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Código Logístico 59831 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-4650-8 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 0 5 4 Fundamentos de Geografia Física Lindberg Nascimento Júnior IESDE BRASIL 2021 © 2021 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Alexander Herasymchuk/Phatphum Phetchakan/Shutterstock Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ N195f Nascimento Júnior, Lindberg Fundamentos de geografia física / Lindberg Nascimento Júnior. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2021. 164 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-005-4 1. Geografia física I. Título. 21-69246 CDD: 910.02 CDU: 911.2 Lindberg Nascimento Júnior Doutor e mestre em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Licenciado e bacharel em Geografia pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professor Adjunto do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde atua nos cursos de Geografia nos Programas de Pós-Graduação em Geografia (PPGG) e em Desastres Naturais (PPGDN). Pesquisa temas voltados para a climatologia geográfica, geografia do clima e educação geográfica das relações étnico- -raciais, com foco nos impactos da variabilidade, teleconexões climáticas, clima urbano, riscos climáticos, vulnerabilidade e cartografia histórica da África. SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! 1 Introdução à Geografia Física 9 1.1 Teoria e método em Geografia Física 10 1.2 A natureza na Geografia Física 15 1.3 Paisagem e ambiente na análise geográfica da natureza 21 1.4 A abordagem de geossistemas 23 2 O planeta Terra 31 2.1 A Terra no espaço 31 2.2 História ecológica da Terra 36 2.3 O sistema terrestre 42 2.4 Dinâmicas da natureza 45 3 A superfície terrestre 53 3.1 Fundamentos de geologia 54 3.2 Introdução à geomorfologia 65 3.3 Introdução à pedologia 71 3.4 O Antropoceno 77 4 A atmosfera e a hidrosfera da Terra 83 4.1 Introdução à climatologia 84 4.2 Fundamentos de oceanografia 91 4.3 Elementos da criosfera 95 4.4 Fundamentos de hidrografia 100 5 A biosfera terrestre 110 5.1 Fundamentos de biogeografia 111 5.2 Biomas terrestres 118 5.3 As paisagens brasileiras 124 5.4 Conservação e serviços ecossistêmicos 128 6 Mudanças globais 136 6.1 Crise ambiental 136 6.2 O futuro da humanidade e do planeta 144 6.3 Planejamento e gestão ambiental 148 6.4 Educação e consciência ambiental crítica 153 Gabarito 161 O que define os fundamentos da Geografia Física? Quais são os saberes e conhecimentos que compõem esse campo da ciência geográfica e o tornam importante para a humanidade? Quais são os princípios para um trabalho teórico e prático em Geografia Física que pode contribuir para a sociedade? Fique tranquilo! Essas questões nos ajudarão a refletir sobre os temas, problemas e conceitos abordados nesta obra. Por meio delas você terá acesso a um conjunto de saberes que o auxiliarão nas suas escolhas futuras como geógrafo. Tentamos responder a essas questões partindo sempre das relações existentes entre natureza e sociedade, admitindo-as tanto na condição de eixo epistemológico da geografia quanto como um processo histórico, gradual e inacabado. Nesse sentido, vamos mostrar que a Geografia Física apresenta teorias, conceitos e técnicas próprias para compreender essas relações; assim, não perdemos a noção de onde estamos. Associações e articulações entre a Geografia Física e a Geografia como um todo serão também bastante valorizadas. A intenção é evidenciar a particularidade da ciência geográfica e da Geografia Física no escopo e na relação com outras ciências e, ao mesmo tempo, não perder de vista a indissociabilidade entre esses campos. Assim, não perdemos a noção de onde saímos. Elaboramos esta obra partindo de uma proposta que é crítica, histórica e construtivista, na qual abordamos temas, conteúdos e problemas geográficos da atualidade por meio de uma concepção avaliativa, indicando limites de usos e propósitos. Assim, não perdemos a perspectiva de aonde queremos chegar. Para tanto, no Capítulo 1 abordamos a história e o desenvolvimento da Geografia Física. Entendemos que as relações entre natureza e sociedade são resultado de nossas visões de mundo e projetos de sociedades. Nesse contexto, a Geografia Física é um ramo do saber orientado para desvendar como são as ordens espaciais das relações entre nós, seres humanos, junto ao entorno imediato, próximo e distante. Essa estratégia APRESENTAÇÃO Vídeo serve para entender a organização das paisagens naturais, a constituição dos territórios e a produção do espaço. No Capítulo 2, apresentamos a Geografia Física no contexto do Sistema Terrestre. Nosso objetivo é discutir como as leis físicas do movimento e as forças terrestres são responsáveis em promover o equilíbrio dinâmico do planeta. No Capítulo 3, versamos sobre os processos que auxiliaram na construção da estrutura geológica, do relevo e dos solos, isto é, da superfície terrestre. Destacamos a importância das alterações antrópicas – aquelas associadas às atividades humanas que redefinem a dinâmica natural. No Capítulo 4, estudamos a dinâmica do ar e da água na distribuição do calor no planeta. Adotamos uma perspectiva voltada a explicar a integração sistêmica do mundo em sua complexidade física e em sua dimensão cotidiana, sobretudo em relação a problemas como degradação ambiental, poluição do ar, da água e gestão de recursos hídricos. No Capítulo 5, vamos conhecer os princípios biodinâmicos que regem os fluxos da vida e explicam a diversidade de paisagens em termos de fauna e flora. Abordamos os processos de adaptação biológica e seleção natural como princípios da síntese combinada dentro do Sistema Terrestre, seus padrões de distribuição e a importância de sua conservação. Por fim, no Capítulo 6, destacamos possibilidades de trabalho com problemas reais e concretos no contexto das mudanças globais. Damos ênfase ao estudo das alterações ambientais e de seus impactos, com indicação prática para a atuação profissional baseada na gestão, no planejamento e na educação ambiental. Todos os capítulos contemplam uma breve revisão histórica dos conceitos e temas abordados em articulação com a Lei n. 6.664, que rege a profissão de geógrafo, e outros aparatos legais como o Estatuto da Terra, a Política Nacional de Meio Ambiente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB e o Estatuto da Cidade. Em síntese, nossa intenção é mostrar de onde saímos, onde estamos, para onde vamos, e, sobretudo, aonde chegar, na condição de profissionais e estudiosos de Geografia. Tudo isso pode auxiliar você a construir sua autonomia e liberdade de pensamento. Boa leitura! Introdução à Geografia Física 9 1 Introdução à Geografia Física Antes de iniciarmosnossos estudos, é importante distinguir- mos Geografia Física no escopo da ciência geográfica, e com base nesse elemento particularizar seus fundamentos dentro do saber humano historicamente construído. Partirmos do princípio de que o saber humano é mais amplo que o conhecimento científico, e por esse caráter ele abrange não somente as formas tradicionais de organizar o conhecimento, mas também de compreender como elas se combinam com os saberes mais recentes e contemporâneos, oferecendo uma maneira mais complexa de entender o desenvolvimento do processo civilizatório da humanidade. Neste capítulo, vamos conhecer uma parte dessas discussões, iniciando pela história do pensamento geográfico e destacando as teorias e os conceitos que mais ajudam na sistematização de uma Geografia Física, que deve ocorrer de modo paralelo à sua formação. O objetivo é que até o fim deste capítulo você tenha uma di- mensão abrangente da história, dos objetos e dos métodos de Geografia Física, além de apreender os conceitos de natureza, espaço, tempo, paisagem e ambiente, pois são elementares para realizar uma análise geográfica. Também vamos discutir as abordagens mais bem aceitas pela comunidade acadêmica, seja no que tange à explicação dos te- mas e questões essenciais à Geografia Física contemporânea, seja às formas de construção desse conhecimento com base no seu cotidiano. Desejamos uma ótima leitura e um bom rendimento de estu- do. Não se esqueça do seu bloco de anotações, da sua caneta, ou lápis. 10 Fundamentos de Geografia Física 1.1 Teoria e método em Geografia Física Vídeo Procure imaginar quando a geografia, e especialmente a Geografia Física, foi pensada pela primeira vez. Se você pensou: “desde a origem do ser humano! Quando nós atingimos o patamar de termos consciên- cia de nós mesmos!” A resposta está correta! Pois, mesmo que seja difí- cil marcar a data específica para a origem de um conhecimento, é mais adequado admitir que ele sempre inicia quando nós, seres humanos, percebemos a nossa habilidade de imaginar o futuro e de elaborar pro- jetos e planos. Essa qualidade é também relativa quando, pela primeira vez em nossa história, tentamos encontrar respostas para questões e dúvidas sobre nós e sobre nosso mundo. Por isso, já devemos considerar que Geografia Física é um saber com a característica de problematizar a relação da sociedade com a na- tureza pelo viés da ciência geográfica. Entretanto, o que isso significa? Quer dizer que aspectos históricos da geografia têm colocado uma di- versidade de questões, que debatem a origem, os propósitos e os mé- todos da ciência, e a Geografia Física não ficou de fora. Então, vamos começar por partes, assumindo que a Geografia Físi- ca foi inicialmente pensada considerando a sistematização elaborada pelo viajante naturalista Alexander von Humboldt (1769–1859). Imerso no contexto do romantismo alemão, Humboldt (2008) admi- tia o estudo da natureza guiado pela experiência estética, valorizando a intuição, a apreciação, a contemplação e a experimentação. Basi- camente, ele entendia a natureza como uma totalidade holística e indissociável. Adepto do empirismo e propenso a elaborar teorias uni- versais e leis gerais, Humboldt ofereceu à geografia um dos primeiros postulados para formulação dos princípios gerais de análise para toda e qualquer realidade: a Teoria Geral da Terra. Sobre esses aspectos, o pesquisador sempre partia do princípio de que o ser humano e a natureza são uma unidade. Suas análises asso- ciavam combinações das características físicas, biológicas e naturais para explicar as transformações espaçotemporais e a dinâmica das paisagens. Grande parte de suas ideias foi incorporada por Friedrich Ratzel (1844–1904), também um dos primeiros teóricos da geografia, formulador do conceito de espaço vital. Totalidade holística refere-se à noção de que o todo é maior do que a soma das partes. Tra- ta-se da perspectiva de que os sistemas naturais estão abertos à evolução e recriação sempre crescentes. Já o empirismo é uma forma de apreensão da realidade pelos sentidos, seja com base na experiência prática (valorização do que é objetivo), ou seja com base na introspecção (valorização das subjetividades). Saiba mais Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Introdução à Geografia Física 11 Além de Humboldt, Karl Ritter também construiu uma ideia de natu- reza para a geografia com esses elementos, procurando oferecer uma perspectiva de integração entre meio social e natural. Sua estratégia era voltada a alcançar a totalidade da natureza como soma das partes. Não por acaso, Ritter (1865) também observou que as manifestações humanas e os comportamentos sociais não obedecem aos padrões do meio natural. Ritter (1865) concluiu que a humanidade exerce sua influência so- bre a natureza, especialmente com o uso da técnica e das tecnologias, e que a geografia poderia desenvolver leis gerais com base na indu- ção, sobretudo, utilizando o estudo comparado das áreas e da história dos lugares. Essa perspectiva marcou significativamente a geografia francesa, em particular a desenvolvida por Paul Vidal de La Blache (1845–1918), formulador dos conceitos de região geográfica e gênero de vida. Você já deve ter percebido que a Geografia Física parece acompanhar o desenvolvimento da própria geografia, não é mesmo? E é justamente por isso que sua sistematização ainda está aberta ao debate e a diversas contribuições. Gregory (1992) explica esse processo mostrando que mu- danças nos eixos temáticos e metodológicos na Geografia Física têm sido provocadas tanto por transformações internas (no sentido das influên- cias teóricas na geografia) quanto pela inclusão de técnicas de estudo que mudaram as formas de análise e, consequentemente, as maneiras de observar, medir, representar e conhecer a realidade do mundo. Dessa perspectiva, é preciso pontuar pelo menos cinco grandes contribuições importantes que remetem ao desenvolvimento científico entre os séculos XVIII e XXI e que ofereceram implicações diretas à sis- tematização da Geografia Física. A primeira contribuição foi o Princípio do Uniformitarismo, for- mulado por James Hutton (1740–1797), que propôs críticas ao catas- trofismo como teoria explicativa do meio natural, marcando a máxima da modernidade ao afirmar que o presente é a chave para o passado. A perspectiva uniformitarista se apoia na interpretação de que a di- nâmica dos processos naturais atua de modo semelhante, ainda que com intensidades diferenciadas, ao longo da história natural da Terra (SALES, 2004). Ou seja, processos naturais são uniformes e apresen- tam padrões cíclicos e periódicos que auxiliam a descrever como eles Em seus estudos, Humboldt relacionava di- retamente as característi- cas biológicas das plantas aos fatores naturais, como topografia, clima, estrutura geológica, solos e localização. Assista ao documentário Especial Alexander von Humboldt: o alemão que mudou a imagem da América do Sul, publicado pelo canal Camarote.21, para se aprofundar sobre as contribuições do pensador. Disponível em: https://youtu.be/ aVa-8nupDgw. Acesso em: 4 fev. 2021. Vídeo Recomendamos a leitura do capítulo “Um século para uma implemen- tação 1851–1950”, da clássica obra A natureza da Geografia Física, para que você tenha um dimensionamento con- sistente da história dessa ciência e desenvolva sua autonomia e seu conhe- cimento sobre a relação entre teoria, conceitos e autores. GREGORY, K. J. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. Leitura https://youtu.be/aVa-8nupDgw https://youtu.be/aVa-8nupDgw Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar Breno Destacar 12 Fundamentos de Geografia Física ocorrem de modo mais ou menos similar ao longo do tempo passado (por meio da observação), dopresente (por processos de monitora- mento) e do futuro (com construção de cenários e de previsão). A segunda grande descoberta foi a da Teoria da Evolução, no contexto da obra A Origem das Espécies, de Charles Robert Darwin (1809–1882). A perspectiva evolutiva inseriu na análise geográfica das relações sociedade-natureza a noção de origem, mudança e transfor- mação, somando também a ideia das inter-relações e conexões entre os seres vivos e seu entorno, além dos processos de organização e adaptação. Com a teoria da evolução, o estudo geográfico saiu de uma concep- ção fixista e estática para outra mais dinâmica, mutável e integrada, inclusive com inovações conceituais, como o meio geográfico (derivado do reconhecimento do princípio de seleção natural) e fatores regulado- res, que atuavam como forças condicionantes da formação das paisa- gens e suas variações no planeta. Diante disso, os princípios uniformitaristas e evolutivos possibilita- ram que a Geografia Física explicasse tanto a origem e a formação das paisagens no tempo quanto sua dispersão espacial em termos de está- gios evolutivos, diversidade e distribuição no planeta. A título de exemplificação, podemos citar os estudos de reconstru- ção histórica (muito articulada com a paleontologia e a arqueologia) e, com eles, a decodificação da história natural dos continentes, com base no desvendamento dos processos de nascimento e extinção de ocea- nos e mares (Teoria da Deriva Continental), a identificação da origem e a evolução dos relevos (principalmente cadeias montanhosas – orogê- nese), a compreensão da estruturação espacial de bacias hidrográficas (morfogênese), a reconstituição dos climas do passado (paleoclimato- logia), associações com grandes domínios biogeográficos (biomas e regiões biogeográficas) e processos de ocupação humana nos lugares (arqueologia, história e sociologia). Uma terceira influência para a constituição da Geografia Física foi o Colonialismo, sobretudo, devido às explorações científicas que desen- volveram uma quantidade significativa de informações do mundo com as primeiras propostas de mapeamento, classificações, tipologias dos domínios naturais em nível planetário. Esses processos fundamenta- Para mais informações sobre as contribuições de Darwin, assista ao vídeo O que é a teoria da evolução de Charles Darwin e o que inspirou suas ideias revolucionárias, publicado no canal da BBC News Brasil. Disponível em: https://youtu.be/ ambANBIHjCI. Acesso em: 4 fev. 2021. Vídeo https://youtu.be/ambANBIHjCI https://youtu.be/ambANBIHjCI Breno Destacar Introdução à Geografia Física 13 ram sobremaneira a sistematização das formações naturais em todo o planeta. Não podemos nos esquecer de que o Colonialismo, além de ofere- cer o reconhecimento do planeta como mundo, também estabeleceu a localização das riquezas como estratégia geopolítica de desenvolvi- mento e dominação, junto com o genocídio de povos originários e a escravização de africanos. Essa perspectiva mostra que todo o estudo geográfico está embutido de relações de poder, para controle ou apro- priação da natureza, do qual a Geografia Física contribuiu de modo relevante. A quarta grande contribuição foi a incorporação dos avanços da Teoria da Relatividade Geral, que se deu somente a partir do século XX, principalmente com as contribuições do físico alemão Albert Einstein (1879–1955). Nesse caso, a natureza interpretada pelas quatro dimensões do espaço-tempo (altura, profundidade, largura e tempo) proporcionou conceber, para além dos princípios da evolução, também atributos particulares de cada meio, como frequência, intensidade, magnitude, estrutura física, organização química, ordens de grandeza, graus de influência etc. Na Geografia Física isso significou oferecer uma cronologia relativa (por meio da associação com seus diferentes tipos de rochas, fósseis e sedimentos, por exemplo), a partir de idade isotópica (também cha- mada de absoluta), com base na dinâmica da Física do Decaimento 1 , somado à descoberta da Radiação de Fundo. Esses elementos oferece- ram outras referências para o estudo da origem do Universo e da Terra, fundamentado nos princípios do sensoriamento remoto e na resposta espectral dos alvos. A quinta e mais recente contribuição à sistematização da Geografia Física é a Teoria Geral dos Sistemas, que foi elaborada pelo biólogo austríaco Ludwig Von Bertalanffy (1901–1972), em conjunto com Paul Alfred Weiss (1898–1989), no ano de 1930. Nessa teoria, destaca-se que um sistema é um conjunto de unidades organizado e autorregulado, que se movimenta por um fluxo constante de matéria e energia. Suas inter-relações sugerem que o todo (o sistema maior) é mais do que o produto da soma das partes, mas um organismo complexo, que apre- senta subsistemas abertos e fechados, funcionando em interdepen- dência e indissociabilidade. isotópica: refere-se à medida de datação geológica obtida pela radiação eletromagnética emitidas por substâncias químicas e estruturas físicas que constituem as rochas e os minerais. Glossário Também chamada de Física do Decaimento Radioativo, é o processo de liberação de radiação eletromagnética pelos elementos químicos em estado de desintegração. 1 14 Fundamentos de Geografia Física Na Geografia Física, a abordagem sistêmica tem implicado a com- preensão do funcionamento e relacionamento entre elementos e unidades, entre sistemas e subsistemas, em seus graus de interdepen- dência, complexidade nas causas-efeitos e os processos de transfor- mação da matéria e da energia. Dessa forma, não podemos discordar da clássica frase de Antoine-Laurent de Lavoisier (1743–1794) sobre a Lei da Conservação de Massa: “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Os estudos aplicados contemplam questões relativas aos desastres naturais, às áreas degradadas, à restauração ecológica e ambiental, ao clima urbano, à saúde ambiental etc. A abordagem foi bem desenvolvida por Antonio Christofoletti (1979) e Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro (1995). Ambos explicaram que a dinâmica dos sistemas naturais ao longo do tempo tende a ser cada vez mais complexa, já que a ação humana interage de modo signi- ficativo na superfície terrestre e no planeta como um todo. Christofoletti (1979) discutia a teoria geral dos sistemas atribuindo o conceito de geossistemas, referindo-se à organização espacial re- sultante da interação dos elementos e componentes físicos da natu- reza funcionando por meio dos fluxos de matéria e energia em sua expressão espacial. Já Monteiro (1995) utilizou a abordagem sistêmica para determinar uma categoria complexa, na qual interagem elementos humanos, físi- cos, químicos e biológicos, sendo que sistemas socioeconômicos esta- riam incluídos no funcionamento do próprio sistema. Nesse sentido, a particularidade da Geografia Física dentro da ciên- cia geográfica (no conjunto das ciências humanas) é que ela deve ser vista considerando um processo de relação metabólica, no qual ser humano e natureza intercambiam matéria e energia, em que não se separam as contribuições dos intelectuais e estudiosos da Geografia Humana (MOREIRA, 1985). Além disso, ela também se situa no diálogo com a Cartografia, bem como com as Ciências Naturais e Exatas, em especial Física, Geologia, Hidrologia, Química e Biologia. Um esquema dessa relação é apresentado na Figura 1. A Radiação de Fundo foi designada a um tipo de energia eletromagnética detectada em transmissões de rádio pelos astrofísicos Arno Penzias e Robert Wilson. Naquele momento era um ruído extremamente tênue, mas muito persistente em todas as direções do céu. Outros quatro físicos norte-americanos, Robert Dicke, James Peebles, Peter Roll e David Wilkinson, ao tentar medir a mesma radiação, estimaram que por ser muito longa é muito antiga, originada em uma época em que as partículas de luz (fótons) passaram a viajar livremente, sem interagir com a matéria. Nessecaso, a temperatura da Radiação de Fundo é muito próxima do zero absoluto em graus Kelvin (cerca de 2,725 K, ou -270 ºC), e inicialmente a re- cebemos como ruído, ou melhor, como um eco da Big Bang – a grande explosão que originou o nosso Universo. Importante Há muitos exemplos de sistema. Nosso corpo é um sistema e dentro dele existem vários outros: cardio- vascular, respiratório, nervoso etc. Cada um apresenta uma dinâmica e uma função específica e só pode ser completamente interpretado em conexão com outros sistemas (menos e mais simples) e o corpo. Nós também fazemos parte de outros sistema maior, a Terra. Conhecer e compreender as leis que organizam esse sistema é uma medida que oferece saber dinâmica, seu estágio de evolução e suas formas de transformação. Saiba mais Introdução à Geografia Física 15 Figura 1 Posicionamento do campo da Geografia Física em relação a outros campos do saber Geografia Geografia Humana Cartografia Geografia Física Pedologia Biogeografia Climatologia Meteorologia Ecologia Biologia Química Hidrologia Física Geologia Geografia Ambiental Geomorfologia Fonte: Elaborada pelo autor. Hidrografia Diante do exposto, o que sintetiza o caráter da teoria e do método na Geografia Física é o encontro dos processos que fundam a ordem espacial das relações natureza-sociedade. No entanto, antes de discu- tirmos esse aspecto, é necessário apreendermos sobre qual natureza a Geografia Física se refere. Vamos lá! 1.2 A natureza na Geografia Física Vídeo Vamos iniciar esse aprendizado considerando que foi entre os sécu- los XVI e XVIII que o conceito de natureza foi pela primeira vez de fato elaborado. A palavra sugeria a ideia de nascimento com indicação de futuro a surgir, a se gerar, seria a força que gera. Nessa perspectiva, é importante pensar a natureza como aquela característica que oferece a qualidade mais essencial, como algo que é dado, inato, isto é, uma característica que se define por si só, porque foi dotada desde a con- cepção e a origem. 16 Fundamentos de Geografia Física Podemos começar esse debate partindo dos primeiros saberes ela- borados pelos seres humanos sobre a natureza, inicialmente definida pelas temporalidades e espacialidades sob uma condição absoluta, eterna e manifestada. Em síntese, uma natureza sobrenatural, uma supernatureza orientada por concepções mitológicas, que não pode ser pensada em termos de origem e fim; trata-se de uma natureza sa- grada, porque é criada por deuses ou entidades divinas soberanas e superiores. Essas concepções podem ser associadas às relações natureza-so- ciedade das primeiras civilizações e atualmente podem ser atribuídas também como uma parte dos modos de vida de povos originários e tradicionais, bem como de nossas religiões, folclores, dizeres popula- res, produções cinematográficas, desenhos animados e de discursos políticos e midiáticos. Estes últimos são mais relevantes em ocorrência de grandes calamidades, desastres e catástrofes. Você consegue relacionar as concepções sobrenaturais de natureza na sua vida, consi- derando a cultura da sua família, comunidade, cidade ou região? Na maioria das vezes, elas são operadas em uma explicação da natureza como uma entidade superior ou um resultado da vontade divina, ou seja, com intencionalidades e propósitos. Entender e identificar essas manifestações na atualidade é uma das nossas responsabilidades como geógrafos ou como professores de Geografia. Primeiro porque conseguimos partir des- ses saberes para valorizar o que é importante na diversidade cultural de povos, nações, suas tradições, folclores, costumes e cosmovisões. Ao mesmo tempo, construir críticas para propor mudanças para que nenhum acidente, projetos de sociedade, preconceito, discriminação e privação de direitos possam ser admitidos como uma determinação causal natural, impossível de ser transformada. Uma segunda concepção de natureza advém dos postulados da Antiguidade grega, fundamentados nos conhecimentos egípcios, desig- nando ao mundo sua totalidade em suas dimensões material, espiri- tual, artística e imaginada. Foi inicialmente pensada por pré-socráticos, com base na physis (relativo à fisiologia). A noção foi reformulada pelo filósofo Aristóteles, que integrou o modelo geostático (Terra imóvel, esférica e depositada no lugar mais baixo do cosmo) e em torno dele quatro estratos esféricos de terra, água, ar e fogo, relacionados e intercalados pela tendência de estágios úmidos, secos, quentes e frios. A Lua, o Sol, o céu de estrelas e outros O livro O que é natureza é uma obra imprescindível para os geógrafos. Para a discussão que estamos fazendo neste capítulo, recomendamos em espe- cial a leitura do primeiro capítulo “Natural, sobre- natural e artificial”, já que essas três perspectivas de natureza podem ser apropriadas ao estudo geográfico. CARVALHO, M. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2003. (Coleção Primeiros Passos; 243). Livro Introdução à Geografia Física 17 astros eram fixos e realizavam movimentos circulares, compondo com outras 55 esferas sólidas e constituídas pela quinta essência – o éter –, que por ser desconhecida era substancialmente diferente dos elemen- tos essenciais (CARVALHO, 2003). Figura 2 Os cinco elementos de Aristóteles Fonte: Elaborada pelo autor. Fogo Água Ar TerraÉter Éter ÉterÉter Éter Éter Éter Éter ÉterÉter Éter Éter Éter Frio Quente Úmido Seco Além dos cinco elementos, Aristóteles também ofereceu processos de classificação com base nesses atributos, indicando os fundamen- tos das ciclicidades. Nesse caso, ele afirmou que elementos animados (seres vivos) gerariam sempre seus semelhantes – os cachorros sem- pre gerariam cachorros, assim como as plantas gerariam plantas. Do contrário, o ser inanimado tenderia sempre a voltar a um estágio de repouso, segundo os movimentos do processo. A água tende a se con- servar líquida, as nuvens tendem a se condensar, a chuva a cair e o rio a correr para o mar. Trata-se do princípio de movimento de transfor- mação constante e eterna. A ideia aristotélica de natureza sugeria que todos os objetos têm seu devido lugar e em todos os lugares a natureza acontece como um organismo vivo, obedecendo a um objetivo interno, imutável e eter- no, inerente à sua forma (CARVALHO, 2003). Essa concepção perdurou por todo o período do Império Romano e da Idade Média (cerca de 1.400 anos), mas com alterações e adaptações realizadas pela Igreja 18 Fundamentos de Geografia Física Católica, que manteve a ideia de natureza orgânica e criada por deuses (CARVALHO, 2003). Com o advento da modernidade e os avanços da física newtoniana, a natureza foi pensada pela perspectiva mecanicista, dada pelo mo- vimento dos corpos, em uma visão antropocêntrica e essencialmente naturalista (SUERTEGARAY, 2003). Na geografia ela é designada em seus sentidos orgânico e inorgâ- nico (cursos d´água, fauna, flora, minerais e atmosfera), uma natu- reza-máquina, uma natureza em si, na qual o ser humano não se faz presente, ou quando se faz é vítima ou agressor. Pela definição, a natu- reza oferece a possibilidade de entender e identificar o funcionamento, as dinâmicas, as relações, os agentes e os processos que constroem os movimentos naturais. Foi essa concepção de natureza que reduziu tudo o que é natural em recurso, em mercadoria. Além disso, também legitimou o discurso do determinismo ambiental, das lógicas colonialistas e da subordina- ção dos povos pela ideia de uma distinção social que atribuía a desi- gualdade como processo natural, sendo o racismo um dos melhores exemplos. A visão naturalista separa o ser humano da natureza, coloca-o como observador, dominador, sem laços de pertencimento e isento de res- ponsabilidades, associando, portanto, uma visão de natureza (uma essência em si) que deve ser subordinada e dominada. Não por acaso, essa perspectiva legitimou a ideia causal da organização das socieda- des, dos povos e dos grupossociais e seu desenvolvimento. A partir do século XX, quando os níveis de produção de saberes e conhecimentos geográficos acerca dos lugares na superfície da Terra já permitiam uma sistematização sumária da totalidade do mundo, o avanço técnico-científico proporcionou pela primeira vez na história que a Terra fosse vista do lado de fora. A natureza pode ser pensada com base em suas conexões e articu- lações, cujas características são absolutamente mutáveis, complexas e muito sensíveis a qualquer alteração imposta no âmbito interno e externo. De um mundo todo conectado, esse avanço incorporou tam- bém a concepção de natureza como sistema, organizado com base na interação do sistema terrestre integrado ao Sistema Solar e às forças cósmicas universais. Uma dica para que você possa entender a natureza como uma máquina e um sistema é assistir ao filme O dia depois de amanhã (The day after tomorrow). Ana- lise a previsibilidade dos fenômenos, no que tange à acurácia e aos efeitos associados, à visão global da Terra e sua articulação com os fenômenos de ordem política e econô- mica. Coloque também esse conhecimento como uma parte do avanço técnico-científico que serve para medir (quase) precisamente os impac- tos, os danos, as perdas (econômicas e de vida) e as formas de adaptação. Direção: Roland Emmerich. EUA: 20th Century Fox, 2004. Filme Introdução à Geografia Física 19 Trata-se de um sistema porque apresenta possibilidades de alte- rações das trocas de matéria e energia em função das dinâmicas dos processos internos e externos. Nessa concepção, a natureza não pode ser caracterizada somente pela relação mecânica e fragmentada, mas principalmente pelo conjunto de fluxos (locais e remotos), que resul- tam da atuação de um equilíbrio dinâmico. Na lógica, todos os processos da Terra são naturais, inclusive os an- trópicos 2 , já que eles podem ser explicados pelas forças terrestres e se realizam pelo equilíbrio dinâmico do sistema em sua totalidade. Na Geografia Física, esse conceito auxilia muito os processos de gestão e planejamento ambiental, sobretudo para estudos de potencial econô- mico-ecológicos, de degradação ambiental e de mudanças climáticas. Contudo, a questão que se impõe é que, dado o avanço técnico-científico, a velocidade de transformação dos sistemas naturais e o modelo de desenvolvimento, fica muito difícil separar o que é natu- ral do que é ação antrópica. Dessa impossibilidade, temos trabalhado com o conceito de uma natureza socialmente apropriada, que é pro- duto da relação entre os seres humanos. Uma natureza híbrida, que é complexa e produto de uma construção social, visto que não é pura em nenhum dos sentidos; trata-se de uma natureza que construímos e hoje precisamos lidar com ela. Natureza híbrida: construção social Teoricamente, Latour (1997) chama de hibridização o conjunto de práticas que cria a proliferação de híbridos. Remete à mistura de processos que não apresentam distinção entre natureza e cultura, não humano e humano; que contradiz o engessamento ela- borado pela modernidade; e se dá pela contínua construção de problemas e situações interpretados com base em uma frágil concepção de que apresentam essência e apa- rência fragmentadas. É um paradoxo entender o mundo híbrido por categorias clássi- cas, eminentemente dicotômicas. Entretanto, como qualquer paradoxo, a organização do conhecimento em categorias separadas revela uma crise rica e cara à humanidade e o que está em xeque na discussão é a purificação que sugere a suposta neutralidade da racionalidade e o poder ideológico do conhecimento científico. Isso significa que toda sociedade cria, inventa e institui determi- nada ideia do que é natural, ou seja, sua relação com o mundo orgâ- nico e inorgânico e com os homens entre si; em outras palavras, suas concepções de natureza (PORTO-GONÇALVES, 1989). Atualmente, a Derivado de antropização, ou seja, todas as alterações provocadas ou desenvolvidas por meio de atividades humanas, sociais e produtivas das carac- terísticas originais dos sistemas naturais são enquadradas como mudanças ambientais, já que toda ação antrópica deve garantir ou não sua estabilidade ecológica e, por isso, não é homogênea nem negativa sempre. De outro modo, diversos são os níveis de antropização dos sistemas naturais que podem ser observados considerando quanto do funcionamento original e dinâmico do sistema natural sofre modificações. Como exemplos temos a remoção (desmatamento) ou recomposição (reflorestamento) de domínios vegetacionais, degradação ambiental, poluição atmosférica, restauração ecológi- ca, canalização e retilinização de cursos d´água, construção de cidades e constituição de áreas de produção agrícola. 2 20 Fundamentos de Geografia Física natureza não pode ser mais concebida exclusivamente como algo exterior aos seres humanos ou independente, como entidade divina, organismo vivo, máquina, sistema ou construção social. Cabe a nós, geógrafos, interpretá-la tendo em vista como a sociedade a pratica espacialmente em todas as suas concepções. O Quadro 1 resume um pouco desse processo. Quadro 1 Abordagens geográficas da natureza Abordagem Concepção Origem Meios de observação Formas de explicação Exemplo Mitológica Sobrenatural (sem espaço- -tempo) Primeiras civili- zações Presságios e pelo conhecimento religioso Divindades e mitos Cosmogonias; Trovão (Tupã, Thor e Zeus) Sistematizada Natural (physis) Grécia Antiga Integrada e com- binada a tudo que existe Ciclos, elementos e átomos Terra, fogo, ar, água e éter Racionalizada Natural (mecânica; sistê- mica) Iluminismo; Modernidade Gênese e funcionamento; instrumentaliza- ção e medição Teorias, concei- tos e leis gerais; fragmentada; articulada Sistema terres- tre; grandes esferas; recurso natural Construção social Híbrida (comple- xa e ideológica) Relações sociais e de poder; cultura Apropriada aos modos de produção como (estrutura e ideologia) Transformação do valor de uso em valor de tro- ca; dominação e subordinação Mercadoria; naturalização das relações sociais; racismo; desastres Fonte: Elaborado pelo autor. Como vimos, precisamos considerar que há múltiplas concep- ções de natureza que podem ser interpretadas pela geografia e que todas elas foram elaboradas tendo em vista os interesses dos agentes hegemônicos de cada sociedade, que, ao escolher seus parâmetros culturais e cosmovisões, definiram também elementos de naturalização e normalização das relações sociais de produção. No entanto, como podemos operacionalizar esses conceitos dentro da Geografia Física? Em nossa história, essa espacialidade é identificada com base nos estudos dos sistemas naturais, que podem ser realizados por pelo menos duas abordagens, assumin- do os conceitos de paisagem e de ambiente como categorias de análise. Introdução à Geografia Física 21 1.3 Paisagem e ambiente na análise geográfica da naturezaVídeo O que vem à sua mente quando você pensa em paisagem? Se de início você pensou em um lugar bonito ou remeteu a algo que seja visto, já comece a considerar também que, além da visão, a operacionalização da paisagem envolve todos os sentidos, como tato, olfato, paladar, audição, bem como subjetividades, emo- ções e sensações. Você deve ter atribuído à ideia de paisagem não só um visual esteticamente apreciado, mas também imagi- nou que os cheiros, os sons, os gostos, as sensações e os seus sentimentos formaram uma imagem mental perfeita, inclusive com pessoas e coisas que você aprecia, não é mesmo? A categoria paisagem permite exatamente isso, ou seja, discutir tanto as bases de fundamentação do conhecimento geográfico (partindo dos sentidos e das percepções) quanto a complexidade para abordagem integrada e dialética 3 entre na- tureza e sociedade (daquilo que podemos imaginar como um futuro bom para nós). A paisagem é o resultado imediato da intencionalida- de humana na superfícieterrestre, sendo que ela oferece a combinação de processos pretéritos, responsáveis pela com- partimentação regional da superfície, e dos processos atuais, que correspondem à dinâmica contemporânea dos sistemas naturais. O interesse desse fundamento é produzir uma imagem sintética, em que cultura e natureza formariam um conjunto integrado, articulado e espacialmente diferenciado na superfí- cie do planeta (GOMES, 1996), servindo basicamente para com- preender a síntese lógica entre os fenômenos físicos e sociais, suas combinações e interações, definindo tanto a diferencia- ção, a constituição da diversidade natural quanto a produção do espaço (MENDOZA; JIMÉNEZ; CANTERO, 1988). Santos (2008) conceitua paisagem como o conjunto de for- mas que exprimem heranças, as quais representam as su- Método científico fundamentado na concepção de que a realidade é um processo, crescente e inacabado, movimentado pelas contradições das relações entre aparência (aquilo que é visto, dito, sentido e percebido) e essência (relativo ao que é pen- sado, racionalizado e operado concretamente). 