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Economia sem truques
O mundo a partir das
escolhas de cada um
Carlos Eduardo Gonçalves e
Bernardo Guimarães
 
 
Índice
 
Prólogo
1. O pobre não é burro
2. A feia fumaça e o casaco verde-chiclete
3. A lei que proíbe cobrar menos
4. A lei que aumenta o salário
5. De caçadores-coletores a guias de turismo lunar
6. E eu vos declaro marido e mulheres
7. O preço do futuro
8. Vegetarianos, preços e bois
9. As árvores da Ilha de Páscoa e as ruas de Londres
10. O mercado das almas
11. 289 dias
12. O poder mágico da cerveja
13. Casas esquisitas
14. As cigarras
15. Os ombros dos gigantes
16. O milagre da transformação do suco de laranja em vinho
17. O mercado de promessas
18. Faxineiro ou aviãozinho
19. Pedreiros e políticos
20. As leis da economágica
 
 
Índice didático
 
 
Prólogo
1. Escolhas
2. Externalidades
3. Preços
4. Salários
5. Produção e empregos
6. Restrição orcamentária
7. Taxa de juros e trocas intertemporais
8. Sistema de preços e equilíbrio
9. Falhas de Mercado
10. Desigualdade
11. Falhas de governo
12. Noções de econometria
13. Taxação
14. Previdência
15. Educação
16. Comércio
17. Crédito
18. Mercados ilícitos
19. Instituições políticas
20. As leis da economágica
 
Prólogo
 
Este é um livro que ensina economia a partir de seus princípios mais básicos, usando exemplos
lúdicos, mas voltado a questões práticas e importantes. Ao nosso ver, a ciência econômica moderna
fornece instrumentos que nos permitem compreender os fenômenos socioeconômicos e encontrar
soluções que melhoram concretamente a vida das pessoas. Contudo, talvez pelo caráter hermético
das técnicas estatísticas e matemáticas empregadas ou pelo linguajar específico dos economistas
acadêmicos, esse entendimento normalmente não chega ao público. Nós acreditamos que é possível
ensinar a todos aqueles interessados nos debates sobre políticas públicas a maneira do cientista
econômico analisar os diversos fenômenos sociais. Este livro busca justamente estabelecer esse elo
entre o economista acadêmico e a discussão cotidiana.
O livro desenvolve e aplica a questões concretas o substrato da lógica econômica, buscando
consolidar ao longo dos capítulos os pilares dessa lógica ao invés de entrar em detalhes específicos
das discussões dos jornais. Aqui, o leitor não encontrará nada sobre a reunião do Copom, nem os
últimos dados da cotação do dólar. Para ensinar economia, falamos de coisas como o colapso da
civilização que habitava a Ilha da Páscoa, a fabricação de vinho francês a partir do suco de laranja, e
as casas com janelas cobertas por tijolos. Não parece economia? Apenas por enquanto.
Em termos de estrutura, o livro está dividido em duas partes. A primeira lança as bases teóricas do
pensamento econômico moderno, enquanto a segunda se dedica a aplicar esta lógica, este arcabouço
de raciocínio, ao entendimento de temas particularmente caros ao país, como educação, comércio e
mercados de crédito. Os doze primeiros capítulos tratam dos fundamentos, enquanto os oito capítulos
restantes focam em aplicações.
O ponto de partida de toda nossa análise está nas escolhas das pessoas e em sua interação com o
mundo ao redor. Raciocinando a partir das escolhas individuais, mostraremos como são
determinados os preços, os salários, os empregos e a produção da economia. Falaremos sobre a feia
fumaça que sobe apagando as estrelas, as leis que apenas parecem aumentar os salários, o problema
do pai do Woody Allen, e muitos outros casos. Em seguida, explicaremos quando e porque o governo
deve intervir na economia e os princípios básicos que nortearão as decisões sobre políticas
públicas. Ficará claro porque o governo não deve interferir com os impactos sobre o preço do ouro
de uma charge ofensiva a Maomé feita por um cartunista dinamarquês, e porque o governo deve
intervir a fim de reduzir o congestionamento nas ruas de Londres.
Entendida a teoria, passaremos a questões ligadas ao debate corrente no Brasil, como tributação, e
instituições políticas. Não falaremos sobre as particularidades das reformas discutidas na conjuntura,
o que importa para nós é a lógica econômica por trás de cada assunto. Por exemplo, se queremos
saber sobre as políticas públicas adequadas para a previdência, vamos antes entender o problema
das cigarras e das formigas. Isso, no entanto, não significa que trataremos desses temas de maneira
abstrata. Para discutir estas questões, é necessário atentar para a realidade, e o livro está recheado
de dados reais e de histórias concretas como a de um banqueiro que ganhou o Prêmio Nobel da Paz.
Algumas passagens do livro podem parecer óbvias, mas o óbvio com freqüência desemboca no
surpreendente. Por exemplo, o fato de o traficante de drogas não emitir notas fiscais nas suas vendas
é óbvio, mas é bem menos claro que é por causa disto que há tanta violência associada ao tráfico.
O Brasil tem constantemente recorrido a truques de economágica para tentar resolver seus
problemas, implementando políticas públicas que tentam remediá-los sem tocar em suas causas
fundamentais. Claro está, os coelhos não têm saído da cartola. Ao longo deste livro, usaremos o
arcabouço econômico tanto para desvendar os truques da economágica, como para pensar e propor
soluções que de fato funcionem.
 
1. O pobre não é burro
 
Bangladesh é um país muito pobre, bem mais pobre que o Brasil. É também um dos maiores
exportadores do mundo no setor têxtil, onde se empregam mais de um milhão de pessoas. Em 1992,
mais de 50 mil destes empregados eram crianças de até 14 anos, meninas em sua maioria. Crianças
que não estavam estudando nem brincando, crianças cuja infância se resumia a produzir roupas que
seriam vestidas por estrangeiros, e cujo salário mensal não era suficiente para pagar a conta de
alguns jantares dos estrangeiros que vestiam as roupas por elas produzidas. O trabalho infantil era
proibido por lei em Bangladesh, mas a lei não pegou.
Foi então que uma lei americana proibiu a importação para os Estados Unidos de produtos que
utilizavam trabalho infantil. A lei americana pegou e, consequentemente, o trabalho infantil nas
indústrias têxteis de Bangladesh foi drasticamente reduzido. Cerca de 50 mil crianças foram
dispensadas da dura vida nas fábricas.
Mas por que será que as crianças estavam trabalhando nas fábricas? Seria essa uma escolha de pais
cruéis, imposta às crianças indefesas? Bem, pais normalmente se importam com os filhos, e ainda
que alguns não se importem, é difícil imaginar que 50 mil crianças estivessem sendo escravizadas
pelos seus pais. O que estava motivando esta escolha? 
Na nossa vida, estamos sempre buscando escolher o que é melhor para nós. O processo decisório
não é fácil, simples ou indolor, e o ato da escolha não raro causa angústias, suscita dúvidas e é
penoso para quem decide. Mas, apesar disto, a verdade é que nós, você e a população pobre de
Bangladesh estamos todos sempre escolhendo, tentando buscar o melhor para nossas vidas. Até
mesmo quando optamos por delegar nossas escolhas a alguém, estamos decidindo não escolher, e
arcando com os custos e benefícios desta opção.
Mas estas escolhas não são totalmente livres. Inúmeras restrições as condicionam, delimitam e
influenciam, como, por exemplo: (i) as limitações de ordem financeira que todos enfrentamos (o
salário de professor universitário não nos permite escolher viajar para o exterior de primeira
classe); (ii) os impedimentos de natureza jurídico-legal que nos cercam (podemos acabar presos se,
para comprarmos o ticket de primeira classe, resolvemos assaltar um banqueiro em sua mansão); (iii)
a nossa falta de informação sobre diversos temas (quanto dinheiro será que o banqueiro guarda em
sua casa? Ela é fortemente vigiada por câmeras de segurança?), (iv) as normas morais que regem
nosso padrão de comportamento social (mesmo se a mansão estiver desprotegida e a probabilidade
de sermos pegos pela polícia for muito baixa, não achamos correta a escolha de assaltar o
banqueiro); etc.
Em resumo, as escolhas são em larga medida determinadas pelo conjunto de restrições. Entretanto,estar restrito em suas opções não é o mesmo que não ter opção, é analiticamente diferente de não
escolher. As crianças e seus pais em Bangladesh não escolheram o infeliz destino de trabalharem em
tenra idade e sob condições ruins por mera ignorância. O pobre não é burro. Se eles assim o fizeram
foi por ser esta sua melhor opção disponível entre as várias e péssimas alternativas possíveis.
O problema das crianças em Bangladesh era o conjunto de alternativas disponíveis, e não a escolha
de trabalhar na fábrica em si. Mas por que esta distinção importa?
Em 1992 mais de 50 mil crianças estavam escolhendo trabalhar para a indústria têxtil de Bangladesh,
escolha esta que a lei americana as impediu de manter. As conseqüências da lei foram trágicas para
as crianças. Elas não deixaram o trabalho para ingressar na escola, nem tampouco passaram a curtir
as tardes brincando nos parques. A realidade mostrou-se menos idílica: elas se tornaram prostitutas,
trombadinhas, ou foram trabalhar quebrando pedras na pedreira. Em suma, saíram da fábrica para se
envolver em atividades ainda piores. Além disto, algumas mães tiveram que abandonar seus
empregos para cuidar dos filhos, acentuando o problema de pobreza destas famílias.
Se os propositores da lei proibindo a importação de produtos que utilizam trabalho infantil tivessem
pensado que a escolha prévia das crianças era fruto de um restrito conjunto de alternativas
disponíveis e não de burrice, eles não teriam se surpreendido com o fiasco que se mostrou a lei.
Afinal de contas, se fosse uma opção viável para as famílias pobres de Bangladesh mandarem seus
filhos para as escolas e parques, elas o estariam fazendo antes da entrada em vigor da lei norte-
americana.
Não demorou para que as conseqüências negativas da lei fossem percebidas e, em 1995, após dois
anos de penosa negociação, um novo e melhor acordo foi firmado entre a associação das industrias
têxteis de Bangladesh e a UNICEF. Este acordo tinha como ponto principal prover melhores
alternativas às crianças. O documento explicitamente solicitava que, para o bem das próprias
crianças, as fábricas não as demitissem até que estas tivessem disponível uma alternativa melhor.
Com o apoio financeiro internacional e trabalho das organizações locais, alternativas começaram a
ser desenvolvidas. A boa noticia é que já se detectam melhoras.[1]
A todo instante, dezenas de indivíduos escolhem ser assaltantes, entrar na prostituição, trabalhar
incontáveis horas no canavial sob sol inclemente, ou em condições precárias na indústria têxtil.
Nenhuma destas escolhas nos soam como minimamente desejáveis. A muitos de nós elas causarão,
com plenitude de razão, indignação e revolta contra o grau de injustiça social que refletem. Quais as
escolhas que se apresentam, por exemplo, a um indivíduo nascido em uma favela violenta de uma
grande metrópole ou no interior de um estado pobre do Nordeste brasileiro?
Saber que ele tentará escolher da melhor maneira possível dentre suas opções, todas muito ruins, não
soa nada animador, mas é importante ter em conta que o problema de fundo não se resolverá atacando
as escolhas em si, e sim melhorando o leque de opções disponíveis para os mais desprovidos.
Alterar forçosamente as escolhas destas pessoas, ao invés de focar na melhora das possíveis
alternativas, nada resolve e provavelmente apenas piorará uma situação que já é em si ruim. 
Semelhante idéia se aplica ao caso da prostituição voluntária de adultos. Todo ano vários turistas
desembarcam no Brasil motivados pelo clima, pelas praias e pelo turismo sexual. Ao mesmo tempo,
há inúmeras campanhas contra o turismo sexual em várias cidades onde a atividade turística é parte
relevante da economia local.
A escolha da prostituição como profissão está, de acordo com alguns especialistas, ligada a
complicados fatores familiares e psicológicos. Mas, como no exemplo anterior, parte da explicação
para a decisão de vender o corpo decorre da falta de alternativas melhores e não de ignorância sobre
o fardo da profissão. Sendo assim, proibir a prostituição de adultos pode agradar aos que querem
uma cidade livre de prostitutas, mas não vai contribuir para melhorar a vida delas. Por quê? Porque a
proibição não cria magicamente postos de trabalho em outros lugares, não aumenta o nível
educacional da prostituta, e nem transfere renda para ela poder alimentar seus filhos. Como
anteriormente, entender que uma escolha que julgamos ruim decorre, com alta probabilidade, das
alternativas ainda piores a que uma pessoa tem acesso, é primordial para desenhar estratégias de
políticas públicas que gerem bons resultados.
Neste livro, estaremos sempre raciocinando a partir das escolhas individuais. A lógica empregada
pela ciência econômica moderna para analisar os diversos fenômenos que nos cercam centra-se nas
escolhas dos indivíduos e nas restrições que afetam e limitam estas escolhas. O que motiva esta
abordagem metodológica?
Em um plano mais teórico, são dois os motivos que nos levam a partir do pressuposto que o
indivíduo escolhe o que é melhor pra si. A primeira é mais filosófica e tem a ver com a ideia
primária de respeito às preferências e liberdades individuais. Os nossos pais gostam mais de
picadinho com jiló do que de sashimi de salmão. Esta preferência nos soa estranha, esquisita, mas
forçá-los a comer o sashimi não vai ajudá-los, não vai torná-los mais felizes.
A segunda é mais prática e está relacionada ao fato de os indivíduos terem melhor informação a
respeito de suas alternativas e de toda sorte de restrições que os acometem, do que o têm governante,
o político e o estudioso. O trabalhador de Bangladesh e a prostituta brasileira conhecem melhor do
que ninguém o seu mundo e as suas opções
Apesar de na grande maioria dos casos ter mais opções é melhor do que ter menos, existem certas
circunstâncias onde restringir seu próprio campo de escolha pode acabar sendo benéfico. Em geral,
isto é verdade nas situações onde é difícil resistir ao que chamaremos genericamente de “tentações”,
mesmo sabendo que ceder a elas pode gerar perdas significativas para o indivíduo. 
Ulisses, o navegador da Odisséia de Homero, mostrou ter entendido bem esta questão. Ao navegar
por mares povoados por sereias, sedutoras porém mortais, e sabendo que não poderia resistir a seu
chamado uma vez escutada a doce melodia de seu canto, ele pede a seus auxiliares que amarrem suas
próprias mãos à haste do navio. Basicamente, ele pede, para seu próprio bem, que lhe retirem uma
opção: a de mergulhar para encontrar as sereias. Ao amarrar as próprias mãos, Ulisses sai ileso da
aventura.
Da mesma forma, em casa de diabético, é melhor não entrar doce. Pode ser difícil resistir à tentação
de comer um bombom, mas é extremamente importante que o diabético não os saboreie. Alguns
diabéticos mais racionais e controlados não vão comer doce mesmo que haja uma caixa de
deliciosos chocolates na estante da sala. Mas retirar esta opção do alcance do diabético pode ajuda-
lo a não ceder a esta tentação. Um dos autores deste livro tem dificuldades enormes de não comprar
livros ao entrar em uma boa livraria. Uma saída que ele encontrou para evitar gastar parte importante
do seu orçamento com esta compulsão foi buscar passar bem longe da livraria - amarrando as
próprias mãos (pés?) como Ulisses. O nó não está se mostrando dos mais firmes, contudo, pois uma
vez no shopping center onde se encontra a dita livraria, é quase impossível para ele manter o
compromisso de não entrar (e é impossível entrar livraria e sair sem livros!). Sua próxima tentativa é
abolir os jantares de fim de semana em restaurantes do shopping onde se acha a famigerada livraria.
Mas mesmo nos poucos casos onde o individuo escolhe em prejuízo próprio, é importante analisar os
fenômenos socioeconômicos a partir de sua decisão individual. Quando levamos a sério a ideia de
que trabalhadores, consumidores, empresários, cidadãos e governantes estão sempre escolhendo e
reagindo aos incentivos, fica muito mais fácil entender o funcionamento da economiae analisar o
impacto de políticas públicas. Por outro lado, quando se abandona este pressuposto, descamba-se
para o que apelidamos aqui de economágica, com sérias consequências adversas para a economia.
Nossas escolhas se alteram de acordo com as condições do ambiente que nos cerca, ou mais
precisamente, com as diversas variáveis que afetam os custos e os benefícios de cada uma de nossas
possíveis escolhas. Essas mudanças em face de modificações no ambiente estão na raiz do
entendimento do funcionamento de uma economia de mercado.
O exemplo mais típico e usual de reação a mudanças no ambiente tem a ver com o impacto de
variações dos preços dos bens que consumimos. Quando sobe o preço da manteiga, por exemplo, os
consumidores aumentam a procura por margarinas, um substituto razoavelmente próximo para muitos.
Já quando o pãozinho francês fica mais caro na padaria e as pessoas passam a consumi-lo em menor
escala, cai também a demanda por manteiga, dado que ambos são em geral consumidos em conjunto.
Além de escolher o que compramos, escolhemos trabalhar ou não, como e onde.
Em um feriado prolongado de muito calor, quando a volta de milhares de carros do litoral
congestiona as estradas, rapidamente aparecem, como que surgidos do nada, grupos de vendedores
ambulantes de água e refrigerante. Essas pessoas estão escolhendo trabalhar no feriado, reagindo à
oportunidade temporária de ganhos mais altos propiciada pela combinação de calor e
engarrafamento. 
Nossas opções de trabalho dependem de nossa formação, que também é fruto de uma escolha. Todos
os anos, entre 800 e 1500 alunos saídos dos cursos de graduação em economia prestam uma espécie
de vestibular para ingressar nos programas de mestrado de economia oferecidos pelas diversas
escolas do país. Em anos em que o mercado de trabalho para economistas juniores encontra-se
aquecido, muitos deles deixam de lado a escolha de estudar para a prova de ingresso no mestrado e
decidem entrar no mercado de trabalho. Nestes anos, os candidatos inscritos para a prova nacional
do mestrado em economia raramente passam de 1000. Mas quando a economia do país vai mal, e o
mercado de trabalho por conseqüência torna-se temporariamente menos atraente para os formandos
da graduação em economia, a demanda pelos cursos de mestrado cresce vigorosamente, podendo
alcançar o teto do intervalo acima sugerido. Os recém formados estão escolhendo de acordo com as
condições do ambiente que os cerca, adiando a entrada no mercado de trabalho para um momento
mais propício, e aproveitando o interregno para aprimorar suas habilidades no curso de mestrado.
Produtores e vendedores escolhem produzir e vender de acordo com as características da demanda.
Ambulantes e pequenos comerciantes encontrados nas calçadas das grandes ruas e avenidas, que
costumeiramente ofertam ao público passante múltiplas bijuterias, capas de celular, e até funcionam
como intermediários financeiros comprando tickets refeição, rapidamente reaparecem nas esquinas
com pencas de guarda-chuvas, de R$ 5 e R$ 10, quando a chuva pega o transeunte no contra-pé
oferecendo uma boa oportunidade de lucro para os vendedores. A decisão do que ofertar dos
ambulantes não é, portanto, rígida: ela muda quando muda o ambiente.
O inchaço dos departamentos financeiros das empresas em países que vivenciam períodos de
inflações altas e crônicas é outro exemplo de reação às condições do ambiente. Quando a inflação é
muito alta, tão ou mais importante que produzir com qualidade, ter uma boa estratégia de marketing,
selecionar com cuidado os fornecedores, ou desenvolver novos produtos, é ter um departamento de
finanças que seja bastante eficiente em proteger as receitas da firma da erosão inflacionária,
utilizando para tal os mais diversos instrumentos financeiros disponíveis. Mas quando a inflação cai,
o tamanho e a importância estratégica dos departamentos de finanças nas empresas diminui a olhos
vistos. Mais recursos (humanos e financeiros) passam então a ser alocados para os departamentos de
criação de novos produtos, ou para os de vendas. Empresários e acionistas estão constantemente
decidindo em que departamento focar mais recursos em função da alteração do entorno
macroeconômico.
Nos Estados Unidos, um país de muitos obesos, existe uma quantidade enorme de lojas ofertando
roupas apenas para pessoas que pesam mais de uma tonelada; no Brasil, onde o ambiente é outro –
com menos obesos – estas lojas são muito mais raras. A decisão sobre o que produzir depende das
características dos consumidores.
Os políticos, representantes do povo, também estão escolhendo. Nas democracias do início do
século XIX, apenas os ricos e os instruídos votavam. As escolhas das plataformas de campanha dos
políticos levavam isto em consideração e, consequentemente eram ainda muito incipientes programas
de transferência de renda aos pobres, ou escolas públicas gratuitas. Mas então se deu uma mudança
de ambiente: os pobres passaram a votar também. O que aconteceu com as escolhas dos políticos?
Elas mudaram de acordo com a mudança dos incentivos. Se o pobre vota, os olhos do político a ele
se voltam. E com a extensão do sufrágio, os governos começaram a financiar escolas, hospitais
públicos e programas de transferência direta de renda com impostos (majoritariamente pagos pelos
mais ricos).
De maneira similar, o aumento da longevidade das pessoas aumentou ao longo do século XX a
participação de idosos na população total. Apoiar programas de transferência de renda para um
grupo amplo de eleitores – os idosos – foi-se tornando cada vez mais uma escolha interessante para
os políticos, e deu-se como consequência um aumento dos gastos públicos com pensões na segunda
metade do século XX.
Em resumo, as pessoas estão escolhendo a todo instante. No entanto, como vivemos em sociedade,
decisões individuais frequentemente geram consequências que não se limitam a quem as toma,
afetando outros no seu entorno de maneira negativa ou positiva. Este fato gera importantes
consequências econômicas e é o tema do nosso próximo capítulo.
 
 
2. A feia fumaça e o casaco verde-chiclete
 
É da escritora americana Fran Lebowitz a frase: “o seu direito de usar um casaco de poliéster verde-
chiclete termina onde começam os direitos do meu olho”. Se ela fosse economista, provavelmente
exporia o mesmo pensamento de maneira diferente, ressaltando que nossas escolhas podem afetar os
outros. No caso específico, que a roupa que escolhemos propicia uma visão agradável ou não aos
olhos daqueles que nos vêem passar. Sim, a frase não soaria muito divertida, mas chamaria atenção
para o fato de que embora estejamos sempre escolhendo o que preferimos, não necessariamente
estamos escolhendo o que é o melhor levando-se em conta todas as pessoas envolvidas e afetadas
pela nossa decisão.
Caetano Veloso, na música Sampa, apresenta queixa contra “a feia fumaça que sobe apagando as
estrelas”. Quando as fábricas poluentes e os donos de automóveis velhos escolhem lançar no ar
enormes nuvens de fumaça negra, o nosso céu fica mais triste e o ar menos saudável. No capítulo 1,
argumentamos que interferir diretamente nas escolhas dos indivíduos lhes era prejudicial. Mas e
neste caso, devemos respeitar a decisão individual das empresas de poluir o ar?
Nosso bom senso nos diz que não, e ele está correto. Mas é importante entender exatamente porque.
O diferente aqui em relação aos exemplos do capítulo anterior é que a emissão de fumaça gera um
dano para os outros que não é ressarcido pelos agentes poluidores.
Quando decidimos, comparamos os custos e os benefícios que obteremos em cada uma das
alternativas que se nos apresentam. Entretanto, como estamos interagindo o tempo todo em
sociedade, às vezes os custos e benefícios das nossas escolhas recaem sobre outros, seja de maneira
positiva, ou de maneira negativa. A estes impactos da escolha individual, que transcendem os limites
do indivíduo, os economistas dão o nome de “externalidades”.
Nossa escolha de sujar ou limpar nossa casa deve ser respeitada, pois arcamos comtodos os custos e
conseqüências desta opção. A nossa decisão de sujar o mundo, poluindo o ar, não. Ela não pode
receber o mesmo tratamento, pois os custos de um mundo mais poluído não incidem apenas sobre
quem decide poluir.
Quando uma empresa produtora de papel lança dejetos tóxicos oriundos do processo de produção em
um rio, matando seus peixes e contaminando sua água, sua ação gera prejuízos para a população
ribeirinha que nele costuma pescar, recolher água doce, ou banhar-se, e até mesmo para o cidadão
que fica desagradado ao presenciar a triste cena de dejetos ou espuma química navegando rio abaixo.
O ato da empresa prejudica pessoas não envolvidas na decisão de poluir. Ele gera externalidades
negativas.
Também há uma externalidade negativa quando um proprietário de terras do Mato Grosso promove
uma queimada em seu terreno com vistas a abrir espaço para futuras plantações. Ao fazê-lo, ele lança
no ar uma quantidade de gás carbônico que leva a uma deterioração da qualidade de vida de outras
pessoas. É verdade que a pior qualidade do ar também afeta o proprietário, mas isto não constitui
uma externalidade negativa. Externalidade é apenas a parte do impacto que incide sobre os outros.
E os exemplos não param por aí: jogar bituca de cigarro pela janela; não desligar o celular no
cinema; andar no ônibus lotado sem usar desodorante; dirigir perigosamente; sair de carro em um
horário de trânsito intenso (aumentando o tráfego para os que já estão tentando chegar no trabalho);
entrar no elevador e apertar o sétimo quando alguém no elevador se dirige ao décimo andar (e,
portanto, é “atrasado” pela sua parada no sétimo); roubar; conversar alto na biblioteca; buzinar no
trânsito; fumar em lugar fechado, são todos casos de externalidades negativas. São instâncias onde a
ação privada afeta adversamente o bem-estar de outros.
O fato de uma ação provocar externalidades negativas não significa que ela não deva ser tomada. Por
exemplo, a ambulância que passa correndo na minha frente para chegar um pouco antes ao seu
destino atrasa a minha viagem em alguns segundos. Mas os segundos para a pessoa que precisa de
atendimento médico são mais importantes do que para mim. Então, a ação do motorista da
ambulância não deve ser coibida porque seus benefícios compensam suas externalidades negativas.
Da mesma maneira, aviões poluem o ar, mas a viagem de avião deve ser evitada apenas se os custos
para todos provenientes da externalidade negativa – a poluição – superarem os benefícios líquidos
diretos da ação para os passageiros – ou seja, o benefício do transporte menos os outros custos da
viagem.
Um exemplo sério e bastante importante de externalidade negativa, que recebe a alcunha de “tragédia
dos comuns”, ocorre quando a ação privada e desarticulada de vários indivíduos exaure,
rapidamente, algum precioso recurso que é comum a todos.
Imaginemos o caso de um pasto público, onde todos os criadores de gado de uma certa região podem
levar seus bezerros para engorda. Se o pedaço de terra em questão fosse propriedade de um único
fazendeiro, ele procuraria economizar um pouco dos recursos do pasto para o futuro, e decidiria
quantos bezerros a ele levar tendo em conta que um número excessivo de bezerros hoje exauriria os
recursos disponíveis para os bezerros de amanhã. Mas se outros fazendeiros podem também ali
alimentar seus respectivos rebanhos, a economia feita por um dado fazendeiro pode ser facilmente
apropriada pelos bezerros dos outros. Em vista disto, se o fazendeiro considera apenas os custos e
benefícios que recaem sobre si mesmo, ele optará por levar o máximo possível de bezerros ao pasto,
antes que o capim disponível seja consumido por outros rebanhos.
Onde exatamente encontra-se a externalidade negativa neste exemplo? No fato de que cada bezerro a
mais que um certo fazendeiro opta por levar ao pasto se traduz em menor quantidade de grama
disponível para os outros rebanhos, prejudicando assim os outros fazendeiros.
Se todos fazendeiros desconsideram as externalidades na sua tomada de decisão, todos tentarão
extrair o máximo possível do pasto no curtíssimo prazo. O resultado desta falta de coordenação entre
os fazendeiros é que os recursos do pasto se deterioram muito rapidamente.
O problema da tragédia dos comuns, exemplificado no parágrafo precedente é, em muitos casos
concretos, extremamente sério, podendo levar países ao caos econômico-social e a guerras civis. É o
caso, por exemplo, de muitas nações que possuem grande quantidade de preciosos recursos naturais.
A guerra dos diamantes em paises africanos como Serra Leoa é uma triste ilustração de como os
incentivos e escolhas individuais (ou de grupos) – que tentam vorazmente se apropriar dos diamantes
que jazem nas minas do país – podem levar a um rompimento completo do tecido social. Para os
habitantes de Serra Leoa, os diamantes são uma maldição, não uma benção.
Mas os reflexos das ações privadas que ultrapassam os limites do indivíduo também podem ser
positivos.
De fato, muitas decisões pessoais podem aumentar o bem-estar de pessoas alheias ao processo de
escolha privado. Por exemplo, a decisão individual de se educar é um dos mais citados atos
geradores de externalidades positivas. Pessoas mais educadas (no sentido amplo da palavra)
convivem melhor em sociedade, votam melhor nas eleições onde se escolhem os representantes que
tomarão decisões afetando a todos, disseminam parte de seus novos conhecimentos a seus colegas de
trabalho, criam filhos mais educados, respeitam mais as leis de trânsito, etc.
Outros exemplos de externalidade positiva são: cuidar do quintal, ou enfeitá-lo para a semana de
Natal, propiciando uma visão agradável aos transeuntes; organizar a comunidade para realização de
tarefas coletivas; convidar os amigos para desfrutar de um saboroso jantar na sua casa, etc. 
Uma vez estabelecido o conceito de externalidades negativas e positivas, a pergunta que se segue
naturalmente é se levamos estes impactos sobre os outros em consideração quando estamos
decidindo. Quando não levamos, a escolha privada difere da escolha que seria ideal para a
sociedade como um todo.
Conta a Bíblia que Jesus Cristo aconselhava ao ser humano “amar o próximo como a si mesmo”. Em
linguagem mais mundana, o conselho era considerar os custos e benefícios de suas ações nos outros
como se estes incidissem sobre si mesmo. 500 anos antes de Cristo, Confúcio ensinava a “jamais
impor aos outros o que você não escolheria para si”.[2] No linguajar do economista, o mandamento
cristão e a filosofia de Confúcio poderiam ser expressos como: “atribua às externalidades de seus
atos o mesmo valor que você atribui aos efeitos de suas ações sobre si mesmo”.
Os exemplos pouco animadores citados acima deixam claro que o conselho cristão não é seguido à
risca. Claro, não somos todos inveterados egoístas que pensamos sempre, e exclusivamente, em nós
mesmos. Considerações altruístas explicam em alguma medida o cuidado de muitas pessoas em
preservar o meio-ambiente, e a realização de doações financeiras de variadas naturezas. Mas
tampouco levamos sempre em conta na sua integridade os efeitos de nossas escolhas sobre os outros.
Caso contrário, como explicar a ação do motorista que lança guimba de cigarro pela janela e dirige
de modo irresponsável, a poluição dos rios pelas fábricas, pessoas roubando as outras, a guerra por
diamantes em alguns países da África ou os 1000 assassinatos que ocorrem semanalmente no Brasil?
Como veremos em capítulo futuro, quando os efeitos de uma dada externalidade forem de fato
relevantes, torna-se necessária e desejável a intervenção do ente governamental para coibi-la. Dito
de outro modo, confiar no bom coração dos donos das fábricas para deter a poluição do ar não é boa
solução. Cabe ao governo tentar fazer com que o dono da fábrica leve em conta nas suas decisões os
efeitos indesejáveis da poluição no ar.
Levando a definição de externalidades ao pé da letra, a verdade é que a grande maioria de nossas
ações afeta o bem-estar das outras pessoas, ainda queapenas superficialmente. Em vista disto, e
como veremos em capítulo futuro, para que a intervenção governamental faça sentido na prática, os
efeitos das ações de alguém sobre o bem-estar dos outros precisam ser significativos. Poluição
encaixa-se nesta definição prática, roubar e fumar em espaço fechado também, mas e casacos verde-
chiclete? Não entendemos muito de moda, mas somos contra o governo interferir na decisão de
alguém vestir uma roupa mais exótica porque ela não agrada o transeunte que se veste mais
conservadoramente. De uma maneira geral, quando a intervenção do Estado depende de um juízo de
valor deste tipo, nossa primeira reação é desaprová-la. Voltando à música de Caetano, é preciso
distinguir a feia fumaça que sobe apagando as estrelas da deselegância discreta das meninas de
Sampa.
 
3. A lei que proíbe cobrar menos
 
Em 1992, transitou pela Assembleia Legislativa de São Paulo um projeto de lei que obrigava
cinemas, teatros, circos e casas de espetáculo a cobrarem o dobro do preço do ingresso de todas
pessoas que não tivessem a carteirinha de estudante. Cobrar mais barato, qualquer valor inferior ao
dobro do preço cobrado aos estudantes, seria ilegal.
Esta lei da entrada-dobrada para os não portadores de carteirinha foi aprovada no dia 13/05/1992 e
vigora até os dias de hoje, sendo mais conhecida pelo nome de lei da meia-entrada. O texto da lei
coloca que todo estudante tem direito a pagar metade do preço cobrado às demais pessoas em
cinemas, circos, espetáculos teatrais, esportivos, musicais e de lazer. Para entendermos porque a lei
da meia-entrada tem impactos idênticos a uma lei que estabelecesse entrada dobrada para os não
estudantes, precisamos antes entender como os preços são formados em uma economia de mercado,
quais são os fatores que os afetam.
Os preços dos bens em uma economia de mercado são uma escolha das firmas. Lembrando que as
escolhas variam com as condições do ambiente, neste capítulo focaremos nossa análise nas variáveis
que jogam papel fundamental na determinação dos preços.
O principal objetivo de qualquer empresa é a obtenção de lucro. Às vezes, porém, elas tomam
decisões que parecem não estar diretamente ligadas a este objetivo. Por exemplo, algumas ações
visam estabelecer reputação de longo prazo e ampliar a fatia de mercado da empresa. Uma maneira
de fazê-lo é vender temporariamente o bem a preço inferior ao seu custo de produção. Esta ação de
fato prejudica a lucratividade da empresa no momento presente, mas ao mesmo tempo, contribui para
maior lucro no futuro, pois atrai mais clientes, alguns dos quais continuarão comprando o bem
quando seu preço voltar ao normal.
A decisão sobre o preço de venda, assim como as outras escolhas importantes da empresa, se pautará
pelo objetivo de obter os maiores ganhos possíveis.
Mas se em uma economia de mercado, as empresas são livres para escolher o preço de seus bens e
têm em vista somente o lucro, não é natural esperar que elas escolham preços excessivamente altos,
prejudicando o bem-estar do consumidor final?
Vejamos. Quanto mais alto o preço de um bem, maior é a receita obtida por unidade vendida do
mesmo. Mas como os consumidores reagem a um preço mais alto escolhendo outro bem substituto, ou
simplesmente escolhendo comprar o mesmo bem em menor quantidade, menor será também o número
de unidades vendidas. O resultado líquido de uma elevação de preços sobre o lucro é, portanto, em
princípio, incerto. Assim um aumento exagerado do preço não acarretará em lucro maior para a firma
porque a queda nas vendas mais que compensará a elevação do ganho por unidade vendida. Portanto,
a empresa nunca escolherá preços excessivamente alto que não maximizam seu lucro.
Um exemplo concreto relacionando o preço da entrada no cinema com o lucro dos donos do cinema
ilustra este ponto. Se o preço do ingresso cobrado for muito baixo, digamos de R$ 2, o faturamento
será pequeno mesmo que o cinema fique cheio. Já se o valor do ticket for de R$ 100, o cinema ficará
vazio e a receita também será pífia. Nenhuma das duas estratégias levam a um bom lucro. Para
maximizá-lo, a empresa escolhe um preço intermediário que gera uma boa receita por unidade
vendida e é ao mesmo tempo capaz de atrair uma boa clientela. Este preço no Brasil gira hoje em
torno de R$ 30 para não-estudantes, e R$ 15 para estudantes.
Mas dizer que a empresa escolhe o preço para maximizar seu lucro não nos esclarece lá muita coisa.
É importante entender que condições do ambiente afetam esta relação entre preço e lucro porque
mudanças nestas condições são a base da explicação para as diferenças nos preços escolhidos pelas
empresas. De uma maneira geral, o preço escolhido pela empresa dependerá crucialmente de dois
fatores: (i) o custo do produto para a empresa e (ii) a sensibilidade da demanda dos consumidores
aos preços.
Vejamos primeiro o impacto do componente custo. Custos mais altos comprimem o lucro por
unidade, e à medida que este diminui, torna-se mais interessante para a empresa aumentar o preço,
ainda que isso implique em alguma redução da quantidade vendida.
Um exemplo numérico ajuda a entender este ponto. Pensemos em uma empresa cogitando elevar seu
preço de R$20 para R$21. Ela considera que este aumento causará uma redução de 20% na demanda
pelo seu bem. Vale a pena então aumentar o preço?
A resposta depende do custo unitário de produção. Se este, por exemplo, é de R$19, o lucro por
unidade é R$1 ao preço de R$20. Se o preço sobe para R$21, o lucro por unidade passa a ser R$2.
Portanto, com a elevação, o lucro por unidade dobra e a quantidade vendida se reduz em 20%: neste
caso vale a pena subir o preço para R$21.
Agora, suponha que o custo unitário de produção é R$10. Sendo o preço R$20, o lucro por unidade
vendida é R$10. Com o preço de R$21, o lucro por unidade vendida é R$11. Assim, ao preço de
R$21 a quantidade vendida é 20% menor e o lucro por unidade é 10% maior que no caso do preço a
R$20. Com o custo mais baixo, portanto, não vale a pena subir o preço. 
O ponto ressaltado pelo exemplo acima vale em geral: dado um certo comportamento da demanda,
custos maiores fazem com que seja interessante para a empresa cobrar preços maiores.
A empresa não repassa a variação dos custos aos consumidores porque considera “justo” que eles
paguem pelo aumento, ou, no caso simétrico, porque elas vêem como “coerente” que eles
compartilhem dos benefícios de uma redução dos custos. Nada disso foi levado em conta no exemplo
acima. A relação positiva entre preços e custos não depende dos sentimentos da empresa por seus
clientes. Uma empresa que apenas objetiva maximizar o lucro cobra preços mais altos quando os
custos são maiores.
Um importante fator que afeta o custo do bem é a produtividade da empresa - a medida de quanto ela
produz por unidade de insumo empregado.
Há algumas décadas, dizia o Barão de Itararé que “pobre, quando come frango, um dos dois está
doente”. O frango, antes caro e inacessível ao pobre, hoje é a carne mais barata à disposição dos
consumidores. O motivo? Não a benevolência do avicultor, mas os fortes ganhos de produtividade
vivenciados no setor.
Da mesma maneira, os avanços tecnológicos têm aumentado a produtividade na fabricação de
aparelhos eletrônicos. Isto reduz custos e, consequentemente, o preço dos produtos. Por exemplo,
televisores com tela plana, que antes não eram viáveis comercialmente, hoje já são encontrados nas
lojas e, no futuro, provavelmente, custarão ainda menos.
Avanços tecnológicos não são a única maneira que as empresas encontram para reduzir custos. Por
exemplo, grandes redes de supermercado, como Carrefour e Wal Mart, têm alto poder de barganha
com seus fornecedores e assim conseguem comprar destes a preços mais baixos. É por isto que seus
preços aos consumidores tendem a ser menores que os dos pequenos armazéns.
Além do custo, o outro fator que determina os preços é a chamada elasticidade-preço da demanda.
Diz-se que a demanda pelo bem é “elástica” quando um aumento do preço acarreta forte redução de
vendas, e “inelástica”no caso oposto. Quanto maior a elasticidade, menor será o preço de venda
escolhido pela empresa.
Um exemplo numérico ilustra este ponto. Consideremos novamente uma empresa cogitando elevar o
preço do seu bem de R$20 para R$21. O custo de produzir uma unidade do bem é igual a R$19,
independentemente da quantidade produzida. Note que a mudança aumentará o lucro por unidade de
R$1 para R$2. Vale a pena então aumentar o preço?
A resposta depende da elasticidade, ou seja, de quanto a demanda reage a uma mudança no preço. Se
com o preço a R$21, a demanda se reduz em 20%, vale a pena cobrar mais caro. Neste caso, o lucro
por unidade dobra, mais do que compensando a queda de 20% nas unidades vendidas.
Por outro lado, se o aumento do preço derruba a demanda para um terço do seu valor inicial, cobrar
mais barato, R$ 20, é mais lucrativo. Com a demanda mais elástica, apesar de o lucro por unidade
dobrar, as vendas caem para menos da metade e, portanto, o lucro total se reduz.
Novamente, o ponto estabelecido pelo exemplo é geral: quanto menor o impacto dos preços na
demanda, maiores serão os preços que maximizam o lucro. Se aumentos de preço acarretam grande
perda de vendas, é melhor para a empresa cobrar preços baixos.
Um fator muito importante para determinar a elasticidade da demanda de um determinado bem é o
grau de concorrência enfrentado pela empresa. Se a concorrência é acirrada, um pequeno aumento de
preços leva a grande queda na demanda e uma queda dos preços atrai grande numero de
compradores. Neste caso, as empresas escolherão vender seus produtos a preços próximos dos seus
custos.
Quando a concorrência é acirrada, as empresas que não conseguirem produzir a um custo próximo do
das empresas mais eficientes acabarão sendo varridas do mercado. Por quê? Sendo o preço de venda
próximo ao custo de produção, as empresas com custos menores venderão seus produtos a preços
inferiores aos custos de produção das empresas menos eficientes. Para que estas obtenham um lucro
por unidade vendida razoável, o preço de venda precisaria ser significativamente mais alto que o das
mais eficientes, implicando, portanto, em uma quantidade vendida muito baixa.
Em alguns casos, a concorrência é tão grande que a escolha da empresa é praticamente ditada pelo
mercado. Isto geralmente ocorre quando muitos produtores fabricam bens praticamente idênticos. Por
exemplo, um exportador de laranjas pode vender grandes quantidades de seu produto ao preço
vigente no mercado, mas não conseguirá vender quase nada se tentar cobrar preços um pouco
maiores porque laranja é laranja mesmo.
Já se há pouca concorrência, seja porque os consumidores não têm boas informações sobre opções
alternativas, seja porque os concorrentes estão localizados geograficamente muito longe, seja porque
não há outros produtores de um certo bem, os preços serão significativamente mais altos que os
custos.
Produtos difíceis de serem substituídos devido a alguma característica específica que os tornam
únicos sob os olhos do consumidor são mais caros justamente porque mudanças de preço têm menor
impacto sobre as vendas. Se o preço de um prato especial que só aquele restaurante francês de seu
bairro serve se eleva, suas idas ao restaurante, caso você goste muito de comida francesa, diminuem
pouco. Porque o prazer de uma refeição lá é praticamente insubstituível, a elasticidade aos preços é
baixa, e a comida é cara. Note que restaurantes não são escassos em um determinado bairro, mas
bons restaurantes franceses sim. E é justamente esta escassez no quesito qualidade que lhe confere o
poder de cobrar bem acima do custo do prato.
De um modo geral, as empresas tentam diferenciar seus produtos, seja por meio de inovações
tecnológicas que dão características especiais ao produto, seja via anúncios publicitários que
valorizam a marca, justamente para convencer os seus clientes que o que oferecem é um bem ou
serviço diferente da concorrência. Esta diferenciação faz com que aumentos de preços não causem
grandes quedas na demanda e, portanto, possibilita à empresa cobrar mais caro e lucrar mais.
O grau de concorrência também é influenciado pelo comportamento dos consumidores. Se as pessoas
procuram bastante antes de comprar, as vendas serão mais afetadas pelo preço e, portanto, as lojas
cobrarão preços mais baixos. O advento da internet tornou mais fácil, rápido e barato comparar
preços, aumentando a concorrência e reduzindo o nível dos preços de alguns produtos.
Se vários consumidores procuram bastante, de loja em loja, antes de comprar, os preços serão mais
baixos para todos os consumidores – mesmo aqueles que não se dedicam a encontrar boas barganhas.
De fato, o executivo que entra na livraria com pressa querendo um exemplar de “Economia sem
Truques” para o amigo secreto da empresa que começa em 15 minutos está disposto a pagar pelo
livro mais do que um aposentado que já passou em 8 lojas pesquisando o melhor preço. A busca do
aposentado pelo preço mais baixo gera uma externalidade positiva para o executivo, que pagaria
mais pelo livro se todos fossem como ele. Se o mundo tem muito aposentado, o preço do livro é
menor; se ele é habitado por muito executivo apressado, o preço é mais alto.
Mas a externalidade positiva que o aposentado gera para o executivo só se materializa porque em
geral as empresas não podem discriminar preço, ou seja, não podem cobrar mais do executivo do que
do aposentado pelo mesmo livro.
Em algumas ocasiões, no entanto, as empresas cobram mesmo preços diferentes dependendo do
cliente ou, pelo menos, arrumam artifícios indiretos para cobrar mais de quem tem mais disposição
para pagar. As montadoras de automóveis, por exemplo, encontraram uma maneira interessante de
fazê-lo, que é vender carros novos com e sem acessórios adicionais (teto solar, pára-choques
diferenciado, etc) e cobrar bem mais pelo carro com acessórios. Deste modo, a concessionária além
de vender o carro básico para grande número de compradores também consegue extrair mais dos
consumidores mais ricos, dispostos a pagar caro pelo automóvel da marca escolhida com os
acessórios desejados. Os acessórios servem para a empresa diferenciar os clientes mais sensíveis a
preço (que levam o carro sem acessório), dos menos sensíveis a preço (que optam pelo carro com
acessório). O lucro dela assim é mais alto que no caso onde ela só vendesse carros sem acessórios
(sem explorar a disposição a pagar mais dos menos sensíveis a preço), e que no caso onde ela
ofertasse somente carros com acessórios (espantando os clientes mais sensíveis a preço).
Empresas áreas fornecem outro exemplo de discriminação de preços quando vendem tickets para a
classe executiva que custam mais que o dobro do preço do ticket da classe econômica. Alguns
clientes estão dispostos a pagar caro para viajar com mais luxo. Outros preferem preços mais baixos
a maior conforto. Para a companhia aérea interessa ter as duas classes, uma para cada tipo de cliente.
Acontece que, neste caso, a empresa concorre com ela mesma ou, melhor dizendo, a viagem na classe
executiva concorre com a passagem na classe econômica. Assim, se a viagem do passageiro da
classe econômica é desconfortável, a opção de viajar de executiva se torna mais atraente. Não é à toa
que na classe econômica a cadeira reclina pouco e seu joelho fica apertado contra as costas do
passageiro que viaja na fila da frente. Se a classe econômica fosse confortável, como o avião cumpre
basicamente a função de levar o cliente de um ponto a outro, mesmo os menos sensíveis a preço não
se disporiam a pagar tanto a mais apenas para usufruir algumas regalias, como uma comida melhor ou
um vinho caro. Não seria muito custoso melhorar o assento da classe econômica, mas a companhia
aérea precisa que o passageiro da econômica tenha pouco conforto para conseguir vender assentos
mais caros na executiva, discriminando preços e extraindo um lucro maior daqueles com maior
capacidade de pagar.
Se a concorrência no mercado de passagens aéreas fosse tão acirrada quanto no mercado de laranjas,
uma companhiaaérea não conseguiria discriminar preços dessa maneira, pois uma empresa
concorrente teria incentivos para criar aviões apenas com a classe econômica e com poltronas mais
confortáveis, e assim atrair a clientela disposta a pagar um pouquinho a mais pelo conforto extra.
A concorrência é menos acirrada no mercado de viagens aéreas do que no mercado de laranjas por
motivos inerentes ao tipo de atividade e por conta da legislação. De fato, é complicado e demorado
entrar no ramo de transporte aéreo, demora-se para estabelecer uma reputação com a clientela e para
montar a estrutura necessária para operar, e os ganhos de escala fazem com que empresas maiores
sejam mais eficientes. Portanto, há poucas companhias em operação. Mas aspectos da legislação
colaboram para reduzir a competição ao estabelecer que a maior parte dos vôos entre dois países só
possam ser operados por companhias com base em um dos dois países – por exemplo, vôos diretos
entre Brasil e Inglaterra só podem ser operados por empresas brasileiras ou britânicas.
Há alguns anos, a União Européia aboliu este tipo de restrição para vôos entre países membros. A
partir desta liberalização, novas empresas entraram no mercado de transporte aéreo e hoje se paga
muito menos para viajar de avião pela Europa. Como dissemos anteriormente, maior competição
leva a menores preços.
Em outras ocasiões, as empresas são obrigadas por lei a cobrar diferenciado dos seus clientes, como
é o caso dos cinemas, teatros e casas de espetáculos no Brasil. Estes estabelecimentos são obrigados
a discriminar preço entre os que têm e os que não têm carteirinha de estudante. De acordo com a lei
brasileira, a meia-entrada em cinemas, circos, espetáculos teatrais, esportivos, musicais e de lazer é
um direito garantido a todo estudante e, portanto, ao escolher o preço, os estabelecimentos vão levar
em conta: os seus custos, a relação entre o preço e a demanda dos dois grupos – com e sem
carteirinha – e a obrigatoriedade de o preço dos com carteirinha ser metade do preço dos sem
carteirinha.
A escolha do preço se dará seguindo a mesma linha de raciocínio desenvolvida acima, com a única
diferença que a empresa escolherá um preço para estudantes e outro preço para os não-estudantes,
sendo este obrigatoriamente o dobro daquele.
Dadas as elasticidades das demandas dos dois grupos e os custos, adicionar uma condição adicional
que a empresa precisa respeitar do tipo “preço dos estudantes deve ser metade do dos outros” gera o
mesmo resultado final que adicionar um condição do tipo “preço dos outros deve ser o dobro do dos
estudantes”. O impacto nos preços da lei da meia-entrada para os estudantes é idêntico ao impacto da
lei da entrada-dobrada para os outros.
Seguindo o mesmo raciocínio, estipular meia-entrada para todos é o mesmo que abolir a meia-
entrada, e de fato a UNE tem se mostrado veementemente contra qualquer iniciativa de meia-entrada
para todos.
Tomando um exemplo concreto: um ingresso na pista do show da Ivete Sangalo, realizado em São
Paulo no dia 30/10/2006 custava R$60 para estudantes e R$120 para os outros. Se não houvesse a lei
da meia-entrada, a casa de shows escolheria um preço apenas, a ser cobrado igualmente de todos. A
R$60, o faturamento seria pequeno porque muita gente querendo entrar não encontraria ingresso, e a
R$120 para todos haveria pouco público. O preço escolhido no dia após a abolição da lei da
carteirinha estaria entre R$60 e R$120.
Qual a lógica por trás da lei da meia-entrada? A justificativa comumente apresentada é que os
eventos culturais complementam a educação dos estudantes. Seria benéfico, portanto, que os
estudantes pudessem frequentar mais eventos deste tipo. Entretanto, a lei não cria os eventos culturais
num passe de economágica, não reduz custos, nem cria recursos para os estabelecimentos que
proveem estes serviços. O que ela faz é simplesmente transferir parte do custo dos estudantes para os
outros consumidores. Ou, colocado de outro modo, os não portadores da carteirinha subsidiam a
entrada dos que a possuem.
Portanto, para decidirmos sobre a propriedade ou não da lei da meia-entrada para estudantes (ou,
equivalentemente, lei da entrada-dobrada para os outros), temos que pensar se julgamos correta ou
não essa transferência de custos que aumenta o acesso de estudantes a eventos culturais às custas do
afastamento de não estudantes destes mesmos eventos.
No Brasil, uma pequena parte da população tem acesso à educação superior. Com a lei da meia-
entrada, essa pequena parte da população paga em shows, teatros e cinemas metade do preço pago
pelos que já se formaram (e não falsificaram a carteira de estudante) e pelos que nunca tiveram
acesso à educação superior. A maior parte daqueles que não tiveram a oportunidade de fazer um
curso universitário – que em geral estão em estratos de renda menos favorecidos – vão achar difícil
desembolsar de R$ 120 a R$ 200 para assistir a Ivete Sangalo. Mais ainda, os poucos que o fizerem
estarão de fato pagando parte da conta dos estudantes que assistem a Ivete de camarote por R$ 100.
Faz sentido uma política pública que implementa este tipo de transferência?
Muitos dos que nunca entraram na universidade escolhem não ir ao cinema assistir a um bom filme
por conta do preço do ingresso. Alguns reais a menos no preço do cinema trariam um pouco mais
educação, cultura e divertimento justamente àqueles que menos recursos tem. Por conta disto, não nos
agrada uma lei que obriga os cinemas, teatros e casas de espetáculos a transferir parte do preço do
lazer dos estudantes aos que nunca tiveram a chance de estudar.
É um erro comum achar que uma lei estabelecendo que os estudantes portadores de carteirinha
pagarão metade do preço do ingresso não alterará o preço para os outros. Os defensores de tal
política parecem raciocinar erroneamente da seguinte maneira: a medida baratearia a entrada para os
estudantes sem piorar a situação dos não-estudantes, que pagariam o mesmo que antes. Mas os preços
não estão fixos! São as empresas que escolhem os preços e as quantidades dos seus produtos em uma
economia de mercado, não o governo. Se uma lei obriga a empresa a cobrar menos de certo grupo,
ela se ajustará cobrando mais de outro.
Há várias “leis de carteirinha de estudante” por aí. Outras propostas de políticas públicas também
parecem se basear na ideia de que as empresas não reagirão a elas. Por exemplo, as leis que
congelam os preços dos produtos não mudam os custos de produção nem as demandas dos
consumidores, mas proíbem as empresas de vender seus produtos a um preço mais alto. Se a empresa
decide respeitar a lei, ela reagirá produzindo menos, o que gerará racionamento e filas. Um litro de
leite que custaria R$2,20, custará, por exemplo, R$1,90 mais trinta minutos na fila para os que
conseguirem comprar.
Se para não deixar muitas famílias sem acesso ao leite a compra de mais de um litro por família é
proibida, ou seja, se há racionamento, a primeira unidade custará R$2,20 e a segunda não poderá ser
comprada (o que é o mesmo que dizer que seu preço é infinitamente elevado). Como no caso dos
cinemas, as leis podem regular o preço do leite, mas não dão origem a mais vacas, não criam leite do
além.
Além destes transtornos, o congelamento afetará as decisões futuras sobre preços, investimentos,
quantidade produzida, etc, que refletirão os medos de um próximo congelamento.
Como já dito, as empresas escolhem o preço de acordo com seus custos e com a demanda dos
consumidores. Assim, leis que aumentam os custos das empresas encarecerão seus produtos. Por
exemplo, uma lei que efetivamente proíba as fábricas de autopeças de utilizar uma tecnologia que
polui o ar tem como resultado um mundo mais limpo e carros mais caros. Talvez queiramos como
sociedade que esta lei seja implementada, mas é preciso ficar claro que ela não traz benefícios de
graça.
O estatuto do idoso fornece um outro exemplo. Ele permite que certas pessoas viajem gratuitamente
em ônibus interestaduais, mas visto que a lei não cria ônibus nem reduz o preçodo petróleo nos
mercados internacionais, os outros passageiros acabam arcando com a maior parte dos custos,
subsidiando assim a passagem mais barata do idoso. Novamente, não estamos neste caso tecendo
juízo de valor, mas é importante ter em mente que o preço para os outros passageiros não está fixo,
não é imune à lei.
Por outro lado, algumas leis contribuem para reduzir preços. As leis que obrigam restaurantes a
exibirem os preços de seus pratos na porta, ou postos de gasolina a apresentarem seus preços em
lugar visível e letras garrafais, facilitam a aquisição de informação pelo consumidor. Sendo mais
fácil obter informação sobre a concorrência, o consumidor reage mais a preços e, portanto, passa a
ser mais lucrativo para as empresas cobrar preços menores.
As leis que impedem a empresa de vender “gato” por “lebre” através de manipulação de informação,
além de importantes em si, também estimulam a concorrência. Ao reduzir a quantidade de informação
falsa divulgada pelas empresas, a lei permite que o consumidor experimente produtos de outras
marcas não estabelecidas e não precise ficar preso a uma única empresa em que confia. É um
importante papel do governo, portanto, assegurar a transmissão de informações relevantes nas
relações comerciais e garantir o cumprimento dos contratos. Desta maneira, o consumidor pode
escolher com menos receio, forçando indiretamente um aumento da competição entre as empresas.
Em resumo, para entender a formação de preços é preciso centrar a atenção em custos e na relação
entre demanda e preços. Impostos sobre os produtos têm impactos em custos e, portanto, afetam os
preços. Não é à toa que a empresa que sonega impostos pode escolher cobrar menos pelo seu
produto para ganhar um cliente que busca preços mais baixos – alguém já ouviu falar de algum
médico ou dentista que cobra preços diferentes “com recibo” e “sem recibo”? Já o custo de um
escova de dente na farmácia do aeroporto em São Paulo custa muito mais que na farmácia da esquina
não porque os custos são mais altos naquela, mas porque a falta de alternativas para quem se
encontra prestes a embarcar sem uma escova de dente torna a demanda pouco sensível ao preço. Leis
ou mudanças no ambiente afetando alguma destas duas variáveis afetarão, pois, os preços. O resto é
economágica.
 
