12; Dt 12.2; Jr 2.20; 3.6; Ez
6.13).358 Todavia, segundo a concepção dos antigos, os montes
[romano] de um escravo tinha liberdade para chicoteá-lo, prendê-lo ou matá-
lo, com ou sem motivo”. (Cf. MELTZER, Milton. História Ilustrada da
Escravidão. [Tradução de Mauro Silva]. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004,
p.143).
356 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark. [Kregel Reprint Library
Series], Grand Rapids, Kregel Publications, 1977, p.93.
357 ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan
Publishing House, 1998, p.76.
358 MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebii: Satan y demonios en el Evangelio de
Marcos, p.144. Paliares comenta: “Não se deve esquecer que, na simbologia
bíblica, o fundo do mar, como chama o evangelista ao lago, é o contrário da
montanha”. Porém, ele não explica em que consiste tal diferença. (Cf.
221
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + + I
não representavam um lugar de refugio devido à pressão das
civilizações, antes, eram lugares perigosos por causa da
presença de selvagens e loucos.359 Outro detalhe importante nos
é dado: o homem estava KpáCcov (“gritando”).360 Ao que tudo
indica, esse termo denota um grito desarticulado, um som
agudo.361 Com a possessão, o homem perde a capacidade de
articular as palavras ordenadamente.362 Por último, o verso diz
PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho de
Marcos, p.76).
359 MILLER, Dale-MILLER, Patrícia. The Gospel of Mark as Midrash on
earlier Jewish and New Testament Literature. New York, The Edwin Mellen
Press, 1990, p.249. Esta concepção vai de encontro ao exemplo que Hunter
cita em seu comentário sobre Marcos: “(...) a experiência do viajante
Warburton (The Crescent and the Crown, ii,352): Ao descer dos montes do
Líbano eu me achei em um cemitério. O silêncio da noite era agora
interrompido por um feroz grito e por uivos, que eu descobri procederem de
um maníaco que estava nu, o qual estava brigando com algum cachorro
selvagem por um osso”. (Cf. HUNTER, A. M. The Gospel According to
Saint Mark. London, SCM Press Ltd., 1957, p.63). Já de acordo com Tenney:
“Muitos povos antigos consideravam as montanhas como lugares sagrados”.
(Cf. TENNEY, Merril C. (ed.). The Zondervan Pictorial Bible Dictionary.
Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1963, p.560).
360 O dramaturgo grego Aristófanes (V-IV século a.C.) usa esse termo para
se referir, por exemplo, ao som emitido pelas rãs. (Cf. VINCENT, Marvin R.
Word Studies in the New Testament. Vol.l. [The Synoptic Gospels, Acts of
the Apostles, Epistles of Peter, James and Jude]. Virginia, Macdonald
Publishing Company, 1886, p. 187).
361 WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X. Grand
Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1957, p.101. Joel Marcus
comenta que “este verbo pode ser usado para uma fala articulada (...), mas
também para sons feitos quando alguém emite um grito alto, mas sem
palavras capazes de serem compreendidas”. (Cf. MARCUS, Joel. Mark 1-8:
A New Translation with Introduction And Commentary. Vol.27. [AB],
p.343). De acordo com Swete, “a palavra sugere uma forte emoção, que pode
ser tanto boa quanto má”. (Cf. SWETE, Henry Barclay. Commentary on
Mark. [Kregel Reprint Library Series]. Grand Rapids, Kregel Publications,
1977, p.93).
362 De acordo com Aune: “O fenômeno da voz alta com a qual um oráculo
pode estar se expressando pode ser interpretado pelo narrador e sua audiência
222
SA+ANÁS, D£m®NI®S Ê LEGIî
que o homem estava KaTctKÓiruwv èauròv ÀíQoiç (^cortando a si
mesmo com pedras”}. Lane faz o seguinte comentário a esse
respeito:
Estava esta prática associada com a adoração a
divindades demoníacas? Cortar a carne em uma adoração
frenética é algo muito antigo (cf. 1 Rs 18.28). Em Mc 5.7, Jesus
c chamado por um título bem atestado em contextos sincréticos
gentios c judaicos, apropriado à Decápolis como uma região
helenista e pagã. A sugestão que se encontra à mão é a de que o
endemoninhado estava envolvido em uma forma de adoração
contrária à sua vontade.363
como um sinal de possessão. No NT os demônios são descritos como
emitindo gritos altos através de suas vítimas (Mc 1.26; 5.7; Lc 4.33; 8.28; At
8.7; 16.17)”. (Cf. AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the
Ancient Mediterranean World. Grand Rapids, William B. Eerdmans
Publishing Company, 1983, pp.435,436, nota 5). Será que os gritos do
endemoninhado poderíam ser, na verdade, protestos emitidos contra a
ocupação romana? Embora tal hipótese seja tentadora, acho isso pouco
provável.
63 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT],
Grand Rapids / Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company,
1974, p. 182.
364 SWETE, Henry Barclay. Op.Cit., p.93.
Deve-se dizer ainda que o verbo “cortar”, que aparece
aqui no particípio presente (Ka-raKÓitrcov), isto é, “cortar em
pedaços”, dá a entender que o seu corpo pudesse estar
dilacerado e cicatrizado em todas as partes.364 Aliás, se
tomarmos em conjunto os w.3-5, veremos que eles contêm as
quatro características da insanidade conforme o Talmude: (a)
correr por toda a parte à noite (cf. 5.5); (b) passar a noite em um
cemitério (cf. 5.3); (c) rasgar a única peça de roupa (cf.
ÕLeoiráoôaL - derivado de ôtaoTtáco, “rasgar em partes” - cf.
