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Lições da história: os avanços de sessenta anos e a relação com as políticas de negação de direitos que alimentam as condições do analfabetismo no Brasil Osmar Fávero Advertência inicial Estão disponíveis análises das campanhas de alfabetização e educação de adultos, existem também acervos com documentação e diversos materiais produzidos por essas campanhas e movimentos. Não vou retomar esse histórico, mas revisitar algumas análises, fazendo um recorte específico: destacar das propostas dessas campanhas e movimentos e das informações sobre as ações por eles desenvolvidas algumas lições que nos ajudem a melhorar entender as necessidades da educação de jovens e adultos no momento atual e questionar as propostas atuais, procurando entender até que ponto significam avanços ou repõem perspectivas e experiências superadas. O analfabetismo/o analfabeto nos anos 1940/1950 O analfabetismo no Brasil é tema discussão desde a Colônia e o império. Mas é no início do século XX, principalmente após 1940, que passa a ser visto como um problema nacional pelo censo de 1940, foram mostrados os altos índices do analfabetismo cerca de 55% para todo o país, considerando a população de 18 anos e mais nos estados do Sul e Sudeste, em torno de 40%, no Norte e no Nordeste, 72%; no Leste e no Norte, os mesmos 55% nacionais o provoca uma tomada de posição do Estado é o movimento redemocratização do país, após a ditadura de 1937 – 1945, aliado as iniciativas mundiais da recém-criada Unesco, ao final da Segunda Guerra Mundial. Em 1947, com o aproveitamento dos recursos do Fundo Nacional do Ensino Primário, criado em 1942, a União lança, em plano nacional a primeira campanha de educação de adolescentes e adultos (CEAA). Embora suas ações tenham praticamente só restringido a alfabetização, sua proposta visava a uma ação educativa ampla, compreendendo a aprendizagem da leitura e da escrita, as operações elementares do cálculo, as noções básicas de cidadania, higiene e saúde, geografia e história, pátria, puericultura e economia doméstica para as mulheres. Na verdade, tal proposta estava ancorada no conceito de educação de base sistematizado pela Unesco, que previa os adolescentes e adultos que não haviam frequentado a escola na “idade apropriada” o conteúdo do ensino intensificado na América Latina. Propunha-se também a criação de “centros de comunidade”, visando a favorecer a vida social dos pequenos centros, pelo maior contato com a cultura, por intermédio do rádio, do cinema e de coleções dos livros e de jornais. A leitura dos artigos e relatórios da época revela uma definição preconceituosa do analfabeto, principalmente das áreas rurais: incompetente, marginal, culturalmente inferior, etc. A referência evidente era a cidade, a sociedade que se industrializava; a cultura popular se restringia à divulgação da cultura considerada erudita às populações pobres e marginalizadas. Não se dispõe de dados seguros para a avaliação dessa primeira grande campanha nacional, muito forte até meados dos anos 1950. Embora criticada como “Fábrica de eleitores” - é preciso lembra a importância ampliação dos quadros eleitorais, pois os analfabetos não votaram, e a reformulação dos partidos políticos, na retomada do processo democrático brasileiro – deve-se afirmar como mérito da campanha a criação dos cursos para adultos em muitas cidades brasileiras, ampliando as oportunidades educacionais. Quantos aos resultados numérico, comparando as taxas de alfabetização da população brasileira de 15 anos e mais indicadas pelos censos populacionais constatamos um decréscimo de 5% entre 1940 e 1950 e de 11% entre 1950 e 1960(SOUZA, 1999). Esses resultados são bastante significativos, embora não possam ser atribuídos apenas à ação da CEAA, pois precisam ser levados em conta também os indicadores de mortalidade da população adulta. Além do mais, os critérios utilizados pelo IBGE para medição do analfabetismo têm variado ao longo do tempo. Em termos teóricos, não se tratava do reconhecimento do direito à educação, embora a alfabetização fosse imprescindível para o acesso ao direito político do voto. Acredita-se que a CEAA era basicamente assistencialista e suas ações meramente compensatórias. Mas já se afirmava, desde os anos 1940, que era a inexistência de escolas