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R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt .1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 19 C a p ít u lo 1 • B io lo g ia e c iê n ci a Figura 1.2 Retrato de Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet (1744-1829), portador do título de Cavaleiro de Lamarck e por isso conhecido na literatura científica como Lamarck. Esse importante naturalista forneceu contribuições de destaque na área da Biologia, dentre as quais uma das primeiras teorias de evolução biológica. Ao longo do século XVIII, o grande avanço do conhecimento sobre a natureza mostrou que animais e vegetais compartilham características únicas, que os distinguem completamente dos minerais. Essas características são, principalmente, a organização corporal complexa e a capaci- dade de crescer, de se reproduzir e mesmo de morrer. Com base nesses parâmetros, o naturalista francês Lamarck propôs, em 1778, a divisão da natureza em dois grandes grupos: o dos minerais, que ele chamou de seres inorgânicos (sem organização), e o dos animais e vegetais, denominados seres orgânicos (com organização corporal). Assim surgia a Biologia como ciência. Além do próprio Lamarck, os natu- ralistas alemães Gottfried Reinhold Treviranus (1776-1837) e Lorenz Oken (1779-1851) sugeriram, independentemente um do outro, a utilização do termo Biologia para designar o estudo dos seres vivos. (Fig. 1.2) 2 A origem do racionalismo Há cerca de 2.500 anos, alguns sábios gregos deram um passo fundamental para o surgimento e o desenvolvimento da ciência ao fazer uma distinção entre o estudo da natureza e as questões religiosas. Nasceu assim o pensamento naturalista, que tentava explicar os fenômenos naturais com base em fatos e processos da própria natureza, e não em termos místicos e sobrenaturais, como se costumava fazer nas sociedades antigas. O pensamento naturalista desenvolveu-se entre os séculos VII e IV a.C. em Jônia, conjunto de colônias gregas localizadas nas ilhas e no litoral asiático do mar Egeu, na atual Turquia. Os filósofos jônios (ou iônios) foram os primeiros a valorizar explicações naturais para os fenômenos físicos, tendo por base a observação dos fatos e o pensamento racional. Admite-se que Tales de Mileto (624-548 a.C.) foi um dos fundadores desse tipo de filosofia da natureza, que ficou conhecida como ciência grega. Tales e seus seguidores assumiam a existência da causalidade, afirmando que todo evento possui uma causa natural que inevitavelmente produz um efeito, o qual não é alterado por forças sobrenaturais. Surgia assim a ideia de que havia uma ordem natural no universo, com princípios e leis inerentes à própria natureza. Os filósofos jônios também admitiam que a mente humana era capaz de compreender os princípios e as leis da natureza, deduzindo-os a partir da observação dos fatos e do raciocínio. Essa maneira de pensar, segundo a qual o funcionamento do universo deve ser compreendido pela observação e pela razão, e não por revelação divina, ficou conhecida como racionalismo e cerca de 2 mil anos mais tarde deu origem à ciência moderna. O racionalismo foi aplicado à interpretação do mundo vivo quando os estudiosos voltaram sua atenção para a estrutura interna dos animais com o objetivo de entender sua organização e funcionamento. Um dos primeiros a estudar a estrutura dos seres vivos foi Alcméon, discípulo de Pitágoras (580-497 a.C.), que viveu entre 560 e 500 a.C. na antiga cidade grega de Crotona, localizada no sudeste da Itália atual. Entre os estudos de Alcméon destacam-se descrições de- talhadas do nervo óptico e do desenvolvimento do embrião de galinha no interior do ovo. Hipócrates Um dos nomes mais importantes associado à introdução do racionalismo no estudo dos seres vivos é o de Hipócrates (460?