4. A lei que aumenta o salário
 
A Constituição Brasileira, promulgada em 1988, menciona como um direito dos trabalhadores
urbanos e rurais, o gozo de férias anuais remuneradas com um terço a mais do que o salário mensal
normal (artigo 7º, inciso XVII). Os trabalhadores já tinham direito a férias remuneradas antes de
1988, mas sem receber o adicional de um terço do seu salário mensal. Passados aproximadamente
vinte anos da promulgação da lei, qual o seu impacto sobre os nossos salários? Estamos ganhando
anualmente equivalente a um terço de um salário mensal a mais?
O salário é um preço, o preço do trabalho. No capitulo anterior, examinamos como as empresas
escolhem os preços dos bens que vendem. Neste capítulo, é a vez de nos perguntarmos como é
determinado este preço especial chamado salário. A lógica é similar a da determinação dos preços
dos bens.
Salários dependem da interação entre empresas e trabalhadores. E são três os fatores jogando papel
importante nesta interação, a saber: (1) as escolhas das empresas que demandam trabalhadores; (2)
as escolhas dos trabalhadores, que vendem seu trabalho; e (3) o processo de barganha entre empresas
e trabalhadores.
A demanda das empresas por mão-de-obra depende do balanço entre custos e benefícios trazidos
pelos empregados, de seu efeito líquido sobre o lucro da empresa. Para ela, o custo de um
trabalhador a mais é o seu salário acrescido de todos os impostos atrelados ao pagamento do
funcionário e demais custos indiretos (custos de contratação, administrativos, etc). Já o beneficio de
um trabalhador adicional na empresa depende de quanto ele ajuda a empresa produzir mais, ou
reduzir os custos de produção, melhorar a distribuição e o marketing, etc. Se os benefícios de
contratar esse trabalhador superarem os custos, a empresa escolhe contratá-lo.
Para analisar o que se passa do outro lado, o da oferta de mão-de-obra, temos que entender as
escolhas dos trabalhadores, dado que as pessoas escolhem se querem trabalhar ou não e, também,
quanto querem trabalhar. O que está por trás desta decisão?
O benefício fundamental do trabalho é o salário, mas há outros, como o aprendizado que o trabalho
proporciona - e que pode ser útil no futuro - a satisfação pessoal, etc. O custo de trabalhar para uma
empresa é o tempo que se gasta no emprego e que poderia ser utilizado em outras atividades, como:
desfrutar do lazer (ir a praia, ler um livro, namorar, jogar futebol); trabalhar para a família (cuidar
das crianças, cuidar da casa e da horta); ou trabalhar por conta própria (fazer mapa astral, vender
pão de mel, realizar projetos de arquitetura). Estas atividades compõem o que é chamado de “custo
de oportunidade” do emprego e é com elas que as pessoas comparam a opção de trabalhar para uma
empresa. Assim, uma pessoa decide ofertar sua mão-de-obra às firmas apenas se os benefícios do
emprego superam o custo de oportunidade, ou seja, os benefícios da mais atraente destas opções
alternativas.
O terceiro elemento que entra na determinação do trabalho é a barganha que se desenrola entre
empresas e trabalhadores. Empresas querem pagar menos, trabalhadores querem receber mais. Como
no caso dos produtos, um importante elemento para se definir o preço do trabalho (o salário) é a
competição: empresas competem entre si pelos trabalhadores e trabalhadores competem entre si
pelos empregos. A competição entre as empresas tende a elevar os salários, enquanto a por empregos
tende a reduzi-los.
Em situações em que o poder de barganha das empresas é alto, por exemplo, porque não existem
alternativas disponíveis interessantes aos trabalhadores, os salários tenderão a ser mais baixos. Já
em situação reversa, por exemplo, no caso de existirem várias empresas em busca de um certo tipo
de trabalhador, os salários tenderão a ser mais elevados. Um dos papéis dos sindicatos de
trabalhadores e patronais é justamente o de reduzir a competição entre seus membros para assim
aumentar o poder de barganha do grupo como um todo.
Um dos fatores que aumenta o poder de barganha dos trabalhadores é sua capacidade de migrar entre
empresas ou abrir seu próprio negócio. Alguns economistas consideram que mudanças ocorridas na
economia mundial a partir dos anos 70 alteraram a relação de barganha levando a um aumento na
renda dos trabalhadores mais qualificados.
A ideia é a seguinte: no mundo inteiro, vicejavam no período entre o pós-guerra e os anos 70,
empresas muito grandes onde eram desenvolvidas inúmeras tarefas relativas ao processo de
produção (as empresas eram ditas verticalizadas). Devido a menor pressão competitiva e também ao
menor fluxo de tecnologia e de comércio, cada empresa tocava suas operações de maneira bastante
própria, não havendo como hoje tanta convergência dos processos produtivos em direção ao mais
eficiente. Os trabalhadores, portanto, eram muito familiarizados com o processo produtivo dos seus
locais de trabalho, mas sabiam menos dos processos das outras empresas. Por serem suas
habilidades mais específicas à empresa a que pertencia, era mais difícil mudar de emprego.
Sair e abrir um novo negócio também não era geralmente uma alternativa viável. Os mercados de
capitais eram menos desenvolvidos, sendo mais difícil levantar recursos suficientes para se abrir
uma nova empresa.
Em resumo, os trabalhadores qualificados nesta época tinham oportunidades mais restritas fora da
grande empresa e isto enfraquecia o seu poder de barganha, o que afetava adversamente seu salário e
as condições de trabalho.
Com o passar do tempo, desenvolveram-se novas tecnologias flexíveis que tornaram a empresa
pequena mais eficiente; o mercado financeiro se desenvolveu e aprofundou suas operações de
financiamento, possibilitando o trabalhador insatisfeitocom a firma sair e abrir um novo negócio; e
cresceu o fluxo de tecnologia entre setores e países, levando a certa convergência do processo
produtivo que aumentou a capacidade de migração do trabalhador de uma empresa para outra.
Todos estes fatores contribuíram para aumentar o poder de barganha dos trabalhadores qualificados,
o que em parte explica a melhora em seus salários e condições de trabalho vivenciadas desde então.
Similarmente ao caso dos preços, apenas mudanças que afetem o interesse das firmas pelos
trabalhadores, o destes em ofertar trabalho, ou a barganha entre ambos é que levarão a alterações de
longo prazo, concretas, nos salários.
A lei que estabelece a remuneração de um terço a mais que o salário normal no mês de férias dos
trabalhadores não mudou a produtividade do trabalhador, e não alterou os benefícios que ele traz à
empresa. Tampouco afetou o custo de oportunidade do trabalhador, ou o jogo de barganha entre
firmas e trabalhadores. Cheira, portanto, a truque.
No curto prazo, a lei deu sim aos trabalhadores uma remuneração real extra, mas como nenhum dos
três determinantes do salário se alterou, com o passar do tempo, e à medida que empresas e
trabalhadores foram se adaptando ao novo ambiente e assinando novos contratos de trabalho, este
ganho foi sumindo. O ajuste se deu no salário mensal pago pela empresa, agora menor no montante
necessário para compensar a obrigatoriedade de se pagar um terço a mais por ano.
Em uma economia de mercado, os salários mensais, assim como os preços, não estão fixos. Portanto,
vinte anos depois, nada mudou por conta da lei obrigando as empresas a pagar este um terço a mais
nas férias. Esta insignificância econômica da lei, após alguma reflexão, não é surpreendente: ao
tomar suas decisões de contratar ou não trabalhadores, as empresas estão considerando o custo total
de contratação. Da mesma forma, trabalhadores também consideram em suas escolhas não apenas o
salário mensal, mas sim todos os ganhos do trabalho, incluindo a remuneração das férias, o décimo
terceiro salário e demais benefícios.
Para a empresa, não faz diferença alguma pagar, digamos, 12 salários de R$ 1.300 reais ou 13
salários de R$ 1.200 reais, ou ainda 6 salários de R$ 2.600, pois o custo anual é o mesmo para ela
em qualquer destes arranjos. A empresa vai escolher contratar o trabalhador se esperar um benefício
proveniente do trabalho dele superior a esse custo total, e ponto final. Se uma lei obriga a pagar um
número maior de salários, após algum tempo o salário mensal ajusta-se para baixo.
Da mesma maneira, para o trabalhador, o que importa é o bolo total, e não somente o salário mensal.
Isto ajuda a explicar porque, por exemplo, um funcionário público que ganha por mês menos que seu
par do mercado privado não necessariamente deixa o setor estatal pela iniciativa privada. Os outros
benefícios que o trabalhador estatal tem compensam o salário mensal menor, como, por exemplo,
menor risco de desemprego e aposentadoria mais elevada. É por uma lógica similar que, para um
mesmo nível de qualificação, pessoas que desenvolvem tarefas mais arriscadas ou mais
desagradáveis, como ser mergulhador de plataforma de petróleo, ou trabalhar no turno da madrugada,
recebem salários mais elevados.
Usando nosso arcabouço básico, podemos analisar os efeitos de um imposto sobre o salário. Neste
caso, a empresa leva a taxação em conta na hora de escolher contratar ou não um outro trabalhador,
já que para ela o que importa é o custo total de contratação e não apenas o salário. Por outro lado, o
imposto pago pela empresa não altera a remuneração do funcionário e, portanto, não afeta os
incentivos do trabalhador a ofertar sua mão-de-obra.
Assim, do lado das firmas o imposto gera uma menor procura por trabalho, mas do lado dos
trabalhadores ele não gera menor oferta. Esta combinação leva inicialmente a um aumento do
desemprego e, posteriormente, a diminuição dos salários. O primeiro impacto é no desemprego
porque existem impedimentos a ajustes automáticos dos salários (por exemplo, é necessário aguardar
a próxima renegociação salarial, dado que os contratos fixam o valor nominal dos pagamentos por
um certo prazo). Estando as empresas impedidas, por algum tempo, de ajustar os salários para baixo,
a taxação impactará mais pesadamente a quantidade de empregados contratados, e o lucro, ambos
agora menores. No longo prazo, após os ajustes à nova situação, o impacto negativo sobre os salários
passa a ser a consequência mais importante do novo imposto sobre o trabalho.
As empresas consideram em suas escolhas não apenas os custos presentes, mas também os futuros.
Por exemplo, leis que aumentam os custos de demitir funcionários influenciam não apenas as
escolhas das empresas sobre demissões, mas também suas decisões sobre contratações.
Até aqui, viemos tratando o salário como algo homogêneo, comum a um grupo que denominamos
genericamente de trabalhadores. Mas as diferenças salariais entre as pessoas são grandes, há
trabalhadores e trabalhadores. No Brasil então, estas disparidades salariais são enormes, entre as
maiores do mundo. O gerente de informática de uma grande empresa ganha mais de 10 vezes que o
faxineiro. De modo geral, na base da questão da desigualdade de renda está o fato de que
profissionais qualificados ganham salários bem maiores que profissionais pouco qualificados. Mas
além disso, há também diferenças expressivas de salários entre profissionais com qualificação
similar, mas que residem em países diferentes: a faxineira na Inglaterra ganha substancialmente mais
que a faxineira no Brasil. Por quê?
Focando na escolha das empresas, um fator chave para entender os salários é a produtividade do
trabalhador. As empresas querem profissionais que rendam bastante, que gerem lucros maiores. A
concorrência entre empresas por trabalhadores mais qualificados fará com que os salários desses
profissionais sejam altos. Por exemplo, um engenheiro que garante alta produtividade para a fábrica,
um gerente de marketing que inventa uma boa maneira de vender cigarros, um médico especialista em
remover tumores serão certamente muito bem remunerados. Em média, quanto mais qualificado for
um profissional de certa área de atuação, maior será seu salário.
Infelizmente, muitos brasileiros, em diversas profissões, possuem baixo nível educacional e pouca
qualificação. Isto implica em salários baixos, por dois motivos. Em primeiro lugar, sendo menos
qualificados, estes trabalhadores não serão capazes de executar trabalhos que trazem alto retorno
para a empresa. Em segundo, como no Brasil a quantidade de profissionais pouco qualificados é
muito grande, seu salário é adicionalmente deprimido pelo fato de este grupo numeroso competir
pelas mesmas vagas.
Vejamos então a questão da diferença salarial entre profissionais similares de países diferentes. A
faxineira na Inglaterra ganha muito mais do que a brasileira não por limpar melhor a casa ou por ser
mais produtiva, mas sim porque há menos pessoas na Inglaterra que escolhem esse tipo de trabalho.
Menos gente oferta o serviço de faxineira e, portanto, seu rendimento, é maior. Além disto, como os
salários nos outros setores da economia são mais altos lá do que aqui, a faxineira só aceita exercer
esta profissão por um ganho mais alto. Em termos do nosso arcabouço básico, o custo de
oportunidade da faxineira – dado pelo salário em outras atividades que ela poderia escolher exercer
– é mais alto na Inglaterra do que no Brasil. Aqui há muitas pessoas dispostas a trabalhar como
faxineiras porque há muitas pessoas sem qualificação suficiente para almejar outros tipos de
trabalho. A grande oferta de faxineiras reduz o rendimento obtido por cada uma e não é por outro
motivo que mesmo famílias com poder aquisitivo não muito alto contratam faxineiras para limpar
suas casas. O custo – seu salário – é baixo.
Analisemos agora os possíveis impactos de uma intervenção do governo no rendimento de faxineiras.
Como uma lei garantindo um preço mínimo por um dia de faxina afetaria este mercado?A lei não
muda os incentivos para as escolhas dos patrões, nem para as das faxineiras, ela só altera a barganha
entre eles: não tendo como pagar menos que este salário mínimo legal, algumas famílias limparão sua
própria casa e algumas faxineiras vão amargar o desemprego. Portanto, a lei vai beneficiar as
faxineiras que continuarem trabalhando e estavam ganhando menos que o preço mínimo agora
imposto aos patrões. No entanto, a lei tem um efeito colateral: ela é prejudicial para o grupo das ex-
faxineiras agora desempregadas, dado que ao novo preço menos famílias contratarão faxineiras.
Leis que estabelecem um salário mínimo têm, portanto, dois efeitos: elas aumentam o salário das
pessoas que continuam com seus empregos, mas tendem a gerar desemprego. No Brasil, o debate
sobre o salário mínimo é muito contagiado pelo impacto deste sobre as aposentadorias e sobre as
contas do governo. Isto é uma particularidade brasileira, que se deve ao fato de os benefícios
previdenciários de muitos aposentados estarem, por lei, vinculados ao mínimo. Em princípio,
contudo, aposentadoria e salário mínimo são tópicos bem diferentes.
Recentemente no Brasil, foi aprovada uma proposta de lei que aumentou o período da licença
maternidade das mulheres que dão à luz, de quatro para seis meses. A intenção de possibilitar que as
recém mamães fiquem mais tempo com os filhos é louvável, mas como no caso do salário mínimo
das faxineiras, esta proposta também tem efeitos colaterais. Aumentar o período de licença
maternidade significa, para as empresas, um aumento do custo de contratar mulheres em idade onde a
probabilidade de gravidez é mais alta. Como são as empresas que escolhem quem contratar, elas
terão menos incentivos para empregar mulheres nessa idade.
Se leis como a de um terço a mais nas férias não geram efeito nenhum no longo prazo e a imposição
de um salário mínimo elevado beneficia alguns mas prejudica outros, o que se pode fazer para
aumentar de fato a remuneração das pessoas menos qualificadas, que passam necessidades por conta
de um rendimento insuficiente?
Como vimos no capítulo 3, as empresas procuram estimular a demanda por seus produtos para poder
assim cobrar preços mais altos. Da mesma maneira, para aumentar o salário dos trabalhadores, nada
melhor que estimular o interesse das empresas em contratá-los Para isso, a melhor solução é torná-
los mais produtivos.
E uma política pública eficaz para torná-los mais produtivos é investir em sua qualificação,
aprimorando seu nível educacional. Isso traz benefícios em duas frentes: em primeiro lugar, o
profissional mais qualificado executará trabalhos mais rentáveis para a empresa (e que, portanto
pagam mais). Em segundo lugar, ao diminuir o número de pessoas com menor qualificação, diminui-
se o contingente de pessoas dispostas a trabalhar em empregos como o de faxineira ou lixeiro, e
aumenta-se consequentemente a remuneração daquelas que seguem nestas profissões.
Outras políticas públicas têm impactos nos salários não por modificar a escolha das firmas, mas por
afetar as decisões dos trabalhadores. Por exemplo, quando o programa bolsa-escola foi
implementado no distrito federal em meados da década de 90, algumas mães de família contempladas
pela ajuda financeira deixaram de trabalhar para outras famílias. Optaram por largar as profissões de
passadeira, faxineira, empregada, etc.
O programa bolsa-escola foi suspenso no governo seguinte. A então secretária da educação havia
dito em entrevista a um programa de televisão de Brasília que “pelo menos cinco amigas minhas
perderam suas passadeiras quando seus filhos começaram a receber a bolsa-escola. Ganhou o peixe,
não precisa mais pescar”.[3]
Trabalhar como passadeira é uma escolha. Sem o auxílio proveniente do bolsa-escola, a estas
mulheres restam poucas opções além de trabalhar pelo pagamento que for possível obter para ajudar
no orçamento familiar. Mas, com o bolsa-escola abre-se outra possibilidade: elas podem escolher
ficar em casa e cuidar dos filhos. Ao dar essa opção às mães de famílias pobres, esses programas
assistenciais reduzem o contingente de passadeiras dispostas a trabalhar pelo salário vigente.
Sobram donas de casa querendo passadeiras e, assim, a remuneração da passadeira sobe.
Consequentemente, menos donas de casa vão querer passadeiras. Contudo, algumas passadeiras
decidem seguir no ramo até porque o salário agora está mais alto (ou porque não tem filhos) e após o
ajuste à nova situação, quando não estão sobrando nem passadeiras, nem donas de casa, o salário da
passadeira para de subir.
Vejamos detalhadamente o que faz o preço da passadeira subir. A dona de casa que ficou sem
passadeira ao preço antigo (por conta do bolsa-escola), mas que está disposta a pagar um pouco mais
para ter suas roupas passadas, consegue manter a antiga passadeira ou contratar uma nova, pagando
um pouco mais. Simultaneamente, a passadeira que quer continuar trabalhando começa a notar a
mudança na demanda por seu trabalho: com a falta de passadeiras no mercado, as passadeiras
começam a ser mais requisitadas. O processo não é instantâneo, mas passadeiras e donas de casa
percebem logo a nova situação e não tardam a se adaptar. O resultado final é menos passadeiras
ganhando mais e mais ex-passadeiras cuidando dos filhos.
É importante notar que o bolsa-escola melhora também a vida de mulheres pobres que não têm filhos,
ao aumentar o salário das passadeiras que continuam na profissão. Esse efeito é similar ao impacto
da busca do aposentado pelo preço mais baixo no preço do livro pago pelo executivo, discutido no
capítulo anterior.
O efeito do bolsa-escola é bastante diferente do efeito do salário mínimo: no caso do bolsa-escola,
algumas pessoas passam a escolher cuidar de suas famílias ou de seus afazeres ao invés de trabalhar
para outras famílias; no caso do salário mínimo, pessoas que gostariam de estar trabalhando e
recebendo o salário vigente não conseguem mais arrumar trabalho. O primeiro amplia o leque de
escolhas do trabalhador, o segundo o reduz.
Portanto, o bolsa-escola reduz os incentivos dos que ganham pouco a trabalhar. Assim, os salários
sobem e o número de pessoas trabalhando cai. Essa é uma boa política pública? A importante
discussão sobre quais políticas públicas devem ser implementadas será retomada em capítulo futuro.
Por que algumas profissões pagam tanto? Ídolos do futebol e da música são extremamente bem
remunerados porque muitas pessoas estão dispostas a pagar para assistir suas performances. Basta
um clique no controle da televisão e lá está o Neymar fazendo suas acrobacias nos gramados da
Europa. A tecnologia moderna permite que milhões de pessoas possam ver o Neymar nas suas TVs, e
isto explica porque os clubes estão dispostos a pagar tão caro por ele.
A vontade, o sonho de se tornar um Neymar, ou uma Ivete Sangalo, explica porque muitas pessoas
estão suando as camisas nas equipes juvenis de futebol e cantando nos bares por cachês módicos.
Elas não estão ali só pelo dinheiro que recebem agora, mas também pelo sonho, por poucos
realizados, de ganhar muito no futuro.
Além de escolherem sua profissão, as pessoas escolhem a cidade e até mesmo o país onde irão
morar e trabalhar. Como dissemos, existem grandes diferenças salariais entre pessoas de países
diferentes. O que explica estas diferenças? Estas diferenças existem, e persistem, porque há
importantes barreiras à migração de trabalhadores, como restrições legais, dificuldades com o
idioma e a cultura, além da própria distância entre os países, que encarece a migração. Já dentro de
um mesmo país, as barreiras à migração são muito menores, e devido a isto são também menores as
diferenças salariais entre pessoas de qualificação similar e exercendo o mesmo trabalho em cidades
diferentes.
Mas, em alguns casos, há restrições legais à migração dentro de um mesmo país. Por exemplo, por
motivos ligados à preservação do meio ambiente, um brasileiro qualquer não pode se mudar para
Fernando de Noronha e abrir um negócio por lá. Esta barreira ao livre fluxo detrabalhadores explica
porque os serviços em Fernando de Noronha – ou seja, a remuneração dos trabalhadores locais – são
mais caros do que em outras praias do Brasil. O trabalhador local não é ameaçado pelo risco de
outros oferecerem o mesmo serviço a preço menor.
Concluindo, a lei que aumenta o salário, mencionada no título deste capítulo, não é o inócuo inciso
constitucional que estabelece o pagamento de um terço a mais nas férias. Os fatores que determinam
os salários são as escolhas dos trabalhadores de ofertar ou não trabalho (relacionadas a seus custos
de oportunidade), as considerações de custo/beneficio de contratar das empresas, e as condições do
ambiente que determinam o poder relativo de barganha entre ambos. Leis que afetam os salários são
leis que alteram alguma dessas variáveis.
Dentre esses fatores, o mais relevante e que, portanto, deveria receber maior atenção no desenho de
políticas públicas, é o valor produzido pelo trabalhador, sua produtividade. No próximo capítulo
veremos porque a renda do trabalhador subiu nos últimos dez mil anos.
5. De caçadores-coletores a guias de turismo lunar
 
O imaginário popular é permeado pelo medo de que as máquinas tomem o lugar do homem ou, menos
dramaticamente, ocupem parcela significativa dos nossos postos de trabalho. Woody Allen captou
como poucos essa aflição do homem moderno ao dizer: “meu pai trabalhou na mesma empresa
durante doze anos. Eles o demitiram e o substituíram por uma maquininha deste tamanho, que faz tudo
o que o meu pai fazia, só que muito melhor. O deprimente é que minha mãe também comprou uma
igual”.
O medo das máquinas é quase tão velho quanto a industrialização. Nos idos de 1811-1817, ainda no
início da revolução industrial, alguns trabalhadores da industria têxtil inglesa chegaram até a destruir
máquinas em protesto contra as mudanças trazidas pelas novas tecnologias. Os “Luddites”, como
eram chamados, se opunham a utilização de máquinas, vociferando que elas gerariam quedas
salariais (dado que poderiam ser operadas por trabalhadores menos qualificados) e perdas de
emprego (pois as máquinas fariam parte do trabalho dos homens).
Na mesma toada, em meados do século XIX, Karl Marx afirmava que o processo de acumulação de
capital produziria constantemente um “exército de desempregados”. Essa massa desempregada
contribuiria para reduzir os salários dos trabalhadores. Além disso, as variações nos salários
dependeriam basicamente da expansão e contração no contingente desse exército.
Mas o que dizem os dados? Podemos descobrir a relação entre acumulação de capital, desemprego e
salários médios observando os seus valores em um país ao longo do tempo ou em vários países num
dado momento. Se no século XIX esses dados não estavam a disposição, hoje eles estão, e os
resultados deste tipo de análise saltam aos olhos.
De acordo com os dados, não há relação importante entre o estoque de capital e a taxa de
desemprego. Além disso, quanto maior é o estoque de capital per capita em uma economia, maior é o
salário médio. Em países desenvolvidos, há mais capital, mais máquinas e os salários são muito mais
altos e o desemprego não é maior que em países com pouco capital.
A evolução nos processos de produção e as consequentes mudanças nos salários e na natureza dos
empregos não são fenômenos recentes. De fato, essa história começa bem antes da revolução
industrial. Mais precisamente, há milhares de anos atrás.
Antes de domesticar as primeiras plantas selvagens (ou seja, adaptá-las ao cultivo agrícola), há
cerca de 11.000 anos atrás, os homens viviam em pequenos bandos nômades de caçadores-coletores.
Por volta daquela data, segundo nos relata o biólogo Jared Diamond em seu livro Guns, Germs, and
Steel, foram domesticadas as primeiras espécies de plantas na região da Eurásia, dando origem à
agricultura e ao sedentarismo. A domesticação das plantas, dentre várias consequências, diminuiu a
utilidade dos caçadores para os bandos, apesar de não eliminá-la completamente. Não era mais
preciso tanta gente correndo pela mata ou se aventurando pelos rios atrás de alimento. Ao
proporcionar comida de modo mais farto e fácil, a domesticação das plantas – um avanço
http://pt.wikiquote.org/wiki/Pai
http://pt.wikiquote.org/wiki/M%C3%A3e
tecnológico importantíssimo – gerou provavelmente a primeira onda de re-alocação de emprego
mundial. Caiu a demanda pelos serviços dos caçadores-coletores e cresceu a necessidade de
agricultores.
No começo, é provável que os mais empedernidos caçadores tenham torcido o nariz para a mudança.
Alguns devem inclusive ter amargado o desemprego e a perda de status social por algum tempo, e
quem sabe até tentado organizar movimentos contra o avanço da agricultura. Mas, com o decorrer do
tempo, eles deixaram sua atividade antiga, passaram a se dedicar a outras tarefas (dentre elas a
própria agricultura) e se beneficiaram do avanço econômico-social trazido pela maior abundância de
alimentos. Prova disto é que a proporção de caçadores-coletores no mundo é hoje ínfima, e nos
recônditos quinhões onde esta atividade não foi completamente eliminada, predomina a pobreza.
Difundindo-se a prática da agricultura, mais gente passou a despender boa parte de seu tempo nas
lavouras, mas como a prática agrícola é mais eficiente na tarefa de prover alimentos que a caça-
coleta, menos pessoas eram necessárias para gerar a mesma quantidade de alimentos e assim, alguns
membros do grupo puderam se dedicar a outras atividades. Não é à toa que os primeiros sinais do
desenvolvimento da linguagem escrita tenham sido encontrados justamente nas regiões que mais
precocemente dominaram a agricultura. O antigo caçador-coletor, não aproveitado na agricultura,
mas beneficiado por ela, tornou-se inventor da escrita moderna. Nada mal.
Mas o avanço não parou aí. Como nos ensina Adam Smith, um dos pais da ciência econômica
moderna, a labuta cotidiana, no mesmo lugar, sobre o mesmo objeto, facilita a descoberta de novas
técnicas de fazer a mesma tarefa mais eficientemente. Deste processo de constante inovação surge
então a enxada, a irrigação, o plantio alternado, o trator, os fertilizantes, etc, e a produtividade
agrícola não cessa de crescer.
Estas descobertas de melhores práticas agrícolas, que vieram gradativamente, levaram, com o tempo,
a aumentos adicionais da quantidade de alimento produzida por cada trabalhador. A economia foi
assim enriquecendo (mais produção por trabalhador), e um novo fluxo de re-alocação de trabalho
começa então a ocorrer: agora cada vez menos gente era necessária nas lavouras para produzir
alimento para todos, e consequentemente a quantidade de gente empregada no campo começa a
declinar.
Para se ter uma idéia da magnitude deste movimento no período mais recente, nos países hoje
desenvolvidos, a população empregada no campo no começo do século XX era de mais ou menos
50% da força de trabalho. No final do mesmo século, este número beirava os 5%. Mas os 45%
restantes não ficaram desempregados. Hoje, a taxa de desemprego nos Estados Unidos e na Inglaterra
oscila nas vizinhanças dos 5%. Na Europa continental, este número é maior, por volta de 10%, mas
ainda assim bem menor que a perda de emprego no setor agrícola ao longo dos últimos cem anos.
Já nos países mais pobres do mundo, onde há fome e extrema miséria, muita gente se encontra ainda
empregada na agricultura, em muitos dos casos mais de 50% da força de trabalho é ainda rural.
Nestes lugares, por diversas razões, não chegaram as inovações tecnológicas e o maquinário
moderno, e muita gente segue empregada na agricultura. A maioria, contudo, amarga a pobreza
extrema.
O impressionante é que nestes cem anos de redução da mão-de-obra no campo (e redução também da
proporção do produto agrícola dentro do PIB total), a produção agrícola total cresceu a taxas
vertiginosas. O filósofo e economista Malthus, que postulou no século XVIII que o crescimento da
produção de alimentos seria incapaz de acompanhar o passo do crescimento populacional, errou. A
produção de alimentos, ao contrário do porele esperado, cresceu mais rápido que a população
mundial, e hoje os episódios de fome em países muito pobres não se devem à pouca produção de
comida, mas à pobreza.
Como foi dito acima, as máquinas e a tecnologia expulsaram grandes contingentes de agricultores do
campo, mas isso não foi ruim para as pessoas. Pelo contrário. O desemprego no campo foi
compensado, ao longo do tempo, pelo surgimento do emprego em outras áreas: muitos se empregaram
na indústria; mais pessoas passaram a se dedicar aos serviços em geral; outros se empregaram nos
cargos públicos; aumentaram os contingentes dos exércitos; cresceu o número de cientistas,
professores, pintores, músicos, navegadores, apenas para citar algumas das ocupações que,
dinamicamente, e de maneira imprevisível, foram, ou crescendo, ou surgindo, para tomar o lugar das
antigas.
Este processo evolutivo é fluido, ininterrupto e incerto. Se há muito tempo atrás muitos de nós
éramos caçadores, depois nos tornando agricultores, e mais tarde trabalhadores industriais, hoje
somos majoritariamente provedores de serviços. Nos países desenvolvidos, mais de 60% da força
de trabalho hoje se encontra no setor terciário: as pessoas estão criando seguros para evitarmos
riscos, fazendo cinema, cozinhando pratos que misturam elementos franceses e tailandeses, provendo
serviços para os turistas, etc.
E Amanhã? Guias de turismo lunar? Agricultores do solo submarino? Produtores de energia
alternativa? Simplesmente não há como saber. Por exemplo, em 1943, o presidente da IBM disse: “eu
acho que há um mercado mundial para talvez cinco computadores”. Como se pode ver, a economia
evolui, mudanças tecnológicas fazem desaparecer profissões e surgir outras.
O que sabemos é que as máquinas e o avanço tecnológico, que ganharam grande impulso a partir do
início do século XIX, tiraram a humanidade do nível de subsistência e nos proporcionam hoje um
nível médio de vida muito superior ao de nossos antepassados, assim como, provavelmente,
proporcionarão bem-estar econômico e social maior ainda para as gerações futuras. Já onde houve
pouca penetração tecnológica e de máquinas, os salários permaneceram baixos e a renda total
também.
O número de máquinas e novas técnicas a serviço do homem na produção de bens e serviços cresceu,
substancialmente, desde a Revolução Industrial. Fosse o número de empregos na economia fixo, o
aumento da participação das máquinas e o avanço científico teriam causado uma explosão do
desemprego. Mas o número de empregos não está fixo porque não há uma certa quantidade definida
de bens que temos que produzir. Se as máquinas fazem parte do nosso trabalho, nós produzimos mais.
Aliás, muito mais. Como nos mostra o historiador Angus Madison, nos 8 séculos entre o ano 1000 e o
ano 1820, a renda mundial per capita cresceu 50%. Após a revolução industrial, entre 1820 e 1998, a
renda mundial per capita cresceu espantosos 800%.
O equívoco de quem pensa que as máquinas roubam, de maneira duradoura, emprego do trabalhador,
está diretamente associado à idéia de que a quantidade e a natureza dos postos de trabalho estão
fixos, quando em verdade não estão. E não estão porque ainda não se encontraram limites para as
possibilidades de se produzir mais, ou de se produzir coisas diferentes.
A evolução da natureza dos empregos é, por vezes, surpreendente. No filme “Flores Partidas”, a
personagem vivida por Sharon Stone responde ao ex-namorado Don Johnston (Bill Murray), quando
perguntada sobre sua profissão atual, que ela agora é arrumadora profissional de armários. A outra
ex-namorada de Don, Carmem (Jessica Lange) trabalha intermediando o diálogo de animais com seus
donos, uma espécie de psicóloga e médium de animais de estimação. Esses são exemplos extremos
de uma tendência mundial de criação de novos serviços, que têm absorvido os trabalhadores que
estavam há 100 anos majoritariamente na indústria, e há 1000 anos principalmente na agricultura.
A tendência de crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho também ilustra a
criação de novos empregos na economia. Até algumas décadas atrás, um percentual muito baixo das
mulheres se dispunha a adentrar na força de trabalho. Mas, mudanças culturais e de atitude, a queda
da taxa de natalidade e inovações tecnológicas como a máquina de secar e o forno microondas
levaram a uma maior participação da mulher no mercado de trabalho em quase todo o mundo. As
mulheres, que antes estavam realizando tarefas domésticas, passaram a buscar inserção no mercado
de trabalho, competindo com os homens. Entretanto, isso não gerou uma elevação da taxa de
desemprego porque o número total de empregos cresceu.
Como já mencionado, o avanço tecnológico e mais investimento em máquinas, no longo prazo, estão
associados a salários mais altos. Países desprovidos de máquinas e atrasados tecnologicamente são,
em geral, mais pobres. Mas por quê precisamente o par tecnologia/máquinas está associado a
salários mais elevados?
Salários, como dissemos no capítulo 4, dependem fundamentalmente da produtividade dos
trabalhadores. Quanto mais o trabalhador produz para a empresa, mais a empresa está disposta a
pagar por seus serviços. E máquinas e tecnologia habilitam ao mesmo trabalhador produzir mais.
Esse incremento faz com que a empresa esteja disposta a pagar salários mais altos.
Há quase 100 anos, Henry Ford criava a linha de montagem para a produção do seu Modelo T
empregando muitas máquinas e novas técnicas. A produtividade de sua fábrica era consequentemente
alta para os padrões da época, um carro era montado em cerca de 100 minutos. O ritmo nas linhas de
montagem exigia bastante energia dos operários, mas os trabalhadores da Ford recebiam pagamento
superior ao salário de outras empresas. Mais produtividade, mais salário.
Por outro lado, trabalhadores desprovidos de máquinas e tecnologia tendem a ganhar menos. Um
agricultor de um país pobre da África, que não tem acesso a sementes de boa qualidade, tratores e
fertilizantes, produzirá muito menos por hora trabalhada que seu par brasileiro, com acesso àqueles
três insumos de produção. Este, por sua vez, produzirá menos que seu par norte-americano, em posse
de tecnologia mais avançada e que tem ainda a sua disposição estradas e ferrovias de melhor
qualidade para escoar sua produção. Em parte devido a estas diferenças de tecnologia e máquinas, a
renda do agricultor americano será maior que a do brasileiro, que será mais alta que a do africano.
Isso não significa que apenas jogar equipamentos de última geração em um país pobre vai aumentar
os salários da população local: além de terem mais capital, os países mais desenvolvidos têm uma
força de trabalho mais qualificada, capaz de tirar proveito dos avanços tecnológicos. Da mesma
maneira, o conhecimento dos engenheiros seria pouco útil numa ilha isolada do resto do mundo sem
fábricas e máquinas.
Mas em que pese os inquestionáveis ganhos econômicos do avanço tecnológico em uma perspectiva
de longo prazo, as coisas não são tão simples no curto prazo. A constante destruição e criação de
empregos que decorre do progresso técnico, e de mudanças institucionais, gera custos de curto prazo
que não podem ser menosprezados e que podem funcionar como barreira a mudanças muitas vezes
necessárias.
O desemprego, ainda que temporário, gera mesmo muito sofrimento e toda sorte de dificuldades. Não
é nada fácil quando uma habilidade adquirida ao longo de anos deixa de ser valiosa e faz-se então
necessário adquirir outras novas, mais úteis às necessidades de um “admirável mundo novo”. Que o
diga o “pai do Woody Allen”. Começando com os custos econômicos, como irá o desempregado
sustentar um nível de consumo minimamente razoável no intervalo de tempo que abrange a aquisição
de novas habilidades e a busca por novo posto de trabalho? E o problema não para aí. Os impactos
na autoestima e na satisfação pessoal gerados pelo desemprego também não podem ser
menosprezados.
Além disso, os grupos que sofrem no curto prazo com a chegada das máquinas, do avanço
tecnológico, ou da aberturaeconômica têm todo o interesse em se organizar para impedir a adoção
da nova tecnologia que gerará perdas diretas para eles. Quanto mais difícil a adaptação à nova
realidade, mais pressão eles exercerão pela manutenção do status quo, e mais provável, portanto, que
a sociedade como um todo se veja privada de determinado avanço tecnológico.
Uma das objeções dos “Luddites”, os trabalhadores ingleses que destruíam máquinas há 200 anos
atrás, era que como os novos equipamentos podiam ser operados por mão-de-obra menos
qualificada, haveria redução dos salários dos trabalhadores tradicionais do setor. De fato, as
máquinas reduziram mesmo o salário dos empregados mais qualificados naquele setor por terem feito
com que mais pessoas pudessem realizar uma tarefa antes bem desempenhada apenas por aqueles
dotados de habilidades específicas. Por outro lado, a inovação foi benéfica para o grupo dos menos
qualificados, que antes não podiam trabalhar na indústria, e também para a sociedade em geral, que
se beneficiou do acesso a roupas a preços mais baixos.
Para compensar as perdas e facilitar a readaptação dos grupos que são mais adversamente atingidos
por uma inovação tecnológica, pelo aumento de máquinas empregadas na produção, ou por outros
fatores que geram re-alocações traumáticas na economia, os governos adotam medidas como o
salário desemprego e programas de retreinamento. Mais adiante, após entendermos melhor o papel
do governo na economia, voltaremos a essa questão.
Máquinas, tecnologia, abertura econômica e maior participação das mulheres no mercado de trabalho
não têm efeitos duradouros sobre o desemprego. Portanto, não se deve tentar impedir mudanças que
são, no longo prazo, benéficas para a sociedade como um todo. Imagine o leitor a perda para a
economia mundial se o sindicato dos datilógrafos tivesse logrado impedir a difusão dos
microcomputadores, que acabaram por jogar a pá de cal em cima daquela profissão.
Menos dramaticamente, impor leis impedindo empresas de demitir, ou determinar legalmente o
tamanho máximo da jornada de trabalho são exemplos concretos de decisões que recorrem à
economágica, e que não ajudam a diminuir o desemprego no médio e longo prazos. Por quê? De
novo, porque o número de empregos não é uma constante da natureza e as firmas reagem a este tipo
de imposição. Por exemplo, países da Europa continental que têm como lei uma curta jornada de
trabalho e leis trabalhistas menos flexíveis apresentam uma maior taxa de desemprego e,
principalmente, mais longos períodos de desemprego por causa dos efeitos adversos dessas leis na
criação de empregos pelas empresas.
Quando inventamos maneiras de produzir melhor, estamos aumentando a renda média no mundo e a
quantidade de bens e serviços disponíveis para o nosso consumo. Mas a renda pode aumentar de
modo desigual, porque os que não conseguem tirar proveito das novas tecnologias podem perder
espaço para os que conseguem. De fato, há evidências de que o avanço tecnológico pode beneficiar
os indivíduos com mais capacitação e ao mesmo tempo prejudicar os menos instruídos (em geral,
mais pobres). A questão da redistribuição de renda será tratada em capitulo posterior.
Em suma, as pessoas estão escolhendo seu trabalho e seu consumo e as empresas estão escolhendo
sua produção, suas contratações e seus preços, para maximizar lucro. Preços, salários, empregos e
produção são determinados pela interação destas escolhas. No capítulo seguinte, passamos à
discussão sobre as restrições afetando as escolhas.
6. E eu vos declaro marido e mulheres
 