primárias para as crianças que gerava o analfabetismo e, mesmo sem maiores consequências práticas, se entendia que a ação educativa não deveria se restringir à alfabetização. Gera-se nesse contexto a ideia da ação supletiva do Estado para atender aos não-escolarizados, supondo sua inserção na vida produtiva industrial e na vida cívica urbana, ou para viabilizar, por intermédio dos instrumentos de divulgação cultural, a continuidade da aplicação e a atualização dos conhecimentos aprendidos na precária escolarização. Importantes duas outras dimensões integradas da CEAA. Em primeiro lugar, criada e coordenada pelo governo federal, inaugura, no período, a articulação com os governos estaduais e municipais para a solução das carências educacionais no nível fundamental: a extensão do ensino primário para as crianças e do ensino supletivo para os adolescentes e adultos. Em segundo lugar, arregimenta o apoio da sociedade civil organizada: igrejas, organizações culturais e esportiva etc. para o atendimento às populações consideradas analfabetas. Vamos ver que, no início dos anos 1960, essa relação praticamente se inverte: são as prefeituras, depois alguns estados e associações da sociedade civil, que passam a solicitar o apoio financeiro e político da União. Desde esse momento, configura-se também o “voluntariado”, tanto para as ações de apoio e coordenação, como para as ações didáticas propriamente ditas. Encontramos referência aos quadros do “magistério noturno”, em algumas cidades, mas o voluntarismo se expande nas ações escolares como nas ações ditas “comunitárias”. Esse modo de atuação na educação de jovens e adultos perpassa os anos 1960. Mesmo nas formas atuais, a contratação e os pagamentos são meramente simbólicos, criando quadros docentes mal preparados que atuam em escolas mal equipadas e com material didático quase sempre inadequado. É radicalmente diferente, todavia, a incorporação de profissionais e estudantes nos movimentos de cultura e educação popular do início dos anos de 1960, por forte motivação ideológica e decidido compromisso político. Outra perspectiva deve ser destacada: a exigência da ação direta juntos às comunidades, para além das escolas. Da própria CEAA nasceu a Campanha de Educação Rural, ampliando as ações conjugadas dos órgãos de educação, saúde e agricultura, na perspectiva de um trabalho junto às populações rurais. Pelo menos até meados dos anos 1960, mesmo depois da extinção dessas duas campanhas, encontravam-se no interior excelentes quadros técnicos de nível médio por ela formados: educadores sanitários, extensionistas rurais, agentes da malária e também professoras para as escolas rurais. Por mais que possam parecer aos olhares de hoje, as tradicionais campanhas para filtrar ou ferver a água; os cuidados com a higiene; com a construção de fossas; os cuidados pré e pós-parto, exercidos nos clubes de mães, por exemplo, foram experiências importantes dos anos 1950, retomadas com uma dimensão explicitamente política na década de 1960. Sintetizando: a) A educação de adultos desde os primórdios foi vista com uma ação ampliada, não restrita à alfabetização, mesmo que a ação da CEAA tenha a ela se restringido. b) As campanhas pioneiras foram lançadas pela União, propondo uma ação integrada com os governos estaduais e municipais e contando com a colaboração de organizações da sociedade civil. c) Mesmo partindo de um conceito extremamente limitado de analfabetoe trabalhando com um conceito restrito de analfabetismo/alfabetização, nas campanhas significaram um movimento positivo do Estado e da sociedade brasileira, no atendimento às necessidades educacionais da população adolescentes, jovem e adulta mais pobre. d) A ação educativa tendia concretizar-se em ações práticas, vistas no que se estendia naqueles anos como desenvolvimento de comunidades. Uma nova visão no final dos anos 1950 e no início dos anos 1960 Na segunda metade dos anos 1950, no calor dos debates relativos à elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 1961, e no momento mais forte do desenvolvimentismo nacionalista, foram explicitadas novas funções para a educação brasileira. De um lado, como fruto das pesquisas sociológicas realizadas pelo então Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), das críticas desses sociólogos-educadores ao próprio conceito