3 22 Fundamentos de Geografia Física cessivas relações entre o homem e a natureza. O autor esclarece que paisagem não é espaço geográfico. A primeira é a materialização de um instante da sociedade (SUERTEGARAY, 2001) e a realidade de homens fixos, uma realidade parada, como em uma fotografia. Por outro lado, o espaço resulta do casamento da sociedade com a paisagem. O espaço contém o movimento. Por isso, paisagem e espaço são um par dialético. Complementam-se e se opõem. Um esforço analítico impõe que os separemos como categorias diferentes, se não queremos correr o risco de não reconhecer o movimento da sociedade. (SANTOS, 2008, p. 74) Em nosso país, a contribuição mais expressiva aos estudos sobre as paisagens naturais foi elaborada por Ab’Saber (1969), que promoveu uma renovação metodológica e instrumental nas pesquisas geomorfo- lógicas desenvolvidas no território nacional, aprofundou o conceito de fisiologia da paisagem, compreendendo-a como o resultado de uma rela- ção entre os processos passados e os atuais, e estudou principalmente a Teoria dos Refúgios Florestais (VITTE, 2007). A Teoria dos Refúgios Florestais é o conjunto de ideias ligadas aos mecanismos de evolução das paisagens neotropicais da América do Sul e sugere interpretações sobre a biodiversidade das paisagens, assim como as extinções ocorridas ao término do Pleistoceno 4 (SILVA; PAS- SOS, 2009). Em resumo, a teoria parte das repercussões associadas às flutua- ções paleoclimáticas da passagem de um período seco e frio (glaciais), para outro mais quente e úmido (interglaciais), diferenciação significa- tiva na distribuição biogeográfica de animais e plantas, devido aos pro- cessos de expansão e retração das áreas de ocorrência e domínio, além de modificações no relevo, nos solos e na disponibilidade hídrica (AB’SABER, 1992). Entretanto, no decorrer da história da geografia, considerou-se a paisagem como o resultado da inter-relação entre a esfera da natureza e da cultura, mediadas pelo trabalho (VITTE, 2007). Nesses termos, o conceito mais bem relacionado hoje é o de ambiente, ligado à ideia de natureza híbrida, já que ele é definido como um conjunto de intera- ções e relações entre seres vivos, coisas e objetos, naturais e artificiais, transformando-os e transformando-se (MENDONÇA, 2008). Todavia, o ambiente não é natureza nem paisagem, trata-se, na ver- dade, de um conceito cunhado após a década de 1960 por intelectuais Época do período Quaternário, da era Cenozoica e do éon Fanerozoico. Essa época precede o Holoceno (momento da origem dos seres humanos), sendo compreendida entre 2,5 milhões a 11,7 mil anos antes do presente (AP), e contempla eventos das glaciações (eras do gelo), marcando o domínio e a extinção de grandes mamíferos, como os mamutes, tigre dentes de sabre, mastodontes etc. 4 Introdução à Geografia Física 23 de movimentos sociais ambientalistas (MONTEIRO, 2003). Em termos gerais, ele serve para problematizar o processo de exploração dos re- cursos naturais e humanos, como alternativas de organizar um modelo de desenvolvimento com base principalmente na conscientização am- biental, na preservação da biodiversidade, na gestão racionalizada dos recursos e na qualidade de vida (PORTO-GONÇALVES, 1989). Por esse caráter, assume-se também o termo socioambiental para dar ênfase à perspectiva de conjunto integrado e articulado com dinâmica natural e processos sociais (MENDONÇA, 2002). O estudo da Geografia Física na perspectiva ambiental ou socioam- biental incorpora assim problemáticas desenvolvidas tendo em vista as lógicas econômicas, os processos educativos e os modelos de desen- volvimento, sendo orientadas principalmente por aparatos legais e normatizações da gestão territorial e da justiça ambiental. Por isso, no desenvolvimento desse estudo, ganham muito sentido as ações de ges- tão, planejamento territorial e educação ambiental. Podemos observar que as duas possibilidades de análise geográfica da natureza apresentam enfoques mais naturalistas dos sistemas natu- rais (por meio da paisagem), ou da natureza em si, e outra que atende à natureza como produto dos processos de apropriação social (quando articulada às questões ambientais), ou seja, da natureza para si. Isso significa afirmar que ambas podem ser combinadas e entendidas em grande parte considerando a abordagem geossistêmica. 1.4 A abordagem de geossistemas Vídeo Antes de começarmos a discutir a importância da abordagem geossistêmica para a Geografia Física, é importante destacarmos que os estudos relacionados aos fluxos de matéria e energia da nature- za, bem como sua conservação e dissipação, transformação e altera- ção, não têm sido bem respondidos pelo viés mecânico, que tende a fragmentar a natureza. Nesse viés, as análises dos fluxos de matéria e energia se torna- ram um dos objetos estudados pela Ecologia, considerando as bases conceituais da vida e os princípios do movimento mecânico, sobretudo das leis da termodinâmica. Assim, por meio do conceito de ecossiste- ma, proposto em 1935 pelo ecologista britânico Arthur George Tansley 24 Fundamentos de Geografia Física (1871-1955), a ecologia se tornou uma disciplina integradora, apesar de sua base estar centrada na ciência biológica (NEVES et al., 2014). O ecossistema se refere à “unidade funcional básica na ecologia, pois inclui tanto os organismos quanto o ambiente abiótico” (ODUM, 1988, p. 9). Nesse âmbito, consideramos ecossistema ou sistema ecoló- gico qualquer unidade (biossistema) que abranja todos os organismos que funcionam em conjunto (a comunidade biótica) em uma dada área e interajam com o ambiente físico de tal forma que os fluxos de matéria e energia produzam estruturas bióticas definidas em um ciclo integra- do, resultado da convergência entre a biocenose (parte viva e orgânica do sistema) e o biótopo – parte mineral – (NEVES et al., 2014). Figura 3 Representação esquemática de um ecossistema Fonte: Elaborada pelo autor. Fontes de energia Nutrientes Produtores Água Ar Terra Energia solar Herbívoros Decompositores Carnívoros Detritos Fluxo de energia e matéria Os estudos ecossistêmicos privilegiam uma análise restrita à biolo- gia, buscando conhecer e descrever padrões, dinâmica e evolução dos ecossistemas, servindo de modelo para avaliar comparativamente sis- temas degradados ou alterados. Eles permitem conhecer os processos que compõem a biodiversidade e compatibilizar os processos produti- vos com a conservação da massa, uma vez que se conheça a estrutura e a fisiologia da paisagem (NEVES et al., 2014). A questão é que os estudos geográficos não têm como base exclu- sivamente a dinâmica biológica dos sistemas ecológicos. Desse pro- Introdução à Geografia Física 25 blema, o geógrafo soviético Victor Sotchava (1905–1978), no início da década de 1960, cunhou o termo geossistema, com a preocupaçãode estabelecer uma metodologia de estudo sistêmico da natureza tendo em vista a geografia. Os geossistemas, para Sotchava (1978), incluem todos os elementos da paisagem como um modelo global, territorial e dinâmico, aplicável a qualquer paisagem concreta. Trata-se de identificar o potencial ecológi- co de determinado espaço no qual há uma exploração biológica, poden- do influir fatores sociais e econômicos na estrutura e expressão espacial. Para Sotchava (1978), o geossistema é manifestado em qualquer dimensão espacial na superfície terrestre, desde as fácies físico-geo- gráficas, que representam a menor unidade em uma divisão natural do terreno, até o que representa o planeta como um todo. Para fazer sua análise, ele propôs três conceitos. A associação dos conceitos pode ser assumida com base na articulação de três escalas de geossistemas, cada uma apresentando uma dinâmica particular, mas que interage no sentido das circulações interdependentes e subordinadas de matéria e energia. As flechas indicadas na figura representam diferentes fluxos que podem ocorrer em um geossistema, Figura 4 Interações e escalas do geossistema Fonte: Elaborada pelo autor. Regional Regional Re gi on al Regional Topológico Topológico To po ló gi co Envelope físico-geográfico Envelope físico-geográfico Fluxo de energia e m atéria Fluxo de energia e matéria fácies: os caracteres de forma e configuração que distinguem um grupo; aspecto geral. Glossário 26 Fundamentos de Geografia Física Nesse sentido, o nível planetário que representa o envelope físico- -geográfico é caracterizado pelo componente zonal que se manifesta com a zonalidade climática, definindo os fatores bioclimáticos terrestres conforme a latitude. O nível regional é caracterizado pelos níveis inter- mediários, nos quais os componentes zonais começam a interagir com os subzonais – altitude, relevo e grandes domínios de paisagem, como biorregiões e ecorregiões. O nível topológico (local) é representado pela escala de maior detalhe, em que os componentes se manifestam no princípio de unidades, com interferências de processos geomorfológi- cos, pedológicos, microclimáticos 5 etc. Para além da hierarquia da estrutura, o geógrafo George Bertrand (1972) procurou estabelecer a funcionalidade do geossistema conside- rando a combinação entre o Potencial Ecológico (clima, hidrologia, geo- morfologia), a Exploração Biológica (vegetação, solo, fauna) e a Ação Antrópica – Figura 5 – (NEVES et al., 2014). Para ele, o geossistema é um todo dialético, com uma multiplicidade de relações e de contradições que se inter-relacionam, atendendo à importância da dinâmica com- plexa entre o social com os processos naturais (BERTRAND, 1972). Nesse sentido, seres humanos, relevo, solo, clima, recursos hídricos, fauna e flora, ou qualquer outro componente, poderão ser conside- rados na análise geossistêmica. Como o modelo não oferece limites máximos de ação de cada elemento, uma vez que nenhum deles se de- senvolve de maneira isolada, é importante considerar em seu interior sua função em termos de processos intrínsecos e extrínsecos. Figura 5 Modelo funcional dos geossistemas Fonte: Adaptada de Bertrand, 1972. Relevo – Clima – Recursos hídricos Exploração biológica Solo – Fauna – Flora Potencial ecológico Geossistema Ação antrópica Produção – Apropriação – Conflitos Relativo a relevo (geomorfo- lógicos), solos (pedológicos) e climas muito específicos (microclima). 5 Introdução à Geografia Física 27 Por isso, a grande vantagem da abordagem dos geossistemas é per- mitir investigar diferentes aspectos da natureza (estrutura, dinâmica e evolução) sob uma base unificada em termos de perspectiva e tra- tamento propositivo, mas também de conflitualidade e a convergên- cia de múltiplos interesses (BERTRAND, 1972). Nesse sentido, a análise pode ser realizada com base nos processos de gestão e planejamento ambiental e territorial. Grande parte desse trabalho atende por levantamentos sistemáti- cos utilizando muita linguagem cartográfica com o uso de geotecnolo- gias, focando pesquisas ecológicas de longa duração (com ênfase no monitoramento e na proteção de unidades de conservação, por exem- plo), estudos de reconstrução paleoambiental na avaliação dos impac- tos das atividades humanas (industriais, infraestruturais e produtivas), nas formas de recuperação de áreas degradadas, bem como na pre- venção e nos diagnósticos de riscos e desastres. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste capítulo, valorizamos a construção do conhecimento, da teoria e do método na Geografia Física com base na história de alguns conceitos, categorias e estudiosos do pensamento geográfico. Destaca- mos também sua importância e correspondência atual, sobretudo, para estabelecer o caráter crítico e propositivo do profissional de geografia. Enfatizamos que a Geografia Física é um saber organizado dentro da geografia, e como tal está preocupada com as práticas associadas às re- lações entre natureza e sociedade na produção do espaço. O reconheci- mento das opções teóricas e dos métodos na história é fundamental para estabelecer consistência e coerência prática no mundo atual. Por ser uma ciência social, os temas de trabalho na Geografia Física atendem à integração da dinâmica natural com os processos sociais como construções sociais; por isso, são passíveis de transformações com base em projetos de sociedade e analisados segundo a paisagem e o ambiente. Nesse aspecto, as transformações das paisagens ambientais devem ser orientadas para o aumento da qualidade ambiental e de vida como estratégias para fomentar a participação social no espaço público e no mercado de trabalho. A Geografia Física tem muito a contribuir nesse sen- 28 Fundamentos de Geografia Física tido, tanto na compreensão das diferentes concepções de natureza (que envolvem muitos conflitos e injustiças) quanto nas suas inter-relações, nos horizontes do século XXI. Por isso, lembre-se de que na Geografia Física, paisagem não é am- biente; ambiente não é natural; e geossistema não é natureza. Natureza é uma construção social, um conceito ideológico e cultural, que só pode ser explicado na relação com a sociedade ou por meio de suas transforma- ções na história do conhecimento e da humanidade. Ambiente é um referencial conceitual, que requer mudanças nas re- lações natureza-sociedade no mundo atual, sobretudo nas sociedades capitalistas e ocidentais. O foco é sobremodo valorizado no debate da qualidade de vida e dos modelos de desenvolvimento. Portanto, o termo socioambiental dá ênfase à necessidade de diálogo e integração dos siste- mas naturais, humanos e produtivos. Paisagem é a concepção de natureza natural na geografia, sendo ex- plicada atualmente com base na abordagem dos geossistemas, visto que envolve troca de matéria e energia, e pode ser desenvolvida com o uso de geotecnologias, mapeamento etc. A presença do ser humano (fator antró- pico e ser social), considerando os geossistemas, oferece a possibilidade de transformação social via gestão e planejamento territorial e ambiental. ATIVIDADES Vamos articular conceitos e aplicar nossos conhecimentos? Para as atividades a seguir, você deverá tirar duas fotos de lugares diferentes. Pode ser qualquer lugar, como sítio, cidade, bairro, rua, casa, mas preferencialmente que sejam duas. Caso não tenha máquina fotográfica ou celular com câmera, pegue duas folhas de papel e tente desenhar esses lugares, ou busque em sites, revistas, livros etc. 1. Descreva a paisagem. Para isso, você pode escrever com suas palavras o que está vendo, ouvindo e sentindo. Tente identificar elementos humanos e não humanos. Selecione da cena aquilo que você julgue interessante: pessoas, árvores, estradas, ruas, plantações, automóveis, roupas, equipamentos eletrônicos, rios, pássaros, cheiros, sons e sensações. Fique à vontade para descrever de acordo com seu estilo, e não se limite aos elementos citados. Explorea cena e use sua criatividade. 2. Agora, observe a forma como essa paisagem está organizada. Se atente aos traçados, às cores, aos materiais dos edifícios, às formas das ruas, às distâncias entre os objetos e sua dispersão, aos pontos de conexão e às áreas abertas. Introdução à Geografia Física 29 3. Em seguida, analise a função, a integração e a movimentação dessa cena, tendo em vista as relações entre elementos que você destacou, a história do lugar e quais concepções de natureza podem ser explicitadas com base nela. Destaque elementos explícitos e implícitos dos objetos e dos aspectos culturais e sociais. 4. Perceba em todos os elementos que você destacou os detalhes, os níveis de alteração da paisagem e, ao mesmo tempo, como você e as pessoas se relacionam, vivem ou praticam esse lugar. Para isso, imagine uma linha temporal que mostre uma parte da sua história e da história dessa paisagem. 5. Agora, imagine esse mesmo lugar no futuro. Imagine você nesse futuro, ou pelo menos projete em sua mente uma possibilidade de rever essa cena de outro modo ou em outro contexto. Nesse momento, você já deve entender como a transformação da paisagem resulta em espaço geográfico, e somos nós quem dotamos de sentido e de projeto o nosso lugar no mundo. 6. Enfim, a sua paisagem tem uma história? Conte-a para nós. REFERÊNCIAS AB’SABER, A. N. Um Conceito de Geomorfologia a serviço das pesquisas sobre o Quaternário. Geomorfologia, n. 18, 1969. AB’SABER, A. N. A teoria dos refúgios: origem e significado. Revista do Instituto Florestal, Edição especial, São Paulo, 1992. BERTRAND, G. 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Sendo assim, enfatizamos que a sua atenção é necessária para que, até o final do capítulo, você possa dominar os princípios físico-natu- rais que regem o sistema terrestre e possa perceber que ele está muito mais para superfície, como foi propalado pela Geografia Física clássica. O que estamos querendo dizer é que aqui você compreen- derá o contexto do planeta Terra no Universo, sua gênese, seus movimentos, bem como sua formação e evolução, por meio da história natural, e entenderá quais dinâmicas da natureza e quais forças terrestres são responsáveis pelo estágio atual do planeta, que oferece todas as condições de manutenção da vida enquanto um grande sistema e projeto de nossa sociedade. Mas vamos por partes, não é mesmo? Desejamos uma ótima leitura e um bom rendimento de estu- dos; para isso, faça suas anotações. 2.1 A Terra no espaço Vídeo Como a Terra está no Universo? Essa, de fato, é umas das perguntas mais intrigantes da humanidade e, sem dúvidas, ela é essencial tam- bém para estabelecer as explicações quanto à origem do nosso mun- do. Vamos iniciar esse debate pela noção de que, ao longo da história, os seres humanos refletiram sobre esse aspecto e por isso construíram muitas teorias para a origem do mundo, de sua natureza, do Universo como um todo e da cultura. Grande parte das histórias fantásticas criadas pelas sociedades fo- ram passadas de geração em geração e definiram o que hoje chama- mos de cosmogonia, que é o conjunto de saberes destinados a explicar 32 Fundamentos de Geografia Física o surgimento do Universo. Em geral,atribui-se a divindades a explica- ção de um Universo criado, relativo à concepção de natureza sobrena- tural, que é absoluta, eterna, porque não pode ser parametrizada por dimensões temporais ou espaciais. É importante associar esse primeiro tipo de conhecimento àquele presente na Geografia Física, uma vez que nele a criação do Universo oferecia diretamente a introdução de conceitos como a magia e a pos- sibilidade de influência do ser humano na dinâmica natural (o papel dos sacerdotes tem importância particular para isso). Além disso, as mitologias oferecem o caráter da diversidade cultural em termos de normas, conduta, ética, moral, convívio, costumes, folclores e modo de vida. Na cosmogonia atribuída ao povo tupi-guarani, a noção de criação da natureza é vol- tada para os deuses e guardiões, sendo Guaraci o deus do sol e Jaci a deusa da lua. Estes são os dois deuses com maior destaque na teoria da criação do Universo. Existem outros deuses relacionados à musica, à guerra, à chuva etc. A grande maioria dessas crenças foram obtidas pela observação e por meio de uma astronomia própria. Por meio dela, eram definidos o tempo de colheita, a duração das marés, o período de caça, pesca, agricultura, o tempo das chuvas, as fases da lua e as estações do ano. Com essas observações, histórias, lendas com ensinamentos morais e mitos foram criados. Com isso surgem também as lendas e os mitos relacionados à criação do universo, do homem e da mulher e da noite, por exemplo. Não é à toa que esse conhecimento pode ser relacionado à diversidade cultural e religiosa dos povos. De outro modo, a sistematização desse saber culminou no conhe- cimento organizado na Antiguidade greco-romana, principalmente na ideia de Cosmologia, que foi ancorada nas noções egípcia e mesopotâ- mica de astrologia, articulada com outros saberes como filosofia, ma- temática e artes (MAKLER; VILLELA NETO, 2009). O sentido é que os povos da Antiguidade apresentam mitologias e cosmogonias próprias, pautando-se na organização e na observação dos astros e dos ritmos naturais para oferecer uma noção aprimorada do Universo. Nesse pro- cesso, cada sociedade constrói suas próprias concepções de natureza e de mundo. Esses conhecimentos, então, baseiam-se nas constatações possibi- litadas por instrumentos de observação do céu (como o astrolábio e o telescópio) e de medição da superfície da Terra. Eles foram, inicial- mente, suficientes para identificar grande parte dos planetas, das es- Para aprofundar seus conhecimentos, leia o ar- tigo “Cosmologia: a busca pela origem, evolução e estrutura do universo”, publicado na revista Um olhar para o futuro: desafios da física para o século. Os autores Makler e Villela Neto, com uma linguagem simples e ima- gens interessantes, trazem mais elementos sobre os conhecimentos cosmoló- gicos. Durante a leitura, fique atento à história, ao objeto e ao método da Cosmologia. Disponível em: http://www. cbpf.br/~desafios/media/livro/ Cosmologia.pdf. Acesso em: 26 jan. 2021. Artigo Cosmologia: é o subcampo científico da Astronomia dentro da Física. É orientada pelos estudos sobre origem, estrutura, formação e evolução do Universo. Glossário O planeta Terra 33 trelas e dos astros – que são conhecidos até hoje, com outros nomes e sob outros saberes. Além disso, é a partir desse momento que surge a construção de calendários associados à agricultura e às práticas de di- ferentes povos. Por exemplo, calendário zodiacal, chinês, asteca, lunar ou juliano. O astrolábio foi um dos primeiros instrumentos navais cria- dos pelos árabes do mundo antigo. Ele era essencialmente usado para fazer medições, como precisar o número de ho- ras, definir as estações do ano e estimar a altura bem como a profundidade da superfície e dos astros se baseando no horizonte. O telescópio, conhecido inicialmente como luneta, amplia a capacidade de visão humana. Primeiramente, foi usado para fins militares. Seu uso científico foi designado por Galileu Galilei no século XVII. Andr ew Dun n/W iki me di a Co m m on s Jacopo Kousha n; M aso ud Sa far niy a/ W iki m ed ia C om m on s Os povos árabes também auxiliaram nessa organização. A busca por explicações lógicas ajudou a ordenar um conjunto de nomes apropria- dos para grande parte das estrelas e constelações. Esse conhecimento ajudou a humanidade na criação das principais formas de estabeleci- mento de um processo global para navegação, sobretudo por meio da orientação e da distribuição das estrelas (MAKLER; VILLELA NETO, 2009). Outras sociedades, como polinésias (distribuídas no Oceano Pacífi- co) e ameríndias (situadas ao longo das Américas) também se guiavam pelas constelações; elas não necessariamente utilizavam-nas para fins náuticos, mas como um meio de conhecer áreas continentais. Povos como os Guaranis, os Kaingangs e os Tembés – de raízes Tupi – são exemplos, aqui no Brasil, de comunidades que utilizavam as constela- ções como parâmetro de orientação. Desse conhecimento foi desenvolvida, durante a Idade Média (de 800 a 1450 d.C.), a ideia de Universo Geocêntrico. Associado ao modelo de Ptolomeu, trata-se de um pensamento eclesiástico adotado pela religião cristã para admitir a Terra como centro do Universo (WUENSCHE, 2017). Mais tarde, no século XV, a sistematização da Cosmologia foi inicia- da quando o filósofo e astrônomo germânico Nicolau de Cusa (1401– A noção de ano só foi possível devido ao advento da agricul- tura. Inicialmente, os povos observaram o ciclo das estações e, então, organizaram datas comemorativas e de suas ativi- dades durante o período anual. No Brasil, temos o calendário Kaingang, que, na representação de suas atividades anuais, define uma organização sazonal circular. Ela tem como base os momentos de solstícios. Tem também a indicação da estação chuvosa Ara Pyaú, quando são concentradas as celebrações da colheita, e da estação seca Ara Ymã, período valorizado para plantio e cuidado da terra. Você pode fazer as mesmas relações do calendário Kaingang com o calendário civil, que define o período mais quente do ano para usufruto de férias. Essa organização fomenta, inclusive, o turismo de veraneio nos litorais de todo mundo. Curiosidade 34 Fundamentos de Geografia Física 1464) sugeriu que a Terra não era o centro do Universo e, na verdade, ela girava em torno de seu eixo; as estrelas seriam sóis situados a dis- tâncias diferentes em um espaço infinito (WUENSCHE, 2017). Foi somente com o Renascimento, entre os séculos XV e XVII – um período de grandes transformações culturais, como as grandes nave- gações, o colonialismo e a construção da ciência ocidental – que a Cos- mologia tomou, de fato, o centro do debate (WUENSCHE, 2017). Esse momento foi marcado pela proposta de sistema heliocêntrico para o Universo, de Nicolau Copérnico (1473–1543), e pela visão de Uni- verso de Giordano Bruno (1548–1600), seguido, então, pela utilização do telescópio por Galileu Galilei (1564–1642), a descoberta das leis que levam o nome do astrônomo Johannes Kepler (1571–1630) e o conceito de Sistema Solar. Esses três marcos históricos levaram Isaac Newton (1643–1727), no século XVIII, a elaborar uma separação racionalista da astrologia, por meio dos conhecimentos matemáticos e físicos, e atribuir o caráter científico ao campo chamado Astronomia. Newton ofereceu a noção de um Universo infinito, estático e que pode ser interpretado em dimensões espaciais (comprimento, altura e largura) e temporais (segundos, minutos, horas, dias etc.) separada- mente. A lógica do modelo é cartesiana e reduz-se na Lei da Gravidade; esta compreendida como a principal força que estabelece a massa e a velocidade de todos os corpos e de toda a matéria, determinando a posição dos astros e do planeta Terra no Sistema Solar. Um Sistema Solar sugere o conjunto de corpos celestes com uma estrela central (a maior componente do sistema) e todos os outros corpos sob seu domí-nio gravitacional. No nosso caso, a estrela central é o Sol, que corresponde a mais de 99,85% da massa total do sistema. Ele gera sua energia principalmente por meio da fusão de hidrogê- nio em hélio e foi o principal responsável pela primeira gran- de diferenciação geoquímica dos planetas do Sistema Solar. Contribuiu para a vaporização dos materiais cósmicos e para a formação de planetas rocho- sos, situados mais no interior do sistema (como Mercúrio, Vênus, Terra e Marte), e dos planetas gasosos, compostos de voláteis, como hidrogênio, hélio, amonía- co e metano, que condensaram à baixa temperatura (como Júpiter, Saturno, Urano e Netuno). Saiba mais Figura 1 O Sistema Solar e os movimentos astronômicos D1 m in /S hu tte rs to ck SISTEMA SOLAR Netuno Saturno Marte Vênus Sol Mercúrio Terra Júpiter Urano Cinturão de Asteroides O planeta Terra 35 Nesse aspecto, o Sistema Solar é um todo que se movimenta fun- damentalmente pela ação gravitacional. Isso promove distinções na quantidade de energia (luz solar) que os planetas recebem e resulta nos processos de rotação, no qual os planetas giram em torno do seu próprio eixo gerando a variação dos dias e das noites, e o de transla- ção, quando o giro se dá em torno do Sol, possibilitando as estações do ano – a sazonalidade. Esse processo pode ser observado em todos os planetas do sistema, mas exemplificamos com a Terra, conforme a Figura 2. Figura 2 Movimentos astronômicos do planeta Terra no Sistema Solar (Hemisfério Sul) De si gn ua /S hu tte rs to ck Equinócio de outono (23 de março) Solstício de inverno (21 de junho) Solstício de verão (21 de dezembro) Equinócio de primavera (23 de setembro) Outono Inverno Verão Dia Dia Primavera Noite Noite N S Você já deve ter percebido que todo o conhecimento que temos do Universo é bastante antigo, mas a noção de Sistema Solar, ao contrá- rio, é bem recente. Apesar dos avanços, as leis da física newtoniana não eram suficientes para explicar as novas descobertas que a ciência incorporava de astros, galáxias, além da importância geopolítica que a precedia. A corrida espacial e a viagem à Lua, por exemplo, tornavam- -se projetos em construção e foram fundamentais para estabelecer ou- tros marcos sobre a origem do Universo. O interessante de tudo isso é que, enquanto ciência, a Cosmolo- gia foi institucionalizada somente a partir do século XX, principalmente por causa dos avanços obtidos com a Teoria da Relatividade. Por meio dessa teoria, conseguimos distinguir a Radiação de Fundo e estimar a condição atual da Terra em sua trajetória espaço-temporal, como po- demos observar na Figura 3. https://www.shutterstock.com/pt/g/designua 36 Fundamentos de Geografia Física Figura 3 Linha temporal da origem do Universo e do início do espaço-tempo De si gn ua /S hu tte rs to ck Big Bang 0 380 mil anos 300 milhões de anos Era das trevas Primeiro aparecimento de estrelas 1 bilhão de anos Hoje Tempo Surgimento das primeiras galáxias Formação do Sistema Solar (9 bilhões de anos) Galáxias modernas Pelas teorias científicas, portanto, podemos passar da ideia de um Universo Criado para a noção de um Universo Originado. Em outras palavras, podemos atribuir uma idade à Terra, indicando um processo lógico sobre sua gênese e formação por meio dos fenômenos que observamos diariamente. É uma ideia que atribui à natureza sua naturalidade, ou seja, uma condição dotada de espa- ço e de tempo e, por isso, não podemos esquecer que só consegui- mos explicar esses mecanismos com os avanços técnico-científicos e o conhecimento. Mas, então, o planeta Terra tem, de fato, uma idade? Nós tería- mos assim uma data de nascimento em comum? Digamos que sim. Para responder a essa pergunta, vamos discutir um pouco mais sobre história natural, a história ecológica da Terra. https://www.shutterstock.com/pt/g/designua O planeta Terra 37 2.2 História ecológica da Terra Vídeo Como dito anteriormente, se formos atribuir ao planeta Terra um início, uma gênese, um princípio, consequente- mente estaremos indicando a idade do Universo e da natu- reza natural. É importante lembrar que ao nos referimos à natureza natural estamos considerando exclusivamente os processos possíveis de explicação pelas leis do movimen- to, no escopo da física (mecânica) e da biologia (evolução). Nesse caso, as respostas para essas indagações são adquiridas pela observação dos constituintes do próprio planeta, com o uso de instrumentos tecnológicos pró- prios, que possibilitam oferecer uma cronologia relativa (por meio de associação com seus diferentes tipos: ro- chas, fósseis, seres vivos, por exemplo) como uma idade isotópica (também chamada absoluta), com base na dinâ- mica da Física do Decaimento 1 , por meio da radiação ele- tromagnética. Vamos inciar esse debate assumindo esta última possibilidade, relembrando a relevância de medir o tempo-espaço em anos-luz. Leia o artigo “O Tempo Geológico”, de Manzig, publicado na revista Geomá- tica. Nele, você deve encontrar mais detalhes sobre a escala geológica e principalmente sobre os fundamentos das teorias e dos métodos da ciência geológica. Acesso em: 26 jan. 2021. http://www.geoturismobrasil.com/REVISTA%20ARTIGOS/o%20tempo%20geol%C3%B3gico%20-%20Manzig.pdf Artigo Trata-se da Radiação de Fundo, a qual comprova que o Universo tem limites, mas não é estático e que, ao mesmo tempo, expande-se, ao passo que sua temperatura tam- bém diminui. Por esse aspecto, e com a tecnologia de que dispomos, estima-se que os limites do Universo estejam há 13,9 bilhões de anos-luz da Terra. A Via Láctea, por exem- plo, tem aproximadamente 8 bilhões de anos do limite má- ximo do Universo. Nosso Sistema Solar, e junto com ele a Terra, tem cerca de 4,6 bilhões anos. Também chamada Física do Decaimento Radioativo, é o processo de liberação de radiação eletromagnética pelos elementos químicos em estado de desintegração. 1 Para saber sobre em qual momento do ciclo estelar está o Sol, assista ao vídeo Como funciona o Universo - Estrelas, produzido pelo Discovery Channel e publicado pelo canal Amolyoko. Disponível em: http://youtu.be/ agrJHUe9aHA. Acesso em: 26 jan. 2021. Vídeo http://www.geoturismobrasil.com/REVISTA%20ARTIGOS/o%20tempo%20geol%C3%B3gico%20-%20Manzig.pdf 38 Fundamentos de Geografia Física Mas o que há de interessante em tudo isso? O importante é compreendermos que, no nascimento de uma estrela, o gás hélio é produzido pela queima de hidrogênio e pela combustão do hidrogênio e do lítio. Dessa forma, outros elementos são originados, inclusive quando elas morrem. Essa descoberta deu suporte central à interpretação de que a origem dos gases elementares também ocorreu nos primeiros momentos do Universo, em um fenômeno muito semelhante ao que acontece com uma estrela. Figura 4 Ciclo de vida de uma estrela sc ie nc ep ic s/ Sh ut te rs to ck Nebulosa molecular gigante Estrela pequena Gigante vermelha Nebulosa planetária Anã branca Estrela gigante Supergigante vermelha Supernova Estrela de nêutrons Buraco negro Imagem fora de escala, meramente ilustrativa. Para construir essa ideia, é bom lembrar da importância de se observar as estrelas, o que os nossos antepassa- dos já faziam, mas com outros saberes. Nesse sentido, desde os tempos antigos as estrelas são observadas, e com o avanço técnico-científico podemos também perceber seu ciclo de vida. Assim, as observações indicam que as estrelas nascem de nebulosas, que são compostas basicamente de hidrogênio e hélio, os elementos mais comuns no Universo. Quanto maior a concentração desses gases, maior será a força gravitacional para iniciar sua contração e seu aquecimento. A temperatura do ponto da nebulosa deve ativar a fusão nuclear, que inicialmente usa o hidrogênio como fonte de combustível. Esse processo libera muita energia e, desse modo, uma estrela nasce. Quanto mais ela concentrar combustível(por meio da força gravitacional de seu núcleo), mais ela crescerá, morrendo, assim, catastroficamente e gerando uma Supernova (e dela outras estrelas ou buracos negros). Se morrer lentamente, irá se transformar em uma anã branca. Observe a Figura 4. https://www.shutterstock.com/pt/g/sciencepics O planeta Terra 39 A escala de tempo geológico 2 (Figura 5) é um exemplo do po- der que temos em estabelecer marcos históricos em uma ordem ou sequência temporal. Por meio dela, podemos definir eventos que se passaram bem antes do surgimento da humanidade e assumimos a necessidade de um retorno profundo na ordem de milhões a bilhões de anos. Assim, a escala geológica apresenta nossas origens mais re- motas, contemplando desde a formação do Universo e do planeta Ter- ra, passando pela evolução da vida e as mutações genéticas associadas a ela, até os processos mais recentes, como o que você está estudando agora. A escala é dividida, por ordem de menor frequência, entre éons (unidade de tempo mais abrangente ou maior), era, período, época e idade (unidade de tempo mais frequente ou menor). Cada divisão é articulada com algum evento importante e que transforma estrutural- mente toda condição natural da Terra no momento. Figura 5 Escala geológica e eventos de formação da Terra 750-635 Ma: Duas Terras bola de neve ca. 530 Ma: Explosão cambriana ca. 380 Ma: Primeiros vertebrados terrestres 230-65 Ma: Dinossauros 2 Ma: Primeiros humanos 4527 Ma: Formação da Lua4,6 Ga 1 Ga 2 Ga 3 Ga Hadeano Arqueano Proterozoico 2,5 Ga 6,5 Ma 251 Ma 54 2 M a ca. 4000 Ma: Fim do intenso bombardeio tardio; primeira forma de vida ca. 3500 Ma: Início da fotossíntese ca. 2300 Ma: Atmosfera se torna rica em oxigênio; Primeira Terra bola de neve 3,8 Ga 4550 Ma: Formação da Terra Humanos Mamíferos Plantas terrestres Animais Vida multicelular Eukaryotas Prokaryotas W ou dl op er /W ik im ed ia C om m on s Se podemos utilizar segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, séculos e milênios para medir o tempo cronológico, e da mesma forma os anos-luz para mensurar o tempo cósmico, a escala do tempo geológico, por sua vez, é a medida relativa à sistematização das rochas e suas idades. 2 40 Fundamentos de Geografia Física Em linhas gerais, a escala de tempo geológico indica que a Terra so- freu transformações de um corpo homogêneo para outro muito mais diversificado e diferenciado. Essas importantes alterações ocorreram pela ação de impactos de meteoros, da compressão gravitacional e da desintegração radioativa. No momento das transformações, a tempe- ratura do planeta era alta; como consequência, alguns materiais atin- giram o ponto de fusão, distribuindo-se em profundidade, de acordo com sua densidade e seu peso (ANDREWS et al., 2009). A partir de então, pela composição química e pela estrutura física, ini- cialmente atribuída a sua morfologia, o primeiro éon da escala geológica é o Hadeano (relativo a Hades, deus grego do mundo inferior) também denominado Hadaico. Nesse período, os elementos mais densos, como o ferro e o níquel, migraram para o centro do planeta, constituindo o núcleo terrestre; os menos densos passaram a constituir o manto pri- mitivo, bem como a crosta terrestre, resultantes do resfriamento e da solidificação de um oceano magmático 3 primitivo (TEIXEIRA et al., 2001). A crosta terrestre é relativamente espessa e bastante instável aos movimentos dinâmicos do manto, por isso seus movimentos devem ter proporcionado várias transformações a ponto de os crátons (rochas mais antigas encontradas hoje) serem relativos a essa condição do pla- neta. Em geral, as formações cratônicas possuem cerca de 4 bilhões de anos e datam do éon Arqueano, também chamado Arqueozoico ou Arcaico (FERREIRA; ALVES; SIMÕES, 2008). Outro elemento que ajudou nesse processo foi a água e sua con- sequente formação de vapor e dos primeiros oceanos. Nesse caso, há duas teorias: ou ela foi trazida por outros corpos celestes (como meteoros e/ou cometas ou até mesmo com o choque de outros pla- netas) ou foi originada por meteorização (processo de alteração físi- ca de rochas que favoreceu a liberação ou a aquisição de oxigênio e que, em seguida, combinou-se com o hidrogênio) (FERREIRA; ALVES; SIMÕES, 2008). A formação dos primeiros oceanos indica, também, um ambiente de temperaturas elevadas e com precipitações, observadas em regis- tros de rochas carbonatadas e evaporíticas 4 , o que remete à forma- ção de uma atmosfera primitiva que já compunha gases, como dióxido de carbono, monóxido de carbono, hélio, metano, amônia, sulfureto de hidrogênio, hidrogênio, azoto, além de água. Pela característica Magma é o material composto de rocha fundida encontrado no interior da Terra. Imagine todo esse material exposto e sem a presença de uma superfície sólida sobre ele. Imaginou? Exatamente essa imagem, de uma bolsa de fogo, não se dife- rencia em nada de um oceano composto por magma. 3 São rochas formadas por precipi- tação química, ou seja, quando reações de elementos químicos se formam, um composto sólido é precipitado. O sal é exemplo. Esse material dá origem ao processo de formação de rochas, Nas carbonáticas, apresentam grande teor de sedimentos carbonáticos (possuem carbono em sua composição, como os calcários); nas evaporíticas, ocor- rem em camadas organizadas, originadas pela cristalização da disposição em meio aquático e pelo processo de evaporação. O sal-gema é um exemplo. 4 O planeta Terra 41 inicial, essa primeira atmosfera era densa, quente, redutora e ácida, basicamente originada dos gases remanescentes da nebulosa original somado às transformações provocadas por meteoritos, cometas e vul- canismos (FERREIRA; ALVES; SIMÕES, 2008). Ainda no éon arqueano, a primeira atmosfera foi submetida ao aumento do teor de oxigênio (O2) devido ao processo de dissociação fotoquímica da molécula de água, que ocorre quando há transferên- cia dos átomos de hidrogênio para os transportadores de hidrogênio – estes atuam na respiração celular (processo que garante a liberação do oxigênio da água (H2O) para a atmosfera). Mais tarde, isso ocorre por meio da fotossíntese, processo em que os organismos vivos, ao consumirem CO2, extraem o carbono e liberam o oxigênio (FRIMMEL, 2005). Isso significa dizer que pelo menos em uma parte da Terra, apesar de aparentemente inóspita, já existia alguma forma de vida pretéri- ta tolerante a um planeta inicialmente hostil para as formas de vida atuais. Nesse caso, é consenso que foi esse o tipo de ambiente em que se originou a vida, fundamentalmente em meio aquático, como lagos e lagoas. Atualmente, encontramos condições análogas a essa em ilhas vulcânicas, sobretudo em locais de temperatura baixa, que reúnem condições muito diversificadas, como a presença de tempes- tades, relâmpagos e neve (FRIMMEL, 2005). Desse processo, temos de considerar, também, que uma parte do oxigênio liberado por fotossíntese foi dissociada para formar a Cama- da de Ozônio (O3) – esta, atualmente, desempenha um papel muito importante na proteção da vida contra as radiações letais, sobretudo em meios terrestres; a outra parte foi elevada a níveis ideais para a geração de outras formas de vida (FRIMMEL, 2005). Diante disso, é necessário considerar que qualquer ser vivo ori- ginado nesse período não tem nenhuma semelhança com os atuais. Primeiramente, porque o ambiente terrestre apresentava uma pe- quena porcentagem de oxigênio (menos 1% da composição do ar); em segundo lugar, porque foram esses organismos que ofereceram um enriquecimento gigantesco do ar atmosférico, transformando ir- reversivelmente essa Terra inicial. Depois dessa pequena história, você deve ter percebido que o pas- sado da Terra é recheado de transformações, bem como interações internas e externas, e que os estudos da física basicamente indicam o Uma dica interessante para enriquecer seu estu- do é assistir ao documen-tário Earth The Making of a Planet (Construindo o planeta Terra). Analise os eventos, os fatores de formação e a alteração da Terra, bem como as condições para origem da vida. Coloque em prática, também, a habilidade de relacionar todos os elementos (terra, água, ar, fogo e vida) com um sistema. Direção: Yavar Abbas. EUA: Pioneer Production, 2011. Disponível em: https://youtu. be/5dx7vRxMRQI. Acesso em: 26 jan. 2021. Documentário https://youtu.be/5dx7vRxMRQI https://youtu.be/5dx7vRxMRQI 42 Fundamentos de Geografia Física condicionamento de grande parte das leis do movimento e dos pro- cessos biogeoquímicos. Além disso, você viu que, se não fosse pela origem da vida, nosso planeta seria outro, equivalente ao Arqueano. Portanto, graças à presença da vida, de organismos muitos simples, é que temos a Terra como conhecemos hoje. Podemos considerar ainda que o nosso planeta alcançou o pata- mar ideal para manter a vida somente quando passou a transformar internamente toda sua matéria, controlando a energia que entra e sai e promovendo uma dinâmica autorregulada. Vamos avançar, para en- tender como todos esses processos foram paulatinamente construin- do um ambiente articulado e muito integrado, que é melhor explicado pelo conceito de sistema. 