5.4); e (d) destruir a única coisa que lhe tem sido dada (cf.
223
CARLOS AUGUS + ffi VAILA + +!
0WTÉTpL(|)9ca - “terem sido esmagadas” - cf. 5.4).365
Finalmente, muitos têm encontrado alguns pontos de contato
entre partes da perícope que estamos estudando e Is 65.1-7,11.
Sobretudo, os versos 4 e 5.366 Estes versos falam sobre: “morar
entre as sepulturas”, “passar a noite em lugares misteriosos” e
“comer carne de porco” (Is 65.4)367 e, além disso, encontramos
também a frase: “Fica onde estás, não te chegues a mim ” (Is
65.5). Embora tais textos possuam algumas poucas semelhanças
entre si, não creio que Isaías tenha influenciado partes da
narrativa de Mc 5.1-20. Tais passagens são muito heterogêneas
em seus propósitos e em seus respectivos contextos.
GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.278. Cf.
também: LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2.
[NICNT], p. 182; GNILKA, Joachim. El Evangelio Segiin San Marcos. Vol.
I, p.236.
36 Cf. GNILKA, Joachim. Op.Cit., p.237; MAGGI, Alberto. Jesús y
Belcebú: Satan y demonios en el Evangelio de Marcos, p.144; GUELICH,
Robert A. Op.Cit., p.278; SOARES, Sebastião Armando Gameleira &
JÚNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos. Vol. I: 1-8, p.223.
Paliares, porém, não vê nenhuma relação entre Is 65 e Mc 5. (Cf.
PALLARES, José Cárdenas. O Poder do Carpinteiro Jesus no Evangelho de
Marcos, pp.75,76).
367 Em Is 65.4 e em 66.3,17, os porcos são mencionados em um contexto
cúltico possivelmente como alimentos que servem como oferendas. (Cf.
KEEL, Othmar & UEHLINGER, Christoph. Gods, Goddesses, and Images of
God: in ancient Israel. Minneapolis, Fortress Press, 1996, p.384, nota 8).
“E, vendo a Jesus de longe, correu e prostrou-se
perante ele” (v.6).
Ao compararmos este verso com o v.2, verificamos que
este verso resume e ao mesmo tempo desenvolve aquele. Sobre
a expressão: irpootKÚvT|oev avrcp “prostrou-se perante ele”, tal
ação parece constituir-se em um ato de homenagem, o qual
demonstra que, imediatamente, antes de qualquer diálogo, o
224
SA+ANÁS, D£m©NI©S £ LEGIî
368 demônio respeitou profundamente o poder de Jesus.
Entretanto, para Paul Minear, quem adorou a Jesus foi o homem
e não o demônio. SegundoMinear, “ele estava incapaz de
escapar da legião, mas ele claramente queria escapar”.368 369 Esta
última observação é deveras interessante, pois, a meu ver, retrata
de forma vivida o tamanho sofrimento do homem. Esta
alternância conflituosa entre as ações do demônio e as ações do
homem dramatizam ainda mais a condição do endemoninhado,
preparando o leitor para o poderoso milagre que estará para
acontecer.
368 ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. [NCBC], Grand Rapids, WM.
B. Eerdmans Publ. Co. & London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd.,
1981, p. 148; GREEN, Joel B. & TURNER, Max. Jesus of Nazareth: Lord
and Christ: essays on the historical Jesus and New Testament christology.
Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company I Carlisle, The
Paternoster Press, 1994, p. 51, nota 69.
MINEAR, Paul S. The Gospel According to Mark. [LBC]. Atlanta, John
Knox Press, 1982, p.74.
370 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT],
p.183. Expressões semelhantes ocorrem também no Antigo Testamento,
como, por exemplo, em: Js 22.24; Jz 11.12; 2 Sm 16.10; 19.22; 1 Rs 17.18.
“E gritando com forte voz, disse: ‘O que a mim e a ti,
Jesus, filho do Deus Altíssimo? Conjuro a ti por Deus, não me
atormentes’(v.7).
Os gritos que serviram para concluir o verso 5
reaparecem novamente aqui. Desta vez, porém, o grito aparece
com maior intensidade, pois o endemoninhado grita cjxovf)
lieyúÀr], “com grande voz”. Sobre a frase: Tí èpoi Kal ooí, “O
que a mim e a ti?”, a mesma poderia ser expressa assim: “O que
nós temos em comum?” ou “Por que você está mexendo
comigo?”.370 Quanto ao título ulè tov 9eoô tou ín|t Lotou, “Filho
do Deus Altíssimo”, já foi dito anteriormente que se trata de um
225
CARLSS AUGUS + ® VAILA + + I
semitismo, derivado do hebraico 5 “Deus
Altíssimo” ou “Altíssimo”. Tal título tem raízes tanto no
AT, onde ele originalmente refletia um nome divino cananita
(cf. Gn 14.18-20), como também na religião grega, onde esse
termo era uma designação comum para Zeus. Contudo, deve
ser dito aqui que o demônio usa esse título, não para expressar a
sua crença na dignidade de Jesus, mas na esperança de controlá-
lo, conforme a crença da época.371 372 Já a expressão ópKÍCco oe
tòv Qeóv, “conjuro-te por Deus”, merece uma análise um pouco
mais detalhada. O termo ôpKÍCoo, “conjuro”, que aparece em
Xenofonte, Demóstenes e Políbio, significava: “forçar a fazer
um juramento, administrar um juramento a”.373 No período do
NT, o termo mantém basicamente os mesmos significados:
“implorar, colocar sob um juramento, motivar alguém a jurar,
371 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], p.343. Cf. também: HUNTER, A. M. The
Gospel According to Saint Mark. London, SCM Press Ltd., 1957, p.64;
LENSK.I, Richard C.H. The Interpretation of St. Luke's Gospel. Minneapolis,
Augsburg Publishing House, 1961, p.474. Achtemeier faz a seguinte
observação sobre o título Filho de Deus: “Este título aparece (...) no início,
no meio e na conclusão da narrativa de Marcos, e parece ser a estrutura
cristológica em torno da qual o Evangelho pode estar organizado”. (Cf.