-377? a.C.), que viveu em Cós, ilha grega localizada a cerca de 4 km da costa da atual Turquia. Na opinião de Hipócrates, que ficou conhecido como “pai da Medicina”, a saúde do corpo depende do funcionamento adequado e harmonioso de suas partes e, quando isso não ocorre, sobrevêm as doenças. O papel do médico, segundo ele, é observar atentamente o enfermo para localizar as falhas de funcionamento e, então, programar ações apropriadas para corrigi-las. Essas ações não consistiam em rezas ou sacrifícios para afastar os demônios, como era comum na época, mas sim em propiciar ao paciente descanso, higiene adequada, ar fresco e alimentação saudável. Assim, o tratamento ideal consistia em deixar as leis da natureza efetuarem a cura, afastando qualquer interpretação de ordem mística. R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt .1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 20 U n id a d e A • A n at u re za d a v id a O grande mérito de Hipócrates foi trazer uma visão naturalista à Me- dicina, área até então dominada por magia e superstições. Suas ideias tiveram grande influência no desenvolvimento da Medicina ocidental. Até hoje, durante a cerimônia de formatura, os médicos fazem o chamado “ju- ramento de Hipócrates”, no qual, entre outras coisas, prometem manter-se fiéis “aos preceitos da honestidade, da caridade e da ciência” ao exercer sua profissão. Apesar de os historiadores afirmarem que esse juramento foi escrito cerca de seis séculos depois da morte de Hipócrates, ele sem dúvida expressa muito bem as ideias do pai da Medicina. (Fig. 1.3) O racionalismo de Hipócrates também aparece em sua explicação para a transmissão das características físicas de pais para filhos, até então abordada de forma mística ou sobrenatural. De acordo com Hipócrates, cada parte do corpo produziria partículas (gêmulas), que seriam trans- mitidas para a descendência no momento da concepção. Isso explicaria a hereditariedade. A partir das gêmulas recebidas dos pais, o novo ser formaria as diversas partes de seu corpo. Essa explicação, conhecida como pangênese, permaneceu como a única teoria geral de hereditariedade até o final do século XIX, sendo inclusive adotada pelo grande naturalista Charles Darwin. A pangênese só foi abando- nada no início do século XX, com o surgimento da Genética, que é o estudo da transmissão das características hereditárias. A respeito dessa hipótese de Hipócrates, o biólogo John Moore (1915-2002) comentou: “Embora não pareça, a hipótese de Hipócrates para a hereditariedade foi um grande começo: ele identificou um problema científico (possivelmente o passo mais difícil de todos), propôs uma explicação (hipótese) e escreveu-a de uma maneira compreensível. A elaboração de uma análise assim, há dois mil e quinhentos anos, é algo excepcional”. Figura 1.3 Conhecido como “Pai da Medicina”, Hipócrates tinha ideias revolucionárias sobre as causas das doenças e relacionava seu aparecimento à falta de higiene. Figura 1.4 Aristóteles (384-322 a.C.) foi uma das figuras mais significativas da ciência grega e fez contribuições importantes para a Biologia. Aristóteles O estudo dos seres vivos na Antiguidade atingiu seu ponto mais alto com o filósofo grego Aristóteles, que, entre outros feitos, descreveu as características e os hábitos de cerca de 500 tipos ou “espécies” de ani- mais. Além disso, ele reconheceu que as espécies podiam ser agrupadas em categorias, ou seja, classificadas de acordo com suas semelhanças. Aristóteles notou, muito acertadamente, que certas semelhanças entre as espécies animais eram superficiais e não deviam ser levadas em conta na classificação. Os golfinhos, por exemplo, têm semelhanças corporais e de hábitat com os peixes, mas diferem deles em aspectos importantes. Os estudos de Aristóteles mostraram que os golfinhos têm pulmões, respiram ar e por isso morrem se mantidos submersos por muito tempo; têm sangue quente e seus embriões desenvolvem-se no interior do corpo materno, alimentando-se através da placenta. Com base nessas obser- vações, o filósofo grego concluiu que os golfinhos deviamser agrupados com os mamíferos e não com os peixes. Nessa interpretação, ele estava quase dois mil anos à frente de seu tempo: na Europa, até a Idade Média, os golfinhos, assim como as baleias, foram considerados peixes. Aristóteles foi o primeiro a fazer perguntas relevantes sobre os animais do ponto de vista da Biologia e a fornecer algumas respostas até hoje ado- tadas nesta disciplina; por isso, é considerado o pai da Zoologia, o ramo da Biologia que estuda os animais. Ele utilizou, de forma pioneira, dois passos fundamentais do procedimento científico: coletar informações na natureza e refletir racionalmente sobre elas. (Fig. 1.4) Um discípulo de Aristóteles, Teofrasto (371?