2.3 O sistema terrestre Vídeo O que faz com que a Terra seja um sistema? Para começar a respon- der a essa pergunta, devemos considerar que, primeiramente, a ideia de sistema absorve as grandes esferas postuladas por Aristóteles e atualmente incorpora a sofisticação teórica dos princípios sistêmicos – troca de matéria e energia – e também os avanços técnico-científicos de representação do planeta Terra. Iniciamos com a constatação de que a Terra pertence ao grupo dos planetas rochosos, sendo relativamente pequena quando comparada aos planetas gasosos. Ela possui um raio médio de 6.371 km, o que a permite, em conjunto com outras características, reunir as condições necessárias para existência de sua massa e matéria por meio de sua relação com o Sol (principal fonte de energia externa) e de seu núcleo (fonte de energia interna). O tamanho, a forma, a composição e a estrutura da Terra permi- tem a existência de uma camada gasosa ao seu redor: a atmosfera, que a protege dos raios solares nocivos e de outros corpos celestes. Juntamente com ela, há a hidrosfera e isso só é possível pela distân- cia que há entre a Terra e o Sol. Por isso, ao mesmo tempo que os valores de temperatura interna são ideais para a maioria dos seres vivos conhecidos, eles também promovem uma forma de proteção contra a entrada de energia e matéria não mais necessárias para o funcionamento do sistema. O planeta Terra 43 Energia solar Energia nuclear Atmosfera Clima Litosfera Evaporação Alteração e formação de rochas Precipitação Temperatura Proteção da vida Liberação de gases Consumo de gases Hidrosfera Relevo Fauna e flora Biosfera Vulcanismos e tectonismos Fonte: Elaborada pelo autor. Liberação de detritos Matéria orgânica Reações fisiológicas Solos Transporte de sedimentos Elementos em solução Oceanos, corpos hídricos e geleiras Figura 6 O sistema terrestre Crosta terrestre Mas atmosfera e hidrosfera sozinhas não oferecem a complexidade total do sistema. Nesse caso, suas interações só podem ser desenvolvi- das nas condições sobre a litosfera, que integra não exclusivamente a superfície terrestre, mas sobretudo o seu interior. A transformação do sistema, pela litosfera, ocorre nos processos de transformações radicais que dão a qualidade de um ambiente dinâmico, articulado e integrado. Contudo, sem a biosfera, o sistema terrestre apresentaria as condições ambientais do Arqueano; isso significa que o estado natural do planeta, tal qual vemos hoje, só foi possível com a origem da vida, que não só pro- 44 Fundamentos de Geografia Física porcionou transformações na litosfera, na hidrosfera e na atmosfera; a sua própria dinâmica proporcionou condições para gerar outras formas de vida. Desse modo, como a natureza natural é explicada pelas Leis Físicas (do movimento, radiação etc.), ela também absorve os princípios biológicos da evolução por meio da seleção natural. Assim, enquanto sistema, a presença de organismos vivos contribuiu – e ainda contribui – para a evolução de todos os ambientes na Terra, inter- ferindo diretamente em todos os atributos do sistema, seja na forma de ocupação de todos os lugares do mundo, mesmo aqueles mais inóspitos, seja forçando a diversificação, a evolução e a transformação do planeta. Podemos, então, considerar que esse sistema foi formado sobretudo na Era Paleozoica, há cerca de 200 a 540 milhões de anos AP (antes do presente), quando as áreas continentais formavam um único continente: a Pangeia, e as águas marinhas, um único oceano: o Pantalassa. Desde a era Cenozoica, a Terra tem mantido condições ideais para proteção e manutenção da vida Figura 7 Transformações da Terra em quatro eras diferentes Pangeia Laurásia Gondwana Cenozoico (Quaternário) Paleozoico (Pérmico) Mesozoico (Jurássico) Mesozoico (Cretáceo Superior) m ih a de /S hu tte rs to ck Fonte: Elaborada pelo autor. Desse momento em diante, as transformações da Terra foram drás- ticas e decisivas, exclusivamente para modificações das formas de vida, por meio das grandes extinções com processos catastróficos: intensos https://pt.wikipedia.org/wiki/Paleozoica O planeta Terra 45 vulcanismos, eras glaciais e impactos de meteoros. De outro modo, a quantidade de água, gases, calor interno e radiação estão mais ou menos constantes e não sugerem alterações tão importantes quanto aquelas observadas antes da Era Paleozoica. Assim, podemos resumir, pelo tempo geológico, que a Terra atual está dentro do Éon Fanerozoico da Era Cenozoica e do Período Qua- ternário, momento de constituição do planeta com a disposição atual dos cinco continentes (América, Eurásia, África, Oceania e Antártica) e dos três oceanos (Atlântico, Índico e Pacífico). Desde então, o sistema terrestre tem integrado todas as possibili- dades de atuação e transformação, incluindo desde pequenos seres e organismos vivos até as formas de como o ser humano se apropria, constrói, explora e modifica a Terra como seu lugar de moradia. Todos esses processos estão inseridos nas dinâmicas da natureza e servem para contemplar o debate da próxima seção. Como você deve ter percebido, a Terra está em permanente transfor- mação. Seu estágio atual pode ser considerado um intervalo entre um passa- do e um futuro distantes. Assista ao vídeo How Earth Will Look In 250 million Years (em português Como será a aparência da Terra em 250 milhões de anos) e observe o ciclo de fragmentação dos conti- nentes que finaliza com a formação de uma nova Pangeia. Disponível em: https://youtu.be/ hos7w8xrcEs. Acesso em: 26 jan. 2021. Vídeo 2.4 Dinâmicas da natureza Vídeo Na Geografia Física, as dinâmicas da natureza atendem ao princípio da análise dos sistemas naturais no escopo do sistema terrestre e por meio das transformações engendradas pelas atividades humanas ou da relação com elas no decorrer da história. Chamamos isso de produ- ção do espaço geográfico, ou seja, a maneira como nós, seres humanos, relacionamo-nos com nosso entorno imediato, próximo e distante, e construímos nossos próprios lugares de moradia, convivência, lazer, trabalho, rotinas etc. Mas o que isso significa? Observe a Figura 8. Ela basicamente repre- senta, em diferentes épocas, as transformações do Cais do Porto do Rio de Janeiro. Agora pense: considerando que a análise da Geografia Física pre- cede o interesse dos sistemas naturais na produção do espaço geo- gráfico, como podemos compreender e avaliar os processos que condicionaram as alterações e as transformações do Cais do Porto? Como equalizar os fatores históricos, distinguindo o que é natural (em relação ao movimento do sistema) e o que é social (associado aos usose propósitos, segundo as intencionalidades dos agentes sociais)? https://pt.wikipedia.org/wiki/Paleozoica https://youtu.be/hos7w8xrcEs https://youtu.be/hos7w8xrcEs 46 Fundamentos de Geografia Física Figura 8 Sequência das modificações do Cais do Porto do Rio de Janeiro em 1608, 1710, 1817 e 2002 Fonte: Andreatta et al., 2009. Cais do Porto – 1608 Cais do Porto – 1710 Cais do Porto –1817 Cais do Porto – 2002 A resposta é que a dinâmica da natureza é geograficamente explica- da quando elaboramos um exercício de articulação escalar. É preciso considerar que tanto os processos físico-naturais como os de origem humana determinam as características por meio das quais a dinâmica da natureza se articula ao espaço geográfico (SANT’ANNA NETO, 2013). Nesse caso, as escalas não devem ser entendidas apenas como di- mensões espaçotemporais absolutas, em que os fenômenos naturais se manifestam pelo uso de termos espaciais como área, tamanho, abran- O planeta Terra 47 gência e estruturação. Também não podem ser compreendidas ape- nas como temporais (décadas, épocas, eras etc.) Podemos incorporar os processos dinâmicos, dotados de atributos altamente sensíveis, aos ritmos, às variações e às alterações de todas as forças terrestres e cósmi- cas que de alguma forma exercem ou provocam qualquer interferência no sistema natural, social e produtivo (SANT’ANNA NETO, 2013). Podemos admitir que a articulação escalar é um princípio da aná- lise geográfica que pode ser iniciada reconhecendo os processos que organizam o espaço-tempo longo; este se baseia, sobretudo, na escala profunda, longa e lenta do tempo geológico. Para essa dimensão, partimos de processos que duram milhares ou milhões de anos modificando os climas do planeta (global), que al- gumas vezes ficam mais quentes, outras, mais frios e, alternadamente, ficam mais secos ou mais úmidos. Esse evento é explicado por movi- mentos astronômicos e cósmicos da órbita terrestre e das manchas solares, bem como pela integração dos mecanismos internos – por exemplo, as atividades vulcânicas e os tectonismos –, que se manifes- tam na organização de domínios naturais de paisagem, ou seja, cordi- lheiras, florestas, desertos, zonas climáticas etc. Somado ao espaço-tempo longo, incorporamos a dimensão do tem- po curto: o tempo da história humana. Partimos dos fundamentos que definem a valorização da dimensão antropogênica dos sistemas natu- rais, ou seja, de como os seres humanos se tornam agentes geográficos de transformação das paisagens e de modificação dos ambientes re- gionais e locais, seja como indivíduo ou como grupo social, que perce- be, sofre e age por meio de manifestações e organização dos sistemas naturais (SANT’ANNA NETO, 2013). Isso não quer dizer que no tempo histórico as forças terrestres e astronômicas deixam de existir, pelo contrário, significa que as inte- rações entre espaços e temporalidades se tornam mais complexas e de difícil determinação, por isso é melhor tratá-las pela natureza híbrida. Como operacionalizamos esse processo? O esquema da Figura 9 re- presenta uma maneira de elaborar a análise da dinâmica da natureza, com localização, situação e posição geográfica como elementos que defi- nem os níveis da homogeneização, heterogeneização e diferenciação do espaço geográfico (NASCIMENTO JR., 2017). 48 Fundamentos de Geografia Física Figura 9 O estudo geográfico das dinâmicas da natureza Articulação escalar Posição Altitude Estrutura geológica Movimentos astronômicos e cósmicosSolos Relevo Dinâmica terrestreCorpos hídricos Vegetação Zonas climáticas Domínios naturais Ocupação da terra Atividades humanas Local Regional Global Diferenciação Heterogeneização Homogeneização Situação Localização Produção do espaço geográfico Pr in cí pi os p ar a an ál is e ge og rá fic a Es pa ço -te m po -h is tó ric o Princípios para análise geográfica Espaço-tem po-histórico Fonte: Elaborada pelo autor. E no que esses conceitos consistem? Quando no referimos à locali- zação geográfica, atribuímos inicialmente a dimensão espacial do siste- ma natural com base em sua área, tradicionalmente representado por pelo menos um par de coordenadas (latitude e longitude). O conceito de bioma é um exemplo desse processo de análise (Figura 10). Ies de Br as il S /A Figura 10 Principais biomas do mundo O planeta Terra 49 Na lógica, as características dos lugares com base em sua localização devem resultar em uma reunião sistemática e descritiva de fatores asso- ciados a processos de homogeneização 5 , ou seja, mecanismos naturais que atuam no tempo longo se constituem em atributos explicativos de es- tabilidade, constância e modificações de padrões de grande escala. Nesse caso, os estudos recaem sobre a gênese e formação das paisagens, dialo- gando fortemente com a paleontologia, a geologia e a biologia. O princípio da situação geográfica, por sua vez, indica que, além de localizar o sistema natural por um ponto ou área, devemos contemplar também a sua relação com outros sistemas (relações entre água, ar, solo, plantas, animais e seres humanos). Na Geografia Física, essa concepção pressupõe a necessidade de compreender a heterogeneização 6 , isto é, as interações espaciais que podem ser associadas às características dos lugares pelos atributos da estrutura geológica, do relevo, dos domínios vegetacionais, dos biomas e do uso da terra. A Figura 11 representa os diferentes tipos de domí- nios vegetacionais de acordo com a variação da altitude e da latitude. Figura 11 Variação de domínio vegetacional de acordo com a altitude e a latitude Ies de Br as il S /A . Nessa perspectiva, nosso trabalho pode ser elaborado no âmbito da transformação das paisagens e dos processos naturais por enfo- ques estratégicos da regionalização (zoneamento agroecológico e eco- lógico-econômico) e da exploração de recursos. Ele também pode ser concebido pela identificação de medidas que contenham os processos de desmatamento, mitigação e adaptação de mudanças globais e pela A homogeneização é resultado dos processos de classificação pela semelhança, para o encon- tro de classes, padrões e casos análogos. A valorização é para generalização e simplificação dos elementos constituintes dos sistemas naturais em seus determinados espaços e lugares, atribuindo combinação entre ausência e presença da seme- lhança, separando a diferença (NASCIMENTO JR., 2017). 5 A heterogeneização é resultado de uma análise que integra a variação e as conexões dos sistemas naturais, indicando a (co)existência de processos diferentes que estruturam e organizam uma mesma área. Ela prioriza a identificação de processos e fenômenos por meio de suas manifestações espaciais, inter-relacionadas umas às outras, em integrações inicialmente simples e poste- riormente complexas, visando alcançar a integração total dos fenômenos, que constituem o caráter variado do planeta (HARTSHORNE, 1978). 6 50 Fundamentos de Geografia Física avaliação de localizações inadequadas para a ocupação humana, prin- cipalmente quando são transformadas em áreas de riscos naturais. A posição geográfica, por fim, é a terceira maneira de compreen- der a dinâmica natural. Ocorre por meio do seguinte princípio: a loca- lização (área) e a situação (relação) geográficas, sozinhas, não definem por completo o quadro da análise espacial, uma vez que o conteúdo dos sistemas naturais fica responsável por definir o que está embutido ou é interno às dinâmicas existentes nesse quadro. Assumimos que as relações internas e as influências externas são internalizadas. Desse modo, o sistema natural localizado e situado em um ponto no espaço não pode ser compreendido como referência por características que existem somente nele; assim, esse sistema depende de tudo o que acontece ao seu redor (HARVEY, 2012). Na Geografia Física, essa perspectiva sugere entender a diferen- ciação 7 , o sistema natural, como uma manifestação únicae singular, resultado de múltiplas relações (internas e externas, horizontais e ver- ticais, passadas e presentes, diferentes, similares e diversas) que se en- contram e convergem-se. Os eventos extremos, os desastres naturais, as mudanças climáti- cas, a degradação ambiental, as pandemias, bem como a diversidade dos sistemas produtivos, sociais e humanos, são temas de enfoque nessa dimensão escalar que não está dissociada das demais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os estudos de radiação, movimento e evolução da Terra nos auxilia- ram muito a compreender o sistema terrestre. Além disso, atualmente eles possibilitam que uma história e uma idade sejam atribuídas ao Uni- verso, à Terra e à natureza natural. O conhecimento dessa história tem base em cálculos, modelagens e simulações, constituídos pelas Leis da Física (energia, radiação, partículas elementares e relatividade) e pelas distâncias e frequências estimadas da radiação eletromagnética, ou seja, da luz, que é captada na Terra por te- lescópios ópticos e radiotelescópios. A diferenciação é um processo de análise que pode ser esta- belecida de modo abrangente e geral ou de modo específico, particular, singular e irrepetível. Nesse jogo, a regularidade e a uniformidade do sistema natural não são representadas e explicadas como um estado em si mesmas. Elas se apresentam somente como uma etapa no desenvolvimento da história natural, que explica como processos globais (tempo longo) atuam sob as estruturas regionais e especificam-se, aumentando a complexidade nos locais. 7 O planeta Terra 51 Mesmo assim, sustentado, o modelo do Big Bang não está isento de debate, uma vez que essa teoria só é possível dentro do contexto técnico- -científico e tecnológico atual, mostrando que todo saber e conhecimen- to é passível de contradições e de avanços, sendo sempre resultado de construções sociais. Como destacamos, a teoria é bastante recente, mas o conhecimento sobre o Universo é bastante antigo. Mesmo sendo tradicio- nal, esse saber deve ser reconhecido como importante para a sociedade como um todo. Lembre-se: a natureza tem uma história, pois ela tem espaço-tempo e é dinâmica, mutável e sistêmica. Destacamos que nessa concepção de natureza o ser humano participa do sistema, seja como ser biológico ou social. Nesse sentido, atualmente nenhum fenômeno natural pode ser explicado em si ou como puramente natural, uma vez que suas manifes- tações podem ser explicadas apenas parcialmente pelas leis da física e da biologia. De todo modo, na Geografia Física utilizamos os princípios de localiza- ção, situação e posição geográficas para explicar a formação socioespacial e a idade de cada lugar no mundo, por meio da articulação entre história natural (tempo geológico) e social (tempo histórico) dentro da história da natureza. ATIVIDADES Vamos pôr nossos conhecimentos em prática? Nestas atividades, selecionamos alguns problemas que devem ajudá-lo a desenvolver inicialmente sua análise geográfica. Recomendamos que utilize, além deste capítulo, os textos indicados nas dicas de leitura. Vamos lá? 1. A Radiação de Fundo e o ciclo de vida de uma estrela têm relação com a origem do Universo e com a formação da Terra. Como você pode descrever essa relação? 2. Utilize a escala do tempo geológico e descreva cinco grandes eventos que proporcionaram a origem e a formação da Terra. 3. A origem e a evolução das formas de vida na Terra fazem parte da dinâmica dos sistemas naturais. Quais são as implicações desses processos no estágio atual da Terra? 4. Como é possível desenvolver uma análise das dinâmicas da natureza por meio da Geografia Física? 52 Fundamentos de Geografia Física REFERÊNCIAS ANDREATTA, V.; CHIAVARI, M. P.; REGO, H. Rio de Janeiro e a sua orla: história, projetos e identidade carioca. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2009. (Coleção estudos cariocas ). Disponível em: http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/ download/2418_O%20Rio%20de%20Janeiro%20e%20sua%20orla.pdf. Acesso em: 26 jan. 2021. ANDREWS, J. E.; BRIMBLECOMBE, P.; JICKELLS, T. D.; LISS, P. S.; REID, B. An introduction to environmental chemistry. Norwich: John Wiley & Sons, 2009. FERREIRA, S.; ALVES, M. I. C.; SIMÕES, P. P. Ambientes e Vida na Terra – os primeiros 4.0 Ga. Estudo do Quaternério, Porto, n. 5, p. 99-116, 2008. Disponível em: http://www.apeq.pt/ ojs/index.php/apeq/article/view/116/113. Acesso em: 26 jan. 2021. FRIMMEL H. E. Archaean atmospheric evolution: evidence from the Witwatersrand gold fields, South Africa. Earth Science Reviews, v. 70, n. 1, p. 1-46, 2005. Disponível em: https:// www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0012825204001084?via%3Dihub. Acesso em: 26 jan. 2021. HARTSHORNE, R. Propósitos e natureza da geografia. São Paulo: Hucitec/ EDUSP, 1978. HARVEY, D. O espaço como palavra-chave. GEOgraphia, v. 14, n. 28, p. 8-39, 2012. Disponível: https://periodicos.uff.br/geographia/article/view/13641. Acesso em: 26 jan. 2021. MAKLER, M.; VILLELA NETO, T. Cosmologia: a busca pela origem, evolução e estrutura do universo. Um olhar para o futuro: desafios da física para o século, v. 21, p. 94-109, 2009. Disponível em: http://www.cbpf.br/~desafios/media/livro/Cosmologia.pdf. Acesso em: 26 jan. 2021. NASCIMENTO JR., L. Transformações e permanências dos estudos comparados na geografia. Boletim Goiano de Geografia, v. 37, n. 2, p. 302-321, maio/ago., 2017. Disponível em: https://revistas.ufg.br/bgg/article/view/49157. Acesso em: 26 jan. 2021. SANT’ANNA NETO, J. L. Escalas geográficas do clima: mudança, variabilidade e ritmo. In: AMORIM, M. C. C. T. A.; SANTANNA NETO, J. L.; MONTEIRO, A. (orgs.). Climatologia urbana e regional: questões teóricas e estudos de caso. São Paulo: Outras Expressões, 2013. p. 75-79. TEIXEIRA, W; TOLEDO, M. C. M.; FAIRCHILD, T. R.; TAIOLI, F. Decifrando a Terra. São Paulo: Oficina Textos, 2001. WUENSCHE, C. A. Cosmologia. In: Introdução à astronomia e astrofísica. São José dos Campos: INPE – Divisão de Astrofísica, 2017. Disponível em: http://urlib.net/ rep/6qtX3pFwXQZ3P8SECKy/z9CEf?ibiurl.backgroundlanguage=pt-BR. Acesso em: 26 jan. 2021. http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download/2418_O%20Rio%20de%20Janeiro%20e%20sua%20orla.pdf http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download/2418_O%20Rio%20de%20Janeiro%20e%20sua%20orla.pdf http://www.apeq.pt/ojs/index.php/apeq/article/view/116/113 http://www.apeq.pt/ojs/index.php/apeq/article/view/116/113 https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0012825204001084?via%3Dihub https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0012825204001084?via%3Dihub https://periodicos.uff.br/geographia/article/view/13641 http://www.cbpf.br/~desafios/media/livro/Cosmologia.pdf https://revistas.ufg.br/bgg/article/view/49157 http://urlib.net/rep/6qtX3pFwXQZ3P8SECKy/z9CEf?ibiurl.backgroundlanguage=pt-BR http://urlib.net/rep/6qtX3pFwXQZ3P8SECKy/z9CEf?ibiurl.backgroundlanguage=pt-BR A superfície terrestre 53 3 A superfície terrestre Neste capítulo vamos assimilar os principais conceitos dos elementos constituintes da superfície da Terra. Nosso interes- se é continuar o debate sobre os sistemas naturais, agora com foco na estrutura geológica, nas formas do relevo e na forma- ção dos solos. Além disso, vamos entender como a dimensão do ser hu- mano, no papel de agente antrópico modelador da superfície, pode ser contextualizada como um período particular, também chamado de Antropoceno. Com um enfoque que valoriza a noção sistêmica, ou seja, do sistema terrestre, consideramos que, partindo desses três substratos da superfície, é possível indicar também aspectos de como as sociedades iniciam seu processo geográfico de constituição ao mesmo tempo que produzem o espaço com base na história natural e social – a estrutura geológica, o re- levo e o solo. Dentro da Geografia Física, estamos organizando os sabe- res relativos à geologia, à geomorfologia e à pedologia como subcampos específicosno tratamento das grandezas escala- res e das articulações que estruturam a superfície da Terra. No entanto, antes de iniciar esse debate, vale sempre lembrar que, antes do século XIX, as grandes questões que envolviam a origem, a constituição e a estruturação da natureza foram ela- boradas em concepções mitológicas, em seguida por filósofos. Em grande parte desses conhecimentos as abordagens mais incorporadas se baseavam no fixismo, na noção estática do sistema terrestre. Desejamos uma ótima leitura e um bom rendimento de estudo. 54 Fundamentos de Geografia Física 3.1 Fundamentos de geologia Vídeo Os conhecimentos sobre a formação da Terra foram inicialmente desenvolvidos pelos estudiosos naturalistas, com lógicas indutivas, ou seja, eles construíam uma ideia geral com base na observação de casos particulares. Isso significa que esses estudiosos explicavam a formação e o funcionamento do sistema terrestre considerando sua idade rela- tiva, por exemplo: os aspectos estruturais das rochas, a presença de fósseis e a organização de sedimentos – isto é, seguindo a lógica de que as unidades geológicas jovens são mais recentes e tendem a estar sempre acima das antigas, e assim por diante. O entendimento geológico foi paulatinamente organizado nesse contexto para definir a geologia (ciência da Terra, derivada do grego geo, “terra”, e logos, “saber”, “conhecimento”, “estudo”) como campo orientado aos eventos da formação e história natural da Terra. Mas quais são as implicações da geologia no escopo da Geografia Física? Podemos construir essa resposta considerando que o objetivo de entender a história natural da Terra tem sido fundamental para a formulação da ideia da origem e da formação do sistema terrestre. Foi somente no início do século XX que surgiu a noção de que os sis- temas naturais apresentam movimentos e sofreram transformações no passado. Esses postulados são da Teoria da Deriva Continental, proposta pelo geofísico e meteorologista alemão Alfred Wegener (1880–1930). Para a formulação da sua teoria, Wegener observou similaridades marcantes e importantes entre rochas e fósseis dos continentes si- tuados em lados opostos do Oceano Atlântico e designou fundamen- talmente que essas evidências faziam parte de um supercontinente comum. Devido a processos de fragmentação, esse continente foi se- parado, originando todos os demais da Terra atual. Vale considerar que não era nova a ideia de unicidade dos continentes atuais em tempos pretéritos, mas Wegener foi, sem dúvida, o primeiro a formular uma ideia lógica de uma separação continental. Assim, no momento em que fez sua apresentação, Wegener sofreu críticas porque, além de ser uma teoria muito inovadora, suas explicações sobre as forças e os proces- sos relacionados à deriva continental não foram substancialmente con- sistentes para grande parte da comunidade acadêmica e científica da época (PRESS et al., 2006). A superfície terrestre 55 Em sua teoria, Wegener utilizou quatro argumentos: 1. Morfológico: percebeu que rochas e fósseis da África do Sul eram idênticos aos encontrados em Santa Catarina, no Brasil. Da mesma forma, assim eram os morros apalaches na América do Norte em relação às terras altas da Escócia. 2. Paleoclimático: observou que a presença de formações glaciais em continentes de clima tropical indicava que essas áreas estavam em outra situação geográfica no passado. 3. Paleontológico: constatou que fósseis encontrados em certos lugares sugeririam características ambientais diferentes dos dias atuais. 4. Geológico: associou que rochas com a mesma idade e do mesmo tipo se formaram ao mesmo tempo e em um mesmo lugar, quando os continentes formavam um só, no caso, a Pangeia (PRESS et al., 2006). Esses argumentos foram mais relevantes principalmente após o avanço das tecnologias de sensoriamento remoto – sobretudo para o mapeamento do assoalho oceânico – e a partir da década de 1960 (PRESS et al., 2006). Nesse caso, as explorações do fundo dos oceanos (para a busca por petróleo e outros recursos naturais) levaram ao en- contro de dorsais submarinas (caracterizada pela elevação do assoa- lho) e de vales muito profundos (como se o fundo do mar apresentasse uma fenda), conforme ilustra a Figura 1 a seguir. Figura 1 Carta das dorsais oceânicas do mundo A figura serve como exemplo da formação com fendas, que ocorre no centro norte- sul no Oceano Atlântico e nos setores meridionais do Oceano Índico e de sul a leste do Oceano Pacífico. Destaca-se a Elevação Mesoatlântica, que apresenta 80 mil quilômetros de extensão, com alturas em torno de 3 quilômetros, e concentra cerca de 80% dos vulcanismos observados na Terra. Be ra nn / H ein ric h C. / H ee ze n/ B ru ce C ./ Th ar p/ M ar ie/ W iki m ed ia C om m on s 56 Fundamentos de Geografia Física Assim, os geólogos Harry Hess e Robert Dietz interpretaram que a crosta terrestre se separa ao longo de riftes 1 nas dorsais meso-oceânicas e que o novo fundo oceânico se forma pela ascen- são de uma nova crosta quente nessas fraturas (PRESS et al., 2006). Trata-se, então, da formação inicial da litosfera. Nesse processo, a litosfera se expande lateralmente a partir da fenda das dorsais e é substituída por outra mais nova a cada processo de ex- pansão, sendo reciclada em seus limites, onde ocorrem as áreas do cha- mado círculo ou anel de fogo. A Teoria da Deriva Continental poderia ser assim validada na medida em que esse mecanismo explica o movimento da crosta terrestre e a fragmentação dos continentes (Figura 2). Observe! Até aqui entendemos como a litosfera é originada e como esse processo se relaciona com a deriva continental (distribuição e fragmentação dos continentes), bem como de que modo essas áreas concentram atividade vulcânica e sísmica (tremores, terremotos e ma- remotos). No entanto, falta explicar como esses processos ocorrem, formando os minerais e as rochas, e por que acontecem com esse pa- drão espacial. Para chegarmos a essa resposta, temos a contribuição do canadense John Tuzo Wilson (1908-1993), que descreveu, pela pri- meira vez, a noção de tectonismo global, ou das placas tectônicas. Conceito geológico para designar as fendas ao longo da litosfera. 1 Minerais são todas as subs- tâncias sólidas cuja formação é natural e inorgânica, estrutura- das por arranjos cristalinos geo- métricos e atômicos (elementos combinados quimicamente). Exclui-se do universo mineral, por exemplo, os materiais gaso- sos e líquidos (água), além das substâncias orgânicas (carvão mineral) e sintéticas. Já rocha é um agregado conso- lidado, que resulta de processos geológicos e é composto de minerais. Podem ser classificadas por meio dos seus processos de formação em ígneas ou magmáticas, sedimentares e metamórficas. Saiba mais Figura 2 Ocorrência do círculo de fogo na superfície terrestre Gr in ge r/ W ik im ed ia A superfície terrestre 57 O mecanismo é explicado pela movimentação de placas rígidas as- sociada aos processos convectivos que ocorrem no interior do manto terrestre. O manto é uma das camadas da Terra, sendo composta por um fluido viscoso chamado de magma, e sua movimentação é oriunda do calor interno da Terra formando as correntes convectivas, que, por sua vez, apresentam velocidade de poucas dezenas de milímetros por ano, ou seja, dentro do tempo geológico. Nesse sentido, a litosfera está fragmentada em aproximadamen- te 12 placas tectônicas, que, por serem submetidas ao deslocamento constante, apresentam em seus limites diferentes processos para dis- sipação de energia, que são diferenciados principalmente em termos de temperatura e pressão (TEIXEIRA et al., 2001). Em geral, cada placa se move como uma unidade distinta, deslizando sobre a astenosfera (o manto superior) conforme as características de fluidez do magma e da velocidade provocada pelo aquecimento interno. Por isso, nenhu- ma placa é idêntica, seja em tamanho, formaou dinâmica, mas agem de acordo com três movimentos que provocam deformações na crosta terrestre, segundo as direções habituais de suas trajetórias (Figura 3). Vale considerar que essa situação é mais recente, sendo relativa à dinâmica que ocorre desde o Quaternário, isto é, o momento da histó- ria geológica em que o planeta está organizado em cinco continentes (América, Eurásia, África, Oceania e Antártica) e três oceanos (Atlântico, Índico e Pacífico). Convecção: um dos processos de transferência de calor, que ocorre com movimentos ascendentes (quando os fluídos são forçados a subir) e descendentes (quando o fluido é forçado a descer). Glossário Figura 3 Placas tectônicas e as direções de seus movimentos habituais Ies de Br as il S /A No mapa, (1) corresponde aos limites divergentes das placas tectônicas e (2) corresponde aos limites convergentes das placas tectônicas. 58 Fundamentos de Geografia Física Um primeiro movimento explica os limites divergentes das placas, em que se observa sua separação ou formação da litosfera. A conse- quência é a formação de vales paralelos em forma de fenda, associados a atividades vulcânicas e terremotos. Como já foi descrito, nos oceanos esse dinamismo caracteriza a dorsal meso-oceânica, mas nos continen- tes eles geram os grandes vales em forma de rifte (Figura 4). Figura 4 Movimentos tectônicos divergentes As placas se afastam, formando uma nova litosfera. A foto faz a referência ao Parque Nacional Thingvellir com o Lago Thingvallavatn ao fundo, na Islândia, onde as placas tectônicas Norte-Americana e Eurasiana estão em divergência. m ik lu ha _m ak la /S hu tte rs to ck Er eb or M ou nt ai n/ Sh ut te rs to ck Se as placas se separam em determinado lugar, em outro lado elas se encontram. O movimento origina a convergência que promove a co- lisão frontal das placas. Nesse processo, uma das placas é destruída, sendo submetida à subducção, ou seja, por meio de um mergulho no interior da Terra, ela é reciclada quando retorna ao manto superior. Na litosfera, a consequência pode ser observada na formação de fossas oceânicas e soerguimento da crosta, que dá origem às grandes cadeias de montanhas. As cordilheiras dos Andes, do Himalaia e dos Alpes Suí- ços, são exemplos desse processo (Figura 5). Figura 5 Movimentos tectônicos convergentes NA SA W or ld W in d/ W ik im ed ia C om m on s As placas colidem e uma delas é submetida à subducção e reciclagem. A foto faz a referência à Cordilheira dos Andes, na América do Sul, onde as placas tectônicas de Nazca e Sul-Americana se colidem, sendo a primeira forçada à subducção. Er eb or M ou nt ai n/ Sh ut te rs to ck A superfície terrestre 59 Já nos limites transformantes, movimentos em que as placas deslizam horizontalmente uma em relação à outra, a consequência é a formação de grandes talhamentos na crosta terrestre, ou seja, fraturas que ocorrem ao longo do deslocamento (Figura 6). Nesse caso, a litosfera não é criada e nem destruída, mas há grande ocor- rência de atividades sísmicas devido à grande pressão causada na fricção. Er eb or M ou nt ai n/ Sh ut te rs to ck Figura 6 Movimentos tectônicos transformantes Ik lu ft /W ik im ed ia C om m on s As placas deslocam-se horizontalmente em relação uma à outra. Como exemplo, temos a região da falha de San Andreas, no Oeste dos Estados Unidos, onde as placas Norte-Americana e Pacífica movem-se em direções opostas, respectivamente Norte e Sul. Figura 7 Limites de placas tectônicas Be nc en o/ W ik im ed ia C om m on s LIMITE DE PLACA CONVERGENTE FOSSA FOSSA VULCÃO ATIVO VULCÃO EXTINTO DORSAL OCEÂNICA EM EXPANSÃO PLACA EM SUBDUCÇÃO CROSTA OCEÂNICA CROSTA CONTINENTAL LIMITE DE PLACA DIVERGENTE LIMITE DE PLACA TRANSFORMANTE LIMITE DE PLACA CONVERGENTE RIFTE CONTINENTAL (LIMITE DE NOVA PLACA) Com base nas Figuras 4, 5, 6 e 7, observamos que os movimen- tos podem ser observados tanto na formação de relevo (cadeias de montanhas e vales) quanto na manifestação de diversos acidentes naturais, como vulcanismos, tremores, terremotos e maremotos. Considerando todos esses eventos como parte do processo de re- 60 Fundamentos de Geografia Física Intemperismo é um conjunto de processos mecânicos, de tipo físico, químico e biológico, que atuam na fragmentação, desintegração e decomposição de minerais e rochas, tornan- do-os, no tempo geológico, friáveis, reduzidos a um material desagregado ou decomposto de rocha. A resistência da rocha ao intemperismo está diretamente relacionada à sua composição mineralógica, que pode ser do tipo físico, químico e biológico. Saiba mais novação e destruição da litosfera, podemos admitir também que eles sempre operam sob diferentes estágios no processo evolutivo do sistema terrestre. O ciclo das rochas (Figura 8) é um dos mais representativos dessa noção. Fonte: Elaborada pelo autor. Figura 8 O ciclo das rochas Rochas ígneas Sedimentação Aumento de temperatura e pressão Rochas metamórficas Magma Intemperismo e erosão Rocha sedimentar Metamorfismo e recristalização Fusão Resfriamento e cristalização Ph on gs ak M ee da en ph ai /Y vo nn e Ba ur /U he he u/ Al ek sa nd r P ob ed im sk iy/ m ik el ed ra y/ lro se br ug h/ Sh ut te rs to ck A superfície terrestre 61 O ciclo das rochas é um processo contínuo que sempre atua em estágios distintivos nos diferentes lugares. O movimento cíclico repre- senta a transformação e destruição das rochas antigas e a sua transfor- mação em rochas recentes. Ele pode ser explicado por meio das rochas jovens, basicamente oriundas do resfriamento do magma quando este é exposto à superfície na forma de lava, originando, assim, as rochas magmáticas. Estas podem ser induzidas a retornar ao interior da Terra: quando são submetidas ao aumento da temperatura e da pressão, passam por processos de recristalização e metamorfismo. As rochas metamórficas, quando expostas ao ambiente externo, são submetidas a intemperismos. Caso o aumento de temperatura e pressão continue, essas rochas podem ser recicladas ao serem trans- formadas por fusão em magma; em contrapartida, podem ser altera- das e transformadas em rochas sedimentares. Para tanto, elas passam primeiro pelo alívio da temperatura e da pressão, com a ação dos processos de intemperismo, erosão e sedimentação. Na continuidade, as rochas sedimentares podem ser oriundas de rochas magmáticas ou metamórficas e, para serem recicladas, devem passar por processos de metamorfismo e recristalização, ou seja, in- duzidas ao aumento de temperatura e pressão. A continuidade do movimento (aumento de temperatura e pressão) deve garantir sua transformação em magma (fusão), reiniciando o ciclo, quando é nova- mente exposto à superfície na forma de lava. As rochas ígneas (Figura 9) são soerguidas para a superfície por processos tectônicos ou por meio de vulcanismos quando o derrama- mento de lava resfria e se transforma em rochas. Depois de expostas ao ambiente externo, essas rochas são submetidas a intemperismos e erosão, sendo paulatinamente reduzidas a sedimentos, que podem ser levados para outros lugares; por meio do soterramento e litificação (cimentação), devem formar as rochas sedimentares. Quando rochas sedimentares e ígneas são submetidas ao aumento de temperatura e pressão, ocorre o metamorfismo. Desse processo derivam-se rochas metamórficas que podem ser soerguidas e, então, submetidas ao in- temperismo e à erosão, ou o material rochoso é destruído no interior do manto, transformando-se em magma por fusão. Nesse ponto, o ci- clo das rochas volta à condição inicial. 62 Fundamentos de Geografia Física m ik el ed ra y/ Sh ut te rs to ck Granito é uma rocha ígnea intrusiva. Observe que os cristais de minerais podem ser diferenciados pelas cores e pelos padrões de organização. Isso ocorre devido ao resfriamento lento do magma. O granitoé uma rocha muito utilizada na decoração de banheiros, pisos, pias, bancadas de cozinha etc. O basalto é uma rocha ígnea extrusiva. Observe que ela forma um agregado bem homogêneo, quase não sendo observada diferença e variação de cor, aspecto típico de rochas que foram submetidas ao resfriamento rápido de lava. Devido à sua resistência a processos de intemperismos, é muito utilizado em construção civil, calçadas, constituição de asfalto etc. Al ek sa nd r P ob ed im sk iy/ S hu tte rs to ck Figura 9 Rochas ígneas ou magmáticas Arenitos e argilitos são tipos de rochas sedimentares. Observe a aparência estruturada em camadas, que remete a sedimentos diferentes, gerados em períodos distintos e depositados em um mesmo local. O uso dessas rochas é bastante importante na construção civil (composição do cimento, do concreto e de paredes) e como ornamentos (vidros, porcelanas, objetos decorativos etc.). (Continua) Al ek sa nd r P ob ed im sk iy/ lro se br ug h/ Sh ut te rs to ck A superfície terrestre 63 O mármore é um exemplo de rocha metamórfica, nesse caso originada de rochas calcárias. São rochas que podem ser usadas na construção civil (banheiros, pisos, pias, bancadas de cozinha etc.), principalmente como ornamentos devido à sua diversidade de cores. W al te r B ilo tta /P ho ng sa k M ee da en ph ai /S hu tte rs to ck Em geral, podemos observar a constituição dos eventos tectô- nicos na paisagem com base na distribuição espacial de rochas e falhas, relacionando suas idades e períodos de formação. No Bra- sil essa representação é bem explicada por meio das províncias estruturais. Províncias estruturais (Figura 10) são amplas áreas geológicas cuja evolução natural corresponde a processos estratigráficos, magmáticos, metamórficos e tectônicos muito homogêneos e próprios, diferindo-se relativamente das províncias vizinhas (AL- MEIDA et al., 1977). Justamente por fazerem parte da plataforma Sul-americana na atualidade, essas províncias no território brasilei- ro, em grande parte, constituem rochas metamórficas e eruptivas do período pré-cambriano (crátons), contemplados os grandes em- basamentos cristalinos dos escudos das Guianas, do Brasil (região central) e do Atlântico; e de rochas sedimentares, associadas às bacias Amazônica, Parnaíba e Paraná, que se originam do Fanero- zoico (ALMEIDA et al., 1977). . 