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GUILHERME COELHO DANTAS “Vamos discutir a relação? ”: abordagens de saúde do homem na prática do (a) médico (a) de família Tese apresentada no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Ciências. Área de concentração: Saúde Coletiva Orientadora: Profa. Dra. Márcia Thereza Couto Falcão (Versão corrigida. Resolução CoPGr 6018/11, de 1 de novembro de 2011. A versão original está disponível na Biblioteca da FMUSP) São Paulo 2020 GUILHERME COELHO DANTAS “Vamos discutir a relação? ”: abordagens de saúde do homem na prática do (a) médico (a) de família Tese apresentada no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Ciências. Área de concentração: Saúde Coletiva Orientadora: Profa. Dra. Márcia Thereza Couto Falcão São Paulo 2020 DEDICATÓRIA Gostaria de dedicar essa tese a Luciana, para a minha querida esposa Lu, mulher determinada, provocadora de meus questionamentos e incentivadora na busca dos caminhos que me trouxeram até aqui. Fez-se presente nas etapas decisivas desse projeto. Sim, nós conseguimos! A conquista é nossa. Mais uma vez, te amo, sim. Ao meu amado filho Benjamin, meu Bem, que faz pouco chegou e tanto transformou. Sua presença é sorriso, foi inquietação quando se fez inevitável me concentrar na solitária tarefa do refletir-escrever-respirar-suspirar-refletir- escrever...que este projeto contribua para melhor percepção do cuidado prestado pelos profissionais a ti e autocuidado dos homens em nossa sociedade. Te amo, filho. Aos queridos amigos Fernando e Gary, distantes, mas presentes na atenção ao menino, ao homem, ao humano que habita em todos nós. Abriram caminhos no tema, me levaram de roldão. Trago mais um suspiro para nossa reflexão. E aos meus pais, Garibaldi e Helena, que por esse amor que só agora começo a compreender, disseram SIM às minhas buscas não importando quão longe eu tenha ido atrás de respostas. Sim, meus querid*s, essa caminhada irá prosseguir. AGRADECIMENTOS A minha orientadora e parceira nessa jornada acadêmica, Profa. Dra. Márcia Couto, por acreditar que eu poderia realizar esse percurso metodológico ousado na investigação da trajetória dos homens na sua relação com sua saúde. Foi sofrido, sim. Mas também foi divertido, surpreendente, enlouquecedor como uma folha em branco. MAS sem esse dínamo, esse caminho teria sido muito mais penoso. Levo a lembrança do seu afeto, seu compromisso com o ensinar sem estar ensinando, e algum aprendizado na condução do barco com a leveza que a vida pede, mas não ensina. Ao Prof. Dr. Homero Salazar [in memoriam], da Parasitologia para o cargo de diretor eleito da FCM, UERJ – 1988-91, foi o mestre em todos os sentidos. Quando mais perdido estava, ele acreditou na minha visão e inconformismo diante da precariedade do ensino e tamanha injustiça social. Ao professor que tanto me ensinou sobre o ser humano, sobre a ética experienciada, que transmitiu sabedoria com humor e picardia. Ainda faltou tanto a aprender que uma vida não seria o bastante. MAS sem sua presença, eu não teria voado tão longe nem por tanto tempo até chegar a este dia. A quem levo como referência de comportamento ético, paciência para com as dores e mazelas do ser humano, Manuel Martins, que exemplo maravilhoso!! Que sua modéstia diante de tanta sabedoria tenha se misturado a minha práxis. Que privilégio foi ter sido seu residente por alguns meses, no meio da dor e do questionamento, aprendizado que se faz até hoje, 25 anos depois. A amiga Maria Celia Detoni que acreditou e me orientou no meu projeto de conclusão de residência (1998), que me conduziu ao mestrado e doutorado. Sempre na busca de entender o pensar e agir dos homens no cuidado de sua saúde. Admiração pela pessoa e profissional que foram de imenso auxílio nessa trajetória. Ao ‘Bruxo’, Mago, ao querido Dr. Grossman, que na sua sabedoria infinita me esperava chegar mais longe apesar de todo tempo que precisava mantendo sua curiosidade, interesse e bom humor assistindo os percalços do residente e depois desbravador num mestrado em terras estranhas. Ao primeiro supervisor de clínica, Bulhões que, ao me perguntar sobre o nome do gato da paciente citado nesta tese, tentou me mostrar como a prática da medicina pode ser prazerosa, sem perder a seriedade quando esta se faz necessária. Por onde você estiver.... Obrigado! Ao querido amigo e prof. Luís Barco, ouvinte e apoiador de meus anseios no compartilhamento diante de uma medicina tão desumana para com os seus. Espero que este trabalho possa responder, ao menos em parte, aos nossos anseios pelo cumprimento de seu papel original no cuidar