Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.

Prévia do material em texto

246
Birman (2009) expõe que a ênfase encontra-se na possibilidade de extirpação da sexu-
alidade, para uma finalidade terapêutica e civilizatória que promoveria uma tentativa 
de harmonização do sujeito e da sociedade. A psicanálise freudiana no texto de 1908 
apostaria na possibilidade de encadeamento pela representação das exigências pulsio-
nais, de modo a promover um completo abarcamento pelo simbólico do registro real e 
pulsional. Já no texto Mal-estar na civilização de 1930, Freud expõe o conflito civilização 
versus pulsão e, na impossibilidade da cura do desamparo pela psicanálise, o resultado 
seria um compromisso do sujeito com a sua gestão, para toda a vida. 
Birman (2009) observa que a crítica freudiana à modernidade e à evolução científica 
localiza-se, justamente, na impossibilidade de resolução da condição de desamparo e 
de fragilidade do sujeito, pois a ciência funda-se na razão, e ela nada poderia fazer para 
impedir a morte. Este é um conceito chave no redirecionamento de Freud sobre a cons-
tituição do sujeito e sobre a questão da sua origem.
A elaboração do conceito de desamparo permite uma mudança da submissão do sujeito 
às exigências de um progresso civilizatório, para uma nova noção da relação com o Ou-
tro, via construção do laço social. Enquanto o discurso da primeira elaboração freudiana 
- identificado à ciência, que muitas vezes se presta ao progresso – era fundado em uma 
tentativa de espiritualização, de separação entre o sujeito, sua sexualidade e erotismo, 
logo de seu corpo, no segundo momento, há uma mudança desta verticalização para a 
horizontalização da sexualidade, já que somente pela sua construção intermediada por 
um Outro é que o sujeito poderia se estruturar.
O�corpo�na�contemporaneidade�e�o�corpo�na�psicanálise
O corpo aparece como uma das certezas que o indivíduo tem, ou seja, seu pertenci-
mento ao mundo das coisas o torna locus privilegiado na cultura para se constituir um 
porto seguro. Sennett (2001) observa que, no mundo contemporâneo, a aceleração dos 
acontecimentos e a voracidade do consumo faz com que o tempo seja insuficiente para 
a formação das subjetividades, e o corpo torna-se passivo, sofrendo diante de tantas 
transformações. Neste cenário, o corpo fica cada vez mais voltado para suas próprias 
necessidades e prazeres, fechado para a entrada do outro. Tal modo de hipervalorização 
do corpo, na era atual, transforma os homens em seus próprios escravos, e o que impera 
é a força da imagem. Consequentemente, a vida interior, o outro e os laços que podem 
247Corpo em psicanálise e obesidade
se estabelecer na troca de experiências, passam a ser valores pouco encontrados. Isso, 
de certa forma, parece ser um bom terreno para a angústia e o adoecimento.
Diante dos desencadeamentos contemporâneos encontramos, hoje, indivíduos marca-
dos pelo sofrimento em seus próprios corpos e com dificuldades significativas para nar-
rá-las. McDougall (1983) faz notar que a forma como o sujeito vive seu corpo informa a 
respeito da natureza de sua relação com o mundo, ou seja, quando o corpo não é capaz 
de significar a diferença entre o eu e o outro, interior e exterior, quando o sujeito tem di-
ficuldade em habitar seu corpo, as relações com os outros correm o risco de se tornarem 
confusas. De acordo com a autora, “é a maneira como a pessoa pensa o próprio corpo, 
assim como a posição que ela assume em relação a esse corpo, o que naturalmente irá 
influenciar de forma marcante a relação eu/mundo” (1983, p.155).
O sujeito busca no corpo uma consciência de si, ou seja, fazer com que o corpo exista 
por si mesmo para que possa estimular sua reflexão e reconquistar sua interioridade. 
O corpo não é apenas um meio de locomoção, mas um organismo vivo, corpo sexuado, 
marcado pelas pulsões, fonte de prazer (e também de dor: sensações) que necessita ser 
cuidado por seu possuidor. 