64 Fundamentos de Geografia Física Figura 10 Províncias estruturais do Brasil Fonte: IBGE, 2019. A superfície terrestre 65 É importante destacar que o conhecimento da estrutura geológica do território nacional auxilia nos processos de gestão e planejamento territorial quanto às relações com eventos perigosos e desastres natu- rais nas áreas urbanizadas, como também à exploração mineral. Nesse último caso, o Brasil se apresenta como um agente de relevante im- portância na extração de metais e pedras preciosas, que ocorre prin- cipalmente sobre as áreas dos crátons e de combustíveis fósseis, e na produção de energia hidroelétrica em parte das bacias sedimentares. Nesse sentido, precisamos compreender, a partir de agora, que a in- teração entre a tectônica das placas com a superfície terrestre explicita outros processos de transformação da crosta, enquadrados sobretudo no intervalo existente entre a origem e a destruição da litosfera. Para essa particularidade, temos as contribuições da geomorfologia e da pe- dologia no que tange à formação do relevo e dos solos. Dessa maneira, é preciso considerar inicialmente que as formas de relevo e solo relacionam-se direta ou indiretamente com a estrutura geológica. No caso brasileiro, por exemplo, é possível observar a ocor- rência dos chapadões da Diamantina, na Bahia, dos Guimarães, em Mato Grosso, e dos Viadeiros, em Goiás, considerando-se as sequên- cias horizontais das rochas sedimentares; as cuestas observadas em São Paulo e no Paraná remontam os limites das bacias sedimentares e a sobreposição de derrames basálticos; tem-se também formas mame- lonares, como a do Pão de Açúcar, formadas por complexos de rochas ígneas encontradas em grande parte da zona costeira e do litoral brasi- leiros. Vejamos com mais detalhes esses temas. Cuestas: formas de relevo designado para explicar sequên- cias de colinas com declividades muito assimétricas, isto é, em uma parte ela é muito íngreme, em outra é suave. Glossário 3.2 Introdução à geomorfologia Vídeo Segundo Guerra (2003), a geomorfologia é o campo científico orien- tado aos estudos das formas da terra, ou simplesmente do relevo – definido em termos de dimensão, gênese, formação e evolução da superfície terrestre. Em outras palavras, o campo tem sido desenvolvi- do para descrever a paisagem por meio da estrutura e da natureza das rochas, associando-as às diferentes forças terrestres como fatores de construção, transformação e destruição da litosfera. Nesse contexto, o entendimento geomorfológico passa pela identi- ficação do relevo como um sistema aberto, ou seja, a entrega e a saída de matéria e energia são variáveis no processo evolutivo, o que, por 66 Fundamentos de Geografia Física sua vez, pressupõe a necessidade de ajustamento contínuo, mais bem explicado por meio da Teoria do Equilíbrio Dinâmico. Conforme Fierz (2016), a noção de equilíbrio dinâmico derivou dos princípios da Teoria Geral dos Sistemas, sendo inicialmente discutida pelo estadunidense Grove Karl Gilbert (1843-1918) e sistematizada pelo britânico John Tilton Hack (1913-1991), em 1960. O princípio de que as formas refletem o balanço entre a resistência do material (rocha) submetido ao intemperismo (destruição e fragmentação) e à energia erosiva dos processos ativos (carregamento e sedimentação) é o equilí- brio dinâmico. Nesse sentido, todo relevo evolui e está em evolução em suas diversas formas e com distintas forças em sua variação natural, tendendo sempre em direção a um estado de estabilidade. Mas, inde- pendentemente do tempo, o relevo também corresponde às possibili- dades de ajustamentos constantes de matéria e energias, resultando em um sistema em equilíbrio dinâmico (HACK, 1960). Nessa teoria, o relevo apresenta-se como resultado de um balan- ço entre os processos de erosão e de resistência das rochas. Nesse sistema, todos os elementos da paisagem são submetidos às mesmas intensidades e magnitudes de intemperismo e erosão, sendo que suas diferenças e características são explicadas com base em suas relações espaciais. No artigo “A teoria do equilíbrio dinâmico em geomorfologia”, de Marisa Ma- tos Fierz, você deve encontrar mais elementos sobre o equilíbrio dinâmico e o campo de estudos da geomorfologia. Acesso em: 4 fev. 2021. https://www.revistas.usp.br/geousp/article/download/107614/112869/210046 Artigo Consequentemente, o relevo não pode ser entendido como uma forma terrestre estática – pelo contrário, além de apresentar tendência de estabilidade, seus movimentos levam ao aparecimento de outras formas diferentes das originais. Como a análise sistêmica, o estudo re- mete à representação de escalas espaçotemporais integradas aos pro- cessos e às formas do relevo e da paisagem. O esquema da Figura 11 resume essa perspectiva. https://www.revistas.usp.br/geousp/article/download/107614/112869/210046 A superfície terrestre 67 Na lógica, o relevo terrestre é originado inicialmente de proces- sos endógenos ligados aos tectonismos e vulcanismos, e em seguida pela destruição de minerais e rochas por meio da erosão, isto é, o processo mecânico de carregamento ou transporte de sedimentos por meio de rios, ventos, chuvas, geleiras, atividades humanas etc. A erosão é o mecanismo fundamental dos processos exógenos cujos fatores clima, vegetação, solo e atividades humanas atuam nas alterações das variações de pressão e temperatura, basicamen- te comandando as transformações do relevo, seja dinamizando os processos de denudação (arrastamento ou retirada de sedimento material) ou organizandolocais de depósito de sedimentos ou de acúmulo de detritos. Figura 11 Esquema da formação do relevo Fonte: Elaborada pelo autor. Processos exógenos Processos endógenos Compensação isostática Soerguimento Dobramentos Vulcanismos Eventos sísmicos Formação do relevo Fatores Formas deposicionais Formas erosionais TectonismoErosão Clima SoloVegetação Atividades humanas Observe a relação entre os processos exógenos e endógenos, além dos fatores e processos de construção das formas terrestres, e o princípio da compensação isostática. Em resumo, tratamos de morfogênese, ou seja, o conjunto de processos geomorfológicos (endógenos e exógenos) que formam o relevo por meio da escala de tempo geológica (SUERTEGARAY; NU- NES, 2001). Isso significa que a formação do relevo atende à estru- 68 Fundamentos de Geografia Física tura geológica interna, que constitui o principal indutor de matéria e energia para o sistema, e também aos processos externos que atuam nos níveis de sustentação e movimentação do sistema, asso- ciando o grau e a intensidade dos fluxos de matéria e energia por meio dos processos de erosão e intemperismo, conforme ilustra a Figura 12 a seguir. Figura 12 Exemplos de intemperismo e sua importância para a transformação de rochas em solo Esfoliação esferoidal é um tipo de intemperismo físico provocado pelo alívio de pressão. As alternâncias entre dilatação e contração provocam a destruição da rocha e se revela pela exposição de diferentes camadas. Além da pressão, variações de temperatura e gravidade também são importantes. As raízes de plantas são um exemplo de intemperismo biológico que, além de auxiliar no fraturamento da rocha, facilita a penetração e alteração de substâncias químicas dos minerais nela compostos. Ele também pode acontecer com a ação de animais, bactérias, atividades humanas ou qualquer organismo vivo. Reações químicas como oxidação, hidratação, entre outras, transformam a composição dos minerais originais e promovem alterações nas rochas. Esse tipo de intemperismo é fundamental para originar outros tipos de minerais e, consequentemente, diversificação dos tipos dos solos. hanohiki/Shutterstock Sirio Lauricella /Shutterstock sergeydolya/Shutterstock Fonte: Elaborado pelo autor A morfogênese auxilia a compreensão da diferenciação e compartimentação do relevo, uma vez que mudanças e altera- ções na distribuição operam também como modificação no equi- líbrio dinâmico, o que remete à estruturação da compensação isostática 2 . Nesse sentido, a diversidade da superfície terrestre pode ser classificada por diferentes critérios. O esquema da Figura 13 representa uma parte desse processo. Dentro da teoria do equilíbrio dinâmico, o princípio da isosta- sia, ou estabilidade isostática, refere-se à condição de que as formas de relevo, seus pesos e densidades promovem compen- sações em níveis mais profundos em relação à sua base. Em outras palavras, o equilíbrio isostático é garantido porque o aumento do peso na litosfera, a ocorrência de uma montanha, por exemplo, favorece o afundamento de sua base dentro do manto na mesma proporção. O processo inverso também é verdadeiro, ou seja, há diminuição da litosfera quando o peso e a densidade da superfície forem baixos. 2 A superfície terrestre 69 Figura 13 Representação esquemática da morfogênese Fonte: Elaborada pelo autor. Observe a atuação diferenciada de processos endógenos e exógenos no conjunto da compensação isostática. Processos exógenos Sedimentação Nível de base Erosão Compensação isostática Denudação Processos endógenos Para exemplificar, as Figuras 14a e 14b (dispostas na página a seguir) representam duas classificações para o relevo brasileiro. Na proposta de Ab’Saber (1970), o relevo brasileiro é contemplado em dez unidades, sen- do três planícies e sete planaltos. Já na classificação do IBGE (2005), pro- posta por Ross (1985), o Brasil apresenta um relevo formado basicamente por 28 unidades, divididas entre planícies, planaltos, patamares, tabulei- ros, chapadas e serras. Além das possibilidades técnico-científicas associadas ao contexto his- tórico das classificações, dois critérios importantes também são cruciais para definir a diferenciação de ambas. Ab’Saber (1970) basicamente utili- zou os parâmetros morfoesculturais da paisagem, valorizando sobretudo unidades de relevo deposicionais e erosionais (Figura 14 a). Ross (1985), por sua vez, utilizou, além desses parâmetros, a relação com os domínios morfoestruturais para cada unidade. Os parâmetros de classificação do relevo seguem, atualmente, uma abordagem que combina os modelos morfoestrutural (associado à idade e ao processo de formação geológica), morfoescultural (relativo às formas com que o relevo se apresenta) e os processos dinâmicos aos quais a litos- fera está submetida (exógenos ou endógenos, inclusive antrópicos) (Figu- ra 14b), sendo esses últimos, sobretudo, bem desenvolvidos nas escalas locais – do município ou de bacias hidrográficas, por exemplo. 70 Fundamentos de Geografia Física Figura 14a Relevo brasileiro segundo Ab’Saber 0º Equador 15º 30º 23º27'30" Tr ópico de Cap ricórnio 75º 60º 45º OCEANO PACÍFICO OCEANO ATLÂNTICO PL AN ÍC IE E T ER RA S B A IX AS C OS TE IRA S PLANALTO DAS GUIANAS PLANÍCIES E TERRAS BAIXAS AMAZÔNICAS PLANALTO CENTRAL PLANÍCIES DO PANTANAL PLANALTO DO MARANHÃO-PIAUÍ PLANALTO NORDESTINO PLANALTO MERIDIONAL SERRAS E PLANALTOS DO LESTE E SUDESTE PLANALTO URUGUAIO- -SUL-RIO-GRANDENSE Fonte: Adaptada de Ab’Saber, 1970. Figura 14b Relevo brasileiro segundo Ross Fonte: Adaptada de Ross, 1985. A superfície terrestre 71 Esse conhecimento torna o estudo com base na geomorfologia rele- vante porque, além de contemplar diferentes classificações, envolvem distintas escalas espaçotemporais (Figura 15). Figura 15 Formas de relevo, enquadramentos escalares e critérios de análise Local • Dique ou Sill • Hot Spot (pontos quentes) • Morros • Montes • Montanhas • Plano ou ondulado • Inselbergs • Dunas • Vertentes • Voçorocas • Ravinas Regional • Serras • Grabbens • Escarpas • Cuestas • Mesas • Platôs • Encosta • Vale em V ou em U Global • Crátons • Dobramentos modernos • Cordilheiras • Planaltos • Planícies • Depressões • Geleiras • Calotas Escala de análise Morfoestrutura Morfoescultura Processos exógenos Processos endógenosC ri té ri os d e cl as si fic aç ão d o re le vo Fonte: Elaborada pelo autor. Esse princípio mantém a formação do relevo como um processo que se organiza espacialmente em áreas de desgaste (onde predomi- nam a denudação e a erosão), em contraposição às áreas de deposição (habitualmente lugares de sedimentação), como partes essenciais do equilíbrio dinâmico dos sistemas naturais. 3.3 Introdução à pedologia Vídeo Associada à morfogênese e paralela à transformação da litosfera, acontece também a pedogênese, que, resumidamente, trata-se do processo formador de solos, ocorrendo habitualmente nas fases em que a estabilidade do relevo é garantida (ERHART, 1962). E o que isso quer dizer? Significa que, com os processos de afloramento de rochas e a ação do intemperismo e da erosão, uma combinação de material construído por partes sólidas, líquidas e gasosas, minerais e orgânicos é formado super- ficialmente por toda litosfera. Esse substrato se desenvolve em grande parte das extensões continentais do sistema terrestre, em especial onde a declividade é suficiente para manter condições de sedimentação e es- tabilidade de manutenção da matéria viva (EMBRAPA, 2006). 72 Fundamentos de Geografia Física Tendo isso em vista, trata-se de um material natural de importante complexidade e o estudo sobre ele ainda deve variar de acordo com sua utilização. Por exemplo, para a agricultura, o solo é o meio para a produção de alimentos; na geologia, é o subproduto da alteração das rochas; na arqueologia, é um dos elementos fundamentaispara entender as práticas de civilizações pretéritas. Assim, na Geografia Física, o solo é o sistema natural de apropriação imediata pelos seres humanos, ou seja, uma natureza híbrida necessária para desenvol- ver agricultura, construir cidades, dividir o território e desenvolver sociedades. Figura 16 Estágio da pedogênese ou da formação e evolução dos solos Rocha Solos jovens Solo maduro Rocha camada rica em húmus Rocha Rocha Camada rica em húmus Solos jovens Solo maduro Ie sd e Br as il S/ A Nessa perspectiva, o estudo sistemático dos processos pedogené- ticos tem sido desenvolvido principalmente pela pedologia (do grego pedon significa solo e logia significa saber, conhecimento ou estudo, o termo pode ser traduzido, portanto, como estudo do solo), a partir de 1877, quando o geógrafo russo Vasily Dokouchaev (1846–1903) ofereceu a interpretação de solo como um material que evolui no tempo sob a ação dos fatores diversos (clima, vegetação, topografia, relevo, ativida- des humanas etc). Antes dessas contribuições, havia a visão de que o solo era considerado um corpo inerte, estático e fixo e que repetia uni- camente a composição da rocha que lhe deu origem – a rocha original. Dokouchaev cunhou o conceito de solo como um corpo natural or- ganizado, além disso, estabeleceu um processo metodológico de aná- A superfície terrestre 73 lise, que se dá a partir da descrição sumária de seus horizontes. Nesse aspecto, o solo apresenta níveis estratigráficos (camadas diferenciadas horizontalmente organizadas) com características distintas, que po- dem ser visualizadas e analisadas por meio de uma tomada vertical, tradicionalmente chamada de perfil de solo. Para Dokouchaev, se todos os elementos que formam o solo forem idênti- cos, então todos os solos serão idênticos. Do contrário, a discrepância e a diferenciação desses elementos resultam em solos diferentes. Para dar mais consistência a esse debate, recomendamos a leitura do artigo “Histórico das pesquisas sobre solos até meados do século XX, com ênfase no Brasil”. Acesso em: 17 fev. 2021. http://ppegeo.igc.usp.br/index.php/rig/article/view/12677. Artigo A sucessão dos horizontes revela os processos pedogenéticos aos quais o material original foi submetido. Se sua organização for mar- cada, ou seja, se as camadas apresentarem evidente diferenciação estratigráfica, é possível identificar o solo, bem como o estágio de sua evolução. Em geral, os perfis pedológicos são identificados com base em atri- butos morfológicos, como: cor, textura, estrutura, consistência, cero- sidade, presença de nódulos, utilizando-se letras para diferenciar a passagem de um horizonte para outro. No entanto, a descrição e a identificação desses atributos nem sempre sugerem consistência de análise, por isso é comum que sejam utilizadas também análises físi- cas (que extraem o teor de areia, silte e argila como sedimentos princi- pais) e químicas (saturação por bases, razão de água, matéria orgânica, composição mineralógica etc.), grande parte desenvolvida com coletas e análise mineralógica. De outro modo, para além de sua descrição, é importante destacar que todos os solos apresentam uma história, com fenômenos que di- ferenciam o material de origem e promovendo progressivas modifica- ções em seus atributos físicos, químicos e mineralógicos. Por exemplo, o perfil de um solo antigo demonstra, em geral, de dois até oito horizontes, mas essa identificação pode variar de acordo com a particularidade e a especificidade de cada unidade. No esquema da Figura 17 apresentamos um perfil de solo com cinco horizontes. Ob- serve o caráter mais geral que distingue os horizontes entre si. Areia, silte e argila são as componentes granulométricas dos minerais e rochas que compõem o solo. Trata-se basicamente de elementos que envolvem a textura e definem a influência e as respostas às dinâmicas físicas, químicas e hidrológicas de acordo com seus tamanhos (EMBRAPA, 2006). Nesse caso, a argila é a menor das partículas (< 0,002 mm), sendo seguida pelo silte (0,002 - 0,05 mm) e a areia - o fragmento mais grosseiro, que ainda pode ser subdivida entre areia fina (0,05 - 0,2 mm), areia grossa (0,2 - 2 mm), cascalho (2 - 20 mm), calhau (20 - 200 mm) e matacão (> 200 mm) (EMBRAPA, 2006). Os fragmentos afetam diretamente o manejo e a con- servação dos solos, na medida em que os arenosos (ricos em areia) são muito friáveis e frágeis, carecendo, por isso, de técnicas específicas e adequa- das para retenção de água e nutrientes. Já os solos argilosos (enriquecidos de argila) ten- dem a concentrar muita água e podem resultar em saturação ou encharcamento. Importante 74 Fundamentos de Geografia Física Figura 17 Esquema do perfil de solos com os horizontes pedológicos Camadas superficiais Camadas subsuperficiais O – Camada de restos de plantas e animais na superfície do solo. A – Primeiro horizonte mineral do solo, mais escuro, por conter mais húmus que os horizontes B e C. B – Horizonte formado por partes bastante desagregadas da rocha-mãe, estando abaixo do horizonte A. C – Horizonte formado por partes pouco desagregadas da rocha-mãe, com presença de materiais que ainda estão se transformando em solo. R – Rocha-mãe que, submetida ao intemperismo, se desagrega e se decompõe, dando origem ao solo. Fonte: Elaborada pelo autor W ils on bi gg s/ W ik im ed ia C om m on s Dessa maneira, é importante considerar sempre que o solo é um sistema, isto é, uma síntese do processo de troca de matéria e energia entre litosfera, atmosfera, hidrosfera e biosfera. Nesse processo, pelo menos cinco fatores principais de sua formação podem ser critérios de análise e estudo, conforme mostra a Figura 18 a seguir. Figura 18 Fatores de formação do solo SOLO Organização de processos de transformação desde os níveis de intemperismo à qualidade dos eventos e quantidade de tempo de exposição. Condiciona a resistência e a diferenciação dos processos de alteração relacionados aos processos de intemperismo e erosão. Expressa a variação e a distribuição da temperatura e da umidade em sua sazonalidade e variabilidade comandando os ritmos da desagregação e destruição de minerais e rochas e a erosão. Condiciona os processos de denudação, erosão, sedimentação, além de orientar os níveis de infiltração, drenagem, declividade e elevação. Compostos por fauna e flora, incluindo-se atividades humanas – além do fornecimento de matéria orgânica para reações físico- -químicas, também a mobilização de materiais que integram a diferenciação da rocha original. Tempo Rocha Clima Relevo Organismos Fonte: Elaborada pelo autor. A superfície terrestre 75 Nessa perspectiva, no solo subjaz a importância fundamental para o desenvolvimento da humanidade, já que seu uso favorece uma diversidade de significados e, por isso, pressupõe uma das unidades básicas para conservação, proteção e manejo. Considerar esse caráter é relativizar também que a fertilidade e os níveis de degradação por meio de práticas predatórias e poluidoras ocorrem de modo paralelo à formação e à evolução dos solos. Por tudo isso, seu estudo sistemático tem oferecido cada vez mais parâmetros complexos, sofisticados e robustos para sua iden- tificação. Atualmente, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agrope- cuária – Embrapa é a instituição responsável por grande parte das classificações de solo no Brasil, e desenvolve o Sistema Brasileiro de Classificação de Solos – SBCS, baseando-se nos levantamentos exploratórios do Projeto RadamBrasil e nos estudos elaborados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. O SBCS é uma elaboração, uma taxonomia hierárquica, que abrange os solos conhecidos em classes gerais e seu níveis especí- ficos em repartições e subgrupos, dependendo do nível de diferen- ciação. Em sua mais recente publicação (EMBRAPA, 2006), o SBCS 3agrupou os solos brasileiros em 14 classes, que podem ser visuali- zadas na Figura 14. Assim, o estudo sistemático e o mapeamento dos solos sub- sidiam todos os processos de desenvolvimento territorial e pla- nejamento ambiental, já que grande parte dos planos exige o dimensionamento das necessidades atuais e futuras, com produ- ção de informações muito detalhadas. O Projeto Radam é um programa do governo brasileiro criado na década de 1970 para a pesquisa de recursos naturais. Foi organizado pelo Ministério de Minas e Energia por meio do Departamento Nacional da Produção Mineral - DNPM, com recursos do Plano de Integração Nacional – PIN (CPRM, 2021). Saiba mais O SBCS nos oferece uma ideia sobre a diversidade dos solos brasileiros e ainda indica possibilidades para desenvolver um levantamento pedológico. Por isso, vale a pena incluir esse material em sua biblioteca pessoal. 3 76 Fundamentos de Geografia Física Figura 19 Os solos do Brasil Ie sd e Br as il S/ A Nesse caso, o uso da cartografia é fundamental para desenvolver a análise dos solos e dos sistemas naturais. Com a utilização de geo- tecnologias, essa possibilidade é ampliada considerando a combinação de diferentes cartas (geológicas, geomorfológicas, pedológicas, uso e ocupação da terra etc.) para a elaboração de análises topográficas, te- máticas e de sínteses das áreas de interesse. Apesar desses avanços, o estudo dos solos ainda requer maior aprofundamento e entendimento, já que é a camada da crosta terres- tre mais importante para a produção da vida. E, em se tratando das alterações ambientais, o solo é o primeiro sistema natural de tratamen- to e observação. Vejamos como essa situação fica mais complexa na contemporaneidade. A superfície terrestre 77 3.4 O Antropoceno Vídeo Como você já deve ter percebido, por meio dos usos e das atribui- ções que fazemos da estrutura geológica, do relevo e dos solos, mos- tramos também nossa capacidade de alteração do sistema terrestre muito além do que apenas como mais um fator de formação, mas fun- damentalmente para repensar as práticas humanas. De fato, a proteção e a conservação dos sistemas naturais são res- ponsabilidade nossa e essa noção traz implícita a ideia de que, desde a nossa origem, temos sobrevivido a grandes cataclismos naturais, assim como, ao nos espalharmos desde a África para outros continentes, al- teramos praticamente todos os sistemas terrestres à nossa disposição. Essas intervenções, chamadas de antrópicas ou antropogênicas, fa- zem parte da história natural da Terra, mas atualmente se destacam com uma intensidade e transformação gigantesca. Por isso, ocorre a atribuição do período do Antropoceno como um momento que encerra o Holoceno – época da origem dos hominídeos e que sinaliza a era do ser humano como agente geológico. Vamos entender melhor essa noção? Vamos considerar, inicialmente, a contribuição do paleoclimatologista William Ruddiman, que foi um dos primeiros estudiosos a pensar o Antropoceno como a época geológica iniciada há cerca de 6 a 8 mil anos AP, considerando o crescimento e a intensidade da influência antrópica a partir da Idade da Pedra, entre o Paleolítico e o Neolítico. Nesse caso, as evidências associam o cultivo de arroz selvagem (que incluía sistemas de irrigação) à produção agrícola de grande escala (RUDDIMAN, 2013). Assim, considerar o ser humano como agente geológico pressupõe a especificidade de um momento em que a utilização de técnicas e da consequente transformação das características naturais da paisagem definiram uma transição dentro do Holoceno. Alguns autores definem essa transição partindo do Quaternário para outro período, chamado de Quinário ou Tecnógeno, ou seja, época cuja dinâmica da natureza está vinculada às alterações antrópicas (SILVA; NUNES, 2014). De todo modo, a passagem do Quaternário para o Quinário não é igual em todo o planeta; ela depende dos níveis de desenvolvimento das civilizações humanas, que, dispersas de maneira diferente pelos continentes da Terra, apresentam níveis distintos de sofisticação técnica e quantidade de instrumentos construídos (PELOGGIA, 1998). 78 Fundamentos de Geografia Física No Brasil, por exemplo, encontramos sua ocorrência na Terra Preta de Índio. Nesse solo as cores são escuras, típicas dos horizontes enrique- cidos com carbono (matéria orgânica), e com alto poder pigmentante. As cores sugerem épocas sob climas mais úmidos e um ambiente com pouca drenagem. Mas observe! Nesse contexto, o espaço geográfico do índio latino-americano se reduzia ao meio natural, ou seja, as práticas espa- ciais dos seres humanos não condicionavam grandes transformações ou mudanças radicais no ambiente. Isso significa entender que as inter- venções humanas entre o Paleolítico e o Neolítico ainda eram associa- das ao uso fundamental da natureza e das suas partes para o exercício da vida – das formas de reprodução e proteção do grupo. De outro modo, o químico Paul Crutzen e o biólogo Eugene Stoermer consideram que a influência antrópica no sistema terrestre se associa de fato, e de forma mais evidente, a partir da queima de combustíveis fósseis, da revolução industrial, notadamente a partir do século XVIII (CRUTZEN; STOERMER, 2000). É de fato desde esse período que o ser humano tem alterado de maneira direta a natureza de uma forma que nunca foi observada na história. A título de exemplificação, apesar de a ocupação humana na Terra ser de quase 2% – o que pode parecer um número muito baixo –, concentram-se nas cidades mais de 50% dos habitantes, algo que requer grande demanda de energia, consumo de solos, água e outros recursos naturais (PALACIO, 2013). A produção de alimentos, somada à intensa presença de bovi- nos em grandes áreas (pastagens), e o incremento de químicos para a produção agrícola e industrial por meio de elementos sintéticos (que denota um processo de decomposição natural lenta) geram in- segurança sobre a quantidade e qualidade da água doce potável no planeta. Além disso, há a extinção de determinadas espécies, proli- feração de pragas e doenças, saturação de gás carbônico e metano na atmosfera, a perda expressiva de manguezais nas áreas costeiras, bem como a redução da produção primária nos oceanos e águas sub- terrâneas (PALACIO, 2013). Todas essas alterações, no contexto do Antropoceno, têm sido cha- madas de pegada antrópica como forma de sintetizar a marca principal do desenvolvimento da humanidade. E o que isso quer dizer? Geogra- A leitura do texto “Do meio natural ao meio técnico-científico-in- formacional”, presente na obra A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, auxiliará no entendimento do estágio atual da produção da natureza concebida por uma interpretação eminentemente geo- gráfica. O Antropoceno pode ser enquadrado nessa leitura, uma vez que grande parte dos argumentos atendem à maneira como a natureza é produzida, apropriada e transformada. SANTOS, M. São Paulo: Hucitec, 1996. Leitura A superfície terrestre 79 ficamente, relaciona-se ao conjunto de alterações desenvolvidas pelos seres humanos no decorrer da história e que promovem a entropia e a resistasia 4 , observadas como destruição dos sistemas naturais, degradação ambiental, desflorestamento, exploração dos recursos etc. Em outras palavras, a concepção remete à interpretação de que o ser humano contemporâneo acelerou em qualidade, quantidade e in- tensidade sua influência no sistema terrestre, tornando todas as inter- venções irreversíveis. Esse estágio de desenvolvimento só foi possível no contexto do período técnico-científico-informacional, que tornou o espaço geográfico favorável à cientifização e à tecnificação da paisagem, transformando a natureza natural em artificial (SANTOS, 1996). Nessa perspectiva, o Antropoceno favorece uma condição material marcada pela relação conflituosa e contraditória entre natureza e so- ciedade, na qual as relações de tempo e espaçoformam outro processo inseparável das interpretações de sistemas naturais e sociais, mesmo com dinâmicas distintas (SUERTEGARAY; NUNES, 2001). As mudanças climáticas, por exemplo, consolidam uma das princi- pais evidências do Antropoceno e que também podem ser percebidas na observação dos solos. No SBCS esse tipo de solo tem sido chama- do de antropossolos 5 e se caracteriza pelo volume pedológico forma- do por pelo menos uma camada antrópica de 40 centímetros ou mais de espessura sobrejacente a qualquer horizonte pedogenético ou de rocha não intemperizada. Por isso, trata-se de um solo formado exclu- sivamente por intervenção humana, seja ele constituído por material orgânico e/ou inorgânico, em suas diferentes proporções (EMBRAPA, 2006). A Terra Preta de Índio é um bom exemplo, mas também são incluí- dos nesse tipo os solos urbanos, que mostram modificações estruturais ocorridas devido à ação humana, e pode ser visualizado em horizontes com entulhos de construções, resíduos sólidos, entre outros materiais que sejam diferentes daqueles naturalmente originados. Como você já deve ter percebido, Antropoceno, pegada antrópica e antropossolos fazem parte dos diversos aspectos que envolvem as re- lações entre sociedade e natureza ao longo da história, em especial da mais recente. Essa relação é pautada por diversos fatores, mas entre eles, sem dúvida destaca-se o questionamento sobre os modos de pro- Entropia: um dos conceitos físicos da termodinâmica newto- niana e refere-se à produção de energia residual que impede a realização do trabalho útil. Glossário Segundo Erhart (1962), a resistasia indica processos de ruptura do equilíbrio ecológico, observado por erosão, que tende a alterar o fluxo de matéria e energia, com sedimentos grossos e, consequentemente, a diminuição da produção da vida. Ao contrário, um sistema em biostasia refere-se à estabilidade dinâmica, ou seja, quando a erosão tende a ser fraca, com baixo transporte de sedimentos finos, o que promove a fixação orgânica e, em consequência, a saúde vegetal. 4 Os antropossolos correspon- dem aos também chamados tecnossolos, ou depósitos tecnogênicos, e são formados em decorrência da ação humana. Originam-se a partir de trans- formações nas características da superfície terrestre, por meio de remobilizações e incrementos de materiais manufaturados (SILVA; NUNES, 2014). 5 80 Fundamentos de Geografia Física dução e os modelos de desenvolvimento, sobretudo após a Revolução Industrial e o desenvolvimento urbano. De todo modo, o estudo sistemático dos impactos do Antropoceno se apresenta com muitos desafios teórico-metodológicos, mas valoriza significativamente o conhecimento geográfico como uma possibilidade adequada de análise. CONSIDERAÇÕES FINAIS A interação das forças internas do sistema terrestre gera muitos im- pactos na litosfera e, além disso, a compreensão de que qualquer modi- ficação na crosta terrestre remete ao conhecimento dos processos que geram os movimentos tectônicos. Sem dúvida, é esse o primeiro meca- nismo interno a ser considerado na explicação das formas da superfície terrestre e que organiza o princípio de uma análise geográfica baseada na história natural. Como a superfície terrestre deve ser entendida no escopo do sistema terrestre, isto é, como dinâmica e integrada, ela também está exposta e é aberta a todos os tipos de forças, internas e externas. Nesse sentido, o tectonismo não age sozinho, uma vez que ele atua principalmente na origem e na destruição da litosfera. De outro modo, a totalidade da trans- formação da superfície terrestre só pode ser explicada pela atuação dos processos que promovem mudanças na composição, na estrutura e na organização dos compartimentos geológicos. A formação do relevo e dos solos são dois exemplos desses processos. Nesse contexto, os sistemas naturais, junto à descrição de suas características e potenciais de uso, em diferentes escalas de análise, ofe- recem um diálogo interessante a respeito dos seus usos e atribuições, possibilitando uma visão ampla e integrada sobre as áreas mais propícias a desastres naturais, assim como sobre a exploração de recursos natu- rais, de proteção e preservação ambiental. Dessa forma, recentemente assumimos que as atividades humanas também devem ser incorporadas nas transformações os sistemas natu- rais, sobretudo a partir do aumento da velocidade dos processos de in- dustrialização e urbanização na degradação e na alteração ambiental. Os resultados desse processo podem ser observados na criação da natureza híbrida, na qual natural e social tornam-se um conjunto indissociável – a maneira como a produção do espaço acontece na contemporaneidade. A superfície terrestre 81 Por esses aspectos, devemos ter em mente que a história natural é uma parte da história social e nessa condição podemos oferecer uma leitura geográfica coerente da superfície terrestre, que, para além das noções clássicas e naturalistas, deve incorporar a importância de geógrafos/as para o desenvolvimento do conhecimento do território e da humanidade. ATIVIDADES Vamos colocar nossos conhecimentos em prática? Nestas atividades selecionamos alguns problemas que devem ajudá-lo a organizar sua análise geográfica. Recomendamos que utilize, além do capítulo, os textos indicados nas dicas de leitura, além de sites da internet ligados a instituições oficiais de pesquisa sobre geologia e geografia. Vamos lá? Aqui estão nossas dicas de sites: • IBGE Mapas: https://portaldemapas.ibge.gov.br/portal.php#homepage Nesse site você deve encontrar mais de 30 mil mapas elaborados pelo IBGE ou desenvolvidos em pareceria com outras instituições. • Painel Global: https://www.painelglobal.com.br/ Nesse portal você deve visualizar, em tempo real, grande parte dos fenômenos naturais (principalmente geológicos, climáticos e oceânicos) que ocorrem no mundo. • Anciente Earth Globe: https://dinosaurpictures.org/ancient-earth#600 Portal bem semelhante ao Google Earth, mas que possibilita que você navegue pelas eras geológicas da Terra. 1. Quais são os mecanismos e as relações que ocorrem entre a dinâmica da terra e a origem das grandes cadeias de montanhas, das dorsais oceânicas, dos vulcões e dos terremotos? 2. O supercontinente da Pangeia, bem como a origem dos continentes e oceanos contemporâneos, está relacionado com a Teoria da Deriva Continental. Descreva, com suas palavras, essa relação. 3. Os estudos e levantamentos pedológicos levam em consideração as características ambientais da área em estudo. Cite e comente os principais fatores para realização dessa análise. 4. Como podemos explicar a origem, a transformação e a destruição da litosfera com base na abordagem sistêmica? Utilize os processos de troca de matéria e energia. https://www.painelglobal.com.br/ https://dinosaurpictures.org/ancient-earth#600 82 Fundamentos de Geografia Física REFERÊNCIAS AB’SABER, A. N. Províncias geológicas e domínios morfoclimáticos no Brasil. Geomorfologia, São Paulo, Universidade de São Paulo, Instituto de Geografia, n. 20, p. 1-26, 1970. ALMEIDA, F. F. M. de et al. Províncias estruturais brasileiras. In: VIII SIMPÓSIO DE GEOLOGIA DO NORDESTE, 1977, Campina Grande. Atas.... Recife: Sociedade Brasileira de Geologia - SBG, Núcleo Nordeste, 1977. p. 363-391. CPRM – Serviço geológico do Brasil. RADAM-D. 2021. Disponível em: http://www.cprm.gov. br/publique/Geologia/Sensoriamento-Remoto-e-Geofisica/RADAM-D-628.html. Acesso em: 5 fev. 2021. CRUTZEN, P.; STOERMER, E. F. The ‘Anthropocene’. Global Change NewsLetter, International Geosphere–Biosphere Programme (IGBP), n. 41, p. 17-18, maio 2000. Disponível em: http:// www.igbp.net/download/18.316f18321323470177580001401/1376383088452/NL41.pdf. Acesso em: 5 fev. 2021. EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Sistema de classificação dos solos. 2. ed. Brasília: Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 2006. ERHART, H. 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Antes de começarmos, é importante relembrar que o sistema terrestre apresenta duas fontes principais de energia: uma interna, associada à origem e destruição da litosfera, e outra externa, da energia proveniente do Sol. Em linhas gerais, a energia solar alcança a Terra via atmosfera, sendo distribuída de modo variado e desigual pelo planeta, cum- prindo todas as suas funções biológicas, físicas e químicas; depois, volta ao espaço sideral, saindo do sistema terrestre. A radiação solar é a energia que dá origem a todas as transfor- mações da matéria no sistema terrestre, iniciando as modificações da crosta terrestre, pela interação promovida com os fluidos ar e água, e a formação do relevo, do solo, do clima, dos oceanos e cursos d’água, bem como da vida. Podemos dizer que, sem a radiação solar, o sistema terrestre estaria morto, seria escuro e quase imutável. Por esse caráter, destacaremos a importância da relação entre o Sol e a superfície terrestre, valorizando principalmente seu papel nos climas e na configuração das paisagens naturais da Terra. Mas vamos por partes. Não se esqueça de fazer sempre suas anotações, pois isso o ajudará a construir uma abordagem autôno- ma e crítica para agir articuladamente em sua atuação profissional futura. Vamos começar? Desejamos uma leitura proveitosa e enriquecedora! 