Prévia do material em texto
See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/283318289 A ideia de conforto: reflexões sobre o ambiente construído Book · November 2005 DOI: 10.13140/RG.2.1.4800.1365 CITATIONS 44 READS 12,117 1 author: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Estudos Culturais de Instrumentos Musicais View project Fenomenologia do ambiente construído View project Aloísio Leoni Schmid Universidade Federal do Paraná 74 PUBLICATIONS 170 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Aloísio Leoni Schmid on 29 November 2015. The user has requested enhancement of the downloaded file. https://www.researchgate.net/publication/283318289_A_ideia_de_conforto_reflexoes_sobre_o_ambiente_construido?enrichId=rgreq-296d38f39142fdfbc56073156511150c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI4MzMxODI4OTtBUzozMDA5MzE5MzQ2MzgwODBAMTQ0ODc1OTE3MjU3MA%3D%3D&el=1_x_2&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/publication/283318289_A_ideia_de_conforto_reflexoes_sobre_o_ambiente_construido?enrichId=rgreq-296d38f39142fdfbc56073156511150c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI4MzMxODI4OTtBUzozMDA5MzE5MzQ2MzgwODBAMTQ0ODc1OTE3MjU3MA%3D%3D&el=1_x_3&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/project/Estudos-Culturais-de-Instrumentos-Musicais?enrichId=rgreq-296d38f39142fdfbc56073156511150c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI4MzMxODI4OTtBUzozMDA5MzE5MzQ2MzgwODBAMTQ0ODc1OTE3MjU3MA%3D%3D&el=1_x_9&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/project/Fenomenologia-do-ambiente-construido?enrichId=rgreq-296d38f39142fdfbc56073156511150c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI4MzMxODI4OTtBUzozMDA5MzE5MzQ2MzgwODBAMTQ0ODc1OTE3MjU3MA%3D%3D&el=1_x_9&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/?enrichId=rgreq-296d38f39142fdfbc56073156511150c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI4MzMxODI4OTtBUzozMDA5MzE5MzQ2MzgwODBAMTQ0ODc1OTE3MjU3MA%3D%3D&el=1_x_1&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Aloisio_Schmid?enrichId=rgreq-296d38f39142fdfbc56073156511150c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI4MzMxODI4OTtBUzozMDA5MzE5MzQ2MzgwODBAMTQ0ODc1OTE3MjU3MA%3D%3D&el=1_x_4&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Aloisio_Schmid?enrichId=rgreq-296d38f39142fdfbc56073156511150c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI4MzMxODI4OTtBUzozMDA5MzE5MzQ2MzgwODBAMTQ0ODc1OTE3MjU3MA%3D%3D&el=1_x_5&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/institution/Universidade_Federal_do_Parana?enrichId=rgreq-296d38f39142fdfbc56073156511150c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI4MzMxODI4OTtBUzozMDA5MzE5MzQ2MzgwODBAMTQ0ODc1OTE3MjU3MA%3D%3D&el=1_x_6&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Aloisio_Schmid?enrichId=rgreq-296d38f39142fdfbc56073156511150c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI4MzMxODI4OTtBUzozMDA5MzE5MzQ2MzgwODBAMTQ0ODc1OTE3MjU3MA%3D%3D&el=1_x_7&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/profile/Aloisio_Schmid?enrichId=rgreq-296d38f39142fdfbc56073156511150c-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzI4MzMxODI4OTtBUzozMDA5MzE5MzQ2MzgwODBAMTQ0ODc1OTE3MjU3MA%3D%3D&el=1_x_10&_esc=publicationCoverPdf A IDÉIA DE CONFORTO ALOÍSIO LEONI SCHMID A IDÉIA DE CONFORTO reflexões sobre o ambiente construído Curitiba 2005 Direitos autorais protegidos pela Fundação Biblioteca Nacional. Certificado com número de registro: 350.514 Livro: 646 Folha: 174, emitido em 17/08/2005 Aloísio Leoni Schmid (iso@ufpr.br) Professor Adjunto de Conforto Ambiental Curso de Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal do Paraná Revisão: Ludmila Corrêa Sandmann Revisão da capa: Márcia Lissa Azuma Fotografias: Aloísio Leoni Schmid SCHMID, Aloísio Leoni A idéia de conforto: reflexões sobre o ambiente construído / Aloísio Leoni. – Curitiba: Pacto Ambiental, 2005. 338 p. : il. ; 23 cm. ISBN 85-99403-01-X Conforto ambiental. 3. Conforto térmico. 3.Teoria da arquitetura. 4. Arquitetura de interiores. 5.I. Título. CDD 720.47 Sumário INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 1 1 - O SIGNIFICADO DE CONFORTO .......................................................... 9 1.1 Além do somente ambiental ...................................................... 9 1.2 yin e yang no ambiente construído ........................................... 13 1.3 Crítica e defesa do Modernismo ............................................... 18 1.4 Uma visão holística do conforto ............................................... 21 1.5 Uma visão histórica do conforto .............................................. 32 1.6 Comodidade, adequação e expressividade ............................... 37 1.7 Transcendência na casa e no mundo ........................................ 40 2 - INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO E BUROCRATISMO .......... 47 2.1 O caráter multissensorial do espaço ........................................ 52 2.2 O dionisíaco e o apolíneo na arquitetura ................................. 53 2.3 Inocência .................................................................................. 56 2.4 Conforto: consciência e excessos ............................................. 65 2.5 Descaso ..................................................................................... 91 2.6 Conforto ambiental como obrigação burocrática .................... 99 3 - A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO ......................... 103 3.1 Os sentidos ................................................................................ 103 3.2 As emoções: aspectos gerais .................................................... 106 3.3 O espaço e a expressão na arquitetura .................................... 115 3.4 Merleau-Ponty, Bachelard e Bollnow ...................................... 120 3.5 Congruência entre experiências físicas e memória ................. 131 4 - O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO .......... 143 4.1 Introdução ................................................................................ 143 4.2 Mecanismos físicos e fisiológicos ............................................. 145 4.3 Comodidade e adequação ........................................................ 149 4.4 Expressividade .......................................................................... 160 5 - O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS ....................... 177 5.1 Introdução ................................................................................ 177 5.2 Mecanismos físicos e fisiológicos ............................................. 178 5.3 Comodidade e adequação ........................................................ 180 5.4 Expressividade .......................................................................... 185 6 - O AMBIENTE TERMICAMENTE PERCEPTÍVEL ... 211 6.1 Introdução ................................................................................ 211 6.2 Mecanismos físicos e fisiológicos ............................................. 214 6.3 Comodidade e adequação ........................................................ 219 6.4 Expressividade .......................................................................... 224 7 - O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL .............................................. 241 7.1 Introdução ................................................................................ 241 7.2 Mecanismos físicos e fisiológicos ............................................. 245 7.3 Comodidade e adequação ........................................................ 248 7.4 Expressividade ..........................................................................255 8 - LUZES E CORES: O ENTORNO PELA VIA RACIONAL ............... 271 8.1 Mecanismos físicos e fisiológicos ............................................. 273 8.2 Comodidade e adequação ........................................................ 283 8.3 Expressividade .......................................................................... 289 8.4 A simplicidade .......................................................................... 316 9 - CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 319 ÍNDICE REMISSIVO ........................................................................................... 327 Figura 1 - Residência com roda d'água, Bodensee, Alemanha Introdução A expressão "conforto ambiental” (com ela também o conforto no ambiente construído) tem sido usada com cada vez maior freqüência. Têm surgido associações profissionais dedicadas ao assunto, assim como programas de pós- graduação e congressos, desde os regionais até os internacio- nais, e mesmo na mídia informal as matérias a respeito vão ganhando regularidade. De jargão específico, o termo passa a designar uma idéia conhecida do grande público, mais ou menos como aconte- ceu com a agricultura orgânica, telefonia digital ou desenvol- vimento sustentável. Para reforçar a literatura ainda escassa a respeito, minha intenção original foi produzir um livro conceitual. Que, sem recorrer à linguagem matemática, transmitisse de forma efe- tiva o conteúdo essencial trazido por diferentes autores que diretamente trataram seus tópicos principais – calor, ilumina- ção, acústica e qualidade do ar. Este livro deveria ainda cap- turar um pouco da riqueza de exemplos que resultam do in- A IDÉIA DE CONFORTO 2 tercâmbio com profissionais e alunos, e da reflexão que se alterna aos eventos do calendário acadêmico. No decorrer do trabalho, surgiram questões às quais eu não tinha resposta imediata. Foi necessário desenvolvê-las, antes, para então voltar aos tópicos de conforto. Mas foram se tornando os problemas de pesquisa, e o rumo do livro mu- dou de modo a não deixá-las pendentes. Estas questões eram: - O estudo de conforto ambiental pode ser limitado ao estudo de uns poucos fenômenos físicos e à fisiologia dos sentidos relacionados? - Qual a definição de conforto ambiental mais coerente com a etimologia de conforto? - É possível delimitar uma região de superposição entre conforto e estética, ou se trata de assuntos complementa- res enquanto sub-sistemas de valores da arquitetura? - Havia, pois, conforto antes que a palavra tomasse a cono- tação atual? - É possível delimitar uma região de superposição entre conforto e valores da arquitetura sem vínculo direto às sensações corporais, como o da produtividade no traba- lho? - É possível explicar objetivamente por que alguns ambi- entes nos parecem à primeira vista confortáveis, outros jamais? A hipótese sobre a possibilidade de se delimitar em ter- mos físicos e fisiológicos o conforto ambiental está implícita na maior parte da literatura especializada, fenômeno não isolado da abordagem dada ao ensino do assunto nas univer- sidades. Esta hipótese é sistematicamente contestada pelos estudiosos da cultura do morar, da qual encontrei o impulso inicial na obra Home, a Short History of an Idea (Casa, pe- quena história de uma idéia) do arquiteto canadense Witold Rybczynski.1 É de fato um livro unicamente oportuno. 1 Edição em livro de bolso da Penguin Books (1987). Lançado no Brasil, posterior- mente, pela Editora Record. INTRODUÇÃO 3 Quanto à questão sobre a etimologia de conforto, é co- nhecida a importância do romancista escocês Sir Walter Scott e da romancista inglesa Jane Austen (citados por Rybczyns- ki) de terem lançado ao mundo literário o conceito moderno de conforto. Rybczynski mostrou o conforto como um produ- to de lenta e gradual formação. Teria sido uma invenção da cultura, que levou alguns séculos para ser completada: o au- tor não se limitou à parte físico-fisiológica, mensurável e previsível. Entretanto, entre ela e as demais partes, inclusive o prazer - aqui, de especial interesse - o autor não apontou vínculos concretos. Ao retratar o prazer do conforto, deteve- se nos seus aspectos visuais. Deixou pendente a importante questão sobre a efetividade expressiva das variáveis do ambi- ente - principalmente ar, luz, som, calor e texturas. Seriam estes aspectos capazes de emocionar? Se emocionam, fazem- no como fato ou como representação? Esta última questão pode ser exemplificada. Quando al- guém de meu convívio completa uma idade significativa, digamos 75 anos, eu me emociono; é um fato. Mas quando o tema do jubileu é tratado por um poema, logo simples repre- sentação, eu me emociono também. Isto posto, reformulo a pergunta. Um ambiente improvisado e genérico (isento de referências pessoais) é capaz de emocionar? Nas mãos de um artista, um ambiente se presta a alguma intencionalidade? Existe mesmo uma disputa entre conforto e arte. A existência, no século XX, do termo de uso corrente “confor- to”, que compreendesse o amplo conceito, facilitou primeiro a disseminação da idéia, depois sua negação pelo Modernis- mo: 150 anos antes isto não teria sido possível. Mas muito do conforto já existia antes do termo. Lendo alguns textos sobre o Modernismo, fui encontrando menções cada vez mais fre- qüentes à oposição entre o visual nas artes e a domesticidade. Fui me dando conta da existência de posições ideológicas, mais voltadas à auto-afirmação sobre as correntes contrárias do que a aprofundar a discussão. A discussão é rica e com- plexa; e ao abordar arquitetura, se surge um impulso esclare- cedor ao tratar a funcionalidade, torna-se ainda mais difícil quando lembra, afinal, que é arte. A IDÉIA DE CONFORTO 4 O conforto disputa com a arte o poder de satisfazer as pessoas e parte desta disputa se refere à eficácia emocional. Nas páginas seguintes, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, faço uma tentativa de mostrar como. Aqui é lançada a hipótese da existência de aspectos co- muns entre o conforto e a estética, decorrentes do ambiente. De maneira inesperada, encontrei amparo na literatura espe- cializada em enfermagem:2 lá estava um modelo de conforto capaz de ajudar a compreender melhor a própria classificação de Rybczynski. As autoras souberam abordar o conforto de forma holística e, depois, mapeá-lo com clareza cartesiana, permitindo uma compreensão por partes. Queria esclarecer ainda se havia, afinal, algo semelhante ao conforto até o início do século XIX. Consultei a rica cole- ção de gravuras selecionadas e comentadas por Peter Thorn- ton em Authentic Décor,3 que depois constatei ter sido uma das principais fontes de Rybczynski. Visitei um importante museu de arquitetura rural na Suíça. Ainda, encontrei diver- sos relatos de viajantes pelo Brasil na época do Reino Unido e Império. A idéia de conforto se mostrava cada vez mais um produto cultural, amadurecido ao longo do tempo. Para responder se conforto comporta um conceito ex- terno ao corpo como é a produtividade, segui tentando enten- der algo da Fenomenologia do espaço: Maurice Merleau- Ponty, Gaston Bachelard e Otto Friedrich Bollnow. Reforcei a idéia de conforto como algo ligado ao entorno físico e tam- bém ao contexto psicológico: as experiências passadas, a imaginação e os sonhos, de relevância para o conforto ambi- ental e, se não compreendidos, capazes de tornar a existência intolerável. Entretanto, tornou-se claro que conforto tem um endereço: a casa. Lancei com isto a hipótese de que os ambi- entes de trabalho não poderiam oferecer conforto, caso con- trário não seriam ambientes de trabalho. 2 Katherine Kolcaba e Linda Wilson, Comfort Care: A Framework for Perianesthe- sia Nursing, Journalof PeriAnesthesia Nursing, Vol 17, N° 2, pp 102-114 (2002). Tradução do autor. 3 Peter Thornton, Authentic décor: the Domestic Interior 1620 – 1920, Seven Dials, Londres (1993). INTRODUÇÃO 5 Enfim, ainda associada à hipótese anterior, lancei a hi- pótese de que seria possível explicar como alguns ambientes convencem enquanto confortáveis, e outros não: basta aplicar o entendimento de conforto como algo típico da casa, um arquétipo e uma tradição na vida de quase todas as pessoas. Uma constatação que gostaria de adiantar, relacionada ao conjunto de hipóteses acima, é que o conforto ambiental, tal qual se delimitou para facilitar planos curriculares em Arquitetura e Urbanismo no Brasil, pouco difere de uma Física aplicada às edificações – disciplina que veio substituir. Não é senão um recorte arbitrário do conceito mais amplo de conforto - este sub-sistema de valores fundamental da arqui- tetura, que compreende valores técnicos, práticos e artísticos. Afinal, holístico vem da palavra inglesa whole (inteiro), esta por sua vez do grego holos.4 Refere-se a uma compreensão da realidade em termos de todos integrados cujas proprieda- des não podem ser reduzidas àquelas das unidades menores.5 Assim deveria ser o conforto ambiental: isto exigiria do téc- nico conhecer arte, e do artista conhecer técnica. A divisão de trabalho pura e simples não lhe permitiria evoluir. A seguir, cada parte do livro é apresentada de maneira sucinta. O capítulo inicial aprofunda a apresentação das hipóte- ses e justifica por que ainda faz sentido pesquisar conforto ambiental. O capítulo 2 relata três séculos da história de uma idéia, processo que termina num campo de estudos ainda afastado do espaço arquitetônico. O capítulo 3 explora a relação entre ambiente e emoção. Os capítulos 4 a 8 apresentam cada um dos sentidos mais relevantes para o conforto ambiental: olfato, tato, calor, audição e visão. Inicialmente, cada sentido é explorado em seus conceitos físicos e fisiológicos. Depois, são analisados 4 É, ainda, curioso saber que hale (saudável) tem a mesma origem. 5 Fritjof Capra, op. cit. A IDÉIA DE CONFORTO 6 diante de um conjunto de valores aqui proposto como síntese das hipóteses acima e entendido como básico para a existên- cia de um conforto ambiental: comodidade, adequação e como contribuição original – ao menos do ponto de vista classificatório – expressividade. Os fatos são classificados, e realçados alguns a que se costuma dar menor atenção. Exemplo disto é o desprezo ao sentido do olfato no Oci- dente, ou o esquecimento do tato, sentido básico cuja impor- tância é subestimada - daí serem seus mecanismos conheci- dos de somente poucos. Já o conforto térmico e a acústica se abrem a uma exploração qualitativa inovadora. A movimen- tação do ar é mostrada portadora de uma carga sensorial que vai além da sensibilização térmica. E a iluminação – captada pelos olhos e de praxe desdobrada em sua expressividade artística – é melhor caracterizada como elemento do ambien- te. O capítulo 9 – último - reúne algumas conclusões. Uma delas, que surgiu ainda antes de terminar o livro é que con- forto ambiental não se presta a automatismos; é um equívoco tentar defini-lo limitado aos seus componentes físicos e men- suráveis, e é uma lástima que tenha se disseminado um mo- delo reduzido a tão pouco. Aparece, enfim, uma visão alternativa - embora próxima - à de Rybczynski sobre o fundamento de alguns achados históricos. Creio menos do que aquele autor que conforto tenha relação com eficiência. Não acho que pertença tanto ao ambiente de trabalho quanto à casa. Então, proponho uma separação maior entre moradia e outros usos quando forem tratados os respectivos valores típicos. Isto não significa, contudo, que não se interpenetrem valores da moradia e dos usos. Creio que conforto não seja algo típico nem de uma igreja, nem de uma loja de roupas, mas que tais ambientes possuem valores próprios, não necessariamente excludentes do conforto, mas de superior importância, e que podem exis- tir, mesmo que marginalmente também dentro das casas. Finalmente, cabe a observação de que este trabalho se deteve, sem intenção, num recorte social limitado à bur- guesia, em cujos círculos o conceito de conforto – um con- INTRODUÇÃO 7 ceito cultural - foi constituído e difundido. Conforto é um valor arquitetônico essencial na habitação burguesa. Certa- mente também o é no meio aristocrático, das celebridades, e da elite empresarial. A dúvida que paira é sobre sua impor- tância prática junto à população pobre. Qual a noção de con- forto, quanto conforto existe, quanto é consciente, e quanto se almeja? Quais os outros valores da habitação, ao lado, ou mais importantes que o conforto? É um tema desafiador aos pesquisadores interessados. Agradeço aqui pela ajuda que recebi de muita gente, sob diversas formas. Nominarei poucas. Pela leitura e comen- tários, ao colega de ENAP (Brasília) José Mendes, aos cole- gas de docência Key Imaguire Jr., Gislene Pereira e Josilena Gonçalves, à arquiteta Caroline Bollmann, aos manos Gina e Dinho, e à minha esposa Ludmila; a esta, ainda, pela revisão impecável. À minha mãe, Maria Thereza, pelo auxílio execu- tivo. À Gina, ainda, à estudante Márcia Azuma e ao colega Rivail, pela ajuda na produção da capa. Pela motivação, a todos acima, e ao meu pai Manfred. Ao meu sogro, Antônio, agradeço por nos ter cedido sua casa no meio do mato, o segredo de poder finalizar o trabalho. Sem querer comparar meu dia-a-dia motorizado, eletrificado e informatizado a um Walden, aqui eu me surpreendi com algumas verdades que só conhecia no papel do meu próprio livro. Uma delas é o fascí- nio do escuro; outra, do silêncio. E também tem uma profun- da tranqüilidade, que eu nem sei descrever: mas sei que dá sentido a cada minuto de puro ócio. Obrigado! What are we missing that we look so hard for in the past? (O que nos falta, que buscamos tão obsessivos no passado?) Witold Rybczynski, Home Figura 2 - Casa em madeira, arredores de Curitiba (PR) 1 - O significado de conforto 1.1 Além do somente ambiental Quando consideramos alugar uma casa ou, em termos genéricos, uma edificação para uso específico, um dos prin- cipais critérios em que baseamos a escolha – ao lado de ta- manho, preço e localização – é o do conforto. Isto se aplica principalmente a um imóvel já mobiliado. Se já levamos uma idéia do ambiente pretendido, um arranjo qualquer de sofá e duas poltronas já existentes irá provavelmente destoar da mesma, e mais que isto: servirão para inviabilizá-la. Que nos preocupemos com o conforto parece uma atitude natural, que sempre existiu. Mas isto não é verdade. Até o final do século XVIII, o termo conforto quase não se usava aplicado à edificação. No início do século XIX, este desconhecimento foi sendo superado. Isto ocorreu a partir da Europa, conforme muitos indícios. Já no século XX, o mais importante movimento na arquitetura e nas artes - o Moder- nismo – continha núcleos de verdadeira hostilidade à noção de conforto, visto como impróprio à estética em voga – uma A IDÉIA DE CONFORTO 10 estética da engenharia e do progresso material. A técnica prometia redimir a humanidade de seus maiores desafios sociais, e o peso do passado e da tradição não podiam impe- di-la. A ornamentação das fachadas foi um alvo prioritário de ataques. Ornamento é crime. Em 1909, o autor deste lema, o ar- quiteto e crítico austríaco Adolf Loos, escrevia que a obra de arte quer retirar as pessoas do seu aconchego, enquanto que a casa deve servir ao propósito contrário. Num discurso radi- cal, propunha uma contradição entre a domesticidade – o interesse e o apego às coisas domésticas - e a arte. As casas eram desafiadas a assumir a frieza do Modernismo, com pa- redes brancas e móveis tubulares em aço, mais se asseme- lhando aoshospitais. Hoje, encontramos sem dificuldade peças originais destes móveis, em diferentes estados de con- servação, nas repartições públicas mais descuidadas ao longo das décadas, duráveis que se mostraram. Le Corbusier6, decisivo mentor do movimento, propaga- va a idéia da casa como máquina de morar; pedia às pessoas menos sentimentalismo e mais objetividade ao tratar da casa. De certa forma, as casas incorporaram algumas máqui- nas como itens essenciais, como por exemplo os dispositivos de iluminação e climatização. No entanto, tratava-se não da arquitetura como máquina; antes, eram sistemas superpostos à arquitetura, estranhos à sua pureza plástica. Isto se deu especialmente nos edifícios em forma de caixas de vidro – do chamado Estilo Internacional. A idéia se espalhou mesmo por todo o mundo, e ainda continua se espalhando: edifícios de forma cúbica, prismática, com pronunciados ângulos re- tos, e que refletem o céu e o sol, como pessoas de óculos escuros ou reflexivos que não querem revelar sua expressão facial. Incluem tais óculos como recurso indispensável nas suas viagens pelo mundo, como passeios de final de semana, e registram o fato em fotografias em que se destacam por um ar superior, indiferente à diversidade de cenários. Assim são os edifícios em vidro. Transmitem a impressão de alguma coisa avançada, e se mostram indiferentes ao clima. Origi- 6 Charles Edouard Jeanneret (1887 – 1965), arquiteto e pintor franco-suíço. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 11 nalmente, a idéia de máquina era evocada pelo pronunciado geometrismo. O progresso nas estruturas de aço e de concreto permitiu que construções leves vencessem vãos livres cada vez maio- res. As plantas dos edifícios, especialmente dos edifícios comerciais, tornaram-se livres, já que as paredes estruturais foram reduzidas a um mínimo. Houve contribuições efetivas ao desempenho energético, já que os conhecimentos em iso- lamento térmico e ventilação também avançaram. Entretanto, conhecimentos tradicionais de adaptação ao clima local fo- ram sendo esquecidos. Nos climas quentes, as estruturas le- ves já não conseguiam preservar durante o dia o frescor da noite, como faziam as espessas paredes de pedra, de taipa e de adobe. Também fazia falta o frescor dos ambientes com pé-direito alto e ventilação cruzada. Nos climas frios, as for- mas soltas sobre pilotis e as paredes externas em vidro já não conseguiam conservar o calor. À elegância das formas nem sempre correspondia a ele- gância das soluções técnicas; à aparência de engenharia, nem sempre sua racionalidade. As pretensas máquinas de morar e trabalhar dependiam de portentosos sistemas de climatização, que eram menos integrados aos edifícios que ocultos entre paredes, pisos e forros falsos. Paredes e lajes tiveram de ser perfuradas para a passagem de dutos. Casas de máquinas tiveram de ser acrescentadas, por vezes em todos os andares. E os condensadores de ar condicionado, que despejam no ar ambiente o calor extraído das edificações, passaram a des- pontar do lado de fora das fachadas e coberturas, desafiando a pureza das formas. O historiador Reyner Banham sintetizou bem a situação: conquista de invólucros de vidro invisivel- mente servidos satisfez claramente uma das maiores ambi- ções estéticas da arquitetura moderna mas, em o fazendo, afundou um de seus imperativos morais mais básicos, aquele da expressão honesta da função, e um real conflito de inten- ções pode ser percebido nos edifícios e no discurso arquite- tônico do início dos anos 50.7 7 Reyner Banham, The Architecture of the Well-tempered Environment, 2nd Edition, The Univ. of Chicago Press, Chicago (1984). A IDÉIA DE CONFORTO 12 No final dos anos 70, teve especial impacto o projeto do Centre Georges Pompidou8 em Paris, com suas instalações assumidamente expostas, num conjunto de tubos coloridos. Aqui, houve uma opção consciente pela expressividade das verdadeiras máquinas. No que diz respeito à iluminação, é certo que a planta li- vre tenha permitido a adoção de aberturas contínuas, não mais janelas interpostas aos pilares, mas paredes inteiras de vidro. Entretanto, isto não significou melhor uso da ilumina- ção natural. A planta livre permitiu recintos profundos que, nas porções mais internas, eram escuros. A iluminação elétri- ca sanava o problema. No início dos anos 70, com a crise do petróleo, a voraci- dade energética dos edifícios passou a receber críticas fre- qüentes. Ao Modernismo faltava uma especificidade geográ- fica, ao menos para considerar que diferentes climas, paisa- gens e culturas requerem diferentes propostas, por vezes dife- rentes conceitos de edifício. Como franca oposição aos res- quícios do Modernismo, nomes distintos foram aplicados para idéias basicamente similares: como arquitetura biocli- mática, arquitetura passiva e, mais recentemente, arquitetura sustentável. No ambiente acadêmico, surgiu o movimento pelo con- forto ambiental, expressão que substituiu a ”física aplicada às edificações”- assim se chamava a disciplina nos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Engenharia Civil. A mudança de nome sugere que se adotou algo mais amplo, caminhando em direção ao produto do projeto arquitetônico, que é o espaço e, contíguo, o ambiente construído. Todavia, um retrato do con- forto ambiental, hoje, é em grande medida o de uma “física aplicada” que mudou de nome. Sua orientação ainda se mos- tra decisivamente mecanicista. Nas universidades, é com freqüência uma disciplina construída na indiferença à estética - assunto que não lhe ocupa a consciência. Mostra-se, ainda, indiferente aos aspectos sócio-culturais da arquitetura. Ao invés de reencontrar a integração ao projeto arquitetônico, compartilhando sua profusão de implicações e incertezas 8 Projeto de Renzo Piano, Richard Rogers e Pietro Franchini (1977) O SIGNIFICADO DE CONFORTO 13 (principalmente porque a arquitetura existe relacionada com as pessoas, que não são de todo previsíveis), o conforto am- biental com freqüência se fecha em si próprio. Quer ser mui- to mais uma especialidade do que uma espacialidade - um aspecto do intrincado estudo do espaço. Este livro vem mostrar que o conforto ambiental só pode ser compreendido dentro do conceito mais abrangente de arquitetura. 1.2 yin e yang no ambiente construído Ao manifestar sua crença na contradição entre conforto e arte, Adolf Loos lançava indiretamente uma classificação básica das edificações quanto ao uso. Contrapunha a casa e os edifícios relacionados, como dormitórios e hotéis, a todas as demais edificações. A divisão entre dois grupos é bastante nítida. A casa acolhe. Atende a um conjunto de necessidades básicas de segurança, envolvimento, orientação no tempo e, principalmente, no espaço. É como se oferecesse consolo interminável ao ser humano, lançado no mundo. E na casa, a qualidade mais importante parece ser o conforto. Já o mundo, este excita. Desde a infância, atrai em mo- vimento centrífugo. Contamina de paixão os adolescentes e os incita a saírem de casa. Não se mudam para outro lar mas, de maneira simbólica ou por vezes literal, para a rua. São fisgados pelo paradigma da mobilidade, o sonho de Ícaro. Ao mesmo tempo, o mundo se revela desconfortável, o antônimo de casa. Esta dicotomia é encontrada no ensaio de uma arquiteta de interiores suíça sobre conforto. Menciona haver locais onde é perceptível que o conforto nos abandona. No espaço público e de modo bem especial nos meios de transporte públicos, por exemplo. Sempre onde muitas, ou muito poucas pessoas estiverem juntas, aquele espaço pode se tornar muito desconfortável.9 A isto contrapõe a casa, paradigma do con- 9 Cristina Sonderegger, Der Mensch istdie Basis des Komforts”, entrevista com Verena Huber & Stefan Zwicky, WBW 3, 2003, pp.60-61. Tradução do autor. A IDÉIA DE CONFORTO 14 forto. Contudo, não esconde preocupação com relação à casa, percebendo algo de errado com suas janelas, antigamente, tão pequenas quanto possível, subdivididas e providas de cortinas, de modo que atrás delas se pudesse sentir acolhi- mento, hoje vivemos com janelas de grande superfície. Mas não é o tamanho que mudou. Deixamos de lado as cortinas e achamos agradável e confortável que não mais nos proteja- mos para fora. Tal observação lançada século XXI adentro revela quan- to o Modernismo mudou, também, no ambiente doméstico. Quase um século depois de Loos e sua polêmica, ainda causa estranheza a casa que reproduz a atmosfera de escritórios e indústrias. Nesses ambientes, quase tudo é feito para atender à funcionalidade, à produtividade; são os endereços de orga- nizações estruturadas em torno de um objetivo maior, o do lucro. Foram concebidos com auxílio dos especialistas, ge- ralmente das áreas da engenharia de produção e da ergono- mia – a ciência do trabalho. Neles se aplicou o estado da arte do desenvolvimento para adequar, no espaço e no tempo, aspectos físicos como a temperatura e a qualidade do ar. Já na casa, o uso mais nobre é o do repouso. É aqui que a casa tem sua funcionalidade muito peculiar, e não quer parecer simulacro de escritório. O conforto ambiental surge num esforço de se resgatar a arquitetura enquanto abrigo diante de outras intenções como a monumental, a produtiva ou a representativa. Mas é comum que isto ocorra de modo reducionista. O desempenho da casa enquanto abrigo é restrito à soma de algumas funções- objetivo: temperatura, umidade, nível de intensidade sonora. Enfim, aquilo que é possível medir: como se a satisfação humana fosse cabível em algum modelo numérico. Já se tem conseguido, em diversos países do mundo, máquinas eficien- tíssimas.10 É por um lado um avanço; por outro, não existe 10 Nos anos 90, surgiram diversas iniciativas de casas com auto-suficiência energéti- ca. Notável é a casa solar de Freiburg, Alemanha, construída com isolamento térmi- co cuidadosamente estudado e que obtém eletricidade a partir do sol através de células fotovoltaicas. Parte desta energia é armazenada em baterias, e outra parte em recipientes de hidrogênio mediante eletrólise da água. Este e outros exemplos no- táveis são descritos por Stephen Carpenter em Learning from experiences with Advanced Houses of the World, Caddet Analyses Series No. 14, Sittard, Países Baixos (1995). O SIGNIFICADO DE CONFORTO 15 garantia de uma contrapartida na compreensão do fenômeno do conforto. Faz falta o entendimento do abrigo como reduto do descanso, do devaneio (na formulação de Bachelard11). O confinamento recíproco entre a técnica e o mistério – de que faz parte a arte – trai uma maneira de pensar, já muito antiga, que separa o corpo do intelecto - a alma - e que consi- dera a existência corporal uma condenação, se comparada à pura existência espiritual. Esta atitude remete à doutrina de Pitágoras.12 Na tradição cristã remonta, no mínimo, aos escri- tos de São Paulo. A mesma atitude também se manifesta na tradição hindu.13 Esta maneira de pensar foi apontada pelo físico austríaco Fritjof Capra como um erro situado na raiz de sérias questões sociais e ecológicas da civilização ocidental e patriarcal. Em sua obra mais conhecida – O ponto de mutação – adverte a humanidade do risco da dissociação entre yin e yang, São aspectos da existência complementares e opostos, identifica- dos pela filosofia chinesa como os pólos extremos ao redor do qual o Tao (a essência última da realidade) se mantém num movimento cíclico, incessante. O yin e o yang podem ser reconhecidos na natureza e na vida social das pessoas, entre outros sistemas. O yin é associado à Terra, à lua, à noite, ao inverno, à umidade, ao frio e ao interior das coisas. O yin tende sempre à contração; é ainda responsivo, cooperativo, intuitivo e sin- tético. Já o yang é associado ao céu, ao sol, ao dia, ao verão, à secura, ao calor e à superfície das coisas. É exigente, agres- sivo, competitivo, racional e analítico.14 Desde os tempos 11 Gaston Bachelard (1884 – 1962), filósofo francês que, com rigorosa formação científica, abraçou uma forma pessoal de fenomenologia, a do estudo da imagem poética. 12 Pitágoras (570 A.C.), filósofo grego que prestou importante contribuição à mate- mática. Propunha uma doutrina reencarnacionista. 13 Simon Blackburn, The Oxford Dictionary of Philosophy, Oxford University Press, Oxford (1994). 14 Na mesma linha, opõem-se transparência (yang) e mistério (yin) e, respectivamen- te, mobilidade e enraizamento, esquecimento e lembrança, luz e escuridão, superfí- cie e cavidade, nomadismo e sedentarismo, sociedade e comunidade, em Gert Mat- tenklott - Material – Hoffnung der Enterbten, Daidalos Architektur, Kunst, Kultur, A IDÉIA DE CONFORTO 16 mais remotos da cultura chinesa, o yin é associado ao femini- no, e o yang, ao masculino. Yin e yang não são categorias diferentes, mas aspectos extremos de uma mesma totalidade, faces da mesma moeda. Capra acusa a civilização patriarcal de ter favorecido os ho- mens em detrimento das mulheres, a ciência em detrimento da religião, yang em detrimento de yin. Não tenciona denun- ciar que tenha ocorrido a priorização de valores maus, senão a promoção de um desequilíbrio. A separação entre o corpo e o intelecto, uma manifestação associada, é o cogito ergo sum (penso, logo existo) de Descartes,15 que há quase meio milê- nio tem forçado os ocidentais a igualar a própria identidade com sua mente racional, e não com o organismo todo.16 Na arquitetura, este processo já recebera, um século an- tes de Descartes, importante impulso. Atribui-se a Filippo Brunelleschi, arquiteto italiano do século XV, a renovação dos métodos de projeto no soerguimento da cúpula da cate- dral de Santa Maria de Fiori em Florença: projetou aquela construção na superfície plana de um papel, em mais um contributo para a alteração da humana concepção do espa- ço, o qual vai se transformando de um meio no qual o corpo vive e se movimenta numa abstração matematizada e geome- trizada.17 Era o início do projeto formalizado no papel. O processo ganha novo alcance, ao final do século XX, com a formalização digital no computador. O edifício é concebido sem depender de uma visita do autor ao local, ou à região onde será implantado. Se decido erguer minha casa defronte à rua por onde passo todos os dias, sei de antemão onde nascerá o sol no verão, e para onde subirá, e conheço seu percurso na prima- 56, pp.44-49, Berlim (1995). Ainda, uma maior generalização ainda associa yin e yang, respectivamente, aos deuses gregos Dionísio e Apolo (Capítulo 2). 15 René Descartes (1596 – 1650), filósofo e matemático francês. Primeira tentativa racional de fundamentação da filosofia, na dúvida absoluta, que não pode ser posta em dúvida. Fundador da Geometria Analítica. (Knaurs Lexicon). 16 Fritjof Capra, The Turning Point – Science, Society and the Rising Culture, Fla- mingo, Londres (1982). 17 João Francisco Duarte Jr., O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível, Criar edições, Curitiba (2003). O SIGNIFICADO DE CONFORTO 17 vera, no outono, e no inverno. Sei qual lado é mais ruidoso e já excluo dali a localização das janelas dos dormitórios. Ao projetar no monitor de vídeo, não uso informação palpável não recebo qualquer alerta dos meus sentidos – segundo Montagu, todos eles, em última análise, uma extensão do tato.18 Para o filósofo alemão Otto Friedrich Bollnow, cuja im- portância é discutida no Capítulo 4, pouco significado práticotem, para o ser humano, a noção de espaço matemático, ho- mogêneo, em que se pode marcar qualquer ponto através de coordenadas x, y e z, ou qualquer outro conjunto. Para ele, o espaço é percebido cheio de heterogeneidades. Por exemplo, em sua origem – a casa – o espaço encontra-se concentrado, sua experiência é muito intensa. Outra heterogeneidade se manifesta no trecho entre dois pontos de um caminho. Num mapa, podemos uni-los por uma reta. Porém, isto não deverá privar o andarilho de uma variada experiência ao longo do trajeto correspondente no mundo real. Contemporâneo seu, Bachelard mostrou de diversas ma- neiras que o espaço real é mais rico que aquele da teoria, considerado homogêneo. Faz falta que o arquiteto trate o espaço como ele é e reconheça e respeite aquilo que nele se encontra: a Terra e o céu; o dia e a noite; a topografia; os seres vivos; e as pessoas – em toda sua imprevisibilidade. Mesmo enquanto arte, a arquitetura sofre forte gravita- ção pelo visual, refinado, hiper-preciso. Deixa-se levar para o ideal, para o geométrico, afastando-se do sociológico. Um crítico contemporâneo observa que desprezam o conforto - vêem nele uma demanda do corpo, logo, algo com muito jeito de “prato caseiro”, demasiado profano para ser tomado como conteúdo com que se preocupe a arquitetura.19 Não mede palavras para se opor aos adeptos de tal pensamento: Em verdade, precisamente aquele que não está pronto para 18 Ashley Montagu, Tocar: o significado humano da pele, Summus Editorial, São Paulo (1988). 19 Hermann Czech, Komfort – ein Gegenstand der Architekturtheorie? Werk, Bauen + Wohnen 3 (2003). Tradução do autor. A IDÉIA DE CONFORTO 18 isto é que se deveria culpar de uma compreensão reduzida de arquitetura. Intelectualizada, a arte só vem aguçar a separação entre yin e yang. Bachelard parece sublinhar tal contraposição ao mencionar que o estudioso que quer viver as imagens da função de habitar não deve ceder às seduções das belezas externas. Em geral, a beleza exterioriza, transtorna a medi- tação da intimidade. As casas e, mais especificamente, seus cantos ou rincões abrigam um princípio de felicidade que é delicado e conser- vador, protetor da vida. Exclama o filósofo: Habitar só! Grande sonho! A imagem mais inerte, a mais fisicamente absurda, como a de viver na concha, pode servir de gérmen a um tal sonho. Esse sonho nos vem a todos, aos débeis, aos fortes, nas grandes tristezas da vida, contra as injustiças dos homens e do destino...20 Para Bachelard, o rincão é uma ne- gação do universo – segundo argumenta, é uma manifestação espacial daquilo que os psicanalistas chamam de introversão. 1.3 Crítica e defesa do Modernismo Uma conhecida máxima do Modernismo diz que a for- ma segue a função. No entanto, por que não aceitar que a função segue a forma, a introspecção segue o rincão, e assim por diante? Onde estaria a verdade? Esta polêmica não se reproduz no pensamento tradicio- nal do Oriente, onde função e forma são uma, e a mesma coisa. A forma é a combinação de espaço e função, e quando a função e o espaço mudam, muda também a forma que, por- tanto, nunca é fixa, mas temporal.21 A divisão entre forma e função é, sob certo aspecto, uma divisão entre yin e yang. Tal yin e yang, tanto a forma como a função somente se realizam no todo. 20 Gaston Bachelard, op. cit., tradução do autor. 21 Fred e Barbro Thomson, Unity of Time and Space: The Japanese Concept of Ma”, revista Arkkitehti, fev. De 1981, Helsinki, p. 68, apud. João Rodolfo Stroeter, op. cit. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 19 A expressão “máquina de morar” foi muito usada por Le Corbusier que, nos seus escritos, faz menção explícita à mas- culinidade da indústria, racional e, portanto, oposta ao caráter feminino do lar, apegado à tradição e aos sentidos. Duarte Jr.22 faz uma crítica severa daquela metáfora e do que seriam suas implicações. Para ele, nossa casa veio deixando de ser um lar, no sentido de constituir uma extensão de nossas emoções e sentimentos, veio deixando de ser um lugar ex- pressivo da vida de seus moradores e da cultura onde se localiza. Foi se transformando numa máquina de morar, fria e estritamente utilitária, sem o aconchego e o afeto de uma verdadeira morada. Nela viveriam pessoas desconfortavel- mente instaladas no que toca à satisfação estética dos senti- dos, dentro de um ambiente geometricamente asséptico. Numa linha semelhante está o comentário de Heinrich Engel no prefácio de seu livro sobre a casa japonesa23 em que se lamenta de que na época presente (o livro data de 1964), o avanço técnico-científico não é mais antecedido, menos ain- da induzido, por novas cognições filosófico-espirituais como em eras passadas. Ao invés disto, a ciência e a técnica avan- çam de forma autônoma, sem o controle moral e o preparo intelectual que a religião e a filosofia permitem. Observa que mesmo que a indústria da construção, tecnicamente, se situe muito atrás de outras indústrias, tem progredido tanto que suas formas já são bastante neutras às emoções humanas. É verdade que muitos aspectos do conforto, embora pre- dominantemente mecanicistas, evoluíram no Modernismo. Inicialmente, houve um tratamento científico de aspectos mais físicos da ergonomia; alguns do móveis do período fo- ram, de fato, desenvolvidos de modo adequado ao corpo hu- mano em diferentes tarefas. A iluminação obteve significati- vos avanços. As estruturas em esqueleto permitiram extensas aberturas, chamadas habitualmente fenêtre en longueur, e uma vez que as janelas se libertaram dos cânones herdados 22 João Francisco Duarte Jr., op. cit. 23 Heinrich Engel, The Japanese House: a Tradition for Contemporary Architecture, primeira edição – 1964, 12a. reimpressão Charles E. Tuttle Publishing Company, Inc., Rutland, Vermont, E.U.A. (1985). Tradução do autor. A IDÉIA DE CONFORTO 20 da Antigüidade (por exemplo, de sua disposição simétrica numa fachada) puderam ser feitas, de fato, para mostrar e para iluminar. A liberdade de forma permitiu que os arquite- tos que assim o quisessem trabalhassem soluções engenho- sas, por exemplo, de iluminação zenital. Como a luz, o ar também foi democratizado. Para o conforto térmico, houve o desenvolvimento e a disseminação do ar condicionado; so- mente a partir dos anos 70 é que seu caráter esbanjador de recursos naturais se tornou fator de preocupação. Havia a consciência de uma nova missão da arquitetura: libertar o homem não só das condições climáticas, mas do trabalho não-criador, do peso do ornamento e do peso das conven- ções burguesas – com que o aspecto moral do programa moderno já se faz ouvir: o novo homem deveria ser libertado para se tornar ativo, para a auto-realização, e não para a vadiagem24. Certamente era uma posição ideológica, a crença num sistema de verdades prontas como resultado de uma escolha pessoal. No seu apelo a um caráter mais “ativo” ressoam algumas vozes que, no início do século XX, justificavam uma estética do simples e objetivo. Dizia Alexander Schwab (1930) das peças do mobiliário modernista: são rejeitadas por serem frias e não convidativas, lembranças desagradáveis de um hospital. Portanto: a pessoa que se sentir confortável nesta cadeira é alguém para quem, mesmo num estado de descan- so, a tensão leve e constante da vida moderna, o sentimento de elasticidade e impulso se tornou um pré-requisito existen- cial, um componente indispensável da consciência vital.25 O gosto burguês aprendeu, depois de muita insistência, a valorizar a poesia peculiar dos utensílios de perfil geométri- co, produzidos em massa e vendidos nas lojas que comercia- lizam o trabalho de desenhistas famosos. Ainda, aprendeu de certa forma a valorizar os materiais autênticos - outra contri- buiçãovaliosa do Modernismo -, que convencem de modo visual e tátil. 24 Editorial, Werk, Bauen + Wohnen, 3 (2003). Tradução do autor. 25 Alexander Schwab, citado por Gert Mattenklott , op. cit. Tradução do autor. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 21 Enfim, não é muito lembrar que o mesmo autor da ex- pressão máquina de morar também disse que arquitetura é para emocionar; portanto, estaria além da utilidade. Ocorre que a expressividade do Modernismo aparece sempre às vol- tas com yang, deixando de lado yin. Ou, usando imagens bíblicas, a expressividade do Modernismo é muito mais de Marta (a hospitalidade material) do que de Maria (a atenção serena ao hóspede). Fere as expectativas de domesticidade que se dirige à casa, afasta-se dum consenso suprapartidário em relação aos diferentes estilos. 