-286? a.C.), deu continui- dade ao trabalho de seu mestre, descrevendo cuidadosamente cerca de quinhentas espécies de plantas. Por isso, é considerado o fundador da Botânica, o ramo da Biologia que estuda as plantas. R ep ro d uç ão p ro ib id a. A rt .1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 21 C a p ít u lo 1 • B io lo g ia e c iê n ci a Figura 1.5 Arte do século XIX que retrata Galeno durante uma palestra, em Roma, na qual se utilizava de esqueletos de animais para suas explanações. 3 O racionalismo na Idade Média e no Renascimento Nos séculos que se seguiram à época de Aristóteles, com a decadência da civilização grega e a ascensão do Império Romano, houve grande declínio no estudo dos seres vivos. A maioria dos estudiosos romanos contentava-se em coletar e preservar as descobertas do passado, com pouca contribuição original para o estudo da natureza. Um dos últimos pesquisadores do mundo antigo a realizar estudos importantes sobre os seres vivos foi o médico greco-romano Galeno (130-200 d.C.), que viveu em Roma e atuou como cirur- gião de gladiadores. Apesar da prática habitual dos cruéis e sangrentos combates nas arenas, os romanos proibiam a dissecação de cadáveres; Galeno só tinha oportunidade de observar a anatomia humana nos gladiadores feridos que tratava. Grande parte de seus estudos anatômicos fundamentavam-se em dissecações de animais como cachorros, ovelhas e macacos. Com base nesses estudos, Galeno escreveu uma extensa obra sobre anatomia e fisiologia humanas. Apesar de apresentar vários erros, decorrentes sobretudo da impossibilidade de estudar diretamente o corpo humano, essa obra exerceu influência na Medicina até o século XVI. (Fig. 1.5) No final do século IV, o Império Romano Ocidental estava em franco declínio e a Igreja católica era a única instituição estável e poderosa na Europa. O ensino formal era ministrado quase que exclusivamente em mosteiros e escolas religiosas, tendo como foco o estudo da Bíblia. O inte- resse pelo estudo da natureza havia praticamente desaparecido pois, na visão cristã da época, o importante não era o mundo dos sentidos e sim o mundo divino, que só podia ser alcançado por revelação bíblica. A ideia dos antigos filósofos gregos de que havia leis naturais, que podiam ser desvendadas pela observação e pela razão, foi substituída pela visão de um mundo constan- temente sujeito à intervenção milagrosa de Deus e dos santos. A partir do século XI, principalmente em decorrência das incursões para a reconquista das terras santas no Oriente Médio, então sob domínio árabe, os europeus tomaram conhecimento de alguns escritos de filósofos gregos traduzidos para o árabe nos séculos IX e X e comentados por pensadores muçulmanos. A redescoberta dos trabalhos gregos permitiu o desenvolvimento da Escolástica, um método que tentava conciliar o racionalismo grego, especialmente as ideias de Aristóteles e de Platão, com a Bíblia. O objetivo central da Escolástica era fornecer evidên- cias da existência de Deus. Alguns escolásticos notáveis foram o bispo e teólogo inglês Robert Grosseteste (1168?-1253) e um de seus discípulos, o filósofo e monge franciscano inglês Roger Bacon (1214-1294); eles aplicaram e desenvolveram métodos aristotélicos de estudo da natureza que podem ser considerados precursores de procedimentos da ciência moderna. A evolução dos estudos escolásticos foi praticamente interrompida em meados do século XIV, principalmente devido à peste negra, doença que dizimou cerca de um terço da população europeia, sobretudo nas cidades. A recorrência de novos surtos da peste e de outras doenças desestruturou as sociedades urbanas e provocou o contínuo declínio da população por cerca de um século, contribuindo para a interrupção dos estudos da natureza.