O que ocorreria se uma nova lei desse a todo homem o direito de se casar com até 3 mulheres, mas
vetasse esta possibilidade às mulheres? No Brasil, se aprovada, esta lei provocaria a indignação de
muita gente. Contudo, é instrutivo pensar no que aconteceria se esta lei passasse a vigorar.
Imagine se todo homem resolvesse exercer seu novo direito e se casasse mesmo com 3 mulheres.
Seriam necessários muitos quartos na casa, e provavelmente haveria muitas brigas, intrigas e rixas
domésticas. Devido à lei, o homem seria o todo-poderoso, e imporia com alguma facilidade suas
vontades, pois resolvesse uma mulher entrar em conflito ou dele discordar, o homem poderia puni-la
deixando-a num canto e escolhendo dar mais atenção às outras duas. Neste mundo pós-lei, ao passear
na rua cada homem sairia de braços dados com 3 mulheres. Ia faltar braço!
Mas espera um pouco... como podem faltar braços de homem? Para todo homem exercer esse novo
direito, seria preciso haver no mundo 3 mulheres para cada homem. Mas não há. O número de
mulheres e homens no mundo é muito parecido e, portanto, a conta não fecha. Assim, se a tal lei
entrasse em vigor, seria impossível que todos os homens se casassem com 3 mulheres. Para cada galã
com 3, haveria dois outros homens sobrando, sem mulher alguma.
A lei não pode revogar a restrição imutável e dada pela natureza de que o número de homens e
mulheres no mundo é aproximadamente igual. Dito de outro modo, a lei não cria mulheres. Em média,
existe um homem para cada mulher, e enquanto for esta a proporção no mundo, não há lei que
possibilite a todo homem se casar com 3 mulheres. Não há como ignorar a restrição dada pelo
número de mulheres existentes. Obviamente, vale o mesmo argumento para uma lei possibilitando
cada mulher se casar com 3 homens.
Agora, se alienígenas abduzissem boa parte da população masculina mundial para realizar suas
experiências de rotina e o número de homens caísse para um terço do valor atual, apenas um terço
das mulheres poderia estar casada, de acordo com a lei corrente. A mudança de lei sugerida poderia
então ser considerada, visando evitar que um número demasiado grande de mulheres permanecesse
sem casar. Com o ataque dos alienígenas, não haveria lei que conseguisse garantir a todas as
mulheres o direito de se casar com um homem se este não pudesse estar casado com mais mulheres
simultaneamente.
Nos capítulos anteriores, nós vimos como as escolhas das pessoas determinam os preços, os
salários, a quantidade e a natureza dos empregos, e a produção de um país. Neste capítulo, vamos
voltar nossa atenção para as restrições ou limitações que afetam essas escolhas.
No mundo, vivemos cercados de restrições porque os recursos disponíveis para consumir e produzir
não são infinitos. Ao contrário, eles são escassos. No exemplo lúdico apresentado acima, não há três
mulheres para cada homem em nenhum país do mundo. Mais preocupante do que isto, em países
pobres não existem recursos suficientes para resolverem-se todas as mazelas socioeconômicas
simultaneamente. É preciso escolher prioridades. Conscientizar-se da existência da restrição de
recursos é o primeiro passo para uma sociedade alocar eficazmente os recursos que possui. Saber
que não há como prover tudo para todos ilumina o debate sobre quais são as prioridades,
principalmente quando o erário público é que está em questão.
Todos nós prestamos atenção às restrições que se impõem às nossas próprias escolhas. Nosso
dinheiro é limitado, então temos que escolher entre viajar nas férias ou trocar de carro. Nosso tempo
também é limitado, então se escolhermos dormir de dia, ir à faculdade à noite, e tocar violão de
madrugada, sobrarão poucas horas para estudar. Quando recebemos convites para dois jantares no
sábado à noite, precisamos escolher um. Se o que ganhamos com o nosso trabalho não é suficiente
para alimentar nossas famílias, ou nossos filhos mais velhos vão trabalhar, ou não teremos o que dar
de comer aos menores.
Essa lógica, que é tão simples para as decisões individuais, também se aplica às escolhas do país
como um todo. Os gastos governamentais são financiados com os impostos arrecadados da população
– não há como se comer o pão que não se produziu. Recursos públicos não crescem nos arrabaldes
de Brasília. Todo o gasto do governo precisa ser financiado com recursos produzidos pela sociedade
e, portanto, quando o governo gasta, ele invariavelmente está tirando recursos de alguém. É preciso,
portanto, que haja umaboa razão justificando seu gasto. Infelizmente, em muitas ocasiões, no bojo
das discussões sobre políticas públicas, esta restrição básica que se apresenta às escolhas do país é
esquecida.
Por exemplo, muitas vezes ouvimos slogans defendendo a “universidade gratuita”. Mas construir e
manter as salas de aula, equipar laboratórios e contratar professores custa dinheiro, dinheiro que não
cai do céu. Se a universidade é gratuita para quem estuda, é porque quem não estuda está pagando. O
meu direito à universidade gratuita é a sua obrigação de pagar pela minha educação universitária.
No mundo da economágica, o governo pode criar universidades gratuitas. Os professores cairão dos
céus para ensinar os alunos, as salas de aula serão construídas de graça, os laboratórios doados
pelos mesmos alienígenas anteriormente mencionados. No mundo real, onde valem as leis da
economia, a coisa é diferente. Não existem universidades gratuitas e as leis, infelizmente, não podem
criá-las, assim como a lei do casamento não cria duas mulheres a mais para cada homem. No mundo
da economia, nada cai do céu. No mundo da economia, existem restrições de recursos.
As leis podem sim determinar a divisão do custo do ensino universitário entre os estudantes e a
população em geral. Essa questão é muito importante e será discutida a fundo em capítulo futuro que
tratará da educação. Aqui, a mensagem é simplesmente a de que não existe algo que se possa chamar
universidade gratuita. Ela pode ser gratuita para um grupo, mas não é gratuita para a sociedade.
Como vimos anteriormente, para melhorar a vida da população mais pobre, é preciso melhorar o
conjunto de alternativas disponíveis a eles – ou seja, é preciso mexer nas restrições às suas escolhas.
Um programa do governo que dá dinheiro aos pobres pode ajudar, mas aí se esbarra na mesma
questão: os recursos têm que vir de algum lugar dado que o governo mesmo não cria recursos. Para
financiar o programa de transferência de renda é preciso taxar a população não beneficiada. Essa é
uma escolha importante e será discutida mais adiante.
É curioso ver como os governantes gostam de alardear que eles colocaram recursos na educação, que
eles aumentaram as transferências de recursos para os mais pobres, que eles construíram novas
estradas. Mas quem financiou estes gastos foi você, foi a sociedade como um todo, que paga
impostos. O que os políticos por nós escolhidos fazem é decidir onde alocar os recursos que lhes
entregamos via tributos. É uma tarefa importantíssima, sem dúvida alguma. Mas o dinheiro, os
recursos, são da sociedade, não dos políticos. Para que o governo possa gastar mais, ele precisa tirar
recursos de nós. Não há como se escapar desta restrição. Não há como desrespeitar o que os
economistas chamam de restrição orçamentária.
Portanto, quando discutimos se o governo deve ou não destinar recursos para certa atividade, a
questão que deve ser posta é a seguinte: devemos arrecadar dinheiro da população para que o Estado
pague por estes bens ou serviços? O benefício do serviço público que se programa implementar ou
aumentar é maior que o custo do imposto que o financia? Sempre que estivermos pensando nas
escolhas do Estado, devemos nos colocar essa pergunta e quando ouvirmos “que é um dever do
Estado prover tal serviço”, devemos nos lembrar que isso significa simultaneamente “é um dever da
população pagar por tal serviço”.
Além de escolher o que o governo deve fazer, temos também que escolher como o governo deve taxar
a população. Por exemplo, para construir uma estrada, o governo pode arrecadar recursos via
impostos ou cobrando pedágio. Qual das duas maneiras é melhor? Esse assunto será o foco da nossa
atenção em capítulo futuro.
No nosso dia a dia, lembramos constantemente das nossas limitações de tempo e dinheiro. Mas o
orçamento do governo é tão grande que parece que sempre cabe mais alguma coisinha. São tantos
bilhões em impostos que parece que uma solicitação de verbas a mais, outra obra ou transferência de
recursos não vão fazer diferença. De fato, cada um desses pequenos gastos representa uma proporção
muito pequena do total despendido pelo Estado. Mas, para cada um desses pequenos gastos, devemos
pensar se vale a pena ou não arrecadar o dinheiro da população para executá-los. Quando o
governante raciocina deste modo, o Estado estará escolhendo como nós escolheríamos se levássemos
em conta as vontades e necessidades de todos.
É muito comum escutarmos pessoas utilizando a corrupção no governo como justificativa para algum
gasto público adicional: “são tantos milhões para os mensaleiros e querem cortar os investimentos
em infraestrutura ou os recursos para reformar a estrada!? Deveriam cortar é a corrupção, não o
gasto com estradas!”.
Claro que viver em um país sem corrupção seria muito melhor para todos nós que escolhemos não
nos corromper. Qualquer uso do dinheiro público é melhor do que o desvio para o bolso de alguns
corruptos. Mas o que isto tem a ver com demanda por mais gasto público? Reformar a estrada, ou
gastar mais em saúde, não vai diminuir a corrupção. Aliás, pode até mesmo aumentá-la porque gera
oportunidades adicionais para prática de suborno, favorecimento político, etc. Colocando de outra
forma: não é porque parte do dinheiro é desperdiçado que devemos desperdiçar mais ainda, assim
como não é porque os cupins estão roendo o pé da poltrona que devemos quebrar o abajur, ou
comprar outro abajur. Combater a corrupção é muito importante, pois quanto menos corrupção,
menos o governo tem que nos taxar para prestar os mesmos serviços. Mas isso não altera em nada,
em absolutamente nada, a maneira como devemos pensar cada gasto público. A pergunta crucial
continua sendo: vale a pena arrecadar dinheiro da população para este projeto?
Como dissemos anteriormente, todos nós enfrentamos restrições às nossas escolhas. Às vezes temos
que escolher entre a viagem nas férias e a reforma da casa. Mas uma possibilidade é pegar dinheiro
emprestado e fazer os dois, certo? Sim, e isso vale para pessoas, empresas e países. Contudo, como
veremos no próximo capítulo, isso não altera em nada a essência dos argumentos aqui apresentados.
 
7. O preço do futuro
 
Carlo Ponzi nasceu na Itália em 1882, migrou para os Estados Unidos em 1903 e nos anos seguintes
teve passagens pouco marcantes por diversos trabalhos e prisões até alcançar a fama em 1920. No
final de 1919, Ponzi deu seu passo decisivo para o hall da fama ao criar uma empresa que prometia
dobrar o dinheiro dos investidores em apenas 90 dias. A bem da verdade, não havia muita atividade
produtiva na empresa, mas os primeiros investidores realmente receberam seu dinheiro com o
retorno prometido: Ponzi utilizava o dinheiro dos novos clientes para pagar os antigos.
Esta exorbitante rentabilidade levou milhares de pessoas a investir o dinheiro na companhia de Ponzi
em busca de ganho rápido e fácil. A partir do início de 1920, dólares passaram a inundar os cofres
de sua empresa. Com o dinheiro de renovados investidores, Ponzi era capaz de repagar aqueles que
haviam investido há 90 dias e optavam por não reinvestir. Em meados de 1920, Ponzi era um
milionário e uma celebridade em Boston, onde sua empresa operava.
Como deve desconfiar o leitor, um esquema deste tipo não pode durar muito tempo. Em algum
momento, o fluxo de novos clientes não é suficiente para pagar aos antigos o dobro do que investiram
há 90 dias e o esquema cai por terra. De fato, em agosto de 1920, menos de um ano depois de
começar a captar recursos de investidores, a empresa de Ponzi faliu e ele foi preso por fraude.
Muitos investidores perderam bastante dinheiro nesta ciranda.
Por seu fabuloso esquema, Carlo Ponzi merece ser considerado um dos grandes mestres da
economágica. Apenas no mundo da economágica, um negócio que se baseia em pagar dívidas
tomando novos empréstimos de terceiros, e assim sucessivamente, pode funcionar. No mundo real,
consumir mais hoje contraindo dívida no banco ou utilizando o cartão de crédito significa consumir
menos amanhã; endividar-separa investir na produção, comprando máquinas ou insumos, implica
ceder parte do valor produzido aos credores quando o momento do pagamento chegar.
Depois de outras tantas passagens por prisões e trabalhos pelo mundo, esse grande mestre da
economágica morreu no Brasil, no Rio de Janeiro. Sem dinheiro, claro. Mas o nome de Carlo Ponzi
está gravado nos livros de economia e criminologia.
Endividar-se é, essencialmente, trocar futuro pelo presente; poupar é o reverso da moeda. A dívida
não amplia nossa capacidade de gastar: ela amplia nossa capacidade de gastar hoje e reduz as nossas
possibilidades de consumo no futuro. O cartão de crédito não cria dinheiro, não aumenta nossa
renda. Empresas, indivíduos e governos podem gastar mais do que suas receitas em um dado
periodo, mas para isso devem gastar menos do que recebem em outros momentos.
Este capítulo trata do mercado que possibilita trocarmos bens presentes por bens futuros: o mercado
financeiro de empréstimos. Devido a essa possibilidade, a restrição orçamentária do governo e das
pessoas, descrita no capítulo anterior, deve ser vista como uma limitação que incide sobre o conjunto
das escolhas possíveis hoje e no futuro, e não como uma limitação ao gasto hoje. Se enxergamos a
restrição orçamentária dessa maneira, a lógica exposta no capítulo anterior segue intocada.
A possibilidade de trocar bens presentes por bens futuros é importante para consumidores, empresas
e países.
Para alguns consumidores, pode ser desejável consumir mais do que sua renda em um certo período.
Por exemplo, se eu quero comprar um carro novo porque acabou de nascer minha filha, mas ainda
não tenho dinheiro suficiente para tal, eu posso pegar dinheiro emprestado e comprar o carro hoje –
eis para isso os financiamentos, o cheque especial, o cartão de crédito e os empréstimos pessoais.
Mas o cartão de crédito não cria dinheiro, então de onde vem os recursos para comprar o carro?
Esses recursos vêm de alguém que não tem necessidade de comprar o carro hoje e prefere poupar o
dinheiro para consumir mais no futuro. Para isso, ele deposita seu dinheiro no banco que intermedia a
transação com o tomador do financiamento. Em uma operação de empréstimo, o tomador está
comprando dinheiro hoje e dando em troca, ou melhor, se comprometendo a dar em troca, dinheiro
amanhã. Assim como no mercado de bananas se troca dinheiro por bananas e no mercado de carros
se troca dinheiro por carros, no mercado financeiro, dinheiro hoje é trocado por dinheiro no futuro.
Como diz o título deste capítulo, o juro é o preço do futuro, ou melhor, o preço relativo entre
dinheiro no futuro e dinheiro hoje. Se a taxa de juros é de 10% ao ano, 100 reais hoje equivalem a
110 reais daqui a um ano. Os 10 reais são o custo de ter as coisas hoje ao invés de no futuro.
Se muita gente quer antecipar o consumo, tomando dinheiro emprestado, há excesso de demanda por
dinheiro hoje e, consequentemente, excesso de oferta de dinheiro amanhã. De que maneira se dá o
ajuste destes excessos? Como explicado nos capítulos precedentes, via mudanças nos preços. Se
falta banana, sobe o preço da banana; se falta passadeira, sobe o salário da passadeira; se falta gente
no cinema, cai o preço do ingresso. Se todo mundo quer consumir bens hoje, o preço dos bens
existentes hoje tem que subir com relação ao preço dos mesmos bens amanhã. O aumento do preço do
crédito – a taxa de juros – desestimula a demanda por dinheiro hoje, e estimula simultaneamente a
poupança, que é o mesmo que estimular a demanda por dinheiro amanhã. O presente fica mais caro, e
o futuro mais barato, e em vista disto as pessoas alteram suas escolhas.
Justamente porque podemos pegar dinheiro emprestado e podemos poupar, nosso consumo pode ser
diferente da nossa renda em um dado instante do tempo. Quando pegamos recursos emprestados, ele
é maior que a renda no presente; quando poupamos, ele é menor. Assim, gastos e receitas não
precisam ser iguais em todos os instantes do tempo, mas gastar acima da renda hoje precisa ser
compensado por gastos abaixo da renda em algum momento no futuro.
Como dissemos no capítulo 6, não há como escapar da restrição orçamentária. Entretanto, é possível
transferir consumo de um período para o outro. Por exemplo, caso em um determinado mês eu receba
R$3000 de salário mas queira gastar R$3500, eu posso fazê-lo pegando emprestado os R$500 que
faltaram. No mês seguinte eu terei uma dívida de R$500 mais os juros – digamos, R$20. Se meu
salário não muda e eu recebo R$3000 novamente, me sobrarão apenas R$2480 para consumir após
quitar a dívida. O empréstimo posterga a necessidade de me ajustar aos meus meios. É verdade que
há a possibilidade de tomar-se novo empréstimo e, com estes recursos, honrar-se o antigo, mas
esquema Ponzi só funciona no mundo da economágica. No mundo real, o dia do ajuste de contas
alguma hora chega, dado que ninguém vai querer financiar para sempre indivíduos (ou empresas, ou
governos) com planos de gastar continuadamente mais do que permitem seus recursos.
Há também a possibilidade de não se honrar a dívida assumida – aplicar um calote no credor. Isso de
fato muda a restrição orçamentária de pessoas (ou até mesmo países), ampliando suas possibilidades
de gastar no curto prazo. O problema é que o caloteiro encontrará dificuldades para levantar novos
empréstimos no futuro e poderá sofrer sanções legais por suas estripulias. De fato, a taxa de juros
leva em conta a propensão de indivíduos e países a repagar seus empréstimos. Não é por outro
motivo que credores internacionais cobram mais caro para emprestar a países por eles considerados,
seja pelo seu histórico, seja pelas suas frágeis condições econômicas, menos propensos a repagar.
A possibilidade de não repagar é a grande diferença entre o mercado de crédito e os mercados de
carros, bananas, passadeiras e entradas de cinema. Nestes últimos, as trocas se materializam quase
que imediatamente. Eu desembolso alguns reais e recebo a banana no caixa do supermercado no
mesmo instante. A passadeira recebe no final do dia, no máximo no final do mês. Em uma operação
de crédito, não. Dinheiro no presente é trocado por uma promessa de pagamento no futuro, e às vezes
este futuro está anos à frente. Por isto, todos os fatores que envolvem a possibilidade de calote –
punições para não pagadores, regras informais da sociedade, instituições – são muito importantes
para entender o funcionamento deste mercado.
Poder trocar dinheiro hoje por dinheiro no futuro é importante para o bom funcionamento das
empresas. Para produzir, as empresas precisam do trabalho das pessoas e, normalmente, também de
um arsenal de máquinas e equipamentos, mas em muitos casos a empresa não tem hoje recursos
próprios suficientes para comprá-los. O mercado de crédito possibilita à empresa comprar a
máquina hoje com o lucro que ela gerará amanhã.
O juro do empréstimo que o gerente lhe cobrará para que você possa comprar a máquina é o
verdadeiro custo de adquiri-la. Note que se não houver juro, quando você compra uma máquina de
R$ 10.000, pegando este mesmo valor emprestado no banco, sua posição financeira líquida é a
mesma de antes de adquirir a máquina, ou seja, zero. Você tem R$ 10.000 de dívida (seu passivo),
mas também R$ 10.000 de máquina (seu ativo). Mas como os juros são positivos, é preciso adicioná-
los no lado do passivo. Sua dívida é então maior que o valor da máquina. Por exemplo, se o juro é
10% ao ano, a dívida é de R$ 11.000. A máquina, porém, se vendida para saldar a dívida, só
levantaria R$ 10.000 (isto sem considerar a depreciação do valor da máquina pelo uso e a taxa de
inflação). O custo do capital é então esta diferença de R$ 1.000. O custo do capital é exatamente o
juro.
A conta que o empresário faz antes de comprar a máquina é, portanto, a seguinte: se o que a máquina
gerar a mais de receita for superior à taxa de juro do empréstimo, ele compra a máquina; caso
contrário, ele não investe. Se a máquina, por exemplo, aumenta os ganhos da empresa em R$ 1.500,
então vale a pena se endividar paracomprá-la mesmo com juros de 10%. Se ela adiciona apenas R$
500 de receita, então só vale a pena adquiri-la se os juros forem inferiores a 5%.
O exemplo acima trabalha com a hipótese de que o empresário não tem dinheiro próprio para
comprar a máquina. Mas e se ele tiver, o cálculo que o leva a investir ou não é diferente?
O dono da fábrica que tem dinheiro em caixa pode consumir os lucros de sua firma hoje ou pode
escolher transferir esse lucro para consumo futuro. Para sacrificar o consumo presente para consumir
mais no futuro, ele tem duas opções: comprar a máquina, ou depositar esse lucro em um banco e
receber os juros. Assim, o custo de oportunidade de investir em máquinas, ou seja, o quanto se
ganharia se ao invés de comprar máquinas o empresário colocasse o dinheiro no banco, é o juro que
o empresário recebe para emprestar seu capital. Portanto, ele compra a máquina se o retorno que esta
lhe traz em termos de maior produção superar o juro que ele pode receber do banco. Assim, tendo ou
não dinheiro em caixa, a lógica que norteia a decisão de investir é a mesma.
De uma maneira geral, investir é sacrificar consumo hoje para consumir-se mais amanhã.
A mesma ideia se aplica para aluguéis de imóveis. O inquilino aluga o imóvel do proprietário, assim
como o dono da fábrica aluga o capital do banco quando precisa tomar emprestado para investir.
Quem aluga – capital ou apartamento - usufrui um serviço: o retorno da máquina comprada, ou o teto
que o protege do sereno da noite. Quem fornece o serviço naturalmente cobra por ele, o juro do
poupador no primeiro caso, o aluguel do proprietário no segundo.
Assim como consumidores e empresas, os países também podem poupar ou endividar-se.
Como já dito, os gastos do governo são sempre financiados pelos impostos que pagamos. Mas, como
no caso dos indivíduos e empresas, os impostos não precisam ser a todo instante iguais aos gastos do
governo. E nem devem. Se alguma tragédia natural torna necessário um aumento expressivo dos
gastos públicos para ajudar os atingidos de uma enchente, por exemplo, não faz sentido aumentar os
impostos na mesma proporção do crescimento dos gastos no mês da tragédia para logo depois,
cessada a necessidade de ajuda humanitária, reduzir estes impostos novamente ao patamar prévio.
Neste caso, em vez de impor esta oscilação aos impostos, o governo tem a alternativa de emitir
dívida, arrecadando com ela os recursos de que tem necessidade, e deixando para pagar os
compradores desta dívida mais à frente. Para pagar os compradores de sua dívida, o governo
precisará arrecadar mais, mas o aumento de imposto neste caso pode ser espalhado ao longo de um
estendido período de tempo.
Seja taxando, seja emitindo dívida, um aumento dos gastos do governo precisa ser financiado com
redução do consumo privado das pessoas. Ao cobrar impostos, o governo tira dinheiro das pessoas.
Ao emitir dívida, o governo tira dinheiro e entrega títulos da dívida a determinados cidadãos. Estes
títulos serão pagos no futuro, é verdade, mas pagos com dinheiro de quem? Dos próprios cidadãos,
dado que o governo não fabrica recursos. Nos dois casos, para o governo poder gastar mais, as
pessoas precisam gastar menos. Em resumo, dívida do governo hoje é o mesmo que mais imposto
amanhã.
A alternativa de dar o calote nos cidadãos também existe. Quando isso acontece, o governo deixa de
honrar os compromissos assumidos com o grupo de pessoas que emprestaram dinheiro quando da
emissão da dívida, mas também deixa de taxar toda a população. Essa opção é idêntica a cobrar
imposto dos credores, no valor integral da dívida. A diferença é que nesse caso o Estado engana seus
próprios cidadãos, uma política pública que não faz muito sentido.
O Estado pode também pegar dinheiro emprestado dos estrangeiros e, no futuro, não repagar. Mas os
custos para a economia decorrentes do calote na dívida são normalmente grandes o suficiente para
que valha a pena honrar os compromissos com os credores externos. Os estrangeiros, assim como
nós, estão escolhendo e se inferirem que há uma grande chance de não serem repagos, não nos
emprestarão recursos. Assim, pegar dinheiro emprestado e não repagar normalmente não é uma boa
solução.
É verdade que, às vezes, alguns eventos fazem com que seja muito custoso pagar e o país escolhe
renegociar suas dívidas. Por exemplo, os aumentos nas taxas de juros internacionais no início dos
anos 80 levaram boa parte dos países latino-americanos a buscar acordos com o FMI e credores
internacionais. Depois de muitos anos de negociação, Brasil, Uruguai, Argentina e México obtiveram
uma redução da dívida de cerca de 30%. Mas a possibilidade destas renegociações é levada em
conta na determinação das taxas de juros dos empréstimos. As taxas de juros mais altas compensam
as eventuais reduções no pagamento.
Em suma, a restrição orçamentária impõe limites sobre os gastos que o estado pode incorrer – é
preciso arrecadar dinheiro dos cidadãos para pagar o que gasta. É sempre possível financiar parte
dos gastos com dívida, mas dívida hoje significa mais impostos amanhã, ou menos gastos amanhã.
Portanto, é impossível violar a restrição orçamentária que incide sobre as decisões presentes e
futuras.
Mas, espere, há outro jeito de financiar gastos: o governo pode simplesmente imprimir dinheiro!
Desse modo, o governo paga as suas despesas extras com o dinheiro que imprimiu, sem impostos e
sem dívida. Bem, só se for no mundo da economágica, porque no mundo real imprimir dinheiro não
cria os recursos, as estradas, as ambulâncias, o trabalho das pessoas. Se o governo usa mais
recursos, alguém tem que usar menos, e este alguém só pode ser o cidadão.
Na verdade, imprimir dinheiro é uma forma indireta, escondida, de taxar. Quando o governo imprime
moeda, o dinheiro que as pessoas carregam consigo perde valor. O país não fica mais rico porque a
produção de bens e serviços não se altera magicamente com a emissão de notas novas. Mas como
existe agora maior quantidade de notas de Reais indo atrás da mesma quantidade de bens, os preços
dos bens se elevam em Reais. Portanto, o poder de compra dos reais que temos no bolso diminui e
ficamos mais pobres do mesmo jeito que ficaríamos mais pobres se o governo impusesse um novo
imposto para quem tem dinheiro vivo no bolso. Assim, imprimir dinheiro tem o mesmo efeito que
cobrar imposto sobre a quantidade de moeda que o indivíduo detém. E este imposto disfarçado na
inflação incide mais pesadamente sobre as pessoas mais pobres dado que muitas delas carregam
parte importante de sua renda sob a forma de dinheiro.
Em resumo, com dívida ou sem dívida, para qualquer proposta de gasto do governo, a pergunta que
devemos nos fazer é a mesma do capítulo 6: vale a pena arrecadar dinheiro da população para este
projeto?
 
8. Vegetarianos, preços e bois
 
Um jornalista dinamarquês, certa tarde, decide publicar uma charge ofensiva a Maomé na edição de
seu jornal de tiragem diária. Uma onda de indignação atinge vários países islâmicos, e cresce a
tensão ocidente/oriente. Não parece que a piora nas relações irá se restringir ao curto prazo.
Aumenta a incerteza geopolítica no mundo.
Quase que imediatamente o preço internacional do ouro se eleva. A elevação na incerteza geopolítica
gera um aumenta na demanda por ouro, considerado por muitos como refúgio seguro para os capitais
em tempos mais turbulentos. A elevação do preço do ouro sinaliza uma mudança de preferências das
pessoas em face de um mundo mais incerto.
A alta do ouro, por sua vez, torna mais atraente investir no descobrimento de novas minas. Recursos
financeiros são então deslocados para esta atividade, e trabalhadores migram das minas de carvão
para as minas de ouro. É o incentivo fornecido pelo aumento do preço do ouro que põe em marcha
toda esta re-alocação de capitais, recursos humanos e físicos. São ajustes do lado da oferta.
Mas há ajustes também do lado da demanda por ouro para outras atividades. Um noivo, prestes a
presentear sua futura esposa com um bela aliança de dezoito quilates vai à joalheriae descobre que
agora precisará desembolsar mais pelo presente. De fato, após a divulgação da charge, e a
consequente valorização do ouro como reserva de valor, é provável que menos gente compre anéis
de casamento com elevada quantidade de ouro. Se ainda quiser comprá-lo, nosso noivo precisará
desembolsar mais dinheiro.
Por causa de uma charge do Maomé, a aliança de noivado ficou mais cara e mais gente passou a se
dedicar a encontrar mais ouro. O preço está maluco, causando alterações sem sentido na economia?
Não, muito pelo contrário. Todas estas re-alocações são bem-vindas, eficientes no linguajar do
economista, visto que estão em consonância com o desejo da sociedade de alocar maior parcela de
sua poupança sob a forma de reservas de ouro. Para que esta vontade possa se concretizar, é preciso
que se encontre mais ouro e/ou que se demande menos ouro para outras atividades (fabricação de
anéis, por exemplo). Não há como evitar este ajuste, e a alteração no preço se encarrega justamente
de por em marcha estas mudanças na oferta e demanda.
O curioso é que aos ouvidos do mineiro que foi trabalhar buscando ouro, e aos do noivo que
comprou uma aliança mais simples, talvez nunca tenha chegado o episódio da charge. Mas foi ele o
responsável pela mudança de emprego de um e pela diferente escolha de consumo do outro. O
sistema de preços é quem silenciosamente operacionaliza a mudança necessária no mundo pós-
charge. A causa desta alteração é real e concreta: o aumento das tensões geopolíticas.
No capítulo 3, vimos como os preços são determinados, mas pouco falamos da importância do
sistema de preços para o bom funcionamento do sistema econômico. Este é o propósito central deste
capítulo.
Resumidamente, a função principal do sistema de preços é sinalizar para todos, produtores e
consumidores de bens, duas coisas: (i) o valor atribuído pelo conjunto da sociedade a um
determinado bem e, (ii) o custo que esta mesma sociedade incorre ao produzi-lo.
O sistema de preços funciona como um repositório de enorme quantidade de informações que afetam
demanda e oferta. Ele as agrega, sintetiza, e transmite para todos os agentes da economia em um
simples e observável dado que condensa as informações sobre as escolhas de todas as pessoas: o
preço final do bem. Pode parecer à primeira vista incrível que o sistema de preços tenha o poder de
agregar e transmitir informações com precisão e agilidade não passíveis de serem reproduzidas pelo
mais poderoso dos computadores, mas esta é a pura verdade. As decisões independentes de milhões
de agentes econômicos, as mais diversas descobertas tecnológicas de que a maioria de nós nem ficou
sabendo, as mudanças nos custos de produtores longínquos por fatores que nos são completamente
desconhecidos, as modificações nos hábitos de consumo de cidadãos de outros países, etc, são
fatores que geram oscilações em milhares de demandas e ofertas mundo afora e são sintetizados na
variação do preço final dos produtos.
A beleza do sistema de preços advém do fato de que, devido a ele, produtores e consumidores
individuais não precisam despender tempo analisando esta miríade de mudanças afetando demandas
e ofertas de outros consumidores e produtores de um dado bem. Aliás, mesmo se quisessem, eles não
teriam como faze-lo dada a necessidade de processar quantidade inimaginável de informação que tal
tarefa requer. Graças ao sistema de preços, basta-lhes observar o efeito líquido deste turbilhão de
mudanças sobre o preço final do bem que se quer comprar ou fabricar, e com base apenas nesta
informação (o preço), decidir quanto comprar ou produzir.
O preço de um bem é, portanto, um grande e prático veículo transmissor de informação. É o aumento
no preço do ouro que avisa aos produtores que é hora de se procurar mais ouro, e que sugere aos
consumidores que comprem alianças mais modestas.
E se não houvesse um sistema de preços para silenciosamente operar as mudanças desejadas pela
sociedade, sem ordens diretas de ninguém, de maneira rápida e fluida, como no caso acima descrito?
A alternativa seria nomearmos um todo poderoso governante que, pensando tão somente no bem-estar
da sociedade, e tendo informação precisa sobre todas as mais mínimas mudanças nos gostos e nos
custos de produção de uma quantidade gigantesca de consumidores e produtores, decidisse a
demanda de cada individuo da sociedade e a quantidade a ser ofertada por cada produtor, para todos
os bens e serviços existentes. Soa uma tarefa infactível.
No caso do ouro, por exemplo, este grande e todo poderoso governante precisaria decidir quantos
trabalhadores realocar das minas de carvão para as de ouro, além de obrigar um decepcionado noivo
a comprar uma aliança mais singela.
Parece pouco provável que tal modelo econômico possa funcionar de maneira minimamente
eficiente. Primeiro pelo irrealismo da hipótese de que todas as ações do tal governante visariam o
bem-estar da sociedade. Segundo, e mais importante, porque é tarefa impossível para um governante
– mesmo o mais bem intencionado de todos – coletar e processar este conjunto quase infinito de
informações e dele concluir as demandas individuais e as ofertas ideais de cada produtor. Como
conhecer os gostos e desejos de todas as pessoas, a estrutura de custos de produção e tecnologia para
todos os bens da economia? Depois, como combinar essa informação toda para se determinar o que
cada pessoa vai produzir e consumir?
Como os preços são peça-chave para o bom funcionamento de uma economia, a interferência do
governo na sua determinação causa ineficiências. Se o governo, por exemplo, impede o preço do
ouro de subir, não se gerarão os incentivos necessários para ir-se em busca de novas minas (que
ajudariam a satisfazer o desejo da sociedade pós-charge de poupar em ouro), e provavelmente vários
noivos teriam que formar fila na porta da joalheria, uma maneira nada boa de alocar a menor
quantidade de anéis restantes. Em suma, as demandas e ofertas de bens não refletirão os verdadeiros
anseios da sociedade nem o custo de produção dos bens e serviços.
Este ponto é importante dado que muitos governos, no bojo de seus planos econômicos, tentaram, no
passado, fazer política social ou controlar a inflação fixando o preço de alguns produtos. É mister
desmistificar os benefícios de uma política como esta. Por exemplo, fixar por lei um preço baixo
para o arroz e o feijão não levará a um maior consumo destes víveres por parte da população de
baixa renda. Não no longo prazo. Levará, isto sim, a menor plantio porque os produtores estão
escolhendo o que produzir com base nos incentivos que têm para fazê-lo – sendo o preço um dos
mais importantes. Com um preço muito baixo, fixado por lei, os produtores de arroz e feijão
mudariam, com o passar do tempo, seu plantio, passando a priorizar outras culturas com preços
livres e determinados pelo mercado, ou até mesmo deixando a agricultura pela indústria ou pelos
serviços.
No longo prazo, a oferta de arroz e feijão cairia após uma fixação de preços, e o problema social não
seria atenuado. Tentar fazer política social controlando o preço dos alimentos é um truque de
economágica. Não dá certo, pois supõe, equivocadamente, que o congelamento dos preços não afeta
a oferta, que ele não mexe com os incentivos dos produtores.
Vejamos um outro exemplo do funcionamento do sistema de preços. O que aconteceria, no longo
prazo, com o número de bois e vacas no mundo se muito mais gente optasse por se alimentar com
base em dietas vegetarianas?
Em um mundo com menos degustadores de carnes, despencaria a demanda por carnes e, portanto,
aumentaria o número de bois vivos em um momento inicial. Por outro lado, cresceria a demanda por
soja, fonte importante de proteínas para os recém convertidos vegetarianos. Inicialmente, esta
alteração levaria a um crescimento do preço da soja e uma redução do preço da carne, dado que nem
a oferta de soja pode aumentar de um momento ao outro, e nem a oferta de bois pode ser reduzida em
uma tacada.
Os inveterados consumidores de carne não convertidos àdieta vegetariana se beneficiariam do
menor preço da carne por um tempo, enquanto os vegetarianos - novos e antigos - pagariam o custo
de serem agora um grupo maior em forma de preço mais alto da soja. O preço da carne precisaria
cair para motivar os “carnívoros” a consumir mais carne. Caso contrário, sobraria carne no açougue,
o que não seria de interesse do açougueiro. Da mesma maneira, o preço da soja precisaria subir para
que as pessoas escolhessem consumir menos soja – se não, não haveria soja para atender às
demandas de todos. O preço é o mensageiro das mudanças.
Mas a mudança no preço da soja relativamente ao preço da carne também mandaria um sinal
importante aos produtores: seria então mais atrativo produzir soja e menos atrativo criar gado.
Temporariamente, os produtores de soja veriam seu lucro crescer com a alta de preços e, como
consequência, alguns criadores de boi, de olho neste lucro mais alto, passariam a plantar soja,
largando a pecuária pela agricultura.
O processo migratório para as plantações de soja não ocorreria instantaneamente, visto que não é
trivial mudar assim de atividade de uma hora para outra (são precisos novos investimentos, tempo
para se conhecer um outro mercado, etc). Mas, com o tempo, surgiriam mais e mais plantadores de
soja, atraídos pelo lucro maior. O aumento da oferta total de soja levaria à gradual reversão daquela
alta inicial de preço. À medida que o preço voltasse ao que era anteriormente, o aumento do lucro
puxado pela conversão à dieta vegetariana iria se reduzindo. O processo seguiria até que cessasse o
movimento de pecuaristas querendo virar plantadores de soja. A economia estaria então com maior
área plantada de soja e menor número de criadores de boi. Os preços voltariam ao que eram
anteriormente e, não havendo mudanças nos custos, os lucros nos dois setores seriam os mesmos de
antes.
Chegaríamos então a um mundo com mais soja e menos bois, o que faria todo o sentido dado que
agora teríamos mais vegetarianos na população do que antes. Tudo operacionalizado através do
sistema de preços, que altera os incentivos dos produtores para que se realize o ajuste demandado
pela sociedade.
Assim, cai a demanda por carne, sacrificam-se menos bois e vacas, e seu número
consequentemente...diminui! Mais vegetarianos e menos bois pode parecer algo contraditório. Mas
não é, não no longo prazo.
Mas e se o governo decidisse intervir? E se o lobby dos pecuaristas batesse à porta do ministro da
agricultura após a queda de preço da carne pedindo apoio financeiro e terminasse sendo atendido via
implementação de um subsídio para os criadores de boi?
Se o governo decidisse subsidiar os criadores de boi, a mudança desejada pela sociedade, qual seja,
de ter mais soja e menos carne do que antes da reviravolta vegetariana não se concretizaria
plenamente. Esta intervenção é dita por conta disto ineficiente. Vejamos em pormenores o que se
daria.
Consideremos que, inicialmente, o lucro médio nas duas atividades fosse o mesmo. Digamos que sem
intervenção do governo, a alta da demanda por soja e a queda da demanda por boi gerasse
inicialmente uma redução do preço do quilo da carne de R$10 para R$9, e uma alta do quilo da soja
de R$3 para R$4. Como dissemos, o aumento do lucro dos plantadores de soja atrairia para o setor
alguns criadores de boi, o que reduziria a oferta de carne e aumentaria a de soja. Este movimento não
cessaria enquanto os lucros não voltassem a serem iguais. Como os custos não se alteraram (por
hipótese, para facilitar a exemplificação), isto significa que o processo de ajuste estaria terminado
exatamente quando os preços retornassem aos valores vigentes anteriormente. Mas as quantidades
produzidas de soja e carne seriam agora diferentes: mais soja e menos carne devido à migração de
pecuaristas para a sojicultura.
Entretanto, se o governo optasse por subsidiar os criadores de boi, ele atrapalharia este ajuste.
Imaginemos que ao constatar a queda inicial de R$1 no preço da carne, o governo estabelecesse um
subsídio de igual monta aos criadores de gado. Para transferir estes R$1/quilo aos pecuaristas, o
governo precisaria taxar a sociedade em igual montante.
Agraciado com o subsídio, o criador de boi seguiria recebendo um total de R$ 10/quilo (R$9 + R$1
de subsídio), e seu lucro permaneceria igual. Mas o preço da soja seria agora de R$4, e assim o
lucro desta atividade seria mais alto do que era antes, quando o preço era R$3. Sendo a lucratividade
da soja mais alta que antes e permanecendo inalterada a da criação de bois, surgiria de novo o
incentivo para que os criadores de gado se tornassem plantadores de soja. Mas o movimento de
ajuste não seria exatamente igual ao do exemplo sem intervenção do governo. Devido ao subsídio,
que incentivaria as pessoas a permanecerem na pecuária mesmo com uma demanda menor por carne,
o movimento de ajuste seria mais fraco.
No caso sem intervenção, logo após a transformação vegetariana, o setor de soja passaria a lucrar
R$1/quilo a mais que antes, enquanto o lucro na criação de bois sofreria uma queda de R$1/quilo. A
diferença de lucratividade setorial era, portanto, logo após a mudança, de R$2/quilo. Com o subsídio
de R$1/quilo, não haveria redução de lucro na pecuária e a diferença na lucratividade passaria a ser
apenas de R$1/quilo. Esta menor diferença de lucratividade setorial devido ao subsídio incitaria um
fluxo também menor de recursos produtivos da pecuária para a agricultura e, portanto, um ajuste final
menor na quantidade produzida de cada um. Em outras palavras, a quantidade de carne produzida
cairia menos e a de soja subiria menos do que no caso sem subsídio do governo. Os anseios de uma
sociedade com mais vegetarianos não seriam plenamente atendidos por não se ter permitido que o
sistema de preços funcionasse livremente.
Como ficariam os preços em um mundo com subsidio? Aos preços anteriores, de R$3 e R$ 10, os
lucros não seriam iguais: o lucro na criação de bois seria de R$1 a mais do que era antes, pois o
pecuarista estaria recebendo R$10 de preço + R$1 de subsídio, sem mudança de custo; e o lucro em
plantar soja seria o mesmo, pois não haveriam ocorrido mudanças nem no seu preço, nem em seu
custo. Então, alguns produtores de soja migrariam para a pecuária, aumentando a oferta de carne e
reduzindo a de soja, até que se reestabelecesse a condição de lucros iguais. Devido às mudanças na
oferta, o preço do quilo do boi seria um pouco inferior a R$10, e o do quilo da soja um pouco
superior a R$3.
E os lucros? O produtor da soja claramente teria lucro maior que antes: o preço da soja seria maior,
sem alteração no custo. Como após a migração entre setores a lucratividade de pecuaristas e
agricultores é a mesma, segue-se que o lucro dos criadores de gado também aumentaria com o
subsídio. Por outro lado, o contribuinte que financia o subsídio com impostos sairia perdendo. Na
verdade, se este contribuinte fosse um voraz comedor de carne, ele talvez não ficasse com subsídios
(pois a carne sem subsídio custaria mais, R$10, após os ajustes na produção). Mas se ele fosse
vegetariano, seguramente estaria pior, pois além dos impostos, ele precisaria também desembolsar
mais pelo quilo da soja.
Essas questões distributivas são importantes, mas o ponto principal éque, para a sociedade como um
todo, o subsídio seria ineficiente porque as quantidades produzidas de soja e carne não estariam de
acordo com a nova composição da sociedade, que agora abriga maior número de vegetarianos.
Dados os custos de se produzir carne e soja e as vontades de consumo das pessoas, o país estaria
produzindo soja de menos e carne demais. Aqueles que não se convertessem à dieta vegetariana
estariam comendo mais carne do que comeriam se considerassem na sua decisão os reais custos de
produção.
O subsídio polui o sinal do sistema de preços. O povo pediu menos boi e mais soja. O preço avisou,
mas o subsídio atrapalhou, emperrando o ajuste requerido por uma nova sociedade com mais
vegetarianos.
Um outro preço que transmite informações importantesé a taxa de câmbio. É verdade que ela oscila
demais, mais que o preço da carne, por motivos que os economistas não entendem direito, e isto
polui um pouco sua tarefa de transmitir informações relevantes para a sociedade. Mas em alguns
casos, seus movimentos têm origem clara.
Um país que de chofre se descobre possuidor de grande fonte de riquezas naturais vivencia uma
valorização de sua moeda. O motivo é simples: caso se descubram reservas e mais reservas de
petróleo em solo nacional, crescerão as exportações de petróleo e entrarão, como contrapartida,
muitos dólares no país. A entrada de muitos dólares, que os exportadores de petróleo trocam por
reais para poderem consumir outros bens aqui dentro, desvaloriza o dólar, o que é o mesmo que dizer
que fortalece nossa moeda. A taxa de câmbio passa, por exemplo, de R$/U$ 2,00 para R$/U$1,50.
Esta mudança no preço da moeda nacional não é boa nova para os exportadores, mas é boa notícia
para os importadores e para todos que consomem bens comprados no exterior. Ao descobrir
petróleo, o país fica mais rico, e sendo mais rico pode consumir mais bens produzidos no exterior. A
taxa de câmbio mais apreciada é reflexo de que podemos comprar mais lá fora com os recursos que
nos vêm da venda do petróleo.
O câmbio mais apreciado manda também um sinal para os produtores. Exportar bens torna-se menos
lucrativo, pois cada dólar agora será convertido em menor quantidade de reais e produzir bens que
podem ser importados de modo mais barato também deixa de ser uma boa. Por conseguinte, muitos
produtores optarão por mudar de ramo tentando fugir da concorrência dos importados e deixando de
exportar. Recursos produtivos serão então mobilizados para áreas onde tal concorrência não ocorre.
Por exemplo, o setor de serviços é menos sujeito a concorrência de importados dado que pouca gente
pega um avião para cortar o cabelo, ir a um restaurante ou ao teatro na Europa, e poucos mandam
seus filhos estudar no exterior. Assim, setores como os de corte de cabelo e educação receberão
maior afluxo de recursos produtivos após uma apreciação da moeda doméstica. De novo, as
mudanças não são imediatas, mas acabam ocorrendo com o passar do tempo.
Mas não é ruim uma queda das exportações nos setores não ligados ao petróleo? Vejamos. Parte do
que nós produzíamos agora não fabricamos mais, mas ainda assim continuamos consumindo, em troca
pelo petróleo que exportamos. Uma parte do pessoal que produzia bens para exportação agora está
exportando petróleo. Outra parte está produzindo educação e comida tailandesa, aumentando nossas
possibilidades de consumo. Em princípio, portanto, não há nada errado com a queda nas exportações
dos produtos não ligados ao petróleo, dado que agora podemos importar os bens que queremos,
vendendo petróleo. Da mesma maneira, um agraciado com o prêmio da loteria vai consumir mais e
provavelmente trabalhar menos. As exportações caem justamente porque estamos mais ricos. Tudo
intermediado pelo preço, neste caso apelidado de taxa de câmbio.
Há, contudo, alguns problemas decorrentes da descoberta do petróleo. O primeiro é que o exportador
vê sua renda se reduzir no curto prazo – o problema do pai do Woody Allen. O segundo é mais grave.
Como uma família que ganha na loteria e se vê corroída por disputas e desavenças, muitos países que
descobrem preciosos recursos naturais têm seu tecido social esgarçado e desenvolvem instituições
políticas que não fomentam o desenvolvimento. Isto não decorre diretamente da descoberta do
recurso natural, mas de como a sociedade e o sistema político domésticos se organizam para dele
tirar proveito.
Em suma, em uma economia de mercado, uma maior preferência por dietas vegetarianas na
população ou uma charge com o profeta Maomé desencadeiam alterações generalizadas em toda a
economia. O artífice dessa mudança é o sistema de preços, que avisa ao noivo que as outras pessoas
estão demandando mais ouro e aos produtores agrícolas que os consumidores querem mais soja e
menos boi.
O economista F.A.Hayek, ganhador do prêmio Nobel em 1974, disse uma vez que se os impactos do
sistema de preços fossem o resultado de uma deliberada criação humana e as pessoas entendessem
seus efeitos, o sistema de preços seria aclamado como uma das grandes invenções da humanidade.[4]
Mas às vezes deixar que a economia funcione livremente não é a melhor pedida. No exemplo deste
capítulo, a intervenção do governo subsidiando os criadores de boi só atrapalha o ajuste a uma nova
realidade. Como ficará claro nos capítulos 9 e 10, contudo, existem situações onde a intervenção
pública torna as coisas melhores para a sociedade. 
9. As árvores da Ilha de Páscoa e as ruas de Londres
 