1.4 Uma visão holística do conforto Na expressão máquina de morar incomoda a idéia de um sentir mecânico do corpo – como se fosse instrumentado por termômetros, manômetros e conta-giros. Acabaram se absolutizando aspectos parciais – como do conforto térmico ou da acústica. Conforto não se explica, pois, com itens es- tanques, precisamente definidos. Tampouco se revela um jogo onde vença a neutralidade (eliminação do desconforto). Os próprios cultores da arquite- tura como arte priorizam a expressividade visual – do espaço visível – em detrimento de outras formas de expressividade. É certo que os aspectos táteis são de certo modo indissociá- veis aos visuais. Mas há uma tendência ao abandono da ex- pressividade do calor, do som, dos aromas e odores, e mesmo da luz quando fora das finalidades pictóricas e esculturais. Têm quando muito um papel acessório da funcionalidade. Os aspectos não-visuais parecem não merecer muita atenção dos arquitetos. São os diversos tipos de especialistas em conforto que os consideram. Entretanto, costumam passar longe da estética. Seria o prazer estético um processo exclusivo dos olhos e do cérebro, tão livre de outras sensações corporais? Há, afinal, alguma relação entre o conforto e o prazer estético, e vale a pena insistir neste assunto? Estas questões serão trata- das a seguir. A IDÉIA DE CONFORTO 22 Uma idéia central que motivou este livro é do conforto como atributo positivo do espaço arquitetônico. A tese a ser demonstrada através de pesquisa e argumentação é que con- forto não se limita a neutralidade através da supressão dos fatores indesejáveis, mas também envolve algo mais. Em lugar de proibir os ambientes fora da zona de con- forto, aquela zona que é possível delimitar ao se eleger os critérios térmico, acústico, visual ou ainda químico, trata-se de tolerar que a zona de conforto seja eventualmente abando- nada em favor de um caminho que acrescente emoção e pra- zer. Uma concepção notavelmente positiva de conforto foi encontrada longe dos livros de arquitetura, e muito longe da ergonomia: na enfermagem. É um campo de conhecimento dedicado, em boa porção, diretamente ao conforto das pesso- as. As autoras, Katherine Kolcaba e Linda Wilson apresen- tam uma síntese muito clara:26 O conforto é mais que a au- sência de dor e pode ser aprimorado, mesmo se a dor não pode ser tratada inteiramente, através da atenção à trans- cendência. O incremento do conforto envolve aumento da esperança e confiança e pode diminuir as complicações rela- cionadas à alta ansiedade dos pacientes. As autoras desenvolveram o conceito da maneira mais holística (isto é, considerando o todo, whole). Para tanto, estabeleceram um referencial em duas dimensões: os níveis e os contextos de realização do conforto. Como níveis de realização do conforto, as autoras reco- nhecem três. O primeiro é o do alívio (relief) de uma deter- minada dor. Supõe o contraste de uma situação para outra. É bastante próximo a uma definição de conforto que foi pro- posta, mais recentemente, por um ensaísta em arquitetura: uma tempestade em aproximação rápida, chuva forte e ne- nhum lugar para se abrigar. Após dez minutos a roupa está encharcada, os sapatos cantam ao andar. Um vento fresco se soma e aumenta a sensação de frio. Então é confortável che- 26 Katharine Kolcaba & Linda Wilson, Comfort Care: A Framework for Perianesthe- sia Nursing, Journal of PeriAnesthesia Nursing, Vol 17, N° 2, pp 102-114 (2002). Tradução do autor. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 23 gar a um quarto quente. Colocar roupas secas, aquecer-se junto a uma lareira e beber chá quente. Não estar mais ex- posto, agora sentir-se bem. O desagradável pôde ser substi- tuído pelo agradável. É isto, para a maioria das pessoas, o significado de conforto.27 O segundo nível que as autoras em enfermagem pro- põem é o da liberdade: é aquele em que o paciente previne outras manifestações específicas de desconforto. O terceiro, explícito na definição acima, é o da trans- cendência: aspectos positivos de conforto oferecendo com- pensação a um desconforto inevitável que, no caso daquela profissão, manifesta-se comumente enquanto dor física. Já como contextos de realização do conforto, as autoras reconhecem quatro: físico (relacionado às sensações corpo- rais e mecanismos homeostáticos – do equilíbrio do corpo); psico-espiritual (ligado à consciência interna de si, incluindo estima, conceito, sexualidade, significado na vida de alguém de uma ordem superior de existência e sua relação com ela), sócio-cultural (pertencendo a relações interpessoais, familia- res e sociais, e também a tradições familiares, rituais e práti- cas religiosas); e ambiental (pertencendo à base externa da experiência humana – temperatura, luz, som, odor, cor, mobi- liário, paisagem, etc). Para uma descrição mais precisa, é útil transcrever as palavras das próprias autoras: Necessidades de conforto físico: incluem déficits nos meca- nismos fisiológicos que foram afetados ou colocados em risco devido a procedimentos cirúrgicos. Necessidades físi- cas sutis das quais o paciente pode não estar consciente in- cluem a necessidade de melhorar o balanço de líquidos ou eletrólitos, a oxigenação ou a termorregulação. Medidas de conforto são dirigidas à recuperação ou manutenção da homeostase. Necessidades físicas óbvias tais como dor, náu- sea, vômito, tremedeira ou coceira são mais fáceis de ver e tratar (com e sem medicamentos). Tomadas em conjunto, 27 Wolfgang Marshall: Komfort: ethnologische Splitter aus Asien. Werk, Bauen + Wohnen 3, pp.42-47 (2003). Tradução pelo autor. A IDÉIA DE CONFORTO 24 necessidades sutis e outras necessidades do conforto são, muitas vezes, onde as enfermeiras noviças implementam intervenções, excluindo as necessidades dos demais contex- tos. Necessidades psico-espirituais: incluem a necessidade de inspiração, motivação e a capacidade de “crescer através” ou colocar-se acima de desconfortos da cirurgia ou anestesia que não possam ser aliviados imediatamente. Tais necessi- dades são muitas vezes satisfeitas por medidas de conforto voltadas para a transcendência, tais como massagem, cuida- dos bucais, visitas especiais, toque carinhoso e palavras especiais de encorajamento continuado. Estas intervenções de caráter extraordinário, para as quais as enfermeiras difi- cilmente encontram tempo, podem ser chamadas “alimenta- ção de conforto” para a alma, pois são inesperadas mas amáveis aos pacientes e facilitam a transcendência. Necessidades sócio-culturais de conforto: são necessidades de reestabelecimento da confiança, culturalmente sensíveis, apoio, linguagem corporal positiva e cuidado. Podem ser atingidos pelo acompanhamento (coaching), que inclui a atitude positiva, mensagens de bem-estar (wellness) e enco- rajamento, afirmações como “você está indo muito bem”, motivação para tarefas vindouras, e educação sobre todos os aspectos relacionados com o procedimento,despertar, des- carga e reabilitação.28 Há em enfermagem comportamentos mais usuais, adequados sob a maioria das circunstâncias. Necessidades sócio-culturais também incluem as necessida- des de assistência financeira, com documentação, honra a tradições culturais e, algumas vezes, amizade durante a hos- pitalização, se os pacientes tiverem uma rede social limitada. O planejamento da alta também ajuda a atender as necessi- dades culturais, tendo em vista uma transição gradual para casa. Necessidades de conforto ambiental: incluem tanto ordem, calma, mobiliário confortável, minimização de odores, e segurança de acordo com a possibilidade dada pela peria- nestesia. Isto inclui a atenção às adaptações ambientais no 28 Nota do autor: aqui poderia ser incluída a visita de animais de estimação. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 25 lar do paciente, e sugestões. Quando enfermeiras são inca- pazes de prover um ambiente pacífico e saudável, (tal como prescrito por Nightingale29), podem ser capazes de ajudar pacientes a transcender menos que em condições ideais. Entretanto, as enfermeiras deveriam fazer esforços conscien- tes para diminuir o ruído, as luzes e interrupções ao sono, para facilitar um ambiente pacífico. Este entendimento de conforto se distingüe, primeiro, por ser o contexto ambiental visto como parte de um todo, ao lado dos contextos corporal, psico-espiritual e sócio-cultural. Depois, a busca do nível da transcendência já no contexto ambiental. Assim, significa vários passos além da subservi- ência às normas técnicas, já que muitos arquitetos terceirizam o conforto ambiental, isolando-o dos outros contextos que integram o espaço arquitetônico. E raramente os especialistas consultados se propõem a algo mais que evitar o desconforto. A preocupação muito objetiva dos profissionais da en- fermagem restitui a clareza, há muito perdida, àquilo que se espera da arquitetura. Para Kolcaba e Wilson, o conforto perpassa todos os aspectos do bem-estar do paciente; não há possibilidade de uma abordagem segmentada. Mostra-se logo inconsistente o destacamento do conforto ambiental – objeto de especialistas – do simplesmente conforto, objeto de toda a arquitetura. Este é, pois, um livro de conforto ambiental. Não trata do conforto corporal, pois já o fazem os livros sobre alimen- tação, vestuário, medicina e tantas outras disciplinas. Tam- pouco trata do conforto sócio-cultural, que é a praia dos so- ciólogos e antropólogos, dos quais o ambiente construído tem se mostrado carente de conselhos. E nem trata, enfim, do conforto psico-espiritual, e nem sabe a quem recorrer para buscá-lo. Entretanto, reconhecendo a importância de uma abordagem holística de conforto, tenta captar dependências recíprocas destes contextos, principalmente este último, com o contexto ambiental. 29 Enfermeira inglesa (1820-1910) que teve importante papel na reforma das condi- ções hospitalares no seu país. A IDÉIA DE CONFORTO 26 Uma abordagem holística propõe-se, pois, mais à busca do bem-estar das pessoas - que não deixa escapar algum as- pecto importante - do que à preservação da pureza de uma definição acadêmica. Um exemplo de uma perspectiva holística do conforto é dado por uma crônica sobre a eutanásia, em que um médico relata como convenceu um amigo desenganado a aproveitar bem toda a vida que lhe restava.30 Parte do relato, um caso verídico, é reproduzida a seguir. Todo o mês seguinte, Simon estava notavelmente livre de dor. Uma rotina diária emergiu, uma que claramente refletiu o senso estético de Kate. Todas as manhãs, após o café da manhã, ela iria ajudá-lo a descer as escadas até uma cadeira confortável voltada para uma janela ao nascente. Lá tomava seu café, e lia o jornal matinal. Simon me mostrou a vista de sua janela. Conduzindo a ela, havia um vaso de flo- res recém-cortadas, e do lado de fora estava um pequeno arbusto de forsythia que iria logo florescer. Próxima, uma jovem árvore de amoras com delicadas flores brancas e mar- rons. Ao lado, e ao redor, borrifos de cor com o verde per- manente de zimbros, pinheiros e teixos, e atrás do aromático adubo de cascas de árvores e da grama de inverno crescia uma linha oblíqua de árvores de tílias. Mais tarde, ainda na manhã, Simon ia para uma alcova voltada para o sul, próxi- mo à cozinha, e ouvia música: Buxtehude, Bach e Chopin. A “bay window” estava viva com cor: trepadeiras juntando-se a samambaias e palmitos, através da janela uma densa cer- ca-viva, bem mantida, e acima, à distância, o movimento de um conjunto de copas de cedros. Durante a tarde, na sala da família, Simon organizava seus papéis e trabalhava na cor- respondência. À sua frente, uma janela de vista para o jar- dim. Os pássaros zuniram em seu vôo até os alimentadores próximos à janela e dali foram aos arbustos. Este jardim, cheio de destaques maravilhosos que juntos produziam um todo, era no centro da cidade, e bem poderia ser num dos bairros mais verdes. Depois do jantar, a filha de Simon lia- lhe Tchekov, mas quando os dias se estenderam, sua força 30 Ian A. Cameron, Freud’s Request, JAMC • 16 de novembro, 161 (10), pp. 1298 e 1300 (1999). Tradução do autor. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 27 começou a diminuir. Uma semana, ele estava discutindo ativamente os pontos na história; na outra, ele estava caindo de sono no meio das frases. Sua filha iria terminar a história e seu filho carrega-lo até a cama. Na última semana de ju- nho, Simon dormia a maior parte do tempo. As histórias e a música continuavam, e quando eu o visitava, sempre havia um sorriso gentil em seu rosto. Já do mundo da ficção, outro exemplo eloqüente de compreensão holística de conforto é apresentado pelo cineas- ta canadense Denis Arcand. Em Invasões Bárbaras,31 retrata os últimos dias de um professor de história desenganado, que reúne a esposa, o filho distante e a nora, amigos do Departa- mento de História onde trabalhava, inclusive antigas aman- tes, num rancho idílico à beira de um lago. Lá, cercado de cuidados e caprichos, banquetes e tertúlias, despede-se de seu passado. Numa das cenas finais, forma-se uma roda de con- versa no jardim, sob um céu estrelado, os copos de vinho à mão, sentados em cadeiras portáteis e envoltos em coberto- res. A visão holística de conforto reforça a tese da dimensão expressiva do conforto ambiental. Vimos acima como o conceito de conforto migrou, nos últimos dois séculos, dos contextos corporal (alívio da dor) e psico-espiritual (conforto como consolo) para os contextos sócio-cultural e ambiental, identificados por Kolcaba e Wilson.32 Porém, temos visto currículos de universidades, livros- texto e prospectos de empresas com uma visão mecanicista de conforto ambiental a que dão, de forma não justificada, um peso predominante na arquitetura (talvez vislumbrando a possibilidade de uma transcendência pela simples apuração dos parâmetros ambientais). Esta já seria uma alternativa para explicarmos como o conforto ambiental poderia emocionar. 31 Este filme, apresentado em 2003, dá seqüência ao Declínio do Império America- no, de 1986. Ganhou dois prêmios no festival de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. 32 Este assunto é tratado em detalhe por Witold Rybczynski em Casa – pequena história de uma idéia, Edgard Blücher Editora (1995). A IDÉIA DE CONFORTO 28 Entretanto, uma explicação mais convincente advém do concurso dos outros contextos de conforto. Se percorrermos os níveis propostos pelas autoras-enfermeiras na progressão desde o alívio até a transcendência, o conforto ambiental e o conforto físico só podem se aproximar mais do conforto psi- co-espiritual e do sócio-cultural. Pois se o tratamento da cau- sa imediata érequerido para a superação da dor, a compensa- ção desta mediante o afago de outros sentidos requer um nível de maior realização do conforto. A transcendência é atingida ao se potencializar reações emocionais diversas de- correntes, inclusive, da sensação de segurança de se contar com tais afagos. Além disso, os contextos psico-espiritual e sócio- cultural estão intrinsecamente ligados à expectativa que as pessoas normalmente têm de uma edificação. No idioma alemão, o uso de diferentes expressões para o conforto trai a existência de algumas destas expectativas. Utiliza-se, hoje, o termo behaglich para o confortável; este adjetivo deriva do particípio umhegt, estado de alguém que se sente cercado, envolto, acolhido. De acordo com os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm em seu dicionário de 1854, isto significa tanto quanto “satisfeito”, “aconchegado”.33 Diversos outros vocábulos, ainda, têm significados semelhantes: gemütlich, bequem, annehmlich, komfortabel. Somente o último (pouco usado) corresponde à origem latina, e é difícil reproduzir numa tra- dução as nuances que existem entre os demais. O que a eti- mologia revela são percepções peculiares de um conceito comum: algumas palavras albergam indícios sugestivos para um melhor entendimento. A idéia de estar acolhido enfatiza o elemento protetor do conforto. Remete, em última análise, ao útero materno, talvez o local de maior proteção de que já desfrutamos e que per- manece um ideal inconsciente, de conforto. É mais um exemplo de situação de conforto holístico, em que ocorre convergência entre os diferentes contextos do conforto: o físico, o ambiental, o psico-espiritual e o sócio-cultural. 33 Marshall, op. cit. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 29 Esta última sentença requer uma explicação. Faz pouco sentido considerar a sociabilidade, menos ainda a cultura de um embrião. Efeitos do ambiente externo são praticamente anulados pelo corpo da mãe, e sobre o psico-espiritual do embrião pouco se pode afirmar. Exceto o corporal, os demais contextos de conforto podem ser nulos. Tudo isto faz lembrar a álgebra linear, quando se busca a solução para um sistema de n equações a n incógnitas. Os matemáticos denominam solução trivial que satisfaz um sistema de equações aquela em que todas as variáveis tomam o valor zero. Se supuser- mos que o embrião se encontra na origem do conforto, uma espécie de marco inicial, então, mesmo nulos, os diferentes contextos de conforto convergem. A atribuição à fase embri- onária de um valor “zero” em conforto é uma imagem razoá- vel para mostrar os contextos de conforto todos iguais (zera- dos). Entretanto, também faz sentido a idéia desse “zero” como representando muito conforto, como se, depois de nas- cer, regredisse para valores negativos. Neste livro, o útero é mencionado algumas vezes como uma espécie de padrão de conforto, um lugar ideal do qual partimos para a vida, fora. Ao apresentar a tese de uma origem evolucionista do prazer arquitetônico, Grant Hildebrand34 propôs, para que este aconteça, dois princípios fundamentais: refúgio e pers- pectiva. Dentre os animais, e isto inclui o homem, tiveram melhores chances de sobreviver os indivíduos a quem aprazia a conjugação de dois elementos: o refúgio, com cantos escu- ros e paredes sólidas próximas do corpo e restringindo a aproximação de inimigos, e a perspectiva, a visão privilegia- da, através de uma abertura, para a paisagem, mais clara, e tanto mais visível sob bom tempo. Embora também se possa perceber a importância do abrigo e portanto sentir prazer sob tais condições e preferi-las, esta predileção seria antes uma característica inata e hereditária, que ao longo das gerações teria auxiliado a sobrevivência de certos indivíduos e deter- minado sua vitória no processo de seleção natural. Refúgio e perspectiva remetem, novamente, aos princí- pios opostos e complementares de yin e yang, acima apresen- 34 Grant Hildebrand, Origins of Architectural Pleasure, The University of California Press, Berkeley (1999). A IDÉIA DE CONFORTO 30 tados. E quanto mais se avança na caracterização do conforto, percebemos que mais seus ambientes se parecem com yin. Já naqueles mais identificados com yang, a busca de bem-estar não corresponde, pois, exatamente ao conforto. O leitor de Bachelard e de Bollnow se convence gradualmente de que é somente em casa que o conceito de conforto se realiza com coerência. E assim também quando tratamos do contexto ambiental do conforto. Difícil, porém, é abordá-lo separado dos outros contex- tos. Recortes na horizontal (separando os contextos, um do outro) ou vertical (separando entre si os níveis) produzem uma forma limitada de conforto ambiental. Não basta garan- ti-lo pela proibição de tudo o que, estando aquém do tolerá- vel, possa causar dor. E não basta que o conforto se limite ao alívio da dor que passou. É necessário levá-lo mais longe: para garantir a liberdade, é necessária uma certa distância dos riscos de a dor voltar; para que haja transcendência, deve haver compensação à dor. No nível da transcendência, o conforto supera a linha de neutralidade, está inseparável do prazer, do êxtase, na extre- midade oposta à do sofrimento, e aumenta sem limites apa- rentes. Talvez não se consiga mais quantificá-lo. Daí o desa- fio de explorá-lo além das definições um tanto forçadas do que é físico, ambiental, sócio-cultural ou psico-espiritual. Mais correta seria a adoção de um conceito aberto de confor- to, despojado da pretensão didática. Pois este é o risco dos modelos ultra-simples: alguns são simples por que são geni- ais; outros, viabilizam-se ao mutilarem a realidade, omitindo- lhe aspectos fundamentais. A limitação do conforto à superação do desconforto se caracteriza como uma modelagem fácil, a que bastam as ana- logias entre o corpo humano e as máquinas. Embora didático, o mecanicismo só é viável porque omite facetas da realidade. O modelo holístico de Kolcaba & Wilson, que considera os níveis de alívio, liberdade e transcendência é, a seguir, exem- plificado para o contexto ambiental do conforto. Logo depois é apresentado um modelo histórico, e confrontado com o anterior. E mais adiante neste capítulo será apresentado um O SIGNIFICADO DE CONFORTO 31 modelo alternativo, que será adotado ao longo do livro na abordagem específica de olfato, tato, calor, audição e visão. Na explicação do conforto térmico, normalmente um ponto de partida é o balanço térmico do corpo - a igualdade entre o calor produzido pelo metabolismo e aquele que, sub- traído o trabalho útil, é dissipado pela pele e pela respiração. A inserção de todos os diferentes processos de perda de calor faz surgir uma complicada equação, embora útil: para cada determinada situação, expressa se há algum desconforto, de que tipo (sensação de frio ou calor) e em que medida. Mapear zonas de conforto com seus resultados seria útil. Faz falta, no entanto, conhecer-se as diferenças entre as múltiplas solu- ções, e identificar estados intermediários. Por que motivo demoramo-nos, no inverno, a tomar um banho quente, e man- temo-nos imóveis sob um jato de água a temperatura muito acima do teoricamente confortável? E por que, no verão, apreciamos um copo de água gelada, a uma temperatura tão baixa que nos anestesia as papilas da língua? Questões comparáveis surgem com relação aos outros sentidos. O ouvido funciona como um conjunto de transdutores e amplificadores; mas compreende mais partes. É todo um sistema que monitora o ambiente até quando estamos dor- mindo. Leva ao cérebro a descrição física do ruído e, com isto, elementos necessários à sua identificação. Esta tem efeito qualitativo sobre o ouvinte. E dificilmente a experiên- cia acústica acontece isolada de uma experiência do espaço arquitetônico. A visão é o sentido preponderante. É percorridapor uma profusão de estímulos tridimensionais em milhões de pontos de imagem, com diferença de cor e intensidade ou luminân- cia. Juntos, estes pontos configuram objetos, locais, materi- ais, padrões que aprendemos a identificar. Como é que os diferentes ambientes visuais nos influenciam? Como é que relacionamos a impressão imaterial da visão com informa- ções concretas de outros sentidos como tato e olfato? O estudo da química ambiental não se resume à busca de ar puro. No olfato se encontram resquícios da vida ancestral A IDÉIA DE CONFORTO 32 sobre a terra. O mecanismo de interpretação dos odores é profundamente ligado à produção de emoções. Há livros de arquitetura que, ao tratar de espaço, tocam os diversos contextos do conforto, mas no contexto ambiental restringem-se ao espaço visível. Por outro lado, normas téc- nicas em conforto na edificação, que cobrem os diversos fenômenos físicos do ambiente, limitam-se ao contexto am- biental e não consideram o nível da transcendência. Dizem respeito a aspectos de um abrigo para o corpo. Entretanto, o ambiente construído é um anteparo existencial, um abrigo também para a alma. 1.5 Uma visão histórica do conforto A seqüência empregada por Kolcaba e Wilson para des- crever os contextos de conforto apresenta uma curiosa coin- cidência com o desenvolvimento cronológico, primeiro da prática, e depois da teoria de conforto. Calmar a dor (contex- to corporal) é uma preocupação que se sabe remontar a tem- pos imemoriais. Depois, a busca de consolo (contexto psico- espiritual) é amplamente documentada na literatura: é, pois, o significado original da palavra confortare no latim. E a cons- ciência dos contextos sócio-cultural e ambiental, assim como suas técnicas de adequação, desenvolveram-se em épocas bem mais recentes. Antes que o contexto ambiental, o contexto sócio- cultural do conforto parece ter conquistado consciência en- quanto algo mais que a eliminação do desconforto. Relatando a burguesia rural do seu país no início do século XIX, a escri- tora inglesa Jane Austen35 costumava comentar do pretenden- te de uma moça possuir no banco uma comfortable fortune, ou ainda receber um comfortable salary. É como saber da existência de uma despensa farta, que torna a casa mais con- fortável diante da aproximação do inverno. Foi depois que apareceu a expressão to be comfortable inside – estar confor- táveis dentro de casa. 35 Jane Austen (1775 – 1817), romancista inglesa, autora de uma obra reduzida, mas muito popular. A obra de Jane Austen está integralmente disponível, em inglês, nas páginas do Projeto Gutenberg na Internet: http://promo.net/pg. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 33 Em Home, Rybczynski36 apresenta em relato cronológi- co a lenta emergência dos valores que integram o conceito contemporâneo de conforto. Tudo iniciou com a domestici- dade, em época que não tem definição precisa. O autor conti- nua introduzindo privacidade e intimidade. Tais valores eram desconsiderados quando, na Idade Média, diversas famílias dividiam um mesmo recinto. Rybczynski mostra indícios do surgimento da privacida- de como uma das primeiras exigências do conforto. Teria sido uma conquista do século XVII nos Países Baixos, onde é reconhecida a influência do tamanho limitado das casas, so- mente suficiente para uma família, e sua planta estreita, que exigia ocupação sistemática. Outros fatores, ainda, devem ter concorrido para este desenvolvimento.37 Nos demais países, isto somente ocorreu um século mais tarde, com especial impulso na corte francesa, em que o monarca criava refúgios, no seu palácio e fora dele, onde pudesse estar livre da pompa para sentir-se à vontade. Conforto – para o autor, uma tradi- ção inventada – mostra-se de início algo encontrado princi- palmente no ambiente doméstico, conceito oposto ao da esfe- ra pública. O que acima batizamos contexto sócio-cultural do conforto poderia também ser chamado de contexto sócio- cultural-político. É uma circunstância conhecida dos regimes formalmente autoritários na China e na antiga União Soviéti- ca, e mesmo da sociedade autoritária sob regime formalmente liberal do Japão, através dos relatos de quem neles viveu, que era dentro de casa que as pessoas se permitiam expressar sua mágoa, criticar e chorar.38 36 Witold Rybczynski, op. cit. 37 A simples escassez de espaço que, guardadas as proporções também ocorria nos sobrados urbanos brasileiros, ao exemplo da cidade baixa de Salvador, não se mostrou suficiente para que aqui tivesse surgido, espontaneamente, idéia equivalente – o demonstra a literatura dos viajantes do século XIX pelo Brasil, discutida mais adiante. 38 George Orwell (1903-1950), cujo nome verdadeiro era Eric Arthur Blair, escritor inglês, profetizou o fim da privacidade em sua obra 1984, em que os cidadãos eram monitorados por olhos mecânicos em suas próprias casas pelo big brother. Sob tal circunstância, o autor conseguiu destruir a noção de conforto, caracterizando uma sociedade totalitária. A IDÉIA DE CONFORTO 34 Peter Thornton39, historiador dos interiores no ocidente, identificou o momento preciso, na corte francesa de Luís XV, em que se diferenciava, enfim, entre o luxo – relacionado à etiqueta – e o conforto: na França, a câmara-dormitório era sem dúvida um quarto de recepção; era o mais interno de tais quartos, mas isto não significa que fosse alguma sala de visitas (drawing-room) onde alguém pudesse relaxar. (...). A rígida formalidade da vida na corte e, na verdade, a maior parte do intercâmbio social no período tornava imperativa a existência de locais de retiro para que se pudesse relaxar. Isto levou ao desenvolvimento, nos grandes estabelecimen- tos, de um apartamento inteiro por detrás da cena, e também do closet, um delicioso pequeno quarto onde alguém podia refugiar-se das irritantes exigências da etiqueta. A distinção entre conforto e luxo é esclarecida pelo arquiteto Stefan Zwicky:40 são coisas totalmente diversas. Com relação aos móveis, há os confortáveis que não representam nenhum luxo; ao contrário, há os luxuosos que são incrivelmente desconfortáveis. O conforto se expressa antes de tudo pela sensação de envolvimento, pela agradabilidade, também tem a ver com figuras, das quais a gente quer se cercar. Por exemplo, uma velha e sólida taverna incorpora o conceito tradicional de envolvimento: um espaço escuro, baixo e to- talmente revestido de painéis. A maioria dos hóspedes acha isto de um aconchego ancestral. E por que é que o contexto sócio-cultural é também cul- tural? A voracidade por espaço que sente um europeu não seria imaginável a um japonês, mais acostumado à vida em sociedade, e a uma distância pessoal menor. Certamente exis- te um padrão cultural: o conforto é, em seu contexto sócio- cultural, muito específico a cada povo diferente. Entretanto, parece comum a diferentes culturas o signi- ficado de conforto como algo que fazemos por nós mesmos, e não pelos outros, como é o caso da etiqueta. Conforto é algo pessoal, e a razão do conforto de um – um chinelo velho 39 Peter Thornton, op. cit.. Tradução do autor. 40Verena Huber & Stefan Swicky. Der Mensch ist die Basis des Komforts, Werk, Bauen + Wohnen 3, pp.60-61 (2003). Tradução do autor. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 35 – pode parecer desagradável ao outro. Uma condição neces- sária é a tranqüilidade: uma virtude da casa que, segundo Bachelard, abriga o devaneio. Existe, pois, uma seleção de quem deve ficar do lado de fora, e de quem queremos que fique conosco; e mesmo estas pessoas não nos devem impe- dir algumas idiossincrasias. É sintomático, ainda, que a maio- ria das revistas de arquitetura ilustrem os espaços sem pesso- as. Isto remete ao conceito do anti-conforto; dos espaços revestidos em materiais de elevadadureza, nos quais não se tolera nem sinais das pessoas que por ali passaram. Rybczynski propõe enfim, que, despontando no século XVIII, o conforto surgiria incorporando àqueles três valores, ainda, os valores da conveniência41 e do encanto. Mais tarde, acrescentaria a leveza (palavra com significado próximo de ease: expressa o caráter não-dramático, tranqüilo, em oposi- ção à excessiva tensão do rococó) e, enfim, algo de estilo e eficiência. Compreendendo os quatro ou cinco séculos de evolução do conceito de conforto até chegar ao século XX, Rybczynski pôde identificar suas partes. Como relacionar tal sistema, cronologicamente ordenado, de valores do conforto, com aquele proposto por Kolcaba e Wilson? Uma tentativa é delineada a seguir. O conforto no contexto sócio-cultural tem seu nível de alívio na domesticidade (chegar em casa depois de viajar num ônibus apinhado de gente). O nível de liberdade é obtido na privacidade (sabe que, fechando a porta da casa, o espaço pessoal está garantido) e o nível de transcendência, enfim, antes que os outros contextos, na intimidade e no encanto. O conforto no contexto psico-espiritual tem seu nível de alívio na domesticidade – o consolo de estar em casa – e na leveza (elimina tensões). Nela também se encontra, em parte, seu nível de liberdade. Já o nível de transcendência é encon- trado no encanto e, ainda, na eficiência e no estilo, duas ela- borações maiores que dão à pessoa uma satisfação duradoura, de caráter pessoal. 41 A expressão inglesa commodity foi traduzida, na versão em português do livro, como comodidade, um quase sinônimo, mas que aqui não será empregado. A IDÉIA DE CONFORTO 36 O conforto corporal e o conforto ambiental têm seus ní- veis de alívio e também de liberdade atingidos somente na conveniência. Cronologicamente, isto está associado à popu- larização de conquistas técnicas aparentemente básicas no mobiliário, nos sistemas de aquecimento e na qualidade do ar decorrente. O nível da transcendência é encontrado no encan- to e na leveza. A respeito da eficiência, valor típico de yang mas que não deixa de integrar a vida doméstica - pois dentro da casa também há trabalho a ser feito - cabe como parêntese uma observação de Bachelard:42 no equilíbrio íntimo dos muros e dos móveis se reconhece a casa construída por mulher. Os homens só sabem construir as casas do exterior, não conhe- cem em absoluto a civilização da cera. Embora Rybczynski apresente os diversos valores de maneira gradual, seu processo de amadurecimento é, na ver- dade, simultâneo – muito embora não seja uniforme. É possí- vel afirmar que a comodidade não acontecia sozinha, mas juntamente com o encanto. Rybczynski argumenta narrando a evolução da cadeira e chegando à conclusão de que não nos sentamos somente por comodidade. Da cadeira, parte para uma generalização: sentar-se é artificial, e como outras ati- vidades artificiais, embora menos óbvias que cozinhar, tocar um instrumento ou pintar, introduz arte na vida. Comemos pasta ou tocamos o piano – ou nos sentamos eretos – por nossa escolha, não por necessidade. E ao chegar na descrição dos interiores georgianos, Rybczynski menciona que teriam pretendido unir o encanto visual e o bem-estar físico ao valor da utilidade. Conforto adquire um novo significado que é “o sentido de contenta- mento com o desfrute do entorno de cada um.”43 Rybczynski faz de sua narrativa uma fascinante recons- trução, contribuindo de maneira significativa para a compre- ensão de conforto. Entretanto, não desenvolve o tema da relação entre conveniência e encanto. Seria a relação entre 42 Gaston Bachelard, op. cit., tradução do autor. 43 Witold Rybczynski, op. cit. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 37 ambos tão próxima, de modo a formarem um contínuo? Abrangeria mais que o meramente visual, reunindo meca- nismos como o térmico, o acústico, o olfativo e o tátil? Ocor- re que Rybczynski, como Kolcaba e Wilson, tratou do amplo conceito de conforto, tocando todos os contextos. Aqui, pre- cisamente a partir deste ponto, será tratado com mais detalhe o contexto ambiental. 1.6 Comodidade, adequação e expressividade Acima, foi mostrado que a caracterização de conforto ambiental sob uma perspectiva holística inclui, dos valores definidores do conforto identificados por Rybczynski, a con- veniência, o encanto e a leveza. Aqui, será apresentado um sistema alternativo, baseado em três valores. Não são nem tantos quanto proposto por Kolcaba e Wilson ou por Rybczynski, nem tão poucos como na disputa entre forma e função. Nos anos 60, Armando Monteiro Pinto apresentou uma abordagem de arquitetura em que reconhecia nela valores técnicos, práticos e artísticos: do programa de necessidades é que decorrerão os valores arquitetônicos referentes às ne- cessidades materiais e às espirituais, as primeiras definindo os valores práticos da arquitetura, e as segundas, conse- qüentemente, os valores artísticos, que se prendem ao campo do conhecimento estético. Na realização das necessidades aparecem os valores técnicos.44 Embora aqui não seja desen- volvido este último grupo, ele parece representar as verdades que existem, na arquitetura, independentes de forma ou fun- ção. Monteiro Pinto desperta, com a denominação – valores técnicos –, a atenção para o sentido mais profundo que há naquilo que faz os edifícios ficarem em pé. No sistema alter- nativo, diferentemente, procuro chamar a atenção para o sig- nificado ambiental do edifício, associado a um valor que é intrínseco da casa. E a descrição do sistema começa por este valor. 44 Armando de Andrade Pinto, Valores Arquitetônicos, Dissertação de Mestrado, UnB, (1965); grifo do autor. A IDÉIA DE CONFORTO 38 Vimos acima que o conforto existe também num contex- to ambiental que é, até certo ponto, extensão do contexto corporal. Nele, buscamos nos prevenir das agressões de or- dem física. As variáveis – materiais e energéticas – que, com sua distribuição no espaço e no tempo, definem o ambiente, não forçariam o organismo humano para fora de seus limites de funcionamento normal – a chamada zona de conforto. Em termos mais concretos: em relação a ar, luz, som, calor e superfícies não deveria haver sofrimento. Para esta qualidade será adotado, daqui em diante, o nome “comodidade”. Rela- ciona-se com os dois primeiros níveis de conforto adotados pela enfermagem: “alívio de uma dor” e “liberdade de outras dores”. É a condição encontrada, por excelência, dentro de casa, no seu caráter yin, maternal. No terceiro nível – o da transcendência –, deseja-se que o ambiente atue sobre o estado de espírito. Isto equivale, em princípio, ao valor do encanto proposto na visão histórica. Todavia, convém rebatizá-lo com um termo mais oportuno: “expressividade”; afinal, é antes um produto do ambiente do que uma reação subjetiva da pessoa. E a leveza acima citada também é abrangida. É como um freio que se aplica à expres- sividade. Na casa, ela se contém. Difere, pois, da expressivi- dade de um monumento onde se ostenta riqueza ou poder, ou daquela de uma vitrine, de um palco de teatro, ou ainda de uma instalação de arte experimental. A expressividade do ambiente construído é associada à forma; entretanto, não constitui paralelo a esta, assim como na polaridade forma&função, pois só tem seu sentido quando associada à comodidade. É encontrada sempre, e principal- mente à noite, na casa: no teto sobre nossas cabeças, nas pa- redes que definem o reduto inviolável, uma amostra de mun- do sobre a qual temos pleno domínio, que ao mesmo tempo nos prende, nos limita. Em casa queremos estar acolhidos, protegidos, estáveis, supridos em nossas necessidades fisio- lógicas, guarnecidos para o futuro, flexíveis para enfrentar o imprevisto, aptosa repousar e sonhar e entretidos para que o vazio existencial não nos venha a corromper a paz. Na casa, no entanto, permanecemos cientes do mundo através das janelas. Ainda, somos livres para sair. Não basta O SIGNIFICADO DE CONFORTO 39 a compreensão racional se o corpo apresentar emoções ad- versas. É o caso do engenheiro especializado em estruturas que, vivendo num apartamento alto, sente amolecer os joe- lhos quando lembra de tal dado. Para completar o sistema alternativo de valores, falta aquele específico dos ambientes não residenciais. É valor da correta adaptação do conforto às exigências produtivas. À diferença da casa, existem, sim, ambientes cuja razão de ser é o trabalho. Outros, ainda, as pessoas procuram quando ali querem estar: é o caso de quem coloca o pé na estrada. Con- siderando que o verdadeiro conforto existe dentro de casa, este valor é como uma medida da não-domesticidade. Neste ponto, será dado o nome “adequação” ao valor que contrapõe às exigências de conforto a necessária e prioritária conformi- dade do ambiente a determinado fim. São preservadas algu- mas condições necessárias à sobrevivência; entretanto, abre- se mão de alguma comodidade para atender a uma razão de ser produtivista. A adequação tem um sinal algébrico oposto ao da comodidade: subtrai-se dela. É a funcionalidade do ambiente, expressa enquanto uma espécie de anti-conforto. Corresponde à função que, para os modernistas, deve ser seguida pela forma. Assim, não é estanque, pois tem implica- ções para a expressividade. É a porção de desconforto em que implica, necessariamente, uma aproximação com yang. Imagine-se a figura do camponês que, num dia de inver- no depois de prolongada chuva, sai de manhã cedo procurar lenha. O frio é quase insuportável. O solo se encontra úmido e, com ele, a lenha, que terá de secar próxima ao fogo para ser usada. As mãos cortadas recolhem junto ao corpo as toras mais pesadas que se consegue segurar, sujando a roupa de barro. Para poder comer e relaxar o corpo próximo ao calor do fogo, é fundamental que antes saia buscar lenha – ativida- de que implica razoável sacrifício. A adequação é, pois, a modificação no ambiente que, reduzindo o conforto, é neces- sária para o desempenho do trabalho. Está presente inclusive no trabalho doméstico de preparo da alimentação, limpeza da casa, de louças e de roupas, e estudo. Porém, dá trégua à casa quando, terminado o trabalho, conquistou-se o repouso. A IDÉIA DE CONFORTO 40 Como seria uma escola confortável? Não me dei o traba- lho de imaginar, consultei meus alunos. Implicaria aplicar carpete no chão, substituir as carteiras por sofás, reduzir o nível de iluminação, adotar lâmpadas de cor quente e cortinas escuras e, enfim, eliminar o professor e os colegas para que se possa tirar o sapato, esticar os pés, ligar a TV, pedir um sanduíche e um refrigerante... A escola poderá ser feita cada vez mais adequada em seu ambiente, mas nunca deverá se tornar confortável. A noção de adeqüabilidade não se aplica unicamente a uma atividade produtiva. Quem vai a uma danceteria ouvir dance music, a música pesada e nervosa apelida de bate- estaca, faz opção consciente pelo barulho, pela tensão, fuma- ça, aglomeração, adrenalina. Não tem sentido falar em con- forto num tal ambiente. E quem vai a ele, o faz de livre esco- lha. 1.7 Transcendência na casa e no mundo No início do capítulo, encontramos Loos proferindo a condenação da casa ao atraso. Ao fazê-lo, proclamou uma diferença fundamental entre a casa e o resto do mundo, dei- xando contribuição sugestiva ao entendimento de conforto: é basicamente um valor caseiro. Isto não implica em despojar um escritório de qualquer traço de domesticidade, ou que uma casa deva-se fechar em suas tradições, rejeitando qual- quer conquista tecnológica.45 A este respeito, Rybczynski observa que viver no passado é privilégio de quem é muito rico, senão muito pobre. O interior da casa, seu conteúdo e sua tradição se aproximam de yin, e a racionalidade, as novi- dades e a atração do mundo, de yang. Não é yin melhor que yang; são opostos que se complementam para formar o Tao, o todo. 45 É curioso o fato de que, adepto do princípio do revestimento, Loos criou interiores reconhecidos como muito aconchegantes. Por exemplo, utilizava painéis de madeira escura e luminárias em cores quentes, e até mesmo padrões decorativos. Sua célebre crítica do conforto deve ser entendida, em boa parte, como retórica, dirigida à bur- guesia recém-radicada em Viena que, por desenraizada, ostentava uma pretensa nobreza, por exemplo, através dos adornos em suas fachadas. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 41 O futuro tem mais em comum com o mundo do que o passado. A casa idealizada no futuro, analisada por Bache- lard,46 parece uma súbita manifestação de yang no meio da domesticidade: Às vezes, a casa do futuro é mais sólida, mais clara, mais vasta que todas as casas do passado. O olhar para a frente é diferente de olhar para o passado; à frente está, pois, o desconhecido: o projeto é para nós um onirismo de curto alcance. O espírito se desapega com ele, mas a alma não encontra ali sua vasta vida. O autor cita George Sand, cujo nome real era Aurore Dudevant, a namorada de Cho- pin47 que possuía uma falsa identidade masculina: pode-se classificar os homens segundo aspirem a viver em uma choça ou em um palácio. Mas a questão é mais complexa: o que tem um castelo sonha com a choça, o que tem a choça sonha com o palácio. Temos cada um nossas horas de choça e nos- sas horas de palácio. Conduz a argumentação a conseqüên- cias bastante práticas: Para dormir bem não é necessário dormir numa grande estância. Para trabalhar bem, não é necessário um reduto. Para sonhar o poema e para escrevê- lo se necessitam ambas as moradas. E conclui: a casa so- nhada deve ter tudo isto. Fora de casa, não nos basta a compreensão de estarmos livres, entregues a nós mesmos e nossas redes de contatos, às instituições civis e às nossas crenças. Queremos percorrer irrestritos as ruas, exercer curiosidade, olhar, testar, conhecer as diferenças, experimentar a velocidade, sentir o vento no rosto. A procura de liberdade nos faz por hora esquecer-nos do conforto. A casa alheia, a esfera pública, o mundo do tra- balho e das oportunidades de mudança, das instituições, da boemia, das praças e da própria rua têm cada qual sua ex- pressividade, que buscamos nos momentos em que nos im- porta muito menos a proteção da casa. Se a transcendência ocorre na casa e no mundo externo a ela, este também tem sua expressividade. Um casal de amigos revelou ter saudades do tempo em que, ainda sem filhos, podiam sentir frio via- 46 Gaston Bachelard, op. cit., tradução do autor. 47 Fryderyk Franciszek Chopin (1810 - 1849), compositor polonês do Romantismo, com admirável produção para o piano, prestando contribuição essencial para o desenvolvimento da expressividade e técnica no instrumento. A IDÉIA DE CONFORTO 42 jando de motocicleta. É uma estética do trabalho e da aventu- ra, com caráter yang. Brecht48 escreveu a respeito uma Bala- da dos aventureiros, que descreve como quem esqueceu não somente os sonhos mas toda a juventude, há muito o telhado, mas nunca o céu sobre si. Menciona terem sido expulsos do céu e do inferno e, finalmente, sonharem com um pequeno prado, com céu azul, e nada mais. A expressividade é, certamente, um efeito da arquitetura relacionado à estética. Entretanto, existe independentemente da arquitetura ser reconhecida ou não como arte – seja por se tratar, por vezes, de produto de cópia e logo sem originalida- de, de um fato acidental como a moradia debaixo da ponte, de uma experiência meramente pessoal, ou ainda por outras circunstâncias. A interminável discussão acerca da definição de arte foge ao propósito e à competênciadeste livro, mas é preciso reafirmar o que é, e o que não é seu escopo. Interagimos com o ambiente construído, enquanto uma realidade física e matematicamente representável, através de sensações. A estas, processadas num contexto pessoal e cul- tural muito específico, seguem quase que instantaneamente emoções. São um vínculo com o ambiente construído que, a despeito de um valor artístico, é realidade cotidiana e não mera representação. Vivemos e trabalhamos dentro dele, enquanto os museus e salas de concertos somente visitamos esporadicamente. Mesmo incompleta, a arquitetura pode nos impressionar. Um esqueleto de edifício em construção, com suas ferragens e outros materiais brutos à mostra, tem irradiação própria, não necessariamente relacionada àquela do edifício pronto. Até uma ruína pode impressionar, mesmo sem envolver-nos completamente. E não é difícil demonstrar que o desconforto também é expressivo.49 Cabem duas observações aos proponentes, acima cita- dos, dos outros sistemas definidores de conforto. Inicialmen- 48 Bertolt Brecht (1898-1956), poeta e dramaturgo alemão, defensor de uma arte engajada. Tradução pelo autor. 49 Hermann Czech, Komfort – ein Gegenstand der Architekturtheorie em Werk, Bauen, Wohnen 3, pp.10-15 (2003) O SIGNIFICADO DE CONFORTO 43 te, a Monteiro Pinto, que se referia não ao conforto, mas à arquitetura, e o resultado foi semelhante àquele proposto por este livro. Isto revela que a compartimentação de arquitetura e de conforto (dentro ou fora da arquitetura) não resiste a um exercício de holismo. Depois, a Rybczynski. Poder-se-ia questionar a opção por uma cronologia da idéia de conforto, se o autor podia já de início apresentar uma síntese? A siste- matização temporal deve ser vista nem tanto como um siste- ma rígido, mas um pouco como recurso do autor, um estilo de escrever que tem eficácia didática. É mais provável que a idéia de conforto tenha surgido aos poucos, em todos os seus aspectos, não em simultaneidade, tampouco em fila indiana. Os valores que a integram constituem um contínuo. Ainda sobre Rybczynski, não parece provável que o “encanto” a que se refere seja simplesmente visual, e que os demais prazeres físicos devam ser agrupados em torno de “comodidade”. O autor não nega a idéia do encanto extra- visual, mas nunca trata de maneira explícita, deixando algu- ma impressão de que conforto fosse limitado ao corporal e só permitisse prazer corporal, enquanto que os aspectos visuais, bem mais inteligíveis, dariam origem ao prazer estético – um fenômeno principalmente intelectual. Defendo aqui a idéia de que os aspectos não- geométricos do ambiente construído também tenham uma dimensão expressiva: integram o material artístico da arquite- tura. Aqui serão apresentados dois argumentos. Primeiramente, porque o não-visual no ambiente, em parte significativa, é puro material poético. Não faltam exemplos, em especial na literatura produzida por sinestetas – aquelas pessoas com uma particular sensibilidade à correla- ção entre os sentidos, como quem com naturalidade associa cores a números.50 Um deles foi James Joyce, que era capaz de retratar uma impressão espontânea de calor sem falar de calor: he looked along the river towards Dublin, the lights of which burned redly and hospitably in the cold night.51 Este 50 Diane Ackerman, em A Natural History of the Senses, dedica o último capítulo ao assunto. 