O corpo marca sua presença na psicanálise contemporânea, não somente no que diz 
respeito às doenças psicossomáticas e à hipocondria, mas também porque encontra 
outras formas de se manifestar. E uma dessas formas é a de um movimento narcísico, 
no qual o corpo vai ser lugar de investimento libidinal. Se a época de Freud foi mar-
cada pela repressão sexual, como salientado acima, a era atual se caracteriza por um 
movimento contrário. Não é da repressão que se fala, mas da dificuldade de lidar com 
os limites e os contornos de si. A barreira, quando colocada, é feita de modo incisivo, 
muitas vezes mantendo o sujeito ilhado em um mundo fechado ao acesso do outro. Há, 
portanto, uma incapacidade no estabelecimento e manutenção de laços mais amplos, 
o que coloca em evidência o retorno ao momento psíquico primordial de instalação do 
eu: a etapa narcísica.
Lazzarini e Viana (2006) observam a necessidade de refletir sobre esta condição, pela 
forma como o corpo é visto tradicionalmente pela psicanálise, ou seja, em paralelo ao 
discurso da linguagem. Porém, como coloca Fernandes (2002), quando a psicanálise 
 248
se vê enredada com o adoecer do corpo, a tendência é realizar uma ampliação de seu 
campo clínico, resultando, necessariamente, em uma ampliação de seu campo teórico: 
“a inclusão de novos conceitos ao arsenal do saber psicanalítico permitiu 
uma fertilização da escuta do corpo na clínica para além das somatizações, 
abrindo campo para as aproximações e diferenças entre determinados 
quadros clínicos e as neuroses clássicas, as toxicomanias, os transtornos 
alimentares, as perversões etc.” (p. 53). 
A concepção psicanalítica do corpo tem sua particularidade por estar em uma posição 
de fronteira entre os diferentes registros da experiência psíquica, logo, por poder ser 
tomada pelo registro real, simbólico e imaginário. Conforme mencionado trata-se de 
uma perspectiva inaugurada pela histeria, que concede à ele um lugar radicalmente 
diferente do concebido como objeto de estudo de outras ciências. 
A leitura psicanalítica do corpo permite o seu questionamento para além do lugar que 
lhe é fixado numa suposta realidade social, uma vez que traz no nascimento de seu 
discurso a sexualidade como seu centro. Trata-se de uma perspectiva que fundamenta o 
trabalho da psicanálise em sua dimensão outra, que é alheia às conformidades que um 
saber de leis rígidas ou universais dispõe. 
Lazzarini e Viana (2006) comentam que o corpo na psicanálise, em sua primeira for-
mulação de corpo erógeno, é atravessado pela pulsão, estrutura-se em confronto ao 
corpo da necessidade na medida em que a linguagem nele faz efeito, inserindo-o na re-
presentação, significação e lembrança. O corpo seria então, pela sexualidade, articulado 
à história do sujeito, situando-o no imaginário social pela representação.
A teoria freudiana, portanto, permite colocar em evidência que o somático habita um 
corpo que é também lugar de realização de um desejo inconsciente. Fernandes (2002) 
pontua que o corpo psicanalítico se apresenta ao mesmo tempo como o palco onde se 
desenrola o jogo das relações entre o psíquico e o somático e como personagem inte-
grante da trama das relações. De fato, esse corpo é regido segundo uma dupla raciona-
lidade: a do que é somático e do que é psíquico. 
Para Lacan (1949) a importância do estádio do espelho se dá pelo que instaura o mo-
mento inaugural da constituição do eu. O infans, pela visão e percepção de sua própria 
imagem, da imagem de seu corpo no espelho, prefigura uma totalidade corporal que é 
249Corpo em psicanálise e obesidade
corroborada pelo outro, que a reconhece como verdadeira. Deste modo, ou seja, para a 
criança poder se apropriar de sua imagem, é necessário a presença de um outro que a 
confirme para que ela possa, assim, interiorizá-la. A criança tem neste momento uma 
vivência de unidade, que estabelece a passagem do corpo despedaçado e não diferencia-
do do corpo de sua mãe para um corpo próprio. 