das pessoas com empatia e solidariedade. Werner, amigo e companheiro do Grupo de Pais do qual participei por 10 anos, onde compartilhamos tantas vivências e tanto aprendemos sobre ser homem e pai em nossas distintas sociedades, e com quem compartilhei este sonho de investigação sobre a saúde do homem. A Valério Nascimento que lidera um grupo de homens que começamos juntos em 2009. Grato pela parceria e persistência na lida !! Gabriela, querida amiga reencontrada nos corredores de saber, parceira nas angústias e incertezas que encobriram nossas pegadas. Sigamos juntos ou paralelos na busca diante de nossas inquietações. A Equipe do Departamento de Medicina Preventiva, Lilian Prado e Gorete de Sales, que me orientaram desde o início até os momentos cruciais dessa jornada presencial e a distância. Aos colegas do Grupo SIMAS pelas discussões e sugestões quando este trabalho ainda era projeto de pesquisa. A equipe da Biblioteca FM USP, em especial a Isabel Figueiredo, pelos ensinamentos ao abrir os caminhos digitais do magnífico acervo dessa casa onde reencontrei o prazer da busca do conhecimento. A Secretaria de Saúde de Florianópolis, na figura de Matheus M. P. Andrade, que acreditou no projeto e autorizou uso de parte das horas necessárias a cumprir algumas das atividades essenciais desse programa. Gratidão pela disponibilidade para permanente diálogo sobre a rede de atenção à saúde em Florianópolis para a qual contribui com seu conhecimento e inteligência. Fonte de grande aprendizado. Aos profissionais de saúde dos Centros de Saúde Acosta e Bagé em que se realizou esta investigação, pelo acolhimento e pelo auxílio em momentos cruciais desse projeto. A Maria Luisa Iusten, que veio em meu auxílio para algumas entrevistas quando dúvidas tivemos se pelo fato de pertencer a rede dificultava a coleta de dados enquanto entrevistador. Ao querido Jader Barcelos na sua serenidade e parceria na última etapa, o grupo focal, desafio previsto em reunir os homens e finalmente realizado! A Jessica Lima Ramos pela transcrição de todas as entrevistas e grupo focal realizadas ao longo de dois anos. Pela recuperação inestimável de alguns arquivos que suspeitei terem desaparecido em frente aos meus olhos! E a revisora Ana Carla N. Tobias que se reuniu a essa equipe na reta final viabilizando montar esse quebra-cabeça que não parou de crescer até o último minuto! Já na prorrogação, contei ainda com o valioso auxílio técnico do colega Augusto Mathias que viabilizou a defesa diante da banca. E a querida amiga Patricia Golino a trazer serenidade e um sorriso para a nau incandescente rumo a defesa. A Prof. Dra. Ana Claudia Germani, Prof. Dr. Charles Tesser e Prof. Dr. Wagner Figueiredo pelas valiosas contribuições norteadoras por ocasião da qualificaçãoe banca examinadora desta tese. Por fim, meu agradecimento especial aos homens entrevistados que permitiram que eu adentrasse episodicamente em seus lares, em suas vidas, compartilhando suas ricas experiências de aflição e dor vividas com o adoecimento, mas prestando também seus testemunhos de força e superação desses problemas. Em particular destaco aquele que não foi entrevistado, mas que erraticamente o atendi sem conseguir alcançá-lo até sua despedida aos 62 anos, no silêncio do não dito. Desejo que esta investigação colabore para que muito mais homens venham a cuidar melhor de si e de seus pares. #NinguémSoltaaMãodeNinguém. Muito obrigado a tod*s pelo incentivo e auxílios diversos para a realização desta investigação. Ingredientes que me inspiraram na confecção dessa tese: Humor, Humildade, Humanidade Federico Navarro (1924-2002) Após tantos anos, algumas trançadas linhas: Aos meus botões Que a solidão se desfaça no encontro Que o sorriso supere o choro contido Não somos mais, nem menos Que o medo seja vencido Para nos tornarmos aquilo que temos direito a ser Que tenha valido a pena ter vivido Sonhado e realizado aquilo em que acreditei que precisava ser dito. Virar a página, ponto. Parágrafo... A busca continua. E por fim, uma canção, que embala a alma e suaviza a queda Father and Son (...) I was once like you are now, and I know that it's not easy To be calm when you've found something going on But take your time, think a lot Why, think of everything you've got For you will still be here tomorrow, but your dreams may not (...) Steven Demetre Georgiou (1948 -1965) Cat Stevens (1965 -1980) Yusuf Islam (1980 - presente) Esta dissertação ou tese está de acordo com as seguintes normas, em vigor no momento desta publicação: Referências: adaptado de International Committee of Medical Journals Editors (Vancouver). Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina. Divisão de Biblioteca e Documentação. Guia de apresentação de dissertações, teses e monografias. Elaborado por Anneliese Carneiro da Cunha, Maria Julia de A. L. Freddi, Maria F. Crestana, Marinalva de Souza Aragão, Suely Campos Cardoso, Valéria Vilhena. 3a ed. São Paulo: Divisão de Biblioteca e Documentação; 2011. Abreviaturas dos títulos dos periódicos de acordo com List of Journals Indexed in Index Medicus. SUMÁRIO LISTA DE FIGURAS LISTA DE TABELAS LISTA DE GRÁFICO GLOSSÁRIO RESUMO ABSTRACT APRESENTAÇÃO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 1 1.1 Homens, padrões de mortalidade e políticas de saúde...................... 2 1.2 Homens, padrão de morbidade e a busca dos serviços de saúde .. 15 2 OBJETIVOS ............................................................................................. 27 2.1 OBJETIVO GERAL ............................................................................... 27 2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ................................................................. 27 3 REFERENCIAL TEÓRICO ....................................................................... 28 3.1 Masculinidade e cuidados ................................................................... 28 3.2 Os Homens, a saúde e a prevenção quaternária .............................. 40 3.3 A Relação Médico(a) + Pessoa na Prática da MFC ........................... 44 3.4 Contextualização da Medicina de Família e Comunidade ................ 45 3.5 Aspectos da Comunicação na Consulta Médica ............................... 66 3.6 Métodos de Abordagem na Relação Médico + Pessoa .................... 68 4 METODOLOGIA ....................................................................................... 77 4.1 O desenho da pesquisa ....................................................................... 78 4.2 Caracterização do campo de pesquisa .............................................. 80 4.2.1 Estrutura da APS em Florianópolis ..................................................... 80 4.3 Sobre o campo de pesquisa: a produção do material empírico ...... 81 4.3.1 Etapa 1: Entrevistas com homens usuários ........................................ 82 4.3.2 Etapa 2: Entrevistas com médicos de família e comunidade .............. 87 4.3.2 Etapa 3: Devolutiva com os homens usuários .................................... 91 4.4 Aspectos éticos ................................................................................... 93 4.5 Impressões do pesquisador (médico) acerca do trabalho de campo ................................................................................................................... 953 5 RESULTADOS E DISCUSSÃO .............................................................. 102 5.1 Concepções saúde–doença e as masculinidades: as experiências dos homens nos serviços de APS ......................................................... 102 5.1.2 Experiências dos homens nos serviços de APS ......................... 116 5.2 Considerações sobre a Frequente Troca de Médicos .................... 122 5.2.2 Percepções dos médicos de família ............................................. 125 5.3 Vínculo e relação médico + pessoa .................................................. 137 5.3.1 Tempo satisfatório, mas atenção do médico dividida ....................... 137 5.4 A consulta para além da abordagem técnica .................................. 144 5.5 Sexualidade e Saúde Mental: dimensões da expressão de si e do cuidado na relação médico + pessoa..................................................... 151 5.6 Estamos, portanto, ‘discutindo a relação’ ...................................... 163 5.7 Como esse homem na consulta é percebido pelos profissionais de Saúde, na maioria mulheres? ................................................................. 170 5.7.1 Como os homens se sentem diante dessas médicas? ............... 171 5.8 Limitações à Implementação do Humaniza SUS ............................. 173 5.9 Trajetória de Inclusão dos Conceitos Relativos à Humanização na Formação Médica ..................................................................................... 178 6 SUGESTÕES PARA APRIMORAMENTO ............................................. 184 6.1 Sugestões para as (os) Médicas (os) – Praticando a Parceria ....... 186 6.2 Sugestões para discutir com a Equipe ............................................ 192 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 195 REFERÊNCIAS ......................................................................................... 