51 Ele olhou ao longo do rio em direção a Dublin, cujas luzes ardiam vermelhas e hospitaleiras na noite fria, no conto A Painful Case,em Dubliners. A IDÉIA DE CONFORTO 44 tipo de expressividade dos ambientes não é exclusivo das páginas da literatura; existe no mundo real. Depois, porque a funcionalidade do conforto – a ade- quação – também tem sua extensão expressiva; integra, pois, o conceito mais abrangente de arquitetura. Um poema é composto de métrica e rimas, e também conteúdos. Assim também o espaço arquitetônico, em que o ambiente construí- do fornece elementos de composição que são ora de forma, ora de conteúdo (o próprio espaço condicionado). Antes mesmo de propor situações expressivas originais, faz falta abrir os olhos e os ouvidos, as mãos e as narinas. O ambiente construído nos oferece experiências, algumas intencionais, outras acidentais, que estão sob risco do esquecimento en- quanto nuances, portadores de herança cultural, de significa- do concreto e poesia. Czech52 contradiz a formulação corren- te de ser o espaço o objeto de trabalho da arquitetura, e ao fazê-lo melhora, de certa forma, o reconhecimento de seus aspectos não-visuais. Para ele, o verdadeiro material artísti- co da arquitetura não é o material de construção, a constru- ção, a forma escultural, nem mesmo o espaço ou a luz – é o comportamento das pessoas. Este não é linearmente contro- lável – já por isto a arquitetura tem muito a ver com proces- sos (formais) nada, ou pouco controláveis. Ao longo deste livro, aparecerá várias vezes a tese de que a expressividade é um efeito do ambiente físico em si, sem que haja uma preocupação plástica. Existiria, portanto, uma responsabilidade expressiva das decisões técnicas toma- das a respeito do ambiente. Se comprovada esta tese, faria pouco sentido falar de conforto ambiental na arquitetura, cada vez que fosse tomado desligado do todo. Seria parte, pois, do universo expressivo da arquitetura, dando-lhe em parte sua capacidade de influenciar através de uma comuni- cação de ordem espiritual, quer pelas sensações desperta- das, quer pelo seu comportamento ético face à sociedade, bem como pelas idéias que lança, possibilita a análise de seus valores.53 52 Hermann Czech, op. cit., tradução pelo autor. 53 Monteiro Pinto, op.cit. O SIGNIFICADO DE CONFORTO 45 E o espaço guarda uma relação radical com a nossa exis- tência, com a consciência que temos de nós mesmos. É no espaço que nos percebemos realidade concreta. O “penso, logo existo” não se dá livre de uma percepção espacial, pois as coisas que existem são as coisas percebidas. Em sua Fe- nomenologia da percepção, Merleau-Ponty54 propõe que a percepção do mundo significa uma existência com o mundo e com nossos semelhantes. Explorando o espaço, exploramo- nos a nós mesmos. Encontramos novas referências, e recupe- ramos outras. Pois somos também o que já se passou, o que não é mais realidade imediata. Por exemplo, os lugares mági- cos da infância estão dentro de nossa memória. E é este um importante elemento discriminador da arquitetura enquanto gênero artístico: não a representação, mas a realidade; não a matéria, mas o espaço. Quer em si mesmo, quer em simboli- zação, o espaço da arquitetura é uma fonte de espiritualida- des, com índole e feições privativas dele, de sua realidade intransferível.55 Bachelard nos facilita este entendimento ao afirmar que os verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um pas- sado vem a viver pelo sonho numa nova casa. ...A casa, como o fogo, como a água, nos permitirá evocar, no curso deste livro, fulgores de devaneio que iluminam a síntese do imemo- rial e da lembrança. ...Nesta região distante, memória e ima- ginação não permitem que se as dissocie...As lembranças do mundo exterior nunca terão a mesma tonalidade que as da casa. Evocando as lembranças da casa, somamos valores de sonho; não somos nunca verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção talvez só traduza a poesia perdida. Cumpre tornar cada vez mais viva a experiência presen- te, resgatar a passada e encontrar em ambas o significado atemporal. Os sentidos podem auxiliar-nos a fazê-lo. É o propósito deste livro. 54 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), filósofo e fenomenólogo francês. 55 Evaldo Coutinho, O espaçoda Arquitetura, 2a. edição, Ed. Perspectiva, São Paulo (1998). The final solution must be appealing, both rationally and emotionally. (A solução final deve atrair, tanto racional como emocionalmente) Richard Neutra, Survival through Design Figura 3 - Residência em Brienz (Suíça) 2 - Inocência, exagero, descaso e burocratismo Atribui-se a Freud56 a explicação de que o ímpeto que leva o ser humano a construir tem natureza inconsciente. Estaríamos buscando reproduzir o útero materno, o primeiro abrigo que conhecemos e de cuja tranqüilidade emergimos ao nascer. Esta idéia é recorrente na literatura sobre a casa. O capítulo anterior mostrou que conforto é um conjunto de valores. Inclui saber-se abrigado e vestido conforme o clima e o tempo; protegido contra as intempéries e a invasão (contexto ambiental); visível e audível quando necessário; respeitado no seu repouso; livre de obrigações e portanto, relaxado (contexto sócio-cultural). Seguro de que o abrigo é estável e permanente. Conforto pressupõe, ainda, que o indi- víduo se saiba capaz de mover-se, satisfazer uma vontade, produzir e modificar o ambiente e, por fim, sentir-se especial, 56 Sigimund Freud (1856-1939), médico austríaco, autor da Interpretação dos so- nhos, considerado o fundador da psicanálise. A IDÉIA DE CONFORTO 48 com sua identidade reafirmada pelo ambiente (contexto psi- co-espiritual). Hildebrand57 expõe uma doutrina intuitiva do conforto. Defende que o gosto por um ambiente com características concretas de abrigo poderia ser um dom hereditário que, ao longo de gerações de antepassados, determinou o sucesso na seleção natural. Quem hoje vive, pertence provavelmente a uma linhagem cujos antepassados tiveram sempre uma tal preferência. A busca do conforto no abrigo seria, portanto, uma reação espontânea de caráter hereditário. Mas é inquestionável o componente cultural do confor- to, aquilo que é transmitido de forma não genética – predo- minantemente, oral. É difícil imaginar que faltasse ao homem antigo e medieval a consciência de qualquer dos itens acima relacionados. Poder-se-ia inferir então que o conforto fosse um conceito conhecido e usual desde todo o sempre. Entre- tanto, existe evidência lingüística negando a hipótese. Foi somente ao final do século XVIII que conforto passou a ser usado de maneira generalizada, como um conceito aplicado ao meio de vida e trabalho. Tudo leva a crer que o conforto era, no século XVIII, aquilo que hoje se denomina uma demanda latente, algo que não se expressa de forma espontânea, por alguma razão que pode ser o desconhecimento ou uma obstrução no acesso aos produtos. O conforto teria sido, enfim, conscientemente per- cebido, a começar nos círculos materialmente capazes: a nobreza e, principalmente, a burguesia. Com o passar das décadas, o conforto se tornou acessível a uma faixa maior da população. Em sociedades prósperas do século XIX, houve genera- lização e atingiu-se o exagero na preocupação com o confor- to. Isto ocorria ao mesmo tempo em que certos ideais de qua- lidade artística eram perseguidos. A casa cômoda e decorada de acordo com a moda passou a ser vista, de modo especial nos EUA, como símbolo de status. 57 Grant Hildebrand, op. cit. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 49 As casas tinham se tornado local de um acúmulo sufo- cante de objetos. O Modernismo, no início, esbravejou contra esta situação: propunha antes uma estética do útil que do tradicional. A vanguarda artística chocava o senso comum. Se o movimento trouxe ganhos técnicos com o desenvolvi- mento dos sistemas prediais (especialmente iluminação e climatização), perdeu-se em domesticidade, privacidade e intimidade. Perdeu-se em parte a chamada leveza, e ainda a informalidade dos interiores domésticos cheios das marcas do seu uso. A estética priorizada, do despojadamente elegante – bei- rando o ascético - vinha eliminar valores ancestrais da casa; portanto, era mais que um simples modismo que substitui o modismo anterior.58 No aspecto técnico, caíam no esqueci- mento práticas tradicionalmente eficientes de controle ambi- ental. Os edifícios se tornavam cada vez mais dependentes de fontes externas de energia, fontes muito concentradas. Rela- cionado, havia elevado consumo de recursos naturais. Este incluía os recursos renováveis, como a água doce e sua ener- gia, e os não-renováveis, como os combustíveis fósseis, ecos- sistemas e espécies, a paisagem natural e o próprio clima. Duras críticas ao movimento advêm deste fatos.59 Nas três últimas décadas do século XX, acompanhando o movimento ambientalista, novas correntes na arquitetura tentavam resgatar o condicionamento térmico natural do am- biente construído, a iluminação e a ventilação naturais. Cola- boraram os avanços na física aplicada às edificações, contan- do com versátil e poderoso ferramental empírico e computa- cional. No meio arquitetônico e da construção civil desen- volveu-se a disciplina do conforto ambiental. Entretanto, surgiu como um pacote auto-contido e atraiu alguns arquite- tos para sua ideologia peculiar. Cresceu bastante dissociado da arquitetura. 58 Witold Rybczynski, op. cit. 59 Paolo Portoghese, Depois da arquitetura moderna, Martins Fontes, São Paulo (1998). A IDÉIA DE CONFORTO 50 É notório que nos contextos corporal e ambiental do conforto verdades elementares tenham sido renegadas em favor de uma liberdade da expressão formal. Para o conforto, foi nefasta a iconização de produtos do Modernismo, como os edifícios em caixas de vidro. Foram preconizadas pelo chamado Estilo Internacional, de que Mies van der Rohe60 foi importante mentor. Eram parte de um repertório de soluções de um simpático ar antitotalitário, mas que se arrogavam universalidade. De fato, surgidas em países de clima frio, em edifícios de escritórios feitos estufa que se tornavam agradá- veis durante o dia, as caixas atravessaram fronteiras para ser adotadas, a despeito de diferenças culturais e climáticas, até mesmo em regiões tropicais. Sob temperaturas do ar duas ou três dezenas de graus acima do local de origem, acabam pro- vocando enorme consumo de energia para o condicionamento de ar.61 O abandono de conquistas do conforto também afetou os contextos sócio-cultural e psico-espiritual, apesar de ser um fato mais raramente mencionado. A casa se torna muito se- melhante a um edifício público ou institucional. A sala de visitas, a uma sala de espera. O quarto, a um quarto de hospi- tal. Móveis frios, ângulos retos, superfícies duras. E a expo- sição ao exterior através de janelas torna a casa mais parecida com uma vitrine. Ainda, a transcendência (termo apresentado no capítulo 1) se torna mais ausente dos contextos corporal e ambiental. Sentar-se numa poltrona torna-se um gesto espartano. Cantos escuros se tornam escassos. A arquitetura perde expressão ao 60 Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969), arquiteto alemão, dos mais importantes no Modernismo. 61 No Brasil, um fato semelhante já havia ocorrido no século XIX, quando da mo- dernização dos sobrados coloniais. Os muxarabis eram grades de madeira em trama diagonal, de influência moura, que protegiam os rostos das mulheres da visão dos pedestres. No Rio, D. João VI ordenou que fossem retirados das janelas. Rejeitava seu aspecto bárbaro. Gilberto Freyre relatou como o ferro e o vidro – produtos da pauta de exportação britânica – substituíram as esquadrias de madeira nacionais, com prejuízo da qualidade ambiental. Mais informações em Gilberto Freyre, Cultura e Museus, Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico do Pernambuco, Recife (1985). Ainda, Eduardo Bueno: História do Brasil, Folha de São Paulo, São Paulo (1997).INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 51 tratar do conforto como exigência de norma, quando não existe uma convicção organicamente incorporada ao processo de projeto. As questões tratadas neste capítulo serão, nesta ordem, as seguintes. No final do capítulo anterior, foi defendida a opinião de que o objeto de trabalho da arquitetura é o comportamento das pessoas. Outra importante matéria-prima é o espaço, e sua tarefa primordial é a produção do espaço arquitetônico. E na tensão entre ciência e arte, o espaço - questão repetidas vezes lembrada neste livro - é muitas vezes restrito ao visual. O que se observa é um comportamento cíclico; em cer- tos momentos se valoriza mais o visual, e noutros uma senso- rialidade diversificada. Esta última aparece nas épocas, ou situações, em que a arquitetura ingenuamente mostra maior organicidade, como nos lares de camponeses. Então, são melhor pronunciados os diferentes valores compreendidos no ambiente construído. O conforto não era um objeto conscien- temente entendido, era antes uma demanda latente. A este momento, apelidamos de inocência. No início do século XIX surge a noção de conforto e uma cultura relacionada; há uma evolução com tendência a abandonar o ingênuo, todavia preservando-se a domesticida- de. Aparecem o movimento Biedermeier e o estilo Vitoriano. É um momento de exagero. No início do século XX, com o Modernismo, o visual passa a predominar. Posteriormente, tais idéias se tornam obsessões estéticas e provocam aberrações do ponto de vista do ambiente construído: assim são as caixas de vidro ergui- das em países tropicais – insuportavelmente quentes - e os interiores de escolas em concreto aparente – insuficientemen- te iluminados. É o descaso. Enfim, surge o movimento do conforto ambiental como reação. Todavia, desenvolve-se voltado para os aspectos téc- nicos e científicos, deixando de lado os aspectos sociais e artísticos da arquitetura. Como proposta de trabalho teórica e, portanto, não-criativa e, ainda, alheia ao conteúdo expressivo A IDÉIA DE CONFORTO 52 do espaço, o conforto ambiental ganha certa fama de terreno árido para estudantes de arquitetura, que apelam para seu caráter secundário. Profissionais de arquitetura recuam, dei- xando que se torne um reduto de especialistas. Isto permite que configure a atitude de burocratismo. 2.1 O caráter multissensorial do espaço O espaço livre, bruto, ainda não trabalhado é, ao lado do comportamento das pessoas – que se traduz em funções para os edifícios, programas arquitetônicos e, enfim, projetos – é uma matéria-prima essencial da arquitetura. Encontra-se tan- to no mundo natural como no mundo aculturado. O produto da arquitetura também é espaço – o espaço da arquitetura, espaço pensado, civilizado, moldado para abrigar as pessoas e suas atividades. Cavernas e cúpulas, muros e telhados, portas e janelas, árvores e jardins são possíveis demarcações de espaço. Con- dicionam porções de ar que, por sua vez, trazem influências sobre fluxos de energia e matéria; sobre o estado físico da matéria – sólido, líquido ou gasoso - o movimento das molé- culas (temperatura) e das porções maiores da matéria (som e vento). Independente do ar, transita a radiação, visível (luz) ou invisível (calor). O trânsito de matéria inclui ar, água e umidade, odores e partículas. Muros e cercas, correntes, por- tões e roletas, e faixas brancas e amarelas pintadas no chão delimitam o espaço de livre circulação das pessoas. E con- tendo o ser humano, o espaço é sensível a ele: O corpo é um agente de influxos, uma fonte de ruídos, um fixador e move- dor de sombras, de reflexos, fazendo as vezes de criador eventual.62 Quase tudo o que há no espaço se sente. Entretanto, qua- se nada se vê, a não ser seus limites. A apreensão que fazemos do espaço se dá através dos sentidos, vividos ou imaginados. Mesmo que, sem querer, quase tudo remetamos à visão, tal sentido não parece ter sido, 62 Evaldo Coutinho, op. cit. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 53 na história da vida, o sentido inicial que nos fez compreender o espaço. O olfato é o sentido ancestral. Isto se diz porque é tanto um sentido preservado na evolução desde os seres mais anti- gos até o homem, como também é um sentido desenvolvido nas primeiras semanas de vida. Sinaliza fatos de importância vital como a proximidade do alimento. A audição é um auxiliar. Existe desde a vida pré-natal, e no seu estado primitivo – a audição do bebê que ainda não entende o idioma dos pais - sublinha nossa percepção de eventos. Traz-nos idéias sobre presença, constância, mudan- ças súbitas e perigo. O tato, também ancestral, está relacionado ao nosso aprendizado motor. Permite-nos estabelecer os limites reais das coisas, especialmente quando passamos a nos locomover por conta própria. A visão, por fim, se destaca por ser um sentido especi- almente refinado; presta-se à generalização do aprendizado do tato, principalmente, e ainda dos outros sentidos. Suprimida a etapa do paladar – tomado como um caso particular do olfato – essa seqüência reproduz uma aprendi- zagem do espaço e foi desenvolvida no séc. XVIII pelo filó- sofo Étienne de Condillac,63 numa tentativa de sistematizar a percepção humana. 2.2 O dionisíaco e o apolíneo na arquitetura Na história das artes, alternaram-se de modo mais ou menos claro épocas de valorização das experiências sensori- ais com outras de mais forte apelo à racionalidade. Quando predomina o sensorial sobre o raciona, falamos num momen- to dionisíaco. Na situação oposta, falamos num momento apolíneo. 63 Étienne de Condillac, Tratado das sensações, trad. Denise Bottmann, Editora da Unicamp (1993). A IDÉIA DE CONFORTO 54 Os termos dionisíaco e apolíneo derivam da semelhança mais com um, mais com outro dos deuses aludidos – Apolo e Dionísio. As expressões foram cunhadas por Nietzsche64 em 1872. Remetem à Grécia antiga, quando surgiram os funda- mentos da filosofia da arte. Apolo era o deus da luz, das artes e da adivinhação, e personificava o sol. Era o mais belo dos deuses. Dionísio era o era o deus dos ciclos vitais, da alegria e do vinho. Corresponde ao deus Baco dos romanos. A crença se foi, mas permaneceram os ideais. Diz-se apolíneo àquilo que se caracteriza por equilíbrio, sobriedade, disciplina e comedimento,65 ou ainda por ordem, racionalida- de e harmonia intelectual.66 Há predominância do racional, da serenidade, de uma certa imobilidade. Para exemplificar, podemos observar a escultura. Ariano Suassuna menciona que as obras do período clássico parecem representar seres como que retirados do universo psicológico, imunes ao so- frimento e à idéia ou presença da morte.67 É comum a associ- ação de Apolo aos traços mais típicos da personalidade mas- culina. Diz-se dionisíaco daquilo cuja natureza é agitada, arre- batada, desinibida, romântica, ou ainda extática e espontânea - semelhante à de Dionísio. Por isto mesmo, o adjetivo é rela- tivo ao entusiasmo, à inspiração criadora, ou ainda ao instin- tivo, natural, espontâneo; tumultuário, confuso, desordena- do.68 Dionísio é associado aos traços mais típicos da persona- lidade feminina. Esta polaridade se parece com aquela proposta no capí- tulo anterior: é perceptível uma semelhança entre as caracte- rísticas de Dionísio com yin, e as de Apolo com yang. 64 Friederik Nietzsche (1844 – 1900), filósofo e filólogo alemão, nascido na antiga Prússia. 65 Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Ed. Nova Fronteira (1975). 66 Simon Blackburn, The Oxford Dictionary of Philosophy, Oxford (1994). 67 Ariano Suassuna, Iniciação à Estética. 4a. ed. UFPE, Recife (1996). 68 Holanda, ibid. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 55Dionisíaco e apolíneo são predicativos que ajudam numa caracterização geral dos movimentos artísticos. Designam escolhas feitas pelos artistas enquanto criadores, e reprodu- zem uma tendência de época: comumente, são também prefe- rências do público como apreciador. Mas sua identificação consciente se dá pelos críticos e historiadores. A existência da alternância de que falávamos no início é notável. A Anti- güidade Clássica – apolínea – se alterna com a Idade Média – dionisíaca –, e daí por diante, com o Renascimento, o Barro- co, o Classicismo, o Romantismo e o Modernismo. Segundo Suassuna, a Idade Média, o Barroco, o Neo- classicismo e o neo-Gótico – ambos caminhando para o ecle- tismo – e, ainda, o Art Nouveau foram períodos de organi- cismo na arquitetura. Eram momentos dionisíacos. Já na Antiguidade Clássica, no Renascimento e no Mo- dernismo predominaram os ideais da beleza clássica. Dava-se mais importância à racionalidade. Eram momentos apolíneos. Contrapondo a arquitetura racional do período clássico e a arquitetura orgânica, o autor afirma desta última que os objetivos puramente estéticos de ornamentação são bastante mais evidentes, e ainda que a destinação útil do prédio é mais definida pela sobriedade e pelo despojamento. Por ou- tro lado, a arquitetura orgânica tem uma tendência para sugerir a presença ou a busca do trans-humano, enquanto a racional, até pelas proporções, procura se ligar às medidas do corpo humano. Entretanto, esta última considera um corpo humano per- feito, idealizado. Não gratuitamente é chamada arquitetura racional. Seu ideal se concretiza em aspectos visuais, em limpeza, linearidade e cartesianismo, virtudes com que pro- cura organizar e até salvar o mundo. A arquitetura orgânica é aquela que tem uma funcionalidade natural, mais afeita ao mundo prático. O convívio das duas personalidades é desafiador. Suas- suna vê na arquitetura o campo em que é mais difícil aparecer um grande artista, aquele que consiga vencer todas as difi- culdades práticas de modo a que sua construção, sendo útil, A IDÉIA DE CONFORTO 56 crie a Beleza e atinja a expressão do mundo estranho, pesso- al e diferente que cada artista carrega dentro de si. Décadas antes de o Modernismo unir funcionalidade a certas obsessões formais, o arquiteto alemão Karl Friedrich Schinkel preconizava o valor artístico da arquitetura direta- mente associado à sua funcionalidade, e dela fazia parte o caráter aconchegante. A mais alta sensação de segurança e aconchego, dizia, o indivíduo alcança ao manter-se sentado, o efeito mais simples da gravidade. A tranqüilidade na arte (Kunstruhe) seria uma condição essencial de beleza, e em especial na arquitetura. A citação aparece num texto recente, descrevendo um projeto de interior que resgata elementos do conforto desdenhados pelo Modernismo mais radical, como a panelização das paredes em madeira e seu revestimento em tecidos decorativos. Seu autor argumenta que a arquitetura é uma arte corporal que pressupõe uma arte intelectual. O exemplo do arco bem encaixado, objeto de especial interesse de Schinkel, transmite ao intelecto a tranqüilidade, e ao corpo a sensação de acolhimento.69 Uma tentativa pacificadora de classificação associaria conforto à satisfação do corpo, e a arte à satisfação da mente. Esta aparente simplicidade encobriria o fato de ambos os valores coexistirem na arquitetura, principalmente na arquite- tura residencial, e não parecerem ingredientes independentes: da continuidade entre estes valores há muitos indícios. O principal deles foi apresentado no capítulo anterior: no seu nível de transcendência, o conforto se torna prazer, e se torna difícil separar o prazer físico de um prazer estético. 2.3 Inocência Há sinais convincentes de que o conforto tenha sido por muito tempo ignorado. Segundo Benjamin,70 ao menos 69 Hans Kohlhoff e J. e Ph. Von Bruchhausen, Werk, Bauen und Wohnen 3, pp.16- 20 (2003). Tradução pelo autor. 70 Walter Benjamin (1892-1940), filósofo alemão da escola de Frankfurt, perseguido pelos nazistas durante a segunda guerra até o suicídio. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 57 um componente fundamental seu, a domesticidade, seria uma invenção da era moderna – isto é, teve início na Renascença. Este gradualismo é retratado por John Crowley,71 para quem durante séculos as amenidades físicas do conforto pou- ca coisa mudaram na Inglaterra medieval e no início da era moderna. No final deste período, a afirmação se estende à sua colônia americana. As pessoas moravam em espaços esfuma- çados, frios e escuros, sem queixa, como se tais “desconfor- tos” fossem simples circunstâncias dadas na vida humana, tais como o tempo e a alternância do dia e da noite. A pala- vra “conforto”, naquele tempo, referia-se ao apoio moral e espiritual, mais que à amenidade corporal. A conquista gradativa de algum conforto no contexto ambiental, como possibilidade aberta a uma larga faixa da população, teve pressupostos técnicos, econômicos e cultu- rais, até que o conceito se tornasse objetivamente conhecido, ganhando uso na linguagem falada do dia-a-dia. Inicialmente, era necessário saber como obtê-lo. Depois, eram necessários excedentes econômicos – inclusive o tempo para pensar, decidir, planejar e realizar o conforto. O conhecimento de questões técnicas relacionadas ao aquecimento de palácios e mosteiros remonta, é certo, a Roma antiga, em que a calefa- ção central era conhecida. Por outro lado, exigia admirável investimento em infra-estrutura. Enfim, sem a iniciativa de se empreender esforço numa questão não reconhecida como fundamental, nada aconteceria. Era necessária a mudança de hábitos, e isto não ocorre como decisão isolada, mas como um processo de adesão a uma nova moda. O que houve, aparentemente, foi um lento desenvol- vimento do conforto enquanto demanda latente, incluindo a percepção de sua necessidade e a conjunção de condições econômicas e técnicas para sua consecução, até que condici- onantes sociais permitissem que o conforto fosse um produto conscientemente buscado pelas famílias. 71 John Crowley, The Invention of Comfort: Sensibilities and Design in Early Mod- ern Britain and Early America, Johns Hopkins University Press (2001) resenhado por Richard Lyman Bushman em Business History Review, resenha eletrônica (2002). A IDÉIA DE CONFORTO 58 No início da longa fase de gestação da idéia de conforto já existia a busca de comodidade – a ausência de dor, como definido no capítulo 1. É muito anterior à consciência do conforto; sequer é exclusividade da espécie humana.72 Um exemplo simples está nos freqüentes movimentos do corpo que se dão em reação a condicionantes ambientais: no frio nos vestimos e nos encolhemos; procuramos o sol e a prote- ção ao vento. No calor, nos despimos e nos abanamos, e pro- curamos a sombra e a exposição ao vento. Apertamos os olhos na claridade em excesso e tapamos os ouvidos quando de um ruído exagerado. É provável que esta busca de uma interação ótima com os fatores ambientais seja mais velha que a história escrita. Entretanto, a consciência do conforto resultou de um longo processo cultural. Neste processo, a busca de comodidade resultou numa forma particular de interação como meio físico natural. Nos países frios, o ambiente encoraja o recolhimento doméstico. O problema térmico fundamental consiste em evitar que o calor corporal se dissipe no meio frio. Pode induzir as pesso- as a buscarem mais proximidade umas das outras, proteção por espessas paredes, e esconderijos térmicos no meio da casa. O fogo é um processo simples de adicionar calor ao ambiente. Entretanto, os inconvenientes higiênicos causados pela fuligem e pela fumaça persistiram por vários séculos até que fossem contornados. No mundo tropical, a comodidade é encontradanuma solução de bem menos identidade com o lar. Nas tardes e finais de dia, não se pode esperar que as pessoas procurem permanecer dentro das casas, em que os telhados e paredes acumularam calor e então o irradiam para dentro. Daí a popu- laridade das varandas. A lenta evolução da consciência do conforto inclui, ain- da, um gradual aumento do encanto relacionado às descober- tas da técnica, provavelmente um objeto de fascínio das pes- soas beneficiadas. 72 Por exemplo, os cães procuram superfícies para se deitar onde haja adequada combinação, no mínimo, da transmissão de calor do corpo para o solo, e da insola- ção. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 59 Mesmo em situações diversas da propriedade rural, sa- ber-se capaz, dono de algum poder é um fator de satisfação. Meninos em geral gostam de automóveis. Nos anos 70, dava- se importância à quantidade de instrumentos. Era grande a diferença entre o painel de um carro popular, como qualquer um dos Volkswagen, com seus dois grandes mostradores analógicos, e o painel de um esportivo da época. Seus ins- trumentos, apesar de também analógicos, formavam um con- junto cintilante: conta-giros, velocímetro, cronômetro, ter- mômetros e outros apetrechos. À noite, parecia um painel de avião. Era empolgante imaginar-se na posse de uma tal má- quina, um fator de domínio do ambiente. Rybczynski lista muitas descobertas feitas na Idade Mé- dia – ao contrário do que o senso comum apregoa, uma era de progresso. Catedral; livros; óculos; mina de carvão, reló- gio mecânico, bomba de água, tear horizontal, poço de água, catavento, usina maremotriz; foi o autêntico início da indus- trialização na Europa. Nós, no tempo presente, mal podemos entender o benefício que representavam uma pele de animal, um bom fogo na lareira, uma cama macia, um copo de vi- nho.73 Sugere a suntuosidade da arte de então, com excesso de decoração, como evidência do que era necessário para impressionar um público de sensibilidade pouco desenvolvi- da pela dureza de condições. Os pobres viviam muito mal. Sem água ou esgoto, quase sem móveis ou posses, uma situa- ção que, na Europa ao menos, perdurou até o início do sécu- lo XX...conceitos como “casa” e “família” não existiam para aquelas almas miseráveis. A rusticidade da vida camponesa na época da tração animal condiciona a realização do conforto a um repertório minimalista. O aconchego advém de uma pauta despretensio- sa: o escuro que envolve a esfera iluminada pela vela, as textura naturais da madeira, do couro e da pedra, o calor ani- mal – os bichos praticamente dentro de casa – e os odores naturais recendendo sem disfarce. Dificilmente se tratava de pessoas aficcionadas de algum estilo rústico de morar. Seu 73 J.P.Huizinga, apud. W. Rybczynski, op. cit. Tradução do autor. A IDÉIA DE CONFORTO 60 excedente econômico provavelmente não permitia nem ali- mentar, nem realizar tais fantasias. Depois do final da Idade Média, as casas mudaram len- tamente. Seu tamanho aumentou, e tornaram-se mais robus- tas. Houve poucas melhorias. Surgiu o vidro e difundiu-se a chaminé das lareiras, ainda sem solução convincente para os problemas do frio e da fumaça. A iluminação era precária. Houve o início da separação entre o ambiente de moradia e o ambiente de trabalho: início da privacidade e, em conseqüên- cia, da intimidade. Mas dentro das casas não havia privacida- de. Faltava o corredor. A casa começa a encher-se de móveis e tornar-se um palco para o teatro social. As camas eram cobertas por tecidos – dosséis - para manter calor e preservar a discrição. Rybczynski relata que nas moradias da aristo- cracia, os hôtels, havia muitos móveis belos, mas pareciam abandonados, empurrados às paredes de recintos gigantes- cos sem cantos ou qualquer interrupção. (…) Faltava a at- mosfera de domesticidade que resulta da atividade humana. Faltava “Stimmung” (Mario Praz), o senso de intimidade criado por um quarto e seu mobiliário. Stimmung é um termo alemão sem similar em português; designa uma característica dos interiores que tem menos a ver com funcionalidade do que com a maneira como um recinto se adequa ao caráter de seu proprietário – a maneira como espelha sua alma, como Praz o diz poeticamente. Para ele, isto ocorreu inicialmente no norte da Europa. Já estava lá presente desde o século XVI…há beleza na elegância dos elementos arquitetônicos, mas sua predominância, e a formalidade das imediações, cria um ar de artificialidade. O interior nada nos diz sobre esta pessoa. Rybczynski ressalta a tênue diferenciação entre utilidade e cerimônia. Cita John Lukacs, para quem palavras como “auto-confiança”, “auto-estima”, “melancolia” e “sentimen- tal” teriam tomado seus significados modernos no inglês e no francês somente há dois ou três séculos. Seu uso marcou o surgimento de algo de novo na consciência humana: a apa- rência do mundo interno do indivíduo, do self, e da família. O significado da evolução do conforto doméstico só pode ser apreciado neste contexto. É muito mais que uma simples INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 61 busca do bem-estar físico; começa com a apreciação da casa como instalação a serviço de uma vida interior emergente.74 Num texto paralelo cobrindo a Europa moderna no iní- cio, Norbert Elias75 mostra pessoas aprendendo a comer com um garfo e não com os dedos, assoando o nariz num lenço, limitando a prática de cuspir, e assim por diante. Passou a causar constrangimento mesmo falar de funções corporais básicas como evacuar. Assim, as pessoas circunscreveram suas próprias personalidades, formando um self escondido e envergonhado dentro e uma casca externa para a apresenta- ção pública. Isto supõe que o contexto social do conforto cresceu ao mesmo tempo que o contexto ambiental. Por fim, a consciência do conforto recebe um impulso decisivo quando a privacidade se torna um valor reconhecido. John Crowley76 relata a gradual popularização de ele- mentos do conforto depois da Idade Média. Calor e luz tor- naram-se prioridades entre as ordens religiosas e nas casas nobres ao fim do período medieval, e nos séculos XVI e XVII, espalharam-se mais amplamente às pessoas de posse. As janelas e locais de fogo foram alterados para aumentar o conforto físico. Uma tentativa de explicar a demora na evolução do con- forto como um valor conscientemente percebido foi apresen- tada pr Rybczynski77. O autor lembra que as casas medievais eram de uso coletivo. Enquanto os nobres usavam móveis para se alternar entre suas diferentes residências, os burgue- ses,78 habitantes das cidades protegidas, tinham de usar mó- veis para desenvolver os diferentes usos dos espaços comuns – os halls – onde se cozinhava, comia, recebia visitas e dor- mia. Os interiores medievais eram quase vazios. A vida era um negócio público, e assim como o indivíduo não tinha uma 74 J. Lukacs, ibid. 75 Norbert Elias, O processo civilizador. Trad. Ruy Jungmann. R. de Janeiro: Jorge Zahar, 1990/93, 76 John Crowley, op. cit. 77 Witold Rybczynski, op. cit. 78 Termo em uso desde o século XI na França. A IDÉIA DE CONFORTO 62 auto-consciência fortemente desenvolvida, tampouco dispu- nha de um recinto privativo. Era a mentalidade medieval, não a ausência de cadeiras confortáveis ou aquecimento central que explica a austeridade da casa medieval. Não é tanto um desconhecimento do conforto que havia na Idade Média: era a sua pouca necessidade.79 Esta observação significa que o conforto está relaciona- do à privacidade; como foi mencionado no capítulo 1, é um valor oposto ao do espaço público: é, de certa forma, incom- patível com aquele. Isto não significa que uma praça não possa ser planejada de modo a receber árvores que atenuem o sol, árvores em fila para bloquear o vento ouum chafariz que renove a umidade. Mas significa melhorias restritas ao ambi- ente físico; sempre faltarão os outros ingredientes fundamen- tais à compreensão holística do conforto apregoada desde o início deste livro. A passagem de Rybczynski reforça ainda a hipótese de que o contexto sócio-cultural do conforto se de- senvolveu antes, criando condições para o contexto ambiental se desenvolver depois. John Crowley80 apresenta uma explicação diferente para chegar no mesmo resultado. Lembra que a mudança cultural usualmente antecede os empreendimentos bem sucedidos. Os negócios menos criam o gosto e a moda do que exploram a mudança que ocorre no gosto e na moda. Se não foram os fabricantes e propagandistas, quem teria elevado o conforto a ideal cultural? Não haveria uma causa única para esta mu- dança em massa. Ao invés disto, presta atenção às sucessivas alterações em posições sociais privilegiadas. As necessidades dos mosteiros de disporem de pequenos espaços privados para recolhimento e adoração levou aos quartos com chami- nés e lareiras, mais tarde copiados nas grandes casas.81 Como o feudalismo se enfraquecia, os senhores locais contrataram 79 Witold Rybczynski, op. cit. 80 John E. Crowley, op. cit., tradução pelo autor. 81 Rybczynski confirma indícios religiosos no conforto nascente: a severidade dos móveis que foram sendo adotados pela burguesia trai a origem eclesiástica (as Igrejas funcionavam como as grandes corporações hoje, e muito da inovação na forma de vida derivava delas). INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 63 soldados que residiam nos grandes halls dos castelos. Para privacidade e dignidade, os senhores se separavam de seus homens e jantavam em câmaras privadas, com fogo e chami- nés. Mais tarde, a câmara tornou-se o local onde eram mos- tradas as belezas do lar. Hóspedes favoritos preferiam ir para lá se distrair, antes que ao grande hall. Nesses quartos meno- res, começou a ser cultivado o conforto. Enquanto isto, os estudantes humanistas faziam dos estúdios onde liam e refle- tiam os locais de maior conforto corporal. Crowley especula que o estúdio da Renascença era provavelmente o local ini- cial da revelação moderna do conforto físico ao consumidor, e a expressão do conforto físico moderno. É provável que o caráter rústico-acolhedor como da ca- bana de Thoureau já existia desde a Renascença. É o que se constata ao percorrer as casas rurais expostas com pretenso realismo no museu ao ar livre de Ballenberg, junto ao lago de Brienz, na Suíça. Tudo indica que a domesticidade já existia muito antes do século XIX, e não necessariamente requeria separação entre residência e trabalho; isto não faria sentido numa propriedade agrícola. No outono, época da colheita, os cereais são secos e armazenados juntamente com aguardentes e vinhos, conservas e geléias. Produtos em calda, imersos no vinagre ou na salmoura, defumados, desidratados ou fermen- tados são mantidos numa despensa no subsolo. A lenha para o fogão é mantida mais próxima da cozinha. Alguns animais são criados sob o mesmo telhado da família. Fornecem leite, gordura e carne e, com a lenha, calor. É revigorante a sensa- ção de se saber cercado destes recursos. Mas é importante notar que tal sensação dependia do poder de dispor sobre os víveres: estava relacionada à priva- cidade. Esta sendo assunto encerrado, os fatores ambientais – mesmo que em escassez - passam a se integrar ao conceito de conforto. O relato de Crowley82 prossegue: No séc. XVIII, as ame- nidades físicas do conforto se espalharam para as classes médias por toda a parte. É o fim da inocência. Dois relatos diferentes ilustram situações típicas deste período. 82 John Crowley, op.cit. A IDÉIA DE CONFORTO 64 Henry James Thoreau83 relatou, em Walden, sua ex- periência de viver sozinho num rancho:84 My dwelling was small, and I could hardly entertain an echo in it; but it seemed larger for being a single apartment and remote from neighbors. All the attractions of a house were concentrated in one room; it was kitchen, chamber, parlor, and keeping- room; and whatever satisfaction parent or child, master or servant, derive from living in a house, I enjoyed it all. Cato says, the master of a family (patremfamilias) must have in his rustic villa "cellam oleariam, vinariam, dolia multa, uti lubeat caritatem expectare, et rei, et virtuti, et gloriae erit", that is, "an oil and wine cellar, many casks, so that it may be pleasant to expect hard times; it will be for his advantage, and virtue, and glory." I had in my cellar a firkin of potatoes, about two quarts of peas with the weevil in them, and on my shelf a little rice, a jug of molasses, and of rye and Indian meal a peck each. Tom semelhante tem o relato de Thomas von Leithold, visitante prussiano à corte de D. João VI,85 quando foi conhe- cer a chácara de Hogendorp, general aposentado de Napoleão que fora se refugiar na periferia do Rio: consiste ela, como as demais fazendas de café, numa casa térrea de uma porta e duas janelas. À frente da casa havia uma espécie de alpen- dre, sustentado por quatro colunas de madeira, debaixo do qual estava sentado o velho general. (…) Seu retiro campes- tre, em relação à cidade, está a bastante altura e entre ro- 83 Henry David Thoreau (1817-1862) escritor e poeta americano notabilizado pelo ensaio Desobediência Civil. 84Tradução do autor: Minha habitação era pequena, e eu quase não podia manter nela um eco; mas parecia grande por ser uma única morada e afastada de vizinhos. Todas as atrações de uma casa estavam concentradas num ambiente; cozinha, despensa, sala-de-visitas, e oficina; e toda a satisfação que teriam pai ou criança, senhor ou empregado, de morar em tal casa, eu desfrutava. Catão diz que o chefe da família (patremfamilias) deve ter em sua casa de campo "cellam oleariam, vinariam, dolia multa, uti lubeat caritatem expectare, et rei, et virtuti, et gloriae erit", isto é, “uma adega para azeite e vinho, muitos barris de modo a tornar praze- rosa a espera por tempos difíceis; tudo o que redundará em sua vantagem, virtude e glória”. Eu tinha em meu porão cerca de oito galões de batatas, cerca de dois litros de ervilhas com brocas, e numa prateleira um pouco de arroz, um pote de melado, e centeio e farinha de milho, uma porção de cada. 85 Nota original: Na ladeira do Ascurra, Cosme Velho. Uma pedra comemorativa foi colocada no jardim dessa casa durante a primeira administração Vargas. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 65 chedos enormes de cada lado que se abrem na direção da cidade, de modo que, da sua porta, se aprecia uma esplêndi- da vista até o mar, parecendo o porto e a cidade muito pe- quenos devido à distância. (…) No centro de uma das pare- des, achava-se pendurado um retrato do general em tamanho natural, ocupando quase toda a altura da peça. Suponho que tenha sido pintado por David, em Paris, ou pelo menos bem à sua maneira. De uniforme francês e condecorações, está muito parecido. De um lado da sala, havia outra peça me- nor, com uma só janela, a qual estava cheia de mantimentos e de garrafas de vinho; do lado oposto, outra igual com uma escrivaninha e uma pequena biblioteca. Para trás, havia ainda uma pequena peça que servia ao general de quarto de dormir. Descreve também, no jardim, do general, uma gruta que ele tinha feito escavar à pólvora, na montanha e lhe servia de adega, acomodando uns barris de vinho e ainda vinho em garrafas. Uma de suas distrações prediletas é des- tilar aguardente e licores, cujos aparelhos também nos fez ver.86 Thoureau procura compensações físicas para a sua solidão. E Leithold, ao retratar os pequenos privilégios do general, de forma quase caricata, o viajante parece estar con- solando o leitor por saberque um personagem de gloriosos feitos no passado chegaria a tão modesto final de vida. Pare- ce que o conforto físico foi sendo progressivamente desco- berto como forma de aliviar a inconsolável miséria humana. 2.4 Conforto: consciência e excessos Originalmente, conforto deriva do vocábulo de origem latina confortare, com o significado de fortificar, consolar87. Referia-se ainda ao apoio moral e às bênçãos da Divina Pro- vidência.88 Depois, aparece nos livros de Jane Austen com o 86 T. von Leithold e L. von Rango, O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819, tradução e anotações de Joaquim de Souza Leão Filho, Brasiliana, 328 (1966). 87 Witold Rybczynski, op. cit., tradução pelo autor. 88 John E. Crowley, The Invention of Comfort: Sensibilities and Design in Early Modern Britain and Early America, Johns Hopkins University Press, Baltimore (2001). A IDÉIA DE CONFORTO 66 significado de prosperidade: a comfortable fortune significa uma fortuna confortável, um patrimônio tão grande que o trabalho não se torne uma preocupação. Portanto, de acordo com a etimologia, o contexto corporal foi contemplado antes: dar força. Depois, veio o uso metafórico do conceito aplicado ao contexto psico-espiritual. Foi aparentemente mais tarde que surgiu a consciência do conforto no contexto sócio- cultural89 e no contexto ambiental. Materialmente, a constituição da burguesia urbana foi condição essencial para o surgimento do conforto. Ryb- czynski argumenta que tal estrato tinha uma dose considerá- vel de independência, e era capaz de tirar proveito da prospe- ridade econômica: o que coloca a burguesia no centro de qualquer discussão sobre o conforto doméstico é, à diferença do aristocrata, que vivia num castelo fortificado, ou do clero, que vivia num mosteiro, ou ainda do servo, que vivia num casebre, o fato do burguês ter vivido numa casa. Na medida em que o progresso material permitiu que houvesse recursos para pensar e aprimorar a casa, foi surgin- do a tendência de se acumular objetos nos ambientes. Por exemplo, o surgimento dos móveis, que se deu por uma con- tribuição especial da burguesia. Eram móveis devido à multi- plicidade de usos que tinha o hall da casa – pública -, levan- do, no século XVII, à prática de se manter as cadeiras alinha- das junto às paredes, assim como as mesas. Estas eram divi- didas em segmentos que, junto à parede, formavam balcões. Na ocasião das refeições, eram agrupadas numa grande mesa no meio do recinto. Já para os nobres, os móveis precisavam ser móveis para os nobres poderem levá-los de uma para outra de suas diversas casas. A domesticidade, a privacidade, o conforto, o conceito de casa e família: estas foram, literal- mente, as principais realizações da era burguesa.90 89 Uma obra-chave nesta análise, surgida nos anos 60, é de Edward Hall, The Hidden Dimension, reimpressão, Anchor Books, Nova Iorque (1990). 90 John Lukacs, The Bourgeois Interior, apud W. Rybczynski, op. cit., tradução do autor. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 67 Crowley91 mostra como as pessoas passaram a se relaci- onar de modo diferente quando o conforto se tornou um pro- blema central. Primariamente, examinou a influência das plantas de casa sobre os papéis do homem e da mulher. A separação entre a cozinha e o grande hall afastou o trabalho feminino do local central de reunião na casa. Até o séc. XIX, as funções de preparar comida e atender crianças tinham se movido para os fundos. Nos quartos da frente ficava à mostra um mobiliário seleto, comprado com a renda do marido, dis- simulando o trabalho feminino que mantinha o domicílio em funcionamento. Catarina Beecher, teórica de arquitetura e serviço doméstico na metade do século, tentou integrar o trabalho de volta ao centro do espaço doméstico, mas este, enquanto tarefa feminina, continuou escondido e separado. O compromisso com o conforto, na classe média, alienou as mulheres, mais que fazê-las mais confortáveis nas suas pró- prias casas. No séc. XIX, com o Vitorianismo - um movimento impulsionado pelos primeiros produtos de decoração feitos numa escala industrial – terminou, enfim, a inocência com respeito ao conforto. É o que se constata das palavras de Wil- liam Morris, mentor de um movimento rival, chamado Arts & Crafts (arte e artesanato), que apregoava a volta do artesa- nato requintado. As pessoas agora buscavam o conforto de forma consciente, porém sem necessariamente um bom resul- tado: a terra que foi bela antes do homem viver nela, que por muitas eras cresceu em beleza quando os homens aumenta- vam em número e em poder, agora está se tornando mais feia a cada dia, e lá tanto mais quanto mais poderosa é a civili- zação (...) aquilo que já foi um jardim de razoável porte tor- nou-se um trivial e miserável campo barrento, e tudo está pronto para a última novidade da arquitetura Vitoriana (...) todo espaço que você teria perdido, para uma destruição inevitável do crescimento natural, você teria, nos tempos da arte, de ter compensado pela beleza regular, por sinais visí- 91 John E. Crowley, op.cit. A IDÉIA DE CONFORTO 68 veis da ingenuidade do homem e seu encanto tanto nas obras da natureza como nas obras de suas próprias mãos.92 Crowley93 relata que até 1900, o conforto tinha se tornado não somente uma prática, mas um valor. Enraizado na cultura, o conforto tornara-se um elemento definidor na identidade de classe. As pessoas não somente desfrutavam o conforto, ele era requerido para se fazer respeitar. Como um ideal da vida civilizada, o conforto justificava o consumo. Superou a aversão moral ao luxo, ocultando o desejo de objetos da moda sob o véu de um desejo aparentemente natu- ral. Novas indústrias e a expansão do comércio floresceram sob a proteção do conforto. É difícil identificar um ponto de partida mais explícito para a iniciativa em direção ao conforto, Entretanto, podemos reconstituir imagens de como o processo aconteceu em al- guns países, no intuito de descrever como se deu, na forma- ção do conceito de conforto no ambiente construído e deco- rado, a superação da ingenuidade e a evolução da consciência para o exagero. Holanda O custo do terreno junto aos canais, importantes vias de circulação de Amsterdã, faz com que desde a Renascença as casas muito estreitas e altas – atingem até 5 andares – sejam características da capital holandesa. Os vãos pequenos libe- ram paredes transversais de função estrutural, permitindo janelas muito amplas. A organização do uso dos cômodos foi se tornando possível por nível, com a parte de caráter mais privado no alto. O pequeno tamanho das casas as condicio- nava a abrigarem somente uma família. Há relatos de historiadores que ressaltam os holandeses como europeus muito peculiares em seus valores. Prezavam 92 William Morris, Hopes and Fears for Art, produzido por David Price a partir da edição de Longmans, Green and Co. (1919), e disponibilizado no Projeto Gutenberg. Tradução do autor. 