de desenvolvimento assumido pelo governo federal, do qual decorria a preparação de recursos humanos como função primordial da educação, em decorrência das críticas à CEAA e como consequência de certa tecnicização no campo educacional, derivada das discussões sobre a relação educação-desenvolvimento e pela introdução do planejamento educacional, gerou-se uma nova perspectiva para a educação básica e para a educação de adolescentes e adultos em particular. A proposta dos sociólogos e técnicos de educação do MEC/Inep era reestruturar todo o sistemas municipal de ensino, regularizando a matrícula das crianças de 7 a 10 anos; criando classes de emergência para os adolescentes que não tiveram acesso à escola naquela idade ou dela tinha saído precocemente e organizadas classes de alfabetização para jovens e adultos analfabetos. Para tanto, os professores teriam preparação especial, seria elaborado material didático adequado, seriam construídas novas escolas, inclusive acopladas com oficinas para a iniciação profissional. Com esses objetivos foram iniciadas experiências- piloto em municípios das regiões brasileiras: Leopoldina(MG), Constant(AM), Santarém(PA) e Júlio de Castilhos(RS), todas elas de curta duração. Leopoldina foi sede da experiências- matriz, na qual se associou a implantação de escolas radiofônicas, organizadas pelo recém- criado Sistema Radioeducativo Nacional(Sirena). É nesse momento que se cunha a expressão “secar as fontes do analfabetismo”, numa clara alusão à universalização e regularização do ensino primário para todos. No entanto, essa proposta teve fôlego muito curto (MOREIRA, 1960). Nos mesmo anos, os intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), propondo a elaboração de uma ideologia do desenvolvimento, afirmavam o papel esperado da educação na difusão desse ideologia. Nas palavras de Vieira Pinto (1956, p. 41-42): [...] como se poderá promover o progresso da ideologia na consciência nacional, de que modo se difunde, por que meios é possível favorecer essa difusão? Enunciar essa questão é simplesmente formular o problema da educação das massas. Nestes momentos em que a comunidade brasileira tinge o limiar de consciência nacional, caracterizado por inédita representação de sua realidade, e se dispõe a projetar e empreender o desenvolvimento dos recursos materiais, que a deve conduzir a outro estágio da existência, torna-se indispensável criar novo conceito de educação como parte essencial daquele projeto, e condição do completo êxito. Não estamos ainda preparados para dizer qual o plano educacional a realizar, porque se trata justamente de elaborá-lo desde os fundamentos. O que nos parece necessário, no entanto, é imprimir novo rumo à nossa educação a fim de orientá-la, sem compromisso com qualquer credo político, no sentido de ideologia do desenvolvimento econômico e social. Uma teoria da educação deverá surgir, cuja tarefa inicial será a de definir que tipo de homem se deseja formar para promover o desenvolvimento do país. Por sua vez, o presidente Juscelino Kubitachek, abrindo o II congresso de Educação de Adultos, realizado no Rio de Janeiro em 1958, é enfático: Cabe assim, à educação dos adolescentes e adultos, não somente suprir, na medida do possível, as deficiências da rede de ensino primário, mas também, e muito principalmente, dar um preparo intensivo, imediato e prático nos que, ao se iniciarem a vida, se encontram desarmados dos instrumentos fundamentais que a sociedade moderna exige para completa integração nos seus quadros; a capacidade de ler e escrever, a iniciação profissional técnica, bem como a compreensão dos valores espirituais, políticos e morais da cultura brasileira. Vivemos, realmente, um momento de profundas transformações econômicas e sociais na vida do país. A fisionomia das áreas geográficas transforma-se contínua e rapidamente, com o aparecimento de novas condições de trabalho que exigem, cada vez mais, mão-de-obra qualificada e semiqualificada. O elemento humano convenientemente preparado, que necessita nossa expansão industrial, comercial e agrícola, tem sido e continua a ser um dos pontos fracos da mobilização de força e recursos para o desenvolvimento. Essa expansão vendo sendo tão rápido e a consequente demanda de pessoal tecnicamente habilitado, tão intensa, que não podemos esperar a sua