No capítulo 2, nós estudamos o exemplo de um pasto público, onde todos os criadores de gado de
uma certa região podiam levar seus bezerros para engorda. Observamos que do ponto de vista de um
criador, não valia a pena poupar o pasto para o futuro, pois se os seus bois não comessem a grama
hoje, amanhã quando eles voltassem ao pasto, outros bois já a teriam comido. A economia feita por
um fazendeiro é facilmente apropriada pelos bezerros dos outros. Por conta disto, o pasto acaba
sendo excessivamente utilizado por todos e se deteriora rapidamente.
Esse exemplo está em muitos livros-texto de economia, inspirado pelo fato histórico concreto de
utilização excessiva de pastos públicos na Inglaterra. Mas hoje em dia, para muitos de nós, os pastos
não fazem mais parte do dia a dia. Os pastos foram substituídos pelas ruas, e ao invés de bois, vemos
carros. O mundo mudou. Todavia, o problema envolvendo a utilização excessiva de bens públicos
não mudou em nada.
Assim como os pastos, as ruas da cidade são um bem público, todos nós podemos usá-las. No
entanto, nem sempre é fácil utilizar as vias públicas. Quando saímos de carro, não raro nos
deparamos com engarrafamentos de trânsito causados pelo número excessivo de veículos nas vias de
tráfego. Cada motorista é como o criador de gado do exemplo anterior: sua decisão individual de
sair com o carro na rua causa prejuízo aos outros, ao contribuir um pouco mais para os
congestionamentos.
Ao nos defrontarmos com a escolha entre sair com o carro, andar a pé, utilizar o transporte coletivo,
ou ficar em casa, consideramos os impactos de cada alternativa sobre o tempo que levaremos para
chegar ao destino, em quão agradável será a viagem e também quanto ela nos custará. Contudo,
normalmente não levamos em conta, na nossa decisão, o fato de que ao colocarmos o nosso carro nas
ruas, estamos atrapalhando o trânsito para os outros e estamos aumentando a poluição do planeta.
No capítulo anterior, vimos que o sistema de preço reflete as demandas e ofertas de cada um. Mas se
nós não levamos em conta o impacto negativo das nossas decisões individuais sobre as outras
pessoas, os preços também não refletirão esses efeitos. Portanto, o sistema de preços de livre
mercado não nos levará à melhor alocação de recursos possível como sociedade quando houver
externalidades.
Se a minha análise dos custos e benefícios de sair com o carro não inclui a piora no trânsito que eu
mesmo estarei causando, há um custo importante, para a sociedade, que não está sendo considerado
na minha escolha individual. Como resultado, o sistema de preços não levará isso em conta e o
funcionamento do mercado, sem intervenções, levará a carros demais circulando pelas ruas. Por
outro lado, se nós levássemos em conta esta externalidade negativa que causamos sobre os outros, o
trânsito estaria em seu nível ideal sob o ponto de vista da sociedade.
O meu carro na rua atrapalha um pouquinho o trânsito para todos, o que significa que as pessoas
provavelmente estariam dispostas a me pagar certa quantia para que eu não saísse de carro. É muito
difícil calcular quanto cada pessoa estaria disposta a pagar, mas suponhamos que as frações de
centavos de cada um resultem em um total de 5 reais. Então, do ponto de vista da sociedade, apenas
se eu estivesse disposto a pagar 5 reais para sair com o meu carro, eu deveria fazê-lo.Uma maneira de implementar essa transferência de mim para a sociedade seria através da
implementação de um imposto. O governo poderia, por exemplo, cobrar 5 reais de mim e distribuir
para as outras pessoas a fim de compensá-las pelo infortúnio adicional causado pelo meu carro.
Mesmo com a imposição desta taxação, ainda veríamos muitos carros nas ruas, mas certamente não
tantos quantos vemos hoje: sairiam nas ruas apenas aqueles dispostos a compensar a sociedade pelo
seu impacto negativo no trânsito e na poluição. Com a imposição dessa taxação, o número de carros
circulando seria o ideal sob o ponto de vista da sociedade.
Em um caso como este, onde se caracteriza uma externalidade negativa da ação privada, a
interferência do governo é crucial para que o sistema de preços envie o sinal correto para as
pessoas. Se as leis conseguem fazer com que incorporemos os custos das nossas decisões sobre a
sociedade (que os economistas chamam de custo social), nossa escolha final levará em consideração
o impacto das nossas ações sobre os outros e a externalidade deixa de ser verdadeiramente um
problema.
Na Londres do final do século XX, o congestionamento das ruas era um dos principais problemas
enfrentados pelos moradores, de acordo com as pesquisas de opinião. A velocidade média dos
carros nos horários de pico não era maior que a das carroças no início do século!
Em fevereiro de 2003, foi introduzida em Londres uma “taxa do congestionamento”. Para sair nas
ruas em um dia de semana na cidade era necessário pagar uma taxa de 5 libras esterlinas por dia.
Este valor foi aumentado dois anos depois para 8 libras. As consequências? O trânsito se reduziu, há
mais bicicletas e ônibus nas ruas, e menos carros particulares. Só sai de carro para o trabalho quem
prefere pagar a taxa de 8 libras ao invés de utilizar o transporte coletivo ou a bicicleta.[5] A medida,
quem diria, tem o apoio da maioria dos moradores.
Ainda assim, cobrar, fiscalizar e multar os motoristas gera muitos custos. Estimativas econômicas
dos benefícios da “taxa do congestionamento” (primariamente associados com menos tempo no
trânsito e maior confiabilidade no sistema de transporte) indicam que os custos administrativos
equivalem a mais de dois terços dos benefícios. Isto mostra que mesmo as intervenções
governamentais que em princípio parecem fazer sentido não saem de graça. Com efeito, os custos da
implementação de políticas públicas podem ser altos demais relativamente a seu benefício.
Voltaremos a esta questão em capítulo futuro.
O problema da poluição é semelhante ao do congestionamento. Se não houver leis regulando a
poluição emitida das chaminés das fábricas e dos escapamentos dos automóveis, os donos de
fábricas e automóveis não pagarão o custo social da poluição. Assim, suas escolhas não refletirão
completamente os custos da poluição, e teremos cidades mais poluídas que a sociedade escolheria –
fumaça demais apagando as estrelas. Porque o custo de poluir para quem polui é menor que o custo
da poluição para a sociedade, é necessário haver leis regulando a emissão de gases poluentes.
Qual seria o nível ideal de poluição? Por um lado, poluição zero seria excelente. Mas por outro, isso
significaria que não andaríamos de carro, não viajaríamos de avião, não utilizaríamos nenhum bem
cuja produção causa poluição no ar, etc. Então, dadas as restrições tecnológicas de hoje, a poluição
que queremos como sociedade não é zero. Em termos teóricos, uma ação que causa poluição deve ser
tomada se (e somente se) o poluidor estiver disposto a pagar mais do que a sociedade demandaria
para aceitar tal aumento na poluição. O nível de poluição ideal é aquele que resulta de decisões
individuais que seguem essa regra.
O problema de fundo é que o ar é um bem público. Se houvesse um mercado para o ar, se tivéssemos
que comprar o ar para respirarmos e se só fôssemos capazes de poluir o nosso próprio ar, não
haveria problema nem dilema. O sistema de preços incorporaria as preferências de cada um, e o
preço dos ares de diversas qualidades refletiria as demandas das pessoas e a capacidade tecnológica
de controlar a poluição. O nível de poluição neste mundo fictício seria o ideal. Não caberia ao
governo determinar o nível de poluição, pois custos e benefícios de poluir recairiam inteiramente
sobre os indivíduos. No máximo, o governo poderia transferir renda aos pobres para que eles
tivessem a opção de comprar um ar de melhor qualidade.
Claramente, esta solução de mercado para o problema do ar é absolutamente impossível. Todos nós
respiramos o mesmo ar, ele não tem dono, não é possível comercializá-lo como os outros bens. Não
é possível evitar que a fumaça do cigarro que eu fumo na rua diminua a qualidade do ar de outro
transeunte que sofre de asma. Tampouco este transeunte tem como demandar de mim uma indenização
pelo mal que lhe causo.
O ar, assim como as ruas de Londres e como os pastos abertos, é um bem público e, portanto, a
sociedade deve ter leis que limitem a poluição a fim de preservar sua qualidade. A diferença entre
público e privado aqui é crucial, pois ao mesmo tempo em que faz sentido proibir o fumo em
elevadores e locais de trabalho, não faz sentido proibir um indivíduo de fumar trancado em seu
apartamento. No segundo caso, os custos são todos privados.
A maneira ideal de se regular a poluição é fazer com que as pessoas ou empresas paguem pelos
custos sociais da poluição que geram. Se não há leis antipoluição, o preço de poluir é zero para
quem polui. Como ocorre com os outros bens na economia, quando se estabelece um preço positivo
para a poluição, a “demanda” por poluição diminui e terminamos com um ar de melhor qualidade.
A idéia de se pagar pela poluição não é um desvario acadêmico. Em muitos países desenvolvidos, o
mercado de créditos de carbono já é uma realidade, ainda que incipiente. Nesses casos, o governo
fixa um nível máximo de emissão de poluentes. Uma empresa que descobre meios de produzir menos
agressivos ao meio ambiente pode vender parte de sua “cota de poluição” para outra empresa. Esse
mecanismo gera incentivos para empresas buscarem meios de produção menos poluentes, e faz com
que a poluição seja gerada pelas empresas que estão dispostas a pagar mais pelo direito de poluir.
Essas empresas serão aquelas que não têm alternativas economicamente viáveis que lhe permitam
poluir menos - e, portanto, escolhem pagar para ter o direito de poluir mais - e cujos consumidores
estão dispostos a pagar mais caro pelos produtos (pois os custos de produção, agora acrescidos da
necessidade de comprar direitos de poluir, influenciam os preços finais dos bens).
Na maior parte dos países, ainda não há mercado de créditos de carbonos, mas as empresas são
obrigadas por lei a controlar a emissão de poluição. Por exemplo, a água que sai das fábricas deve
ser tratada e devolvida aos rios obedecendo a critérios técnicos de qualidade. Esta intervenção é
benéfica para a sociedade. Contudo, a criação do mercado de créditos de poluição é ainda melhor
porque quando existe esse mercado, a alocação final destes créditos -- isto é, quanto cada empresa
poderá poluir -- é mais eficiente. Eficiente no sentido de que as empresas com mais facilidade de
controlar a emissão de poluentes poluirão menos que as com maiores dificuldades de implantar
sistemas antipoluentes, sem que isto implique em poluição total maior (lembre-se, a poluição total
está fixa por lei, os créditos apenas realocam os direitos de poluir entre os poluidores).
Note que na ausência dessas leis, as empresas que escolhessem não levar em conta esses custos
sociais da poluição teriam vantagens sobre empresas preocupadas com a preservação do meio
ambiente, porque aquelas, não gastando recursos visando reduzir a poluição, poderiam vender seus
produtos a preços menores. Este é um caso onde a concorrência pode ter efeitos colaterais
indesejáveis. A concorrência pressiona empresas a reduzir seus custos, o que é muito bom em geral,
pois se produzimos mais com menos recursos, a sociedade, como um todo, está maisrica. Mas a
concorrência não força as empresas a reduzirem custos que não são pagos por elas, mas sim por toda
a sociedade, como é o caso da poluição. Ao contrário, controlar a poluição custa caro para a
empresa, que não embolsa plenamente os benefícios que esta ação gera para a sociedade, mas vê-se
obrigada a elevar o preço do seu produto final, o que a torna menos competitiva.
De fato, muitos problemas ligados ao consumo excessivo de recursos naturais poderiam ser
resolvidos se eles fossem devidamente “precificados”. Os problemas de excessiva utilização
(desperdício) de água, de devastação dos pastos abertos no passado, de muita poluição apagando as
estrelas, de muito tráfego, etc, podem ser sempre vistos como problemas de ausência de preços que
reflitam verdadeiramente os custos.
Preços muito baixos afetam os incentivos das pessoas de maneira a gerar utilização excessiva de um
dado recurso. O caso da água é um exemplo atual importante. Se os governos mundiais estão
realmente muito preocupados com a questão da provável falta de água no futuro não muito longínquo,
o primeiro passo para equacionar o problema seria elevar seu preço (que é regulado pelo Estado)
para os consumidores – tomando as devidas medidas para minimizar o impacto desse aumento de
preço sobre os pobres. Esta mudança de preço levaria as pessoas a tomarem banhos mais curtos (se
as contas fossem todas individualizadas), incitaria investimentos visando minimizar desperdícios na
indústria e na lavoura, e aumentaria os incentivos de um dos autores deste livro a fechar a torneira
enquanto ensaboa a louça de casa. O resultado final: maior preservação de água potável.
De fato, a história atesta que o adiamento de medidas visando preservar bens públicos pode
realmente ter consequências funestas.
A Ilha de Páscoa, situada no oceano Pacífico e descoberta por um explorador holandês em 1722, é
famosa por suas imensas e aterrorizantes estátuas de pedra, e já foi lar de uma grande sociedade de
origem polinésia. Quando descoberta pelos europeus, ela abrigava apenas 2000 habitantes, mas em
seu entorno encontravam-se um total 200 estátuas, evidência clara de um passado mais glorioso que o
presente. O que aconteceu com os habitantes da Ilha de Páscoa? O que causou sua débâcle?
Teorias recentes argumentam que o esgotamento das árvores na Ilha de Páscoa foi fundamental para
explicar o colapso daquela civilização. O desaparecimento das árvores tornou impossível a
construção de boas embarcações de longo alcance e assim levou ao fim da caça de peixes grandes de
alto mar (golfinhos); dificultou o aquecimento no inverno e a construção de novas casas; levou a
enorme diminuição da quantidade de pássaros disponíveis que antes frequentavam a ilha e haviam
sido fonte importante de alimentos; e, finalmente, a ausência de árvores comprometeu a qualidade do
solo e a agricultura.[6]
Árvores eram demandadas na ilha para o aquecimento, construção de embarcações e casas, mas
também para a confecção das tais estátuas, paradoxalmente símbolo da pujança daquela civilização.
As enormes pedras de que eram constituídas as estátuas não eram viáveis de serem transportadas sem
grande número animais de carga, ali ausentes. Restava como opção a técnica de transportá-las via
rolagem sobre os troncos de madeira, muitos troncos de madeira. Além disto, para erguê-las eram
necessárias grandes quantidades de cordas, feitas a partir das árvores da região, espécies
semelhantes à palmeira moderna.
Mas as florestas eram um bem público. Ninguém era dono das árvores. Se a madeira tivesse um dono
e fosse negociada em um mercado de madeiras na Ilha de Páscoa, o sistema de preços refletiria os
aumentos na demanda e a escassez da oferta. Um frenesi de construção de estátuas, neste caso,
acarretaria em elevação do preço da madeira, desencorajando adicionais construções de estátuas. O
aumento do preço refrearia a demanda por madeira (para seus diversos fins), ao mesmo tempo em
que incitaria a plantação de novas árvores pelos vendedores de madeira, capitalistas em busca de
maiores lucros.
Em outras palavras, o preço mais alto sinalizaria escassez, e as forças de oferta e demanda
impediriam o desaparecimento das árvores. Do lado da demanda, os diversos clãs, querendo provar
sua superioridade através de estátuas gigantes como nos relatam os historiadores, buscariam outros
modos mais baratos de autoafirmação. Do lado da oferta, o preço elevado da madeira incitaria
alguns nativos a investirem em técnicas de renovação florestal. É possível até que o repique do preço
da madeira levasse ao surgimento de uma nova profissão: o técnico em plantio de árvores da Ilha de
Páscoa.
O esgotamento precoce da floresta poderia até ter sido evitado na presença de direitos de
propriedade e um sistema de preços, mas mesmo neste caso árvores demais teriam sido cortadas sob
a perspectiva da sociedade. O problema é de novo a presença de uma externalidade negativa
associada à decisão individual de derrubar árvores. Menos árvores significa menor quantidade de
pássaros e, conseqüentemente, menor quantidade de alimento (ovos e aves) para todos. Uma árvore a
menos também deteriora a qualidade do solo (por erosão) em outros pontos da ilha, prejudicando
todos e diminuindo a produtividade da atividade agrícola. Nenhum destes dois problemas seria
automaticamente resolvido pelo mercado porque estes custos do desmatamento incidiriam
majoritariamente sobre outras pessoas, não sobre o dono das árvores. Por conta disso, direitos de
propriedades sobre as árvores reduziriam a devastação das florestas, mas seria necessária
intervenção do governo para que a preservação do meio-ambiente se desse da maneira socialmente
ideal.
Apesar da devastação das florestas prejudicar toda a sociedade, faltaram os incentivos para cada
indivíduo preservar o meio-ambiente. Consequentemente, faltaram meios de sobrevivência e
alimentos para os habitantes. Sobraram apenas as estátuas assustadoras pontilhando o litoral da ilha.
Até aqui, nossos exemplos têm se centrado nas externalidades negativas, mas como mencionamos no
capítulo 2, há também as externalidades positivas. Nos voltemos agora a alguns casos desta natureza.
Em setembro de 1928, o pesquisador Alexander Fleming estava realizando experimentos em seu
bagunçado laboratório, quando notou que um certo fungo parecia não permitir o crescimento de
determinadas bactérias. Fleming passou então a estudar o efeito bactericida do tal fungo e percebeu
que ele agia contra outras tantas bactérias. Esta descoberta foi a chave para a obtenção da penicilina,
anos depois, por dois outros pesquisadores, Ernst Boris Chain e Howard Walter Florey. Fleming,
Chain e Florey foram agraciados com o Prêmio Nobel em 1945. A descoberta da penicilina
possibilitou a produção de antibióticos por empresas de medicamentos no mundo inteiro. Difícil
pensar em externalidade positiva maior do que esta.
De fato, a parte mais difícil e mais custosa da produção de remédios é a pesquisa necessária para
inventá-lo. Produzi-lo depois de descoberta sua fórmula é relativamente fácil. O mesmo vale para
programas de computador e para músicas. Difícil é criá-los, reproduzi-los em CD’s é bem mais fácil.
E isto gera um problema: o inventor pode não se apropriar inteiramente dos ganhos gerados pela sua
invenção porque é demasiadamente fácil imitá-la uma vez descoberta a fórmula, ou inventada a
música. A difusão da pirataria é um exemplo concreto deste problema.
Se imitar é fácil, o inventor arca sozinho com o enorme custo envolvido na fase de pesquisa, mas tem
que dividir o benefício com outros pegando carona na sua invenção. É verdade que Fleming, Chain e
Florey poderiam passar a produzir eles mesmos remédios utilizando a penicilina, mas isso não
resolveria em nada o problema mencionado. Ao perceberem os efeitos antibacterianos do novo
medicamento, outros não teriam muita dificuldade em reproduzir a fórmula, diminuindo brutalmente a
rentabilidade da invenção para o inventor.
A invenção é um caso clássico de externalidade positiva. Os benefíciosque ela gera para a
sociedade são grandes, mas o inventor tem dificuldade de se apropriar destes benefícios
privadamente. Em vista disto, a quantidade de pesquisa realizada tenderá a ser inferior à ideal, sob o
ponto de vista da sociedade.
Mas o problema pode ser diminuído com a intervenção do governo. Assim como atos que geram
externalidades negativas devem ser tornados mais custosos pela lei, atos que geram externalidades
positivas devem ser estimulados via políticas públicas adequadas. Por exemplo, uma maneira muito
usada no passado para incitar a pesquisa era estabelecer prêmios para cientistas que apresentassem
invenções, descobertas ou resoluções de problemas intrigantes. Foi, por exemplo, em um destes
concursos que Newton começou a desenvolver o cálculo matemático.
Outro mecanismo, mais usado correntemente, que incrementa os incentivos a inovar são as patentes,
instrumento legal adotado pelos governos que visa garantir o monopólio temporário da produção de
um bem para quem o concebe. Quando a lei garante que uma única pessoa ou empresa tem o direito
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ernst_Boris_Chain
http://pt.wikipedia.org/wiki/Howard_Walter_Florey
de comercializar uma determinada descoberta por algum tempo, esta pessoa ou empresa arrebanhará
parte significativa dos lucros ou benefícios gerados pela tal descoberta e, portanto, terá mais
incentivos para engajar-se na pesquisa de novos produtos e invenções adicionais. Ela escolherá
dedicar mais tempo a inventar.
Mas qual deve ser a duração de uma patente? Se ela for muito baixa, o inventor se beneficiará muito
pouco de seu monopólio sobre os frutos da invenção, o que diminui seus incentivos a pesquisar. Já se
ela for muito longa, os ganhos da invenção demorarão muito tempo para se alastrar pela sociedade,
pois a quantidade vendida, digamos de um novo remédio, será restrita (e o preço elevado) enquanto
uma pessoa ou empresa detiver o monopólio da fabricação. A duração da patente deve ser, portanto,
calibrada de maneira a incentivar o inventor sem, contudo, represar demais os ganhos da invenção
para a sociedade.
Alexander Fleming não patenteou sua descoberta, preferiu deixá-la ao alcance de todos para que
mais pesquisadores pudessem trabalhar para torná-la comercialmente viável, e mais pessoas
pudessem dela se beneficiar. Ainda assim, a generosidade de Fleming por si só não seria suficiente
para a descoberta da penicilina. Fleming era médico e professor do St Mary’s Hospital em Londres,
e fazer pesquisa era parte de seu trabalho, financiado com dinheiro público. Impostos recolhidos dos
contribuintes ingleses pagavam o salário de Fleming que, além de tratar de seus pacientes e ensinar
seus alunos, pesquisava novas formas de curar os doentes. O mesmo vale para Roger Bacon,
descobridor da pólvora e professor em Oxford, e para Giovanni Di Dondi, que além de ter inventado
o relógio mecânico era professor de astronomia na Universidade de Pádua. De fato, o primeiro
inventor conhecido da humanidade, um egípcio chamado Imhotep que foi o construtor da primeira
pirâmide e viveu por volta de 2650 a.c., era um funcionário público.
Poucas das descobertas que beneficiam a sociedade ocorrem pela simples satisfação altruísta de se
inventar algo que possa beneficiar milhares de outras pessoas – ou pelo prazer de estudar fungos e
bactérias. Não é por caridade que centenas de laboratórios no mundo inteiro contratam e pagam bem
pesquisadores que lutam para descobrir a cura para a Aids. Eles o fazem movidos pelo desejo de
auferir belos lucros. O altruísmo sozinho, em que pese sua altivez e nobreza, é menos potente para
fazer a humanidade progredir cientificamente que políticas públicas que estimulem as inovações,
como um sistema de patentes que funcione bem.
Após o advento da patente, que data do século XVI, mas realmente “pegou” no século XIX, muitas
pesquisas e invenções específicas passaram a ser tocadas sem a intervenção direta do governo, pelas
empresas que delas se beneficiam, como os laboratórios farmacêuticos. Mas existe também um tipo
de pesquisa, chamada de pesquisa básica, que é mãe de todas as outras e não pode ser apropriada
por uma empresa só, dado que ela traz benefícios potenciais para um espectro muito amplo de
setores. A descoberta de um novo elemento químico, ou de uma nova propriedade física de algum
material, são exemplos claros de pesquisa básica. Mas como é difícil patentear este tipo de pesquisa,
assim como é difícil patentear, por exemplo, uma nova equação matemática, surge então um
problema: quem arcará com os custos deste tipo de pesquisa?
Como não é possível apropriar-se plenamente da invenção, a melhor escolha sob o ponto de vista de
um único indivíduo é esperar que outros invistam em inventar e depois pegar carona na descoberta
sem gastar dinheiro e tempo. Todos raciocinando assim, não se inventa nada, não se descobre uma
nova fórmula química. É por conta disto que os governos modernos seguem utilizando recursos
públicos para financiar a pesquisa científica básica, pagar salários aos pesquisadores, construir
laboratórios e promover conferências.
Além das externalidades e dos bens públicos, há outros casos em que a intervenção do governo pode
ser benéfica. Um deles é o caso dos monopólios naturais. Mas o que é um monopólio natural, que
problema ele gera, e o que o governo pode fazer?
O suprimento de energia elétrica para a população é um exemplo clássico de monopólio natural:
custa muito caro construir e manter duas ou mais redes elétricas para levar energia das usinas para as
casas e empresas. Ter apenas um fornecedor de energia para uma determinada região é muito mais
barato para a sociedade, e por isto faz mais sentido que seja assim. Mais precisamente, nos
monopólios naturais, os custos de produção decrescem com o aumento da quantidade ofertada e,
assim, há pouco espaço para mais de um fornecedor. Como produzir pouco sai muito caro, ter firmas
concorrendo é ineficiente.
Entretanto, a não existência de uma concorrência acirrada traz custos para a sociedade. A empresa
provedora de eletricidade, tendo o monopólio do mercado, escolherá preços muito superiores aos
seus custos de produção. Como vimos no capítulo 3, ela assim procede porque um aumento do preço
leva apenas a uma pequena redução em suas vendas quando o nível de concorrência é baixo.
E por que isso é um problema? Seria por que o consumidor tem que pagar mais pela sua
eletricidade? Não. Sob o ponto de vista da sociedade como um todo, esse não é o real custo do
monopólio, pois a perda do consumidor com o preço mais alto é o ganho da empresa. Se fosse
apenas este o problema, a solução seria taxar o lucro das empresas e redistribui-lo aos
consumidores.
O verdadeiro problema é que, do ponto de vista da sociedade, o consumo de energia será baixo
demais. Idealmente, o consumo de energia deveria ser tal que o benefício extraído de seu uso fosse
igual ao custo de fornecê-la. Isso aconteceria se as pessoas, ao escolher seu consumo, comparassem
o beneficio do uso de eletricidade com o custo de produzir e distribui-la. Na verdade, o consumidor
compara esse beneficio com o preço que ele paga. O problema é que o preço que ele paga no caso de
monopólio é muito superior ao custo de produção. Portanto, o nível de consumo que ele escolhe é
baixo demais.
Já quando há concorrência acirrada, o preço de um bem ou serviço é próximo de seu custo.
Conseqüentemente, o nível de produção e consumo é o ideal.
Por conta dessa ineficiência do monopólio, cabe ao governo regular as companhias que agem em
mercados onde se configura uma situação de monopólio natural – como telefonia, suprimento de
eletricidade e de água. Isto não significa que o governo deva ser necessariamente o dono destas
companhias: pode ser melhor deixar a produção e distribuição a cargo de empresas que visam o
lucro, e simplesmente monitorar as atividades das empresas através de agências estatais reguladoras
que determinam, por exemplo, os preços dos serviços.
Outro fator que atrapalha o funcionamento dos mercados é o que os economistasdenominam de
assimetria de informação entre as partes envolvidas em uma certa transação.
Por exemplo, para um comprador é muito difícil avaliar a qualidade dos automóveis usados à venda.
Devido a isto, o comprador não está disposto a pagar por um bom carro usado tanto quanto estaria se
tivesse informação precisa sobre sua qualidade. Do outro lado da transação, o dono de um bom carro
usado possui melhor informação sobre seu automóvel e não está disposto a vendê-lo a um preço
muito baixo.
Esta diferença de informação entre compradores e vendedores sobre a qualidade do carro é um
problema sério porque apesar do vendedor do carro bom não ter incentivos a vendê-lo a um preço
baixo, o vendedor do carro ruim tem. Vejamos um exemplo numérico: suponha que o dono de um bom
carro usado queira vendê-lo por R$ 10.000 ou mais e que o dono de um usado ruim queira vendê-lo
por R$ 9.000 ou mais. Suponha também que eu esteja disposto a pagar até R$ 10.500 por um bom
usado, mas apenas R$ 8.500 pelo carro ruim. Seria então desejável que eu comprasse o carro bom
por algum preço entre R$ 10.000 e R$ 10.500 – eu e o vendedor ficaríamos ambos felizes. O
problema é que eu não tenho como saber se o carro é realmente bom. Não tendo certeza, considero,
por exemplo, que a probabilidade de um desses carros ser bom ou ruim é de 50% e, portanto estou
disposto a pagar no máximo R$ 9.500 (50% x R$ 8.500 + 50% x R$ 10.500) por ele.
Mas por este preço, o vendedor do carro bom não quer vendê-lo. Então, eu sei que se alguém quer
vender o carro a esse preço, é porque o carro é ruim, então eu não vou querer comprá-lo. Portanto,
não sai negócio, apesar de existir uma troca que agradaria ambas as partes (um carro bom por R$
10.250). O mercado não funcionou.
Há muitos outros casos onde uma das partes de um negócio está mais bem informada que a outra. Por
exemplo, bancos gostariam de emprestar dinheiro apenas a bons pagadores, mas o problema é que
quem vai ao banco em busca de empréstimo sabe mais do que o banco sobre a real possibilidade (e
disposição) de honrar o empréstimo. Não adianta o gerente perguntar “escuta, você pretende repagar
este dinheiro?”. E não adianta porque a resposta tanto do bom, como do mau pagador, seria sempre a
mesma: “sim”. Portanto, a resposta é incapaz de diferenciar bom de mau pagador.
A base do problema está no fato de o banco conhecer menos o devedor do que o próprio devedor
conhece a si mesmo. O resultado disto é que os bons devedores – que não dão calote, mas pagam o
juro mais alto porque não conseguem se diferenciar – são os prejudicados pela existência de maus
devedores não facilmente identificáveis. Este tipo de problema é chamado em economia de seleção
adversa. O nome é intuitivo: porque existem maus pagadores, os juros são mais altos, mas juros mais
altos “selecionam” adversamente aqueles que já são mais propensos a não-repagar, e afastam os bons
pagadores (similarmente ao que ocorre no mercado de carros usados).
Iniciativas como o cadastro positivo de bons pagadores ou o registro negativo de maus pagadores
ajudam a reduzir este problema de assimetria de informação. Quanto mais informação o banco tem
sobre as pessoas, mais barato será o preço do empréstimo para os bons pagadores, e mais difícil
será obter um empréstimo para aqueles que não pagaram anteriormente. Um sistema que registra todo
o histórico de transações financeiras dos consumidores ajuda aqueles que pagaram todas as suas
dívidas no passado – assim como uma hipotética possibilidade de se avaliar com perfeição o estado
dos carros usados beneficiaria o dono do bom automóvel.
Problema similar ocorre no mercado de seguro de saúde. O candidato a segurado conhece muito mais
seu estado de saúde e seus hábitos cotidianos do que o segurador pode inferir com um punhado de
questões. Por conta disto, o plano de saúde é caro para os que se sabem saudáveis, e barato para os
que se sabem mais propensos a ter problemas de saúde. Seleção adversa na veia. O mercado de
seguros não desmorona em face da seleção adversa porque mesmo as pessoas saudáveis escolhem se
segurar de modo a evitar grandes quedas de renda associadas ao aparecimento de doenças de custoso
tratamento, doenças que, aliás, são muitas vezes imprevisíveis.
Outro problema relativo à assimetria de informação ocorre após fechado um tipo de negócio. Por
exemplo, um dono de automóvel tem menos incentivos a cuidar bem do seu carro após comprar uma
apólice de seguro. Para que se aborrecer e gastar dinheiro verificando o estado do extintor de
incêndio, ou estacionando em estacionamento pago quando se sai à noite, se a seguradora é quem
arcará com os custos de um carro que pega fogo ou é roubado na madrugada? E o gerente da
seguradora sabe que seus incentivos o levarão a não tomar todos os cuidados possíveis. Uma
maneira que o próprio mercado encontrou de minimizar este tipo de problema é via pagamento de
franquia. Se o segurado bate o carro, ele precisa arcar com parte dos gastos, o que aumenta seus
incentivos para dirigir prudentemente.
No capítulo 5, nos deparamos com as dificuldades daqueles que perdem seus empregos por conta de
avanços tecnológicos – o problema do pai do Woody Allen. Para se proteger desse risco, as pessoas
gostariam de comprar seguros contra o desemprego. Mas não existem seguradoras vendendo este tipo
de apólice. Por quê? Como o trabalhador conhece suas chances de demissão muito melhor que a
seguradora, há de novo um problema de seleção adversa, ainda mais intenso que no caso do seguro
saúde. Políticas públicas como o salário desemprego temporário e programas de re-treinamento são
maneiras encontradas para se contornar a inexistência deste mercado.
Como vimos, o mercado e o sistema de preços têm a função de agregar informações sobre o valor
atribuído pela sociedade a um bem e seu custo de produção. Casos importantes em que o mercado
falha nesta tarefa são: (1) externalidades, (2) bens públicos, (3) monopólios naturais e (4) assimetria
de informação.
As pessoas normalmente não levam em conta nas suas escolhas todos os custos associados às
externalidades de seus atos. Na ausência de leis, a utilização dos bens públicos (o ar, as ruas e as
florestas) e as ações que geram externalidades negativas ultrapassam o nível desejado pela
sociedade - assim como faltarão incentivos para as pessoas tomarem decisões que geram
externalidades positivas (caso da pesquisa básica). Empresas monopolistas cobrarão um preço pelo
seu produto que levará a um consumo menor que o desejado pela sociedade. Negócios que seriam
fechados não o serão por conta de assimetrias de informação.
As intervenções do governo na economia devem se basear nestas falhas de mercado. Multas para
quem dirige perigosamente e leis que nos proíbem de roubar o que pertence aos outros incentivam as
pessoas a não tomarem ações que prejudicam os demais – assim como as medidas que visam reduzir
a poluição, o trânsito e a devastação das florestas. Faz sentido também gastar dinheiro com pesquisa
básica e com a organização de um cadastro positivo de devedores por parte do Banco Central.
Mas são somente estas as razões que justificam a intervenção do governo na economia? E os pobres?
E a redistribuição de renda? De fato, este é um assunto extremamente importante e o próximo
capítulo será dedicado exclusivamente a esta questão.
10. O mercado das almas
 
Robin Hood, lendário fora da lei da Inglaterra do século XIII, roubava dos ricos para dar aos pobres
e era por isso chamado de “Príncipe dos Ladrões”. Alguns séculos depois, ou mais precisamente em
meados do século XIX, a função desempenhada pelo famoso herói inglês começou a tornar-se,
gradativamente, uma incumbência de governos democraticamente instituídos. Sociedades do pós-
iluminismo legalizaram, ou institucionalizaram, o medieval Robin Hood, implementando políticas de
transferências de recursos dos ricos para os pobres.
A lenda de Robin Hood toca em um aspecto importante da questão da redistribuição de renda. Por um
lado, nos soa correto, humano e eticamente elogiável ajudar osmais necessitados, nos parece justo
tirar dos ricos para dar aos pobres. Por outro lado, a apropriação de parte da renda das pessoas –
seja entrando e saindo soturnamente de castelos à noite e assaltando carruagens de passagem pela
floresta de Sherwood, ou obrigando-os a pagar impostos – tem um caráter bastante diferente de
doações voluntárias e nos faz pensar até que ponto é correto tirar dos mais bem sucedidos aquilo que
lhes pertence para dar aos mais pobres.
Se um grupo de pessoas na sociedade é obrigado a ceder parte de sua renda, via pagamento de
impostos, para financiar transferência de renda aos mais pobres, há uma interferência do Estado na
economia que precisa ser justificada.
No capítulo anterior, nós estudamos as principais razões para o governo intervir na economia:
externalidades, bens públicos, monopólios naturais e assimetrias de informação. Mas nenhuma destas
falhas de mercado parece tocar o cerne da questão da redistribuição de renda. Por outro lado, dada a
desigualdade de renda que observamos no mundo, transferir renda para os mais pobres soa como
uma interferência do público no privado socialmente desejável.
Se políticas para combater a desigualdade social são bem vindas, está faltando alguma coisa na
nossa lista de argumentos justificando intervenções do Estado na economia. Mas o quê exatamente?
O principal argumento pró-redistribuição se baseia em um critério de justiça logicamente poderoso:
o de que as políticas públicas ideais para uma sociedade são aquelas que seriam escolhidas pelos
seus indivíduos antes que eles soubessem com precisão sua condição como membro de determinada
sociedade. Usando a definição de justiça proposta pelo economista John Harsanyi e pelo filósofo
John Rawls, políticas públicas justas, ou ideais para a sociedade, são aquelas escolhidas sob um véu
de ignorância de quem venhamos a ser nesta sociedade, são as que seriam tomadas em um estágio
prévio idealizado onde nossa posição futura como membro desta sociedade ainda nos seria
desconhecida.
Quando escolhemos regras sociais com este método, elas se tornam isentas da influência de
interesses particulares que são frutos da posição social que cada um ocupa na sociedade.
Exemplifiquemos.
Imagine que você está destinado a nascer na África do Sul antes do fim do regime de segregação
racial. Você sabe com certeza que será um membro daquela sociedade, só não sabe ainda, devido ao
tal véu de ignorância, qual será a cor da sua pele. Com esta incerteza, você precisa fazer uma opção
a respeito do tipo de contrato social que vigorará em seu país. São duas as opções: uma constituição
que preconiza a igualdade de tratamento, independente da cor da pele, ou uma que institui legalmente
o Apartheid. Lembre-se: você ainda não sabe se será negro ou branco. O que você prefere?
Agora, imagine que você está predestinado a nascer no Brasil. Mas não sabe se em uma família rica
dos Jardins, em São Paulo, que será capaz de colocá-lo nas melhores escolas e cuidará com zelo da
sua saúde, ou em um vilarejo do interior do Piauí, onde se faz uma refeição por dia e não se encontra
qualquer espécie de trabalho digno. Tendo uma chance de 50% de nascer em uma das duas
localidades, você votaria, antes de nascer e sob o véu da ignorância, a favor ou contra programas de
redistribuição de renda que repassam recursos das famílias dos Jardins para as do interior do Piauí?
De acordo com a definição de justiça explicada anteriormente, as respostas a essas questões são as
políticas públicas ideais para cada um desses casos, pois consideram as nossas preferências isentas
de nossas posições sociais.
No mundo em que vivemos, as pessoas nascem em condições iniciais extremamente diferentes uma
das outras. Os autores deste livro completaram seu doutorado em economia e hoje são professores
universitários, mas isto teria sido praticamente impossível se tivéssemos nascido em um lar pobre
onde as crianças deixam a escola muito cedo para trabalhar, não recebem alimentação apropriada,
são pouco motivadas a estudar, e estão mais sujeitas a contrair enfermidades de todos os tipos.
Por conta das disparidades nas condições iniciais, se não soubéssemos onde iríamos nascer,
certamente apoiaríamos um programa de transferência de renda para os pobres. Dizendo de outra
maneira, se pudéssemos fazer escolhas antes de nascer, sob o véu de ignorância de quem seríamos
posteriormente na sociedade, nós negociaríamos com outras almas, na mesma situação de incerteza,
contratos que transfeririam recursos de quem terminasse nascendo rico para os que viessem a nascer
pobres. Estes contratos seriam como seguros contra a falta de oportunidades.
Seguros são importantes para nos proteger de riscos. Tomemos os seguros contra roubo de
automóveis, por exemplo. A perda financeira decorrente do furto de um automóvel é grande. Para se
proteger deste risco, os donos dos carros pagam uma taxa para a seguradora e, se o carro for
roubado, recebem da empresa que vendeu o seguro um montante similar ao valor do carro. O seguro
não anula as perdas dos donos de carros com os furtos, apenas distribui estes riscos entre todos os
motoristas. Quando um segurado é roubado, é o dinheiro que os outros pagam à seguradora que vai
ser usado para financiar o carro novo. Obviamente, se todos, ou muitos, forem simultaneamente
roubados, a seguradora enfrentará problemas sérios. Mas isto em geral não ocorre porque as
seguradoras têm um grande número de clientes e, portanto, enquanto uns serão furtados, muitos outros
não serão. São justamente aqueles que compram o seguro e não têm seus carros roubados que estão
financiando as vítimas, o que nos leva à conclusão que é o fato de você não saber se vai ou não ser a
vítima que torna o arranjo interessante para cada um individualmente.
Colocando sob o ângulo oposto, se eu souber que não serei o roubado, não me interessarei em fazer o
seguro (de fato, para quem quase não sai com o carro de casa, o seguro não é uma boa pedida). Note,
portanto, que é o véu da ignorância que motiva a decisão de se segurar.
E por que fazer o seguro é melhor que não fazê-lo? Como dito, porque abrir mão de pequenas
quantidades de dinheiro todo mês é melhor que eventualmente perder uma quantidade enorme de
dinheiro de uma vez só no caso de seu carro ser roubado.
Se o custo de ser sorteado na desagradável loteria de perdas de automóvel por furto é grande, o que
dizer sobre o risco de nascer sem oportunidades? A diferença entre a renda de uma pessoa que
nasceu pobre em uma favela e a renda que esta mesma pessoa teria se tivesse nascido em um lar de
classe média é enorme. O valor de receber estudo em boas escolas, alimentação apropriada, lazer,
cultura e cuidado com a saúde, etc, é muito, mas muito superior ao valor de um carro. Se escolhemos
fazer seguros contra o roubo do nosso automóvel, certamente escolheríamos comprar seguros contra
a falta de oportunidades ao nascer. As almas negociariam bastante nesse mercado, se ele existisse.
Seria muito interessante observar o mercado de seguros transacionados pelas almas. Estas, atentas
para o desenrolar dos acontecimentos na Terra, negociariam contratos que especificariam
transferências de renda positivas ou negativas nas mais diversas situações. Como no capítulo 8, o
sistema de preços condensaria as informações sobre as diversas possibilidades que uma criança tem
ao nascer nas mais diferentes situações. Da mesma maneira que mudanças na quantidade de furto de
automóveis têm impactos nos preços de seguros, eventos que modificassem as situações econômicas
dos diversos países se refletiriam nos valores das transferências negociadas pelas almas. O
desenvolvimento e as melhoras nas condições de vida na Coréia do Sul nas últimas décadas, por
exemplo, afetariam os valores negociados das transferências pagas ou recebidas por quem viesse a
nascer naquele país. Se as almas preferissem viver no Brasil ao invés de morar na Finlândia, estes
gostos se refletiriam nos valores das transferências negociadas.
Depois de assinados, seria necessário que tais contratosfossem seguidos à risca na Terra. Assim
como pagamos pelo seguro do carro e recebemos dinheiro da seguradora quando nosso automóvel é
roubado, quem nascesse em uma família de classe média na Noruega transferiria uma bolada todo
mês para quem nascesse sem ter o que comer na Etiópia. O menino rico dos Jardins cederia parte de
sua riqueza para a pobre menina do Piauí.
Mas claro, esse mercado não existe e é absolutamente impossível criá-lo ou arquitetar algo
minimamente semelhante. Em primeiro lugar, mesmo que as tais almas existam, é improvável que
elas possam transacionar com as outras antes do nascimento. Além disso, é impossível implementar
as transferências da menina norueguesa para o garoto etíope celebradas no contrato firmado pelas
almas, antes de nascerem. Isto porque, depois do nascimento, a menina norueguesa perderia os
incentivos para transferir renda para o menino etíope, e não havendo representantes das Cortes
Judiciais das Almas na Terra, ela sairia impune do rompimento do contrato.
No capítulo passado, apontamos as falhas de mercado que podem tornar benéfica a intervenção do
Estado na economia. No caso da desigualdade de oportunidades ao nascer, o problema é mais
fundamental: a existência desse mercado de seguros é essencialmente impossível. Não há como se
transacionar seguros contra nascer em situação miserável. Assim, temos que contar com a ação do
governo, e cabe ao Estado implementar as transferências de renda para os mais pobres.
No capítulo passado, vimos instâncias em que as falhas de mercado impediam alguns mercados de
existirem. Não há mercado para o ar que se polui e se respira, porque o ar é em sua essência um bem
público. Não é possível fazer seguro contra ter dinheiro roubado porque a seguradora não tem como
verificar a quantidade furtada, ou a ocorrência do roubo, e esta assimetria de informação faz com que
o preço deste seguro seja tão caro que o inviabiliza. Não existe mercado de seguro contra chegar
atrasado no trabalho porque a seguradora não pode checar o meu esforço para acordar e sair de casa
na hora apropriada - um outro problema de assimetria de informação que impossibilita a existência
deste mercado. O caso da desigualdade de renda é diferente da grande maioria dos casos em que não
há um mercado – mas seria desejável que houvesse – por não estar relacionado a estas falhas.
Em suma, a intervenção do Estado para aliviar a desigualdade de renda é plenamente justificável
pela impossibilidade de existência do mercado das almas.
Os dados mostram que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Segundo dados do Banco
Mundial, o Brasil figura entre os 20 países com maior índice de desigualdade de renda. Essa posição
resulta principalmente da diferença de oportunidades ao nascer, não de um maior esforço por parte
dos mais ricos.
Em países onde o problema da desigualdade é bem grave, como no Brasil e no México, programas
de redistribuição de renda como Bolsa Escola e o Progresa ajudam a reduzir a pobreza. Mas
programas de auxílio financeiro aos pobres alteram suas escolhas. Como vimos no capítulo 4, muitas
passadeiras optaram por deixar seus empregos quando o Bolsa Escola foi instituído. 
Existem outros tipos de programa de redistribuição de renda que tentam manter ou até aumentar os
incentivos para os mais pobres seguirem trabalhando. Por exemplo, o maior programa de
transferência de renda nos Estados Unidos – apelidado de imposto de renda negativo - não repassa
recursos para quem não estiver trabalhando. Ele é estruturado de modo a aumentar o salário dos que
ganham pouco, aumentando os incentivos a se procurar um emprego. 
O que pensamos do impacto do Bolsa Escola sobre as escolhas dos trabalhadores? Por um lado, em
algumas situações não seria desejável que um pai de família deixasse de trabalhar por conta do
auxílio financeiro recebido. Mas por outro, se um pequeno auxílio financeiro é suficiente para fazer
alguém decidir não trabalhar, isto significa que sua escolha inicial de trabalhar se devia à falta de
alternativas decentes. Além disto, nos agrada o impacto positivo do Bolsa Escola sobre o salário das
passadeiras que continuam trabalhando (capítulo 4).
No âmbito da discussão assistencialismo versus medidas estruturais, concordamos com a
necessidade de centrar forças na questão da educação, para que as pessoas aprendam por si só a
pescar. Mas, hoje, são poucos os que têm alta qualificação e equipamentos modernos a sua
disposição e muitos os que têm disponíveis para si nada mais que opções ruins e péssimas. Estes têm
carência extrema de peixes e não podem esperar. Se nós, os com melhor qualificação, conseguimos,
com nossas redes, tarrafas, arpões e conhecimento do mar, pescar para muitos, enquanto outros, com
pouco conhecimento, e uma vara curta de má qualidade, mal conseguem se sustentar, achamos que
não há nada de errado em dar o peixe ao pobre e desenhar incentivos inteligentes para que eles
mantenham seus filhos na escola para aprenderem a arte de pescar. Mesmo considerando que alguns
dos beneficiados perderão o interesse pela pesca.
Além de aliviar as agruras da pobreza, os programas de transferência de renda podem afetar
corretamente os incentivos da família, por exemplo, impondo que as crianças das famílias
beneficiadas com o auxílio permaneçam na escola e consultem regularmente o posto de saúde. De
fato, a miséria implica um verdadeiro desperdício das habilidades das pessoas que são fundamentais
para produzir bens e serviços no mundo de hoje. Milhares de “potenciais” engenheiros,
empreendedores, cientistas, professores, médicos, advogados, etc, nunca chegarão a se formar, a
alcançar a plenitude de suas capacidades econômico-sociais, se tiverem o azar de nascerem na
pobreza e não receberem ajuda para dela se desvencilhar.
Nossa defesa dos programas de redistribuição de renda não é uma defesa da tese de que todos os
cidadãos do mundo devem ganhar a mesma renda, ou ser igualmente beneficiados pelo
desenvolvimento econômico. Não defendemos que Bill Gates, ou Beyoncé, não possam, ou não
devam, ganhar muito mais que o cidadão médio em nome da equidade. O lema marxista “de cada um
de acordo com suas capacidades, e a cada um de acordo com suas necessidades” sugere que a renda
seja distribuída às pessoas sem considerar o que elas produziram, ou quanto trabalharam. Tratar a
produção do país como algo que pertence a todos e que deve ser repartido igualmente entre a
população gera os problemas dos bens públicos discutidos no capítulo anterior: se eu recebo uma
parte muito pequena dos frutos do meu próprio trabalho, faltam incentivos para trabalhar, e o
resultado é que todos trabalhamos e produzimos pouco. Em suma, não advogamos pela equidade de
resultados, mas pela equidade de oportunidades.
Algumas religiões acreditam que os que nascem miseráveis nesta vida estão pagando pelos erros
cometidos em outras vidas ou seguindo penas impostas pela vontade divina por outros motivos. Se
assim fosse, a entidade responsável pela alocação dos nascimentos pelo mundo estaria fazendo cada
um pagar o preço pelos seus atos passados, um sistema de preços “inter-vidas” estaria operando, e
não seria preciso intervenção humana para ajudar quem nasce na miséria.
Neste capítulo, nós partimos do pressuposto que isso não ocorre, que as crianças que nascem na
miséria estão pagando pela falta de oportunidades ou pelos erros de seus pais. Portanto, cabe a nós,
humanos, tomar ações diretas para combater a desigualdade de renda. Programas de transferência de
recursos para os pobres e de melhoria da qualidade de serviços públicos mais utilizados pelos mais
carentes, como educação básica e saúde, servem a esta função.
 