84 Fundamentos de Geografia Física 4.1 Introdução à climatologia Vídeo A radiação solar, em seu movimento de entrada e saída do sistema terrestre, flui por diversos canais. Na superfície terrestre, ela é subme- tida à transformação em energia térmica, ou seja, em calor. Nesse pro- cesso, os fluidos ar e água são os principais responsáveis por distribuir a energia no planeta, ao mesmo tempo que interagem entre si e com todos os outros sistemas naturais (SILVA DIAS; SILVA, 2009). Nesse escopo, o salto no conhecimento foi significativo, principal- mente com a incorporação das teorias do movimento (gravidade e termodinâmica) nos sistemas naturais, associadas principalmente ao ambiente atmosférico. A atmosfera é formada pelo ar atmosférico, tradicionalmente definida como uma fina camada de ar que envolve a Terra (cerca de 0,25% do diâmetro da Terra), esta é consti- tuída por diferentes gases e material particulado e está agregada à superfície terrestre pela força da gravidade. Não existe um limite superior absoluto e fixo para a atmosfera, o que se verifica é uma progressiva rarefação do ar com a altitude e com maior concen- tração (cerca de 98% da sua massa total). Isso ocorre nos primeiros 29 km de altitude. Dentre as suas principais funções, podemos destacar o modo como a energia solar entra e sai do sistema terrestre, agindo na seleção de radiação solar necessária à manutenção da vida, à proteção de impactos meteóricos e corpos celestes, à manutenção e ao con- trole da temperatura e à concentração de todos os fenômenos metrológicos e climáticos da Terra, como chuvas, descargas elétricas etc. Vejamos o exemplo na Figura 1. Figura 1 Esquema representativo da importância e da função da atmosfera no sistema terrestre Fonte: Elaborada pelo autor. Sol Filtro para radiação solar nociva à vida Controle da temperatura da Terra Manifestação de todos os fenômenos meteorológicos Comunicação Transporte Proteção contra o impacto de meteoros (Continua) Para mais informações, leia o capítulo “Para entender Tempo e Clima”, do livro Tempo e clima no Brasil, de Silva Dias e Silva. Nele, são apresentados os principais conceitos da climatologia e abordados os mecanismos da circu- lação atmosférica. CAVALCANTI I. D. A.; FERREIRA N. J.; SILVA M. G. A. J. da; SILVA DIAS M. A. F. (orgs.). São Paulo: Oficina de Textos, 2009. Leitura A atmosfera e a hidrosfera da Terra 85 Além dessa importância, a atmosfera também oferece muitas possibilidades às ati- vidades humanas, como transporte e comunicação. Nesse último caso, é importante lembrar que a atmosfera difunde energia suficiente para o uso de instrumentos tec- nológicos, como o rádio, a televisão e a internet. Por meio da interação constante de troca de matéria entre o Sol e a superfície ter- restre, a atmosfera favorece a retroalimentação da energia para processos físicos, químicos e bióticos, como também a manutenção dos sistemas naturais (litosfera, criosfera, hidrosfera e biosfera), sociais e produtivos. Isso significa que, com o conhecimento das teorias do movimento, foi possível perceber que os fluxos de matéria e energia que passam pela atmosfera apresentam padrões ligeiramente alterados por pelo menos três grandes fatores: período do ano, período do dia e latitude. No primeiro caso, relacionado ao período do ano, devido à forma elíptica de sua trajetória no movimento de translação, o planeta tende a estar ora mais distante do Sol (quando atinge o afélio, no dia 4 de junho), ora mais próximo dele (quanto atinge o periélio, no dia 3 de janeiro). Isso pode ser observado na Figura 2. Figura 2 Os momentos afélio e periélio no movimento de translação Ie sd e Br as il S/ A Máximode energia Sol Mínimo de energia Afélio 4 de julho Periélio 4 de janeiro Além disso, a inclinação do eixo do planeta (aproximadamente de 23°26′) promove diferenciação da radiação solar em dois hemisférios, uma vez que na sazonalidade (momento dos solstícios) um deles rece- be mais energia do que outro. O ângulo de incidência dos raios solares afeta a quantidade de energia recebida. Sendo assim, quanto maior for a incidência perpendicular (90°) dos raios solares em um ponto do planeta, mais concentrada será a intensidade da radiação na área. Esse mecanismo também oscila entre os solstícios e equinócios. Podemos visualizar um exemplo disso na Figura 3a. Assista ao segundo epi- sódio do documentário Terra: O Poder do Planeta, que trata da atmosfera. Nele, você pode observar a importância desse ambiente, que mesmo sendo muito dinâmico é imprescindível para o sistema terrestre. Produção: Phil Dolling. Reino Unido: BBC, 2007. Disponível em: https://www. dailymotion.com/video/x1mwyup. Acesso em: 4 fev. 2021. Documentário 86 Fundamentos de Geografia Física Ra io s so la re s Tróp ico d e Câ nce r Trópico de Câncer Equ ador Equador Tróp ico d e Ca pricó rnio Trópico de Capricórnio Círcu lo Ár tico Círculo Ártico S N Círc ulo ártic o Círculo ártico Ra io s so la re s Ra io s so la re s Solstício de Junho (a) Solstício de Dezembro (c) Equinócios (b) Polo Norte S 23½º Círculo ártico Trópico de Câncer Equador Trópico de Capricórnio Círculo Ártico Equador Trópico de Câncer Tr óp ico de Câncer Tró pic o de C ân ce r Eq ua do r Cír culo Ártico Círculo Ártico W ik im ed ia c om m on s Figura 3a Representação dos raios solares Figura 3b Momentos de solstícios e equinócio Com isso, a radiação solar é determinada também pela latitude dos lugares, sendo inversamente proporcional à energia solar disponível, ou seja, ela aumenta à medida que a latitude diminui. Em síntese, a disponibilidade de energia é maior no Equador e menor nos polos e faz com que nas baixas latitudes haja um superavit radiativo (máximo de incidência solar), enquanto nos polos ocorre deficit radiativo (mínimo de incidência solar). Essa dinâmica, então, deve ser movimentada, para garantir equilí- brio energético entre trópicos e polos. O processo acontece inicialmen- te pelas intensas trocas de matéria e energia entre os fluidos ar e água, ou seja, o aquecimento do ar na zona tropical conduz ao aumento de energia cinética das moléculas de ar, que tendem a se distanciar, oca- sionando expansão da atmosfera e configurando-a em uma área de baixa pressão atmosférica 1 . O contrário acontece quando o ar se res- fria, pois, ao se tornar mais denso, configura-se em uma área de alta pressão atmosférica. Trata-se do peso vertical da colu- na de ar sobre a área, medida em milibares ou em hectopascal. Além da termodinâmica, a pres- são é também relativa à força da gravidade, por isso, em lugares de baixas altitudes, ela tende a ser maior do que em lugares com altitudes mais altas. 1 A atmosfera e a hidrosfera da Terra 87 A esse movimento é dado o nome convecção, algo bem semelhante ao observado no interior da Terra, por meio das correntes convectivas, não é mesmo? A diferença é que na atmosfera o movimento é mais rápi- do, podendo acontecer em fração de segundos. Além disso, a convecção ocorre também em conjunto com o movimento de advecção (sentido horizontal da troca de calor) – o vento, quando o ar é movimentado das áreas de alta pressão para as de baixa pressão atmosférica. Podemos observar o resultado desses movimentos (convecção e advecção) quando os tipos de tempo são acompanhados por instabi- lidades atmosféricas das baixas pressões, ou seja, a formação de nu- vens, a ocorrência de ventos fortes, chuvas e tempestades. As áreas de alta pressão, ao contrário, promovem tipos de tempos estáveis, firmes, com poucas nuvens, ou seja, dias ensolarados. Todos esses eventos contemplados, em síntese, são resultado do processo de distribuição da energia térmica do planeta na interação dos fluidos ar e água. O mecanismo físico, no entanto, é muito simples, ocorre quando a água é submetida às mudanças em seu estado físico (líquido-vapor-sólido). Na mudança de fase da água, muita energia é liberada (cerca de 600 cal/g) e, portanto, utilizada para movimentação interna no sistema (MENDONÇA; DANNI-OLIVEIRA, 2007). A complexidade, todavia, é observada no fato de que globalmente os ventos definem a circulação atmosférica, e os movimentos da água definem as correntes oceânicas nos oceanos e mares. Vamos iniciar essa análise considerando a movimentação do ar por meio da chama- da circulação geral da atmosfera, um mecanismo global que representa a distribuição do calor e água pelo planeta. Os movimentos são organizados por dois fatores principais, sendo um termodinâmico – derivado da diferença de temperatura entre os polos e trópicos – e o outro mecânico – associado ao movimento de rotação que organiza o efeito de Coriolis. O efeito de Coriolis é designado como a força aparente (pseudo- força) originada pelo movimento da rotação que age na trajetória do vento, quando sai de uma área de alta pressão para outra de baixa pressão, dos polos e do Equador, por exemplo. Isso significa que, se não houvesse rotação, o efeito seria inexistente, conforme a Figura 4. 88 Fundamentos de Geografia Física Figura 4 Trajetória do vento sem rotação: Efeito Coriolis inexistente Ie sd e Br as il S/ A Mas a deflexão é real e altera a trajetória do vento no sentido horá- rio (desvio para direita) no Hemisfério Norte e anti-horário (desvio para a esquerda) no Hemisfério Sul, como podemos ver na Figura 5. Figura 5 Trajetória do vento com rotação: Efeito Coriolis ausente Ie sd e Br as il S/ A O modelo tricelular – formado pela Célula de Hadley, Ferrel e Polar – é o que apresenta mais coerentemente essa movimentação (Figura 6). Ob- serve que a Célula de Hadley é a principal circulação atmosférica na zona tropical. Ela é basicamente configurada em um movimento circular que transporta calor das áreas equatoriais para as latitudes médias e vice-ver- sa. Detalhadamente, trata-se de uma circulação que mostra ascendência do ar próximo da linha imaginária do Equador (em torno de 0º latitude), formando uma zona de baixa pressão atmosférica: a Zona de Convergên- cia Intertropical (ZCIT), que é organizada por meio do confronto dos ventos oriundos dos Hemisférios Sul e Norte, chamados ventos alísios. Para facilitar o entendi- mento do efeito Coriolis, assista ao vídeo Coriolis Effect, publicado pelo canal TSG Physics. Nele, você pode acompanhar um experimento realiza- do para entender como o efeito ocorre. Disponível em: https://youtu.be/ dt_XJp77-mk. Acesso em: 4 fev. 2021. Vídeo https://youtu.be/dt_XJp77-mk https://youtu.be/dt_XJp77-mk A atmosfera e a hidrosfera da Terra 89 Figura 6 Modelo tricelular da circulação geral da atmosfera e sua relação com as paisagens Fonte: Elaborada pelo autor. Polar Polo Sul Ventos glaciais e polares Zona de frentes Zona de frentes Altas subtropicais Altas subtropicais Zona de Convergência Intertropical Florestas subtropicais e temperadas Florestas subtropicais e temperadas Anticiclones oceânicos Anticiclones oceânicos Florestas equatoriais Desertos Desertos 60º Sul 30º Sul 30º Norte 60º Norte Polo NorteEquador Polar Ferrel Ferrel Hadley Hadley Ventos glaciais e polares Estabilidades atmosféricas Instabilidades atmosféricas A circulação de Hadley também ajuda a compreender grande parte da distribuição das florestas tropicais e equatoriais do planeta, bem setorizadas na América do Sul, na Áfri- ca Central, no Sudeste Asiático e na Oceania, nas proximidades da Linha do Equador (Figura 7). Observe que essas florestas são domínios vegetacionais muito perenes e demandam uma importante e constante disponibilidade hídrica e energética para quesejam de- senvolvidos seus processos biofísicos e fisiológicos. Figura 7 Distribuição espacial das florestas tropicais e equatoriais do planeta Oe ne is /W ik im ed ia C om m on s 90 Fundamentos de Geografia Física Por volta de 20º a 30º de latitude norte e sul, a Célula de Hadley se caracteriza como uma zona de subsidência, isto é, grandes zonas de alta pressão atmosférica, em que predominam a descida do ar, o que, por sua vez, inibe a formação de nuvens e precipitação. Essas áreas definem a formação dos principais anticiclones da Terra; o resultado é a formação dos domínios climáticos áridos e semiáridos das latitudes médias, representada pelos desertos do Atacama, na América do Sul, do Kalahari, na África Austral, do Outback, na Austrália, do Saara, no norte da África, e do Colorado, nos Estados Unidos. Na Figura 8, con- seguimos observar que grande parte desses domínios naturais estão localizados no cinturão das altas pressões da latitude de 20 a 30 graus. Figura 8 Distribuição espacial dos principais desertos e das áreas sujeitas à desertificação no planeta Áreas semiáridas Deserto Áreas sujeitas à desertificação W ik im ed ia C om m on s Quando a subsidência ocorre sobre o oceano, os anticiclones rece- bem uma grande quantidade de umidade e participam da distribuição da água e do calor, contribuindo para a constituição de climas e sis- temas atmosféricos termodinamicamente quentes e úmidos. Por essa natureza, os anticiclones são muito importantes na dinâmica da sazo- nalidade tropical. Veremos mais detalhes sobre esses movimentos na próxima seção. A segunda célula de circulação do modelo tricelular é denominada Célula de Ferrel, que abrange o movimento de transporte do ramo de ar quente em subsidência na faixa de 30º de latitude e que, pelo efeito Coriolis, sofre ascendência a 60º de latitude, devido também ao encon- anticiclones: são sistemas atmosféricos associados às zonas de alta pressão atmosférica, cujo predomínio são movimentos de subsidência ou de descida do ar. Nesse caso, esses sistemas inibem a formação de nuvens e de instabilidades. Glossário O vídeo Células de circula- ção geral da Atmosfera, pu- blicado pelo canal Ranyere Nobrega, apresenta uma animação bem didática sobre a dinâmica dos ventos segundo o modelo tricelular. Assista e observe os movimentos circulares que servem como o meca- nismo de distribuição do calor no planeta. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=Y07hA3i_ f4E. Acesso em: 4 fev. 2021. Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=Y07hA3i_f4E https://www.youtube.com/watch?v=Y07hA3i_f4E https://www.youtube.com/watch?v=Y07hA3i_f4E A atmosfera e a hidrosfera da Terra 91 tro com sistemas atmosféricos tropicais e extratropicais (oriundos dos polos); isso é chamado de zona de frentes 2 . Por fim, o outro ramo de Ferrel volta a retroalimentar a subsidência nas latitudes 30º, fechando a circulação. A circulação de Ferrel ajuda a entender uma parte da dis- tribuição das paisagens subtropicais e temperadas, sobretudo no que tange aos domínios das tundras, taigas e coníferas, por exemplo. A terceira seção do modelo tricelular é a Célula Polar, que apresenta a mesma direção do movimento da Célula de Hadley, mas acontece nas latitudes altas ou subpolares. É marcada por movimentos ascendentes a 60º de latitude, no confronto com a zona de frentes no limite com a Célu- la de Ferrel e subsidentes nas proximidades, na faixa dos 90º de latitude. A circulação é caracterizada por anticiclones com ar frio ou glacial, devido à baixa insolação e ao intenso resfriamento do ar atmosférico. Além do modelo tricelular, a dinâmica atmosférica acontece de ma- neira acoplada à circulação oceânica. Aprofundaremos esse debate por meio das contribuições da oceanografia. A Zona de Frentes é um sistema atmosférico oriundo do encontro de massas de ar termodinamicamente diferentes, o que provoca insta- bilidades, com a ocorrência de chuvas, tempestades e redução da temperatura. 2 4.2 Fundamentos de oceanografia Vídeo A necessidade de organização sistemática das marés, das ondas, no escopo da dinâmica marinha, é atualmente chamada oceanografia, ou seja, é o campo científico orientado para o estudo do oceano. O conjunto de instrumentos tecnológicos para a obtenção de dados, o reconhecimento de grandes áreas geográficas, as modernas embarca- ções e, sobretudo, a cooperação internacional no âmbito da integração oceânica permitiram a compreensão da circulação oceânica. Os estudiosos da área consideram que os oceanos tenham por vol- ta de 4.000 m de profundidade, sendo que os primeiros 10 m possuem massa equivalente à da atmosfera, e os três primeiros metros, uma capacidade calorífica igual a ela toda. Esses fatores, somados à área abrangida (cerca de 71% da Terra), fazem dos oceanos o reservatório de calor e a memória principal do sistema climático (CAMPOS, 2014). A ideia da circulação oceânica, por outro lado, sugere que o oceano é um só, não somente por cobrir grande parte da superfície da Terra, mas principalmente por reforçar a noção de que o sistema terrestre é um todo integrado, articulado e conectado. De fato, por razões prá- ticas, sociais e econômicas, existe a presença de limites continentais, 92 Fundamentos de Geografia Física características e linhas geográficas (o Equador, por exemplo) como atri- butos formais para distingui-los. Inicialmente, a dinâmica oceânica foi interpretada por Vagn Walfrid Ekman (1874–1954). O oceanógrafo desenvolveu, em 1902, a Teoria da Espiral Oceânica ou Espiral de Ekman. Segundo essa teoria, a direção do vento e das correntes oceânicas pode ser explicada com uma analo- gia a um fluido dentro de um ambiente em rotação. Ekman ofereceu uma proposta de classificação da circulação oceâ- nica associada ao movimento dos ventos (derivada da circulação geral da atmosfera) e à termoalina (derivada das diferenças de densidade das águas dos oceanos e suas variações de temperatura e salinidade). Para ele, o oceano apresenta uma circulação em suas camadas su- periores, partindo da superfície e atingindo profundidades maiores que 100 m, sendo fundamentalmente gerada pela força dos ventos. Em síntese, o movimento é resultado de arrasto derivado da colisão (atrito) entre as moléculas de ar e água. Os gradientes horizontais em profundidade são submetidos ao alívio de pressão, operado pela ação do efeito Coriolis, que influencia a transferência das colunas d’água in- feriores para as superiores. Desse modo, a corrente da camada superficial tem sentido para a es- querda em relação à direção do vento no Hemisfério Sul, com as cama- das inferiores seguindo esse mesmo padrão de desvio para a esquerda em relação à camada superior, o que provoca uma movimentação espi- ralada em profundidade, também chamada Espiral de Ekman (Figura 9). Figura 9 Representação esquemática da Espiral de Ekman no Hemisfério Sul A deflexão de Coriolis faz com que a corrente superficial flua a um ângulo de 45° para esquerda da direção do vento em função do Hemisfério Sul. À medida que a corrente se torna mais profunda, é também mais defletida em relação à camada de cima, originando uma corrente verticalmente espiralada em profundidade. Fonte: Adaptada de Rodrigues, 2015, p. 180. Vento Profundidade 45º Direção do transporte Ekman Este capítulo trata dos sistemas naturais mais di- nâmicos do planeta, absor- vendo uma das principais preocupações contempo- râneas: qualidade de vida na Terra. Nesse sentido, ações de gerenciamento sustentável da água, sobretudo, do período entre 2021 e 2030 são destacadas. Esse período foi escolhido por diversos países, em conjunto com a Unesco, como a “Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Susten- tável”. Para saber mais sobre esse debate, assista ao vídeo Década ciência no mar, publicado pelo canal Programa de Políticas Públicas IO USP. Disponível em: https://youtu.be/ AKR8rNzybd0. Acesso em:4 fev. 2021. Vídeo Vagn Walfrid Ekman é co- nhecido pelas explicações sobre a dinâmica mari- nha. Até hoje, seu estudo é usado para explicar os eventos biológicos nos sistemas de ressurgência. Para saber mais, leia o capítulo “As ciências do mar”, do livro Introdução às ciências do mar, de Castello e Krug. CASTELLO, J. P.; KRUG, L. C. Pelotas: Editora Textos, 2015. Leitura https://youtu.be/AKR8rNzybd0 https://youtu.be/AKR8rNzybd0 A atmosfera e a hidrosfera da Terra 93 As correntes horizontais, geradas pelos ventos na superfície da camada de Ekman, favorecem os movimentos verticais, ou seja, a as- censão (baixo para cima) das águas interiores ou ressurgência e subsi- dência, quando o movimento é de cima para baixo. Globalmente, essas correntes apresentam em sua origem caracte- rísticas térmicas diferentes; suas trajetórias são submetidas a mudan- ças e por isso elas podem provocar manifestações e impactos distintos, apesar de participarem de uma mesma circulação. Considere essas re- lações presentes na Figura 10, que representa a direção habitual das correntes oceânicas quentes e frias e a sua relação com a diferenciação climática no planeta. Figura 10 Direção habitual das correntes oceânicas e sua influência climática Ie sd e Br as il S/ A A movimentação, assim, é fisicamente acoplada à circulação ge- ral da atmosfera, ou seja, no Hemisfério Sul as correntes apresentam movimento defletido para a esquerda e, no Hemisfério Norte, para a direita. Nesse sentido, observe que a formação de climas mais secos está relacionada, também, à ocorrência de águas das correntes frias, uma vez que elas diminuem os processos de evaporação e reforçam o ressecamento atmosférico. Grande parte dessas correntes frias está 94 Fundamentos de Geografia Física situada nos setores costeiros, do lado oeste e leste dos continentes no Hemisfério Sul e Norte, respectivamente. Por outro lado, as correntes frias também são responsáveis por tra- zer muitos nutrientes das camadas inferiores do oceano para as cama- das superiores. Desse modo, elas possibilitam a reciclagem da cadeia alimentar. Portanto, há a coincidência de que, nas áreas onde o fenô- meno acontece, a produtividade pesqueira é bastante significativa. São exemplos disso o Japão e o Chile. De outro modo, correntes quentes tendem a umidificar os setores costeiros dos setores leste dos continentes no Hemisfério Sul, bem como amenizar climas secos e frios dos continentes situados no Hemis- fério Norte. Nesse caso, grande parte da demanda hídrica das florestas tropicais, como a Mata Atlântica do Brasil e as florestas tropicais do leste da Austrália, é mantida graças ao fornecimento de umidade ad- vindo dessas movimentações. A prática turística de veraneio no litoral dos países, principalmente do mundo tropical, pode ser um resultado dessa condição natural. O outro tipo de circulação oceânica, a termoalina, também chamada de correia transportadora de calor, mostra que grandes quantidades de água oceânica podem se resfriar, liberando calor e tornando-se densas ao ponto de se movimentarem nas profundezas (Figura 11). Figura 11 Circulação termoalina global IE SD E Br as il S/ A A atmosfera e a hidrosfera da Terra 95 A circulação é fundamentalmente movimentada pelo gradiente tér- mico (que promove o transporte de calor das baixas latitudes e para as altas latitudes e polos) e pelo gradiente salino, cuja forte influência nos processos de evaporação nas baixas latitudes introduz a água doce nas altas latitudes. É importante levar em consideração que águas menos salinas congelam antes de ficarem densas e afundar. Esse caráter au- xilia na diminuição do transporte de calor dos trópicos para os polos. O mecanismo acontece desde o Atlântico Norte e flui em camadas profundas para o Atlântico Sul. Na sequência, as correntes saem do Oceano Atlântico e espalham-se pelo Círculo Polar Antártico, derivando em profundezas pelos oceanos Índico e Pacífico, quando são paulati- namente aquecidas em contato com a atmosfera. Especialmente no Oceano Pacífico, elas sofrem ressurgência e são aquecidas em contato com a atmosfera; depois fluem para Oceano Atlântico Sul, entrando através da Passagem de Drake e integrando as correntes das Malvinas e Circumpolar Antártica, quando retornam, pela superfície, ao Atlântico Norte, fechando a circulação. A velocidade com que essa circulação global se move é bastante associada à dinâmica climática observada no setor norte do Oceano Atlântico Norte. Nesse caso, processos que causam o derretimento de grandes quantidades de gelo no Ártico podem causar diminuição da salinidade, o que dificultaria a formação das correntes profundas do Atlântico Norte devido ao congelamento. Nesse sentido, a complexidade do movimento se dá em função da diminuição da temperatura do ar (que deve ser suficiente para con- gelar a água do mar), que, em consequência, diminui a salinidade da água, tornando o remanescente da água oceânica líquida mais salgado. Aprofundaremos um pouco mais a respeito da dinâmica da água con- gelada no decorrer de nossos estudos. 4.3 Elementos da criosfera Vídeo O termo criosfera, originado do grego, kryos, que significa frio ou gelado, e sphaira, que em português compreendemos como esfera, é utilizado para denominar o conjunto de todos os elementos do sistema terrestre que contêm água no estado sólido. Este, por sua vez, abarca gelo marinho, gelo fluvial e lacustre, precipitação sólida e cobertura de 96 Fundamentos de Geografia Física neve, geleiras, calotas polares, permafrost 3 , solo congelado (associado ao congelamento sazonal) e principalmente os dois ambientes de gelo do planeta: Antártica e Groenlândia. O estudo sistemático da criosfera integra as pesquisas envolvendo a formação de calotas e geleiras, o que inclui os processos climáticos, meteorológicos e geomorfológicos no escopo da glaciologia. Esse cam- po é bastante interdisciplinar, sendo desenvolvido por abordagem de ciências como física, química, geologia, biologia, geografia, climatologia, meteorologia, matemática etc. As primeiras investigações foram desenvolvidas pelo geólogo Ernst Sorge (1899–1946), parceiro de pesquisa de Alfred Wegener, formula- dor da Teoria da Deriva Continental. Sorge mostrou a possibilidade de distinguir variações anuais na densidade das neves dos verões e inver- nos do gelo antigo, aprisionado nos campos que recobrem o centro da Groenlândia. A partir de então, o gelo poderia ser um arquivo fiel da história atmosférica, caso seu conteúdo fosse decifrado (COX, 2005). As questões iniciais associavam a importância do gelo ao contexto do debate da história natural e às variações e mudanças da superfí- cie terrestre. O princípio uniformitarista e a formulação dos Ciclos de Milankovitch (Figura 12) foram fundamentais para elaborar as primei- ras teorias sobre a origem e a formação dos ambientes glaciais e suas relações com o sistema terrestre. Nesse sentido, a reconstituição das mudanças climáticas pretéritas, que mostravam alternância de períodos glaciais, com climas mais frios e secos, e interglaciais, com climas mais quentes e úmidos, originaram sedimentos específicos, que poderiam ser observados nas rochas, mas também poderiam ser extraídos da composição físico-química de nú- cleos de gelo. Os registros de gelo, por exemplo, podem apresentar a composição química da atmosfera e as condições ambientais, com valores de refe- rência que podem chegar a 800 mil anos, suficientes para interpretar variações climáticas recentes e o impacto das atividades humanas. Há 18.000 anos AP, época da origem do Homo Sapiens, foi possível constatar, por exemplo, que a cobertura de gelo atingiu 30% da superfície terrestre. 3 Conglomerado de solo perma- nentemente congelado, por isso, recorrente nos setores árticos. A atmosfera e a hidrosfera da Terra 97 Os Ciclos de Milankovitch, também chamados de orbitais, foram inicialmente formula- dos pelo astrofísicoMilutin Milankovitch (1879-1958). Eles mostram como as influên- cias astronômicas são fatores explicativos das mudanças climáticas pretéritas, uma vez que periodicamente o balanço de energia da Terra é alterado e, com isso, modificações na entrada e saída da radiação solar impactam a dinâmica do planeta. Excentricidade Período 100.000 anos Período 41.000 anos Período 26.000 anos Plano de órbita Máximo 24,5º 23,5º 23,5º22,5º Hoje Mínimo Inclinação axial Precessão Vega (13.000 anos) Estrela do norte Figura 12 Representação dos ciclos de Milankovitch A teoria de Milankovitch é composta por três ciclos. São eles: 1. Excentricidade da órbita terrestre: alterações no formato da órbita da Terra em torno do Sol, que pode ser elíptica ou circular – periodicidade de 100 mil anos. 2. Obliquidade da eclíptica: alterações na inclinação do eixo da Terra, que va- riam entre 22 e 24,5° em relação ao plano da órbita – periodicidade de 41 mil anos. 3. Precessão dos equinócios: devido à atração gravitacional dos astros no Sis- tema Solar, o eixo de rotação da Terra (180° nos equinócios e solstícios) se torna perpendicular à eclíptica – periodicidade em torno de 22 mil anos. Cada ciclo apresenta uma periodicidade específica e, junto com outros fatores internos e externos, como os ciclos de manchas solares, microfísica das nuvens, aerossóis na atmosfera, concentração de gases do efeito estufa e refletividade das lâminas de gelo, auxiliam na explicação da configuração paleoclimática da Terra. Ap he lle on /S hu tte rs to ck ro be rt_ s/ Sh ut te rs to ck 98 Fundamentos de Geografia Física O geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber explica esses processos pela Teoria dos Refúgios. Segundo o teórico, nos períodos glaciais a América do Sul foi submetida à redução das florestas tropicais e equatoriais por causa da predominância de climas mais secos e frios, devido à configuração mais predominante das correntes frias de Falkland e do Peru, que favo- receram o domínio de sistemas atmosféricos polares (Figura 13). TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO TRÓPICO DE CÂNCER TRÓPICO DE CÂNCER EQUADOR OCEANO PACÍFICO OCEANO ATLÂNTICO EQUADOR TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO TRÓPICO DE CÂNCER TRÓPICO DE CÂNCER EQUADOR OCEANO PACÍFICO OCEANO ATLÂNTICO EQUADOR PE RU EQUATORIAL GUIANA FA LK LA N D BR AS IL EQUATORIAL QUENTE - ÚMIDO SEMIÁRIDO TROPICAL ÚMIDO E SECO SUBTROPICAL ÚMIDO C O R D I L H E IR A D O S PER U EQUATORIAL GUIANA CAN ÁRIA S FA LK LA N D N EB LI N A BR ASIL DE SÉ RT IC O SEMIÁRIDO SEMIÁRIDO PARA-ÁRIDO SEMIÁRIDO Rio Lago Área urbana Calota de gelo 0 1000 Km 6.800 0 Quente Fresca Fria (Corrente) (Vento)(Altitude em metros) Julho Janeiro Ie sd e Br as il S/ A Figura 13 Alternâncias dos períodos interglaciais e glaciais e suas manifestações na dinâmica climática e vegetacional na América do Sul Fonte: Adaptada de Viadana, 2000 apud SILVA, 2011. Essa dinâmica proporcionou a paulatina redução hídrica derivada da precipitação sólida (neve), auxiliando na formação de calotas po- lares e no domínio de climas semiáridos e áridos, como produto da expansão de desertos, somada à extinção de espécies e redução do nível dos mares. De outro modo, nos interglaciais a corrente de Falkland é restrita ao sul do continente sul-americano, o que favorece o domínio de sistemas atmosféricos úmidos derivados da corrente do Brasil, que é quente. Além da umidificação do continente, por meio do predomínio da preci- pitação líquida, é possível observar a expansão das florestas tropicais e equatoriais e a redução dos climas semiáridos e áridos, bem como o A atmosfera e a hidrosfera da Terra 99 aumento do nível dos mares. A fase interglacial apresenta uma dinâmi- ca muito semelhante ao estágio atual. Assim, o estudo por meio da glaciologia tem oferecido contribuições especialmente para o debate das mudanças climáticas, principalmen- te porque a criosfera é um ambiente de interface entre atmosfera e hidrosfera, mas que promove interações importantes nos outros sis- temas naturais. A importância da criosfera na dinâmica do sistema terrestre pode ser destacada, considerando seu papel no balanço de energia global, ao influenciar na energia que entra e sai do planeta, e nas condições hidrológicas, quando age na transferência e transformação do calor pe- las interações da umidade, da formação de nuvens, da precipitação e do fluxo de gases e partículas (Figura 14). Figura 14 Componentes da criosfera e suas escalas de formação Fonte: Adaptado de Stachelsk; Souza; Casagrande, 2019, p. 6. Observe que os parâmetros de medida temporal e métricos são relevantes para indicar a consistência da análise por meio da glaciologia. Hora Dia Meses Anos Séculos Milênios Calota polar Plataforma de gelo Solos congelados Geleira e topos de gelo 3.000 km 20 0 m 2 m 2 km 1 m 100 m Calota polar Plataforma de gelo 1 km 3 km Gelo marinho Gelo marinho Geleiras Gelos de rios e lagos Neve Neve Neve Oceano 1.000 km 1.000 km Solos congelados Atmosfera Continentes 1.000 km Margem calotas polares A Figura 15 representa uma parte dessa interação, já que a criosfera é distribuída por praticamente todos os continentes e seus processos de formação podem variar, ocorrendo desde fenômenos muito rápi- 100 Fundamentos de Geografia Física dos, como uma tempestade de neve, até a sedimentação lenta e cons- tante, como no caso dos solos congelados e das calotas polares. Nesse sentido, vale destacar ainda que o gelo é um dos principais elementos responsáveis por controlar a circulação oceânica. Qualquer modificação na massa da criosfera, seja pelo derretimento das geleiras e calotas polares, por exemplo, deve incluir implicações importantes para o mundo, principalmente em termos de aumento do nível do mar, diminuição da disponibilidade hídrica nas zonas áridas e, consequente- mente, intensificação de mudanças climáticas. Para além da importância ecológica, a criosfera também é muito re- levante para as práticas humanas. Do passado até hoje, as geleiras têm possibilitado a prática de agricultura em áreas naturalmente áridas, por exemplo. Para grande parte dos países situados nas cordilheiras dos Andes e do Himalaia, onde as geleiras desempenham um papel significativo no controle hidrológico, elas também participam dos sis- temas socioeconômicos, sendo as principais fontes hídricas (abasteci- mento) e de energia. Durante o século XX, no entanto, as geleiras perderam parcialmente suas massas. Mesmo integrando apenas 1% do volume da criosfera, contribuíram em 25% para o aumento do nível médio dos mares entre 1988 e 1998 (DYURGEROV; MEIER, 2005). Diante disso, sabemos que no mundo todo mais de 3 bilhões de pessoas dependem direta ou indiretamente da água que flui das mon- tanhas para sobreviver; muitas vezes sua importância vai além da área onde se localizam (MARENGO, 2008). Para compreender mais sobre es- ses aspectos, trataremos das contribuições da hidrografia. 4.4 Fundamentos de hidrografia Vídeo Como você já deve ter percebido, quanto à história natural, a Terra tem 4,5 bilhões de anos, e a vida, existente há cerca de 3,8 bilhões, surgiu junto com os primeiros sinais de água. De lá para cá, a nossa atmosfera atual se formou há pouco menos de 400 milhões de anos, e nós, seres humanos, estamos por aqui há pouco mais de 300 mil anos e, como civi- lização, há pelo menos 10 mil anos. Em todo esse tempo, a quantidade de água no planeta se manteve praticamente invariável; na verdade, suas mudanças são apenas ob- A atmosfera e a hidrosfera da Terra 101 servadas no estado físico, que obedece desde as variações sazonais dentro do ano até as mudanças promovidas pelas glaciações e inter- glaciações. A maior preocupação está na variabilidade espacial, já que sua distribuição atende à localização das fontes hídricas, sendo um dos interesses do campo dahidrografia. Podemos encaminhar o debate por meio da hidrografia, assumindo a importância de mais um ciclo do sistema terrestre – o da água –, que de modo muito elementar representa a movimentação alternada da po- sição de seu estado físico, na renovação de seus processos de transfor- mação e na configuração dos climas, bem como dos demais domínios naturais do planeta. Vejamos esses processos no esquema da Figura 15. chuva degelo escoamento transpiração água subterrânea água subterrânea nível da água subterrânea lago evaporação rio raios solares evaporação oceano evaporação infiltração neve Figura 15 O ciclo hidrológico Ie sd e Br as il S/ A Resumidamente, assumimos que a movimentação da água atende aos atributos do sistema terrestre. O que isso quer dizer? Por se tra- tar de um ciclo, um sistema fechado, precisamos identificar a principal fonte de energia, e seus processos de transformação são derivados de pelo menos duas forças: a termodinâmica e a gravidade. Assim, o Sol, sendo a principal fonte de energia do ciclo, interage com a atmosfera, a hidrosfera e a litosfera e tende a organizar a movi- mentação inicial do ciclo, que pode ser processado pela termodinâmi- ca enquanto evaporação. Esta, que é a passagem da água em estado líquido para o gasoso, ocorre em todos os ambientes cuja existência de água se faz presente e pela transpiração da biomassa – conjunto 102 Fundamentos de Geografia Física da fauna (inclusive seres humanos) e da flora – melhor denominado evapotranspiração. A água líquida é transformada em vapor d’água e, com a diminuição de temperatura e da pressão, é submetida ao processo seguinte: con- densação. Nesse estágio, o ambiente é resfriado, quando o ar atinge o limite da saturação (diminuição da capacidade do ar em reter vapor), e forma uma nuvem. Também podemos ver essa manifestação em gotas de água que ficam no exterior de um copo com água gelada e nas gotas de orvalho em ambiente exposto. A água condensada, na nuvem ou no ambiente, por sua vez, fica condicionada agora à gravidade; dependendo de seus níveis de sus- pensão e de suas dimensões (peso e massa), pode retornar à superfície dando origem à precipitação, que acontece em forma líquida (chuva) ou sólida (neve, granizo etc.). De todo modo, sua interceptação é muito significativa, pois uma parte da precipitação pode ser evaporada antes de atingir a superfície ou ser retida pelas copas da vegetação, dando continuidade ao ciclo entre superfície e atmosfera. A outra parte, que atinge o solo e retorna à superfície é submetida à infiltração. Nesse processo, a água pode ser movimentada, seja por percolação (quando passa por entre os grãos do solo e contribui para as águas subterrâneas e lençóis freáticos), seja por escoamento superficial (quando a infiltração da água excede a ca- pacidade de saturação do solo). Desse movimento, o comando principal é da gravidade, que deve orientar o transporte da água para os setores mais baixos do terreno, fluindo e estruturando por erosão cursos d’água, córregos, rios, lagos e oceanos. No trajeto, processos de evaporação e infiltração continuam a manter o ciclo em movimentação contínua. Como um rio nasce? Habitualmente, o rio nasce com o escoamento superficial da chuva ou do degelo; mas para que ele seja perene, independentemente da sazonalidade, a água precisa ficar armazenada no interior da estrutura geológica. Há diversas possibilidades para entender como o rio nasce, por meio do conhecimento geológico da área. No esquema, apresentamos duas. Observe. (Continua) A atmosfera e a hidrosfera da Terra 103 Figura 16 Esquema representativo do nascimento de um rio No primeiro caso, ocorre por meio da precipitação e da posterior infiltração da água no solo, com a existência de uma rocha permeável (uma rocha sedimentar, por exemplo) que, por ser porosa, serve como esponja para armazenar água durante muito tempo. Em geral, essas rochas são chamadas aquíferos, sendo importantes mananciais de águas subterrâneas. O rio deve nascer dessas rochas com a saturação, sendo trans- portado, por gravidade, com a declividade do terreno, até ser exposto como nascente ou olho-d’água. A segunda possibilidade ocorre com a existência de uma rocha impermeável, cristalina (ígnea ou metamórfica). Como a infiltração da água no solo é impossibilitada, resta que sua movimentação seja condicionada pela gravidade até sair e ser exposta à su- perfície, surgindo como nascente ou olho-d’agua. Exutório ou foz Ies de Br as il S /A Obviamente, todos os movimentos do ciclo serão alterados, inten- sificados, ampliados, reduzidos e até mesmo neutralizados por fatores associados às outras ciclicidades dos sistemas naturais, como também das atividades humanas, por meio dos usos (urbano, industrial, agrí- cola), da utilização (lazer, higiene, abastecimento etc.), da finalidade (produção de alimentos, energia, transporte etc.), da contaminação, da qualidade e da apropriação da água. Com o desmatamento, por exemplo, a impermeabilização do solo e a alteração da cobertura da terra mudam a maneira como a água se mo- vimenta no ciclo de determinada área. O sistema, então, deve responder com decréscimo hídrico, em determinados setores, enquanto em outros haverá acréscimo. Esse desequilíbrio pode gerar descompasso na distri- buição espacial e temporal das precipitações e pode desenvolver even- tos perigosos como secas, chuvas intensas, alagamentos etc. 104 Fundamentos de Geografia Física situação normal enchente inundação alagamento As inundações são processos hidrológicos de origem natural, explicados pela dinâmica das bacias hidrográficas. Atualmente, entretanto, no contexto de uma sociedade alta- mente urbanizada, é comum observar eventos catastróficos relacionados à dinâmica dos rios. Vale a pena considerar a diferenciação do fenômeno natural e a sua manifes- tação na forma de impactos e, assim, qualificar a análise sobre o regime dos sistemas naturais. Observe a Figura 17. Ie sd e Br as il S/ A Figura 17 Esquema da dinâmica fluvial em eventos de enchente, inundação e alagamento Podemos considerar que a enchente é derivada do aumento do nível da água do rio em função do aumento da vazão fluvial. Esse fenômeno também pode ser explicado pelos eventos de cheia (máxima vazão) e vazante (vazões mínimas), por isso pode ser conside- rado dentro do padrão natural do sistema. A inundação está voltada à vazão fluvial, que gera o transbordamento das águas dos rios. Nesse caso, a bacia de inundação é o sistema natural que absorve a quantidade de água, e por isso faz parte também do regime natural, como evento extremo e excepcional. A questão é que grande parte das planícies de inundação são altamente urbanizadas e povoadas; é somente nessa relação que a inundação é um problema social, porque tende a ser encarada como um desastre. Nessa perspectiva, esses eventos são muito diversos, podendo ser classificados segun- do a velocidade, sendo lentas e graduais ou rápidas e bruscas, devido ao escoamento superficial veloz e muito concentrado. O alagamento, por outro lado, é o acúmulo momentâneo de águas em determinados locais, ou por deficiência no sistema de drenagem (recorrente em áreas urbanas), ou por características naturais do sítio, como pântanos e planícies de rios meandrantes, isto é, que apresentam fluxos sinuosos. No Brasil, essas questões estão descritas na Política Nacional de Re- cursos Hídricos, cuja Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, mais conhe- cida como a Lei das Águas, determina que a água é bem de domínio público e um recurso natural limitado, dotado de valor econômico. Na A atmosfera e a hidrosfera da Terra 105 Lei n. 12.608, de 10 de abril de 2012, é