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TUTÓIA-MA, 2023 geiso Caixa de texto T U T Ó I A, 2 0 2 4 | EDITOR-CHEFE Geison Araujo Silva | CONSELHO EDITORIAL Ana Carla Barros Sobreira (Unicamp) Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI) Diógenes Cândido de Lima (UESB) Jailson Almeida Conceição (UESPI) José Roberto Alves Barbosa (UFERSA) Joseane dos Santos do Espirito Santo (UFAL) Julio Neves Pereira (UFBA) Juscelino Nascimento (UFPI) Lauro Gomes (UPF) Letícia Carolina Pereira do Nascimento (UFPI) Lucélia de Sousa Almeida (UFMA) Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB) Marcel Álvaro de Amorim (UFRJ) Meire Oliveira Silva (UNIOESTE) Miguel Ysrrael Ramírez Sánchez (México) Rita de Cássia Souto Maior (UFAL) Rosangela Nunes de Lima (IFAL) Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UFMS) Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL) Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB) Copyright © Editora Diálogos - Alguns direitos reservados Copyrights do texto © 2024 Autores e Autoras Esta obra está sob Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial- CompartilhaIgual 4.0 Internacional. Este livro pode ser baixado, compartilhado e reproduzido desde que sejam atribuídos os devidos créditos de autoria. É proibida qualquer modificação ou distribuição com fins comerciais. O conteúdo do livro é de total responsabilidade de seus autores e autoras. Capa: Geison Araujo / Adobe Stock Diagramação: Editora Diálogos Revisão: Autores e autoras Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P964 Produção de textos em contexto escolar e acadêmico [livro eletrônico]: discussões teóricas e práticas / organização Antonio Naéliton do Nascimento , Roberto Barbosa Costa Filho.--Tutóia, MA : Editora Diálogos, 2024. 250 p. Formato: PDF Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia. ISBN 978-65-89932-92-5 DOI 10.29327/5338488 1. Artigos - Coletâneas. 2. Gêneros textuais - Ensino e pesquisa. 3. Produção de texto. I. Nascimento, Antonio Naéliton do. II. Costa Filho, Roberto Barbosa. CDD-400 Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422 contato@editoradialogos.com www.editoradialogos.com Sumário Apresentação ........................................................................................................8 Parte 1 - Produção de textos em contexto escolar Capítulo 1 Perspectivas de produção de texto em contexto escolar ......... 19 Milene Bazarim Capítulo 2 Reconfigurações teóricas do eixo produção textual: (des) continuidades entre a segunda versão e a versão homologada da BNCC .................................................................................................................49 Antonio Naéliton do Nascimento Denise Lino de Araújo Capítulo 3 O Artigo de opinião no Caderno Docente “Pontos de Vista”, da Olimpíada de Língua Portuguesa “Escrevendo o Futuro”: uma sequência didática ........................................................................................ 68 Jó Gomes da Silva Capítulo 4 Produção de fanfics como forma de incentivar a leitura........... 98 Rafaela Lopes da Silva Andrade Parte 2 - Produção de textos em contexto acadêmico Capítulo 5 O ensino de escrita acadêmica em cursos de graduação: uma análise da seção de objetivos em planos de curso .....................125 Juliana Marcelino Silva Elizabeth Maria da Silva Capítulo 6 Do trabalho prescrito ao realizado: estudo de caso sobre abordagens de ensino de escrita acadêmica em um curso de Letras Português .............................................................................................142 Francineide Francisca Pacheco Elizabeth Maria da Silva Capítulo 7 Ações de linguagem construídas em experiências com atividades de produção de textos na situação emergencial de ensino remoto ................................................................................................. 164 Roberto Barbosa Costa Filho Capítulo 8 Competência linguageira: uma análise do gênero acadêmico abstract de acordo com a percepção do estudante universitário ......................................................................................................195 Hermano Aroldo Gois Oliveira Regina Celi Mendes Pereira da Silva Capítulo 9 A produção do gênero resenha em contexto acadêmico: uma análise da experiência de estudantes ingressantes no curso de Letras-Português ............................................................................................223 Diego Brito Diniz Talita Dos Santos Borges Martins Roberto Barbosa Costa Filho Sobre os organizadores ..............................................................................241 Sobre os autores e autoras .......................................................................242 Índice remissivo ............................................................................................. 248 Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 8 Apresentação É certo compreender que, há bastante tempo, a produção de tex- tos é objeto privilegiado de ensino e de aprendizagem em diferentes cenários de escolarização. Dentro de seu percurso histórico, contudo, esse objeto nem sempre esteve em posição de centralidade nas aulas de línguas, passando por diferentes momentos de compreensão e defini- ção. Até hoje, a produção de textos é motivo de discussão e reflexão perante a necessidade de abarcar toda a complexidade que envolve os usos da linguagem nas diferentes práticas sociais, o que motiva a exis- tência da presente obra na incumbência de lançar luz a algumas ques- tões pertinentes aos contextos escolar e acadêmico. Na constituição de um inventário dos paradigmas pelos quais passou o ensino de Língua Portuguesa, é possível perceber que, entre o século XVIII e meados do século XX, esse campo do conhecimento esteve, quase que exclusivamente, voltado para o ensino de regras gra- maticais e de leitura literária (com foco na decodificação e memorização de textos clássicos). A produção de textos, nesse momento, estava diluí- da no ensino de composição, que se voltava ao estabelecimento de uma retórica a partir de “belos modelos”, tendo em vista o entendimento de que existia uma língua homogênea e não problemática (Bunzen, 2006). Assentada nesse pensamento, até a década de 1950 a solicitação de ela- boração escrita caracterizava-se como uma atividade de “escolha de pala- vras corretas, nobres e bonitas”, com vistas à representação do que falava à alma e trazia algum ensinamento, desconsiderando, por completo, a construção de sentidos, como destacado por Marcuschi (2010, p. 70). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 9 Entre as décadas de 1960 e 1970 do século XX, em virtude tam- bém da ampliação do acesso à educação formal pela sociedade brasilei- ra, começou a se despertar a noção de redação escolar, com incentivo à criatividade do produtor (Bunzen, 2006; Marcuschi, 2010). Além disso, conforme pontuado por Bunzen (2006), a partir do Decreto Fe- deral Nº 79.298, de 24 de fevereiro de 1997, houve o estabelecimento da obrigatoriedade da prova de redação em língua materna nas provas de vestibular. Esse período, no entanto, foi marcado por contradições, tendo em vista que, ao mesmo tempo que a escola “era chamada a es- timular o aluno a expressar suas ideias de modo criativo, em atividades denominadas “redação”, “redação livre” e “redação criativa”, era pres- sionada a cercear a liberdade do aprendiz na emissão de posições sobre o status quo” (Marcuschi, 2010, p. 71, grifo da autora). É a partir da década de 1980 que há uma mudança consubstan- cial de paradigma, com modificação discursiva e prática na passagem do “fazer redação” para o “produzir textos”. Obras como “O texto em sala de aula” (Geraldi, 1984) representaram um esforço da comunida- de acadêmica para que o cenário educacional compreenda a importân- cia de se conceber os contextos de produção e de recepção dos textos. Desse modo, inaugura-se uma maior preocupação com oato de escre- ver e todos os seus processos constitutivos (Bunzen, 2006; Marcuschi, 2010). Com base em tais reflexões, que se estenderam e se ampliaram pela década de 1990, uma nova orientação para o ensino foi firmada, relativa à necessidade de se assumir a escrita como processo e o texto como evento interacional (Lima, 2021). A partir de então esse pensamento reconheceu a necessidade de, ao produzir um texto, o aluno passe a assumir uma posição locativa. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 10 Tal postura, por consequência, implica em: a) algo a dizer; b) razões para esse dizer; c) alguém a destinar; d) assumir-se como sujeito des- se dizer; e) escolher estratégias de constituição desse dizer (Bunzen, 2006). Esses entendimentos também refletiram nas políticas curri- culares educacionais brasileiras, o que fez estabelecer o texto como unidade privilegiada de ensino e aprendizagem, como nos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (Brasil, 1998), a partir de uma diversi- dade de gêneros textuais - inovação incorporada pelas discussões lin- guísticas que se realizavam especialmente com vistas às contribuições do círculo bakhtiniano. Com o itinerário de se contemplar variados gêneros textuais em contextos de escolarização, ampliou-se também a discussão de que a produção de texto não devesse estar voltada somente para a escrita, o que fez acender a necessidade de repensar esse objeto com relação a outras semioses da língua. A Base Nacional Comum Curricular - BNCC (Brasil, 2018), mais recentemente, reafirma essa demanda, com diferentes gêneros pertencentes aos distintos campos de atuação. Por ser assim, atualmente, investigações têm avançado no sentido de ampliar o conceito de produção textual – de uma perspectiva gra- focêntrica a uma perspectiva que acolhe o oral e, mais recentemente, o multissemiótico. Nesse ínterim, é importante observar, tal como propõem Santos, Riche e Teixeira (2012), que a produção de textos (orais, escritos ou multissemióticos) é um processo cognitivo e intera- cional. Por ser assim, é preciso compreender como o texto recebe de- terminada forma, o que acontece durante o ato de produção e como, em contexto de escolarização, a ação docente interfere no resultado final apresentado. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 11 As discussões que se colocam contemporaneamente também preveem a importância de destacar os letramentos (Street, 2014) e os multiletramentos (Rojo; Almeida, 2012) enquanto práticas sociais que se destinam a abarcar a complexa e engenhosa teia de relações histórico-culturais que moldam as sociedades e as múltiplas camadas semióticas que se implicam na constituição de textos. Todo esse apa- nhado demonstra o quão frutíferos e necessários são os debates que giram em torno da produção de textos nos mais distintos cenários de escolarização (assim como aqueles não escolares, apesar de não serem foco deste livro). No escopo da presente obra, reunimos trabalhos que versam so- bre discussões teóricas e práticas relacionadas à produção textual oral, escrita e/ou multissemiótica nos contextos escolar e acadêmico. Para uma melhor sistematização dos capítulos, dividimos a obra em duas partes: na primeira, estão expostos os textos que se debruçam a pensar o objeto em tela no campo da Educação Básica; na segunda, são apre- sentados os textos que refletem sobre esse mesmo objeto no âmbito do Ensino Superior, conforme descrição a seguir. Inicialmente, no primeiro capítulo, intitulado Perspectivas de produção de texto em contexto escolar, a autora, Milene Bazarim, a partir de estudo bibliográfico, traz uma discussão que perpassa a his- tória do objeto produção textual na educação básica, especialmente quanto ao ensino de língua materna. Ancorando-se em três perspec- tivas, a autora apresenta a produção de texto e seus aspectos que vão desde a uma concepção mais formal e estrutural a uma que acolhe os diferentes gêneros e linguagens. De acordo com a análise realizada, destaca-se que a produção de textos supera a redução grafocêntrica Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 12 na qual o texto era sinônimo de escrita, reconhecendo e legitimando a produção oral, assim como passa a contemplar diversas semioses e mídias. O segundo capítulo, Reconfigurações teóricas do eixo produ- ção textual: (des)continuidades entre a segunda versão e a versão homologada da BNCC, de Antonio Naéliton do Nascimento e De- nise Lino de Araújo, traça um diálogo entre duas versões de um do- cumento-chave para a educação brasileira: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). No âmbito da pesquisa, os autores apontam as (des)continuidades teóricas na apresentação do eixo produção textual em duas versões, com vistas à apreensão do processo de ressignifica- ção de objetos de ensino em currículos de língua materna. Diante da comparação dos documentos, foram observadas imprecisões de natu- reza terminológica e conceitual relacionadas à produção textual, assim como um potencial apagamento da modalidade oral da língua. No terceiro capítulo, O artigo de opinião no Caderno Docente “Pontos de Vista”, da Olimpíada de Língua Portuguesa “Escreven- do o Futuro”: Uma sequência didática, de Jó Gomes da Silva, bus- ca-se observar se a sequência didática do artigo de opinião do caderno docente Pontos de Vista, da Olimpíada de Língua Portuguesa Escre- vendo o Futuro, atende ao descrito em Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), a respeito dos procedimentos metodológicos de abordagem do artigo de opinião no instrumento didático anteriormente citado. O autor verificou organização sistemática, contextualizada e coerente tanto na abordagem do gênero quanto na relação com a teoria-base. O capítulo Produção de fanfics como forma de incentivar a leitura, de Rafaela Lopes da Silva Andrade, encerra a primeira parte Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 13 do livro, trazendo o gênero fanfic como foco do estudo. A autora ana- lisa o que os documentos oficiais compreendem por esse gênero e, ao descrevê-lo, apontam sugestões didáticas para o seu ensino na educa- ção básica. De acordo com a pesquisa, a partir do trabalho de criação de histórias feitas por fãs, as fanfics, busca-se incentivar os alunos à leitura de modo a compartilharem suas experiências e a construírem novos sentidos. Iniciando a segunda parte do livro, temos o capítulo O ensino de escrita acadêmica em cursos de graduação: uma análise da seção de objetivos em planos de curso, de autoria de Juliana Marcelino Silva e Elizabeth Maria da Silva. Nele, as autoras analisam planos de curso de disciplinas contempladas na grade curricular de diferentes cursos ofertados pela Universidade Federal de Campina Grande, campus de Campina Grande, cujas nomeações indicam que se trata de compo- nentes voltados para o ensino de escrita. Essa análise é realizada com os objetivos de 1) verificar qual(is) objetivo(s) pedagógico(s) norteia(m) o ensino de escrita previsto nos planos de curso; e 2) identificar que abordagem(ns) de ensino de escrita pode(m) estar subjacente(s) a es- ses objetivos pedagógicos. Enquanto resultados, as autoras observa- ram diferentes objetivos pedagógicos e, consequentemente, diferentes abordagens de ensino de escrita, com a abordagem socialização acadê- mica predominante. Logo após, no capítulo Do trabalho prescrito ao realizado: estudo de caso sobre abordagens de ensino de escrita acadêmica em um curso de Letras Português, Francineide Francisca Pacheco e Elizabeth Maria da Silva investigam uma disciplina ofertada para estudantes calouros do curso de Letras Português de uma universi- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 14 dade situada no nordeste brasileiro, com vistas a: 1) identificar abor- dagem(ns) de ensino de escrita acadêmica subjacente(s)ao trabalho prescrito na ementa da disciplina; 2) mapear abordagem(ns) de ensino de escrita acadêmica norteadora(s) do trabalho planificado no plano de curso da professora da disciplina; 3) comparar abordagem(ns) de ensino de escrita acadêmica identificada(s) nos trabalhos prescrito e planificado com a(s) inferida(s) no trabalho realizado pela professora. As autoras puderam verificar que a abordagem de socialização acadê- mica perpassa do trabalho prescrito ao realizado; além disso, constata- ram indícios, no trabalho planificado, da abordagem de habilidades de estudo e, no trabalho realizado, além desta, evidências da abordagem dos letramentos acadêmicos e da prática institucional do mistério. Já no capítulo Ações de linguagem construídas em experiên- cias com atividades de produção de textos na situação emergencial de ensino remoto, Roberto Barbosa Costa Filho busca deflagrar al- gumas (re)configurações pelas quais passou o Ensino Superior duran- te a situação emergencial de ensino remoto decorrente da pandemia de COVID-19. De maneira particular, esse autor busca mapear ações de linguagem em meio às atividades de produção de textos evidencia- das em experiências narradas por discentes de uma Licenciatura em Letras: Língua Portuguesa. Os resultados obtidos indicam variadas representações atribuídas aos parâmetros físicos, sociossubjetivos e relativos a outros elementos das situações de ação de linguagem. Em seguida, Hermano Aroldo Gois Oliveira e Regina Celi Men- des Pereira da Silva nos apresentam o capítulo Competência lingua- geira: uma análise do gênero acadêmico abstract de acordo com a percepção do estudante universitário. Esses autores investigam, no Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 15 quadro da atividade social, fundamentada no aporte teórico do In- teracionismo Sociodiscursivo, a dimensão linguístico-discursiva que revela ações reconhecidas, reiteradas e/ou adquiridas por um agente- -produtor para mobilizar saberes sobre a escrita de texto especializa- do no curso de Letras/Português de uma Instituição Federal, a partir da experiência com o gênero acadêmico abstract. A partir disso, con- cluem que a competência linguageira é construída, no caráter de for- mação e vivência acadêmica, a partir do engajamento e do interesse em conhecer os acordos (pré)estabelecidos entre os agentes sociais, como também a arquitetura textual e a socio-pragmática do texto escrito. Por fim, no capítulo A produção do gênero resenha em con- texto acadêmico: uma análise da experiência de estudantes ingres- santes no curso de Letras-Português, Diego Brito Diniz, Talita Dos Santos Borges Martins e Roberto Barbosa Costa Filho investigam a experiência de produção do gênero resenha acadêmica de estudantes ingressantes na disciplina Letramento Acadêmica, ofertada ao curso de Letras-Português de uma instituição pública brasileira. Os autores reforçam, através dos resultados destacados, a relevância de uma edu- cação baseada nos princípios dos Novos Estudos do Letramento e, em especial, da abordagem dos Letramentos Acadêmicos. Diante do exposto, convidamos a todos(as) os(as) leitores(as) a conhecerem a obra ora apresentada. Os textos que a compõem são frutos de pesquisa científico-acadêmica séria e compromissada em tra- zer diálogos críticos sobre a produção textual no contexto da contem- poraneidade. Nesse viés, o conteúdo da presente obra, seja com foco na educação básica, seja com destaque ao ensino superior, ancorada numa Linguística Aplicada transgressiva, não só discute, como tam- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 16 bém problematiza e propõe novas formas de se olhar para os fenôme- nos da linguagem. Roberto Barbosa Costa Filho Antonio Naéliton do Nascimento (Organizadores) Referências ROJO, R.; ALMEIDA, E. M. (org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/ arquivos/pdf/portugues.pdf. Acesso em: 21 out. 2023. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_ EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 08 set. 2021. BUNZEN, C. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M.; KLEIMAN, A. B. (org.). Português no ensino médio e formação de professores. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 139-161. GERALDI, J. W. (org.). O texto na sala de aula: leitura & produção. Cascavel: Assoeste, 1984. LIMA, A. A prática da escrita no contexto escolar: de onde viemos? Para onde vamos? In: LIMA, A.; MARCUSCHI, B. (org.) Produção de textos em espaços escolares e não escolares [recurso eletrônico]. Recife : Ed. UFPE, 20 21. p. 11- 34. Disponível em: https://editora.ufpe.br/books/catalog/view/40/43/132. Acesso em: 21 out. 2023. MARCUSCHI, B. Escrevendo na escola para a vida. In: RANGEL, E. O.; http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/portugues.pdf http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/portugues.pdf http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf https://editora.ufpe.br/books/catalog/view/40/43/132 Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 17 ROJO, R. (coord.) Língua Portuguesa: ensino fundamental, v. 19. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010 (Coleção Explorando o Ensino). p. 65-84. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/ docman/abril-2011-pdf/7840-2011-lingua-portuguesa-capa-pdf/file. Acesso em: 21 out. 2023. SANTOS, L. W.; RICHE, R. C.; TEIXEIRA, C. S. Produção de textos orais e escritos. In: SANTOS, L. W.; RICHE, R. C.; TEIXEIRA, C. Análise e produção de textos. São Paulo: Contexto, 2012. p. 97-129. STREET, B. V. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução: Marcos Bagno. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2014. http://portal.mec.gov.br/docman/abril-2011-pdf/7840-2011-lingua-portuguesa-capa-pdf/file http://portal.mec.gov.br/docman/abril-2011-pdf/7840-2011-lingua-portuguesa-capa-pdf/file Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 18 Parte 1 Produção de textos em contexto escolar DOI: 10.29327/5338488.1-1 Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 19 Capítulo 1 | Perspectivas de produção de texto em contexto escolar Milene Bazarim Introdução Desde a década de 1970, motivado principalmente pelo entu- siasmo da virada pragmática nos estudos da linguagem, pela chega- da ao Brasil das concepções de texto da recente Linguística Textual (LT) e pela divulgação, cada vez maior, dos pressupostos do Círculo de Bakhtin, um grupo de linguistas militava para que o texto fosse considerado a unidade básica do ensino de Língua Portuguesa (LP). Como resultado do engajamento desse grupo, houve a publica- ção do livro “O texto na sala de aula” (Geraldi, 2001 [1984]) e da cole- ção “Ensinar e aprender com textos” (Geraldi; Citelli, 2011 [1997]). A militância a favor da produção de texto na escola reverberou não só no contexto acadêmico, mas também nas políticas públicas educacionais. A “Proposta Curricular para o ensino de Língua Portuguesa” (PCLP) 1º. grau de São Paulo (São Paulo, 1991 [1988]), por exemplo, foi mui- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 20 to influenciada pelas concepções defendidas pelo grupo, uma delas a da superação das práticas coercivas e reducionistas da redação escolar. De forma mais específica, Fiad (2012) constatou que o diálogocom o livro “O texto na sala de aula” é muito evidente nas “Diretrizes para o aperfeiçoamento do ensino/aprendizagem da língua portuguesa” de São Paulo de 1985, bem como na PCLP de 1988. A década de 1980, portanto, pode ser considerada um marco temporal no que diz respeito à circulação, ainda que inicialmente no contexto acadêmico, de discursos tanto criticando a redação escolar quanto militando em prol da prática de produção de textos. Dessa for- ma, no Brasil, não há como dissociar essa militância do avanço das pes- quisas com abordagens enunciativo-discursivas e do (re)surgimento da LT com outro entendimento sobre o texto e, consequentemente, a sua produção. Nesse contexto, emerge a concepção de linguagem como uma forma de interação (Geraldi, 2001a [1984]), que está subjacente à prática de produção de texto. Essa concepção se opõe à de linguagem como instrumento de organização e expressão do pensamento (Geraldi, 2001a [1984]), que informa a composição, e se distancia da linguagem como meio de comunicação (Geraldi, 2001a [1984]), subjacente à redação escolar. A concepção interacional de linguagem está fundamentada principalmente nos estudos do e ou filiados ao Círculo de Bakhtin, sobretudo Volóchinov (2017 [1929]), cuja primeira edição em português foi publicada em 1979. Sem que os estudos cognitivos deixassem de ter alguma influência, pois há o destaque também para as etapas do processo de produção, o que vai acarretar, por exemplo, as discussões acerca da importância da Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 21 reescrita e da correção de texto, a filiação teórica enunciativa-discursi- va da produção textual converge para a maior contextualização dessa prática. Desse modo, enquanto na composição e na redação escolar o processo de ensino e aprendizagem consistia em instruções focadas na reprodução quer de modelos quer de estruturas, na prática de produ- ção de textos, as condições de produção de textos diversos que circulam socialmente passam a ter relevância. A correção de texto também é um significativo critério de dife- renciação das práticas mencionadas. Tendo em vista as características da composição, provavelmente, o que ocorria era apenas o exame a fim de verificar se a produção do aluno reproduzia o modelo e se estava de acordo com as regras da gramática tradicional/normativa. Na redação escolar, há a higienização do texto do aluno (Jesus, 1997; Brasil, 1998), o que também a associa à prática do exame. É, portanto, somente na produção de textos que se torna legítima a discussão sobre os modos de intervenção no texto do aluno a fim de que eles contribuam na reescri- ta (Ruiz, 2010 [2001]). Tendo feito uma breve diferenciação a respeito das práticas esco- lares de produção de texto, o objetivo deste artigo, resultado de uma revisão bibliográfica, é caracterizar as diferentes perspectivas de pro- dução de texto escolar em contexto brasileiro. A primeira delas, que sucede a redação escolar e antecede a publicação dos Parâmetros Cur- riculares Nacionais, doravante PCN (Brasil, 1998), pode ser represen- tada sobretudo pelos trabalhos de Geraldi (2017 [1991]; 2011 [1997]; 2001 [1984] e 1986). A segunda, que inspirou fortemente os PCN (Brasil, 1998), está fundamentada nos estudos enunciativos, inclusive nas concepções do Círculo de Bakhtin, bem como no Interacionismo Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 22 Sociodiscursivo (ISD) (Bronckart, 2009 [1997]; Schneuwly; Dolz, 2004), entre outros. Mais recentemente, com a publicação da Base Nacional Comum Curricular, BNCC (Brasil, 2017), é possível iden- tificar uma terceira perspectiva, na qual também se percebe a influên- cia de uma fundamentação teórica de filiação enunciativo-discursiva e, de forma mais contundente, cognitiva. Este artigo está dividido em cinco partes. Após esta introdução, são apresentas e discutidas a primeira perspectiva de produção de tex- to escolar; a seguir, a segunda perspectiva; posteriormente, a terceira perspectiva; na quinta e última parte, há algumas considerações finais. Primeira perspectiva: prática de produção de texto na escola A gênese da primeira perspectiva a respeito da prática de produção de texto já pode ser identificada na década de 1970 quando a legitimi- dade da redação escolar, sobretudo por causa da sua artificialidade e do foco no produto final, passou a ser questionada (Bunzen, 2006). Contudo, foi na década de 1980 que, segundo Geraldi (2011 [1997]), o ensino de LP, não só especificamente o da escrita, passou por um minucioso escrutínio. Nesse período, o cenário acadêmico também estava em eferves- cência: a relação entre pensamento e linguagem passou a ser relativiza- da; houve uma ampliação do objeto de estudo da frase para o texto e o discurso; o leitor passou a ser uma categoria tão importante quanto o texto e o autor nos estudos literários; o debate a respeito da questão Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 23 do sujeito foi resgatado a partir de diferentes áreas do conhecimento (Geraldi, 2011 [1997]). Entre as propostas que circularam nessa época, estava justamente a de substituição da redação escolar pela de produção de textos, isto é, da prática de escrita para a escola para a de escrita na escola (Geraldi, 1986, grifo meu). Nesse momento, pleiteava-se que a produção de tex- tos fosse considerada como o ponto de partida e o ponto de chegada de todo o processo de ensino aprendizagem da LP, pois é “no texto que a língua – objeto de estudo – se revela em sua totalidade” (Geraldi, 2017 [1991], p. 135). Conforme Geraldi (1986), só é possível caracte- rizar a escrita na escola se: a) a escola e a sala de aula puderem ser entendidas como o espaço físico onde sujeitos se encontram; b) a aula de redação abandonar o objetivo de querer ensinar a escrever; c) aceitarmos que aprendemos a escrever escrevendo e que, a cada vez que escrevemos, estamos aprendendo a escrever, pois estaremos concretamente frente a condições de produção diferentes; ENTÃO PODEREMOS COMPREENDER QUE a) a sala de aula é um espaço físico como qualquer outro (o escritório, a casa, etc.) e nela é possível escrever; b) a aula de redação não é mais do que o espaço temporal, aproveitável ou não, para iniciar um processo de interlocução à distância, os textos aí produzidos saindo em busca de leitores efetivos; c) só se aprende a escrever escrevendo, e não simulando situações de escrita. (Geraldi, 1986, p. 27-28, grifo do autor) Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 24 Isto posto, para a produção de texto na escola e não para a escola é necessário que: a) se tenha o que dizer; b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz (o que implica responsabilizar-se, no processo, por suas falas); e) se escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d). (Geraldi, 2017 [1991], p. 160) É possível perceber que “a devolução da palavra ao aluno faz deste o condutor de seu processo de aprendizagem” (Geraldi, 2017 [1991], p. 160). Por isso, a prática de produção de texto, conforme o proposto nesta primeira perspectiva, alinha-se completamente à concepção de escrita como uma oferta de contrapalavra sem deixar de apontar tam- bém para o processo, tendo em vista que se reconhece a escrita como ato estratégico e se advoga em prol do abandono das condições de pro- dução arbitrárias e artificiais da redação escolar. A troca de cartas entre professora e alunos (Bazarim, 2006; Eva- risto; Bazarim, 2018; Bazarim; Evaristo, 2020) pode ser considerada um exemplo de prática de produção de texto na escola, pois ilustra o que Geraldi (1986) considera como aprender a escrever escrevendo e não simulando situações de escrita.De acordo com o apresentado e discutido em Bazarim (2006), no início, o objetivo era estabelecer um contato amigável entre professora e alunos. No entanto, à medida que os estudantes foram respondendo e se engajando na troca, as men- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 25 sagens foram se personalizando, tornando-se mais longas e se aproxi- mando do gênero carta pessoal. Essa troca, portanto, foi uma atividade extraclasse, embora a es- cola tenha sido a esfera na qual as cartas circularam. Os textos produ- zidos, contudo, não foram objeto de correção ou discussão em sala de aula. Nas cartas, professora e alunos, ainda que mantendo seus papéis institucionais, constituíram-se como interlocutores interessados, isto é, sujeitos que atribuem legitimidade ao enunciado de outro(s), pro- curando a compreensão e emitindo uma resposta (Bazarim, 2006, p. 56-57). No contexto pesquisado, no entanto, mais do que responder, professora e alunos mantinham um tom cordial e amigável nas cartas. Com base em resultados de pesquisas recentes, houve a necessidade de ampliação do conceito para contemplar situações em que na resposta não é mantido um tom tão amistoso, pois, “nos momentos de diver- gência e disputa, o interlocutor continua sendo interessado” (Baza- rim; Evaristo, 2020, p. 242). Assim, na produção da carta, o aluno, que, de fato, assumiu o papel de interlocutor legítimo e legitimado (devolução da palavra ao aluno), tinha o que e para quem escrever, passando a ser responsável por tudo o que dizia. Desse modo, a escrita escapou aos padrões escolares vigentes na prática de redação escolar sem, contudo, deixar de ter um caráter ins- titucional e pedagógico importante para o letramento do aluno. Tendo em vista que a carta da professora atuava como um andaime no qual o aluno poderia se apoiar para realizar a sua produção, devido à relação de especularidade, houve também a mobilização e ampliação dos recursos linguístico-discursivos necessários à interação via carta1. 1 Em Evaristo e Bazarim (2018), bem como em Bazarim e Evaristo (2020), é possível ter Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 26 Com base no que foi mencionado, fica evidente que militar a favor da substituição da redação escolar pela produção de texto “não se tratava e não se trata de mero gosto por novas terminologias. Por trás da troca de termos, outras concepções estão envolvidas” (Geraldi, 2011 [1997], p. 19). Entre elas: de texto como unidade de ensino/aprendizagem; de aprender e ensinar com textos; de sala de aula como lugar de interação verbal e de sujeito ativo. À indicação do texto como unidade de ensino e aprendizagem da LP está subjacente a concepção de texto como um locus de correlação, construído materialmente com palavras portadoras de significados, em que os sentidos somente são compreendidos globalmente. Des- se modo, também é reconhecido que todos os textos dialogam entre si, formando um continuum no qual as relações são estabelecidas por meio dos temas que são tratados, dos pontos de vista que são defen- didos ou refutados e pela coexistência em uma mesma sociedade. Por isso, considerar o aluno produtor de textos é legitimá-lo como um su- jeito ativo nesse diálogo contínuo (Geraldi, 2011 [1997]). Associada a sua indicação como unidade de ensino/aprendiza- gem está a ideia de que se aprende e se ensina por meio de textos e não apenas nas aulas de LP, pois “alunos e professores aprendem e ensi- nam um ao outro com textos, para os quais vão construindo novos contextos e situação, reproduzindo e multiplicando os sentidos em circulação na sociedade” (Geraldi, 2011 [1997], p. 23). Em vista disso, ainda segundo Geraldi (2011 [1997]), dois ca- minhos podem ser percorridos no ensino de LP quando o texto é a acesso a resultados mais recentes, porém semelhantes aos de Bazarim (2006). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 27 unidade de ensino e aprendizagem: um mais estritamente linguístico, centrado no produto verbal e considerando os critérios de textualida- de; o outro, focalizando a relação entre o linguístico e suas condições de emergência. Esses caminhos estão relacionados à representação de sala de aula como um lugar de interação verbal fundamental no desenvolvimento do processo pedagógico. A adesão a essa ideia, que está subjacente à prática de produção de texto na escola, significa “deslocar-se continua- mente de planejamentos rígidos para programas de estudos elaborados no decorrer do próprio processo de ensino/aprendizagem” (Geraldi, 2011 [1997], p. 21). Cabe salientar também que, nessa perspectiva, o processo de ensinar não está centrado na transmissão de conhecimen- tos, mas sim no diálogo entre sujeitos portadores de diferentes saberes. Por isso, são consideradas as contrapalavras do aprendiz quando con- frontado com uma nova informação. Nesses dois caminhos, portanto, o sujeito não é mais visto como a fonte absoluta de seu dizer, aquele que tem plena ciência sobre o que diz, nem como assujeitado às condições e limitações históricas, culturais e ideológicas. A prática de produção de texto está alinhada à compreensão do sujeito como “produto da herança cultural, mas também de suas ações sobre ela” (Geraldi, 2011 [1997], p. 20). Mesmo que as reflexões dessa primeira perspectiva de produção de textos na escola já indicassem a necessidade de contextualização das práticas escolares, os aspectos estruturais e formais continuaram sen- do os privilegiados. No entanto, principalmente a partir de debates centrados nos estudos dos gêneros textuais do final da década de 1990, conforme o discutido na próxima seção, foi construído um percur- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 28 so fundamental para que a perspectiva sociointeracionista ganhasse espaço não somente no contexto acadêmico e nas políticas educacio- nais, mas também na sala de aula de LP (Marcuschi, 2010). Segunda perspectiva: prática de produção de textos de diversos gêneros orais e escritos A segunda perspectiva de produção de texto, neste trabalho, é re- presentada pelos PCN (Brasil, 1998), que podem ser caracterizados como um documento regulador de abrangência nacional. Ainda que também esteja fundamentada em estudos enunciativos, a segun- da perspectiva de produção de texto apresenta algumas diferenças em relação à primeira. Entre elas: a mobilização do conceito de gênero como uma forma relativamente estável de enunciado dotada de tema, estrutura composicional e estilo, inspirada nos estudos do Círculo de Bakhtin, especialmente em Bakhtin (2016 [1979]), e de sequência di- dática como um instrumento e um procedimento didático a partir dos estudos do ISD, principalmente Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004)2. No caso específico dos PCN de LP para o terceiro e quarto ci- clos, atualmente, equivalentes aos anos finais do Ensino Fundamental (EF), o documento se configurava como uma “síntese do que foi pos- sível aprender e avançar nesta década [...]” (Brasil, 1998, p. 19). Essa síntese envolve a reprodução de algumas críticas ao ensino tradicional de LP feitas em contexto acadêmico. Entre elas, o documento ressalta a excessiva escolarização das atividades de produção, bem como o uso 2 Cabe observar que os PCN aderem, eminentemente, ao uso da terminologia gênero sem qualificadores como: textual, de texto, do discurso ou discursivo. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 29 do texto como um pretexto para ensino de categorias da gramática tradicional, ambos associados à prática de redação escolar. Como uma alternativa ao tradicional, os PCN indicam que “a razão de ser das propostas de uso da fala e da escrita é a interlocução efetiva, e não a produção de textos para serem objetos de correção” (Brasil, 1998, p. 19, grifo meu). Por isso, para os Parâmetros,cabe à es- cola promover a ampliação dos conhecimentos prévios dos estudantes durante o EF a fim de que “cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas situações” (Brasil, 1998, p. 19, grifo meu). Além disso, nos PCN, a linguagem é definida como “ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos mo- mentos de sua história” (Brasil, 1998, p. 20, grifo meu). Destarte, fica evidente que, mais do que uma crítica, o documen- to também oferece alternativas. Diferentemente do ensino tradicional de LP, o qual se embasa na concepção de linguagem como expressão do pensamento e como instrumento de comunicação, os PCN se fundamentam na concepção interacional de linguagem tanto na pro- posição de conteúdos quanto nas indicações a respeito do seu trata- mento didático. Ao defender que a escola é um locus no qual o aluno deve “assumir a palavra”, por exemplo, os Parâmetros explicitam essa filiação aos estudos enunciativos da linguagem, inclusive os feitos no âmbito do Círculo de Bakhtin, similarmente ao que é defendido na primeira perspectiva de produção de texto, especialmente em Geraldi (2017 [1991], p. 160) a respeito da devolução da palavra ao aluno. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 30 De forma semelhante ao que acontece na primeira, nesta segun- da perspectiva, o texto também é considerado como a unidade de en- sino, ecoando vários trabalhos de LT publicados nas décadas de 1980 e 1990. Assim, o que diferencia esta perspectiva da anterior não é a definição de texto, mas sim, a mobilização do conceito de gênero como objeto de ensino. Nos Parâmetros, o gênero é definido da seguinte forma: Os gêneros são, portanto, determinados historicamente, constituin- do formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cul- tura. São caracterizados por três elementos: • conteúdo temático: o que é ou pode tornar-se dizível por meio do gênero; • construção composicional: estrutura particular dos textos per- tencentes ao gênero; • estilo: configurações específicas das unidades de linguagem derivadas, sobretudo, da posição enunciativa do locutor; conjun- tos particulares de sequências que compõem o texto etc. (Brasil, 1998, p. 21). Nesse trecho, é possível identificar termos (“formas relativamen- te estáveis de enunciados”; “conteúdo temático”, “construção com- posicional”; “estilo”) que apontam para uma concepção de gênero à luz dos estudos do Círculo de Bakhtin, mais especificamente Bakhtin (2016a [1997]). A indicação da sequência didática (SD), conforme trecho em seguida, como uma forma de organização do processo de ensino e aprendizagem, também é algo que não acontece na primeira perspecti- va de produção de texto. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 31 O planejamento dos módulos didáticos parte do diagnóstico das capacidades iniciais dos alunos, permitindo identificar quais instru- mentos de ensino podem promover a aprendizagem e a superação dos problemas apresentados. Assim, a organização de sequências di- dáticas exige: • elaborar atividades sobre aspectos discursivos e linguísticos do gênero priorizado, em função das necessidades apresentadas pelos alunos; • programar as atividades em módulos que explorem cada um dos aspectos do conteúdo a serem trabalhados, procurando re- duzir parte de sua complexidade a cada fase, considerando as pos- sibilidades de aprendizagem dos alunos; [...] (Brasil, 1998, p. 88, grifo meu). O uso de termos como “capacidade iniciais do aluno”, de “mó- dulos” e “sequências didáticas”, aliado à definição do gênero como objeto de ensino e à ênfase dada aos gêneros orais, também filia os PCN teoricamente ao ISD. Desse modo, inicialmente, nesta segun- da perspectiva, predominou tanto nos materiais didáticos quanto nas práticas em sala de aula, o interesse pela nomeação e classificação dos gêneros textuais e, em decorrência, pela caracterização de seus aspectos formais, tratados como fixos. Nesse sentido, a abordagem com base nos gêneros tex- tuais não se diferenciava muito dos estudos estruturais pleiteados pela gramática e a preocupação maior da escola e dos livros didáticos centrava-se no “ensino dos gêneros textuais” em si e por si mesmos, à revelia do processo sociointeracional (Marcuschi, 2010, p. 75-76). Provavelmente, isso se deva ao fato de que os PCN, ao incorpo- rarem, ainda que parcialmente, a concepção genebrina de SD, tenham descartado a ideia, defendida por Geraldi (1986, p. 27-28) na primeira perspectiva, de que a aula de LP deveria abandonar o objetivo de que- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 32 rer ensinar a escrever, pois só se aprende a escrever escrevendo e não por meio de simulação. Além de admitir que no processo de ensino e aprendizagem da produção textual na escola sempre haverá alguma ficcionalização, na SD genebrina, há a sistematização e a progressão das capacidades de linguagem, as quais são consideradas ensináveis e necessárias à ampliação da capacidade do aluno de se apropriar e de produzir diferentes gêneros. Guardadas as devidas proporções, há uma certa semelhança, no que diz respeito à sequenciação, entre a primeira perspectiva de pro- dução de texto e a proposta de SD do ISD, na qual, originalmente, não existe um módulo específico para atividades de leitura e há a reco- mendação para que a apresentação da situação de comunicação antes de produção inicial seja breve. Contudo, para Geraldi 2011 [1997], a prática de produção de textos dos PCN, mesmo filiada a concepções sociointeracionais de linguagem, teve uma orientação diferente da que era preconizada na primeira perspectiva, conforme citação a seguir: Ao contrário de partir da experiência linguística dos alunos e suas vivências para a produção de textos, introduziu-se a noção e o gênero discursivo como objeto de ensino, e a produção (e leitura) de textos passou a subordinar-se ao conhecimento sobre gêneros. Neste sentido, re-introduziu-se, embora com base em referência relevante e contemporânea – os estudos bakhtinianos – o movimento inverso àquele defendido nas propostas aqui contidas: trata-se hoje de aprender o que é um gênero discursivo e suas formas de circulação (as esferas de sua gênesis) para depois produzir um texto. Volta-se ao modelo, agora um “esqueleto” descarnado das características de um gênero, que o aluno se vê forçado a seguir. A produção deixou de ser produção para se tornar exercício. Gramaticaliza-se o gênero (a sua estabilidade relativa desaparece quando as sequências didáticas apresentam suas definições) e obtém-se um objeto de ensino (Geraldi, 2011 [1997], p. 25). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 33 Diferentemente de Geraldi (2011 [1997]), para Koch (2004a), a contribuição mais relevante dos PCN e, por conseguinte dos mate- riais que estão alinhados a ele, consiste justamente na inclusão do estu- do dos gêneros textuais, pois “somente quando o nosso aluno possuir o domínio dos gêneros na vida cotidiana ele será capaz de perceber o jogo que frequentemente se faz por meio de manobras discursivas que pressupõe esse domínio” (Koch, 2004a, n.p.). Concluídas as considerações a respeito da segunda perspectiva da produção de texto, na sequência, é contemplada a terceira perspectiva. Terceira perspectiva: prática de produção de textos de diversos gêneros e em diferentes linguagens A terceira perspectiva, a mais contemporânea, é, neste trabalho, representada pelas concepções presentes na BNCC do Ensino Funda- mental, “um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais quetodos os alu- nos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educa- ção Básica” (Brasil, 2017, p. 7). A Base, portanto, é um documento regulador da educação esco- lar nacional que afirma estabelecer um diálogo com outros da mesma natureza já produzidos, bem como incorporar resultados de pesquisa mais recentes, sobretudo no que diz respeito aos avanços das TDIC e da Web 2.0 e 3.0. A BNCC, homologada e publicada no final de 20173, tem como principais marcos legais a Constituição Federal de 3 Essa versão da BNCC ainda não contemplava a etapa do Ensino Médio. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 34 1988, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional n°. 9394/96 e o Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014. Assim como com qualquer documento curricular, segundo Nas- cimento e Araújo (2020), não se deve ter uma visão ingênua a respeito da BNCC, pois o seu processo de construção foi marcado por relações de poder, lutas e resistências. Com isso, apesar de afirmar que dialoga com documentos anteriores, percebe-se uma descontinuidade ou até mesmo uma ruptura, pois, na Base, a organização das aprendizagens é feita a partir de competências e habilidades, o que não acontecia nos PCN de LP do terceiro e quarto ciclos de EF (Brasil, 1998). Desse modo, na BNCC, ainda que sem mencionar qualquer filiação teórica, competência é definida como “a mobilização de conhecimentos (con- ceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemo- cionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (Brasil, 2017, p. 8). Em relação à sua estrutura, a BNCC está organizada da seguinte maneira: primeiramente, são apresentadas as competências gerais a se- rem desenvolvidas na Educação Básica de forma transversal às etapas, às áreas de conhecimento e aos componentes curriculares; a seguir, são apontadas as etapas da Educação Básica (Educação Infantil - EI e Ensino Fundamental - EF), sendo que o EF é subdividido em anos ini- ciais e anos finais; posteriormente, são apresentadas as competências específicas de cada área (Linguagens, Matemática, Ciências da Natu- reza, Ciências Humanas e Ensino Religioso), por fim, são indicadas as competências e habilidades específicas de cada componente curri- cular. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 35 O documento considera que as diferentes linguagens (verbal – oral ou visual-motora, como Libras, e escrita –; corporal; visual; sonora e digital) medeiam as práticas sociais nas quais se realizam as atividades humanas. Assim, segundo a BNCC, o objetivo da área de Linguagens é possibilitar aos estudantes participar de práticas de linguagem diversificadas, que lhes permitam ampliar suas capacidades expressivas em manifestações artísticas, corporais e linguísticas, como também seus conhecimentos sobre essas linguagens, em continuidade às experiências vividas na Educação Infantil (Brasil, 2017, p. 63). Na Base, além da LP, os componentes Arte, Educação Física e Língua Inglesa compõem a área de Linguagens dos anos finais. Em relação à LP, cabe proporcionar aos estudantes experiências que contribuam para a ampliação dos letramentos, de forma a possibilitar a participação significativa e crítica nas diversas práticas sociais permeadas/ constituídas pela oralidade, pela escrita e por outras linguagens (Brasil, p. 67-68). Tendo em vista a finalidade do componente, das seis competên- cias específicas dessa área, as que mantêm uma relação mais próxima com LP são: [...] 3. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao diálogo, à resolução de conflitos e à cooperação. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 36 4. Utilizar diferentes linguagens para defender pontos de vista que respeitem o outro e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, atuando criticamente frente a questões do mundo contemporâneo. [...] (Brasil, 2017, p. 65). Isto posto, é preciso esclarecer que a BNCC assume a centrali- dade das perspectivas enunciativo-discursivas e, por conseguinte, do texto como unidade de trabalho, contemplando também os multisse- mióticos e os multimidiáticos, conforme é possível perceber nas com- petências específicas de LP a seguir, as quais mantêm maior relação com o a produção de texto. [...] 2. Apropriar-se da linguagem escrita, reconhecendo-a como forma de interação nos diferentes campos de atuação da vida social e utilizando-a para ampliar suas possibilidades de participar da cultura letrada, de construir conhecimentos (inclusive escolares) e de se envolver com maior autonomia e protagonismo na vida social. [...] 3. Ler, escutar e produzir textos orais, escritos e multissemióticos que circulam em diferentes campos de atuação e mídias, com compreensão, autonomia, fluência e criticidade, de modo a se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos, e continuar aprendendo. [...] (Brasil, 2017, p. 87) Destarte, na BNCC, no componente LP, os eixos, que compre- endem as práticas de linguagem (leitura de textos, produção de textos, oralidade e análise linguística/semiótica), são apresentados de acordo com os campos de atuação, a saber: campo artístico-literário; campo Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 37 das práticas de estudo e pesquisa; campo jornalístico-midiático e cam- po de atuação na vida pública. São esses quatro campos que orientam a escolha dos gêneros, das práticas, das atividades e dos procedimen- tos, evidenciando que, na visão do próprio documento, a contextua- lização do conhecimento escolar é essencial e que as “práticas derivam de situações da vida social e, ao mesmo tempo, precisam ser situadas em contextos significativos para os estudantes” (Brasil, 2017, p. 84). Para cada campo de atuação, considerando cada prática de lin- guagem, são apresentados os objetos de conhecimento e as habili- dades a eles relacionadas. No que diz respeito à produção de textos, na BNCC, ela “compreende as práticas de linguagem relacionadas à interação e à autoria (individual ou coletiva) do texto escrito, oral4 e multissemiótico, com diferentes finalidades e projetos enunciativos [...]” (Brasil, 2017, p. 76). O documento salienta ainda que as habi- lidades de produção não devem ser desenvolvidas de forma estanque e artificial, isto é, sem que sejam considerados os campos de atividade humana nos quais os gêneros circulam e são originalmente produzi- dos, bem como a sua funcionalidade. Por isso, é preciso contemplar: “a reflexão sobre as condições de produção dos textos que regem a circulação de diferentes gêneros nas diferentes mídias e campos de ati- vidade humana”; a “dialogia e relação entre textos”; a “alimentação temática”; a “construção da textualidade”; os “aspectos notacionais e gramaticais”; bem como as “estratégias de produção” (Brasil, 2017, p. 77-78). 4 Na BNCC, a oralidade constitui-se como um eixo. No entanto, o próprio documento reconhece que parte das habilidades contempladas nos eixos e, por conseguinte, nas práticas de leitura e de produção de textos, também estão relacionadas à oralidade. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 38 Ainda no que tange à produção textual, de forma semelhante ao que era preconizado nos PCN, na Base, constata-se que há uma ten- tativa de interligar as práticas de uso de e reflexão sobre as linguagens, como fica evidente no trecho a seguir: A separação dessas práticas (de uso e de análise) se dá apenas para finsde organização curricular, já que em muitos casos (o que é comum e desejável), essas práticas se interpenetram e se retroalimentam (quando se lê algo no processo de produção de um texto ou quando alguém relê o próprio texto; [...]) (Brasil, 2017, p. 82). Isto posto, segundo essa breve descrição da BNCC, é possível inferir que, assim como nas duas perspectivas anteriores, nesta, a pro- dução de textos também é informada por teorias sociointeracionis- tas da linguagem, como já ocorria nos PCN, destacando-se tanto as concepções do Círculo de Bakhtin quanto as da LT. A influência das concepções bakhtinianas pode ser claramente percebida nos exemplos a seguir. (EF69LP07) Produzir textos em diferentes gêneros, considerando sua adequação ao contexto produção e circulação – os enunciadores envolvidos, os objetivos, o gênero, o suporte, a circulação -, ao modo (escrito ou oral; imagem estática ou em movimento etc.) [...] (Brasil, 2017, p. 142, grifo do autor). [...] • Analisar aspectos sociodiscursivos, temáticos, composicionais e estilísticos os gêneros propostos para a produção de textos, estabelecendo relações entre eles. (Brasil, 2017, p. 77). [...] • Dialogia e relação entre textos. (Brasil, 2017, p. 77). [...] Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 39 • Orquestrar as diferentes vozes nos textos pertencentes aos gêneros literários, fazendo uso adequado da “fala” do narrador, do discurso direto, indireto e indireto livre. (Brasil, 2017, p. 77). Nesses trechos, justamente por ser mobilizada uma terminologia que aponta para os conceitos desenvolvidos pelos estudos empreen- didos no e/ou filiados ao Círculo de Bakhtin – tais como “gêneros”, aspectos “temáticos, composicionais e estilísticos”, “enunciadores” e, mais especificamente, “dialogia” e “vozes” –, há indícios de que a con- cepção de escrita interacional, ou seja, como uma oferta de contrapa- lavra, possa ser uma das que informam a BNCC. Além disso, nos exemplos na sequência, também se nota alguma influência da LT. (EF69LP07) Produzir textos em diferentes gêneros, considerando [...] a construção da textualidade relacionada às propriedades textuais e do gênero [...] (Brasil, 2017, p. 142, grifo do autor). [...] • Estabelecer relações de intertextualidade para explicitar, sustentar e qualificar posicionamentos, construir e referendar explicações e relatos, fazendo usos de citações e paráfrases, devidamente marcadas e para produzir paródias e estilizações (Brasil, 2017, p. 77). Nesses trechos, ao empregar termos como “textualidade” e “in- tertextualidade”, a Base aponta para os critérios de textualidade desen- volvidos no âmbito do campo de investigação da LT. Considerando que teorias sociointeracionistas da linguagem já informavam documentos anteriores, a inovação na BNCC, no que tange especificamente à produção textual, está relacionada à inserção Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 40 de gêneros multissemióticos e multimidiáticos, transcendendo o ver- bocentrismo (Cavalcante; Custódio-Filho, 2010); à valorização da cul- tura digital; bem como à influência, mais perceptível, de abordagens cognitivas. Todavia, segundo o documento curricular, não se trata de deixar de privilegiar o escrito/impresso nem de deixar de considerar gêneros e práticas consagrados pela escola, tais como notícia, reportagem, entrevista, artigo de opinião, charge, tirinha, crônica, conto, verbete de enciclopédia, artigo de divulgação científica etc., próprios do letramento da letra e do impresso, mas de contemplar também os novos letramentos, essencialmente digitais (Brasil, 2017, p. 69). Desse modo, a Base transcenderia o verbocentrismo não somen- te por usar expressões como “diferentes linguagens” nem por inserir gêneros de diferentes semioses e mídias – tais como vlogs, podcasts, gameplay, spots, jingles entre outros – a partir dos quais as habilida- des devem ser ensinadas/aprendidas, mas, sobretudo, devido ao re- conhecimento explícito da importância de a cultura digital, os novos letramentos e, portanto, as práticas de linguagem que derivam deles, serem contempladas criticamente no componente curricular LP no EF, conforme ilustrado a seguir. Eis, então, a demanda que se coloca para a escola: contemplar de forma crítica essas novas práticas de linguagem e produções, não só na perspectiva de atender às muitas demandas sociais que convergem para um uso qualificado e ético das TDIC – necessário para o mundo do trabalho, para estudar, para a vida cotidiana etc. –, mas de também fomentar o debate e outras demandas sociais que cercam essas práticas e usos (Brasil, 2017, p. 69). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 41 Contudo, em nota de rodapé, ainda na mesma página, o docu- mento (Brasil, 2017, p. 69) reconhece que, apesar da ênfase dada no texto introdutório à cultura digital e aos novos letramentos, devido ao fato de a sua incorporação ao currículo ser mais recente, nos quadros de habilidades, ainda prevalece a escrita e a oralidade. Embora não se possa afirmar que abordagens cognitivas não tenham influenciado documentos curriculares anteriores, é possível notar que na BNCC essa influência se torna mais explícita principal- mente devido à organização do currículo por competência/habilida- de. No que tange ao componente de LP, são destacadas as estratégias cognitivas de leitura e produção textual. É preciso ressaltar que a produção de texto escrito é uma ativida- de complexa, pois envolve aspectos sociais, interacionais, cognitivos e afetivos. As diferentes vertentes cognitivas reconhecem que produzir textos não é um processo linear nem estanque, mas sim hierárquico e recursivo. Além disso, o processo de produção também é considerado um trabalho com a linguagem, visto que o texto escrito é reversível, estando, portanto, sempre sujeito a mudanças. Alguns pressupostos da abordagem cognitiva da escrita podem ser percebidos nos trechos exemplificados a seguir. (EF69LP07) Produzir textos em diferentes gêneros, [...] utilizando estratégias de planejamento, elaboração, revisão, edição, reescrita/ redesign e avaliação de textos, para, com a ajuda do professor e a colaboração dos colegas, corrigir e aprimorar as produções realizadas, fazendo cortes, acréscimos, reformulações, correções de concordância, ortografia, pontuação em textos e editando imagens, arquivos sonoros, fazendo cortes, acréscimos, ajustes, acrescentando/ alterando efeitos, ordenamentos etc. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 42 [...] (EF69LP08) Revisar/editar o texto produzido – notícia, reportagem, resenha, artigo de opinião, dentre outros –, tendo em vista sua adequação ao contexto de produção, a mídia em questão, características do gênero, aspectos relativos à textualidade, a relação entre as diferentes semioses, a formatação e uso adequado das ferramentas de edição (de texto, foto, áudio e vídeo, dependendo do caso) e adequação à norma culta. [...] (Brasil, 2017, p. 142-143, grifo do autor). Além do termo “estratégia”, as “etapas” de “planejamento, ela- boração, revisão, edição, reescrita/redesign e avaliação” apontam tan- to para o modelo de escrita como um processo cognitivo de Hayes e Flower (1980) quanto para a sua releitura feita por Kato (1995). Isto posto, no que diz respeito especificamente à escrita na BNCC, é possível reconhecer uma tentativa de articulação com dife- rentes abordagens: a interacional, a cognitiva e a gramatical-normati- va, descritas em seguida. 1. a interacional, na qual a escrita pode ser considerada como oferta de contrapalavra, explicitada na segunda competência específica de LP na etapa do EF, exemplificada em seguida: Apropriar-se da linguagem escrita, reconhecendo-a como forma de interação nos diferentes campos de atuação da vida social e utilizando-a para ampliar suas possibilidadesde participar da cultura letrada, de construir conhecimentos (inclusive escolares) e de se envolver com maior autonomia e protagonismo na vida social (Brasil, 2017, p. 87, grifo meu). 2. a cognitiva, na qual, conforme trecho exemplificado na sequência, a escrita é considerada uma habilidade; [...] em cada campo que será apresentado adiante, serão destacadas as habilidades de leitura, oralidade e escrita, de forma Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 43 contextualizada pelas práticas, gêneros e diferentes objetos do conhecimento em questão (Brasil, 2017, p. 75, grifo meu). 3. a gramatical-normativa, sobretudo nos “aspectos notacionais e normativos”, a saber: Utilizar, ao produzir textos, os conhecimentos dos aspectos notacionais – ortografia padrão, pontuação adequada, mecanismos de concordância nominal e verbal, regência verbal etc., sempre que o contexto exigir o uso da norma-padrão (Brasil, 2017, p. 78). Os resultados discutidos nessa terceira perspectiva de produção de texto dialogam com os que foram apresentados por Nascimento (2018). Em sua pesquisa, a autora descobriu que na BNCC do EF “a produção de texto escrito é um objeto de teor significativo, tendo em vista a existência do eixo Produção de Textos em todos os campos e séries dos anos finais do Ensino Fundamental” (Nascimento, 2018, p. 48) e que o “ensino de escrita é uma atividade complexa, com foco na interação e com destaque para os gêneros multimidiáticos e mul- tissemióticos” (Nascimento, 2018, p. 6). Mesmo tendo como foco a BNCC do EF, é possível também dialogar com resultados que foram apontados por Nascimento e Araújo (2020) na análise da produção textual no documento referente ao Ensino Médio (EM). Dessa forma, tanto no EF quanto no EM, é preciso reconhecer que há uma tentativa de integração das práticas multissemióticas ao conceito de produção textual, o que teoricamente é algo positivo, posto que ampliar as possibilidades de construção de sentidos, combinando semioses, explora a dinâmica sociointerativa da língua. (Nascimento; Araújo, 2020, p. 306) Apesar disso, segundo Nascimento e Araújo (2020), prevalece no documento a filiação grafocêntrica. Cabe salientar ainda que Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 44 a ausência de explicitação da filiação teórica e de referências, uma característica da BNCC como um todo, além da não apresentação de orientações metodológicas para o ensino “acentuam ainda mais a natureza técnica do documento, tornando-o menos didático- pedagógico” (Nascimento; Araújo, 2020, p. 308). Isso dificulta a identificação exata dos conceitos teóricos nos quais a Base se fundamenta em relação à produção textual e à escrita, a qual precisa ser inferida a partir da análise de conteúdo do documento, bem como provoca, ainda segundo Nascimento e Araújo (2020), a imprecisão conceitual, a ambiguidade e a sobreposição de objetos. É importante ressaltar que as demandas de reescrita e, por con- seguinte, a problematização sobre a correção de textos escolares, só se colocam em um momento em que não só o discurso sobre a prática de produção já está relativamente consolidado na esfera acadêmica, mas também no qual a adesão a essa prática começa a acontecer na escola. A necessidade da reescrita e a discussão sobre as formas de orientá-la são características que diferenciam produção de textos da composição e da redação escolar, conforme já dito. Isso explicaria por que alguns dos trabalhos pioneiros sobre reescrita e correção, tais como Jesus (1995), Mayrink-Sabinson (1995), Fiad (2006), Ruiz (2010 [2001]), só foram publicados e, por conta disso, amplamente divulgados, a partir da dé- cada de 1990. Concluída a discussão a respeito das perspectivas de produção de texto escolar no Brasil, a seguir, são feitas algumas considerações finais. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 45 Considerações finais Este artigo teve como objetivo caracterizar as diferentes perspec- tivas de produção de texto escolar em contexto brasileiro. Com base em tudo o que foi mencionado nas seções anteriores, nota-se uma gra- dual ampliação do objeto, provavelmente decorrente da expansão dos conceitos de texto e de gênero textual nos estudos linguísticos contem- porâneos. Nos documentos de referência analisados, provavelmente devido à repercussão dos resultados de pesquisas sobre a língua falada, há o reconhecimento e a legitimação da produção oral em contexto escolar, superando a redução grafocêntrica na qual texto era sinôni- mo de escrita. É graças ao desenvolvimento das pesquisas no campo dos (multi)letramentos, bem como ao avanço e à popularização das TDIC e da Web 2.0/3.0, que o conceito de texto também transcende o verbocentrismo, passando a contemplar diferentes semioses e mídias. Se, do ponto de vista teórico, considerando a análise de docu- mentos de referência, foi possível constatar a ampliação do objeto, cabe a pesquisas futuras a análise de materiais didáticos e da prática de sala de aula para verificar se a produção de textos de diversos gêneros e em diferentes linguagens, de fato, está devidamente incorporada à rotina dos alunos da Educação Básica do Brasil. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 46 Referências BAKHTIN, Mikhail (1979). Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 11- 69. BAZARIM, Milene; EVARISTO, Ana Cláudia da Silva. A apropriação de recursos linguístico-discursivos necessários à interação via carta: um estudo de caso em linguística aplicada. Working Papers em Linguística, v. 21, n. 2, 2020, p. 236-258. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5007/1984- 8420.2020v21n2p236 . Último acesso em: 05 jul. 2021. BAZARIM, Milene. Construindo com a escrita interações improváveis entre professora e alunos do ensino fundamental de uma escola pública da periferia de Campinas. 2006. 110 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada). Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.47749/T/UNICAMP.2006.390479. Acesso em: 30 jan. 2022. BRASIL. 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No cerne dessa discussão, há questionamentos relaciona- dos, sobretudo, à forma com que esses objetos curriculares “incidem sobre a organização das classes, a distribuição do tempo disponível, os objetivos do ensino, as rotinas da interação, as ações a serem desenvol- vidas” (Machado; Bronckart, 2005, p. 187). Com isso, vemos a influência que textos prescritivos possuem sobre a atividade docente, já que o professor é o principal interlocu- tor destes documentos e o trabalho prescrito guarda insumos que (re- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 50 tro)alimentam a prática pedagógica. Deste campo do currículo, que é atravessado por lutas e resistências (Silva, 2005), surge uma profí- cua discussão sobre a Base Nacional Comum Curricular (doravante BNCC), um documento homologado em dezembro de 2018, imple- mentado pelo Governo e em fase de reelaboração pelos sistemas de ensino, dado o seu caráter normativo e balizador. Dentre os níveis da educação básica previstos no documento, pensamos, para esta investigação, o Ensino Médio, por ser um ponto nevrálgico da educação básica, cujas alterações incidem diretamente sobre o ensino fundamental e sobre o ensino superior. Ademais, essa etapa final, mais caracterizada por um certo dualismo – ora mais pro- fissionalizante, ora mais propedêutico – ainda comporta mais uma face, a humanística/cidadã (Libâneo; Oliveira; Toschi, 2012), tor- nando este nível complexo, o qual precisa ser pensado quanto ao seu lugar diante de um documento tomado como alicerce da educação brasileira. É importante reconhecer que, para entender a versão final de um documento oficial, mostra-se necessário entender as versões anterio- res, pois certamente a versão homologada guarda resquícios/ecos das outras versões, assim como movimentos disruptivos, que se manifes- tam na (e pela) linguagem e que são responsáveis pela consolidação do documento final. Portanto, mostra-se relevante analisar o processo de construção de um documento-monumento (Cf. Le Goff, 1997) dessa natureza, cuja (des)montagem pode revelar muito acerca do seu con- texto de produção, das forças sociais e políticas, que o fazem adquirir movimentos pendulares até chegar na versão final – fruto de um hi- bridismo das versões do documento. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 51 Portanto, além dos aspectos acima citados, diante da complexi- dade dos documentos em questão e do campo de estudo em que es- tamos situados, a Linguística Aplicada (LA), procuramos investigar a Transposição Didática (TD) conforme Chevallard (2001), ou seja, a passagem do saber científico ao saber escolarizável, em que, para este autor, tais transformações fabricam um objeto de ensino. Dentreos vá- rios objetos de ensino em língua materna, investigamos a Produção Textual, em relação à qual visamos desvelar como ocorre sua didatiza- ção no âmbito de uma TD externa1 – aquela que ocorre fora da sala de aula, nas instâncias oficiais, a partir de documentos norteadores, como é o caso dos documentos em tela. De acordo com Garcez (1998), o conceito de produção textual tem se modificado rapidamente e, com isso, impactado e alterado as propostas educacionais. Isto posto, o objetivo deste capítulo é analisar as reconfigurações teóricas do objeto produção textual na BNCC EM diante da versão homologada e da versão 2. Para isso, este texto é com- posto de cinco partes, a saber: (1) A presente Introdução; (2) Funda- mentos teóricos; (3) Metodologia; (4) Análise/discussão dos dados e (5) Considerações finais, seguidas das referências. A seguir, passemos à seção de fundamentação teórica. 1 A TD interna, conforme Petitjean (2008), ocorre no ato da didatização do professor no exercício da docência. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 52 Fundamentos teóricos: estudos de currículo, transposição didática e produção textual A composição de documentos reguladores de ensino envolve a mobilização de saberes de referência, assim como de agentes do siste- ma didático com suas diferentes representações de mundo. Portanto, quando objetos de conhecimento são transpostos, sofrem transfor- mações adaptativas tanto em sua natureza teórica (conteúdo) quanto na metodológica (ação de ensinar). Nesse movimento didático, são inerentes questões de ordem epis- temológica, didática, política e social, posto que a transposição de um conhecimento restrito, por exemplo, atende a dado público específico ou camada social privilegiada. Além disso, propostas curriculares in- cidem diretamente sobre a prática do professor, que passa a ser um agente diretamente implicado na execução das normas e conteúdos prescritos. Do lugar em que nos situamos, é preciso enxergar o currículo também como representação. Entender o currículo sob essa perspec- tiva “implica expor e questionar os códigos, as convenções, a estilística, os artifícios por meio dos quais ele é produzido: implica tornar visíveis as marcas de sua arquitetura” (Silva, 2006, p. 66). Nesse sentido, para compreender a “mecânica” dos currículos enquanto documentos-mo- numentos é preciso desmontar e demolir suas estruturas, atentando para suas condições de produção (Le Goff, 1997), para as arquiteturas estruturais e conceituais, bem como para seu revestimento linguístico. Currículos podem, ainda, ser entendidos como caminhos, possi- bilidades de intersecção e fluxos (des)contínuos, justamente pelo mo- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 53 vimento dinâmico de influência em políticas educacionais e propostas didáticas, as quais guardam ecos, fios e rupturas entre si. Associamos essa perspectiva à análise comparativa de propostas curriculares, que pode evidenciar não só as marcas arquitetônicas dos documentos- -monumentos, como também os movimentos de (re)ssignificação de objetos de ensino em currículos, processo a que chamamos de trans- posição didática. A transposição didática é definida por Chevallard (1991, p. 35) como um “processo de transformações pelo qual passa um determi- nado saber em uma situação de exposição didática”. De acordo com esse autor, essa teoria enfoca a epistemologia do saber, as mudanças e adaptações pelas quais o conhecimento passa ao migrar para o contex- to de ensino. De acordo com Pais (2002, p. 21), a natureza desses saberes (científico e escolar) é diferente: seja do ponto de vista epistemológi- co, seja do material linguístico-discursivo veiculado no ato de trans- posição. Logo, a linguagem tem muita importância nesse processo, pois é uma das instâncias que regula e proporciona a didatização do conhecimento. Assim sendo, vemos que currículos, como os ora investigados, re- vestem-se de uma arquitetura conceitual para apresentar seus objetos de ensino-aprendizagem, fazendo-se necessário, portanto, o trabalho de “desmontagem”, nos termos de Le Goff (1997). Com a virada dos estudos linguísticos, o objeto investigado nessa pesquisa, a Produção textual, sofreu profundas modificações. Diante disso, é preciso olhar para os efeitos do ato de transposição didática na (re)formulação de conceitos relacionados a este objeto de ensino complexo. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 54 No processo de produção textual, há a mobilização de conheci- mentos que se dá por estratégias de naturezas variadas. A esse respeito, Koch (2005, p. 24) elenca três delas: cognitivas, como as inferências, focalização e relevância; sociointeracionais, como polidez, preservação das faces, atenuação; e textuais, que dizem respeito às pistas, marcas e sinalizações, tendo em vista “o projeto de dizer”. Todas essas dimen- sões devem ser consideradas na atividade de produção textual. Para Bentes (2004, p. 254), é um ganho para os estudos de Linguís- tica Textual o fato de que as condições de recepção e produção do texto são consideradas, uma vez que isso significa não mais considerar o texto como uma estrutura pronta, mas como uma manifestação verbal com- plexa. Portanto, a autora, com base nos estudos de Koch (1997), elenca três processos a partir dos quais podemos tentar desvelar a complexidade da produção de textos: planejamento, verbalização e construção. O primeiro processo, que entende a produção textual como uma atividade verbal, diz respeito ao fato de, ao produzir um texto, prati- carem-se atos de fala. Nesse sentido, a partir da interação por meio da língua, cuja ação se dá em contextos situacionais, sociocognitivos e culturais, estes enunciados produzirão efeitos no interlocutor. Quan- to ao segundo processo, temos a ideia de produção textual como uma atividade verbal consciente, em que devemos considerar as intenções de que o produtor se vale para expor seus propósitos. Já o terceiro processo, que incorpora a noção produção textual como atividade interacional, podemos inferir que o interlocutor está obrigatoriamente envolvido no processo de construção e compreen- são de um texto. Desse modo, enquanto uma atividade sociointera- tiva, a produção textual sob a ótica da Linguística Textual está con- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 55 dicionada ao funcionamento da língua em uso, visto que ocorre em contextos comunicativos situados. Isto posto, cabe destacar a importância de se (des)montar (Le Goff, 1997) e de se comparar as configurações teóricas de que se re- vestem as versões da BNCC para (de)compor seus objetos de ensino, no caso em pauta, a Produção Textual. Torna-se importante, assim, (re)organizar suas arquiteturas conceituais de acordo com as noções/ lugares teóricos que estão dessincretizados, apontando que (des)con- tinuidades decorrem desse movimento de TD. Diante de tais considerações, passamos à apresentação dos aspec- tos metodológicos na seção seguinte. Aspectos metodológicos A filiação paradigmática que empreendemos nesta pesquisa está assentada à luz de uma abordagem de natureza qualitativo-interpre- tativista, em que, para a análise dos dados, levam-se em conta suas peculiaridades e seu contexto, objetivando contemplá-los sob uma perspectiva panorâmica e multilateral (Moreira; Caleffe, 2008). Ao mesmo tempo, temos uma pesquisa documental, caracterizada por Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009) como um processo que se utiliza de métodos e técnicas para o exame de documentos, no nosso caso, em específico, para a análise das duas versões da BNCC. Para isso, in- sere-se no campo transdisciplinar e crítico-colaborativo da Linguística Aplicada, explorando interface e construindo inteligibilidades (Moita Lopes, 2006) com a área de Educação. Produção de textos em contexto escolare acadêmico Discussões teóricas e práticas 56 Quanto aos corpora de análise, vale destacar que, diante do estabe- lecimento de outros currículos no ensino básico, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (Brasil, 2006), a proposta de uma Base Nacional Comum Curricular, com uma parte referente ao ensino fundamental e outra ao ensino médio, é polêmica e movimenta a esfera educacio- nal. A composição de um documento dessa natureza, por si só, suscita opiniões, controvérsias, resistências, seja de atores engajados – pesqui- sadores, professores, organizações não governamentais relacionadas à educação –, seja de vozes da sociedade civil. Como todo currículo, a montagem da BNCC de EM passa por intensas modificações, uma vez que atravessa questões de ordem so- cial, política, pedagógica, entre outras. Esse debate em torno de sua elaboração inicia-se em 2015, quando o “I Seminário Interinstitucio- nal para a elaboração da base foi realizado reunindo assessores e es- pecialistas” (Branco, 2018, p. 103) para discutir a implementação do documento. Em outubro daquele mesmo ano, houve uma consulta pública para que diversos atores, de diferentes instâncias educativas, pudessem colaborar com seu processo de construção. Uma vez sistematizadas as contribuições, como resultado surge, em maio de 2016, uma segunda versão da BNCC. Passado o processo de reformulação da versão supracitada, é apresentada para consulta pública a terceira versão do documento, em abril de 2018. Após con- tribuições de especialistas e da sociedade civil, ela foi aprovada pelo CNE no dia 04 de dezembro de 2018, sendo finalmente homologada em 14 de dezembro de 2018. Diante dessas versões, este capítulo se debruçará sobre duas delas, a segunda e a última versão (homologada), Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 57 com vistas a comparar os documentos quanto às reconfigurações teó- ricas do eixo produção textual. Para gerar nossos dados, selecionamos nossa categoria a partir da revisão bibliográfica que empreendemos na teoria-base da Transposi- ção Didática (Petitjean, 2008): a Dessincretização, que consiste em ex- trair um saber de seu campo científico e transformá-lo em um objeto de ensino. A análise do material linguístico, que é um procedimento habitual em pesquisas qualitativas do tipo documental em LA, se dará pela leitura recorrente do documento investigado, de maneira explo- ratória, seletiva, analítica e interpretativa, procurando os indícios lin- guísticos, isto é, o levantamento de verbetes relativos às concepções teóricas sobre produção textual. Nesse sentido, considerando que os documentos possuem ar- quiteturas conceituais cuja interlocução entre elas pode se dar a partir de trocas discursivas, as (des)continuidades nesse “trânsito discursi- vo” merecem ser desveladas, pois currículos são objetos complexos e multifacetados. Para tanto, associamos tais arquiteturas ao método da análise de conteúdo, que se constitui como “uma metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos e textos” (Moraes, 1999, p. 09). Assim sendo, com base nessa metodologia, conduziremos a análise a partir de descrições sistemáticas, qualitativas e quantitativas, para ajudar a (re)interpretar as mensagens e a atingir uma compreensão de seus significados num nível que vai além de uma leitura comum. A seguir, passemos à análise dos dados. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 58 Da segunda à última versão da BNCC EM: ecos, continuidades e rupturas na transposição didática da produção textual A presente análise se apropria de evidências linguísticas encon- tradas em nossos corpora: verbetes que apresentam conceitos explíci- tos e implícitos sobre produção textual nas duas versões da BNCC. Podemos reconhecer que, nos dois documentos, é possível ob- servar uma dessincretização teórica, processo que consiste em retirar um saber do seu campo científico e transformá-lo em um objeto de ensino. Um fato que decorre disto é que não há, em ambos, citações diretas no corpo do texto que apontem para filiações teóricas relacio- nadas à Produção Textual, isto é, o ato de transposição didática oca- sionou mudanças na forma com que esses conteúdos/conceitos são apresentados. Assim, o fato de tais referências serem apagadas ao longo dos tex- tos oficiais foi o que suscitou, nesta pesquisa, uma análise aprofun- dada da engenharia didática dos dois documentos, buscando recons- truir as filiações e observar aproximações e distanciamentos na forma com que o nosso objeto, Produção Textual, sofreu modificações nesse processo de transposição didática, o qual (re)configura terminologias, conceitos e, portanto, implica mudanças peculiares no modo como esses conteúdos aparecem e, consequentemente, isso gera implicações para o ensino de Língua Materna. Assim, cabe-nos reconstituir o “fio” que atravessa esses documentos cujas produções passaram por um hia- to temporal – fase de (re)constituição da BNCC. Da identificação dos verbetes, processo metodológico assumido Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 59 nesta pesquisa, inferimos os conceitos-chave e a lógica interna que orientam os documentos em pauta. O objeto produção textual será comparado a partir dos pontos de convergência e/ou divergência entre os documentos, isto é, em função das (des)continuidades apresenta- das. Uma primeira diferença que se apresenta na (des)montagem dos currículos em tela, quanto à transposição do nosso objeto produção textual, diz respeito à própria formatação/configuração do objeto. Na segunda versão da BNCC (2016), a noção de produção textual é im- plícita, isto é, além de não possuir uma definição/explicitação de seu conceito, ela não aparece enquanto um eixo autônomo, sendo infe- rida como parte do eixo de escrita e parte do eixo de oralidade. Esse movimento é oposto ao documento homologado, posto que a pro- dução textual é um eixo (assim denominado), sendo a escrita inferida no eixo produção textual e não mais se apresentando como um eixo autônomo. Com isso, vemos que há processos de encapsulamentos distintos, em que o processo de transposição didática que reconfigura, remodela e rearranja os objetos de ensino conferiu a esses documentos um for- mato de produção textual distinto, fazendo com que um eixo encap- sulasse o outro a depender do texto oficial. No caso da BNCC (2016), observamos indícios de produção textual na definição dos eixos de es- crita e oralidade, conforme observaremos adiante. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 60 Figura 1: Definição do eixo da escrita – BNCC versão 2 Fonte: BNCC (2016). Figura 2: Definição do eixo da escrita – BNCC versão 2 Fonte: BNCC (2016). A partir dos excertos acima, podemos inferir uma concepção de produção textual que pode ser entendida como uma atividade intera- tiva e de autoria, sendo esta última uma necessidade de desenvolver a partir das práticas permeadas pela escrita, como podemos ver na figura 02. Chama atenção, também, que o termo produção de textos seja tomado como sinônimo de escrita, como indicado na figura 01, re- lação que confirma o forte grafocentrismo ao qual o documento está associado. A seguir, vejamos verbetes presentes no eixo oralidade e que carregam um conceito de produção textual. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 61 Figura 3: Definição do eixo oralidade – BNCC versão 2 Fonte: BNCC (2016). Figura 4: Tradições orais na BNCC versão 2 Fonte: BNCC (2016). De acordo com os excertos acima, podemos inferir uma noção de produção textual oral que se materializa em uma heterogeneidade de terminologias. A título de exemplificação, temos situações orais, tradi- ções orais, gêneros orais, práticas orais,sendo estas concepções explíci- tas. Já a noção de texto oral, conforme a figura 04, só pode ser inferida, o que nos leva a perceber uma dificuldade que o documento tem de assumir a oralidade enquanto texto, aspecto já observado no levanta- mento de termos-chave. Diferentemente deste documento, a versão homologada traz o eixo produção textual e uma particularidade que emana desse texto oficial em tela diz respeito ao fato de que a oralidade aparece em dois Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 62 eixos de integração – tanto o da própria Oralidade, como também o de Produção de Textos, o que é um aspecto positivo, ao passo que, em assim sendo, as práticas orais seriam reforçadas. Logo, para compreen- der essa face da oralidade, isto é, a produção de textos orais, observe- mos que concepção terminológico-conceitual emana do documento acerca da produção textual. Embora esta se configure como um eixo, o qual “compreende as práticas de linguagem relacionadas à interação e à autoria (individual ou coletiva) do texto escrito, oral e multissemiótico”2 (BNCC, 2018, p. 76), incluindo as várias modalidades da língua, curiosamente, em outro trecho o documento afirma que “os eixos de integração consi- derados na BNCC de Língua Portuguesa são aqueles já consagrados nos documentos curriculares da Área, correspondentes às práticas de linguagem: oralidade, leitura/escuta, produção (escrita e multissemióti- ca) e análise linguística/semiótica” (BNCC, 2018, p. 71, grifo nosso). Como podemos perceber, neste último trecho o objeto de conheci- mento produção de texto não contempla o texto oral, diferentemente do que foi assumido no fragmento citado anteriormente. Soma-se a isso outra singularidade relacionada à produção textu- al, quanto à (re)configuração terminológico-conceitual, que se apre- senta na sua disposição no documento, conforme o fragmento: “os eixos de integração propostos para o Ensino Médio são as práticas de linguagem consideradas no Ensino Fundamental – leitura, produção 2 Essa definição de Produção de Textos encontra-se na parte de Ensino Fundamental da BNCC, não possuindo no Ensino Médio, portanto, a explicitação acerca de nenhum eixo de integração. A escolha por analisar este conceito se deu pelo fato de que, por a BNCC ser um documento só, separado em duas partes (EF e EM) para efeito didático, entendemos que seria necessário voltar à parte de ensino fundamental para analisar o conceito do eixo de produção textual. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 63 de textos, oralidade (escuta e produção oral) e análise linguística/se- miótica” (BNCC, 2018, p. 500). Com isso, vemos que, supostamen- te, neste trecho, há uma relação sinonímica entre produção de textos e escrita. Isso ocorre porque a produção oral está sendo sinalizada no eixo da oralidade, não sendo incluída no eixo da produção de textos propria- mente dita, ao contrário do que a própria definição do eixo produção de textos diz. A partir disso, podemos ver que, de modo explícito, o conceito de produção textual não assume/se apropria de modo signi- ficativo da modalidade oral da língua. É importante ressaltar que essa reconfiguração da produção tex- tual tanto pode ser observada do ponto de vista de uma (re)organiza- ção dos objetos de conhecimento assumida pelo documento com fins didáticos, isto é, decorrente do processo de Transposição Didática, como também sendo uma imprecisão de ordem terminológica e con- ceitual. Em ambos os casos isso pode comprometer a visibilidade de certos objetos de ensino, como a oralidade, posto que em função do grafocentrismo ao qual o documento está associado, quando a produ- ção textual aparece nesse formato (sem determinante), pode-se facil- mente inferir que este termo refere-se, preferencialmente, à modalida- de escrita da língua (no caso da BNCC versão 2) e, adicionalmente, à linguagem multissemiótica (no caso da BNCC homologada). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 64 Considerações finais A investigação ora proposta teve como foco o estudo da transpo- sição didática da produção textual quanto à sua reconfiguração teóri- ca nas versões da BNCC de Ensino Médio (versões 2 e homologada). Desse modo, o foco desta pesquisa é trazer contribuições ao professor, leitor-alvo do documento e o real implicado no processo de didati- zação dos objetos de ensino, para que um currículo dessa natureza possa ser objeto de ressignificação nas mãos e na prática do docente. Além disso, por meio da comparação de um objeto em duas versões da BNCC, pode-se construir caminhos para entender os paradigmas lin- guísticos pelos quais o ensino de língua materna, em especial, de pro- dução de textos, atravessa no âmbito de documentos-monumentos. O processo de transposição didática conferiu mudanças, nas duas versões BNCC, em toda a sua engenharia didática: tanto em relação às escolhas terminológicas, como as conceituais, uma vez que as entende- mos como partes correlacionadas, que sofrem transformações no pro- cesso de dessincretização teórica no momento de montagem. Quanto à análise de verbetes, um fator que ganha destaque é a conformação que o objeto produção de texto assume nos dois documentos. Na ver- são 2, a produção aparece de modo totalmente implícito, sendo ape- nas inferida, pois ela é encapsulada pelos eixos de escrita e oralidade. Já na versão homologada, tendo alcançado status de eixo de integração, desmembra-se em produção oral, escrita e multissemiótica, marcando o lugar do oral em dois eixos, já que a oralidade aparece isoladamente também como eixo. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 65 Isso reafirma a dinâmica complexa dos documentos curriculares que se ressignificam em consonância com o período do qual fazem parte e por serem fruto de muitas mãos. Exemplo disso são as relações sinonímicas que a produção textual assume na versão homologada, gerando imprecisão de natureza terminológica e conceitual, que pode acarretar tanto uma ambiguidade na leitura do documento, como também implicações teóricas ao objeto, ao passo que este pode se filiar (ou não) a uma concepção tradicional de língua e de currículo. Com isso, temos um potencial apagamento da modalidade oral da língua, o que significa dizer que, quando essa dessincretização se apresenta por meio de tal imprecisão, isso produz um sombreamento de eixos de ensino menos privilegiados, como o caso da oralidade. A análise da natureza dos verbetes revela documentos muito des- sincretizados teoricamente, o que pode ser ratificado pela ausência de referências bibliográficas ao final deles, assim como no corpo do texto. Na BNCC homologada, a definição do eixo produção textual não se fundamenta em um conceito explícito de natureza explicativa, mas sim por meio de um movimento de classificação ou enquadramento conceitual feito a partir das relações sinonímicas supracitadas, isto é, não temos definições em si, mas um efeito de equivalência/correspon- dência deste eixo aos gêneros textuais/discursivos a ele relacionados, fazendo com que o leitor preencha os conceitos a partir dos seus co- nhecimentos prévios. Por fim, é curioso apontar que, se de um lado tínhamos um docu- mento (segunda versão) que não marcava o lugar da produção textual como eixo, de outro agora temos a versão final que traz esse objeto de ensino de modo mais consolidado, é verdade, porém com algumas dis- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 66 sonâncias semânticas a ele relacionadas, que podem gerar problemas não só de interpretação do documento, mas consequências didáticas na hora de transformá-lo em propostas de ensino, as quais podem ser enviesadas. Não obstante, é inegável que na montagem de documen- tos-monumentos haja seleções que impliquem ganhos e perdas. Referências BENTES, A.C. Linguística textual. In. BENTES, A. C.; MUSSALIM, F. (org.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 245-282. BRANCO, E. P. et al. Reformas educacionais relevantes para o cenário atual. 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Dessa forma, a análise do procedimento metodológico de en- sino da escrita de gênero vigente atualmente em um material como o Pontos de vista, da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o futuro, comparando-se ao que foi proposto pelos teóricos pioneiros do instrumento pedagógico Sequência didática, quanto aos procedi- mentos e à estrutura de base, refletindo sobre como o tratamento de Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 69 gêneros se dá desde a sua evidência com os Parâmetros Curriculares Nacionais, proporciona uma base de como a estratégia de ensino se- gue os pressupostos teóricos e metodológicos, assim como um reflexo da abrangência do suporte que esse material pode proporcionar. Leite (2009), por exemplo, analisou os resultados da aplicação de uma sequência didática com Artigo de opinião, proposta pela Olimpíada de Língua Portuguesa 2008. Barbosa (2011) investigou como estão construídas as etapas da sequência didática, a materiali- zação do gênero textual artigo de opinião e a abordagem de leitura e escrita em “Sequência Didática Artigo de Opinião” (2004 e 2006) e “Pontos de Vista”, que acompanha a coleção de materiais da Olim- píada de Língua Portuguesa: Escrevendo o Futuro, a qual teve início em (2008). Oliveira (2015) já abordou Sequência Didática baseada no Caderno Docente da Olimpíada de Língua Portuguesa ao pesquisar dificuldades de aprendizagem em produções de textos de alunos do 9º ano, fundamentada no interacionismo sociodiscursivo, mas não foi o seu foco de estudo, servindo apenas como um instrumento metodo- lógico. Diante dessa breve conferência de pesquisas prévias, nota-se a importância de se considerar como foco de análise o procedimento da Sequência Didática de Artigo de Opinião da Olimpíada de Lín- gua Portuguesa Escrevendo o futuro, considerando-se Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), observando o atendimento ao que os professores genebrinos indicaram. Para a realização deste estudo, o foco se dá sobre a seguinte inda- gação: a Sequência Didática de Artigo de opinião, do Caderno Do- cente Pontos de Vista, da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, adequa-se ao procedimento de Dolz, Noverraz e Schneuwly Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 70 (2004), no qual se baseia? Com o objetivo geral de analisar se há uma organização sistemática na abordagem do gênero Artigo de opinião neste material a partir do modelo de Sequência Didática, como foi proposto pelo interacionista de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Especificamente, objetiva-se observar se a Sequência Didática do Artigo de opinião do Caderno Docente Pontos de vista, da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o futuro, atende ao descrito em Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), sobre procedimentos de sequência; as- sim como comparar o procedimento metodológico de abordagem do Artigo de opinião a partir de Sequência Didática do Caderno Docen- te Pontos de vista, da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o futuro, ao descrito em Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Parâmetros Curriculares Nacionais: breve contextualização Com a Lei Federal Nº 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – ficou determinado como competência da União estabelecer, junto aos Estados e aos Municípios, diretrizes que orientem os currículos e os seus devidos saberes, de forma a garan- tir uma formação básica comum a todos. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (de agora em diante, PCN) foram criados em 1996, publicados em 1997 e constituem um referencial de qualidade para a educação no Ensino Fundamental em todo o País. Sua função é orientar e garantir a coerência dos investi- mentos no sistema educacional, socializando discussões, pesquisas e recomendações, subsidiando a participação de técnicos e professores Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 71 brasileiros, principalmente daqueles que se encontram mais isolados, com menor contato com a produção pedagógica atual, conformeBra- sil (1997b). Todas as definições conceituais, bem como a estrutura organi- zacional dos PCNs, foram pautadas nos Objetivos Gerais do Ensino Fundamental, que estabelecem as capacidades relativas aos aspectos cognitivo, afetivo, físico, ético, estético, de atuação e de inserção social, de forma a expressar a formação básica necessária para o exercício da cidadania, seguindo Brasil (1997b). Quanto às habilidades previstas, a organização dos conteúdos de Língua Portuguesa em função do eixo USO → REFLEXÃO → USO pressupõe um tratamento cíclico, pois, de modo geral, os mesmos conteúdos aparecem ao longo de toda a escolaridade, variando apenas o grau de aprofundamento e sistematização. Para garantir esse trata- mento cíclico é preciso sequenciar os conteúdos segundo critérios que possibilitem a continuidade das aprendizagens. São eles: considerar os conhecimentos anteriores dos alunos em relação ao que se pretende ensinar, identificando até que ponto os conteúdos ensinados foram realmente aprendidos; considerar o nível de complexidade dos dife- rentes conteúdos como definidor do grau de autonomia possível aos alunos, na realização das atividades, nos diferentes ciclos; considerar o nível de aprofundamento possível de cada conteúdo, em função das possibilidades de compreensão dos alunos nos diferentes momentos do seu processo de aprendizagem, de acordo com Brasil (1997 ). Sobre as situações de criação, uma entre as formas de se trabalhar a criação de textos é a oficina ou o ateliê de produção, que trata de uma situação didática em que a proposta é de produção de textos, tendo Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 72 à disposição diferentes materiais de consulta, em função do que será produzido. A possibilidade de avaliar o percurso criador é importante para a tomada de consciência das questões envolvidas no processo de produção de textos. Esse trabalho de explicitação permite que, com o tempo, os procedimentos de análise propostos pelo professor se incor- porem à prática de reflexão do aluno, favorecendo um controle maior sobre seu processo criador. É importante destacar que nem todos os conteúdos são possíveis de serem trabalhados por meio de propostas que contextualizam a es- crita de textos. Às vezes, é preciso escrever unicamente para aprender. “O importante, de qualquer forma, é dar sentido às atividades de es- crita”, como escrito em Brasil (1997, p. 52). Por fim, referenciando Brasil (1997), importa mencionar que os PCNs, tanto nos objetivos educacionais que propõem quanto na con- ceitualização do significado das áreas de ensino e dos temas da vida social contemporânea que deve permeá-los, adotam como centro o desenvolvimento de capacidades do aluno, processo em que os con- teúdos curriculares atuam não como fins em si mesmos, mas como meios para a aquisição e desenvolvimento dessas capacidades. Nesse sentido, o que se tem em vista é que o aluno possa ser sujeito de sua própria formação, em um complexo processo interativo em que tam- bém o professor se veja como sujeito de conhecimento. É nesse contexto que o ensino de gênero e a partir de gênero foi incluído como o conhecemos hoje, com o desenvolvimento propício diante do período que passou desde o vigor dos parâmetros, relacio- nado diretamente com as contribuições de Bakhtin – definição de gê- nero, o uso de gênero ao lidar com o saber linguístico e comunicação e Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 73 seus desdobramentos – assim como se relaciona com as contribuições dos professores Dolz, Noverraz e Schneuwly, ao referenciarem os seus preceitos didático-metodológicos – Sequência Didática. Com isso, importa mencionar que esses breves apontamentos serão retomados de forma mais detalhada a seguir. Gênero: entre Bakhtin, Schneuwly e Dolz e PCNs Neste primeiro momento, aborda-se Bakhtin (1997), para quem a língua efetua-se em forma de enunciados, sejam eles orais e/ou es- critos, concretos e únicos, os quais emergem dos integrantes de uma ou de outra esfera da atividade humana. O enunciado, por sua vez, reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas es- feras, não só por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua — lexicais, fraseoló- gicos e gramaticais —, mas também, principalmente, por sua constru- ção composicional. Esses três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) somam-se no enunciado e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Para o teórico russo, qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso, Bakhtin (1997). Dito isso, é perceptível a relação que há entre Brasil (1997) e os apontamentos do russo, uma vez que, nesse, encontra-se que todo texto se organiza dentro de um determinado gênero e que os vários Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 74 gêneros existentes, por sua vez, constituem formas relativamente es- táveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Pode-se ainda afirmar que a noção de gêneros se refere a “famílias” de textos que compartilham algumas características comuns, embora he- terogêneas, como visão geral da ação à qual o texto se articula, tipo de suporte comunicativo, extensão, grau de literariedade, por exemplo, existindo em número quase ilimitado. Ainda sobre essa relação entre Brasil (1997) e Bakhtin, há um destaque para a seguinte fala deste: a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso, que vai diferenciando-se e ampliando-se à medi- da que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. E é também com os gêneros do discurso que se relacionam as variadas formas de exposição científica e todos os modos literários (do ditado ao romance volumoso), como destaca Bakhtin (1997). Um destaque feito devido à relação possível entre as considerações sobre e a partir de gêneros presentes em ambos os textos. Em Bakhtin (1997), o estudo da natureza do enunciado e dos gêneros do discurso tem uma importância fundamental para superar as noções simplificadas acerca da vida verbal, a que chamam o “fluxo verbal”, a comunicação, etc., noções que ainda permanecem em nossa ciência da linguagem. O estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicação verbal, também deve permitir compre- ender melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sis- tema): as palavras e as orações. Apontamentos que convergem com os Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 75 de Schneuwly e Dolz (1999), segundo os quais há a hipótese de que é por meio dos gêneros que as práticas de linguagem se realizam mate- rialmente nas atividades dos aprendizes. Por seu caráter intermediário e integrador, as representações de caráter genérico das produções orais e escritas constituem uma referência fundamental para sua constru- ção. Os gêneros constituem um ponto de comparação que situa as práticas de linguagem. Prosseguindo, estima-se neste artigo o tratamento sobre gênero também baseado em Schneuwly e Dolz (1999) explicitamente. Para os professores e pesquisadores genebrinos, um gênero como supor- te de uma atividade de linguagem tem três dimensões essenciais: 1) os conteúdos e os conhecimentos que se tornam dizíveis através dele; 2) os elementos das estruturas comunicativas e semióticas partilhadas pelos textos reconhecidos como pertencentes ao gênero; 3) as configu- rações específicas de unidades de linguagem, traços, principalmente,da posição enunciativa do enunciador e dos conjuntos particulares de sequências textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura, os quais remetem à lembrança dos três elementos expressos em Brasil (1997). O gênero para Schneuwly e Dolz (1999) interage com a hete- rogeneidade das práticas de linguagem e faz emergir toda uma série de regularidades no uso. São as dimensões partilhadas pelos textos per- tencentes ao gênero que lhe conferem uma estabilidade de facto, o que não exclui evoluções, por vezes, importantes. O gênero, por seu caráter genérico, é um termo de referência intermediário para a aprendizagem. Do ponto de vista do uso e da aprendizagem, o gênero pode, assim, ser considerado um megainstru- mento que fornece um suporte para a atividade nas situações de co- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 76 municação e uma referência para os aprendizes, segundo Schneuwly e Dolz (1999), concordando com o entendimento das referências ci- tadas anteriormente sobre a função, a finalidade e as projeções sobre o uso do gênero relacionando-o em um contexto de aplicação e/ou desenvolvimento de saber linguístico. De forma análoga, a particularidade da situação escolar reside no seguinte fato que torna a realidade complexa: há um desdobramen- to que se opera, em que o gênero não é somente instrumento de co- municação, mas, ao mesmo tempo, objeto de ensino/aprendizagem, Schneuwly e Dolz (1999). Diante do exposto, recorre-se a Figueiredo (2005), para quem, em sua pesquisa, a análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) mostrou que, pela noção de gêneros, apesar da tentativa de apagamento das vozes e das noções mais marcadas, as vozes que se fazem mais presentes – não exclusivamente – são as do Grupo de Didática de Língua Materna da Universidade de Genebra (represen- tado pelos textos de Schneuwly e Dolz), o que permite inscrever as abordagens da noção de gênero nos PCNs dentro de uma tendência textual. Em concordância com esse tratamento da noção de gêneros, em relação ao trabalho didático com textos, percebe-se também a re- verberação de abordagens influenciadas pelas teorias cognitivistas e textuais da linguagem, desde a década de 1980 já bastante presentes nas propostas curriculares de vários estados do país, as quais, em parte, foram tomadas como base para a elaboração dos parâmetros. Confirmando as observações apontadas nesta seção e somando ao que foi descrito, Figueiredo (2005) afirma que se pode perceber nos PCNs a influência de Bakhtin pela consideração da historicidade da Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 77 língua e pela questão do plurilinguismo, ambos temas bastante impor- tantes para o desenvolvimento de uma educação cidadã. Mesmo que de forma talvez pouco enfática, há também, em alguns trechos desses parâmetros, sugestões de uma abordagem não só enunciativo-discur- siva (em que se considere a influência de aspectos ligados ao contex- to imediato da enunciação), mas também sócio-histórica dos gêneros que, como vimos, favorecem uma leitura mais crítica de textos. Rojo (2008), por sua vez, comenta que, mesmo sem a indicação das fontes dos conceitos didatizados, revozeiam tanto as teorias tex- tuais, como a obra bakhtiniana e a abordagem didática dos gêneros textuais da Equipe de Didática de Línguas da Universidade de Gene- bra (Schneuwly e Dolz), afiliada ao interacionismo sociodiscursivo, dentre outras vertentes menos relevantes. Sobre os estudos de gêneros no Brasil, Bezerra (2016, 2017) explicita que não é possível visualizar ou descrever uma abordagem específica capaz de fazer justiça à complexidade e diversidade do tra- balho que se faz com os gêneros no Brasil. Qualquer proposta nesse sentido se mostrará parcial e limitada. Em segundo lugar, no entanto, é possível falar em termos de predominância ou de certas preferências teóricas que podem se mostrar típicas de parte dos estudos brasileiros. Uma delas é a recorrente menção a Mikhail Bakhtin e a suas concep- ções de linguagem, língua e gênero. Ademais, outra preferência mais ou menos clara no conjunto dos estudos brasileiros, principalmente naqueles que se voltam para o en- sino básico, é a opção pela perspectiva interacionista sociodiscursiva, inclusive pela indução produzida pelos PCNs, nos quais a teoria se acha bem representada, como visto em Bezerra (2016). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 78 De maneira geral, o que se tem notado no Brasil foi uma enorme proliferação de trabalhos, inicialmente na linha de Swales e, depois, na Escola de Genebra com influências de Bakhtin e, hoje, com a in- fluência de norte-americanos e da análise do discurso crítica. Como Bakhtin é um autor que apenas fornece subsídios teóricos de ordem macroanalítica e categorias mais amplas, pode ser assimilado por to- dos de forma bastante proveitosa. Bakhtin representa uma espécie de bom senso teórico em relação à concepção de linguagem, segundo Marcuschi (2008). Com o exposto nesta seção, entende-se que não é possível haver comunicação verbal se não for por meio de gênero, assim como é im- possível não se comunicar verbalmente por texto, isso porque toda manifestação verbal acontece por meio de textos realizados em algum gênero. Além disso, a comunicação verbal é possibilitada somente por algum gênero, por isso a referência à noção de gênero no trabalho com o sociointerativo da produção linguística, conforme Marcuschi (2008). É a partir desse contexto que a escrita deste texto segue: estiman- do o acesso ao saber linguístico como uma prática social, uma prática que é um projeto educativo que interage com o desenvolvimento do aluno com o objetivo de desempenhar suas capacidades face ao que se tem como teorização pedagógica. Por fim, situa-se nesta etapa uma definição de Artigo de opinião com base em Bräkling (2000, p. 230), gênero no qual é aplicado o nos- so objeto de análise: Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 79 O artigo de opinião é um gênero de discurso onde se busca convencer o outro de uma determinada idéia, influenciá-lo, transformar os seus valores por meio de um processo de argumentação a favor de uma determinada posição assumida pelo produtor e de refutação de possíveis opiniões divergentes. É um processo que prevê uma operação constante de sustentação das afirmações realizadas, por meio da apresentação de dados consistentes, que possam convencer o interlocutor. Nessa perspectiva, acreditamos que se trata de um gênero onde a dialogicidade e a alteridade se evidenciam no processo de produção: não é possível escrever um texto no gênero se não se conseguir colocar-se no lugar do outro, antecipando suas posições para poder refutá-las – negociando ou não com ele –, na direção de influenciá-lo e de transformar sua opinião, seus valores. Posteriormente, o artigo de opinião será retomado e utilizado na análise de Sequência Didática, conforme Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), por isso importa apontar esse conceito logo nesta finalização de seção, para que o seu entendimento seja claro durante a abordagem de Sequência Didática. Sequência Didática: um instrumento interacionista e didático Antes de se ater às referências à Sequência Didática, segue uma breve contextualização teórica, para situar as características e os ob- jetivos observados na metodologia proposta pelos pesquisadores da Escola de Genebra, apontados logo a seguir. Inicialmente, destaca-se que o interacionismo sociodiscursivo foi desenvolvido por Jean-Paul Bronckart, Joaquim Dolz, Bernard Schneuwly e outros e postula que as ações humanas devem ser trata- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 80 das em suas dimensões sociais e discursivas, considerando-se a lingua- gem como a principal característica da atividade social humana, já queos seres humanos interagem a fim de se comunicar, por meio de ativi- dades coletivas de linguagem e de ações individuais, consolidadas em textos de diferentes gêneros, como registrado em Baltar et al. (2009) apud Marcuschi (2008). Concordando e somando com o exposto, Araújo (2010, p. 46) descreve que, no interacionismo sociodiscursivo, os gêneros são vistos “como produtos das atividades sociais [...] e como ferramentas que permitem que as pessoas realizem ações de linguagem e participem de diferentes atividades sociais [...]”. E, assim como a contextualização descrita acima, vale mencionar também o que Bawarshi e Reiff dizem sobre a relação dessa teoria com o Bakhtin e gêneros, prestigiados neste texto: A influência de Bakhtin é evidente no foco do interacionismo sociodiscursivo na linguagem em uso e nos gêneros como enunciados tipificados. De forma semelhante, a influência de Vygotsky também é evidente nas distinções essenciais entre agir, atividade e ação feitas no interacionismo sociodiscursivo (Bawarshi; Reiff, 2013, p. 100). Já, especificamente, sobre os gêneros no interacionismo socio- discursivo, Bawarshi e Reiff (2013) dizem que eles desempenham um papel de mediação entre as dimensões sociais e comportamentais da linguagem. Isto posto, realça-se nesta etapa contextual que o interacionismo sociodiscursivo tem sido utilizado para desenvolver tanto modelos analíticos como modelos pedagógicos para o estudo de gêneros e, pe- dagogicamente, o modelo proporciona, aos professores, um modo de Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 81 ensinar a escrita no nível textual, e não gramatical, e de situar o ensino de escrita em gêneros e seus contextos de uso, como Bawarshi e Reiff (2013) descrevem. Pois, compreender e produzir textos são atividades humanas que implicam dimensões sociais, culturais e psicológicas e mobilizam to- dos os tipos de capacidade de linguagem (Dolz, 2011), o que justifica as estratégias pedagógicas e metodológicas de uso e de estudo do gêne- ro relacionadas ao interacionismo. Com isso, Dolz, Noverraz e Schneuwly apresentaram o que cha- maram de “Sequência didática”, que facilita a aquisição de gêneros por meio de “um conjunto de atividades escolares organizadas, de modo sistemático, em torno de um gênero oral ou escrito” (Dolz; Noverraz; Schneuwly, 2004, p. 97). Pois, se deseja descobrir as regularidades de um gênero textual qualquer, deve-se fornecer ferramentas para que seja possível analisar os textos pertencentes ao gênero e se conscientizar de sua situação de produção e das diferentes marcas linguístico-discursivas que o são próprias, conforme Dolz (2011). Dolz (2011) cita que se espera, a partir das atividades da sequ- ência didática, que os professores possam começar a desenvolver um processo de ensino de leitura e de escrita muito mais abrangente. Para o professor e pesquisador, sabe-se que a escrita é um instrumento in- dispensável para todas as aprendizagens e, desse ponto de vista, as si- tuações de produção e os temas tratados nas sequências didáticas são apenas uma primeira aproximação aos gêneros enfocados em cada uma delas, que pode ampliar-se aos poucos, pois escrever textos é uma atividade complexa, que envolve uma longa aprendizagem. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 82 Enfatizando o que já foi introduzido, “Sequência didática” é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito.”, como bem descrito por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 2). Quanto aos objetivos desta metodologia, ela tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequa- da numa dada situação de comunicação e servem, portanto, para dar acesso, ao aluno, a práticas de linguagem novas ou dificilmente domi- náveis. A estrutura de base de uma sequência didática pode ser repre- sentada pelo seguinte esquema, proposto em/por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 3): Quadro 1: Esquema de aplicação de Sequência didática Fonte: Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Como expresso no quadro 1, há 4 momentos distintos de ativi- dades nessa proposta pedagógica e metodológica, a saber: a apresen- tação da situação, na qual é descrita, de maneira detalhada, a tarefa de expressão oral ou escrita que os alunos devem realizar; em seguida, uma produção inicial, quando se elabora um primeiro texto, oral ou escrito, que corresponde ao gênero trabalhado – a primeira produção; depois disso, os módulos, constituídos por várias atividades ou exer- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 83 cícios, os quais proporcionam os instrumentos necessários para esse domínio, pois os problemas colocados pelo gênero são trabalhados de maneira sistemática e aprofundada; para que, no momento da produ- ção final, os alunos possam pôr em prática os conhecimentos adquiri- dos e, com o professor, medir o progresso alcançado (Dolz; Noverraz; Schneuwly, 2004). O movimento geral da sequência didática vai, portanto, do complexo para o simples: da produção inicial aos módulos, cada um trabalhando uma ou outra capacidade necessárias ao domínio de um gênero. No fim, o movimento leva novamente ao complexo: a produção final. Três questões se colocam quanto ao encaminhamento de decomposição e de trabalho sobre problemas assim isolados: 1) Que dificuldades da expressão oral ou escrita abordar? 2) Como construir um módulo para trabalhar um problema particular? 3) Como capitalizar o que é adquirido nos módulos? (Dolz; Noverraz; Schneuwly, 2004, p. 9). Retomando o que foi mencionado na contextualização inicial, reitera-se que essa proposta pedagógica e metodológica se inscreve numa perspectiva construtivista, interacionista e social que supõe a realização de atividades intencionais, estruturadas e intensivas que de- vem adaptar-se às necessidades particulares dos diferentes grupos de aprendizes, conforme os autores, Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), pressupõem. Como escolha de contexto de aplicação e observação da metodo- logia abordada, considera-se a Olimpíada de Língua Portuguesa Escre- vendo o Futuro, a qual tem a sequência didática como ferramenta para se ensinar a escrever. E, atendo-se a isso, a seguir, constam algumas informações sobre esse evento/programa. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 84 O programa Escrevendo o Futuro é uma iniciativa do Itaú Social, sob coordenação técnica do Centro de Estudos e Pesquisas em Edu- cação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), que contribui para a melhoria do ensino, da leitura e da escrita nas escolas públicas de todo o país e realiza diversas modalidades de formação presencial e a distância para educadores, além de um concurso de textos que pre- mia as melhores produções dos alunos do 5º ano do Ensino Funda- mental à 3ª série do Ensino Médio, a Olimpíada de Língua Portugue- sa Escrevendo o Futuro, desenvolvida em parceria com o Ministério da Educação, assim como com o Conselho Nacional dos Secretários de Educação (CONSED), com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), com o Canal Futura e com a Fundação Roberto Marinho. Criado em 2002 pelo Itaú Social e pelo CENPEC, com o objeti- vo de contribuir para a melhoria da leitura e da escrita de estudantes de escolas públicas brasileiras, o Programa Escrevendo o Futuro trans- formou-se em política pública em 2008, por meio da parceria com o Ministério da Educação e a realização da Olimpíada de Língua Por- tuguesa Escrevendo o Futuro. Os organizadores da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, imbuídos desses mesmos ideais desportivos, elaboraram um programa para o enfrentamento do fracasso escolar decorrente das dificuldades do ensino de leitura e de escrita noBrasil. Com os objetivos de buscar uma democratização dos usos da língua portuguesa, perseguindo reduzir o “iletrismo” e o fracasso escolar, contribuir para melhorar o ensino da leitura e da escrita, fornecendo aos professores material e ferramentas, como a sequência didática e contribuir direta e indiretamente para a formação docente (Dolz, 2011, p. 4). http://www.consed.org.br/ https://undime.org.br/ https://frm.org.br/ Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 85 Na proposta metodológica do programa, encontra-se o Caderno docente Pontos de vista (a 7ª edição – 2021 – para efeito de informa- ção sobre esta análise), em que se encontra uma sequência didática, organizada em oficinas, para o ensino da escrita de um gênero textual. Este texto concentra-se na sequência dirigida ao trabalho com o Arti- go de opinião. Nele, constam as seguintes seções e etapas: apresentação contex- tual do projeto pensado pelo programa, introdução ao gênero, análise do gênero notícia – com ênfase na argumentação –, os movimentos da argumentação presentes no Artigo de opinião, comparativo entre gêneros do eixo jornalístico, reconhecimento de estratégias argumen- tativas, primeira produção, características do Artigo de opinião, orga- nização textual, análise de argumentação, construção argumentativa em favor de uma tese, elementos articuladores, as diferentes posições a respeito de um assunto no texto, informações e escrita do texto, re- escrita coletiva, produção final, revisão final e coletânea de produções. Tomando como base esse material bibliográfico, nossa análise re- cai sobre a seguinte questão: a Sequência Didática de Artigo de opi- nião do Caderno Docente Pontos de Vista da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro adequa-se ao procedimento de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), no qual se baseia? Procedimentos Metodológicos Para que os objetivos descritos sobre o objeto de estudo sejam atendidos ou para a verificação da impossibilidade de tais conclusões, considera-se o percurso de procedimentos a ser seguido, com base no Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 86 material de subsídio para o estudo e na classificação da pesquisa, um procedimento para a organização e para a execução da proposta de investigação. Para este estudo, o corpus utilizado trata-se do Caderno Docente Pontos de vista (7ª edição – 2021) da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o futuro, o qual encontra-se na seção de recursos do site Escrevendo o futuro (disponível em: https://www.escrevendoofuturo. org.br/conteudo/biblioteca/nossas-publicacoes/colecao-da-olimpia- da/artigo/1991/cadernos-docentes). Ademais, observa-se a seguinte classificação: do ponto de vista de sua natureza, esta análise enquadra-se como pesquisa básica, visto que objetiva gerar conhecimentos novos e úteis para o avanço da ciên- cia sem aplicação prática prevista, envolvida em verdade e interesses universais, conforme Prodanov e Freitas (2013). Aliado a isso, partin- do dos objetivos apreciados, trata-se de uma pesquisa descritiva, pois os fatos/dados/procedimentos observados serão somente registrados e descritos, sem interferência prevista, de acordo com Prodanov e Freitas (2013). Já, sobre os procedimentos técnicos, este trabalho en- quadra-se ao conceito de pesquisa bibliográfica, pois o seu desenvolvi- mento se dá conforme um material já elaborado, a saber um caderno destinado a professores, conforme a descrição de Gil (2002) . Por sua vez, ao se considerar a abordagem do problema, esta análise caracte- riza-se como qualitativa, porque as informações observadas na cole- ta são descritivas, retratando o maior número possível de elementos existentes na realidade estudada, preocupando-se essencialmente com o processo em que o objeto de estudo é contemplado, seguindo a des- crição de Prodanov e Freitas (2013). