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69 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE Unidade II Governança corporativa Vamos aprender e refletir sobre práticas de governança corporativa e entender as razões que justificam a adoção dessas práticas no mundo contemporâneo. Vamos compreender que, embora a governança corporativa tenha sido criada para ser aplicada às grandes empresas transnacionais, na atualidade, sua aplicação é esperada em todas as dimensões empresariais, inclusive para os empreendedores de pequeno porte. Governança corporativa é um tema bastante atual porque representa a cultura de boas práticas em todas as diferentes atividades econômicas e nas relações que se estabelecem entre os diferentes agentes econômicos do mercado. Episódios recentes ocorridos no Brasil e no mundo comprovaram que as empresas precisam agir de forma ética, responsável e comprometida com os melhores valores da transparência e da responsabilidade. Sem adotar práticas éticas, as empresas comprometem seu nome, sua reputação. Além disso, prejudicam fortemente seus colaboradores; corrompem governos e contribuem para o seu enfraquecimento; e, principalmente, prejudicam toda a sociedade porque as práticas antiéticas são como uma doença que provoca contaminação ao seu redor. A corrupção material provoca corrupção moral e, com isso, o prejuízo se alastra para toda a sociedade, contaminando direta e indiretamente milhares de atividades econômicas e sociais. As boas práticas empresariais, aquelas que são marcadas pela transparência e pela responsabilidade, marcam positivamente a vida da empresa, dos funcionários, dos parceiros comerciais e toda a sociedade sente orgulho daquela empresa, tem prazer em consumidor seus produtos ou contratar seus serviços e confia que as decisões empresariais não trarão prejuízos sociais, ambientais ou qualquer outra modalidade. Ter sua marca ou nome empresarial associado a valores éticos, de responsabilidade e estrito cumprimento das normas que regulam o setor é um ganho para as empresas, para seus investidores, funcionários e gestores. É o objetivo a ser buscado em todas as organizações, não importa a área de atuação ou seu tamanho no mercado. Vamos trabalhar para entender melhor os conceitos e princípios de governança corporativa. 70 Unidade II 3 GOVERNANÇA CORPORATIVA 3.1 Histórico, definição e princípios A criação e evolução dos sistemas de governança corporativa são uma decorrência das grandes mudanças econômicas e sociais que o mundo viveu no século XX, em especial, em seu fim, com o marco histórico da queda do Muro de Berlim e, consequentemente, do final da polarização entre ideias capitalistas e comunistas que haviam marcado severamente a segunda metade do século após o término da II Guerra Mundial em 1945. Dividido entre o poder econômico e bélico dos Estados Unidos e da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o mundo tinha dificuldades de relacionamento político, social e econômico, a queda do Muro de Berlim significou simbolicamente o fim dessas dificuldades e a consolidação da globalização, com incentivo não apenas a maior circulação de pessoas em todo o mundo, mas, principalmente, a circulação de produtos e serviços que permitiram que as empresas passassem a ter relações internacionais como nunca tinham tido no passado. O mesmo aconteceu na área financeira, o que viabilizou que valores pudessem ser transferidos em tempo real, com o uso de tecnologias de informação. Todas essas mudanças impactaram a organização empresarial que passou a ter investimentos e parceiros internacionais, tanto entre compradores como entre os fornecedores; e, muitas vezes, passou a contar com a experiência de funcionários que vinham de outros países com uma cultura nova de gestão, novos valores corporativos e éticos, novas práticas organizacionais e de controle operacional. Esse movimento provocou a internacionalização das empresas, mas também provocou conflitos entre os diferentes níveis de gestão das empresas, apontando para a necessidade de reconstruir os relacionamentos entre sócios, investidores, gestores, conselheiros e parceiros externos. Começaram a surgir os estudos e as pesquisas sobre o relacionamento das empresas e de seus stakeholders. O Dicionário Financeiro (2020) define: Stakeholder é um termo da língua inglesa que tem como significado “grupo de interesse”. Fazem parte deste grupo pessoas que possuem algum tipo de interesse nos processos e resultados da empresa. Um dos criadores do termo foi o filósofo Robert Edward Freeman. Ele definia a palavra stakeholder como os grupos que podiam afetar ou serem afetados pelos objetivos da organização. Esses interesses podem ser, além dos processos e resultados, no planejamento dos projetos ou negócios, de modo positivo ou negativo. São exemplos mais comuns de stakeholders acionistas, investidores, proprietários, empregados, clientes, concorrentes, governo e sindicatos. Algumas classificações incluem entre os stakeholders a 71 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE imprensa, as associações empresariais, as organizações não governamentais como as que defendem crianças, meio ambiente e mulheres; entre outros atores sociais. O que é importante compreender é que a nova concepção de empresa construída histórica, social e economicamente a partir da globalização aponta que as decisões empresariais já não afetam mais um pequeno círculo de pessoas, ou um círculo muito restrito. Ao contrário, decisões empresariais podem afetar milhares ou milhões de pessoas em todo o mundo, existem muitos atores sociais que dependem das decisões tomadas pelos gestores empresariais e é preciso levar isso em conta quando se organiza a gestão da empresa, mas, principalmente, quando se decide que valores vão orientar as atividades e a conduta daquela empresa em seu cotidiano, o quanto de transparência ela pretende adotar em suas práticas e qual a responsabilidade que pretende assumir perante seus parceiros, consumidores, acionistas e a sociedade. Essa forma de olhar as empresas como agentes vivos que podem provocar muitos resultados positivos ou grandes catástrofes econômicas, financeiras, ambientais, entre outras mudou a forma de organizar a gestão e comunicação nas empresas. No início do século XXI, o tema da governança corporativa ficou ainda mais relevante após a ocorrência de alguns grandes escândalos corporativos nos Estados Unidos, que motivaram inúmeros debates sobre a necessidade de transparência das empresas na divulgação de seus demonstrativos financeiros e, principalmente, sobre o papel das auditorias externas na avaliação e convalidação desses demonstrativos. Os escândalos financeiros envolveram as empresas Enron, WorldCom e a Tyco. Veja o que aconteceu no relato da Fenacon (2015): Enron Enron Corporation era uma empresa de energia, commodities e serviços dos EUA, baseada em Houston, Texas. Em um dos controversos escândalos contábeis da última década, descobriu-se em 2001 que a empresa estava usando lacunas contábeis para esconder bilhões de dólares de dívidas incobráveis ao mesmo tempo em que inflacionava os ganhos da empresa. O escândalo resultou em acionistas perdendo mais de US $ 74 bilhões, enquanto o preço da ação da Enron caiu de cerca de US $ 90 para menos de US $ 1 em um ano. O escândalo resultou em acionistas perdendo mais de US $ 74 bilhões, enquanto o preço da ação da Enron caiu de cerca de US $ 90 para menos de US $ 1 em um ano. Uma investigação da SEC revelou que o CEO da empresa, Jeff Skillings, e o ex-CEO da Ken Lay, mantiveram bilhões de dólares em dívidas no balanço da empresa. Além disso, pressionaram a empresa de auditoria da empresa, Arthur Andersen, a ignorar o problema. Os dois foram condenados com base no testemunho do ex-empregado Sherron Watkins da Enron. No entanto, Lay morreu antes de cumprir o tempo na prisão, mas Jeff Skillings foi condenado a 24 anos de prisão. O escândalo levou à falência da Enron e à dissolução de Arthur Andersen. 72 Unidade II WorldComA WorldCom era uma empresa americana de telecomunicações baseada em Ashburn, Virgínia. Em 2002, apenas um ano após o escândalo da Enron, descobriu-se que a WorldCom havia inflado seus ativos em quase US $ 11 bilhões, tornando-se, de longe, um dos maiores escândalos de responsabilidade. A empresa tinha baixado os custos da linha capitalizando em vez de gastá-los e inflacionou suas receitas fazendo inscrições falsas. O escândalo surgiu pela primeira vez quando o departamento de auditoria interna da empresa encontrou quase US $ 3,8 bilhões em contas fraudulentas. O CEO da empresa, Bernie Ebbers, foi condenado a 25 anos de prisão por fraude, conspiração e arquivamento de documentos falsos. O escândalo resultou em mais de 30.000 cortes de empregos e mais de US$ 180 bilhões em perdas por investidores. A empresa tinha baixado os custos da linha capitalizando em vez de gastá-los e inflacionou suas receitas fazendo inscrições falsas. O escândalo surgiu pela primeira vez quando o departamento de auditoria interna da empresa encontrou quase US $ 3,8 bilhões em contas fraudulentas. O CEO da empresa, Bernie Ebbers, foi condenado a 25 anos de prisão por fraude, conspiração e arquivamento de documentos falsos. O escândalo resultou em mais de 30.000 cortes de empregos e mais de US $ 180 bilhões em perdas por investidores. O CEO da empresa, Bernie Ebbers, foi condenado a 25 anos de prisão por fraude, conspiração e arquivamento de documentos falsos. O escândalo resultou em mais de 30.000 cortes de empregos e mais de US $ 180 bilhões em perdas por investidores. Tyco A Tyco International era uma empresa americana de sistemas de segurança de alto nível baseada em Princeton, Nova Jersey. Em 2002, descobriu-se que o CEO Dennis Kozlowski e CFO Mark Swartz roubaram mais de US $ 150 milhões da empresa e haviam inflado os ganhos da empresa em mais de US $ 500 milhões em seus relatórios. Kozlowski e Swartz derrubaram dinheiro usando empréstimos não aprovados e vendas de ações. O escândalo foi descoberto quando a SEC e o escritório do procurador de distrito de Manhattan realizaram investigações relacionadas a certas práticas contábeis questionáveis pela empresa. Kozlowski e Swartz foram condenados a 8 a 25 anos de prisão. Um processo de ação coletiva obrigou-os a pagar US $ 2,92 bilhões aos investidores. Kozlowski e Swartz derrubaram dinheiro usando empréstimos não aprovados e vendas de ações. O escândalo foi descoberto quando a SEC e o escritório do procurador de distrito de Manhattan realizaram investigações relacionadas a certas práticas contábeis questionáveis pela empresa. Kozlowski e Swartz 73 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE foram condenados a 8 a 25 anos de prisão. Um processo de ação coletiva obrigou-os a pagar US $ 2,92 bilhões aos investidores. Kozlowski e Swartz foram condenados a 8 a 25 anos de prisão. Um processo de ação coletiva obrigou-os a pagar US $ 2,92 bilhões aos investidores. Essas fraudes que causaram bilhões de dólares em prejuízos, demissões de milhares de funcionários e o desprestígio de auditorias externas não poderiam ficar sem resposta, e não ficaram. O Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei especificamente para combate a esse tipo de práticas, a lei que ficou conhecida como Lei Sarbanes-Oxley ou, mais simplificadamente, como SOx. Nela vamos encontrar definições sobre práticas de governança corporativa. A SOx foi promulgada em julho de 2002 pelo Senador Paul Sarbanes e pelo Deputado Michael Oxley e é considerada um importante marco na regulação do ambiente de negócios, com impulso para maior transparência e ética nas relações e organizações empresariais. Para Luciana de Almeida Araújo Santos e Sirlei Lemes (2007, p. 38): A Sarbanes-Oxley criou um novo ambiente de governança corporativa e, dessa forma, gerou um conjunto de novas responsabilidades e sanções aos administradores para coibir práticas lesivas e que exponham as sociedades anônimas a elevados níveis de risco. Verifica-se, então, que o principal objetivo da lei foi recuperar a credibilidade do