instituída a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC); ela dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC) e o Conselho Nacional de Prote- ção e Defesa Civil (CONPDEC). Sobre esses aspectos, é interessante destacarque o território brasileiro é dividido por doze bacias hidrográficas, cada uma com lo- calizações e características distintas (Figura 18). Observe que a rede hi- drográfica brasileira é composta majoritariamente por rios (grandes e pequenos), condição que pode ser associada à principal fonte de abas- tecimento: a pluvial. Essa particularidade é importante sobretudo nos planaltos centrais, onde grande parte dos rios brasileiros nasce, com exceção do Rio Amazonas, cuja nascente está localizada na região da Cordilheira dos Andes. Figura 18 Regiões hidrográficas brasileiras Fonte: IBGE, 2008. De modo geral, é por essa regionalização que a implementação de políticas públicas para gestão das águas no Brasil pode ser iniciada. Nesse ponto, você deve observar que o ciclo da água remete a uma 106 Fundamentos de Geografia Física funcionalidade prática e analítica que atende aos princípios políticos do estado brasileiro. Isso significa afirmarmos que uma das nossas fun- ções, enquanto profissionais geógrafos, é avaliar e monitorar a dispo- nibilidade hídrica de uma comunidade, cidade ou região, em termos de quantidade, qualidade e fontes de reserva. É importante estabelecer que o ciclo hidrológico de um lugar é de- terminado pelos atributos físicos, ou seja, a estrutura geológica, o rele- vo, o solo, os reservatórios (rios, lagos e oceanos) e fundamentalmente o clima. A bacia hidrográfica ou bacia de drenagem, nesse escopo, pode ser a área delimitada por fronteiras políticas (o município, o bairro, a casa) ou por limites naturais (cotas altimétricas ou topografia). A seguir detalharemos esses termos. Observe a Figura 19 e considere que o estudo desenvolvido na ba- cia hidrográfica é composto basicamente por uma unidade natural de captação de água de precipitação; esta é drenada por pelo menos um curso de água (rio principal) ou um conjunto de sistemas fluviais articu- lados (afluentes). Sua demarcação obedece aos limites dos espigões di- visores de água, ou seja, o topo do relevo, cujo fluxo da água converge para um setor único de saída chamado foz ou exutório. Rio principal Afluentes Nascente Foz ou exutório Espigões divisores de água Precipitação Nascente Figura 19 Representação esquemática de uma bacia hidrográfica Ie sd e Br as il S/ A A atmosfera e a hidrosfera da Terra 107 Em outras palavras, a bacia hidrográfica pode ser delimitada de maneira cartográfica, baseando-se em uma carta hipsométrica e considerando as cotas mais elevadas como parte da delimitação espacial. O processo é bastante simples, por isso facilita a adequa- ção de modelos aplicáveis e que podem ser ajustados conforme as demandas e contextos das áreas, qualificando as decisões e práticas conforme as orientações legais. A Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (BRASIL, 1997) de- termina que, em situação de escassez, o uso prioritário da água é para o consumo humano e a dessedentação de animais. A gestão dos recursos hídricos deve assumir, nesse sentido, um caráter des- centralizado, incorporando democraticamente a partição dos agen- tes do poder público, dos usuários e das comunidades associadas. Assim, além da gestão dos recursos hídricos, o município deve absorver a bacia hidrográfica como a unidade territorial principal para a implementação das políticas voltadas aos usos da água, com- preendendo que é necessário cuidar dos mananciais e das fontes de abastecimento de água potável já que são altamente sensíveis às alterações antrópicas e aos mecanismos de funcionamento do sistema terrestre. Sendo assim, não dissociar os atributos naturais e sociais do ci- clo da água deve garantir um percurso de cuidado e preservação do planeta que passa, também, pela reestruturação dos usos atuais que fazemos da água. A perspectiva é de que, no processo de plane- jamento e gestão de recursos hídricos, o conjunto de possibilidades indispensáveis para o desenvolvimento humano, local e regional, seja garantido para contemplar os processos de reciclagem, o trata- mento, o saneamento e o abastecimento em nossas comunidades. Em síntese, muitos desafios estão relacionados à gestão da água, entre eles as mudanças climáticas, os modelos de desenvolvimen- to, os usos múltiplos etc. Além disso, muitos fatores organizam sua complexidade física e social. Equacionar esse quadro é tensionar os conflitos para construir um uso mais justo e possível, conforme as demandas e as disponibilidades ambientais. O documentário A lei da água (Novo Código Florestal), desenvolvido pelas ONGs ISA, WWF Brasil, Fundação SOS Mata Atlântica, IDS e Bem-Te-Vi Diversidade, debate sobre a impor- tância das florestas e a conservação das águas no Brasil, contextualizan- do os impactos do Código Florestal. Direção: André D’Elia. Brasil: Cinedelia, 2015. Disponível em: https://youtu.be/ jgq_SXU1qzc. Acesso em: 5 fev. 2021. Documentário https://youtu.be/jgq_SXU1qzc https://youtu.be/jgq_SXU1qzc 108 Fundamentos de Geografia Física CONSIDERAÇÕES FINAIS As contribuições da climatologia, da oceanografia, da glaciologia e da hidrografia na Geografia Física podem ser resumidas em pelo menos três tipos de fluxos de energia que organizam a dinâmica do sistema terrestre. São eles: radiação solar, que traz energia atravessando a atmosfera de cima para baixo; radiação terrestre, emitida em sentido inverso à solar, oferecendo produção de energia, que tende a aquecer a atmosfera por debaixo; radiação da atmosfera, que origina o efeito de estufa natural, pois o ar é também um corpo quente que emite radiação em todas as direções e favorece a manutenção da temperatura no planeta. Desses processos, os fluidos ar e água se encarregam, pelo ciclo da água e das circulações oceânicas e atmosféricas, de transferir e distribuir o ca- lor. Nesse caso, a importância geográfica da atmosfera, da criosfera e da hidrosfera pode ser destacada pelo papel que exerce na manutenção e na proteção da vida na Terra, no que tange tanto aos processos físicos de for- mação e organização de paisagens naturais quanto à qualidade ambiental, quando é sentida ou percebida pelos seres humanos. Nesse último caso, a gestão dos recursos hídricos pode ser uma prática social funcional aos interesses dos profissionais geógrafos, já que uma ma- neira de oferecer a síntese dessas relações é partindo da bacia hidrográfica como principal unidade territorial. Assim, os conhecimentos são integrados, indo de fatores associados à estrutura geológica, ao relevo, ao solo e ao clima a usos múltiplos que as sociedades fazem da água. ATIVIDADES 1. Como você explica os processos atmosféricos que ocorrem por meio da radiação emitida pelo Sol e que interagem com a superfície? 2. Explique, com suas palavras, a importância dos oceanos na dinâmica climática do planeta Terra. 3. Em quais perspectivas os estudos da criosfera podem ser interessantes para a Geografia Física? 4. Quais são os mecanismos que explicam a interação da água com a superfície terrestre? 5. Como você descreve, com suas palavras, a bacia hidrográfica da sua comunidade, cidade ou região? A atmosfera e a hidrosfera da Terra 109 REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Diário Oficial da União. Poder Legislativo, Brasília, DF: 9 jan. 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433. htm. Acesso em: 24 fev. 2021. CAMPOS, E. J. D. O papel do oceano nas mudanças climáticas globais. Revista USP, n. 103, p. 55-66, 2014. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/99184/97650. Acesso em: 22 fev. 2021. COX, J. D. Climate crash: abrupt climate change and what it means for our future. Washington: Joseph Henry Press, 2005. DYURGEROV, M. B.; MEIER, M. F. Glaciers and the changing Earth system: a 2004 snapshot. Boulder: Institute of Arctic and Alpine Research, University of Colorado, n. 58, 2005. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/265115522_Glaciers_and_the_ Changing_Earth_System_A_2004_Snapshot.Acesso em: 22 fev. 2021. IBGE. Regioões hidrográficas. Mapas. 2008. 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Acesso em: 3 fev. 2021. http://mtc-m21c.sid.inpe.br/col/sid.inpe.br/mtc-m21c/2019/09.12.12.30/doc/LETICIA%20STACHELSKI.pdf http://mtc-m21c.sid.inpe.br/col/sid.inpe.br/mtc-m21c/2019/09.12.12.30/doc/LETICIA%20STACHELSKI.pdf https://periodicos.ufpe.br/revistas/rbgfe/article/viewFile/232642/26655 https://periodicos.ufpe.br/revistas/rbgfe/article/viewFile/232642/26655 110 Fundamentos de Geografia Física 5 A biosfera terrestre Neste capítulo, vamos tratar especialmente da esfera da vida, a biosfera terrestre. Concentramos esforços para desenvolver as sínteses necessárias para combinar os conhecimentos que tive- mos sobre as dinâmicas da natureza por meio das rochas, dos relevos, dos solos, dos climas e das águas e apontar o fenômeno da vida, tanto como resultado quanto como mecanismo e fator de transformação do sistema terrestre. Nosso interesse é que você possa compreender como o fenô- meno da vida é resultado das interações do sistema terrestre e como sua participação auxiliou na transformação e estruturação da Terra como nosso habitat. Os biomas terrestres, sua formação, suas características e suas dinâmicas são um exemplo desse intri- cado fenômeno, e atualmente nos ajudam a entender o complexo mosaico de paisagens naturais do planeta. Diante desse conhecimento, vamos também entender o papel dos ecossistemas no equilíbrio do sistema terrestre, indicando até mesmo princípios para preservação da biodiversidade por meio da conservação ambiental, dos serviços ecossistêmicos, da sustenta- bilidade e da legislação brasileira. Para isso, apresentamos conceitos, teorias e estudiosos do campo da biogeografia dentro da Geografia Física. Essa valorização deve, inclusive, auxiliar você a entender outros processos analíti- cos da Geografia, como também oferecer novas possibilidades de atuação profissional. Desejamos uma leitura produtiva e que dê sentido aos conhe- cimentos até aqui desenvolvidos. Lembre-se de fazer suas anota- ções, com dúvidas e comentários. A biosfera terrestre 111 5.1 Fundamentos de biogeografia Vídeo Podemos iniciar nossa conversa afirmando que o conheci- mento biogeográfico foi desenvolvido já quando a natureza era interpretada por histórias fantásticas, sob concepções sobrena- turais e mitológicas. Das pinturas rupestres – ilustrações elabo- radas por ancestrais pré-históricos e registradas nas paredes rochosas e das cavernas – aos registros bíblicos e às obras de arte de artistas historicamente renomados, essa preocupação se voltava ao entendimento dos animais, das plantas e dos luga- res onde poderiam ser encontrados. As contribuições desse saber podem ser exemplificadas em pelo menos três pontos: (i.) por meio dos processos de domes- ticação de vegetais e animais, que auxiliaram definitivamente na revolução agrícola e no sedentarismo humano; (ii.) na classi- ficação dos seres vivos em espécies, prática desenvolvida desde a Antiguidade com os egípcios e os gregos e que atualmente atende ao procedimento metodológico para estabelecer simila- ridade e diferença por intermédio da taxonomia; (iii.) com base na identificação dos grandes domínios naturais que auxiliam no processo de regionalização da paisagem e na apropriação de recursos naturais em termos mundiais. Assim, podemos também considerar que o saber biogeo- gráfico foi um dos conhecimentos principais que auxiliaram na institucionalização da geografia como ciência moderna. Grande parte de seus objetos de investigação (os animais, as plantas e seus lugares) já atendiam às consistências metodológicas da época para o estudo da natureza, desenvolvidas sobretudo pe- los estudiosos naturalistas (SANTOS, 1985). Quer uma contribuição breve sobre o caráter, os objetos, as definições, o campo e os métodos da biogeografia? Leia o artigo “Introdução à biogeo- grafia”, escrito pela geógrafa Maria Juraci Zani Santos, publicado no Boletim de Geografia em 1985. Trata-se de um texto bem direto e curto que pode ajudar a organizar seu próprio conhecimento. Acesso em: 5 fev. 2021. http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/BolGeogr/article/view/12274/7401 Artigo Você se recorda das divisões entre reino, filo, classe, ordem, família, gênero e espécie? Esses critérios são relativos à taxono- mia, campo da ciência biológica orientado para a descrição e nomeação dos seres vivos. Curiosidade 112 Fundamentos de Geografia Física Nessa época, a principal contribuição à sistematização da biogeogra- fia como campo científico ocorreu quando o geógrafo Friedrich Ratzel (1844-1904) propôs que a biogeografia atendia aos estudos da distri- buição espacial dos domínios naturais no contexto das relações huma- nas e da formação dos territórios. Para Ratzel (1990), a biogeografia deveria ser pensada de maneira autônoma da Geografia Física e da an- tropogeografia, já que as vidas animal, vegetal e humana se realizariam de maneira independente (SANTOS, 1985). Observe que duas contribuições de Ratzel foram importantes para a biogeografia moderna, também chamada de clássica. A primeira foi, sem dúvida, a orientação do campo ao estudo sistemático da biosfera (animais e vegetais principalmente) em sua distribuição espacial pelo globo. A segunda foi o fato de já oferecer princípios para o processo de regionalização, como uma das formas mais elementares de análise espacial. Contudo, essa perspectiva apresentou limites. A análise biogeográ- fica clássica era essencialmente descritiva e reduzida à exposição da distribuição das áreas naturais do planeta – com uso importante da cartografia. Por mais que esse conhecimento fosse significativo para legitimar uma institucionalização da ciência geográfica e para a desco- berta de novas espécies, ele também ajudou na legitimação dos pro- cessos de colonização das Américas, da África e da Oceania. Nesse contexto, a biogeografia foi desenvolvida com base em abordagens que valorizam os processos taxonômicos, caracteri- zando a análise separada entre fitogeografia (flora) e zoogeografia (fauna), dialogando fortemente com a biologia, principalmente os subcampos da botânica e da zoologia. A preocupação era basica- mente entender os padrões de distribuição espacial da flora e da fauna na superfície terrestre. Esses elementos são significativos, já que grande parte das expedi- ções coloniais integravam estudiosos e viajantes naturalistas, que, por esse conhecimento, auxiliaramtambém na concentração do poder e da riqueza dos Estados Nacionais europeus. Além disso, até o século XVIII o caráter descritivo e classificatório dos estudos biogeográficos era subsidiado teoricamente por perspec- tivas fixistas e estáticas de natureza, pensamento esperado para um conhecimento cujo principal objetivo estava na aplicabilidade prática de reconhecimento das riquezas naturais dos territórios. Para compreender um pouco mais sobre os elementos políticos, reli- giosos e científicos que a teoria da evolução desen- cadeou, indicamos o filme O desafio de Darwin. Direção: John Bradshaw. EUA: National Geographic Television, 2009. Filme A biosfera terrestre 113 Após o século XVII, a abordagem na biogeografia começou a in- corporar paulatinamente as contribuições da teoria da evolução. Na perspectiva, a ênfase da análise está focada no fenômeno da vida, con- cebido como fator e resultado da seleção natural e da formação do sistema terrestre. O sentido é que a presença da vida qualificou a terra, o ar e a água na superfície do planeta, organizando-os no equilíbrio necessário para desenvolver todos os outros processos de formação e evolução do planeta. Reiteramos que a Terra só pode ser vista da maneira como a vemos hoje por causa da origem da vida. De outro modo, ela ain- da apresentaria as mesmas condições naturais observadas no Éon Ar- queano, há pelo menos 3,5 a 3,8 bilhões de anos AP. Por isso, vale a pena reiterar: o fenômeno da vida tem ocorrido por aqui desde o Éon Arqueano, sendo inicialmente representado por or- ganismos vivos 1 muito primitivos, os seres procariontes e unicelula- res, isto é, seres vivos que, em termos de organização, estrutura celular (porque não possuem núcleo ou mitocôndria) e formas de reprodução biológica (autótrofos), podem ser equivalentes às bactérias atuais. A importância da vida na história natural da Terra No Arqueano, a Terra ainda consistia em um planeta hostil para as nossas formas de vida, já que a atmosfera era muito tóxica, quente e redutora. Essas bactérias foram as responsáveis por mudar fundamentalmente a composição química da atmosfera e, em consequência, o conjunto de outros processos físicos, químicos e biológicos. Podemos considerar, assim, em uma tentativa de analogia, que no Arqueano o fenômeno da vida foi o fator que iniciou o “ajustamento” de todos os elementos do planeta, equalizando-os e organizando-os para preparação de um sistema que deveria ser, no futuro, autorregulável, integrado e indisso- ciável do sistema terrestre – a biosfera. A primeira mudança radical nessa história se deu há cerca de 400 milhões de anos AP, quando, no Período Cambriano (dentro da Era Paleozoica do Éon Fanerozoico), houve a grande quantidade de formas de vida, viabilizada inclusive com a fixação de seres vivos em todos os ambientes do planeta (oceanos e continentes). Para se ter ideia, nesse período o movimento de rotação era relativamente mais lento (o dia durava cerca de 21 horas) do que no início da formação da Terra (quando o dia durava menos que 4 horas), e essa redu- ção da velocidade proporcionou o aumento do dia e, em consequência, da energia solar para efetivar os processos de fotossíntese das recém-originadas algas (seres procariontes, unicelulares e autótrofos existentes há mais de 1.200 milhões de anos AP). As bactérias e as algas, juntamente com vulcanismos, aceleraram a alteração da composição química da atmosfera enriquecendo-a com muito oxigênio, resultando na formação da ca- mada de ozônio, que serve até os dias atuais para proteção dos raios solares nocivos à vida. (Continua) Sobre a teoria da evolução, é importante considerar que a seleção natural é o mecanismo aleatório que promove modifi- cações em um ser vivo por meio das transformações observadas em um ancestral comum. A distribuição espacial dos seres vivos na superfície terrestre equivale aos graus de competiti- vidade, afinidade, concentração e dispersão determinadas pela qualidade dos fluxos gênicos (relativos às transferências de características por meio da re- produção), dos fluxos ecológicos (da relação entre as populações e os fatores bióticos e abióticos) e das alterações promovidas por meio das formas de adaptação e transformação do meio. Na teoria, o processo de especiação, ou seja, formação e reprodução de espécies, ocorre sob domínio da escala geológica e oferece o sentido da biodiver- sidade do planeta, uma vez que determinadas populações de seres vivos apresentam carac- terísticas diferentes, em termos de estrutura, forma e hábitos, que podem ser concretamente relacionadas à existência de barreiras geográficas, como latitude, altitude e relevo, e à disponibilidade de recursos para reprodução biológica, como água e alimentos. Importante Na biogeografia, entendemos como organismo vivo os seres constituídos de células; isso significa entender que eles apre- sentam material genético (DNA e RNA) e, por isso, respondem a estímulos ambientais, utilizam energia para realização de trocas metabólicas, reproduzem-se e evoluem. 1 114 Fundamentos de Geografia Física A partir do Período Cambriano, a Terra se modificou muito pouco, dando condições plenas para o fenômeno da vida se transformar e evoluir. As primeiras plantas terrestres (orga- nismos eucariontes, pluricelulares e autótrofos), por exemplo, originaram-se há pouco mais de 500 milhões de anos AP (no Período Siluriano), e só formaram grandes florestas a partir de 150 a 100 milhões de anos depois, no Período Devoniano. Os primeiros animais (organismos eucariontes, pluricelulares e heterótrofos) também apareceram no Siluriano, consistindo nos ancestrais dos invertebrados e dos atuais mo- luscos (animais com concha). Os peixes, no entanto, só começaram a aparecer a partir do Ordoviciano, entre 440 e 500 milhões de anos AP, enquanto os anfíbios apareceram no Devoniano (350 a 400 milhões de anos AP) e os répteis, no Carbonífero (270 a 350 milhões de anos AP). Os mamíferos só surgiram nos últimos 225 milhões de anos AP, sobretudo após a grande devastação de dinossauros, um dos parentes remotos das aves. A Figura 1 a seguir sintetiza todos esses processos: Figura 1 Representação da evolução da vida Ed ge C re at ive /S hu tte rs to ck 1,8 - 50 - 100 - 150 - 200 - 250 - 300 - 350 - 400 - 450 - 500 - 550 - 2.500 - 4.000 - 4.540 - Milhões de anos atrás Éon Era Período Época Desenvolvimento da vida Fa ne ro zo ic o Ce no zo ic o M es oz oi co Pa le oz oi co Quaternário Primeiros humanos Neógeno Mastodontes; hipárion Paleógeno Ascensão de mamíferos Holoceno Pleistoceno Plioceno Mioceno Oligoceno Eoceno Paleoceno Cretáceo Plantas com sementes modernas; dinossauros Jurássico Primeiros pássaros Triássico Cicadáceas; primeiros dinossauros Ca rb on ífe ro Pensilvaniano Primeiros insetos Mississipiano Muitos crinoides Devoniano Primeiras plantas com sementes; peixes com cartilagem Siluriano Primeiros animais terrestres Ordoviciano Peixe ósseo precoce Cambriano Animais invertebrados; braquiópodes; trilobitas Proterozoico Primeiros organismos multicelulares Arqueano O início da formação da vida Hadeano Formação da Terra Permiano Primeiros répteis A biosfera terrestre 115 Podemos considerar assim que a redução do movimento de rota- ção, a alteração da atmosfera e o controle da radiação solar que en- tra no sistema terrestre foram os principais fatores para a explosão cambriana. A partir desse período, assumimos também que a Terra já estava preparada para guardar, manter e proteger a vida, dando su- porte para geração e reprodução dos demais organismos vivos em sua diversidade. Em síntese, é a Terra da Pangeia. Conforme Croizat (1962), essas contribuições integraram à análi- se biogeográfica a correspondência entre espaço (referente à área de abrangência e ocorrência dos organismos), tempo (associação a eventos históricos que influenciaramna adaptação dos seres vivos) e forma (dos graus de similaridade e diferença das estruturas dos orga- nismos vivos). Nessa perspectiva, três processos principais podem ser suficientes para explicar a relevância dessas contribuições à biogeogra- fia. Vamos explicá-los separadamente, do mais simples para os mais complexos. O primeiro processo, chamado de dispersão biogeográfica, trata dos padrões de distribuição espacial que assumem a existência de uma po- pulação ancestral, formada pela ocorrência de um grupo de organis- mos vivos originais em uma determinada área. O modelo esquemático desse movimento é representado na Figura 2. Figura 2 Modelo representativo do processo de dispersão biogeográfica Ancestral comum Barreira geográfica Novas espécies Diferenciação gênica População originária População X População Y Fonte: Elaborada pelo autor. 116 Fundamentos de Geografia Física O sentido é a ampliação de uma determinada população original, e seu consequente avanço para outras áreas promove a ultrapassagem ou rompimento de uma determinada barreira geográfica (montanha, rio, deserto etc.). Desse processo resultam diferenciações gênicas, ob- servadas na forma, na estrutura e nos hábitos dos organismos, e com o passar do tempo se originam duas ou mais espécies diferentes em relação à espécie ancestral. Por outro lado, nos processos de vicariância biogeográfica, enten- de-se que determinada população ancestral ocupava uma área abran- gente e, com o surgimento de uma barreira geográfica (tectonismos, por exemplo), essa área foi dividida ou separada, promovendo paula- tinamente a separação da população. O resultado é que atualmente a área é habitada pelos descendentes da espécie ancestral, os quais são diferentes em suas características. A fragmentação constitui o terceiro processo de distribuição dos seres vivos na superfície terrestre, conforme Crooks e Sanjayan (2006). Os padrões espaciais são fundamentalmente resultado da concomitân- cia da perda de habitat de determinada população (por isolamento na- tural ou por pressões ambientais associadas às atividades antrópicas, por exemplo), o que impede o transporte dos fluxos ecológicos princi- palmente (Figura 3). Figura 3 Modelo representativo do processo de fragmentação biogeográfica Fragmentação Aumento da fragmentação População originária Fragmento Fragmento Fragmento Fonte: Elaborada pelo autor. Trata-se de um processo que é dinâmico, gradual e contínuo, e por isso oferece possibilidades de interpretar os mecanismos de diminui- ção de uma determinada população, que podem reduzi-la ao isolamen- to, e consequentemente à sua extinção. A biosfera terrestre 117 Para além dos aspectos negativos da fragmentação, é importante considerar que sua análise incorpora grande parte dos estudos da paisagem na perspectiva do desen- volvimento e da gestão territorial e ambiental. Por ser um processo eminentemente gradual, pode assumir diferentes níveis de alteração, sendo mais bem observado pelo efeito de borda e de conectividade. A conectividade se refere à presença de estruturas que possibilitam a manutenção da conexão ecológica das paisagens e a movimentação dos organismos que a uti- lizam como habitat. Estamos falando especialmente da presença de canais fluviais, espigões divisores de água, rotas migratórias e cercas vivas que atuam como fontes de alimento, refúgios e abrigos para diferentes espécies (BENNETT, 2004). Já o efeito de borda é utilizado para indicar o nível de estabilidade da biodiversidade em um local. Trata-se do limite em que as espécies (nativas) em determinada área são ex- postas a interações com outras (exóticas), que podem trazer tanto uma diversificação biológica quanto modificações nos fluxos de matéria, de energia e de dinâmica na competição (FERRETTI, 2013). Nesses aspectos, uma paisagem pode ser considerada intacta (mais próxima do que seria originalmente), pontilhada, fragmentada e relicta (GUERRA et al., 2002). Figura 4 Representação esquemática de estágio de fragmentação Diminuição da conectividade/aumento do efeito de borda Intacta Pontilhada Fragmentada Relicta Fonte: Adaptada de Guerra et al., 2002. Fragmentação, conectividade e efeito de borda devem ser vistos assim como sentidos concomitantes de um mesmo movimento, que serve tanto para reconhecer a movi- mentação e as condições ecológicas de áreas antropizadas, como para a identificação de mecanismos de proteção e conservação ambiental (BENNETT, 2004). Observe que dispersão, vicariância e fragmentação nos ajudam a entender que em grande parte os padrões espaciais de distribuição dos seres vivos podem ser relacionados a eventos históricos. Entre- tanto, a dispersão e a vicariância, especialmente, mostram como os eventos históricos influenciaram a espacialidade dos seres vivos, uma Habitat original 118 Fundamentos de Geografia Física vez que deve ser considerada a ocorrência de mudanças ambientais, provenientes sobretudo de causas naturais – mudanças climáticas e tectonismos, por exemplo e respectivamente. Nesses processos, a história natural da Terra pode ser suficiente para subsidiar o entendimento da evolução dos seres vivos e das paisagens naturais. Ao mesmo tempo, o conhecimento da evolução dos seres vivos oferece pistas do reconhecimento da formação do nosso planeta (GILLUNG, 2011). Por isso, a biogeografia tende a dia- logar também com a arqueologia, a paleontologia, a zoologia e a antropologia. A fragmentação também atende às possibilidades de alterações ambientais, mas com valorização principalmente das pressões associa- das às atividades humanas, como as transformações históricas desen- volvidas por meio do desmatamento, da agricultura, da urbanização, da degradação ambiental, da poluição etc. Nessa perspectiva, os es- tudos da biogeografia são bem incorporados no debate das questões ambientais, da recuperação de áreas degradadas e da importância de unidades de conservação. Vejamos a seguir mais aspectos relacionados a essas perspectivas, considerando as vantagens dos processos de regionalização dos bio- mas terrestres e de suas dinâmicas associadas. 5.2 Biomas terrestres Vídeo Como visto, a distribuição espacial dos seres vivos na superfície terrestre corresponde a eventos desenvolvidos ao longo da história natural e social. Mas essa distribuição não acontece aleatoriamente. A organização e a estruturação dos habitats ocorrem em grande parte pela ocorrência de fenômenos naturais e das formas de interação, re- produção e competição dos organismos vivos, e em todos esses casos a organização espacial dos fatores bióticos e abióticos apresentam coe- rências significativas. A biosfera terrestre 119 A relação dos fatores bióticos e abióticos constitui os insumos fundamentais para a evolução e reprodução da vida e para a formação dos sistemas naturais. São consideradas fatores abióticos as interações entre rocha, relevo e clima, que permitem a formação de uma diversidade de solos, a qualidade da consistência e a dinâmica do regime hidrológico. Em síntese, esses fatores sugerem explicações sobre a origem, a formação e o desenvolvimento dos fatores bióticos, isto é, dos processos que contemplam o fenômeno da vida (Figura 5). Figura 5 Relação entre fatores abióticos e bióticos na perspectiva ecológica Fatores abióticos Fatores bióticos Água Produtores Consumidores Gases Minerais Ciclos naturais Insolação Matéria-energia M atéria- -energia M atéria- -energia M até ria -e ne rg ia Sol Decompositores Plantas Herbívoros Fungos Bactérias Carnívoros Onívoros Algas pe te rs ch re ib er .m ed ia /R ad es /Y ol oS to ck /N ol te L ou re ns /B en ny M ar ty /O lg a M ak si m av a /N C1 /S hu tte rs to ck Observe que o princípio é sistêmico (troca de matéria e energia), sendo bastante relevante para esse tipo de análise com base nos ecossistêmicas e geossistemas. Na análise dos geossistemas, em particular,os fatores abióticos e bióticos são inte- grados a elementos sociais e culturais, que representam as atividades humanas das transformações históricas na paisagem, no conjunto das relações entre sociedade e natureza. Isso significa entender que os fatores antrópicos oferecem à biogeografia interpretações de que as ações humanas não podem ser reduzidas exclusivamente às formas de modificação, degradação e destruição ambiental, devendo ser entendidas também como possibilidades de proteção, conservação e recuperação das condições naturais necessárias à dinâmica das paisagens e da constituição dos territórios. Fonte: Elaborada pelo autor. 120 Fundamentos de Geografia Física Essas correspondências podem ser organizadas e sistematizadas assumindo critérios de similaridade e diferença em que áreas de abran- gência e de domínio de determinados seres vivos indicam seus níveis de endemicidade. Mas o que isso significa? Que tanto plantas quanto animais criam condições próprias de habitats – o que requer modifica- ções nos processos de reciclagem da água, do carbono, da erosão etc. Eles também demandam certos limites de água e temperatura e nu- trientes ajustados conforme suas condições fisiológicas e reprodutivas, o que em termos de seleção natural significa equilibrar sua adaptabili- dade e sua concorrência. À medida que as condições ambientais são alteradas, os mecanis- mos da seleção natural são concomitantemente disparados, oferecen- do outras características adaptadas às novas condições impostas. Esse complexo quadro transforma profundamente a relação ecológica entre espécies, ou seja, se algumas são propensas a se expandir e dominar, outras tendem a ser reduzidas em áreas restritas, até permanecerem em condição de refúgio, se não forem extintas (FIGUEIRÓ, 2015). Uma das classificações biogeográficas proposta pelo naturalista Alfred Russel Wallace (1823-1913) foi recentemente atualizada por Holt et al. (2013), que apresentaram 11 grandes regiões zoogeográficas (Figura 6). Figura 6 Mapa de regiões zoogeográficas do mundo atualizado Ra ys sa C os ta /W ik im ed ia C om m on s Oceânico Oceânico Panamânico Neoártico Neotropical Arábico-saariano Afrotropical Paleoártico Sino-japonês Oriental Madagasquiano Australiano Nesse caso, os autores utilizaram o conjunto de 21.037 espécies de animais (mamí- feros, anfíbios e aves, principalmente) e se basearam em modelos estatísticos, testes probabilísticos, coeficientes de endemismo advindos da análise gênica e técnicas de geoprocessamento. Para mensurar a abrangência e a variedade em cada reino, considerando sua diversidade e seu endemismo, Holt et al. (2013) identificaram 11 bioreinos, subdivididos em 20 regiões zoogeográficas. A biosfera terrestre 121 O nível de endemicidade representa assim esse conjunto de cor- respondências. Ele expressa os limites da distribuição espacial dos organismos vivos, sugerindo a existência gradual de suas relações eco- lógicas, e pode ser observado por meio dos graus de parentesco no contexto dos níveis taxonômicos dos seres vivos (ordem, família, gêne- ro e espécie, principalmente). Na biogeografia, esse aspecto é considerado primeiramente pela fixa- ção das plantas, já que esses seres apresentam uma relação mais dire- ta com os fatores abióticos. Em outras palavras, os animais apresentam como característica principal a mobilidade, sugerindo variações espaciais e temporárias mais relevantes que plantas, devido à capacidade de esca- par das condições adversas e imposições por barreiras geográficas. Nessa perspectiva, a possibilidade é elaborar uma hierarquia entre unidades territoriais que representem eminentemente o processo evo- lutivo na perspectiva geográfica. Mas como exemplificar isso? Podemos começar a análise assumindo a história natural, da evolução da vida na Terra, e sua organização em áreas correspondentes à extensão conti- nental, regional e local. O conceito de bioma pode ser entendido como uma possibilidade dessa análise, já que é relacionado a importantes complexos controla- dos essencialmente pelo clima, agrupando uma fisionomia homogênea associada à flora, à fauna e a microrganismos (DAJOZ, 1973). A contri- buição do Atlas mundial de diagramas climáticos, proposto por Walter e Lieth (1960), tem sido representada no conjunto dos 10 zonobiomas e em outra diversidade de biomas (Quadro 1) Quadro 1 Classificação de zonobiomas terrestres Bioma Zona climática Domínio vegetacional I Equatorial – quente e úmido (varia- ções recorrentes no ciclo diário). Florestas tropicais pluviais – sempre verde. II Tropical – sazonalidade marcada por períodos chuvosos e secos. Florestas estacionais – caducifólia e decidual – e savanas. III Subtropical árido. Desertos quentes e secos. IV Mediterrâneo – inverno úmido e ve- rão seco. Vegetação esclerófila (chaparral, maqui etc.). V Subtropical quente e úmido. Florestas ombrófilas sempre verdes. VI Temperado úmido, com inverno curto. Florestas temperadas caducifólias. VII Temperado árido, com inverno frio. Estepes ou desertos frios. As correspondências dos níveis de endemicidade auxiliaram sobremaneira a verificabilidade das teorias da seleção natural, uma vez que a evolução pode ser observada espacialmente com base na coerência de um centro comum e sua posterior dispersão ou vicariância. A formação de múltiplos centros de endemi- cidade também é adequada, desde que considerada a maior diversidade de espécies. Saiba mais (Continua) 122 Fundamentos de Geografia Física Bioma Zona climática Domínio vegetacional VIII Boreal. Florestas de coníferas (taiga). IX Polar. Tundras. X Montanha – recorrente em qual- quer bioma. Fonte: Adaptado de Coutinho, 2006. Aqui vale uma diferenciação. Segundo Coutinho (2006), os zonobio- mas têm grandes dimensões, distribuindo-se no globo terrestre pelos continentes (Figura 7), enquanto os biomas são representados por uma ou mais áreas, distintas geograficamente, constituindo, cada qual, uma unidade específica referente àquele tipo. Os biomas ainda podem se restringir a pequenas áreas ou chegar até a mais de um milhão de qui- lômetros quadrados (WALTER, 1986). Figura 7 Zonobiomas terrestres segundo Walter (1986) IES DE Br as il S /A Observe que o elemento de destaque em relação aos zonobiomas, além da abrangência espacial, é garantido pela diversidade existente no interior de cada um deles, que não pode ser reduzida à sua fisionomia (aspecto físico mais aparente da formação). Isso significa que faunas e floras podem ter similaridades, mas não necessariamente compartilham A biosfera terrestre 123 de um mesmo bioma. Ao mesmo tempo, é possível observar no interior do zonobioma comunidades integradas que formam os biomas. Para que você possa apreender bem a história do conceito de bioma e sua relação com os conteúdos da Geografia Física, leia o artigo “O conceito de bioma”, escrito por Leopoldo Magno Coutinho, publicado na Acta Botanica Brasilica, em 2006. Acesso em: 5 fev. 2021. https://www.scielo.br/pdf/abb/v20n1/02.pdf Artigo Assim, a organização dos biomas é relativa à história evolutiva (geo- lógica e biológica) que qualifica a distinção de cada um deles. Qualquer fator ambiental, como relevo, altitude, solo, ocorrências de alagamen- tos, incêndios e composição química da água e do solo (salinidade, teor de minerais etc.), deve contribuir para o funcionamento e a dinâmica de cada grupo vegetacional. Essa riqueza é bem observada no caso brasileiro por meio da classi- ficação dos biomas (Figura 8) desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2004). Figura 8 Biomas brasileiros Al ta F on te /W ik im ed ia C om m on s BIOMAS DO BRASIL Biomas Terrestres Bioma Marinho Marinho Costeiro Amazônia Cerrado Mata Atlântica Caatinga Pampa Pantanal 124 Fundamentos de Geografia Física Nessa proposta, são apresentadas seis unidades principais (Ama- zônia, Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado,Pantanal e Pampa), com cinco formações florestais (ombrófila densa, aberta, mista, estacional decidual e estacional semidecidual), além de campinadas, savanas, savanas esté- picas, estepes, formações pioneiras e refúgios. Além disso, são contem- pladas ainda 14 zonas de contato que ocorrem nos limites dos biomas. Aliás, diante de um território formado quase totalmente por cli- mas tropicais, é compreensível encontrar um grande número de bio- mas, não é mesmo? Entretanto, essa diversidade não é exclusiva de regiões fitogeográficas, pertencendo também a muitos ambientes de vida que ocorrem internamente a elas. Essas áreas também são con- sideradas biomas. A título de exemplificação, considere um ambiente classificado por um único domínio de floresta; isso já pode ser entendido como um bioma, mas suas condições internas, dadas por diferença de relevos, altitudes, solos, climas, populações, pressões etc., remetem também à existência de outros biomas menores, mais discretos, internos e espe- cificados em unidades muito particulares. Falamos então de florestas que ocorrem em superfícies estáveis – como planaltos e planícies –, que se formam como os biomas das florestas de terra firme, ou em superfícies instáveis, que originam as florestas de encosta. Essa especificação também deve ocorrer ao longo de cursos d’água, de áreas inundáveis ou de contato com o mar, que condicionam a origem dos biomas das matas ciliares, das florestas de igapó, dos mangues, entre outros. Na perspectiva, dentro ainda de cada um desses biomas, é integrada uma outra diversidade de ecossistemas muito múltiplos em termos de quantidade, dinâmica e fisionomia. Vejamos essa análise para as paisagens brasileiras. 