ACHTEMEIER, Paul J. Mark. [PC], Philadelphia, Fortress Press, 1980,
p.35). Para obter mais informações sobre o título cristológico “Filho de
Deus”, consulte: ROBINSON, James M. The Gospel of Jesus. New York,
HarperCollins Publishers, 2005, pp.181-184; CULLMAN, Oscar. Cristologia
do Novo Testamento. [Tradução de Daniel Costa e Daniel de Oliveira]. São
Paulo, Editora Liber, 2001, pp.359-379.
172 GAEBELEIN, Frank E. The Expositor's Bible Commentary. [Matthew,
Mark and Luke].Vol.8. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1984,
p.657. Para Evans, “este verso está moldado por idéias e linguagem da magia
helenista”. (Cf. EVANS, C. F. Saint Luke. [TPI New Testament
Commentaries]. London, SCM Press / Philadelphia, Trinity Press
International, 1990, p.385).
373 THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.453.
226
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIî
insistir que alguém tome um juramento”.374 No verso que ora
estamos estudando, o demônio tenta se desviar do exorcismo por
meio de uma fórmula invocatória, convocando um poder
superior, “Conjuro-te por Deus” = “Eu invoco Deus contra
você”.375 Guelich enxerga aqui uma dupla ironia: Primeira, a
fórmula de conjuração geralmente aparece nos lábios do
exorcista, e não nos lábios do demônio! Segunda, o demônio
exconjura Jesus por Deus, a quem ele reconhece ser justamente
o Pai de Jesus!376 Adolf Pohl se expressa com indignação sobre
este fato: “Conjurar o Filho de Deus em nome de Deus? Idéia
absurda e inútil!”.377 Há um exemplo extraído da Antigüidade,
no qual não-cristãos usam um amuleto pendurado sobre uma
pessoa que está sofrendo. A colocação de tal amuleto sobre o
doente é acompanhada pela invocação que menciona uma série
de fórmulas mágicas. A primeira delas era: bpKÍÇa) cre Kard tov
0EOV ' Eppaícov ’ Irpov, “Conjuro-te por Jesus, deus dos
hebreus”.378 Este exemplo extraído da literatura não-cristã faz-
nos lembrar do episódio ocorrido em At 19.13, no qual os sete
filhos de um judeu chamado Ceva tentam - sem sucesso -
expulsar demônios com a fórmula: 'OpKÍCco v|iâç tòv ’Irjooôv ôv
IlaíiÀoç KT|púooei, isto é, “Esconjuro-vos por Jesus a quem Paulo
proclama”. Eles acreditavam que havia um poder mágico por
trás do nome de Jesus e que, ao pronunciá-lo, os demônios
seriam expulsos. Porém, tal fato não aconteceu. A frase pq pe
PaoavíoT]ç, “não me atormentes” também deve ser mencionada
aqui. O vocábulo paoavíoco, “tormento”, significava
ROGERS JR„ Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament, p.76.
375 EVANS, C. F. Op.Cit., p.385
376 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.279.
377 POHL, Adolf. O Evangelho de Marcos, p. 182.
-770
KITTEL, Gerhard, (ed.). Theological Dictionary of the New Testament.
[Translated and Edited by Geoffrey W. Bromiley], Vol. V. [E-IIa]. Grand
Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1999, p.463.
227
CARLOSAUGUS+® VAILA++I
primeiramente “provar metais”, e depois “testar alguém por
meio da tortura”. Esse tormento pode ser uma referência à
punição escatológica (Cf. Mt 8.29).* 380 Finalmente, Lane cita S.
Eitrem (Some Notes on the Demonology in the New Testament),
segundo quem, é inconcebível que o homem pudesse ter se
dirigido até Jesus imediatamente com uma conjuração tão forte
como a encontrada neste verso. Eitrem sugere a seguinte
reconstrução do diálogo:
WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X. Grand
Rapids, WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1957, p. 103. Jamieson, Fausset e
Brown vêem na expressão “não me atormentes” uma grande ironia: “Eis aqui
o atormentador, que prevê, teme e pede isenção de tormentos!”. (Cf.
JAMIESON, R„ FAUSSET, A. R. & BROWN, David. Comentário
Exegetico y Explicativo de La Biblia. Tomo II. (El Nuevo Testamento).
[Traductores: Jaime C. Quarles e Lemuel C. Quarles], El Paso, Casa Bautista
de Publicaciones, 1987, p.98).
380 GAEBELEIN, Frank E. The Expositor's Bible Commentary. [Matthew,
Mark and Luke].Vol.8. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 1984,
p.658.
381 LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT],
p.183.
Demônio: O que cu tenho contigo, Jesus, Filho do Deus
Altíssimo?
Jesus: Qual é o seu nome?
Demônio: Meu nome é Legião.
Jesus: Sai do homem, Legião!
Demônio: Conjuro-tc por Deus, que vocc não nos atormente c
não nos envie para fora da região.381
Seja como for, este verso prepara os leitores de Marcos
para a descrição do ritual de exorcismo que se dá entre os vv.7-
13.