93 John Crowley, op. cit. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 69 primeiro suas crianças, depois suas casas, e depois seus jar- dins, privados. A identidade da família aparece, na Holanda, mais ou menos cem anos antes que em qualquer outro lugar da Europa. A ordem também era notada na escala urbana: enquanto os franceses e italianos criaram palácios impressionantes, os holandeses criaram cidades incomparáveis.94 Tal afirmação é fundamentada num efeito calorosamente ordenador do tijo- lo, que mais disciplinava que convidava à criação arquitetô- nica. Curiosa é a descrição de Sir William Temple, diplomata inglês, de sua visita à casa do prefeito de Amsterdã. Tendo chegado antes dos anfitriões, foi recebido pela criada.Depois de cuspir no chão pela segunda vez e, pela segunda vez, ver a criada limpando prontamente o chão com um pano, foi por esta advertido: disse-lhe ela que a patroa, se ali estivesse, iria expulsá-lo de sua casa. Temple achou aquilo bizarro.95 Con- densou esta e outras observações sobre a Holanda ao afirmar ser um país em que a terra é melhor que o ar; lucro é mais valioso que honra; há mais bom-senso que juízo; mais boa disposição que bom humor; mais riqueza que prazer; é para visitar, não para morar; (as pessoas são) capazes de gastar seu lucro em tecidos, enfeites e móveis para casa. Estes mos- travam a prosperidade do seu dono. Adoravam suas casas. Dormiam em alcovas. Algumas pinturas famosas de Emmanuel de Witte e Jan Vermeer retratam mulheres nos interiores de casas holande- sas e são bastante reveladores com respeito à cultura da habi- tação. É natural que apareçam mulheres, mais que noutras regiões onde os homens trabalhavam em casa: na Holanda, muitos tinham no mar o sustento da família. A cozinha ocupa uma posição de destaque como o cômodo mais importante. A domesticidade tem a ver com família e intimidade. A casa 94 Steen Eiler Rasmussen, arquitetura vivenciada, ed. Martins Fontes, São Paulo (2002). 95 Annette Stott, The Dutch Dining Room in Turn-of-the-Century America, Wintherthur Portfolio 37: 4 (2002). A IDÉIA DE CONFORTO 70 corporifica tais valores e se torna objeto de devoção. Tudo isto é considerado uma conquista feminina.96 Notável, porém, é a maneira como estes valores domés- ticos se tornaram admirados pelo mundo. Dentre diversos movimentos de resgate de estilos passados, a burguesia dos Estados Unidos da América trouxe para dentro de suas casas um apanhado de idéias da Holanda. Muitas não passavam de clichês. Era o Dutch Dining Room - a sala de jantar holande- sa, descrita mais à frente. Escandinávia Para Rybczynski, nos países do Norte da Europa aparece prematuramente – já no século XVII - a Stimmung, uma per- sonalização dos ambientes de modo a refletir o caráter dos moradores. No restante da Europa, demoraria mais 100 anos. O caso apresentado a seguir, embora se refira a um persona- gem mais recente, manifesta que na região o assunto já tinha raízes mais profundas. Carl Larsson, nas décadas finais do século XIX, difun- diu na Suécia as idéias William Morris (citado logo acima como mentor do Arts&Crafts) e de John Ruskin (escritor e crítico de arquitetura de orientação moralista que, com Mor- ris, criticava a industrialização). Da Inglaterra, Larsson levou para seu país a idéia de que o meio afeta o temperamento e o caráter do indivíduo; acreditava que reformas estéticas na casa e no ambiente de trabalho poderiam melhorar as condi- ções sociais. Cada membro da família iria projetar, construir e embelezar a casa de acordo com as inclinações e capacida- des pessoais. Seria a salvação da sociedade moderna. Associ- ou-se o movimento romântico nacional sueco, com interesse crescente na cultura nativista, como forma de realizar a de- mocracia social. O trabalho de Larsson e de sua esposa foi sintetizado na casa chamada de Lilla Hyttnäs, que exemplificava a tendên- cia, apontada por Walter Benjamin, de as casas assumir um 96 Witold Rybczynski, op. cit. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 71 novo papel na “expressão da personalidade”. Quietas, íntimas e únicas, eram um refúgio ao mundo urbano, afoito e impes- soal.97 Entrando no séc. XX, o conceito de Benjamin tornou-se popular e os chalés em cores pastel e na forma de biscoito de gengibre foram proliferando na costa perto de Estocolmo e Gotemburgo. No natural e no tradicional se buscava também reforçar a própria identidade: a apropriação da natureza, ao que se pensava, requeria raízes tradicionais. Ainda, buscava- se na decoração um estilo pessoal, com referências familia- res. Assim, a burguesia procurava diferenciar-se das classes trabalhadoras e pobres: apegando-se às tradições culturais, aquilo que só o tempo garante. Seu estilo nostálgico aproveitava o espírito da importan- te era gustaviana, referência ao rei Gustavo III (1746-1792), personalidade marcante: marcas do estilo eram as paredes particionadas, cortinas leves nas janelas, móveis pequenos pintados ou em madeiras leves, e tecidos em padrões simples – xadrez ou listrados. A honestidade e a modéstia eram, pois, identificadas pelo movimento romântico nacional como mar- cas típicas do temperamento sueco. A casa dos Larsson foi um sucesso, tanto nas ilustrações, como no turismo, talvez por ser radicalmente diferente no caráter daquele dos con- temporâneos, com seu mobiliário superestofado, pesadas cortinas e apelo à fantasia. Segundo Facos, a casa dos Lars- son seguia o ideal do Arts & Crafts de fornecer um senso de bem-estar psico-emocional e uma integração holística dos moradores com seu habitat. O filósofo iluminista francês, barão de Montesquieu, te- ria observado: se viajarmos para o norte, encontraremos pessoas de poucos vícios, muitas virtudes e uma enorme franqueza e sinceridade.98 Não deixa de ter relação com isto a observação de que o valor de todos os objetos na casa dos Larsson era conectado a sua beleza e utilidade, não sua ida- de ou status. 97 Michelle Facos, The Ideal Swedish Home: Carl Larsson’s Lylla Hyttnäs, in Chris- topher Reed, op. cit. Tradução do autor. 98 Ibid. A IDÉIA DE CONFORTO 72 No séc. XX, o Modernismo trouxe a proposta de limpar os ambientes e produziu, como reação, efeitos extremos. Mostra disto é um cartão postal publicado por um centro fundamental do pensamento modernista - a Bauhaus99 - sobre mobiliário popular, um pouco ao estilo dos postais suecos; entretanto, ali o objetivo era fornecer uma imagem do que era mister evitar, a partir de então, distantes que estavam os mó- veis retratados dos ideais dos mentores do movimento. França O historiador Peter Thornton100 descreve como, na corte francesa de Louis XIV, no século XVII, a preocupação com o aconchego crescia por detrás das exigências de um cerimoni- al pomposo. É preciosa a explicação de que o rei precisava poder escapar para uma atmosfera menos opressiva onde pudesse relaxar com sua família e companhia mais próxima. Nos edifícios reais franceses, portanto, forjaram-se naquele tempo dois padrões que até hoje têm sua importância: de um lado, um padrão de como um palácio deveria aparentar; do outro lado, um padrão que embasou o relaxamento confortá- vel e civilizado. Luís XVI não se satisfez em demarcar áreas reservadas ao desfrute de uma privacidade até então inédita no seu palá- cio. Depois de Versailles, construiu um castelo em Clagny para se encontrar com uma amante e, finalmente, outro em Marly. Lá, embaixadores e emissários não eram admitidos; não vigorava a etiqueta, e um convite para acompanhar sua comitiva era reputado extremamente honorífico. É desta época a afirmação do boudoir (espaço feminino destinado a reuniões reservadas), do closet e do petit appar- 99 Escola superior de construção e composição na Alemanha, fundada pelo arquiteto Walter Gropius em 1919, inicialmente estatal e a partir de 1926, privada. Esteve até 1925 em Weimar, mudou-se para Dessau e em 1932, finalmente, para Berlin, sob a direção do arquiteto Mies van der Rohe. Foi dissolvida em 1933. Teve professores ilustres como Kandinsky, Klee e Schlemmer. Pregava a volta da arte e do artesanato às formas mais elementares, uma estética da utilidade e ausência de ornamentos. 100 Peter Thornton, op. cit. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 73 tement. Era provavelmente o surgimento, no século XVIII, do quarto individual. O século XVIII é de importantes conquistas em conforto nos palácios, com uma incipienteassimilação pela nobreza e pela burguesia. Baudelaire teria dito que num palácio já não há cantos para a intimidade. No início do séc. XIX, de modo aproximadamente simultâneo, se percebe em vários locais no mundo uma busca mais consciente do conforto. Uma conse- qüência disto são os ambientes cada vez mais cheios de obje- tos. Thornton ainda afirma que na França, a partir da revolu- ção burguesa, as conveniências e o formalismo cederam es- paço à espontaneidade e privacidade. Inglaterra Para Crowley101, o conforto no sentido de conforto am- biental foi empregado pela primeira vez ao final do séc. XVIII, para referir-se a um chalé. Até então, a palavra cotta- ge tinha conotação negativa, de pobreza. Segundo o autor, tal uso de conforto não era somente novo para as cottages: trata- va-se de um conceito explicitamente novo para se falar de qualquer casa. Já Rybczynski propõe que a primeira ocasião em que a expressão fora usada teria sido na obra de Sir Walter Scott (let it freeze without, we are comfortable within)102. Mencio- na ainda a escritora Jane Austen, autora de seis romances muito populares (Emma, Sense and Sensibility, Pride and Prejudice, Mansfield Park, Northanger Abbey e Persuasion) em que, sobre um fundo de crítica social sutilmente irônica, descreve a vida da burguesia rural inglesa. Austen retrata famílias em diferentes faixas de uma classe média periclitan- te, administrando manobras sociais pelos salões de festas, até encontrarem um bom partido para cada uma das filhas. São acontecimentos insistentemente comentados na família e no 101John Crowley, In Happier Mansions: The Invention of the Cot- tage as the Comfortable House, em Winterthur Portfolio 32, N° 2/3 (1997) . 102 Que congele lá fora, estamos confortáveis aqui dentro. A IDÉIA DE CONFORTO 74 círculo mais próximo de visitantes. As moças casamenteiras compartilham conquistas e fracassos amorosos com irmãs e umas poucas amigas no aconchego do lar, sentados ao redor da luz e do fogo para um jogo, leitura ou simples tertúlia. Ao lado das manifestações de ternura e amizade, o lar se mostra um importante fator de consolo. É o desfrute de um padrão econômico mínimo que garante, ao menos, a moradia digna e acolhedora. Casa e pessoas são formas de reforço – conforta- re, no latim, significa dar força. Os dois terços finais do século, na Inglaterra, estiveram sob o predomínio do estilo vitoriano (1837-1901). Em 1836 era estabelecido o sistema férreo inglês. O código Morse era criado em 1837. O reinado da Rainha Victoria foi um tempo de imensas mudanças nos hábitos domésticos. A revolução industrial permitiu a produção em massa. Os bens resultantes tiveram razoável aceitação pelo público. As novas classes médias emergentes eram briosas de suas casas. O status de cada um era a coisa mais importante e a casa refletia isto. Disseminavam-se reproduções de obras de arte. Como reação ao Neoclassicismo e seu rigor, havia grande interesse pela imitação de outros estilos passados - do gótico ao rococó foram todos revividos. Chegava a haver mais de um estilo claramente influenciando uma única peça. Entre alguns traços do Vitorianismo está a abundância em decoração, chegando ao excesso. Há riqueza em cores escuras como vermelho rubi e verde floresta. O papel de pa- rede é produzido em massa a partir de 1840, inicialmente na Inglaterra e depois igualmente bem na França; predomina um padrão de grandes flores, pássaros e animais. Usa-se móveis superestofados, e padrões proliferam nos tecidos como na pintura. Aplicações em gesso começam a ser feitas imitando estilos diversos. Lareiras são ornamentadas, na maior parte, em ferro fundido. Encontra-se sobre as mesmas, assim como nos demais nichos, animais empalhados sob campânulas de vidro, pares de cães de porcelana e arranjos de flores secas. O movimento Arts & Crafts, reação ao Vitorianismo, deu-se entre 1860 e 1910 aproximadamente. Era de um grupo de designers e escritores ingleses buscando o retorno aos bens manufaturados de boa qualidade ao invés dos vitorianos INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 75 – industrializados e baratos. Inspirado por William Morris, usava o sistema medieval de comércios e corporações. Toda- via, produzia bens muito caros, limitados à alta classe média. Continuando uma tendência iniciada na era vitoriana e agora com um acento crítico, no movimento Arts & Crafts havia uma maior consciência do espaço da habitação, e da sua im- portância como expressão de muitos valores da família. Há uma preocupação visual: William Morris pregava: have noth- ing in your houses that you do not know to be useful or be- lieve to be beautiful.103 Tinha, visualmente, muito em comum com o Art Nouveau e desempenhou relevante papel na fun- dação do Bauhaus e do Modernismo. Suíça, Alemanha e Áustria O surgimento do conceito de conforto no espaço de lín- gua alemã está vinculado aos conceitos de Stube (salinha) e Biedermeier (um movimento cultural). A Stube, com origem por volta de 1400, era um segundo espaço de permanência, que podia ser aquecido e, ao contrá- rio da cozinha com fogo aberto, tinha a vantagem de ser livre de fumaça. Não era somente um local de permanência para a família camponesa no inverno e nos domingos e feriados; podia também ser refeitório e sala representativa, e servia ainda de ante-sala para as camas embutidas. Nela se encon- travam os mais variados móveis, e comumente os melhores. No museu ao ar livre de Ballenberg, na Suíça, uma Stu- be original é apresentada, e dela se comenta que foi mudando os hábitos de vida da família, pois era um verdadeiro espaço de permanência, que servia para trabalhos manuais, conver- sas e para servir hóspedes. (...) não era somente um espaço de trabalho e permanência de caráter central, confortável e polivalente, mas também tinha significado cultual. Assim, na maioria das Stuben, (depois de 1700), no canto junto à mesa da Stube, havia o chamado Herrgottswinckel (canto do se- 103 Nada tenham em suas casas que você não saiba ser útil ou acredite ser belo. A IDÉIA DE CONFORTO 76 nhor), em diagonal com a lareira, onde era pendurado um crucifixo sobre o banco de canto.104 A gute Stube (boa salinha, como era chamada) foi uma invenção das mais significativas para a cultura da habitação centro-européia, sobre a qual se baseiam formas de habitação de hoje em dia. Vinha da Idade Média e beneficiava mais a massa, que os dez mil mais ricos.105 Mas o conforto foi o produto de um longo processo. A qualidade do ar o exemplifica. Se era melhor na Stube que na cozinha, tinha ainda defeitos. O nobre viajante italiano Be- nedetto Dei (1476/77) comenta de uma viagem pela França, Flandres, Países Baixos, Alemanha e Suíça: estive na Basi- léia e atravessei a Alemanha e milhares de Stuben com ale- mães simplórios, sebosos, grudentos e rudemente vestidos (citado por Hundsbichler 1980, 31). A outra fonte italiana de 1468 se deve a comparação do clima interior nas Stuben ale- mãs com emanações do presídio estatal de Florença.106 Na Suíça, a história dos móveis de agricultores se inicia com os impulsos de uma Renascença tardia. Suas formas aparecem em frisos, entalhes e marchetaria simples. Desta época se originam os primeiros daqueles majestosos buffets que encontram lugar nas salas de estar da aristocracia cam- ponesa do interior do país desde a segunda metade do século XVII. O buffet une a função de armário, estante e lavatório. É integrado às paredes do recinto. Entre a Renascença e o início do barroco, a fabricação camponesa de móveis já não tem uma fronteira bem definida. Formas da Renascença são en- contradas até dentro do século XVIII. Comumente, o início do barroco vai sem transição até dentro do rococó, tão privi- legiado pela arte popular. Ao mesmo tempo, houve uma ten-104 Museu ao ar livre Ballenberg, Brienz, Suíça: placa informativa numa das casas, fotografada pelo autor. 105Material das disciplinas de História da Universidade de Münster, Alemanha, disponíveis na Internet sob o endereço: http://www.uni- muenster.de/GeschichtePhilosophie/Geschichte/hist-sem/SW-G/Scripte/ Alltag/ s09wohn.htm 106 Matthias Henkel, Der Kachelofen: Ein Gegenstand der Wohnkultur im Wandel, eine volkskundlich-archäologische Studie auf der Basis der Hildesheimer Quellen, Dissertação, Georg-August-Universität, zu Göttingen (1999). INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 77 dência às formas de móveis franceses. A cômoda, desenvol- vida na corte de Luís XIV, teve uma campanha triunfal nos lares de agricultores, seguida pela cama de dossel e pelo ca- napé. Móveis com desenhos coloridos penetraram nos Alpes entre os séculos XVII e XIX. Aqui cabe repetir uma observa- ção por vezes esquecida: a arte popular não conhece o postu- lado de autenticidade dos materiais. Quando em 1789 os franceses derrubaram o poder anti- go, os camponeses ganharam status semelhante ao dos bur- gueses. Isto também se expressa na cultura. Eles equiparam suas casas com móveis burgueses e procuraram seguir os modelos urbanos nos seus hábitos e costumes.107 Painéis nas paredes e muitas peças grandes e caras (ar- mário de roupas, de vidros, mesa removível, cadeiras e pol- tronas, escrivaninha-armário, relógio, espelho, cômoda) dão à Stube do séc. XVIII o caráter de afluência e conforto, e carac- terizam a condição burguesa. Isto vale, contudo, somente para as Stube dos camponeses mais abastados. O “morar burguês” preza a intimidade, com a separação de espaços representativos e dos criados dos espaços da famí- lia, em especial os quartos. Preza a comodidade: o sofá se torna, no século XIX, o móvel mais importante. Preza a pri- vacidade da casa (separada do trabalho) e dos seus recintos entre si, pais e filhos dormem separados. E preza a higiene, com medidas especiais para a cozinha, toilette e banho. En- tretanto, logo depois da sociedade pré-industrial, começam a entrar em conflito os valores do conforto e a demonstração de status.108 Pois o “morar burguês” investe o excedente econô- mico no espaço da moradia e seu equipamento.109 A gute Stube chegou a representar uma demonstração da própria capacidade cultural. 107 Museu ao ar livre de Ballenberg, Führer durch das Schweizerische Freilichtmu- seum, Brienz, Suíça (2002). 108 Conforto é como um chinelo velho: aquilo que fazemos exclusivamente por nós mesmos. A demonstração de status é um sapato feminino de salto alto e bicudo: feito para os outros. 109 Estes gastos dependem muito da renda, ao contrário dos gastos com alimentação básica ou saúde: têm aquilo que os economistas chamam de uma alta elasticidade- renda. A IDÉIA DE CONFORTO 78 Nos anos 20, o movimento do novo morar (neues Wohnen) se impôs à “gute Stube”. Esta por fim desaparece, cedendo lugar à sala de estar, provavelmente em estreita liga- ção com a penetração do rádio e da TV, e do aparelho de som; crescente pluralidade dos estilos paralela à transição à sociedade de consumo: rústica, moderno clássico, nostálgico, etc.110 Já o Biedermeier foi um movimento artístico precisa- mente datado, embora sua influência transborde desse prazo. Ocorreu no espaço de língua alemã, formalmente entre 1815 e 1848 (respectivamente as datas do Congresso de Viena e da Revolução de Março). O nome derivava da paródia de Ludwig Eichrodt sobre o burguês fiel, “o professor suábio Gottlieb Bie- dermeier”, de 1850 a 1857. Às guerras da revolução sobreveio o desejo de calma e ordem, alegria privada e paz interna. Resulta de uma conjun- tura combinando o progresso material e a censura onipresente (o sistema Metternich). Refletida na disseminação de uma atitude de conformismo e refúgio na vida privada, dedicação aos valores domésticos e aos idílios. O Biedermeier é o romantismo aburguesado. Diferenci- ava-se do Classicismo que o antecedeu pelo uso de formas simples e concretas. Influenciou a pintura, a literatura e as artes aplicadas – daí sua presença na cultura doméstica. A decoração se caracteriza por simplicidade, praticidade, acon- chego e caráter burguês, além de um acabamento notável. As pessoas eram caseiras; as Stube, limpas e aconche- gantes. Há melancolia desapegada na poesia. Amor ao pe- queno, ao cotidiano, à natureza. Na música, Schubert111 acaba de criar a Lied, a canção acompanhada ao piano, uma propos- ta reducionista diante dos exageros da ópera. Esta agradável domesticidade musical era um traço típico. A celebração musical dos valores domésticos (Hausmusik) atingiu seu pico 110Fonte: http://archiv.tagesspiegel.de/archiv/13.10.2002/251403.asp 111 Franz Schubert (1797 – 1828), compositor austríaco, somente igualado por Mozart na inventividade melódica. Chamado o “clássico dos românticos”. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 79 no final da era Vitoriana. Estava muito em voga receber e entreter em casa. Muita gente pôde comprar um mobiliário refinado e só- lido. Especialmente em Viena, havia bons projetistas e exe- cutores. Os móveis em formas claras e simples enfeitavam os ambientes. Ganhou espaço o uso da madeira local – nogueira, cerejeira e freixo - contrastando com o mogno e o bronze dourado da era napoleônica. Era característico o uso de ma- deiras claras como cerejeira e bétula ao lado do mogno, mais escuro, mas sem ornamentos. Grande prioridade tinha a su- perfície dos móveis. Novos processos com verniz de alto brilho ajudavam a dar-lhe destaque. Peças específicas eras escrivaninhas e escrivaninhas-armário, vitrines, cômodas, canapés e as mesinhas de costura. Estas serviam para repre- sentar peças de recordação, vidro e porcelana. O ponto cen- tral era uma mesa redonda ou oval com um sofá. Chama a atenção o gosto pela simetria. Móveis eram feitos aos pares, ou colocados de frente a um correspondente, o mais parecido possível. O Biedermeier recusava, sem maiores considerações, utilizar tecidos caros e aplicações custosas. A decoração eco- nômica das janelas já não se compara às ricas cortinas da época anterior – classicista. Geralmente, usava-se trilhos de tecidos brancos de disfarce como mousselin ou voile, que eram puxados para o lado por suportes de cortinas. Proteção visual ou solar eram pequenos rolos ou cortinas tensionadas, especialmente de tecidos verdes. Sobre o piso, tornaram-se moda tapetes de manufaturas de lã da Áustria e da Inglaterra, em novos padrões, originários dos tapetes orientais. Durante o verão, os tapetes eram retirados, e recolocados no inverno. As cores eram combinadas de maneira audaz, os padrões eram vivos e cheios de contrastes. Assentos usavam tecidos de lã sem padrões, ou, melhor ainda, o damaste de algodão ou lã, em uma ou duas cores, combinando com as cores do quarto. Móveis muito solicitados recebiam couro pintado. Muitas vezes, as bordas dos estofamentos eram feitas análo- gas às superfícies das paredes.112 112 O Biedermeier teve um ressurgimento no século XX. Imagine-se uma decoração comumente encontrada num restaurante “típico alemão”, com cortinas em renda, ou A IDÉIA DE CONFORTO 80 Apesar do Biedermeier ter sido precisamente datado, seu espírito perdurou, a julgar pela descrição de Golo Mann,113 até o período burguês da segunda metade do século XIX, na Alemanha, que não era nenhuma época de altos vôos intelec- tuais (...) Realpolitik114 de cabeça dura, e religiosidade pega- josa, teatralidade de um fausto, nacionalismo auto- justificativo, com toda a briga interna, materialismo, boqui- aberto diante das conquistas da ciência e mesmo preparado para virar em misticismo barato. A pintura, como a literatu- ra, quando apoiadas pelo estado, eram pouco originais,Classicismo tardio, falsa Renascença, nenhum estilo próprio como seria de esperar na época de mudanças, e assim tam- bém as construções: nunca se construiu mais falsamente, estações ferroviárias e quartéis como castelos góticos, casas de artesãos como palacetes rococó ou palácios renascentis- tas, como o humor mandava. Também na Alemanha, na Suíça e na Áustria, a consci- ência do conforto tinha evoluído para alguns exageros. Brasil Enquanto Sir Walter Scott e Jane Austen registravam em seus romances o surgimento do conceito atual de conforto, a corte portuguesa de D. João VI era transferida para o Brasil, promovendo bruscas mudanças na vida social do Rio de Ja- neiro. Seria possível que a burguesia local importasse e assi- milasse as mudanças culturais da Europa, assim como se deu com a simples moda do turbante das mulheres?115 Ou as idéias da Europa, aqui chegando, eram adaptadas à realidade brasileira e se descaracterizavam? iguais às toalhas estampadas em branco, verde e vermelho, comumente em xadrez, e móveis com entalhes em formas de flores e corações. 113 Golo Mann, Deutsche Geschichte des 19. und 20. Jahrhunderts, Fischer Taschenbuchverlag, Frankfurt (1992), pp.462-464. Tradução do autor. 114 Realpolitik: política voltada para alguns objetivos concretos a serem infalivel- mente atingidos. 115 Introduzido por D. Carlota Joaquina, mas não por ser novidade em Portugal, e sim por ter ela contraído parasitose por piolhos durante a viagem. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 81 Gilberto Freyre dá uma informação preciosa: o homem brasileiro da metade do século XIX passava a maior parte do tempo na rua, mantendo mulher e filhos dentro de casa.116 Esta era pouco atraente. Tanto as idéias como as técnicas em amenidades resi- denciais, os objetos e o excedente econômico para comprá- los, tudo existia em defasagem em relação à Europa. A arqui- tetura era copiada de Portugal, com a influência que lá chega- ra do continente africano e do mundo árabe.117,118 Casa, mobi- liário e modo de vestir seguiam conceitos importados. No Rio, como em Salvador, viajantes registram uma falta de imaginação, a uniformidade na arquitetura. As ruas estreitas derivam de uma estratégia usada na Idade Média para a pro- teção contra ataques externos que, de fato, ocorreram.119 Os interiores eram mal-iluminados durante o dia. A iluminação à noite era na base de lamparinas ordinárias a óleo de baleia ou velas de cera nas casas abastadas. A falta de luz diurna nas casas se associava à falta de ar,120 apesar do calor excessi- vo.121 Observava Thomaz Lindley, visitante inglês, que as fá- bricas eram expressamente proibidas, exceto as de couro e de 116 Enquanto a mulher passava a maior parte do seu tempo dentro, o homem – o homem urbano – passava a maior parte do seu, fora – na rua, na praça, à porta de algum hotel francês, ou em seu escritório, um armazém. (...) O sentimento de casa não era forte entre os homens brasileiros à época em que a família patriarcal estava em seu pleno vigor. (...) A rua era seu clube. Isto pode servir como uma explicação ao fato de que os brasileiros urbanos dos anos 50 não pareciam ter casas atraentes. Vinte anos antes, um viajante francês, Louis de Freycinet, tinha observado que os brasileiros passavam a maior parte de seu tempo dormindo, ou fora, ou, ainda, recebendo seus amigos; portanto eles somente precisavam – o francês pensou – um ambiente de recepção e dormitórios. De: Gilberto Freyre, Social Life in Brazil in the Middle of the 19th Century (ensaio de mestrado), Nova Iorque (1922), tradução do autor. 117 Luís Norton, A Corte de Portugal no Brasil, Brasiliana, vol. 124. 118 Du Petit-Thouars, citado por Melo Leitão, Visitantes do primeiro império, Brasi- liana, vol. 32, 1934, apud Luís Norton, op. cit. 119 Miguel Antônio Leoni Gaissler, comunicação pessoal (2003); W. Rybczynski, op. cit., p.25. 120 C. de Mello Leitão, op. cit. 121 Oliveira Lima, D. João VI no Brasil, t. I, apud Luís Norton, op. cit. A IDÉIA DE CONFORTO 82 determinadas bugigangas.122 De fato, um alvará de 1785 tornava as manufaturas ilegais na colônia. O mesmo visitante faz aquela que deve ser a primeira referência a conforto no Brasil:123 27 a 30 de março. Passamos o dia com um amigo casado e um grupo de suas relações, de urbanidade e polidez contrastantes com a maioria de seus compatriotas. A casa fica à entrada da baía, dispondo de inteiro conforto. Constou nosso jantar de tudo quanto a Bahia proporciona, embora estivéssemos na Quaresma. Após o café, vieram os baralhos, e nós passamos, desse modo, um dia agradabilíssimo.124 Como o autor deixa explícito, trata-se de um cidadão acima da média. Casas das famílias mais abastadas tinham várias janelas abertas para o jardim. E comumente consistiam num volume destacado no terreno, como num palácio ou casa de fazenda. Ocorriam em Botafogo e Laranjeiras. Vegetação, ventilação e sombra eram os recursos mais valiosos, muito menos associados ao detalhismo técnico do que à exuberân- cia material e até a um comportamento social menos estan- que, com abertura para freqüentes reuniões. É a situação da casa de Aurélia Camargo, donzela órfã e herdeira milionária no Rio de Janeiro do início do século XIX qual retratado por José de Alencar em Senhora: O portão ficava a uns trinta passos da casa que se erguia no centro de vasto jardim in- glês. Todas as janelas do primeiro pavimento estavam aber- tas e despejavam cortinas de luz, que tremulavam nas águas do tanque e na folhagem verde agitada pela brisa. A varanda era uma peça tomando toda a largura do imóvel, o que cola- boraria para tirar a luz de dentro. Nenhum cumprimento das leis da Câmara a este respeito.125 122 Thomaz Lindley, Relato de uma viagem ao Brasil, Brasiliana, 343 (1803) tradu- zido do Narrative of a Voyage to Brazil por Thomaz Newlands Neto (1969). 123 Considerando que um profícuo escritor contemporâneo – José de Alencar – quase não usa a palavra, e nunca o faz no sentido de bem-estar físico. Ao que parece, é somente na virada do século que um escritor brasileiro, Aluízio de Azevedo, empre- ga, na sua obra “o Mulato”, a expressão “apartamento confortável”. 124 Thomaz Lindley, op. cit. 125 Kátia Queiroz Mattoso – Bahia Século XIX – Uma Província no Império, Nova Fronteira, Rio de Janeiro (1992). INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 83 Já as casas da população (à exceção da família real e da nobreza) eram descuidadas por dentro e por fora, assimétricas e feias. O exterior era lôbrego como um presídio ou antes como um túmulo. 126 Quase todas de um só pavimento e uma só janela. Uma peça principal; uma alcova menor ao lado da casa; atrás, para o quintal, a cozinha, com mesa de jantar.127 Ainda, havia casas com mais pavimentos, até quatro, poden- do abrigar várias famílias.128 Casas pertencentes aos comerci- antes eram qualificadas repugnantes. Soldados, mulatos e negros, viviam em choças cobertas de telhas e sem forro, dotadas de uma única janela de rótula.129 Não têm alicerces. As tábuas do soalho são pregadas em dormentes fixados, sem a mínima proteção, diretamente ao chão; é fácil imaginar, em conseqüência, os efeitos nocivos da umidade para a saú- de, sobretudo na época das chuvas. Os andares intermediá- rios sofriam de umidade e mofo. As casas térreas tinham um inconveniente: cavalos passando pela peça principal quando iam ao quintal.130 Já nas casas com mais de um pavimento do Rio e de Pernambuco, o cavalo e a cavalariça ocupavam todo o térreo – motivo de mal cheiro.131 E na Bahia, a inclinação das ruas impedia a introdução de carruagens com rodas e até os anos 70 os palanquins eram usados: os senhores se locomoviam aos ombros dos escravos.132 Os materiais empregadossugeriam precariedade: tijolos moles, juntados com barro e recobertos de argamassa.133 Ainda, pedra e cal, tijolos, adobe rústico, taipa e chão de terra 126 C. de Mello Leitão , op. cit. 127 Du Petit-Thouars, op. cit. 128 Kátia Queiroz Mattoso, op. cit. 129 Thomaz Lindley, op. cit. 130 T. von Leithold e L. von Rango, op. cit. 131 C. de Mello Leitão, op. cit. 132 Tradução do autor para trecho de Gilberto Freyre, Social life in Brazil in the middle of the 19th century (ensaio de mestrado), Nova Iorque (1922). 133 As casas são totalmente desprovidas de caixilhos para suas janelas, exceto uma cortina de varetas de bambu. A IDÉIA DE CONFORTO 84 batida. O telhado de todas era de telhas vermelhas e ganhava bela pátina do tempo.134 Gilberto Freyre reporta-se às casas do séc. XIX como muito desconfortáveis. Comenta a obra do francês Vauthier, procurando inovar ao propor soluções para a instituição da alcova ou a camarinha sem luz nem ventilação é certo, mas ao abrigo de olhos indiscretos e segura contra o perigo dos raptos.135 Do Rio de Janeiro, observaram visitantes prussianos inexistirem privadas em casa alguma; vasos noturnos fazem o serviço, os quais são removidos pelas ruas menos construí- das ou esvaziados em quintais e jardins pelos escravos. Aliás, as cozinhas davam sempre para os quintais.136 Kátia Mattoso afirma que seja como for, dado o descon- forto que reinava nas casas, o ofício de dona de casa era espinhoso...Na precária sala de jantar a família passava o tempo todo, as mulheres sentadas em esteira pelo chão, ou em torno à mesa, cosendo, fazendo renda ou pontos de ma- lha, bordando. Enquanto isto, os homens ficavam vagando de sala em sala, ou encostados naquilo que suportasse seu peso. O mobiliário era pobre e escasso, mesmo em algumas casas elegantes. Na sala, um sofá e umas poucas cadeiras, tudo em simetria, e esteiras para sentar no chão nas casas pobres.137 Mesinhas com imagens de santos. Um oratório com santos do Porto.138 Pianos em Salvador, descritos como asmáticos, tachos, harmoniosos, de todos os sons e feitios, fazendo invejar o “abençoado Rio de 1817”. Espírito de improviso, imitação superficial da Europa. Por exemplo, na sala de jantar fazia as vezes de mesa larga taboa sobre dois 134 Kátia Queiroz Mattoso , op. cit. 135 Gilberto Freyre, Casas de residência no Brasil, Revista do Serviço Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 7, Rio de Janeiro (1943), in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional n°26 (1997). 136 T. von Leithold e L. von Rango, op. cit. 137 Ibid. 138 Oliveira Lima, op. cit. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 85 cavaletes. Algumas pessoas dormiam em camas, outros em esteiras e travesseiros, nem sempre lençóis ou colchões, nun- ca cobertores. Mosquiteiros. Baús e caixas de couros.139 Mello Leitão fala de pinturas de mau gosto, alguns dou- rados parcimoniosos (...) papel barato importado de França (...) Cômodas marchetadas de péssimo gosto. Não há nenhu- ma diferença essencial entre o leito das criancinhas e o das pessoas adultas, a não ser dimensão.140 Em Salvador os trabalhadores pobres tinham em geral um ou dois catres, uma mesa, algumas cadeiras ou bancos, um ou dois baús para guardar a roupa pessoal e os panos da casa. O mobiliário só era de fato variado em casas muito mais ricas.141 Em Curitiba, as casas mais despidas de ador- nos. As paredes eram simplesmente caiadas e o mobiliário das salas em que me recebiam constava apenas de uma mesa e alguns bancos.142 A diferença climática explica, em parte, a diferente rela- ção do proprietário com sua casa: não se fecha nela para pro- curar conforto, pois talvez não o encontre. Mas é certo que a formação brasileira se deu sobre valores diferentes daqueles dos países europeus onde se cunhou a noção de conforto. Aqui, a igreja condicionava e organizava a vida social. A casa não parecia ter, na sociedade de forte orientação machis- ta, a importância cultual atribuída às igrejas e prédios públi- cos. É arguta a observação de Lindley de que, como em todas as cidades católicas, as igrejas são os edifícios de mais rele- vo, e aqueles aos quais foram dispensados o máximo cuidado e os maiores gastos. Kátia Mattoso faz observação equiva- lente com relação aos edifícios públicos. Alguém poderia especular a predominância do catolicismo como uma expli- cação para a pior qualidade das casas em relação àquelas da Europa protestante. 139 C. de Mello Leitão, op. cit. 140 Ibid. 141 Kátia Queiroz Mattoso, op. cit. 142 Auguste de Saint-Hilaire, Viagem à Comarca de Curitiba, Brasiliana, 315 (1820). A IDÉIA DE CONFORTO 86 No Brasil, a expressão conforto com significado similar ao dos livros de Austen só será registrada nos livros de Aluí- zio de Azevedo, já no século XX. É de Jean-Paul Sartre143 a afirmação de que dar nomes aos objetos consiste em mover eventos imediatos, irrefletidos e talvez até ignorados para o plano de reflexão e da mente objetiva. Dos primeiros anos da República até o Modernismo de Brasília, foram poucas décadas de conforto como manifesta- ção cultural, em comparação ao longo amadurecimento ocor- rido na Europa. Estados Unidos Falamos agora do país onde o excesso de conforto vira kitsch. No século XIX ocorre a ascensão de substancial par- cela da burguesia a um nível de prosperidade nunca antes visto. Sob influência masculina, as casas se tornaram locais de demonstração de status. As pessoas tentavam tornar seus ambientes agradáveis pelo acúmulo de objetos de que se acreditava, por unanimidade de opinião, “de bom gosto”. As condições para a emergência de conforto haviam se completado: à existência de excedente econômico se associou um avanço tecnológico e a moda. Russell Lynes144 descreve o surgimento da produção em massa especializada na decora- ção a partir de 1830: objetos para decorar a casa vieram em rápida sucessão, cada um mais miraculoso que o outro. Em 1837, William Compton patenteou um tear visionário e, so- mente sete anos mais tarde, a primeira máquina impressora de papel de parede foi importada da Inglaterra. As pessoas procuravam reproduções das obras de arte que iam sendo difundidas nos museus e nas galerias, e isto não se limitava à pintura: De repente, quase todos, ao invés de somente uns poucos ricos e cultos, podiam comprar tapetes e cadeiras, papéis de parede e materiais de cortina “de bom gosto”. 143 Apud W. Rybczynski, op. cit. 144 Russell Lynes, The Tastemakers: the Shaping of American Popular Taste, reed- ição com novo posfácio, Dover Publications Inc., Nova Iorque (1980). Tradução do autor. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 87 Eram não somente baratos, mas podiam ser obtidos em grande variedade. Junto aos móveis de baixo custo, proliferavam tecidos e tapetes com estampas coloridas como em motivos de flora e fauna: se a seriedade do design sofreu e a individualidade foi perdida na enxurrada de produtos mecanizados...isto foi compensado pelo benefício de que a arte, mesmo vulgar, foi levada a uma multidão de consumidores, para quem a ele- gância incipiente e antinatural dos primeiros bens industria- lizados representou um primeiro passo no refinamento do lar. A popularização dos objetos de produção em massa cri- ou o hábito da decoração, um negócio que atraiu predomi- nantemente a atenção das mulheres. Nos anos 30, era comum a mistura de sofás pesados de crina de cavalo, espelhos ela- borados com molduras douradas, portraits de donzelas de toucas, reluzentes sobre fundos escuros, densos como alca- trão, e tapetes cobertos com tremendas flores em cores bri- lhantes.145 O processo continuou até 1850, quando se iniciou uma exploração comercial mais organizada doconsumo da decoração. Já os homens, estes se interessavam pela aparência ex- terna de suas casas. Novamente, yin e yang aparecem em confronto. Uma casa apropriada para a maioria dos homens nos anos 30 era um templo grego (modificado para o uso doméstico) com finas colunas brancas e muitas vezes um esplêndido frontão. Era somente uma questão de dinheiro (abundante), terreno (barato) e um carpinteiro. Os arquitetos eram um luxo que somente umas poucas pessoas podiam pagar, enquanto havia muitos livros tais como Benjamin’s House Carpenter e Shaw’s Civil Architecture nos quais qualquer construtor inteligente podia encontrar tudo o que precisava saber para produzir sua réplica de templo grego, imponente ou modesto, com todos os ornamentos e detalhes cabíveis. 145 A escritora inglesa Francis Trollope, tendo passado de 1827 a 1830 nos Estados Unidos, criticava o ideal de igualdade americano e o associava à falta de bom gosto. Em seu livro Domestic Manners of Americans, descreve uma enorme quantidade de objetos, bibelots pretensamente preciosos nas salas de visitas das casas mais ricas. A IDÉIA DE CONFORTO 88 Em parte, o clichê (usado até 1880) se deve ao portal dó- rico desenhado pelo arquiteto Isaiah Rogers para o primeiro de uma série de hotéis espetaculares: o Tremont House de Boston (1829), que mudou a filosofia da hospedagem comer- cial. Ao menos na América, não mais se amontoariam hóspe- des em camas móveis, ou dormindo no piso, ou se manteria garçons que acumulavam a função de camareiros.146 O hotel passaria a ser como um palácio para o povo, concretizado na estrutura elegante, nos pisos em mosaico de mármore e nos corredores ricamente acarpetados, nas salas de estar, de leitu- ra, de senhoras e suas decorações no último gosto francês, mas não somente: o tratamento dos hóspedes também era algo jamais visto. Pela primeira vez, bacias e canecas eram oferecidas dentro dos quartos, e o sabonete era gratuito (ape- sar do mesmo pedaço ser deixado de hóspede para hóspede até acabar). E as janelas tinham cortinas. Depois do Tremont House vieram o St. Nicholas em Nova Iorque (1853) e o Palace Hotel em São Francisco (por volta de 1877). Esta última denominação, aliás, veio a ser tomada emprestada por milhares de hotéis que se pretendiam um mundo de sonhos para qualquer pessoa disposta a arcar com o preço de um quarto. Lynes observa que depois de sen- tir o gosto da riqueza, não teve fim o apetite dos americanos. Estabeleceu-se uma preferência pelo luxo desproporcional ao padrão de vida dos hóspedes, muitas vezes simples caixeiros viajantes. O paisagista Andrew Jackson Downing (1813 – 1852) foi crítico contumaz dos “templos sem gosto” do Greek Revi- val. Dizia que uma casa deve parecer-se com uma casa: seria desonesto que se parecesse, antes, com um templo grego, uma mentira estética e moral. Associava a beleza ao julga- mento moral do proprietário. Mentor da criação do Central 146 Em H.G.Wells, A construção do mundo (original: The Work, Wealth and Happi- ness of Mankind, Obra completa, V. 7, trad. de Anísio Teixeira, Cia. Editora Nacio- nal (1956), há a menção de que na Rússia, pelos fins do século XIX, os hóspedes ainda levavam para a hospedaria até a cama o chá e as provisões de boca. E assim ainda seria (à época vivida pelo autor ) na maior parte da Índia. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 89 Park em Nova Iorque, foi no âmbito do movimento o prega- dor de uma estética rural e moralista. Casas de pedras tinham arcos e vitrais, colunas, varandas. Mas não era de um mora- lismo ascético; também dizia que varandas, piazzas e bay- windows, balcões, etc. são as verdades gerais mais valiosas da arquitetura doméstica. Era o Gothic Revival. O “gosto francês” de então já incluía rodapés cobertos de figuras em ponto de agulha de cordeiros e coelhos dor- mindo entre pilhas de flores, cadeiras de cerejeira entalhadas, sofás estofados em veludo negro cintilante ou vermelho vivo, papéis de parede floridos e paisagens românticas. Pelos can- tos, um móvel com figuras de porcelana, conchas e cães da china. Na prateleira da lareira, uma ninfa dourada tecida so- bre um relógio ou um galho carregado de pássaros empalha- dos sob uma campânula de vidro. Na sua “Life on Mississi- pi”, Mark Twain menciona conchas com a oração do senhor ou um portrait de George Washington esculpido, uma amos- tra de quartzo da Califórnia, pontas de flechas indígenas, borboletas alfinetadas numa prancha, e um locket contendo um cacho de cabelo dos antepassados. Downing considerava este empilhamento não somente desconfortável e perturbador do espírito, mas uma ofensa contra o “gosto correto”. Entretanto, a pretensa autenticida- de do famoso paisagista era objeto de contestação. Ocorre que tanto o Greek Revival quanto o Gothic Revival se reve- lam manifestações de um romantismo superficial. Deram origem a críticas severas contra o uso de ornamentos, como demonstrações de falta de honestidade da arquitetura. À fren- te estava o arquiteto e crítico John Ruskin, autor de As sete lâmpadas da arquitetura. Nas décadas finais do século XIX, nos interiores, come- çou a difundir-se o Dutch Dining Room, o estilo holandês na sala-de-jantar. O episódio é minuciosamente narrado por Annette Stott.147 Menciona ter sido a sala de jantar um espaço da dominação masculina: sobre os aparadores em nogueira escura predominavam motivos de caça e pesca, cabeças de 147 Annette Stott, op. cit., tradução pelo autor. A IDÉIA DE CONFORTO 90 veados, peixes empalhados e ainda pinturas alusivas. Eram os homens quem, em pé, abriam o animal assado, o cortavam e distribuíam a carne – simbolizando solenemente a matança. E a divisão de papéis prosseguia. Após o jantar, sua esposa conduzia as mulheres para fora da sala-de-jantar, deixando- a livre para que os homens fumassem charutos e tomassem licor – ritual de homem civilizado e prática inadequada para a mulher moralmente responsável. É esta, aliás, a origem do termo drawing room nos interiores ingleses e americanos, abreviatura de withdrawing room, “sala para onde retirar-se”. Delineava-se já a cisão percebida por Henry James: a mulher americana (com suas ambições de lazer, cultura, graça, ins- tintos sociais, ambições artísticas) e o homem americano imerso na ferocidade do negócio, sem tempo para nada se- não os mais sórdidos interesses, puramente comerciais, pro- fissionais, democráticos e políticos. A partir de 1870 mudou a hierarquia na sala de jantar: as mulheres emergiram com tendo responsabilidade primária pela decoração dos interiores domésticos. Foi neste movi- mento que os estereótipos americanos dos Países Baixos como civilizados e cultos casaram com a necessidade de promover uma influência civilizatória nos Estados Unidos no final do séc. XIX. A evolução atingiu desde a classe trabalhadora até as classes mais abastadas: decoração de paredes com moinhos de vento em estêncil, tijolos azuis e brancos (chamados na Holanda Delftware, por serem originários da cidade de Delft), ou mobiliário arts and crafts feitos por imigrantes holandeses em Holland, Michigan, ou ainda antiguidades importadas. Na pintura a óleo, motivos dos mestres holande- ses da Renascença: flores e frutos (tidos como favoráveis à digestão) e mulheres holandesas ocupando dignamente seus interiores, ensolarados e impecáveis. Segundo Stott, o efeito foi duplo: aumentar a presença feminina nas casas america- nas e reforçar certos valores da classe média: democracia, limpeza, civilidade, ética no trabalho e vida familiar. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 91 Curiosa se torna, no contexto deste livro, a citação que a autora faz de um mentor do estilo holandês, Embury:148 o gênio da raça holandesa não lhe emprestoumais formalida- de na construção do que na pompa da vida pública; não encontramos na Holanda edifícios públicos ou privados com tal caráter, a simplicidade holandesa não sabe ser majesto- sa. Mas as casas. Paradoxalmente, ao se exaltar valores da classe média de apelo às mulheres do meio rural e das vilas, o desejo de mostrar refinamento cultural na sala de jantar mostra que se almeja a elite. A decoração holandesa concili- ava os valores de classe média e o gosto de classe alta. Mesmo sem sofisticação, os nichos simbólicos como o canto com armário, o relógio de parede e a porcelana decora- tiva adquirem para os moradores um valor estimativo en- quanto evocações do passado. Afinal, a tradição e a memória são valores domésticos da classe média e influenciam o con- forto no seu contexto psico-espiritual: faz bem olhar para as próprias referências, mesmo sem contar com ar puro, brisa fresca ou uma companhia agradável. E não há dúvida que o relógio de parede é um integrante do ambiente físico, sonoro. Aqui se evidencia a multidimensionalidade do conforto e a relatividade da sua consideração limitada ao meramente am- biental. No nível da transcendência, o ambiental remete às origens do conforto: torna-se consolo. Em 1885, o conceito de conforto já estava estabelecido, e havia generalizada consciência dele. Foi quando ocorreu um salto tecnológico que iria afetar significativamente sua história: Thomas Edison (já famoso pelo invento do fonógra- fo) desenvolveu e patenteou a lâmpada incandescente. 