11. 289 dias
 
Em um clássico estudo realizado em 1983 no Peru, os pesquisadores do Instituto Liberdade e
Democracia se propuseram a descobrir quanto tempo e dinheiro seria necessário para um peruano
abrir seu próprio negócio, cumprindo todos os procedimentos burocráticos legais. Para tal, eles
simularam a montagem de uma pequena fábrica têxtil no subúrbio de Lima e seempenharam para
cumprir todos os procedimentos exigidos, sem intermediários ou despachantes, como um peruano de
origem humilde faria se quisesse abrir uma empresa obedecendo todos os requisitos da lei.
Os pesquisadores decidiram não pagar propina aos agentes do serviço público a não ser que esta
fosse a única maneira de continuar com o experimento. No processo que requeria 11 procedimentos
legais, por 2 vezes eles tiveram que pagar propina para seguir adiante, apesar de terem cumprido
todos os requisitos da lei. Em outras 8 ocasiões, eles conseguiram, com alguma dificuldade, se
desvencilhar dos pedidos de suborno.
O processo levou mais de 9 meses. Mais precisamente, foram necessários 289 dias para que enfim os
pesquisadores dessem a luz à documentação legal necessária para se constituir uma empresa no Peru.
Será que tanto tempo e trabalho geram benefícios para a sociedade? Difícil acreditar. Para se ter uma
ideia, apesar dos 289 dias e 11 requisitos legais, as autoridades não perceberam, em momento algum,
que estavam lidando com uma simulação.[7]
Em capítulos anteriores, mostramos os benefícios que a intervenção pública pode gerar quando há
falhas de mercado. Mas, como mostra o estudo do Instituto Liberdade e Democracia, não é só o
mercado que falha.
As intervenções públicas, tão importantes para corrigir as falhas de mercado, têm seus efeitos
negativos. Este capítulo trata justamente destas falhas, ou seja, aborda os problemas e custos que
podem decorrer da intervenção pública, mesmo quando há bons motivos para que ela seja
implementada.
Em termos gerais, os custos da intervenção governamental são de dois tipos. O primeiro e mais
direto diz respeito aos recursos retirados da sociedade pra prover os serviços governamentais. O
segundo refere-se às mudanças nos atos das pessoas provocadas pela intervenção do governo,
mudanças com impactos negativos para a economia.
Como vimos no capítulo 9, cobrar a taxa do congestionamento em Londres e fiscalizar o cumprimento
da lei não sai de graça. Qual o custo? Ao contrário do que pode parecer, o custo para a sociedade da
lei anti-congestionamento não é a taxa que as pessoas pagam para saírem com seus carros. Para
implementar a lei, o Estado precisa construir uma estrutura de cobrança e fiscalização, comprar
câmeras e equipamentos, contratar gente pra multar e arrecadar o imposto, etc. Esses gastos,
financiados com impostos, constituem o real custo social da intervenção do Estado.
O montante arrecadado com a taxa do congestionamento é suficiente para pagar todos esses custos e
ainda gerar algum excedente. O custo da implementação da lei é, portanto, menor que a soma de
dinheiro provinda da taxação. Sobra algum dinheiro para financiar outros gastos do governo, mas
estes outros gastos não são custos da taxa do congestionamento, são custos de outros programas
governamentais. Assim, se a prefeitura de Londres aumenta a taxa do congestionamento, mas nada
mais muda - não se compram novas câmeras, não se contratam novos funcionários - esse aumento da
taxa não altera em nada o custo da implementação da lei.
A segunda categoria de custos da intervenção – as mudanças nos atos das pessoas provocadas pela
intervenção do governo – não é menos importante. Assim como as leis podem mudar o
comportamento das pessoas para o bem da sociedade ao fazê-las internalizar os custos sociais, por
exemplo, cobrando pela emissão de poluição, as leis também podem incentivar escolhas que geram
custos para a sociedade. Vamos agora entender esses custos.
É fácil entender que se há corrupção, a construção de uma ponte sai mais cara para o contribuinte e,
portanto, o montante arrecadado pelo Estado compra menos pontes. Mas a corrupção causa outra
distorção: quando o roubo do dinheiro público é fácil e largamente praticado, alguns políticos vão
decidir suas prioridades de gasto público com base nas facilidades relativas de se roubar inerentes a
diferentes projetos. Por exemplo, é mais fácil roubar construindo pontes do que aumentando o salário
dos professores da escola pública. No primeiro caso, o corrupto pede uma comissão à empreiteira
para fechar o contrato e ponto final; no segundo é mais difícil desviar a verba orçamentária – como
convencer um grupo enorme de professores a pagar propina ao político em troca de aumento salarial
e esconder a informação? Os políticos que decidem onde gastar de olho no seu próprio bolso
tenderão, portanto, a escolher mais pontes e menos salários para professores do que a sociedade o
faria.
Além disso, se muitas pessoas e empresas acabam empenhando tempo e recursos para obter favores
dos órgãos públicos encarregados de fiscalizá-las, taxá-las e liberar-lhes permissões, ou então se
dedicando à tarefa de encontrar brechas nas intrincadas regulamentações, ao invés de investir tempo
e recursos para inovar, produzir e crescer, a economia como um todo sai perdendo, pois recursos que
poderiam ser utilizados produtivamente são canalizados para atividades que não geram riqueza,
apenas redirecionam recursos na sociedade.
Como mostra o estudo do Instituto Democracia e Liberdade, as regulamentações do Estado implicam
em custos para se abrir uma empresa. Um trabalho posterior, publicado em 2002, compara o tempo
necessário para se abrir uma empresa em diversos países, obedecendo todos os requisitos legais.
Sendo difícil e custoso simular aberturas de empresas em várias partes do mundo, este estudo se
baseou apenas em informações oficiais. Em vista disto, o tempo computado no estudo é
provavelmente menor do que na prática se levaria para abrir uma empresa. De todo modo, os
resultados saltam aos olhos. Em Moçambique, Madagascar e na Indonésia, são necessários mais de 4
meses para se completar o processo. Na outra ponta do espectro, estão Canadá, Austrália,
Dinamarca, Nova Zelândia, Estados Unidos e Inglaterra, onde o processo dura entre 2 e 4 dias. O
custo financeiro e o número de procedimentos também variam enormemente.[8]
Regulamentações como essas alteram as decisões das pessoas, distorcendo-as de um modo
prejudicial: se um empreendedor decide não abrir uma empresa por conta dos trâmites burocráticos
custosos, ele e a economia como um todo saem perdendo. Da mesma forma, quando alguém deixa de
importar uma máquina por conta da demora para liberar os equipamentos na alfândega, há um efeito
negativo da legislação sobre a economia. E mesmo quando a despeito dos empecilhos se importa a
máquina, a regulamentação também é custosa porque deixa ocioso por muito tempo um recurso que
poderia ser utilizado produtivamente mais cedo.
Utilizando as vias legais, um empreendedor de Moçambique terá que esperar 5 meses e arcar com
custos financeiros ligeiramente superiores a renda anual per capita de seu país para abrir sua
empresa. Mas por que estas regulamentações ineficientes não são substituídas por regulamentações
melhores? Talvez justamente porque sua continuidade beneficie pessoas como os grandes
empresários bem conectados com o governo - que querem evitar a entrada de novas empresas
concorrentes -, ou agentes do setor público, interessados nas dificuldades que lhes permitem vender
facilidades.
A corrupção é um claro custo da intervenção estatal. Assim, quanto mais propensas à corrupção
forem as instituições do país, menor deveria ser o grau de intervenção estatal de modo a evitar este
custo. Contudo, os dados mostram justamente o contrário: em países mais infestados pela corrupção,
a burocracia é maior. Por exemplo, abrir uma empresa leva poucos dias nos países escandinavos,
onde os níveis de corrupção são muito baixos, e alguns meses nos países com instituições mais
corrompidas. Esses dados são consistentes com a conjetura aventada no parágrafo anterior: onde há
mais corrupção, aqueles que vendem os atalhos ilícitos para se desvencilhar da selva burocrática e
aqueles que não querem que potenciais concorrentes abram novas empresas conseguem manter as
dificuldades da legislação. Em situações como esta, a existência da máquina estatal e a possibilidade
de se obter dinheiro ou favoresvia corrupção gera incentivos para a manutenção de mecanismos que
emperram o setor produtivo da economia.
Em suma, a corrupção é mais que uma transferência de recursos da sociedade para um corrupto.
Todavia, vários dos custos acima explicados passam ao largo da discussão sobre o problema.
De fato, estudos estatísticos mostram que nos países onde há mais corrupção, menos negócios são
abertos, as inovações se espalham mais lentamente, a informalidade econômica é maior e o
crescimento da economia é menor.
Ao abordar o tema da corrupção, é importante ressaltar o óbvio: funcionários públicos são, em sua
maioria, pessoas honestas que não se corrompem – e o pai de um dos autores desse livro é um desses
exemplos. Mas há pessoas que não se importam em ganhar dinheiro desonestamente. Para estas
pessoas, posições que permitem ganhos com a corrupção são particularmente atrativas. Agora,
quando se corromper torna-se arriscado devido a leis e punições duras e exemplares, algumas das
pessoas antes dedicadas à atividade de redirecionar recursos para seus bolsos escolherão alocar seu
tempo para realizar tarefas mais produtivas para a sociedade.
Mas as falhas de governo não estão ligadas apenas ao fenômeno da corrupção.
Como colocado, a regulamentação pública deveria servir pra resolver os problemas discutidos no
capítulo 9, mas muitas vezes ela adquire outras feições. Por exemplo, para tornar-se professor de
economia em algumas faculdades é obrigatório possuir graduação em economia. Os autores deste
livro, apesar de terem completado mestrado e doutorado em economia, não seriam elegíveis para
vários concursos públicos de professor universitário por não terem estudado economia em nível de
graduação. Da mesma maneira, para se tornar um advogado no Brasil é preciso passar em um exame
da Ordem; para trabalhar como jornalista, é necessário formação superior em jornalismo;[9] etc. O
que motiva estas regulamentações?
A falha de mercado apresentada como justificativa para estas leis é a assimetria de informação: por
vezes o cidadão comum pode não ser capaz de avaliar com precisão a qualidade dos serviços
prestados por professores, médicos, advogados ou jornalistas. Sendo difícil avaliar a qualidade de
um serviço, até mesmo após sua prestação, alguns profissionais poderiam não se sentir
apropriadamente incentivados a investir em sua formação e a se esforçar nos seus trabalhos. Esta
assimetria de informação prejudicaria os bons profissionais, que enfrentariam dificuldades de se
distinguir dos maus devido à dificuldade de avaliação por parte do cliente. Além disso, as empresas
também não teriam incentivos para contratar os melhores profissionais por conta dessas dificuldades
de avaliação. Assim, em tese, as leis impondo regras de entrada para se atuar nesses mercados
garantiriam uma qualificação mínima dos profissionais envolvidos nesses serviços e, portanto,
serviriam para controlar a qualidade dos serviços prestados aos clientes.
Por outro lado, ao impor barreiras à entrada na profissão com exames ou necessidades de diplomas,
essas medidas causam uma diminuição da oferta de profissionais autorizados a trabalhar. Como
vimos no capítulo 4, essa restrição na oferta leva a um aumento no salário do grupo beneficiado pela
lei – aqueles que têm o diploma requerido e os que já estão empregados, dado que essas propostas
de lei sempre permitem quem já trabalha continuar exercendo a profissão. Na outra ponta, a
legislação restringe o conjunto de opções das pessoas que não tem o diploma requerido, causando
impacto negativo em seus salários.
Como dissemos anteriormente, o jornal só teria incentivos para contratar maus jornalistas se nós não
conseguíssemos julgar a qualidade dos artigos que lemos. Mas se nós somos capazes de avaliar o
que recebemos da imprensa, não há falhas de marcado e, portanto, não cabe intervenção
governamental. Nós acreditamos que as pessoas são capazes de avaliar a qualidade de um artigo de
jornal. Pode ser mais difícil julgar a veracidade das notícias veiculadas, mas para esse problema
pouco ajuda um diploma de jornalismo. Por outro lado, muitos profissionais qualificados são
impedidos de trabalhar como jornalistas por conta da falta do diploma, o que é um importante custo
para a sociedade. Ao nosso ver, nesse caso, os custos da intervenção são claramente superiores aos
benefícios.
Além dos custos que a própria regulamentação impinge, todo o trabalho envolvido para julgar a lei
consome recursos da sociedade que poderiam estar sendo empregados em atividades produtivas. Os
juízes que julgam os recursos teriam muitos outros casos para analisar, os jornalistas que se
organizam a favor da lei poderiam estar trabalhando para informar a população, e os funcionários
responsáveis para garantir o cumprimento dessa lei, pagos pelos cidadãos, poderiam estar prestando
outros serviços.
Este tipo de regulação, aliás, não é invenção moderna. Como descrito por Adam Smith, em “A
Riqueza das Nações”, as agremiações profissionais antigamente tentavam manter os salários de seus
membros em patamares elevados obrigando as pessoas a passarem anos sob a tutela de um mestre
antes de poderem exercer uma dada profissão livremente. A justificativa era a mesma: para formar
um profissional de qualidade era preciso passar muito tempo aprendendo com o mestre. Quem
lucrava com esta história eram os mestres, pois esta regulamentação reduzia a oferta de ferreiros,
carpinteiros, etc, aumentando a remuneração dos mestres. Nas palavras de Adam Smith, “quando
pessoas do mesmo negócio se juntam, a conversa termina em uma conspiração contra o público”.
Vejamos uma outra instância em que uma falha de mercado é substituída por uma falha de governo.
No Brasil antes dos anos 90, o Estado impôs uma reserva de mercado para os computadores
produzidos localmente. Qual a falha de mercado que justifica esta legislação? A justificativa era a
seguinte: sem a lei, ninguém investiria em computadores, o Brasil jamais seria competitivo nesse
ramo. Mas com os incentivos providos pela reserva de mercado, as empresas nacionais adquiririam
conhecimentos para produzir computadores, conhecimentos estes que se espalhariam pelo país como
um todo. Essa difusão de conhecimentos seria uma externalidade positiva, ou seja, um ganho para a
sociedade não levado em conta na decisão de investimento das empresas.
Mas note que se ao invés de investir na produção de microcomputadores as empresas nacionais
devotassem seus esforços para a produção de outros bens, conhecimento sobre a produção desses
outros bens seria desenvolvido e expandido, e a difusão desses conhecimentos também seria uma
externalidade positiva. Assim, para se justificar a intervenção estatal, a externalidade gerada pela
produção dos computadores precisaria ser superior à externalidade associada à produção de outros
bens somada às falhas de governo decorrentes da intervenção.
O mesmo tipo de argumento é por vezes empregado para justificarem-se investimentos do governo
em outras áreas – como bancos ou siderurgia. Se produzir aço ou prestar serviços bancários à
determinada parcela da população não é interessante o suficiente para o setor privado, mas gera
importantes benefícios sociais, o governo deveria intervir. A falha de mercado seria, novamente, os
benefícios sociais que a empresa não colhe e, portanto, que o empresário não leva em conta na hora
de decidir em que ramo de negócio atuar.
Parte dos custos deste tipo de intervenção estão relacionados à perda de eficiência e ao uso de
empresas do setor público para favorecimentos políticos. No setor privado, empregar amigos
improdutivos ou desperdiçar dinheiro é um custo para donos e acionistas. Eles, portanto, terão mais
incentivos para evitar que os funcionários de suas empresas tomem decisões que não levem à
maximização do lucro. O critério de maximização do lucro, como explicamos nos capítulos 3 e 8,
leva a empresa privada a produzir mais eficientemente. No caso do setor público, quem arca com a
conta da ineficiência é a população pagadora de impostos e, portanto,as pressões para se buscar
eficiência e evitar o uso da empresa para favorecimentos pessoais são menores – fazer cortesia com
o chapéu do contribuinte é menos custoso.
Por conta das externalidades associadas ao investimento na indústria nascente, políticas de estímulo
à indústria nacional podem até ser benéficas se sua duração não for demasiadamente longa – porque
se ela se prolonga no tempo, o empresário, protegido da concorrência, tem menos incentivos a buscar
eficiência produtiva. O problema deste tipo de intervenção é que ele incentiva o empresário a tentar
manter a proteção indefinidamente. Nestes casos, um bom lobby é mais lucrativo que uma inovação
no processo produtivo. Mas um bom lobby, ao contrário de uma inovação, não aumenta a produção e
nem a renda do país.
Por fim, visando minimizar a corrupção nas empresas públicas, os órgãos públicos precisam
obedecer a critérios rígidos de atuação. Por exemplo, as compras devem seguir procedimentos
formais que incluem a elaboração de detalhados editais, deixando pouco espaço para mudanças, uma
margem de flexibilidade estreita. Por conta destas amarras desenhadas para evitar favorecimentos e
corrupção, muitas decisões tomam muito tempo para serem tomadas e implementadas, e as escolhas
em si são mais restritas, o que compromete a eficiência da empresa pública.
Concluindo, falhas de mercado chamam pela intervenção do Estado. Mas a intervenção do Estado
tem seus custos, por absorver recursos da sociedade para implementar as leis e por modificar os
incentivos das pessoas. Então, para que a intervenção do governo seja desejável, é necessário não
apenas que as imperfeições no funcionamento do mercado sejam custosas: é necessário também que
os custos da intervenção pública não superem seus benefícios.
12. O poder mágico da cerveja
 
Os capítulos seguintes deste livro são dedicados a temas específicos e que fazem parte do debate
cotidiano sobre políticas públicas, quais sejam, educação, comércio, taxação, previdência, crédito,
mercados ilícitos e instituições políticas. Para estudar as políticas referentes a cada um desses temas,
nos basearemos nos conceitos desenvolvidos até agora no livro. Em vários momentos, utilizaremos
resultados de estudos empíricos para enriquecer nossa análise porque ver a realidade os dados é
crucial para o entendimento do mundo e para testar a validade das teorias. Teorias não corroboradas
pela evidência empírica não nos são lá muito úteis, e devem ser substituídas por outras mais afinadas
com a realidade.[10]
Estes estudos empíricos que mencionaremos utilizam dados provenientes de variadas fontes e
aplicam técnicas estatísticas – às vezes relativamente simples, às vezes mais complicadas - para
estabelecer relações entre diversas variáveis econômicas e sociais. Por exemplo, alguns estudos
tentam medir qual o efeito de maior educação sobre o salário de uma pessoa, outros investigam o
efeito da abertura comercial sobre a renda dos mais pobres, ou ainda o impacto dos acordos com o
FMI sobre as economias em desenvolvimento.
Por exemplo, para testar o efeito de acordos com o FMI em economias em desenvolvimento,
podemos coletar dados de todos os países em um dado momento e comparar o desempenho
econômico dos que acabaram de receber recursos do FMI com o dos outros países. Essa comparação
nos revela que o desempenho econômico é em média melhor em países sem a participação do FMI.
Da mesma maneira, podemos focar o estudo em um país e comparar períodos em que há acordos com
o FMI com outros períodos em que não há. Em vários casos, esta inspeção dos dados revelará que
quando há acordos com o FMI, a economia está em média pior. Podemos concluir a partir dessa
informação que acordos com o FMI atrapalham o desempenho econômico? Será que as políticas
impostas pelo FMI impõem severas barreiras ao crescimento? Estariam esses resultados refletindo a
inadequação das políticas econômicas traçadas pelo FMI para as economias em desenvolvimento?
Vejamos outro exemplo. Muitos pais se preocupam em ajudar seus filhos com suas tarefas escolares.
Mas esta ajuda é benéfica para as crianças? Análises comparando as notas obtidas por estudantes
com diferentes graus de auxílio dos pais nos revelam que são justamente os filhos que os pais mais
auxiliam com os afazeres escolares que têm pior desempenho nas provas. O que poderia estar
levando a este resultado? Muita pressão psicológica por parte de pais que despendem horas do seu
fim semana estudando junto com os filhos? Falta de estímulos para a criança aprender por conta
própria?
Antes de começarmos a procurar razões por trás dessas relações empíricas, é preciso entender
melhor o que podemos e o que não podemos concluir a partir desses resultados.
Comecemos então com o exemplo lúdico de um autodenominado guru que deseja testar a validade de
uma teoria pra lá de exótica: a teoria do poder mágico da cerveja. De acordo com a teoria do guru,
beber cerveja na praia aumenta as chances do dia ficar ensolarado. A degustação da cerveja cria na
praia um ambiente convidativo para o Sol e este, sempre atento aos convites dos humanos, faz mais
esforço para driblar as nuvens e brilhar no céu. Assim, quanto mais cerveja é consumida na praia,
maior a temperatura e maior o tempo em que a praia fica ensolarada.
Nós sabemos que a teoria não faz o menor sentido. Contudo, o guru está determinado a nos provar
sua validade. Para isso, ele se dispõe a passar um ano na praia coletando dados diários sobre (1) o
consumo de cerveja e, (2) a temperatura na praia. Ao final de um ano, o guru terá uma base de dados
com 365 observações de cada uma dessas duas variáveis.
Se a teoria do guru estiver correta, dias com maior consumo de cerveja corresponderão, em média, a
dias com temperatura mais alta. Em linguajar estatístico, haverá uma correlação positiva entre a
temperatura e o consumo de cerveja. O gráfico (a) mostra um caso em que há correlação positiva
entre essas duas variáveis. Se o consumo de cerveja é baixo, a temperatura tende a ser baixa também.
E dias com maior consumo de cerveja apresentam, em média, maior temperatura.
O gráfico (b) mostra um caso em que a correlação é nula. Temperaturas altas e baixas ocorrem com
quase a mesma freqüência em dias com muito e com pouco consumo de cerveja. Não há relação entre
as duas variáveis. Por fim, a correlação entre duas variáveis pode também ser negativa: neste
exemplo, isso ocorreria se dias com maior consumo de cerveja apresentassem, em média,
temperaturas mais baixas.
 
 
 
 
O guru poderá então calcular a correlação entre as variáveis consumo de cerveja e temperatura, e
verificar se dias com maior venda de cerveja realmente coincidem com dias mais quentes. Utilizando
técnicas estatísticas, ele poderá também estimar a chance da relação encontrada nos dados ser mais
que uma mera coincidência.
Temos certeza que a correlação calculada pelo guru será completamente consistente com sua teoria.
Sim, ele certamente encontrará uma correlação positiva entre as duas variáveis: os dados mostrarão
que o consumo de cerveja é significativamente maior em dias quentes do que em dias frios, como no
gráfico (a). Contudo, a teoria em si está completamente errada: a relação positiva entre consumo de
cerveja e temperaturas elevadas não se deve ao poder mágico da cerveja de atrair o Sol, mas ao fato
de que as pessoas preferem ir a praia e tomar cerveja em dias quentes. Dizendo de outra maneira,
não é o maior consumo de cerveja que causa altas temperaturas, é a temperatura mais alta que leva
mais pessoas à praia e causa maior consumo de cerveja.
O estudo do guru sofre de um problema que os economistas chamam de causalidade reversa. A
relação positiva encontrada de fato existe, e sua magnitude é grande, mas a causalidade entre as
variáveis é a oposta da sugerida por sua teoria.
Neste exemplo didático, a questão da causalidade reversa pode parecer óbvia, mas em outras
situações do mundo real, nem sempre isto é verdade.
Voltando ao exemplo do início do capítulo, é seguroconcluir que a presença do FMI atrapalha os
países em desenvolvimento com base no fato de haver uma correlação negativa entre sua presença no
país e o desempenho econômico? Não, pois há aqui um claro problema de causalidade reversa: o
FMI normalmente empresta dinheiro e propõe programas de ajuste exatamente para os países que
estão atravessando mais dificuldades. A existência de problemas econômicos no país aumenta a
chance dele terminar batendo à porta do FMI e assim, mesmo que as políticas e empréstimos deste
órgão exerçam impacto positivo sobre o desempenho econômico do país em crise, é possível que os
dados revelem uma relação negativa entre receber recursos do FMI e desempenho econômico. Por
conta desse problema de causalidade reversa, não é fácil obter estimavas empíricas do efeito de
acordos com o FMI sobre a economia de países em desenvolvimento.
Da mesma maneira, a chance de uma pessoa morrer em um hospital é muito maior do que a chance de
morrer em uma boate. Isto significa que se uma pessoa está doente, correndo risco de vida, devemos
tirá-la do hospital e levá-la a boate? Claro que não. Assim como países com as finanças se
deteriorando têm mais chance de pedir socorro ao FMI, doentes têm mais chance de estar em
hospitais que em boates. A maior chance de morrer em um hospital não se deve ao risco de vida
inerente à ida ao hospital, mas ao problema de causalidade reversa aqui debatido.
Similarmente, o Banco Mundial concede, todos os anos, grandes volumes de ajuda financeira a
países pobres na África. Curiosamente, os países que mais recebem ajuda são os que apresentam
menores taxas de crescimento econômico. Que a ajuda do Banco Mundial não seja efetiva, vá lá, mas
será que ela piora a situação dos países que a recebem? Bem, é preciso notar que mais dinheiro é
alocado justamente para os países em maior dificuldade (e que, portanto, crescem menos). Temos
então mais uma vez o problema de causalidade reversa que dificulta a averiguação do impacto de
ajuda sobre o PIB. Assim, não é correto inferir o efeito da ajuda financeira sobre o crescimento
apenas olhando apenas para a correlação entre eles.
No caso do exemplo do guru, é claro que a temperatura exerce impacto positivo no consumo de
cerveja e o consumo de cerveja não tem impacto algum na temperatura da praia naquele dia. Assim,
estimar o efeito da temperatura no consumo de cerveja (o inverso da relação proposta pelo guru) é
tarefa relativamente simples. Contudo, em exemplos econômicos, as variáveis de interesse
normalmente exercem impactos e ao mesmo tempo são afetadas pelas outras, o que torna difícil
desvendar a relação de causalidade entre os dados.
De todo modo, maravilhado pela ratificação empírica do poder da cerveja em atrair o Sol – e
betoc
Destacar
ignorando o problema da causalidade reversa – o guru busca agora testar outra vertente de sua teoria:
a de que a cerveja tem o poder de aumentar o desejo das pessoas de tomar sorvete. Ao criar o
ambiente festivo na praia, o consumo de cerveja faz com que as pessoas queiram celebrar suas
existências tomando picolé. Mas o guru sabe que para dar crédito a sua teoria não convencional, ele
precisa confirmá-la empiricamente, e assim ele se dedica a coleta de dados sobre: (1) consumo de
cerveja e, (2) consumo de picolé dos frequentadores da praia. Ao final de um ano, o guru terá uma
base de dados com 365 observações de cada uma das duas variáveis, e poderá então calcular no
computador a correlação estatística entre elas.
Novamente, o guru verificará que dias com maior consumo de cerveja coincidem com dias de maior
consumo de picolé, ou seja, mais uma vez a relação encontrada nos dados corrobora – ou assim
pensa ele – sua previsão teórica. Mas é claro que ele está errado mais uma vez. A relação positiva
entre consumo de cerveja e consumo de picolé não se deve ao poder mágico da cerveja de aumentar
o desejo por sorvete, mas a uma terceira variável, omitida da análise: a temperatura na praia. Em
dias quentes, as praias estão cheias e tanto o consumo de sorvete quanto o consumo de cerveja são
altos. Em dias frios, não há ninguém na praia e o consumo de ambos é baixo. Na amostra como um
todo, em média, quando o consumo de sorvete é alto, o consumo de cerveja também tende a ser alto,
mas não por conta de uma relação de causalidade entre eles.
Dizendo de outra maneira, não é o maior consumo de cerveja que causa maior consumo de picolé, e
nem o contrário. É o dia ensolarado que faz com que o consumo de ambos seja maior. O estudo do
guru sofre de um problema de variável omitida: a temperatura da praia - variável chave para explicar
a relação entre o consumo de sorvete e cerveja - está omitida na análise.
O segundo problema empírico do guru das cervejas - variáveis omitidas - também é muito freqüente
nas analises empíricas.
Por exemplo, como mencionamos anteriormente, dados referentes ao tempo que os pais passam
estudando com os filhos e às notas dos estudantes revelam uma correlação negativa entre as duas
variáveis: mais tempo de estudo com os pais corresponde a notas mais baixas. Mas há uma
importante variável omitida: a facilidade de aprendizagem. Se os filhos têm facilidade em aprender,
não há motivo para os pais estudarem com eles. Pela mesma razão, quando os filhos têm
dificuldades, os pais dedicam mais tempo a auxiliá-los. Assim, as crianças com mais dificuldade na
escola estudam mais com os pais e tiram notas mais baixas, mas isso não significa que o impacto do
estudo com os pais sobre o desempenho escolar seja negativo.
Os pesquisadores da área de política monetária costumam argumentar que bancos centrais mais
independentes do governante da vez não precisarão se curvar diante do Executivo e imprimir moeda
para cobrir a necessidade de gastos excessivos. A inflação, portanto, será menor quanto maior for a
independência do banco central. Esta é a teoria, mas o que dizem os dados? De fato, países onde os
bancos centrais, guardiões da moeda, são legalmente mais independentes são também países onde a
taxa de inflação é menor. Podemos daí concluir inequivocamente que maior independência do banco
central gera inflação mais baixa?
Não, justamente porque este resultado empírico pode estar sendo causado pela omissão de outra
betoc
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variável que leva tanto a taxas de inflação mais baixas como à decisão de outorgar maior
independência ao banco central. E esta variável é a aversão à inflação da sociedade. Uma sociedade
muito avessa à inflação – como o povo alemão que no pós-primeira guerra conviveu com inflação tão
alta que as pessoas iam as compras com carrinhos cheios de dinheiro para trazer para casa alguns
poucos itens de alimentos – demandará do governo tanto um banco central mais independente como
outras medidas que coíbam a volta da inflação – como prudência nos gastos públicos, proibição de
cláusulas de indexação, etc. A variável omitida “aversão à inflação” poderia, portanto, estar por trás
tanto da maior independência do banco central, como da menor inflação. Assim, sem uma análise
mais detalhada, não é possível afirmar que a correlação entre estas duas ateste a existência de uma
relação de causa e efeito.
Similarmente, qualquer análise empírica sobre a relação de escolaridade e renda revela que pessoas
com maior nível de educação recebem maiores salários. E há mesmo bons motivos teóricos, como
vimos no capítulo 5 e veremos de novo no capítulo seguinte, dando suporte a estes achados. Mas
podemos considerar esta correlação positiva como prova empírica cabal de que educação gera
maiores salários? Não de imediato. A simples correlação positiva não é suficiente para indicar
causalidade. Pessoas mais motivadas para estudar, mais inteligentes, e mais esforçadas têm
normalmente melhor desempenho na escola do que as outras. Elas, portanto, atingem níveis de
escolaridade maior. Mas acontece que por serem mais esforçadas, inteligentes e motivadas, estas
mesmas pessoas terão também mais facilidade para resolver problemas no trabalho e se esforçarão
mais nas suas tarefas como empregados. Elas,portanto, tenderão a receber salários mais altos, mas
não necessariamente por conta de um maior nível educacional em si, e sim devido às variáveis
(omitidas) inteligência e motivação.
As características pessoais de cada um de nós – variáveis omitidas dessa simples análise que
relaciona educação e salário – exercem impacto similar na escolaridade (por exemplo, os mais
motivados estudam mais), e na renda (os mais motivados trabalham com mais afinco) e, portanto, a
correlação positiva entre educação e salários reflete não só o impacto da educação per si sobre a
renda, mas também a influência comum sobre ambos destas outras características do indivíduo.
O problema de variável omitida é relevante quando é difícil mensurá-la. No caso do consumo de
cerveja e sorvete, é fácil medir a temperatura na praia e, assim, é possível incluir essa variável na
análise estatística sem maiores dificuldades. Técnicas de estatística e econometria nos permitem
estimar o impacto no consumo de sorvete no consumo de cerveja já levando em conta outras
variáveis, como a temperatura, a presença de chuva, ou o tempo em que o Sol está encoberto pelas
nuvens. Esta análise mais completa não mostraria um impacto significativo do consumo de cerveja
sobre o de sorvete.
O problema de variável omitida no caso da relação educação/salário pode ser atenuado
adicionando-se características pessoais que são observáveis para o pesquisador (como a educação
dos pais) na análise, mas nunca poderá ser plenamente eliminado por que é impossível ter acesso a
dados como motivação, capacidade de aprendizado, etc. Similarmente, é complicado resolver o
problema de variável omitida nos dois exemplos anteriores por ser difícil encontrar boas medidas
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para a importância que uma sociedade dá à inflação ou para as dificuldades que a criança tem para
aprender.
Como dito, os dados nos ajudam a entender o mundo e também a minimizar a força dos preconceitos
ideológicos de todos os tipos. Mas muitas vezes uma análise superficial ou açodada dos mesmos
pode nos induzir a erros graves. Se não atentássemos para os problemas de causalidade reversa e
variáveis omitidas, estaríamos agora discutindo as possíveis explicações para os efeitos negativos
do FMI e do estudo com os filhos. É fundamental analisar os dados e testarmos nossas teorias, mas
não podemos esquecer as lições que tiramos das teorias mágicas da cerveja no que concerne a
análise empírica.
Em várias outras ciências, essas dificuldades de testar teorias são contornadas pela possibilidade de
se realizar o que os pesquisadores chamam de experimentos controlados. Um agrônomo que quer
testar o impacto de diferentes fertilizantes pode dividir um pedaço homogêneo de terra e aplicar cada
fertilizante em um dos pedaços para assim verificar o impacto dos fertilizantes sobre o plantio, livre
dos outros efeitos. A homogeneidade dos pedaços de terra adjacentes significa que as outras
variáveis que afetam o crescimento da cultura são muito parecidas em cada pedaço, o que nos
permite identificar o efeito puro dos diferentes fertilizantes. Da mesma forma, um físico pode realizar
vários experimentos controlados em laboratório, alterando apenas uma variável de sua análise e
mantendo as outras rigorosamente constantes para testar os efeitos daquela mudança particular.
Mas nós, economistas, temos muito menos oportunidades de realizar experimentos controlados. Não
é desejável, nem eticamente aceitável, sortear alguns estudantes e impedi-los de continuar estudando
para que possamos, anos depois, obter dados sobre salários de pessoas motivadas para estudar, mas
que não o fizeram porque a escolha lhes foi vedada por um economista em busca de uma boa
evidência empírica.
Sendo muito difícil realizar experimentos controlados no mundo da economia, cabe a nós
desenvolvermos técnicas que nos permitam driblar os problemas de causalidade reversa e variável
omitida, tornando possível examinar a relação entre as variáveis de interesse com os dados que
podemos obter do mundo. Explicar detalhadamente essas técnicas vai além do objetivo deste livro e
requereria muito conhecimento de estatística, mas mais importante que entender as técnicas em si é
compreender um pouco de sua lógica. 
Por exemplo, alguns estudos examinam a relação entre anos de estudo e renda de gêmeos idênticos. A
idéia é que estudando amostras de gêmeos, torna-se possível isolar o efeito de algumas variáveis
omitidas (qualquer coisa que venha do código genético) na análise estatística, o que é muito difícil
de fazer em amostras onde as pessoas são geneticamente heterogêneas. A relação encontrada usando
esta técnica é positiva e de grande magnitude: o irmão gêmeo que estuda mais tem, em média, salário
maior – e nesse caso ao menos sabemos que as variáveis omitidas nos genes não estão influenciando
os resultados. 
Em economia, quando encontramos situações similares a do exemplo do fertilizante e dos gêmeos, é
possível identificar a relação de causalidade entre as variáveis. De modo geral, leis e eventos que
afetam diretamente uma das variáveis sem impactos diretos na outra nos permitem driblar os
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problemas de variável omitida e causalidade reversa. Por exemplo, se o governo baixasse um
decreto obrigando todos os pais de filhos com nomes iniciando com a letra A a estudar com eles todo
dia por duas horas e proibisse os pais de filhos com nomes iniciando com B de fazê-lo, poderíamos
testar claramente o impacto do auxílio dos pais no desempenho escolar. Para isso, bastaria comparar
a média das notas de cada grupo de alunos. O ponto é que a lei influencia diretamente o tempo de
estudo com os filhos e não afeta as variáveis omitidas que influenciam a nota, como a facilidade que
a criança tem de aprender.
Em alguns casos, os resultados dos trabalhos empíricos são relativamente precisos, obtidos sob
hipóteses brandas e, portanto, merecem ser tratados como fortes evidências de causalidade de uma
variável para outra. No outro extremo, há casos para os quais não há resultados empíricos
convincentes, pois ainda não se encontraram meios satisfatórios de se contornar os problemas
mencionados neste capítulo. E há, claro, os casos intermediários. Voltando aos exemplos
mencionados neste capítulo, estudos utilizando técnicas mais avançadas confirmam que educação
gera de fato maiores salários, sendo essa conclusão bastante robusta a variações da amostra
empregada e a diferentes técnicas de estimação. Alguns trabalhos indicam que ajuda financeira a
países pobres não os torna mais pobres como sugeriria a correlação negativa entre ajuda e
crescimento, mas tampouco indicam que a ajuda é algo relevante. No que tange ao FMI, estudos
empíricos têm tido até agora pouco sucesso em determinar o efeito dos empréstimos do FMI a países
em crises financeiras. E, finalmente, os estudos sobre independência do banco central e inflação
sugerem que grande parte do efeito que gera a correlação negativa parece se dever à aversão à
inflação da sociedade – mas a confiança aqui não é das maiores.
Uma importante lição deste capítulo é que quando somos informados sobre a relação entre
determinadas variáveis, devemos sempre atentar para os problemas de causalidade reversa e
variável omitida. Por exemplo, ao ler no jornal que “tomar 3 ou 4 xícaras de chá por dia reduz o
risco de ataque cardíaco”, é bom checar como a pesquisa foi feita. Se a conclusão vem apenas de
uma correlação negativa – quem toma chá tem menos chance de sofrer um ataque do coração –,
devemos nos perguntar: mas será que não há uma variável omitida na jogada? Será que as pessoas
que tomam um chazinho três vezes ao dia não são justamente aquelas que levam uma vida com menos
estresse e por conta disso têm menos chance de morrer do coração? 
Os jornais esportivos dizem que os times ingleses têm ótimos jogadores e um campeonato muito
organizado porque os ingleses são mais ricos que os brasileiros e, portanto, pagam mais caro pelo
ingresso (entre cerca de R$150 e R$400 para um jogo do Arsenal no campeonato inglês). Maisgrana
habilita os times a investirem em jogadores e organização. É verdade, mas note o problema de
causalidade reversa: os ingleses estão dispostos a pagar mais caro não somente por serem mais
ricos, mas também porque os times são bons e o campeonato é organizado. Um pouco mais de
organização e segurança nos nossos estádios contribuiria para aumentar a receita dos nossos times.
Finda a parte teórica do livro, e munidos do arcabouço lógico do economista até aqui desenvolvido,
entraremos a partir do próximo capítulo em temas importantes para a discussão de políticas públicas
no Brasil.
13. Casas esquisitas
 