228
SA+ANÁS, DEmêNieS E LEGIé
“Pois dizia a ele: ‘Sai, espírito imundo, do homem'
(v-8). __________________________ ___
Este verso parece ser um acréscimo posterior. A pergunta
pelo nome (v.9) depois da ordem de saída (v.8) nos transmite
essa impressão.382 Segundo Guelich, a razão para esta adição
origina-se supostamente da ausência do típico comando
explícito parao demônio sair. Assim, Marcos ou algum redator
primitivo simplesmente forneceu um componente perdido para
uma história de exorcismo.383 A frase fÀeyfv yàp arruo, “pois
dizia a ele”, aparece no imperfeito, “ele estava dizendo” ou “ele
estava dizendo repetidamente”, indicando o grau de dificuldade
deste exorcismo.384 Quanto ao imperativo aoristo ”E^À9e,
“sai!”, trata-se de uma ordem típica dada ao demônio nos relatos
de exorcismos, a fim de que abandone o corpo que está
possuindo.385 No Talmude Babilônico, encontramos um relato
de exorcismo, o qual fora praticado por dois renomados rabis
tanaíticos do começo do II século d.C., Simeão ben Yohai e
Eleazar ben Yose, os quais, ao expulsarem um demônio da filha
de um imperador romano, dão a ordem: “Ben Temalion, sail
Ben Temalion, sail” (bMeilah 17b).386 Deve ser observado que
2 SOARES, Sebastião Armando Gameleira & JÚNIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. 1: 1-8, p.220.
383 GUELICH, Robert A. Mark 1-8:26. Vol.34A. [WBC], p.28O.
384 EVANS, C. F. Saint Luke. [NTC], p.386. Cf. também: WUEST, Kenneth
S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X, p. 103; CRANFIELD, C. E. B.
The Gospel According to St. Mark, p. 178.
385 Em Marcos, o verbo E^ép%O|J.ai é encontrado em quatro expulsões de
demônios narradas no Evangelho (1.25s; 5.8,13; 7.29s; 9.25s, 29). (Cf.
BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard, (eds.). DENT. Vol.l, p.1431). Cf.
também: BARRET, C. K. The New Testament Background: selected
documents. New York, Harper & Row, Publishers, 1961, p34.
386 VERMES, Geza. O Autêntico Evangelho de Jesus. [Tradução de Renato
Aguiar]. Rio de Janeiro, Record, 2006, p.24.
229
CARL©S AUGUS + ffi VAILA + + I
tanto neste relato de exorcismo, quanto nos demais que
aparecem na Bíblia, não há necessidade do exorcismo ser
acompanhado de elementos tais como confissão de pecados,
renúncia e quebra de ídolos por parte do endemoninhado, como
ensinam alguns.387 Não há nenhum registro bíblico sobre Jesus
ou algum de seus discípulos terem usado algum desses
estratagemas em seus exorcismos.
387 Esta equivocada opinião é defendida, por exemplo, por Neuza Itioka, que
diz: “Se estivermos envolvidos com a expulsão de demônios (...) estes sairão
facilmente com o comando em nome de Jesus Cristo, se todas as condições
do preparo forem satisfeitas, tais como confissão, renúncia, quebra de
ídolos”. (Os grifos são meus). (Cf. ITIOKA, Neuza. Os Deuses da Umbanda.
São Paulo, ABU Editora, 1988, p.212). Entretanto, é muito boa a abordagem
que Itioka faz sobre a Umbanda e o Espiritismo em seu livro.
388 WUEST, Kenneth S. Op.Cit., p.103.
389 Segundo Moxnes, o endemoninhado “identificou as legiões romanas com
os demônios e, como pessoa possuída que era, pôde expressar sua oposição à
dominação romana”. (Cf. MOXNES, Halvor. Poner a Jesús en su Lugar: una
vision radical dei grupo familiar y el Reino de Dios. [Traducción de Carmen
Bernabé Ubieta]. Estella, Editorial Verbo Divino, 2005, p.254). Kelly,
comentando a expressão: “Qual é o teu nome?”, cita Beda (c.673-735):
“Como diz Beda, Jesus não tentava obter informação que Ele não soubesse;
simplesmente queria que Sua cura parecesse ainda mais impressionante
(presumivelmente para humilhar a Legião)”. (Cf. KELLY, Henry Ansgar.
“E perguntava a ele: ‘Qual é o teu nome? ’ E respondeu-
lhe: ‘Legião é o meu nome, porque somos muitos ’ (v.9).
Aqui, encontramos o verbo “perguntar” novamente no
imperfeito: “E ètrrípcÓTa ("perguntava") a ele”. A tradução
correta seria: “Ele continuava a perguntá-lo”, o que implica em
dizer que o demônio somente respondeu depois de repetido
questionamento.388 389 Mas, afinal, qual era a pergunta que Jesus
insistia em fazer-lhe? A pergunta era: Tí óuopá oot; (“Qual é o
teu nome?”), a qual é extremamente significativa para a
compreensão deste verso. No mundo antigo era considerado
230
SA + ANÁS, DEffi©Nl©S Ê LEGIé
da maior importância conhecer o nome correto de um adversário
(cf. Gn 32.27,29). No exorcismo, acreditava-se que ter o
conhecimento do verdadeiro nome do demônio proporcionava
maior poder sobre ele.390 O texto apócrifo do Testamento de
Salomão (o qual tem a sua redação final datada pelos críticos em
geral entre 300-400 d.C.)391 nos é particularmente importante
neste sentido. Nele encontramos alguns diálogos entre Salomão
e os demônios, os quais automaticamente nos remetem a este
verso de Marcos. A seguir, cito três curiosos exemplos extraídos
dessa literatura extra-bíblica:
Satã: uma biografia. [Tradução de Renato Rezende]. São Paulo, Globo,
2008, p.299).