2.5 Descaso A supressão da domesticidade na arte e arquitetura do Modernismo foi detectada pelo filósofo Walter Benjamin, para quem foi no início do século XIX que, “pela primeira vez, o espaço de moradia foi distinguido do espaço de traba- 148Aymar Embury, The Dutch Colonial House (New York: McBride, Nast, 1913), apud Annette Stott, op. cit. A IDÉIA DE CONFORTO 92 lho.” Este é um princípio da domesticidade, que ainda está associada a outros valores, inclusive o foco na família. São todos marcas definidoras da era moderna. Numa abrangente compilação a respeito, Christopher Reed formula a domesticidade como um fenômeno especifi- camente moderno, produto da confluência das economias capitalistas, irrompimentos na tecnologia, e noções iluminis- tas de individualidade.149 Seria o contraponto do avant-garde artístico, que surgia nas academias, ateliers e museus, e de- morava décadas para conseguir alguma aceitação popular. O próprio nome, de origem militar, significaria a marcha rumo à glória nos campos de combate da cultura. Assim foi, por exemplo, com as luminárias redondas de Körting & Mathie- sen - hoje vulgarizadas nas luminárias baratas em globos leitosos de plástico e suportes de alumínio - e as cadeiras tubulares de Marcel Breuer (também muito disseminadas) dentre tantos objetos do desenho. Um marco inicial para a oposição entre Modernismo e domesticidade ocorre já no século XIX: o ensaio de Charles Baudelaire, The Painter of Modern Life, iniciado em 1859, em que descreve o pintor como um flâneur. Flanar é termo cuja tradução mais precisa seria um deslocar-se.150 O perso- nagem padecia as horas que devia passar em casa, quando podia estar fora, pintando as paisagens da grande cidade.151 A discussão de conforto no espaço arquitetônico ganhou uma metáfora na pintura, na acusação feita em 1904 pelo crítico Julius Meier-Graefe, citado por Reed, de que o critério principal de valor na arte feita para as casas era o do “confor- to”: A arte sob tais condições cessa de ser divina; ela não é mais a presença encantadora...mas uma gentil pequena do- na-de-casa que nos cerca de tenra atenção, incansável em trazer o tipo de coisas que irá distrair gente cansada de um dia de trabalho. A busca pela decoração (no sentido da deco- 149 Christopher Reed, (editor e co-autor), Not at Home: The Suppression of Domesti- city in Modern Art and Architecture, Thames and Hudson, Londres (1996). 150 Key Imaguire Jr, Treze Limiares espaciais em Walter Benjamin, ensaio, UFPR (2005) 151 Christopher Reed, op. cit. INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 93 ração de interiores) era considerada um impulso primitivo, pouco refinado. Frank Lloyd Wright praticava uma arquitetura de dentro para fora: orgânica. Pregava a busca pela natureza das coisas. Entretanto, numa fase posterior, chegou a renegar o início “caseiro” de sua carreira.152 O doméstico – apenas por ser doméstico - era visto co- mo kitsch. Ora, isto supera até mesmo aquela definição tão sintética como abrangente que diz que kitsch é a citação.153 O que não seria kitsch, então? Le Corbusier manifestou-se contra a decoração, em fa- vor da higiene: “estamos podres de arte confundida com o respeito pela decoração.” E ainda: A arte não é coisa popu- lar, ainda menos uma “galinha de luxo”. A arte não é um alimento necessário exceto para as elites que devem se reco- lher para poder dirigir. A arte é por essência altaneira. Griselda Pollock define a época do Impressionismo co- mo de “feminilidade”154 da casa – em especial nas salas de jantar e sala de visitas, quartos, varandas, terraços e quintais. Isto contrasta com os comentários, acima, a respeito dos Stu- be na Alemanha e Suíça, de função masculina, de querer exibir um status. Ainda, contrasta com as observações sobre a literatura brasileira no século XIX, que deixou registros da dominação, pelos homens, das salas de visitas e dos gabine- tes. Um estudo da vila burguesa na obra completa de Macha- do de Assis foi apresentado por Imaguire.155 Constata, por exemplo, ser o gabinete local em que a virilidade é celebrada, ou melhor, auto-celebrada, juntamente com o poder intelec- tual e econômico. Segundo Pollock os homens apresentam a casa como um espetáculo para ser testemunhado por uma audiência de forasteiros, mais que “com uma certeza de conhecimento da rotina e dos rituais diários” que caracteri- 152 Christopher Reed, op. cit., tradução do autor. 153 Key Imaguire Jr., revista Coisa Paralela, Vol. 2, Curitiba (2002). 154 Griselda Pollock, in Reed, op. cit. 155 Key Imaguire Jr. O espaço burguês; arquitetura eclética em Machado de Assis, tese de doutorado, Universidade Federal do Paraná (1998). A IDÉIA DE CONFORTO 94 zam a mulher. Esta afirmação coaduna, ainda, com a narrati- va das salas de jantar holandesas nos Estados Unidos. Um exemplo de casa antológica do Modernismo que avança contra preceitos de conforto é de Mies van der Rohe: a famosa vila Farnsworth, batizada glass house (casa de vi- dro) e apreciada em ilustrações arquitetônicas que realçam seu caráter leve e anguloso, contrastando com as folhas, ora verdes, ora douradas do bosque de árvores caducas ao redor. Menos conhecido, entretanto, é o relato de sua proprietária, de como se ressentia, naquela casa, da falta de privacidade. Marshall Berman156 explora o pânico de Dostoiewsky ao se imaginar morando no Palácio de Cristal – construção gi- gantesca inaugurada em 1851 no Hyde Park, Londres, para a Great Exhibition, depois transferida para Sydenham. Este célebre edifício foi consumido por um incêndio em 1936. Reed cita novamente Benjamin para lembrar como, ao comparar as casas da década de 1880 com as “casas de vidro” modernistas, o filósofo nota o modo como os moradores dei- xavam suas pistas (Spur) em cada mancha (Fleck) da casa tradicional.157 Nesta, existia uma relação orgânica, os utensí- lios como extensões do corpo, a casa como um ser vivo. Em seu livro Por uma arquitetura, Le Corbusier ressalta que os arquitetos, responsáveis pela estética das edificações, perderam o sentido da forma; enquanto isto, os engenheiros trabalhando com formas puras e relações matemáticas, estão mais próximos da beleza: Operando com o cálculo, os enge- nheiros usamformas geométricas, que satisfazem nossos olhos pela geometria e nosso espírito pela matemática; suas obras estão no caminho da grande arte. Le Corbusier afirma que engenheiros são viris, enquanto que os arquitetos, falan- tes ou lúgubres.158 Ao falar do trabalho do campo, mostra que 156Marshall Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar, a aventura da moderni- dade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. Key Imaguire Jr, comunicação pessoal (2004). 157 Christopher Reed, op. cit. 158 Le Corbusier, Por uma arquitetura, trad. Brasileira, 4a. edição, Perspectiva, São Paulo (1989). INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 95 nele também há virilidade: não somente entre os engenheiros, banqueiros e industriais – que admirava. E aqui vale a pena deter o olhar sobre casas de campo- neses. Uma casa tradicional nas montanhas da Suíça guarda, apesar da diferença do clima e da etnia, algo em comum com uma casa de agricultores de origem polonesa dentre as que se espalham pelo sul do Brasil. Ambas são construções que não materializam ideais refinados, mas valores tradicionais e familiares. Refletem a luta pela sobrevivência – uma luta diária, em que as marcas nos pisos, paredes e portas vão se superpondo a outras já ancestrais, formas mais sóbrias de souvenir que os retratos em molduras douradas. É uma estéti- ca do mínimo, existente muito antes do glass house: realça o local, o simples, o robusto. Desconhece algum culto das apa- rências, mesmo porque o excedente econômico não permitia nem alimentar, nem realizar fantasias utópicas. Ninguém menos que Adolf Loos - o arquiteto modernista e crítico de arquitetura que afirmou que ornamento é crime – reconheceu que havia, sim, um valor na arquitetura tradicional.159 É ver- dade que sua crítica se dirigia à burguesia vienense que, em especial nas fachadas da Ringstrasse, exibia uma nobreza inexistente, uma espécie de Potemkin austríaca.160 Loos era implacável com os arquitetos que feriam a harmonia das construções camponesas; estas, sim, eram obras de um redu- cionismo autêntico, resultante das circunstâncias, verdadeira engenharia nascente. A arquitetura dos camponeses, seja nas suas terras de origem, seja nos países para onde imigram, parece não ser afetada pela vaidade dos modismos. Tem mais elementos à prova de tempo do que tudo aquilo que se cons- trói na cidade. Le Corbusier, contemporâneo seu, é aqui o mais radical. Não demonstra qualquer condescendência e condena a mitifi- cação da casa, objeto de uma relação sentimental que a man- 159 Joseph Rykwert, A Casa de Adão no Paraíso, ed. Perspectiva, São Paulo (2002). 160 Loos se referia à cidade de Potemkin, na Criméia, onde um general, tendo conquistado a região, teria procurado ludibriar a imperatriz Catarina II, criando um cenário de precoce prosperidade econômica. A IDÉIA DE CONFORTO 96 tém intocada, refratária à técnica e a própria razão: religiões são fundadas sobre dogmas, os dogmas não mudam; as civi- lizações mudam; as religiões desmoronam apodrecidas. As casas não mudaram. A religião das casas permanece idênti- ca há séculos. A casa desabará. Entretanto, muitos seguidores de Le Corbusier e dos preceitos da Bauhaus, por mais que busquem funcionalidade, adotam uma atitude apolínea, deixando-se encantar pela esté- tica da lógica e do funcionalismo, mas somente pela sua esté- tica - ou, como observaram Robert Venturi e Denise Scott Brown, pelo simbolismo do não-simbolismo:161 Conferindo importância primordial à função na arquitetura, os funciona- listas tomaram a definição vitruviana segundo a qual ‘soli- dez, utilidade e beleza fazem a arquitetura’ e torceram-na para ‘solidez e utilidade fazem a beleza da arquitetura’. Le Corbusier também representa esta atitude apolínea, praticamente limitando o efeito artístico da arquitetura ao simplesmente visual. Para ele, os elementos arquiteturais são a luz e a sombra, a parede e o espaço. Com isto, relaciona somente um dos sentidos – a visão - à fundamental dualidade entre a matéria (a parede) e sua ausência (o espaço): a arqui- tetura existe quando há emoção poética. A arquitetura é assunto de plástica. A plástica é o que vemos e o que medi- mos com os olhos. O restante seriam meras variáveis a man- ter sob controle, o controle do desconforto. O não-visual do ambiente é, na melhor das hipóteses, neutro: É evidente que se o telhado escorregasse, se a calefação não funcionasse, se as paredes rachassem, as alegrias da arquitetura seriam fortemente atrapalhadas; da mesma forma, um senhor que escutasse uma sinfonia sentado numa almofada de alfinetes ou na corrente de ar de uma porta. (...) Aparentemente, Le Corbusier não esperava do conforto uma capacidade de promover a transcendência da dor de que se fala, hoje, na enfermagem. E o movimento modernista parecia estar muito aquém disto. Argumenta-se que a Bau- haus teria sido responsável pelo retrocesso do conforto, do 161 Venturi &Scott Brown, Functionalism, yes, but, Revista a+u n°47, pp.33 (1974) apud João Rodolfo Stroeter, Arquitetura & Teorias, Nobel, São Paulo (1986). INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 97 prazer e da imaginação criativa, porque descuidou completa- mente dos consumidores, concentrando seus esforços na racionalização da produção de objetos e edifícios e não nos seus efeitos ambientais sobre as pessoas. 162 Interessava-se por exemplo em como produzir eficientemente uma bela luminária, mas ignorava o efeito produzido no ambiente. Algo semelhante pode ser dito de seus edifícios. Outro contemporâneo ainda, o arquiteto Richard Neu- tra163, era de uma opinião diferente. Reconhecendo na visão humana o mais desenvolvido dos sentidos, de maior influên- cia sobre a consciência, propunha que devemos rejeitar a noção de que somente a percepção dos sentidos fácil e cons- cientemente registrados é que conta. Para Neutra, são raras as influências ambientais cuja percepção consciente é garan- tida; entretanto, podem tornar-se particularmente pernicio- sas se faltar a consciência para corrigi-las, ou neutralizá- las. Daí devermos nos interessar por todos os aspectos não- visuais do ambiente arquitetônico e do design, mesmo aque- les que não ocupam o primeiro plano de nossa percepção. E fundamenta isto uma concepção de arte mais dionisíaca que apolínea. A arte é a poesia: a emoção dos sentidos, a alegria do espírito que mede e aprecia, o reconhecimento de um princípio axial que afeta o fundo do nosso ser. Como advertência ao desequilíbrio pró-racionalista do Modernismo, Ariano Suassuna164 contrapõe Le Corbusier a Antonio Gaudi. Este teria preferido o caminho da arquitetura orgânica e ornamental. Suassuna lhe ressalta a arquitetura católica, épica, espanhola e poética que difere bastante da cartesiana, suíça e meio calvinista de Le Corbusier.165 E termina advertindo contra o excessivo sectarismo da arquite- tura contemporânea, por um lado, recusando, como feias, grandes obras da arquitetura de todos os tempos, o que faz 162 Michael Brawn, apud Domingos Henrique Bongestabs, op.cit. 163 Richard Neutra, Survival through Design, Oxford University Press, Nova Iorque (1954). 164 Ariano Suassuna, Iniciação à Estética, UFPE, Recife (1996). 165 Antonio Gaudi y Cornet (1852 – 1926), arquiteto espanhol, construtor da igreja da Sagrada Família, em Barcelona. A IDÉIA DE CONFORTO 98 por mero espírito de partido; e, por outro lado, sacrificando, ao mesmo tempo, o valor estético e a utilidade do edifício, em nome dessa “Estética da nudez”, o que tem tendido a transformar a arquitetura de nossos dias numa espécie de Escultura, abstrata de grandes proporções, com prejuízo para a arquitetura e para a Escultura. Enfim, o historiador Paolo Portoghese,166numa revisão sobre o final do Modernismo, levanta contra o mesmo um argumento eminentemente técnico: o mau desempenho ener- gético de sua arquitetura. Se nos seus primórdios do movi- mento havia uma proposta consciente do desempenho da edificação enquanto abrigo, no seguimento propostas visuais se tornaram cânones e o conteúdo – o alcance pretendido da funcionalidade - foi esvaziado. Hoje, é fácil reconhecer o Estilo Internacional nas diversas latitudes em que aparece; difícil é justificá-lo. Quando estas páginas são escritas, já há tempo que o ge- ometrismo modernista, aquartelado nas grandes lojas de de- sign, invade os interiores da casa. Isto, algumas décadas de- pois de ter escandalizado nas exposições. Isto reforça a idéia do início deste capítulo sobre os ciclos do dionisíaco e do apolíneo. O grande público parece ter assimilado o Moder- nismo, revivendo seus móveis e objetos pessoais em réplicas e imitações, e algo aqui se percebe paradoxal: os interiores das verdadeiras máquinas de morar – os automóveis – não cabem na noção modernista de clean (limpo). São estofados, em puro couro, com detalhes cintilantes, incrustados de peças em madeira nobre, madrepérola, couro de tartaruga, insígnias tradicionais, e um barroco painel de instrumentos. Estes au- tomóveis são, por dentro, obras dionisíacas, na mesma época em que os interiores das casas aprendem a se despojar das curvas, do estofamento macio e dos ornamentos. Seria bizarra uma sala de visitas constituída de poltronas extraídas de um automóvel – por luxuosas que fossem. Entre- tanto, nada deveriam em comodidade aos móveis modernis- tas. São poltronas anatômicas e reguláveis em pelo menos 166 Paolo Portoghese, Depois da arquitetura moderna, Martins Fontes, São Paulo (1998). INOCÊNCIA, EXAGERO, DESCASO, BUROCRATISMO 99 dois pontos. Têm texturas convidativas ao toque e – por isto mesmo - fáceis de limpar. E assim o são as texturas das late- rais, do painel e da capota. É que no automóvel a tecnologia é muito melhor aproveitada que nas construções. Utiliza-se iluminação natural, iluminação de tarefa (luz alta, luz baixa, e a luz interna de leitura), iluminação sinalizadora (pisca lateral e pisca-alerta, luz de freio e de ré, faróis de neblina), ilumi- nação do painel do motorista, e proteção contra o ofuscamen- to do céu através de aplicação em degradê no pára-brisas. As janelas têm limpador mecânico, desembaçador elétrico e por fluxo de ar. A ventilação cruzada, natural ou forçada, utiliza direcionadores para atingir os pés e o rosto; há ar frio e ar quente, e ainda o desumidificador. Caixas acústicas são posi- cionadas de modo a se obter um claro efeito estereofônico, num recinto refinadamente isolado dos ruídos externos. Ins- trumento yang por excelência, o automóvel revela- contaminado pela lógica da casa. De viril, basta o motor. O interior se assume feminino. Comodidade, adequação e ex- pressividade se combinam de modo surpreendentemente mais sincero no automóvel que na casa. 2.6 Conforto ambiental como obrigação bu- rocrática A conclusão deste encadeamento de países e épocas po- de ser resumida numa sentença: o conforto de certa forma existiu desde a Idade Média; tornou-se algo consciente com a ascensão da burguesia; atingiu o exagero no final do século XIX e, no Modernismo, foi reduzido ao seu contexto ambien- tal (às custas dos contextos corporal, sócio-cultural e psico- espiritual) e limitado aos níveis de alívio e liberdade, ou seja, a superação do desconforto (isto, às custas do nível transcen- dental). Se Le Corbusier não propôs, certamente profetizou a di- visão de trabalho entre engenheiros e arquitetos que perdura até hoje, ao citar Larousse, para quem a arte seria a aplica- ção dos conhecimentos para a realização de uma concepção. Concluiu que ora, hoje são os engenheiros que conhecem, que conhecem a maneira de sustentar, de aquecer, de venti- A IDÉIA DE CONFORTO 100 lar, de iluminar. Entretanto, deve ter pressuposto engenheiros de uma ampla formação humanística; diante da especializa- ção limitadora que de fato veio, certamente errou. E previu, ainda, que não teremos mais dinheiro para construir monu- mentos históricos. Meio século depois, a previsão se mostra parcialmente correta. Houve uma derrocada do Estado de bem-estar social, modelo de prosperidade socialmente justa em países como a Alemanha ou o Canadá. No início do século XXI, fala-se mesmo de uma falência do próprio Estado. As parcerias com o setor privado são fundamentais. O problema não parece ser exatamente falta de dinheiro, mas de um espírito criador de monumentos históricos. A mensagem funcionalista que ou- trora, como reação, tinha seu efeito poético, hoje parece ser- vir cada vez mais ao capital, abolidas muitas fronteiras da economia. Em diferentes países, as prateleiras vão se povo- ando dos mesmos produtos, e os edifícios vão se asseme- lhando. Há um risco de os parâmetros de conforto servirem para que tudo fique ainda mais igual. Quando – caso extremo – o conforto térmico é aferido em condições de laboratório, com assepsia geral, paredes brancas, piso branco, luz fria, indiví- duos recrutados dentre aqueles que dispõem de tempo em excesso para tanto, surgem dúvidas. Quando, em nossa vida, conseguimos reunir tais condições? Quem nunca ferveu de raiva, nunca gelou de medo, nem suou de nervosismo? Seme- lhantes interrogações pairam sobre as verdades oficiais em matéria de ar, luz, som e toque. A especialidade chamada conforto ambiental nasceu de- ficiente. Nas universidades, sua separação do projeto e da teoria da arquitetura é prejudicial. É urgente que se busque atividades de educação e pesquisa da comodidade e da ade- quação como valores relacionados a uma transcendência, que acontece na estética da arquitetura. “Não são os acontecimentos que provocam emoções...são as emoções que provocam acontecimentos”. Jean-Luc Godard em Elogio ao amor Figura 4 - Residências geminadas em Sabará (MG) 3 - A expressividade não-visual do espaço 3.1 Os sentidos A escola nos ensinou que temos cinco sentidos - vi- são, audição, paladar, olfato e tato. Além destes, tradicionais, a ciência hoje reconhece a existência de vários outros. Asso- ciados ao tato, estão os sentidos da pressão, da dor, de frio e de calor. Há ainda a propriocepção, que é o sentido que loca- liza no espaço tridimensional as partes do próprio corpo. E outro sentido funciona associado à audição: o equilíbrio, que utiliza o labirinto, o órgão que informa o que é em cima e o que é embaixo, estejamos de pé ou deitados. E existem ainda outros sentidos, menos conhecidos. Alguns sentidos são complexos, produzindo efeitos cuja explicação não é trivial. Por exemplo, ao assistir em vídeo a um avião fazendo piruetas, podemos sentir tontura. Assim também, num ambiente cujas paredes na sua metade inferior sejam brancas e, no restante, negras, recebemos uma A IDÉIA DE CONFORTO 104 informação lumínica que contradiz o labirinto (pois normal- mente a luz vem do alto). E a natureza nos apresenta exem- plos de percepção sensorial que sequer imaginamos. No es- curo, a coruja enxerga com precisão, e os morcegos se guiam pelo ultra-som. Os cães cheiram e ouvem bem melhor que as pessoas. O porco tem um olfato tão sensível que, treinado, é capaz de encontrar no subsolo trufas (cogumelos muito apre- ciados na culinária francesa, com patê de fígado de ganso). Peixes, em suas linhas laterais, recebem informação sobre a vibração na água, e as enguias do Amazonas recebem e envi- am sinais elétricos. Burros não atravessam pontes inseguras. Aos cães e gatos se atribui outras formas inexplicáveis de premonição. Mesmo nos detendo nos cinco sentidos tradicionais, en- contramos casos espantosos de sensibilidade hiperrefinada:167 a visão de um atirador; o paladar de um somelier; o ouvido de um regente de orquestra, ea propriocepção de um violinis- ta (que coloca os dedos de sua mão esquerda sobre cordas sem contar com as marcas da escala, como ocorre na guitar- ra). Ao mesmo tempo, estes mesmos cinco sentidos revelam muitas falhas. A visão é inferior a qualquer câmara fotográfi- ca em sua capacidade de focalização: só consegue abranger com precisão o cone central, muito estreito. A sensação de cor não é absoluta, mas registra o contraste (para comprovar, basta observarmos por meio minuto, os olhos fixos, um re- tângulo colorido sobre uma parede branca bem iluminada; ao fechar os olhos por instantes e abri-los sobre uma parede branca, enxergaremos nela duas cores com certa nitidez). O ouvido musical da maioria das pessoas, inclusive os músicos treinados, é um ouvido relativo: sabe identificar intervalos entre as notas, mas dificilmente reconhece o tom da nota sozinha. E diversos efeitos de ilusão de ótica nos enganam o tempo todo. Trata-se não de falhas, mas de fatores de realce, com que os sentidos tentam manipular nossa atenção. É comum que deformem a realidade para que possamos reagir em tem- po. Isto se torna claro quando a percepção sensorial é afetada 167 Alfred Maelicke, op. cit. A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 105 por emoções intensas. A aparência de um prato bem decora- do fascina, mas os mesmos alimentos em quantidades enor- mes ou associados a elementos amedrontadores no ambiente podem afastar nosso apetite. O erro consiste em esperar dos sentidos um comportamento linear, previsível. Se os fatos nos estimulam através dos sentidos, con- trapõem-se experiências e expectativas provindas dos instin- tos, da memória, das necessidades e dos valores pessoais. Instintos são reações inatas. Nós simplesmente as temos, e o fato de tê-los mantido ao longo de milhares de gerações comprova seu valor – outras pessoas que não os tinham podem não ter sobrevivido até a idade de procriar. E afetam a maneira como nos relacionamos com outras pesso- as. Segundo Konrad Lorenz,168 pesquisador da etologia, nos- so comportamento social é dominado por uma herança pri- mordial, constituída por padrões de ação e reação próprios de nossa espécie; esses padrões são indubitavelmente muitís- simo mais antigos do que as realizações especificamente ligadas à inteligência, sediadas no neo-córtex – filogeneti- camente a parte caçula do nosso cérebro. A memória é alimentada em processo praticamente contínuo, e seus registros podem vir à tona a partir sensações: de sons, calores e, de modo muito especial, aromas. As necessidades sofrem uma variação temporal que é mais previsível. Entretanto, o contexto pode ser elaborada- mente específico. Numa viagem de ônibus, podemos ouvir música no fone de ouvidos enquanto observando a paisagem; por exemplo, a trilha sonora de um filme de terror. O efeito da música é essencialmente diferente daquele quando, à noi- te, assistimos o filme. Já os valores variam no longo prazo, sofrendo infle- xões causadas por choques externos, ou quando fazemos achados dentro da própria experiência. Tudo isto influencia o efeito dos fatos percebidos pe- los sentidos. 168 Konrad Lorenz, A demolição do homem (Der Abbau des Menschlichen), Muni- que (1983). A IDÉIA DE CONFORTO 106 3.2 As emoções: aspectos gerais Um visitante percorre todo o Museu Real em Amsterdã, com seu numeroso acervo de mestres renascentistas, até de- parar com a obra mais esperada: a Ronda de Rembrandt.169 A pintura, conhecida em tantas reproduções em diferentes ta- manhos e cores, causa surpresa quando encontrada ao vivo, pela enormidade do original, pelos tons verdadeiros, e cada detalhe passa a ser percebido com muito destaque. O coração do visitante acelera. É um momento especial. O que é uma emoção? Na Grécia antiga, para Platão, os sentimentos (ou emo- ções) seriam como cavalos selvagens que deveriam ser do- mados pelo pensamento (ou intelecto), e a teologia cristã associou por muito tempo emoções ao pecado e à tentação. Para seu discípulo Aristóteles, a emoção era uma forma mais ou menos inteligente de conceber certa situação, domi- nada por um desejo. No caso da emoção de cólera, o desejo é de vingança; já no caso da emoção do amor, o desejo é de abraçar a pessoa amada. No final do século XIX, o filósofo e psicólogo america- no William James lançou uma teoria que ganhou notoriedade e chegou a rivalizar com aquela de Aristóteles. Para James, emoção é a reação fisiológica a um sentimento. Grande parte do debate moderno se dá entre estas duas últimas teorias. De um lado, parece indubitável o caráter de reação fisiológica das emoções. Do outro, revela-se que estas possuem peculiar inteligência: no calor do momento, conden- samos uma decisão perspicaz e apropriada, diferindo das tranqüilas, ponderadas considerações da razão. Portanto, uma emoção teria um componente fisiológico e outro de conheci- mento. Mais recentemente, as emoções mereceram um estudo criterioso. Konrad Lorenz afirma que, por suas características subjetivas, os sentimentos (ou emoções) mal podem ser defi- nidos através de palavras; podem, todavia, ser compreendi- 169 Rembrandt van Rijn (1606 - 1669), pintor holandês da época barroca. A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 107 dos por meio da pesquisa experimental, analisando-se aque- las situações de estímulos externos em que aparecem. As emoções passaram a ser reconhecidas, antes, como uma ma- nifestação da inteligência. Calhoun e Solomon se propuseram a rever com abran- gência o conceito de emoção.170 Conseguiram sintetizá-lo em cinco teorias, cada uma sublinhando um diferente componen- te da emoção: sensações, conduta, fisiologia, juízo de valor e conhecimento. Para as teorias das sensações, as emoções constituem acontecimentos inevitáveis. Damo-nos conta delas tão rapi- damente e tão passivamente como acontece com as sensa- ções. As emoções têm um caráter inconfundível, localizado no tempo, e às vezes dentro do próprio corpo. Todavia, não dependem de fatores físicos (David Hume – Primeira Parte). São sensações não-físicas. Para a teoria fisiológica, também, as emoções são inevi- táveis. James, o principal autor, considera emoções tão- somente as que causam transtornos fisiológicos; exclui aque- las que Hume designa emoções leves (como o encanto estéti- co). Tampouco considera a existência das emoções disposici- onais, que não dependem de fatos: por exemplo, o amor por um parceiro, ou o temor de um risco potencial. A terceira teoria é a da conduta. Admite que as emoções se revelam não necessariamente em sentimentos, mas em condutas, as condutas emocionais. São condutas ora involun- tárias (como suspirar de alívio), ora intencionais (como abra- çar alguém). A abordagem é facilmente justificada se nos considerarmos capazes de constatar e identificar condutas emocionais noutra pessoa (por exemplo, a cara de culpa), mesmo que ela nem esteja consciente disto (por exemplo, falando tanto de alguém que desperte a suspeita de que tenha se apaixonado). Ocorre que as emoções têm um componente público: se eu já souber que meu chefe está zangado comigo, 170 Cheshire Calhoun & Robert C. Solomon (organizadores), ¿Que es una emoción? Lecturas clásicas de psicología filosófica, trad. do original por Mariluz Caso, 380 pp., Biblioteca de Psicología y Psicoanálisis, Fondo de Cultura Económica, México (1996). A IDÉIA DE CONFORTO 108 nada preciso inferir. Mostram-se aqui efeitos culturais: por exemplo, ajoelhar-se por reverência. Pode existir, antes que uma conduta propriamente, a disposição a ela: a propensão (que não se confunde com vontade) a gritar de raiva. Darwin171 foi o primeiro autor relevante desta teoria ao publicar The Expression ofEmotions in Man and Animals, onde explicou a utilidade da conduta emocional para a sobre- vivência através de três princípios. O princípio dos hábitos úteis associados estabelece que há condutas que são úteis diante das circunstâncias. Por exemplo, a conduta do cão dobrar para trás as orelhas de medo – prevenindo que sejam arrancadas numa briga - podendo tornar-se habituais e, fi- nalmente, inatas (Darwin aceitou a teoria de Lamarck,172 hoje desacreditada, da transmissão genética de hábitos). O princí- pio da antítese estabelece que alguns hábitos surgem sem propósito, mas como antítese de outros. O cão abana a cauda sem utilidade, mas para opor-se à cauda ereta de um cão co- lérico. E o princípio da ação direta do sistema nervoso exci- tado sobre o corpo estabelece que algumas mudanças fisioló- gicas como empalidecer ou enrubecer para nada servem. A quarta teoria é a do juízo de valor, ou axiológica, e supõe que por detrás das emoções existem valores em jogo. Há mesmo teorias que igualam (ao menos em parte) as emo- ções a juízos de valor. Para Sartre e Solomon, as emoções são ou se parecem com juízos de valor ou crenças não mani- festos: a melancolia, com uma crença de que nada vale a pena. Para outros (Hutcheson e Scheler), as emoções são percepções de valor análogas às percepções sensoriais das cores e sons. Ao desfrutar de uma pintura, “vemos” que é bela. Percebemos valor e nos emocionamos. Hume e Brenta- no dizem que as emoções são sensações agradáveis ou desa- gradáveis, ou atitudes pró ou contra, sobre as quais formamos nossas crenças de valor. Ao admirarmos o caráter de alguma pessoa, consideramos que é bom. 171 Charles Darwin (1809 - 1882), biólogo inglês, autor da Origem das espécies. 172 Jean Baptiste Pierre Antoine de Monet de Lamarck (1744 – 1829), naturalista francês cuja obra foi muito extensa. A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 109 A quinta e última teoria é a do conhecimento, sustentada por Brentano, Scheler, Sartre e Solomon. Apregoa que as emoções estão dirigidas intencionalmente às coisas do mun- do; são uma forma de estar consciente das coisas do mundo. O orgulho de um feito – como de quem faz o projeto de um edifício e o vê construído - é uma forma de estar consciente do mesmo (não é exclusiva, pois há a recordação, a imagina- ção ou o reconhecimento). Em relação a estas cinco teorias, sem compromisso com uma delas em especial, algumas observações devem ser feitas no escopo deste livro. Primeiro, que as sensações funcionam como chaves de memória. São como as orelhas de um fichário, por onde pu- xamos da memória os eventos passados. Encontrar uma pes- soa, topar com determinado objeto, achar-se numa situação ou ambiente são experiências que registramos melhor quando acompanhadas de sensações; estas fazem-nos lembrar de pensamentos, e também de emoções. Depois, que as emoções ocorrem simultâneas aos pen- samentos num nível mais primitivo – o sistema límbico. São como turbilhões hormonais que alteram as sensações corpo- rais, causando calor, tremor, arrepios. De certo modo, subli- nham as idéias e dão um tempero à decisão racionalmente fundamentada: desde a motivação para a tomada de atitudes até um reforço à idéia de deixar tudo como está. Quem aprende a esquiar na neve tem dificuldade em manter o peso do corpo para a frente, como que tendendo a cair. Mas se não o fizer, mal conseguirá guiar os esquis. Instrumentistas musi- cais, como os pianistas ou violinistas, em passagens rápidas e difíceis, tendem a retesar os músculos dos braços e até mes- mo do restante do corpo; esta reação é inata. Entretanto, se não relaxarem, abstraindo do eminente perigo (o perigo de errar em público) não conseguirão tocar com clareza. Por mais que compreendamos uma situação que nos contraria, ela continua a nos abalar. Apesar dos sistemas cognitivo e emo- cional se comunicarem de modo bi-direcional, existem mais conexões saindo dos centros emocionais para os cognitivos do que no sentido contrário. Isto sugere a força que têm as emoções em relação ao pensamento. As emoções podem A IDÉIA DE CONFORTO 110 facilmente apagar eventos materiais da consciência, mas os pensamentos dificilmente deslocam emoções. As emoções podem atuar defasadas do pensamento; entretanto, se forem colocadas em fase com os mesmos, o racional e o emocional harmonizados, existe um efeito de auto-convencimento que pode, por exemplo, aprimorar processos de memorização e aprendizado.173 Como uma conclusão, podemos explicar as emoções como fenômenos mentais importantes que comple- mentam a percepção da razão. Se a razão sinaliza para os limites dos valores morais, estéticos e religiosos, para quem nem chegamos próximo, as emoções surgem quando esbar- ramos neles, como a consciência física de sua presença. Resta esclarecer se o ambiente construído tem influência sobre as emoções, se faz sentido, primeiro, considerar-se uma intencionalidade em emoções e, segundo, se esta intenciona- lidade pode seguir alguma linguagem, de modo a alcançar eficácia universal, afetando um público mais ou menos indis- tinto. Emoções podem surgir de forma acidental. É o caso da- quelas associadas à experiência da natureza: animais, paisa- gens, fenômenos meteorológicos. Encontramos alguém e nos surpreendemos; perdemos algum objeto e nos entristecemos; vemos uma coisa bela e a desejamos. Alguém ainda pode, sem querer, provocar-nos emoções. É o exemplo de alguém que aparece, súbito, e nos surpreende concentrados. O que importa aqui é afirmar que não precisamos da intencionalida- de de ninguém para nos emocionar. Certas emoções são causadas por uma circunstância pes- soal. Encontrar um desconhecido cujos olhos, ou cuja voz se pareça com a de alguém que lá no passado nos tenha marca- do. A visita a um local que faça lembrar a infância, tal como uma casa ou escola. A releitura de uma carta guardada por muitos anos. São experiências capazes de abalar as pessoas mais calculistas. E existem também emoções causadas por fatores do inconsciente: é o caso dos sonhos que nos fazem acordar e passar muito tempo refletindo. 173 www.heartmath.org/research/science-of-the-heart/soh_6.html A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 111 Finalmente, emoções que resultam da criação humana, e que têm como alvo todas as pessoas. Assim são as emoções da arte. Afetam-nos de forma original, intencional (tanto da parte do autor, como do receptor), e por ação externa ao cor- po; atingem certa autonomia, remetem a visões que se perpe- tuam através das fronteiras, e apesar dos anos. Conseguem uma expressividade universal, concreta e até passível de re- produção. Konrad Lorenz fala de um grande número de sentimen- tos qualitativamente inconfundíveis que são caracteristica- mente humanos, não-individuais, mas genericamente huma- nos, isto é, arraigados na massa hereditária do homem. Afirma que fenômenos ou qualidades vivenciados não são definíveis; há, porém, quem saiba exprimir também o indizí- vel: é o artista. E explica: o poeta só pode reproduzir o que é vivido por seus personagens através de imagens. O que ele visualiza para nós, e principalmente o seu instrumento para fazer-nos compartilhar dos seus sentimentos, é a descrição de uma situação humana em que os sentimentos correspon- dentes vêm naturalmente à tona. Na prática, a comunicação em arte pressupõe que o pú- blico consumidor receba a mensagem. É necessária da parte dele fluência no canal sensorial utilizado. Por exemplo, deve saber quanto tempo demora um concerto; que atitude é ne- cessária durante a execução. Deve estar preparado para des- frutar um bom filme no cinema, sem esperar do mesmo uma pulsação televisiva. As formas de arte – música, pintura, escultura, literatura, dança, teatro e cinema - contêm conven- ções, algumas permanentes, outras mais sujeitas a condicio-nantes sociais de cada época. Existem diversas definições de arte, e algumas delas reconhecem que tudo são, no fundo, convenções sociais estabelecidas pelos poderosos. Para ou- tras, a arte não recebe esta influência. Mas é certo que entre o acidental da vida e aquilo hege- monicamente aceito como arte, disputando a atenção das galerias e museus, existem muitas possibilidades de nos emocionarmos. Isto ocorre no espaço arquitetônico, mesmo que se trate de edificações feias – adaptadas, sem autor, en- fim, não reconhecidas como arte. A IDÉIA DE CONFORTO 112 Não vivemos dentro de obras de arte e nem fazemos par- te delas. Entretanto, interagimos emocionalmente com o am- biente construído através dos sentidos da visão, do tato, do calor, do olfato e da audição. Nesta interação, oscilamos en- tre a dor e a neutralidade, e não somente: podemos atingir a transcendência, um nível definido pelos estudiosos da enfer- magem mencionados no capítulo 1. E, nas obras de arte, ad- quirimos consciência da mensagem do seu criador, uma men- sagem que, a rigor, se impõe a despeito de condicionantes sociais, culturais e históricos envolvidos, colaborando na multiplicação de sonhos, fantasias, metáforas e alegorias do outro mundo.174 Mesmo se produzidas numa outra época, em materiais com que não estamos familiarizados, num contexto histórico diferente e dentro de uma cultura remota podem nos fascinar, especialmente se tivermos um acesso facilitado à sua expressividade. Emoções superficiais, demasiado contextualizadas são comuns nas telenovelas, em que se alterna com agilidade do quarto para o necrotério. Amor, tristeza, medo e inveja são justapostos qual mosaico. Estes contrastes, sem sutilezas, demonstram que a referência às emoções não necessariamen- te transforma em arte uma trama qualquer entre personagens. Konrad Lorenz comenta a respeito que tais produtos mostram o quanto o objeto que constitui o “gatilho” para as emoções pode ser simplificado e embrutecido sem contudo perder sua capacidade de efetuar o engatilhamento e o disparo. Alega conhecer muitas pessoas sérias, eruditas e críticas, que sa- bem muito bem o que para elas é “arte” e o que é “chan- chada”, e que mesmo assim não conseguem resistir ao efeito dos “xaropes”mais primitivos e transparentes. Fundamen- talmente diferentes são as experiências da casa, concretamen- te a nos envolver, cobrir, sustentar, conter, resfriar e aquecer, soprar e perfumar, iluminar, reverberar e a nos tocar. Super- fícies envelhecidas se tornam atalhos para as épocas passadas e outros lugares. É matéria enraizada; a ela somos mais pro- fundamente sensíveis. 174 Octavio Ianni, O reencantamento do mundo. Revista Polis, edição especial, pp.79-86 (2001). A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 113 Em 1994, pessoas de uma nação inteira choraram a mor- te de um ídolo esportivo, o piloto Ayrton Senna da Silva. Ainda hoje, seu “tema da vitória”, a melodia de fundo da televisão enquanto mostrava os momentos finais de um gran- de-prêmio, é circunstância que afeta a sensibilidade dos bra- sileiros. Ocorre que a canção adquiriu um significado extra- artístico. Tornou-se portadora do sentimento de pesar associ- ado ao trágico acidente, à interrupção súbita da carreira as- cendente. Outras canções têm uma expressividade intrínseca, que realça certos eventos de nossas vidas. Diferentes sociedades convencionam as emoções cuja manifestação não é tolerada. O emocional, manifestado num comportamento espontâneo das pessoas, vai sendo amoldado mediante repressão mais ou menos declarada. No Japão, o uso de violência física ou verbal – mesmo de um tom de voz elevado – contra outra pessoa é muito menos freqüente que, por exemplo, num país latino. Na medida em que se manifes- tam relações de hierarquia, tanto as institucionalizadas como aquelas de natureza prática (por exemplo, no comércio, como entre uma cliente e o balconista), a polidez elimina o atrito e limita os diálogos quase somente àqueles mais previsíveis. Esta aparente tranqüilidade não é sinônimo de satisfação; pode ser sistematicamente acumulada e culminar em violên- cia verbal ou física, gerando situações quase sempre irrecon- ciliáveis de rompimento pessoal, profissional, e freqüente- mente aproveitadas pelas telenovelas daquele país na contex- tualização de crimes espantosos. Curiosa é a tradução de okoru como zangar-se; para o japonês, okoru é antes mostrar- se zangado, depois de julgar que o ofensor passou do limites. Um importante recurso químico participa do processa- mento das emoções: os hormônios. O estresse, a alimentação incorreta ou até mesmo uma paixão arrebatadora podem alte- rar seu regime. E a própria alimentação ou um processo cor- poral podem restabelecer a normalidade. Alguns hormônios têm importância notável na produção ou condicionamento de emoções. A endorfina, produzida pelo córtex cerebral, é um anal- gésico natural, responsável pela sensação de bem-estar, que proporciona tranqüilidade e inibe o estresse. Durante uma A IDÉIA DE CONFORTO 114 atividade física intensa, por exemplo, o corpo libera adrenali- na, hormônio que dilata os vasos sangüíneos para nos deixar em estado de alerta e aumentar a força e a disposição. Quan- do a prática termina, a endorfina ajuda a relaxar. Pesquisas comprovam que as mulheres fabricam maior quantidade des- sa substância que os homens, por isso são mais tolerantes à dor. A adrenalina é sempre liberada em situações de estresse. É produzida pelas supra-renais e tem função contrária à en- dorfina: é ela que acelera o funcionamento do organismo. A queda dos níveis desse hormônio baixa a pressão, deixando a pessoa desanimada e dispersiva. Em excesso, faz o coração bater mais rápido, provoca irritação, agitação e aumenta a produção de suor, por isso é chamado de hormônio das emo- ções. A adrenalina é um bom exemplo de como as emoções nos fazem adotar procedimentos rápidos que parecem, por vezes, precipitados. Mas revelam-se um poderoso auxiliar do raciocínio detalhado, analítico, se a urgência da situação re- quer um comportamento executivo. Por exemplo, quando arrebenta o cabo do freio a disco do carro em plena frena- gem, eu decido segurar o automóvel pelo freio de mão, mas com uma rapidez e força que não são usuais. A dopamina é um neurotransmissor liberado pelo hipo- tálamo, responsável pelo bem-estar do organismo. Seu prin- cipal inibidor é a prolactina, hormônio produzido pela mulher durante a amamentação. Por isso, algumas mulheres se sen- tem desanimadas nessa época. Emitida pelo hipotálamo, a serotonina está ligada às os- cilações de humor. Sua falta causa alguns tipos de depressão. Como esse desequilíbrio é mais comum no sexo feminino, as pesquisas científicas identificam a proporção de sete mulhe- res depressivas para cada três homens. Enfim, é oportuno lembrar que as emoções existem e não raro contradizem a racionalidade. Portanto, merecem consideração. Para o ambiente construído, isto tem a implica- ção de que o mesmo provoque emoções adequadas - seja ou não compreendido pela razão. A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 115 3.3 O espaço e a expressão na arquitetura Diferentes grupos profissionais ou acadêmicos mantêm definições próprias de Arquitetura, priorizando o aspecto a que mais se afeiçoam. Quem defende a função-abrigo da arquitetura costuma a contrapor em importância prática à arquitetura enquanto arte. Especialistas em conforto ambien- tal se preocupam com a funcionalidade e muitas vezes dei- xam fora a estética. E muitos adeptos do Modernismo perse- guem até hoje uma estética de funcionalidade. Sua obra tem aparência funcional, sem necessariamente sê-lo. A discussão do que é e do que não é funcional remete àquela sobre as necessidades humanas, um conceito um tanto amplo.175 Monteiro Pinto afirma que as necessidades huma- nas não se limitam àquelas cuja satisfaçãoé indispensável à sobrevivência física, mas também inclui as decorrentes da natureza espiritual do humano, que compreendem as necessi- dades psicológicas, artísticas e as ideológicas; daí enquadrar- se a arquitetura como arte, porque se propõe a resolver pro- blemas de ordem espiritual e material indistintamente, atin- gindo os dois campos com amplitude e intensidade bem grandes.176 Esta é uma abordagem mais eqüidistante. Aplica- da à discussão acima, permite duas constatações. A primeira é que a expressividade do ambiente tem sido sistematicamen- te reduzida ao apenas visual. Depois, que a preocupação com o ambiente tem se limitado àquela que é possível de uma perspectiva mecanicista, o corpo humano visto como máqui- na dotada de pouco mais que meia-dúzia de comportamentos padronizados, como os programas de uma máquina de lavar. Dentre as artes, a arquitetura tem especial capacidade expressiva. Com seus elementos espaço, plano, cor, materi- ais, técnicas construtivas, enfim, seus meios de edificação, 175 Este posteriormente ganhou o centro das discussões, tendo em vista o abismo com que se separaram as camadas mais ricas e as mais pobres da população mundi- al, e se tentou entender, de alguma maneira, o que seria o mais importante para estas últimas. As políticas públicas de reforço à segurança alimentar estão nesta linha. Uma das muitas obras de referência a respeito é a de Dieter Nohlen, Lexikon Dritter Welt, Rohwolt, Alemanha (1993). 