Um olhar atento às construções arquitetônicas na cidade norte-americana de Nova Orleans, na capital
inglesa, e em Hanói (Vietnã) revela que todas apresentam algo de estranho. Em Nova Orleans,
inúmeras construções possuem este formato diferente apelidado de “costas de camelo”, com apenas
um andar na parte da frente e às vezes mais de dois na parte de trás da casa. Entendemos pouco de
arquitetura, mas não parece nada bonito. Seria este padrão de construção fruto de um gosto esquisito
dos moradores da cidade? Já em Londres, não é raro encontrarmos residências com algumas de suas
janelas fechadas com tijolos, como exemplifica o pequeno prédio mostrado acima. Será que na
Inglaterra as pessoas frequentemente se arrependem do número de janelas que mandam construir em
suas casas, fechando-as com tijolo mais tarde? Por fim, no Vietnã muitas construções são
extremamente estreitas na parte da frente e exageradamente altas ou compridas. Há alguma
explicação cultural plausível para isto?
Casa estranha pode resultar simplesmente da escolha de gente esquisita. Mas não parece que há mais
gente esquisita nestas localidades que em outros lugares. Da mesma maneira, não há motivo razoável
para supormos que o número de pessoas que cometem enganos quanto ao número de janelas para sua
casa seja significativamente maior em Londres que em outras cidades. E as frentes estreitas em Hanói
não são explicadas pelo preço alto do terreno, pois a metragem quadrada das casas em Hanói não é
exígua – o grande comprimento do terreno compensa a estreiteza da frente. Mas então o que estaria
por trás destas casas esquisitas?
Em 1696, o rei do Reino Unido, premido pela necessidade de aumentar suas receitas, propôs uma
nova tributação: o imposto das janelas. Tal imposto estipulava que o montante de impostos devido
pelos súditos passava a ser proporcional ao número de janelas de suas casas. Já em Nova Orleans, o
imposto residencial depende não das janelas, mas do número de andares existentes na parte da frente
das casas: quanto maior o número de andares na parte da frente, mais imposto se paga. E, por último,
em Hanói o imposto predial é proporcional à largura da frente do terreno, não à sua metragem
quadrada.
Nenhum dos três impostos mencionados cumpriu plenamente o objetivo de taxar mais os indivíduos
mais ricos, que normalmente têm casas com mais janelas, moram em casas com mais andares e
adquirem terrenos mais largos. E por quê? Porque as pessoas estão sempre tomando decisões
privadas com vistas a melhorar sua situação e, para cada contribuinte individualmente, pagar menos
impostos implica necessariamente em melhora.
Esta afirmação é válida mesmo se o imposto é gasto de maneira sábia e eficiente pelo governo. Ao
fugir dos impostos o contribuinte obtém um aumento em sua renda disponível (a renda que sobra após
o pagamento de impostos), e causa uma redução do mesmo montante no bolo total de recursos
disponíveis ao governo para gastar. Se ele paga menos imposto, mas ao mesmo tempo recebe menos
serviços públicos, por que ele estaria melhor? O ponto é que os gastos do governo são distribuídos
para toda a população (são bens públicos) e, portanto, a redução nos benefícios para o contribuinte
individual proveniente dessa queda nos recursos totais do governo é muito pequena.
Um simples exemplo numérico nos ajuda a entender esse ponto. Consideremos um país com apenas
100 famílias. Suponhamos que o governo arrecade impostos das pessoas e divida o montante
arrecadado igualmente entre a população. Isso retrata de maneira simplificada a ação do governo,
mas é uma boa simplificação porque quando o governo constrói uma estrada ou presta serviços à
população, ele está de fato devolvendo o dinheiro arrecadado para as pessoas em forma de um bem
público. Todos podem usar a estrada, quem pagou o imposto e quem não pagou.
Suponhamos que cada família pague 100 moedas de impostos. A arrecadação do governo totalizará
então 100 moedas vezes 100 famílias, portanto 10000 moedas. Dividindo-se este total pelas 100
famílias, temos que cada família recebe do governo 100 moedas - não diretamente, mas sob a forma
de uma nova estrada. Ou seja, todo mundo recebe de volta o que pagou inicialmente.
Agora, suponhamos que uma família fique isenta dos impostos ou consiga evadi-los. A arrecadação
do governo cai para 100 moedas vezes 99 famílias, ou seja, 9900 moedas. Com a devolução desse
montante para a população, cada família acaba recebendo 9900 ÷ 100 = 99 moedas. Em termos
líquidos, as famílias que pagaram 100 perderam uma moeda na transação. A família que não pagou
ficou com 99 moedas de saldo.
Os custos e benefícios sociais e pessoais decorrentes do pagamento de impostos podem ser
entendidos da seguinte maneira: de cada 100 moedas que uma família paga de impostos, uma volta à
própria família e 99 são distribuídas para a população. Essas 99 moedas são um custo para a família
mas geram bens públicos para as outras 99 famílias.
Suponhamos que seja desejável para as pessoas desse país a aquisição de um bem público no valor
de 10000 moedas. Neste caso, se uma família pudesse determinar o pagamento de impostos de toda a
sociedade, incluindo ela mesma, ela escolheria impor a taxação de 100 moedas para cada família.
Contudo, como ela não pode decidir pelos outros, sob o ponto de vista desta família, o melhor é não
pagar impostos. Da mesma maneira, o leitor provavelmente ficaria se isento do pagamento de
impostos por um ano, mas não gostaria nada se tal benefício fosse estendido para toda a sociedade
(não haveria policia nas ruas, nem coleta de lixo, nem fornecimento de água).
Por conta das vantagens individuais de não pagar impostos, as pessoas passam a inventar maneiras
engenhosas de evita-los. Se o imposto pago depende do número de janelas, do número de andares na
parte da frente da casa, e da extensão da entrada do terreno, as pessoas escolhem fechar algumas
janelas com tijolo, levantar casas com formato de camelo, e construir em terrenos finos e compridos.
Os donos dos imóveis mostrados acima lograram – pelo menos em alguma medida – escapar das
tributações que o governo almejava lhes impor. Ainda assim, as ações tomadas pelos indivíduos para
evitar os impostos não saem de graça. Isso porque se gasta algum dinheiro cimentando as janelas,
mas também – e principalmente - porque as janelas não estavam lá antes à toa; elas foram construídas
porque o dono ou o construtor nelas via alguma utilidade, como aumentar a iluminação interna e a
ventilação, ou prover algum charme decorativo. Fechá-las, portanto, foi uma decisão que gerou
perdas, que causou ineficiência, que não ocorreria na ausência dos impostos. Casas com formato de
camelo são, convenhamos, bem esquisitas, e morar em casa esquisita não agrada a ninguém (ou quase
ninguém). Menos agradável ainda é viver e/ou trabalhar em construções estreitas em uma particular
dimensão. Mas as pessoas preferem viver assim a pagar mais imposto habitando casas normais e,
portanto, desvirtua-se a casa (os economistas gostam mais do termo “distorcer”) e vive-se um pouco
pior do que antes do imposto.
As distorções decorrentes da tributação são as casas esquisitas, e o esforço que as pessoas fazem
para escapar dos impostos. Se todas as famílias do nosso exemplo estão dispostas a enfear, escurecer
ou tornar menos práticos suas casas, e assim escapam dos impostos, o governo não arrecada moeda
alguma e nada tem para devolver. Em termosfinanceiros, todas as famílias ficaram como antes. A
diferença é que o país tem agora casas esquisitas ao invés de casas normais. A tributação, portanto,
gera custos mesmo que não se desembolse um centavo.
Nenhuma destas distorções existiria se os cidadãos levassem em conta a totalidade do impacto de
suas ações sobre seus concidadãos e o governo fosse um ente benevolente, pensando exclusivamente
na sociedade. O governo então escolheria seus gastos de maneira bem-intencionada, as pessoas
pagariam os impostos sem serem fiscalizadas, e ninguém ficaria com a casa feia. Infelizmente, essas
hipóteses não têm se verificado na prática. Portanto, é preciso levar em conta as distorções da
taxação na formulação de políticas públicas.
A esta altura do livro, já sabemos que o governo tem importante papel a desempenhar na economia, e
que para gastar – seja provendo bens públicos (capítulo 9), seja com transferência de renda para os
mais necessitados (capítulo 10) – é necessário tirar recursos dos súditos (capítulo 6). Contudo, as
ineficiências da tributação precisam ser sempre levadas em conta. Primeiro, porque para um dado
nível de gasto, uma estrutura tributária mais eficiente gera menos perdas/distorções para a sociedade
e, portanto, precisamos prestar atenção às formas de taxação. Segundo, porque a decisão sobre os
gastos do governo precisa em si levar em conta a qualidade, ou eficiência, do sistema tributário.
Além das falhas de governo e dos custos diretos de sua intervenção, precisamos levar em conta as
distorções da tributação na escolha do montante dos gastos públicos.
Até aqui, estamos ressaltando o custo associado às distorções causadas pelos impostos. E este é
mesmo um dos principais objetivos deste capítulo. Contudo, não é esta a ênfase encontrada nas
discussões de bar sobre o mesmo tema. No bar, reclama-se que o governo está tirando dinheiro do
nosso bolso e gastando-o perdulária e irresponsavelmente. Claro, se o governo usa os impostos para
favorecer amigos próximos ou construir obras de pouca utilidade para a população, de fato temos aí
um tremendo desperdício de recursos para a sociedade (excluindo os amigos favorecidos), como já
discutido em capítulo anterior.
Mas e se, por exemplo, o governo tira dinheiro das pessoas mais ricas e distribui para as mais
pobres? Ou se o governo impõe uma taxação para fornecer um certo bem público necessário a toda a
sociedade? Este capítulo mostra que mesmo nas situações em que a intervenção do governo é
justificada e não há falhas de governo, a taxação gera custos para a sociedade.
Estas distorções podem ser importantes.
A renda média de um cidadão da Europa e ocidental é 70% da renda média de um norte-americano.
O que explica esta diferença? Façamos um breve check-list relembrando o aprendizado de capítulos
anteriores: o estoque de capital por habitante na Europa não é menor que nos Estados Unidos; a
educação média dos europeus também não é pior que a dos trabalhadores norte-americanos; e as
tecnologias empregadas na Europa não diferem de modo importante das usadas nos Estados Unidos.
O que é sim muito diferente entre Europa e Estados Unidos são as horas trabalhadas pelas pessoas.
Nos Estados Unidos, trabalha-se muito mais que na Europa e isto explica grande parte da
mencionada diferença de renda. Para se ter uma idéia, nos Estados Unidos se trabalham em média
39,4 horas por semana, enquanto na França este número é de 36,2. Esta diferença não parece muito
grande, mas só porque ainda não mencionamos o número médio de semanas por ano trabalhadas em
cada um destes países. Nos Estados Unidos: 46,2. Na França: 40,5. Resumindo os números, e
fazendo uma média dos países europeus, no velho continente se trabalha aproximadamente 70% das
horas anuais que se trabalham nos Estados Unidos.
Em parte, esta diferença de horas do ano despendidas no trabalho pode ser uma consequência de
visões de mundo distintas: pode ser que o americano valorize mais o trabalho e sua renda enquanto o
europeu atribua mais valor ao lazer, a uma ida ao museu. Mas uma parte substancial da explicação
parece estar ligada às diferenças de impostos e regulamentações do mercado de trabalho, que
funcionam como uma espécie de imposto sobre as firmas, nos Estados Unidos e na Europa
Continental. Para se ter uma ideia, na França a taxação sobre as horas trabalhadas pelas pessoas
chega até aproximadamente 55% a partir de um certo nível de salário; nos Estados Unidos, o número
equivalente é 35%.
Os trabalhadores reagem aos incentivos que lhes são dados pelas leis e é natural que optem por
trabalhar mais em um país onde levam para casa uma parcela maior do salário associado à uma hora
a mais de trabalho. Do outro lado, as empresas também estão escolhendo e têm menos incentivos a
contratar se a regulamentação do mercado de trabalho lhes impõe muitos fardos.
Em suma, as pessoas trabalham menos horas quando a tributação de seus rendimentos é mais alta.
Estas horas a menos trabalhadas, para fugir do imposto, são uma distorção. Mas a taxação e a
regulamentação que atingem o mercado de trabalho podem gerar ainda outras distorções. O elevado
grau de informalidade econômica observado em vários países é um exemplo.
As empresas e trabalhadores do setor informal não têm seus contratos e transações registrados. Sem
esses registros (ou com registros incompletos), eles têm maiores dificuldades de demonstrar sua
capacidade de pagamento aos bancos devido à falta de dados oficiais sobre seus lucros e
rendimentos. Isso dificulta e encarece o crédito. Além disso, a empresa no setor informal precisa
permanecer pequena. Primeiro, porque escapar dos radares do governo é mais difícil se a empresa é
grande. Segundo, por uma questão de controle interno: se um funcionário do Mc Donalds resolve
fugir do trabalho com o dinheiro do caixa, é fácil para a empresa provar que ele se apropriou
indevidamente da receita da venda dos Big Macs, pois todas as transações estão oficialmente
registradas, mas seria impossível ao Mc Donald’s controlar suas operações sem esses registros
formais. As empresas do setor informal então permanecem pequenas para manter o controle sobre
suas transações e funcionários dado que não podem oficialmente registrar operações como o Mc
Donald’s. Do lado dos trabalhadores, as pessoas no setor informal da economia não têm acesso a
alguns benefícios recebidos por quem trabalha no setor formal: por exemplo, estão menos protegidos
contra adversidades como uma doença incapacitante.
Assim como os ingleses escolhiam fechar suas janelas com tijolos há 300 anos atrás, muitas
empresas e trabalhadores escolhem não oficializar suas operações para escapar da taxação ou da
regulamentação. Se são necessários 289 dias para se oficializar a abertura de uma empresa, a maior
parte dos pequenos empresários optará pela informalidade. No setor informal, a empresa paga menos
imposto, mas por outro lado tem que arcar com os custos dessa decisão, como o menor acesso a
capital e a ganhos de escala, assim como os moradores das casas esquisitas pioravam suas casas
para pagar menos impostos.
É difícil estimar o tamanho do setor informal de uma economia – justamente porque quem escolhe
trabalhar na informalidade tem motivos para não querer se mostrar à lei – mas de acordo com os
resultados de alguns estudos, o setor informal equivale a cerca de 15% do PIB nos países
desenvolvidos, e entre 35% a 40% na América do Sul.[11]
Esses números tão díspares refletem importantes diferenças nos fatores que mais pesadamente
influenciam a decisão de migrar para a informalidade, como: custos e benefícios de se adequar ao
sistema formal; efetividade das punições legais para quem não paga imposto; os constrangimentos
sociais para os sonegadores.
Em todos os exemplos apresentados até aqui, as distorções surgem do esforço para fugir dos tributos.
O curioso é que, por conta disto, o tributo pode até mesmo nem ser pago. Institui-se o tributo, as
pessoas tomam medidas para evitá-lo, e sua arrecadação então não ocorre. Mas a distorção – a casa
sem janelas, um contingentede pessoas trabalhando no setor informal – fica lá.
Nos voltemos agora para um exemplo no mercado de bens. Suponhamos que um indivíduo esteja
disposto a pagar até R$ 1 por um lápis, e até R$ 1,80 por dois – afinal de contas a utilidade do
segundo lápis, uma vez que já se tem um, é menor do que a do primeiro, quando não se tem com o quê
escrever. Do lado da oferta, o produtor de lápis está disposto a vender um lápis por no mínimo R$
0,90 e dois por pelo menos R$ 1,80. Com estas hipóteses, se não há imposto, no encontro entre
comprador e vendedor dois lápis serão vendidos. Mas suponha que agora o governo decida tributar o
lápis, obrigando, por exemplo, o comprador a pagar um imposto de R$ 0,05 sobre cada lápis
comprado. Quanto será a arrecadação de impostos? R$ 0,05 por lápis e, portanto, R$ 0,10 no total?
Vejamos. O imposto tornou o lápis menos atrativo para o comprador porque este agora precisa pagar
o vendedor e também o governo. Cada lápis agora custa efetivamente R$ 0,95. Dois lápis passam a
custar R$ 1,90, o que é mais do que o comprador está disposto a pagar. Comprar um lápis ainda é
uma operação que beneficia ambos – o vendedor ganha seus R$ 0,90 e o comprador desembolsa R$
0,95 por um bem que ele valora em R$ 1,00. Respondendo a pergunta do parágrafo precedente, o
governo leva para seus cofres apenas R$ 0,05 de impostos, porque a imposição da taxação fez
encolher as trocas que ocorriam no mercado de lápis: ao invés de dois, apenas um é transacionado.
Se o imposto fosse um pouco maior, de R$ 0,11, por exemplo, o lápis passaria a custar R$ 0,90 + R$
0,11 de imposto, ou seja, R$ 1,01, e não haveria venda de lápis. Consequentemente, nenhum imposto
seria recolhido.
De fato, o tipo de fenômeno descrito acima pode ser tão forte que em casos extremos a arrecadação
de impostos pode até cair após um aumento da alíquota. Imagine um grande mercado de lápis, onde
milhares são comprados e vendidos todos os dias e sobre os quais é pago um certo montante em
impostos. Como vimos, um aumento da alíquota do tributo vai diminuir a quantidade de trocas feitas,
reduzindo a base de arrecadação – que são os lápis vendidos. Caso, por exemplo, após aumentar o
imposto do lápis em 10% a comercialização diária de lápis se reduza em 15%, a arrecadação total
vai declinar ao invés de aumentar.
Entendida a natureza dos custos da tributação, podemos agora nos colocar a seguinte pergunta: o que
caracteriza um bom imposto?
Em linha com o que vimos nos capítulos anteriores, a primeira das prescrições é taxar tudo aquilo
que causa externalidade negativa, pois assim desestimulam-se os atos com consequências ruins para
os outros. A tributação muda os incentivos e influencia decisões, causando distorções. Mas
influenciar decisões que geram externalidades negativas, desestimulando-as via taxação é salutar,
pois, indiretamente faz as pessoas levarem em conta os custos sociais de suas ações.
Além de taxar externalidades, há alguns outros critérios importantes para avaliar a qualidade de um
imposto: (i) as distorções por ele causadas; (ii) sua progressividade; e (iii) a facilidade de cobrá-lo
e fiscalizar esta cobrança.
Já falamos aqui sobre as distorções dos impostos. Pulemos então para o segundo critério:
progressividade. Um imposto é dito progressivo se incide majoritariamente sobre pessoas de mais
alta renda. A progressividade é um critério importante porque uma das funções do Estado é
justamente transferir renda para os mais pobres.
O terceiro critério é a praticidade do imposto: por não serem pagos voluntariamente, os impostos
precisam ser fáceis de serem cobrados e possíveis de fiscalizar. A famigerada CPMF é um dos
tributos mais fáceis de ser cobrado e fiscalizado, em que pese ser altamente ineficiente no quesito
distorções. O pagamento do imposto de renda e do imposto sobre o consumo é um pouco mais difícil
de se fiscalizar porque as empresas e pessoas podem evitar registrar suas transações. E o imposto do
sono, aquele pago de acordo com o registro do número de horas dormidas mensalmente de cada
cidadão, é impossível de ser fiscalizado – e, conseqüentemente, não existe.
O imposto da janela de 1696 é um exemplo de imposto instituído por sua praticidade. O governo
inglês optou por essa estapafúrdia modalidade de tributação justamente porque averiguar a renda de
cada cidadão não era fácil e, além disto, muitos viam a idéia de imposto de renda como uma
intromissão indevida do Estado, pois para implementá-lo, o governo precisaria recolher informações
privadas sobre a situação financeira de cada um. A idéia de revelar ao Rei informações pessoais
desta natureza era vista com maus olhos em um país que acabava de passar pela Revolução Gloriosa,
cuja principal conseqüência foi justamente diminuir o poder da Coroa de confiscar seus súditos.
Vejamos agora como alguns impostos comumente cobrados se encaixam nos dois primeiros critérios
mencionados.
O imposto que incide sobre o capital – a aquisição de máquinas por parte de um empresário, por
exemplo – tem a vantagem de ser progressivo, pois o pobre não investe em máquinas. Mas ele tem a
desvantagem de afetar adversamente a decisão de investir. Se o empresário investe menos por conta
da taxação (ou escolhe investir em outro país) a economia vai ficando com um número relativamente
baixo de máquinas e equipamentos, o que terminará por afetar negativamente os salários dos próprios
trabalhadores, como vimos no capítulo 5. Assim, a taxação sobre o capital deve ser mantida em
patamares moderados, pois apesar de sua incidência direta ser sobre os mais ricos, no longo prazo
ela afeta adversamente os salários dos trabalhadores via menor estoque de capital na economia.
A taxação progressiva sobre o trabalho – isto é, quanto maior o salário maior o imposto – também
cria suas distorções, mas é melhor que a tributação sobre o capital. Ela atende o critério de
progressividade porque as alíquotas deste imposto são crescentes com a renda do trabalho, e sua
ineficiência não é muito grande se as alíquotas para as faixas mais altas de salário não forem
exorbitantes. No Brasil, por exemplo, o imposto de renda não é muito alto, ao contrário do que se
costuma dizer.
O imposto sobre o consumo afeta igualmente ricos e pobres que compram os bens taxados, e neste
sentido ele não satisfaz o importante critério de tirar mais dos mais bem aquinhoados. Uma maneira
de atenuar esta falha é isentar de impostos os bens usualmente consumidos pelos mais pobres, como
fez o governo brasileiro ao desonerar a incidência de impostos sobre a cesta básica.
E o que dizer do imposto sobre o consumo de cigarro? Muita gente argumenta que o altíssimo
imposto sobre o cigarro é bom porque assim os fumantes têm uma chance de escapar do vício. Mas
precisamos lembrar que fumar é uma escolha. O fato de o cigarro viciar significa que essa escolha é
mais difícil de ser revertida, o que impõe limitações a essa maneira, digamos liberal, de pensar. Mas
tratar fumantes como marionetes que não tem poder sobre seus atos é um outro extremo que tampouco
parece razoável. O cigarro faz mal à saúde, mas a chance de os fumantes em idade adulta não
saberem disto é muito baixa. Além disso, é preciso considerar que fumar é uma fonte importante de
diversão para a camada mais pobre da população, que muitas vezes não tem acesso a outras opções
de lazer. Para eles, portanto, a taxação sobre o cigarro é algo ruim. Assim, taxar pesadamente o
cigarro fere um dos dois pilares da boa tributação: o da progressividade dos impostos.
Por outro lado, a taxação do cigarro tem a vantagem de não gerar muitas distorções porque, no
linguajar do capítulo 3, a demanda por cigarros é inelástica ao preço. Isto significa que a alta taxação
não gera grandes quedas na demanda e, consequentemente, alíquotas draconianas resultam em
arrecadação elevada e não em muitas pessoas deixando de fumar. Por fim, algumas deixam sim de
fumar e, portanto de causar uma externalidade negativa para os não fumantes - graças à tributação. E
aquelas que não deixam pagam mais impostos, o que se porum lado é ruim por conta da questão da
falta de progressividade, por outro é coerente dado que muitos fumantes terminarão com sérios
problemas de saúde e precisarão ser assistidos pelo sistema de saúde que em parte é financiado por
não-fumantes. Faz todo sentido que aqueles que vão onerar mais o sistema público de saúde paguem
mais por isto via impostos. Em termos lógicos, o argumento é equivalente à defesa dos pedágios
como forma de financiamento das estradas de rodagem: quem usa mais, paga mais.
betoc
Destacar
betoc
Destacar
Por fim, um imposto que pode satisfazer bem os dois critérios mencionados é o imposto sobre a
terra. Como a terra é um insumo fixo, o dono da terra não tem muitos meios de fugir do imposto. O
trabalhador foge do imposto trabalhando menos ou migrando para a informalidade, o capitalista dono
de uma empresa foge do imposto do capital não adquirindo novas máquinas, os moradores de Hanói
escapam da tributação construindo terrenos estreitos na frente e compridos de fundo, mas o dono da
terra não tem muitas opções e, justamente por isto, o imposto sobre a terra não gera muita
ineficiência. Do lado da equidade, um imposto sobre a terra que incida mais pesadamente sobre os
que têm as maiores propriedades tenderá a recolher mais recursos dos mais abastados.
Em suma, neste capítulo buscamos entender as consequências econômicas decorrentes da taxação e,
por existirem vários tipos de impostos, comparar diversas alternativas de tributação. Impostos
causam várias espécies de distorções e têm impactos distributivos. Os melhores impostos são os que
desencorajam externalidades, tiram mais dos mais ricos e distorcem menos as escolhas das pessoas.
14. As cigarras
 
Em uma das mais famosas fábulas do Esopo, a Cigarra passa o verão cantando enquanto a Formiga
trabalha duro para juntar comida para a estação fria. Chegado o inverno, a Cigarra, sem ter o que
comer, vai pedir alimento à Formiga, que lhe nega ajuda retrucando: “pois cantava no calor de
outrora? Que beleza! Agora, dance!”
Hoje em dia, as estações do ano são muito pouco importantes para explicar nossas possibilidades de
consumo. Os avanços tecnológicos que nos permitem conservar alimentos por muito mais tempo e o
comércio internacional que possibilita levar produtos de onde é verão para onde é inverno fazem
com que não seja importante poupar no verão para consumir no inverno. Na verdade, a maior parte
de nós sai de férias no verão. Ao contrário da Formiga, trabalhamos mais na época do frio que na
estação quente, não por ser mais produtivo trabalhar no inverno, mas por simplesmente preferirmos
ir à praia e viajar nos dias mais quentes.
Entretanto, chega para nós a época em que não podemos mais trabalhar como antes. O corpo está
cansado, a saúde está frágil, e não conseguimos mais trabalhar tão produtivamente como quando
jovens. Assim, se poupar alimentos para a estação fria não é mais uma preocupação relevante hoje
em dia, garantir recursos para o consumo na velhice seguramente é.
Este capítulo trata das questões econômicas relacionadas à aposentadoria. Como se sabe, a grande
maioria dos Estados modernos têm sistemas de previdência e seguridade social que visam prover
renda para os que já não trabalham mais, para isso taxando os que trabalham no presente. Assim,
como não poderia deixar de ser, nossa primeira pergunta é sobre os motivos desta intervenção
estatal: precisa existir um sistema de previdência gerido pelo Estado?
A resposta pode parecer óbvia: sim, um sistema de previdência é necessário para cuidar dos idosos,
garantindo que eles tenham como viver dignamente após se aposentar. Mas a resposta óbvia está
errada. Como qualquer formiga sabe, mesmo sem ler o capítulo 7 deste livro, é possível guardar
recursos hoje para gastar no futuro. Se não houvesse a aposentadoria do governo, as pessoas por
certo poupariam parte da sua renda para quando envelhecessem. Elas teriam fortes incentivos para
guardar para o seu futuro se não o governo não lhes estendesse ajuda na velhice. De fato, na maior
parte da história da humanidade, o Estado não interveio nesta questão: os sistemas de previdência
são invenções recentes, instituídos na grande maioria dos países no século XX. Antes disso, aqueles
que não podiam mais trabalhar viviam da renda de suas propriedades (empresas, terras, imóveis), de
suas poupanças, ou eram sustentados pelos mais jovens e mais saudáveis de suas famílias.
A fábula não nos conta o que aconteceu com a Cigarra depois que a Formiga lhe negou auxílio. O que
foi dela? Quais as opções para aqueles que chegam sem um tostão à velhice?
É possível que a Cigarra tenha se deixado morrer lentamente no frio, como um velho esquimó de
séculos atrás que por não mais conseguir caçar e, para não impor um fardo aos outros em épocas de
escassez de alimentos, por vezes acabava sendo morto ou suicidava-se para aumentar as chances de
sobrevivência da família.
Mas é possível também vislumbrar outro final menos trágico para a Cigarra. Talvez a Formiga
acabasse sendo convencida a ajudá-la, por simples dó ou troca de favores, como nas versões para
crianças que mostram a Formiga alimentando a Cigarra em troca de canções alegres, ou na bela
música de Milton Nascimento, onde a Formiga é a melhor amiga da Cigarra. E na ausência desta
cooperação por parte da Formiga, furtá-la, ou ameaçar usar de violência para conseguir um pouco de
comida poderia funcionar. Alternativamente, em um mundo mais civilizado, as cigarras poderiam se
reunir e formar um grupo de pressão na tentativa de sensibilizar o governo para conseguir recursos
para o inverno. E é provável que o governo optasse por intervir para salvar a vida das cigarras –
quem não o faria? –, taxando a Formiga e transferindo recursos para as imprudentes necessitadas.
Eis aí o principal motivo para a existência de um sistema de previdência que force as pessoas a
poupar para a aposentadoria. Se as pessoas não poupam hoje, os cidadãos no futuro terão incentivos
a dar um pouco àqueles que chegam à velhice desprovidos. As cigarras que não pouparam, na busca
pela sobrevivência, podem acabar por usar a energia que lhes resta para pegar um pedaço da comida
das formigas quando o inverno da velhice bater à porta. Se as cigarras forem muitas e se
organizarem, terão considerável poder para convencer o governo e os políticos a ajudá-las em troca
de votos. A imprudência de uns vira o fardo de outros e caracteriza, portanto, uma importante
externalidade negativa.
De fato, muitas pessoas recebem benefícios do INSS sem nunca ter contribuído para o sistema de
previdência. É o caso, por exemplo, dos trabalhadores rurais aposentados. Mas, se parte da
poupança de uns é utilizada para alimentar os outros, temos aqui a externalidade da cigarra. Isso
significa que a prescrição de política pública é aumentar os incentivos para as pessoas pouparem
para a velhice, ou até mesmo proibir as pessoas de não guardar para o futuro.
As tentações para consumir mais ou trabalhar menos na juventude contribuem para acentuar o
problema da imprudência. As cigarras da fábula podem até estar cientes da necessidade de poupar,
mas é por vezes difícil deixar a cantoria e sair para trabalhar. Da mesma forma, resistir a tentação de
comprar aquele sapato e poupar um pouquinho menos “só esse mês” não é fácil. Assim como Ulisses,
o navegador de Homero, preferia não ter a escolha de se jogar ao mar quando atraído pelo canto das
sereias, suprimir a opção de não poupar para a velhice, tirando parte do nosso dinheiro do alcance
das nossas mãos, pode nos beneficiar.
Se o ato de poupar para a aposentadoria é tão necessário e nem sempre simples de ser implementado
– é difícil fazer os cálculos, e é difícil resistir à tentação de não poupar – o governo não atrapalha ao
não permitir que as pessoas gastem tudo que recebem. Ao contrário, ele faz um bem ao minimizar a
possibilidade de que os imprudentes gerem externalidades negativas para a sociedade no futuro.
Além de poupar para a sua aposentadoria, o trabalhador precisa também se preparar para a
eventualidadede que um acidente o incapacite de trabalhar, ou para a eventualidade de que faleça
jovem, deixando sua família em maus lençóis. Como vimos no capítulo 10, seguros são importantes
para essas ocasiões e, diferentemente do mercado das almas, mercados de seguros para os riscos de
morte e invalidez existem. O problema é que, assim como no caso da aposentadoria, não se
preocupar com essas eventualidades gera externalidades negativas, pois ao antecipar que a
sociedade arcará com parte dos custos de sua imprevidência, o trabalhador pode acabar sucumbindo
à tentação de gastar o dinheiro ao invés de comprar o seguro. Portanto, pelo mesmo motivo que o
governo deve intervir para fazer as pessoas pouparem para o futuro, deve haver medidas e leis que
obriguem as pessoas a se segurarem contra esses riscos.
Vimos até aqui as justificativas para a existência de um sistema que force as pessoas a pouparem
para o futuro ou comprarem seguros para sustentar suas famílias em caso de morte ou invalidez.
Entendida essa questão, passamos à próxima pergunta: como deve se estruturar o sistema de
previdência?
Sistemas de previdência existem no mundo todo, e uma maneira de iniciar nossa investigação é
examinar como os sistemas de previdência são estruturados hoje em dia.
No Brasil, e na maioria dos países do mundo, a previdência opera em regime de repartição. Neste
sistema, o dinheiro das aposentadorias, bem como o seguro para inválidos e viúvas, vem da
contribuição ao INSS que incide sobre os salários dos que se encontram empregados hoje. O sistema
de repartição é um sistema de transferências: cada funcionário registrado paga um percentual de seu
salário para a previdência e, além disso, a empresa paga ao INSS uma fração do valor de sua folha
de pagamento. São estes recursos retirados dos jovens que financiam os aposentados e inválidos.
Como dito, a contribuição vem tanto dos trabalhadores como dos empregadores, mas seguindo a
lógica apresentada no capítulo 4, não importa quem paga o imposto. Não faz diferença para empresas
e trabalhadores se a empresa paga um salário de R$1.000 e mais R$200 de imposto, ou se o salário é
de R$1.200, mas o trabalhador arca com R$200 de imposto. As decisões de contratar ou não e o
salário líquido são os mesmos nos dois casos.
O que importa é que a contribuição para a previdência funciona como um imposto sobre o trabalho.
Isto porque seu impacto sobre o custo de um funcionário para a empresa é muito maior do que o
impacto benéfico dessa contribuição no bolso do próprio trabalhador.
Vejamos um exemplo simples que ilustra este ponto. Considere dois funcionários de uma empresa,
um que recebe de salário R$10.000 por mês e outro que recebe R$20.000 mensais. A empresa paga
ao INSS 20% sobre o salário de cada um deles. Contudo, os dois vão receber o mesmo valor quando
se aposentarem, dado que esses valores suplantam o teto estabelecido para benefícios pagos pelo
sistema. É por isto que a contribuição obrigatória tem o efeito de um imposto sobre o salário: ela não
devolve na proporção que toma.
Esta divergência entre quanto se contribui e quanto se recebe de volta mostra que a contribuição para
a previdência tem as características de um imposto. Isso acontece porque os recebimentos futuros
não refletem o retorno que seria obtido se os pagamentos para a previdência fossem poupados e
rendessem os juros de mercado.
Como vimos no capítulo 4, um imposto sobre o salário diminui a demanda por trabalhadores sem
aumentar a oferta. Para um mesmo salário líquido, um maior imposto significa que a empresa tem
menos incentivos para contratar (porque tem que pagar o imposto) e o empregado tem os mesmos
incentivos para trabalhar. Esta combinação leva, inequivocamente, a menores rendimentos e menos
empregos.
A empresa e o trabalhador podem tentar fugir do imposto previdenciário e optar pela informalidade.
De fato, como o imposto pago ao INSS é alto, essa escolha se dá com freqüência. Mas como vimos
no capítulo passado, isso é ruim por conta dos custos da informalidade.
Um outro problema sério do atual sistema é que ele enseja altos níveis de corrupção. Arrecadar
dinheiro de toda a população, juntar esse dinheiro em um bolo pouco transparente, e distribuir os
recursos para os beneficiários de acordo com regras complicadas é um convite às falhas de governo.
O INSS é mesmo uma presa tentadora para os ataques de pessoas que querem roubar o dinheiro dos
outros. Com muito dinheiro recolhido dos contribuintes a ser distribuído para aposentados,
pensionistas e hospitais, a atividade de corrupção no âmbito deste sistema é lucrativa, como atestam
as fortunas embolsadas por alguns corruptos – há casos de fraudes da ordem de centenas de milhões
de reais. Os desvios de dinheiro da previdência são crimes muito graves que merecem punições
muito severas, a lei firme e seu cumprimento ágil e estrito são instrumentos importantes para minorar
os incentivos ao roubo. Mas muito pode ajudar nesta direção a implementação de um sistema menos
propenso a desvios do que o atual.
Além da corrupção propriamente dita, desperdiça-se muita energia e recursos nas disputas políticas
pelo controle da chave do cofre e das leis que regem o uso do INSS. Como nem todos contribuem ao
INSS e a relação entre pagamentos presentes e benefícios futuros é muito tênue, lobbies e
movimentações políticas tentando influenciar as leis que regem o sistema podem ser bastante
lucrativos. O resultado? Uma temporada interminável de caça ao dinheiro da previdência. Em
consequência deste incentivo perverso, muita gente acaba devotando esforços e tempo para essa luta,
o que além de por vezes gerar diversas injustiças, é um custo para a sociedade dado que o trabalho
dessas pessoas poderia estar sendo utilizado em outras atividades produtivas, como vimos no
capítulo 11. Esta é então uma importante falha de mercado, inerente ao arranjo atual, que não pode
ser desconsiderada da análise.
De acordo com o funcionamento do sistema de previdência de repartição, após um dado número de
anos de serviço, ou ao atingir certa idade, o trabalhador pode começar a receber a aposentadoria.
Por exemplo, uma mulher que completa 30 anos de trabalho aos 50 anos de idade e que tem plenas
condições de continuar trabalhando, pode optar por começar a receber o dinheiro das outras
formigas. Em média, ela vai sacar recursos da conta das formigas por muito tempo se se aposentar
tão cedo. As últimas décadas têm presenciado um aumento significativo na expectativa de vida das
pessoas e se o tempo que uma pessoa tem que trabalhar para se aposentar e a idade mínima
permanecem fixos, o aumento na expectativa de vida se traduz em um maior contingente de
aposentados na sociedade. Esta tendência implica que logo não será mais possível manter os mesmos
pagamentos aos aposentados sem aumentar os impostos recolhidos dos que hoje trabalham. Se nada
for feito, esta dinâmica demográfica de aumento de expectativa de vida torna o atual sistema
inviável. Contudo, como ninguém quer sair prejudicado com os ajustes que visam remediar o
desequilíbrio crescente – aumentar a contribuição, diminuir os proventos, aumentar a idade mínima
–, as mudanças ou tardam demais ou não saem do papel.
Resumindo um pouco a discussão até aqui, o sistema previdenciário é uma intervenção estatal que
surge para corrigir uma distorção, para disciplinar as cigarras, cuja imprudência traz custos para a
sociedade. Como vimos no capítulo 9, o objetivo dessas políticas públicas é fazer com que as
pessoas levem as externalidades em conta ao tomar suas decisões. Mas a intervenção traz outras
distorções importantes. As leis e impostos da previdência acabam fazendo com que as ações das
pessoas se afastem do que seria ideal para a sociedade, gerando custos potencialmente tão grandes
quanto os que a intervenção almeja reduzir. Por conta disto, surge a pergunta: seria possível
implementar um sistema que corrigisse o problema das cigarras, mas gerasse menos distorções na
economia?
Uma alternativa ao regime de repartição, hoje utilizado no Brasil, seriaum sistema em que cada um
tivesse a sua própria conta de poupança previdenciária. Seria importante que a contribuição para
essa conta fosse mandatória para resolver o problema das cigarras. Assim, um sistema desse tipo
resolveria a falha de mercado relevante sem gerar outras distorções. Os economistas chamam esse
sistema de regime de capitalização. Vejamos a lógica desse sistema.[12]
A característica principal do sistema de capitalização é que a contribuição para a sua própria conta
previdenciária não é um imposto, pois o dinheiro que foi retirado do seu salário para a sua conta
reverte integralmente para você. É verdade que o cidadão não tem a opção de resgatá-lo a qualquer
hora - há que deixá-lo na conta até o momento da aposentadoria chegar. Mas o dinheiro é seu, é sua
poupança forçada pelo governo, e você pode sempre verificar a quantas anda a sua conta. Nesse
regime, o dinheiro da sua conta previdenciária é investido, rende juros, e paga imposto como
qualquer outro investimento. Um real poupado hoje, amanhã é um real mais os juros e, portanto, o
trabalhador não vê esse dinheiro como uma taxação, mas sim como poupança. Por causa disto, as
distorções relativas ao impacto da contribuição sobre a criação de empregos não existem. O
trabalhador que recebe R$20.000 por mês e não considera como seus os R$4.000 pagos pela
empresa ao INSS, certamente se sentiria dono dos depósitos mensais de R$4.000 em sua conta
previdenciária. Colocado de maneira simples, enquanto o regime de repartição é um regime de
transferência de renda, o de capitalização é um verdadeiro regime de poupança e por isto ele não
gera distorções no mercado de trabalho.
O sistema de capitalização não requer que a administração dos recursos seja feita por empresas
privadas, apesar de esta ser uma possibilidade. O que é importante é que a alocação dos recursos
destas contas obedeça a padrões de prudência rigorosos estipulados pelo governo para evitar que o
aposentado receba a desagradável notícia de que seu dinheiro virou pó, pois o administrador do
fundo investiu tudo em títulos de empresas de alto risco. De fato, uma maneira simples de
implementar tal fundo é estipular que, até um certo patamar, todo o dinheiro de uma conta
previdenciária deva ser investido em títulos públicos (os mesmos que compõem os fundos de renda
fixa existentes no mercado), e o que exceder esse patamar poderá ser destinado pelo cidadão para
fundos de ações ou de renda fixa que ele expressamente escolher. O investimento em títulos públicos
garante que parte do rendimento estará livre de riscos e que pessoas com menos educação, que
ganham pouco e não entendem de investimentos, não precisem se preocupar em administrar
ativamente sua conta previdenciária. Essa é apenas uma sugestão, uma miríade de possibilidades
existe. O importante é que o cidadão veja o dinheiro de sua conta previdenciária como seu e que boa
parte do rendimento não corra riscos, pois afinal de contas queremos que as pessoas cheguem à
aposentadoria com dinheiro, justamente para evitar o problema das cigarras.
Um ponto de suma importância: as possibilidades de corrupção nesse sistema são muito menores do
que no caso do regime de repartição. Se o dinheiro do INSS é desviado, só se fica sabendo se
alguém descobrir, denunciar e a imprensa divulgar. Não há muita vigilância porque o bolo de
recursos é de todos. Por outro lado, é muito mais difícil que um esquema de corrupção desvie o
dinheiro da minha conta sem que eu perceba. Em vez de um bolo enorme de bilhões de reais a ser
distribuído aos beneficiários a cada mês, há milhões de contas previdenciárias, cada qual com seu
dono, e cada dono com fortes incentivos a monitorar sua própria conta. As outras falhas de governo,
ou seja, as disputas políticas pelos direitos e deveres previdenciários também desaparecem. Não há
mais o genérico “recurso da previdência”: há a sua conta pessoal, o dinheiro que você depositou em
seu nome. Não há profissionais ou categorias isentas, direitos diferentes para grupos diferentes,
complicações de lei, e nem negociações pouco transparentes para determinar os rumos do dinheiro
ou privilégios para quaisquer tipos de profissionais.
Digamos então que depois de muitos anos de trabalho, uma pessoa que acumulou R$ 1 milhão em sua
conta previdenciária pessoal decide se aposentar. Parece muito dinheiro, mas lembre-se que esse
dinheiro tem que sustentar a pessoa por todo o resto de sua vida. Como fazer agora? Em princípio, o
aposentado poderia deixar o dinheiro em sua própria conta e retirar todo mês um pouquinho. Mas
surge aqui um risco inusitado: o risco de viver muito. O aposentado pode estimar que vai viver mais
vinte anos e calcular quanto deve retirar a cada mês para que o dinheiro acabe exatamente no final
desse período. O problema é que a partir do vigésimo primeiro ano, ele não terá mais como se
sustentar.
Jorginho Guinle, famoso playboy brasileiro falecido em 2004 com 88 anos, enfrentou esse problema.
Guinle, de família rica (primeiros donos do Hotel Copacabana Palace), optou por viver sem
trabalhar, curtindo jazz e filosofia e namorando atrizes famosas como Marilyn Monroe e Rita
Hayworth. Para cobrir suas despesas nada modestas, ele usou a fortuna herdada de seus pais.
Precavido, Jorginho fez a conta de quanto poderia gastar mensalmente para viver sem problemas – e
sem trabalhar - até o fim dos seus dias. De certo modo, ele se preocupou em poupar para o futuro.
Entretanto, o playboy brasileiro subestimou sua expectativa de vida e no final dos dias precisou
morar de favor no Copacabana Palace. Como ele disse certa vez em entrevista à Rede Globo: "Vivi
demais. Achei que ia viver 80 anos. Estou com 87. Me ferrei".
De fato, umas pessoas vivem mais e outras menos, e na hora de se aposentar, ninguém sabe quanto
tempo mais vai viver. Uns morrerão no mês seguinte, outros passarão dos 100 anos. Um seguro
contra o risco de viver demais deve retirar dinheiro dos cidadãos que morrem cedo e transferir
recursos para os que têm a sorte da longevidade. Parece injusto mas não é pois, na hora da
aposentadoria, o dia da morte de todos nós está escondido atrás do véu da ignorância.
Uma boa maneira de implementar essa transferência é a seguinte: no momento de se aposentar, o
cidadão troca o valor total de sua poupança por um pagamento mensal a ser recebido enquanto ele
estiver vivo. Ao falecer, sua poupança passa às mãos do governo, mas enquanto vivo ele recebe um
pagamento mensal que depende da taxa de juro da economia e também da sua expectativa de vida. Se
a expectativa de vida é baixa, o aposentado recebe um retorno maior, porque neste caso a poupança
do aposentado passará, em média, mais cedo para as mãos do governo.
Para o governo, o fato de que uns morrerão antes que outros não traz risco financeiro algum, pois o
excesso de pagamentos para aquele que passou dos 100 anos será compensado pelo economizado
com o azarado que morreu logo após se aposentar – assim como para quem vende várias apólices de
seguros de automóveis, o gasto com o pagamento àqueles que tiveram carros roubados é compensado
pelo prêmio recebido dos que não foram vítimas de roubo.
A transformação da poupança do aposentado em pagamentos perpétuos, com o aposentado sacando
um pouco de sua conta todo mês, evita que o aposentado torre a grana de sua poupança em poucos
anos e, portanto, resolve o problema das cigarras que poderia surgir da imprudência dos recém
aposentados. Por conta desta possibilidade, deve-se considerar a obrigatoriedade de se transformar
o dinheiro da conta previdenciária em pagamentos perpétuos no momento da aposentadoria.
Nesse sistema, com que idade a pessoa se aposenta? É necessário que haja uma idade mínima, para
evitar o problema das cigarras. A partir daí, a escolha está nas mãos do cidadão – ele pode ou não
continuar depositando dinheiro em sua conta e pode passar a receber o dinheiro quando quiser. Se
ele tem vontade de se aposentar mais cedo, que se aposente com um benefício menor. Se ele prefere
trabalhar mais, seus pagamentos futuros serãomaiores, pois quanto mais velho uma pessoa for, menor
sua expectativa de vida e, portanto, maiores os pagamentos mensais equivalentes a um dado montante
de dinheiro.
E se a pessoa falecer antes de se aposentar? Nesse caso, o dinheiro de sua conta é utilizado para
sustentar sua família – devidamente transformado em pagamentos mensais calculados de acordo com
a expectativa de vida da viúva ou do viúvo.
Há outros riscos que não foram considerados até aqui. Por exemplo, e se um pai de família morre
logo após se aposentar, como viverá sua esposa? Se apenas um dos cônjuges tem uma conta
previdenciária, o dinheiro poupado durante anos pode e deve ser transformado em pagamentos
mensais a serem recebidos enquanto pelo menos um dos cônjuges estiver vivo. Nestes casos, o
pagamento da aposentadoria se dará por mais tempo (até o último cônjuge morrer).
Consequentemente, o valor mensal da aposentadoria durante todo o período será menor – não há
economágica nesse sistema.
Os demais riscos cobertos pelo sistema de previdência devem ser cobertos com seguros, e se há um
problema das cigarras envolvido, o seguro deve ser obrigatório. Aí se encaixam seguros contra
morte ou invalidez para pessoas cujos salários são fundamentais para a sobrevivência de seus
cônjuges. Aliás, pessoas em profissões mais perigosas devem pagar mais pelo seguro, assim como
quem tem carro com mais chance de ser roubado paga um prêmio maior à seguradora, o que encarece
o trabalho desses e aumenta os incentivos para as empresas adotarem processos produtivos mais
seguros.
O regime de repartição tem uma vantagem potencial em relação ao regime de capitalização: ele
permite transferir renda entre pessoas e entre gerações. Por exemplo, pessoas pobres que nunca
contribuíram com a previdência são amparadas por programas no âmbito desse regime. Como
argumentamos neste livro, transferir renda para quem nasceu sem oportunidades é uma importante
função do Estado. Tais transferências devem ser financiadas com impostos. Note, contudo, que em
princípio o combate à pobreza poderia ser tratados no âmbito dos programas sociais de transferência
de renda, desvinculado do sistema previdenciário.
Como a análise acima mostra, acreditamos que um regime de capitalização é superior ao regime de
repartição. Contudo, a transição para um novo sistema não ocorre facilmente, por dois motivos: (i)
porque já há uma estrutura em funcionamento, então a mudança para o novo sistema precisaria
incorporar quem estava jogando de acordo com as regras antigas (e como os princípios para essa
transição são de certo modo arbitrários, haveria enorme disputa política para estabelecer as novas
regras); e (ii) alguns daqueles que contribuem pouco e colhem muitos benefícios do regime vigente,
bem como os que se beneficiam de esquemas de corrupção no sistema atual, tentariam usar sua força
política para obstruir as mudanças.
Concluindo, as cigarras desse capítulo não são os músicos que alegram as nossas vidas, são as
pessoas que não poupam para os tempos de necessidade. Por conta de suas externalidades negativas,
essa imprudência merece uma intervenção governamental. Esta intervenção via regime de
capitalização apresenta menos distorções que quando é feita através de sistemas de repartição.
15. Os ombros dos gigantes
 