390 CRANFIELD, C. E. B. 77ze Gospel According to St. Mark, p.178.
Segundo Cole: “(...) na Bíblia, nome significa ‘natureza’: então o homem
estava praticamente convidado a confessar a natureza dos poderes do mal
pelos quais ele era escravizado”. (Cf. COLE, R.A. The Gospel According to
St. Mark: An Introduction And Commentary. [TNTC], Leicester, Inter
Varsity Press / Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company,
1983, p.98). Também encontramos no PMG 4.3037-39 a seguinte formula:
“Eu conjuro você, todo espírito demoníaco, a dizer de que espécie você é”.
(Cf. MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], p.344).
391 Embora os críticos escolham tai data para a redação final do texto, não
seria errado admitir que o mesmo possa refletir materiais que, em sua origem,
sejam dos séculos I e II de nossa era. (Cf. MACHO, A. Diez. Apócrifos Dei
Antiguo Testamento. Vol.V, p.329).
I. (...) eu, Salomão, me levantei de meu trono e vi ao demônio
amedrontado e aterrorizado. Disse-lhe:
- Quem cs tu? Qual é o teu nome?
Respondeu:
- Mc chamo Ornías. (...) Sou um demônio noturno e posso
assumir três formas: algumas vezes, quando o homem arde em
desejos, assumo a figura de uma moça jovem, e quando me
tocam sofrem muitas dores. Outras vezes, como ser alado, me
231
CARLOS AUGUS+© VAILA + + I
encontro nos lugares celestiais, e em outras apareço em forma
de leão. (Test. Salomão 2.1-3).392 393
392 Idem, Ibidem, pp.337,338.
393 Idem, Ibidem, p.340. Os acréscimos entre colchetes são meus. Aqui,
Onoscelis é o nome de um demônio feminino, cujo corpo era de uma mulher
e as pernas de uma mula.
394 Idem, Ibidem, pp.341,342.
II. Quando [o demônio] se apresentou diante de mim
[Salomão], lhe disse:
- Quem és tu?
Respondeu:
- Mc chamo Onoscelis e (sou) um espírito corporificado, que
393mc escondo sobre a terra (...). (Test. Salomão 4.3,4).
III. Ordenei que me trouxessem outro demônio, c conduziram
diante dc mim a Asmodeu, o malvado demônio, atado.
Perguntei-lhe:
- Quem és tu?
(...) eu, Salomão, (...) ordenei que o atassem com o maior
cuidado c o flagelassem até que declarasse quem era c cm que
consistia sua tarefa. O demônio falou assim:
- Meu nome, glorioso, é Asmodeu. Procuro com orgulho fazer
o mal aos humanos cm todo o mundo. (...) (Test. Salomão 5.1-
2,6).394
Essa literatura não-cristã que pode ter a sua gênese
juntamente com os primórdios do cristianismo nos mostra que
saber o nome do demônio era, de fato, um elemento importante
para o sucesso do exorcismo.
Porém, como já foi dito antes, para Johnson e Dewelt a
inquirição acerca do nome não foi dirigida ao demônio, mas sim
ao homem:
Qual é o teu nome? O Senhor fez esta pergunta ao
homem aflito. Por qual motivo? Não há nada tão conveniente
como uma calma e simples questão para trazer um louco a si.
232
SA + ANÁS, D£íTlffiNI®S £ L£GIî
Não há forma mais natural de despertar em um homem que está
fora de si a consciência de sua própria personalidade do que
fazê-lo dizer seu próprio nome. O nome do homem toma-se a
expressão de seu caráter, e um resumo da história de sua vida.
A primeira condição de alguma cura deste homem aflito era um
retorno ao distinto sentimento de sua própria personalidade. (...)
O homem foi perguntado, mas o demônio respondeu,
395demonstrando seu total domínio sobre ele.
Contudo, voltando ao diálogo entre Jesus e o demônio,
este último, ao ouvir apergunta acerca do nome, responde:
AeyLcov óvopá poi, ótl ttoààoí èopeu, “Legião é o meu nome,
porque somos muitos”. Essa resposta é muito curiosa, pois nos
mostra a fusão do singular com o plural: “Legião é o meu nome,
porque somos muitos”.’ Além disso, o termo grego Aeyiwu,
’ JOHNSON, B.W. & DEWELT, Don. The Gospel of Mark. [BST], p.144.
Opinião semelhante é encontrada em: BONNET, L. y SCHROEDER, A.
Comentário del Nuevo Testamento: Evangelios Sinopticos. Tomo I. El Paso,
Casa Bautista de Publicaciones, 1982, p.367.
396 Foi sugerido também que o termo legião se refere ao “espírito imundo”
(porquanto o seu gênero em grego é neutro), enquanto que o incisivo somos
muitos designa aos “homens” (pois tal expressão aparece no gênero
masculino). (Cf. MAGGI, Alberto. Jesús y Belcebú: Satán y demonios en el
Evangelio de Marcos, p.147). No Testamento de Salomão 11.3 há um
demônio que diz: “(...) envio as legiões de demônios que estão debaixo das
minhas ordens - pois que me introduzo por todos os lugares -, e o nome de
todos os demônios que estão ao meu comando é ‘legião’”. (Cf. MACHO, A.