mercado de capitais, evitando a incidência de novos eventos semelhantes aos identificados na “quebra” de grandes empresas. [...] Além das empresas norte-americanas, a nova regulamentação aplica-se, também, às demais empresas com ações negociadas no mercado de capital dos EUA e, ainda, às subsidiárias de multinacionais registradas nas bolsas norte-americanas, mas que estão operando em outros países. As exigências da nova lei atingem tanto as empresas de grande porte como as de pequeno. A principal diferença entre elas é quanto ao prazo para adaptação à lei. [...] Ela expõe um elevado grau de abrangência, que envolve desde o presidente e a diretoria da empresa, até as firmas de auditoria e os advogados contratados. Além disso, ela estabelece severas exigências quanto à análise e divulgação das informações financeiras das companhias abertas, exigindo, dessa forma, um aprimoramento dos controles internos, proporcionando, assim, maior segurança aos administradores e auditores em sua certificação. A empresa de auditoria KPMG (2003) destaca como principais tópicos da lei os seguintes: (1) a promoção da boa governança corporativa e práticas de negócio; (2) o aumento na independência do auditor externo; (3) a 74 Unidade II obrigação de ter um comitê de auditoria independente; (4) a definição do papel de crítica de controle interno por meio de certificações e declarações; (5) a transparência nos relatórios e nas informações aos acionistas e a restrição de trabalhos non-audit pelo auditor externo. Observa-se, assim, que a Lei objetiva, em última análise, conferir maior confiabilidade nas informações oferecidas ao investidor, desde sua origem, ou seja, desde o estabelecimento dos controles internos. Rossetti e Andrade explicam sobre a Lei Sarbanes-Oxley (2009, p. 182-183): “Conselheiros, executivos, investidores, contadores, auditores, advogados e analistas – comportem-se. Os escândalos, as fraudes contábeis, os conflitos com analistas de investimentos trouxeram novas leis e regulamentos que disciplinam o comportamento no mundo corporativo.” Esta é a introdução de um longo artigo de Hasset e Mahoney a propósito da lei Sarbanes-Oxley e de outras medidas regulatórias aplicadas sobre as “questões tóxicas” de gestão das corporações. O alerta é pertinente. A lei Sarbanes-Oxley promoveu ampla regulação da vida corporativa, fundamentada nas boas práticas de governança. Seus focos são exatamente os quatro valores que há duas décadas vinham sendo enfatizados pelo ativismo pioneiro. Vale repeti-los: 1. Compliance, conformidade legal. 2. Accountability, prestação responsável de contas. 3. Disclousure, mais transparência; e, 4. Fairness, senso de justiça. Em 1999, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) havia criado os Princípios para Governança Corporativa, que foram aprimorados ao longo dos anos com intensos debates em fóruns específicos de discussão sobre o tema da governança corporativa e que, na atualidade, são indicativos para serem adotados pelos países do chamado G 20, grupo dos países com economia mais desenvolvida em todo o mundo e, também, como indicativo para os países que são membros da OCDE. Saiba mais Você poderá encontrar no link a seguir o texto completo sobre os princípios da OCDE. OECD. Princípios de governo das sociedades do G20 e da OCDE. [S.l.], 2020. Disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/governance/principios- de-governo-das-sociedades-do-g20-ocde_9789264259195-pt. Acesso em: 28 out. 2020. Vale muito a pena conhecer esse trabalho. 75 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE No Brasil, o tema também se tornou relevante porque muitas empresas brasileiras atuavam nos Estados Unidos e na Europa onde estão os países que pertencem à OCDE; ou tinham interesse em atuar e, para isso, precisavam compreender e se adequar à Lei Sarbanes-Oxley, bem como às diretrizes da OCDE. Além disso, a necessidadede transparência e ética na administração das empresas passou a ser mais discutida mesmo entre as empresas sem atuação internacional como medida prática para a obtenção de investimentos, participação em parcerias com governos, proteção de acionistas, prestação de contas à sociedade e fortalecimento da credibilidade e reputação das empresas. Outro fator importante para que a governança corporativa se tornasse uma necessidade no Brasil foi o fato de que também tivemos alguns escândalos em operações de empresas brasileiras, com fortes perdas para investidores, acionistas, empregados e sociedade em geral. Você provavelmente não se lembra do escândalo do Banco Nacional, mas, se já viu uma foto de Ayrton Senna, provavelmente, se lembra do boné que ele utilizava, de cor azul e com a marca desse banco. O Banco Nacional era um dos mais famosos do Brasil, mas veja o que aconteceu: Entenda o caso Nacional Rio – A crise financeira do Banco Nacional – que resultou em um dos maiores escândalos financeiros da era do real – deu seus primeiros sinais em setembro de 1995, quando o BC percebeu que a instituição estava com problemas de liquidez. O Banco Central (BC) descobriu que o Nacional maquiava seus balanços, usando mais de 600 contas fantasmas para realizar empréstimos fictícios, somando os R$ 5,5 bilhões. Os empréstimos falsos eram contabilizados como ativos bons, equilibrando o balanço. Mas, segundo o Ministério Público Federal, o problema nas contas do Nacional começou bem antes, em 1986, quando houve um rombo de US$ 600 milhões em suas contas, superior ao patrimônio líquido, de US$ 250 milhões, à época. Para encobrir o rombo, as operações fictícias foram sendo renovadas e ampliadas, o que resultou, segundo o MPF, num déficit de US$ 9,2 bilhões em 18 de novembro de 1995. Foi quando o Banco Central decretou intervenção no banco, chamada de Regime de Administração Especial Temporária, para tentar evitar que a quebra da instituição afetasse seus correntistas e o sistema financeiro. Mas as notícias de fraude se espalharam e começou uma onda de saques. O Nacional foi o primeiro a receber recursos do Programa de reestruturação do sistema financeiro (Proer), criado duas semanas antes da intervenção. Para garantir os depósitos dos clientes, o BC emprestou R$ 7,2 bilhões em novembro de 96 ao Unibanco, que assumiu a parte 76 Unidade II boa da instituição. Em dezembro de 1995, o BC instaurou inquérito para apurar as suspeitas. Após investigações, o MPF denunciou 33 acusados das fraudes em 1997 (O GLOBO, 2013). Não menos famoso foi o caso das Fazendas Boi Gordo cuja publicidade no início da década de 1990 utilizou artistas famosos que recomendavam investimentos nesses contratos coletivos por meio dos quais as pessoas adquiriam participação em criação de gado e lucravam com a venda dos animais no momento do abate. Leia o detalhamento da operação fraudulenta para entender melhor: A empresa Boi Gordo foi fundada em 1988, quando o empresário Paulo Roberto de Andrade assumiu os negócios de sua família, a qual já tinha tradição na pecuária. Quando foi criada, a empresa contava com 700 hectares de terras, 310 cabeças de gado e 42 investidores denominados parceiros (DO CAMPO..., 1995). Nos primeiros anos, a organização cresceu com apoio de divulgação boca a boca. Em julho de 1994, a Boi Gordo contratou uma assessoria de imprensa e iniciou uma virada nos negócios. Em 1998, quando se tornou uma sociedade anônima e passou a ser regulamentada pela CVM, estima-se que a empresa já contava com mais de 150 mil hectares de terras (Boi Gordo compra..., 1999), 130 mil cabeças de gado e 14 mil investidores (DO CAMPO..., 1995). O modelo de negócio da Boi Gordo baseava-se em um sistema inovador de investimento. A empresa estabelecia com os investidores um contrato por arroba. Com o dinheiro, comprava e engordava bezerros. Ao final do período de engorda, de 18 meses, a empresa garantia ao investidor uma rentabilidade de 42%, muito acima das alternativas de mercado na época (SÃO PAULO, 2008). Essa taxa, convém notar, era inalcançável, mas atraiu um grande contingente de investidores. A fraude principal consistia em desviar recursos dos investidores para a compra de fazendas e o enriquecimento do controlador da empresa. Paulo Roberto de Andrade, o arquiteto da fraude, tinha um histórico pessoal revelador: entre 1966 e 1989, ele foi processado nove vezes, tendo sido condenado em dois processos e cumprido pena de oito anos de reclusão (RAMOS, 2001). Um desses processos envolveu uma sociedade com seus dois irmãos, que também se tornaram seus sócios na Boi Gordo. A empresa criada por eles, a Gold System, oferecia rendimentos acima do mercado em contratos de investimentos atrelados à variação do ouro. A empresa foi acusada de estelionato e crime contra a economia popular (SÃO PAULO, 2006). 77 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE A fraude na Boi Gordo foi articulada a partir de uma estrutura com tomada de decisão e controle centralizados no controlador. A empresa, até sua regulamentação em 1998, foi mantida com capital fechado, sob o comando de um único controlador. Após a regulamentação, foi transformada em sociedade anônima, embora o quadro de controle centralizado não tenha sido alterado. Paulo Roberto de Andrade continuou controlando a empresa, com apoio de um esquema que envolvia familiares, advogados e outras empresas. Em 2001, a empresa pediu concordata. Contava, naquele ano, com 300 mil hectares de terras, 225 mil cabeças de gado e 30 mil investidores. Suas atividades estavam distribuídas por 111 fazendas próprias e 29 fazendas arrendadas, cobrindo os estados de São Paulo, Mato Grosso, Goiás, Pará e Roraima (SÃO PAULO, 2006). A falência da empresa Boi Gordo, em abril de 2004, deixou os 30 mil credores diretos com um prejuízo de aproximadamente R$ 2,5 bilhões, em valores da época. O caso foi investigado pela CVM, pela Câmara dos Deputados (por meio da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias) (BRASIL, 2003a, 2003b e 2003c), pelo Tribunal de Contas da União (TCU) (BRASIL, 2009b, 2010) e pela Justiça (SÃO PAULO, 2004a, 2006, 2008; Brasil, 2009a). Cerca de 2.800 processos relativos ao processo principal ainda estão em andamento, e os credores continuam sem receber o que lhes é devido. O caso Boi Gordo já foi sentenciado em segunda instância, com a falência decretada e estendida ao controlador e a outras empresas do grupo (TJ..., 2006; SÃO PAULO, 2007). Porém, até agosto de 2011, nenhum credor havia conseguido reaver qualquer quantia e o principal responsável pela fraude teve a sentença penal anulada no STJ (BRASIL, 2009a). O esquema fraudulento foi implementado na constituição da empresa e mantido até a sua falência. De forma esquemática, essa trajetória pode ser dividida em três períodos: (1) da criação até a regulamentação (1988 a 1998); (2) da regulamentação até a concordata (1998 a 2001); e (3) da concordata até a falência (2001 a 2004). [...] (WOOD JÚNIOR; COSTA, 2012). Outro caso famoso de escândalo no Brasil foi o da loja Daslu, em São Paulo, considerada o mais importante centro de compras de artigos de alto luxo do país. Roupas, perfumes, calçados, bolsas, acessórios femininos e masculinos das marcas mais famosas e caras de todo o mundo eram vendidos na Daslu. Os clientes, enquanto olhavam os produtos e escolhiam o que comprar, eram servidos com taças de champagne e canapés preparados com ingredientes da mais alta qualidade gastronômica. A Daslu era a loja mais luxuosa do país e talvez de toda a América do Sul, pessoas de vários lugares do Brasil vinham para fazer compras naquele local que se tornou muito famoso e com cobertura na imprensa 78 Unidade II nacional e internacional. Bem, mas essa era a fachada, porque, nas entranhas da atividade da empresa, as relações não tinham nenhuma beleza. Acompanhe a notícia a seguir: Entenda o caso de fraude e sonegação na Daslu A crise na Daslu, a lojamais luxuosa do país, começou em julho de 2005 com uma megaoperação (chamada Narciso), da Polícia Federal e da Receita Federal, que resultou na detenção, por 12 horas, de Eliana Tranchesi e na apreensão de documentos. À época, Antonio Carlos