Em 1904, o físico alemão Otto Lehmann publicou o primeiro trabalho acadêmico sobre cristais
líquidos. Desde então, vários trabalhos científicos foram escritos sobre o tema e depois de muita
pesquisa, a partir de 1968, monitores de cristais líquidos (LCD) começaram a ser produzidos. Hoje,
várias pessoas no mundo dominam a tecnologia de produção de televisores LCD, que são fabricados
por diversas empresas.
Otto Lehmann não começou sua pesquisa sobre cristais líquidos do nada. Ele utilizou todo um
conjunto de aprendizado acumulado ao longo de vários anos de estudo. Por exemplo, ele aplicou em
seus trabalhos as ferramentas do cálculo diferencial e integral desenvolvido por cientistas como
Newton e Leibniz no século XVII, cujo conhecimento é hoje necessário para qualquer interessado em
física.
Por sua vez, Isaac Newton, que além de ter tido participação fundamental no desenvolvimento do
cálculo fez inúmeras descobertas em vários campos da física e da astronomia, disse uma vez que o
que o possibilitava ver longe era o fato de ele “se apoiar sobre os ombros de gigantes” – ou seja,
utilizar todo o conhecimento dos que o precederam. Essa frase, aliás, não é invenção de Newton. O
filósofo francês Bernard de Chartres já havia afirmado no século XII que “somos como anões
sentados sobre os ombros de gigantes, então somos capazes de ver mais longe que os antigos”.
Issac Newton, um dos maiores gênios científicos que o mundo já conheceu, não sabia nada sobre
cristais líquidos – assim como todos os que viviam naquela época – e não seria capaz de produzir
nem mesmo a mais singela televisão, preto-e-branco que fosse, mesmo que a esta tarefa dedicasse
diversos anos de pesquisa e estudo. Isto porque os tubos de raios catódicos, que compõem os
televisores mais simples, só foram inventados no final do século XIX, e com base no conhecimento
acumulado até então, que incluía dois séculos de pesquisa após Newton.
É a educação, o conhecimento aprendido e repassado que explica a enorme distância entre as
habilidades de um homem das cavernas e as de um engenheiro que projeta televisores LCD hoje em
dia. É a educação que nos permite utilizar os conhecimentos acumulados durante milênios; é ela a
escada que nos alça aos ombros dos gigantes para vermos além do que poderíamos enxergar
sozinhos.
Praticamente tudo que sabemos vem de algum aprendizado que nos é repassado. Coisas que nos
parecem óbvias não o eram antes de serem inventadas. Por exemplo, os passes curtos no futebol, hoje
componentes do repertório de qualquer criança com mais de dez anos que gosta de jogar bola, não
eram rotineiramente utilizados até que os uruguaios nos jogos olímpicos de 1924 apareceram com
essa ideia e ganharam o campeonato. Mesmo tarefas simples, como operar uma foto-copiadora, lavar
pratos e passar a bola para o companheiro do lado, só são fáceis depois que se aprendeu.
Educar-se significa adquirir um conjunto de habilidades e conhecimentos, não exclusivamente na
escola, que habilitam o indivíduo a: (i) desempenhar uma atividade produtiva qualquer; (ii) ensinar e
aprender com os outros e exercer mais efetivamente sua cidadania; e (iii) aproveitar melhor a vida.
Os exemplos que abrem esse capítulo deixam clara a importância da educação no que tange o
primeiro item. Vejamos os outros.
Começando pelo item (iii), uma criança que se educa e aprende a ler poderá, por exemplo, descobrir
o encantador mundo dos livros ou aprender a história de seu país; um indivíduo que estuda e aprende
outros idiomas poderá entrar em contato mais íntimo com novas culturas fascinantes, talvez viajando
para outros países e falando o idioma local; as pessoas que aprendem a mexer no computador
ganham acesso a um vasto conjunto de informações e opções que podem facilitar bastante sua vida. A
falta de educação, por outro lado, torna o dia-a-dia mais difícil. Um analfabeto funcional não
consegue entender o significado de uma sentença apropriadamente, o que torna sua inserção na
sociedade muito limitada. Quem não aprende as operações básicas da matemática também enfrenta
dificuldades, não somente no mercado de trabalho, mas até mesmo para fazer a soma da conta na
padaria.
O convívio em sociedade também é facilitado quando o nível de educação das pessoas é mais alto.
Em média, pessoas mais educadas entendem melhor as notícias e têm mais facilidade de colher
informações relevantes para julgar a qualidade das políticas públicas. Assim, em média, elas têm
melhores condições de escolher bem seus representantes políticos e de exercer sua cidadania. Além
disso, no convívio social, estamos sempre aprendendo uns com os outros. O conhecimento de uma
pessoa, o resultado de sua educação, é frequentemente transmitido ao conjunto da sociedade.
Uma implicação importantedessa discussão é que a educação de uma pessoa traz externalidades para
a sociedade, pois se você vota bem e se eu aprendo ouvindo o que você fala e observando o que
você faz, eu estou colhendo alguns benefícios da sua educação.
Mesmo que a escola não seja a fonte única de educação, ela é responsável por parte importante desta
e, portanto, pessoas que estudam mais tendem a ter mais conhecimento e salários mais altos que as
que estudam menos. Isso implica que (1) os países onde o nível educacional é mais alto em média
serão mais ricos e (2) dentro de um mesmo país, maior desigualdade no acesso à educação leva a
maior desigualdade de renda. De modo geral, estudos estatísticos confirmam essas premissas.
Sabendo da importância da educação e tendo em mente os dados sobre a educação no Brasil,
passamos então a outra pergunta: qual deve ser o papel do Estado na educação?
É importante que fique claro que o fato de a educação ter impactos grandes na renda das pessoas não
significa, necessariamente, que deva haver intervenção estatal nesta área. Há alguma falha de
mercado que a justifique?
Existem sim dois motivos importantes para a intervenção do governo na educação, duas falhas de
mercado relevantes: externalidades e a ausência do mercado das almas.
Como vimos, a educação gera externalidades positivas importantes, além de trazer óbvios ganhos
privados, ou pessoais. Pessoas mais educadas têm mais facilidade de adquirir informação relevante
para escolher em quem votar, têm filhos mais educados - a variável mais importante para determinar
o desempenho escolar de uma criança é a educação dos pais -, transmitem conhecimento aos colegas
de trabalho, etc.
Mas e o mercado das almas, o que ele tem a ver a educação?
Financiamento público da educação é talvez a melhor maneira de implementar na prática as
transferências que seriam pactuadas no tal mercado das almas. É verdade que ao invés de dar escola
pública, o governo poderia dar dinheiro. Mas dar dinheiro para a criança? Bem, seria possível dar
dinheiro aos pais da criança, porém, seja por desinformação, seja por terem os pais outras
prioridades, é possível que esse recurso não fosse bem empregado em benefício da criança. Por
conta disto e dos fortes ganhos que a educação traz, cremos que financiar a escola das crianças é uma
importante função do Estado.
Vimos então que o Estado deve financiar a educação de crianças pobres, mas isso não nos leva à
conclusão de que o governo deva ser o provedor do serviço educacional. Uma alternativa ao
esquema de provimento direto do serviço educacional por parte do Estado seria o governo financiar
a educação das pessoas mais pobres dando-lhes vales-escola. Com esses vales, os pais de alunos
matriculariam seus filhos na escola de sua preferência e as escolas, por sua vez, descontariam esses
vales no Ministério da Educação. O governo continuaria gastando recursos com educação dos mais
carentes, mas não seria o dono das escolas.
Mas qual a vantagem de se dar vale-educação ao invés de prover diretamente escolas públicas,
administradas pelo próprio governo?
Como vimos no estudo mencionado anteriormente, o aluno da escola pública aprende menos do que
na escola privada. Um problema crucial com o ensino público é a falta de incentivos da maioria dos
professores e diretores para prover educação de boa qualidade. Falta de incentivo que é facilmente
explicada. De um lado, o bom trabalho não é devidamente premiado como no setor privado e, do
outro, a falta de empenho e a abstenção frequente não são punidas. É verdade que existem sempre
aqueles que, por motivos ideológicos e nobres, acham motivação suficiente no simples desejo de
educar crianças. Mas, infelizmente, poucas andorinhas não fazem verão, e a realidade dos dados é
que o setor público não tem provido educação de qualidade na maior parte dos casos.
O vale-educação aumentaria o poder de barganha dos alunos e pais de alunos, que teriam o poder de
escolher e forçariam então as escolas a competir por seus vales. As escolas, para atrair alunos,
teriam que adotar medidas para melhorar a qualidade do ensino. A competição beneficiaria os alunos
e os bons professores, pois as escolas buscariam contratá-los e suas remunerações seriam mais
influenciadas pelo desempenho.
Note que esse plano do vale-escola não demanda que se fechem hoje as escolas públicas em
operação. Elas poderiam continuar operando enquanto houvesse demanda suficiente de pais e alunos,
agora portadores de vale-escola (e com possibilidade de escolha ampliada), por seus serviços
educacionais.
Este esquema evitaria algumas falhas de governo. Mas será que funcionaria? Como vimos, a
competição também pode ter seus efeitos colaterais danosos. Por exemplo, se os pais não conseguem
verificar a qualidade do serviço prestado, as escolas, visando lucro, poderiam cortar custos de
maneira prejudicial aos alunos, por exemplo, simplificando currículos para poderem contratar menos
professores. Se nas escolas públicas remanescentes este tipo de prática de competição predatória
fosse controlada pelo governo que as administra diretamente, a concorrência das públicas com as
privadas poderia em si atenuar o problema, pois os pais teriam a possibilidade de escolher aquelas.
Isto não ocorreria, contudo, se fosse difícil para os pais se informarem sobre a qualidade dos
respectivos currículos. Caberia então ao governo regular a operação das escolas – por exemplo,
exigindo um currículo mínimo das que se candidatassem a receber os vales-escola – o que, aliás, já
ocorre hoje, pois o Ministério da Educação exerce este tipo de controle sobre as escolas privadas.
Outra possível dificuldade com este esquema é que talvez não seja lucrativo para empreendedores
privados abrir uma escola em uma região onde a quantidade de recursos em termos de vale-escola
não for suficientemente elevada. Como o setor privado se move pela possibilidade do lucro, é
possível que algumas regiões se vissem privadas de escolas particulares. Mas nestes casos o
governo poderia interferir diretamente provendo ele mesmo a escola. Inclusive seria útil para o
governo manter alguns estabelecimentos de ensino para poder ter uma ideia melhor da estrutura de
custos de uma escola e, com base nela, escolher o valor dos vales-escola.
Uma objeção equivocada contra o esquema dos vales-escola é que mesmo com ele o pobre não seria
capaz de matricular seus filhos nas melhores escolas privadas do país, que custam cerca de R$2.000
reais por mês, ou até mais que isso. De fato, não haveria mesmo recurso orçamentário para colocar
todos os pobres em escolas de ricos, mas a realidade é que eles já não podem frequentá-las hoje! O
esquema de vale-escola não faz milagre, não torna o pobre instantaneamente capaz de comprar
educação de ótima qualidade – isso seria um passe de economágica. Ele apenas força uma maior
competição entre as escolas e com isto pode levar a uma melhoria na qualidade do ensino. Sim, os
filhos dos mais ricos provavelmente continuariam a estudar nas melhores escolas, mas a pergunta
relevante é: a educação para os pobres melhoraria de qualidade? Ela se beneficiaria de um mercado
educacional mais competitivo?
Se o governo financia o estudo das crianças pobres, seu ingresso na escola deve ser mandatório? O
governo deve interferir nesta decisão familiar?
Estudar ou não é uma escolha – uma escolha em grande parte dos pais das crianças, pelo menos nos
anos cruciais de educação. Os dados sobre a qualidade do ensino ajudam a explicar os dados sobre a
quantidade de gente estudando e os anos que estes optam por permanecer na escola. Se o ensino é de
má qualidade, se a escola ajuda pouco, há menos incentivos para estudar, e outras opções de
alocação do tempo tornam-se mais interessantes. Se até a quarta série do primeiro grau metade dos
alunos não aprende a multiplicar ou a ler horas em relógio digital, o benefício de estudar não parece
mesmo grande coisa. Deixar a escola cedo se torna então uma decisão coerente. Com uma escola de
maior qualidade, os pais teriam mais incentivos para escolherdeixar os filhos na escola.
Independentemente dessa discussão, acreditamos que o ingresso na escola deva ser mandatório. Em
primeiro lugar, uma criança que não frequenta a escola e, portanto, chega à idade adulta com baixo
nível de qualificação apresenta maiores chances de gerar externalidades negativas para a sociedade
– seja por depender de programas sociais financiados pelo conjunto dos contribuintes, seja por
acabar escolhendo se envolver em atividades criminosas. De modo oposto, o adulto mais educado
tem mais chances de gerar as externalidades positivas mencionadas anteriormente.
Além disso, apesar da má qualidade do ensino afetar uma eventual decisão de não mandar os filhos
para a escola, a falta de zelo ou de informação de alguns pais e a própria miséria também são
variáveis importantes nessa escolha. Primeiro, pode ser difícil para os pais avaliar a qualidade da
escola e, principalmente, os impactos desta no futuro de suas crianças. Segundo, nem todos os pais
cuidam bem dos filhos e se preocupam o suficiente com o futuro deles. Por fim, para famílias que
vivem na miséria, o incentivo para aumentar a renda familiar enviando as crianças para vender
chiclete na rua poderia ainda prevalecer mesmo com um ensino escolar de boa qualidade.
Por conta disto, pensamos que o governo deve não só incentivar a educação, mas torná-la mandatória
para as crianças. Programas que incluem a obrigatoriedade de matricular as crianças na escola em
conjunção com auxílio financeiro para as famílias mais pobres (como bolsa-escola) ajudam a alinhar
os incentivos dos pais com o que é melhor para as crianças e para a sociedade como um todo.
Outra pergunta importante é: onde exatamente o governo deve despender mais recursos? Já falamos
que os exames de avaliação de estudantes ressaltam a importância da pré-escola, mas, além disso,
onde devemos gastar mais? Ensino básico, universidades?
A resposta não é simples em lugar nenhum, mas no Brasil ela é menos difícil dado o tamanho do
desequilíbrio entre o que é gasto com ensino superior comparativamente ao alocado para os outros
níveis educacionais. Observando os dados de vários países, a primeira constatação que surpreende é
que hoje não gastamos pouco com educação como proporção do nosso PIB. Despendemos
aproximadamente 5% do PIB com educação, uma proporção superior à mediana. Países como Chile
e Coréia do Sul gastam um pouco menos.
O problema está menos no gasto total e mais na qualidade e na alocação deste gasto, como nos revela
uma análise desagregada dos dados.
O Banco Mundial compila uma estatística interessante de quanto os governos de cada país gastam,
como proporção da sua renda per capita, por aluno dos diferentes níveis educacionais.[13] Na
grande maioria dos casos, o gasto público por aluno é um pouco mais elevado no ensino superior.
Um pouco mais elevado, mas não muito. Vejamos alguns exemplos: nos Estados Unidos, o gasto
público por aluno universitário é da ordem de 26% da renda per capita do país, enquanto o gasto por
aluno do ensino médio é de 25% da renda per capita americana. Na Coréia do Sul, 5% (é esse o
número mesmo) e 23%, respectivamente; no México, 35% e 18,5%; no Uruguai, 23% e 11%. No
Brasil, os números são 51% e 11%, uma das maiores diferenças encontradas em toda a amostra de
países.
O governo brasileiro gasta desproporcionalmente muito com chamado ensino superior. Como já
sabemos do capítulo 6 que é impossível abolir-se a chamada restrição orçamentária, isto significa
falta de prioridade para os ensinos básico e médio. Aqui, as crianças pobres estudam em escolas
públicas ruins e as poucas que chegam ao ensino superior precisam pagar relativamente caro para
estudar em faculdades privadas de qualidade inferior à da maior parte das universidades públicas. Já
as crianças que nascem em famílias mais favorecidas, como os autores desse livro, estudam em
escolas privadas de bom nível e tem chances de ingressar na universidade pública de boa qualidade.
Quanto elas pagam para cursar a universidade pública? Nada.
Em vista das externalidades e da questão da redistribuição, o governo deve interferir na área
educacional. Contudo, às vezes os dois motivos se chocam um contra o outro. Por exemplo, deve o
Estado financiar os estudos de um estudante de medicina de família rica? Apesar de tal investimento
em educação gerar externalidades positivas para a sociedade, coletar dinheiro da população em
geral para financiar o estudo do filho do rico com impostos transfere dinheiro para a alma que teve a
sorte de nascer em berço esplêndido. A universidade pública gratuita para os estudantes (paga pelos
contribuintes) tem efeito distributivo adverso: transfere renda para quem é mais rico. Assim, ela só
se justifica se as externalidades positivas forem maiores que os custos da redistribuição às avessas
somados aos custos da intervenção do governo (os custos diretos, as falhas e as distorções geradas
pela taxação).
Quais são as externalidades nesse caso? A formação de médicos e engenheiros certamente traz
ganhos para a sociedade. Contudo, muitos desses ganhos serão apropriados pelo próprio profissional
após concluir seus estudos, na forma de remuneração. As externalidades são os outros ganhos,
explicados no início do capítulo, por exemplo, o aumento da produtividade do trabalho de um
profissional menos qualificado por conta do trabalho do engenheiro, a transmissão de conhecimentos,
etc.
Ao financiar a educação superior, o Estado aumenta os incentivos para as pessoas estudarem nas
faculdades públicas. Assim, mais gente estuda e mais externalidades positivas são geradas. Mas
quanto mais de gente se educando a gratuidade das universidades públicas está causando? Quanto da
decisão de fazer faculdade pública se deve ao fato dela não cobrar mensalidade do aluno?
Parece-nos que a maioria dos nossos colegas de graduação da USP teriam cursado a universidade
mesmo se tivessem que pagar por isto. Mas o que justifica a gratuidade das universidades públicas é
justamente a elevação do contingente de bons estudantes universitários e, portanto, o aumento dessas
externalidades. Assim, se o aumento no número de bons estudantes associado à gratuidade é pequeno,
o ganho para a sociedade de financiar a educação desses profissionais é muito baixo, não
compensando o impacto negativo dessa política sobre a distribuição de renda e os custos da
intervenção do governo.
A gratuidade do ensino superior nas universidades públicas é um dos vários temas que merecem ser
mais amplamente discutidos na sociedade, mas raramente o é por suscitar reações extremamente
negativas de uma parcela vocal da população. Estudantes que se beneficiam da gratuidade da
educação e professores que veem na cobrança de mensalidade uma tentativa de privatizar a
universidade bloqueiam a discussão. Eles conseguem fazê-lo em parte por terem maior capacidade e
maiores incentivos para se organizar contra propostas de mudança. De onde vem tanto incentivo? Do
fato de os custos da cobrança de mensalidade recaírem sobre um grupo pequeno (o custo por aluno é
alto para cada um dos que após a reforma precisariam pagar a universidade) e bem identificado,
facilitando sua organização contra a reforma. Já os incentivos para lutar a favor da mudança são mais
fracos na sociedade como um todo porque os benefícios para o contribuinte são divididos entre muita
gente (cada um de nós deixaria de pagar, digamos, alguns reais por ano em impostos). Resultado
final: distribuição de renda às avessas defendida muitas vezes pelos que se dizem aliados dos mais
carentes. Enquanto o debate não avança, a população como um todo continua financiando até mesmo
o custo do estacionamento “gratuito” dos carros dos estudantes nas universidades públicas (são dois
esses custos: o direto, de manter o estacionamento; e o indireto, mais importante, que é o custo de
oportunidade de não utilizar aquele espaço físico para outros fins).
Uma objeção comum contra a cobrança de mensalidades na universidade pública é que dessa
maneira o pobre jamais poderá estudar nela. Nósacreditamos que a solução para esse problema é
crédito subsidiado – de forma que o estudante possa pagar por sua educação após concluir o curso.
Como vimos no capítulo 7, o mercado de crédito nos permite vender o futuro e, portanto, poderia
possibilitar aos estudantes pagar por sua formação com a futura remuneração.
Outra objeção é que alguns cursos não conseguiriam atrair alunos se fossem pagos, por exemplo,
muito pouca gente escolheria estudar uma língua morta na universidade por conta do pequeno
impacto que essa formação terá na remuneração no futuro. Aceitando que isso venha mesmo a
ocorrer, a pergunta é: devemos arrecadar dinheiro da população pra financiar esses cursos? A
resposta será positiva se (e somente se) entendermos que esses cursos geram importantes
externalidades ou bens públicos.
Concluindo, a educação é realmente importante pra gerar renda e melhorias nessa área poderiam
beneficiar substancialmente a população do Brasil, principalmente os mais pobres. Neste capítulo,
tentamos entender as razões por trás das escolhas das pessoas e debatemos qual deveria ser o papel
do governo nesta área. Por causa da distribuição de renda e das externalidades, o governo tem papel
importante a jogar na área educacional.
16. O milagre da transformação do suco de laranja em vinho
 
O lápis é uma invenção humana extremamente simples: um pedaço de madeira com grafite no meio.
Sua produção data do século XVI, após a descoberta de um enorme depósito de grafite nas cercanias
de Borrowdale, na Inglaterra. Instrumentos de escrita semelhantes já eram encontrados nas antigas
civilizações – há dois milênios atrás, por exemplo, os romanos usavam espécies de varetas de
chumbo para escrever em seus papiros. Seria o leitor capaz de produzir, sozinho, esta coisa tão
simples chamada lápis?
Nós não seríamos. Produzir um simples lápis nos custaria, professores de economia, muito tempo e
trabalho – para não falar na alta probabilidade de, após muito suor e lágrimas, terminarmos indo à
papelaria mais próxima comprar um prontinho para ser usado.
Mas se quiséssemos nos aventurar a fabricantes de lápis, primeiro precisaríamos estudar a teoria,
aprender as etapas de fabricação de um lápis – como vimos no capítulo 15, pelo menos não seria
necessário reinventar o seu processo de fabricação. Finda a fase de estudo, teríamos então que sair
de serrote em mãos em busca de boa madeira. Onde achá-la? Como cortá-la? Mesmo se
superássemos esta etapa, as dificuldades estariam longe de terminar. Convenhamos: não temos a
menor habilidade para trabalhar nem a madeira cortada, nem a grafite. Além disto, precisaríamos
adquirir os equipamentos necessários para amaciar a madeira, deixando-a propícia para ser
apontada, desenvolver a técnica de envolver a grafite com a madeira, etc.
Mas nossa vida é mais simples. Tudo que fazemos é dar aulas de economia, pesquisar sobre
economia, e escrever o “Economia sem Truques”. Em troca disto, o mundo nos dá o lápis e uma
miríade de outras coisas. É a possibilidade de trocar aulas de economia por dinheiro, e dinheiro por
todas as outras coisas que nos permite transformar aulas de economia em lápis, sorvete, computador,
ingressos para o jogo de futebol, etc.
De fato, após uma breve reflexão, o leitor notará que quase todos nós não somos capazes de produzir
quase nada do que usamos ou consumimos. Nem mesmo o fabricante de lápis. Ele é bom no lápis,
mas muito provavelmente não sabe nada sobre plantar cereais, criar gado ou fabricar uma calça. E
em que pese esta vasta ignorância, ele não passa fome e não anda despido por aí: ele troca o lápis
por estas outras coisas, usando dinheiro como intermediário da transação. O dinheiro é apenas um
instrumento que facilita a troca. A verdadeira mágica está na troca de um bem que se produz com
destreza e eficiência, por vários outros sobre os quais não se tem a mínima ideia de como produzir.
A lógica do comércio internacional é a mesma do exemplo do lápis. É a lógica da troca que gera
benefícios mútuos. Se tivéssemos que produzir sozinhos os itens que consumimos, fechando nosso lar
ao comércio com o mundo, e plantando nosso próprio tomate, criando algumas vacas, e fabricando
roupas em casa, voltaríamos ao nível de riqueza que o mundo apresentava há uns mil anos atrás. É o
comércio com outras pessoas – de outras casas, cidades, estados ou países – que nos permite a
especialização em tarefas que, por sua vez, gera riqueza.
Como se sabe, o Brasil exporta hoje em dia grandes quantidades de suco de laranja. Vários navios
partem de nossos portos em direção à Europa abarrotados deste produto. E alguns destes mesmos
navios que partem carregados com suco regressam com tonéis de vinho francês de alta qualidade aos
portos brasileiros. Uma possível explicação para este fenômeno é que os navios param secretamente
em alguma ilha misteriosa no meio do Atlântico, onde mestres de identidade não revelada
transformam nosso suco de laranja em vinho francês. O vinho é então recolocado nos tonéis e, após
alguns meses, aporta no Brasil para felicidade de enólogos e leigos apreciadores como nós. 
Claro, a façanha de suco de laranja transformado em vinho francês pode ser contada de maneira
menos fantasiosa: os navios que partem daqui chegam aos portos europeus sem parar em ilha
nenhuma. Nos mercados europeus, o suco de laranja brasileiro é vendido aos comerciantes locais em
troca de moeda local – libras esterlinas e euros. Com a receita da venda do suco em mãos, os
brasileiros compram outros bens não produzidos no Brasil. Dentre os bens e iguarias importados,
figuram os famosos vinhos franceses.
Esta operação de troca é lucrativa tanto para os produtores de vinho francês, que podem degustar um
saboroso suco de laranja brasileiro durante suas refeições, como para nossos produtores de laranja,
que desfrutam da possibilidade de beber um bom vinho francês – não graças a mágicos habitantes de
uma ilha misteriosa, mas sim ao não menos miraculoso comércio internacional.
Em suma, o comércio nada mais é que uma tecnologia que nos permite trocar aulas de economia,
projetos de pesquisa, e este livro, por tudo que consumimos. O comércio é equivalente a uma
invenção tecnológica de última geração (ou a fictícios bruxos produtores de vinho) que possibilita
transformar laranja, que nós brasileiros temos em abundância, em vinho de alta qualidade, que não
produzimos em nosso território por razões ligadas ao clima, ao solo e aos processos produtivos.
De fato, as trocas e o comércio intra e internacional estão na raiz da teoria econômica moderna, cuja
paternidade é muitas vezes atribuída a Adam Smith. Em seu famoso “A Riqueza das Nações”, Smith
defendeu que a prosperidade de um país não era função da quantidade de ouro que ele possuía, mas
sim da sua produtividade. E de que dependeria a produtividade? A ênfase do autor centrava-se na
especialização do trabalhador em um número não muito elevado de tarefas. A ideia de Smith é que a
especialização, ao familiarizar o trabalhador com suas tarefas, o induz a descobrir maneiras
melhores e mais eficientes de realizá-las.
Mas especializar-se na produção de uma gama limitada de bens é a princípio problemático, pois um
sapateiro, que só faz isto da vida, não pode viver sem comer; e um agricultor, exclusivamente
dedicado a produzir alimentos, não pode viver sempre andando descalço por aí. É a possibilidade de
trocar que possibilita a especialização, pois quando trocamos ganhamos acesso a um grande número
de bens, mesmo produzindo apenas um.
E quais fatores aumentam a eficiência do comércio entre as pessoas, estimulam a especialização e,
por conseguinte, a produtividade? Um deles é a existência de um meio de troca oficial – eis a
importante função da moeda – que seja amplamente aceito na sociedade. Sem este facilitador,
precisaríamos convencer o padeiro a nos ceder seu pão em troca de aulas de economia – a única
coisa que sabemos fazer direito. Se ele não estivesse interessado em aprender economia, ficaríamos
sem pão. Da mesma maneira, o padeiro que quisesse estudareconomia também teria dificuldades,
pois necessitaria empreender um tremendo esforço de busca de professores de economia querendo
comer seu pão.
Sem a moeda, as trocas passariam a depender de maneira crucial de uma justaposição de duas
coincidências: eu ter o que você quer, e você ter o que eu quero, ao mesmo tempo. Com a moeda,
esta dupla coincidência de desejos não é mais necessária: eu posso vender meu produto a quem
quiser comprá-lo, receber o pagamento em dinheiro, e com este dinheiro adquirir os bens que desejo
de outras diversas pessoas, possivelmente não interessadas em aulas de economia, mas certamente
interessadas nas coisas que o meu dinheiro pode comprar.
Um segundo fator que facilita as trocas, ou o comércio, é a existência de regras claras para trocar e
de instituições que contribuem para manter um ambiente propício para esta atividade, principalmente
no caso das trocas impessoais, onde não há em princípio os constrangimentos sociais comuns a
grupos menores e suficientemente fortes para induzir honestidade de comportamento de ambas as
partes. A padronização de unidades de medida e a inspeção de balanças por um agente do governo
são exemplos deste tipo de “instituição pró-trocas”. A punição de comerciantes que utilizem balanças
desonestas por um judiciário ágil e não corrupto é outro.
Moeda e instituições são temas interessantíssimos, mas neste capítulo estamos particularmente
interessados em um terceiro fator: o tamanho do mercado consumidor.
Com efeito, a gama de bens fabricados em uma certa região (que pode ser uma cidade, um estado ou
um país) depende do tamanho, ou da escala do mercado consumidor a que esta região tem acesso. À
medida que este aumenta, expandem-se as possibilidades de trocas e assim os ganhos associados à
especialização. A partir de um certo ponto, já é possível para alguém se especializar até mesmo na
profissão de professor e pesquisador em economia.
Mas a especialização é menos lucrativa – e, portanto, pode não ocorrer - se o mercado onde se dão
as trocas é pequeno demais. Isto porque quando a demanda total por cada bem específico não é
grande, o produtor individual não colhe na sua integridade o que se chama em economia de ganhos de
escala na produção, um nome elegante para descrever o fato de que os custos de produção por
unidade produzida decrescem, até um certo ponto, com o total produzido. Exemplificando, o custo de
fabricar um lápis é muito maior para quem fabrica apenas um lápis do que para quem produz
milhões. Ou, quando se monta uma fábrica de carro, se gasta uma quantidade enorme de dinheiro na
aquisição dos vários equipamentos necessários. Se nela são produzidos 1000 carros por dia, o custo
destes equipamentos é rateado entre os vários automóveis produzidos, mas se dela saem apenas 10, o
custo por carro torna-se muito alto e a fábrica vai à falência. De maneira geral, quando uma parcela
dos custos de produzir independe da quantidade produzida, produzir mais é mais barato.
Além disso, um mercado pequeno, não viabilizando a especialização em certos bens pelo motivo
acima, tornará mais difícil a vida daqueles que tem potenciais ganhos econômicos em se
especializarem porque eles possivelmente não encontrarão alguns dos bens de que necessitam no
mercado e precisarão produzi-los por si próprios – abandonando a opção de se especializarem. Se
não há alguém na economia que se especializou em plantar verduras e produzir roupas, eu preciso
gastar meu tempo cuidando do quintal e tecendo, não posso dedicar-me ao ofício de produzir lápis ou
escrever livro. Esta espécie de círculo vicioso – não me especializo porque os outros não se
especializam porque o mercado é pequeno – leva a uma diminuição do grau de especialização total
da economia e, consequentemente, da sua produtividade.
Se não houvesse o comércio internacional e, portanto, a possibilidade de produzir-se para um
mercado mais amplo que o nacional, países menores e menos populosos – mais precisamente com
mercados menores – seriam menos produtivos e, portanto, mais pobres. Países pequenos estariam
fadados a produzir uma gama enorme de coisas de maneira pouco produtiva em um mundo sem
comércio internacional, vendendo seus bens para um mercado consumidor muito restrito. Já países
grandes não sofreriam tanto em um mundo sem comércio internacional porque a escala de seu
mercado doméstico já seria suficiente para suportar um grau razoável de especialização.
Mas a possibilidade de vender para mercados consumidores de outros países torna o tamanho do
mercado doméstico menos importante na explicação do grau de especialização de uma economia,
pois o mercado mundial é sempre bem maior que o doméstico. De fato, ter acesso ao mundo é vital
para os países menores, pois ao transacionar com o exterior cada produtor do país pequeno
desacorrenta-se de seu restrito mercado interno. Além disto, o comércio internacional possibilita que
os bens não produzidos internamente sejam importados, e assim a população doméstica não precisa
ser privada de consumir certos bens só porque os produtores locais escolhem não ofertá-los.
Não é à toa que países geograficamente menores e menos populosos são também os que mais
transacionam com o exterior – e que países maiores, onde os ganhos de escala podem ser colhidos
vendendo-se para seus próprios compatriotas, são mais fechados às transações externas. Uma boa
medida de intensidade de comércio é o somatório das importações com as exportações, tudo
dividido pelo PIB. Essa medida mostra que o pequenino Luxemburgo, cravado no coração da
Europa, é um dos países que mais comercializa com o mundo. Já os Estados Unidos, com o seu
enorme mercado interno, é um dos que comercializa menos com o exterior. O que se produz na
Califórnia pode ser “exportado” para os habitantes de Chicago ou da Flórida.
Além de trazer ganhos de escala, o comércio permite nos especializarmos no que fazemos melhor.
Mais precisamente, como já nos alertava o economista clássico David Ricardo, naquilo que fazemos
relativamente melhor.
Não é difícil aceitar o argumento de que se a Bélgica é melhor na produção de chocolates que a
França, e a França, por sua vez, melhor que a Bélgica na produção de queijos, cada um destes países
deva se especializar na produção do que faz melhor e importar o outro bem. Neste caso, cada país
tem vantagem comparativa absoluta na produção de determinado bem, e poucos discordariam que o
comércio entre ambos é benéfico.
Mas e se um país tem vantagem absoluta na produção de ambos os bens? Isto significa que para ele
não há ganhos em comercializar? No lado oposto, o que dizer de um país que não produz nenhum bem
melhor que seu potencial parceiro comercial? Pode ele assim mesmo se beneficiar do comércio?
Dizem os entendidos que Pelé era um belo goleiro, melhor que muito guarda-metas vestindo a camisa
1. Mas mesmo sendo em termos absolutos um bom goleiro, ele quase sempre atuou com a camisa 10,
na linha. Deveriam seus antigos técnicos tê-lo colocado no gol? Um dos autores deste livro é um
exímio lavador de louça – ou assim pensa seu amigo co-autor. Ele faz o trabalho com rapidez, gasta
pouca água e detergente e as panelas saem brilhando. Em vista disto, ele quase certamente é mais
produtivo ao lavar a louça que sua diarista e que muitas das pessoas que trabalham nos restaurantes
em que ele vai. Isto significa que ele, por ser mais produtivo que os outros nesta tarefa, deva
trabalhar lavando louça e não como economista?
As respostas são, claramente, não e não. O que está por trás da explicação é a noção de vantagens
comparativas relativas. Pouco importa que o economista lave melhor a louça que sua diarista. O
importante é que ele exerce a função de economista ainda melhor do que ela, que nunca estudou
economia. Da mesma forma, que Pelé fosse bom goleiro, melhor que outros goleiros inclusive, não
era a informação mais relevante para a decisão de onde ele deveria atuar. O mais relevante era o fato
de ele ser muito, mas muito melhor na linha que os outros. Em resumo, o essencial para a decisão de
alocaçãode trabalho, ou para a decisão do que um país deve produzir e comercializar, são as
vantagens comparativas relativas, e não as absolutas.
Um exemplo fictício e simplificado, com dois países e dois bens, ajuda a fixar a idéia. Suponhamos
que uma pessoa na Armênia seja capaz de fabricar 20 sapatos em 1 hora ou 40 camisetas em 1 hora,
ao passo que uma pessoa na Bulgária, com acesso a processos produtivos menos eficientes, consiga
produzir apenas 10 sapatos em 1 hora ou 10 camisetas em 1 hora. Estas informações são resumidas
na tabela abaixo.
Produtividade dos Países em Horas
 Armênia Bulgária
Sapatos 20 por hora 10 por hora
Camisetas 40 por hora 10 por hora
 
Como se vê, neste exemplo fictício, a Armênia têm vantagem comparativa absoluta na produção de
camisetas e sapatos. Será que a Bulgária só tem a perder abrindo seu mercado e comercializando
com a Armênia?
Duas coisas ficam claras a partir dos dados da tabela precedente: (1) a Armênia é absolutamente
mais produtiva na produção dos dois bens, como já dissemos e, mais importante, (2) a Bulgária é
relativamente mais eficiente que a Armênia na produção de sapatos. Na Bulgária, deixar de produzir
40 camisetas possibilita a produção de 40 sapatos. Na Armênia deixar de produzir 40 camisetas os
habilita a produzir apenas 20 sapatos.
Suponhamos que armênios e búlgaros trabalhem por 2 horas: se cada um deles dedicar uma hora para
sapatos e uma hora para camisetas, os búlgaros produzirão 10 camisetas e 10 sapatos, ao passo que
os armênios se sairão com 20 camisetas e 40 sapatos. Para ver como é vantajoso para ambos se
especializarem no que fazem relativamente melhor e depois comercializarem entre si, suponha que os
búlgaros se especializem em sapatos e os armênios em camisetas. No final das duas horas, os
búlgaros terão 20 sapatos disponíveis e zero camisetas, enquanto os armênios produzirão 80
camisetas e zero sapatos.
Mas consumir apenas um dos dois bens é insatisfatório para ambos. Os armênios precisam se calçar
e os búlgaros se vestir. Agora, vamos abrir as portas do comércio internacional. Supondo que um
búlgaro possa trocar com um armênio 10 sapatos por 15 camisetas, ambos saem ganhando. Por quê?
O búlgaro ficará neste caso com os 10 sapatos que ele produziu e as 15 camisetas que ele recebeu em
troca dos outros 10 sapatos (5 camisetas a mais do que teria se resolvesse produzir tudo sozinho).
Um armênio que encontre dois búlgaros para comercializar dará 2×15=30 camisetas em troca de
2×10=20 sapatos. Como ele havia produzido 80 camisetas, terminará com 80-30=50 camisetas e os
20 sapatos que recebeu. Se quisesse fazer tudo por sua conta, em um mundo sem comércio
internacional, seu saldo final seria de 20 sapatos e apenas 40 camisetas (ao invés de 50).
De onde surgiram as camisetas a mais? Elas são o resultado da especialização, da exploração das
vantagens comparativas. Dois búlgaros que passem duas horas fazendo sapatos produzirão 40
unidades (20 cada um). Um armênio que se dedique por duas horas a fazer camisetas produzirá 80
camisetas. Agora, se todos eles decidirem passar uma hora na produção de cada um dos bens,
teremos no final 40 sapatos (10 para cada um dos búlgaros e 20 para o armênio) e apenas 60
camisetas (10 para cada um dos búlgaros e 40 para o armênio).
As tabelas abaixo resumem o resultado do comércio.
Produção sem especialização
 Armênio Búlgaro - A Búlgaro - B Total
Sapatos 20 10 10 40
Camisetas 40 10 10 60
Produção com especialização
 Armênio Búlgaro - A Búlgaro - B Total
Sapatos 0 20 20 40
Camisetas 80 0 0 80
 
Note que neste exemplo não há ganhos de escala, apenas de especialização. Não há ganhos de escala
porque fazemos a hipótese de que o custo unitário - em termos de horas despendidas – não varia com
o número de bens produzidos. Búlgaros e armênios saem lucrando do comércio por outro motivo: a
especialização naquilo em que têm vantagens comparativas. Com o comércio, ambos têm a
possibilidade de consumir mais do que lograriam se escolhessem não realizar trocas. Neste sentido,
o comércio é tão milagroso quanto os habitantes da ilha do Atlântico.
Os búlgaros do exemplo, sem vantagem absoluta na produção de qualquer dos bens, se beneficiam da
possibilidade de trocar: em um mundo com comércio internacional, eles podem consumir mais do
que em uma situação de isolamento, de autarquia. Mas mesmo com o comércio, eles terminam
consumindo menos que os armênios, por conta de sua menor produtividade absoluta em camisetas e
sapatos. Em suma, o comércio aumenta o consumo dos búlgaros ainda que não a ponto de equipará-lo
ao dos armênios.
Além de possibilitar a produção com maior escala – e, portanto, a custo mais baixo – e a exploração
das vantagens comparativas, há outros canais através dos quais o comércio ajuda no
desenvolvimento econômico.
Em primeiro lugar, a possibilidade que o comércio abre aos empresários de importar novas
variedades de insumos produtivos, melhores ou mais baratos que seus similares nacionais, ajuda a
impulsionar a produtividade do setor de bens ou serviços finais. Por exemplo, a importação de
tornos mecânicos de controle numérico, fabricados no exterior, aumenta a produtividade dos
produtores de autopeças domésticos; os sofisticados aparelhos médicos que trazemos do exterior
tornam nossos médicos mais eficazes na assistência aos doentes; os equipamentos importados
utilizados para controlar a qualidade dos efluentes que as fábricas despejam nos rios reduzem os
custos para as empresas produzirem sem degradar o meio ambiente; etc.
Além do beneficio direto da importação que se dá via aumento da gama disponível de insumos de
produção, há um outro canal importante ligando produtividade à importação: os bens importados
trazem embutidos em si todo um conjunto de tecnologias e idéias desenvolvidas no exterior e que
chegam ao conhecimento do produtor doméstico quando estes bens aportam no nosso território. Os
fabricantes de carros japoneses certamente aprenderam bastante sobre carros estudando os
automóveis americanos que importavam antes de começarem a exportar seus modelos para os
Estados Unidos. Similarmente, o violão importado serviu como base para os portugueses criarem o
cavaquinho.
Em poucas palavras, o produtor doméstico aprende observando o bem fabricado no exterior, o que
possibilita melhorias nos produtos e processos existentes e também estimula a criação de novos
produtos.
Mudando o foco do produtor para o consumidor, ter acesso a maior variedade de produtos com
qualidade e preços diferentes é melhor do que estar restrito a escolher bens produzidos internamente.
Na linguajem do capítulo 1, a importação aumenta o campo de escolha das pessoas, o que somente
pode melhorar sua situação. Por exemplo, antes da abertura econômica dos anos 90, nós brasileiros
tinhamos menos opções de consumo.
Veja que nos últimos parágrafos, na raiz dos benefícios gerados pelo comércio, encontra-se a
importação. Importação, e não exportação. É a importação que aumenta a produtividade da economia
e é a importação que incrementa o bem-estar do consumidor. Quando exportamos, produzimos um
bem e, ao invés de consumi-lo, enviamo-lo para o exterior para que alguém lá fora dele desfrute. O
que de bom pode haver nisto, em trabalhar duro para produzir algo para depois mandá-lo de navio,
caminhão ou avião, para outro país?
Uns diriam que o beneficio da exportação são os dólares que entram em nossos cofres como
resultado da venda. Mas ninguém come dólares ou extrai prazer de simplesmente possuí-los, com a
exceção talvez do Tio Patinhas. Este tipo de explicação mercantilista, portanto, não faz qualquer
sentido. Os dólares da exportação são importantes justamente porque nos permitem importar. É esta a
grande vantagem, ou o principal beneficio, que se extrai das exportações: elas geram divisas que nos
permitem importar mais bens e serviços produzidos no exterior, seja agora, seja mais à frente. Se não
pudéssemos importar, exportar seria apenas um fardo sem benefício nenhum.
Eis que temos aqui uma grande divergência de visões entre o usualmenteaventado pelos porta-vozes
do senso comum e o que nos diz a teoria econômica. A teoria econômica – resumida nos parágrafos
precedentes – deposita grande ênfase no beneficio trazido pelas importações, não nas exportações.
Nos cadernos de economia dos jornais a mensagem é reversa: comemora-se sempre um salto das
exportações e lamenta-se o crescimento das importações. A que se deve essa visão?
As exportações mais altas gerando um saldo comercial positivo para um país são como um aumento
nas horas de trabalho e na renda de uma pessoa que vê a demanda por seus serviços aumentar em
uma época do ano. Uma quituteira que fatura mais na época do Natal tem um saldo positivo nesse
período, pois ganha mais do que gasta. Em janeiro, o movimento cai, ela sai de férias e gasta o saldo
positivo acumulado em dezembro. Faz sentido comemorar o trabalho até as 11 da noite em dezembro
porque é ele que permite o gasto nas férias de janeiro. Da mesma maneira, um saldo positivo na
balança comercial de um país permite maiores importações no futuro.
Voltando ao exemplo fictício do comércio entre armênios e búlgaros, sendo a produtividade na
Armênia maior que na Bulgária tanto na fabricação de camisetas quanto de sapatos, poder-se-ia
pensar que (i) a Bulgária terminaria importando tudo da Armênia e a esta não exportaria nenhum bem
e, (ii) que isso seria ruim para os búlgaros. Mas como poderia ser ruim para estes últimos receber
produtos da Armênia sem dar nada em troca? Seria ótimo. São os armênios que não ficariam felizes
em entregar camisetas e sapatos aos búlgaros em troca de nada, e por conta disto exportação sem
importação nunca ocorre no mundo real.
Mas que mecanismo permite o ajuste entre o exportado e o importado pelos países? Como vimos no
capítulo 8, é o sistema de preços que comunica aos armênios e aos búlgaros o que produzir e o que
consumir. Nesse caso, o sistema de preços é composto pelos preços das camisetas e dos sapatos em
cada um dos países e pela taxa de câmbio que converte os preços em moeda estrangeira em preços
em moeda local. Se os búlgaros querem importar muita coisa da Armênia, mas os armênios não
querem importar quase nada da Bulgária, o preço das moedas – a taxa de câmbio – se ajusta para
resolver esta inconsistência. A moeda da Armênia se valoriza frente à moeda búlgara tornando o
produto armênio mais caro com relação ao búlgaro. Isto de um lado desencoraja as compra de
produtos armênios pelos búlgaros e, por outro, encoraja os armênios a comprarem bens fabricados
na Bulgária.[14]
Vimos até agora que o comércio internacional permite ganhos de escala, possibilita a cada país se
especializar na produção do que apresenta vantagens comparativas e, a reboque, traz outros ganhos.
E o que dizem os dados do mundo real sobre o impacto do comércio no desenvolvimento econômico
dos países?
Estudos estatísticos em geral confirmam que mais comércio causa mais riqueza, ou seja, os países
mais abertos às transações de bens e serviços são usualmente também mais ricos. Um outro resultado
interessante destes estudos é que este impacto positivo do comércio sobre o nível de
desenvolvimento é bem menor para o caso de economias grandes, e bem mais acentuado para as
economias pequenas, em linha com o aqui discutido anteriormente.[15]
No capítulo sobre educação, mostramos nosso atraso em relação à Coréia no quesito capital humano
e dissemos que isto explicava boa parte da diferença de renda entre os dois países. Outra parte da
explicação reside na postura em relação ao comércio exterior adotada por ambos países. Enquanto
nós, por muitas décadas, optamos por uma estratégia de crescimento com pouca ênfase no comércio
internacional, a Coréia, hoje três vezes mais rica que nós, tomou a via contrária, incentivando não só
exportações como também evitando impor barreiras draconianas às importações.
E o que dizer dos impactos do comércio internacional sobre a distribuição de renda? Se uma
economia menos desenvolvida, com muitos trabalhadores pouco qualificados, abre as portas de seu
comércio para o mundo exterior, o que acontece com os mais pobres?
Como vimos no capítulo 4, se o número de trabalhadores pouco qualificados é pequeno, há bastante
demanda para o trabalho de cada um deles, e isso eleva seu salário – contrabalançando um pouco o
fato de eles serem pouco produtivos. Mas se a desigualdade de qualificação é alta e há muitos
trabalhadores com baixo nível de educação, não há nem mesmo este efeito compensatório, e o salário
deste grupo acaba sendo muito baixo. Por essa razão, o salário dos trabalhadores menos qualificados
é muito mais baixo no Brasil que na Inglaterra.
Um país repleto de trabalhadores pouco qualificados tem vantagem comparativa justamente na
produção de bens que utilizam intensamente o trabalho destes profissionais porque o salário deles é
baixo. Esse país, quando abre suas portas ao comércio com o mundo, tende então a se especializar na
produção de bens produzidos por trabalhadores com pouca qualificação. Em vista desta
especialização, a demanda por este tipo de mão-de-obra aumenta após a abertura - ao passo que a
busca por profissionais mais qualificados tende a diminuir (pois os bens produzidos por estes
últimos serão em boa medida importados após a abertura comercial). Portanto, a diferença salarial
entre os muito e os pouco qualificados tende a se reduzir com o comércio. Em resumo, nos países
pobres, a abertura comercial tende a melhorar a distribuição de renda.
Dizendo de outra forma, se o fator de produção (relativamente) abundante em uma economia é a mão-
de-obra pouco qualificada, maior abertura comercial tende a melhorar a distribuição de renda. Por
outro lado, em um país como os Estados Unidos, onde os fatores de produção preponderantes são
capital e mão-de-obra qualificada, maior abertura comercial tende a piorar a distribuição de renda,
pois leva a um aumento da remuneração destes dois fatores em detrimento da mão-de-obra menos
qualificada.
Esse efeito da integração comercial sobre a distribuição de renda pode ser visto de uma outra
maneira: consideremos o exemplo da China, um país pobre e grande, com muitos profissionais pouco
qualificados, que há alguns anos vem se integrando cada vez mais à economia mundial. A proporção
de trabalhadores pouco qualificados é maior na China do que nos países com que ela comercializa.
Agora, o que aconteceria no caso de uma integração perfeita entre os mercados de trabalho da China
e destes outros países? Nesse mercado integrado, a proporção de trabalhadores menos qualificados
seria menor do que na China, mas maior do que nos outros países. Portanto, nesse mercado integrado,
a desigualdade de renda seria menor do que na China e maior do que no restante dos países.
Este último exemplo analisa uma suposta integração dos mercados de trabalho mundiais, mas os
dados mostram que a migração de trabalhadores é muito pequena entre países – um chinês não pode
trabalhar nos Estados Unidos devido às imensas barreiras legais e culturais que travam o fluxo de
mão-de-obra. Mas o que tem a ver a integração dos mercados de trabalho com integração comercial?
O comércio integra indiretamente os mercados de trabalho ao permitir que consumidores comprem
bens produzidos por trabalhadores dos diversos países. A abertura comercial, por exemplo, faz
crescer a demanda por tecidos fabricados na china, elevando – sob a óptica do chinês – o preço dos
tecidos. Isto, por sua vez, causa uma elevação na renda dos chineses envolvidos na produção de
tecidos. O salário do chinês aumenta mesmo sem ele precisar migrar para os Estados Unidos. Do
outro lado, o salário do trabalhador americano pouco qualificado cai, mesmo sem a invasão dos
chineses nas cidades americanas. Basta a invasão dos produtos chineses para diminuir a
desigualdade na China e aumentá-la dentro dos Estados Unidos.
E, de fato, apesar da China ainda ser hoje um país pobre, o número de chineses vivendo abaixo da
linha da pobreza tem se reduzido bastante, enquanto a diferença salarial em países como os Estados
Unidos tem aumentado.É verdade que há muitos outros fatores que influenciam a distribuição de
renda em um país, mas a abertura comercial é por vezes apontada como um fator que tem contribuído
para torná-la mais desigual nos países desenvolvidos. Se isso é verdade, então a abertura comercial
tem contribuído para melhorar a distribuição de renda em países mais pobres.
A análise sobre os efeitos de abertura comercial na distribuição de renda dos parágrafos anteriores
deve ser tomada com cautela, pois é bem difícil identificar estatisticamente o efeito da abertura
comercial na distribuição de renda e os dados não corroboram de modo contundente estas predições.
De todo modo, as evidências tampouco dão qualquer subsídio à tese oposta de que o comércio
acentua desigualdade em economias menos desenvolvidas.
Por fim, será que a integração econômica contribui para a degradação do meio-ambiente? Por um
lado, as empresas multinacionais podem ser atraídas para os locais com regulamentação ambiental
mais frouxa, dado que estar livre para poluir barateia custos de produção. A livre mobilidade de
empresas em um mundo economicamente integrado pode em tese gerar maior poluição global. Mas,
por outro lado, empresas que dependem de exportações têm incentivos para não desagradar o
consumidor cada vez mais consciente da importância da preservação ambiental dos países
importadores. Além disso, o comércio, ao tornar um maior número de países mais prósperos, faz
com a preocupação com a conservação do meio-ambiente se difunda porque ela é em geral mais forte
nos países mais desenvolvidos. Não por diferenças de valores morais, mas porque nos mais pobres a
preocupação mais premente na escala de prioridades é tornar-se mais rico.
E o que dizem os dados? As analises estatísticas não mostram sinais de que as empresas estejam
migrando para países onde a regulação ambiental seja mais fraca, e tampouco existe qualquer
evidência de que países que comercializam bastante poluam mais ou degradem mais o meio-
ambiente, em média.
Mas se o comércio é bom para o desenvolvimento do país, e na pior das hipóteses não acentua a
desigualdade de renda em países como o Brasil, como explicar tanta oposição ao comércio e tão
pouca defesa da liberalização comercial?
O comércio recebe forte oposição por dois motivos. O primeiro está ligado ao fato de que apesar de
a possibilidade de transformar suco de laranja em vinho francês produzir ganhos para os países como
um todo, ela gera perdas concretas – ao menos no curto prazo – para alguns grupos dentro dos países,
da mesma maneira que a inserção de novas tecnologias no capítulo 5. Lá vimos que estas novas
tecnologias eram rechaçadas pelos Luddites e pelo pai do Woody Allen, que sofriam com a melhora
tecnológica. Da mesma maneira, importantes custos e deslocamentos no curto prazo decorrem dos
processos de abertura comercial e setores inteiros da economia podem desaparecer em um período
curto de tempo após o desmantelamento de uma rede de proteção às importações. Investimentos em
fábricas, máquinas adquiridas, treinamento de pessoal, tudo rapidamente indo pelo ralo.
Estes problemas de curto prazo não são argumentos contra maior abertura comercial – que leva a
maior nível de renda no longo prazo – do mesmo modo que não serviam, no capítulo 5, como
justificativa para barreiras ao avanço de novas tecnologias. Contudo, é importante que a estratégia de
abertura leve-os em consideração. Gradualismo no processo, visando dar tempo para firmas e
trabalhadores se adaptarem à nova realidade, e uma rede de proteção social (seguro desemprego e
re-treinamento) para os deslocados no curto prazo são uma combinação que nos soa interessante.
O segundo motivo é de natureza política: enquanto os benefícios do comércio são difusos e
estendidos para um grande número de pessoas (portanto, o benefício por pessoa não é muito alto), as
perdas são em geral concentradas em grupos menores, tornando o custo por pessoa, dentro destes
grupos perdedores, elevado. Esta dicotomia “custos concentrados / benefícios dispersos” explica
porque a movimentação pró-comércio é tão mais fraca que as manifestações anticomércio.
Empresários e trabalhadores de empresas que só são capazes de sobreviver com proteção contra a
competição externa dedicam bastante esforço para combater tentativas do governo de reduzir as
tarifas de importação. Para eles, a perda do emprego é mais importante e concreta que os ganhos de
produtividade que a queda de tarifas traz para a economia como um todo. Por outro lado, os
consumidores que se beneficiariam de um produto um pouco mais barato e de melhor qualidade, e os
produtores que poderiam talvez aprender um pouco sobre a nova tecnologia com o produto
importado, não se sentem individualmente motivados a pegar um avião para Brasília para protestar
contra a proteção tarifária que os prejudica. Seu cálculo custo / benefício não os incentiva a assim
proceder.
Por exemplo, nos jornais vemos muitas queixas de empresários que estão perdendo mercado para a
concorrência chinesa. Como dissemos acima, a concorrência chinesa afeta negativamente um
pequeno grupo, aqueles que perdem mercados para os chineses, mas é benéfica para os todos os
outros brasileiros. Além disso, o comércio com a China beneficia os exportadores brasileiros que
vendem produtos para os chineses. A população pode então ser dividida em 3 grupos: os que sofrem
com a concorrência chinesa; os que lucram com suas exportações para a China; e o restante da
população, de longe o mais numeroso desses grupos, que se beneficia com o acesso aos produtos
chineses. O que às vezes passa despercebido é que desde 2000 até meados de 2007, o Brasil vinha
exportando mais para a China do que dela importava. O grupo que estava perdendo era o menor de
todos os três, mas apesar disto era o que mais se fazia ouvir.
Talvez em nenhuma outra sub-área da economia o senso comum difira tanto da teoria econômica
como no caso do comércio internacional. É particularmente usual entre não-economistas a tese
equivocada de que o comércio internacional tem as características de um jogo de soma zero, o que
significa que se um país ganha comercializando seus bens com outro, este outro tem que
necessariamente perder, como ocorre em corridas de cavalo ou partidas de xadrez.
O comércio é uma tecnologia que transforma suco de laranja em vinho francês. Os benefícios do
comércio provêm principalmente da exploração de economias de escala e de vantagens
comparativas. Como a inserção de novas tecnologias do capítulo 5, a abertura comercial gera
problemas para alguns e ganhos para outros no curto prazo, e benefícios no longo prazo para toda a
economia.
17. O mercado de promessas
 