Diez. Apócrifas Dei Antiguo Testamento. Vol.V, p.354). Para outros
exemplos bíblicos de possessão por mais de um espírito impuro, cf. Mc 16.9;
Lc 11.26. Na volumosa obra de Stuart Clark, Pensando com Demônios,
também encontramos relatos de pessoas que são possuídas por vários
demônios durante o fim da Idade Média. Clark cita, dentre outros, o caso da
francesa Madeleine Demandols, que havia sido possuída por 6.660 demônios
e também menciona o caso de uma vienense chamada Anna Schlutterbãurin,
que estava possuída por 12.000 demônios! (Cf. CLARK, Stuart. Pensando
com Demônios: a idéia de bruxaria no principio da Europa moderna.
[Tradução de Celso Mauro Paciomik]. São Paulo, Edusp, 2006, pp.515, 539).
Mckenzie diz que na antiga Mesopotâmia o número de demônios era quase
233
CARL®S AUGUS+® VAILA + + I
“Legião”, é claramente um latinismo, sendo derivado da palavra
latina legio.391 Entretanto, legio é sua forma não somente no
latim, mas também no grego tardio, tanto helênico quanto
literário, o qual também aparece provavelmente no Aramaico da
Palestina; ele é encontrado nos escritos rabínicos (Singular:
Plural: pT^) e nas inscrições aramaicas primitivas, e
ele sobrevive ainda em Lejjun, o moderno nome de um local
normalmente identificado como Megido. Na verdade, o nome
“Legião” era uma referência feita a um corpo de soldados
romanos cujo número divergia de tempos em tempos, mas que,
no tempo do imperador Augusto, parecia consistir de 6.826
homens (isto é, 6.100 a pé e 726 a cavalo).399 Aliás, e por falar
ilimitado. (Cf. MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. [Tradução de
Álvaro Cunha], São Paulo, Paulus, 1983, p.225). Evans chama a atenção para
a singularidade dessa possessão, pois “até então Jesus havia expulsado
demônios individuais; agora, ali estava a oportunidade de demonstrar seu
poder sobre um exército de demônios”. (Cf. EVANS, Craig A. Lucas. (Novo
Comentário Bíblico Contemporâneo - Baseado na Edição Contemporânea de
Almeida). [Tradução de Oswaldo Ramos]. São Paulo, Editora Vida, 1996,
p. 154). Para T. Cahill, o relato da possessão de Maria Madalena por sete
demônios em Mc 16.9 pode significar que ela talvez fosse vítima de uma
forma particular de esquizofrenia, a qual era simbolizada por “sete
demônios”. (Cf. CAHILL, Thomas. Desire of the Everlasting Hills: the world
before and after Jesus. New York, Anchor Books, 1999, p.211).
1Q7
BUTTRICK, George Arthur, (ed.). IDB. An Illustrated Encyclopedia.
Vol.3. Nashville, Abingdon Press, 1981, p. 110. Para Paul Winter: “Do modo
como [a história] está reproduzida no segundo evangelho, podemos inferir
que a prevenção anti-romana em algum momento interferiu no caráter da
narrativa. Isto pode ser verificado no uso da palavra Aeyixóv [legiões] como
nome do agente demoníaco. (...) O uso dessa palavra latina constitui um
ataque verbal direto às forças de ocupação no território judaico”. (Cf.
WINTER, Paul. Sobre o Processo de Jesus. [Tradução de Sergio Alcides],
Rio de Janeiro, Editora Imago, 1998, p.247).
398 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p.95.
THAYER, Joseph Henry. GELNT, p.373. Lane sugere que a entrada do
termo “legião” na fala coloquial indica que a ocupação romana era um fardo
pesado para as pessoas. Porém, para ele, tal termo não demonstra um
234
SA+ANÁS, DEinêNieS £ LEGIî
em nomes de demônios, deve ser mencionado aqui que o já
citado Testamento de Salomão faz referência a 52 nomes
diferentes de demônios, os quais dominam sobre as mais
diversas áreas.400
sentimento anti-romano, antes, deve ser compreendido dentro do contexto da
luta entre as forças de Deus e as de Satanás. (Cf. LANE, William L. The
Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT], pp. 184,185). Rohden comenta
que a palavra “legião” deve ser vista como simples sinônimo de grande
multidão. (Cf. ROHDEN, Huberto. Novo Testamento: tradução do texto
original grego, com as variantes da Vulgata e amplamente anotada. São
Paulo, União Cultural Editora Ltda., S.d., p.101). Hastings faz um
interessante comentário sobre o termo “legião”, dizendo que seu uso era
muito comum na literatura midráshica e talmúdica (do séc. III d.C. em
diante). Segundo ele, em algumas destas situações, Leyidiv pode ser usado
como uma ilustração do termo em sua ocorrência no NT. Para ele, o vocábulo
“legião” possuía vários significados nestas literaturas: (1) Significando um
grande número: “E mais fácil alimentar uma legião na Galiléia do que
amamentar uma criança na terra de Israel”. (Gênesis Rabba XX.6); (2)
Significando uma especial e severa punição: “As águas do dilúvio são
comparadas a uma ‘cruel legião’”. (Gênesis Rabba iv.6; confira também v.6);
(3) Significando (sob certas circunstâncias) impureza: “Uma legião em
marcha é impura porque caveiras são usadas como amuletos, as quais são
sempre transportadas por ela”. (Talmude Babilônico, Tratado Hullin, 123a);
(4) Significando comparecí mento diante de um rei: “Deus fala de Israel na
passagem do Mar Vermelho como ‘minhas legiões’” (Êxodo Rabba xxiii.7).