formação regular do ensino: é preciso uma ação rápida, intensiva, ampla e de resultados práticos e imediatos, a fim de atendermos os reelamos do crescimento e do desenvolvimento da Nação (1958, p. 3). É no II Congresso Nacional de Educação de Adultos que surge novo e radical entendimento do problema do analfabetismo. O congresso foi preparado nos estados por congressos regionais, que trouxeram relatórios para o nacional. Tendo Paulo Freire, como um dos seus relatores, Pernambuco, refletindo sobre a educação de adultos e as populações marginais dos mocambos – as favelas nordestinas construídas sobre palafitas, insere as causas do analfabetismo nos problemas socioeconômicos da região e na ausência das escolas primárias. Propõe o decisivo enfrentamento desses problemas, fazendo dele ponto de partida para o processo educativo: Conhecida tão criticamente quanto possível essa realidade, em mudança constante, passará o processo educativo a trabalha-la, de um modo aliás que parece convir a todo o território nacional, sobretudo onde houver concentração de desajustes sociais (FREIRE et al., 1968, p. 8). E retomando Viera Pinto, o mesmo relatório afirma: É tempo de [...] considerar a indispensabilidade da consciência do processo de desenvolvimento, a emersão desse povo na vida nacional, conto interferente em todo trabalho de elaboração participação e decisão responsáveis em todos os momentos da vida pública – como convém à estrutura e funcionamento de uma democracia (id., ib.). Também a igreja católica se mobilizava nesse momento em defesa do desenvolvimento equilibrado das regiões, em particular o Nordeste, fazendo fé nos programas da recém-criada Superintedência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e advogando que o homem fosse colocado no centro desse processo. No deslocamento que faz em direção às populações mais pobres, a igreja determina como prioridade a educação rural de massa e cria, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e apoiado pela Presidência da República, o Movimento de Educação de Base (MEB). Procurando generalizar as experiências estão existentes, sua meta era implantar, no primeiro de funcionamento, 15 mil escola radiofônicas para a alfabetização da educação de base, inovou, no entanto, desde os primeiros anos de implantação, a forma de implantar nas escolas radiofônicas, como efetiva “recepção organizada” e participação de monitores voluntários, treinados para as tarefas a realizar.Abandonando a produção de aulas e programas educativos centralizados no Rio de Janeiro, passou a produzi-los em nível dos estados e mesmo de microrregiões. No contato com os outros movimentos de educação e cultura popular do período, ao final de 1962, o MEB se redefine, alinhando-se a esses movimentos e ampliando sua ação no apoio ao sindicalismo rural, cuja implantação estava sendo iniciada. No mesmo início de década de 1960, por iniciativa da Prefeitura do Recife, na gestão de Miguel Arraca, e com apoio da União, aproveitando recursos disponíveis do Plano Nacional de Educação de 1962, é criado o Movimento de Cultura Popular (MCP). Outra das experiências-matriz do início dos anos 1960, o MCP realiza a proposta de atendimento educacional tanto para crianças quanto para adultos, estreitamente ligada às necessidades da população pobre, recuperando a cultura como elemento fundamental de compreensão e transformação da realidade. Nasce no MCP e logo é sistematizado no Serviço de Extensão Cultural da então Universidade do Recife, o Sistema Paulo Freire de Alfabetização de Adultos. A partir da crítica no modo de trabalhar da escola tradicional, criticando, recusando as cartilhas como doação, transformando a aula em um debate e o professor em um animador, Freire e sua equipe estabelecem, decisivamente a alfabetização como o primeiro passo de ampla educação de adultos. Em fecunda elaboração, a partir das colocações do Iseb e da fundamentação proposta por Pe. Henrique de Lima Vaz S. J., através da Ação Popular (AP), em seminários e cursos para os adultos como um movimento de conscientização. Coube a Paulo Freire, partindo do conceito antropológico de cultura e recuperando a cultura popular como uma forma de vida, sintetizar genialmente essa abordagem, nas famosas “fichas de cultura” do Sistema de Alfabetização, forte motivação para os processos educativos