Piva de Albuquerque, irmão de Eliana, ficou preso por cinco dias, sendo liberado e preso novamente em 2006. A maior butique de luxo do país é acusada de importação irregular por meio de crimes de descaminho e sonegação fiscal. A empresa teria construído um esquema para subfaturar importações com o objetivo de sonegar impostos. No esquema, a Daslu seria a responsável pela negociação, compra, escolha e pagamento de mercadorias no exterior e, após tais atos, entravam em cena as importadoras (“tradings”), que eram responsáveis pela falsificação de documentos e faturas destinados a permitir o subfaturamento do valor das mercadorias. Durante a investigação, o procurador disse ter encontrado subfaturamento de até 9.374% (FOLHA ONLINE, 2009). O caso foi muito rumoroso na imprensa porque o local era realmente famoso. O casal de irmãos proprietários da loja foi julgado e condenado em primeira instância a penas consideradas bastante severas, uma delas, de 94 anos e meio de reclusão, ou seja, em regime fechado. Mais tarde, em segunda instância, as penas foram reduzidas porque consideradas abusivas. Há que se destacar, no entanto, que até aquele momento, os chamados “crimes de colarinho branco” não eram passíveis de condenações expressivas e, por isso, foi um marco relevante para a história do direito penal econômico no Brasil. Alguma coisa estava mudando no sentido de exigir dos empresários que agissem cada vez mais em conformidade com a lei, sem utilização de expedientes ilícitos como sonegação de impostos ou contrabando, por exemplo. A tolerância com os crimes não violentos como esses estava terminando, e a justiça sinalizou isso de forma contundente no caso da Daslu. Existe ainda um caso que chamou muita atenção no Brasil e em todo mundo que foi o escândalo da Parmalat, uma importante indústria de laticínios de origem italiana e que quando chegou aqui no país ficou muito conhecida. Seus produtos eram considerados pelos consumidores de muito boa qualidade, mas, além disso, a empresa impactou os brasileiros por patrocinar um time de futebol importante de São Paulo e por veicular uma publicidade que se tornou um marco na história da propaganda brasileira: os bichinhos da Parlamat. 79 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE Saiba mais Além de ter se tornado um objeto de coleção para crianças e adultos, os bichinhos da Parmalat ainda foram uma publicidade famosa que você poderá conhecer no link a seguir. Na década de 1990, foi, com certeza, uma das propagandas mais presentes do Brasil. PROPAGANDA – Mamíferos Parmalat. S.l., 24 ago. 2010. 1 vídeo (1m33seg). Publicado pelo canal Black Angel. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=tL-LJdX9Ur8. Acesso em: 5 nov. 2020. Mas nem tudo era alegria no ambiente empresarial, porque a Parmalat foi protagonista de um grande escândalo financeiro. Lei atentamente a reportagem sobre o escândalo financeiro da Parmalat: O escândalo da Parmalat “Viva a ética nos negócios!”, “Viva a empresa moral!” Ouvidos durante o Fórum Econômico Mundial, de Davos, estes gritos revelam uma promessa: a de que o capitalismo partirá para uma retomada em bases desinfetadas. Será difícil. Isto porque, precisamente no momento em que esse desejo era manifestado, a imensidão do caso Parmalat explodia à luz do dia. Classificado como o maior escândalo financeiro na Europa desde 1945, deixa prever ondas de choque semelhantes àquelas, desastrosas, que provocaram a falência fraudulenta da distribuidora de energia Enron, em dezembro de 2001. A Parmalat significava o exemplo de um sucesso impulsionado pela dinâmica da globalização liberal. Começando como uma pequena empresa familiar de distribuição de leite pasteurizado localizada nos arredores de Parma, na década de 60, ela se desenvolveu graças à habilidade de seu fundador, Calisto Tanzi, e aos generosos subsídios da União Europeia. A partir de 1974, a Parmalat internacionalizou-se, instalando-se no Brasil e, depois, na Venezuela e no Equador. Multiplicou suas filiais e criou empresas intermediárias em todos os territórios que oferecessem facilidades fiscais (Ilha de Man, Holanda, Luxemburgo, Áustria e Malta) e, em seguida, nos paraísos fiscais (Ilhas Caiman, Ilhas Virgens britânicas, Antilhas holandesas…). Em 1990, colocou ações na Bolsa de Valores, afirmando-se como o sétimo grupo privado da Itália e ocupando o primeiro lugar mundial no mercado de leite de longa conservação. Este colosso empregava em torno de 37 mil funcionários em mais de 30 países e seu faturamento chegou, em 80 Unidade II 2002, a 7,6 bilhões de euros (cerca de 27 bilhões de reais), valor superior ao do Produto Nacional Bruto (PNB) de países como o Paraguai, a Bolívia, Angola ou o Senegal… Jogada por tudo ou nada O endividamento da Parmalat chega a 11 bilhões de euros! E que foi deliberadamente dissimulado, há vários anos. Por ser permanente, a fraude não era detectável. Esse formidável sucesso permitiu que Tanzi, o patrão, fosse considerado uma das personalidades do establishment italiano, membro da Cofindustria (sindicato patronal italiano). Assim como permitiu que as ações da Parmalat significassem investimento seguro na Bolsa de Milão. Até o dia 11 de novembro de 2003. Nessa data, auditores em contabilidade questionaram um investimento de 500 milhões de euros (1,75 bilhão de reais) no fundo Epicurum, sediado nas Ilhas Caiman. Imediatamente, a agência Standard & Poors baixou o valor da cotação dos títulos Parmalat. As ações caem. Nesse mesmo momento, a Comissão de Operações da Bolsa solicita esclarecimentos quanto à forma pela qual o grupo pretende reembolsar as dívidas com prazo até o final de 2003. A preocupação toma conta de acionistas e detentores de ações. Com o objetivo de tranquilizá-los, a direção da Parmalat anuncia, então, a existência de um fundo de 3,95 bilhões de euros (14 bilhões de reais), depositado numa agência do Bank of America nas Ilhas Caiman. E apresenta um documento, emitido por aquele banco norte-americano, comprovando a autenticidade dos títulos e da liquidez referentes ao valor divulgado. A jogada da direção da empresa é por tudo ou nada. Ou as pessoas se tranquilizam, as ações sobem e os negócios progridem, ou permanece a desconfiança e existe o perigo do colapso. Fraude permanente Após a falência da Enron, os partidários da globalização liberal afirmavam que aquilo significava o fim dos empresários-bandidos e das empresas-escroques. Foi nesse instante decisivo, quando pensava que daria a volta por cima, que o grupo recebeu a estocada fatal. No dia 19 de dezembro, o Bank of America afirma que o documento divulgado pela Parmalat para provar a existência dos 3,95 bilhões de euros… era falso! Um documento em papel timbrado pouco confiável, grosseiramente falsificado com um scanner! As ações despencam. Em poucos dias, não valem quase nada. Mais de 115 mil investidores e pequenos poupadores percebem ter sido enganados e, alguns deles, arruinados. Começa o escândalo. Logo se iria saber que o endividamento da Parmalat chega a 11 bilhões de euros (38,5 bilhões de reais)! E que foi deliberadamente 81 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE dissimulado, há vários anos, por meio de um sistema fraudulento com base em desvios contábeis, orçamentos falsos, documentos falsificados, lucros fictícios e complexas pirâmides de empresas offshore, umas vinculadas às outras de modo a tornar impossível detectar a origem do dinheiro e a análise das contas. Por ser permanente, a fraude não era detectável, tanto assim que, na própria véspera do escândalo eclodir, o Deutsche Bank, por exemplo, adquiriu 5,1% do capital da Parmalat, enquanto analistas de mercado recomendavam veementemente (strong buy) a compra de títulosdo grupo… Escritórios de auditoria, como o Grant Thornton e o Deloitte & Touche, assim como grandes bancos, como o Citigroup, são acusados de cumplicidade. E, uma vez mais, foi destacada a nocividade dos paraísos fiscais. O caso ganha dimensões planetárias. Após a falência da Enron, os partidários da globalização liberal afirmavam que aquilo significava o fim dos empresários-bandidos e das empresas-escroques. E que aquele caso acabara sendo benéfico, pois permitira ao sistema que se corrigisse. O escândalo da Parmalat prova que não se trata de nada disso (RAMONET, 2004). Repare que os escândalos financeiros decorrentes de administração fraudulenta não ocorrem só em empresas transnacionais como a Parmalat, mas também em empresas nacionais e de menor porte, como a Daslu e outras ainda menores. Não é exclusividade dos grandes grupos econômicos a prática de atos ilícitos. Ela pode ocorrer e ocorre também nas empresas de pequeno e médio porte, que vendem produtos fruto de roubo ou furto, ou contrabandeados, sem nota fiscal e consequentemente sem recolhimento de tributos, que fraudam sua contabilidade para garantir menor incidência de tributos, enfim, uma infinidade de práticas ilícitas que podem ser concretizadas por empresas de todos os tamanhos e atividades no mercado. As décadas de 1980 e 1990 foram pródigas em escândalos empresariais e, ao mesmo tempo, propiciaram as reflexões necessárias para que se compreendesse que as empresas não podem ter lucro de qualquer jeito. Só existe um caminho para as empresas garantirem lucratividade: respeito às normas legais, ética e transparência de seus atos. Em 27 de novembro de 1995, foi criado o Instituto Brasileiro de Conselhos de Administração (IBCA) com a ideia de “[...] fortalecer a atuação dos conselhos de administração – órgão de orientação, supervisão e controle das empresas” (IBGC, [s.d.]a). E, em 1999, o instituto mudou seu nome para Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), mesmo ano em que foi lançada a primeira edição do Código de melhores práticas de governança corporativa que, atualmente, se encontra em sua quinta edição. Segundo o IBGC ([s.d.]a): [...] o código consolidou-se como um documento de referência: apresenta recomendações das melhores práticas de governança com o objetivo de contribuir para a evolução da governança corporativa das empresas e das demais organizações. 82 Unidade II E o que é governança corporativa? Aline Pastorini Paquet de Mello (2017, p. 17) ensina: Governança Corporativa é o conjunto de sistemas, princípios e processos pelos quais uma organização é dirigida e controlada (OCDE). Sua estrutura determina a distribuição de direitos/privilégios e responsabilidades entre os diferentes participantes da organização – conselho diretor, gerentes, acionistas e demais stakeholders – estabelece regras e procedimentos para tomada de decisões. As boas práticas de Governança Corporativa convertem princípios em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor da organização, facilitando seu acesso ao capital e contribuindo para a sua longevidade. Suas práticas também asseguram aos sócios equidade, transparência, responsabilidade pelos resultados (accountability) e obediência às leis do país (compliance) IBGC. A governança Corporativa, com seu conjunto de práticas administrativas, otimiza o desempenho das empresas – seus negócios e serviços – ao proteger, de maneira equitativa, todas as partes interessadas – acionistas, clientes, fornecedores, funcionários e governos – facilitando o acesso às informações básicas e melhorando o modelo de gestão (OLIVEIRA). Embora seja um importante valor corporativo, a governança por si só não cria valor. É fundamental que se tenha um negócio estruturado, estrategicamente bem posicionado e gerenciado de forma efetiva. Nesse contexto, as boas práticas de governança corporativa, que nada mais são do que um conjunto de melhores práticas sobre o comportamento e a estrutura do conselho de administração de uma empresa, possibilitarão uma melhor gestão e a maximização de valor para os acionistas e demais envolvidos com a organização (ANDRADE; ROSSETTI, AGUILERA; CUERVO-CAZURRA, 2004). Tais práticas servem para minimizar deficiências e/ou fragilidades no sistema de governança de países, por meio de mecanismos como mudanças na composição de conselhos, aumento na transparência e