Tal momento, no qual o indivíduo se identifica imaginariamente,faz parte do seu pro-
cesso de constituição, que, aos poucos, pela incidência do simbólico, pode apartar-se das 
identificações primárias e construir sua verdade. Este momento de captação do imagi-
nário, funda-se pela função de continência da condição de desamparo e de imaturidade 
física. Trata-se de um momento na constituição do infans em que o outro cuidador aco-
lhe o sujeito em sua prematuridade. A constituição do narcisismo do sujeito é resultado, 
portanto, da presença ativa de um outro, realizada neste período, pelo qual a criança 
poderá apreender-se em seu corpo pela obtenção de um contorno nítido e definido.
O corpo é, portanto, lugar da passagem do outro, lugar de onde nasce o sujeito. Sen-
do assim, pode-se dizer que a grande inovação da psicanálise foi, precisamente, con-
siderar essa dupla racionalidade como articulada pelo desejo inconsciente, mas cuja 
leitura também se dá no corpo. Birman (2009) complementa dizendo que o corpo em 
psicanálise pode ser definido como sendo um corpo sujeito, marcado pelo outro, pela 
linguagem. Esse corpo, de acordo com o autor, deixa de ser corpo como condição de or-
ganismo e se assujeita, isto é, passa a ser habitado pelo outro, implicando uma condição 
relacional – eu/outro. 
Com esse percurso, podemos asseverar que desde Freud o corpo encontra espaço na 
psicanálise, pois foi o próprio Freud quem inaugurou esta escuta, ao ouvir o corpo das 
histéricas, encontrando um caminho que possibilitou livrá-las de seu sofrimento. 
Corpo�e�obesidade�
No plano da cultura e sociedade atual, momentos de indefinição e mudança com relação 
a valores e papéis sociais sobrecarregam os indivíduos expondo-os à angústia e ao mal 
estar. Com isto, o cuidado de si e de seu corpo fica prejudicado.
 250
Birman (2003) observa que no cotidiano as pessoas se apresentam cada vez mais com 
queixas difusas localizadas no corpo, que vão desde dores diversas e inespecíficas até 
sensações de completo esgotamento. Queixam-se também de stress constante e uma di-
ficuldade em limitar a carga física ou emocional que podem suportar. O autor enfatiza 
a incapacidade crescente dos sujeitos de lidar de forma produtiva com seu corpo, sendo 
surpreendidos constantemente por manifestações corporais diversas, das quais são in-
capazes lidar e de subjetivar. 
Neste cenário, o corpo tem adquirido mais destaque e sofre sob os efeitos da doença, da 
fragilidade e do stress. A partir desta perspectiva, a concretude do corpo aparece como 
uma das certezas para o sujeito e, em contrapartida, o registro metafórico da linguagem 
é cada vez mais pobre, visto que o discurso fica esvaziado em sua dimensão simbólica 
(Lazzarini, 2006). A psicanálise, por sua vez, procura dar voz ao sujeito e a seu corpo 
em sua singularidade, para além das demandas corporais relacionadas à dor. Trata de 
lidar com um corpo diferente do corpo biológico e dar voz a um corpo que é atravessado 
pela linguagem e marcado por vivências do sujeito. 
A escuta da fala do paciente obeso em psicanálise evidencia algo de um mal estar locali-
zado no corpo (dores e sensações corporais desagradáveis, paralisias, amortecimentos), 
mas que deve encontrar ressonância psíquica. Em sua fala, vemos ser ressaltada uma 
condição de imobilidade, de impedimento à ação causada por sua própria limitação e 
que caracteriza um estado de inércia, uma falta de vontade ou incapacidade para agir, de 
fazer a vida andar e de nela se sentir presente.
Apesar de ser um dos temas centrais de seu discurso, o corpo não é nomeado: em seu 
discurso o que aparece é uma fala sobre suas dores e incômodos mais do que do corpo 
como unidade e pertencimento. Apesar de ser um corpo grande e expressivo, ele não 
tem contorno, delimitação e fica referenciado a uma massa disforme. Há uma oscilação 
entre se sentir cheio e se sentir vazio, e esta é a referência que apresentam. 
Não podemos deixar de nos referenciarmos, neste momento, ao “estádio do espelho” de 
Lacan. Ou seja, parece que estamos falando do processo de constituição deste sujeito, 
o que nos remete à problemática dos limites e das fronteiras da vida psíquica (Cardoso, 
2004; Figueiredo, 2003): a delimitação entre o eu e o outro, o dentro e o fora, incluin-

Mais conteúdos dessa disciplina