5.3 As paisagens brasileiras Vídeo Devido à diversidade climática, mas também à variedade geomorfo- lógica e à extensão territorial, o Brasil apresenta uma significativa mul- tiplicidade de paisagens naturais. Entendidas com base na interação, combinação e interdependência de diversos elementos geográficos (relevo, clima, vegetação, hidrografia, solo, fauna, flora etc.), essas pai- A biosfera terrestre 125 sagens se explicitam por meio de individualizações que apresentam, sob áreas contíguas, as determinações pretéritas e recentes das suas condições ambientais. Segundo Ab’Saber (1967), os domínios das paisagens naturais no Brasil podem ser classificados na existência de seis grandes domínios morfoclimáticos: amazônico, das caatingas, dos cerrados, dos mares, de morros, das araucárias e das pradarias, além das áreas mistas que compreendem as áreas de transição (Figura 9). Figura 9 Domínios morfoclimáticos brasileiros Ies de Br as il S /A AMAZÔNICO – Terras baixas florestas equatoriais CERRADO – Chapadões tropicais interiores com cerrados e florestas-galerias MARES DE MORROS – Áreas mamelonares tropicais-atlânticas florestadas CAATINGA – Depressões intermontanas e interplanálticas semiáridas ARAUCÁRIAS – Planaltos subtropicais com araucárias PRADARIAS – Coxilhas subtropicais com pradarias mistas FAIXAS DE TRANSIÇÃO (Não diferenciadas) Cada domínio está associado a outras formas de regionalização do país, e não à toa são por vezes confundidos com a classificação dos biomas (IBGE, 2004). O que diferencia os dois conceitos é que o de bioma valoriza os aspectos ecológicos da biosfera (integração de fauna, flora e microrganismos), enquanto o de domínios mor- foclimáticos considera a articulação espaço-tempo da paisagem como produto da história natural, evolutiva, em sua totalidade (AB’SABER, 1967). Vamos ler mais um texto clássico? Nossa indicação agora vai para o texto “Províncias geológicas e domínios morfoclimáticos no Brasil”, do geógrafo Aziz Nacib Ab’Saber, pu- blicado na revista Orien- tação. Na leitura, você deve encontrar, além do conceito cunhado pelo próprio autor, a descrição sumária sobre cada componente da paisagem brasileira. AB’SABER, A. N. São Paulo, 1967. Leitura É importante observar que os limites de qualquer unidade biogeográfica não são absolutos e fixos. Na verdade, eles obedecem ao gradualismo, e a designação das faixas de transição serve para representar essas áreas de contato ou passagem de um domínio para outro, onde são observadas in- terpenetrações e convivência de espécies diferentes. Destaca-se que, devido à ocorrência de barreiras biogeográficas, essas transições são pouco relevantes (TROPPMAIR, 1989). Importante 126 Fundamentos de Geografia Física Trata-se de um conceito abrangente, que engloba variados ecossistemas (terrestres, lacustres, fluviais, de grandes e baixas altitudes), mas que, pela integração entre os fatores geomorfo- lógicos, climáticos, pedológicos e hidrológicos, em grandes com- binações, auxilia na análise geográfica da dinâmica natural no território brasileiro pela homogeneidade relativa de suas áreas (AB’SABER, 1967). Isso significa entender que eles foram estruturados e configu- rados como eventos remotos, herdados sobretudo a partir do Pe- ríodo Terciário, tendo sua evolução e seu pleno desenvolvimento observados no Pleistoceno, primeira época do Período Quaternário (AB’SABER, 1967). O elemento paisagístico mais marcante é a vege- tação, já que ela é o componente mais impactado por alterações nos níveis de disponibilidade hídrica e energética (que podem ser provocadas por mudanças climáticas, morfogênese e tectonismo) e também por alterações antrópicas nas paisagens (desmatamento, urbanização etc.). Por esse caráter, os domínios apresentam também áreas cores, ou seja, regiões internas, como áreas nucleares, que representam características particularmente bem definidas do domínio, em ter- mos climáticos, pedológicos, hidrológicos e fitogeográficos. Essas áreas também não apresentam relação direta com as unidades geológicas estruturais, já que podem se estender sobre terrenos de idades variadas em todo o território nacional. Quadro 2 Síntese das áreas cores dos domínios morfoclimáticos (Continua) Domínio amazônico • Ocorrência de terras baixas. • Regime equatorial. • Extensivamente florestado. Curioso.Photography/Fotos593/Shutterstock A biosfera terrestre 127 Domínio dos cerrados • Ocorrência dos chapadões. • Regime tropical continental. • Recoberto por cerrados e penetrado por florestas de galeria. A.PAES/CARLOS SANTOS RODAPEBR/Shutterstock Domínio dos mares de morros • Regiões serranas. • Regime tropical atlântico. • Predominância de morros e florestas. Andre Marcucci/Luciana Tancredo/Shutterstock Domínio das caatingas • Ocorrência das depressões. • Regime semiárido. • Diferentes tipos de caatingas. Helissa Grundemann/Kleber Cordeiro/Shutterstock Domínio das araucárias • Ocorrência de planaltos. • Regime subtropical ou de altitude. • Predomínio de araucárias (coníferas). Viagens e caminhos/Caio Pederneiras/Shutterstock Domínio das pradarias • Ocorrência de campos das coxilhas. • Regime subtropical. • Grandes matas e banhados. alex rodrigo brondani/Celli07/Shutterstock Fonte: Elaborado pelo autor. 128 Fundamentos de Geografia Física Com base nos domínios morfoclimáticos, podemos ter uma vi- são geral da dinâmica da paisagem no Brasil e avaliar as condições ambientais, as quais se revelam, sobretudo, como problemas asso- ciados aos seus usos históricos, que datam desde o período colonial até o atual, considerando o acelerado processo de desenvolvimento urbano e industrial. Sobre essa temática, vale a pena entrarmos na próxima seção, que trata da necessidade e das estratégias de conservação da natu- reza no Brasil. 5.4 Conservação e serviços ecossistêmicos Vídeo Com base na leitura da seção anterior, você deve ter percebido que o quadro natural brasileiro oferece uma diversidade de riquezas naturais. Por consequência, conflitos e problemas socioambientais relacionados aos seus usos desde a década de 1960 têm sido pau- ta de debate no conjunto das pressões dos movimentos sociais e ambientalistas. O sentidoé que o debate ambiental no Brasil perpassa as lógicas da sustentabilidade 2 , tornando-se uma questão essencialmente po- lítica e econômica. Nesse contexto, o papel das políticas públicas que, apesar de recentes, tratam da conservação ambiental é substancial para promover outras formas mais adequadas ao desenvolvimento. Para isso, o uso de instrumentos legais de proteção, conservação e recuperação ambiental tem sido em grande parte justificado em marcos históricos e legais universais e nacionais. Podemos iniciar citando os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODS) e a Con- ferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento Sus- tentável (Eco-92, Rio+10 e Rio+20), que reconhecem a necessidade de proteção da natureza como medida central para garantir a diver- sidade biológica, a preservação do ambiente, a redução da pobreza e a busca pela sustentabilidade. Um dos resultados que podem ser relacionados ao impacto des- ses marcos legais pode ser exemplificado na quantidade de áreas protegidas por país no mundo (Figura 10). Segundo a União Inter- nacional para a Conservação da Natureza (PROTECED..., 2020), até o Aqui assumimos sustentabi- lidade no escopo do tipo de desenvolvimento que atende à justiça social, à eficiência no uso de recursos naturais e aos proje- tos futuros de um determinado país ou Estado-nação. 2 A biosfera terrestre 129 ano de 2020 foram contabilizadas 258.725 áreas protegidas, cobrin- do aproximadamente 9,6% das terras emersas do planeta. Figura 10 Quantidade de áreas protegidas por país Fonte: Adaptada de IBGE, 2021. Áreas nacionalmente protegidas, no total do território nacional (%) Menos de 2 De 3 a 5 De 5 a 10 De 10 a 20 Mais de 20 Sem dados É importante destacar que esses conflitos só podem ser bem compreendidos no contexto de uma sociedade capitalista, cuja lógi- ca das relações sociais de produção é pautada na exploração máxi- ma dos recursos naturais. A contradição está exatamente no fato de que as formas de proteção da natureza devem garantir a continuida- de da exploração no futuro, e isso se torna, não à toa, uma questão de debate universal. No Brasil, particularmente, devemos considerar a Lei Federal n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Na- cional do Meio Ambiente (PNMA). Em linhas gerais, a PNMA está orientada para garantir a preservação, a melhoria e a recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, assegurando condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança na- cional e à proteção da dignidade da vida humana (BRASIL, 1981). 130 Fundamentos de Geografia Física Recomendamos a leitura das leis a seguir, pois apresentam os princí- pios legais da profissão e, diante dos objetivos e das finalidades, oferecem uma noção de outras possibilidades de atuação no mundo do trabalho. • Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Na- cional do Meio Ambiente (PNMA). Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm. Acesso em: 29 jan. 2021. • Lei n. 6.664, de 26 de junho de 1979, que disciplina a profissão de geó- grafo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970- 1979/l6664.htm. Acesso em: 29 jan. 2021. • Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000, que regulamenta e institui o Sis- tema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm. Acesso em: 29 jan. 2021. A PNMA apresentou princípios associados às práticas profissionais de geógrafos, conforme a Lei n. 6.664, de 26 de junho de 1979, e abriu caminho para a promulgação de outras leis federais de conservação ambiental. As Unidades de Conservação de Natureza (UC), que só fo- ram promulgadas em 18 de julho de 2000, com a Lei n. 9.985, são um exemplo desse avanço e constituem a principal estratégia governa- mental e legal para a manutenção da diversidade biológica in situ no território brasileiro. Em sua definição, uma UC se caracteriza por espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmen- te instituído pelo Poder Público com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção. (BRASIL, 2000) Observe que a questão da conservação ambiental não deve ser dis- sociada da participação da comunidade local e também que ela pode ser incluída nos projetos de planejamento urbano e regional. Esse avanço é bastante significativo quando são integradas também as es- tratégias práticas de análise da biogeografia. Como foi discutido, uma das práticas mais convencionais da biogeo- grafia é o reconhecimento dos territórios biogeográficos; além disso, A biosfera terrestre 131 é preciso conhecer processos de dispersão, vicariância e fragmentação biogeográfica. Vamos considerar, agora, como podemos atuar na neu- tralização ou amenização de processos de fragmentação, aumentando sua conectividade. Observe o esquema da estrutura de uma determi- nada paisagem: Figura 11 Esquema gráfico de representação estrutural de uma paisagem Matriz Mancha Mancha ManchaCorredores ecológicos Fonte: Elaborada pelo autor. IE SD E Br as il S/ A Podemos observar na Figura 11 três elementos da paisagem: (i.) a matriz – que é considerada o geossistema dominante e pode ser re- presentada por uma determinada homogeneidade e extensão biogeo- gráfica de uma área; (ii.) as manchas – que representam fragmentos florestais e habitualmente apresentam as características gerais do geossistema; (iii.) os corredores ecológicos – estruturas naturais ou construídas que servem para promover conectividade entre as man- chas (ODUM; BARRETT, 2008). Podem acompanhar rios, canais de dre- nagem, estradas, trilhas, diques, cercas etc. Agora imagine, como exemplo, esse esquema dentro de uma cida- de. Você pode primeiramente reconhecer o domínio de geossistema, que pode ser identificado no contexto da área urbana – utilizando as escalas e reconhecendo as espécies –, e em seguida avaliar as possibi- lidades de aumentar seus fluxos gênicos. Elaborar um plano, com esses aspectos, pode ser bastante positivo considerando o crescimento urbano nas cidades brasileiras, uma vez 132 Fundamentos de Geografia Física que grande parte da vegetação e dos cursos d’água é sumariamente alterada e impactada. Essa estratégia de trabalho, além de promover aumento da qualidade ambiental, pode ser somada às infraestruturas urbanas e integrada a parques, praças, áreas de lazer etc. e a outras prerrogativas legais anteriores ao PNMA, que indicam a obrigatorieda- de da zona de amortecimento, de mata ciliares, de proteção dos ma- nanciais hídricos etc. O debate atual sobre a conservação ambiental no Brasil, e em re- lação às UC, tem sido particularmente enriquecido pelas inclusões de movimentos sociais, compostos majoritariamente de povos oriundos de comunidades indígenas e tradicionais. Uma parte desse debate tem apresentado relevância por meio dos serviços ecossistêmicos, que, para além da valoração da natureza, isto é, da quantificação e precificação da dinâmica natural, visam atender às condições de cuidado, preservação e conservação enquanto estraté- gia de permanência da vida humana na Terra (DAILY, 1997). A bem da verdade, os conflitos socioambientais e os serviços ecos- sistêmicos se originam da forte crítica ao preservacionismo 3 , apon- tando que as necessidades ambientais sejam ancoradas também na valorização da diversidade cultural, na erradicação da pobreza, na jus- tiça social e na segurança civil, questões ainda incompletas no cenário brasileiro. Podemos destacar nesse contexto o conjunto de ameaças ambien- tais observadas no Brasil representadas na Figura 12, em que observa- mos a indicação do arco de desmatamentos nos domínios amazônico e do cerrado, concomitantes à agricultura baseada na grande proprieda- de para exportação. As áreas de forte urbanizaçãoe concentração de- mográfica, sobretudo nos domínios dos mares de morros, coincidem também com o eixo de grandes desastres naturais, representados pe- los desabamentos. Além desses processos, ainda podemos citar os que ocorrem de maneira setorizada, como a arenização (aumento do teor de areia nos solos) nas pradarias, a desertificação (diminuição do potencial produti- vo e fértil) na Caatinga e a biopirataria (uso ilegal de recursos naturais ou conhecimento tradicional) na Amazônia. Concepção radical da conser- vação ambiental que entende a preservação da natureza sem a interferência de seres humanos, sendo restrita exclusivamente à educação ambiental, ao ecotu- rismo e à pesquisa científica. 3 A biosfera terrestre 133 Figura 12 Ameaças ambientais identificadas no território nacional Figura 12 Ie sd e Br as il S/ A Fonte: Adaptada de Girardi, 2008. Domínio amazônico Arco do desmatamento Pantanal Domínio dos cerrados Domínio da Caatinga Desmatamento Desabamentos Domínio dos campos Pinheiros Altitudes entre 200 e 500 metros oinrócirpaC ed ocipórT 40 W 60 W Equador AF F Esse quadro evidencia que ainda não foi desenvolvido um modelo de desenvolvimento equitativo que considere formas justas e adequa- das de ocupação do território brasileiro, levando em conta as dinâmi- cas dos sistemas naturais. CONSIDERAÇÕES FINAIS A biogeografia, como campo da Geográfica Física orientado para o estu- do da biosfera e da distribuição espacial dos seres vivos, tem desenvolvido uma série de possibilidades de análises e investigações sobre a dinâmica natural, sobretudo por meio das contribuições da teoria da evolução. 134 Fundamentos de Geografia Física A perspectiva da unidade entre sociedade e natureza também é bas- tante presente no desenvolvimento da análise biogeográfica, uma vez que o conhecimento da fauna e da flora sempre atende a critérios políticos, sociais e econômicos. Atualmente, a biosfera terrestre tem sido o centro do debate interna- cional e os marcos legais são um exemplo dos desafios que ainda pre- cisamos assumir para a transformação do futuro. Os conhecimentos e conceitos desenvolvidos na biogeografia sem dúvida auxiliam a Geografia Física a ampliar o escopo do debate e as formas de resolução dos proble- mas, das ameaças e dos conflitos ambientais. ATIVIDADES 1. Com suas palavras, explique a importância do fenômeno da vida para a formação do sistema terrestre. 2. Como você explica a dinâmica natural no território brasileiro? 3. Quais processos e eventos são determinantes para a organização dos domínios morfoclimáticos no Brasil? 4. Quais critérios podem ser utilizados para uma análise biogeográfica? 5. Pense em um dos problemas ambientais de sua comunidade, cidade ou região. Qual proposta você apresentaria para solucioná-lo por meio da biogeografia? Conte para nós. REFERÊNCIAS AB’SABER, A. N. Domínios morfoclimáticos e províncias fitogeográficas do Brasil. Orientação, São Paulo, n. 3, p. 45-48, 1967. BENNETT, A. F. Enlazando el paisaje: el papel de los corredores y la conectividad en la conservación de la vida silvestre. San José, Costa Rica: UICN, 2004. BRASIL. Lei n. 6.664, de 26 de junho de 1979. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 27 jun. 1979. 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Nosso interesse é proporcionar a você reflexões que envol- vam um olhar crítico sobre o futuro do planeta e os projetos de humanidade, que, no escopo da crise ambiental atual, podem ser admitidos como consequências dos processos de colonização, in- dustrialização, urbanização e globalização. Conheceremos as políticas ambientais nacionais e internacio- nais, com a relevância da consciência ambiental, da pegada ecoló- gica, do planejamento e da gestão ambiental como instrumentos fundamentais para superação do modelo atual de desenvolvi- mento e resolução da crise. Essa opção também deve atender a grande parte das práticas profissionais de geografia no mundo do trabalho que aqui serão mais bem direcionadas, baseando-se na educação ambiental. Não esqueça: escreva suas dúvidas, faça anotações e comen- tários. Esses conhecimentos podem ser bem importantes em sua trajetória, hoje e no futuro.6.1 Crise ambiental Vídeo A crise ambiental, crise do nosso tempo, geralmente se refere ao conjunto de problemas ambientais, isto é, os processos resultantes das alterações na dinâmica dos sistemas naturais, em que está implícita a negatividade nos sistemas sociais e produtivos no que se refere a da- nos materiais, salubridade, proteção civil e segurança social. Mudanças globais 137 Essa crise também é global. A poluição da água, do ar e do solo, o desmatamento, a erosão, o depósito e a disposição de resíduos e lixo em áreas inadequadas, a caça e a pesca predatórias, o desperdício de comida, a finitude dos recursos naturais, a desertificação, o aquecimen- to global, as mudanças climáticas e os eventos extremos, bem como os desastres e riscos, são alguns exemplos de processos que resultam em crise ambiental ou a potencializam em todos os lugares do planeta. A preocupação com esses fatores ganhou destaque mundial e foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), principalmen- te a partir do ano de 1970, reconhecido historicamente pela realização de conferências internacionais e da pegada ecológica. Sobre esse contexto, podemos citar três grandes marcos. São eles: 11 33 22 Primeira conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente humano, em 1972, conhecida como Conferência de Estocolmo. Ali, indicou-se a necessidade de equilíbrio entre desenvolvimento econômico e redução da degradação ambiental. Earth First! (Terra primeiro!), grupo surgido em 1978 que propunha uma drástica redução populacional e a desocupação humana de vários ecossistemas. Our Common Future (Nosso futuro comum), documento elaborado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ONU) de 1988. Este apresentava o conceito de sustentabilidade ambiental e social, planejamento familiar e repasse de recursos de sistemas produtivos predatórios para sistemas produtivos sustentáveis. Em síntese, esses marcos colocaram a máxima da problemática am- biental e sugeriram a paralisação imediata do modelo contemporâneo de crescimento (econômico e populacional), com promulgação imedia- ta dos danos e alterações ambientais, por meio do desenvolvimento sustentável. Por esse lado, a crise ambiental tem nos oferecido a oportunidade de questionar e avaliar os conhecimentos que temos sobre o mundo; junto a isso, possibilitou-nos refletir e reelaborar os projetos de socieda- de que podemos construir por opção própria. Consideramos que essa concepção otimista, uma vez que os caminhos para transformação da O termo pegada ecológica foi criado pelos cientistas canadenses Mathis Wackernagel e William Rees, em 1990. Hoje, é uma expressão internacional- mente reconhecida para medir a utilização de recursos naturais pelos seres humanos. A pegada ecológica está relacionada ao desenvolvimento sustentá- vel, isto é, ao uso racional e equitativo, com justiça social, dos recursos naturais (SCARPA, 2012). Saiba mais Para se aproximar do debate da pegada eco- lógica, recomendamos a leitura da cartilha Pegada ecológica: qual é a sua?, produzida pela equipe de Comunicação Institucio- nal da Rede Clima/MCTI, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). SCARPA, F. São José dos Campos: Inpe, 2012. Disponível em: http://www.inpe.br/ noticias/arquivos/pdf/Cartilha%20 -%20Pegada%20Ecologica%20 -%20web.pdf. Acesso em: 12 fev. 2021. Leitura http://www.inpe.br/noticias/arquivos/pdf/Cartilha%20-%20Pegada%20Ecologica%20-%20web.pdf http://www.inpe.br/noticias/arquivos/pdf/Cartilha%20-%20Pegada%20Ecologica%20-%20web.pdf http://www.inpe.br/noticias/arquivos/pdf/Cartilha%20-%20Pegada%20Ecologica%20-%20web.pdf http://www.inpe.br/noticias/arquivos/pdf/Cartilha%20-%20Pegada%20Ecologica%20-%20web.pdf 138 Fundamentos de Geografia Física crise pode ser garantida, em certa medida, pela reflexão de um mundo melhor no futuro. Com base nessa perspectiva, entendemos que somente a história nos instrui sobre o significado das coisas; contudo, é preciso sempre recons- truí-la, para incorporar novas realidades e ideias ou, em outros termos, para levarmos em conta que o tempo muda tudo (SANTOS, 2000). Como diz o escritor João Guimarães Rosa (1956, p. 17), em sua obra Grande Ser- tão: Veredas, “o senhor mire e veja o mais importante. O bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Isto me alegra”. Se a crise ambiental nos oferece possibilidade de mudanças, é impor- tante conhecermos seus aspectos e contextos partindo de sua origem. Podemos considerar que essa crise tem origem nas ideias difundidas no interior da modernidade, ou seja, no momento das revoluções científicas e produtivas, que serviram de base para a legitimação do progresso capi- talista, da formação dos Estados-nações, do colonialismo e da exploração dos recursos naturais (humanos, inclusive) em escala global. Antes da modernidade (séculos XVI–XVIII), natureza e sociedade eram representadas por meio de uma mistura de elementos que envol- via conhecimentos da filosofia antiga e da filosofia e religião medievais; mas entre os séculos XVI e XVIII, as transformações culturais e produti- vas ofereceram outros debates que valorizavam a razão, a ciência e o moderno em detrimento da fé, da religião e da tradição. Sobre o processo colonizatório na construção da crise ambiental, podemos citar as grandes navegações, que são exemplo dos impactos da modernidade e do domínio do ser humano sobre a natureza. De fato, muitas descobertas e avanços científicos foram possíveis por meio das viagens e expedições coloniais. Dotados de bússolas, relógios de ares, astrolábios e cartas náuticas, os estudiosos e viajantes possibilitaram o aumento da riqueza para além-mares. Se o velho continente, a Europa, consolidava-se com os Estados nacionais e pelo mercantilismo, as novas localidades ofereciam condições de consumo de bens extremamente valiosos: pedras preciosas, tecidos, especiarias, ali- mentos, dentre outros. O ambiente, desse modo, foi ampliado e não se limitava mais aos territórios do continente europeu, do norte da África e leste da Ásia. Agora, o novo mundo – as Américas e posteriormente o sul da África e Oceania – dava ao ser humano (europeu) a sensação da conquista plena do planeta, seja pela ideia de controle total da natureza ou pelo domínio dos povos. O entendimento da crise ambiental passa necessa- riamente pelo reconhe- cimento na ordem da produção do conheci- mento e desenvolvimento da humanidade. Desse modo, sugerimos a leitura do texto “A geografia está em crise. Viva a geografia!”, de Carlos Walter Porto Gonçalves. Considerado um clássico, o artigo foi publicado quando os debates che- gavam ao seu auge. PORTO-GONÇALVES, C. W. A geografia está em crise. Boletim Paulista de Geografia, n. 55, p. 5-30, 1987. Artigo Mudanças globais 139 Em outras palavras, o pensamento moderno, na busca de uma ver- dade objetiva, distinguiu objetos claros e definidos. Pelo método científico, era possível desvendar os mistérios da natureza, a fim de melhor dominá-la; assim, ergueu-se o jogo das dicotomias e das cri- ses estruturais de uma sociedade moderna, eminentemente contra- ditória e desigual (PORTO-GONÇALVES, 1989). Nesse novo momento da história, a natureza começou a ser vis- ta como fonte de recursos necessários à manutenção da vida e da reprodução do ser humano. A explicação do mundo em seu sentido orgânico (fauna, flora e microrganismos) e inorgânico (rocha, relevo, solo e clima) nos coloca na condição de observadores, dominadores, sem laços de pertencimento com o mundo natural e isentos de suas responsabilidades. Essa noção tem sido a base para promover a produção de bens e serviços, consumidos para satisfazer as necessidades dos seres humanos e com uma imaginação coletiva simulada que ainda impõe limites civilizacionais, atribuindo, sobretudo, uma determinação his- tórica irreversível e irreparável. No caso do Brasil,e em grande parte dos países colonizados, es- sas concepções legitimaram a forma de colonização, urbanização e industrialização e a necessidade irracional de matar povos indíge- nas, escravizar negros, concentrar a riqueza e reproduzir a pobreza, a fome, o preconceito, o machismo e o racismo (PORTO-GONÇAL- VES, 1989; SPOSITO, 2005). A miséria resultante desse processo implicou a impossibilidade de exigir dos agentes sociais responsabilidades, o que caracterizaria não só o respeito à natureza (natural e humana), mas também o direito à cidadania. Nesse sentido, a crise ambiental é uma crise civilizatória (melhor denominada crise ambiental-civilizatória), resultado de um tensiona- mento que representa como ponto máximo o ápice dos limites reais do capitalismo até a segurança da humanidade. De acordo com Leff (2001), podemos reconhecer quatro limites, conforme apresenta- mos na Figura 1. 140 Fundamentos de Geografia Física Figura 1 Os limites da crise ambiental-civilizatória Pressões ambientais que diminuem as capacidades de sustentação da vida. Diacronia entre os ritmos naturais (cíclicos e variáveis) e produtivos (crescente e linear). Permanência da pobreza e da desigualdade. Crescimento demográfico e maior demanda de energia e recurso. POPULACIONAL ECOLÓGICO ECONÔMICORIQUEZA Fonte: Elaborada pelo autor com base em Leff, 2001. Em síntese, o limite do crescimento econômico é dado pela finitu- de e escassez dos recursos naturais, bem como da diacronia entre os ritmos naturais, sociais e produtivos. O limite populacional ocorre por- que o aumento demográfico nas últimas décadas tem demandado um significativo consumo de recursos e uma urbanização na escala plane- tária. O limite dos sistemas naturais e ecológicos, devido a pressões ambientais e capacidades de sustentação da vida, são sumariamente diminuídos em face da degradação, da poluição e do desmatamento, em suma, das transformações históricas da paisagem. Por fim, o limite da riqueza produzida, apesar do alto nível de sofisticação técnico-cien- tífica, tem demonstrado que a humanidade ainda se mantém refém da pobreza, da desigualdade social e dos desastres naturais – problemas aparentemente insolúveis ou inacabáveis. Diante desse cenário, vemos processos de poluição (do ar, da água, dos solos) e de contaminação, provocada por agrotóxicos, fertilizantes, destinação, assim como manejo não adequado de resíduos sólidos, queimadas e desmatamento ilegal, perda da biodiversidade, crises hídri- cas, entre outros. Esses impactos nos colocam em um paradoxo: como nos desenvolvermos economicamente sem degradar o ambiente? Em diacronia: conjunto de fenômenos que ocorrem e desenvolvem-se pelo tempo histórico. Glossário Mudanças globais 141 outros termos: como conservar os recursos naturais e utilizá-los de ma- neira racional e justa sem empobrecer e desigualar seres humanos? Observe que todos esses processos podem ser explicados geo- graficamente, por meio das relações entre sociedade e natureza, es- pecialmente depois que grupos sociais considerados hegemônicos reduziram a natureza à fonte de recursos, que, atualmente, é, de fato, um dos mecanismos de concentrar a riqueza e o poder (SMITH, 1988). Você também pode perceber que o limite da crise tem base nos limites do modo de produção capitalista, sendo que seu elemento fundamental é a escassez dos recursos. Essa escassez, por sua vez, é material e está incorporada a uma relação social e global. Em resumo, todos nós (ricos e pobres, adultos e crianças, seres do mundo inteiro) consumimos a natureza nas mesmas proporções; nessa perspectiva, a crise é global e democrática. Contraditoriamente, o modelo econômico capitalista precisa de su- cessivos e reiterados processos de crescimento (lineares, somativos e acumulativos) em diversos sentidos. Contudo, não há no planeta um sis- tema natural, social e humano que corresponda sempre a essas propor- ções e patamares previamente estabelecidos, esperados e desejados. Nesse sentido, é importante reiterar que essa concepção é sempre designada por meio de perspectivas naturalistas, assumindo como fator essencial de geração da crise ambiental-civilizatória o aumento populacional, seja pelos processos acelerados de urbanização (concen- tração das pessoas em cidades, o êxodo rural e a precariedade dos serviços urbanos) ou pelo consumismo, que em razão do aumento da demanda por energia e recursos também produz uma quantidade gi- gantesca de resíduos e lixo. Por isso, a concepção naturalista da crise deve ser sempre colo- cada em um quadro complexo de interpretação, já que sua forma de operar é resultado ou argumento para decisões eminentemente geopolíticas e estratégicas. O sentido é que a culpabilização do au- mento populacional como fonte da crise serve para manter as ló- gicas de exploração do trabalho, da concentração da riqueza, das relações de poder tanto na escala internacional (entre países) quan- to nacional (dentro do país). 142 Fundamentos de Geografia Física Esse tipo de manifestação é vista, por exemplo, no empobrecimen- to dos países subdesenvolvidos, também chamados de países de capi- talismo periférico. Em virtude de concentrarem uma diversidade de matérias-primas – riquezas naturais, como ferro, ouro, água etc. –, suas relações de exportação e importação produzem a integração interna do território por um lado e o aprofundamento das diferenças regionais e desigualdades sociais por outro (SANTOS; SILVEIRA, 2001). Não é coincidência que esses processos também vêm imbuídos de muita concorrência e individualismo, precarização da saúde e do traba- lho, discriminação, preconceito etc. Não é por acaso que grande parte dessas ideias estão implícitas em práticas que naturalizam o genocídio, a xenofobia, o fascismo, o racismo, o machismo, o capacitismo, a LGB- TQIA+fobia, entre outros. Desse modo, a concepção naturalista da crise ambiental-civilizató- ria tende a normalizar as relações sociais de poder e de produção, ao ponto de se constituir também um dos pilares para manutenção dos sistemas de opressão e de modos de violência, sobretudo quando utili- zados para privar e retirar direitos sociais. Nesse jogo, o acúmulo de processos e o intercruzamento das rela- ções sociais – assimetria de poder, sistemas de opressão, desigualda- de, exclusão, empobrecimento – auxilia esses agentes hegemônicos a subjugarem outros seres humanos, impondo a eles uma racionalidade instrumental que os desumaniza e reduzem-nos à naturalização. Em outras palavras, uma parte dos seres humanos se torna recurso e po- dem ser utilizados como tal. Além disso, usa-se a natureza para explo- ração e enriquecimento da outra parte (hegemônica). Os grupos sociais marginalizados, periferizados, segregados e vul- nerabilizados são um bom exemplo do impacto que a concepção natu- ralista de crise traz. Primeiro porque grande parte dessas populações forma a classe trabalhadora; segundo porque essas pessoas são mais expostas ao ônus de qualquer impacto econômico, por isso recebem desproporcionalmente qualquer dano ambiental (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009). O mecanismo pelo qual sociedades desiguais destinam despro- porcionalmente os danos ambientais às populações se chama injusti- ça ambiental. Ela geralmente ocorre com impactos mais importantes, em povos étnicos tradicionais, em bairros operários e em populações capitalismo periférico: termo utilizado para contrapor países chamados desenvolvidos ou de capitalismo central. Glossário capacitismo: forma de precon- ceito com pessoas deficientes. LGBTQIA+fobia: violência con- tra pessoas LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexo, assexual e outros grupos e variações de sexualidade e gênero). Glossário De modo abrangente, grupos sociais marginalizados, periferi- zados, segregados e vulnerabili- zados são aqueles espacialmente separados ou excluídos pela desigualdade social. Diferen- ciam-se por serem submetidosa processos de destinação de moradia em áreas distantes dos centros urbanos ou do centro da cidade (marginalização), com formas compulsórias e jurídicas que estimulam a saída de áreas valorizadas para outras, geralmente estruturadas de maneira parca ou com urbani- zação precária (periferização); há também o impedimento do usufruto pleno de direitos a transporte, moradia, mobilidade e do acesso a equipamentos e serviços urbanos (segregação), bem como níveis desiguais de exposição e capacidade de suporte a ameaças naturais (vulnerabilização). Saiba mais Mudanças globais 143 marginalizadas e vulnerabilizadas. Quando as injustiças ambientais re- caem implacavelmente sobre grupos étnico-raciais, damos o nome de racismo ambiental, que não se configura apenas como ações e decisões de cunho ambiental com evidente conotação radicalizada ou racista, mas também por práticas que impactem diretamente o grupo étnico e racial, independentemente do qual tenha sido a origem (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009). A falta de saneamento básico é um dos principais e essenciais fatores de degradação ambiental, já que se associa diretamente a doenças, à precariedade das condições de moradia, aos níveis de violência, com a pobreza social, à marginalização e à segrega- ção (JUNGMANN, 2011). A contradição é que a falta de saneamento básico causa mais impacto aos pobres do Brasi do que os processos que já são bastante danosos, como desmatamento e produção de energia; isso porque eles vivem em situação de emergên- cia permanente. Essa situação não isenta os impactos ambientais provocados pelo des- matamento e por projetos de energia, sobretudo para comunidades tradicionais e povos indígenas, mas demonstra a seletividade de quem impacta e de quem é impactado. A abordagem geográfica da crise ambiental-civilizatória deve assu- mir uma postura posicionada, crítica e humana. As alterações antrópi- cas, ocorridas em razão das mudanças dos sistemas naturais, as quais foram provocadas por atividades humanas, devem ser analisadas de acordo com as transformações e a proporção da degradação provoca- da pelos seres humanos. Em uma sociedade na qual grupos hegemônicos determinam o conjunto da exploração e os rumos da nação, as alterações antrópi- cas devem ser compreendidas como uma condição relativa à atividade empreendida e ao modo de vida desenvolvido; o ônus e o bônus da ex- ploração das riquezas naturais e do trabalho são distribuídos desigual e seletivamente. Em outras palavras, ricos e pobres não usam recursos da mes- ma forma e na mesma intensidade. O importante é garantir, mesmo com a crise, padrões melhores e mais justos dos danos ambientais para além do que pode ser equitativo ou igual. Monteiro (2003, p. 17) considera que é: cabalmente comprovado pelo fato de que, desde a Conferência de Estocolmo (1972), se comprovou que a Questão Ambiental não só dificulta, mas inviabiliza a sintonia de opiniões dos paí- ses ricos, desenvolvidos (dominantes) e aqueles em esforço de Você pode ter mais informações sobre injustiça social, racismo ambiental e justiça social assistindo ao vídeo Interfaces do Racismo: racismo ambiental, publicado pelo canal da Defen- soria Pública da União (DPU) na plataforma YouTube. Disponível em https://youtu. be/3IxobCS1n-k. Acesso em: 12 fev. 2021. Vídeo https://www.youtube.com/channel/UC2EZg9gpSDph8XQEhvgYsuw https://www.youtube.com/channel/UC2EZg9gpSDph8XQEhvgYsuw https://youtu.be/3IxobCS1n-k https://youtu.be/3IxobCS1n-k 144 Fundamentos de Geografia Física desenvolvimento (dominados). Vinte anos após, durante a Con- ferência do Rio de Janeiro (ECO 92), não houve sensíveis pro- gressos, já que os “resultados” não ultrapassaram a categoria de inócuos protocolos de intenções. Sendo assim, as estratégias de combate aos impactos da cri- se ambiental têm sido elaboradas com base no conceito de justiça ambiental, que pode ser entendido como o conjunto de princípios e práticas que asseguram a nenhum grupo humano (social, étnico, racial, ou gênero) suportar, de maneira desproporcional, as conse- quências ambientais negativas tanto as realizadas por operações econômicas, advindas de decisões políticas e de programas federais, estaduais e locais, quanto surgidas pela ausência ou omissão dessas políticas (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009). Pela justiça ambiental, a crise ambiental-civilizatória assume um ca- ráter importante na transformação da sociedade, principalmente por- que seus níveis de tratamento incorporam a complexidade da relação sociedade-natureza. A resolução dos problemas ambientais pode ser incorporada aos demais ramos da geografia, como a regional, a urba- na, a agrária, a social, a de gênero, a étnica, a racial e a inclusiva. Com isso, segundo Acselrad, Mello e Bezerra (2009), assegura-se tanto o acesso justo aos recursos ambientais do país quanto o acesso amplo às informações relevantes que lhes dizem respeito, favorecen- do a constituição de movimentos e a participação de sujeitos na cons- trução de modelos alternativos e democráticos de desenvolvimento. Aprofundaremos esses aspectos na próxima seção. Vale abordar a necessidade de estratégias de conservação da natureza no Brasil, que, em suma, orientam os projetos de futuro da nação e do planeta. 