confiabilidade da informação, melhora no relacionamento entre acionistas e executivos, definição de mecanismos mais efetivos para a seleção e remuneração de diretores, entre outros (OCDE). A governança corporativa pode ser aplicada a empresas de todos os portes econômicos embora tenha sido criada por empresas de grande porte, sociedades anônimas de capital aberto ou fechado que devem prestar conta de seus atos para seus acionistas que são os investidores. Mas, a necessidade de atitudes corretas, legais e éticas não é dever apenas das empresas de grande porte porque todas as empresas por menores que sejam têm algum impacto na comunidade em que se encontram, na relação com seus clientes e fornecedores, nas relações com os governos dos locais em que estão situadas e, 83 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE devem a todos esses stakeholders a garantia de que agem em consonância com princípios éticos, com as melhores práticas de administração e que estão em condições de assumir suas responsabilidades. A OCDE define: Governança corporativa como o sistema segundo o qual as corporações são dirigidas e controladas. A estrutura da governança corporativa especifica a distribuição dos direitos e responsabilidades entre os diferentes participantes da corporação, tais como o conselho de administração, os diretores executivos, os acionistas e outros interessados, além de definir as regras e procedimentos para tomada de decisão em relação a questões corporativas. E oferece também bases através das quais os objetivos da empresa são estabelecidos, definindo os meios para se alcançarem tais objetivos e os instrumentos para acompanhar o desempenho (apud ROSSETTI; ANDRADE, 2009, p. 138-139). Repare que agir em conformidade com a lei e as melhores práticas éticas é um dos objetivos da governança corporativa, mas isso tem que ser realizado de tal forma que se integre aos objetivos da empresa para garantir que não haverá possibilidade de atuação empresarial sem que sejam contempladas práticas corretas e transparentes. A empresa, por meio de suas políticas de governança corporativa, se torna uma estrutura de práticas cuja base é o procedimento responsável de todos os seus agentes. Para o IBGC, governança corporativa se define como: Governança corporativa é o sistema pelo qual as sociedades são dirigidas e monitoradas, envolvendo os relacionamentos entre acionistas/cotistas, conselho de administração, diretoria, auditoria independente e conselho fiscal. As boas práticas de governança corporativa têm a finalidade de aumentar o valor da sociedade, facilitar seu acesso ao capital e de contribuir para sua perenidade (ROSSETTI; ANDRADE, 2009, p. 139). Repare que as boas práticas que a governança corporativa proporciona têm a finalidade de aumentar o valor da empresa, garantir que seus investimentos sejam mais bem sucedidos e, com isso, aumentar as perspectivas de perenidade do empreendimento. Isso é muito importante porque obriga que as boas práticas sejam verdadeiras e não apenas políticas inseridas no planejamento empresarial, sem concretização na vida cotidiana da empresa. Só as práticas de governança efetivamente materializadas e incorporadas à cultura da empresa é que viabilizarão resultados positivos. Alexandre Franco de Godoi (2020, p. 48) ensina: [...] por meio do estabelecimento de normas, recomendações, princípios e regras, a governança corporativa tem por objetivo garantir que os agentes de governança atuem de maneira ética, tomando decisões corporativas que tenham como propósitoa maximização da expectativa do retorno 84 Unidade II econômico para os investidores e a geração de valor de longo prazo para o negócio e demais partes interessadas que se relacionam com a empresa, ou que por ela também são potencialmente afetadas. Para que todas as empresas possam compreender a função da governança corporativa, a OCDE criou princípios de governança destinados, inicialmente, a empresas de capital aberto que negociam suas ações em bolsas de valores. Porém, fez questão de esclarecer que esses princípios, por serem objetivos e concisos, poderiam auxiliar na administração de empresas de todos os tamanhos, inclusive pequenas e médias, e seriam bem-vindos como prova de que a administração empresarial está realizando esforços para agir com ética e responsabilidade. Esclarece a OCDE (2020, p. 11): Os Princípios têm como objetivo auxiliar os decisores políticos a avaliar e melhorar o enquadramento jurídico, regulamentar e institucional para o governo das sociedades, de modo a apoiar a eficiência econômica, o crescimento sustentável e a estabilidade financeira. Tal é conseguido, principalmente, através dos incentivos aos acionistas, aos membros do conselho e aos executivos, bem como aos intermediários financeiros e aos prestadores de serviços, adequados ao desempenho das suas funções dentro de um quadro de controle e equilíbrio. Pretende-se que os Princípios sejam concisos, compreensíveis e acessíveis à comunidade internacional. Com base nos Princípios caberá às iniciativas governamentais, semigovernamentais ou do setor privado avaliar a qualidade do enquadramento de governo das sociedades e desenvolver disposições imperativas ou voluntárias mais detalhadas que possam ter em conta as diferenças econômicas, jurídicas e culturais, específicas de cada país. Os Princípios centram-se em empresas de capital aberto, tanto financeiras como não financeiras. Na medida em que sejam considerados aplicáveis, podem também ser uma ferramenta útil para melhorar o governo das sociedades em empresas cujas ações não sejam negociadas em bolsa. Enquanto alguns dos Princípios poderão ser mais adequados para empresas maiores em detrimento das menores, os decisores políticos poderão querer fomentar a consciencialização de um bom governo das sociedades junto de todas as empresas, incluindo as pequenas empresas e as não listadas. O governo das sociedades envolve um conjunto de relações entre os órgãos de gestão de uma empresa, o seu conselho de administração, os seus acionistas e stakeholders. O governo das sociedades fornece também a estrutura através da qual os objetivos da empresa são definidos e se determina os meios para alcançar esses objetivos e para monitorizar o desempenho. 85 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE A OCDE, conforme ensinam Rossetti e Andrade (2009, p. 173), criou um preâmbulo para a apresentação de seus princípios de governança corporativa que disponibiliza aspectos importantes para reflexão de todos os empreendedores e gestores de empresas: • Não há um modelo único de governança. Embora possam ser identificados elementos comuns que dão suporte às melhores práticas, cada país precisa adaptar sua aplicação às suas circunstâncias culturais jurídicas e econômicas. • Para se manterem competitivas em um mundo em transformação, as corporações precisam inovar e adaptar suas práticas de governança, atendendo às novas exigências institucionais e do mercado neste campo, com vista à alavancagem de novas oportunidades, de capitalização e crescimento. • Os governos, porém, também têm grande responsabilidade na criação de uma estrutura reguladora, que proporcione flexibilidade suficiente para que os mercados funcionem de maneira eficaz e atendam aos interesses dos acionistas e de outras partes interessadas. • São os órgãos reguladores do mercado de capitais, as corporações e seus acionistas que devem decidir sobre as práticas de governança corporativa, recomendáveis em cada país, levando em conta os custos e os benefícios de sua regulamentação. • Os princípios de governança aplicada nas empresas são fatores que asseguram a integridade do mercado e o desempenho econômico dos países. • Os princípios de governança são de natureza evolutiva e devem ser revistos sempre que ocorrerem mudanças significativas, dentro das corporações e de seu entorno. É importante destacar que governança corporativa em uma empresa não é um setor estanque que, uma vez constituída as regras e capacitados os funcionários, deva ser tratado de forma burocrática. Ao contrário, a governança corporativa é o setor da empresa que deve acompanhar detalhadamente todos os movimentos e decisões adotadas pelas diferentes áreas, assim como o relacionamento da empresa com governos (federal, estadual e municipal) e com os stakeholders, de maneira a sugerir e adequar as práticas de governança aos movimentos que a empresa realiza e garantir a plena adequação aos princípios e normas que a regem. É nesse sentido de trabalho dinâmico e perene que se afirma que governança corporativa em uma empresa é um processo e não se resume a um manual de boas práticas. Deve ser um processo continuamente pensado, aplicado, monitorado e revisado em conformidade com as mudanças das 86 Unidade II leis, das práticas empresariais, dos relacionamentos que a empresa estabelece com os stakeholders e com a sociedade. A OCDE (2016) recomenda que as práticas de governança corporativa deverão adotar os seguintes princípios: I. Assegurar a base para um enquadramento efetivo do governo das sociedades. A estrutura de governo das sociedades deve promover mercados transparentes e justos, assim como a alocação eficiente de recursos. Deve ser consistente com o estado de direito e apoiar a supervisão e aplicação eficazes (p. 13). II. Os direitos e o tratamento paritário dos acionistas e as funções principais de propriedade. A estrutura de governo das sociedades deve proteger e facilitar o exercício dos direitos dos acionistas e garantir o tratamento paritário dos mesmos, incluindo os minoritários e estrangeiros. Todos os acionistas devem ter a oportunidade de obter compensações efetivas em caso de violação dos seus direitos (p. 18). III. Investidores institucionais, mercados de ações e outros intermediários. A estrutura de governo das sociedades deverá proporcionar incentivos sólidos através de toda a cadeia de investimento e possibilitar aos mercados acionistas funcionar de uma forma que contribua para o bom governo das sociedades (p. 31). IV. O papel dos stakeholders no governo das sociedades. A estrutura de governo das sociedades deve reconhecer os direitos dos stakeholders estabelecidos por lei ou por meio de acordos mútuos, e estimular a cooperação ativa entre as sociedades e os seus stakeholders na criação de riqueza, empregos e na sustentabilidade de sociedades financeiramente sólidas (p. 37). V. Divulgação de informação e transparência. A estrutura de governo das sociedades dever assegurar a divulgação de informação atempada e rigorosa de todas as questões relevantes relacionadas com a sociedade, incluindo a situação financeira, desempenho, estrutura acionista e governo da sociedade (p. 41). 87 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE VI. As funções do conselho. A estrutura de governo das sociedades deve garantir a orientação estratégica da sociedade, o controle eficaz da equipe de gestão pelo conselho, e a responsabilização do conselho perante a sociedade e os seus acionistas (p. 51). Governo ou governança corporativa são expressões que se equivalem. É indiferente utilizar uma ou outra, embora, no Brasil, a expressão governança seja preferencialmente utilizada entre os estudiosos do tema GRC – Governança, Risco e Conformidade (ou compliance). Esses princípios são bastante esclarecedores das medidas que as empresas deverão adotar para atenderem com rigor as melhores práticas de ética, transparência e responsabilidade. No Brasil, o IBGC(s.d.) adota como princípios de governança corporativa: Transparência Consiste no desejo de disponibilizar para as partes interessadas as informações que sejam de seu interesse e não apenas aquelas impostas por disposições de leis ou regulamentos. Não deve restringir-se ao desempenho econômico-financeiro, contemplando também os demais fatores (inclusive intangíveis) que norteiam a ação gerencial e que conduzem à preservação e à otimização do valor da organização. Equidade Caracteriza-se pelo tratamento justo e isonômico de todos os sócios e demais partes interessadas (stakeholders), levando em consideração seus direitos, deveres, necessidades, interesses e expectativas. Prestação de contas (accountability) Os agentes de governança devem prestar contas de sua atuação de modo claro, conciso, compreensível e tempestivo, assumindo integralmente as consequências de seus atos e omissões e atuando com diligência e responsabilidade no âmbito dos seus papéis. Responsabilidade corporativa Os agentes de governança devem zelar pela viabilidade econômico-financeira das organizações, reduzir as externalidades negativas de seus negócios e suas operações e aumentar as positivas, levando em consideração, no seu modelo de negócios, os diversos capitais (financeiro, manufaturado, intelectual, humano, social, ambiental, reputacional etc.) no curto, médio e longo prazos. 