realizados na época. Coube também ao MCP a iniciativa de lançar no Brasil o primeiro Livro de leitura para adultos que partida de palavras-chave e situações de aprendizagem com real significado para os alfabetizandos. Esse livro inspirou outros livros de leitura dos diversos movimentos de cultura popular criados em todo o país no início dos anos 1960 (De pé no chão também se aprende a ler, de Natal; MCP, de Belo Horizonte; ICP, de Goiás etc.). No mesmo impulso inovador, o MEB, em 1963, elaborou o conjunto didático Viver é lutar, para alfabetizandos e pós-alfabetizados do meio rural nordestino, que também tomava a realidade como ponto de partida e trabalhava a educação como elemento de sua transformação. A primeira lição a tirar desses movimentos de cultura e educação popular, certamente os mais profícuos em termos de originais definição e experimentação da educação de jovens e adultos, é o fato de essa educação estar referida a um projeto nacional hegemônico. Critica-se hoje o nacional-desenvolvimentismo, mas no início dos anos 1960 acreditava-se na sua força para uma mudança radical nas estruturas socioeconômicas e definiu-se decisivamente a educação de adultos como preparadora dessa mudança, o que lhe dava uma dimensão expressamente política renovadora. Obviamente, nas definições e as práticas da educação de adultos dos anos 1950 tinham uma dimensão política, mas de acomodação, de adequação a um projeto social que se estabelecia na linha da manutenção das estruturas, modernizadas pela industrialização e pela urbanização dela decorrente. Na década de 1950, a educação de adultos “remava a favor da corrente”; na década de 1960, “remava contra a corrente”. Embora a expressão não fosse utilizada como a força atual, tinha-se claro, nesse últimos anos, que a educação de jovens e adultos era um direito a ser concretizado, para que a população considerada analfabeta dele se apropriasse como passo primeiro e fundamental de um processo de libertação, na direção da construção de uma sociedade efetivamente democrática. A segunda lição, decorrente da primeira, está na ampla mobilização da sociedade civil, motivada pelo projeto hegemônico e impulsionada pelo compromisso político de transformação da realidade brasileira. Era maquis que colaboração; os jovens, principalmente, assumiram a elaboração e a realização de um projeto educativo, no bojo de um projeto social que se pretendia radicalmente transformador. A terceira lição diz respeito à descentralização da ação educativa. Em primeiro lugar, porque parte de prefeituras e instituições da sociedade civil. Em segundo, porque quebra a imposição de métodos e materiais preparados em nível nacional. A produção das aulas e outros programas radiofônicos, a elaboração de material didático específico regionalizado (slides do Sistema de Alfabetização Paulo Freire, cartilhas de alfabetização e livros de leitura, conjunto didático, folhetos de cordel sobre temas variados etc), é para o regional, para o estadual, para o microrregional e mesmo para o local. Novamente remando a favor da corrente O golpe de abril de 1964 praticamente desmobilizou todos os movimentos de educação e cultura popular do início dos anos 1960. Apenas o MEB, com sacrifícios, tentou a superar a crise até 1966, inclusive desenvolvendo criativa proposta de animação popular, a ser realizada através de contatos diretos com os grupos populacionais com os quais anteriormente havia trabalhado com as escolas radiofônicas. A dificuldade de verbas, a cerrada censura, inclusiva interna, às aulas e programas radiofônicos, a perseguição e prisão de monitores e animadores, no entanto, fizeram os maiores sistemas radioeducativos (Pernambuco, Minas Gerais, Goiás etc.) encerrarem suas atividades. O MEB continuou tentando firmar-se na Amazônia, região onde as escolas radiofônicas poderiam exercer função importante, mas via de regra regrediu à postura dos anos iniciais. Durante certo tempo, perduraram também muitos pequenos núcleos de alfabetização usando o sistema Paulo Freire. Houve mesmo a tentativa de reorganizar o trabalho em São Paulo, através de um movimento chamado Cipó. O AI-5, ao final de 1968, pôs um ponto final nesse movimento de resistência. Após 1964, um movimento conservador, a Cruzada ABC (Ação Básica Cristã), nascido pelas mãos missionárias protestantes do