176 Armando de Andrade Pinto, op. cit. A IDÉIA DE CONFORTO 116 tem possibilidades de atingir faixas de necessidades mais expressivas que as outras manifestações de arte.177 Os dois trechos seguintes, selecionados de Evaldo Cou- tinho,178 reforçam o argumento da expressividade do ambien- te. Inicialmente, o relato de uma experiência positiva: Abso- luto em sua detença, o espaço arquitetônico obriga, a quem quiser conhecê-lo, ir ao seu encontro, inúteis que se mostram as estampas do desenho, de fotografia móvel ou imóvel quan- to à faculdade de trazer a outrem, situado alhures, a sensa- ção que lhe provoca o mesmo espaço quando sentido em grau de presença (...) o contexto oriundo de tantas parcelas, como a luz, a sombra, o ruído, o silêncio, a temperatura, isto é, o espaço interior do edifício, não se deixa representar pelos processos em uso quanto a artes já de representação; salvo os poderes da palavra lírica, os instrumentos de cos- tumeira veiculação se frustram de todo ao se empregarem em transmitir, à distância do original, a cópia em que se pretendia expô-lo em sua plenitude. E em seguida, o relato de uma experiência negativa de- vido ao desconforto térmico: o visitante ou o residente se retrai a qualquer recepção que se lhe dirija à sensibilidade, como faria ele, com os olhos vendados, se o objeto nele se inscrevesse através da vista; depois, certos estados de assi- milação se fertilizam mais ou menos consoante a temperatu- ra, certos espaços se dão melhor em momentos de tepidez ou de frio, segundo a utilização que se opera, e também segundo a qualidade de captação que modula a alma do comparecen- te. Coutinho aponta uma característica única na arquitetura diante das demais formas de arte: o princípio da autonomia do gênero artístico visa a uma realidade – o espaço – e não a uma representação, contrariando o que sucede nas outras artes. Então, explora outros aspectos. O espaço arquitetônico se franqueia em plenitude, onde se equilibram valores a exemplo da luz, da sombra, da temperatura, do silêncio, do 177 Ibid. 178 Evaldo Coutinho, op. cit. A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 117 ruído, etc., os quais são dosados pelo arquiteto que assim lhes confere o tratamento artístico. A respeito do mesmo assunto, Monteiro Pinto exempli- fica: uma catedral gótica transmite toda a misticidade de sua época, e o espaço barroco representa o absolutismo como visão de mundo. Esses valores espirituais não surgiram por acaso: os homens assim o quiseram e desejaram. A arte de um modo geral e em particular a arquitetura traduziram as idéias e concepções da humanidade. A arquitetura contribuiu com seus elementos, para que os homens pudessem pensar como pensam hoje, viver e amar como nós o fazemos. A expressividade da arquitetura se dá mesmo que aplicado o princípio da forma bastante, evitando-se a justa- posição de matérias diferentes no seio da mesma obra, como seria o caso de aromas externos para perfumar as coisas, ou pinturas famosas para enriquecer as paredes, ou ainda obras-primas da música para preencher os ambientes.179 Antes, o espaço será determinativo com respeito aos aromas, a luz e o som, seus integrantes. A natureza reúne figurações literáveis, pictóricas, escul- turais e cinematográficas em si próprias: o sol nascente e o sol poente; o luar; a flor, a selva, o mar, o ermo. Mas Couti- nho insiste em que a arquitetura é realidade, e não represen- tação; portanto, nela quase nada pode representar da nature- za, a não ser em seus ornamentos. Esta opinião pode ser contestada com exemplos de am- bientes construídos. A iluminação penetrando um átrio, atra- vés das folhas suspensas por uma pérgola, pode simular o dinamismo de luz e sombra que caracteriza a mata Atlântica. As flores de um arranjo podem remeter ao passeio pelo cam- po. A corrente obtida ao abrir portas e janelas em cantos opostos da casa, à brisa da praia. Todavia, prevalece a reali- dade sobre a representação. Há uma natureza dual da arquite- 179 Ibid. A IDÉIA DE CONFORTO 118 tura, de uma arte contaminada de realidade, em que esta –a adequação à função – se torna o próprio material artístico.180 Comparado com o produto de outras formas de arte, o produto da arquitetura é, pode-se dizer, vivo. Diz Coutinho que se alguém nele penetra, assim ativando-lhe a criativida- de, não é apenas seu olhar que se introduz no vão, é o seu corpo inteiro que, desde a porta, se converte em valor arqui- tetural, em fonte de ruídos, de sombras, de reflexos, que re- novam o estável de um minuto antes. Observa como o espaço freqüentemente se afeiçoa na medida de interveniências que não foram destinadas a ele, tal no templo católico em que uma orquestração se constitui, com díspares componentes, as velas acesas, as inclinações das pessoas, as vozes, tudo em intencional direção à regência do altar-mor. E a despeito desta diversidade de aspectos, o espaço tende a se tornar um conceito predominantemente visual. É certo que a visão seja um sentido privilegiado para os seres que dependem da caça para sobreviver. Permite-lhes perceber sua presa à distância. Diane Ackerman181 lembra que embora a maioria de nós não cacemos, nosso olhos ain- da são os grandes monopolistas de nossos sentidos. Para provar ou tocar seu inimigo, você deve estar de maneira muito próxima a ele. Para sentir seu aroma ou ainda ouvi-lo, você pode arriscar manter uma distância maior. Mas a visão pode correr pelos campos e sobre as montanhas, viajar atra- vés do tempo. Entretanto, o espaço – mesmo o espaço da casa, de um único cômodo - é comumente abstraído para a esfera do unicamente visual. Por que precisaríamos do distanciamento da visão pa- ra apreender o espaço construído a que já fomos admitidos, no qual já desfrutamos de sua condição protegida? Embora enquanto despertos façamos o tempo todo a apreensão visual do espaço, dentro dele nós pouco aproveitamos da visão, de sua velocidade e acuidade. Percebemos o espaço antes atra- 180 Idéia proposta por Hermann Czech, Komfort: Gegenstand der Architekturtheo- rie? Werk, Bauen, Wohnen 3 (2003). 181 Diane Ackerman, A Natural History of the Senses, Vintage Books, Nova Iorque e Toronto (1990), tradução do autor. A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUALDO ESPAÇO 119 vés do sentido do tato, pois sentamos, deitamos, caminhamos e tocamos objetos e, cercados de proteção, escapamos àquilo que, no mundo externo, poderia se nos precipitar em assalto. Utilizamos ainda o olfato ao respirar, incessante e inevita- velmente, o ar ali confinado, e ainda a audição, pois nos co- municamos verbalmente com as outras pessoas ali presentes. Usamos, sim, a capacidade da visão para olhar por uma janela ao longe. Isto não é privilégio do ambiente construído; a abertura do campo visual é maior fora, que dentro de casa. Entretanto, ao enquadrarmos a vista através de uma janela pequena, parece que compreendemos melhor seu sentido.182 A casa perde, como abrigo, quando tem janelas contínuas – como as fenêtre en longueur advogadas pelo Modernismo, desde que o aço permitiu, nas construções, generosos vãos – ou mesmo paredes inteiras de vidro. Uma casa transparente expõe seus ocupantes ao vazio da vida; para ser confortável deveria preencher-se de algumas pequenas ilusões do mundo. Não é por acaso que se busca um ambiente vazio para a me- ditação. O céu azul de certo modo nos envolve e conforta. Se- gundo Hildebrand,183 em sua hipótese evolucionista do prazer arquitetônico, o bom tempo, com boa visibilidade, privilegi- ou os primatas que dele gostassem, proporcionando-lhes defesa contra os predadores, e ainda resultados fartos na caça. Mas o céu azul parece intocável, mais distante quanto mais subo para dele me aproximar. E é o mesmo céu que conforta meus inimigos. A sensação do espaço construído compreende saber-se envolvido por cuidados, por estímulos, por lembranças, em certo equilíbrio geométrico e ponderal. Por exemplo, por uma iluminação adequada e que informe a hora do dia. Tudo isto torna os ambientes mais aconchegantes. E não se trata de 182 Este assunto é tratado com riqueza por Christopher Alexander, que fala da paisa- gem zen como um dos padrões mais importantes em sua obra A Pattern Language. Para ele, é como aquela vista por alguém que sobe uma montanha por um caminho protegido por alto muro e, já bastante alto, encontra uma rachadura no muro pela qual pode desfrutar da paisagem. Logo, diferente de quem vive numa casa com uma varanda aberta para a mesma paisagem. 183 Grant Hildebrand, op. cit. A IDÉIA DE CONFORTO 120 impressões visuais: são impressões táteis, térmicas, olfativas, mas são reportadas ao cérebro instantaneamente, pelos olhos, através da mensagem visual. Heinrich Engel184 o conclui depois de ter estudado em detalhes a casa japonesa: a arqui- tetura – percebida pelos sentidos - não é mais que uma in- trincada composição de contrastes – vazios e sólidos, luz e sombra, reta e curva, peso e leveza, o natural e o artificial, o áspero e o liso, o transparente e o opaco, o esqueleto e o painel. Mas com muita freqüência estes contrastes são apli- cados de modo inconsciente do seu potencial na expressão estética da edificação. 3.4 Merleau-Ponty, Bachelard e Bollnow O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908 – 1961) escreveu uma extensa Fenomenologia da percepção.185 Ele mesmo afirma, da fenomenologia, que estuda a aparição do ser para a consciência, em lugar de supor a sua possibili- dade previamente dada. Apreendemos naturalmente as coisas, antes que os sen- tidos individuais. Sentimos baseados num juízo previamente formado do mundo, não num testemunho da consciência. Nós acreditamos saber muito bem o que é “ver”, “ouvir”, “sen- tir”, porque há muito tempo a percepção nos deu objetos coloridos ou sonoros. Quando queremos analisar a percep- ção, transportamos esses objetos para a consciência. A aten- ção não muda a maneira como vejo as coisas, ela apenas torna determinado o indeterminado. O juízo é freqüentemente introduzido como aquilo que falta à sensação para tornar possível uma percepção.186 Para Merleau-Ponty, a percepção vai diretamente à coi- sa sem passar pelas cores, assim como ela pode apreender a expressão de um olhar sem pôr a cor dos olhos. Na percep- ção efetiva e tomada no estado nascente, antes de toda fala, o 184 Heinrich Engel, op.cit. 185 Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção. Martins Fontes, São Paulo (1999). 186 Ibid. A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 121 signo sensível e sua significação não são separáveis nem mesmo idealmente. A ciência fracassa ao tentar representar o organismo humano como um sistema físico em presença de estímulos definidos eles mesmos por suas propriedades físi- co-químicas. Não consegue reconstruir sobre essa base a percepção efetiva. Busca, em vão, descobrir as leis segundo as quais se produz o próprio conhecimento. Tal entendimento da percepção tem conseqüências mui- to práticas. As qualidades da coisa, por exemplo sua cor, sua dureza, seu peso, nos ensinam sobre ela muito mais do que suas propriedades geométricas. A mesa é e permanece parda através de todos os jogos de luz e de todas as iluminações. Conheço sua cor de observá-la de perto, à luz do dia. Mas quando a distância é muito grande ou a iluminação tem uma cor própria, como ao pôr-do-sol ou sob luz elétrica, desloco a cor efetiva em benefício de uma cor da recordação, que é preponderante porque está inscrita em mim por numerosas experiências. Merleau-Ponty menciona que os maoris (nati- vos da Nova Zelândia) têm 3000 nomes de cor. Não que per- cebam muito, ao contrário: porque não as identificam quando pertencem a objetos de estrutura diferente. O uso de nomes diferentes para a mesma cor lembra a prática do uso de ordinais para o mesmo número de objetos diferentes, no Japão. A depender da forma ou natureza do que está sendo contado, muda a contagem. Por exemplo, para folhas de papel diz-se ichimai, nimai, sanbai (respectivamen- te, um, dois, três); para conjuntos de folhas issatsu, nisatsu, sanzatsu; para objetos cilíndricos como uma garrafa ou copo ippon, nihon, sanbon; para pequenos objetos como um dado, ikko, niko, sango; para cadeiras, ikkiaku, nikiaku, sangiaku; para animais pequenos como cães, ippiki, nihiki, sanbiki; para animais grandes como um boi, itto, nito, sando; para máquinas ichidai, nidai, sandai; para pessoas hitori, futtari, sannin; para meses, ikkagetsu, nikagetsu, sankagetsu. Para Merleau-Ponty, as propriedades sensoriais de uma coisa constituem em conjunto uma mesma coisa, assim como meu olhar, meu tato e todos os meus outros sentidos são em conjunto as potências de um mesmo corpo integradas em uma só ação. Um fenômeno que se oferece somente a um de A IDÉIA DE CONFORTO 122 meus sentidos – por exemplo, um reflexo, ou o vento leve – tem o efeito de um fantasma. O vento só se aproximará de uma existência real ao se fazer ver revolvendo folhas, ou ouvir assoviando. Merleau-Ponty menciona o pintor Cézan- ne187, para quem um quadro contém em si até o odor da pai- sagem. Ele queria dizer, explica o filósofo, que uma coisa não teria essa cor se não tivesse também essa forma, essas propriedades táteis, essa sonoridade, esse odor, e que a coi- sa é a plenitude absoluta que minha existência indivisa pro- jeta diante de si mesma. As relações entre as coisas ou entre os aspectos das coi- sas são sempre mediadas por nosso corpo; portanto, a nature- za inteira é a encenação de nossa própria vida ou nosso inter- locutor em uma espécie de diálogo. Eis por que, em última análise, não podemos conceber coisa que não seja percebida ou perceptível. Merleau-Ponty cita uma afirmação de Berke- ley:188 mesmo um deserto nunca visitado tem pelo menos um espectador, e este somos nós mesmos quando pensamos nele, isto é, quando fazemos a experiência mental de percebê-lo. O pensamento objetivo rompe o elo entre as coisas e o sujeito encarnado. Compõe o mundo dando preferência às qualidades visuais, porque têm aparência de autonomia, li- gam-se menos diretamente aocorpo. Antes nos apresentam um objeto, do que nos introduzem em uma atmosfera. Mas, na verdade, todas as coisas são concreções de um ambiente, e toda percepção explícita de uma coisa vive de uma comu- nicação prévia com uma certa atmosfera. A última afirmação pode parecer difícil, mas refere-se a um fato muito comum: se retiraram um quadro de um cômo- do que habitamos, podemos perceber uma mudança sem saber qual. Merleau-Ponty enumera exemplos da percepção não concentrada a nenhum sentido, nem fato: a tempestade que ainda não caiu (aliás, prenunciada pelo cheiro de terra, pelo ruído do vento e pela sua intensidade); a periferia do campo visual que o histérico não apreende expressamente, mas que todavia co-determina seus movimentos e a sua ori- 187 Paul Cézanne (1839 - 1906), pintor francês. 188 George Berkeley (1684 – 1753), filósofo e bispo inglês, mentor do espiritualismo. A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 123 entação; o respeito dos outros homens ou essa amizade fiel que eu nem mesmo percebia mais, mas que estava ali para mim. Enfim, é mais fácil aceitarmos sua conclusão de que a percepção natural não é uma ciência...é a “fé originária” que nos liga a um mundo como à nossa pátria... Merleau-Ponty trata indiretamente da poética do espaço, da função como matéria-prima de expressão da arquitetura, ao descrever as obras de juventude de Cézanne, que procura- va pintar em primeiro lugar a expressão, e era por isso que ele a perdia. Explica que o pintor aprendeu pouco a pouco que a expressão é a linguagem da coisa mesma e nasce de sua configuração. Sua pintura é uma tentativa de encontrar a fisionomia das coisas e dos rostos pela restituição integral de sua configuração sensível. É isso que a cada momento a natureza faz sem esforço. Insiste na importância do todo, que se opõe à decompo- sição por partes: exemplifica ser impossível descrever com- pletamente a cor do tapete sem dizer que ela é cor de um tapete, de um tapete de lã, e sem implicar nessa cor um certo valor tátil, um certo peso, uma certa resistência ao som. Do que depreende que a coisa é este gênero de ser no qual a definição completa de um atributo exige a definição do sujei- to inteiro e em que, por conseguinte, o sentido não se distin- gue da aparência total. Observa que no quadro (obra de arte) o sentido precede a existência. Ao contrário, a maravilha do mundo real é que nele o sentido é um e o mesmo que a exis- tência. E o imaginário é sem profundidade, não corresponde aos nossos esforços para variar nossos pontos de vista, não se presta à nossa observação. Ainda, argumenta que os sentidos se comunicam, e ser- ve-se do exemplo da sala de concerto, cujo espaço visual parece mais mesquinho que o espaço sonoro. A música não está no espaço visível, mas ela o mina, o investe, o desloca, e em breve esses ouvintes muito empertigados, que assumem o ar de juízes e trocam palavras e sorrisos, sem perceber que o chão se abala sob eles, estarão como uma tripulação sacudi- da na área de uma tempestade. Os dois espaços só se distin- guem sobre o fundo de um mundo comum, e só podem entrar A IDÉIA DE CONFORTO 124 em rivalidade porque ambos têm a mesma pretensão ao ser total. Os sentidos se comunicam e se abrem à estrutura da coi- sa. Merleau-Ponty oferece extensa relação de exemplos: Ve- mos a rigidez e a fragilidade do vidro e, quando ele se quebra com um som cristalino, este som é trazido pelo vidro visível. Vemos a elasticidade do aço, a maleabilidade do aço incan- descente, a dureza da lâmina em uma plaina, a moleza das aparas. A forma dos objetos não é seu contorno geométrico: ela tem uma certa relação com sua natureza própria e fala a todos os nossos sentidos ao mesmo tempo em que fala à visão. A forma de uma prega em um tecido de linho ou de algodão nos faz ver a flexibilidade ou a secura da fibra, a frieza ou o calor do tecido. Enfim, o movimento dos objetos visíveis não é o simples deslocamento das manchas de cor que lhes corres- pondem no campo visual. No movimento do galho que um pássaro acaba de abandonar, lemos sua flexibilidade ou sua elasticidade, e é assim que um galho de macieira e um galho de bétula imediatamente se distinguem. Vejo o peso de um bloco de ferro que se afunda na areia, a fluidez da água, a viscosidade do xarope. Da mesma maneira, no ruído de um automóvel ouço a dureza e a desigualdade dos paralelepípe- dos, e com razão fala-se em um ruído “frouxo”, “embaçado”, ou “seco”. Se se pode duvidar de que a audição nos dê verda- deiras “coisas”, pelo menos é certo que ela nos oferece, para além dos sons no espaço, algo que “rumoreja” e, através disso, ela se comunica com os outros sentidos (...) todos eles se comunicam através do seu núcleo significativo. Os capítulos que seguem neste livro, escritos sob uma perspectiva analítica, partem de uma decomposição em dife- rentes sentidos com que se experimentam as mesmas coisas. Esta divisão é didática, mas tem importância prática nos dois níveis inferiores do conforto apresentados no cápitulo 1: de alívio da dor e liberdade de outras dores. Já no nível da trans- cendência, os diferentes contextos do conforto se aproximam e se fundem; e dentro do contexto ambiental, em particular, fundem-se os diferentes aspectos do conforto. A casa, incluindo tudo o que diz respeito a ela, é um po- deroso sistema de referência para cada pessoa. Nuances de A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 125 sua percepção espacial – inclusive alusiva às variáveis ambi- entais – participam de sua poética do espaço. Os ambientes não-domésticos, igualmente, regem-se por uma outra poética do espaço, que lhes é peculiar. Um outro importante fenomenólogo é o francês Gaston Bachelard (1884 – 1962). Depois de estudar a fundo o méto- do científico, dedicou um período mais maduro de sua carrei- ra a uma proposta inteiramente diferente – a da fenomenolo- gia. Bachelard descreve a casa como um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os so- nhos de um homem. Nesta integração, o princípio unificador é o devaneio. Entre o morador e a casa há uma relação recíproca que vai além daquela entre o continente e conteúdo: dentro do ser, no ser de dentro, há um calor que acolhe o ser que o envolve. O ser reina numa espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada. Pare- ce que nesse paraíso material, o ser está impregnado de uma substância que o nutre, está repleto de todos os bens essen- ciais...a casa sustenta a infância imóvel em seus braços.189 Bachelard lança a comparação entre o tempo e o espaço, procurando saber qual é de maior importância para a intimi- dade. Conclui que, para conhecê-la, as referências do espaço nos auxiliam mais a memória do que as referências do tempo. Em especial, os locais onde passamos sós. As paixões se in- cubam e fervem na solidão (...) E todos os espaços de nossas solidões passadas, os espaços onde sofremos a solidão ou gozamos dela, onde a desejamos ou a comprometemos, estes não se pode apagar. O ser não os quer apagar, pois sabe que estes espaços de sua solidão são constitutivos. Insiste que têm o valor de uma concha. E sugere, sem dar nomes, uma associação já mencionada mais acima: quando se chega ao último dos labirintos do sonho, quando se tocam as regiões do sonho profundo, se conhecem talvez repousos ante- humanos. Parece muito uma referência ao útero materno. A idéia será retomada no capítulo sobre tato. 189 Gaston Bachelard, La Poetica del Espacio, Breviarios, Fondo de Cultura Econo- mica. Cidade do México, México (1994). Tradução do autor. A IDÉIA DE CONFORTO 126 Para Bachelard, no plano onírico algumas caracterís- ticas ambientais desfavoráveis desaparecem: Antes o sótão podia parecer-nos demasiado estreito, frio no inverno e quente no verão. Masagora em lembrança volto a encontrar no devaneio, e não sabemos por que sincretismo, é pequeno e grande, quente e fresco, sempre consolador. Em sua atividade de busca pela poesia do espaço, opõe-se àquela empreendida pela psicanálise. Se o inconsci- ente está abrigado, a psicanálise quer pôr o ser em movimento mais que em repouso. Chama o ser a viver no exterior, fora dos abrigos do inconsciente, entrando nas aventuras da vida, a sair de si. E, naturalmente, sua ação é saudável. Pois tam- bém é preciso dar um destino exterior ao ser de dentro. Ba- chelard lembra que não devemos esquecer que há um deva- neio do homem que anda, um devaneio do caminho. É a esté- tica yang também apresentada no capítulo 1. Menciona Ge- orge Sand (a amante de Chopin, que usava um nome mascu- lino, e se vestia como tal): “Há algo mais belo que um cami- nho? É o símbolo e a imagem da vida ativa e variada”. Mas Bachelard se declara um pesquisador muito mais da introversão do que da extroversão, ao falar da própria obra: não podemos traçar como conviria a geometria dupla, a dupla física imaginária da extroversão e da introversão. Mas não cremos que ambas físicas tenham o mesmo peso psíqui- co. É a região da intimidade, a região onde o peso psíquico domina, à que consagramos nossas pesquisas. Todos os espaços de intimidade se distinguem por uma atração. Ao fazer esta afirmação, Bachelard sinaliza que a intimidade é convergente, enquanto que a liberdade espacial busca qualquer direção. É a estética yin apresentada no capí- tulo 1. Há uma só casa, mas muitos lugares para onde viajar de avião ou de motocicleta. A centralidade, a convergência é uma das formas em que a casa – corpo de imagens - nos dá uma razão ou ilusão de estabilidade. A outra é na direção vertical, uma vez que a casa é principalmente esta instalação que nos protege pela gravidade, está pousada sobre nós e, no porão, nos aproxima da irracionalidade do profundo. Bachelard propõe esta dire- A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 127 ção e lembra que na nossa civilização, que põe a mesma luz em todas as partes e instala a eletricidade no porão, já não se baixa ao porão com uma vela acesa. Mas o inconsciente não se civiliza. Ele, sim, toma a vela para baixar ao porão. Normalmente, nos contentamos com a vida consciente, acima de um piso que convencionamos como o nível zero. Desenvolvendo o tema da verticalidade, Bachelard acusa uma falha das grandes cidades, em que os apartamentos dos edifícios são sem porão e sem sótão. Chama a isto uma au- sência de valores íntimos de verticalidade. A ela, acrescenta ainda a constatação de falta de cosmicidade da casa das grandes cidades. Lá as casas já não estão dentro da nature- za. As relações da morada e do espaço se tornam fictícias. Tudo é máquina e a vida íntima foge por todas as partes. Enfim, cita Max Picard, para quem as ruas são como tubos de onde são aspirados os homens. Tais relações espaciais fictícias são empregadas oportu- namente por Alberto Vásquez-Figueroa em sua obra Tua- reg,190 quando descreve a chegada do guerreiro à cidade. Depois de uma vida inteira no Saara, sente um choque ini- maginável. Sai do trem a caminhar noite adentro, desorienta- do, perturbado pela profusão de cores, de formas e de odores, de fileiras de luzes, e de como muros de janelas, portas e sacadas fecham quase que hermeticamente os recintos. A cidade impõe ao caminhante sucessivas barreiras à horizonta- lidade que conhecia, tanto é que ele só tem certo sossego, com este respeito, ao encontrar o mar. E a aglomeração de pessoas, esta sim, era a característica mais impressionante da cidade. Em geral, os filósofos deram muito mais importância ao estudo do tempo do que ao estudo da constituição espacial da existência humana. Neste assunto, é notável a contribuição de Bollnow,191 que tentou uma representação sistemática e contextual do problema do espaço vivido. Para ele cada ser humano, na infância como na idade adulta e na velhice, tem 190 Alberto Vásquez-Figueroa, Tuareg, Tradução do espanhol de Remy Gorga Filho, L&M Pocket, Porto Alegre (1988). 191 Otto Friedrich Bollnow (1903 – 1991), filósofo alemão. A IDÉIA DE CONFORTO 128 um conceito de espaço que difere substancialmente da defini- ção dada pelos matemáticos. Aqui serão lançadas algumas de suas principais idéias a respeito do espaço. Sem constrangimento, o matemático arbitra um espaço com n dimensões, seja n igual a 1 (reta), 2 (plano), 3 (espaço tridimensional como o conhecemos), 4 (espaço x tempo dos físicos) ou qualquer número. O espaço matemático é uma construção teórica sobre a qual se fundamentam modelos de complexidade variável, desenvolvidos para solucionar pro- blemas concretos de diversos campos do conhecimento. É comum que tal espaço seja assumido homogêneo - nenhum ponto diferente do outro. Ou ainda, isotrópico, o que significa com propriedades iguais em todas as direções. Por definição, o espaço é contínuo, é infinito. Para cada pessoa, o espaço vivido tem um centro intrín- seco, que faz as vezes de origem de um sistema de coordena- das. A partir dele se marcam distâncias e, com referência ao sistema, se convencionam direções. Mas no espaço vivido, a origem não é um ponto qualquer; tem algum poder gravitaci- onal. Está contida no plano horizontal, que divide o mundo em dois hemisférios: acima fica o céu, o firmamento, fonte de luz e repositório de ar. Abaixo fica a terra, o substrato. Para Nold Egenter, estudioso suíço da obra de Bollnow,192 os pares já sugeridos por Aristóteles (acima e abaixo, à frente e atrás, direita e esquerda) são contra-indicações da homoge- neidade, particularmente se não são meramente interpreta- dos em termos de sistemas lineares abstratos, mas relacio- nados à realidade objetiva. O espaço vivido não é infinito: suas fronteiras são até bem demarcadas. Tampouco é homogêneo. Age sobre as pessoas as estimulando ou impedindo. Condiciona o campo de sua ação. Impede, portanto, juízo de valor. Cada parte tem seu significado. Não é abstração, mas existe juntamente com a pessoa nele. Bollnow menciona Dürkheim, para quem o espaço é meio da realização corporal, anti-forma ou exten- 192Nold Egenter, Otto Friedrich Bollnow’s Anthropological Concept of Space: A revolutionary new paradigm is under way, em http://home.worldcom.ch/~negenter/index.html A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 129 são, ameaça ou defesa, travessia ou permanência, estranheza ou pátria, material, lugar de realização e desdobramento, resistência e fronteira, órgão e adversário deste mesmo na sua realidade momentânea de ser e viver.193 Naturalmente, no confronto com os limites, o tato assume a maior impor- tância. Bollnow desenvolve sua análise sobre uma prova etimo- lógica da delimitação do espaço. O termo em alemão, Raum, de acordo com os irmãos Grimm,194 é derivado do verbo räumen, que significa criar espaço, esclarecer parte da selva- geria com a intenção de fixar-se, estabelecer uma moradia. Isto é arrumar.195 Há uma ênfase convincente nas origens ambientais da noção espaço, que não é um ente matemático. Ele mais se parece com um campo físico-matemático, conceito usado para descrever a distribuição geométrica de uma determinada propriedade como, por exemplo, a distribuição de uma gota de tinta numa bacia. Interessa a Bollnow o movimento duplo fundamental de ir-se embora e voltar que articula o espaço humano. Descre- vendo a experiência de todos os tipos de caminhos, propõe o espaço hodológico, um tipo de espaço que difere, em absolu- to, do espaço matemático. Corresponde à experiência huma- na, de fato, durante o movimento entre dois pontos diferentes de um mapa. É uma experiência absolutamente diversa da linha geométrica que conecta dois pontos. Para Egenter há ainda um conceito revolucionário na obra de Bollnow.O espaço não estava sempre lá, como as- sumimos com o conceito Euclidiano. O espaço, no sentido humano, tem evoluído. Como um conceito ligado à percep- ção e cultura humanas, era originalmente relacionado de perto à moradia e ao estabelecimento e, subseqüentemente, 193 Graf Dürkheim, Untersuchungen zum gelebten Raum. Neue Psychologische Studien. 6. Band. Munique 1932, p. 383, apud Bollnow, op. cit., tradução do autor. 194 Além de seus contos de fundo moral, elaboraram importante Dicionário da Lín- gua Alemã. 195 De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a semelhança supõe a origem germânica de arrumar, provavelmente através do francês antigo arrumer. A IDÉIA DE CONFORTO 130 desenvolvido como extensão da percepção espacial do ho- mem. Observa ainda que os conceitos espaciais eram origi- nalmente limitados a condições ambientais muito restritas. Recomenda aos teóricos da arquitetura uma revisão de modo a considerar este conceito. Bollnow ressalta o balanço polar entre a tensão excên- trica no mundo externo e a tranqüilidade centrada numa casa protegida. De acordo com ele, este balanço é pré-requisito para a saúde humana. E cita Rilke,196 Hesse197 e particular- mente Nietzsche como autores que favoreceram um balanço entre o distante e o próximo, entre o desconhecido e o conhe- cido com respeito à formação da personalidade e ao caráter humanos. No movimento fora da casa, o indivíduo perde suas pe- gadas domésticas, torna-se anônimo. De maneira similar, a paisagem perde individualidade se percebida da janela de um carro em movimento, é pois uma situação em que prevalecem novos valores: eficiência, estado da pista. Isto remete à cita- ção de George Sand, acima. Todas as estradas levam ao fim do mundo. Muitos conceitos simbólicos e filosóficos são relacionados ao caminho, à trilha, à estrada, como condição humana. No Tao, na China, o homem é eterno peregrino que nunca encontra um lugar de repouso permanente. Através do livro, Bollnow enfatiza estes dois aspectos: o ser humano como morador e peregrino, um ser que é cêntrico mas tam- bém excêntrico. Sem menção explícita, aqui surge de manei- ra mais clara uma compreensão da co-existência de yin e yang. Evocando o espaço protetor, Bollnow questiona a postu- ra dos existencialistas (Heidegger, Sartre), que se vêem, co- mo homens, “atirados” ao mundo. Junto com Bachelard, ele considera a casa ... o mundo primário da existência humana. Antes de ser “lançado ao mundo”, o homem é colocado no berço da casa. Nela está o espaço do recolhimento, o âmbito 196 Rainer Maria Rilke (1875-1926) poeta alemão cuja obra é associada ao impressi- onismo. 197 Hermann Hesse (1877 – 1962), poeta e ensaísta alemão, autor de Contos, Lobo da Estepe, Demian e Siddharta, entre outros. A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 131 da calma e da paz, no qual o homem pode largar sua constan- te atenção contra uma possível ameaça, recolher-se e relaxar. Dar ao homem esta paz é a tarefa superior da casa. Pois nem todos os espaços construídos por homens são habitáveis. Exige-se a característica acolhedora – Bollnow utiliza os termos behaglich, derivado da imagem de uma cerca viva ao redor da casa, e gemütlich, de Gemut, coletivo de Mut (cora- gem), como todo o comportamento que desiste da tensão e se entrega à calma relaxante. Isto remete ao roupão, ao pijama e aos chinelos. A intimidade é também um pressuposto. Para que a casa seja habitável, ainda, deve oferecer privacidade: não pode ser um corredor, nem pode ter imensas janelas ou paredes de vidro. Ainda, o espaço não deve ser de tamanho exagerado; antes, deve ser preenchido pelo homem que nele vive com sua vida. Enfim, na origem ambiental do espaço apresentada por Bollnow, percebemos que tem importância primordial o fe- nômeno da gravidade. É por ela que se separam a terra do céu, o substrato do ar, a luz do escuro. Compacta, a Terra é um reservatório de calor ancestral. Com o ar vem ainda o som. E sem o calor do sol e a gravidade não existiria o vento como o conhecemos. Sem a gravidade, enfim, o tato teria sua importância reduzida a muito pouco. 3.5 Congruência entre experiências físicas e memória Emoções reforçam percepções. São como um processa- mento corporal dos fatos percebidos e julgados, assim como os pensamentos são seu processamento intelectual. Se uma emoção aparece sincronizadas aos pensamentos, dá a este poder de convencimento: como se o houvéssemos sentido no corpo. Uma variação disto ocorre quando fatos sensoriais se as- sociam a juízos que temos sobre coisas, não necessariamente relacionadas, tão somente coincidentes. As emoções sofrem um reforço e se tornam experiências torrenciais. Esta é a hipótese de congruência entre os fatos físicos (imediatos) e fatos mentais decorrentes da experiência passada. A IDÉIA DE CONFORTO 132 Todos temos, provavelmente, momentos da experiência pessoal em que a mesma hipótese se comprova. São flagran- tes de êxtase. Se neles ainda restar consciência crítica, pode- rão ser explorados e, posteriormente, estudados. A viagem a um local desconhecido e muito diferente traz experiências marcantes, positivas e negativas, do encon- tro entre expectativas e realidade. Tive uma experiência as- sim quando cheguei ao Japão para cursar mestrado. Do aero- porto de Narita tomei um táxi, com outro colega brasileiro, até a cidade de Tsukuba, num trajeto de uma hora e meia. Pelas janelas, mesmo que não encontrasse de saída as ima- gens mais conhecidas daquele país, o Japão deixava de ser uma realidade distante. O asfalto, estreito mas em bom esta- do, percorria uma série de pequenas propriedades rurais, com suas casas tradicionais de telhados cinza-azulados, as cume- eiras curvadas em elegante convexidade nas pontas. Tinha sido recente o auge da primavera. Via-se ao redor delas árvo- res floridas de pessegueiro, umê e cerejeiras. E a extensão toda era marcada por um contraste presente boa parte do ano, entre o verde vivo dos arrozais, nos vales, e o verde escuro dos pinheiros que cobriam todos os morros. Aqui e ali, imen- sas touceiras de bambu, em curioso convívio com as conífe- ras. A maior elevação no trecho era o monte Tsukuba, um harmonioso par de cumes cônicos, de moderada inclinação, uma histórica fonte de inspiração para os poetas. No destino, achava-se uma cidade de traçado único, construída no final dos anos 60 para abrigar a faculdade de Educação de Tóquio, que convinha estivesse longe da cena política da capital. Através do campus, calçadas e ciclovias, integradas por tú- neis e pontes, num plano independente do tráfego motoriza- do, constituem um respeitável parque linear, unindo blocos de aulas, laboratórios, moradias e comércio. Um trabalho paisagístico admirável. Um de meus anfitriões, durante a primeira visita a templo que tive a oportunidade de fazer, me aconselhou: fotografe logo tudo que puder, porque depois o encantamento se torna rotina. Viagem também é repetição, e também ocorre com mui- tas expectativas, desta vez expectativas de reencontro. Quem não vive no litoral parece idealizar mais suas temporadas de A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 133 praia. Desfruta-as normalmente na companhia de familiares e amigos. Há uma redescoberta a cada vez que, da estrada, se avista de novo o mar. Chegando à orla, ao despir as sandálias há um reencontro tátil com a areia quente e macia. A cada respiração, um reencontro com a maresia. O ruído de fundo difere de tudo a que se está acostumado: é o ruído das ondas quebrando. Próxima do mar a areia é fria e firme; adentrando as águas, camadas de água a diferentes temperaturas se revi- ram, espumantes. As ondas e correntes vão solicitando vários músculos do corpo. Em algum momento, algum sabor da água salgado vai parar dentro da boca. Depois vêm as experi- ências de descansar,secar o corpo sob a brisa estável e os raios do sol, cada vez mais picantes, o entorno claro de areia com um brilho ofuscante. A praia é a mesma; é sempre rica a experiência sensorial. A ida à praia é o reencontro sistemático. Existem ainda reencontros únicos, como da volta a um endereço antigo. Licenciado de meu trabalho na universidade, passei com minha esposa um semestre em Salvador. Alternaram-se um verão de sol intenso quase todos os dias, e um outono impie- dosamente chuvoso, em que a cidade se tornava lamacenta e desordenada. Retornamos a Curitiba em pleno inverno e, do aeroporto, fomos diretamente à universidade, ao Setor de Ciências Biológicas, para assistir à defesa de dissertação de minha irmã. O campus estava árido mas fresco, o céu num tom de azul frio, as folhas das árvores caídas e varridas, um tom cinzento aqui e ali cintilando algum raio dourado de sol. Uma paisagem árida mas acolhedora, a natureza mais retraída e com ela as pessoas. Como eu vinha desacostumado, a pai- sagem tomou cores inesperadas, embora nada apresentasse de incomum. Parece ter-se unido ao evento para realçar-lhe o tom solene. As experiências sensoriais têm, a princípio, valor pesso- al; dão-se num contexto próprio. Dificilmente conseguimos passá-las aos outros sem sua prévia materialização em mol- des conhecidos. Isto dá sentido à arte e às suas formas pré- estabelecidas, com suas convenções: a seqüência de páginas de um livro, os instrumentos da orquestra, ou ainda o retân- gulo da tela. Para transmiti-las a alguém, são necessários A IDÉIA DE CONFORTO 134 elementos que proporcionem a esta pessoa sensações físicas, ao menos na imaginação. A memória anda de mãos dadas com o olfato, e a vida parece insistir nesta lição. Passei muitos sábados da minha infância visitando a chácara de meu avô, distante meia-hora da cidade. A área fora outrora reflorestada com acácia negra, da qual se pretendia obter tanino, matéria prima para tratar o couro num curtume da família. Como o projeto fracassou, ali montou-se uma propriedade para o lazer, e com organização primorosa: um denso bosque de eucaliptos mantinha-na iso- lada das estradas; oposto estava um pomar e, intercalada, uma horta de alface, couve, couve-flor, espinafre, cenoura, salsa, pepino, mandioca, tomates, rabanetes e repolho. Cebo- la, feijão e batatas eram armazenados no paiol, onde também ficavam ferramentas que eu gostava de olhar, penduradas na parede. Defronte ao paiol ficava um jardim de flores colori- das e a residência dos caseiros. Havia ainda três poços de água muito fresca. Uma pequena casa de alvenaria com am- plo beiral servia de sede da chácara. O interior era escuro, pelo revestimento em madeira e pedra, com uma lareira no centro, e uma lareira em pedra; cheirava como os ambientes que passam a maior parte do tempo fechados. Era o local onde aconteciam festas de aniversário, com churrasco e sem- pre muitas crianças. Um gramado servia de campo de volei- bol. Nos sábados comuns, na casa aconteciam lanches, com bolo de chocolate e um café curiosamente muito quente – a água ali parecia ferver a maior temperatura. Gradualmente meus sábados foram se tornando concor- ridos. Visitas à chácara foram se rarefazendo, até a prática desaparecer. Recentemente, retornei àquele lugar depois da mudança mais radical: uma desapropriação consumira casa, pomar, bosque e gramado. Agora, ali passava uma rodovia vários metros abaixo, deixando profundo barranco. Já não havia mais chácara, somente materiais empilhados entre as maiores árvores, tudo coberto pelo mato. Troncos caídos apodreciam, e restos de safras mostravam sinais de invasão e depredação. No entanto, tive uma surpresa única ao encontrar ali os mesmos aromas de sempre. A terra úmida e adubada; a mistura de ervas, mexericas e pêras, hortências, erva-doce, A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 135 couve, milho e esterco seco. Algo que não cheirava mal nem bem, mas bem do seu modo, e me pergunto por quê? É um mistério: tudo dali se foi, mas muito ali ficou. A memória também é tátil. Numa visita à casa dos meus pais, onde vivi dos oito aos vinte e oito, descobri um material quase à prova do tempo: os azulejos do banheiro. Se as tor- neiras se oxidavam e a madeira da janela sofria o efeito da umidade, aqueles pouco se alteraram. Percorri os mesmos arabescos dourados sobre fundo verde, como o fiz durante anos, em minutos distraídos no banho, ou sentado no vaso. Saí disposto a encontrar outros registros do passado. Desci a escada de tábua querendo ouvir cada passo. Fui olhar os li- vros na estante. O pó agitado me levou mais para o fundo do poço das lembranças. Foi sem dúvida esta, para mim, a casa eleita a que se refere Bachelard: o abrigo dos devaneios. Ain- da, a origem das coordenadas segundo Bollnow. A culinária realça as emoções normalmente associadas à reunião entre pessoas. Comer e beber bem na presença de amigos reforça a amizade, e na presença de estranhos desper- ta simpatia recíproca. Não esqueço um almoço em particular, na casa de um amigo, em que apesar dos hóspedes pouco se conhecerem, havia como elementos niveladores uma preciosa feijoada, regada a vinho tinto seco, e na sobremesa pudim de queijo com calda quente de goiaba e raspas de limão e anis. Ao som dos preciosos discos da coleção do anfitrião, um diálogo através de temas aleatórios crescia em euforia. A culinária também realça uma experiência de conforto no ambiente. No período em que vivi em Salvador, saí às quatro da tarde de sábado para almoçar com minha esposa. Eu vinha do encerramento de um curso intensivo e estava desgastado. Decidimo-nos por um resturante único, uma construção em caixa de vidro que se projeta sobre o mar. Ao longe se avista a Ilha de Itaparica. O estabelecimento estava aberto, apesar de vazio. Fomos atendidos pelo maitre. A de- coração com mesas e cadeiras brancas e flores tropicais, ape- sar das marcas do tempo, tinha efeito nostálgico. Durante o aperitivo, a paisagem da janela mudou como que numa de- monstração de efeitos especiais. Formou-se uma tempestade impressionante sobre o mar ao redor. Em questão de dez A IDÉIA DE CONFORTO 136 minutos, nuvens escuras retiraram do céu e do mar seus tons de azul; agora, avistávamos um conjunto de manchas cinza e prata. O ambiente foi se tornando escuro, e logo, por detrás dos vidros, nada podíamos ver, nem ouvir, além das gotas em turbulência. Era como uma tempestade naval sem risco de naufrágio. Chegaram então os pratos, de tempero pronuncia- do. Eram frutos do mar ao molho de ervas. Foi uma mistura marcante de consolo e de prazer olfativo. Cemitérios são locais onde as pessoas choram a falta dos parentes e amigos. Mas mesmo sem reconhecer nenhum no- me dos epitáfios, as pessoas vão sendo convidadas ao lamen- to: o aroma de flores frescas e o odor de uns talos já podres, o verde sóbrio dos ciprestes, o murmúrio do vento entre folhas e fitas coloridas. Cemitérios-parque são implantados junto a paisagens solenes, como um monumento vivo dedicado aos finados. Já nos cemitérios urbanos, o desenho dos túmulos pode formar um todo caótico, dificilmente agradável aos olhos. Assim é o célebre cemitério Pere-Lachaise em Paris. Mas lá, por baixo da cobertura convencional, estão sepulta- das personalidades do mundo das letras como Guillaume Apollinaire, Paul Eluard, Honoré de Balzac, Marcel Proust e Oscar Wilde e Jean de la Fontaine, da pintura como Jacques Louis David, Eugene Delacroix, Max Ernst e Camille Pissar- ro, do teatro como Molière, da medicina como Samuel Hahnemann (criador da homeopatia), da música como Frédé- ric François Chopin, Gioacchino Rossini, Vincenzo Bellini, Paul Dukas, Francis Poulenc, Georges Bizet, Maria Callas, Edith Piaf, Stephane Grappelli e Jim Morrison, e da religião, como Allan Kardec. Qualquer um encontra um nome conhe- cido. Logo, o local emociona quase qualquer visitante. E, novamente, há experiências sensoriaisque superam a esfera pessoal, atendendo critérios universais, pois não são acidentais. Respeitam alguma estética, e têm acesso às tantas definições de arte que existem. A música associada a uma cerimônia potencializa os motivos da celebração – alegres ou tristes – e como que sen- sibiliza os participantes para que tenham uma medida corpo- ral do teor do evento. Um Adagio em sol menor fez a fama de Tomaso Albinoni (que, de fato, escreveu o baixo cifrado, A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 137 sendo que a música é atribuída ao musicólogo Remo Giazot- to)198. Não consta como música escrita com alguma finalida- de prática. Entretanto, num velório, faz brotar lágrimas no mais frio dos presentes. Assim também o Adagio do quarteto de cordas de Samuel Barber – em estilo diferente de Albino- ni, mas de efeito similar. Soou pela primeira vez numa transmissão coast to coast de rádio nos EUA. Foi populariza- da como tema do filme Platoon, sobre a Guerra do Vietnã. Entretanto, já era por décadas a música funeral dos presiden- tes dos EUA. Assim também, numa Sexta-Feira Santa, soa mais impressionante a Missa do Réquiem de Mozart, ou a Paixão segundo São Mateus, de Bach. No Brasil, as cerimônias de formatura nas universidades ocorrem principalmente no verão. Iniciam com o ritual aca- dêmico de outorga de grau. Depois vêm homenagens diver- sas dos formandos a seus mestres, amigos e pais. Quando eu me formei em Engenharia Mecânica, já que eu tocava violi- no, fui incumbido da música de homenagem aos pais, junta- mente com um tecladista. Apresentamos o Largo do Concer- to Il Inverno de Vivaldi, um trecho conhecido e sublime. Músico amador, e bem nervoso, tremi e desafinei. Mas de- pois, pessoas de maior idade entre os presentes vieram me dizer que tinham se emocionado. Encontraram na música uma alusão à sua idade, o inverno da existência. E como emociona a música! Isto não depende de alguma conjunção favorável; pode ser um evento programado. Mas é indispensável um contexto especial, específico. Uma vez, a Orquestra Filarmônica Jovem de Boston, numa apresentação, anunciou a breve despedida de seus integrantes que atingiram a idade adulta e seguiriam pelas orquestras profissionais, entoou as Variações Enigma de Sir Edward Elgar (o mesmo que escreveu as músicas de Pompa e Circunstância para a família real inglesa). Foi uma despedida tocante. Outro contexto pode ser simplesmente um público muito atento. Nas aulas sobre acústica arquitetônica, eu procuro mostrar que os compositores escreviam cientes dos espaços 198 Roland de Candé, As obras-primas da música, vol. 1, Edições ASA, Lisboa (1994). A IDÉIA DE CONFORTO 138 de apresentação de suas obras. Certa vez, numa turma especi- almente responsiva, ouvíamos exemplos de Mozart, Haydn e Beethoven, e deste, a Quinta Sinfonia. Servia para exemplifi- car o ataque (a qualidades de os auditórios permitirem ouvir sons incisivos, como no sol, sol, sol, mi inicial). Eu queria mostrar alguns compassos, mas havia um silêncio oportuno e eu deixei seguir a música, até que tínhamos ouvido todo o primeiro movimento, que durava doze minutos. Percebi a maioria dos estudantes estavam concentrados, sua atenção tomada pela música. Para mim, foi ocasião de arrepios. Aliás, são uma aparição comum quando um recital é ansiosamente esperado e, de fato, os intérpretes conseguem se fazer enten- der. É provável que nenhum outro compositor cause tantos arrepios como Bach. A música como que condensa sentimentos soltos pelo ar. Fui visitar, em Berlim, o Museu do Muro (Mauermuseum zum Checkpoint Charlie, cujo fundador, o sociólogo Rainer Hilde- brandt, faleceu no início de 2004). Tem como tema a divisão da cidade à força, que perdurou por mais de três décadas e marcou a vida das pessoas de ambos os lados. Mantido por uma iniciativa da sociedade civil, é um pouco improvisado, mal ventilado mas denso em informação. São relatos de fugas heróicas, pessoas escondidas nas carcaças de rádios a válvulas, outras enroladas sobre as rodas dentro dos pára-lamas de au- tomóveis, umas transpondo o muro de balão, outras em esca- das dobráveis e retráteis. Fugas bem-sucedidas, outras com final triste, e entre elas, algumas acontecidas dias antes da abertura. Numa sala vazia com cadeiras, a TV exibia um do- cumentário sobre a reunificação da Alemanha em 1989. A primeira