88 Unidade II Ao estudar os princípios da OCDE e do IBGC, podemos perceber que governança corporativa se concretiza nas empresas de pequeno, médio ou grande porte; nas organizações não governamentais; e nas empresas e organizações públicas como o conjunto de práticas de administração da organização que levam em conta não apenas os interesses de lucro da empresa, mas, também, o impacto que a empresa provoca na vida de seus funcionários, prestadores de serviços, investidores, fornecedores e sociedade em geral. De fato, a governança corporativa tem por objetivo que as atividades empresariais sejam sempre positivas para a própria empresa, – resultado de lucro, ocupação de bons espaços no mercado, sustentação de posição favorável em relação aos concorrentes –, mas que isso seja feito de forma correta, com total atendimento das leis e normas do setor, com respeito especialmente ao interesse público, ao meio ambiente, às boas práticas financeiras, ao cumprimento da legislação trabalhista, à transparência nas decisões, ao não favorecimento de alguns investidores (acionistas) em detrimento de outros, à responsabilidade pelos atos praticados e à capacidade de assumir erros e reparar danos. Nesse contexto, é importante observar que o empreendedorismo assume um papel muito relevante e, por isso, torna-se elemento essencial para as boas práticas de governança corporativa. Saiba mais O filme Enron: os mais espertos da sala, de 2005, é uma excelente dica para compreender melhor esse episódio que mudou a história da governança corporativa em todo o mundo. ERON: os mais espertos da sala. Direção: Alex Gibney. EUA: Jigsaw Productions, 2005. 110 min. 3.2 Governança corporativa e empreendedorismo A governança corporativa pode e deve ser aplicada a todas as empresas independentemente de seu porte e de sua abrangência, se regional, nacional ou internacional. O primeiro argumento favorável a essa afirmação é que as boas práticas empresariais, a transparência e a ética cabem em qualquer lugar, não importa o porte da organização. E o segundo argumento, igualmente muito forte, é que as empresas nunca sabem de que tamanho poderão ficar durante seu período de existência e para que o desenvolvimento seja bem construído, é importante que já comecem com boas práticas de modo que quando crescerem, já o façam em bases sólidas que garantam perenidade. Além disso, empresas se relacionam entre si como fornecedoras de serviços e insumos e, com certeza, empresas de maior porte econômico, quando compram produtos ou contratam serviços de empresas de menor porte, precisam saber se elas adotam práticas que se adequem às exigências de sua governança corporativa. É fato: uma empresa organizada na forma de sociedade anônima, por exemplo, de capital aberto que negocia ações em bolsa de valores e possui milhares de investidores de todo porte, quando 89 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE contrata uma empresa de prestação de serviços de limpeza, ou de segurança privada, precisa saber se ela adota regras de governança corporativa que garantam transparência e ética em sua conduta. Vamos imaginar que uma empresa organizada como sociedade anônima com muitos investidores que negociam suas ações, fabricante de produtos comestíveis e exportadora desses produtos para países da América do Norte e Europa, contrata uma empresa de segurança cujos empregados não são adequadamente selecionados e, entre eles, estão alguns traficantes de drogas que começam a utilizar embalagens da indústria comestível para traficar drogas para os Estados Unidos ou Espanha, por exemplo. Para todos os fins e efeitos, as drogas estavam em produtos da fabricante de alimentos e será ela representada por seus administradores, que irão responder por esse crime gravíssimo que poderá resultar em prisão e em forte perda de reputação para a empresa. Pense nisso: você compraria para consumo próprio ou de sua família chocolates ou bombons de uma empresa supostamente envolvida em tráfico de drogas internacional? Evidentemente que não! Nenhum de nós quer gastar dinheiro fruto do nosso trabalho com produtos e serviços de empresas que não sejam sérias e confiáveis. Esse e inúmeros outros exemplos nos dão a dimensão da importância de as empresas de todas as áreas e de todos os tamanhos adotarem práticas de governança corporativa. Esse pode ser um fator determinante no momento de serem escolhidas como prestadoras de serviço ou fornecedoras de empresas de maior porte, e também no momento de captarem recursos de investimento junto a bancos ou investidores pessoas naturais ou jurídicas. Na atualidade, com o incremento de startups como modalidade de empreendedorismo, principalmente nas áreas de tecnologia, a necessidade de adoção de sistemas de governança corporativa se tornou ainda mais evidente. Vamos estudar esses dois temas: as startups e as práticas de governança corporativa em empresas de pequeno porte. 3.3 Governança corporativa para startups e empresas de pequeno porte Segundo dados do portal Terra (NÚMERO..., 2020), o Brasil alcançou o número de 12.727 startups em 2019, com crescimento de 207% entre 2015 e 2019. Se considerarmos o potencial criativo dos brasileiros e sua capacidade de empreender, esses números podem ser considerados até modestos e sinalizam que o crescimento será exponencial nos próximos anos, sobretudo em razão da maior facilidade de acesso que temos às novas tecnologias na atualidade. Especialmente entre as novas gerações já é possível sentir que o apelo pela estabilidade de um emprego ou de um concurso público já não se mostra tão frequente e que, muitas vezes, os jovens preferem arriscar um novo empreendimento de pequeno porte com ideias desenvolvidas a partir de aportes tecnológicos, do que optar pela suposta segurança dos padrões tradicionais de desenvolvimento profissional. 90 Unidade II É importante ficar atento para as mudanças das relações de emprego e trabalho na sociedade em que vivemos, porque esta é uma área que efetivamente tem mostrado mudanças significativas em muitas partes do mundo como Israel, Portugal, Estônia e na capital inglesa, Londres. Todos esses lugares são conhecidos como hubs de inovação, ou seja, locais em que há um ambiente favorável, ou ecossistema, para projetos de inovação desenvolvidos principalmente por startups. Guilherme Paraol (2019) informa: Israel é vista como referência em inovação no mundo. O país do Oriente Médio, com cerca de 9 milhões de habitats e 71 anos de existência, é considerado a nação das startups. Assim, no país, estão situadas mais de 300 multinacionais comcentro de pesquisa de alta tecnologia. Por exemplo, empresas como Microsoft, IBM, Apple, Cisco, HP e Intel. No entanto, o destaque para o país judaico não ocorre apenas pela presença de gigantes mundiais de tecnologia. Mas, sim, pela quantidade de startups oriundas do país. É o maior número de startups per capita do mundo, que corresponde a uma para cada 1,8 mil habitantes (StartSe, 2019). Apenas para efeito de comparação, no Brasil, é cerca de uma para cada 33 mil habitantes. Figura 4 – Tel Aviv, Israel Os hubs de inovação são espaços que favorecem o agrupamento de empresas que se constituem a partir de base tecnológica e com forte potencial de crescimento. Observação O Vale do Silício ou Silicon Valley, situado na Califórnia, nos Estados Unidos, é considerado um dos maiores centros de pesquisa e inovação empresarial em todo o mundo, local onde nasceram o Google, o Facebook e a Uber. É um precursor da atividade empresarial usando inovação, mas não é mais o único com essas características. 91 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE Figura 5 – Bairro cidade velha em Talín, Estônia No Brasil, adotamos a nomenclatura legal de parque tecnológico que, em conformidade com a Lei n. 13.243, de 2016, é o complexo planejado de desenvolvimento empresarial e tecnológico, promotor da cultura de inovação, da competitividade industrial, da capacitação empresarial e da promoção de sinergias em atividades de pesquisa científica, de desenvolvimento tecnológico e de inovação entre empresas com uma ou mais instituições científicas, tecnológica e de inovação (ICTs), com ou sem vínculo entre si. Os hubs ou parques tecnológicos são o local em que encontramos as startups. Startups são definidas pela Lei Complementar n. 167, de 2019, como: Art. 65-A – [...] § 1º Para os fins desta Lei Complementar, considera-se startup a empresa de caráter inovador que visa a aperfeiçoar sistemas, métodos ou modelos de negócio, de produção, de serviços ou de produtos, os quais, quando já existentes, caracterizam startups de natureza incremental, ou, quando relacionados à criação de algo totalmente novo, caracterizam startups de natureza disruptiva. § 2º As startups caracterizam-se por desenvolver suas inovações em condições de incerteza que requerem experimentos e validações constantes, inclusive mediante comercialização experimental provisória, antes de procederem à comercialização plena e à obtenção de receita (BRASIL, 2019). 92 Unidade II A lei supra referida permite às startups tratamento diferenciado para abertura e fechamento de empresas, a fim de que ocorra de forma simplificada e automática, no mesmo ambiente digital do portal da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim). A medida tem por objetivo evitar que as startups sejam submetidas às mesmas regras de empresas de porte e finalidade diferentes, o que certamente atrasaria sua constituição e desenvolvimento. Feigelson, Nybø e Fonseca (2018, p. 24-25) destacam que startup é uma empresa que possui os seguintes elementos: i. Encontra-se em estágio inicial, sendo notadamente carente de processos internos e organização. Startup é uma empresa em seu estágio inicial de desenvolvimento, caracterizado pela ausência de processos internos e organização, por vezes sem um modelo de negócio claro e movida pelo ímpeto de venda de uma ideia inovadora. Em muitas ocasiões, essa inovação é tão radical, [...] que resulta em uma ruptura da dinâmica ou status quo que prevalecia em um determinado mercado tecnológico antes da criação do produto e/ou serviço oferecido por determinada startup. ii. Possui perfil inovador. A ruptura da dinâmica ou práticas de um mercado, causada pelo produto e/ou serviço ofertado pela startup, traduz o conceito da característica disruptiva das startups. Essa característica é uma das mais importantes [...]. iii. Possui significativo controle de gastos e custos. Por meio de uma prática que se cunhou como bootstrapping1, as startups procuram utilizar ao máximo as capacidades individuais e complementares de cada fundador para diminuir seus custos, focando os investimentos principalmente no desenvolvimento de seu produto e/ou serviço principal. iv. Seu serviço ou produto é operacionalizado por meio de um produto mínimo viável. Ainda sob a lógica de bootstrapping, os fundadores focam seus investimentos no desenvolvimento de um produto e/ou serviço extremamente rudimentar e simples, apenas para que seja possível verificar se realmente existe demanda e para manter os custos iniciais da startup baixos. Esse produto é conhecido como MVP (Minimum Viable Product ou simplesmente Produto Mínimo Viável em tradução livre). 