6.2 O futuro da humanidade e do planeta Vídeo Segundo Vesentini (1997), o modelo de progresso e de desenvol- vimento construído pelos agentes hegemônicos da modernidade é um dos pilares da crise ambiental-civilizatória e um dos elementos principais para entender as mudanças globais. Nesse sentido, po- demos dizer que essa crise é consequência direta dos processos de colonização, industrialização, urbanização e globalização, dentre os quais citamos: inócuo: que não causa dano material, físico ou orgânico; que não é nocivo ou prejudicial. Glossário Mudanças globais 145 Ye llo w du ck / s hu tte rs to ck Banalização da vida humana, sobretudo no que se refere ao desrespeito ao outro e à condição de seres individuais ou de grupos socioculturais e étnicos distintos. Aceleração do ritmo de vida, em que a possibilidade de se fazer tudo acaba por ser pouco e, com isso, há o surgimento das frustrações e doenças contemporâneas. Demanda cada vez maior de recursos energéticos de base não renovável. Perda de biodiversidade, com a destruição e degradação dos sistemas ambientais, em virtude do emprego cada vez maior de aditivos químicos nas atividades agrícolas e na produção de alimentos, além de fatores como poluição por resíduos sólidos, lixo radioativo, dentre outros (RIBEIRO; GUSMAO; LIMONAD, 2012). Mas como efetivar um processo que minimize ou neutralize es- ses impactos? Além dos parâmetros da justiça ambiental, precisa- mos conhecer como outras sociedades entendem e convivem com seu entorno natural; é importante conhecer outras concepções de desenvolvimento. Diante dessa crise, uma série de movimentos e organizações sociais de resistência ao modelo hegemônico de progresso capitalista tem evi- denciado como prioridade a essência da diversidade cultural, natural e humana (RIBEIRO; GUSMAO; LIMONAD, 2012). Dentre esses, o movi- mento ambientalista se destaca como um dos carros-chefes; além dele, movimentos sociais por terra, moradia, bem como de povos indígenas e negros, também têm colocado pautas importantes para superação do modo atual. A definição de uma agenda global (com mecanismos políticos e ins- tituições) é um exemplo que nos indica os rumos na área ambiental com base no conceito de desenvolvimento sustentável. Essa é uma possibilidade de rearranjar a posição e a relação entre os países de todo mundo e estabelecer ações individuais para preservação da biodi- versidade e conservação ambiental (VESENTINI, 1997). Nesse sentido, pensar no rumo das humanidades requer necessa- riamente refletir sobre projetos de futuro, pensar em como construir coletivamente uma humanidade que se relaciona com a natureza e com concepções além daquelasque originaram a crise ambiental-civilizatória. A Agenda 21 Global é um bom exemplo dos mecanis- mos universais que orientam as políticas ambientais. O documento foi elaborado na Eco 92 – Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Disponível em: http://www.eco- logiaintegral.org.br/Agenda21. pdf. Acesso em: 12 fev. 2021. Saiba mais http://www.ecologiaintegral.org.br/Agenda21.pdf http://www.ecologiaintegral.org.br/Agenda21.pdf http://www.ecologiaintegral.org.br/Agenda21.pdf 146 Fundamentos de Geografia Física Vale ressaltar que o conceito de desenvolvimento não pode ser redu- zido à ideia de crescimento econômico, porque é comum associarmos a palavra desenvolvimento ao aumento da riqueza, de empregos, de renda, do potencial de compra etc. De modo abrangente, a diferença entre desenvolvimento e crescimen- to está no fato de o primeiro se referir ao movimento ou ao processo de mudanças qualitativas nas realidades individuais, populacionais, ambien- tais, sociais e humanas, com vistas à superação de problemas antigos e transformações projetadas para o futuro. Já a principal referência para o crescimento é o caráter quantitativo, representado em grande parte por variações de indicadores econômicos, como no produto interno bruto (PIB), na produtividade agrícola, no emprego, na renda per capita etc. O crescimento pode ser entendido como um processo dentro do desenvolvimento, contudo, o desenvolvimento não pode ser reduzido ao crescimento. É importante destacar que a característica fundamen- tal desse conceito é sua demonstração como fato histórico para a ela- boração de um projeto de futuro. Na geografia, em particular, o desenvolvimento acontece em luga- res e períodos sempre determinados pelos grupos humanos em socie- dade. É por essa razão que o desenvolvimento nunca é uniforme, pleno e igualitário. Ele sempre evidencia como as diferentes condições sociais entre países, regiões, cidades, lugares, instituições e grupos sociais são construídas no decorrer da história; ainda, como cada um deles não marcha como um batalhão homogêneo e harmônico rumo à resolução e superação de problemas antigos. Pelo contrário, eles caminham de maneira descompassada e anacrônica, já que o debate sobre os pro- jetos de futuro, sobre o desenvolvimento, não acontece sem conflitos. Apesar do seu caráter variado, sendo comum a outros campos e setores da sociedade 1 , você já deve ter percebido que o debate é sem- pre orientado para o futuro. Isso é particularmente positivo para os profissionais de geografia, pois, assim, podem atuar na mediação do processo de incorporação da natureza ao sistema produtivo, com me- didas possíveis, reais e justas. Como podemos atuar na elaboração desses projetos de futuro? Que tipos de desenvolvimento temos assumido na Geografia Física para construir essas possibilidades? No Brasil, grande parte do debate e das decisões sobre o desenvolvimento é obtida principalmente por meio de normatizações legais, as quais são elaboradas pelo estado nacional. anacrônico: que apresenta anacronismo; que contraria a cronologia, ou seja, os eventos em lugares distintos não acontecem ao mesmo tempo nem sob a mesma frequência e intensidade, pelo contrário, o desenvolvimento nos lugares ocorre de modo particular e ím- par, não se repete; não acontece da mesma maneira. Glossário É comum, também, ouvirmos sobre desenvolvimento humano, social, econômico, sustentável, desigual, nacional, regional, local, estratégico, institucional etc. 1 Mudanças globais 147 Além da união e das unidades federativas (estados), os municípios são compreendidos como unidades de gestão territorial principais para envolver essas políticas. São exemplos: a Política Nacional do Meio Am- biente (PNMA), a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Além dessas, in- tegram-se também outras que podem ser dimensionadas no Estatuto da Cidade, na Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNM) e na Política Nacional de Resíduos Sólidos (BRASIL, 2001, 2009, 2010). Por se constituírem marcos legais, associados diretamente às práticas profissionais dos profissionais de geografia, recomendamos a leitura das leis a seguir, que podem ser muito importantes para trabalhos futuros. • Estatuto da Cidade: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/ LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em: 12 fev. 2021. • Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNM): http://www.planal- to.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12187.htm. Acesso em: 12 fev. 2021. • Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS): http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm. Acesso em: 12 fev. 2021. Na realização do trabalho do geógrafo, essas políticas devem ser implementadas de modo multidimensional e de acordo com a escala local. No Brasil, a ideia é que a política ambiental e de desenvolvimento seja implantada nos municípios e contemple a organização de planos sistematizados em pelo menos duas frentes concomitantes e articula- das, como mostra a Figura 2. Figura 2 Atuação do geógrafo na política ambiental no Brasil Política Social Energia Produtivo Educacional Cultural Ar tic ul aç ão e sp aç o- te m po Articulação espaço-tem po Fonte: Elaborada pelo autor. http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%209.985-2000?OpenDocument 148 Fundamentos de Geografia Física As políticas ambientais e seus planos de desenvolvimento devem ser elaborados por meio de propostas estratégicas, no tempo e espaço que contem com uma sistematização para incorporar ações práticas realiza- das em etapas ou fases de curtíssimo, curto, médio, longo e longuíssimo prazo. Além disso, essas políticas devem ser pautadas na integração so- cial, política, educacional, produtiva, cultural, técnica com suas institui- ções – estado, poderes, sociedade civil, movimentos sociais, instituições de ensino, institutos de pesquisa, setor privado, entre outros. A atuação profissional do geógrafo, na elaboração e efetivação das políticas ambientais e de desenvolvimento, é absorvida em pelo menos dois campos: um que se refere ao planeamento e à gestão ambiental e outro que incorpora os processos da educação geográfica, em que destacamos a educação ambiental. Aprofundaremos esses temas nas próximas seções. 6.3 Planejamento e gestão ambiental Vídeo Antes de discutirmos sobre planejamento e gestão ambiental, é im- portante relembrar que a preocupação com os problemas ambientais é reflexo de um movimento social em escala global que expressa os desafios e as dificuldades relacionadas à qualidade de vida das pes- soas. Nesse sentido, são objetos de reflexão as formas de produção de energia, os modelos de desenvolvimento, a conscientização ambiental, a preservação da biodiversidade, a gestão racionalizada dos recursos naturais e resíduos etc. Nossa contribuição como geógrafos está em utilizar conceitos da área para oferecer, aos diferentes setores da sociedade e campos cien- tíficos, uma organização sistemática de ações, decisões e meios neces- sários para se atingir metas e objetivos dessas políticas ambientais e de desenvolvimento. Basicamente, é possível atuar tanto no setor público quanto no se- tor privado. O mapeamento de demandas pode ser realizado com o uso de geotecnologias, partindo de análises, estudos, reconhecimen- tos, levantamentos e pesquisas de caráter físico-geográfico, biogeo- gráfico, antropogeográfico e geoeconômico. As atividades devem ser desenvolvidas nos termos da Lei n. 6.664 (BRASIL, 1979), conhecida como Lei do geógrafo. Mudanças globais 149 Nesse escopo, o planejamento e a gestão são algumas das diversas formas sob as quais podemos pensar e promover o desenvolvimento, entendido aqui sempre como processos para superação de problemas antigos e criação de projetos alternativos de sociedade. É justamen- te por essa razãoque vale distinguir o que é planejamento e o que é gestão. O planejamento se refere ao estabelecimento de um plano de ação que deve ser desenvolvido em conformidade com uma definição de co- nhecimento, revisão ou previsão de algum fenômeno. Em outras pala- vras, trata-se de uma organização intencional do futuro, na qual devem ser definidas etapas e estratégias para alcançá-lo, simulando desdo- bramentos possíveis, seja como forma de prevenir prováveis proble- mas associados durante o processo, como tirar proveito para extrair seus benefícios (SOUZA, 2001). A gestão é uma ação incorporada ao planejamento. Trata-se funda- mentalmente de gerenciar, monitorar, administrar uma situação com os recursos presentemente disponíveis, tendo em vista necessidades imediatas. Em síntese, o planejamento está encarregado do futuro, daquilo que se espera da gestão, do presente, daquilo que temos e podemos realizar. Na ciência geográfica, eles podem assumir diversas aplicações se- gundo adjetivação, podendo variar entre nacional, regional, territorial, urbano, municipal etc. O planejamento e a gestão ambiental, em espe- cífico, fazem parte do conjunto de políticas ambientais que explicitam princípios de administração, gerenciamento, monitoramento e manejo do conjunto de ações destinadas à proteção, ao uso, à destinação e à qualidade ambiental, seja de uso público ou privado. Desse modo, é levado em consideração o conjunto de atividades técnicas, administrativas, legais e normativas, que só podem ser bem operacionalizadas com a participação ativa das comunidades, as quais os ambientes estão associados. Possíveis melhorias da qualidade am- biental na conservação da biodiversidade e na produção de energia são mais bem ajustadas aos projetos do futuro da nação quando partem dos contextos locais. Com relação à qualidade ambiental, por exemplo, os processos de planejamento e gestão são designados para estabelecer um padrão 150 Fundamentos de Geografia Física de satisfação que envolve tanto a análise de elementos naturais (meio físico e biológico) quanto a análise de antrópicos (economia, cultura, relações sociais) (LIMA, 2013). A Qualidade Ambiental Urbana (QAU) abrange condições ambientais mínimas, idealizadas e percebidas por uma população de acordo com sua cultura e seu desenvolvimento. Segundo Minaki (2014), essas condições estão diretamente ligadas à qualidade de vida, conceito mais abrangente e unificador de todos os elementos que trazem melhoria de vida e satisfação aos habitantes nas cidades. Com base nesses enfoques, a qualidade ambiental é um importante recurso para gestão e planejamento urbano; ao mesmo tempo, é um indicador para avaliação integrada da qualidade de vida no campo e nas cidades. A ideia é que os elementos ambientais possam ser interpretados por meio de medidas, que incorporadas ao planejamento, orientem políticas territoriais, diminuam os impactos da degradação ambiental e aumentem a qualidade de vida. De acordo com Lima (2013), em muitos casos, avaliar a qualidade ambiental nos municípios significa também diminuir custos para as administrações públicas, o que necessariamen- te acarreta a redistribuição de recursos para setores mais críticos à me- lhoria da qualidade de vida, como educação, saúde, lazer, emprego, renda, segurança etc. De maneira prática, a qualidade ambiental pode ser avaliada por meio da reunião de atributos ou indicadores ambientais, os quais, se- gundo Minaki (2014), têm ou não natureza física e estão profundamen- te articulados ao binômio urbano-natural. O estudo valoriza linguagem cartográfica, pois o mapeamento das métricas e dos índices ambientais auxiliam efetivamente o reconhecimento espacial de áreas e períodos críticos, bem como as formas de neutralização e transformação. Dos indicadores mais propagados na análise da qualidade ambien- tal urbana, destacam-se os mapas de uso e ocupação da terra, de den- sidade populacional, de edificações, de espaços livres de edificação (contemplando a cobertura vegetal e áreas verdes), de poluição (acús- tica, visual e atmosférica), de drenagem, de verticalização, de tempera- tura e de umidade relativa do ar. Mudanças globais 151 O artigo “Análise da qualidade ambiental urbana”, de Minaki e Amorim, publi- cado na revista Mercator em 2012, é um exemplo de estudo sobre qualidade ambiental urbana. Durante a leitura, procure observar os produtos cartográ- ficos aplicados e as formas de análise empregadas. Acesso em: 12 fev. 2021. http://www.mercator.ufc.br/mercator/article/view/648 Artigo Outra possibilidade de atuação que tem sido recentemente deba- tida é a valorização dos saberes e das culturas tradicionais. Tem sido levada em consideração a cultura de grupos que se reconhecem e têm formas próprias de organização social, as quais são distintas do mode- lo cultural capitalista e ocidental e que “ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (BRASIL, 2007). Esses conhecimentos, entretanto, têm sido palco para conflitos, desafios e resistência ao modelo de desenvolvimento capitalista. De um lado, temos, em nossa sociedade, a introjeção de um conceito de natureza culturalmente imposto (aquela que reduz a natureza à fonte de recurso, com uso privado e submetida à dominação), de outro, a cultura das comunidades tradicionais, que é produzida e reproduzida em um ambiente dialógico, horizontal e integrado para todos os seus membros. Esse ambiente é possível, uma vez que temos nessas sociedades relações pessoais e, inclusive, de parentesco e amizade. De modo geral, os indivíduos compartilham basicamente os mesmos sentimentos, an- seios, desejos e as mesma ideias, também contraditórios e conflituosos entre si (DIEGUES, 2001; DIEGUES, ARRUDA, 2001). O mais importante, contudo, é que no diálogo dos saberes as diferentes culturas são incentivadas a superar o relativismo cultural 2 , enriquecendo valores universais e fundamentais para convivência mútua e conjunta, ba- seando-se no respeito, na valorização da diversidade e no convívio das diferentes identidades. Com isso, é possível pensar em outra concepção de desenvolvimento (DIEGUES, 2001; DIEGUES, ARRUDA, 2001). Princípio antropológico que se baseia nas diferenças culturais e é isento de etnocentrismo, isto é, cada cultura é tão particular que só pode ser observada e analisada em si mesma, nunca em relação a outras. 2 http://www.mercator.ufc.br/mercator/article/view/648 152 Fundamentos de Geografia Física A diversidade cultural permite entender outras concepções de natureza, já que é o próprio reflexo dela e mostra as múltiplas fei- ções que o mundo natural apresenta, além de considerar a cultura como intrínseca à natureza do ser humano e ao desenvolvimento da nação (BRASIL, 2007). Até certo ponto, a diversidade cultural tem sido garantida inter- nacionalmente, tanto em termos de assegurar aos povos a utilização de sua criatividade quanto na forma pela qual essa criatividade pode ser absorvida em processos de conservação da biodiversidade, con- trole dos impactos ambientais e efetivação de restauração ecológica (UNESCO, 2001). No Brasil, sua defesa é uma proposta de desenvolvimento nacio- nal orientada para reconhecer e valorizar a diversidade cultural em pelo menos quatro frentes: i) direitos de grupos étnicos e raciais; ii) patrimônio histórico e cultural; iii) indústrias culturais; e iv) educa- ção e televisão. De acordo com a Secretaria Especial de Desenvolvimento Social, estima-se que cerca de 4,5 milhões de pessoas compõem algum povo ou comunidade tradicional (BRASIL, 2021). Eles são reconhecidos pelo Decreto n. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) (BRASIL, 2007). Povos indígenas, quilombolas, comunidadestradicionais de matriz africana ou de terreiro, extrati- vistas, ribeirinhos, caboclos, pescadores artesanais, pomeranos, entre outros, são alguns exemplos de grupos contemplados por essa política. A efetivação desses marcos legais pode ocorrer, por exemplo, com a valorização da etnobotânica, campo que atende a um con- junto de estudos e pesquisas científicas com plantas medicinais, uti- lizadas há muito tempo por povos tradicionais e indígenas e que atualmente podem subsidiar a criação de medicamentos e o trata- mento de doenças complexas. Outro exemplo é a incorporação dos saberes dos profetas da chuva – homens e mulheres que utilizam respostas fisiológicas de plantas e animais e condições ambientais para elaborar previsões climáticas; estes podem ser utilizados para indicar a qualidade da estação chuvosa bem como para gerir situa- ções de riscos e desastres. É importante, no entanto, evidenciar que grande parte da repro- dução material desses saberes ainda é vista como inconsistente e No dia 19 de março, é co- memorado o Dia de São José, padroeiro do Estado do Ceará. Em razão de ocorrer justamente durante a passagem das estações, muitos serta- nejos consideram essa data decisiva e afirmam: “Se não chover até o dia de São José, não chove mais”. Essa é uma passagem da cartilha Profetas da Chuva. Recomendamos a leitura, pois além de ser breve e divertida, trata-se de um exemplo bastante representativo de saber tradicional. ASSOCIAÇÃO Caatinga. Disponível em: https://www. acaatinga.org.br/wp-content/ uploads/ProfetasdachuvaLivreto.pdf. Acesso em: 12 fev. 2021. Leitura etnobotânica: campo científico orientado ao estudo integrado entre botânica, saberes tradicionais e cultura local. Glossário https://www.acaatinga.org.br/wp-content/uploads/ProfetasdachuvaLivreto.pdf https://www.acaatinga.org.br/wp-content/uploads/ProfetasdachuvaLivreto.pdf https://www.acaatinga.org.br/wp-content/uploads/ProfetasdachuvaLivreto.pdf Mudanças globais 153 ainda não é considerada fonte de recursos, mercadoria ou produto disponível para consumo. O conflito com perspectivas excludentes, hierarquizantes e desiguais converge justamente aqui: é preciso su- perá-las e reconsiderar possibilidades de conviver com diferentes tradições. As diferenças culturais são fundamentais para a produção da ri- queza e do desenvolvimento, uma vez que contribuem para novas significações econômicas e sociais, as quais consideram a natureza como parte do corpo ou da extensão da vida e da comunidade. A natureza oferece, por meio da valorização da diversidade cultural, a garantia de processos de transformação social (UNESCO, 2001). Em síntese, nos planejamentos e na gestão territorial, é impor- tante considerar todas as variáveis possíveis para indicar um bom futuro do ambiente. A biodiversidade e a diversidade cultural são fundamentais para o desenvolvimento de um projeto justo orienta- do para o futuro. Não podemos, contudo, pensar no futuro sem levar em conside- ração os seres humanos do futuro. É justamente por isso que dis- cutimos, na próxima seção, um pouco sobre o desenvolvimento por meio da educação ambiental. Ainda para ampliar seu conheci- mento sobre os saberes dos pro- fetas da chuva, recomendamos, também, o vídeo Os profetas da chuva, publicado pelo canal Invento Produções Culturais. Disponível em: https://youtu. be/AheBnIBb3vI. Acesso em: 12 fev. 2021. Vídeo 6.4 Educação e consciência ambiental crítica Vídeo Como dito anteriormente, a resolução da crise ambiental-civili- zatória passa necessariamente pela transformação do modelo de civilização contemporâneo. Além disso, devemos considerar fatores como justiça ambiental e equidade, independentemente de renda, gênero, cor, etnia, credo e cultura. A educação ambiental é umas das práticas pedagógicas que pode tornar possível a formação de seres humanos comprometidos com esse projeto. Para tanto, em primeiro lugar, na condição de profissionais tanto de geografia quanto de outras áreas, é preciso ressignificar os pro- cessos de ensino convencionais e clássicos, os quais valorizam exa- cerbadamente conteúdos sem contextualizá-los e estabelecem uma relação hierarquizada e absoluta, na qual o professor é detentor do conhecimento e o estudante é vazio de conhecimento. https://youtu.be/AheBnIBb3vI https://youtu.be/AheBnIBb3vI 154 Fundamentos de Geografia Física Esse modelo fortalece dicotomias e não traz opções de renova- ção, principalmente no que tange à redução das desigualdades, à erradicação da pobreza e à resolução da degradação ambiental. Ao pensamos a educação em uma lógica hierarquizada, temos a ten- dência de continuar legitimando relações hierárquicas com o am- biente, com a natureza e com os seres humanos. Com isso, a crise ambiental-civilizatória será sempre a problemática inerente à nossa existência e também permanente. Nesse sentido, precisamos urgentemente incorporar a educação ambiental aos conjuntos de mudanças globais e submetê-la à trans- formação, já que é urgente. Para isso, a criticidade é fundamental. Mas o que isso quer dizer? Em uma perspectiva abrangente, o conhecimento na educação ambiental deve ser abordado de maneira contextualizada e com problemáticas pertinentes à realidade do estudante, oferecendo condições para que os alunos se posicionem quanto às questões ambientais do nosso tempo. Como se trata de um processo educa- tivo, ela não pode ser reduzida a problemas como desmatamentos, poluição e mudanças climáticas e nem abordada à parte de contex- tos sociais, culturais, políticos e econômicos. O ambiente deve ser visto em sua totalidade, uma vez que o entendimento de questões ambientais demanda o estudo de processos articulados. A Geografia Física atende a uma articulação bastante promissora. Isso pode ser visto, por exemplo, em uma aula que aborda a produ- ção de alimentos, na qual é possível sugerir aos alunos que reflitam sobre o uso de grandes quantidades de água, agrotóxicos e orga- nismos geneticamente modificados. Eles chegarão à conclusão de que essa forma de produção tem implicações diretas na saúde, na qualidade da água, na degradação dos solos, na estrutura fundiária, na urbanização, na pobreza e nos conflitos territoriais. Esse tipo de atividade faz pensarmos no ambiente como um todo e evidencia os problemas que esse tipo de prática pode trazer. Nesse sentido, a criticidade pode contribuir para formação de uma consciência ambiental contextualizada, social e culturalmente, e compromissada com a transformação do futuro. Isso ocorre jus- tamente por se ancorar à resolução de problemas práticos que são, Mudanças globais 155 de fato, reais no cotidiano do estudante, da escola, da comunidade, da cidade, entre outros. A concepção crítica considera o ensino como um todo, com diá- logo constante da comunidade escolar e o cotidiano de todos os en- volvidos no trabalho pedagógico. Ela se integra adequadamente à educação ambiental quando voltada para o cotidiano dos estudan- tes e seu ambiente mais próximo. Segundo Freire (1985), a intenção é enaltecer a importância da problematização, para levar o aluno a refletir, analisar e questionar sua realidade e perceber a si mesmo como um sujeito transformador. Se a crítica proporciona a possibilidade de mudanças de atitu- des e comportamentos, a transformação social pode ser possível com reflexões políticas, sociais, econômicas, históricas e éticas, indo de encontro aos princípios das correntes educacionais tradicionais eminentemente hierarquizadas, fixistas e conservadoras (SAVIANI, 2003). Pode parecer ser um exercício complexo – e de fato é –, mas não é impossível. Devemos partir do princípio de que as mudanças am- bientais são intrincadas em uma mesma raiz, por isso também es- tão condicionadas ao tratamento para um mesmo fim. Em outros termos, elas são fundamentalmente um produto do modelo de de- senvolvimento adotado na modernidade, interessante ao progresso capitalista. Entretanto, podemosdesenvolver essa educação de ou- tro modo, com outros conteúdos e outra finalidade. Construir um novo ambiente não significa somente salvar o pla- neta com ações que envolvem o sentimentalismo de proteção das árvores (abraçando-as, por exemplo) ou com discursos que parecem nos fazer regredir no tempo, como viver à moda dos primeiros seres humanos. É necessário responsabilizar e criminalizar as ações injus- tas de seletividade e desigualdade das mudanças globais, bem como qualificar o ônus e o bônus dessas próprias mudanças, da crise am- biental-civilizatória e da degradação ambiental. Com base nessa premissa, podemos pensar em princípios éticos para uma educação crítica. Sua representação pode ser vista na fi- gura a seguir. 156 Fundamentos de Geografia Física Figura 3 Princípios éticos para uma educação ambiental crítica Biocentrismo Antropocentrismo Radicalismo Conservacionismo Fonte: Elaborada pelo autor com base em Aledo, 2015. A Figura 3 ilustra quatro polos, cada um orientando práticas edu- cativas que representam uma consciência ambiental puramente con- servacionista e biocentrista em contraposição às concepções de cunho radicalista e antropocentrista. Sugerimos que nossos posicionamentos sejam movimentados no escopo dos quatro polos, como se fossem práticas educacionais medidas de modo gradual e complementar. Em linhas gerais, a educação ambiental de base biocêntrica e conservacionista pressupõe a separação dos seres humanos em re- lação ao uso e ao cuidado de todos os seres e sistemas naturais. Já a educação ambiental de base biocêntrica e radical pressupõe a exclu- são total dos seres humanos na relação ecológica. A educação ambien- tal de base antropocêntrica e radical pressupõe os seres humanos como superiores e principais atores na relação com os seres e sistemas naturais. Por fim, a educação ambiental de base antropocêntrica e conservacionista pressupõe a participação integrada dos seres huma- nos no uso e no cuidado de todos os seres e sistemas naturais. Em seus pontos máximos, cada princípio assume um caráter extremo, que pode promover o aumento da resistência às mudanças e dificulda- des na negociação dos projetos. Assim, como mencionado, uma educação ambiental que valoriza exacerbadamente o caráter biocentrista e conser- vacionista tende a desconsiderar o ser humano como participante do am- biente e, se o faz, ele é reduzido a fator antrópico de destruição ambiental. No documentário Home: nosso planeta, nossa casa, Yann Arthus-Bertrand nos presenteia com um bom resumo dos conteúdos da Geografia Física. Com imagens bonitas e uma trilha sonora atraente, o fotógrafo e ambientalista francês nos mostra o quanto nosso futuro está aberto às mudanças e como as possibilidades de transformação são reais e presentes. Direção: Yann Arthus-Bertrand. França: EuropaCorp, 2009. Documentário Mudanças globais 157 Já no outro lado do esquema, o radicalismo e o antropocentrismo extremos orientam práticas que legitimam concepções tradicionalistas de exploração dos recursos naturais, que em sua maioria reduzem a natureza à fonte de riqueza e consumo. Nessa lógica, o fator antrópico está presente, mas, por ser extremo, a relação se resume em concep- ções de domínio e superioridade. Enquanto o antropocentrismo puro pode legitimar a radicalização da exploração irracional dos recursos naturais, o conservacionismo pode considerar o ambiente ou a natureza como algo intacto à presen- ça humana, o que, por sua vez, é um mito. Elaborado pelo sociológico Antônio Carlos Sant’Ana Diegues, o mito moderno da natureza intocada, também chamado mito naturalista ou mito do mundo selvagem, corresponde a uma representação simbólica e ideológica das relações entre socie- dade e natureza, no sentido de que existiriam áreas naturais intocadas ou intocáveis pelo ser humano. Essas áreas apresentariam componentes originais, como se conservassem um estado purificado anterior ao aparecimento dos seres humanos. Desse modo, esse “mito su- põe a incompatibilidade entre as ações de quaisquer grupos humanos e a conserva- ção da natureza. O ser humano seria, desse modo, um destruidor do mundo natural e, portanto, deveria ser mantido separado das áreas naturais que necessitam de uma ‘proteção total’” (DIEGUES, 2001, p. 60). Em síntese, o mito moderno da natureza intocada mostra um conjunto de representa- ções existentes entre setores importantes da conservação ambiental e traz uma ideia hipocêntrica da relação homem-natureza, na qual o mundo natural tem direito idêntico ao ser humano. Como consequência, os seres humanos não teriam o direito de dominar a natureza. Diegues (2001) ainda ressalta que esse mito tem raízes profundas nas gran- des religiões, sobretudo a cristã, e está associado à ideia de paraíso perdido. A concepção crítica da educação ambiental deve caminhar a pas- sos largos para combater os extremos, encontrando um meio termo (KLOETZEL, 1998). Essa educação também deve estar comprometida com uma pegada ecológica responsável, a qual pode orientar novas ações para o futuro do planeta e dos seres humanos. Em essência, a educação ambiental deve ter pegada ecológica e ser crítica. É preciso elaborar práticas que orientem o direito à cidadania e à justiça ambiental, isto é, à promoção de processos compatíveis com os modos de vida desenvolvidos na contemporaneidade. Para Kloetzel (1998), não basta ter simplesmente simpatia ecológica 3 ou considerar apenas fatores como crescimento econômico. Conjunto de sentimentos, atitudes e comportamentos de preservação ambiental com suporte essencialmente moral. 3 158 Fundamentos de Geografia Física Por fim, a educação ambiental é um processo que promove a atua- ção no espaço público, na luta por direitos e por justiça ambiental. Ela busca a reflexão crítica de nossas próprias ações, ao mesmo tempo que nos resguarda de paradigmas naturalistas e radicais (KLOETZEL, 1994; CARVALHO, 2003). CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, abordamos a crise ambiental, os modelos de desenvol- vimento e os processos de planejamento, gestão e educação ambiental. Nosso interesse foi trazer um olhar que ultrapassasse as concepções na- turalistas, já que nossa estratégia é munir você com ferramentas essen- ciais, para continuar sua jornada dentro do curso com a consciência de seus campos de trabalho, das legislações e das possibilidades de análise. Nesse processo, discutimos sobre o que são projetos de futuro. Desse modo, perguntamos: quais são seus projetos para o futuro, dentro e fora da geografia? A ideia de futuro que propomos não é que todos nós volte- mos a ser hominídeos, vivendo sob a dependência natural. Pelo contrário, podemos olhar, ouvir e aprender com a nossa diversidade cultural, imagi- nando e exercitando outras formas de relação e civilização. Essa tarefa consiste em construir um outro sentido de ser, de estar e de existir como ser humano e relacionar-se com a natureza. Desejamos que a vida seja a principal energia de mudança global, não descartável e desigual, como querem os agentes hegemônicos do capitalismo. ATIVIDADES 1. Como você pode atribuir o papel da Geografia Física ao contexto das mudanças globais? Justifique sua resposta. 2. Com suas palavras, explique a origem e os fatores da crise ambiental- civilizatória. 3. O que você pode considerar em uma ação de planejamento e gestão ambiental? Comente. 4. Qual é o seu posicionamento no contexto dos princípios para uma educação ambiental crítica? Justifique sua resposta. 5. Como você avalia sua possibilidade de atuação futura, considerando as políticas ambientais do Brasil? Comente. Mudanças globais 159 REFERÊNCIAS ACSELRAD, H.; MELLO, C. C. A.; BEZERRA, G. das. N. O que é justiça ambiental?. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. ALEDO, A. Avaliação do impacto social: introduccion. San Vicente del Raspeig: Seminário de doutorado. Universidad de Alicante, 2015. BRASIL. Decreto n. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Diário Oficial daUnião, Poder Executivo, Brasília, DF, 8 fev. 2007. 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O clima urbano como indicador de qualidade ambiental: estudo de caso da paisagem urbana de Araçatuba/SP. 2014. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente. MONTEIRO, C. A. de. F. A questão ambiental na geografia do Brasil: a propósito da “validade”, “espacialização” e “pesquisa universitária”. Cadernos Geográficos, Florianópolis, n. 5, p. 7-48, 2003. Disponível em: https://cadernosgeograficos.paginas.ufsc.br/files/2016/02/ Cadernos-Geogr%C3%A1ficos-UFSC-N%C2%BA-05-A-Quest%C3%A3o-Ambiental-na- Geografia-do-Brasil-.-Maio-de-2003.pdf. Acesso em: 23 fev. 2021. PORTO-GONÇALVES, C. W. Os (des)caminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto, 1989. ROSA, J. G. Grande sertão : veredas. São Paulo : Companhia das Letras,. 2019. RIBEIRO, A. C. T.; GUSMAO, P. P.; LIMONAD, E. Desafios ao planejamento: produção da metrópole e questões ambientais. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2012. SANTOS, M. 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Esses exercícios também deverão ajudá-lo a construir um conhecimento próprio, auxiliando em seu rendimento, não exclusivamente nesta disciplina, mas no curso como um todo, principalmente nas possibilidades de atuação como profissional futuramente. 2 O Planeta Terra 1. A Radiação de Fundo e o ciclo de vida de uma estrela têm relação com a teoria do Big Bang na medida em que a morte de uma estrela origina os primeiros elementos químicos e libera uma grande quantidade de energia eletromagnética (radiação), sendo esta mensurada em anos-luz. 2. Podemos considerar muitos eventos importantes para formação da Terra. Aqui, separamos os seguintes: 1) éon Hadeano: quando a Terra era formada por magma; 2) éon Arqueano ou Arcaico: momento de solidificação do magma, origem de uma primeira crosta terrestre e surgimento das primeiras formas de vida (unicelulares); 3) éon Proterozoico: quando a Terra apresentava superfícies continentais e oceânicas, com uma atmosfera já enriquecida com oxigênio, e complexificação das formas de vida; 4) éon Fanerozoico (com a diversificação da vida, como fungos, plantas e animais). Há também as eras Paleozoica: constituição do continente Pangeia e do oceano Pantalassa; Mesozoica: com domínio e extinção de dinossauros; Cenozoica: com a diversificação de mamíferos e, dentro dela, o período Quaternário (da Terra atual). Por fim, temos a época do Holoceno, com a origem do ser humano, o homo sapiens. 3. As implicações da origem e da evolução das formas de vida na Terra podem ser descritas do seguinte modo: sem a vida, o planeta estaria hoje semelhante ao éon Arqueano (4 a 2,5 bilhões de anos AP). Graças à presença das primeiras bactérias, a litosfera, a hidrosfera e 162 Fundamentos de Geografia Física a atmosfera foram transformadas; com isso, surgem condições ideais para a geração de outras formas de vida. 4. A análise das dinâmicas da natureza com base na Geografia Física pode ser realizada pela articulação de escalas do tempo geológico e histórico, com foco nas transformações locais, regionais e globais da paisagem. 3 A superfície terrestre 1. A dinâmica da Terra e a origem das grandes cadeias de montanhas, das dorsais oceânicas, dos vulcões e dos terremotos ocorre devido aos movimentos tectônicos. Há, atualmente, 12 placas, e seus movimentos (divergentes, convergentes e transformantes) são os processos que desenvolvem esses fenômenos. 2. A Teoria da Deriva Continental pressupõe argumentos que envolvem similaridades atuais de um passado comum aos continentes e oceanos em termos geológico, paleontológico, paleoclimático e morfológico. A Pangeia foi, no tempo geológico, o grande continente que sofreu paulatinamente a fragmentação que deu origem à formação do planeta no estágio atual (Quaternário), com cinco continentes e três oceanos. 3. Os fatores que podem ser utilizados nos estudos e levantamentos pedológicos são o tempo, a rocha, o clima, o relevo e os organismos vivos, incluindo-se ainda as atividades humanas de transformação da paisagem. 4. Podemos explicar a origem, a transformação e a destruição da litosfera com base na abordagem sistêmica utilizando os processos de troca de matéria e energia observados no ciclo das rochas. Nesse caso, o ciclo pode ser iniciado com as rochas magmáticas ou ígneas, quando o magma é exposto ao ambiente externo (lava) e sofre resfriamento, ou quando elas são soerguidas por movimentos tectônicos. Submetidas a alterações de temperatura e pressão, essas rochas podem ser transformadas em sedimentares (com atuação de intemperismo, erosão e sedimentação) ou metamórficas (quando são empurradas de volta ao interior da Terra). O mesmo processo pode acontecer com rochas metamórficas transformando-se em sedimentares, e com sedimentares em metamórficas. O ciclo se fecha quando essas rochas são transformadas em magma por fusão. Gabarito 163 4 A atmosfera e a hidrosfera da Terra 1. Basicamente, a radiação solar interage com a superfície da Terra e com todos os sistemas naturais. Os principais fatores de organização dessa distribuição obedecem aos movimentos astronômicos, à latitude do lugar e à dinâmica dos fluidos ar e água na transferência de calor. Na atmosfera, o movimento é realizado pelos ventos dentro da sua circulação geral; nos oceanos, pelas correntes oceânicas e termoalina. 2. Além dos oceanos ocuparem 70% da superfície terrestre, sua massa e capacidade calorífica são maiores que a atmosfera. Sendo assim, como esta é aquecida por baixo, os oceanos são a condição de contorno mais importante para o clima da Terra e sua dinâmica acontece de modo integrada aos movimentos do ar. 3. Os estudos da criosfera são desenvolvidos no escopo da glaciologia e atendem a uma perspectiva interdisciplinar. Na Geografia Física, ela é importante para entender os paleoclimas (história natural) e também as alterações antropogênicas. A criosfera, além disso, é um importante regulador do clima. 4. O ciclo da água é o principal mecanismo que explica a dinâmica interna do sistema terrestre. Sua distribuição depende de fatores globais e locais e pode ser reconhecida pela presença de precipitação, evaporação, fontes hídricas etc. A dinâmica da água auxilia nos processos de formação de relevo, solo e é uma das principais substâncias da vida. 5. A resposta é livre, mas é importante que você identifique pelo menos um rio importante da região onde você está. Determine, então, atributos físicos para sua caracterização, iniciando pela bacia hidrográfica a qual ele pertence, por exemplo. 5 A biosfera terrestre 1. Trata-se de um paradoxo. Se não fosse a origem da vida – por bactérias e algas –, nosso planeta não seria transformado; a dinâmica seria semelhante à do Éon Arqueano e, por isso, outras formas de vida não poderiam existir. O fenômeno da vida possibilitou a alteração de todo sistema, deixando-o preparado para a geração de outras formas de vida – como a nossa. 164 Fundamentos de Geografia Física 2. A dinâmica natural do território brasileiro pode ser explicada basicamente pelo domínio de climas tropicais, diferenciados pelos aspectos de relevo e de extensão territorial. O resultado são biomas e domínios morfoclimáticos que resultam em uma grande diversidade de ecossistemas e paisagens. 3. As variações climáticas no Pleistoceno, no Período Quaternário, foram cruciais para formação atual dos domínios morfoclimáticos. 4. Para uma análise biogeográfica, podemos utilizar critérios taxonômicos com base na similaridade e diferença de espécies e sua posterior regionalização (por meio da endemicidade e do grau de parentesco), na classificação entre fauna e flora (divisão entre fitogeografia e zoogeografia) e na história natural (com aportes da paleontologia, biologia, climatologia etc.) 5. Resposta livre. Para respondê-la, você deve eleger um problema ambiental e elaborar uma breve resolução com base nos princípios da biogeografia. 6 Mudanças globais 1. A Geografia Física pode atuar nas mudanças incorporadas no conhecimento e no sistema produtivo com base na modernidade e na consolidação do capitalismo. 2. Para responder à questão, você deve mencionar os limites do capital, que incorporam limites populacionais, econômicos, ecológicos e da riqueza, por exemplo. Em grande parte, todos esses limites apontam para a dimensão material da escassez. 3. Podemos considerar a gestão como uma ação presente e o planejamento, uma ação futura em diferentes prazos (curto, médio e longo) e em múltiplas dimensões (energia, produção, direito,entre outros). 4. Resposta pessoal. Para responder à questão, você deve se posicionar com base no quadro que contempla os princípios da educação ambiental. Esperamos que a atuação seja crítica, para além das concepções naturalista da crise ambiental. 5. Resposta pessoal. Esperamos que sua atuação seja crítica, para além das concepções naturalista da crise ambiental e que haja a integração com comunidades locais e tradicionais no interior do processo de desenvolvimento. Código Logístico 59831 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-4650-8 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 0 5 4