“A tribo de Levi é a legião que permanece na presença real de Deus”
(Números Rabba i. 12). “Quando Deus vai adiante ‘para a paz’ é assistido por
multidões e legiões”. (Números Rabba xi). Estas referências ilustram tanto
Mt 26.53 (“Doze legiões de anjos”); cf. (1) e (4); quanto Mc 5.9 (“Legião...
porque somos muitos”); cf. (1) e (2). Hastings conclui, dizendo que a ideia de
impureza não é proeminente na palavra. (Cf. HASTINGS, James. A
Dictionary of the Bible. Vol.3. Peabody, Hendrickson Publishers, 1988,
P-94).
u Para saber o nome de cada um desses demônios e em que área atuam,
veja todo o capítulo 10 de: MACHO, A. Diez. Apocrifos Dei Antiguo
Testamento. Vol.V, pp.381-383.
Finalmente, foi sugerido que o nome “legião” talvez
significasse que o homem havia tido uma experiência infeliz
com a legião romana e isso havia causado sua loucura, ou então,
235
CARL©S AUGUS + ® VA1LA + + 1
que ele sentia como se estivesse possuído por milhares de
demônios (já que a legião romana consistia de mais de seis mil
homens).401 Outrossim, talvez esse nome também significasse
“legionário”, já que o termo estrangeiro “legião” era assim
compreendido no rabinismo.402 Deve-se mencionar ainda que
havia um ditado popular judaico que dizia: “Uma legião de
espíritos malignos está diante dos homens, dizendo: ‘quando
será que ele cai nas mãos de uma destas coisas e será [por elas]
tomado’”.403
GAEBELEIN, Frank E. The Expositor's Bible Commentary. [Matthew,
Mark and Luke]. Vol.8, p.658.
402 GNILK.A, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I, p.238. J.
Jeremias traz uma importante nota sobre o termo “legião” encontrado nessa
passagem. Ele diz: “Em vários casos pode-se demonstrar ou ao menos supor
que uma história de milagre resultou de um mal-entendido de linguagem.
Assim, a lenda da passagem dos demônios para a enorme vara de dois mil
porcos(Mc 5.12s. par.) deve ter-se originado do sentido duplo do aramaico
^JÍ’35 / ligyona / que significa: 1) legião, 2) legionário. Quando o espírito
mau do possesso responde à pergunta pelo seu nome: AEyicòv bvogá got, bu
ícoAãoí. bogEV [legião é o meu nome, porque somos muitos] (...), isso
originalmente deve ter significado: ‘Eu me chamo Soldado, pois há muitos do
meu tipo (e nós nos assemelhamos uns aos outros como um soldado ao
outro)’. A palavra ligyona foi erroneamente entendida como ‘legião’: ‘Eu me
chamo Legião, porque o nosso número é grande (e todo um regimento de nós
mora no doente)’, e obteve-se assim a idéia da possessão do doente por
milhares de maus espíritos”. (Cf. JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo
Testamento. [Tradução de João Rezende Costa]. São Paulo, Teológica /
Paulus, 2004, p. 147).
403 Cf. BARCLAY, William. The Gospel of Mark, p.l 17; EDERSHEIM,
Alfred. The Life and Times of Jesus the Messiah. Peabody, Hendrickson
Publishers, 1883, p.612.
De qualquer forma, o vocábulo também poderia ser uma
alusão à situação política reinante no país. Os romanos estavam
assentados como força de ocupação e não tinham intenção de
abandonar o país. Em linha com isto se encontra precisamente a
236
sa+anás, DeméNies e legiã®
primeira das petições, segundo a qual se pede a Jesus que não
expulse os demônios para fora daquela localidade.404
404 GNILKA, Joachim. El Evangelio Según San Marcos. Vol. I, pp.238,239.
405 ANDERSON, Hugh. The Gospel of Mark. [NCBC], Grand Rapids, WM.
B. Eerdmans Publ. Co. & London, Marshall, Morgan & Scott Publ. Ltd.,
1981, p.149.
406 MARCUS, Joel. Mark 1-8: A New Translation with Introduction And
Commentary. Vol.27. [AB], p.345.
407 SWETE, Henry Barclay. Commentary on Mark, p.95. Segundo Lane:
“Assumindo que os demônios são o sujeito de TtapEKáXet (...) há paralelos
em que demônios são enviados para lugares como o deserto, as montanhas
desabitadas, o mar, os fins do mundo (cf. Tb 8.3), e para dentro de animais,
de forma que eles não possam prejudicar os homens. Se o homem é o sujeito,
seus pedidos poderiam ser um patético apelo para que não fosse movido
novamente, como os homens da cidade tinham feito muitas vezes”. (Cf.
LANE, William L. The Gospel According to Mark. Vol.2. [NICNT], p. 185).
“E implorava-lhe muito para que não os mandasse para
fora da região (v. 10).