Bangladesh é um país muito pobre, bem mais pobre que o Brasil. Lá, um enorme contingente de
pessoas não tem acesso ao mercado formal de empregos e sobrevive trabalhando por conta própria.
Por exemplo, um grande número de mulheres se dedica à produção de cestas de bambus. Em idos dos
anos 70, em uma viagem a um vilarejo de Bangladesh com seus estudantes, o professor de economia
Muhammad Yunus ficou sabendo que várias dessas mulheres tomavam dinheiro emprestado a taxas
de juros realmente muito altas – chegando a cerca de 10% por semana – de emprestadores locais
para poder comprar o bambu, seu principal insumo de produção. Por conta destes compromissos
financeiros a taxas estratosféricas, o lucro auferido com a venda das cestas era muito pequeno,
bastando apenas para sustentar a mais módica sobrevivência. [16]
Em 1976, o professor Yunus resolveu emprestar cerca de 100 dólares para 42 dessas produtoras de
cestas de Bambu a taxas de juros razoáveis. Com juros mais baixos, os lucros provenientes de seu
trabalho eram substancialmente maiores, propiciando um acréscimo significativo na pequena renda
deste grupo de trabalhadoras.
As produtoras de cestas de bambu se revelaram boas pagadoras e Muhammad Yunus seguiu
aumentando sua carteira de micro empréstimos. Pouco tempo depois, Yunus fundou o Grameen Bank
(Banco do Vilarejo), que tinha como objetivo emprestardinheiro a pequenos produtores, pessoas
muito pobres que estavam amarradas à estaca zero muitas vezes pela falta de alguns dólares que
permitissem iniciar um pequeno negócio.
Hoje, o banco de Yunus empresta para cerca de 7 milhões de clientes em Bangladesh, e mulheres
representam 97% de sua clientela. A taxa de inadimplência deste negócio? Apenas 1% dos
empréstimos concedidos não são devidamente repagos. E o Grameen Bank não está sozinho. Em
Bangladesh mesmo, há dezenas de instituições dedicadas ao micro-empréstimo, e a maioria dos lares
do país são atendidos por empréstimos desse tipo.
No ano de 2006, Muhammad Yunus e o Grameen Bank ganharam o Prêmio Nobel da Paz. Isso
mesmo, da Paz, não da Economia. Em sua nota explicando a decisão, o Comitê do Prêmio Nobel
afirmou: “a paz duradoura não pode ser atingida se grandes grupos da população não encontram
meios de escapar da pobreza. Micro crédito é um desses meios”. Em outro trecho: “Yunus,
principalmente através do Grameen Bank, tornou o micro crédito em um instrumento de luta contra a
pobreza cada vez mais importante”. Por fim: “O micro crédito provou ser uma importante força
libertadora em sociedades onde mulheres particularmente têm que batalhar contra condições
socioeconômicas repressivas”.
Duas observações importantes emergem deste exemplo: (i) o crédito, capitalista em sua essência, de
aparência sisuda e engravatada, é louvado como força libertadora e instrumento de luta contra a
pobreza pelo Comitê do Prêmio Nobel; e (ii) não menos surpreendentemente, emprestar dinheiro a
juros para os pobres se iniciou como atividade filantrópica (o que parece uma contradição em
termos) e, ainda hoje, várias instituições de micro crédito podem ser caracterizadas como entidades
assistenciais realizando atividades eminentemente capitalistas.
O crédito, tema desse capítulo, pode de fato ser um importante instrumento para o desenvolvimento
econômico e para o combate à pobreza. Um mercado financeiro em condições de perfeito
funcionamento – o que apesar de ser uma abstração teórica é bom ponto de partida para a análise –
torna bem menos importante a posição de largada dos indivíduos como fator explicativo de seu
sucesso econômico. Um trabalhador desprovido de posses iniciais que o permitam abrir um negócio
com dinheiro próprio, mas munido de uma excelente idéia sobre um novo produto ou nova técnica de
produção, ou simplesmente capaz de produzir cestas de bambus, pode pegar dinheiro emprestado
para financiar suas atividades e assim sair da miséria com suas próprias pernas.
Mas o crédito não é importante apenas para os pobres de Bangladesh. Na outra ponta do espectro
econômico, Henry Ford tinha boas idéias na cabeça e pouco dinheiro na mão quando fundou a Ford
Motor Company, em 1903. Para montar sua fábrica de automóveis, Henry Ford contou com o dinheiro
de outros 11 investidores. Sua empresa se caracterizava por inovações nos métodos de produção,
alta produtividade, salários altos e trabalho duro nas linhas de montagem. Vinte anos depois, sua
fortuna o colocava no rol dos americanos mais ricos de todos os tempos – no ranking de Wikipedia,
Ford ocupa o segundo lugar, bem à frente de Bill Gates – e suas inovações inspiraram industriais nos
mais diversos setores em todo o mundo. Tamanho sucesso se deve claramente à mente inovadora de
Henry Ford, mas também à possibilidade de levantar dinheiro de outros investidores, dinheiro sem o
qual a fábrica não teria saído do papel.
No capítulo 1, vimos que proibir o pobre de trabalhar nas fábricas têxteis de Bangladesh não
ajudava. Aprendemos que para melhorar a situação de um indivíduo, é crucial melhorar suas opções.
Os mercados financeiros, ao ampliar o campo de escolha dos que não têm recursos, fazem justamente
isso. Sem a possibilidade de tomar emprestado hoje para pagar no futuro, o pobre fica impedido de
cursar uma faculdade ou desenvolver seu próprio negócio e, assim, enfrenta mais dificuldades para
sair de sua posição. O crédito oferece às mulheres de Bangladesh a opção de viver da produção das
cestas de bambu.
O crédito é mesmo um instrumento poderoso. Entretanto, como a segunda observação referente ao
exemplo de Bangladesh deixa claro, esse mercado em que se troca dinheiro hoje por dinheiro amanhã
muitas vezes não funciona bem. Foi preciso que entidades com objetivos filantrópicos surgissem para
que os pobres de Bangladesh e de todo o mundo conseguissem tomar emprestado pequenas quantias
de dinheiro, pagando juros razoáveis.
De fato, muitas pessoas gostariam de tomar dinheiro emprestado, mas simplesmente não conseguem.
Como vimos no capítulo 9, os mercados livres nem sempre funcionam a contento devido à existência
de falhas de mercado, e não existem mercados financeiros perfeitos. Uma delas, a que chamamos de
assimetria informacional, se manifesta de modo particularmente virulento no caso em questão. E onde
o mercado de crédito não funciona bem, o desenvolvimento econômico-social e o combate à
desigualdade ficam comprometidos. O problema é grave porque, infelizmente, este funcionamento
ineficiente dos mercados financeiros é a regra e não a exceção. Mais ainda, a ineficiência é maior
justamente onde seu bom funcionamento seria mais necessário: nas economias mais pobres ou em
desenvolvimento. 
Para escolhermos bem as políticas públicas afetando o mercado crédito, precisamos entender melhor
suas falhas e problemas. Esse é um dos objetivos deste capítulo. Mas antes, falemos um pouco da
evidência encontrada nos dados.
Os dados de um conjunto amplo de países sugerem que as economias onde os mercados financeiros
são mais desenvolvidos apresentam PIB por habitante mais alto, ou seja, são mais ricas. A figura
seguir ilustra essa relação. [17] O gráfico construído com dados do ano de 2005 para 160 países,
apresenta o crédito (como proporção do PIB) no eixo horizontal e o PIB em dólares no eixo vertical.
A associação, como se vê, é altamente positiva. A correlação sugerida nos dois primeiros gráficos
não decorre, portanto, de mera seleção “cuidadosa” da amostra de países.
Além disto, os dados também revelam que onde o crédito é mais disseminado, a desigualdade
econômica, e a proporção de pobres na população, são menores. [18]
 
Grupo de 160 países: crédito x PIB por habitante
Entretanto, como nos alerta o capítulo das teorias mágicas da cerveja, a existência de correlação não
implica necessariamente em causalidade. Por exemplo, será que a correlação positiva nos gráficos
acima não vem do fato de que as economias que se desenvolvem economicamente mais acabam
gerando mais demanda por serviços financeiros e, portanto, dão origem a mercados financeiros mais
desenvolvidos (causalidade reversa)? Outra possibilidade é de que fatores que impulsionam tanto o
crescimento econômico como o florescimento destes mercados – por exemplo, o ambiente
institucional – estejam por trás da correlação entre ambos (variável omitida).
Ambas possibilidades são, em princípio, coerentes. Contudo, estudos estatísticos tentando contornar
os problemas de causalidade reversa e variável omitida encontram, em sua maioria, uma relação de
causa e efeito indo do volume de crédito para o desenvolvimento econômico.
E o micro crédito? Ele tem mesmo impacto significativo sobre a redução da pobreza? Casos como a
das produtoras de cestas de bambu indicam que sim, mas é importante também medir esse efeito
utilizando mais dados e métodos estatísticos apropriados. O problema que dificulta esta análise é de
novo a causalidade reversa: se uma região se desenvolve, ela tende a atrair mais crédito e, portanto,
o fato de observarmos que mais micro crédito coincide com maior desenvolvimento não é prova de
sua efetividade.
Alguns estudos estatísticos que tentam driblar o problema da causalidade reversa detectam um
impacto positivo e significativo do crédito na luta contra a pobreza. Por exemplo, entre 1977 e 1990,
na Índia, um banco só podia abrir uma agência em uma localidade que já fosse atendida por outros
bancos se abrisse simultaneamente 4 agências em localidadessem agências bancárias. Essa medida
afetou as escolhas dos bancos que, na ausência da lei, teriam aberto menos agências em pequenos
vilarejos do que de fato abriram. Para os pesquisadores que utilizam métodos estatísticos, a lei
proporciona uma maneira de identificar o impacto do micro-crédito, pois parte do aumento do
número de agências bancárias nos pobres vilarejos se deu exclusivamente por conta da lei, e não por
conta da causalidade reversa. Utilizando técnicas estatísticas avançadas, um importante trabalho
conclui que o aumento de crédito nos pequenos vilarejos causou de fato uma significativa redução na
pobreza.[19] Contudo, outros artigos focando em outros episódios não chegam às mesmas
conclusões.
Outro importante estudo mostra como a diferença no grau de desenvolvimento financeiro entre
distintas regiões da Itália afeta a probabilidade de que um novo negócio seja aberto. O trabalho
mostra que quando um indivíduo muda de uma região italiana onde os mercados de crédito locais são
pouco desenvolvidos para outra onde eles são mais avançados, as chances de que este indivíduo abra
sua própria empresa aumentam em 33%. Mais ainda, os empreendedores residentes nas áreas
financeiramente mais desenvolvidas são em média cinco anos mais novos que os empreendedores
das áreas onde os mercados de crédito não funcionam tão bem. Isto sugere que nas regiões onde os
mercados de crédito funcionam mal, é preciso primeiro acumular meios financeiros antes de se abrir
um negócio, enquanto nas áreas onde os mercados de crédito são mais fecundos, não é necessário
tanta espera: toma-se emprestado e monta-se mais cedo o próprio negócio.[20]
Sendo fortes os indícios da importância do crédito no desenvolvimento e nas chances de se escapar
da pobreza, é importante tentar entender porque em alguns lugares, como no Brasil, o crédito ao setor
privado encontra forte dificuldade em florescer.
Para começar, vamos entender um pouco melhor os mercados financeiros. Como vimos no capítulo 7,
os intermediários do mercado financeiro são os responsáveis por promover o encontro dos
indivíduos que querem guardar recursos para o futuro com os que precisam deste dinheiro hoje para
investir, digamos para abrir um novo negócio. Mas por que o poupador não empresta direto ao
empreendedor? Por que esta operação é feita através de um banco?
Os bancos surgem para intermediar as transações financeiras porque a operação direta é custosa,
arriscada e ineficiente. Como vimos no capítulo passado, nós somos capazes de produzir mais, como
um todo, se cada um de nós se especializa em uma determinada função. E os bancos se especializam
em captar recursos dos poupadores e alocá-los onde lhes parece mais rentável. Os profissionais do
mercado financeiro usam seu tempo coletando e analisando informações sobre empresas onde eles
podem alocar o dinheiro dos poupadores.
Além de saber mais sobre a situação das empresas, os bancos correm menos riscos que um pequeno
emprestador devido à maior possibilidade de diversificação. Por exemplo, se um médico resolve
emprestar sua poupança acumulada em anos de trabalho para uma empresa com prospectos que lhe
pareçam razoáveis e, três meses depois de feitos os empréstimos, por um azar ou acontecimento
adverso qualquer, a empresa começa a ir mal das pernas, o médico perde boa parte de suas
economias.
Por emprestar para muitos projetos e agentes variados, o intermediário financeiro corre muito menos
risco de terminar com os problemas que o médico do nosso exemplo teve que se defrontar. Quando
alguns investimentos não dão certo, o intermediário financeiro ainda pode usar a receita do
pagamento dos outros empréstimos para honrar seus compromissos com o poupador. Dito de outra
maneira, ele tem maior habilidade de pulverizar os riscos que corre porque administra mais recursos
e investe em número maior de empresas. E justamente por possuir a capacidade de diversificar
riscos, os poupadores também veem como menos arriscado emprestar seus recursos para o
intermediário.
É interessante notar que no afã de alocar fundos para os melhores usos possíveis visando o lucro e a
conquista de adicionais clientes poupadores (o que também aumenta seu lucro), o intermediário
financeiro desempenha um serviço em prol da eficiência econômica, pois faz os recursos fluírem
para as empresas mais rentáveis, ou seja, aquelas que podem produzir mais com o capital existente
na economia.
O intermediário também tem incentivos para monitorar a aplicação dos recursos emprestados,
analisando as notícias e os balanços das empresas onde investe, o que serve como incentivo para as
empresas utilizarem seus recursos de modo eficiente. Se pioram os prospectos sobre a rentabilidade
de uma empresa, seu valor no mercado se reduz e, consequentemente, cai a quantidade de recursos
que a empresa pode captar emitindo ações. Quando aumenta a chance da empresa falir, tomar
dinheiro emprestado fica mais difícil e mais caro.
Em resumo, mercados de crédito que funcionam bem aumentam a eficiência da economia de duas
maneiras: (a) selecionando com menores custos os projetos recebedores de recursos (eficiência a
priori), e (b) monitorando o uso da poupança total da economia pelos empreendedores de modo a
garantir que ela seja bem empregada, após realizado o empréstimo (eficiência a posteriori).
Além de contribuir para que os recursos dos poupadores sejam alocados de maneira eficiente na
economia, os mercados financeiros exercem importante impacto positivo sobre as inovações, e não
somente porque eles provêm recursos para um potencial inventor tocar seu projeto adiante. O
inovador é um indivíduo que se dedica a uma atividade de alto risco: seu projeto pode dar certo, mas
pode também naufragar, deixando-o em maus lençóis. Ainda que um empreendedor/inventor de uma
ideia tenha dinheiro suficiente para abrir o negócio sozinho, para ele pode não ser interessante
colocar todos – ou quase todos – os seus ovos em uma só sacola: a do seu próprio negócio. Para ele,
portanto, ter a possibilidade de dispersar um pouco deste risco inerente à inovação, dividindo-o com
outros indivíduos, pode ser crucial.
Os mercados financeiros possibilitam esta diversificação de riscos. A venda de ações de uma
empresa para outras pessoas significa que cada acionista individual, dono de uma parcela da mesma,
arcará com uma parte relativamente pequena do risco do novo empreendimento. Na ausência desta
possibilidade de diversificação, todo o risco de um novo negócio teria que ser carregado por uma
pessoa só, o que desencoraja as inovações.
As inovações são benéficas por conta de suas potenciais externalidades positivas: se dão bons
resultados, afetam todos na economia. Mas as inovações trazem riscos para o empreendedor e ainda
que para a economia como um todo valha a pena correr esses riscos, pode não valer a pena para uma
pessoa só. Os mercados financeiros ajudam a distribuir esses riscos entre mais pessoas, encorajando
as tentativas de inovar que por vezes desembocam em externalidades positivas.
Henry Ford, citado no início desse capítulo, utilizou recursos de investidores para financiar suas
inovações. E há muitos outros exemplos desse tipo. Várias empresas que operam no mundo da
internet começaram como projetos de alto risco, demoraram para se tornar lucrativas, e hoje são
bastante valiosas. Suas operações foram financiadas com recursos de investidores que podiam arcar
com os altos riscos desses projetos pela possibilidade de diversificar: cada empresa que eles
escolhiam para investir recebia uma pequena parte de seu dinheiro. Dessas, algumas quebraram,
outras decolaram, e por conta da diversificação, o risco que esses investidores enfrentavam não era
tão grande. A rapidez com que a internet se desenvolveu se deve, em parte, ao volume de capital
direcionado para financiar as operações dessas empresas.
Então, em termos teóricos, os mercados financeiros ajudam a combater a desigualdade; aumentam a
eficiência com que a poupança das pessoas é empregada; e também possibilitam uma maior
diversificação de risco,o que é muito importante para fomentar a inovação. Pena que na prática a
realidade não seja bem esta...
Como o exemplo das mulheres que tomavam dinheiro a juros muito altos, do início desse capítulo,
deixa claro, há muitas falhas nesse mercado. Para melhor desenharmos as políticas, precisamos
justamente entender essas falhas, tanto de mercado, como de governo, que tornam a realidade
concreta menos animadora.
Como dissemos no capítulo 7, no mercado de crédito, troca-se dinheiro hoje pela promessa de
dinheiro no futuro. A promessa pode ou não ser cumprida e esta é a questão crucial que distingue o
mercado de crédito do mercado de bananas. Para que o mercado funcione, é fundamental que as
promessas de repagar tenham grandes chances de serem cumpridas. A força e estabilidade dos
contratos é crucial.
Mas muitas vezes estes contratos nem mesmo existem. Por exemplo, não é legal assinar um contrato
de empréstimo com crianças. Um menino pobre de 14 anos, ciente das possibilidades de conseguir
renda mais alta se obtiver um bom diploma universitário, e que deseje dedicar-se com afinco aos
estudos até tornar-se médico, poderia em tese tomar dinheiro emprestado para se sustentar enquanto
jovem, dado que sua renda futura seria mais que suficiente para pagar toda sua dívida
confortavelmente. Mas ele não pode assinar esse contrato e, portanto, não pode tomar o dinheiro
emprestado.
Na verdade, nesse caso o problema não é a lei. Mesmo que a legislação permitisse, nosso jovem
estudante não conseguiria convencer os bancos a lhe emprestar tamanho montante de recursos, ainda
que estivesse realmente disposto a pagar no futuro todo centavo que fosse devido. A falha de
mercado, vista no capítulo 9, é a assimetria de informação. Nosso estudante, bem como qualquer
pessoa que vai captar recursos no mercado financeiro, sabe bem mais de suas intenções de repagar e
está muito mais por dentro das suas perspectivas de ganhos que o intermediário financeiro. Este,
ciente do problema de assimetria informacional, reage ou negando crédito a alguns indivíduos, ou
cobrando caro demais pelos empréstimos.
A primeira opção do banco, não conceder crédito, significa que alguns projetos que seriam
economicamente rentáveis não se tornarão realidade. Por exemplo, nosso estudante não se tornará
médico. A segunda, cobrar juros muito altos, faz coisa parecida, afastando um bom número de
pessoas que se sentem desencorajadas pelo elevado custo do capital que resulta da sua dificuldade
de se distinguir do mau devedor aos olhos do intermediário financeiro.
O requerimento de garantias – uma terceira possibilidade – reduz as consequências adversas
provenientes do problema de assimetria informacional, pois se o empreendedor que deve ao banco
não repaga, este se apropria do bem do devedor, minimizando suas perdas. A relevância das
garantias é de fato importante na prática: o empréstimo para compra de veículos no Brasil é feito a
juros bem mais baixos que os incidentes sobre as outras modalidades de empréstimo justamente por
ser relativamente fácil reaver o carro de um indivíduo inadimplente.
Porém, a solução via garantias é imperfeita, por duas razões. Primeiro porque os mais pobres não
têm riquezas que sirvam como garantias para potenciais empréstimos. Nosso estudante e as pobres
mulheres de Bangladesh nada têm a oferecer como garantia de pagamento. Segundo, nem sempre é
fácil para o banco se apropriar das garantias do devedor quando este não honra seus compromissos.
Não é por outra razão que os bancos no Brasil fugiam dos empréstimos habitacionais: era muito
difícil retomar um imóvel de um devedor inadimplente – ainda não é fácil, mas a legislação tem se
modificado.
Políticas públicas que aumentam a segurança dos credores através de leis mais duras contra os que
não pagam seus empréstimos aumentam as chances das dívidas serem honradas no futuro e, portanto,
reduzem os custos de se tomar dinheiro emprestado. Se todos acreditam que leis protegendo os
credores serão de fato cumpridas de modo rápido e pouco custoso, os devedores que honram seus
compromissos pagarão juros mais baixos. Por outro lado, leis mais duras prejudicam não somente o
mau pagador, mas também alguns bons devedores passando por situações de especial e imprevisível
dificuldade. Em suma, apesar de leis mais severas para inadimplentes causarem punições duras para
os azarados com boa vontade de repagar, elas propiciam o florescimento do mercado de crédito e
juros mais baixos para todos.
De fato, estudos estatísticos mostram que em locais onde as leis são mais lenientes com os direitos
de propriedade do credor, os mercados de crédito são menos desenvolvidos. Isto ocorre mesmo entre
países desenvolvidos.
Os empréstimos consignados, aqueles descontados diretamente do pagamento ao funcionário,
reduzem significativamente as chances de calote ao retirar do devedor a opção de não pagar. A
solução não resolve todos os problemas de credibilidade envolvidos nas operações de crédito por
conta dos riscos de falência da empresa ou demissão do funcionário (circunstâncias em que a
probabilidade de pagar as dívidas se reduz), e porque os bancos ainda podem temer que ações na
justiça acabem favorecendo o devedor. Ainda assim, o risco de calote é muito menor. Sendo o
principal problema nesse mercado a possibilidade de não repagar, tais empréstimos devem
solucionar parte do problema.
E os números de fato comprovam que, sem usar truques de economágica, o crédito consignado
reduziu enormemente o custo de se tomar dinheiro emprestado no Brasil para quem tem um emprego
formal. Em julho de 2007, a taxa média de juros de empréstimos consignados era 2,28% ao mês,
enquanto a taxa média de juros de outros tipos de crédito pessoal era 4,27% ao mês. Além dessa
enorme diferença nas taxas de juros, a quantidade de empréstimos concedidos a pessoas físicas
aumentou muito com o crédito consignado, que hoje já corresponde a mais da metade do crédito
pessoal no Brasil.
Ainda em relação a medidas visando atenuar esta falha de mercado, um bom remédio para minorar o
problema de assimetria de informação é aumentar a informação disponível sobre os indivíduos no
que concerne seu histórico como devedor. Ao diminuir a assimetria informacional existente entre
devedor e intermediário financeiro, os chamados cadastro positivo (que relata o histórico de bom
pagador do indivíduo) e cadastro negativo de devedores (seu oposto) facilitam o funcionamento dos
mercados financeiros. A veiculação de informação faz com que as taxas de juros se reduzam para os
bons clientes. Por outro lado, para os maus pagadores, os empréstimos ficarão ainda mais caros. Mas
justamente por causa disso, os devedores terão maiores incentivos para honrar seus compromissos –
o que leva a juros menores.
Além disso, estes cadastros aumentam a concorrência entre os bancos pelos bons clientes porque as
informações sobre clientes de um banco passam a ser acessíveis para os outros. Como vimos no
capítulo 3, maior concorrência leva a menores preços – neste caso, menores taxas de juros. Veicular
mais informação, portanto, é um passo importante para vermos taxas de juros menores nos
empréstimos bancários no Brasil.
Um outro fator que funciona como impeditivo ao pleno desenvolvimento dos mercados de crédito e
que desvirtua suas funções pró-desenvolvimento aqui apresentadas tem a ver com a ligação entre
mercado de crédito e dívida pública. Em países onde a dívida ou o déficit do governo são elevados,
os mercados de crédito, ao invés de cumprir as atribuições de selecionar investimentos produtivos,
monitorá-los, financiar os inovadores, e promover a diversificação de riscos, passam a funcionar
como instrumento de financiamento dos gastos públicos. A lógica é a seguinte: um governo que gasta
mais do que arrecada, ou que herdou uma dívida grande, vai aos mercados financeiros em busca de
empréstimos que cubram esta diferença (o famoso déficit público), e concorre por uma quantidade
limitada de poupança com outros agentes em busca de recursos para investir. Como o governo é umtomador de empréstimos grande, sua demanda por dinheiro eleva o preço dos empréstimos – puxa o
juro para cima. Em consequência, outros potenciais tomadores de empréstimos são deslocados para
fora do mercado de crédito devido ao aumento dos juros resultante da entrada de um jogador de peso
na briga por recursos.
Não é por acaso que a redução da dívida pública no Brasil nos últimos anos, acompanhada de queda
dos juros que o governo paga nos seus empréstimos, tem levado muitos bancos a investir mais na
área de crédito ao setor privado. Os bancos estão constantemente escolhendo para quem emprestar, e
a diminuição da demanda do governo por recursos (e do juro pago nestes empréstimos) torna mais
interessante focar atenção no crédito ao setor privado. É uma mudança no ambiente causando uma
alteração de escolha, exatamente como nos vários exemplos do capítulo 1.
Voltemos então às pobres mulheres de Bangladesh: até o professor Muhammad Yunus começar com
seus empréstimos, elas estavam tomando dinheiro a juros de até 10% por semana. Se cerca de 99%
delas costuma pagar suas dívidas, por quê diabos a concorrência entre emprestadores não foi capaz
de baixar essa taxa para níveis civilizados?
A primeira resposta que vem a mente de muitos é simples: pobre não dá lucro e, portanto, não vale a
pena emprestar pra ele. Esta resposta simples está errada. Marcas de cigarros baratas são sempre
ofertadas aos pobres e se tornam campeãs de vendas. A marca de cigarros mais vendida no Brasil,
Derby, é também uma das mais baratas e detém mais de um terço do mercado formal brasileiro.
Gêneros alimentícios básicos não faltam nos mercados das periferias. As Casas Bahia focam nos
consumidores de eletrodomésticos com renda mais baixa e seus negócios só têm se expandido.
No Brasil, pode se conjeturar que a alta demanda do governo por divisas e os altos juros praticados
expliquem a escassez de oferta de crédito para pequenas empresas e pessoas. Contudo, mesmo em
lugares onde as taxas básicas de juros são baixas, o micro crédito não floresce espontaneamente. Não
falta oferta de cigarros e comida para os pobres a preços razoáveis, mas ofertas de empréstimos de
100 dólares a taxas decentes são mais raras e não se viam há poucas décadas. Sua utilidade e
ineditismo mereceram nada menos que um Prêmio Nobel da Paz.
A explicação para esse fato repousa nas particularidades do mercado de crédito. Uma das razões por
trás desta escassez de empréstimos para os mais pobres é a existência de um alto custo de transação
nestas operações: para se emprestar dinheiro, há que se verificar as possibilidades de repagamento
futuro e, se necessário, tomar ações jurídico-legais para efetivar este pagamento. No caso de um
empréstimo de milhões de dólares, vale a pena gastar dias analisando os balanços da empresa e
dinheiro para acionar o departamento jurídico, ou advogados externos. Mas o lucro proveniente de
um empréstimo de 100 reais a taxas razoáveis é muito baixo, e provavelmente não paga o custo de
uma breve análise das chances de calote ou das ações necessárias para forçar o devedor a honrar
seus compromissos.
As instituições envolvidas em operações de micro crédito têm se mostrado criativas nas maneiras
utilizadas para garantir baixas taxas de calote. Por exemplo, os empréstimos do Grameen Bank são
para pequenos grupos de pessoas, e se alguém do grupo não repaga, os outros também sofrem: a
caloteira gera uma externalidade negativa que não agrada em nada as outras. Justamente porque o
grupo é pequeno e pertencente a um mesmo círculo social, há um monitoramento mútuo que diminui
os incentivos individuais a não pagar. A pressão das colegas constrange as “potenciais caloteiras”, e
em parte por isto quase todas repagam.
Ainda assim, empréstimos para os muito pobres normalmente não rendem o suficiente para o
intermediário financeiro. Contudo, alguns especialistas acreditam que o micro crédito pode estar se
tornando mais lucrativo, ensejando a entrada de mais bancos nesta modalidade – pelo menos para a
parcela menos “micro” do micro crédito.
Devido às dificuldades inerentes ao micro crédito, pode ser interessante então que governos
incentivem essa modalidade de empréstimos via regulamentações e leis. De fato, a lei que forçou os
bancos a abrir agências em pequenos vilarejos na Índia logrou reduzir um pouco a pobreza do país –
fazendo às vezes do ausente mercado das almas. Entretanto, é preciso cuidado, pois esse tipo de
intervenção frequentemente desemboca nas falhas de governo.
De modo geral, políticas públicas que incentivam determinados tipos de empréstimos têm custos:
elas reduzem os incentivos para outros empréstimos. No Brasil, por exemplo, os bancos são
obrigados por lei a emprestarem elevada quantidade de recursos para a habitação e para a
agricultura. A ideia por trás do chamado crédito dirigido (que já equivale, em 2015, a mais da
metade de todo o crédito concedido no país) é essa: devido a problemas de assimetria informacional
e a dificuldade de recuperar empréstimos feitos a devedores de má qualidade, os bancos privados, se
deixados livres para escolher, não estenderiam recursos a estas duas áreas importantes da economia.
Entretanto, assim como em vários exemplos que vimos ao longo deste livro, os bancos não são entes
inertes que ficam passivos diante de tal obrigatoriedade: as taxas de juros para os outros setores se
modificam em vista da lei. Quando ela direciona parte dos recursos aos setores habitacional e
agrícola, reduz-se a quantidade de dinheiro disponível para os outros setores da economia. Para
estes, o capital fica mais escasso e, portanto, mais caro. Assim como no capítulo 3 os não portadores
de carteirinha subsidiavam os estudantes, aqui os demais setores da economia pagam mais caro nos
seus empréstimos por conta da lei que favorece a habitação e a agricultura.
Ao interferir direcionando o crédito desta maneira, a poupança não flui para quem quer pagar mais
pelo capital e, portanto, para quem tem o uso mais produtivo para o dinheiro. Forçar os bancos a
concederem crédito para determinadas áreas é uma intervenção que precisa ser justificada. Quais as
falhas de mercado em questão? Há externalidades importantes em determinado setor, mais
importantes que as externalidades provenientes dos investimentos em outros setores? As falhas de
mercado compensam as falhas de governo? Não se pode fugir deste importante check-list de
perguntas.
Falhas de mercado são comumente citadas para justificar a existência de bancos públicos - como o
BNDES brasileiro – que têm por objetivo fornecer recursos a prazos mais longos e para pequenos
tomadores. O argumento é que os problemas de assimetria informacional e a dificuldade de fazer
valer contratos, em conjunção com a instabilidade macroeconômica, podem levar ao total
desaparecimento do mercado de empréstimos de longo prazo. Se a economia sofre de altos e baixos
constantemente, é difícil identificar os bons devedores, e se a lei protegendo os direitos de
propriedade não é firme, torna-se muito arriscado conceder empréstimos de longo prazo. A
inexistência de um mercado de crédito demandaria então uma intervenção direta do Estado.
Além disso, empresas pequenas e desconhecidas, por não terem muitos ativos que sirvam como
garantias e por não terem tido tempo de estabelecer reputação de bons pagadores, são mais
propensas a enfrentar dificuldades em levantar crédito, mesmo crédito de curto prazo. De fato,
estudos empíricos comprovam que os investimentos feitos por estas empresas menores e novas
dependem fortemente da quantidade de recursos próprios que elas têm em caixa, o que deixa de ser
verdade no caso de empresas maiores e mais antigas. Estas não precisam tanto de recursos próprios,
pois encontram mais facilidade em captar dinheiro nos mercados financeiros.
Entretanto, criar um banco estatal pode não ser a melhor solução para sanar a falha de mercado em
questão, pois como insistimos no capítulo 11, existem também as falhas de governo. Por exemplo,
como garantir que os empréstimos do BNDES não serãoao menos em parte decididos com base em
critérios políticos? E se um banco público, como o BNDES, escolhe mal sua carteira de
empréstimos, quem paga a conta é o contribuinte.
Além disso, o problema de assimetria de informação não é lá muito significativo para grandes
empresas, que podem fornecer garantias para seus empréstimos, possuem receitas mais estáveis e
têm uma reputação a zelar. Mas, o grosso dos empréstimos do BNDES, quase 80% do total, vai
justamente para estas empresas de grande porte, e não para as pequenas firmas, estas sim mais
acometidas pelas restrições de crédito derivada das imperfeições de mercado aqui debatidas. Esse
padrão dos empréstimos do BNDES pouco contribui para atenuar o problema de assimetria
informacional que afeta os mercados de crédito.
Por fim, o BNDES foi criado para corrigir a ausência de um mercado de crédito de longo prazo, mas
o que dizer da tese que a sua própria existência impede o surgimento de um mercado de crédito
privado de longo prazo? Essa é uma hipótese plausível dado que é literalmente impossível para os
bancos privados concorrerem com o BNDES, pois este empresta recursos a taxas inferiores às de
mercado, às custas do contribuinte. 
Concluindo, o crédito pode ser um importante instrumento para o desenvolvimento do país. Contudo,
negociar promessas é mais difícil que negociar bananas, e esse mercado é acometido por severas
falhas. Arranjos institucionais sólidos que garantam o cumprimento destas promessas são cruciais
para o bom funcionamento do mercado de crédito. Esse deve ser o ponto de partida para políticas
públicas nessa área.
18. Faxineiro ou aviãozinho
 
Como aprendemos no capítulo sobre comércio, a possibilidade de efetuarmos trocas nos permite
especializarmos em uma determinada atividade. Com a especialização, professores de economia dão
aulas e escrevem livros, o padeiro prepara o pão, alguns industriais produzem lápis, outros fabricam
cerveja, agentes de turismo vendem passagens aéreas e os traficantes de drogas gerenciam o
comércio e a distribuição da maconha. O benefício é que a especialização aumenta a produtividade
de todos.
Todos esses profissionais e empresas sofrem a pressão da concorrência e, em vista dela, os que
sobrevivem no mercado são aqueles que melhor se adequam ao seu ambiente de negócios. Esse
ambiente varia com a atividade, com o lugar e com o entorno institucional dentro do qual a empresa
atua. Deste conjunto de fatores dependem as ações das empresas, o modo como elas se organizam, e
seus métodos de trabalho. Por exemplo, como mencionamos no capítulo 1, em tempos de inflação
alta, as empresas escolhem contratar mais pessoas nos seus departamentos financeiros, para tentar
driblar a inflação; e, como vimos no capítulo das casas esquisitas, as diferenças nas taxas de
informalidade entre diferentes países do mundo decorrem de escolhas distintas de empresas e
trabalhadores feitas em concordância com o ambiente, definido pelas regulamentações e pela
incidência de tributação.
Uma empresa que produz lápis é organizada de maneira muito semelhante a uma companhia
produtora de cervejas. Claro, há diferenças associadas ao fato de os produtos finais serem distintos,
mas a feição geral de seu modus operandi tem muita coisa em comum. Algumas de suas principais
atividades são: a produção do lápis (ou da cerveja), que envolve plantar ou comprar os insumos,
adquirir e manter os equipamentos necessários para produzir o bem; o marketing e a propaganda; as
vendas; a distribuição dos bens; o gerenciamento das finanças; a administração dos recursos
humanos; e a defesa de seus interesses legais, que fica a cargo do departamento jurídico.
Assim como o produtor de lápis, o empresário do ramo de drogas ilegais busca gerir bem seu
negócio. Mas o que é diferente, bastante diferente, são suas preocupações e a sua estrutura
organizacional e de operações. Não porque seus objetivos sejam assim tão distintos, afinal de contas
ambos visam maximizar o lucro, mas porque seu entorno econômico-institucional é completamente
diferente.
Algumas das particularidades do ambiente de negócios de drogas ilegais são: há poucas maneiras de
anunciar o produto dado que os canais normais de propaganda lhes estão vedados; não é possível
criar reputação através de uma marca, ou anunciar um preço mais barato nos jornais; e também não
há um departamento jurídico que possa resolver os conflitos com concorrentes, clientes ou
funcionários em um tribunal público pois o negócio está fora da lei.
Em vista dessas particularidades, as tarefas fundamentais para o sucesso nesse negócio são bem
diferentes do caso do lápis e da cerveja e envolvem, por exemplo: manobrar para escapar das garras
da lei, seja estabelecendo relações ilegais com as autoridades, seja escondendo suas atividades;
defender-se dos ataques de concorrentes - ou atacá-los -, não travando guerra de preços, mas
guerreando com armas de fogo; garantir os direitos de propriedade sobre a droga e o cumprimento
dos acordos com clientes e funcionários, não acionando um advogado para cobrar suas dívidas ou
despedindo os funcionários desonestos, mas mandando matá-los ou ameaçando de morte suas
famílias.
Porque o entorno econômico é completamente distinto, a maneira de operar do fabricante de cervejas
não funcionaria bem no mercado de drogas. Se um traficante entra em atrito com um de seus
trabalhadores, um cliente ou com a concorrência, ele precisa utilizar a força das armas para resolver
o conflito porque as leis e o departamento jurídico não são alternativas disponíveis. O traficante
precisa impor a lei por si mesmo, fora do marco legal ditado pelo Estado de Direito. Se ele deixa um
de seus funcionários ou clientes lhe passarem a perna, sua reputação é abalada e sua posição fica
vulnerável. A única maneira de virtualmente não desaparecer do mercado, é usando a força bruta.
Devido às condições específicas de operação nesse mercado, aqueles que sobrevivem e alcançam
maior sucesso no comércio de entorpecentes utilizam o poder das armas e da violência.
Da mesma maneira, utilizar o modus operandi do traficante no mercado de cervejas também seria
ineficiente – tanto que os produtores de cerveja que sobrevivem nesse mercado operam de outra
maneira, e não saem matando gente por aí. Se alguns clientes não pagam, o empresário não manda
matar. Ele prefere entrar na justiça para receber o dinheiro. A empresa assim procede porque o custo
de adotar a estratégia do traficante, que envolve o risco de ser preso e a dor na consciência de matar
uma pessoa, são maiores que os custos legais de contratar um advogado e esperar para receber a
dívida.
É justamente porque o ambiente econômico-institucional com que se defronta uma atividade ilegal,
como o tráfico de drogas, é totalmente diferente do que aquele com que se defronta uma empresa
legal, que o comércio de drogas é feito por traficantes, enquanto o comércio de cerveja e lápis é
dominado por empresas que utilizam os meios legais e mais pacíficos para resolver conflitos. O
importante é notar que não há nada sobre o tipo do produto em si que determina essa diferença de
meios de trabalhar. Se a produção e o comércio de maconha fossem legais, a empresa que dominaria
esse mercado adotaria estratégias semelhantes aos produtores de cerveja. Da mesma maneira, o
comércio de cigarros existiria mesmo se fosse proibido, mas os produtores e vendedores utilizariam
métodos semelhantes aos dos traficantes. É a dicotomia legal versus ilegal que é a variável-chave
aqui, e não o bem comercializado em si.
Uma implicação direta desse ponto é que a liberação do comércio de entorpecentes terminaria com a
profissão de traficante. A liberação alteraria o ambiente de negócios, e os conhecimentos e
habilidades de um líder do tráfico seriam muito menos relevantes para o sucesso em um mercado
legalizado de drogas do que os conhecimentos de um executivo de uma grande empresa. Com a
legalização, o negócio de drogas seria administrado por pessoas como as que trabalham nas
companhias produtoras de pasta de dentes, queusam canetas e gravatas, e não metralhadoras e
capuzes (ainda que algumas pessoas escolhessem não trabalhar nesse ramo por questões ideológicas,
do mesmo modo como alguns preferem não trabalhar na produção e venda de cigarros hoje em dia).
O exemplo da Lei Seca nos Estados Unidos ilustra bem esse ponto. A venda de bebidas alcoólicas
foi proibida nos Estados Unidos entre 1917 a 1933. Nessa época, o comércio de bebidas alcoólicas
era dominado por gangsters como Al Capone. Hoje, as empresas do setor de bebidas alcoólicas se
parecem com as de cereais. O produto não mudou, o que mudou com a legalização foi o ambiente de
negócios.
O mercado de drogas – que movimenta entre 300 a 500 bilhões de dólares por ano[21] - é um
mercado ilícito, funcionando, como as empresas de Capone, à margem da lei. Todavia, mudanças na
legislação e no ambiente podem provocar severas alterações no seu funcionamento e na vida dos
envolvidos nesse ramo. O arcabouço desenvolvido neste livro nos auxilia a entender estes impactos.
Por exemplo, uma pergunta muito relevante que permeia o debate público é: quais seriam as
consequências econômicas da legalização do comércio de drogas? Já vimos que o negócio seria
gerenciado de maneira diferente e funcionaria de outra forma, mas o que podemos dizer sobre as
vantagens e desvantagens de um processo de liberalização?
Como vimos no capítulo 11, as intervenções estatais – incluindo leis definindo o que é legal e o que
não é - têm custos. Para que a lei proibindo o comércio de entorpecentes seja cumprida (em certa
medida) é necessário gastar uma grande quantidade de recursos. Para termos uma idéia desses
custos, estima-se que a guerra às drogas promovida pelo governo norte-americano tenha consumido
cerca de 45 bilhões de dólares em 2005, o que equivale a 0.35% do PIB americano, uma fatia
considerável da renda da maior economia do mundo. E há ainda outros custos. Por exemplo, por
conta do combate ao tráfico, milhares de pessoas terminam atrás das grades – o que é um custo
enorme para elas e para seus familiares.
Mas esses são apenas os custos diretos. Os custos indiretos, como as oportunidades que a proibição
abre para o florescimento da corrupção, também são altos. De fato, uma pesquisa com jovens
moradores de favela envolvidos com o narcotráfico constatou que mais da metade deles já havia sido
extorquido por policiais.[22] Ao aumentar o estímulo para a corrupção no meio policial, a proibição
gera impacto negativo no combate aos outros crimes.
Com a proibição, o preço da droga é muito mais alto do que no caso onde seu comércio é liberado.
Se vender drogas é ilegal, o comerciante de drogas precisa gastar uma quantidade enorme de
recursos para esconder suas atividades. Como dissemos, ele não pode simplesmente transportar o
produto em caminhões pelas estradas, utilizar os meios legais para garantir os direitos de
propriedade sobre o seu produto, e nem estabelecer reputação através de uma marca conhecida.
Além disso, quem trabalha nesse ramo corre o risco de ser preso – ou morto – e, portanto, para
escolher esse caminho é preciso que sua remuneração seja mais elevada que a das alternativas de
trabalho mais convencionais (ou que exista a perspectiva de vir a ganhar muito bem). Por tudo isso, a
proibição leva a um enorme acréscimo nos custos envolvidos na produção e venda de drogas aos
consumidores. E como vimos no capítulo 3, um maior custo de produção leva a um preço mais alto.
Devido ao maior preço e também à grande dificuldade e risco de se comprar drogas, a proibição
acarreta em menor consumo. Novamente, a Lei Seca nos Estados Unidos é um exemplo instrutivo.
Estimativas indicam que o consumo de bebidas alcoólicas caiu pra cerca de um terço do que era
assim que a proibição foi implementada, em 1917. Após algum tempo, no entanto, esta queda
atenuou-se. Foram-se gradativamente montando esquemas alternativos de comercialização, a oferta –
agora ilegal – recuperou-se, e o consumo passou a dois terços do que era antes da imposição da lei.
Neste episódio, a brutal queda inicial no consumo foi fortemente influenciada pela dificuldade de
comprar bebidas assim que a Lei Seca foi aprovada. Contudo, estudos estatísticos sugerem que,
passado esse período inicial, o maior responsável pela queda no consumo de bebidas foi mesmo o
aumento do preço.
A proibição objetiva justamente a queda no consumo do bem proibido. Quais os custos e benefícios
da redução no consumo para os usuários e não usuários de drogas?
No debate caloroso sobre a legalização de entorpecentes, vê-se grande foco nos custos e benefícios
que incidem sobre o usuário de drogas. Mas é preciso atentar para o fato de que as pessoas adultas
escolhem o que querem consumir. A ingestão de drogas acarreta em danos para a saúde e riscos para
a vida, mas apesar disso, muitos escolhem consumi-las. Saltar de bungee-jump e escalar montanhas
são atividades que também trazem riscos para a vida, mas por gerarem uma sensação gostosa aos
praticantes, são demandados e ofertados. Em geral, a consideração dos custos e benefícios pessoais
é deixada a cargo dos usuários. Não há lei proibindo escaladas perigosas. Deveria ser diferente no
caso das drogas?
Há de fato uma importante particularidade no que tange as escolhas sobre consumo de drogas. Em
primeiro lugar, muitas drogas viciam afetando severamente a capacidade de escolha dos indivíduos.
A escolha do consumidor é assim menos “bem calculada” do que no caso de outros produtos. Além
disso, pode ser difícil para um jovem ou adolescente resistir à tentação inicial de provar uma droga,
assim como para Ulisses, navegador de Homero, era difícil resistir ao canto das sereias. O problema
é que em muitos casos é difícil largar o vício.
Num caso desses, pode fazer sentido que a sociedade queira tirar dos jovens a opção de consumir
drogas. Essa é uma questão importante que deve ser levada em conta na escolha de políticas
públicas, mas como não somos psicólogos nem médicos, nossa discussão sobre o vício para por
aqui.
Sob o ponto de vista do economista, mais importante para o desenho das políticas públicas são as
externalidades negativas do consumo de drogas, como por exemplo os custos que a sociedade incorre
para tratar dos drogados nos hospitais públicos. Outras externalidades comumente citadas são: o
aumento da agressividade decorrente do uso de drogas; os estímulos para cometer crimes no afã de
sustentar o vício; a perda de capacidades cognitivas que pode expor outras pessoas a riscos, como no
caso de acidentes de automóveis; etc.[23]
A proibição reduz estas externalidades por diminuir o consumo. Contudo, algumas pessoas podem
reagir à proibição substituindo a droga proibida por outra. Por exemplo, estudos estatísticos apontam
que quando 12 estados americanos descriminalizaram a maconha nos anos 70, o consumo de maconha
aumentou, mas o consumo de outras drogas caiu.[24] Quando a idade mínima para comprar álcool
nos Estados Unidos subiu nos anos 80, os atingidos pela lei passaram a beber menos mas a fumar
mais maconha (em média).[25] Além disso, se o comércio de drogas é ilegal, é mais difícil para o
consumidor averiguar a qualidade da droga e, portanto, a qualidade média da droga consumida é
pior. Por exemplo, alguns estudos sugerem que o número de mortes por alcoolismo caiu menos que o
consumo de álcool durante a Lei Seca americana, talvez por conta do maior consumo de bebidas
adulteradas. Essas reações de consumidores e produtores atenuam a queda do consumo de drogas
advinda da proibição.
Mas a grande preocupação relacionada ao tráfico de drogas é mesmo a violência – uma enorme
externalidade negativa do narcotráfico. Cenas da violência urbana com raízes no comércio ilegal de
drogas são abundantes. Um jornalista torturado e assassinado por traficantes, um guitarrista de uma
banda de rock morto a tiros em seu carro, uma bala perdida na guerra pelo controle do morro que
mata a menina de 6 anos, e todos nós voltamos a nossa atenção para a questão do tráfico.
Muitas pessoas estão dispostas a pagar caro por drogas

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