1 “Em se tratando de empreendedorismo, a expressão bootstrapping significa iniciar um novo negócio sem recorrer a investidores, utilizando apenas recursos próprios. A expressão é de origem inglesa e significa algo como “apertar a fivela das botas”, sendo utilizada para se referir à realização de algo sem nenhum tipo de ajuda externa. Este termo tem sido bastante utilizado na criação de startups, que são empresas conhecidas por fazer dinheiro com poucos recursos iniciais [...]” (IBC, 2017). 93 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE v. O produto ou ideia explorado é escalável. Pela mesma lógica de manutenção baixa dos custos, o produto e/ou serviço geralmente é escalável (facilmente expandido para outros mercados e em diferentes níveis de capilaridade e distribuição), apesar de existirem exceções (por exemplo, startups focadas em mercados de nicho). Por essa razão, dificilmente startups criarão produtos ou prestarão serviços customizados ou do tipo tailor made. A ideia é alcançar uma economia de escala por meio de replicação de um mesmo produto para inúmeros clientes. vi. Apresenta necessidade de capital de terceiros para operação inicial. Como as startups almejam uma economia de escala na venda de seus produto e/ou serviço, geralmente o capital inicial aportado pelos fundadores não é suficiente para suportar o crescimento necessário ou investimentos a serem realizados para atingir esse patamar. Por essa razão, é muito comum que as startups busquem investidores externos para financiar o início de suas operações ou seu plano de extensão. (...) vii. Utiliza tecnologia para o seu modelo de negócios. Como parte do processo de inovação, as startups costumam utilizar a tecnologia a seu favor para desenvolver negócios escaláveis e inovadores. Frequentemente são utilizadas plataformas digitais (aplicativos e websites), porém, podem utilizar/desenvolver outros tipos de tecnologia como hardwares. [...]. Assim, não é difícil compreender que as startups em geral têm como característica serem empresas que utilizam fortemente a tecnologia na busca de produtos e/ou serviços inovadores que, em princípio, são produzidos em pequena escala e de forma rudimentar para que comprovem sua eficiência e posteriormente, com recursos captados junto a investidores, tendem a se tornar escaláveis, alcançar espaço no mercado e podem se tornar fortemente rentáveis. A partir do momento em que fica comprovado que o produto e/ou serviço criado pela startup é viável e terá sucesso no mercado, é preciso que sejam aportados investimentos de terceiros para que a escala de produção possa ser ampliada. Nesse momento, fará toda a diferença para a startup possuir um programa de gestão que inclua práticas de governança corporativa, que preserve valores e cumpra a legislação como premissa prioritária. Nenhum investidor sério fará aporte de capital em projetos que utilizem, por exemplo, tecnologia que foi pirateada; ou que não tenham tido cuidados em relação à proteção de dados pessoais; ou, ainda, que estejam fragilizados em relação à propriedade autoral ou industrial. Para Vladimir Barcellos Bidniuk (2017, p. 50-55): Startups, pequenas e médias empresas (PMEs) são o grande universo empresarial no Brasil, também o que podemos denominar de “green field”,ou campo aberto para a inicialização de um processo de profissionalização 94 Unidade II através da estruturação e adoção de práticas efetivas de governança em suas dimensões, corporativa, acionária e familiar, uma vez que nesse universo empresarial temos a predominância de organizações familiares de capital fechado com suas nuances e características específicas. Então vejamos: se “é de pequeno que se aprende”, como salienta um dito popular, podemos, de forma análoga, entender que são de pequenas que podemos forjar as grandes. [...] O mercado de capitais começa a observar o segmento das startups, e de pequenas e médias empresas, como um segmento em capacidade de expansão, estando o Brasil em um contexto de oportunidades de melhorias, independente das crises políticas e econômica que de alguma forma danosa interferem nos mercados. [...] No atual contexto econômico, para essas organizações, ter algum tipo de estruturação de práticas de governança passa a ser fundamental para seu crescimento e desenvolvimento em vista de um horizonte bem-sucedido. E, por mais que isso possa parecer um tanto distante para alguns, há um argumento claro e racional para fazê-lo. Independentemente da natureza, tamanho, tipo e forma de controle, organizações necessitam de aporte financeiro intensivo para suas estratégias de crescimento, muitas vezes como concurso ao mercado de capitais. Então tentaremos encontrar uma organização que tenha alcançado um crescimento sustentado de longo termo, rentabilidade e sucesso longevo que não tenha estruturado alguma prática de governança em suas dimensões. A história tem mostrado inúmeros casos de má gestão executiva, fraudes e corrupção que corroem o valor de empresas e as levam à insolvência, e isso não é privilégio das grandes organizações noticiadas. Os conflitos de interesse e de agência são reais e uma marca da natureza humana, constituindo-se uma ameaça real. Acionistas e líderes empresariais devem refletir sobre suas ações e buscar ouvir as recomendações das boas práticas. [...] As práticas de governança em suas dimensões, implementadas desde cedo, irão permitir a melhoria e supervisão dos processos de gestão e condução as iniciativas estratégicas para os próximos anos. 95 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE [...] De fato, não podemos exigir as mesmas ou avançadas estruturas formais e materiais de governança já instituídas em corporações ou empresas extremamente reguladas pelos mercados, mas tanto startups como pequenas e médias empresas podem em seu pensamento estratégico iniciar suas jornadas de governança obtendo ajuda externa para a estruturação e demonstração de suas iniciativas, ainda que em estágio não tão avançado, tornando-se mais atraentes aos fundos de investimentos, que se tornam cada vez mais criteriosos ao aporte de capital. Reparar que o autor destaca dois aspectos relevantes: que é possível e recomendável adotar práticas de governança corporativa desde o início da empresa, o que significa que o projeto empresarial deverá conter elementos que viabilizem governança; e isso será significativamente relevante no momento em que a empresa precisar de recursos financeiros externos, de investidores, que terão muito cuidado em aferir quais as práticas de governança adotadas para poderem decidir sobre escolher aquela empresa para aportar capital. Por isso, conclui Bidniuk (2017, p. 54-55): Muitos líderes empresariais e condutores de negócios desses segmentos ainda consideram a governança corporativa um processo formal de governança, relevante apenas para organizações de grande porte. No entanto, ao contrário do que muitas vezes é entendido, suas práticas trazem grandes vantagens competitivas comprovadas para todo tipo de organização, independente de sua natureza de controle, e a sociedade em que estão inseridas, o que chamamos de shareholder ou stakeholder values, o seja, a entrega de valor não apenas ao acionista, mas a toda cadeia das partes interessadas. É fato que as empresas se beneficiam de uma boa governança corporativa. Quando verdadeiramente instituída em uma organização, não se restringe somente ao cumprimento das regras ou mecanismos regulatórios, avança em direção ao estabelecimento permanente de um quadro de processos e atitudes sustentáveis que colocaram na construção efetiva de sua reputação e garantem a continuidade e sucesso de longo prazo por diferentes gerações tanto para novos quanto para já existentes empreendimentos, pois são de pequenas que se moldam as grandes. [...] O entendimento para a busca de melhores contextos empresariais e sociais deverá necessariamente passar por administrações de melhor condução, através de uma estruturação formal de governança e vontade ética. 96 Unidade II Há um modelo de governança corporativa para cada empresa, não importa seu tipo de atividade, seu tamanho ou seus planos futuros. Para empresas familiares, de pequeno, médio ou grande porte e até mesmo para as startups, todas as modalidades comportam programas de governança corporativa que viabilizem práticas legais, transparentes e éticas, mas que, principalmente, tornem a governança corporativa parte da mentalidade ou da cultura da empresa, praticada e defendida por todos os sócios, acionistas, funcionários, prestadores de serviços, fornecedores, e que seja percebida concretamente pelos investidores, pela concorrência e pela sociedade. Lembrete Uma startup é uma empresa e deve obedecer à legislação aplicável a essa atividade, inclusive nas relações trabalhistas e tributárias. Imaginemos que uma startup desenvolve uma plataforma digital inovadora para a prática de telemedicina na modalidade teleatendimento, instrumento por meio do qual o médico pode realizar consultas com pacientes utilizando o telefone celular, tablet ou computador pessoal. Os dados do paciente e o prontuário eletrônico ficarão arquivados na plataforma digital para que o médico possa ter acesso sempre que necessitar, inclusive para realizar o monitoramento do paciente e de seu tratamento. Envolvida no desenvolvimento do projeto tecnológico e comercial, a startup decide não criar regras de governança corporativa porque não acha necessário nesse momento, opta por fazer isso no futuro, quando a empresa estiver com um porte maior. Agora, imagine que um dos funcionários da startup decide capturar os dados dos pacientes dos diferentes médicos que utilizam a plataforma e vendê-los para farmácias, por exemplo, para que elas possam oferecer os medicamentos receitados pelos médicos logo após a consulta diretamente no telefone celular ou no e-mail do paciente. Os médicos começam a receber denúncias de que essa prática estaria ocorrendo e, imediatamente, identificam que está ocorrendo vazamento de dados pessoais e de dados pessoais sensíveis dos pacientes em decorrência do uso daquela plataforma digital. O que você imagina que irá acontecer com essa startup? Evidentemente que ela vai perder muitos pontos em credibilidade, confiabilidade e segurança em uma área em que isso é essencial. Não é preciso ser muito experiente em negócios para avaliar que essa startup não vai longe e que poderia ter evitado todo esse transtorno se tivesse adotado e capacitado seus funcionários para práticas simples, porém éticas e confiáveis. Esse exemplo pode ser replicado para muitas outras atividades empresariais, em especial, aquelas que se utilizam de novas tecnologias nas quais ainda é muito fácil que ocorram vazamento de dados, ataques externos, invasão de arquivos, sequestro de dados, entre outros riscos cibernéticos tão comuns em nossos tempos. 97 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE É preciso pensar em governança corporativa como elemento essencial para a construção de organizações empresariais sólidas, independentemente de seu tamanho. 4 ÉTICA – ELEMENTO FUNDAMENTAL DA GOVERNANÇA CORPORATIVA Ética é um elemento essencial para a governança corporativa. É o conjunto de valores que serão adotados pelaorganização – empresarial ou não empresarial –, com objetivo de que suas ações sejam positivas para seus sócios ou acionistas, funcionários, prestadores de serviços, fornecedores, concorrentes e toda a sociedade em que aquela organização atua. Por isso, tratar sobre ética neste trabalho não tem perspectiva meramente filosófica ou teórica, embora isso seja importante para construirmos conceitos. A proposta é tratar da ética como campo da prática empresarial e essencial para aqueles que se dedicam ao empreendedorismo. De fato, profissionais em todas as áreas do conhecimento devem atender a princípios éticos; porém, em algumas atividades profissionais, essa necessidade é mais relevante que para outras, porque a falta de ética pode significar grandes perdas materiais e imateriais, muitas das quais jamais poderão ser reparadas. Vamos pensar, por exemplo, em um profissional de empreendedorismo que agindo completamente sem ética permite o acesso de dados pessoais sensíveis, como teste positivo para uma doença grave, a pessoas que não poderiam ter essa informação ou para familiares do doente que ainda não tinham conhecimento sobre a gravidade do problema. Imagine que alguém sem ética venda projetos industriais que eram de acesso restrito na empresa com o intuito de obter vantagem econômica ou, ainda, que o profissional sem ética pratique corrupção de funcionários públicos para bater metas de venda em sua empresa. São os valores morais que a ética contempla que nos impedem de agir dessa forma ou de forma assemelhada a esses exemplos. São os princípios aos quais atribuímos importância essencial para nossas vidas que nos impedem de praticar atos irregulares, mesmo quando temos a certeza de que ninguém poderá saber disso. É sobre essa visão prática de aplicação da ética que vamos tratar. 