Recife, em 1962, passou a ganhar força, sustentada, no Nordeste, por verbas da Aliança para o Progresso e impulsionado pela distribuição dos Alimentos para a Paz. Sua experiência maior foi na Paraíba, em clara contraposição ao Sistema Paulo Freire ali realizado pela Campanha de Educação Popular (Cepular), mas estendeu-se a praticamente todas as áreas onde tinha havido uma mobilização maior, principalmente na formação de lideranças para os sindicatos rurais (Pernambuco, Sergipe, antigo Estado do Rio de Janeiro). Fortemente proselitista, a Cruzada ABC reeditou as cartilhas de alfabetização e os livros de pós-alfabetização utilizados pela CESS nos anos 1950. Embora os fosse melhorando ao longo do tempo, nada inovou; apenas colocou a educação de jovens e adultos a serviço da ideologia do “Brasil grande” e do anticomunismo. É importante registrar uma informação disponível nos próprios relatórios da Cruzada ABC: com muitos recursos financeiros, com todo o apoio da máquina político-administrativa do Estado da Paraíba, com o aval da União e da Aliança para o progresso, com a fartura de material didático e usando o chamariz dos alimentos, em cinco anos de trabalho na Paraíba conseguiu alfabetizar 750 mil pessoas. Em 1968, foi criado o Mobral, inicialmente com a missão de coordenar as atividades de alfabetização de adultos em curso, a rigor restritas à Cruzada ABC, e as experiências de alfabetização funcional, tuteladas pela Unesco, por exemplo, na Uaina de Volta Redonda, e no agreste pernambucano, sob responsabilidadeda Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural (Ancar). Com recursos próprios e pessoal de seus quadros, muitos provenientes do MEB, o antigo Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibru) hoje Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – desenvolvia também interessantes projetos de alfabetização funcional e capacitação de parceleiros, em vários projetos de assentamento, no Nordeste. Essa primeira fase do Mobral durou somente ate 1970, quando foi reformulado, com estrutura de fundação, e se converteu no maior movimento de alfabetização de jovens e adultos já realizado no país, com inserção em praticamente em todos os municípios brasileiros. Além da alfabetização, que concretamente representou a certificação de milhares de trabalhadores mobilizados para as grandes obras públicas (metropolitano em São Paulo e Rio de Janeiro, estradas em todo o Brasil etc.) e para a construção civil, o Mobral desenvolveu também o Programa de Educação Lutegrada, equivalente às quatro primeiras séries de ensino fundamental, atendendo a bem menos alunos, e um interessante projeto cultural. Como contraposição às Comunidades Eclesiais de Base, da Igreja Católica, iniciou também uma mobilização comunitária, ao que se sabe sem grandes resultados. Ao final dos anos 1970, quando a rigor deveria ter cumprido sua missão e suas metas de “erradicação do analfabetismo”, tentou implantar o Mobral Infanto-Juvenil, para atender a crianças e adolescentes menores de 15 anos, a rigor muitos deles já nas classes existentes. Essa proposta desencadeou violentas críticas e deixou claro que uma fundação estava assumindo as funções de um ministério, dispondo de mais recursos para o ensino fundamental e com uma administração muito mais ágil que o próprio Ministério da Educação. Duas lições. A primeira reitera a necessidade imperiosa do processo educativo ser complementado pela inserção dos recém-alfabetizados numa escolarização regular – processo nunca bem sucedido em todas as experiências brasileiras. Em segundo, a também imperiosa necessidade, para efetivamente eliminar as gerações de analfabetos, de universalizar o ensino fundamental para todas as crianças e os adolescentes, com o atendimento em escolas de qualidade. Reitera também a necessidade de inserir a educação em um movimento cultural mais amplo. A segunda, talvez a mais dolorosa, repõe as críticas feitas à CEAA dos anos 1910/1950: a pouca eficácia das campanhas para resolver o problema do analfabetismo. O Mobral trabalhou com grandes números, mas a avaliação mais séria feita sobre ele, comparando os resultados dos censos de 1970 e 1980, mostrou que em dez anos de atuação maciça conseguiu reduzir não mais de 7% da taxa de analfabetismo (Paiva, 1981). O que nos leva a repetir: o problema não é o analfabetismo, e