Antes de qualquer coisa, deve ser dito que o pedido dos
demônios para que não fossem enviados para fora do país é uma
característica das histórias de exorcismo.405 Aqui, o verbo
-fiapfKáÀei, “implorava”, aparece no imperfeito. Marcos usa o
tempo imperfeito que indica repetição ou ação contínua,
evidentemente porque estas petições são mal-sucedidas e,
portanto, repetidas. Já no verso 12, o tempo muda para o aoristo,
porque a petição é concedida.406 Um fato curioso aparece neste
verso: a petição feita no singular, “implorava”, é seguida pelo
plural, “que não os mandasse”. Swete explica que o singular é
usado porque os espíritos, falando através da voz do homem, são
ainda considerados como um único ego.407 Quanto ao verbo
àTrooreíÀq, “mandasse, enviasse”, o mesmo aparece no
subjuntivo aoristo, sendo derivado de àKooTÉXÃco, “enviar para
237
CARLOS AUGUS + ® VAILA + + 1
fora”.408 No que diz respeito ao fato de os demônios não
quererem sair daquela região, alguns expositores, citando
Grotius, dizem que a região da Decápolis, repleta de judeus
apóstatas helenistas, era amada pelos demônios.409 Schweizer
comenta que “para o contador de história judeu é claro que os
demônios são prósperos no território gentílico e por esta razão
não queiram deixá-lo”.410 Dessa forma, os demônios pedem
educadamente a Jesus que não os expulse daquela região (região
que, na verdade, não está submetida à Lei de Moisés, por tratar-
se de um território pagão).411 Do ponto de vista sociopolítico,
podemos notar que a “legião” queria continuar mantendo a sua
força de ocupação naquele território. Como acontece a qualquer
conquistador, seria muito ruim ter que abrir mão de um pedaço
de terra que fora conquistado a duras custas.
ROGERS JR., Cleon L. & ROGERS III, Cleon L. The New Linguistic
and Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids, Zondervan
Publishing House, 1998, p.76.
409 WUEST, Kenneth S. Mark in the Greek New Testament. Vol. X, p. 104.
Segundo Mulholland: “o conceito do domínio territorial dos espíritos (cf. Dn
10.12-14,20; At 19.35) se reflete nas expressões “lugares altos” (Nm 33.52
[“ídolos”], etc.) e os deuses da “planície” (1 Rs 20.23). Povos animistas
crêem que certos espíritos são senhores sobre um território ou uma casa em
que habitam”. (Cf. MULHOLLAND, Dewey M. Marcos, Introdução e
Comentário. [Tradução de Maria Judith Prado Menga]. São Paulo, Vida
Nova, 1978, p.93).
410 SCHWEIZER, Eduard. The Good News According to Mark. [Translated
from german by Donald H. Madvig]. Atlanta, John Knox Press, 1970, p. 114.
Além disso, deve-se lembrar que nas antigas culturas, os espíritos eram
normalmente associados a determinados locais. (Cf. KEENER, Craig S.
CBANT, 154).
41 1 DUQUESNE, Jacques. Jesus. [Tradução de Daniel Piza], São Paulo,
Geração Editorial, 2005, p. 137.
“E estava ali, perto do monte, uma grande manada de
porcos pastando ” (v. 11).
238
SA+ANÁS. D£1T1®NI®S E LEGIî
É muito provável que o episódio dos demônios entrando
nos porcos, os quais se precipitam despenhadeiro abaixo até o
Mar da Galiléia e se afogam (vv. 11-13), seja um acréscimo
posterior à forma dessa história de exorcismo.412 Em seu
abrangente estudo sobre a história do endemoninhado geraseno,
Annen utiliza um argumento baseado no critério da coerência
para corroborar tal pensamento. Seu principal argumento é que,
no material do Evangelho com boa probabilidade de ser
histórico, Jesus nunca realiza um milagre destrutivo que venha a
prejudicar alguém (neste caso, o[s] dono[s] dos porcos) e que
pareça se comprazer no espetacular, apenas pelo espetacular.413
Além disso, a palavra áyéÀT], “manada, rebanho”, também chama
a nossa atenção neste verso. Derrett observou que esse termo é
inadequado para se referir a porcos, os quais não andam em
rebanhos. Segundo ele, esse vocábulo era empregado muitas
vezes para se referir a um bando de recrutas militares.414 Se esta
opinião estiver correta, logo, segue-se que os “porcos” seriam os
próprios soldados romanos, a legião!415 Tal interpretação teria,
MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico.
Vol.II, Livro III, 1998, p. 173.
413 ANNEN, Franz. Heil für die Heiden. Zur Bedeutung und Geschichte der
Tradition vom besessenem Gerasener. Frankfurter Theologische Studien 20;
Frankfurt, Knetcht, 1976, p.192. Apud: MEIER, John P. Op. Cit.,
pp. 190,191.
4 4 DERRETT, J. Duncan M. Contributions to the Study of the Gerasene
Demoniac. JSNT, 3, p.5. Apud: MYERS, Ched. O Evangelho de São
Marcos, p.238. Esse termo aparece com o sentido de “rebanho” ao longo de
toda a obra de Homero (aprox. 900 a.C.). (Cf. THAYER, Joseph Henry.
GELNT, p.6).
415 Essa também é a opinião de Maggi, segundo quem, “nos tempos de Jesus,
com a figura do porco se designava aos romanos, como ocupantes da terra de
Israel, representada nos Salmos como uma ‘vinha devastada pelos javalis do
bosque’ (SI 80.4). Além do mais, como afronta aos judeus, o estandarte da
Legião X Fretensis era precisamente um javali. O termo ‘manada’ indica a
grande riqueza dos ocupantes, obtida mediante a violenta submissão dos
239
CARL®S AUGUS+® VAILA + + 1
portanto, uma forte conotação política. Bem, mas voltando à
figura dos porcos, os quais são citados ao longo de nossa
perícope (vv.l 1-13,16), creio que caibam aqui algumas
observações a seu respeito. Primeiramente, a Mishná proibe a
criação deste animal: “Ninguém [outros textos trazem: Nenhum
israelita] pode criar porco em parte alguma”. (Baba Kamma,
Tratado Nezikin, 7.7).416 E, além disso, o Talmude também diz:
“Amaldiçoado seja aquele que cria porcos”.417 Embora a Mishná
e o Talmude,