4.1 Conceito de ética e moral Há divergência entre os estudiosos sobre conceitos de ética e moral, e até mesmo se essas palavras podem traduzir um mesmo significado. Para alguns, ética e moral são expressões que podem ser utilizadas indistintamente; e, para outros, há clara distinção entre seus significados. A esse debate se dedicaram estudiosos de grande valor intelectual nos campos da filosofia, ciências sociais, ciência política e do direito, entre outros. Na atualidade, a ética e a moral são também temas estudados e pesquisados no campo da gestão empresarial e não há área desse conhecimento que não seja passível de aplicação de princípios éticos e morais. 98 Unidade II Figura 6 – Sócrates, filósofo grego Lembrete Sócrates foi um filósofo da Grécia Antiga que viveu em Atenas até 399 a.C. e teve importante contribuição para os estudos da ética. Há certo consenso entre os estudiosos no sentido de que a moral é o conjunto de valores que uma determinada sociedade aprova em um determinado período de tempo e que, portanto, poderão ser modificados à medida em que igualmente se modificam as relações sociais nessa mesma sociedade. Há vários exemplos que podemos analisar para compreender melhor. No Brasil, o adultério já foi um ato criminoso e, na atualidade, sequer se cogita de que o direito penal tenha ingerência sobre a vida íntima de cada pessoa. Também já discutimos neste trabalho a formação de famílias com mais de um casal e como essa opção pessoal tem provocado forte debate entre juristas entre os que reconhecem essa formação como familiar e aqueles que a rejeitam. Isso demonstra que ainda não temos como sociedade convicção sobre esse assunto. Temos, no entanto, convicção sobre outros valores, como o valor da vida humana, por exemplo, razão pela qual não aceitamos no Brasil que alguém tire a vida de outra pessoa seja por qual razão for, exceção feita à hipótese de legítima defesa, quando então a vida de outro terá sido subtraída para que a pessoa possa manter a sua própria vida. Nos últimos anos, cresceu em importância o valor da vida animal, razão pela qual não se aceita mais, no Brasil, práticas de maus-tratos contra animais, mesmo em áreas úteis para os seres humanos, como a pesquisa científica. O uso de animais em pesquisas tem regulação que decorre de exigência da sociedade que, por várias vezes, se manifestou contrária a práticas que provocavam sofrimento em animais utilizados para pesquisa científica. Os valores sociais de proteção da vida e da integridade física foram ampliados e alcançam agora a proteção dos animais. 99 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE Igualmente temos valores muito bem concretizados sobre o respeito à propriedade e a impossibilidade de alguém se apropriar daquilo que não lhe pertence; sobre o valor do respeito aos mais velhos e da proteção às crianças, entre tantos outros valores que a sociedade brasileira adota neste momento de sua história. No passado, tivemos outros valores e, certamente, no futuro teremos outros também. Adolfo S. Vázquez (2005, p. 63) afirma que moral é um conjunto de normas, aceitas livre e conscientemente, que regulam o comportamento individual e social dos homens. E define a ética como a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. E acrescenta: [...] moral vem do latim mos ou mores, “costume” ou “costumes”, no sentido de conjunto de normas ou regras adquiridas por hábito. A moral se refere, assim, ao comportamento adquirido ou modo de ser conquistado pelo homem. Ética vem do grego ethos, que significa analogamente “modo de ser”, ou “caráter” enquanto forma de vida também adquirida ou conquistada pelo homem. Assim, portanto, originariamente, ethos e mos, “caráter” e “costume”, assentam-se num modo de comportamento que não corresponde a uma disposição natural, mas que é adquirido ou conquistado por hábito. [...] Como teoria de uma forma específica do comportamento humano, a ética não pode deixar de partir de determinada concepção filosófica do homem. O comportamento moral é próprio do homem como ser histórico, social e prático, isto é, como um ser que transforma conscientemente o mundo que o rodeia; que faz da natureza externa um mundo à sua medida humana, e que, desta maneira, transforma a sua própria natureza. Por conseguinte, o comportamento moral é a manifestação da natureza humana eterna e imutável, dada de uma vez para sempre, mas de uma natureza que está sempre sujeita ao processo de transformação que constitui precisamente a história da humanidade. Compreendidos os aspectos essenciais da moral e da ética, vamos entender como esses conceitos se aplicam no campo da atividade empresarial. 4.2 Ética empresarial O estudo da ética e da moral chegou à vida empresarial em razão da grande importância que as empresas adquiriram a partir da segunda metade do século XX no Brasil, quando se tornaram os principais meios de produção em razão do uso dos processos industrializados e do avanço tecnológico e pelo fato de se organizarem de maneira a constituir uma pessoa jurídica diferente da pessoa natural de seus sócios ou acionistas e, assim, não colocarem em risco o patrimônio deles. 100 Unidade II Newton de Lucca (2009, p. 312) afirma, sobre a importância das empresas, que: [...] os efeitos do fenômeno empresarial não se limitaram à subsistência da maior parte da população ativa do País, à produção da maior parte dos bens e serviços consumidos pelo povo, à parcela maior de arrecadação das receitas fiscais por parte do Estado e à gravitação dos vários agentes econômicos não assalariados (tais como investidores de capital, os fornecedores e os prestadores de serviços). Esse fenômeno também terá sido decisivo na conformação comportamental de outras instituições que, até há bem pouco tempo, passaram a latere (ao lado) do alcance da vida empresarial. Aduz o Professor Comparato, com razão, que “tanto as escolas quanto as universidades, os hospitais e os centros de pesquisa médica, as associações artísticas e os clubes desportivos, os profissionais liberais e as forças armadas – todo esse mundo tradicionalmente avesso aos negócios viu-se englobado navasta área de atuação da empresa”, para concluir, com inteiro acerto, que “a constelação de valores típica do mundo empresarial – o utilitarismo, a eficiência técnica, a inovação permanente, a economicidade de meios – acabou por avassalar todos os espíritos, homogeneizando atitudes e aspirações.” A presença da atividade empresarial em todos os campos da produção econômica e a influência dessa forma de organização em todas as demais áreas sociais, em especial na produção do conhecimento e da pesquisa, provocaram o debate sobre a necessidade de engajamento ético das empresas e não apenas dos profissionais que exercem suas atividades. Assim, na área da construção civil, não é suficiente que os engenheiros civis sejam cumpridores dos princípios do código de ética de sua profissão; é preciso que a organização empresarial cumpra sua função social e se organize de maneira a respeitar valores éticos, a agir corretamente nas suas diferentes áreas de organização e atuação, para que os efeitos positivos dessas práticas sejam benéficos a todos, sócios, profissionais, empregados, prestadores de serviços, fornecedores e sociedade. A sociedade no Brasil e em todo o mundo passou a exigir da atividade empresarial práticas que respeitassem os diferentes valores morais, ou seja, passou a exigir práticas éticas que concretizassem valores morais. Essa evolução da concepção da atividade empresarial foi benéfica para toda a sociedade e, basicamente, consiste em exigir das empresas que respeitem seus empregados, a comunidade na qual estão inseridas, o meio ambiente e atuem na sociedade de forma positiva. Não é mais aceitável que uma empresa “compre” licenças ambientais, suborne funcionários públicos para não ser fiscalizada, sonegue impostos, pratique poluição ambiental em troca de financiamento de campanha política de vereadores, use o assédio moral como forma de obter maior produção de seus empregados, coloque no mercado de consumo produtos que sabe ou deveria saber serem nocivos à saúde do consumidor, entre outras inúmeras práticas antiéticas e ilegais que podem ser utilizadas na vida das empresas de pequeno, médio ou grande porte. 101 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE Figura 7 – Desmatamento e proteção ambiental Veloso (2005, p. 5) exprime muito adequadamente quando afirma: O que acontece com a ética e a moral quando as sociedades passam por transformações tão profundas quanto as que o mundo vive agora? Alguns autores afirmam que, nessa situação, a responsabilidade social corporativa é mais importante do que nunca. A ética afeta desde os lucros e a credibilidade das organizações até a sobrevivência da economia global. As organizações terão de aprender a equacionar a necessidade de obter lucros, obedecer às leis, ter um comportamento ético e envolver-se em alguma forma de filantropia para com as comunidades em que se inserem. Além disso, mudanças, como nas formas que são concebidos e comercializados os produtos e serviços, trazem consigo novas questões éticas com as quais as organizações têm de aprender a lidar – principalmente porque, cada vez mais, as novas tecnologias de informação e oportunidades comerciais e empresariais são abertas pela globalização e tendem a levar todas as organizações a abraçar padrões globais de operação. [...] A responsabilidade social corporativa é a característica que melhor define esse novo ethos. Em resumo, está se tornando hegemônica a visão de que os negócios devem ser feitos de forma ética, obedecendo a rigorosos valores morais, de acordo com comportamentos cada vez mais universalmente aceitos como apropriados. As atitudes e atividades de uma organização precisam, desse ponto de vista, caracterizar-se por: 102 Unidade II – preocupação com atitudes éticas e moralmente corretas que afetam todos os públicos/stakeholders envolvidos (entendidos da maneira mais ampla possível); – promoção de valores e comportamentos morais que respeitem os padrões universais de direitos humanos e de cidadania e participação na sociedade; – respeito ao meio ambiente e contribuição para a sustentabilidade de todo o mundo; – maior envolvimento nas comunidades em que se insere a organização, contribuindo para o desenvolvimento econômico e humano dos indivíduos ou até atuando diretamente na área social, em parceria com governos ou isoladamente. As práticas éticas estão, portanto, na agenda empresarial do século XXI, definitivamente implantadas e exigidas por todos, empregados, autoridades públicas, consumidores, fornecedores, investidores esperam que as empresas adotem regulamentos e códigos de ética que não sejam apenas documentos formais, e sim que sejam integralmente vivenciados no cotidiano, na construção de uma efetiva cultura de ética empresarial. Saiba mais Para refletir sobre a aplicação da ética no mundo empresarial, assista ao filme O Lobo de Wall Street, com Leonardo DiCaprio, de 2013. É baseado em uma história real e nos ajuda a entender o prejuízo que a falta de ética pode provocar. O LOBO de Wall Street. Direção: Martin Scorsese. EUA: Red Granite Pictures, 2013. 