metade, em preto-e-branco, retratava o constrangi- mento criado pelo muro, ao som da marcha fúnebre da Sétima Sinfonia de Beethoven. A segunda parte, em cores, mostrava a derrubada simbólica do muro. Pessoas de todas as idades, aglomeradas junto ao portão de Brandenburgo, assistiam a fogos de artifício. Ouvia-se, agora, o coro da Nona Sinfonia sobre versos de Schiller (com magia unes de novo tudo que a moda separou; sob as tuas tenras asas todos homens são ir- mãos). Quem não chorou de tristeza na Sétima choraria agora, de um misto de alegria ao sentimento desconcertante de impo- tência diante do futuro. O sofrimento dos berlinenses parece A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 139 ter sido eterno, mas depois que já passou, seguramos a história num livro, tudo parece tão simples. A Nona Sinfonia de Beethoven, aliás, está no enredo do filme A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrik, em que uma sociedade hipotética usa abomináveis práticas repressivas. A música é usada como veículo condicionador de reações. Com ela, o Estado controla o comportamento delinqüente. Tchaikowski é comumente festivo, ou de um saudosismo cantado em voz alta. Entretanto, tem alguns momentos graves. O Trio em Lá menor, Opus 50, soa melancólico, e algo disto se deve à dedicatória “à memória de um grande artista”. Tchaikowski homenageava o amigo Nikolai Rubinstein, que havia recém-falecido. O fato ocorrera em Paris, durante uma temporada do compositor em Nice. Precipitou-se para alcançar o velório do pianista, fundador do conservatório de Moscou, com quem dividira uma moradia e que se suicidara ao consta- tar sério comprometimento de sua saúde. Eu conhecia uma gravação do final dos anos 60 com Pinchas Zukerman ao vio- lino, Daniel Baremboim ao piano, e sua esposa, Jacqueline Du Pré, ao violoncelo, todos ainda muito jovens. É inevitável a associação à morte prematura da violoncelista, acometida de esclerose múltipla. Por este motivo, a gravação consegue ser ainda mais melancólica. Como a música, encontramos na arquitetura rico acervo destes amplificadores emocionais; serviram para mim, e de- verão servir à maioria das pessoas, pois não acredito que possam ter sido frutos do acaso. O arco do Triunfo em Paris é uma forma gigantesca, muito rígida, e expressa naturalmente poder, ordem, triunfo. O Monumento Lincoln, em Washington, o respeito por um idealista, de engajamento heróico, alçado a símbolo dos direi- tos humanos. O Congresso Nacional em Brasília, por difícil que seja aos brasileiros um distanciamento crítico das diver- gências e despropósitos, impressiona fisicamente por sua elegância, altivez e clareza. Pode ser visto praticamente de qualquer lugar aberto no Plano Piloto, pois eleva-se sobre a paisagem de infinita planeza. Parece um gigante que, orien- tado pelos astros, é plenamente capaz de seguir um caminho A IDÉIA DE CONFORTO 140 de acertos. Acaba enaltecendo os valores cívicos, o poder do Estado, a democracia. Bibliotecas são repositórios da diversidade de pensa- mento, da contribuição original de muitos autores, em áreas distintas e ao longo de vários séculos de produção intelectual. Se temos consciência disto quando as visitamos, parece que os próprios edifícios destas bibliotecas nos dizem mais. É fascinante a visita à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com seu mobiliário antigo e padrões de disciplina que tam- bém remetem a épocas passadas. Proibida a fotocópia e o porte de canetas, os usuários que quiserem transcrever infor- mações só podem contarcom o lápis. Um anacronismo para os aficcionados da informática; já para os cultores da memó- ria, um gesto de respeito. Monumentos e bibliotecas são edifícios institucionais; neles, mas também em qualquer outro edifício existe uma fundamentação emocional que pode ser potencializada pelos recursos expressivos. Num hotel vamos buscar descanso do corpo e da mente. Na casa, o abrigo diário. É o local da in- fância e do crescimento, da existência vegetativa, afetiva, festiva, cultual, lúdica, reprodutiva. A escola e a universidade são locais da formação. O primeiro dia da aula nas escolas alemãs é festejado com o hábito de pais, parentes e vizinhos presentearem as crianças com um chapéu, na forma de cone, preenchido com presentes que marcam o novo início: cane- tas, borrachas, lápis de cor e gizes de cera. Este material todo será consumido. Por muito mais tempo, no entanto, permane- ce o edifício da escola. Este, sim, deveria ser feito para durar para sempre: lembrança do primeiro dia aula, dos primeiros mestres, da primeira classe. Hospitais são locais da cura, própria e daqueles por quem nos preocupamos. E os asilos, da assistência àqueles de menor sorte. As lojas são locais da oferta dos itens essenciais e também dos itens supérfluos, que dão graça ao passar do tempo. Os teatros, cinemas e galerias são locais da busca direta pelo prazer estético. E o clube e o bar, da busca de sociabilidade, de companhia, das paixões. São funções exis- tenciais que nos importam e espalham seu significado pelos espaços que as abrigam, sede de experiências sensoriais, A EXPRESSIVIDADE NÃO-VISUAL DO ESPAÇO 141 beleza e símbolos. O templo, por fim, é um local onde vamos pensar naquilo que resta para além da vida. É provável que passemos pelo mundo mais rapidamente do que todos esses espaços. Deles teremos sido não mais que visitantes. Mesmo se não dispomos dos prédios que gostarí- amos para trabalhar e viver, algo dos nossos valores perma- nece neles. Valores que se manifestam cada vez que nossos sentidos são chamados a perceber tais espaços, tenham sido por nós desenhados ou construídos, ou simplesmente esco- lhidos para locação. Enfim, não lhes somos neutros. A arte é uma didática das emoções. Para Alfredo Lage199 a expressividade não é mais do que o sentimento tornado comunicável graças à sua transposição num mundo objeti- vamente contemplável e onde reinam a ordem, a lógica, a coerência. O contexto ambiental do conforto, se nos seus rudimentos é utilitário e decorre da arquitetura enquanto ins- talação de abrigo, na transcendência é expressivo e se funde ao contexto psico-espiritual, e integra a arquitetura enquanto arte. 199 Alfredo Lage, A revolução da arte moderna, Agir, Rio de Janeiro (1969). Die Augen sind die Wege des Menschen, die Nase ist sein Verstand. (Os olhos são os caminhos do ser; o nariz, seu entendimento) Hildegard von Bingen 4 - O ideal de ar puro e o primitivismo do olfato 4.1 Introdução O filósofo Étienne de Condillac, no século XVIII, lan- çou-se a um exercício extenuante. Queria imaginar quais seriam as impressões de uma estátua que fosse ganhando sentidos, um a um, até tornar-se viva. Iniciou pelo olfato. Decidiu assim porque entendeu ser este o sentido mais primi- tivo, mais fundamental, menos dispendioso para diferenciar um ser vivo de uma estátua. Podemos fechar os olhos e tapar os ouvidos; mas seria difícil suprimir o olfato, pois respiramos o tempo todo. É o primeiro sentido que adquirimos ao nascer: palmadas do parteiro estimulam a primeira respiração. De uma perspectiva evolucionista, o olfato é também um sentido muito antigo, presente nas criaturas aquáticas menos evoluídas. O tipo de informação transmitida pelo olfato é simples: diz sobre a presença e concentração de substâncias químicas A IDÉIA DE CONFORTO 144 no ar. É uma informação percebida quase que estática, pois varia com a velocidade da difusão das moléculas no ar, auxi- liadas ou não por aceleradores como o vento ou o transporte mecânico - se quem acaba de chegar num recinto usa um perfume, isto é sentido mais rapidamente se a pessoa perma- necer caminhando, mas as variações ocorrem de maneira lenta, quase imperceptível. Já com respeito à luz e o som, somos capazes de perceber ínfimas variações no tempo. O olfato é um sentido quase atrofiado nos seres huma- nos, mas nem por isto se justifica não ser aproveitado em sua capacidade, nem receber consideração. Muito se elogia da boca e dos olhos de uma bela mulher, mas dificilmente al- guém encontra poesia em algum aspecto do seu nariz. Entre- tanto, um nariz feio é o motivo fácil de apelidos e caricaturas. Teórico da arquitetura do Modernismo, Richard Neu- tra200 observou que os livros lidos próximo das estantes de bibliotecas da escola retêm acentos olfativos que permane- cem associados com aquelas primeiras experiências na lite- ratura. Os odores do ambiente escolar, assim como muitos outros, estão gravados da maneira mais íntima na memória. Se, anos depois, voltamos ao local, reconhecemos os odores como lembranças mais familiares que as imagens. O mesmo autor identifica uma contradição nos valores comumente atribuídos aos ambientes: O cheiro de um escri- tório vitoriano, coberto de painéis de madeira, pode ser sen- sorialmente mais distintivo para nós que seus perfis estilísti- cos, cornijas, e moldes; e será diferente para materiais alta- mente polidos, nogueira envernizada, ou carvalho encerado e, ainda, cedro ou sequóia sem tratamento. Costumamos estudar interiores de uma perspectiva predominantemente visual. No entanto, Neutra ressalta que a habitabilidade de uma sala de visitas pode ser mais fortemente afetada pelos cheiros do estofamento, do carpete e das cortinas do que pelo ornamento visual da imitação de Chippendale ou Shera- ton. O piso de borracha, as pinturas em esmalte, os vernizes, óleo tung, o cheiro de banana de certos vernizes sintéticos, mesmo variados tipos de poeira, originando um conjunto 200 Richard Neutra, op. cit. O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 145 inesgotável de impressões odoríferas, locais, mas não lem- bradas de forma muito consciente, que devem ser levadas em conta no projeto. E não obstante, os livros de Conforto Ambiental costu- mam deter-se na afirmação de que o ar deve ser puro. 4.2 Mecanismos físicos e fisiológicos Quando a vida ocorria unicamente nos mares, os seres vivos utilizavam a água ao seu redor como meio de troca de informações. As substâncias emitidas por um determinado ser eram diretamente examinadas pelas células sensitivas de outro. Até hoje, o paladar humano opera de maneira seme- lhante. Mas para os seres que deixaram o meio aquático, o principal meio de difusão das moléculas passou a ser o ar. O paladar tornou-se bastante limitado. Os seres humanos dife- renciam entre o salgado, o doce, o azedo e o amargo.201 As outras centenas de nuances encontradas nos alimentos são, na verdade, percebidas pelo olfato: são nuances de aroma. Um número significativo de animais tem no olfato a principal forma de percepção à distância. Isto explica um fato básico da ecologia da Floresta Amazônica. Nela, a diversida- de de espécies de animais é enorme. Entretanto, os indiví- duos de mesma espécie vivem distantes de vários quilôme- tros uns dos outros, numa densidade populacional muito bai- xa. E mesmo assim acabam se encontrando para o acasala- mento. O aparelho olfativo humano compreende, como única parte visível, o nariz. Dentro do crânio encontra-se a cavida- de nasal, que é dividida ao meio pelo septo nasal. Os dois orifícios nasais, assim formados, conduzem até o meio do crânio separados um do outro. Eles terminam unidos com a cavidade bucal. Desta para a faringe, sobem pelo caminho retronasal os vapores dos alimentos ingeridos, causandoas sensações olfativas que associamos ao seu sabor. 201 Discute-se também a inclusão do picante entre os sabores básicos. A IDÉIA DE CONFORTO 146 No fundo de cada cavidade nasal, as moléculas atingem a membrana olfativa, do tamanho de um selo postal, recober- tas de um tecido amarelado e cinzento. Cada membrana con- tém um número estimado em 100 milhões de células recepto- ras. Pode parecer muito; no entanto, um cão pastor alemão tem dez vezes mais células receptoras. Isto explica em parte a acuidade olfativa do cão, e a importância deste sentido para ele, que tudo quer cheirar; reconhece seu dono pelo olfato, mais que pela visão. As células receptoras são, na verdade, neurônios com uma terminação especializada em cílios. Estes atingem a fina camada de muco que recobre a membrana e tocam as partícu- las que foram inaladas, para analisar as substâncias presentes. Na outra extremidade há o axônio que transmite a informação ao sistema nervoso. Tais células duram poucos dias e vão sendo substituídas por outras mais novas, as basais. Cada célula receptora está conectada por um neurônio olfativo primário aos dois bulbos olfativos do cérebro. Os neurônios olfativos primários passam por orifícios da placa cribiforme, um osso muito fino na frente da cavidade crania- na onde se localiza o bulbo olfativo. Os neurônios primários se unem em estruturas conhecidas por glomérulos e ali en- contram os neurônios secundários. As fibras nervosas do aroma, então, percorrem um com- plexo caminho através do restante do cérebro, particularmen- te através de suas porções consideradas as mais primitivas do ponto de vista evolutivo. Algumas fibras atingem o hipotá- lamo, que é o centro que controla o apetite, o medo, a raiva e o prazer, enquanto outras continuam até o hipocampo, que regula a memória, ou descem até a base do crânio, onde são reguladas funções tais como a lembrança de respirar. As ligações nervosas explicam por que os odores conse- guem despertar respostas emocionais tão fortes. Marcel Proust descreve, no início de sua trilogia À procura do tempo perdido, a sensação incomum depois que sua mãe serviu-lhe madelaine (um bolo leve como um pão-de-ló amanteigado), molhado no chá. O aroma desencadeou-lhe um tremor no corpo: um prazer delicioso tinha invadido meus sentidos, O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 147 mas individual, isolado, sem dar pistas sobre sua origem. Proust observa ainda que esta essência não estava nele, era ele próprio. Deixei de sentir-me medíocre, acidental, mortal. Esforçando-se em explicar de onde vinha uma alegria tão poderosa, percebia algo que deixa seu local de repouso e tenta erguer-se, algo que estava oculto como uma âncora a grande profundidade. De súbito, consegue associar a lem- brança ao sabor das migalhas de madeleine que, nas manhãs de domingo em Combray sua tia Léonie costumava dar-lhe, molhando-a antes em sua própria xícara de chá real ou de flor de lima. Ao fim da narrativa desta experiência sensorial que lhe abriu as profundezas da memória para reencontrar sua infân- cia, Proust observa que quando de um passado remoto nada subsiste, depois que as pessoas estão mortas, as coisas des- truídas, ainda, só, mais frágeis, mas com mais vitalidade, mais imateriais, mais persistentes, mais crédulos, o aroma e o sabor das coisas continua por longo tempo, como almas, prontos para nos lembrar, aguardando e esperando por seu momento, entre as ruínas de todo o resto. Provavelmente não foi o sabor doce que liberou a lem- brança de coisas do passado, da casa de sua tia. Foi, antes, o cheiro levemente rançoso que estimulou o hipocampo e o hipotálamo do escritor. Diane Ackerman202 observa que, nes- te caso, entender de neurociência ajuda a melhor desfrutar um clássico da literatura. O mecanismo que nos permite a diferenciação de um aroma do outro é bastante complexo. Até recentemente, des- cobertas significativas têm sido feitas, mudando a explicação vigente para o funcionamento do olfato. Nos anos 30, foram encontradas áreas especializadas, nos bulbos olfativos, para diferentes aromas, comprovando especialização dos receptores. Nos anos 60, John Amoore, do Departamento de Agricultura dos EUA, identificou a forma das moléculas como um fator primordial para seu reconheci- mento. Propôs cinco classes de odores com formas molecula- 202 Diane Ackerman, op. cit. A IDÉIA DE CONFORTO 148 res específicas: canfóricos (forma esférica), muscais (forma de disco), florais (forma de papagaio), mentados (forma de cunha) e etéricos (forma de bastão). Outras duas classes de odores ainda, pungentes e pútridos, tinham como marca não a forma, mas as cargas elétricas de suas partículas. Amoore acreditava em pelo menos trinta odores primários. As classificações de Amoore funcionam como generali- zações grosseiras, mas não revelam tudo. Em 1991, pesqui- sadores da Universidade de Columbia, Drs. Richard Axel e Linda Buck, identificaram uma família de genes que carrega mapas de proteínas receptoras de odores. É uma família enorme. Em março de 1999, Linda Buck e Betina Malnic, da Harvard Medical School, e ainda Junzo Hirono e Takaaki Sato, do Life Electronics Research Center em Amagasaki, Japão, acreditaram ter decifrado o mistério pelo qual o nariz pode reconhecer mais de dez mil odores.203 Por seu longo e valioso trabalho para desvendar o olfato humano, os pesquisadores Richard Axel e Linda Buck rece- beram em 2004 o Prêmio Nobel da Medicina. Neurônios individuais de ratos foram expostos a uma sé- rie de odoríferos. Usando uma técnica chamada de imagem a cálcio, os pesquisadores detectaram quais células nervosas estariam sendo estimuladas por um determinado odor. Quan- do uma molécula do ambiente se combina ao seu receptor odorífero, canais se abrem nas membranas dos nervos e os íons de cálcio são neles depositados. Isto gera uma carga elétrica que viaja através do axônio como um sinal nervoso. A técnica citada mede o influxo de íons de cálcio. O sentido do olfato nos mamíferos é aparentemente ba- seado numa abordagem combinatória para reconhecer e pro- cessar odores. No lugar de dedicar um diferente receptor para cada substância, o sistema olfativo utiliza um alfabeto de receptores para criar uma determinada resposta odorífera enviada aos neurônios no cérebro. É algo semelhante à lin- 203 Michael Berry, An article on flavour, Sciencenet, (1994), disponível em http://www.sciencenet.org.uk/database/soc/senses/s00129b.html O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 149 guagem escrita, que combina caracteres para formar palavras, ou à música, que combina notas para formar canções, ou ainda a um código genético, onde os quatro nucleotídeos (adenina, citosina, guanina e timina) permitem um número quase infinito de combinações de seqüências genéticas. Se um odor excita um neurônio, o sinal viaja ao longo do axônio da célula nervosa e é transmitido aos neurônios do bulbo olfativo. Esta estrutura, localizada à frente do cérebro, é que transforma os sinais químicos em estímulos nervosos. Pesquisadores mostraram também que mesmo pequenas mudanças na estrutura química ativam diferentes combina- ções de receptores. Assim, o octanol - de cheiro parecido ao das laranjas – tem um composto similar – ácido octanóico – que cheira a suor. Descobriu-se que grandes quantidades do composto químico ativam uma maior variedade de receptores que quantidades menores do mesmo produto. Isto pode ex- plicar por que um mesmo composto pode, em pequenas quantidades, ter cheiro floral e, em grandes quantidades, ter cheiro pútrido.204 4.3 Comodidade e adequação No capítulo 1, foi proposta a decomposição do conforto ambiental em três valores essenciais: comodidade (resumi- damente, a ausênciade dor), adequação (ao desempenho produtivo) e expressividade (elevação de tudo em direção ao prazer). Deste capítulo até o final, cada sentido retratado será objeto de um estudo quanto a cada um destes valores do con- forto ambiental. O ar é composto de quase quatro quintos de nitrogênio e cerca de um quinto de oxigênio. O restante das substâncias aparece em pequenas percentagens: vapor de água, argônio, dióxido de carbono, neônio.205 O olfato nos proporciona co- 204 John C. Leffingwell, Olfaction – Update No. 5, Leffingwell Reports, Vol. 2 (No.1) (2002). 205 Segundo James Lovelock, em Das Gaia-Prinzip – Die Biographie unseres Planeten, Insel Taschenbuch, Frankfurt (1993), se não fosse a existência da vida sobre a terra, sua atmosfera seria composta de 98% de CO2, 1,9% de N2, 0% de O2 e 0,1% de Ar, com temperaturas superficiais de 240 a 340 °C. A IDÉIA DE CONFORTO 150 modidade quando podemos dispor de um ar puro, livre de produtos nocivos à saúde. Ainda, o ar deve ser livre de odo- res desagradáveis. Comumente, tais odores são traços de substâncias em dosagens ínfimas, mas suficientes para serem percebidas. Para a qualidade do ar, não há diferenças significativas entre a comodidade e a adequação, pois nem no repouso, nem no trabalho toleramos substâncias prejudiciais à saúde. Mas adequação pode significar coerência entre o odor e a tarefa planejada. Se o cheiro de comida dentro de casa é usual, no ambiente de trabalho ou estudo é inadequado – a não ser que o local de trabalho seja uma lanchonete ou restaurante. Por outro lado, no ambiente de trabalho, toleramos alguns odores que não são aprazíveis dentro de casa. O pintor se acostuma às tintas e solventes; o açougueiro à carniça; o enfermeiro ao éter, e o lixeiro, ao lixo. Odores não necessariamente agradáveis podem ser por- tadores de informação útil e até servir de alarme, desencade- ando reações urgentes. Um incêndio é detectado pela olfação; o gás encanado (normalmente inodoro) recebe adição de gás sulfídrico - típico odor a ovo podre – para que vazamentos sejam rapidamente reconhecidos. Na Universidade de Yale, nos EUA, os pesquisadores do Centro de Psicofisiologia argumentam que o cheiro de maçãs pode reduzir a pressão sanguínea em pessoas sob estresse e pode prevenir ataque de pânico. Já a lavanda poderia desper- tar o metabolismo e tornar alguém mais alerta. Fragrâncias adicionadas à atmosfera podem aumentar a velocidade de digitação e a eficiência no trabalho, em geral. A qualidade do ar nos ambientes internos é especialmen- te importante, por ao menos três razões. Primeiramente, porque neles as pessoas passam a maior parte do seu tempo. Depois, porque o ar interno é a soma do ar externo com alguma coisa – não a subtração, como pode parecer. A pre- sença das pessoas dentro dos ambientes fechados é um fator suficiente para que a qualidade do ar vá piorando com o tem- po. E os filtros de aparelhos de ar condicionado, sem o cui- O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 151 dado da limpeza periódica, contaminam, mais que purificam, o ar insuflado. Ainda, além dos poluentes já presentes no ar externo, o ar interno ainda tem sua qualidade afetada por uma série de poluentes exclusivos, como os provenientes de móveis, re- vestimentos, colas e tintas. Por último, sendo limitado o volume de ar dentro dos ambientes, a concentração de poluentes facilmente atinge níveis muito mais altos que no ar externo. Nas regiões quen- tes, este problema é compensado pela prática da ventilação intensa. Já nas regiões frias, a infiltração por esquadrias de má qualidade, se prejudica o conforto térmico, pode auxiliar a qualidade do ar. Ocorre mesmo na ausência de vento, pois o ar quente dos interiores, mais leve, é trocado naturalmente pelo ar frio do lado de fora. E o problema se agrava à medida em que se afirmam novas tendências de construções com maior isolamento térmico, tanto para prevenir as perdas de calor (ambientes aquecidos), como de frio (ambientes refrige- rados). A qualidade do ar pode vir a ser preocupante nas cama- das mais pobres da população. O fator mais simples é o ta- manho reduzido dos cômodos, portanto com menor volume de ar, maior densidade de pessoas e de fontes de poluição. Além disso, concorrem fatores comportamentais relaciona- dos. Uma pesquisa realizada em domicílios com crianças entre zero e cinco anos de idade revelou uma tendência de maior percentual de fumantes na família, assim como de mães fumantes, na população mais pobre.206 Em regiões ru- rais, em diversos países, o uso de fogões a lenha e da lampa- rina a querosene ou Diesel é um reconhecido fator de má saúde pulmonar. Na ausência de fontes de poluição importantes no ambi- ente, é pouca, quase ínfima a renovação de ar necessária para a eliminação dos resíduos da respiração. Todavia, entre o 206 Carlos Augusto Monteiro e Clarissa de Lacerda Nazário, Evolução de condicio- nantes ambientais da saúde na infância na cidade de São Paulo(1984-1996) Rev. Saúde Pública vol.34 n.6, supl. São Paulo ( 2000). A IDÉIA DE CONFORTO 152 ambiente hermeticamente fechado e o ambiente levemente arejado existe uma diferença crucial. Quanto ar é necessário renovar? Com as mãos sob as na- rinas, recebendo o sopro que deixa os pulmões, é fácil esti- mar empiricamente que o influxo de ar externo deve ser algo em torno de meio litro por segundo, por pessoa. Entretanto, dado que o ar puro se mistura ao viciado, e o ar que sai con- tém ar puro que recém entrou, é necessário majorar a quanti- dade estritamente necessária à respiração. E se não é possível, nos ambientes, controlar a presença de outras fontes de poluição, é necessário ventilar ainda mais, em medida suficiente a diluí-la até que deixe de constituir fator de ameaça ou incômodo. Embora não seja considerada um poluente, a umidade do ar no ambiente construído é um dos principais fatores que se deve manter numa faixa razoável. Além da decisiva influên- cia sobre a sensação de frio ou calor, como explicado no capítulo sobre conforto térmico, um valor muito alto de umi- dade propicia o crescimento de fungos, que podem desenca- dear reações alérgicas nas pessoas e também danos materiais. Já um valor muito baixo de umidade predispõe ao resseca- mento das mucosas e facilita a transmissão de doenças. As pessoas são fontes de vapor de água no ambiente, assim co- mo as plantas e alguns processos domésticos: cocção, lava- gem e higiene pessoal. Para que o excesso da umidade seja eliminado, é necessária uma ventilação em torno de cinco vezes mais intensa que aquela necessária para respirar. São necessários próximo de três litros por segundo por pessoa. Este mesmo fluxo de ar é facilmente obtido pelas frestas das portas e janelas, na presença de vento – que não deve obriga- toriamente ser contínuo, podendo ser intermitente. O ar pode reter tanto mais vapor de água, dissolvido, quanto mais alta for sua temperatura. Atingido um limite – o ponto de saturação–, seja pelo aumento da produção de vapor ou pela diminuição da temperatura, forma-se água em gotícu- las. Isto ocorre nas estações frias. As pessoas fecham as jane- las para se proteger, e o vapor de água que expelem ao respi- rar não tem como sair. O teor de umidade no ar sobe até o O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 153 limite, quando então o vapor de água se condensa nas partes mais frias: os vidros. Aliás, durante uma chuva, é o que ocor- re no interior de um automóvel: com as janelas fechadas e suas vidraças refrigeradas pela água que escorre por fora, a umidade se condensa em gotículas e prejudica a visibilidade. Nas edificações, pontos em que é comum a conden- sação de umidade localizam-se junto às quinas de paredes externas, falhas, adelgaçamentos e outros locais mais sujeitos a um resfriamento localizado.Esta dinâmica do vapor de água impõe um desafio especial às edificações em que se pretende manter uma temperatura diferente da do meio exter- no, seja através de isolamento térmico, seja através de aque- cimento artificial. Em superfícies muito frias, como nos balcões frigorí- ficos das lojas, a umidade do ar sofre condensação, deixando as superfícies molhadas. O mesmo acontece na face interior de paredes ou esquadrias externas que sejam delgadas ou de alta condutividade térmica. Se forem impermeáveis, como o vidro, não haverá conseqüências aparentes para a saúde. No caso de uma parede permeável, o vapor de água a atravessa, por difusão, do meio de maior concentração para o de menor concentração. Normalmente, o meio de maior con- centração de vapor é o meio interno das edificações. Buscan- do as concentrações menores do lado de fora, o vapor encon- trará porções frias, que podem ficar encharcadas. Se for uma parede espessa ou de um material de baixa condutividade térmica, como o concreto celular alveolar, a profundidade em que o vapor vira água estará mais próxima da superfície ex- terna. Em geral, as paredes externas que, ao longo de sua superfície, apresentarem descontinuidades materiais, sofrerão o efeito concentrado da condensação. É o caso de uma parede delgada de tijolos, em que a umidade condensa em seus re- juntes feitos com argamassa. Nas cidades com estações frias, as paredes externas permeáveis em ambientes mal ventilados sofrem infiltração de umidade com condensação que, além de deixar manchas, pode soltar o revestimento externo, como por exemplo as pastilhas, comprometendo a segurança das pessoas. A IDÉIA DE CONFORTO 154 Ao lado da umidade, um importante fator de prejuízo da qualidade do ar são processos de combustão ocorrendo den- tro de ambientes fechados. Na presença de fumantes, o valor mínimo de ventilação, por pessoa, é de quinze litros por se- gundo. Outras formas de combustão como fogões, aquecedores a gás e lareiras a lenha consomem razoavelmente mais ar fresco que o cigarro e requerem uma abundante ventilação. Ao lado do dióxido de carbono, que emitem em volume mui- to superior àquele normalmente produzido pelas pessoas, contaminam o ar com monóxido de carbono (CO). Este é resultado de uma combustão incompleta – em que falta oxi- gênio. É o que ocorre quando um aquecedor a gás permanece ligado, num cômodo fechado, sem a ventilação necessária. O CO atinge o sangue e ali prejudica as condições de transporte de oxigênio pelo corpo. Um agravante é o fato de este gás ser inodoro. Mata por asfixia sem que as vítimas tenham tempo de reagir. Poluentes comuns em processos de combustão, ainda, são os óxidos de enxofre (causadores da chuva ácida); os óxidos de nitrogênio (causadores de diversas condições pato- lógicas, como a supressão da imunidade, hipertensão e cân- cer); os materiais particulados (descritos abaixo), especial- mente na combustão de sólidos, ou óleos pesados; os hidro- carbonetos, dos quais ao menos os compostos benzênicos têm efeito cancerígeno; e o ozônio, um gás irritante que apa- rece como sub-produto dos poluentes da combustão na pre- sença da luz solar. Trata-se do mesmo gás que hoje faz falta, na estratosfera, onde normalmente exerce o papel de filtro das radiações ultravioleta do sol, nocivas à saúde humana. Os chamados compostos orgânicos voláteis (COV) estão presentes no estado gasoso à temperatura ambiente. Normal- mente, originam-se de duas fontes: as emanações de materi- ais de superfícies, como espumas e plásticos, e os produtos de limpeza e outros químicos de uso doméstico, como as tintas e os pesticidas. Os COV mais comuns são o benzeno, o tolueno, o xileno, o cloreto de vinila (VC), o naftaleno, o cloreto de metileno e o percloroetileno. Entre eles estão ainda centenas de outras substâncias, das quais se tem descoberto O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 155 efeitos irritantes das vias repiratórias e mucosas e, a longo prazo, uma eventual influência cancerígena. O PVC – cloreto de polivinila – tem uso disseminado nos interiores de residências e escritórios: em filmes para a proteção de alimentos, persianas, base de carpetes, móveis para jardim, fechaduras, janelas e forros. Expressiva resistên- cia ao uso do PVC surgiu na Alemanha, apesar de ser o país sede de importantes indústrias químicas: existe uma preocu- pação pública por se tratar de um produto perigoso na fabri- cação e no uso. O PVC exala vapores que contém substâncias comprovadamente cancerígenas e que, no ambiente não ven- tilado, podem atingir concentrações críticas. No evento de um incêndio, a queima do PVC produz vapores tóxicos, além de acelerarem a degradação das estruturas de aço por conte- rem cloro. Diversos municípios alemães proibiram o uso do PVC em obras públicas.207 Nos Estados Unidos, é vedado o uso de PVC nas rotas de evacuação dos edifícios em caso de incêndio. Os laminados e aglomerados desempenham papel fun- damental na indústria de móveis, e podemos diferenciar três classes de produtos: o compensado (lâminas compostas de chapas de madeira superpostas e coladas); os aglomerados (lâminas compostas de serragem aglomerada por meio de cola), e o MDF - medium density fiberboard (tecnologia que permite a confecção de peças curvas, leves e bastante resis- tentes). Os aglomerados têm mais cola que os compensados, e o MDF chega a ter cinco vezes mais cola que os aglomera- dos. É o produto do qual são feitos hoje os móveis em sua maioria, revestidos de delgadas lâminas de madeira natural. Nem o compensado, nem o aglomerado e muito menos o MDF devem ser queimados em lareira, forno caseiro ou chur- rasqueira, mesmo que seja na melhor intenção de aproveitar os resíduos. Se o compensado expõe poucas superfícies de cola, móveis com aglomerados e MDF são por vezes deixa- dos sem lâmina de revestimento na sua face interna e eventu- almente na face externa. Tais partes exalam vapores originá- 207 Manfred Fritsch, Handbuch des gesunden Bauen und Wohnen, Dtv Taschenbuch Verlag, Munique (1996). A IDÉIA DE CONFORTO 156 rios da cola, nos quais o formaldeído é o principal compo- nente a considerar. É comprovado causador de mal-estar: irritabilidade das mucosas, olhos e garganta, e dores de cabe- ça, e desconfia-se do efeito cancerígeno a longo prazo. Con- siderado o mais importante poluente dos interiores, o formal- deído é um gás incolor com cheiro forte, embora sua concen- tração seja normalmente baixa ao ponto de não ser percebido. Outras fontes de formaldeído incluem carpetes, papéis de parede decorativos e muitos outros produtos domésticos.208 É extensa a relação dos solventes utilizados em tintas, colas, aglomerantes de pranchas utilizadas na estrutura e no revestimento de móveis, e ainda produtos de limpeza. Acon- selha-se não utilizar produtos novos sem que estejam testados e aprovados, e consultar informações ambientais de países em que estejam em uso há mais tempo e a discussão dos efei- tos, portanto, esteja mais avançada. Muitos produtos são pro- ibidos e deixam o mercado e, todavia, permanecem presentes nos ambientes. Especialmente em reformas e restauros, em que revesti- mentos são arrancados e pisos e paredes são lixados, tais materiais ressurgem nos ambientes. Durante a obra, a ação mecânica das ferramentas deixa no ar substâncias sólidas potencialmente nocivas. São classificados como materiais particulados – um grupo abrangente por ser identificado pelo critério de tamanho, e não pela composição química. São sólidos suficientemente leves para permanecer em suspensão no ar, e pequenos de modo a conseguirem penetrar nos alvéo- los dos pulmões. Além do pó originário do ambiente externo, diversos materiais presentes nos interiores são fontes de par- ticulados. Entre eles, a fumaça do cigarro, dos fogões a lenha e de outros tipos de queimadores de combustível sólido e líquido.No pó há possibilidade de encontrar-se pequenas par- tículas de tecidos, madeira e comida; esporos de fungos, pó- len, fragmentos de insetos, pêlos e cabelos, e partículas de fumaça, tinta, nylon, borracha, fibra de vidro e papel. 208 Peter du Pont, &John Morrill, Residential Indoor Air Quality and Energy Effi- ciency, ACEEE, Washington (1989). O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 157 Dois materiais de construção que foram intensamente utilizados nas últimas décadas são o amianto (presente nas telhas e nas massas corridas) e os aglomerados de papelão (nos forros de absorção acústica). Quando manipulados, libe- ram partículas que podem ser inaladas e produzir enfermida- des do aparelho respiratório. A proibição do amianto em obras novas poderia provocar a reação de arrancá-lo de onde já está instalado. É neste momento que pode se tornar perigo- so: telhas jogadas ao solo se partem, formando nuvens de partículas. Outro grupo de contaminantes a ameaçar o ar ambi- ente é o dos agentes biológicos. Alguns são visíveis, facil- mente atribuídos a condições deficientes de higiene, e outros não, podendo permanecer insuspeitos por muito tempo. Cães e gatos de estimação têm potencial para desen- cadear alergia das vias respiratórias. Os agentes causadores – chamados de alergógenos -, especialmente em se tratando de gatos, são pequenos de modo a permanecer por muito tempo em suspensão no ar, e são transportados pela roupa e pelos cabelos de quem vive junto dos animais para os outros ambi- entes. Neles, a irritação de pessoas sensibilizadas é imediata. Quando os cães têm liberdade de permanecer sobre pisos de carpete do interior das casas, a concentração de alergógenos chega a ser cem vezes superior àquela verificada em assoalho de tábuas. Os ácaros são artrópodes incluídos na ordem Acari da classe Arachnida. São aparentados com as aranhas e escorpi- ões e distinguem-se facilmente dos insetos por apresentarem quatro pares de patas. Os mais importantes do ponto de vista do conforto am- biental são os Dermatophagoides, que vivem nas frestas do assoalho e nos cantos dos ambientes. Suas fezes apresentam uma substância causadora de alergia aos seres humanos, que se manifesta como eczema, asma ou rinite crônica. São bem maiores que os resíduos de pelos de gatos e não se mantêm em suspensão. É nas frestas do assoalho e entre os fios dos carpetes que se acumulam, assim como nas roupas de cama e nos outros tecidos usados no revestimento de móveis. Os A IDÉIA DE CONFORTO 158 ácaros se alimentam do material que cai sobre aqueles subs- tratos como, por exemplo, os resíduos de cabelos e pele das pessoas. Ao sentar-se ou deitar-se sobre o chão, roupas de cama e estofados, e ao varrer ou aspirar o piso, as pessoas tomam contato com os resíduos de ácaros. Locais de risco incluem bares e danceterias, auditórios de teatros, salas de conferências e de concertos e cinemas. Por motivos acústi- cos, tais salas são revestidas em carpete, onde se acumulam restos de comida (principalmente pipoca). Muitas não rece- bem radiação solar alguma, apesar de seu componente ultra- violeta poder auxiliar na desinfecção. Se a sujeira não é vista, provavelmente é inalada. Ao menos duas espécies de ácaros atacam penas de galinhas, os Syringophilus e Analgesidae. Travesseiros e almofadas de penas, outrora apreciados pela sua agradável consistência, são hoje evitados em virtude dos ácaros. A lim- peza com aspirador de pó e produtos químicos – acaricidas – reduz a concentração de ácaros de acordo com testes labora- toriais, mas os resultados não são comprovados na prática.209 A redução da umidade através de desumidificadores ou venti- lação mecânica é outra maneira de se combater a sua propa- gação; todavia, é tarefa dispendiosa. A renovação de col- chões e travesseiros rende resultados somente temporários. A providência mais eficaz é cobri-los com um tecido permeável ao vapor, porém impermeável aos ácaros. Roupas de cama devem ser lavadas, pelo menos, a 55°C, temperatura suficien- te para matar os ácaros. As capas de proteção devem ser es- covadas a cada troca de roupa de cama. Diversos outros áca- ros podem causar danos às pessoas, diretamente como os carrapatos, e indiretamente, como um ácaro que ataca somen- te abelhas.210 Na Escandinávia, no final do século XX, houve um acúmulo de queixas com respeito à qualidade do ar dentro das edificações. O fato foi atribuído à adoção, desde a metade do século, de um superisolamento térmico das mesmas, vi- 209 Ashley Woodcock, Adnan Custovic ABC of allergies: Avoiding exposure to indoor allergens, British Medical Journal 316, pp.1077-1080 (1998). 210 Carlos H.W.Flechtmann, Ácaros de importância médico veterinária, Bibl. Rural, Livraria Nobel, São Paulo (1985). O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 159 sando à economia de energia. A renovação do ar era limitada a um valor muito baixo. O resultado foi de prejuízo da saúde das pessoas, e isto está relacionado, entre outros fatores, à ação de fungos. Estes seres, que não são animais nem vegetais, mas constituem um reino à parte, entram nas edificações pelas aberturas como portas e janelas, pelas tomadas de ar dos sis- temas de aquecimento, ventilação e condicionamento de ar, através de materiais de construção contaminados, ou ainda trazidos por pessoas e animais. Se condições de elevada umi- dade persistirem por um tempo suficiente, pode ocorrer cres- cimento de fungos e esporulação. Isto ocorre, por exemplo, pela infiltração de água durante uma tempestade, ou ainda devido à condensação da umidade (descrita acima). Vasos de flores nos interiores das edificações, úmi- dos e protegidos da radiação solar, oferecem condições pro- pícias para o crescimento de fungos. O mesmo ocorre dentro das instalações de ar condicionado, que devem ser objeto de manutenção regular e cuidadosa. No maior levantamento feito nos EUA sobre concentra- ção de fungos no ar interno,211 com medições concomitantes do ar externo, Cladosporium, Penicillium e Aspergillus fo- ram os fungos mais comuns. Imóveis que tenham sofrido danos por água mostravam médias populações, e a presença de sinais visíveis de cresci- mento fungal indicava, sim, grandes populações de fungos e múltiplas toxinas de origem microbial, assim como possíveis patógenos,212 com freqüente ocorrência de pneumonite com hipersensibilidade. Apesar desta associação, nenhum fungo foi identificado como principal responsável pelo surgimento da doença. 211 Brian G. Shelton, Kimberly H. Kirkland, W. Dana Flanders, e George K. Morris Profiles of Airborne Fungi in Buildings and Outdoor Environments in the United States Applied and Environmental Microbiology, Vol. 68, No. 4, p. 1743-1753 (2002). 212 J. Peltola et al., Toxic-Metabolite-Producing Bacteria and Fungus in an Indoor Environment Applied and Environmental Microbiology, Vol. 67, No. 7, p. 3269- 3274 (2001). A IDÉIA DE CONFORTO 160 A pesquisa apontou ainda que nos imóveis sem sinais visíveis de fungos as menores populações dos mesmos eram mínimas. Entretanto, a biocontaminação oculta também exis- te. Uma ampla gama de compostos orgânicos voláteis são produzidos por micróbios e podem permear as paredes dos edifícios, difundindo-se no ar interno. Quando o valor de equilíbrio da umidade relativa do ar nos materiais vai se aproximando da saturação, começam a crescer diferentes culturas: espécies dos gêneros Penicillium, Eurotium e As- pergillus entre 75 e 80%, Clodosporium entre 80 e 90% e Fusarium e Stachybotrys, Actinomicetos e levedura acima de 90%. Estes microorganismos produzem, como resíduo de seu metabolismo, diversos compostos orgânicos voláteis (COV) que podem contaminar o ar interno, e poderiam ser erronea- mente atribuídos aos materiaissintéticos.213 Enfim, outro agente biológico a ser mencionado é o alergógeno das baratas. Independendo de efeitos sobre a saúde, evitamos nos ambientes de nossa permanência alguns odores aos quais desenvolvemos aversão: alimentos em decomposição, suor, excrementos, mofo, poeira, algumas madeiras e flores, alguns animais, e até mesmo pessoas. Mas até as fragrâncias de per- fumes podem irritar, caso sejam em concentrações elevadas. Por exemplo, dentro de um ônibus nos incomodamos se uma pessoa demasiado perfumada toma um lugar próximo. Irrita- ção ainda maior é causada dentro de uma cabine de avião, pelo caráter mais hermético do ambiente. 4.4 Expressividade Por vital que seja o ar, há situações em que sua pureza deixa de ser a opção unanimemente preferida. 213 Anne Korpi, Anna-Liisa Pasanen, and Pertti Pasanen, Volatile Compounds Originating from Mixed Microbial Cultures on Building Materials under Various Humidity Conditions, Applied and Environmental Microbiology, Vol. 64, No. 8, p. 2914-2919 (1998). O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 161 É a situação em que aplicamos perfume sobre a pele, aromatizante num banheiro ou incenso na sala. O cheiro de comida nos atrai até a cozinha. Chegando a hotel, é preferível sentir o cheiro de cera, ou desinfetantes, que não sentir odor algum. Um fumante busca conscientemente pela fumaça. Adolescentes freqüentam bares que já conhecem como esfu- maçados. Alguns contrastes curiosos se revelam. O mesmo vina- gre que colocamos na comida, fora da mesa pode ter efeito repulsivo, pois sugere decomposição. O aroma da carne assa- da e salgada pode despertar fome compulsiva nas pessoas. Entretanto, é muito diferente o odor de sangue, quando fora do contexto da alimentação. Muitos são os riscos associados à qualidade do ar sobre a saúde e a comodidade das pessoas. Ricas e intensas, contu- do, são as experiências do olfato, especialmente ao conside- rarmos sua expressividade. Para um estudo mais sistemático, é útil a distinção entre o ponto de vista pessoal (baseado na associação) e o ponto de vista coletivo (baseado em referên- cias culturais; haveria ainda as referências absolutas). No primeiro caso, a expressividade do olfato está muito relacionada à localização do centro olfativo no cérebro, que se dá junto ao centro das emoções. O olfato é um sentido ancestral. Como já foi dito, ainda no mar, os seres interceptavam moléculas diversas, que ser- viam de pistas dos outros seres, provavelmente presentes nas proximidades. Estes sinais químicos tinham importância vi- tal, pois permitiam o reconhecimento de predadores ou pre- sas e, logo, fundamentavam a decisão de avançar ou recuar. No lento processo da evolução, este sentido continuou sendo usado, auxiliando as espécies. Uma função vital do olfato é a identificação. Pesquisa- dores do Monell Chemical Senses Center (Pennsylvania, EUA) perceberam que os ratos podem discriminar diferenças genéticas em parceiros potenciais através do odor, que in- forma detalhes do sistema imunológico de cada indivíduo. Mesmo sem explicação científica, é fato que em tribos como os Negritos Batek da Península Malaia, a união de casais “de A IDÉIA DE CONFORTO 162 mesmo cheiro” equivale a um delito comparável ao incesto. A palavra beijo significa cheiro em tribos de muitos países: Borneo, Gâmbia, Burma, Siberia, Índia, e em vasta extensão do Brasil. As pessoas se abraçam e aproximam o nariz à regi- ão detrás das orelhas umas das outras para sentir seu cheiro. Apesar de socialmente desprezado entre diversos grupos humanos, que procuram disfarçá-lo, o odor é fator fundamen- tal, no reino animal. E isto diz respeito também aos seres humanos, na identificação, comunicação e atração entre si, tanto pares amorosos, como entre mães e seus filhos. Uma função vital relacionada ao olfato é a alimentação. Apesar de o ser humano ser caçador, portanto orientado pela visão em sua busca por comida, sofre impulsos irresistíveis ao perceber seu aroma. Uma função diferente, ainda, é a da previsão do tempo. O olfato informa sobre os acontecimentos climáticos: o chei- ro de chuva é algo que se percebe mediante treinamento pois, com a queda da pressão atmosférica, intensificam-se os aro- mas do solo. Muitas outras reações desencadeadas a partir do olfato decorrem de associações. São fatos da vida pessoal e portanto dificilmente se deixam generalizar. É difícil dissociar o olfato das emoções passadas. Para Rachel Herz,214 as emoções são somente um tipo de versão abstrata daquilo que o olfato diz ao organismo num nível primitivo. São uma predisposição ao ataque ou à fuga diante da identificação de um inimigo, ou ainda de movimentos diferentes no caso de seres amigáveis. Diane Ackerman215 menciona uma teoria segundo a qual nossos hemisférios cerebrais teriam brotado dos órgãos olfa- tivos dos seres dos quais nos originamos. A autora cita ainda diversos contextos culturais em que os aromas tomaram significado ritual. O uso do perfume iniciou-se na Mesopotâmia como incenso oferecido aos deu- ses para adoçar o cheiro de carne animal em sacrifício; era 214 Rachel Herz et al., The emotional distinctiveness of odor evoked memories. Chemical Senses. 20(5): 517-521(1995) citada no folheto eletrônico Living Well with Your Sense of Smell, Sense of Smell Institute, Nova Iorque (2004). 