197 ANEXOS .................................................................................................... 227 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Ciclo de invisibilidade do homem no serviço de saúde................ 26 Figura 2 - Modelo de Identidade do Papel de Gênero ................................. 32 Figura 3 - Algoritmo da interseccionalidade ................................................. 40 Figura 4. Fluxograma – Etapas da coleta de dados. .................................... 79 Figura 5 - Visão geral das Estratégias chave adotadas para Implementação do Programa de Saúde do Homem da Irlanda. .......................................... 186 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - População brasileira na faixa etária de 20 a 59 anos por sexo – Brasil, 2012 .................................................................................................... 7 Tabela 2 – Taxa de internação/100 mil homens por capítulo CID-10 e faixa etária – Brasil,2015 ....................................................................................... 8 Tabela 3 - Taxa de mortalidade em homens por capítulo CID-10 e faixa etária – Brasil, 2014 ..................................................................................... 10 Tabela 4 - Entrevistas com usuários conforme CS origem e local de realização .................................................................................................... 83 Tabela 5 - Caracterização dos entrevistados Etapa 1 da Pesquisa (CS ACOSTA). .................................................................................................... 85 Tabela 6 - Caracterização dos entrevistados Etapa 1 da Pesquisa (CS BAGÉ). ......................................................................................................... 86 Tabela 7 – Perfil dos médicos de família entrevistados. .............................. 87 Tabela 8 – Vinhetas escolhidas pela maioria dos médicos de família entrevistados................................................................................................ 90 Tabela 9 – Distribuição dos participantes de acordo com a CS na devolutiva ..................................................................................................................... 93 LISTA DE GRÁFICO Gráfico 1 - Taxa de mortalidade por causas externas em homens por faixa etária – Brasil,2014 ...................................................................................... 11 GLOSSÁRIO ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva ACS - agentes comunitários de saúde ATSH - Área Técnica de Saúde do Homem CAPS - Centro de Atenção Psicossocial CDC - Center for Diseases Control, USA, Centro de Controle de Doenças, componente do Departamento de Saúde e Serviços do Governo dos EUA CEBES - Centro Brasileiro de Estudos em Saúde CID B 24 - denominação usada pelo Código Internacional de Doenças para designar pessoas portadoras do vírus HIV que tiveram doença relacionada. CS - Centro de Saúde, denominação da unidade de saúde da Estratégia da Saúde da Família em Florianópolis. ESF – Estratégia de Saúde da Família. Especialista focal – médico cuja especialidade é focada num determinado sistema ou conjunto de órgãos. ESSQ - Inquérito Social e Sanitária da Província do Quebec, Canadá Health Canada - Ministério da Saúde, Canadá HSE, Ireland, Health Service Executive, Sistema Público de Saúde da Irlanda INCA - Instituto Nacional do Câncer INR (in English), RNI (português) – international normalized ratio, medida realizada a partir de dosagem no sangue de elementos que fornecem indicação sobre ajuste de dose de cumarínico que visa evitar risco de trombose ou acidente vascular encefálico IST – infecção sexualmente transmissível. MCCP – Método clínico centrado no paciente (Stewart et al) ou Método clínico centrado na pessoa (tradução de Lopes, JMC). MFC - Médico de Família e Comunidade ou Medicina de Família e Comunidade. MGC -Medicina Geral e Comunitária MPS - Medicina Preventiva e Social MS - Ministério da Saúde NHS - National Health System, Sistema de Saúde Pública (Reino Unido) NOSP - National Office for Suicide Prevention, Irlanda (Agência Nacional de Prevenção ao Suicídio) OMS – Organização Mundial de Saúde ou WHO (inglês) OPAS – Organização Panamericana de Saúde ou PAHO (inglês) PAISM - Programa de Atenção Integral da Saúde da Mulher PAR - Programa de Apoio as Residências de Medicina Social, Medicina Preventiva e Saúde Pública PBI - Problem Based Interview (Entrevista baseada no problema) PMMB - perfil da morbimortalidade masculina no Brasil PNAB – Política Nacional de Atenção Básica PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAISH - Política Nacional de Atenção à Saúde Integral do Homem PNH - Política Nacional de Humanização PSA – Prostate Specific Antigen (Antígeno Prostático Específico) PSE - Programa Saúde na Escola SBMFC - Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade SBU - Sociedade Brasileira de Urologia SIM - Sistema de Informação de Mortalidade SUS - Sistema Único de Saúde TDC - tomada de decisão compartilhada UBS - unidade básica de saúde UKNSC - United Kingdom National Screening Comittee - Comitê Nacional de Screening do Reino Unido UPA - Unidade de Pronto Atendimento USF - Unidade de Saúde de Família USPSTF - United States Preventive Services Task Force- grupo independente formado por voluntários ‘experts’ em medicina preventiva baseada em evidência RESUMO DANTAS GC. “Vamos discutir a relação? ”: abordagens de saúde do homem na prática do (a) médico (a) de família [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2020. INTRODUÇÃO: O tema “Saúde do homem” passou a fazer parte da agenda de gestores e profissionais de saúde na Atenção Primária a Saúde (APS), a partir de 2009, quando foi lançada a Política Nacional de Atenção à Saúde Integral do Homem (PNAISH). Entretanto, a temática ainda permanece periférica na formação dos profissionais de saúde, particularmente os médicos. Por sua vez, a relação médico-paciente vem passando por grande transformação desde os estudos de Balint na década de 1950: de uma abordagem paternalista para modelo de cuidado centrado na pessoa, o qual busca incluir maior participação do sujeito, com destaque para sua maior autonomia no processo de tomada de decisão. OBJETIVO GERAL: Compreender abordagens de comunicação entre médicos (as) de família e homens usuários atendidos em unidades de saúde em APS no município de Florianópolis, SC, visando identificar os limites e possibilidades de um cuidado efetivo a este segmento da população. METODOLOGIA: A investigação se pautou na modalidade de pesquisa qualitativa, utilizando as técnicas de entrevistas semiestruturadas e grupos focais na produção dos dados empíricos. A pesquisa ocorreu em três etapas. Na primeira, foram entrevistados 18 homens adultos que relataram suas concepções saúde – doença entremeadas ao exercício de suas masculinidades; o impacto da frequente troca de médicos na relação com o profissional; a atenção dividida do profissional entre várias atribuições e a dimensão da consulta que não se limita a abordagem técnica. Na segunda, foram entrevistados quatro médico (a) s, os quais propuseram algumas técnicas para mitigar as dificuldades apontadas e enfrentadas pelos homens usuários no contexto do cuidado em saúde e da consulta clínica. Na etapa final, os resultados obtidos com a produção dos dados da segunda etapa foram compartilhados em grupo focal e entrevistas semiestruturadas com os participantes da primeira etapa, visando identificar a adequação das proposições do (a) s médico(a)s. RESULTADOS: No tocante a percepção dos homens usuários, atenção dividida do médico (a) entre várias tarefas os desagradou apesar de cientes dos motivos. A frequente troca de médicos gerou frustração e causou impacto na formação do vínculo. Por outro lado, reconheceram os benefícios de uma abordagem que supera a estrita precisão técnica. Já os médicos, quando estimulados pelas percepções oriundas dos homens usuários, demonstraram reconhecimento das dificuldades e inseguranças dos homens diante do risco de a enfermidade limitar sua forma de viver; assim como seu aprisionamento no papel tradicional masculino, o que pode gerar dificuldades para que façam a busca ativa de cuidado de saúde. Os médicos(a)s também recomendaram aos colegas que estejam atentos e compartilhem com os homens suas impressões no tempo e formato mais adequados. Para os homens, fica evidente seu interesse em participar de uma relação continuada, mas questionam se a mesma irá perdurar diante da instabilidade nos serviços de saúde. CONCLUSÃO: Oestudo mostra que a compreensão das falas dos homens usuários e médico(a)s, a partir dos seus lugares sociais, é complexa pela sua diversidade, pelos temores e experiências prévias e pela assimetria da relação médico-pessoa. O trabalho aponta que estratégias como manter os espaços de troca entre os profissionais, garantir espaço de participação das pessoas atendidas e respeito por parte dos gestores à complexidade envolvida no cuidado oferecido na APS, com qualidade e competência cultural, constituem aspectos fundamentais para que se alcancem as melhorias necessárias no campo