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 87 Quanto às etapas, importa mencionar a escolha e a leitura do cor- pus, análise comparativa – observando a estrutura de base de uma se- quência didática e os procedimentos de Sequência didática em Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) – e considerações finais. Durante a etapa de análise do corpus, serão utilizados os seguintes quadros como base de referência ao que é proposto pelos pesquisado- res Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Quadro 2: Estrutura de base de uma Sequência didática Fonte: Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 88 Quadro 3: Procedimentos quanto à Sequência didática Fonte: Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Análise discursiva: apresentação da situação Situa-se nesta categoria a Oficina 1 (“Argumentar é preciso?”), seção da sequência didática que propõe que se observe a importância da argumentação para a construção de um texto. Para isso, ela inicia apresentando um artigo de opinião escrito por uma aluna e, em segui- da, a análise de uma notícia, com atividades. Conforme as seguintes etapas: 1ª – “o primeiro passo” – explicação sobre as oficinas e leitura de texto; 2ª – “uma notícia” – análise de uma notícia, leitura de man- chete e discussão sobre fatos reportados; 3ª – “produção de um jornal mural” – produção de uma matéria assinada sobre “Vidas negras im- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 89 portam” destinada ao mural e compartilhamento das produções entre os alunos; e, por último, 4ª – “o poder da argumentação” – discussão sobre o valor da argumentação na condução da vida pública de uma comunidade. As etapas e os tratamentos específicos em cada etapa, sobre o gê- nero abordado, convergem com o primeiro ponto da estrutura de base tomada como referência nesta análise. A Oficina 2 (“Os movimentos da argumentação”), por sua vez, seção que trata sobre a diferença entre opinar e argumentar e sobre a argumentação, contempla os seguintes aspectos funcional e contex- tual do gênero: na 1ª etapa – “Artigos de opinião” – onde circulam, quem escreve, para quais leitores, com que objetivo, veículo onde o texto foi publicado, tipo de leitor(a) ao qual o artigo se dirige, impor- tância das informações para esse(a) leitor(a), o assunto principal abor- dado pelo texto, relação à data de publicação, ideias que o(a) autor(a) parece defender, recursos para sustentar um ponto de vista e caracte- rísticas dos artigos de opinião; 2ª etapa – “Argumentação” – debate sobre questões polêmicas e definição de argumentação; e 3ª etapa – “Artigos de opinião nos jornais – pesquisa de artigo de opinião em jornal e reflexão. Observa-se que essa oficina contempla aspectos tanto de apresentação, inicialmente, como delineia algumas questões especí- ficas que se encontram na parte dos módulos. Em seguida, semelhantemente, observa-se a Oficina 3 (“Informa- ção versus opinião”), seção que aborda a análise de charge, tirinha, no- tícia e artigo de opinião sobre aspectos negativos da internet. Na sua 1ª etapa – “Charge, tirinha e notícia” – há atividades de conferência de conhecimentos prévios, assim como leitura e discussão de charge, Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 90 de tirinha e de notícia, evocando os conhecimentos socioculturais e um panorama de gêneros. Nesta etapa de análise, considerou-se essas 3 primeiras oficinas como parte da apresentação da situação. Análise discursiva: primeira produção Oficina 4 (“Questões polêmicas”) – com debate e formulação de argumentos, dividido em: 1ª etapa – “O que é uma questão polêmica” – discussão, conceituação e reflexão de questões polêmicas presentes na sociedade e na comunidade e proposta de escrita sobre o tema, com enfoque na estratégia argumentativa adequada a um debate; e 2ª etapa – “O debate” – discussão sobre a diferença entre emitir uma opinião pessoal e debater sobre polêmicarelacionam-se com elaboração dos conteúdos: conhecimento de técnicas relacionadas à busca e elabora- ção de conteúdos. Nota-se que na Oficina 4 há a primeira proposta de escrita, mas com foco na estratégia argumentativa, exercitando essa habilidade da escrita. A proposta de uma produção com foco no gênero específico tratado no material acontece somente na oficina seguinte. A Oficina 5 (“A polêmica do texto”) encarrega-se da produção individual do primeiro artigo de opinião, em uma única etapa, a sa- ber: 1ª – “uma atividade de proposta”, a produção de um artigo de opinião com base em uma questão polêmica, com questionamentos a serem considerados na produção, conforme o planejamento, com identificação do que já se sabe e do que precisa ser investido mais. Um Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 91 momento, assim como é apontado pela estrutura de base, simplificado e objetivo, de observação e de adequação da proposta metodológica ao contexto dos discentes. Essa oficina claramente enquadra-se nesta estrutura de base, uma classificação clara dada a sua objetividade no desenvolvimento e na descrição da ação a ser realizada. Análise discursiva: os módulos Na Oficina 6 (“Por dentro do artigo”) – “Características prin- cipais do gênero” – atende à estrutura de base referente ao trabalho com os problemas evidenciados na primeira produção e instrumenta- lização necessária para superação dos problemas encontrados. Assim como a sua respectiva 1ª etapa – “Leitura do artigo” – enquadra-se também, ao trabalhar problemas de níveis diferentes, com o desen- volvimento de atividades interdisciplinares; o que é continuado na 2ª etapa – “Outros Artigos” – com pesquisa de artigos de opinião em jornais, revistas e/ou internet e leitura dos respectivos textos durante as oficinas, como atividades diversificadas em cada módulo, de obser- vação e de análise de textos a partir de pontos de referência. As próximas oficinas tratam sobre a instrumentalização do gêne- ro, conforme o que é descrito na estrutura de base: planejamento do texto – estrutura textual de acordo com um plano relacionado à fina- lidade objetivada. A exemplo: a Oficina 7 – “O esquema argumentati- vo” – com análise de esquema argumentativo e organização textual de um artigo de opinião; a Oficina 8 – “Questão, posição e argumentos” – com reconhecimento de tema e análise de argumentação; seguido da Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 92 Oficina 9 – “Sustentação de uma tese” – tratando de forma aplicada ao texto os conceitos trabalhados nas duas oficinas anteriores, argu- mentos para defesa de tese. Por sua vez, a Oficina 10 – “Como articular” – aborda os ele- mentos articuladores usados em artigos de opinião, outro aspecto da construção do texto e inter-relação das ideias presentes em suas partes, reforçando a instrumentalização do gênero em seu ensino. Enquan- to a Oficina 11 – “Vozes presentes no artigo de opinião” – trata da identificação das diferentes posições e informações a respeito de um assunto no texto, relacionando-se com a oficina anterior ao tratar so- bre a organização dos operadores argumentativos e as estratégias de argumentação em favor da função de cada etapa no texto, enfatizando o tratamento explícito da instrumentalização. Essas duas oficinas tam- bém se relacionam como tarefas simplificadas de produção de textos: exercício com foco em algum aspecto do texto, descrito para esta etapa do processo. A Oficina 12 – “Pesquisar para escrever” – há pesquisa de in- formações de caráter universal relacionadas a realidades locais, o que pode ser entendido como um complemento ao repertório sociocul- tural, uma vez que os aspectos mais formais da produção são tratados anteriormente, então entende-se que essa oficina corrobora o amadu- recimento das referências e estratégias argumentativas. Análise discursiva: produção final Por fim, a Oficina 13 – “Aprendendo na prática” – em que há a proposta de uma análise e de uma reescrita de um artigo de opinião Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 93 produzido, em uma 1ª etapa – “O texto” – com as primeiras impres- sões para, em seguida, na 2ª etapa – Reescrita em grupos – haver refor- mulação do texto proposto, convergindo na 3ª etapa – “Versão final” – na qual há a leitura da reescrita para aprimoramento. Contemplan- do a estrutura de base indicada para essa etapa: instrumentalização de regulagem e controle do comportamento de produtor durante a revi- são e a reescrita. Em seguida, há a Oficina 14 – “Enfim, o artigo” – com a escrita de texto individualmente, a produção final. Momento final que opor- tuniza ao aluno a prática das noções e dos instrumentais abordados nos módulos. E a Oficina 15 – “Revisão final” – revisão e melhoria do texto individual, a qual retrata a avaliação dos progressos realizados, atividade também descrita para essa etapa. Análise discursiva: procedimentos quanto à sequência didática Com a análise das oficinas, relacionando-as à estrutura de base, reconhece-se que os procedimentos incluem possibilidades de avalia- ção formativa, isto é, de regulação dos processos de ensino e de apren- dizagem, uma vez que que cada etapa – oficina – é composta por ati- vidades de avaliação do desenvolvimento da habilidade de desenvolver a escrita, mesmo que de forma distinta em cada oficina, evidenciando a organização quanto às escolhas pedagógicas. Maximizando, pela di- versificação das atividades e dos exercícios, as chances de cada aluno se apropriar dos instrumentos e das noções propostas. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 94 Observa-se também a relação entre as ideias prévias e a represen- tação da situação de comunicação, o trabalho sobre os conteúdos e a estruturação dos textos, explicitamente, considerando as etapas pres- supostas pela estrutura de base e evidenciando a contemplação das es- colhas psicológicas descritas nos procedimentos. Aponta-se também o procedimento com diferentes gêneros, de diferentes esferas e propósitos comunicativos, os quais permitem compreender as unidades de linguagem de acordo com o seu contex- to, como escolhas linguísticas aplicadas, exemplificando como toda a língua se adapta às situações de comunicação e funciona, portanto, de maneira bastante diversificada. Ela não é abordada como objeto úni- co, que funciona sempre de maneira idêntica. Também, menciona-se que essa instrumentalização pedagógica a partir do gênero Artigo de opinião, em suas diversas etapas – oficinas –, proporciona diversas reflexões de como o gênero reflete as situações diversas da vida cotidiana, desde o tratamento temática até o enten- dimento de que há um objetivo de se convencer um interlocutor, o que é tratado com diversificação e organização na progressão do pro- cesso pedagógico pressuposto no material do docente. Evidências do que é tratado como finalidades gerais, como: preparar os alunos para dominarem sua língua nas situações mais diversas da vida cotidiana, oferecendo-lhes instrumentos precisos, imediatamente eficazes, para melhorarem suas capacidades de escrever e de falar. E desenvolvendo no aluno uma relação consciente e voluntária com seu comportamen- to de linguagem, uma vez que se estuda não somente os conceitos iso- lados de cada etapa, mas é enfatizado o propósito de cada um, relacio- nando-o ao contexto real de cada um. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 95 Considerações finais Essa proposta metodológica discutida, embora não expresse um modelo rígido a ser seguido, adequa-se ao seguir os princípios do pro- cedimento de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), no qual se baseia, proporcionando uma vasta sequência de atividades e de materiais a serem utilizados no trabalho com o gênero Artigo de opinião. O desenvolvimento organizado em oficinas contextualizadase suas respectivas etapas demonstram a organização sistemática na abor- dagem do gênero Artigo de opinião no Caderno Docente Pontos de vista, como pressupõe a proposta interacionista de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Ao observar a Sequência Didática do Artigo de opinião do Pontos de vista, concorda-se não somente que ela atende ao descrito em Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) como procedimentos de sequência, não apenas segue a estrutura proposta pelos professores e pesquisadores genebrinos. Uma evidência de atenção à aprendizagem significativa e didática, não somente estrutural e modelada. Por fim, registra-se que a proposta disponível no Caderno Do- cente analisado propõe uma metodologia estruturada, contextualiza- da e coerente quanto à teoria que segue como base, o que oportuniza uma expectativa positiva referente ao seu uso no processo de trabalho com o gênero Artigo de opinião. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 96 Referências ARAÚJO, A. D. Mapping Genre Research in Brasil: An Exploratory Study. In: Bazerman, Charles (et al.). Traditions of Writing Research. New York: Routledge, 2010, p. 44-57. BAKHTIN, M. M. (1895-1975). Estética da criação verbal. Tradução: Maria Emsantina Galvão G. Pereira e Marina Appenzellerl. 2. cd. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BARBOSA, G. A. da S. 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A partir dessas discussões, é ampliado o conhecimento dele sobre a obra lida, o que gera motivação para criar algum conteúdo sobre ela. Tais produções provêm da criatividade dos jovens e não apresentam fins lucrativos, porém seu alcance chega a outros fãs, que, como os primeiros, apro- priam-se da obra para incluir um pouco de si (de sua identidade) nela (Amaral; Souza; Monteiro, 2015). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 99 Neste trabalho, pretendemos abordar como o professor pode usar a criação de histórias feitas por fãs, as chamadas fanfics, como forma de incentivar o aluno a se aventurar pelo universo da leitura. Acreditamos, ainda, que essa produção digital é parte do aprendizado para o jovem ser socialmente crítico, inclusive letrado digitalmente, porque ele visualiza e pode abordar em seus escritos esses conteúdos de maneira intercultural crítica (Walsh, 2005) e decolonial (Lugones, 2018), de forma a trazer representatividade para povos que antes fo- ram marginalizados, por exemplo, quando incluem um personagem negro em uma história que antes só tratava de personagens brancos. Para tal, na parte 1, pretendemos abordar o que se entende de leitura e como ela é vista pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental de Língua Portuguesa. Além desse documento, trataremos também da Base Na- cional Comum Curricular (BNCC), mais precisamente de como ela incentiva o uso dos gêneros híbridos (incluindo as fanfics) no ensino fundamental II. Ainda nesse assunto, nos aprofundaremos no con- ceito de gêneros híbridos, a fim de entender como eles estão funcio- nando na atualidade e como podem ajudar no processo de leitura. Por último, para melhor aproveitamento do meio digital, apresentaremos algumas características importantes para que o indivíduo possa ser le- trado digitalmente (Pinho, 2018) e usar o conteúdo midiático de ma- neira responsável. Na parte 2, conheceremos melhor o gênero fanfiction e veremos como ele está na atualidade, quais são suas características, suas funcio- nalidades etc. Para entender por quem esse gênero é produzido, fala- remos também da cultura de fãs, de acordo com as ideias deAmaral, Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 100 Souza e Monteiro (2015). Em seguida, apontaremos como esse gênero pode ajudar a incentivar a leitura e a manter viva a vontade de ler e de conhecer novos livros. Nessa parte, adentraremos mais na questão da leitura de um texto híbrido, com base nas ideias de Xavier (2010) e Campos (2016), e abordaremos a fanfic como meio de produção de sentidos, ao que recorreremos aos apontamentos de López (2018), Remenche e Oliveira (2019) e Failla (2012). Por fim, na parte 3, traremos uma sequência didática com a temá- tica de leitura. Por meio dela, esperamos dar uma orientação para que o professor(a) possa trabalhar os gêneros híbridos, mais precisamente a fanfic, em sala de aula e promover a aproximação entre o estudante e a leitura. Nessa sequência, o estudante terá contato com novas obras, mas também poderá compartilhar histórias que já conhece. PCN e BNCC — leitura, gêneros híbridos e língua portuguesa Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Lín- gua Portuguesa, é no período escolar do Ensino Fundamental II que o aluno se encontra em transformação, “para o qual concorrem trans- formações corporais, afetivo-emocionais, cognitivas e socioculturais” (Brasil, 1998, p. 45). Ou seja, é nesse momento que os estudantes co- meçam a formar sua identidade, com base nas mudanças que estão passando, nos estímulos do ambiente em que vivem, nos assuntos que aprendem na escola e, atualmente, no meio virtual. Neste, os apren- dizes têm contato com os gêneros híbridos, dos quais trataremos mais Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 101 adiante, mas que já adiantamos serem fundamentais para o processo de aprendizagem, tanto que a BNCC já aponta a importância das tec- nologias: “Ao aproveitar o potencial de comunicação do universo digi- tal, a escola pode instituir novos modos de promover a aprendizagem, a interação e o compartilhamento de significados entre professores e estudantes” (Brasil, 2018, p. 61). Os PCN pontuam, ainda, objetivos importantes a respeito das expectativas que se têm sobre a formação leitora. Espera-se que o alu- no: leia, de maneira autônoma, textos de gêneros e temas com os quais tenha construído familiaridade; [...] seja receptivo a textos que rompam com seu universo de expectativas, por meio de leituras desafiadoras para sua condição atual, apoiando- se em marcas formais do próprio texto ou em orientações oferecidas pelo professor; troque impressões com outros leitores a respeito dos textos lidos, posicionando-se diante da crítica, tanto a partir do próprio texto como de sua prática enquanto leitor; compreenda a leitura em suas diferentes dimensões – o dever de ler, a necessidade de ler e o prazer de ler; seja capaz de aderir ou recusar as posições ideológicas que reconheça nos textos que lê (Brasil, 1998, p. 50- 51). Dessa forma, o leitor seria um indivíduo autônomo, receptivo e crítico, características fundamentais para se compreender o que está lendo, conhecer novas leituras e ter a capacidade de se posicionar dian- te de assuntos diversos (BRASIL, 1998). No meio digital, entendemos as fanfics como um passo importante para se chegar a esses objetivos propostos pelos PCN, já que elas: apresentam diferentes formas (as- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 102 sim alunos com gostos diferentes, pela escrita, música, desenho, dentre outros, podem se expressar por meio dela); permitem que o indivíduo compartilhe suas ideias sobre uma leitura; promovem a motivação de conhecer mais do universo que está lendo (porque para escrever sobre algo, antes, é necessário conhecer bem a obra); e geram trocas de ideias entre diferentes leitores, com opiniões e vivências diversas. Na BNCC, os conteúdos são divididos em “práticas de lingua- gem”, “objetos de conhecimento” e “habilidades” (Brasil, 2018). Na disciplina de Língua Portuguesa 6º ao 9º ano, há a prática chamada leitura; nela, há a habilidade “EF69LP46”, a qual salienta que, nesse nível, o estudante deve ser capaz de compartilhar suas leituras, ter con- tato com rodas de leitura, obras literárias etc. E ressalta, ainda, que o aprendiz deve se expressar a respeito dessas participações, por meio de comentários e/ou resenhas, “utilizando formas de expressão das cul- turas juvenis, tais como, vlogs e podcasts culturais (literatura, cinema, teatro, música), playlists comentadas, fanfics, [...] dentre outras possi- bilidades de práticas de apreciação e de manifestação da cultura de fãs” (Brasil, 2018, p. 157). É essencial lembrar, ainda, que a valorização de gêneros digitais, como as fanfics, não implica desconsiderar os gêneros impressos já trabalhados na escola, como notícia, tirinha etc., e sim abordar esses novos meios digitais também (Brasil, 2017). Aproximar o meio digital da escola seria uma forma de valorizar as vivências dos estudantes que têm esse acesso e de tornar mais atrativas as atividades escolares. Po- rém, é importante que seja um trabalho conjunto, ao mesmo tempo em que há essa proximidade com a vivência, deve haver, também, a proximidade com os conteúdos consagrados pela escola, pois assim Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 103 é possível que o estudante rompa “com seu universo de expectativas” (Brasil, 1998, p. 51) e amplie o próprio conhecimento. Gêneros híbridos e letramento digital Nossa comunicação é permeada pelos gêneros textuais, os quais se caracterizam como “formas sociais de organização e expressão típi- cas da vida cultural” (Marcuschi, 2010, p. 19). Assim, segundo Mar- cuschi (2003), podemos entender que os gêneros funcionam no âm- bito sociodiscursivo, a fim de que possamos nos expressar no mundo. Como há essa relação entre o mundo e os gêneros, podemos perceber, nessa era tecnológica, novos gêneros aparecendo, os quais podem ser chamados de gêneros híbridos. Essa denominação, de acordo com Santaella (2014), envolve tanto a característica hipertextual (acesso a outros textos por meio de links) quanto a possibilidade de combina- ção de imagens e sons, por exemplo. É fundamental lembrar que esses gêneros surgiram do uso fre- quente das tecnologias e da rotina das pessoas nos meios virtuais, e não somente por causa da tecnologia em si (Marcuschi, 2003). Ou seja, as relações estabelecidas nesse meio geraram formas de se comunicar que são características do universo digital. No entanto, podemos perceber a origem de alguns desses gêneros fora do meio tecnológico, como é o caso de comparar uma reunião feita pessoalmente e uma conferência on-line. Nesse caso, as formalidades, o assunto etc. se mantêm (estru- tura), mas o local em que vai ocorrer e os meios usados para passar as informações (enquadre) se modificam (Marcuschi, 2010), o que ca- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 104 racteriza um como gênero discursivo e outro como gênero híbrido, respectivamente. Antes, quando se pensava no meio digital, acreditava-se que ler e escrever na internet era, como na realidade, uma ação solitária. Porém, com o surgimento de fóruns, grupos, chats etc., vemos como as pesso- as conseguem se comunicar com outras e partilhar o que estão lendo e/ou escrevendo. Assim, pode-se dizer que a tecnologia permite uma “interação altamente participativa” (Marcuschi, 2010, p. 20). Dessa interação, vimos surgir os fandoms, por exemplo, que são os grupos de fãs reunidos em uma página virtual para compartilhar ideias sobre determinada obra/personagem. É importante frisar, ainda, que essa troca entre as pessoas, geral- mente, é feita por meio da escrita. Dessa forma, reconhece-se a uma relação síncrona entre a escrita (produção) e a interação (recepção) (Marcuschi, 2010), visto que as pessoas têm acesso praticamente ime- diato ao que é postado nas redes. Essa característicaintensifica a in- teração, porque permite que os assuntos sejam discutidos no mesmo momento em que são publicados. Em relação à escrita, que muitas vezes detém uma aura de medo por parte dos estudantes, podemos perceber certa liberdade na in- ternet que nos faz questionar por que um mesmo aluno que quase não escreve na escola gosta tanto de escrever na internet (seja fanfic ou não)? Segundo Marcuschi (2010, p. 23), “O próprio estado de anonimato dos participantes nos bate-papos virtuais favorece o lado instintivo, desde a escolha do apelido até as decisões linguísticas, esti- lísticas e liberalidades quanto ao conteúdo”. Embora o autor fale dos bate-papos em específico, podemos perceber esse anonimato em ou- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 105 tras partes da rede também. Nas fanfics, inclusive, é possível escrever o texto usando um nome completamente diferente do próprio, o que inibe a vergonha e o medo de rejeição, os quais impedem que muitos estudantes escrevam. É importante destacar, também, que essas tecnologias possibilita- ram “[...] descentralizar a comunicação, afetando a recepção de massa ao permitir ao usuário maior controle sobre o processo de comuni- cação [...]” (Santaella, 2001, p. 3). Esse controle pode ser encontrado também nas escritas de fanfics, nas quais o jovem tem a possibilidade de mudar/criar algo (dentro dos limites da história original), ao incluir suas próprias perspectivas culturais e identitárias. Essa atitude permite que o indivíduo tenha autonomia a respeito de suas publicações. Assim, essa possibilidade de criação que há no meio digital faz do jovem um ser autônomo, o qual consegue manusear os conteúdos que encontra na rede e nas mídias digitais (que podem ser filmes, séries e músicas) e, sendo socialmente crítico, inclusive letrado digitalmen- te, visualiza esses conteúdos de maneira intercultural crítica, a fim de respeitar e promover uma interação entre diferentes culturas (Walsh, 2005) e decolonial, para que nenhum povo ou cultura seja subjugado a outro (Lugones, 2018). Quando o indivíduo tem esses conhecimen- tos (que são imprescindíveis no mundo atual globalizado), ele conse- gue produzir conteúdos críticos e respeitáveis, aguçando ainda mais a própria criatividade. Dessa maneira, ao se comunicar por meio de e sobre meios digi- tais, é requerido um letramento digital por parte do sujeito, para que se desenvolva a capacidade de analisar as informações obtidas na rede (Pinho, 2018), de maneira a gerar o conhecimento. Neste trabalho, Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 106 para que a sequência didática proposta na parte 3 seja bem realizada, é fundamental que o professor seja letrado digitalmente e tenha uma postura intercultural crítica e decolonial. Somente assim o docente sa- berá lidar com os gêneros híbridos e transmitirá aos alunos o respeito aos povos e culturas, o qual deve ser mantido inclusive na ficção, no caso, na escrita das fanfics. Fanfics: características e funcionalidades Fan + fiction = fanfiction, assim surgiu o nome desse gênero, que, no Brasil, é abreviado para fanfic ou fic. As fanfics surgiram antes da era digital. De acordo com Oliveira, Rocha e Fofano (2021), elas eram publicadas em fanzines (revistas feitas e lidas por fãs), nos Estados Unidos da América. Nessas revistas, os então autores e leitores dialo- gavam a respeito de uma obra que gostavam muito – seja um livro, um filme, uma série etc. No Brasil, segundo Remenche e Oliveira (2019), as fanfics ganharam fama com a série Harry Potter (1997-2007) e, em seguida, com a saga Crepúsculo (2005-2008) (Oliveira; Rocha; Fo- fano, 2021). Atualmente, podemos ver crescer os números de fics do universo K-pop (música). Mas por que publicar histórias baseadas em outras que já exis- tem? Geralmente, elas surgem por necessidade e curiosidade. Em tex- tos literários, por exemplo, sempre há subentendidos. Ou ainda uma falta de continuação, ou um final divergente do que se esperava. As- sim, pela necessidade de entender o que aconteceu naquela história, fãs decidem suprir essas lacunas (Vargas, 2015). Ao fazer isso, esses fãs Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 107 incluem seus próprios ideais nas histórias e conseguem dar voz a povos marginalizados, por exemplo. A internet, por sua vez, possibilitou que mais pessoas conheces- sem as fics, além de permitir um maior compartilhamento de ideias em tempo real. Antes, era necessário esperar a publicação e impressão de uma das revistas, agora basta esperar a publicação nos sites e blogs. Essa agilidade gerou uma comunidade ainda maior de fanfiqueiros (Oliveira; Rocha; Fofano, 2021). Atualmente, no Brasil, os sites mais atualizados com fanfics são o Nyah Fanfiction e o Wattpad. Conforme vimos anteriormente, estrutura e enquadre impactam na classificação do gênero, ou seja, o meio em que a comunicação se dá permite uma caracterização diferente (Marcuschi, 2010). Em relação ao gênero fanfiction, sabemos que são textos escritos por fãs, com base em uma obra que já existe. Ao ler uma fanfic literária, por exemplo, percebe-se, em alguns casos, a estrutura de um tipo textual narrativo e do gênero romance (pode ser uma canção, um poema, dentre outros, mas focaremos o romance), porém, para ser classificada como fanfic- tion, o enquadre deve indicar que a ideia-base, a original, veio de algo que já foi publicado. Por exemplo, se a pessoa lê Harry Potter, gosta bastante e escreve uma continuação ou insere uma informação na his- tória que já existe, ela está produzindo uma fanfic. No entanto, se ela escreve uma ficção autoral sobre um mundo bruxo, já não é mais uma fic, é um romance. Dessa maneira, pode-se afirmar que A fanfiction é, assim, uma história escrita por um fã, envolvendo os cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidos no original, sem que exista nenhum intuito de quebra de direitos autorais e de lucro envolvidos nessa prática. Os autores de fanfictions Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 108 dedicam-se a escrevê-las em virtude de terem desenvolvido laços afetivos tão fortes com o original, que não lhes basta consumir o material que lhes é disponibilizado, passa a haver a necessidade de interagir, interferir naquele universo ficcional, de deixar sua marca de autoria (Vargas, 2015, p. 21-22). Durante o processo de escrita de uma fanfic, o leitor usa a pró- pria interpretação do universo ficcional escolhido e o conhecimento de mundo para preencher as lacunas deixadas no texto original. An- tes de tudo, o escritor de fanfic precisa ser um bom leitor, porque ele precisa interpretar e conhecer bem o universo que pretende explorar. Além disso, para saber o que escrever, se utiliza das indagações feitas e dúvidas tidas na leitura do texto original. Essa prática permite, ainda, o exercício da criatividade desse indivíduo. Outro fator que se desenvolveu junto com as fanfics foram os fan- doms, ou grupos de fãs, os quais encontraram no meio virtual uma maneira mais rápida de interação. Segundo Amaral, Souza e Monteiro (2015, p. 142), “A “cultura dos fãs” tem muito a dizer sobre a partici- pação política e o exercício da cidadania”. Dessa maneira, quando um grupo de fãs está emocionalmente ligado a algum produto cultural e midiático, como uma série ou um filme, expressa sua opinião sobre os acontecimentos da história, assim como estabelece referências entre o que foi visto na ficção e o que se vê na realidade. Quando pensamos na ideia de ativismo de fãs, por exemplo, ve- mos como as pessoas conseguem, a partir de conteúdos midiáticos, pensar em associações entre o que foi visto/lido e algum aspecto da sociedade. Essas associações podem ser manifestadas em fóruns, redes sociais, fanfics, dentre outros (Amaral; Souza; Monteiro, 2015). Elas Produção de textosem contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 109 podem ser desenvolvidas com base em questões sociais, por exemplo, como é o caso de uma obra que envolve segregação de raças fictícias, e com ela o indivíduo analisa os argumentos do autor a respeito do assunto e relaciona a ficção com o racismo que acontece na realidade. Assim, ao escrever uma fic, esse mesmo indivíduo pode incluir suas percepções e ideias a respeito do assunto, bem como compartilhar suas críticas com outros leitores. Em relação ao meio educacional, o gênero fanfiction, que já é bas- tante recomendado nos PCNs e na BNCC, conforme vimos na parte 1, funciona como um meio de garantir a leitura na vida do estudante e, ainda, trabalhar aspectos da escrita, assim como promover a autono- mia e a criticidade. É fundamental lembrar que todo escritor de fanfic é um leitor que entendeu a história a ponto de poder falar sobre ela e acrescentar algo a ela. Assim, na escola, espera-se que o aluno alcance esse nível e possa comentar a respeito do que leu, usando como base sua capacidade interpretativa, criticidade e imaginação. Leitura de texto híbrido e produção de sentidos No que diz respeito aos gêneros híbridos, temos o termo “hiper- texto”. Este é um texto que permite dinamicidade e flexibilidade ao estabelecer uma conexão com outros textos híbridos (Xavier, 2010). Assim, o hipertexto é o que encontramos nos artigos em sites, por exemplo: há o texto escrito, imagens, links, comentários de leitores, tudo na mesma página, e todas essas informações agregam à leitura, ao mesmo tempo que permitem uma não linearidade nela, já que o leitor Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 110 pode escolher ler o primeiro parágrafo, depois ler os comentários e, só então, terminar a leitura. Assim, para ser caracterizado como um gênero híbrido, há a jun- ção de um hipertexto (não linear) com a possibilidade de combinar o discurso verbal com imagens, sons etc. (Santaella, 2014). Na internet, percebemos como os textos se apresentam em múltiplos formatos, permitindo que o usuário explore o conteúdo sob diferentes recursos. Assim como o usuário da rede, o escritor de fanfic “não se limita a contar uma nova história, mas traça novas curvas de significação por meio de recursos visuais, orais, auditivos, gestuais, táteis e espaciais” (Remenche; Oliveira, 2019, p. 217). Isso ocorre porque uma fic pode ser feita em diversos formatos, embora usualmente seja uma narrati- va ficcional, pode ser feita em um formato de HQ ou de canção, por exemplo, desde que conte uma história baseada em uma obra já exis- tente. Dessa forma, para a construção de uma fanfiction, ocorre algo semelhante ao hipertexto, visto que o texto original funciona como base para a escrita das fics (Campos, 2016). Dessa maneira, as fanfics “ganham relevo ao possibilitar ao leitor não apenas consumir (hipotexto), mas também atuar como produtor de conteúdo (hipertexto), seja por meio de comentários ou de produ- ções próprias” (Remenche; Oliveira, 2019, p. 217). Em se tratando de emoção, muitas dessas produções conseguem atingir seu objetivo nos telespectadores. Nesse sentido, Paulo Freire (1996) destaca que, no ca- minho entre uma curiosidade ingênua e uma curiosidade epistêmica (o conhecimento), articulam-se os fatores de emoção, sensibilidade, afetividade, intuição e adivinhação. São esses fatores a chave que abre caminho ao conhecimento, à vontade de aprender e de buscar, fatores Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 111 esses que incentivam jovens estudantes a identificarem a necessidade de representação, por exemplo, em uma história original que não a apresentava; que geram, enfim, a motivação, sendo esta o principal fa- tor da vontade de aprender (López, 2018). A respeito da produção de sentidos, segundo Kleiman (2013, p. 90) “É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mun- do, que o leitor consegue construir o sentido do texto”. Um escritor de fanfics é, antes de tudo, um leitor. Assim, durante sua atividade, ele precisa colocar em prática seus conhecimentos para interpretar o texto, bem como trabalhar sua criticidade. Como bem lembra Failla (2012), uma informação sem criticidade forma uma sociedade aliena- da e massificada, já uma leitura crítica é capaz de ampliar as formas de um indivíduo ver o mundo, bem como permitir que ele próprio crie conhecimento. Por fim, de acordo com Arruda (2009, p. 10 apud D”Ávila, San- tos e Macedo (2020, p. 39-40)) “[...] vivemos a primazia do trabalho, e toda e qualquer atividade vinculada ao lazer ou ao ócio é desvalori- zada socialmente”. Entretanto, estamos em permanente aprendizado, mesmo que em situações não formais como a escrita de fanfics fora do meio acadêmico. Esse aprendizado que se dá nos momentos de lazer ainda tem a carga emotiva como fator motivador, e a emoção é uma das maiores portas para o conhecimento. Acreditamos que o aprendi- zado dessa maneira gera sujeitos críticos, participativos, social e acade- micamente, os quais conseguem desenvolver bem suas ideias em prol de um convívio cada vez mais humano, democrático e livre. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 112 No universo das fanfics – proposta didática Nossa proposta envolve a leitura nas aulas de Língua Portugue- sa e será direcionada ao 6º ano. É importante ressaltar, no entanto, a importância de o professor avaliar e equilibrar cada texto e atividade de acordo com o perfil de sua turma. Assim, nossa sequência didática, com seis aulas de 50 minutos cada, servirá como um direcionamento, mas somente o docente poderá adaptar sua funcionalidade na turma x ou y. Tema: Leitura Objetivo principal: Capacitar o estudante a compreender textos narrativos. Objetivos secundários: Interpretar diferentes textos; entender a estrutura de uma narrativa; usar a imaginação e a criticidade para escrever as fanfics. Justificativa: O intuito dessas atividades é cumprir os parâme- tros expressos nos PCN, os quais indicam um leitor autônomo, recep- tivo, participativo e crítico (Brasil, 1998). Habilidade BNCC: EF69LP46, a qual diz que o estudante deve Participar de práticas de compartilhamento de leitura/recepção de obras literárias/ manifestações artísticas, como rodas de leitura, clubes de leitura, eventos de contação de histórias, de leituras dramáticas, de apresentações teatrais, musicais e de filmes, cineclubes, festivais de vídeo, saraus, slams, canais de booktubers, redes sociais temáticas (de leitores, de cinéfilos, de música etc.), dentre outros, tecendo, quando possível, comentários de ordem estética e afetiva e justificando suas apreciações, escrevendo comentários e resenhas para jornais, blogs e redes sociais e utilizando formas de expressão das culturas juvenis, tais como, vlogs e podcasts culturais (literatura, cinema, teatro, música), playlists comentadas, fanfics, fanzines, e-zines, fanvídeos, Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 113 fanclipes, posts em fanpages, trailer honesto, vídeo-minuto, dentre outras possibilidades de práticas de apreciação e de manifestação da cultura de fãs (Brasil, 2018, p. 157). Perfil da turma: alunos do 6º ano, da baixada fluminense. Tur- ma com, em média, 30 a 40 alunos, de idade entre 10 e 13 anos. Sondagem: O professor deverá observar e até perguntar o que seus alunos gostam de fazer fora da sala de aula: quais filmes, dese- nhos, canais de Youtube assistem, quais músicas ouvem, dentre outros interesses. Pode, ainda, descobrir se os estudantes participam de algum fórum na internet, se têm alguma rede social sobre algum assunto es- pecífico (sem ser perfil pessoal), se costumam comentar algo na inter- net etc. É muito importante que o docente tenha esse conhecimento a respeito de suaturma, assim ele pode fazer as escolhas adequadas para a aula. Número de aulas: Seis aulas de 50 minutos cada: duas delas di- recionadas para a motivação do aluno (na primeira o professor pode fazer a sondagem); três de conteúdo direcionado; e uma de avaliação. Conteúdos que serão abordados e descrição das aulas: Aula 1 Na primeira aula, iniciaremos o processo de motivação do alu- no pela temática (leitura). Será uma aula mais direcionada à interação com os alunos. Nela, o professor perguntará à turma (para uns três alunos no máximo) quais filmes e/ou desenhos eles gostam e pedi- rá que expliquem um pouco essas obras para o restante dos colegas. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 114 Após isso, o educador deve incentivar os alunos a criarem hipóteses do que pode ter acontecido naquelas histórias; nesse momento, deve-se aproveitar as lacunas que os alunos deixaram enquanto narravam as obras e explorá-las, já direcionando para a criação de histórias (fanfics). Caso a turma seja mais quieta, o docente deve levar de casa al- gumas cenas de filmes/desenhos conhecidos e passar para os alunos, pedindo que expliquem se já viram e o que aconteceu naquela cena. Nessa parte, o aluno que já viu vai contar o que realmente aconteceu; e o aluno que ainda não viu vai criar uma fanfic baseada na imagem que está vendo. Assim, o professor deve identificar qual dos dois casos está acontecendo e, se for o caso do segundo, já adentrar na temática de criação de histórias e incentivar que outros alunos façam o mesmo. No final, o docente conta o que realmente aconteceu; e juntos, alunos e professor, podem discutir a criatividade das descrições feitas. Já caminhando para o final da aula, o professor deve questionar os livros preferidos dos alunos. Caso nenhum estudante se manifeste, o docente deverá pedir uma tarefa para a próxima aula: que os alunos se juntem em grupos com cinco integrantes e façam uma visita à bi- blioteca da escola, escolham um livro curto, poderia ser HQ, e tragam na próxima aula (para esta atividade o docente deve conversar com a pessoa responsável pela biblioteca, para que ela possa ajudar os alunos na escolha também. O docente pode fazer uma seleção de textos cur- tos e direcionados para a idade de seus aprendizes, para evitar possíveis problemas e para que ninguém leve algo que não seja possível ler). Se não houver biblioteca, ou ela não for acessível aos alunos, o docente deve procurar outros meios para desenvolver a atividade da próxima aula, assim, poderá: trazer seus próprios livros de casa; con- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 115 versar com a direção do colégio se há algum livro pela escola; buscar tirinhas na internet, imprimir e levá-las; dentre outros meios. No fim, o importante é que deixe os grupos escolherem aquelas obras que mais se identificaram de primeiro momento. Aula 2 Para a segunda aula, já trabalharemos com o texto escrito. Nesse momento, os alunos trouxeram (ou escolheram na hora da aula) tex- tos que lhes atraíram por algum motivo. Os estudantes mostrarão os textos escolhidos e dirão os motivos pelos quais os escolheram. Os mo- tivos podem ser algo simples, como uma imagem, a capa, uma palavra, contanto que justifique a sua preferência. Essa parte da atividade deve- rá ser mais rápida, para que o aluno tenha tempo de iniciar a leitura do livro que trouxe. Nessa parte, o docente incentivará a leitura de pelo menos o comecinho do livro, para que os alunos possam reconhecer e se ambientar na história (por isso a importância de serem livros/textos mais curtos). Caso o professor tenha mais tempos de aula, poderá incluir al- guns minutos a mais de leitura silenciosa, mas o importante é que o aluno reconheça do que se trata a obra que está com ele. Já finalizando a aula, se os estudantes não conseguirem terminar a leitura, o professor deve pedir que a finalizem em casa, se possível. O importante nessas primeiras duas aulas é que o estudante leia, por isso não recomenda- mos que passe nenhuma atividade ou faça alguma pergunta específica sobre o livro nesse momento, já que o fundamental agora é motivar o gosto pela leitura. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 116 Aula 3 Na terceira aula, o professor deve ter conhecimento das obras que os alunos escolheram na última aula e ter buscado um pouco so- bre elas. Nessa etapa, o docente deverá averiguar se os alunos gosta- ram ou não das leituras, sempre pedindo que expliquem os motivos. É importante aqui identificar os personagens, os enredos, os cenários.... Para isso, o professor pode se dirigir ao quadro e escrever os títulos das obras e as informações encontradas conforme questiona seus alunos. A fim de incentivar a imaginação dos estudantes, se há uma história que se passa em um castelo, por exemplo, o professor pode questionar “E se essa história se passasse neste bairro em que estamos?”. A partir desse questionamento (ou de outros semelhantes), os alunos começarão a formar novos caminhos para a história lida, os quais já podem ser considerados fanfic. Essas perguntas serão ainda mais importantes nos casos em que o grupo não gostou do livro, por- que o professor pode explorar o que se poderia mudar naquela histó- ria para agradar aos leitores e, assim, os alunos podem se sentir mais participativos, perceber que não há problema em não gostar de um livro e identificar quais fatores eles gostam em uma história. Aula 4 A quarta aula, por sua vez, deverá ser mais teórica, abordando os principais fatores linguísticos que o professor identificou nos textos que os alunos leram (ou em um deles). Nessa aula, o docente pode Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 117 explicar a estrutura das histórias de ficção, sempre retomando algum exemplo dos textos lidos. Além disso, o professor pode trabalhar a gra- mática contextualizada nesses textos. Ou seja, observar usos de ver- bos, pronomes, derivações, por exemplo, e explicar esses usos e suas funções para a história lida, adequando para a linguagem do aluno. Em seguida, é importante que o professor use o livro didático nesse momento também, a fim de sistematizar os conteúdos trabalhados até então. Aula 5 Nesta etapa, o professor pode retomar a última aula e verificar possíveis dúvidas sobre os temas trabalhados. Em seguida, deve pro- por a avaliação desses aprendizados. Essa avaliação pode começar a ser feita em sala de aula, para que haja interação entre os alunos durante a construção da atividade. Caso não dê tempo de finalizá-la, é fun- damental que o professor incentive os estudantes a compartilharem suas ideias com os outros por meios virtuais. A proposta é que o do- cente indique um texto curto para a leitura dos alunos. Em seguida, eles formarão grupos compostos por três a quatro membros, a fim de criar uma fanfic sobre o texto lido. O professor pode dar algumas dicas e direcionamentos para que os estudantes comecem, mas deve deixar que eles exerçam autonomia nessa atividade. Além disso, o alu- no pode escolher como se expressar pela fanfic, seja por meio de um texto ficcional, de um poema, de uma música, de uma HQ... Por isso, é fundamental que o docente aponte essas possibilidades para ele, as Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 118 quais podem ser mais atrativas e incentivar ainda mais a leitura do tex- to solicitado. Uma sugestão é usar o conto O sol e a lua, escrito por Ana Sofia Lemos Ribeiro: O sol, todo pomposo, com as suas melhores vestes para sair à rua, um dia, ao entardecer, esqueceu-se do seu relógio em casa. Aflito, vasculhou inutilmente, por toda a parte, mas nada encontrou a não ser o desespero, a desolação. Tentou, em vão, socorrer-se da sua memória, mas não a encontrou, pois o cansaço já começava a tomar conta de si. Mas oimpensável aconteceu: um vulto igualmente radioso e majestoso atravessou-se mesmo à sua frente, cortando-lhe a respiração. - Mas, mas quem és tu? – Gaguejou o sol. - Não sabes quem sou? – Perguntou a lua, admirada! – Sou apenas o símbolo mais importante da noite, meu caro amigo – brincou num tom irónico. - Continuo sem perceber – confessou o sol. - Chamo-me lua. Sirvo, especialmente, para iluminar a terra juntamente com as minhas amigas estrelas. - Oh, como sou tão distraído, para não dizer mesmo dorminhoco (risos). Tenho andado todo este tempo a dormir. Como deixei escapar tamanha formosura? – Afirmou, meio desajeitado ao passar a mão pela sua enorme cabeça doirada. - Isso já não sei… diz-me tu, quem és? - Sou o sol, que curiosamente, também tenho uma função muito importante em mãos, pois ilumino e aqueço a terra e as pessoas, só que em vez de ser à noite é de dia. Talvez seja por isso, que andamos desencontrados, o que é uma pena, imensa! Bocejou, olhando pensativamente para o silêncio do espaço. - Pois bem, vejo que já estás cansado, quando ainda tenho energia para dar e vender – sentenciou a lua, deixando escapar uma estridente gargalhada, que acabou por não deixar indiferente o sol, que também sorriu. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 119 - Ei! Não te vás embora ainda! Já ouviste falar na minha amiga nebulosa da formiga? - Nebulosa da formiga? - O que é isso? - Uma vez que não sabes do que se trata, aconselho-te a pesquisares na web… Passaram-se assim longas horas, até que o sol baixou as armas e bateu em retirada para a sua morada, prometendo à lua visitá-la mais vezes, não importando a distância e as horas que os separavam. Pois sabia, que tinha encontrado uma pérola preciosa, que nunca queria perder de vista, e assim, terminou um encontro imprevisto transformado numa amizade pouco provável. Com esse conto, por exemplo, os aprendizes podem escrever o possível reencontro dos personagens, um acontecimento repentino no meio da conversa dos personagens, uma explicação da nebulosa da formiga, que fica subentendida no texto, dentre outras possibilidades. Por fim, é importante que o professor ressalte a importância da tarefa e da interação entre os integrantes do grupo, bem como a apre- sentação na próxima aula, a fim de que todas já tenham terminado a atividade. Na apresentação, os alunos contarão como foi o processo criativo, quais foram as principais discussões e os motivos de terem es- colhido aquele caminho para sua fanfic. Por último, devem ler a fanfic para os colegas. Aula 6 - Avaliação Na última aula, os estudantes apresentarão a atividade que foi proposta anteriormente. Embora seja uma avaliação, é fundamental Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 120 que seja um momento descontraído, para que o aluno se sinta moti- vado com a atividade. Uma dica para descontrair o ambiente, é que o professor inicie lendo uma fanfic que ele mesmo fez sobre o mesmo texto passado na atividade. Nesse momento, as produções serão dis- cutidas, e o docente reforçará os limites das fanfictions. Considerações finais No início da teoria deste trabalho, pudemos entender como a leitura é vista pelos PCNs do terceiro e quarto ciclos do ensino fun- damental de Língua Portuguesa e pela BNCC, mais precisamente de como ela incentiva o uso dos gêneros híbridos no ensino fundamental II. Além disso, descobrimos como os gêneros híbridos funcionam na atualidade e como podem ajudar no processo de leitura. Por último, para melhor aproveitamento do meio digital, ressaltamos a necessida- de de o indivíduo ser letrado digitalmente (Pinho, 2018) e usar o con- teúdo midiático de maneira responsável. Em seguida, definimos o gênero fanfiction, a cultura de fãs e ar- gumentamos como esse gênero pode ajudar a incentivar a leitura e a manter viva a vontade de ler e de conhecer novos livros. Nela, frisamos a questão da leitura de um texto híbrido, com base nas ideias de Xa- vier (2010) e Campos (2016) e abordamos a fanfic como meio de pro- dução de sentidos, ao que recorreremos aos apontamentos de López (2018), Remenche e Oliveira (2019) e Failla (2012). Por fim, na parte 3, apresentamos uma sequência didática com a temática de leitura. Por meio dela, esperamos que o professor(a) possa Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 121 incluir a fanfic em sala de aula e promover a aproximação entre o es- tudante e a leitura. Ao unir a teoria (partes 1 e 2) e a prática (parte 3), esperamos que o docente se sinta apto a incluir este assunto em suas aulas. Por último, salientamos que a sequência didática proposta neste trabalho é uma das formas de se trabalhar a fanfic na escola, sendo ape- nas uma sugestão. O professor pode escolher outros meios, como uma feira literária, um concurso de escrita, um café literário etc. Em traba- lhos futuros, poderemos abordar mais esse e outros gêneros híbridos em outros formatos de aula, a fim de mostrar as amplas possibilidades de se trabalhar com tecnologia na educação. Referências AMARAL, Adriana; SOUZA, Rosana Vieira; MONTEIRO, Camila. “De westeros no #vemprarua à shippagem do beijo gay na TV brasileira”. Ativismo de fãs: conceitos, resistências e práticas na cultura digital. Galáxia, São Paulo, n. 29, p. 141-154, jun. 2015. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1982- 25542015120250. Acesso em: 28 nov. 2022. ARRUDA, Eucído Pimenta. Jogos digitais e aprendizagens: o jogo Age of Empires III desenvolve ideias e raciocínios históricos de jovens jogadores?. 2009. Tese (Doutorado em Educação) — Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, 2009. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação, 2017. 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Essas assertivas podem até ser constatadas empirica- mente, mas centram-se apenas nos estudantes, colocando-os como os únicos responsáveis pelo “não saber escrever”. No entanto, olhando para esse “problema” sob outra perspectiva, poderíamos nos pergun- tar sobre a contrapartida institucional. A escrita acadêmica demanda- da dos universitários lhes é ensinada? A partir de que objetivos? Essas nossas indagações se justificam pelo fato de que, ao ingres- sarem na educação superior, os estudantes iniciarão uma nova fase, em um novo espaço, regido por currículos, normas e práticas específicas e situadas. Haverão de produzir textos específicos da área e/ou cam- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 126 po disciplinar ao qual se vincularam, logo, muito provavelmente, não deverão conhecê-los, nem tampouco saber produzi-los, dadas as pecu- liaridades dos seus propósitos comunicativos. Justificam-se também por compartilharmos com Carrol (2002 apud Silva, 2017) da ideia de que não se aprende a escrever de uma vez por todas, pois a escrita é uma prática de aprendizado contínuo e situado. Sendo uma prática social, que varia conforme as áreas e disciplinas em que se configura (Street, 2010), entendemos ser necessário ensiná-la, explícita e siste- maticamente, em todos os níveis educacionais, inclusive no superior, haja vista as especificidades que a diferenciam da escrita exigida na es- cola (Fernandéz; Carlino, 2010), bem como em outras esferas sociais. Nos últimos anos, tem crescido o interesse de pesquisadores bra- sileiros em focalizar a escrita acadêmica como objeto de investigação, sob diferentes perspectivas teórico-metodológicas, a exemplo da abor- dagem dos letramentos acadêmicos, à qual também nos filiamos (Ma- rinho, 2010; Fiad, 2011, 2013, 2015, 2016, 2017; Fischer, 2007, 2010, 2011). Visando retroalimentar esses estudos, desenvolvemos uma pes- quisa intitulada O Lugar do Ensino de Escrita Acadêmica em Cur- sos de Graduação – ano I (PIBIC/UFCG/CNPq, 2018-2019), que integra uma pesquisa mais ampla – O ensino de escrita em contextos acadêmicos (UAL/PPGLE/UFCG) –, tendo como espaço de investi- gação os cursos de graduação ofertados pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), campus de Campina Grande. Ao analisarmos os fluxogramas de todos esses cursos, constata- mos que o ensino de escrita acadêmica está contemplado na maioria deles, dada a presença de pelo menos uma disciplina voltada para esse fim (Marcelino Silva; Silva, 2020). A exploração dos planos de cur- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 127 so dessas disciplinas nos permitiu identificar, nas seções referentes às ementas, conteúdos e referências, que o ensino de escrita está previsto nos currículos dos cursos selecionados tendo como principal objeto de ensino textos pertencentes a diferentes gêneros do discurso (Mar- celino Silva; Silva, 2020). O alcance desses resultados nos motivou investigar quais obje- tivos pedagógicos norteiam o ensino de escrita acadêmica na UFCG e qual(is) abordagem(ns) direciona(m) esse ensino. A fim de respon- der a essas indagações, delineamos dois objetivos específicos, a saber: 1) verificar qual(is) objetivo(s) pedagógico(s) norteia(m) o ensino de escrita previsto em planos de curso de disciplinas relacionadas ao ensi- no de escrita, ofertadas em diferentes cursos de graduação, da UFCG, campus de Campina Grande; e 2) identificar que abordagem(ns) de ensino de escrita pode(m) estar subjacente(s) a esses objetivos peda- gógicos. Fundamentos teóricos Para desenvolver nossa pesquisa sobre os objetivos pedagógicos norteadores do ensino de escrita acadêmica previstos em planos de curso, recorremos aos conceitos de currículo (Silva, 2005), planos de ensino (Vasconcelos, 2002; Tormenta; Figueiredo, 2010), objetivos pedagógicos (Libâneo, 2013) e abordagens de ensino de escrita acadê- mica (Lea; Street, 1998, 2014). Em relação ao primeiro conceito, currículo, filiamo-nos às dis- cussões educacionais fundamentadas em teorias críticas e pós-críticas Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 128 que entendem “o currículo [como] uma questão de saber, identidade e poder” (Silva, 2005, p.147). Em outras palavras, não se pode pensar que o currículo diz respeito apenas a conceitos técnicos e estáticos, tal como grade curricular e lista de conteúdos. Segundo Silva (2005), o currículo é uma construção social, que traz em si marcas das relações sociais e reproduz, culturalmente, as estruturas enraizadas em deter- minada sociedade. Partindo dessa compreensão, “a pergunta mais im- portante a se fazer não é “quais conhecimentos são válidos?”, mas sim “quais são considerados válidos? (Silva, 2005, p.148, grifos do autor). Ou seja, diante de determinado contexto sócio-histórico-cultural, o que é considerado mais importante para ensinar e aprender? No tocante ao segundo conceito, planos de ensino, comparti- lhamos das ponderações feitas por Tormenta e Figueiredo (2010) que destacam a importância de planejar e estabelecer um plano de ensino que sirva não só para atender às exigências institucionais,mas também como instrumento educacional que possibilite ao professor prever ações de ensino voltadas para o contexto social dos estudantes, assim como para definir e ordenar os objetivos delineados e as ações a serem tomadas. Dito de outro modo, a estruturação de um plano de ensino está atrelada não só a questões inerentes ao conhecimento técnico-educacional (objetivos, conteúdos e ações do planejamento e ensino), mas também ao contexto social dos alunos e a exigências institucionais, em consonância com a noção de currículo apresentada anteriormente (Silva, 2005). Assim, a estruturação de um plano de ensino se relaciona diretamente com o conceito de currículo, uma vez que o processo de educação escolar, por ser intencional e sistemático, exige a elaboração e a realização de um programa de experiências peda- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 129 gógicas, sendo o currículo esse conjunto de experiências realizadas em sala de aula (Vasconcelos, 2002). Nesse sentido, espera-se que os obje- tivos pedagógicos delineados em currículos educacionais considerem as variáveis próprias do contexto escolar/acadêmico, social e cultural no qual estão previstos. No que diz respeito ao terceiro conceito, objetivos pedagógicos, recorremos a Libâneo (2013), para quem os objetivos educacionais são uma exigência indispensável, tanto no planejamento escolar quan- to no desenvolvimento das aulas. Sendo assim, a escolha desses objeti- vos requer um posicionamento crítico, claro e consciente do professor quanto aos propósitos que se pretende alcançar na abordagem de de- terminados objetos de ensino. Para Libâneo (2013), os objetivos edu- cacionais possuem três referências para sua formulação: 1) os valores e ideias determinadas por instituições educacionais; 2) os conteúdos básicos das ciências; e 3) as necessidades e expectativas de formação cultural. Essas referências não podem ser tomadas isoladamente, pelo contrário, deveriam ser articuladas. Os objetivos delineados em planos ou projetos de ensino evidenciam, assim, as intenções do docente e de determinada sociedade, materializadas, linguisticamente, a partir do uso de verbos que indicam as ações dos alunos. Quanto ao quarto e último conceito, abordagens de ensino de es- crita acadêmica, fundamentamo-nos nas três abordagens identificadas por Lea e Street (1998, 2014), quando da realização de uma pesquisa em universidades do Reino Unido sobre esse objeto de investigação, quais sejam: 1) habilidades de estudo; 2) socialização acadêmica e 3) letramentos acadêmicos. Na primeira abordagem, os autores definem a escrita como um Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 130 conjunto de habilidades cognitivas e individuais (regras gramaticais, sintáticas e normativas) que os estudantes precisam se apropriar, a fim de garantir sua competência escrita e produzir quaisquer textos, em quaisquer situações sociais. Na segunda abordagem, os pesquisa- dores definem a escrita como um conjunto de habilidades e normas específicas de um contexto, tais como a forma de ler, falar, escrever, raciocinar, materializadas em gêneros e discursos que são produzidos e circulam nas diferentes áreas e disciplinas. Já na terceira abordagem, para além e em adição às duas anteriormente mencionadas, Lea e Stre- et (1998) definem a escrita como uma prática social e situada, cujos processos envolvidos são considerados complexos, dinâmicos e con- textualizados, abrangendo questões epistemológicas e institucionais. Nessa abordagem, defendida pelos autores, há o interesse pela atribui- ção de significados à escrita feita por aqueles que a usam (professores, alunos, pesquisadores), pelas relações que estabelecem com ela, bem como pelas questões de identidade, poder e autoridade que subjazem a tais relações. Com base nesses conceitos, voltamos nosso olhar para os obje- tivos pedagógicos presentes em planos de ensino de disciplinas dire- cionadas para o ensino de escrita acadêmica na graduação, buscando conhecer o que é considerado válido nesse ensino e que abordagens o fundamentam. Fundamentos metodológicos Desenvolvemos nossa pesquisa à luz dos princípios norteadores Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 131 do paradigma interpretativo, uma vez que, para a análise dos dados, levamos em consideração suas peculiaridades, contemplando-os sob uma perspectiva dinâmica e multilateral. De acordo com Moreira e Caleffe (2008, p. 61), o propósito da pesquisa no âmbito do paradig- ma interpretativo é “descrever e interpretar o fenômeno do mundo em uma tentativa de compartilhar significados com outros”. Desse modo, nessa pesquisa, não há a preocupação em encontrar certezas sobre o que está sendo estudado, tampouco em fazer generalizações a partir das particularidades exploradas. Busca-se, na verdade, inter- pretar as ações humanas, entendendo-as como dotadas de significados sociais e intenções (Moreira; Caleffe, 2008). No âmbito desse paradigma, lançamos mão da abordagem quali- tativa, uma vez que não estamos interessados na expressão quantitativa ou numérica dos dados, mas buscamos uma compreensão ampla do fenômeno estudado, considerando o ambiente e a realidade na qual fo- ram obtidos (Godoy, 1995). Ademais, conforme Godoy (1995, p.63), os pesquisadores qualitativos “partem de questões ou focos de interesse amplos, que vão se tornando mais diretos e específicos no transcorrer da investigação”. No caso da nossa pesquisa, almejamos identificar quais objetivos pedagógicos são indicados para o ensino de escrita na UFCG, buscando compreender os possíveis significados dessas indicações. Em conformidade com a abordagem referida acima, desenvolve- mos uma pesquisa de natureza documental. Nesse tipo de pesquisa, há “o exame de materiais de natureza diversa, que ainda não receberam um tratamento analítico, ou que podem ser reexaminados, buscando- -se novas e/ ou interpretações complementares” (Godoy, 1995, p.21). Desse modo, podemos perceber que a fonte de dados desse tipo de Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 132 pesquisa é o “papel” e o tratamento analítico a ser dado dependerá dos objetivos que foram previamente traçados (Gil, 2008 [1987]). No caso da pesquisa em tela, selecionamos como fonte de dados planos de curso de disciplinas voltadas para o ensino de escrita em cursos de graduação da UFCG. O corpus selecionado para o estudo, o qual faz parte do banco de dados da pesquisa do PIBIC/UFCG/CNPq (2018/2019) supramen- cionada na introdução deste capítulo, constitui-se de quatorze (14) planos de curso de disciplinas contempladas na grade curricular de diferentes cursos ofertados pela UFCG, campus de Campina Grande, cujas nomeações indicam que se trata de componentes curriculares voltados para o ensino de escrita, a exemplo de Análise e produção de textos acadêmicos, Leitura e produção de textos, Leitura e produção de textos acadêmicos II, Prática de Produção Textual, Prática de lei- tura e escrita de texto acadêmico, Língua Portuguesa I e II, Português Instrumental, Português I e II e Leitura e Produção de Textos Filosó- ficos I, II, III e IV. Vale ressaltar que o processo de obtenção desses da- dos ocorreu a partir do envio de e-mail ou contato presencial com os coordenadores, secretários e/ou professores dos cursos de graduação, sob pedido prévio de que nos fosse repassado os planos de curso mais recentes – entre 2015 e 2018. Por fim, adotamos a metodologia analítica da análise de conte- údo (Bardin, 2002 [1977]), na exploração dos dados, lançando mão dos procedimentos que caracterizam essa metodologia, quais sejam: unitarização (selecionar e unificar o conteúdo), categorização (trans- formar as unidades em categorias de análise), descrição (descrever os resultados) e interpretação (reflexão aprofundada sobre os resultados Produçãode textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 133 alcançados) (Bardin, 2002 [1977]). Objetivos pedagógicos previstos em planos de curso: para que ensinar escrita acadêmica? Nesta seção, apresentamos uma síntese dos resultados alcança- dos, quando da análise dos objetivos pedagógicos previstos nos pla- nos de curso selecionados. Para tanto, organizamos a análise em duas categorias: 1) abordagem pura – habilidades de estudo; e 2) aborda- gem mista – socialização e letramentos acadêmicos. Fizemos essa cate- gorização tomando como base o nível de recorrência das abordagens identificadas em cada sequência de objetivos pedagógicos apresenta- dos nos planos de curso: consideramos pura a sequência de objetivos pedagógicos que apontava para apenas uma abordagem de ensino de escrita e mista, mais de uma abordagem. Vale salientar que denomina- mos de “sequência de objetivos pedagógicos” os objetivos elencados na íntegra, nos planos de curso em análise. Das quatorze (14) sequência de objetivos pedagógicos contem- pladas nos respectivos quatorze planos de curso analisados, incluímos oito (8) na categoria pura e seis (6), na mista. Nas subseções a seguir, apresentamos dois exemplos representativos de uma sequência de ob- jetivos pedagógicos, cada qual ilustrativo dessas duas categorias. Na primeira subseção, intitulada “Domínio de estratégias, regras e nor- mas”, apresentamos um exemplo de sequência de objetivos que evi- dencia a categoria pura – habilidades de estudo. Na segunda, deno- minada “Análise estrutural de textos acadêmico-científicos e reflexões Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 134 sobre seu uso”, explicitamos a categoria mista – socialização acadêmi- ca e letramentos acadêmicos. Domínio de estratégias, regras e normas Nesta subseção, apresentamos um exemplo representativo da ca- tegoria pura – habilidades de estudo a partir de uma sequência de ob- jetivos pedagógicos inclusa em um dos quatorze (14) planos de curso analisados. A fim de visualizar esses dados, vejamos o quadro 1: Quadro 1: Sequência de objetivos pedagógicos inclusos na categoria pura Categoria pura – habilidades de estudo Leitura e produção de textos filosóficos II Estimular o aluno à aplicação da norma culta da língua vernácula e aquisição das competências concernente a redação de textos dissertativo- argumentativos; Dominar estratégias de leitura e produção textual; Redigir, atendendo a normas técnicas específicas, bem como as exigências da língua-padrão, resenha crítica. Fonte: a autora (2019). No quadro 1, apresentamos a sequência de objetivos de um plano de curso referente à disciplina Leitura e Produção de Textos Filosófi- cos II. Subjacente à sequência desses objetivos parece estar a aborda- gem habilidades de estudo, tendo em vista a seleção dos verbos que os Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 135 introduzem – “estimular”, “dominar” e “redigir” – associada às ações esperadas dos estudantes – “aplicação da norma culta”, “estratégias de leitura e produção textual”, “normas técnicas e exigências da língua padrão”, respectivamente. Com base na sequência desses objetivos, percebemos que é requerido do estudante de escrita acadêmica a habi- lidade de dominá-la em seus aspectos estruturais (interesse pelo ensino de “estratégias”), gramaticais e normativos. Sugere-se, assim, a compre- ensão de escrita como uma atividade cognitiva e individual, passível de ser mobilizada para diferentes contextos, em consonância com as pre- missas da abordagem habilidades de estudo (Lea; Street, 1998). Essa constatação pode nos leva a pensar que o ensino de escrita acadêmica parece ser contemplado, pelo menos nos planos de cursos inclusos nessa categoria, sob uma perspectiva universal, homogênea e individual, em que os estudantes devem dominar estratégias, regras e normas institucionalmente estabelecidas para obter sucesso na pro- dução textual. Análise estrutural de textos acadêmico-científicos e reflexões sobre seu uso Nesta subseção, explicitamos um exemplo representativo da cate- goria mista – socialização acadêmica e letramentos acadêmicos –, cuja sequência de objetivos pedagógicos sinaliza mais de uma abordagem de ensino de escrita, conforme o quadro 2: Quadro 2: Sequência de objetivos pedagógicos em plano de curso Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 136 Categoria mista – socialização acadêmica e letramentos acadêmicos Análise e produção de textos Analisar a estrutura textual dos gêneros acadêmicos científicos, relacionando- os aos seus propósitos comunicativos; Subsidiar a análise e produção de textos acadêmico-científicos de diferentes gêneros; Promover a reflexão sobre a função dos gêneros textuais acadêmico-científicos enquanto veículos de produção e difusão do saber científico. Fonte: a autora (2019). No quadro 2, apresentamos os objetivos que constam de um plano de curso referente à disciplina Análise e produção de textos. Subjacente aos dois primeiros objetivos dessa sequência, parece es- tar a abordagem da socialização acadêmica, visto demandarem dos estudantes de escrita acadêmica a capacidade de analisar a estrutura de textos acadêmico-científicos. Provavelmente, espera-se que, saben- do analisar a estrutura desse tipo de texto, os estudantes terão mais chances de se familiarizar com a escrita que é produzida e circula na academia, já que os textos acadêmico-científicos “constituem a rede de formas textuais tipificadas correspondentes à esfera da educação supe- rior e da investigação científica” (Swales, 2004 apud Navarro, 2019, p.17, tradução nossa). Assim sendo, a sequência desses dois primeiros objetivos sugere interesse dos docentes de que os discentes possam se inserir na cultura acadêmica a partir da análise da estrutura dos textos específicos dessa esfera. A apropriação desse conhecimento estrutural poderá favorecer aos estudantes reproduzi-lo em outras situações em Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 137 que tais textos forem demandados. Tal sequência de objetivos sugere, portanto, que a escrita será focalizada a partir da abordagem da sociali- zação acadêmica (Lea; Street, 1998), dado o foco na familiarização dos estudantes com os textos acadêmico-científicos. Já em relação ao terceiro objetivo pedagógico que consta da se- quência focalizada, podemos inferir a abordagem dos Letramentos Acadêmicos, haja vista o interesse em “promover reflexão sobre a fun- ção dos gêneros textuais acadêmico-científicos, enquanto veículos de produção e difusão do saber científico”. A proposição desse objetivo pedagógico sinaliza que o professor espera dos estudantes de escrita acadêmica algo que vá além do domínio de regras, normas e estrutu- ra, a saber: a reflexão sobre a função, a discussão sobre os significados de escrever textos acadêmico-científicos, as implicações de produzi- -los em um contexto de produção e divulgação de conhecimentos e saberes. Sugere-se, assim, compreensão de escrita como uma prática social, situada, em consonância com as premissas da abordagem dos letramentos acadêmicos, cujo cerne é refletir sobre a escrita, seus usos e questões mais amplas envolvidas (Street, 2010). Considerações finais Os objetivos específicos traçados para o estudo ora relatado fo- ram: 1) verificar qual(is) objetivo(s) pedagógico(s) norteia(m) o ensi- no de escrita previsto em planos de curso de disciplinas relacionadas ao ensino de escrita, ofertadas em diferentes cursos de graduação, da Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 138 UFCG, campus de Campina Grande; e 2) identificar que aborda- gem(ns) de ensino de escrita pode(m) estar subjacente(s) a esses obje- tivos pedagógicos. Em conformidade com esses objetivos delineados, mostramos que o ensino de escrita acadêmica, previstoem planos de curso de dis- ciplinas ofertadas em diferentes cursos de graduação da UFCG, é nor- teado a partir de diferentes objetivos pedagógicos e, consequentemen- te, diferentes abordagens de ensino de escrita, sendo a categoria pura a mais recorrente nos planos de curso analisados, com a abordagem socialização acadêmica predominante. Ilustramos esses resultados com a sequência de objetivos pedagó- gicos presente em dois planos de curso. O primeiro, referente à disci- plina Leitura e Produção de Textos Filosóficos II, é representativo da categoria pura – habilidades de estudo, uma vez que aponta para uma única abordagem de ensino: habilidades de estudo. Ao explorarmos a sequência de objetivos elencados nesse plano, evidenciamos que os objetivos giram em torno do domínio de aspectos gramaticais e nor- mativos. Já na análise da sequência de objetivos referente à disciplina Análise e produção de textos, evidenciamos a categoria mista – so- cialização acadêmica e letramentos acadêmicos, visto que nos indica- vam essas duas abordagens de ensino de escrita. Quanto à primeira, mostramos que o foco de ensino e seleção dos objetivos recai sobre a familiarização dos estudantes com a análise da estrutura de textos aca- dêmico-discursivos. Já em relação à segunda, o ensino de escrita parece ser contemplado como uma prática social e situada, pois ressalta-se a necessidade de refletir e reconhecer as funções da escrita científico-a- cadêmica, considerando as especificidades da esfera de produção e di- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 139 vulgação de conhecimentos e saberes em que se configura. Lea e Street (1998) defendem justamente que as abordagens de ensino de escrita não se excluem, mas se complementam. Por fim, esses resultados, frutos de uma análise documental, nos instigam a desenvolver estudos empíricos, por meio dos quais possa- mos nos aproximar da rotina acadêmica dos estudantes, investigando como de fato acontece o ensino de escrita em centros universitários, a partir das perspectivas dos próprios graduandos, à semelhança do que propõem Silva e Castanheira (2019). Referências BARDIN, F. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002 [1977]. 229 p. FERNÁNDEZ, G. 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Essas inquietações fundamentam-se em experiências vivenciadas nesses cur- sos em relação aos quais puderam ser percebidos diversos desafios en- frentados, seja pelos alunos, ao lidarem com a escrita acadêmica, seja pelos professores, ao ensinarem e avaliarem as escritas dos discentes. Na graduação, especificamente no curso de Letras Português, a aprovação dos estudantes em algumas disciplinas, bem como a ati- vidade final do curso estão predominantemente relacionadas à pro- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 143 dução de gêneros escritos específicos da academia. Ao evidenciarem particularidades no desenvolvimento dessa nova escrita, estudantes recém-ingressos nesse ambiente têm instigado pesquisadores a discu- tirem mudanças relacionadas tanto ao processo de desenvolvimento da escrita acadêmica quanto a práticas que orientam o ensino dessa escrita. Fischer e Dionísio (2011) salientam que é a própria universidade o espaço privilegiado para o desenvolvimento de habilidades relacio- nadas à construção da escrita acadêmica, pois a partir das disciplinas inseridas nos currículos dos cursos, os discentes vão adquirindo diver- sos conhecimentos do universo científico e em relação aos quais neces- sitam desenvolver novas habilidades relacionadas ao uso da linguagem e à construção da escrita a fim de se inserirem em práticas letradas aca- dêmicas. Mas, mesmo tendo esse aparato proposto nos currículos dos cursos, Vitoria e Christofoli (2013, p. 42, grifo dos autores) elencam outros aspectos que também devem ser considerados importantes, quando pensamos a escrita em contexto acadêmico: “os fundamentos epistemológicos que norteiam o trabalho docente, as escolhas didáti- co-metodológicas mais indicadas para realizar um trabalho de escrita consistente e as concepções que costumam cercar aquilo que se enten- de por boa escrita”. Essa linha de raciocínio proposta pelos autores lembra o traba- lho desenvolvido pelos pesquisadores Lea e Street (1998; 2014), ao conduzirem um projeto em universidades do Reino Unido, buscando compreender o que estava acontecendo com a escrita de estudantes em universidades britânicas. A partir desse estudo, os autores identi- ficaram diferentes formas de se conceber o ensino da escrita em con- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 144 texto acadêmico, dando visibilidade inclusive a aspectos didáticos-me- todológicos e a concepções que norteiam o ensino dessa escrita. Esses aspectos são muitas vezes questionados em contexto acadêmico, prin- cipalmente por parte dos docentes, que assumem o compromisso de ensinar a escrita acadêmica. Ao concebermos a escrita acadêmica como uma prática social si- tuada, com características específicas (Lea; Street, 1998), diferencian- do-se da escrita demandada em outras esferas discursivas, a exemplo da escolar (Fernandèz; Carlino, 2010), defendemos a necessidade de ensiná-la sistemática e explicitamente aos graduandos de todos os cursos, inclusive aos de Letras. Para tanto, entendemos ser pertinen- te considerar abordagens de ensino de escrita visibilizadas nos vários trabalhos que perpassam a ação docente: o prescrito, o planificado e o realizado (Machado, 2002). Em razão disso e tendo como espaço investigativo uma discipli- na ofertada para estudantes calouros do curso em tela - Iniciação à Leitura e Produção de Textos Acadêmicos (ILPTA) -, delimitamos como objetivos deste capítulo: (1) Identificar abordagem(ns) de ensi- no de escrita acadêmica subjacente(s) ao trabalho prescrito na ementa da disciplina ILPTA; (2) Mapear abordagem(ns) de ensino de escrita acadêmica norteadora(s) do trabalho planificado no plano de curso da professora Morgana1, ministrante de ILPTA; (3) Comparar aborda- gem(ns) de ensino de escrita acadêmica identificada(s) nos trabalhos prescrito e planificado com a(s) inferida(s) no trabalho realizado por Morgana. 1 Esse nome é fictício. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 145 Este capítulo2 está organizado em quatro seções excetuando esta introdução. Na primeira seção, apresentamos os fundamentos teóricos da pesquisa - abordagens de ensino de escrita acadêmica (Lea; Street, 1998; 2014) e trabalhos prescrito, planificado e realizado (Machado, 2002). Na segunda seção, explicitamos a metodologia da pesquisa, situando-a no âmbito da Linguística Aplicada, do paradigma interpretativo e da tipologia de estudo de caso. Apresentamos também o contexto da pesquisa e os procedimentos de geração e de tratamento de dados. Na terceira seção, exploramos os dados gerados - ementa da disciplina ILPTA, plano de curso dessa disciplina elaborado pela professora Morgana e relatos de experiência dessa professora apresentados em entrevista semiestruturada. Na última seção, tecemos nossas considerações finais. Abordagens de ensino de escrita acadêmica: do trabalho prescrito ao realizado No âmbito das discussões promovidas nos Novos Estudos do Le- tramento, Lea e Street (1998), assumindo a concepção de letramento como prática social situada e diversa em seus significados, desenvolve- ram uma pesquisa, em universidades no Reino Unido, com o intuito de analisar o que e como a escrita estava sendo desenvolvida e signi- ficada pela comunidade acadêmica, no contexto universitário inglês. 2 Neste capítulo de livro, apresentamos uma parte dos resultados alcançados em uma pesquisa mais ampla, aprovada pelo Comitê de Ética, conforme Parecer Consubstanciado CAAE. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 146 Os autores citados observaram uma inquietação por parte de professores, ao lidarem com alunos que adentravam nas universida- des com uma grande “defasagem de escrita”. Para esses docentes, tal “defasagem” gerava uma crise nas universidades, uma vez que havia na época, em 1990, uma grande expansão do acesso aoensino supe- rior no Reino Unido, após a implementação de políticas públicas de ampliação desse acesso. A partir dessas políticas, tanto houve aumento nas universidades de estudantes locais, pertencentes a grupos minori- tários, como também de estudantes de outros países. Essa diversidade linguística, social e cultural era utilizada nos discursos da época como causadora dessa crise. Porém, Lea e Street (1998), apesar de reconhecerem os impactos que tais mudanças tra- ziam para o ensino da escrita, acreditavam que os problemas não eram causados por questões individuais dos alunos, mas que havia então uma necessidade de se investigar aspectos mais amplos que perpassam a escrita acadêmica. Assim, realizaram uma pesquisa etnográfica ob- servando grupos de professores e alunos, visando a analisar, não a qua- lidade da escrita, mas as expectativas desses atores em relação à mesma. A partir dos resultados, os autores identificaram três modelos/abor- dagens de escrita no meio acadêmico, denominados por eles de habi- lidades de estudo, socialização acadêmica e letramentos acadêmicos. No modelo das habilidades de estudo, identificado por Lea e Stre- et (1998), destaca-se uma visão mais descritiva da escrita, por focalizar elementos superficiais da linguagem. O foco está nos aspectos formais da escrita como a estrutura gramatical, a pontuação, a ortografia, a estrutura de sentenças, que os alunos precisam aprender e desenvolver para, posteriormente, fazer uso em contextos mais amplos, como na Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 147 universidade. Nesse modelo, cabe apenas ao aluno a responsabilidade de desenvolver essa habilidade, e qualquer insucesso relacionado ao não desenvolvimento dessa escrita é também de sua responsabilidade. No modelo de socialização acadêmica, segundo Lea e Street (1998; 2014), busca-se induzir os alunos a uma nova “cultura”, a da universidade. O ensino de escrita inclui instruções sobre as estruturas dos gêneros que são valorizados na academia: resumo; resenha; arti- go científico; ensaio e etc. Entende-se também que os alunos, em um processo interativo – contato com outros mais experientes –, tendem a apropriar-se dessa escrita, além dos direcionamentos apontados pe- las disciplinas e pela própria universidade. Os alunos são instruídos a se familiarizarem com cultura acadêmica, nesse caso, tida como ho- mogênea, com normas e práticas que precisam ser aprendidas para que possam corresponder às demandas da instituição. As fontes dessa perspectiva estão na psicologia social, na antropologia e na educação construtiva. Assim, diferentemente da abordagem habilidades de es- tudo, em que o foco está em aspectos formais da língua, nesta, o foco está nos gêneros específicos da cultura acadêmica. Com uma concepção mais ampla de escrita e ensino de escrita, Lea e Street (1998; 2014) apresentam o modelo dos letramentos aca- dêmicos. Nessa abordagem, entende-se a escrita do aluno como uma prática social complexa em que tanto o modelo de habilidades quanto o de socialização acadêmica são considerados necessários para que essa escrita do aluno atenda aos critérios estabelecidos pela universidade. No entanto, há uma preocupação também com os sentidos, valores e crenças que estudantes, professores e a instituição constroem e atri- buem às práticas de escrita. Assim, nessa concepção, o ensino é realiza- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 148 do não somente pelo professor mas na e a partir da interação entre os sujeitos envolvidos nesse processo. Analisando os três modelos identificados através do estudo rea- lizado por Lea e Street (1998), Lillis e Scott (2007) afirmam que no Reino Unido havia uma prevalência do ensino de escrita nas institui- ções de Ensino Superior tendo como base modelos de habilidades e de socialização acadêmica. Para essas pesquisadoras, a não utilização do modelo de letramentos acadêmicos no ensino da escrita reforçava a visão equivocada de que havia uma homogeneidade dos discentes, apesar de toda a diferença cultural dos mesmos. Reforçava ainda a prevalência das disciplinas engessadas e da posição do professor como único detentor do saber. Cabe destacarmos inclusive que o trabalho do professor passou a ser o lócus de investigação de vários pesquisadores. Trata-se de pesquisas cujo objetivo é o de explorar o modo como se realiza esse trabalho e de que forma pode ser modificado em busca de melhorias para o ensino. Considerando a prática efetiva da atividade do professor, Bron- ckart (2006) lança mão de correntes teóricas que apresentam duas perspectivas acerca do trabalho: o trabalho real e o trabalho prescri- tivo. Segundo o autor, o trabalho prescritivo é definido como “uma representação do que deve ser trabalhado, que é anterior à sua realiza- ção efetiva; portanto os projetos didáticos, os programas, os manuais e as sequências didáticas pertencem a esse nível” (Bronckart, 2006, p. 208). Essa afirmação proposta pelo autor sinaliza a dimensão do tra- balho prescrito. Desse modo, compreendemos que o trabalho prescrito é o que deve ser trabalhado. É elaborado e construído por instituições com Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 149 instruções que direcionam o trabalho do professor. Em contexto aca- dêmico, o Projeto Político Pedagógico de um curso e as ementas das disciplinas, por exemplo, são documentos institucionais que orien- tam o trabalho do professor, configurando-se, assim, como exemplos de trabalho prescrito. Já o trabalho real refere-se às diversas atividades desenvolvidas pelo trabalhador em situações concretas de trabalho, a exemplo de textos produzidos no momento da realização da atividade docente, da apresentação e explicação dos elementos que giram em torno do gêne- ro trabalhado, a retomada desse gênero, novas propostas de ensino e reflexões sobre o trabalho em sala de aula. Nessa perspectiva, Bronckart (2006) apresenta o trabalho pres- crito como as metas institucionais em relação ao trabalho do profes- sor, e o trabalho realizado, referindo-se às ações realizadas pelo docen- te a fim de atingir suas metas. Podemos ter acesso a esse trabalho rea- lizado através da verbalização dos próprios professores acerca de suas expectativas, impressões, facilitadores e entraves durante o processo de realização da sua atividade prática. Ao compreendermos em pro- fundidade esses aspectos subjetivos do trabalho dos professores, que são atores importantíssimos no processo do planejamento/ação do ensino-aprendizagem, poderemos (re)pensar mudanças que de fato tragam uma repercussão efetiva nesse processo. Machado (2002), por sua vez, defende que, além dos trabalhos prescrito e realizado, o professor lida também com o trabalho plani- ficado, que fica entre esses dois. Para ela, à semelhança de Bronckart (2006), o trabalho prescrito é “conjunto de normas e regras, textos, programas e procedimentos que regulam as ações e trabalho realiza- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 150 do “conjunto de ações efetivamente realizadas” (Machado, 2002, p.3- 4). Ressalta que, para a realização de qualquer atividade de trabalho, o sujeito encontra-se diante de restrições propostas por instituições, dando assim instruções iniciais e procedimentais relativas ao que deve ser realizado. Assim, “prefiguram as ações do trabalhador” São nessas instruções pré-figurativas que uma nova categoria do trabalho pode ser definida: o planificado. O trabalho planificado diz respeito ao lugar no qual encontramos os objetivos e as ações projetadas pelo próprio trabalhador, ou seja, pelo professor. A execução dessa planificação re- sultará no trabalho realizado que pode, na prática, não coincidir total- mente com o que estava prescrito e planificado. Seguindo essa linha de raciocínio, estamos diante de três catego- rias referentesao trabalho do professor: prescrito, planificado e reali- zado (Machado, 2002). A primeira está vinculada a normas, à hierar- quia; a segunda, a ações planejadas com propósitos e objetivos a serem alcançados e a última, por sua vez, ao efetivamente realizado. No caso do nosso estudo, tomamos a ementa da disciplina ILP- TA, como o trabalho prescrito institucionalmente; os planos de curso dessa disciplina, como o trabalho planificado pela professora Morga- na e as experiências dessa professora em ILPTA, como o trabalho re- alizado por ela. Metodologia da pesquisa Nossa pesquisa está situada no campo da Linguística Aplicada (LA), dado o nosso compromisso com as vivências dos professores, Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 151 suas práticas de ensino de escrita acadêmica, contextualizadas nos tra- balhos que regem o seu ofício: prescrito, planificado e realizado. Se- gundo Moita Lopes (2006), a LA precisa ter algo a dizer sobre o mun- do para os sujeitos que o habitam, ou seja, não pode estar dissociada da prática, ignorando as vozes dos que a vivem, de quem conhece o seu próprio contexto de uso linguístico, observa problematizações nele e quer investigá-las. Pensando nos significados que docentes atribuem às suas expe- riências com o ensino de escrita acadêmica e nas contribuições que mobilizam para a produtividade desse ensino, optamos por uma abor- dagem qualitativa (Silveira; Córdova, 2009) de nosso objeto de estu- do, delimitado, neste capítulo, à luz de um estudo de caso, entendido como um tipo de pesquisa cujo objetivo é investigar um contexto um particular ou uma “entidade bem definida” (Paiva, 2019). O corpus de pesquisa explorado neste capítulo, que integra o banco de dados de uma investigação mais ampla, constitui-se de dados advindos de três instrumentos, a saber: (1) ementa da disciplina ILP- TA, ofertada para estudantes recém-ingressos no curso de Letras Por- tuguês, de uma universidade situada no nordeste brasileiro; (2) plano de curso dessa disciplina elaborado pela professora Morgana, doutora e mestra em linguística Aplicada e (3) registros de transcrição de entre- vista semiestruturada realizada com a professora referida. Quanto à análise desse corpus, nós a realizamos tomando como ponto de partida, para a identificação das abordagens de escrita aca- dêmica, objetos de ensino — “porções dos conteúdos discursivos e/ ou gramaticais [...] que tem o gênero como megaobjeto de ensino de língua” (Lino de Araújo, 2014, p. 16) — contemplados nos trabalhos Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 152 prescrito, planificado e realizado em ILPTA. A partir dessa identifica- ção, adotamos a técnica de triangulação de dados (Marcondes; Brisola, 2014), a fim de atendermos aos objetivos de nossa pesquisa. Ensino de escrita acadêmica na disciplina ILPTA: trabalho previsto, planificado e realizado Baseadas nos objetivos elencados neste capítulo, organizamos esta seção em três subseções: na primeira subseção, apresentamos o que consta da ementa de ILPTA e a abordagem de ensino subjacen- te, para caracterizar o trabalho prescrito nessa disciplina; na segunda, exploramos os objetivos pedagógicos que constam do plano de cur- so de ILPTA elaborado pela professora Morgana, a fim de focalizar o trabalho planificado para o ensino de escrita acadêmica; na terceira subseção, analisamos a voz da docente no que se refere ao trabalho realizado em ILPTA. Trabalho prescrito para o ensino de escrita acadêmica: uma análise da ementa da disciplina ILPTA Ao termos acesso ao projeto político pedagógico do curso de Le- tras Português investigado, identificamos a ementa proposta para a disciplina ILPTA, a saber: Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 153 Figura 1: Ementa da disciplina ILPTA Os gêneros textuais de natureza acadêmica: características formais e sociodiscursivas; leitura e produção dos diversos gêneros textuais que circulam no meio acadêmico. Fonte: Banco de dados 2023. Ao observarmos a Fig. 01, percebemos que a ementa de ILPTA se inicia com o tópico frasal “Os gêneros textuais de natureza acadê- mica”. Essa menção inicial já sinaliza o trabalho prescrito (Machado, 2002) para essa disciplina, qual seja, o de ter como objetos de ensino gêneros textuais que “circulam no meio acadêmico”. Em outras pala- vras, o que está indicado como trabalho prescrito não é a abordagem de quaisquer gêneros, mas a de gêneros “de natureza acadêmica”, “que circulam no meio acadêmico”. Essa delimitação do trabalho prescrito com gêneros textuais aca- dêmicos se ratifica na sequência do conteúdo exposto na ementa, visto a indicação dos aspectos a serem focalizados nesses gêneros: “caracte- rísticas formais e sociodiscursivas”, “leitura” e “produção”. Ao considerarmos a natureza desses objetos contemplados na ementa de ILPTA, podemos inferir que a abordagem de ensino de escrita socialização acadêmica (Lea; Street, 1998) está subjacente ao trabalho prescrito nessa disciplina. A formulação da ementa sugere o interesse da instituição em promover o processo de familiarização dos discentes recém-ingressos na universidade com os textos que circulam nessa esfera discursiva da qual eles estão começando a participar, já que são discentes do primeiro período do curso de letras. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 154 Tendo analisado o trabalho prescrito para a disciplina ILPTA, exploramos, na subseção a seguir, o trabalho planificado pela docente Morgana. Trabalho planificado para o ensino de escrita acadêmica: uma análise de abordagens de ensino em plano de curso da disciplina ILPTA Nesta subseção, analisamos o trabalho planificado para o ensino de escrita acadêmica a partir dos objetivos pedagógicos elencados no plano de curso elaborado pela professora Morgana, quais sejam: Figura 2: Objetivos de ILPTA - Preparar os alunos para atuarem através de textos escritos e orais no meio acadêmico; - Reconhecer as diferenças entre gêneros textuais e tipos textuais; - Identificar gêneros acadêmicos; - Criar condições para a escrita de resenhas, de acordo com as normas da ABNT, levando em conta a estrutura do trabalho. - Desenvolver competências e habilidades de leitura, produção e apresentação de textos acadêmicos. - Iniciar o aluno do Curso de Letras na Investigação Científica, preparando-o para elaborar textos científicos diversos, além de melhor instrumentá-lo para trabalhos metodológicos de graduação. Fonte: Banco de dado (2023). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 155 Ao analisarmos os objetivos indicados na Fig. 02, podemos inferir os objetos planificados para o ensino de escrita acadêmica: “gêneros”, “tipos de textos”, “normas da ABNT”, “resenhas”, “textos científicos diversos” e “estrutura do trabalho”. Não é explicitado a que se refere essa “estrutura do trabalho”. Sendo assim, pode estar relacionada a diferentes aspectos da escrita, tais como: composição textual (introdu- ção, desenvolvimento e conclusão), fatores de textualidade (coerência, coesão), linguagem, ortografia, entre outros. A recorrente menção a objetos de ensino que giram em torno de gêneros acadêmicos evidencia a presença da abordagem socialização acadêmica (Lea; Street,1998, 2014). Soma-se a isso o interesse em fa- miliarizar/socializar os estudantes com práticas acadêmicas, conforme sugerem os verbos que introduzem o primeiro e o último objetivos elencados por Morgana: “Preparar os alunos para atuarem através de textos escritos e orais no meio acadêmico” e “Iniciar o aluno do Curso de Letras na Investigação Científica, preparando-o para elaborar tex- tos científicos diversos, além de melhor instrumentá-lo para trabalhos metodológicos de graduação”, respectivamente. Constatamos, assim, que o trabalho planificado pela professora está emconsonância com o trabalho prescrito na ementa da disciplina ILPTA, visto o foco na abordagem de gêneros acadêmicos e aspectos associados. No entanto, observamos que, além da socialização acadêmica, a abordagem habilidades de estudo também pode ser inferida do traba- lho planificado em análise, sobretudo no quarto objetivo pedagógico que consta do plano de curso de Morgana: “Criar condições para a escrita de resenhas, de acordo com as normas da ABNT, levando em conta a estrutura do trabalho.” A menção à ABNT e à “estrutura do Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 156 trabalho” nos leva a inferir que aspectos relacionados à superfície da escrita também são considerados no ensino de escrita acadêmica, no caso em tela, no ensino de resenha. Trabalho realizado no ensino de escrita acadêmica: uma análise de experiências da docente Morgana Ao analisarmos a entrevista concedida pela professora Morgana, identificamos algumas experiências de ensino consideradas mais mar- cantes por ela, no tocante ao trabalho realizado na disciplina ILPTA. Essas experiências estão centradas principalmente no trabalho com dois gêneros acadêmicos: resenha e resumo. Em seu relato sobre resenha acadêmica, a professora Morgana demonstra postura sensível frente ao processo de ensino e aprendi- zagem desse gênero. Ciente da complexidade que envolve a produção de gêneros acadêmicos, ela opta por iniciar a disciplina com a resenha, embora a menção a esse gênero não conste do seu trabalho planifica- do. No entanto, antes de ensiná-la, ela focaliza a resenha publicada na esfera jornalística, por ser mais conhecida dos estudantes: Excerto 01 A escolha desse gênero [a resenha] partiu porque ele está ali no entremeio entre ser um gênero jornalístico e um gênero acadêmico [...]. Primeiro, eu parti desse mais cotidiano e depois eu levei um exemplo de resenha feita a partir deste livro [a participante mostrou, na entrevista, o livro Preconceito Linguístico, de Marcos Bagno]. Aí a gente realizou a leitura Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 157 desse gênero. Vimos a estrutura e também aspectos relativos à organização da linguagem, objetivo, e tudo mais... circulação do gênero. Depois que eu apresentei esse gênero mais específico da academia, aí eu solicitei a escrita de uma resenha [...]. Eles tiveram um tempo para ler o livro. Também a gente já havia trabalhado com o gênero fichamento. Aí eu pedi para eles irem lendo o livro e realizando o fichamento do livro. [...]. Aí eles produziram uma primeira versão que eu corrigi. Aí depois passei para a monitora e a monitora vai ficar responsável por dar as orientações e correções para eles. Depois eles vão me entregar uma segunda versão desse trabalho. Então, entendo justamente que a escrita acadêmica é um processo lento gradual e que um texto acadêmico está sempre em construção, em melhoria [...] (Trecho da entrevista realizada com Morgana, em 23/06/2022). Podemos observar, no excerto apresentado, de que forma Mor- gana explora o gênero resenha. Ela começa abordando os contextos de produção desse gênero: configura-se tanto na esfera jornalística, quanto na acadêmica. Ao fazer essa escolha, a docente parte dos co- nhecimentos adquiridos pelos estudantes, ou seja, valoriza o que eles já sabem, em conformidade com princípios da abordagem dos letra- mentos acadêmicos (Lea; Street, 1998). Na sequência, Morgana inicia o trabalho com o gênero a ser aprendido pelos discentes, a resenha acadêmica. Leva para a sala de aula um exemplar desse gênero a fim de que possa lê-lo junto com os seus alunos. Ao fazê-lo, alguns objetos de ensino, de natureza distin- ta, se destacam na fala da docente: estrutura do gênero, organização da linguagem, aspectos dos contextos de produção (objetivos) e cir- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 158 culação. Podemos observar que Morgana demonstra o interesse em familiarizar os discentes com o contexto de produção e a estrutura do gênero resenha, alinhando-se ao que está previsto na abordagem socialização acadêmica (Lea; Street, 1998), e com os aspectos linguís- ticos que marcam esse gênero, conforme demandado na abordagem habilidades de estudo (Lea; Street, 1998). Morgana também anuncia um lugar no ensino da resenha para a reescrita do texto “Aí eles pro- duziram uma primeira versão que eu corrigi [...] Depois eles vão me entregar uma segunda versão desse trabalho”, dando indício de ensino de escrita como processo (Ivanic, 2004). Depois de realizar o trabalho com o gênero em sala de aula, Mor- gana solicita aos seus alunos que produzam uma resenha do livro Pre- conceito Linguístico, de Marcos Bagno. Para auxiliá-los nesse processo de escrita, recomenda-lhes que elaborem um fichamento, gênero não previsto no trabalho planificado, mas, segundo seu relato, foi contem- plado no trabalho realizado por ela — “Também a gente já havia tra- balhado com o gênero fichamento”. Em seguida, a primeira versão do texto seria lida e corrigida pela monitora da turma e somente a versão final seria apreciada pela docente. No entanto, Morgana esclarece que antes de todo esse trabalho com as resenhas, Excerto 02 Primeiramente trabalhamos [na disciplina Iniciação à leitura e produção de textos acadêmicos] com leituras específicas de textos acadêmicos, fazendo com que eles [os alunos] compreendam a estrutura da linguagem argumentativa, da linguagem voltada para conceitos, ideias. Então, esse primeiro momento da leitura foi voltado para isso e posteriormente Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 159 passamos para a escrita. Agora eles estão produzindo a resenha utilizando esses conceitos que foram trabalhados. Além disso, a gente termina tendo que passar por alguns aspectos relacionados à norma culta porque muitos alunos saem do Ensino médio com alguns déficits. Então, estamos trabalhando com alguns conceitos da Norma Culta a partir da produção deles e nesse momento eles estão trabalhando esses aspectos da norma culta voltados para a escrita com a monitoria. Nessa disciplina, temos uma monitora e ela foi orientada a dar atendimentos para estes alunos principalmente voltados para a norma culta e também estamos trabalhando com operadores argumentativos, coesão textual, para que eles compreendam estes elementos de ligação do texto acadêmico. (Trecho da entrevista realizada com Morgana, em 23/06/2022). Nesse trecho, Morgana cita outros objetos de ensino contem- plados no processo de abordagem do gênero resenha. Segundo ela, primeiramente, é trabalhada a leitura de textos relativos à “estrutura da linguagem argumentativa, da linguagem voltada para conceitos, ideias”. A focalização desses objetos funciona como uma preparação para o momento da escrita da resenha, visto que nesse gênero será preciso argumentar e apresentar conceitos. No final do processo, Morgana menciona outros objetos de ensino focalizados a partir dos próprios textos produzidos pelos discentes: a norma culta — “a gente termina tendo que passar por alguns aspectos relacionados à norma culta porque muitos alunos saem do Ensino médio com alguns défi- cits” —, “operadores argumentativos” e “coesão textual”. A menção a esses objetos de ensino reforça que, subjacente ao ensino do gênero re- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 160 senha, no contexto investigado, está, além da socialização acadêmica, a abordagem habilidades de estudo (Lea; Street, 1998). A docente Morgana, embora não tenha mencionado o gênero resumo em seu trabalho planificado, relatou, na entrevista, o trabalho realizado com esse gênero, em sala de aula : Excerto 03 Primeiramente, faço com que eles leiam resumos. Então, a gente vai ler resumos de artigo científico, de teses, dissertações e no resumo a gente vai reconhecendo aspartes do resumo. Ai somente depois que há essa leitura, que se reconhece as partes desse resumo, é que eu peço para eles realizarem a produção de um resumo. É sempre assim: partindo do que é menos complexo para o mais complexo que tento trabalhar. (Trecho da entrevista realizada com Morgana, em 23/06/2022). Nesse trecho exposto, Morgana afirma que propôs o ensino do resumo de pesquisa baseado na análise de gêneros, desenvolvida em dois momentos. No primeiro momento, indicou a leitura de um tipo de resumo de pesquisa — resumo de artigo científico, teses e disserta- ções. Em um segundo momento, demandou a análise propriamente dita desses resumos. Na sequência, a docente informa que somente depois da leitura e análise de resumos, é que os discentes produziram o seu próprio resumo. No entanto, ela não informa os critérios adotados para a análise dos resumos nem as condições de produção e circulação nas quais esse gênero foi produzido pelos discentes: se eles fizeram uma pesquisa, se foi feita uma simulação de situação comunicativa. Não obstante esse trabalho realizado se configure como produtivo, Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 161 pelo fato de os estudantes terem tido acesso a diferentes resumos de pesquisa, há indícios de uma prática institucional do mistério (Lillis, 1999), haja vista a provável ausência de explicitação de orientações e critérios para nortear a produção textual. Considerações finais Neste capítulo, tivemos como objetivos: (1) Identificar abor- dagem(ns) de ensino de escrita acadêmica subjacente(s) ao trabalho prescrito na ementa da disciplina ILPTA; (2) Mapear abordagem(ns) de ensino de escrita acadêmica norteadora(s) do trabalho planificado no plano de curso da professora Morgana, ministrante de ILPTA; (3) Comparar abordagem(ns) de ensino de escrita acadêmica identifica- da(s) nos trabalhos prescrito e planificado com a(s) inferida(s) no tra- balho realizado por Morgana. A análise dos dados evidenciou que a abordagem socialização acadêmica perpassa do trabalho prescrito ao realizado. Entretanto, no trabalho planificado, há indícios de habilidades de estudo e no reali- zado, além desta, há evidências da abordagem dos letramentos acadê- micos (Lea; Street, 1998) e da prática institucional do mistério (Lillis, 1999). Este estudo de caso sobre os trabalhos prescrito, planificado e re- alizado em torno da escrita acadêmica pode contribuir para que mu- danças/aprimoramentos ocorram na maneira de ensinar essa escrita e assim subsidie o trabalho de professores comprometidos com esse ensino, em novas propostas. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 162 Referências BRONCKART, J. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Org. Anna Rachel Machado e Maria de Lourdes Meirelles Matencio; tradução Anna Rachel Machado, Maria de Lourdes Meirelles Matencio [et al.]. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2006. FERNÁNDEZ, G. M. E.; CARLINO, P. En qué se diferencian las practices de lecture y escritura de la Universidad y las de la escuela secundaria? Lectura y Vida, Buenos Aires, v. 31, n. 3, p. 6-19, Sept. 2010. Disponível em: https:// www.aacademica.org/paula.carlino/216. Acesso em: 10 out. 2022. FISCHER, Adriana; DIONÍSIO, Maria de Lourdes. 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DOI: 10.29327/5338488.1-7 Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 164 Capítulo 7 | Ações de linguagem construídas em experiências com atividades de produção de textos na situação emergencial de ensino remoto Roberto Barbosa Costa Filho Introdução Neste capítulo, busco deflagrar, de maneira especial, algumas (re) configurações pelas quais passou o Ensino Superior durante a situa- ção emergencial de ensino remoto decorrente da pandemia de CO- VID-19, na eminente demanda das instituições em dar continuidade às suas atividades no decorrer dessa crise sanitária mundial. Dentre as diferentes atividades realizadas, destaco a produção de textos na esfera acadêmica em um curso de Licenciatura em Letras: Língua Portugue- sa, de uma universidade pública brasileira. Os dados aqui enfatizados fazem parte de uma pesquisa mais ampla,desenvolvida no âmbito da Linguística Aplicada (Moita Lopes, 2009), através de uma pesquisa narrativa (Clandinin; Connelly, 2011). Particularmente, apresento como objetivo mapear ações de lin- guagem em meio às atividades de produção de textos evidenciadas em Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 165 experiências narradas por discentes de uma Licenciatura em Letras: Língua Portuguesa. Considero, a partir das proposições de Larrosa (2020 [2014]), que as experiências estão relacionadas ao íntimo de cada sujeito, na forma como ele responde ao que lhe passa, lhe acon- tece, lhe toca e no modo como constrói sentidos nisso. Por isso, con- forme Dewey (1979), as experiências caracterizam-se por dois prin- cípios: o da interação – ao considerar que toda experiência é social e que condições externas (ou objetivas) e internas ao indivíduo estão em jogo e são igualmente importantes – e o da continuidade – ao prever vinculações entre uma experiência presente com aquelas vivenciadas no passado e com as que serão vivenciadas no futuro. Sendo assim, para concretizar o trabalho, organizo, além desta introdução, uma seção para discussão teórica de conceitos mobiliza- dos no presente recorte da pesquisa. Logo após, exponho a análise dos dados, gerados com três discentes através de entrevistas semiestrutura- das (Lüdke; André, 1986) que foram, posteriormente, retextualizadas (Marcuschi, 2001) do texto audiovisual (falado) ao texto escrito. Além disso, destaco algumas considerações à guisa de conclusão, seguidas da lista de referências. Fundamentos teóricos De modo a compreender alguns aspectos relativos à atividade de produção de textos, partimos dos postulados do Interacionismo Socio- discursivo (ISD). Nesse sentido, é preciso considerar que as interações verbais, mediadas e semiotizadas em textos, geram atividades de lingua- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 166 gem, que, sob o efeito de atividades não verbais também implicadas nes- se processo, diversificam os textos em gêneros. As atividades de lingua- gem, enquanto frutos da interação coletiva dos sujeitos participantes, são constituídas por ações de linguagem; cada ação de linguagem, por conseguinte, é imputável a um agente/produtor individual e é materia- lizada em um texto singular (Bronckart, 2003 [1999], 2006, 2008). Compreendo texto, conforme Bronckart (2003 [1999], p. 71), como “toda unidade de produção de linguagem que veicula uma mensagem linguisticamente organizada e que tende a produzir um efeito e coerência sobre o destinatário” e, necessariamente, como “o correspondente empírico/linguístico de uma determinada ação de linguagem” (Bronckart, 2006, p. 139). Assim, esses textos são produ- zidos sob determinadas condições de produção, que, neste caso, cor- respondem à situação de ação de linguagem e podem ser compreendi- das conforme o Esquema 1. Esquema 1 – As condições de produção de um novo texto1 Fonte: Bronckart (2006, p. 146). 1 Alguns dos termos apresentados por Bronckart (2006) nesse esquema diferem da proposta inicial do autor apresentada em obra anterior (Bronckart, 2003 [1999]). De todo modo, admito contribuições das duas obras para o entendimento dos termos. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 167 Conforme apresentado no esquema e explicitado por Bronckart (2003 [1999], 2006), o agente/produtor, que produzirá um texto, atuará em uma situação de ação de linguagem. Considero que as ações de linguagem são “unidades psicológicas sincrônicas que reúnem as representações de um agente sobre contextos de ação, em seus aspec- tos físicos, sociais e subjetivos” (Bronckart, 2003 [1999], p. 107). Nessa direção, as representações reunidas possibilitam transformar o ser humano, de modo a torná-lo consciente de seu fazer e de suas ca- pacidades de fazer (Leurquin; Gurgel, 2017). Por isso, em uma dada situação, o agente/produtor acionará as representações que construiu sobre: a) o quadro material ou físico da ação, que diz respeito aos pa- râmetros objetivos; b) o quadro sociossubjetivo da ação, que corres- ponde aos parâmetros sociossubjetivos; e c) as outras representações sobre a situação e os conhecimentos sobre a temática que será expressa no texto (Bronckart, 2006). Essas representações também recairão sobre os conhecimentos pessoais e parciais que o agente/produtor tem sobre o arquitexto2 de sua comunidade e os modelos de gênero nele disponíveis. Os mode- los “podem ser apreendidos não só em função de suas propriedades linguísticas objetivas, mas também em função das etiquetagens e das classificações das quais eles se tornaram o objeto e em função das in- dexações sociais das quais são portadores” (Bronckart, 2006, p. 147). O agente/produtor adotará um modelo de gênero, que poderá passar por um processo de adaptação tendo em vista as particularidades da 2 Inicialmente, Bronckart (2003 [1999]) utilizou intertexto para representar a nebulosa de gêneros de textos disponíveis no repertório de dada comunidade verbal. Em trabalhos posteriores, o autor reconheceu o uso não padrão dessa expressão para a representação pretendida e a substituiu por arquitexto (Bronckart, 2006, 2008). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 168 situação. Esse duplo processo – adoção e adaptação de um modelo de gênero –, enfim, dará origem ao texto empírico. Esse texto, conforme Bronckart (2003 [1999], 2006, 2008), trará uma arquitetura textual, considerando-se a infraestrutura, a coerência temática e a coerência pragmática percebidas, que, devido aos limites de nossa investigação, não as discutirei. Diante de todo o exposto, para mapear ações de linguagem, é ne- cessário, portanto, identificar as representações atribuídas “pelo agen- te-produtor a cada um dos parâmetros do contexto [e] aos elementos do conteúdo temático mobilizado” (Bronckart, 2003 [1999], p. 99), o que pode ser feito sem a realização de referência às características do texto que as materializam (Bronckart, 2003 [1999]), como é realizado nesta investigação. Ações de linguagem mobilizadas em experiências com atividades de produção de textos Para cumprir com a análise dos dados, organizo a seção da seguin- te forma: primeiro, busco observar representações sobre os parâme- tros físicos da situação de ação de linguagem, ou seja, sentidos relati- vos às visões de produtor/autor, destinatário, tempo e espaço nas ex- periências com atividades de produção de textos escritos; em seguida, considero representações sobre os parâmetros sociossubjetivos, isto é, sentidos construídos sobre o quadro social de interação, papéis sociais e objetivos da ação nessas experiências; por fim, recupero represen- tações sobre a situação de produção e os conhecimentos disponíveis Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 169 que correspondem às representações dos gêneros de texto produzidos e dos conteúdos temáticos adotados. Representações sobre os parâmetros físicos Nas experiências com atividades de produção de textos, as ações de linguagem mobilizadas pelos discentes lhes proporcionaram sen- tidos quanto aos parâmetros constitutivos das situações de ação de linguagem. Compreendendo que, para o ISD, a ação é o resultado da apropriação das propriedades da atividade social mediada pela lingua- gem pelo ser humano (Bronckart, 2003 [1999]), nesta subseção, bus- co mapear as representações construídas sobre os parâmetros físicos. Nesse viés, em sua narrativa, Carla3 indica sentidos quanto à sua pro- dução nos textos demandados na esfera acadêmica: Carla: Foi muito difícil [produzir textos em grupo] porque eu acho que a escrita acadêmica é muito uniforme, mas, mesmo sendo uniforme, o autor sempre deixa a sua marca, sempre transparece a particularidade de cada autor em seu texto, mesmo com o tom de formalidade quetem que ser estabelecido. Então, conciliar em uma resenha, que eu acho um gênero muito particular, que é sua opinião sobre aquilo, sobre o que você entendeu, sobre o que você compreendeu, então conciliar quatro opiniões em uma resenha e manter uma regularidade de escrita, tentar ser uniforme foi muito difícil. Mas como o meu grupo, assim, só se resumia em duas pessoas foi fácil. Eu e a 3 Vale ressaltar que todos os nomes aqui empregados são fictícios. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 170 minha dupla, a gente surtou junto, mas eu considero o nível de escrita da minha dupla superior que o meu, eu reconheço [...]. Eu acho o nível de escrita dela muito desenvolvido e eu aprendi muito com ela nesse RAE4, [...] eu aprendi com ela muitas coisas na escrita. Às vezes, ela ia lá na minha parte e corrigia alguma coisa, eu amo quando alguém vai corrigir e mostra o que corrige, porque eu aprendo, tento não errar novamente naquilo [...]. O desafio pareceu maior pensando do que realmente na prática. Na prática, se mostrou bem mais fácil. (Trecho de entrevista realizada com Carla, em 01/06/2021, grifo nosso). Carla demonstra suas relações com a escrita acadêmica, em uma constância que deve proporcionar, segundo a sua narrativa, a unifor- midade do texto, ao mesmo tempo em que a individualidade de cada produtor precisa ser mantida, especialmente em produções realizadas de forma colaborativa. Por mais que a atividade de produzir textos em grupo já ocorresse em contexto presencial de ensino, a sua permanên- cia na situação emergencial de ensino remoto determinou uma carac- terística recorrente nas narrativas dos participantes desta investigação. Dessa maneira, como as experiências com atividades de produção de textos de Carla ocorreu colaborativamente, essa discente revela a difi- culdade em conciliar a opinião de distintas pessoas na articulação en- tre a uniformidade e a individualidade que ela acredita ser necessária para um texto acadêmico. 4 RAE se refere a uma abreviação para Regime Acadêmico Extraordinário, termo adotado pela instituição lócus da pesquisa para criação de um semestre letivo suplementar (2020.3), enquanto primeira experiência remotamente realizada em virtude da pandemia de COVID-19. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 171 É perceptível, além disso, um sentimento de inferioridade de- monstrado por Carla, no que se refere à produção de textos, com re- lação à colega com quem fez dupla nas experiências relatadas com o gênero resenha. Conforme a sua narrativa, Carla reconhece que o nível de escrita da colega é superior ao seu. Como o estatuto externo das ações de linguagem é constituído pelo processo de avaliação social e verbal das modalidades de participação do ser humano na atividade em que se engaja (Bronckart, 2003 [1999]), a visão de Carla sobre si mesma pode sinalizar a sua consciência quanto ao seu fazer e às suas capacidades de fazer. Nessa direção, a discente ainda relata sentidos que se referem às percepções de sua autoria no processo de produção dos textos, confor- me é registrado no trecho da narrativa a seguir. Carla: Quando eu estou escrevendo sempre penso que aquele texto é o pior da minha vida. Eu preciso, vou escrevendo, escrevendo, escrevendo e eu digo “meu Deus, como eu tenho a capacidade de escrever pior a cada dia?!”. Eu paro, vou fazer outra coisa, quando a inspiração, quando o cérebro que não está desenvolvendo volta, eu digo: “é, não está tão ruim assim”. Quando eu entrego, que vejo a avaliação do professor, eu digo: “realmente, foi bom, foi um bom texto”. Mas uma das coisas que eu realmente não gosto e eu queria que parasse de fazer isso é não ver capacidade na minha escrita, é muito ruim. Eu venho com esse trauma desde criança porque a dificuldade que eu tinha quando era criança em escrever textos sempre me faz pensar que eu não vou dar conta de escrever tantas páginas, se a minha escrita realmente é boa, se o professor vai gostar. Então quando eu estou escrevendo um texto sozinha eu fico muito apreensiva, Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 172 eu penso que eu não vou conseguir escrever bem ou escrever a quantidade que é estipulada. Quando eu estou escrevendo em grupo, fico mais aliviada porque o trabalho está sendo dividido ali, mas eu fico preocupada com relação para a gente chegar a essa uniformidade que eu falei, de um padrão, porque realmente você vai lendo um texto e uma pessoa escreve uma parte, a outra pessoa escreve a outra. Você tem que ter uma preocupação em dar fluidez ao texto, dar uma continuidade para não ficar daqui para cá dá para ver que uma pessoa escreveu, daqui para lá foi outra pessoa totalmente que escreveu. Pesquisador: Você acha que essa sua sensação ao escrever textos, de algum modo, se modificou durante o ensino remoto ou não, já era uma coisa que você sentia no presencial e permaneceu da mesma forma? Carla: Eu acho que no remoto ficou mais tranquilo de escrever, porque no presencial eu tinha que toda hora fazer contas “calma, eu vou pegar o coletivo [ônibus], talvez o coletivo atrase, então vou chegar meia hora atrasada em casa e eu tenho só uma hora para escrever para poder voltar para universidade de novo para aula, então eu tenho que virar a madrugada para escrever e dar conta de entregar essa atividade”. Era uma correria enorme. Em casa, não, eu tenho planejado, eu tenho aula dessa hora até essa hora, depois do dia eu estou livre para escrever. No RAE, eu consegui ver a quantidade de tempo que eu passo para escrever um texto. Eu posso escrever em um dia só duas ou três páginas. Se eu estiver mais inspirada, eu posso escrever mais. Então, eu fico mais tranquila na relação de tempo para eu conseguir escrever um texto, para ler os textos e escrever. Eu fiquei mais tranquila com relação a isso. (Trecho de entrevista realizada com Carla, em 01/06/2021, grifo nosso). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 173 Considerando o aspecto mediato e o princípio de continuidade, aferidos a partir da influência sobre experiências posteriores (Dewey, 1979), Carla demonstra o quanto as suas experiências de escrita du- rante a infância – especialmente as possíveis dificuldades detectadas naquela época – ainda a influenciam e afetam as representações que tem de si enquanto produtora dos textos em suas ações de linguagem. A visão de que “aquele texto é o pior” já produzido, mesmo recebendo avaliações positivas que poderiam auxiliar na mudança dessa represen- tação, parece ser uma constante em suas experiências com atividades dessa natureza, o que certamente interfere nos sentidos de “escrever bem” ou de “escrever a quantidade que é estipulada” destacados. Quando a produção de textos é realizada em grupo, Carla revela um alívio perante a essas questões, uma vez que o trabalho de escrita será compartilhado. Mesmo assim, a discente reconhece outras preo- cupações para as experiências, que dizem respeito principalmente à uniformidade dos textos, tal como já discutido. Tudo isso, contudo, não parece ter advindo do contexto de ensino remoto, mas sim ter sido fruto de uma construção diante das avaliações sociais, desde a in- fância, das participações da discente em atividades com a produção de linguagem. Provavelmente, tais representações permaneceram e reper- cutiram nessa emergencial situação de ensino. O que se demonstra como novo diz respeito ao tempo disposto para as experiências. Como, nesse período, não houve a necessidade de deslocamento para a instituição de ensino, o tempo dedicado à produ- ção dos textos, conforme a narrativa de Carla, parece ter sido melhor distribuído, despertando maior tranquilidade na discente. O tempo, especialmente na ampliação de prazos para realização de atividades, Produção de textos em contexto escolar e acadêmicoDiscussões teóricas e práticas 174 também se revelou como ponto de vantagem proporcionado pela si- tuação emergencial de ensino remoto em dados analisados por Lima (2020). Além dos aspectos já mencionados a partir da narrativa de Carla, a produção dos textos e, por consequência, o espaço de realização das ações de linguagem, durante a situação emergencial de ensino remoto, se deram em plataformas acessíveis por meios tecnológicos, seja com- putador, seja celular, seja dispositivos similares. Nessa perspectiva, Heitor, em sua narrativa, manifesta representações sobre essas plata- formas, como indica o trecho a seguir. Heitor: [As produções textuais] que são individuais, ou seja, a resenha, eu fiz pelo Word Microsoft, porque eu acho que muita gente tem mais facilidade com a Microsoft, e o Google Docs realmente só surge nessa necessidade de ser mais de um integrante para elaborar a atividade. [...] produção de gênero escrito eu colocaria cem por cento foram essas duas plataformas, que são praticamente idênticas, só são de provedores diferentes. (Trecho de entrevista realizada com Heitor, em 10/06/2021, grifo nosso). Heitor relata que, no contexto do ensino remoto imperado pela potencialização do uso de tecnologias digitais, as experiências de pro- dução de textos foram realizadas a partir dos espaços de plataformas digitais, especialmente o Microsoft Word e o Google Docs. Apesar de reconhecer que as pessoas, em tese, possuem maior facilidade com a Microsoft Word, o discente também compreende que as duas plata- formas são praticamente idênticas, disponibilizando espaço para a produção de textos. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 175 Uma vez que, conforme Lévy (1999), na cibercultura, os atores humanos são responsáveis pelas relações com as tecnologias, conside- rando as pessoas, as entidades materiais e artificiais, as ideias e as repre- sentações reunidas nas atividades humanas, a escolha de dada plata- forma por este discente é demarcada pelas características que estão em jogo nas respectivas experiências. Conforme a sua narrativa, a escolha entre o Microsoft Word e o Google Docs é realizada conforme a reali- dade da produção dos textos, sendo que, quando individualmente, a primeira plataforma parece ser mais utilizada, enquanto que, quando em grupo, a segunda plataforma passa a ter um uso mais efetivo, dada a facilidade de compartilhamento. Quanto aos destinatários dos textos produzidos durante as expe- riências, os discentes participantes da pesquisa revelam que, em sua maioria, a leitura final esteve para o professor, enquanto atividade avaliativa. Por outro lado, por iniciativas próprias, muitos dos textos foram também lidos por colegas, como demonstra Heitor em sua nar- rativa: Heitor: Eu particularmente enviei meus textos para amigos para eles lerem e depois teve somente a leitura do avaliador, que no caso é o professor. (Trecho de entrevista realizada com Heitor, em 10/06/2021, grifo nosso). Como indicam Machado e Bronckart (2009), muitas vezes, da- das situações de produção possuem mais de um destinatário, de forma direta ou indireta. No caso de Heitor – mas não somente dele –, por mais que diretamente as produções de texto destinassem-se aos pro- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 176 fessores das disciplinas cursadas, este discente solicitava leituras pré- vias de colegas, visando certamente ao melhoramento do texto antes da avaliação final. Diante do exposto, nesta seção, pude verificar algumas represen- tações construídas pelos discentes com relação aos parâmetros físicos das ações de linguagem. Quanto às representações enquanto produ- tores dos textos, os discentes colaboradores da presente investigação destacaram que, mesmo a escrita tendo sido em grupo na maioria das vezes, eles puderam se enxergar como autores dos textos e vislumbrar um trabalho colaborativo de produção. Quanto ao tempo e ao espaço de produção, estes foram profundamente marcados pela pandemia de COVID-19 e pela situação de ensino remoto, demarcando-se no uso de plataformas digitais para a produção textual. No que se refere aos destinatários, as representações identificadas demonstram princi- palmente a figura dos professores como avaliadores dos textos, apesar de, em alguns casos, os textos terem sido compartilhados com outros leitores. Ato contínuo, na próxima seção, apresento as representações construídas por esses discentes para os parâmetros sociossubjetivos das ações de linguagem nas experiências com atividades de produção de textos. Representações sobre os parâmetros sociossubjetivos Nas ações de linguagem, os parâmetros sociossubjetivos são cons- tituídos pelas representações sobre os tipos de interação social, os pa- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 177 péis sociais atribuídos aos envolvidos e os objetivos estabelecidos. Nas experiências vivenciadas na situação emergencial de ensino remoto, as interações sociais estiveram envoltas ao contexto institucional. A nar- rativa de Carla, apresentada a seguir, demonstra um pouco dos senti- dos construídos nessas interações para as produções de textos. Carla: Eu fiquei bem apreensiva porque era difícil pegar professores que já tivessem sido meus professores em outras disciplinas [...]. Nesse do ensino remoto, foram professores que eu nunca tinha estudado na minha vida. Eu sempre queria estudar com XXXXXXX5 e Natália6, por exemplo, mas eu nunca tinha conseguido pagar disciplina com elas e eu peguei logo as duas em análise linguística. Eu fiquei muito apreensiva, eu fiquei “meu Deus do céu”, porque eu escuto os relatos e eu sei como elas são maravilhosas e exigentes. Então, querer ter uma boa escrita para realmente tirar uma nota boa, aprender com elas, mas também mostrar o meu nível de escrita, foi bem difícil. Eu ficava muito apreensiva quando elas passavam alguma atividade e a primeira atividade delas foi uma resenha. Quando elas passaram a resenha, eu não gosto de escrever resenha, eu não me sinto capacitada nem um pouco de escrever resenha, e eu fiquei muito preocupada quando elas passaram a resenha. Eu disse “não, não vou conseguir, minha primeira nota em análise linguística vai ser horrível”. Mas graças a Deus que deu certo e nessas duas, tanto nessa quanto em história 5 A discente cita o nome de uma professora que não participou da pesquisa. Suprimi o seu nome para preservar a identidade. 6 A discente faz referência ao nome real de Natália, professora participante da pesquisa mais ampla, com quem cursou uma disciplina. Para preservar a identidade, substitui pelo nome fictício que adotei para ela. Isso ocorre em outros momentos, e envolvendo outros participantes. Em todos esses casos, o mesmo procedimento foi adotado. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 178 da língua portuguesa, também tive que escrever uma resenha, mas as experiências de ambas as disciplinas foram totalmente diferentes porque enquanto em análise linguística eu tive que escrever uma resenha individual, em história da língua portuguesa foi em grupo de quatro pessoas com máximo de duas páginas [...]. Em história da língua portuguesa, foi o meu primeiro contato com o professor Vinicius, que é meu orientador. Nós tivemos um contato muito breve antes da pandemia, porque eu passei na monitoria dele de morfologia de classes e eu não sabia como era a metodologia dele. A gente foi se conhecendo e depois ele passou a ser meu orientador quando eu decidi me matricular em metodologia da pesquisa, quando eu passei no PIBIC dele. Então, foram momentos que eu fiquei realmente “agora o meu nível de escrita tem que ser melhorado de alguma maneira porque a cobrança está vindo. Eu preciso mostrar como é que eu aguento, se eu dou conta do que está sendo pedido para mim”. (Trecho de entrevista realizada comCarla, em 01/06/2021, grifo nosso). Considerando que o agente/produtor, em dada ação de lingua- gem, constrói certa representação sobre a interação comunicativa em que se insere (Bronckart, 2003 [1999]), os quadros de interação so- cial de Carla, especialmente nas disciplinas que cursou, marcam-se por relações ideológicas inerentes aos vínculos entre professor e aluno em uma esfera acadêmica. Por consequência, as representações cons- truídas por ela nas experiências com atividades de produção de textos estão atreladas, conforme a sua narrativa, à aparente necessidade de atender às expectativas que estão em jogo no contexto do Ensino Su- perior. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 179 A discente também parece demonstrar determinadas preocupa- ções com os primeiros contatos com os docentes, uma vez que, nas experiências vivenciadas nesse período, passou a conviver com novos professores. Essas preocupações parecem ter circulado na produção da resenha nas disciplinas cursadas. Isso pode estar associado às rela- ções de produção de sentido, identidade, poder e autoridade impli- cadas no contexto acadêmico específico (Lea; Street, 2014) da qual a discente faz parte, acarretando em uma visão apreciativa por vezes negativa e/ou inferior de si enquanto discente e produtora de textos (“Eu ficava muito apreensiva”; “eu fiquei muito preocupada”; “não, não vou conseguir”). É relevante destacar que as representações dadas ao quadro de interação social de Carla não parecem ter sofrido impactos de parti- cularidades da situação emergencial de ensino remoto. Os sentidos que essa discente demonstra – e também os sentidos demonstrados por outros participantes da pesquisa – podem indicar aspectos que existem independente da modalidade de ensino em desenvolvimento, como as relações ideológicas inerentes ao convívio entre professor e aluno, bem como as relações de identidade manifestadas. Isso demar- ca que muito do presencial permaneceu durante o contexto emergen- cial em virtude da pandemia de COVID-19. Dentro dos quadros de interação social nos quais as ações de lin- guagem foram desenvolvidas, também é possível averiguar as repre- sentações construídas sobre os papéis sociais desempenhados pelos envolvidos no contexto acadêmico. O trecho da narrativa de Heitor indica os sentidos que este discente conferiu às suas representações de produtor dos textos, relacionando com a formação pretendida no Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 180 curso, ou seja, de (futuro) professor de língua portuguesa. Heitor: Eu me vi pensando “será que você quer ser mesmo professor de língua portuguesa?”, porque eu tenho muita, muita, muita dificuldade em escrita. Meu processo de escrita é extremamente lento, doloroso e com muitos ajustes. [...] Como autor desses textos, eu fiquei constrangido, porque eu realmente não gosto da forma como eu escrevo, não gosto do resultado final, não me sinto confortável no processo de escrita, que é um processo essencial para o professor de língua. Ainda estou vendo se eu consigo aperfeiçoar isso para poder ser professor mesmo. (Trecho de entrevista realizada com Heitor, em 10/06/2021, grifo nosso). Tal como na narrativa de Carla, as representações de Heitor apre- sentam um teor apreciativo, em certa medida, negativo de si enquan- to produtor dos textos que teve de produzir nas disciplinas cursadas (“eu fiquei constrangido”; “não gosto do resultado final, não me sinto confortável no processo de escrita”). Além disso, em sua narrativa, o dis- cente ecoa uma questão importante surgida: ““será que você quer ser mesmo professor de língua portuguesa?””. Esse questionamento indica que, para além do papel de discente do curso de licenciatura do qual faz parte, as suas representações evidenciam também o papel social de (futuro) professor de língua portuguesa perante a necessidade de pro- duzir e de (quando formado) ensinar a produzir textos. Dessa maneira, considerando que para a concretização de uma ação são necessárias condições prévias que circulam no empreendi- mento de um agente/produtor querer fazer, dever fazer, saber fazer e Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 181 poder fazer (Bronckart, 2008), os sentidos atribuídos pelas represen- tações deste discente demonstram uma consciência sobre os papéis so- ciais que desempenha – e que deseja desempenhar – nos quadros das interações sociais vivenciados a partir do curso em questão. Por mais que o teor apreciativo negativo faça parte de sua narrativa, a compre- ensão de Heitor parece constituir também um engajamento em busca das condições necessárias à assunção dos papéis sociais (“Ainda estou vendo se eu consigo aperfeiçoar isso para poder ser professor mesmo”). Na narrativa de Elizangela, por sua vez, é possível perceber con- siderações sobre os objetivos com os quais os textos foram solicitados e produzidos nas disciplinas que cursou. A discente indica, para além dos objetivos disciplinares propostos, compreender os textos produzi- dos como oportunidades para o compartilhamento de conhecimento na/para a academia. Elizangela: Para [a disciplina] metodologia da pesquisa, [a produção de textos] é para a gente terminar de desenvolver o nosso TCC, como se fosse um projeto de TCC. Então, acho que é bastante importante por isso [...]. As resenhas e os artigos que os professores pedem, eu acho que alguns têm finalidade apenas para concluir a disciplina mesmo, um texto que vai acabar ali no professor. [...] todos esses artigos que eu estou construindo nas disciplinas, embora tenham essa finalidade de acabar na disciplina, uma finalidade de nota, eu sempre estou buscando outra coisa com ele. Eu estou buscando publicar, fazer um livro com alguém [...]. Então, minha turma tem sempre disso, a gente sempre está visando a publicar, participar de congresso, fazer livros. Acho que isso é bastante importante, a pesquisa não acabar ali, não ficar morta. Escrevas senão pereça. (Trecho Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 182 de entrevista realizada com Elizangela, em 25/05/2021, grifo nosso). Como lembram Machado e Bronckart (2009), um agente/pro- dutor pode apresentar representações de mais de um objetivo a ser atingido, considerando os distintos papéis que assume na situação de ação de linguagem. Reforçando esse entendimento, no caso de Elizan- gela, por mais que ela reconheça que, em suas experiências, algumas das produções de texto tenham a finalidade primordialmente de atri- buição de nota e conclusão da disciplina, a discente está sempre “bus- cando outra coisa”, isto é, publicizar os seus textos junto à comunidade acadêmica, de modo a contribuir com a área do conhecimento de que é integrante e obter novos leitores. Quanto aos destinatários de textos e aos papéis sociais que estes desempenham nos quadros de interação social, a narrativa de Heitor demonstra as representações de seus leitores. Como observado na subseção anterior, o discente, por iniciativa própria, solicita a leitura dos textos produzidos a colegas, para além da leitura dos professores das disciplinas. O trecho a seguir indica os sentidos construídos por este discente tanto para os leitores colegas de curso quanto para os leitores professores/avaliadores. Heitor: Eu mando [os textos que produzo] para os meus colegas de curso, não mando para minha mãe ou para o meu pai. Então, para mim, é uma prática para eles, tanto é que avaliar um texto é muito mais fácil do que produzir. Eu pelo menos tenho essa sensação e muita gente fala isso também. Para os meus amigos, já é uma prática, já começa a identificar Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 183 elementos que estão equivocados para quando você for formado e ir para sala de aula já esteja capacitado. Olha, no ponto doprofessor, eu acho que até agora só tive uma professora, dentro da unidade inteira, que trabalhou com o processo de reescrita, que eu acho que todos os professores deveriam trabalhar. Mas é claro que a teoria é diferente da prática, então, tem professor que é muito doido, eu não vou citar nomes, mas que se enfia em mil projetos e não vai conseguir ler o texto, deixar ele pronto para o aluno recorrigir, ou seja, reescrever, para depois receber de volta. Eu acho que o processo de reescrita é um processo essencial, que deveria ter em todas as disciplinas, mas não acontece por N razões. Cada professor tem sua realidade e vai montar o seu plano de aula e os métodos avaliativos baseados nessa realidade, mas, por exemplo, as professoras, no caso, os professores dessas duas disciplinas que eu paguei, que análise linguística foram duas professoras e história da língua portuguesa foi só um, eles deram essa oportunidade, para quem não atingiu o mínimo, de reescrever. Mas, por exemplo, se você passou de sete, tirou oito e meio, se você não tirou dez, tem algo errado no seu texto, seria interessante receber de volta esse texto para você saber o que houve de errado. [...] Em análise linguística, a gente recebeu uma avaliação, mas você não poderia reescrever, só reescreve quem não atingiu o mínimo. Também tem uma questão do tempo mesmo do professor, porque a maioria dos professores da unidade acadêmica está no mestrado, agora surgiu o doutorado, fora as orientações paralelas à graduação. (Trecho de entrevista realizada com Heitor, em 10/06/2021, grifo nosso). Em sua narrativa, Heitor demonstra os sentidos no que se refere aos leitores com quem, por iniciativa própria, compartilha os textos produzidos, destacando o fato de estas pessoas serem colegas de curso Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 184 e, por isso, praticarem o exercício da correção a partir de tais leituras (“Para os meus amigos, já é uma prática”). Em discussão das relações entre letramentos acadêmicos e letramentos do professor, Vianna et al. (2016) destacam que o domínio de práticas de uso da escrita em con- texto acadêmico – saber escrever ou ler um texto do gênero resenha, por exemplo – não garante uma circulação autônoma nas práticas de uso da escrita demandadas pela esfera do local de trabalho docente – a escola. Considero, assim, que uma esfera acadêmica de um curso de Licenciatura em Letras: Língua Portuguesa, para além de práticas com uso de gêneros canonicamente demandados, constitui-se – ou deveria constituir-se – também de práticas com uso da escrita características do contexto escolar, como é o caso da correção de textos e dos sentidos disso, como evidenciado por Heitor. Para além disso, a narrativa de Heitor, realçando a visão de cor- reção e de avaliação, comumente compreendida em contexto de esco- larização, evidencia sentidos relativos a uma leitura mais especializada advinda dos docentes. Com isso, o discente indica a sua visão sobre a importância da correção dos textos e da possibilidade de reescrita – que, conforme o discente, não foi completamente realizada nas expe- riências de produção de textos que ele vivenciou. Em síntese, a partir de suas narrativas, esses discentes parecem as- sumir papéis sociais distintos, que reforçam os que possivelmente já eram desempenhados no contexto presencial, em suas experiências: a) como discentes das disciplinas, tendo de cumprir com as atividades so- licitadas para obtenção de nota; b) como futuros professores de língua portuguesa que terão de ensinar a produzir textos; c) como membros de dada comunidade acadêmica que desejam colaborar com a área de Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 185 conhecimento em que atuam. Dada a diversidade de papéis sociais, os textos produzidos – correspondentes empíricos/ linguísticos das ações de linguagem (Bronckart, 2006) – cumpriram, por consequên- cia, objetivos distintos, indo desde a contemplação de atividades no âmbito das disciplinas até a busca por contribuir com dada área do conhecimento. Os leitores, quando docentes, são representados espe- cialmente por seus papéis de avaliadores dos textos, podendo auxiliar no seu melhoramento; quando colegas, como praticantes do exercício da correção textual, que fará parte de suas vidas profissionais. Para além dessas representações, os discentes ainda construíram sentidos quanto aos gêneros de texto produzidos e aos conteúdos te- máticos mobilizados em suas ações de linguagem desenvolvidas, con- forme discutido na próxima seção. Representações sobre a situação de produção e os conhecimentos disponíveis Uma vez que a ação de linguagem “se apresenta, externamente, como resultante da atividade social operada pelas avaliações coletivas e, internamente, como o produto da apropriação – pelo agente pro- dutor – dos critérios dessa avaliação” (Nascimento, 2012, p. 14), nas experiências dos discentes, as suas representações para os gêneros de texto demandados, bem como para os conteúdos temáticos mobiliza- dos, apresentam-se a partir dos sentidos atribuídos pelas/nessas avalia- ções e de suas apropriações. Por esse ângulo, o trecho a seguir, cons- titutivo da narrativa de Heitor, demonstra suas percepções quanto às experiências com os gêneros resenha e artigo acadêmico. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 186 Heitor: Eu acho que a dificuldade que eu tive foi a resenha, não tinha tido contato com esse gênero até então. Tive que procurar saber como era o gênero, no caso, entrei em contato com outros alunos, pedi para enviarem e eu ver como era a estrutura. Agora sobre a estrutura do artigo eu já estava, como eu falei, por ser do PET, [...] a gente estava elaborando atividades normalmente e uma das atividades tradicionais do PET é que você tem que está desenvolvendo uma pesquisa paralelamente ao programa. Então, eu já estava em contato com o professor Vinicius para desenvolvimento de uma pesquisa [...]. Sobre a questão da estrutura do artigo, eu já estava familiarizado porque eu já estava elaborando uma pesquisa com ele, mas no quesito resenha, foi novidade. Não sei, eu acho que foi difícil para mim, eu colocaria como difícil. (Trecho de entrevista realizada com Heitor, em 10/06/2021, grifo nosso). Ao narrar sobre suas experiências com atividades de produção de textos escritos nas disciplinas cursadas, Heitor destaca a resenha e o artigo acadêmico como gêneros de texto solicitados. Como discutido por Street (2015), em contexto acadêmico, a escrita é demandada com base em novos e variados gêneros, articulando-se em atendimento a requisitos disciplinares quanto à argumentação, à apresentação das informações e ao estilo retórico que devem ser empregados, de acordo com distintas preferências docentes. Nessa direção, os gêneros resenha e artigo acadêmico – já utilizados em modalidade presencial e manti- dos em diferentes experiências na situação emergencial de ensino re- moto – aparentam ser representados pelo discente especialmente em relação a outras experiências – ou a falta delas – vivenciadas. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 187 Marcados pelos princípios da interação e da continuidade (Dewey, 1979), os sentidos dados por Heitor para o gênero artigo acadêmico são constitutivos das experiências vivenciadas em virtude de sua participação em um grupo do Programa de Educação Tutorial (PET). De modo específico, o discente relaciona a produção do gêne- ro com o desenvolvimento de uma pesquisa, sendo possível inferir um entendimento de que o artigo acadêmico deva apresentar os resulta- dos de uma investigação científica. Tais representações de Heitor sobre o artigo acadêmico asseme- lham-se ao que a narrativa de Elizangela demonstra quanto às suas percepções para esse gênero de texto: “está mais voltado para pesquisa, parapublicação, para alguma coisa nova, para uma ideia nova. O artigo geralmente tem aquela estrutura: resumo, introdução, tem aquela base teórica, tem metodologia, vai ter as análises, os resultados e a conclusão” (Trecho de entrevista realizada com Elizangela, em 25/05/2021, grifo nosso). Neste caso, a discente indica elementos que são constitutivos da estrutura canônica de textos representativos do gênero em questão, relacionando às ideias de pesquisa e publicação. Voltando à narrativa de Heitor, seja pela falta de contato anterior com a resenha, seja pela aparente ausência de mediações formativas para a apresentação de tal gênero nas disciplinas, o discente indica a busca por modelos com colegas de curso que, possivelmente, já pro- duziram esse tipo de texto. Já quanto aos conteúdos temáticos mobilizados nas experiências com atividades de produção de textos no curso de Licenciatura em Letras: Língua Portuguesa, estes parecem estar relacionados ao que estava sendo tematizado em cada disciplina. Nessa direção, a narrativa Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 188 de Heitor, apresentada a seguir, é exemplo das representações cons- truídas sobre os conteúdos temáticos presentes em suas ações de lin- guagem. Heitor: A cadeira era análise linguística [...], era para fazer referência à análise linguística, que é uma das práticas de linguagem presentes na orientação curricular nacional, no caso, é a Base Nacional Comum Curricular. A disciplina era “vamos estudar essa prática de linguagem”. Só que na última versão surge essa novidade que é a semiótica, então as professoras, para não ficar focado só na análise e desperdiçar a semiótica, apresentou essa live inicial. Coincidentemente, ia ser promovida por um grupo de estudos da unidade, tinha uma pessoa que era renomada, no caso é a Márcia Mendonça. [...] A temática, no caso do artigo, era analisar o livro didático e ver se ele trabalhava e como ele trabalhava análise linguística e semiótica. Isso se utilizando dos pressupostos estudados na disciplina [...]. Esperava-se do aluno que, depois das discussões promovidas em sala, ele tivesse capacidade e aptidão para identificar, no livro didático, [...] problematizar, refletir e tal. Então, em análise linguística, foi esse o artigo. A resenha foi realmente análise linguística/semiótica e o principal foi semiótica, que a fala da Márcia é só para semiótica praticamente. Ela fala pontualmente sobre análise linguística e o que é importante tendo em vista que semiótica foi a novidade, a gente não tem costume com esse elemento. Com relação à história da língua, resenha foi sobre a palestra do Faraco [...]. Ele estava falando sobre essa questão de norma, sobre aquilo que o pessoal problematiza, de norma culta [...]. Ele vai falar sobre essa concepção de língua, que é hierarquizada, baseada em classe, baseada em grupos, baseada na geografia, na etnia, na Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 189 condição financeira, tudo isso. (Trecho de entrevista realizada com Heitor, em 10/06/2021, grifo nosso). Conforme Bronckart (2003 [1999]), o conteúdo temático é o conjunto de informações presentes em um texto empírico, constituin- do-se das representações que um agente/produtor constrói. Refere-se, além disso, aos “conhecimentos que variam em função da experiência e do nível de desenvolvimento do agente e que estão estocados e orga- nizados em sua memória, previamente, antes do desencadear da ação de linguagem” (Bronckart, 2003 [1999], p. 97-98, grifo do autor). A partir do trecho da narrativa de Heitor, é perceptível que os conheci- mentos mobilizados nas experiências com atividades de produção de textos escritos, especialmente para as resenhas e para o artigo acadêmi- co produzidos, estiveram relacionados aos conhecimentos epistemo- lógicos construídos a partir e para as disciplinas cursadas. Na disciplina TEL7 - Análise Linguística, com base nas discus- sões sobre a prática de análise linguística/semiótica tematizada pelo componente, o discente indica, conforme a sua narrativa, que as re- presentações para a produção da resenha estiveram especialmente voltadas para a análise semiótica e foram construídas a partir de live indicada pelas docentes. As representações para o conteúdo temático do artigo acadêmico produzido nessa mesma disciplina, por sua vez, parece ter sido resultado de todo o percurso vivenciado ao longo do semestre letivo, uma vez que se voltou à análise de como um livro di- dático trabalhava com análise linguística. 7 TEL é uma abreviação para Tópicos Especiais de Língua Portuguesa e Linguística. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 190 Já em História da Língua Portuguesa, para a produção do texto do gênero resenha de uma live/palestra, as representações do discen- te parecem ter sido construídas a partir das discussões proferidas na palestra indicada pelo docente da disciplina, relacionando-se ao tema norma culta. Com isso, percebo que a mobilização dos conteúdos temáticos para a produção dos textos esteve diretamente relacionada com os conhecimentos em desenvolvimento nas disciplinas, a partir das experiências que nelas foram propostas. Considero ainda que, no caso de Heitor, essa mobilização foi marcada por certa “novidade”, para contemplar lives/palestras on-line enquanto recursos/instrumen- tos para construção de conhecimento. No caso da disciplina Metodologia da Pesquisa em Linguística, dada a sua natureza voltada para o conhecimento científico e relacio- nada à elaboração de um projeto de pesquisa que culminará no TCC dos discentes, os conteúdos temáticos, certamente, tiveram maior va- riação em virtude dos interesses investigativos possibilitados. O trecho da narrativa de Elizangela indica a temática mobilizada em seu projeto de pesquisa, por meio dos interesses que nela foram despertados. Elizangela: O meu projeto de pesquisa do TCC está voltado para a escrita de forma remota. Para esse ensino da escrita de forma remota no ensino fundamental, no ensino básico, lá nos primeiros anos mesmo. (Trecho de entrevista realizada com Elizangela, em 25/05/2021, grifo nosso). A narrativa da discente demonstra o conteúdo temático que mo- bilizou para a produção do texto do gênero projeto de pesquisa na Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 191 disciplina, que certamente é oriundo de suas outras experiências, com base em interesses despertados ao longo do curso, considerando que a produção do projeto de pesquisa é, em certa medida, uma preparação para a escrita do TCC e culminância da formação pretendida. Esse conteúdo temático, em particular, pode ainda ser visto em virtude da realidade social que a discente vivenciava – a situação emergencial de ensino remoto causada pela pandemia de COVID-19. Portanto, os sentidos dados para os gêneros de texto e os conteú- dos temáticos particularizam-se de acordo com as experiências desen- volvidas. Nessa direção, as representações para gêneros como o artigo acadêmico voltaram-se para a realização de pesquisas e divulgação do conhecimento em dada área. Já as representações para o gênero rese- nha marcaram-se para os valores atribuídos em cada situação de ação de linguagem. Quanto às representações para os conteúdos temáticos, as narrativas dos discentes demonstram que foram marcadas pelos conhecimentos demandados e tematizados nas diferentes disciplinas, com base nos recursos/instrumentos adotados pelos docentes – como o uso das lives/palestras on-line. Outras representações, por consequ- ência, podem ser oriundas de experiências previamente vivenciadas pelos discentes e/ou marcadas pelos aspectos do contexto vivenciado, como parece ser o caso de Elizangela. Vale destacar, de acordo com Leurquin e Gurgel (2017), que a reunião das representações constitutivas da ação de linguagem possi-bilita a transformação do agente/produtor para tornar-se consciente de seu fazer e de sua capacidade de fazer. Dessa maneira, mapear as representações construídas pelos discentes para os gêneros de texto e os conteúdos temáticos, assim como para os parâmetros físicos e so- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 192 ciossubjetivos das ações de linguagem, possibilitaram-me reconhecer as suas consciências quanto aos fazeres disciplinares, em meio aos sen- tidos despertados nas experiências desenvolvidas durante a situação emergencial de ensino remoto do contexto investigado. Considerações finais Neste capítulo, tive como objetivo mapear ações de linguagem em meio às atividades de produção de textos evidenciadas em experi- ências narradas por discentes de uma Licenciatura em Letras: Língua Portuguesa. Nessa perspectiva, nas experiências narradas pelos dis- centes, as ações de linguagem demonstradas revelam representações de parâmetros físicos voltadas para a autoria compartilhada e para o trabalho em grupo, para tempos marcados pelas novas vivências em decorrência da pandemia de COVID-19, para espaços relacionados ao uso de plataformas digitais, para destinatários que variam entre pro- fessores das disciplinas e colegas de curso. Por sua vez, as representações dos parâmetros sociossubjetivos nessas experiências indicam a assunção de papéis sociais diversos pe- los discentes, ligados à formação profissional pretendida e ao contex- to acadêmico de que são membros. Com vista a isso, os objetivos das produções de texto também foram variados, a depender do papel so- cial associado. Os leitores foram vistos principalmente como avaliado- res, exercendo uma prática do exercício profissional. Quanto às demais representações das situações de ação de lingua- gem, relativas aos gêneros de texto e aos conteúdos temáticos, pude Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 193 perceber sentidos dados aos gêneros contemplados nas atividades rea- lizadas. Por fim, os conteúdos temáticos, de acordo com as narrativas dos discentes, estiveram relacionados especialmente aos conhecimen- tos tematizados pelas disciplinas que cursaram. Referências BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. 1. ed. reimpr. Tradução de Anna Raquel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 2003 [1999]. BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Organização e tradução de Anna Rachel Machado e Maria de Lourdes Meirelles Matencio. Campinas: Mercado de Letras, 2006. BRONCKART, J. P. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos trabalhadores. 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Assim, com esse tratamento, o Interacionismo Sociodiscursivo ocupa-se, emum primeiro momento, em evidenciar que apenas a espécie humana ope- racionaliza um agir comunicativo verbal, o qual é mobilizado por signos traduzidos em formas de textos; e, em um segundo momento, em distinguir um agir geral (um agir não verbal) de um agir de linguagem (um agir verbal). O agir geral pode ser entendido: i) a partir das atividades coletivas, ou seja, “das estruturas de cooperação/colaboração que organizam as interações dos indivíduos com o meio ambiente.”; e ii) a partir “de sua relação com um ou vários indivíduos singulares”. O agir de linguagem pode ser apreendido por meio do enfoque coletivo (na forma de atividades de linguagem) e do individual (ações de linguagem) (Bronckart, 2006, p. 138). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 196 que, nesse processo, os elementos: o sujeito, a situação e o instrumen- to são centrais de uma atividade humana. Nessa perspectiva, Vygotsky (1984, p. 70) atribui uma enorme importância à dimensão social, que fornece instrumentos e símbolos que medeiam a relação do indivíduo com o mundo, e que acabam por fornecer também seus mecanismos psicológicos e formas de agir nesse mundo. O aprendizado é considerado, assim, um aspecto necessário e fundamental no processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Entendemos, pois, de acordo com o excerto, que o aprendizado possibilita e movimenta o processo de desenvolvimento do agente, a partir, evidentemente, da dimensão social. Dito de outra forma, o aprendizado é a garantia do desenvolvimento das características psi- cológicas humanas, mas também da sua forma de agir socialmente. É nesse sentido que os gêneros de texto – artefato cultural ou, ainda, um instrumento semiótico (Schneuwly, 2004) – atuam como mediadores das ações sociais, porque “os instrumentos têm a função de regular as ações sobre o objeto [...]. Por sua vez, o signo é um instrumento psi- cológico e tem a função de regular os indivíduos, ajudando-os em suas atividades psíquicas (Figueiredo, 2019, p. 38). Ora, se o signo tem a função de regular os indivíduos, podemos prever que o processo de socialização de um agente em diferentes ins- tâncias sociais (família, escola, universidade, trabalho, entre outros, por exemplo) permite a ele construir tanto os conhecimentos sobre a língua(gem), quanto sobre o funcionamento dos textos/discursos em variados eventos comunicativos. A esse respeito, pontua Maten- cio (2006): é por meio da socialização – da apropriação de normas, Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 197 valores e modos de comportamento das instâncias sociais às quais se integra –, que o sujeito constrói conhecimentos, os quais orientam sua participação em diferentes eventos de interação. Ainda de acordo com a referida autora, as representações cons- truídas por um sujeito particular não se reduzem à natureza da lín- gua(gem), mas, sim, às relações estabelecidas com o “objeto” língua(- gem) pelos grupos nos quais o sujeito foi socializado – as quais in- cluem, por exemplo, a dualidade certo e errado da língua, as variações de usos, a configuração e diferenças entre gêneros de texto e tipologias textuais, as normas sociais de interação, da fala e da escrita, as práticas orais e escritas de interação entre outros aspectos que circunscrevem a ciência da linguagem. É possível dizer, também, que para o entendimento desse proces- so e de uma proficuidade da atividade de produção de texto, a imagem do docente é primordial – opondo-se a intervenções vagas – posto que a orientação consciente e planejada do professor é necessária para que o aluno seja inserido nas práticas de linguagem típicas do âmbito discursivo a ser explorado (Pereira; Basílio; Leitão, 2017). Nas relações entre professor e aluno, Vygostky (1988) concebe o homem como um ser social, “um organismo vivo, dotado de propriedades biológicas e que tem comportamentos; mas, é também um organismo consciente, que se sabe possuidor de capacidades psíquicas que as ideias, os proje- tos e os sentimentos traduzem” (Bronckart, 1999, p. 24). Destacamos, igualmente, que, para além do professor, há destinatários (pré)defini- dos os quais apresentam características similares ao do educador. Nessa perspectiva, a produção linguageira é de total responsabi- lidade dos agentes dotados de representações e/ou saberes – os cha- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 198 mados mundos formais nas proposições de Habermas (1987) – sob um meio constituído de elementos definíveis (Bronckart, 2019), qua- lificado de situação de produção. Essa traduzida por um registro si- tuacional, isto é, por uma relação de agente verbal com um contexto espacial e temporal, inscrito em um contexto de formação social ou, mais precisamente, em uma forma de interação comunicativa inerente ao mundo social (as normas, os valores, as regras, os acordos sociais, por exemplo) e ao mundo subjetivo (a representação que se dá de si ao agir) (Bronckart, 2019). Além do mais, essas dimensões, que são frequentemente refor- muladas pelo agente dependem, também, dos conhecimentos (re) elaborados a partir dos domínios discursivos (dimensões praxeológi- cas) do entorno linguageiro, bem como da função social e objetivos das práticas de linguagem (dimensão sociológica). Bronckart (2019) assegura ainda – e concordamos com ele – que esse conjunto repre- sentativo complexo constitui o real contexto da produção de um texto pelo agente verbal, exercendo sobre tal uma espécie de controle acerca de aspectos ilocutórios, ou seja, uma base de orientação3, a partir da qual, uma série de decisões deve ser tomada pelo agente-produtor. Assim, a ação de linguagem exige de um agente um conjunto de decisões (Bronckart, 1999) vistas como tarefas a serem realizadas por operações, “não inatas, mas apreendidas no decorrer da história dos agentes, no quadro das diferentes atividades e avaliações sociais que participam” (Machado, 2005, p. 252). 3 Relaciona-se à situação material de produção [...] remetendo-se ao dizível, ao lugar social em que ocorre a interação e aos propósitos que orientam a realização da ação de linguagem” (Matencio, 2007, p. 58). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 199 Nesse viés, as reflexões desenvolvidas suscitaram-nos o interesse em investigar, no quadro da atividade social, fundamentada no aporte teórico do Interacionismo Sociodiscursivo (doravante, ISD), a dimen- são linguístico-discursiva que revela ações reconhecidas, reiteradas e/ ou adquiridas por um agente-produtor para mobilizar saberes sobre a escrita de texto especializado no curso de Letras/Português de uma Instituição Federal, a partir da experiência com o gênero acadêmico abstract4. Dito de outra forma, como cada texto empírico produzido é único, possuindo um estilo próprio e individual (Bronckart, 1999), ou como lembra Benveniste (1970, 2006), reflete as semioses que o agente pratica em suas condutas verbais, únicas e irrepetíveis, con- vocando, portanto, deste, noções operatórias, isto é, conhecimentos adquiridos e validados nas e para situações específicas, interessa-nos desvelar a competência linguageira do agente produtor frente à ativi- dade de linguagem já mencionada, a qual acreditamos ser um papel importante na configuração e delineamento da singularidade de cada texto, mas também no atendimento proficiente do objetivo da ativi- dade de linguagem. 4 Decidimos nomear o texto acadêmico, produzido pelo estudante universitário, de abstract, conforme o seu objetivo, apesar de, em algumas passagens no texto, ser classificado como resumo; termo vago, a nosso ver para a análise que nos propomos neste estudo. Baseamo-nos, desse modo, em Motta-Roth e Hendges (2010, p. 152), as quais destacam que o abstract tem como objetivo “o de sumarizar, indicar e predizer, em parágrafo curto, o conteúdo ea estrutura do texto integral [...] persuadir o leitor a continuar a ler o texto integral, para convencê-lo de que o artigo que segue é interessante.” Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 200 Procedimento metodológico Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, posto que, como assegura Bortoni-Ricardo (2008), esse estudo não busca rela- ções entre fenômenos nem cria leis universais, mas procura entender e também interpretar fenômenos e processos socialmente situados em um dado contexto; como também, porque o pesquisador, nessa pers- pectiva, integra parte do processo de conhecimento e, a partir disso, interpreta os fenômenos, atribuindo-lhes significado (Moita Lopes, 2006). Além disso, inserida na pesquisa qualitativa encontram-se as pes- quisas do tipo exploratória-experiencial. Optamos pelo método ex- ploratório, pois, de acordo com as considerações de Gil (1994), esse tipo de pesquisa tem por finalidade primordial desenvolver, esclarecer ou até mesmo modificar conceitos outrora já formulados, com vis- tas à caracterização de problemas mais precisos. Nesse caso, o nosso interesse para a caracterização da competência linguística no âmbito acadêmico. Optamos, também, por procedimentos do método experiencial porque, ao privilegiar a voz de sujeitos colaboradores, vistos como tes- temunhas legítimas de eventos e processos de ensino/aprendizagem (Miccoli, 2014), consideramos que essa orientação se justifica por subscrever a um paradigma de pesquisa qualitativa no qual a teoria emerge da observação, de que os dados devem ser autênticos, pois, ao dar voz àquele que vivencia o processo, tem-se uma visão muito dife- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 201 rente, isto é, a visão sistêmica é ampliada quando aquele que viven- cia é quem conta a história (Miccoli, 2006), isto é, compreendemos o fenômeno da competência de acordo com a percepção do estudante universitário, que, neste estudo, se trata de um agente com históri- co acadêmico, o qual contempla, além do caráter formal, comuns ao cumprimento do componente da malha curricular do curso, a vivên- cia com atividades do letramento científico, na imagem de agente-pes- quisador. A competência linguageira: conceito, classificação e aplicação O conceito de competência5, desde a sua conceituação na Lin- guística6, por volta dos anos 1960, emergiu na área do trabalho ao longo dos anos 1980, sendo expandido e adaptado nas diversas áreas das ciências sociais, da educação e da formação. Dias (2010) pontua que a partir dos anos 70, do século XX, a competência surgiu asso- ciada à qualificação profissional, vinculando-se ao posto de trabalho e associando-se ao coletivo, à organização. Nas palavras de Cristovão (2007, p. 259), “no campo de formação, o termo é discutido em rela- 5 Segundo o dicionário eletrônico “Origem da Palavra”, competência do latim competentia, “proporção”, “justa relação”, significa aptidão, idoneidade, faculdade que a pessoa tem para apreciar ou resolver um assunto. Remete à Idade Média, século XV, estando restrito, à época, à legitimidade e à autoridade das instituições (por exemplo, o tribunal) para tratar de determinados problemas. Já no século XVIII, o significado do termo competência é ampliado para o nível individual, voltado para a capacidade devida ao saber e à experiência (Dias, 2010). 6 Para Bronckart (1999, p. 43), trata-se de “um desenvolvimento orientado internamente por propriedades do sujeito e capacidades inatas que se adaptariam ao meio.” Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 202 ção à qualificação para o trabalho”. Esse conceito, historicamente, tem sido utilizado em diferentes contextos e como referência a diversos fe- nômenos, assim, tanto ele quanto os outros relacionados (competir, competente etc.) tornaram-se polissêmicos, produzindo, como tal, ambiguidade em relação à descrição dos fenômenos aos quais estes se referem ou podem se referir (Santos et al., 2009). Do ponto de vista conceitual, trazendo bases para novas reflexões, apresentamos uma releitura ao conceito de competência e, portanto, chamaremos de competência linguageira; conscientemente, fazemos empréstimo, essencialmente, deste (Bulea, 2010) para nomear e inter- pretar o agir do agente de nossa pesquisa frente às práticas de escrita no curso acadêmico. A noção de competência linguageira recebeu desta- que nos estudos encaminhados por Bulea (2010), para qual assinala la- cuna quanto ao estatuto teórico das definições atribuídas ao termo. A autora questiona o conjunto de contradições que atravessam, especial- mente, a abordagem da competência como recurso(s), bem como se a competência assim definida responde aos desafios iniciais atribuídos a essa noção, ou se ela, afinal, somente substitui acidentalmente o estatis- mo e a a-contextualização que deveria assumir (Bronckart, 2017). Em uma tentativa de solucionar a contradição, a autora esclarece: considerar esse desdobramento mediacional nos conduz enfim a reformular levemente a definição de competência que havíamos proposto em trabalhos anteriores (confira Bulea e Bronckart 2005), considerando esta como um processo praxio-semiótico de revivificação das propriedades dinâmicas que os recursos, internos ou externos, comportam por seu próprio engendramento no quadro do agir e cujo desdobramento exerce efeitos reestruturantes (os quais se deseja que sejam positivos) sobre esses recursos. (Bronckart, 2017, p. 114, grifo nosso). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 203 Desse modo, assumiremos, neste texto, competência linguagei- ra como conhecimentos/saberes mobilizados ou representações (re) construídas, mediados pela linguagem7, por um agente a partir do processo de socialização de acordo com as particularidades da instân- cia na qual se situa, a fim de executar tarefas encaminhadas por um determinado destinatário, o saber-fazer. Esse processo implica, de um lado, conhecimentos específicos acerca de ações individuais e sociais envolvidas na tarefa; e de outro, a representação de uma identidade linguageira com a qual se permite agir com, sobre e por meio do sis- tema da língua, o saber-dizer. Nesse recurso, decorrem ações diversas concebidas de capacidades de linguagem e habilidades cognitivo-lin- guísticas no transcorrer do próprio agir do agente-produtor. Assim, a competência linguageira permite avaliar, mas também conhecer, o nível do domínio de gerenciamento do processo de escrita e o grau de engajamento enunciativo do produtor. Visualizamos essa conceitua- ção ilustrada na Fig. 1, a seguir, baseada no triângulo de Vygotsky, que interpõe a competência, como validação de uma identidade linguagei- ra interpretada pelo agir com, sobre e através de recursos da língua, na relação entre operações de linguagem e agenciamento de recursos linguageiros ou capacidades e habilidades. 7 Nessa perspectiva, para fazer justiça à abordagem global do ISD, vista como uma “ciência do humano”, utilizaremos o termo linguageiro, posto que [...] a linguagem não é (apenas) meio de expressão de processos que seriam estritamente psicológicos (percepção, cognição, sentimentos, emoções) [...] mas é, na realidade, o instrumento fundador e organizador desses processos, em suas dimensões especificamente humanas (Bronckart, 2006). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 204 Figura 1: Visão da caracterização de competência linguageira de um agente-produtor Fonte: Oliveira (2021). Nos tópicos a seguir, revisitamos, brevemente, cada um desses re- cursos estabilizados e importantes para o desenvolvimento da compe- tência linguageira associada à situação da imediata prática de escrita. Capacidades e operações de Linguagem para a escrita de textos De acordo com Dolz e Schneuwly (2004, p. 44), as capacidades são apresentadascomo “aptidões requeridas do aprendiz para a produção de um gênero numa situação de interação determinada”. Ou ainda, no di- zer de Cristovão (2007a; 2007b), uma série de operações de linguagem necessárias à identificação e escolha de parâmetros textuais coerentes às atividades de linguagem e aos respectivos agires. Isto é, estão dispostas no ambiente social e devem ser aprendidas – mas também sistematiza- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 205 das e dominadas – no seio das diferentes atividades e avaliações sociais de que participam os membros da sociedade, quando há motivos claros e objetivos específicos no quadro de uma atividade social. A título de esclarecimento, na proposta original8 (Dolz, Pasquier, Bronckart, 1993; Dolz, Schneuwly, 2004), as capacidades de linguagem seriam de três ti- pos: capacidades de ação, capacidades discursivas e capacidades linguís- tico-discursivas – funcionando de forma articulada para o processo de compreensão escrita, embora se apresentem dispostas separadamente, conforme nos lembram Cristovão e Stutz (2011). As capacidades de ação demandam da parte de quem escreve a ativação de conhecimentos e/ou representações sobre as característi- cas do contexto de produção/ componentes da situação comunica- tiva e da “adoção” do gênero de texto, ou ainda, baseadas em Dolz, Pasquier, Bronckart (1993), Souza, Stutz (2019, p. 117) esclarecem que se tratam da relação entre ações realizadas verbalmente “às diver- gências do meio social”. De modo geral, importam-se, a este nível, os componentes físicos e sociossubjetivos (Bronckart, 2017). É isso que permite ao agente, em situação de escrita, mobilizar operações em vir- tude das metas/objetivo e dos interlocutores. As capacidades discursivas exigem do produtor a mobilização de “modelos discursivos” (Dolz; Schneuwly, 2004, p. 44), isto é, conheci- mentos inerentes ao conteúdo e apresentação de um texto, tais como os tipos de discurso, as tipologias textuais – conferir Habilidades cognitivo- -linguísticas – enfim, as características próprias de um gênero de texto. 8 Cristovão e Stutz (2011) e Cristovão (2013), em seus estudos, apresentam um desdobramento das capacidades, acrescentando mais uma, a qual corresponde às capacidades de significação. Nas pesquisas, as autoras afirmam que esta se alia às três capacidades anteriores e que só é possível compreender a partir da tessitura das capacidades com o contexto mais amplo. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 206 As capacidades linguístico-discursivas levam em conta as in- tenções do produtor que faz uso do sistema da língua, para o qual concorrem aspectos inerentes à planificação do discurso, isto é, os mecanismos de textualização e enunciativos. Portanto, “as operações psicolinguísticas e as unidades linguísticas” (Dolz; Schneuwly, 2004, p. 44). Essas emolduram a relação entre a materialização dos vários significados com as escolhas linguísticas dados os elementos dispostos na superfície textual (Souza; Stutz, 2019). Habilidades cognitivo-linguísticas para a escrita de texto Em seu estudo, Jorba (2000) discorre sobre a relação entre ha- bilidades e tipologias textuais (ou tipos textuais, a depender da fonte consultada), bem como sobre a sua importância em ativá-las quando se produz um texto do tipo descritivo, narrativo, explicativo, argu- mentativo ou instrutivo. Contudo, apesar de nos estudos linguísticos a abordagem acerca desta categoria pareça estar descrita e solidificada – Machado (2005) reforça que tal conceito, apresentado por Adam (1992), foi retomado e reformulado criticamente por Bronckart, no seu quadro – para expansão deste objeto, as chamadas sequências, responsáveis pela planificação propriamente linguísticos ; nesse caso, características também da infraestrutura, a priori anunciada, assume cinco tipos: narrativo, descritivo, argumentativo, explicativa e dialo- gal – esta última não indicada por Jorba (2000), o que não nos pare- ce estar em contestação, prova concreta é que alguns especialistas em estudos da linguagem admitem a existências de outras, por exemplo Marcuschi (2005), que considera os tipos expositivo e injutivo, em conformidade com Bronckart (1999). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 207 Com base no raciocínio acima, retomamos a abordagem traça- da por Jorba (2000), que associa a categoria tipológica a habilidades cognitivo-linguísticas como centrais no processo comunicativo, pois ele assume que estas atuam como mediadoras para o aprimoramento das produções orais e escritas, posto que “são habilidades como [...] analisar, comparar, classificar, interpretar, inferir, deduzir, sintetizar, aplicar, valorar [...] que os alunos ativam de maneira constante na re- alização das diferentes atividades em que são inseridos” (Jorba, 2000, p. 30, tradução nossa9). Observamos a ilustração na Fig. 2, a seguir: Figura 2: Relación entre habilidades cognitivas y tipología textual 9 “[...] son habilidades como, por ejemplo, analizar, comparar, clasificar, interpretar, inferir, deducir, sintetizar, aplicar, valorar, etc., que los alumnos activan de manera cons- tante em la realización de las diferentes tareas que se les proponen” (Jorba, 2000, p. 30). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 208 Conforme é visualizado, Jorba (2000) inclui as tipologias, habi- lidades tais como de descrever, definir, resumir, explicar, justificar, ar- gumentar e demonstrar. Além disso, a relação existente entre ambas é complexa, porque as habilidades cognitivas possibilitam e ativam as habilidades cognitivolinguísticas que determinam, a partir de diferen- tes formas de planificar a linguagem no interior do texto – “compo- nentes que atravessam todos os gêneros” (Bonini, 2005, p.218), me- diante as tipologias textuais. Essas habilidades, por sua vez, quando gerenciadas nas práticas de escrita, são essenciais para situar o processo de letramento acadê- mico como também impactam na atuação do agente produtor em de- mandas científicas, as quais exigem entendimento e posicionamento mediante raciocínios lógicos. O aprendiz/agente-verbal e a competência linguageira para a escrita do abstract O aprendiz/agente-verbal trata-se de um estudante universitário do curso de Letras/Português de uma instituição Federal, que apresen- ta, em seu histórico acadêmico, atuação em monitoria de componente curricular, atuação como bolsista em Programa Institucional de Bol- sas de Iniciação à Docência (PIBID) e em Programa Linguístico-cul- tural para Estudantes Internacionais (PLEI). Por sua vez, o abstract produzido, de acordo com a percepção do estudante, foi submetido e aprovado em evento científico na área de Ensino de Língua Materna para estrangeiros. Tal texto foi fruto de atuação como docente no Pro- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 209 grama Linguístico-cultural para Estudantes Internacionais (PLEI). Como a finalidade é ter uma proposta de trabalho aceita, o agente, na experiência com a escrita do texto, buscou atender às orientações de produção das normas específicas do evento, citando os movimentos retóricos que se refletiam às da comissão científica: objetivo; metodo- logia; teoria; resultados, além de atender ao número de palavras, 250, e conter palavras-chave. A proposta teve o aceite da comissão e foi “ava- liada” positivamente. Desse modo, para a condição de produção do abstract, destaca- mos que se insere em uma prática de letramento científico recorren- te: a submissão de trabalhos a sessões de comunicações. Assim, exigia do agente-produtor competência no que compete ao atendimento das normas, à modalidade de participação, devendo seguir os prazos disponibilizados pelo evento científico, visto que seguindo tais ações não há garantia de feedbacks e/ou maiores interações,apenas o pare- cer (favorável ou não) da proposta de trabalho por meio da carta de aceite, também com prazo de envio pela comissão científica. Assim, como o contato entre o agente e a comissão era inteiramente virtual, a partir de um preenchimento de formulário de inscrição disponível no site do evento, o produtor, na fase pré-textual, deveria cumprir alguns requisitos, tais como atendimento à modalidade de participação que compreendesse o seu perfil: alunos de graduação para comunicação in- dividual: apresentação, pelo(s) autor(es), de trabalho relativo à pesquisa ou experiência profissional; adequação à temática do evento – desafios no ensino de PL2/PLE: do universo acadêmico para a sala de aula – e às normas para submissão de trabalhos, apresentadas em aba específica na página do evento. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 210 Sobre esse último, conforme página oficial do evento para qual o agente submeteu o abstract, as normas de orientações para a produ- ção do gênero acadêmico expressavam os seguintes aspectos: preenchi- mento do cadastro no menu formulário de inscrição; cópia ou escrita do resumo em caixa de texto localizada na parte inferior do formulário de inscrição; extensão do resumo contendo entre 150 a 250 palavras. Instruções para a formatação e encaminhamento do texto pouco es- clarecidas, esperando, supostamente, do proponente, habilidades aca- dêmicas ancoradas em orientações prévias centradas em aspectos es- truturais e linguísticos do texto pertencente ao gênero solicitado pelo evento. Apesar de o evento não indicar as informações que deveriam estar situadas no exemplar, o agente-produtor já se mostrava compe- tente na configuração do texto, por ter produzido em outras práticas acadêmicas, de acordo com a sua percepção; por esse motivo, reco- nhecemos, em contato com o texto, clareza e objetividade quanto aos elementos principais do trabalho – tema, aporte teórico-metodológico e objetivos – com exceção de informações voltadas a resultados prévios do estudo, que não foram identificadas; articulação entre objetivos e abordagem teórico-metodológica; coesão e coerência textuais; ade- quação à modalidade escrita acadêmica. Vejamos, a seguir, o abstract em questão: Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 211 Excerto: Abstract A presente comunicação tem como motivação a experiência de ensino para alunos do Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), considerando a importância de se trabalhar com os gêneros textuais em sala de aula, sobretudo no contexto do ensino de Português como Língua Estrangeira (PLE), especificamente, relacionado aos gêneros exigidos como avaliação para a Certificação de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros, o Celpe-Bras, haja vista a variedade textual e situacional que cada gênero evidencia e exige do seu leitor. Assim, através deste trabalho, objetiva-se refletir sobre o uso dos gêneros textuais e suas contribuições tanto no ensino e avaliação de PLE como, principalmente, na formação de leitores e escritores críticos e conscientes de sua atuação na sociedade. Contudo, espera-se que os alunos de PLE saibam reconhecer e se adequar ao uso e aplicação dos gêneros, especialmente, àqueles abordados com mais frequência no Exame Celpe- Bras. Para tanto, como aporte teórico, este estudo fundamenta-se em Marcuschi (2008), Antunes (2006, 2009), Geraldi (1991) e Bunzen (2006). Em síntese, assume-se o pressuposto de que o trabalho sistemático com os gêneros textuais pode desenvolver competências e habilidades relevantes para o aprendizado e o domínio de uma nova língua. Fonte: Oliveira (2021). No excerto, reconhecemos os organizadores textuais: assim, con- tudo, para tanto e em síntese com o propósito de indicar as diversas conexões entre os períodos do texto. Desse modo, antes de apresentar o objetivo do estudo, importante para este modelo de texto, e marca- do pelo conectivo assim, o agente-produtor contextualiza o tema, ao citar o programa de atuação, PEC-G, que é central ao evento para o qual o abstract foi submetido e destaca a importância do objeto para o programa. Entretanto, tal apontamento é apresentado a partir de três movimentos, marcados por advérbios de valores distintos, os quais se- guem: o primeiro, de modo mais abrangente, relaciona o objeto ao Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 212 contexto sala de aula, utilizando-se de uma forma nominal, conside- rando. Nesse movimento, o agente-produtor busca evidenciar a rela- ção entre a experiência no programa referido e o objeto de estudo. No segundo movimento, realizado a partir do uso do advérbio de intensidade, sobretudo, está associado ao contexto também de inte- resse do evento, português como língua estrangeira. É nesse movimen- to que o agente estabelece a relação de sua pesquisa aos objetivos do grupo de discussão, distinguindo-o por meio da indicação da área de estudo. No terceiro, de caráter mais restrito, o agente reporta-se a um importante exame e o relaciona ao seu objeto de investigação, marca- do pelo advérbio especificamente. É nesse sentido, possivelmente, que o agente indica a contribuição da pesquisa e a validade de ser sociali- zada. Ainda no mesmo movimento, antes da marcação do objetivo, o agente-produtor, depois de ter reportado, justifica tal escolha por meio da locução haja vista, o que catalisa a declaração, para, diante da exposição, apresentar o objetivo caracterizando como ideia conclusi- va, por se utilizar do conectivo assim. Convém destacarmos a escolha da expressão através de feita pelo agente que, embora seja considerada desvio de norma padrão, uma vez que, orienta-se o uso da expressão por meio de (ou de similares: por intermédio, a partir de etc.), como recurso linguístico para significar o seu estudo como instrumento, pois é por meio “deste trabalho”, é por intermédio da investigação que o objetivo é findado. O segundo orga- nizador textual, marcado pelo conectivo contudo, parece atuar como orientação, se considerarmos o uso do advérbio especificamente como esclarecimento, pois a relação de oposição não nos parece a mais asser- tiva tanto no exemplar quanto na sequência empregada. O organiza- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 213 dor para tanto, atuando como retomada do que já fora explorado com sentido condicional, é justificado pelo aporte teórico definido, posto que, de acordo com a exposição, acreditamos que o embasamento em destaque parece ser mais preciso, sendo, apenas, listado e marcado pela adição e. O resultado do estudo é indicado pelo elemento de conexão em síntese, que caracteriza a conclusão da proposta. Além dos elementos de conexão identificados, reconhecemos igualmente a coesão nominal, vista como modos de introduzir infor- mações e organizar as possíveis retomadas. Ainda no texto em análise, notamos que é iniciada com a introdução da unidade-fonte definida A presente comunicação, retomada por seleção lexical que atua sobre o mesmo grupo semântico: trabalho e estudo. Inferimos que a pouca frequência de retomada da unidade-fonte esteja relacionada à falta de clareza da comissão quanto aos elementos reconhecidos para o abs- tract, pois, apesar de agente-produtor demonstrar familiaridade com os aspectos constituintes do gênero acadêmico em questão, conforme observado no nível da gestão textual10, a indicação por meio de cone- xões entre fases da estrutura não se assemelha ao que, costumeiramen- te, constitui ao “modelo” de texto. A afirmação não é restringir o texto à forma, pois acreditamos, de acordo com a discussão empregada, que a adaptação ocorre a partir da base de orientação. Então, quando esta é elucidativa, é provável que implique o gerenciamento das escolhas linguísticas. 10 Refere-se “à transformaçãodos parâmetros que orientam a ação de linguagem em representações internas que regulam a atividade global de linguagem” (Matencio, 2007, p. 58). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 214 Assim como há um levantamento sobre a configuração, apresen- tação e estrutura de determinado exemplar, interessamo-nos também a percepção sobre como o agente-produtor avaliava a sua competência escritora de acordo com as regras e propriedades comuns à prática de linguagem, a qual se revela da seguinte forma: Então... Em termo/então pensando em competência escritora... eu acho que se você... Chega no último período do curso... último não... penúltimo... mas para mim é o último. Eu acho que isso já demonstra um domínio por parte de quem escreve. E... Pensando também em competência escritora... eu me lembrei de um resumo que eu escrevi agora para um evento ... e eu escrevi uma única vez e submeti e foi aceito esse resumo, sabe? Assim, e eu já, eu já escrevi o resumo já pensando na estrutura do resumo... de ter objetivo... de ter a metodologia de ter resultado de ter autoria/os autores... né, o referencial teórico... Então já escrevi uma única ve::z e é isso Enviei e foi aceito e eu vou apresentar também um pôster... Então eu acredito que em termos de competência escritora... Digamos que... Eu já tenho experiência. (Comentário11 do estudante universitário do abstract, grifo nosso) Nesse sentido, destacamos a percepção do estudante a respeito de decisões tomadas a partir do plano geral do texto que precisou produ- zir. O seu abstract demonstra o conhecimento, visto que o conteúdo temático foi organizado a partir de um plano de texto e de sequências 11 Os comentários transcritos seguiram as normas de transcrição gravadas em áudio segundo adaptações de Marcuschi (2001). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 215 prototípicas do gênero de texto alvo da ação de linguagem, nesse caso de um abstract. Com isso, podemos inferir que (1) se trata de uma produção de texto acadêmico, “resumo que eu escrevi agora para um evento”; (2) norteou-se, possivelmente, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou pelas orientações específicas do evento; (3) se define como “apresentação concisa dos pontos relevantes de um documento” (ABNT, 2003, p. 1), “ter objetivo, de ter a metodologia, de ter resultado, de ter autoria/os autores, né, o referencial teórico...”. A decisão tomada foi exitosa, porque atendeu ao esperado pelo evento, uma vez que foi aprovado: “Enviei e foi aceito”, mas também porque as representações construídas pelo estudante são possíveis em virtude da vivência e experiências ou dos valores precisos a cada parâmetro do contexto aos elementos do conteúdo temático mobilizado, não por acaso, o agente afirma: “Então eu acredito que em termos de competên- cia escritora... Digamos que... Eu já tenho experiência.”. Assim, esclare- ce Bronckart (1999/2012), em ação de linguagem, o agente constrói representação sobre a interação comunicativa e apresenta conheci- mento exato sobre sua situação no espaço-tempo, como consequência mobiliza operações discursivas entre outras. Tal afirmação é igualmente ilustrada, segundo percepção do estu- dante quando há também um levantamento sobre os modos de aten- dimento da produção entre agentes inseridos na mesma atividade de linguagem, como podemos notar a partir do comentário feito acerca das práticas de escrita utilizadas para a produção textual: Ah às vezes assim quando é avaliação a gente compartilha as avaliações com um colega e aí um ou dois leem E aí “Ah, [nome do estudante], ficou bom”, “Ah, é isso mesmo”, então Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 216 Às vezes a gente compartilha no grupo do WhatsApp uma res- posta de alguma questão E aí “E aí, vocês gostaram? É mais ou menos esse caminho?”, “É, está bom”. Então o procedimento é esse, é releitura e compartilhar com os colegas e ver a opinião deles. (Comentário do estudante universitário do abstract, grifo nosso) No trecho, agente produtor do abstract declara que o gerencia- mento de uma escrita de texto pertencente a diferentes gêneros textu- ais para atender a finalidades avaliativas, quando o lugar de produção não se situa no ambiente acadêmico, é realizado a partir da interação com os pares. Entendemos que não basta o agente interiorizar as re- presentações do mundo social e subjetivo, necessita também compar- tilhar com o intuito de se assegurar na representação do outro, suge- rindo, então, a imagem de coenunciadores e/ou leitores da produção, podendo ser fictício ou, parcialmente, simulado. Desse modo, o jul- gamento de valor dos protagonistas da situação comunicativa deter- minada valida a atividade escrita previamente à leitura e avaliação do destinatário prévio. Considerações finais Identificamos que há distintas capacidades que estão interligadas e, quando ativadas, contribuem para o que agente-produtor aprimore, ressignifique para a textualidade do texto pertencente ao gênero, posto que, conforme a análise da percepção do estudante universitário acer- ca da produção do seu abstract, o processo de escrita é heterogêneo, Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 217 dinâmico, complexo, não se apoiando na “modelização” do gênero, pelo contrário, tais capacidades são ativadas mediante abordagem di- dática, imersão, participação em práticas sociais letradas entre outros aspectos. Ainda a respeito, destacamos que os dados indicam que os parâmetros do contexto sociossubjetivo são construídos lentamente, de acordo com a experiência da vida social, nesse caso, através das re- presentações sobre o curso, sobre as leituras de textos de gêneros dis- tintos, sobre participações em eventos de letramento, podendo, tam- bém, serem modificadas continuamente. Além disso, reconhecemos a estreita relação entre objetivo, motivação, intenção com a capacidade de o agente-produtor saber tomar decisões frente a outras práticas so- ciais, visto que, quanto à planificação, as sequências são atualizadas no texto mediante a funcionalidade, o estilo, a composição do gênero. Por esse motivo, um “modelo” decorre, por um lado, de repre- sentações construídas acerca da esfera de comunicação em que o agente-produtor se encontra, das experiências a partir de formas de encaminhamento do texto, por parte de um destinatário prévio, mas também do contato com textos validados na área de atuação; por ou- tro lado, das representações construídas acerca do nível da arquitetu- ra. Logo, têm-se esquemas mentais que são atualizados em situações de atividade de modo a planejar e planificar a estrutura de um texto, como também pelo reconhecimento da funcionalidade e especificida- de do gênero textual. Nesse sentido, quanto mais envolvido com ações do domínio acadêmico, em especial, é possível que os conhecimentos responsáveis pela configuração de esquema mental sejam aprimorados e ressignificados para, por fim, serem textualizados, conforme percep- ção do estudante universitário. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 218 Em razão disso, os resultados demonstram que a competência linguageira não é constituída aprioristicamente, mas sim, além do já mencionado caráter de formação e vivência acadêmica, do engajamen- to e do interesse em conhecer os acordos (pré)estabelecidos entre os agentes sociais, tais como buscar entender o propósito comunicativo, como também a arquitetura textual e a socio-pragmática do texto es- crito pertencentes a gêneros da rotina acadêmica. Referências ADAM, J. M. Les textes: types et prototypes. Paris: Nathan, 1992. BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1970/2006. BONINI, A. A noção de sequência textual na análise pragmático-textual de Jean-Michel Adam. In. MEURER, J. L; BONINI,A.; MOTTA-ROTH, D. (Org.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola, 2005. p. 208- 236. BORTONI-RICARDO, S. M. O professor pesquisador: introdução à pesquisa qualitativa. 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De modo geral, os discentes oriundos da Educação Básica, ao ingressa- rem em uma universidade, passam a se deparar com diversos gêneros textuais próprios desse domínio social discursivo, os quais precisarão, por exigência, ler e produzir. Por ser assim, faz-se necessário encarar a leitura e a escrita numa perspectiva sociocultural, compreendendo-as como práticas sociais si- tuadas em contextos específicos (Street, 2003, 2010, 2014), tal como defendido pelos Novos Estudos do Letramento. Além disso, é impres- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 224 cindível recorrer à abordagem dos Letramentos Acadêmicos, reconhe- cendo, conforme Lea e Street (1998, 2014), que os estudantes são ex- postos a um caráter ideológico em seu contexto acadêmico particular. Essa abordagem considera “os processos envolvidos na aquisição de usos adequados e eficazes de letramento como mais complexos, dinâ- micos, matizados, situados, o que abrange tanto questões epistemoló- gicas quanto processos sociais” (Lea; Street, 2014, p. 479), relativos, por exemplo, às relações de poder e identidade. Dentre os diferentes gêneros com os quais tais discentes passa- rão a conviver em suas atividades de leitura e escrita, está a resenha acadêmica. Para a produção desse gênero, é necessário partir de um texto-base, que será avaliado e transformado em outro texto pelo re- senhista. Possibilita, assim, o posicionamento do aluno-produtor en- quanto membro da comunidade na descrição, análise e avaliação de uma determinada obra científica. Nessa perspectiva, para este trabalho, temos por objetivo investi- gar a experiência de produção do gênero resenha acadêmica de estu- dantes ingressantes no curso de Letras-Português de uma instituição pública brasileira. Tal experiência ocorreu em uma disciplina intitu- lada “Letramento Acadêmico”, ofertada para o 1º período do curso. Essa disciplina, conforme a ementa, se volta para o estudo de práticas de leitura, escrita e divulgação de textos pertencentes a gêneros acadê- micos (como fichas, resumos, resenhas, artigos científicos), abarcando arquiteturas textuais e aspectos ideológicos do fazer científico. Por assumirmos a perspectiva dos Letramentos, acreditamos ser importante ouvir as vozes daqueles que estiveram diretamente envol- vidos nesse processo de escolarização, de modo a considerar os signifi- Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 225 cados que construíram durante a produção textual em destaque. Isso porque esses estudantes desenvolvem práticas de letramento (Street, 1995, 2003, 2014), respaldadas em determinadas concepções de es- crita, valores e atitudes diante das tarefas realizadas, assim como cons- truções sociais, culturais e ideológicas do contexto específico. Dessa forma, a nossa investigação é realizada a partir das vozes dos estudantes que encararam a demanda de produzir uma resenha acadêmica na dis- ciplina supracitada. Diante de todo esse contexto, o presente texto segue a seguinte organização: após esta introdução, apresentamos os aportes teóricos que sustentam o trabalho; logo após, indicamos os procedimentos metodológicos adotados; além disso, expomos a análise de nossos da- dos, seguida de algumas considerações finais e da lista de referências. Fundamentação teórica: a abordagem dos Letramentos Acadêmicos e o gênero resenha acadêmica Como abordado por Street (1995, 2003, 2010, 2014), a partir dos Novos Estudos do Letramento, os usos da leitura e da escrita pas- saram a ser vistos sob as lentes das práticas sociais vivenciadas pelas pessoas. Nesse viés, tornou-se necessário considerar, de maneira espe- cial, os contextos e objetivos aos quais esses usos estão diretamente relacionados, uma vez que são orientados segundo práticas culturais discursivas, dependentes da esfera e de seus arranjos sociais. Há, assim, o reconhecimento de que existem múltiplos letramentos e que estes variam conforme espaços e tempos, além de serem contestáveis por meio das relações de poder existentes. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 226 Especificamente em contexto acadêmico, Lea e Street (1998, 2014), ao investigarem as percepções e práticas de uso da escrita por universitários do Reino Unido, identificaram três abordagens: a) a abordagem das habilidades de estudo, inerentes a um conjunto de habilidades autônomas que os alunos precisam aprender relativo à superfície ortográfica e gramatical dos textos; b) a abordagem da so- cialização acadêmica, considerando que a “cultura” acadêmica, vista como homogênea, requer discursos e gêneros característicos, os quais os discentes precisam dominar; c) a abordagem dos letramentos aca- dêmicos, que prevê um caráter ideológico nas práticas de letramento e compreende as particularidades de cada contexto, de modo a requerer a implantação de um repertório de práticas linguísticas adequado e lidar com os significados sociais e identidades que cada um evoca. Lea e Street (1998, 2014) ressaltam o fato de que essas abordagens não são excludentes, mas, ao contrário, cada uma encapsula sucessivamente a outra, sendo, por isso, igualmente úteis a determinados propósitos. Em contexto brasileiro, muitos estudos já consideram essas discus- sões e apresentam importantes ponderações sobre o ensino da escrita acadêmica. Marinho (2010) aponta que as maiores dificuldades dos alu- nos quanto à escrita acadêmica parte do pressuposto do senso comum de que adentrar o discurso acadêmico preceitua-se apenas no domínio da norma padrão da língua, principalmente em se tratando da produ- ção textual. Ao adentrar o espaço universitário, como aponta a autora, a maior estranheza dos alunos e, até temor, é referente aos gêneros tex- tuais aos quais precisam ler e produzir durante seu percurso acadêmico. Devido aos avanços dos estudos de letramentos, passou a ser pos- sível notar que as dificuldades apresentadas pelos discentes na leitura e Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 227 produção textual se configuravam pela falta de conhecimento/contato que tinham com os gêneros acadêmicos. Como os gêneros solicitados não são, até então, familiares aos discentes, por não serem próprios dos contextos em que eles estão habituados antes de seus ingressos na academia, gera-se um certo conflito por não haver uma correspondên- cia entre as práticas dominadas e aquelas que lhes são exigidas nesse contexto (Fiad, 2011; Marinho, 2010). Em alguns casos, inclusive, as práticas escritas acabam se tornan- do cada vez mais extintas, pois o aluno forja, a partir de sua experiên- cia negativa, um distanciamento com essas práticas discursivas acadê- micas (Marinho, 2010). Consequentemente, conforme discute Fiad (2011), os letramentos dos discentes não são reconhecidos e, em de- terminadas instâncias, eles são vistos como sujeitos iletrados. Toda essa conjuntura, de forma latente, é fomentada no discurso que escrever na academia deve ser uma prática oriunda da aprendizagem de língua na Educação Básica. Marinho (2010), para contrariar essa concepção academicista, muito presentesno léxico de alguns professores universitários, faz referência às afirmações de Bakhtin, que assegura que “são muitas as pessoas que, dominando magnificamente a língua, sentem-se logo desamparadas em certas esferas da comunicação verbal, precisamente pelo fato de não dominarem, na prática, as formas do gênero de uma dada esfera” (Bakhtin, 1997, p. 303 apud Marinho, 2010, p. 05). Fiad (2011), igualmente, compreende que o engajamento do ensino a par- tir da perspectiva dos Letramentos Acadêmicos situa-se nos usos de leitura e de escrita em contextos sócio-histórico-culturais específicos. Nesse viés, se é a esfera acadêmica que demanda tais gêneros, faz-se Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 228 logo compreensível a necessidade de eles serem ensinados aos alunos a partir do momento que ingressam a esse novo contexto. Sendo assim, disciplinas como Letramento Acadêmico – foca- lizada neste estudo – surgem nas grades curriculares dos cursos de graduação das universidades públicas para abarcar a apropriação dos gêneros que irão permear o cerne da aprendizagem dos discentes, con- tribuindo para a vivência com modos específicos e situados de leitura e de escrita. Entendemos, contudo, que “a leitura e a escrita devem ser ensinadas em todas as disciplinas, a partir do que é requerido por cada contexto situado” (Costa Filho; Silva, 2023, p. 2), e não somente naquelas de natureza similar a Letramento Acadêmico. Com relação às noções sobre gêneros textuais, para Marcuschi (2008), estes são formas de manifestação multidisciplinar responsáveis por estruturar um discurso (quem fala) para atingir propósitos comu- nicativos que circulam diferentes esferas sociais (quem ouve). Por isso, para o autor, estudar e aprender esses gêneros é de extrema importân- cia dentro da aquisição da escrita, seja qual for o seu contexto. Para entendermos esse processo de aprendizagem da escrita utilizando o gênero textual, é preciso que enxerguemos esses gêneros não apenas como estruturas rígidas a serem seguidas, mas como uma ferramenta interdisciplinar da língua. São formas culturais e sociais de manifesta- ção discursiva, seja escrita, seja oral. Nesse sentido, assegura Marcus- chi (2008, p. 154), que “Quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar lin- guisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares”. O gênero resenha, de maneira particular, de acordo com Motta- -Roth e Hendges (2010, p. 27), é utilizado em ambiente acadêmico Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 229 com o objetivo de “avaliar - elogiar ou criticar - o resultado da produ- ção intelectual em uma área do conhecimento”. Além do teor avalia- tivo, espera-se, como indicado pelas autoras, uma descrição do con- teúdo avaliado. Desse modo, o objetivo comunicativo do produtor de uma resenha é fornecer uma opinião crítica, bem como informar sobre o produto intelectual avaliado. As autoras destacam que a resenha de livros é muito comum na área de Letras e apresentam a estrutura retórica do gênero, dividida em quatro etapas, quais sejam: apresentar; descrever; avaliar; (não) re- comendar o livro. Essas ações, também chamadas de movimentos re- tóricos, costumam aparecer nessa ordem e podem variar em extensão e em frequência. Dentro desses movimentos, Motta-Roth e Hendges (2010, p. 43) descrevem dez estratégias retóricas que podem ser utili- zadas pelo produtor, conforme o esquema abaixo: Figura 1: Descrição esquemática das estratégias retóricas do gênero resenha Fonte: Motta-Roth (1995, p. 143 apud Motta-Roth; Hendges, 2010, p. 43). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 230 O resenhador pode, assim, escolher empregar algumas ou todas as estratégias retóricas apresentadas. Definidas tais discussões teóricas, expomos, a seguir, os aspectos metodológicos adotados para a realiza- ção do presente estudo. Metodologia: classificação do estudo e procedimentos adotados Situado no âmbito da Linguística Aplicada (Moita Lopes, 2006), esse estudo pode ser classificado como uma pesquisa descritiva (Paiva, 2019), uma vez que buscamos apresentar características de um dado fenômeno. Além disso, pode ser classificado como um estudo de caso (Paiva, 2019), por considerarmos a investigação de um caso particular em profundidade. Utilizamos, para isso, de uma abordagem qualitati- va (Chizzotti, 2003), já que entendemos a necessidade de encontrar os sentidos do fenômeno destacado, bem como interpretar os significa- dos dados a ele pelas pessoas. Como dito anteriormente, destacamos as experiências de dis- centes do 1º período do curso de Letras: Língua Portuguesa, de uma universidade pública brasileira, com a produção do gênero textual re- senha acadêmica, na disciplina Letramento Acadêmico. A escolha da turma e da disciplina foi realizada a partir do pressuposto de que, para entendermos como funcionava o processo de desenvolvimento da escrita acadêmica, pudéssemos investigar através dos relatos dos pró- prios alunos nesse momento introdutório no contexto universitário. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 231 A geração dos dados foi realizada a partir de um questionário com 5 questões objetivas e discursivas, aplicado através da plataforma Google Forms, sobre a experiência do discente na produção da resenha acadêmica e quais as contribuições da disciplina para esse percurso. Todos os alunos que cursavam a disciplina Letramento Acadêmico no semestre 2022.2 foram convidados a participar, tendo sido obtido o retorno, por livre e espontânea vontade, de 10 desses estudantes. Apresentados tais aspectos metodológicos, passamos à análise e discussão de nossos dados. Análise e discussão de dados: a experiência de discentes ingressantes com a produção do gênero resenha acadêmica Ao se deparar com as experiências relatadas pelos estudantes em foco, é possível reconhecer as diferentes maneiras como eles lidaram com a produção do gênero resenha acadêmica. De início, é possível perceber certas dificuldades encontradas pelos alunos em produzir tal gênero. Mesmo aqueles que tiveram contato com esse gênero, antes da disciplina Letramento Acadêmico, não fogem de tal relato, pois a apresentação do gênero anterior à entrada na academia, aparentemen- te, não foi suficiente para que eles compreendessem a sua estrutura. É o que se observa na resposta da aluna A6, a seguir: Conhecimento superficial. Não tive muito aprofundamento no assunto no ensino médio da escola pública que estudei. O ensino foi o seguinte: apresentou o gênero, passou um tema e mandaram realizar a resenha. Eu na época produzi um resumo, pois o estudo Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 232 do gênero foi tão superficial que muitos nem aprenderam, só escreveram o que o professor mandou. O professor não corrigia a atividade (Resposta de A6, obtida através de questionário online). Tal relato corrobora com os ensinamentos de Fiad (2011) quan- to ao engajamento do ensino a partir da perspectiva dos Letramentos Acadêmicos. O fato de a resenha acadêmica não fazer parte do contex- to sociocomunicativo do Ensino Básico pode se refletir no “conheci- mento superficial”, descrito pela discente. Não há, portanto, o enga- jamento do ensino de um gênero que não faz parte daquele ambiente. Diante disso, entendendo ser a esfera acadêmica o ambiente ideal para o aprendizado de gêneros que ela própria demanda, o papel do professor nesse contexto é essencial. Conforme Garcez (2010), o pro- cesso de aprendizagem de escrita tem que ser pautado na participação assídua do professor. A orientação de um membro com autoridade no assunto, com instruções claras, contribui para que os alunos alcancem o objetivo de produção do gênero proposto satisfatoriamente. Nesse sentidoforam as respostas dadas pelos discentes participantes da pes- quisa. Os 10 entrevistados responderam que a apresentação oral do gênero resenha acadêmica pelo professor contribuiu positivamente para a produção dos textos. Ao justificar tal resposta, a discente A9 diz que: Ao me deparar com o gênero resenha não fazia mínima ideia de como realizar, após as orientações da disciplina de letramento acadêmico, consegui realizar e achei de suma importância para meu percurso acadêmico pois a partir dele tenho a noção para produzir outros gêneros (Resposta de A9, obtida através de questionário online). Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 233 Tal resultado demonstra a importância das orientações do pro- fessor para a produção da resenha. Além disso, segundo o relato aci- ma, tal experiência contribuiu também para a produção de outros gêneros próprios do contexto acadêmico pela discente. Certamente, uma orientação do professor pode minimizar as “práticas institucio- nais do mistério” presentes em muitos contextos disciplinares, como reconhecido por Lillis (1999), e auxiliar na compreensão de como o aluno deve realizar a produção proposta em seu contexto acadêmico. Diante das experiências desses participantes, ainda foi possível reconhecer outro fator importante para o desenvolvimento de letra- mentos acadêmicos: a reescrita. Sempre que nos inserimos em novos contextos sociocomunicativos, é necessário aprender os gêneros es- pecíficos demandados por tal ambiente, o que pode acarretar algu- mas inadequações durante o processo de aprendizagem. Isto posto, o feedback do professor e a possibilidade de reescrita são aspectos que podem colaborar com o bem-sucedimento na realização da atividade. Nesse sentido é o relato da discente A8: Com a possibilidade de reescrita permitida pelo professor, minha dupla e eu conseguimos absorver mais sobre o gênero a partir da correção dos nossos erros (Resposta de A8, obtida através de questionário online). Como ressaltado pelo relato da discente, a reescrita parece ter ajudado no processo de produção da resenha, de modo a permitir que os estudantes conseguissem “absorver mais sobre o gênero”. Essa prática, provavelmente, permitiu uma abordagem dialógica de ensino, que compreende “olhar o texto do aluno como estando em processo e Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 234 abrir espaço para conversas sobre o texto do aluno” (Lillis, 2003 apud Fiad, 2017, p. 96). Além do mais, a etapa de reescrita é um componente crítico no processo de aprendizagem da escrita acadêmica. Ela convida os alunos a refletirem sobre sua produção inicial, identificando possíveis lacunas na argumentação, falhas gramaticais ou inadequações na arquitetura do gênero. Essa autorreflexão leva a uma compreensão mais profunda do gênero e impulsiona a melhoria contínua do texto escrito. Para além de um processo de aquisição de um gênero textual, percebe-se que a atividade solicitada pelo professor, para ser realizada em dupla, corrobora com a discussão que permeia o cerne dos Novos Estudos do Letramento, que admite os letramentos como um fenô- meno social, adquirido através da interação com outros indivíduos dentro de um contexto sociocomunicativo, como aponta a discente A8 em sua resposta sobre ela e sua dupla. A relevância da reescrita manifesta-se em todas as respostas dos discentes como sendo um caminho para a aquisição efetiva do gênero ao qual, antes, a maioria não havia tido contato (gráfico presente no apêndice), assim como declara a discente A1: A reescrita foi necessária, pois nunca havíamos tido contato com esse gênero antes, ou seja, haveria alguns erros ao produzi-la (Resposta de A1, obtida através de questionário online). Ao exporem as dificuldades presentes em suas primeiras versões, que só foram percebidas com a possibilidade da reescrita, é possível perceber a necessidade de um processo de ensino-aprendizagem me- diado, inclusive para a inclusão de práticas de letramento com mais Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 235 prestígio em determinada sociedade. Esperar que um aluno oriundo de uma educação básica pública brasileira adentre a academia com conhecimentos sobre gêneros textuais que percorrem apenas dentro desse contexto pode fomentar o discurso de que a universidade deve ser ocupada apenas por classes sociais específicas. A escrita acadêmi- ca deve ser adquirida dentro das práticas de letramento específicas da universidade, através dos eventos de letramento que percorrem esse cerne. Segundo Street (2014), eventos de letramentos “são atividades particulares em que o letramento tem um papel e podem ser ativida- des repetidas, as práticas de letramento, no entanto, são modos cul- turais de utilização do letramento aos quais as pessoas recorrem num momento letrado”. Ademais, quando questionados sobre a participação desse pro- cesso dentro da disciplina Letramento Acadêmico, os discentes, em sua maioria, caucionam a participação do docente como sendo de maior valor para endossar o aprendizado, já que precisaram aprender o gênero textual em pauta do zero, como afirma a discente A5: Sim, bastante. Por essa falta, tive que aprender tudo praticamente do zero. (Resposta de A5, obtida através de questionário online) Tal afirmação contraria a visão academicista, muitas vezes presen- tes, que prevê que o aluno adentre esse contexto “sabendo escrever”. Assim como afirma Fiad (2011), não se trata de “saber escrever”, mas aprender uma nova prática letrada dentro de um evento de letramen- to. Ainda segundo Fiad (2011), com os avanços dos estudos dos letra- mentos, saber ler e escrever deixou de ser calcado em uma prática ad- quirida somente nas práticas escolares para ser compreendida dentro Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 236 de contextos sócio-históricos específicos. Para que ocorra o desenvolvimento da prática letrada em voga, é necessário que haja uma correspondência entre o letramento do aluno com o letramento exigido pela universidade. Dentro dessa perspecti- va, é preciso haver a compreensão do professor em relação aos letra- mentos que o aluno traz consigo enquanto participante de diferentes práticas e eventos de letramentos em variados modos de sociabilidade, dentro e/ou fora do ambiente escolar. Segundo Lea e Street (1998), al- guns conflitos que surgem no cenário acadêmico, quando é solicitada alguma produção textual desse contexto, ocorrem quando os docen- tes se posicionam antagonicamente à escrita dos discentes. Isso pode fazer com que o aluno acredite na crença fundante de um discurso excludente de que ele é iletrado/analfabeto para aquele ambiente so- cio-discursivo, de que não “sabe escrever”. Essa reflexão, com a abordagem na experiência dos discentes in- gressantes em uma graduação na produção da resenha acadêmica, traz à tona a necessidade de investir em estratégias pedagógicas, desenvolvi- das através dos Novos Estudos de Letramento, que valorizem a apren- dizagem dos gêneros acadêmicos e promovam a extensão das habilida- des de escrita dos alunos ao longo de sua trajetória universitária. Isso, certamente, contribuirá para que os estudantes, independente do seu percurso na educação básica, tornem-se membros efetivos da comu- nidade acadêmica, capazes de expressar-se e participar ativamente das práticas discursivas que permeiam esse meio, abandonando qualquer paradigma sobre o processo de “alfabetização” que já não está mais em uso. Produção de textos em contexto escolar e acadêmico Discussões teóricas e práticas 237 Assim, é imprescindível um ensino pautado em letramentos aca- dêmicos, tendo em vista que é um elemento essencial na formação dos estudantes universitários, possibilitando a aquisição de competências para a produção e compreensão dos gêneros próprios desse domínio social discursivo,