180 min. Na atualidade, com o avanço da tecnologia e sua utilização em todos os setores econômicos, as áreas de segurança de informação, recursos humanos e gestão de riscos têm participação vital para a implementação da cultura da ética empresarial. Elas têm como viabilizar instrumentos necessários para a difusão dessa cultura, por exemplo, divulgando o código de ética da empresa pela intranet, viabilizando que sejam exibidos vídeos de curta duração motivacionais para o cuidado com as práticas éticas, organizando chats e trocas de informações sobre vivências de ética empresarial em todo o mundo; mas, também, porque essas áreas são essenciais na disseminação do respeito e cumprimento do regramento ético criado e adotado pela empresa. 103 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE Se os gestores e funcionários não forem motivados a adotar, praticar e disseminar as condutas éticas, dificilmente a cultura da empresa absorverá a necessidade de respeito a essas condutas. Imagine que um funcionário permita que um colega use sua senha ou seu crachá para ingressar na empresa; ou que libere acesso para um portal de internet proibido pela empresa para os funcionários em horário de trabalho; ou, ainda, libere o acesso a redes sociais em horário de trabalho quando a empresa considera mandatório que os empregados não acessem as redes nos equipamentos da empresa para evitar riscos de ataques digitais. Como você poderá avaliar o grau de aplicabilidade do código de ética da empresa se os empregados agirem dessas formas? Arruda, Whitaker e Ramos (2009, p. 53) analisam: Programas de ética são desenvolvidos por meio de um processo que envolve todos os integrantes da empresa e que passa pelas etapas de sensibilização, conscientização, motivação, capacitação e, finalmente, adoção de um código de conduta baseado em princípios e valores perenes. Cada organização deve contemplar em seu código situações e características próprias de suas operações, segundo o ramo de atuação. Essas diferenças podem ser vistas em publicações e nos websites das respectivas empresas. Uma vez implantado o código de ética, deve ser desenvolvido um trabalho de acompanhamento e adequação às circunstâncias internas e externas da organização, fruto das contínuas mudanças inerentes ao desenrolar dos negócios. Os códigos de ética contemplam, normalmente, as relações dos empregados entre si e com os demais públicos da empresa, os stakeholders. [...] Alguns códigos descem ao nível dos problemas enfrentados pela organização, enquanto outros se limitam a oferecer diretrizes gerais, deixando questões pontuais para manuais de procedimentos das diversas áreas funcionais da empresa. Assim, enquanto alguns códigos de ética estabelecem que é proibido presentear os fornecedores ou clientes, outros vão ao pormenor: não devem ser oferecidos presentes acima de um determinado valor. Os principaistópicos abordados na maioria dos códigos são: conflitos de interesse, conduta ilegal, segurança dos ativos da empresa, honestidade nas comunicações dos negócios da empresa, denúncias, suborno, entretenimento e viagem, propriedade da informação, contratos governamentais, responsabilidades de cada stakeholder, assédio profissional, assédio sexual, uso de drogas e álcool. A relação de temas habitualmente abordados em um código de ética empresarial contempla a área de informação em vários momentos e o empreendedorismo em quase todos. Por isso a relevância de que as condutas em empreendedorismo tenham aportes técnicos e éticos na mesma proporção, em 104 Unidade II igualdade de condições, porque pouca valia terá para a empresa e para a sociedade que profissionais altamente técnicos e muito bem preparados não atuem com práticas éticas. Os códigos e regulamentos de ética empresarial são células vivas da empresa e devem ser tratados como processo em permanente construção, que não termina nunca de ser aprimorado. Ao mesmo tempo, também deve ser vista como processual a implementação da cultura da ética empresarial, com motivação reiterada para todas as áreas da empresa para que conheçam e pratiquem as determinações do código de ética. Eventos com a finalidade de estudar, conhecer e debater o código de ética são sempre necessários na vida empresarial e áreas mais sensíveis, como a gestão de empreendedorismo, devem ser sempre incentivadas a discutir aspectos específicos da ética empresarial em especial com a apresentação de situações concretas, casos e experiências vivenciadas pelos profissionais para que seja possível avaliar a situação e a aplicação de práticas éticas em situações variadas e reais. Resumo Tratamos da governança corporativa e de sua história a partir dos escândalos com organizações empresariais que desnudaram as fragilidades no tocante ao cumprimento de normas de transparência e integridade, o que provocou o surgimento da legislação Sarbanes-Oxley nos Estados Unidos, os estudos da OCDE indicativos para todos países e mudanças significativas na forma como as empresas se organizam e prestam contas de suas atividades para investidores, empregados, fornecedores e toda a sociedade. Tratamos dos princípios gerais da governança corporativa e dos aspectos específicos da governança para as atividades de empreendedorismo e especificamente para as startups, de maneira a construir solidez na gestão das empresas e garantir que haja efetividade no cumprimento dos princípios. Em seguida, estudamos aspectos éticos e morais aplicáveis às organizações empresariais e a relevância de serem construídas normativas de conduta ética que parametrizem as atividades empresariais, para que todos aqueles que são parte da organização ou que com ela se relacionam saibam o que devem e o que não devem fazer nas suas atividades profissionais. 105 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE Exercícios Questão 1. O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) adota como princípios de governança: (i) transparência; (ii) equidade; (iii) prestação de contas; e (iv) responsabilidade corporativa. Avalie as afirmativas: I – São princípios a serem adotados apenas por empresas de grande porte e que tenham capital aberto para compra e venda de ações por acionistas. II – São princípios que podem e devem ser aplicados por empresas de todos os portes e em qualquer modalidade de organização empresarial. III – São princípios criados para empresas de maior porte econômico e com capital aberto para compra e venda de ações, porém podem ser utilizados por empresas de todos os portes porque são bastante positivos. IV – São princípios sem utilidade prática, para serem utilizados como vetores e não com caráter de aplicação. Assinale a alternativa correta: A) I, somente. B) II e III. C) III e IV. D) II e IV. E) IV, somente Resposta correta: alternativa B. Análise das afirmativas I – Afirmativa incorreta. Justificativa: são princípios que foram criados para empresas de grande porte e que se organizam no modelo de sociedade anônima, mas podem e devem ser adotados por empresas de todo porte e diferentes formas de organização empresarial, porque são facilmente aplicáveis na prática. 106 Unidade II II – Afirmativa correta. Justificativa: por serem princípios facilmente implantáveis para aplicação prática, podem ser utilizados em empresas de diferentes portes econômicos e formas de organização social. III – Afirmativa correta. Justificativa: são princípios criados a partir da necessidade de empresas de capital aberto, que negociam ações no mercado e que possuem maior porte econômico. Mas podem ser aplicados facilmente a empresas de menor porte e com diferentes formas de organização empresarial. IV – Afirmativa incorreta. Justificativa: são princípios que podem ser facilmente implementados e monitorados no cotidiano das empresas, independentemente do tipo de atividade que exercem, da forma empresarial como se organizam e do porte econômico que possuem. Questão 2. Leia atentamente o texto: “O ano de 2020 certamente se tornará inesquecível para muita gente – mas, para as startups brasileiras, as lembranças serão positivas. Mesmo com a pandemia e a crise econômica, o ecossistema brasileiro de inovação caminha para ter seu melhor ano da história nesta temporada. Os sinais até aqui são bons: segundo dados da empresa Distrito, que mapeia o setor, aconteceram 100 aquisições de startups entre janeiro e setembro, superando os anos de 2018 e 2019. O número de aportes realizados em novatas também já tem recorde histórico de 322 cheques, superando o melhor ano do setor com folga – em 2017, foram 263 investimentos. E o volume total de aportes já está em US$ 2,2 bilhões, completando 82% do que foi injetado no mercado em todo o ano de 2019. ‘Esperamos que o último trimestre faça superar o ano de 2019, mas, mesmo com crise, enxergamos um mercado forte e bem aquecido’, diz Gustavo Araújo, presidente executivo da Distrito. ‘Só não há maior volume de aporte porque os investidores ficaram cautelosos no início da pandemia, mas a recuperação em setembro foi muito forte’. Só no mês passado, as startups brasileiras receberam US$ 843 milhões. Acima da expectativa. ‘É muito positivo o balanço de 2020 até aqui. É quase como se o ecossistema estivesse à margem da crise que se vive no Brasil’, diz Gilberto Sarfati, professor da FGV-SP. ‘A digitalização já ganharia destaque de qualquer jeito a médio prazo, mas a crise acelerou o processo’”. (Disponível em: https://revistapegn.globo.com/Noticias/noticia/2020/10/pegn-mercado-de-startups-do-brasil-caminha-para-ter- melhor-ano-da-historia-em-2020.html. Acesso em: 14 nov. 2020). Assinale as características de startups que aparecem no texto: 107 GOVERNANÇA CORPORATIVA E COMPLIANCE A) Perfil inovador, uso de tecnologia para modelo de negócios e necessidade de capital de terceiros para operação inicial. B) Necessidade de capital de terceiros e uso de tecnologia para desenvolvimento de negócios. C) Estágio inicial e carência de organização empresarial, necessidade de mão de obra de terceiros para compartilhamento de experiências. D) Uso da capacidade de cada fundador para contenção de custos e despesas, necessidade de aporte de capital de terceiros e concepção de produtos para mercados de economia de nicho. E) Necessidade de capital de terceiros, aprovação pelos órgãos federais e necessidade de mão de obra de terceiros. Resposta correta: alternativa A. Análise das alternativas A) Alternativa correta. Justificativa: perfil inovador, uso de tecnologia para modelo de negócios e necessidade de capital de terceiros para operação inicial são características de empresas denominadas startups, quase sempre em início de atividade e com projetos inovadores como se refere o texto. B) Alternativa incorreta. Justificativa: necessidade de capital de terceiros e uso de tecnologia para desenvolvimento de negócios são característicasde startups, porém a mais forte é o perfil inovador, conforme se pode constatar no texto. C) Alternativa incorreta. Justificativa: é possível encontrar startups que tenham essas características – estágio inicial e carência de organização empresarial, necessidade de mão de obra de terceiros para compartilhamento de experiências –, porém, o traço mais relevante, conforme se lê no texto, é o caráter inovador que essas empresas possuem. D) Alternativa incorreta. Justificativa: muitas startups possuem as características apontadas – uso da capacidade de cada fundador para contenção de custos e despesas, necessidade de aporte de capital de terceiros e concepção de produtos para mercados de economia de nicho –, mas o que melhor distingue essas empresas das demais é a capacidade de inovação, como se pode confirmar na leitura do texto. 108 Unidade II E) Alternativa incorreta. Justificativa: necessidade de capital de terceiros é uma característica das startups, porém nem sempre elas necessitam de aprovação pelos órgãos federais, pois isso vai depender da atividade que pretendem desenvolver. Também não necessitam de mão de obra de terceiros; ao contrário, quase sempre utilizam a mão de obra de seus próprios criadores como forma de baratear o custo.