alfabetizar não é a solução. Refletindo sobre as propostas atuais Não há como reafirmar a mais importante lição de praticamente cinquenta anos de experiências: campanhas e movimentos de massa não resolveram e não resolverão o problema do analfabetismo da população jovem e adulta. Ele tem raízes fundas na sociedade injusta e desigual. É gerado pela ausência e pela insuficiência da escolarização das crianças e adolescentes. Boa parte dos analfabetos jovens e adultos de hoje passaram um ou dois anos na escola: aprenderam mal, mas alguma coisa, esquecida pelo desuso. Muitos jovens de hoje estão saindo da escola sabendo mal ler escrever e contar. Continuamos oferecendo pobres escolas, para as camadas pobres da população. Diz-se ter sido praticamente universalizado o ensino fundamental. Qual ensino? Com qual qualidade? Não é mais possível pensar fazer a alfabetização de jovens e adultos em meses. É preciso fazer a educação de jovens e adultos como um processo educativo amplo, que pode começar pela alfabetização, como primeira etapa, desde o primeiro momento obrigatoriamente articulada a outras etapas, que configuram o ensino fundamental completo. Só assim se estará caminhando na direção de repor o direito à educação, anteriormente negado ou mal garantido. Ao longo dos últimos anos, foi-se configurando um novo sujeito social: a juventude. Atualmente, é necessário atender diversas de maneiras diferentes aos adultos e aos jovens. Ambos têm expectativas e aspirações quanto à educação. Embora seja claro que a educação de jovens e adultos tem uma dupla função, de formar para cidadania e de preparar para o mundo do trabalho, essas funções se apresentam de modos diversos para os jovens e para os adultos. As escolas não estão preparadas para trabalhar com essas diferenças. Aliás, ainda reproduzem, tanto nos cursos regulares noturnos, quanto nos supletivos, as mesmas práticas e as mesmas normas usadas com crianças. Fala-se frequentemente que as pedagogias são freirianas e os métodos se baseiam em Paulo Freire. Há muito o que rever nisso, para não comprometer nome tão respeitável: a proposta, desde sua concepção até como é instrumentalizada, assim como os recursos disponíveis. O material didático, inclusive, assume papel fundamental. As cartilhas, os livros de leitura, o audiovisual, os livros de cordel elaborados nos anos 1960 foram banidos e jamais reconsiderados. Precisariam ser retomados, não para cópias, mas como exemplos. Com os recursos atuais da informática, é perfeitamente possível fazer da produção do material didático um momento educativo especial, para todos os envolvidos no processo: educadores e educandos, num criativo processo de educação mútua. Um capítulo dramático refere-se ao pessoal docente. Campanha após campanha repõe- se o “voluntarismo”: pessoal mal-preparado e mal-pago, insuficientemente assessorado. Há experiências exitosas de formação e acompanhamento de pessoal, não só no Brasil como em outros países da América Latina, que precisam ser retomadas. E é preciso voltar corajosamente ao momento mais rico do trabalho com a educação de jovens e adultos: os movimentos de cultura e educação popular dos primeiros anos da década de 1960. Como repor a motivação ideológica e o compromisso político como se tinha naqueles anos? Falta- nos ainda um novo projeto histórico – que acreditamos possa vir a ser construído nos próximos anos. Temos, no entanto, um movimento social dinâmico e combativo que pode dar as bases para um trabalho sério e consequente de educação de jovens e adultos, e de crianças e adolescentes também. Referências Bibliográficas Freire, Paulo et al. Relatório Final do Seminário regional de educação de adultos, preparatório no 11 Congresso Nacional de Educação de Adultos, Pernambuco, 1958. Mimeogr. OLIVEIRA, Juscelino Kubitschek de. Discursos de abertura no II Congresso Nacional de Educação de Adultos. Educação. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Educação, n. 61, 3º Irim, 1958. Paiva, Vanilda. Mobral: a falácia dos números (Um desacerto autoritário II). Síntese, n. 23, p, 83-114, set/dez. 1981. Pinto, Álvaro Vieira. Ideologia e desenvolvimento nacional. Rio de Janeiro: MEC/Iseb, 1956. Souza, Marcelo Medeiros Coelho de. O analfabetismo no Brasil sob o enfoque demográfico. Brasília: Ipea, 1999. Textos para discussão, n. 639.