215 Diane Ackerman, op. cit. O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 163 usado em exorcismos para curar os doentes e, ainda, após o ato sexual. A origem da palavra perfume é latina: perfumar = defumar através de. Pessoas da pré-história aplicavam per- fumes aos seus corpos, assim como as pessoas, sofisticadas ou não, o fazem até hoje, tanto mais em ocasiões especiais. A primeira civilização de que se tem registro de usar perfumes de maneira regular e extravagante foi o Egito. Suas práticas funerais e de embalsamar corpos requeriam condimentos e ungüentos. Queimavam toneladas de incenso em rituais ela- borados de culto. O perfume se tornou uma obsessão nacio- nal durante o reino da Rainha Hatshepsut (1501-1480 AC), do novo reino, que plantou grandes jardins botânicos e quei- mou incenso nos terraços que levavam aos seus templos. A consideração do fator cultural esclarece o relativismo de muitas experiências olfativas como ocorre, por exemplo, com relação ao odor de determinados tipos de queijo aprecia- dos na França e na Holanda, nem sempre tolerados no Brasil e rejeitados no Extremo Oriente juntamente com outros mui- to mais suaves. A propósito, é um fato conhecido que os povos do Ex- tremo Oriente sejam asseados com relação aos odores. No Japão, o fato parece estar associado ao hábito do banho diá- rio, que contrasta com os costumes de vários povos europeus. Diane Ackerman comenta que japoneses e chineses, de modo geral, não têm tantas glândulas sebáceas nas raízes dos pêlos como os ocidentais. Odores pungentes seriam absorvidos por gorduras, em menor quantidade nos orientais, que são portan- to cuidadosos com relação às essências corporais Um odor corporal forte entre homens japoneses pode até mesmo justi- ficar a dispensa do serviço militar. Curiosamente, no Japão, a palavra kusai se aplica tanto a um item mal-cheiroso – espe- cialmente se estiver em decomposição (kusaru = apodrecer) – como ao indivíduo cuja personalidade transborda, distoando do padrão médio. O odor se torna, então, um princípio com que se costuma caricaturar alguém, e muitas vezes em senti- do figurado, já que naquele país, nos ambientes comerciais e institucionais, preza-se a uniformidade das atitudes sociais. Isto inclui cor e corte das roupas, cabelos e barba, linguajar e, o mais surpreendente, os assuntos das conversas: pessoas que A IDÉIA DE CONFORTO 164 não forem da maior intimidade não entram em diálogo sobre temas comofilosofia ou religião. Rachel Herz menciona que, num estudo feito pelas for- ças armadas dos Estados Unidos para criar a bomba pestilen- ta, mostrou-se impossível encontrar um odor que fosse ine- quivocamente considerado desagradável através de diferentes grupos étnicos. – Mesmo o odor das latrinas de campanha daquelas forças não era unanimemente repudiado. Isto indica que não são somente os odores neutros ou moderados que variam por cultura, o que consideramos que cheira mal tam- bém varia. A parcela de odores que parecem causar reações univer- salmente previsíveis é muito mais limitada. Em geral, trata-se de substâncias químicas irritantes como, por exemplo, a amônia. E o aroma de alimentos conhecidos, principalmente de alimentos doces, atrai as pessoas de modo pouco depen- dente de sua cultura. É o caso do aroma da baunilha – extraí- do de orquídeas. Aqui, a preferência trata-se mais de um fenômeno absoluto que cultural. O olfato é o único sentido que consegue acesso direto ao sistema límbico, que é responsável pelos cuidados pessoais como alimentação, ataque e defesa, e preservação da espécie (sexualidade no sentido amplo e restrito). Regula nossas im- pressões, motivações e impulsos e influencia os controles hormonais, processos de aprendizado e armazenamento na memória, assim como o abastecimento nervoso vegetativo dos órgãos internos. O sistema límbico é tido como o centro de nosso incons- ciente. Reações provocadas pelo olfato naquela que é a parte mais velha do cérebro ocorrem em alguns segundos e poucas moléculas bastam para mudar humores e colocar em movi- mento sistemas reguladores. A psico-aromaterapia se vale deste fato. Assume que as terapias podem ser melhoradas mediante o uso de aromas, acelerando processos psíquicos, mentais e espirituais. O tra- balho atinge mais rapidamente os efeitos desejados no in- consciente. Em muitos aromas se constatou ação consoladora e de auxílio à alma ferida. Apóiam mudança de atitude e O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 165 processos de aprendizado, têm efeito terapêutico ordenador: ajudam as pessoas a alcançar um balanço de mente e alma. Os aromas servem de espelho; aspirações e tabus são mostra- dos mais claramente, com menos constrangimento.216 A valoração dos odores que ocorre no sistema límbico, atribuindo-lhes caráter entre simpático e antipático, é captu- rada num eletroencefalograma (EEG). Isto mostra serem as freqüências diferentes para cada aroma, e se alterarem mes- mo pela lembrança do aroma - é como se houvesse sido ar- mazenado um resumo, uma ficha de cada molécula odorífera e, através desta ficha, se abrisse o acesso a uma parte especí- fica do acervo de emoções. Ainda, confirma a existência de uma reação coletivamente uniforme (como no exemplo da baunilha) e outra parte personalizada, que remete ao passado, como forma de interiorização. Faz surgirem respostas afeti- vas de vínculo ou repulsa, de cunho pessoal. O contato com odores da infância, seja em objetos ou em pessoas conheci- das, desperta um reviver realista de situações passadas. Al- guns odores reconhecidos depois de longo tempo freqüente- mente despertam sensação semelhante à de quem esquece, por um lapso de tempo, o nome de uma pessoa do seu conví- vio freqüente. A aprendizagem de odores inicia antes do nascimento, quando componentes aromáticos da dieta materna são incor- porados ao fluido amniótico e ingeridos pelo feto. Em estu- dos que registraram o consumo, pelas mães, de substâncias determinadas (alho, álcool ou fumaça de cigarros) durante a gravidez, as crianças adquirem preferência por tais cheiros. O mesmo não acontece com crianças cujas mães não consumi- ram os mesmos produtos em sua gravidez. Embora a maioria das respostas a odores seja adquirida na infância, devido à novidade e intensidade da experiência, mecanismos associativos podem determinar a percepção odorífera. De acordo com Rachel Herz, os odores têm efeito na solução criativa de problemas, na produtividade, na atenção, 216 Ingrid Andres, op. cit. A IDÉIA DE CONFORTO 166 no desempenho e na disposição para ajudar outros. Por exemplo, pessoas expostas ao aroma de biscoitos ao forno, ou de café sendo torrado, são mais inclinadas a ajudar um estranho que as outras. Herz registrou ainda que as mulheres consideram o cheiro a variável mais importante na escolha do parceiro, enquanto os homens julgam igualmente o cheiro e a aparência.217 Os odores são poderosas chaves de memória; todavia, remetem muito mais às emoções vividas do que aos fatos que as causaram. Daí a conclusão da pesquisadora: no princípio, era o aroma: os organismos usavam o senso químico para se moverem em direção ao bem (comida) e fugirem do mal (predador). Mas o sistema límbico cresceu para fora do sis- tema olfativo, de modo que a dicotomia emocional entre o bem (sobrevivência, amor, reprodução) e o mal (perigo, morte, fracasso) reflete a dicotomia quimiossensitiva. Hellen Keller, personagem célebre pelas suas capacida- des e realizações apesar da tríplice limitação como cega- surda-muda, dizia que o aroma é um mágico poderoso que nos transporta através de milhares de milhas e através de todos os anos que já vivemos. A autora exemplificava: os odores de frutas me remetem a minha casa sulista, aos meus gracejos de infância junto aos pessegueiros. Outros odores, instantâneos e arredios, causam meu coração a dilatar-se alegremente, ou contrair-se na lembrança da dor. Mesmo se penso em aromas, meu nariz se preenche de fragrâncias que começam a despertar-me doces lembranças de verões passa- dos e campos amadurecendo distantes. 218 Ao escrever este texto, sentado ao sofá com o computa- dor portátil sobre o colo, tento por instantes encontrar alguma recordação através do olfato. Procuro lembrar algum aroma remoto. Começo examinando as lembranças de um imóvel anti- go, a casa de meus avós, construída ainda uma geração antes. Nela funciona, hoje, um escritório de engenharia. Embora eu 217 Rachel Herz et al., op. cit. 218 Diane Ackerman, op. cit. O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 167 não tenha participado da maior parte de sua história, aquela casa antiga participou da maior parte da minha infância e é portanto um campo fértil para esta arqueologia pessoal. É uma casa típica de imigrantes alemães, o telhado alto, o fron- tão anguloso. Eu tinha poucos anos de idade quando lá pas- sávamos as tardes de domingo. Para as crianças, depois de saudar os donos da casa, a cada vez a casa era revista, a começar pela sala de visitas, com suas cortinas claras, sofás cobertos de pequenas almofa- das de lã tricotadas em cores e formas diversas, mesinhas de canto cobertas por pequenas toalhas em crochê, e sobre elas diversos objetos. Associado estava um odor a lustra-móveis, e também a pó. Seguíamos pelo corredor, passávamos pela cozinha, onde era comum o aroma de tortas de maçã ou bolos de chocolate, e pela pequena lavanderia, até chegarmos ao quintal. Preso a um caramanchão de madeira ficava um balanço. Mas não nos detinha de início; íamos diretamente à garagem no fundo do quintal, onde algum adulto chegaria para levan- tar a porta de madeira basculante. No compartimento escuro, que estava sempre fechado e cheirava a madeira úmida, eram guardados os principais brinquedos: um triciclo, um kart de pedal, um outro carrinho de tração braçal e uma pequena bicicleta. Percorríamos os caminhos calçados ao redor dos canteiros de rosas, dálias, manacá e flores de que nem sei o nome, mas seria capaz de reconhecer o aroma, assim como o aroma da terra úmida. Certamente, uma mistura de aromas e odores que diferenciava um do outro cada quintal da cidade. Ao longo do muro ficava o galinheiro, do qual mantínhamos certa distância de medo do galo. À frente do galinheiro, um pé de camélia,em geral florido. Um bicho importante nas visitas aos avós também faz parte do acervo olfativo da casa. Era um cão cocker spaniel. Tomava banho dentro do tanque. Lembro do odor a pelo molhado, o cão sacudindo a cada minuto as longas orelhas, da água fortemente clorada de Curitiba e, ainda, dos óxidos da torneira. A IDÉIA DE CONFORTO 168 Logo, percebo que a casa já está toda ela acessível à memória, aberta diante mim. O quarto do casal com seus armários escuros, uma pesada colcha sobre a cama, livros sobre os criados mudos e uma gravura a carvão do desenho do Cristo no Jardim das Oliveiras à parede; o banheiro com sua pia alta, sabonete a jasmim, o chuveiro dentro da banhei- ra. A despensa estreita, onde eu entrava olhando para o armá- rio muito alto, com grandes potes de vidro, tampa também em vidro, onde ficavam biscoitos diversos – entre eles os Pfefferkuchen, apimentados de açúcar mascavo, típicos do Natal. Sob o piso em sonoras tábuas se escondia uma peque- na adega. Na sala de jantar havia um piano armário e uma lareira num canto; oposta, a Santa Ceia de Da Vinci em alto relevo na parede. O escritório adjacente recendia a charutos bahianos, conservados em cilindros de alumínio, e estes em caixinhas de madeira. A parede era preenchida por uma colo- rida estante de livros. Sobre a escrivaninha, muitos documen- tos, fotografias e postais, a coleção de selos e o cheiro de papel já amarelado. Simplesmente visitar aquela casa, já com outro uso e ou- tra decoração, não ajuda tanto a recuperar lembranças como o exercício de explorar as associações olfativas. Dois ou três exemplos foram puxando outros, e ajudaram a recompor toda uma descrição visual da época. E se continuasse, eu conse- guiria avançar mais além, aos dois ou três primeiros anos de vida e reconstruir o apartamento de meus pais, numa seqüên- cia de aleatórios detalhes. Um deles era o sabonete dermatológico que minha mãe usava no meu couro cabeludo. Sua cor azul-cobalto já era muito peculiar – ainda mais seu odor medicinal. Naquela época, eu desarrumava o sofá da sala, retirando do lugar suas almofadas em camurça - outro odor peculiar. Erguia ali caba- nas, cabinas de trem ou de avião. Tenho ainda uma lembran- ça algo bizarra do gosto amargo dos móveis da casa, em im- buia. Certamente eu os provei aos poucos meses de idade, quando criança que engatinha e tudo quer levar à boca. Já o aroma da imbuia –esta madeira densa e escura da mata Atlân- tica, hoje escassa - é inconfundível. Ressurgiu como uma lembrança preciosa quando mandei lixar o piso do laborató- O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 169 rio onde trabalho na universidade. Certamente, consumir meio milímetro do piso no intuito de recuperar sua regulari- dade já vale a pena, mais ainda se trouxer luz a escuros recin- tos da memória. As lembranças vão surgindo desordenadas. Por exemplo, as guloseimas que se comia fora de casa. A pipoca do cinema, o algodão-doce do parque, o pastel de queijo na lanchonete da natação. O início das aulas implicava numa visita à papelaria e acabava trazendo para casa o cheiro forte do plástico de en- capar cadernos e livros, e o cheiro da tinta dos livros antigos. Cheiro da lancheira e da mochila com motivos de Walt Dis- ney, o estojo (que sempre chamei penal) com lápis e borra- chas, coloridos e perfumados, presente da avó ou de alguma tia que havia feito estoque junto a algum importador de arti- gos de Taiwan ou Hong Kong. A aula de artes era uma expe- riência diversificada: giz de cera, nanquim e guache, argila úmida e massa de modelar. O uniforme da escola era em camisa de tergal, calça jeans e o kichute preto cheirando a pneu. O uniforme de educação física, na época, era todo em algodão. O consultório do médico era uma lembrança mais apagada. Lá se destacavam os palitos para examinar a gar- ganta, o estetoscópio, álcool para injeção e, eventualmente, o mercúrio cromo. Encontrei lá pelos oito anos um passatempo irresistí- vel: miniaturas de aviões e navios para montar. Acrescentou ao meu acervo produtos da química orgânica: o poliestireno dos kits – que eu às vezes derretia para fabricar a fiação elé- trica dos aviões e navios -, a cola sintética, a tinta-esmalte e o solvente. Vão surgindo tantos detalhes materiais que logo pas- so a me preocupar com a imensa lacuna de tempo que se abriu. Já posso construir um mapa de minha cidade natal - Curitiba, capital do Paraná. Vou mais além, pois incluo a terra natal de minha mãe – cidade histórica da Lapa; a cidade de Santos, no litoral paulista, em que passamos alguns ve- rões; uma ou outra viagem avulsa cuja lembrança ainda pare- A IDÉIA DE CONFORTO 170 ce limitada às fotografias, até que eu encontre a chave olfati- va. Mostro o texto, até aqui, a um amigo, e ele me traz outras lembranças de cheiros de cidades: Curitiba, moinhos de erva- mate no Rebouças; São Luís, óleo de côco no centro; Ma- naus, do aeroporto, tem cheiro de floresta; e Tijucas do Sul cheira inteira a bananada. Recentemente, em visita a uma tia no centro da cida- de, detive-me em contemplar alguns objetos colocados no mesmo lugar de sempre. E os registros olfativos continuavam lá. Isto me dá a impressão de que muita coisa atravessou as décadas sem ter mudado. E sei que a hospitalidade desta tia tampouco mudou. Penso nos anos 70 em que eu, criança, convivia com primos já adultos. Aqueles anos parecem ter demorado mui- to. Saber-me cercado de gente de muito maior idade me fazia sentir seguro. Trago a impressão de que foram anos de sonho, assim parece ter sido para mim e para todos. A música da época continua popular, e suas influências no vestuário vêm e vão novamente, mas fora do contexto original. Este, sim, é passado remoto. E preocupa saber que os sonhos daquela época possam ter sido esquecidos. Eu já sabia muito do que me causa satisfação, esperança, medo e angústia e, no entan- to, me vejo até hoje na busca. Ao encerrar este exercício de volta ao passado concluo que uma coisa certamente não mudou: as moléculas que afe- tam meus receptores olfativos. São exatamente iguais, não envelheceram nem se renovaram. Depois de expor-me volun- tariamente à torrente do passado, já não acho que os persona- gens que habitavam aquelas cenas tenham mudado, senão externamente. Crianças cresceram; adultos envelheceram; idosos partiram. Se antes nem na rua eu precisava olhar ao redor, já não tenho quem olhe por mim o tempo todo. Mas parece improvável que, neste mundo mental que recriei, falte efetivamente alguém. Alguma coisa fica: talvez o espírito - palavra tão freqüentemente usada com a conotação de aroma. Foram as impressões do mundo físico que me convenceram disto: eles parecem mais próximos do que nunca desde que partiram. Com muita propriedade Salvador Dali dizia que dos cinco sentidos, o olfato é aquele que transmite a melhor im- O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 171 pressão da imortalidade. E Marcel Proust, no início de sua procura do tempo perdido, descreveu raciocínio semelhante: o aroma de madeleine deu origem a uma transformação de sua maneira de sentir o tempo, como se o passado voltasse ao alcance dos dedos. Os registros olfativos contêm emoções congeladas, já são muitas as evidências. Repenso o item acima sobre olfato e comodidade, citando taxas mínimas recomendáveis de ven- tilação: não deveria pretender esgotar o assunto da qualidade do ar. Mais ou menos, todo o campo do conforto ambiental está exposto ao risco de um semelhante reducionismo. O olfato completa a contextualização dos outros senti- dos: num resort tropical, a manga e o abacaxi são aromas bem acolhidos em qualquer mesa. E em se tratando de víncu- los culturais entre aromas e conteúdos diversos, existe uma profusão de exemplos. Em alemão se usa dizer ein schöner Wein (um lindo vi- nho). Pouco importa a cor do líquido no copo, ou o rótulo da garrafa. Muito menos a cor da garrafa. É a transposiçãodo olfativo para o visual, já que a beleza do vinho não é gustati- va, mas aromática. E daí surge uma idéia: se quiséssemos, não poderíamos manter uma adega em nossa memória? Em prateleiras escuras, dentro de frascos empoeirados, ficaria o registro das celebrações que marcaram nossa vida. Se cultivarmos a alimentação em tais eventos, selecio- nando cardápios e ainda encontrando bons vinhos, certamen- te estaremos arquivando aromas. Deveríamos fazê-lo com tanto empenho que, ao reencontrar tais aromas, no futuro, possamos enxergar imagens e escutar os sons ao redor da mesa. Tudo isto nos deixará o sangue em semelhante tempe- ratura que na ocasião retratada, o pulso em semelhante an- damento. As refeições são experiências de convívio, do com- panheirismo que conduz a uma auto-realização inexplicável, uma alegria profunda. A aromaterapia desaconselha que se deixe embriagar com um aroma, o que poderia provocar uma aversão àquele aroma por longo período. Por tal motivo, por mais de uma A IDÉIA DE CONFORTO 172 década não pude sentir o gosto de alho na comida, e a rejeita- va, e conheço história semelhante com a vodka. Num breve relato sobre aromas na cultura brasileira, Câmara Cascudo deixa transparecer uma enorme especifici- dade cultural no assunto:219 a origem mágica da Defumação funda-se nas plantas votivas ou dedicadas aos deuses, de- terminando ação protetora e de combate às forças adversas, malévolas e agressivas. Certos aromas afugentam os seres sobrenaturais. Bruxas em Portugal, como os duendes das matas brasileiras, curupiras, caiporas, sacis, não toleram arruda, alho, cravo, alecrim. O breve fumo da palha seca do Domingo de Ramos faz cessar a chuva forte ou evita a tem- pestade com trovoada. Queimar certas essências, ervas, raspas de raízes, fo- lhas, sementes, é processo de milênios no plano da oferenda propiciatória. Os animais sacrificados aos deuses só os al- cançam no estado de fumo, gases, aroma... Existe um repertório de odores e aromas cujas associa- ções convergem dentro das culturas. Odores fétidos, putrefa- tos, como de roupas molhadas e carne estragada provocam desprazer. Já o esterco animal é algo com que se acostuma, e pode se tornar uma referência bucólica – como dos vales da Suíça. E os odores de queijos e de vinagre, da fermentação das uvas e da cana, dos cereais da cerveja e do repolho usado para fazer chucrute, uma vez identificados, adquirem a cono- tação positiva dos produtos que originam. É um exercício difícil o da descrição de odores em que não se recorre aos exemplos de substâncias conhecidas (um odor cítrico, um odor a ranço). Vemo-nos logo na dependên- cia de emprestar adjetivos dos outros sentidos. Aqui é apro- priado falar não de odores, mas de aromas, verdes e maduros, graves e agudos, suaves e penetrantes, magros e cheios, quentes e frios, ácidos e salgados. Existe uma explicação que procura mostrar, no cérebro, a relativa falta de vínculos entre o centro da linguagem e o centro do olfato. Num mundo des- critível e exuberante onde as maravilhas se oferecem prontas 219 Luiz da Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, Editora Itatiaia, Belo Horizonte (1988). O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 173 para a dissecação verbal, os aromas muitas vezes estão na ponta de nossas línguas – mas não mais perto – e isto lhes dá uma espécie de distância mágica, um mistério, uma força sem nome, uma sacralidade.220 A dificuldade em descrever aromas e odores, contudo, também é derivada do estado de abandono em que se encontra o olfato na cultura ocidental. Para a aromaterapia, 221 os aromas variam de acordo com sua decrescente volatilidade, desde os tons de cabeça (frutos cítricos: frescos, leves, rápidos no desenvolvimento e desapa- rição; dão um impulso a quem os aspira), passando pelos peitorais (flores, cheios, redondos e afáveis, sensíveis), até os tons profundos (raízes, pesados, requerem aquecimento para ser percebidos). É nítida a metáfora musical, que associa sons do canto com as partes do corpo, os graves peitorais e os agudos de cabeça. As dez famílias mais importantes de plantas produtoras de óleos etéricos são Burseraceae, (incenso, mirra); Apiceae (cominho, coentro, cenouras, anis); Gramineae (capim li- mão,Vetiver); Pinaceae (pinheiro branco, cedro-atlas); Aste- raceae (estragão, camomila selvagem, romana e azul); Labia- tae (lavandas, melissa, mentas, basílico, orégano, patchouli, tomilho); Lauraceae (canela, louro); Myrtaceae (eucalipto, cravo, chá); Rutaceae (bergamota, grapefruit, limão, mexeri- ca, laranja); e Cupressaceae (cipreste e zimbro). As substâncias ativas nestas plantas teriam efeitos cor- porais peculiares. Um fator ambiental responsável por algu- mas associações é a temperatura com que se volatilizam. É responsável por surgirem ora em paisagens quentes, ora frias ou alguma situação intermediária. Para a aromaterapia, têm uma importância matricial os óleos etéricos naturais, produtos sintetizados pelas plantas em resposta ao ambiente, à radiação solar. Seu significado seria comunicativo, em que as plantas manifestariam seu espírito 220 Diane Ackerman, op. cit., tradução do autor. 221 O restante desta secção utiliza como fonte os trabalhos de Inge Andres, Duftbera- tung: Pflanzen, ätherische Öle und Essenzen, 159 pp., Bassermann, Alemanha (2000), e Simone Lenz, Mit allen Sinnen Wohnen – Ein Zuhause zum Wohlfühlen, Inspiration für Geist und Seele, Tosa Verlag, Viena (2000). A IDÉIA DE CONFORTO 174 concentrado como atração ou repulsão às outras plantas, animais e pessoas, de quem ativam processos de ordem men- tal e espiritual. A propriedade de respirar o aroma das men- sagens aromáticas permitiria uma espécie de integração das pessoas com a linguagem da natureza. Sobre a destilação – operação em que se obtém a solu- ção aquosa dos óleos etéricos – escreveu Hieronymus Bruns- chwig222 no século XVI,223 aqui em livre tradução: Separar o sutil do grosseiro e o grosseiro do sutil, o destrutível e o frágil do indestrutível materializar o imaterial espiritualizar o corporal e do feio produzir beleza. A aromaterapia tem proposto os rudimentos de uma classificação dos aromas. É uma classificação amparada em associações, mas de forma sistematizada, considerando al- guns aspectos de química e de botânica. A classificação reconhece os seguintes grupos: esférico- espiritual (íris); aéreo e claro (lavanda, melissa e louro); frio e fresco (hortelã, capim-limão, eucalipto); leve e fresco (li- mão, bergamota); frutado-cálido (laranja, mandarina e cas- sis); rosado-florado (rosas turcas, búlgaras, damascenas e marroquinas, gerânios); florestal-fresco (pinho, cipreste, chá, basílico); fogoso-quente (pimenta, gengibre, coentro), florado opulento (jasmim, ylang-ylang, narciso), balsâmico-cálido (sândalo, baunilha, tabaco), picante-cálido (cravo, canela), herbal-cálido (tomilho), terroso-cálido (elemi) e terroso- profundo (cedro, vetiver, patchouli). Estas plantas oferecem um abrangente repertório aromático para enriquecer a experi- ência sensorial dos ambientes. 222 Hieronymus Brunschwig (1450 – 1512), químico da região da Alsácia, hoje França. Autor do Liber de arte distillandi. 223 apud Inge Andres, op. cit. O IDEAL DE AR PURO E O PRIMITIVISMO DO OLFATO 175 Diane Ackerman224 reuniu exemplos que mostram co- mo, no mundo antigo, a arquitetura real era ela mesma aro- mática. Menciona que em Chengde, na China, no salão Dan- bo Jingcheng (da frugalidade e placidez), no chamado Nan- mu, as vigas e os painéis, todos em cedro, eram sem verniz ou tinta, de modo que a fragrância da madeira pudesse in- fluenciar o ar. Menciona construtores de mesquitas que usa- vam misturar água de rosas e almíscar na argamassa; o sol do meiodia iria aquecê-la e liberar os perfumes. E lembra que as portas do palácio de Sargon II, no século VIII, onde hoje se encontra Khorsabad, era tão perfumadas que exala- vam perfume quando visitantes entravam ou saíam. As bar- caças, assim como os caixões dos faraós, eram de cedro. A leitura deste trecho reforça a idéia de que, queiramos ou não, o aroma nos individualiza, assim como nosso espaço de vida. Podemos através do aroma inserir curiosas referên- cias pessoais, familiares, culturais, religiosas, e históricas ao ambiente. E onde estas forem menos evidentes, o cultivo dos aromas naturais poderá criá-las, fortalecendo a percepção futura dos lugares, dos relacionamentos e dos acontecimen- tos. Podemos escolher odores, assim como escolhemos mó- veis e outros objetos de decoração. Assim como mantemos livros nas estantes, um repertório de aromas equivale a mui- tos álbuns de fotografia. Reavivar a memória requer um con- tato não constante com os aromas, mas periódico, antes festi- vo, nas celebrações da vida e da morte. 224 Diane Ackerman, op. cit., tradução do autor. ... sem o tato, eu sempre consideraria meus os odores, os sa- bores, as cores e os sons, nunca teria julgado que existem corpos odoríferos, sonoros, coloridos, saborosos. (Étienne de Condillac, Tratado das Sensações Humanas) Figura 5 - Texturas deixadas nas dunas pelo vento, Prainha (CE) 5 - O entorno palpável: formas e texturas 5.1 Introdução O tato é o sentido que sinaliza a interação concreta das pessoas com o mundo físico: não é uma percepção baseada em representações como a contemplação de imagens, ou a audição de gravações. O tato instrumentaliza a lei da física que proíbe dois corpos de ocuparem o mesmo lugar no espa- ço. Tem um caráter muito concreto. Com um beliscão nos convencemos de que estamos conscientes. A interação do tato se incorpora à memória como uma consciência de limites. Nós a tomamos de modo espontâneo, acidental ou à força, em experiências que podem variar de suaves a ríspidas. O tato orienta nossa existência dentro dos ambientes de vida e trabalho. Relaciona-se a um aspecto tão inevitável do ambiente quanto o ar que respiramos pois, a principiar pelo solo, estamos permanentemente em contato físico com a matéria. A IDÉIA DE CONFORTO 178 O tato é a aferição do visual. Se não houvesse o tato, a visão provavelmente não teria o tamanho poder de síntese que tem. Não daríamos a mesma importância àquilo que ve- mos, nem mesmo àquilo que de nós se aproxima, pois não sinalizaria alguma experiência concreta, no corpo. E mesmo que, no escuro, nada estejamos vendo, o tato permanece na raiz do conforto ambiental, embora nem sempre se reconhe- ça. Pode-se afirmar que o conforto é julgado, antes de mais nada, pelos sentidos do tato e do equilíbrio.225 Junto com os sensores que nos permitem sentir a forma dos objetos, temos espalhados pela pele outros sensores que registram o frio e o calor, a pressão e ainda a vibração. As sensações térmicas serão tratadas num capítulo próprio. 5.2 Mecanismos físicos e fisiológicos O corpo humano tem milhões de terminações nervosas. São pontos onde acontece o intercâmbio do sistema nervoso com o meio externo, seja recebendo dele informações, seja enviando-lhe ordens. No primeiro caso são terminações sen- sitivas. No segundo, terminações motoras. As terminações sensitivas, de particular interesse do conforto ambiental, dividem-se entre as terminações livres, como aquelas responsáveis pela percepção da dor, e as termi- nações encapsuladas, caso daquelas responsáveis pelo tato, frio e calor e pressão. Têm nomes individualizados. Os cor- púsculos de Meissner são responsáveis pela percepção de forma e textura e ocorrem na pele das mãos. Os corpúsculos de Paccini são responsáveis pela sensação da pressão, e ocor- rem no tecido celular subcutâneo das mãos e pés, peritônio, cápsulas viscerais, etc. Os corpúsculos de Krause, responsá- veis pela sensação de frio, e os de Rufini, responsáveis pela sensação de calor, ocorrem na derme, na conjuntiva, na mu- cosa da língua e nos órgãos genitais. Existem ainda termina- ções especializadas, que são estruturas mais complicadas fazendo parte dos órgãos especiais dos sentidos localizados 225 Bettina Kohler, Nichts als Illusionen? Werk, Bauen und Wohnen 3, pp.4-8 (2003). O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 179 na cabeça - visão, audição, olfação e gustação. Todas estas são agrupadas na categoria dos exteroceptores: têm relação direta com as variáveis ambientais. Ainda no grupo das terminações sensitivas, outras cate- gorias utilizadas são interoceptores e proprioceptores. Os interoceptores, localizados nas vísceras e vasos, também chamados visceroceptores, são responsáveis pelas sensações de fome, sede, prazer sexual e dor visceral, além de informa- rem dados do plasma e do sangue. Incluem-se os sensores do ouvido interno para a sensação especial de equilíbrio. Moni- toram o regime de funcionamento do organismo e, embora sejam relacionados ao bem-estar do indivíduo, não têm rela- ção direta com as variáveis ambientais. Já os proprioceptores, localizados profundamente nos músculos esqueléticos, ten- dões, fáscias, ligamentos e cápsulas articulares, dão origem a impulsos proprioceptivos conscientes e inconscientes. A pele não é somente o maior órgão sensitivo do corpo, mas o maior órgão do corpo, contendo as terminações nervo- sas citadas. É composta de três camadas. A epiderme é a mais externa, tendo em sua superfície células duras e mortas, preenchidas com queratina, uma pro- teína do corpo encontrada nas unhas e cabelos. Logo abaixo se encontram células novas e moribundas. Estão em constan- te reprodução e, progressivamente, empurram as células mor- tas para a superfície. Na epiderme se encontra a melanina, um pigmento escuro que dá cor à pele, assim como ao cabe- lo. A camada seguinte é a derme, um tecido conectivo, con- tendo terminações nervosas, vasos sanguíneos, glândulas sebáceas e sudoríparas. As terminações nervosas sob a pele detectam o toque e a dor e enviam mensagens do cérebro. Há uma faixa de músculos lisos próximos da base dos folículos capilares que, se estimulados, fazem com que aqueles se eri- cem, de modo a aumentar o isolamento térmico ao redor do corpo (pois os pelos eriçados retêm o movimento das molé- culas de ar, como um agasalho). O sebo da pele reduz perdas de água, protege-a da infecção por bactérias e fungos e con- tribui para o odor corporal. A IDÉIA DE CONFORTO 180 A mais interna camada é de gordura subcutânea: ajuda a armazenar alimentos, isolar termicamente o corpo do exteri- or, e absorver choque. 5.3 Comodidade e adequação A sensibilidade ao toque, à pressão e à dor se distribui por toda a superfície do corpo e é especialmente refinada nas pontas dos dedos das mãos e dos pés. Testamos com os dedos as texturas e formas dos objetos que surgem em nosso meio de vida e de trabalho. Nas cadeiras, poltronas e principalmen- te sofás, sentamo-nos testando o encontro de sua textura e de sua estrutura com a textura e a estrutura de nosso corpo. Mui- to depois de tê-los testado e esgotado possíveis variações, retomamos consciência do tato cada vez que nos sentamos ou nos ajeitamos no assento, nos deitamos e nos viramos, e em cada piso diferente que nos aparece debaixo dos pés, mais ainda se estivermos descalços. O tato previne o corpo de prejuízos causados por objetos e superfícies que com ele entrem em interação mecânica, térmica ou química. Correspondendo, a comodidade, para o tato, reúne di- versos fatores. Depende de uma sensação térmica não muito acentuada: um mau exemplo é um assento em alumínio, es- pecialmente em clima frio. Depende de uma granulometria adequada, evitando a presença de saliências pontiagudos, como ocorrenum papel de lixa. Depende da ausência de vi- brações. Depende de um aspecto higienicamente favorável – evitando, por exemplo, que superfícies permaneçam úmidas ou engorduradas, reconheçamos ou não as substâncias ali presentes. Depende da prevenção de texturas causadoras de arrepios como, por exemplo, a lousa. Enfim, depende da li- mitação da pressão mediante maciez superficial, respeito à anatomia e uma certa consistência da forma: esta deve man- ter seu contorno principal mesmo após prolongada interação com o usuário. Cada parte do corpo tem seu grau de tolerância à pres- são. Os pés e as mãos são especializados em distribuí-la. Assim também os glúteos, acostumados – especialmente nas O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 181 culturas ocidentais – a receber o peso do corpo. A pressão diretamente sobre os ossos, como ao se caminhar sobre os calcanhares ou, sentando-se ao chão, reclinar-se sobre os cotovelos é dolorida. Sua redução se consegue por superfí- cies macias, que distribuem o esforço numa área maior do corpo. O contato limitado a regiões pequenas do corpo pode elevar a pressão, provocando dor. É o caso de uma cadeira dura ou, ainda, do caminhar descalço sobre pedriscos para quem sempre usa sapatos. Uma pressão muito alta e localiza- da pode causar ferimento. É o caso do puncionamento por uma agulha: mesmo que seja pequena a força, sua área de aplicação é minúscula. O puncionamento ou corte por objeto muito afiado, entretanto, pode não ser sentido instantanea- mente. Adequação, para o tato, é um conceito fácil de ilustrar. É a sina de quem carrega, todos os dias, uma lata de água na cabeça. Preferiria, certamente, não ter de fazê-lo. Entretanto, isto faz parte do desafio diário de muitas mulheres, cujas famílias carecem de água encanada. O fundo da lata se de- forma. Os cabelos ajudam a atenuar a pressão, que se resiste mais facilmente que ao carregar a lata numa das mãos, medi- ante um arame. Aplicado na cabeça, o peso se distribui con- cêntrico com o corpo, logo minimizando algum esforço de torque. As carregadoras de lata, heroínas do abandono pelos governantes, certamente otimizaram sua comodidade, redu- zindo-a o necessário para que possam servir a um propósito vital para a família. Noutros casos, como o de um bombeiro que, em emer- gência, precipita-se de seu alojamento para a garagem desli- zando pelo mastro, é necessário um atrito muito baixo. E os mensageiros internos dos supermercados, em patins, não se encontram nas situações táteis mais cômodas, nem mais se- guras; entretanto, deslizando sobre rodas, realizam seu traba- lho com menos cansaço. A interação estática, em que a pessoa se firma a uma su- perfície sem que ocorra deslizamento, requer atrito e, ainda, uma forma anatômica. A IDÉIA DE CONFORTO 182 Por exemplo, ao sentar-se. O revestimento em couro de um sofá por vezes impede as pessoas de se aconchegarem em sua posição preferida; elas deslizam passivamente até a posi- ção que lhes impõe a forma do móvel. Isto ainda ocorre nos assentos de couro dos veículos, em que os bancos, impecá- veis ao toque e de aroma inconfundível, permitem aos seus passageiros deslizarem. Os assentos rígidos, em fibra de vi- dro, de ônibus de transporte público de muitas cidades, con- duzidos sob velocidade exigem das pessoas sentadas que ocupem ambas as mãos para não escaparem nas curvas. Tal insegurança pode ser comparada à de uma bicicleta em que o selim, além de estreito, é duro, liso e está fora do prumo. Há uma diferença fundamental entre o sentar-se sobre o chão, na forma tradicional do Oriente, e sobre móveis.226 Estes permitem uma diversidade de posturas, todas elas ma- neiras de se sentar: para comer à mesa; num banco de bar; num sofá branco com um copo de vinho tinto à mão; ou, ainda, num sofá qualquer sem qualquer compromisso. Um banco de igreja não permite muitas variações ao redor da postura correta. O mesmo ocorre nas carteiras escolares, e mesmo às mesas de refeições. Embora busquemos natural- mente pelas superfícies mais macias, um padrão de atitude é imposto pela dureza dos materiais. O deitar-se pede móveis macios, que sugerem pronto re- laxamento. Entretanto, a maciez pode trair uma rigidez insu- ficiente, deixa o conjunto formado entre o corpo e o móvel tomar uma forma indesejável. O apoio para a cabeça ao dor- mir deve manter sua integridade de forma para que a coluna cervical não seja danificada. O caminhar requer atrito com o solo. Embora o corpo se desloque, o pé está em geral agarrado no chão a cada passo. A superfície necessária é quase lisa para o plano horizontal, mas à medida que a inclinação aumenta é necessária rugosi- dade, ou uma textura especial. Solados de couro em carpete têm baixa capacidade de aderência. Uma inclinação pronun- 226 Para esta diferença de hábitos existe uma explicação térmica relacionada à estrati- ficação do ar nos ambientes, o ar frio estando próximo ao chão e o ar quente próxi- mo ao teto. Esta explicação é apresentada por diversos autores. O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 183 ciada requer uma escada: rigorosamente, é uma textura de grande escala. Não nos causa tropeços por ser regular. Nos pisos, a granilite, o petit-pavet e as grades de ventilação apre- sentam o inconveniente do atrito insuficiente, especialmente se associados a pó, gordura ou água. Alguns edifícios de uso público são revestidos de materiais duros e lisos, como os pisos em granito ou mármore polido. O pedestre que ali adentra precisa esfregar os pés no capacho para evitar que suas solas, incrustadas de grânulos, deslizem sobre o piso, ou venham a riscá-lo. Puxar ou empurrar um objeto requer uma adaptação en- tre este e as mãos. A forma anatômica para uma alça de sus- tentação reproduz em negativo o perfil dos dedos da mão fechada. Assim, consegue-se distribuir melhor a força sobre os dedos, reduzindo a pressão. E se a força aplicada pelas mãos for excêntrica, isto é, se não seguir uma linha pelo cen- tro de gravidade do objeto, compensamos com um esforço de torque. É assim que erguemos uma pá cheia de terra, ou ain- da uma panela pesada que tenha somente um cabo (se tivesse duas alças, este torque desapareceria). E se a forma não auxi- lia na distribuição de forças, o atrito se torna um importante aliado: permite um redirecionamento do esforço aplicado. Ao segurar o cabo de uma enxada na vertical, aperto horizontal- mente os dedos, uns contra os outros. Se não houvesse atrito, a ferramenta cairia. Mas se a interação entre o corpo e a superfície envolver deslizamento, o atrito deve ser reduzido ao mínimo, e as for- mas devem ser livres de irregularidades na direção da força de apoio, para evitar choques. É o caso de um corrimão de escada, feito liso, seja em plástico, madeira, metal ou pedra. Sua seção transversal é uma forma anatômica, e longitudi- nalmente não aninha os dedos em abaulamentos, pois estes devem correr livres. É difícil dançar sobre um piso áspero como o asfalto; é necessário que os sapatos possam deslizar. Movimento seme- lhante é aquele de se cortar papel com um estilete: normal- mente o fazemos sobre o tampo de vidro de uma mesa, regu- lar e de alta dureza, assim preservando-se liso, sem riscos. A IDÉIA DE CONFORTO 184 Já a atividade de desenhar ou escrever é um caso misto: requer uma superfície regular e, ao mesmo tempo, algum atrito. O lápis se presta ao papel-jornal, ao papel sulfite, mas não ao papel couchê ou ao plástico. O mesmo se aplica à caneta esferográfica. Deslocar-se ou mover objetos deslizan- do sobre rodas é um caso equivalente, que requer regularida- de e também atrito. Assim deve ser o piso por onde deslizam carrinhos de compras, bicicletas, patins e, especialmente, cadeiras de rodas. Que falta não faz, para um menino, uma superfície plana de borracha aderente, onde possa empurrar seus carrinhos de brinquedo vendo as rodinhasrolarem, ao invés de deslizarem. Um outro tipo de interação entre o corpo e o entorno fí- sico ocorre entre o corpo e a poltrona durante o movimento de sentar-se, seja de forma suave ou violenta. Naquele instan- te, a poltrona e o corpo absorvem o impacto, e disto não par- ticipam somente as superfícies, mas as respectivas estruturas. Quando caminhamos, semelhante interação acontece. Aqui, pode ser significativa a contribuição mesmo de finas camadas de materiais superficiais em aliviar o impacto dos passos. Isto se refere especialmente aos materiais de alta resiliência (que sob o efeito de uma força se deformam e depois voltam à forma inicial). Os pisos em madeira, mesmo se afixados a uma base dura de concreto, têm efeito de amortecimento de choques. Em se tratando de pisos de madeira apoiados sobre vigas, e não sobre o solo, o efeito absorvedor é ainda maior. O caminhar sobre tal estrutura é aprazível. Camadas de bor- racha são utilizadas em quadras e pistas esportivas, e como substrato debaixo dos tablados para a dança; combinam ca- racterísticas de atrito e absorção ao choque. Um amorteci- mento um pouco maior é dado pelo carpete. Esteiras de tata- mi, comuns nos pisos das casas japonesas, podem ser duras ao toque, mas têm forma flexível. São usadas tanto nos dor- mitórios como nas artes marciais, pois absorvem suficiente- mente o impacto da queda de um corpo. Enfim, o gramado, a terra batida e as caixas de areia apresentam razoável amorte- cimento, motivo de sua preferência para diversos jogos de crianças. O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 185 Por fim, existem aspectos do tato que não estão relacio- nados ao atrito, nem à pressão ou ao choque. A ausência de implicações práticas sugere não serem aspectos de adequa- ção. Há algum consenso quanto ao seu caráter desagradável, daí uma classificação como aspectos de comodidade. Em geral, preferimos superfícies capazes de não des- prender partículas. Um quadro negro em ardósia se parece sólido, mas dele finas partículas se desprendem, assim como as partículas de giz: parecem querer entrar sob as unhas. Uma parede de gesso, o papel velho e empoeirado, e um pneu, coberto de fina camada de pó de borracha, apresentam super- fícies repulsivas ao toque. Tinta fresca ou gordura aderem à pele e incomodam. Ainda, preferimos superfícies que não possam ralar, cor- tar ou perfurar: o papel de lixa é agressivo à pele. Crianças brincam no asfalto com certo receio de cair e se esfolar. E tenistas têm uma simpatia pelas quadras de saibro, em parte porque pouco se machucam nas quedas. Os materiais lisos tendem a ser mais agradáveis ao tato que os materiais rugosos. Mas pequenas ondulações confe- rem às superfícies algum dinamismo lúdico. A adequação é explorada ao máximo quando o tato é utilizado como canal de informação codificada. Para transmi- tir uma informação de natureza objetiva, o tato atende porta- dores de deficiência visual severa através da linguagem Braille. Já o método Tadoma foi desenvolvido para que sur- dos-cegos possam compreender o que falam as outras pesso- as. Os pacientes colocam as mãos sobre o rosto de seu inter- locutor, o dedo mínimo tocando a garganta para sentir-lhe a vibração; o indicador tocando o nariz, e o polegar tocando os lábios. Se a pessoa permitir este toque e falar lentamente, será compreendida, e mais: os sentimentos com que se ex- pressa serão transmitidos. 5.4 Expressividade Acima, foi proposta a idéia do toque como teste de vera- cidade, como o beliscão para sabermos que não estamos so- A IDÉIA DE CONFORTO 186 nhando. Esta função do tato é conseqüência do enunciado pelo qual dois corpos não podem, ao mesmo tempo, ocupar o mesmo lugar no espaço. Como um princípio da movimenta- ção de pessoas e objetos, em cuja consciência nos mexemos e caminhamos, pois desafiá-lo significa originar uma interação física entre os corpos, da qual nenhum deles sairá como an- tes. Acreditamos plenamente em algo que vemos se já o to- camos. O apóstolo São Tomé foi chamado incrédulo porque admitiu não crer no Cristo ressuscitado se não pudesse tocar suas feridas. Se sua fé não foi suficiente, foi sincero com relação à curiosidade tátil que nos faz aferir com os dedos aquilo que é visualmente percebido. Mesmo sem implicação prática aparente, a informação tátil é concreta. Processo a informação recebida do tato com maior ou menor racionalidade, ou, também poderia dizer, com menos ou mais fantasia. O caráter concreto do toque dá- lhe uma conotação que não é virtual (como outras sensações), mas física. E isto me influencia. A perspectiva, esta visão deformada das coisas e do mundo, não nos engana desde a infância porque soubemos, aos poucos, desmistificá-la. Percorremos as ruas para consta- tar que não se afilam no final. Demos passos para o lado para constatar que não existe um poste de iluminação sozinho, mas vários enfileirados. A visão não é um órgão do tato, mas funciona associada aos registros táteis. É como uma modalidade rápida, expedita do tato. Praticamente toca os objetos. Tenho nos olhos como que projeções dos dedos, algo comparável à tromba do ele- fante – um curioso órgão tátil-olfativo. Em cada novo espaço onde me encontro vou logo testando os limites. Em qualquer caminho me projeto, buscando onde vai dar e se posso, até lá, pisar sem medo. Cansado de caminhar, passo a reparar nos possíveis anteparos horizontais para repousar que encontro, entre a altura dos joelhos e do quadril, e visualmente lhes avalio a forma, a textura e a estrutura. Ruídos de meu apar- tamento são ouvidos do lado de fora, e seu interior fica em parte visível do lado de fora janela. Mas a porta me protege O ENTORNO PALPÁVEL: FORMAS E TEXTURAS 187 da interação tátil com o mundo externo. Aliás, é uma barreira variável ao mundo exterior; sua “semi-permeabilidade” per- mite o abrir e o fechar. O morador diferencia amigos, que têm acesso, e estranhos, que são mantidos fora.227 Vestindo uma luva de borracha, a sensibilidade da ponta dos dedos diminui. E por vezes tomamos uma incorreta pos- tura de apoio, em que se comprime um membro, que se torna amortecido. Por alguns segundos, desaparece a sensibilidade ao toque e, mais estranho, desaparece a propriocepção, ou seja, a sensação de onde está o membro. Uma raríssima doença é a Síndrome de Guillain-Barré, em que as fibras nervosas finas são completamente destruí- das. Ginette Lizotte, uma paciente de tal doença, relata so- mente conseguir segurar os objetos por fazer uso extrema- mente atento da visão. Para ela, o tato é tão importante quan- to a visão.228 E como a pele é um invólucro fabuloso, à prova de água, lavável, elástica229 e renovável, posso testar o mundo físico sem receio. Nas pessoas, as terminações nervosas do tato estão concentradas nas pontas dos dedos e ainda existem também nas outras partes. E a propriocepção nos faz sentir cada músculo em seu estado. Toco as folhas das plantas, mesmo que suas bordas afia- das me cortem ou seus espinhos me perfurem a pele; e tenho maior pudor em tocar as pétalas do que inalar o perfume de uma flor. Não compro frutos sem antes tê-los tido à mão: maçãs, pêssegos e abacaxis. E ao apanhar um limão da árvore, sei que posso resvalar em espinhos. Acaricio o pelo de um cão sem receio. Um pássaro nas mãos é o sonho de muita criança; mas, no contato físico, sua fragilidade chega a ser perturbadora. Um peixe vivo é liso e 227 Otto Friedrich Bollnow, op. cit. 228 Kun Chang, Touch – The Forgotten Sense, Max Films Television, exibido na TV Nacional em janeiro de 2004. 229 Diane Ackerman, op. cit. A IDÉIA DE CONFORTO 188 fugidio. Uma cobra, uma aranha e uma rã são texturas indefi- nidas, que me repelem. Mas isto varia de pessoa a pessoa. Fora do mundo natural, a curiosidade tátil não é menor. E é sistematicamente reprimida. Nas galerias, não gostaria de