da relação comunicacional médico(a)s-pessoas e, de maneira mais ampla, do cuidado em saúde. Descritores: Masculinidades; Saúde do Homem; Relação Médico-Paciente; Medicina de Família e Comunidade; Atenção Primária a Saúde; Estratégia Saúde da Família; Pesquisa Qualitativa. ABSTRACT DANTAS GC. “Shall we discuss the relationship?”: Men's health approaches in the practice of the family doctor [dissertation]. São Paulo: “Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo”; 2020. INTRODUCTION: The theme “Men's health” became part of the agenda of managers and health professionals in Primary Health Care (PHC), starting in 2009, when the National Policy for Comprehensive Men's Health (PNAISH) was launched. However, the theme remains peripheral in the training of health professionals, particularly doctors. In turn, the doctor-patient relationship has undergone a major transformation since Balint's studies in the 1950s: from a paternalistic approach to a person-centered care model, which seeks to include greater subject participation, with emphasis on its greater autonomy in the decision-making process. General Objective: To understand communication approaches between family doctors and male users attended at PHC health units in the city of Florianópolis, SC, aiming to identify the limits and possibilities of effective care for this segment of the population. METHODOLOGY: The investigation was based on the qualitative research modality, using the techniques of semi-structured interviews and focus groups in the production of empirical data. The research took place in three stages. In the first, 18 adult men were interviewed who reported their conceptions of health - disease interspersed with the exercise of their masculinities; the impact of the frequent shift of doctors in the relationship with the professional; the professional's divided attention between various attributions and the dimension of the consultation that is not limited to the technical approach. In the second, four doctors were interviewed, who proposed some techniques to mitigate the difficulties pointed out and faced by the male users in the context of health care and clinical consultation. In the final stage, the results obtained with the production of the data from the second stage were shared in a focus group and semi-structured interviews with the participants of the first stage, in order to identify the adequacy of the doctor's propositions. RESULTS: Regarding the perception of male users, the physician's divided attention between various tasks displeased them despite being aware of the reasons. The frequent change of doctors generated frustration and impacted the formation of the bond. Notwithstanding, they recognized the benefits of an approach that goes beyond the strict technical precision. Physicians, on the other hand, when made aware of by the perceptions of male users, demonstrated recognition of the difficulties and insecurities of men in view of the risk of the disease limiting their way of living; as well as their entrenchment in the traditional male role, which can cause difficulties for them to actively search for health care. The doctor (s) also recommended that colleagues be attentive and share their impressions with the men in the most appropriate format and timely fashion. For men, their interest in participating in a continued relationship is evident, but they question whether it will last in the face of instability in health services. CONCLUSION: The study shows that the understanding of the communication styles of male users and doctors, based on their social places, is complex due to their diversity, the fears and previous experiences and the asymmetry of the doctor-person relationship. The work points out that strategies such as maintaining the spaces of exchange between professionals, guaranteeing the participation space of the people served and respect on the part of managers to the complexity involved in the care offered in PHC, with quality and cultural competence, are fundamental aspects for reaching the necessary improvements in the field of the communication relationship between doctor (a) s-people and, more broadly, health care. Descriptors: Masculinities, Men's Health, Doctor-Patient Relationship, Family and Community Medicine, Primary Health Care, Family Health Strategy, Qualitative Research. APRESENTAÇÃO O tema da saúde do homem tem me interessado desde 1995, quando era médico residente do programa de Medicina Geral e Comunitária no Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre (RS). Em minha prática clínica junto a usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), observava que a maioria da população atendida era tipicamente formada por mulheres, crianças e idosos. Em frente ao centro de saúde onde atuava, havia um bar onde os homens do bairro se encontravam. Aquela distância de poucos metros entre o “lugar” das mulheres e crianças e o “lugar” dos homens, me levou a refletir sobre o autocuidado masculino em nossa sociedade, assim como o papel dos profissionais de saúde e das políticas públicas em saúde no sentido de colaborarem ou não para a aproximação dos homens e os serviços de saúde em atenção primária. Concomitantemente, fui assistente do coordenador de um grupo de homens que se reunia quinzenalmente. Eram seis homens de classe média interessados em discutir aspectos diversos do “ser homem”. A vivência clínica me fez perceber que a visão masculina sobre aspectos preventivos e o “tempo” dos homens na consulta eram muito diferentes, comparativamente às mulheres. A partir disso, decidi buscar compreender em meu trabalho de conclusão de residência, a visão de saúde e doença e aspectos relacionados ao cuidado da saúde dos homens da vila em que atuava (Dantas, 1998). Dentre as falas dos usuários utilizadas na pesquisa realizada no período de residência, destaco dois aspectos: a proximidade da unidade de saúde dos moradores causava incômodo devido à perda do anonimato, pois tinham receio de que os vizinhos especulassem sobre o motivo de sua presença naquele espaço. Daí a preferência pelo serviço de emergência do hospital. Quanto à experiência de ter um familiar doente, a angústia de não se sentirem habilitados a auxiliar emocionalmente seus parentes os mobilizava, levando-os a manejar ajuda financeira, alcançada através do seu trabalho, como meio de legitimar e garantir seu papel de provedor, o que os tornaria o “solucionador” imediato do problema. Este aspecto estava intimamente ligado ao exercício daquilo que eles consideravam central no exercício de sua masculinidade. Ao completar o programa de Residência, fui aceito para realizar o Mestrado em Medicina de Família e Comunidade na Universidade de Toronto, Canadá. O programa consistia em cumprir disciplinas obrigatórias e optativas, além de participar de atividades didáticas no curso de Graduação da Medicina e em atividades comunitárias. Pelo meu interesse no tema da saúde do homem, pleiteei e fui aceito como observador num grupo de homens que eram pais, e cujas mulheres apresentaram depressão pós- parto. Assim, em 1998 comeceia participar das reuniões mensais lideradas por um médico de família e um assistente social e segui participando da atividade após o término do mestrado. Em 2001, Toronto se deparou com a epidemia de SARS (síndrome respiratória aguda grave) ocasionando o fechamento do hospital para os encontros do grupo. Nessa ocasião, os coordenadores que iniciaram o grupo em 1988 decidiram deixar o grupo, o qual também fechou para o ingresso de novos membros. Naquele momento, o grupo se consolidou com cinco homens entre 45 e 60 anos de idade, todos moradores e trabalhadores da cidade, com nível universitário completo, sendo que quatro deles eram casados e todos tinham filhos entre 3 e 16 anos de idade. Nessa oportunidade, me ofereci para assumir a coordenação e o foco inicial foi se expandindo da relação com os filhos (as) e as esposas para outros temas de interesse correlatos propostos pelos participantes. Em comum, o grupo debatia três temas principais: o isolamento sentido em relação a outros homens, pois não conseguiam compartilhar dos estereótipos típicos da masculinidade hegemônica; problemas quanto à comunicação e expectativa de suas parceiras em relação às demandas da vida cotidiana e divisão de tarefas domésticas; e, finalmente, os desafios e benefícios de conviver com os filhos (as) e aprender com as mudanças advindas do seu desenvolvimento. A permanência do grupo por tantos anos era creditada pelos participantes pelo fato de se sentirem ouvidos, mas não necessariamente julgados, o que os motivava a comparecer mensalmente até 2008, quando deixei o país. Em 2009, após breve experiência clínica como médico de família numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, ingressei no corpo docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, onde ministrei disciplinas do 1º aos 5º anos do curso de Medicina, assim como na disciplina de Saúde Coletiva da Faculdade de Educação Física e Ciências do Desporto. Além disso fui tutor do programa PET Saúde do Ministério da Educação no qual, dentre as diversas atividades realizadas no período de 2009-2012, merece destaque a criação de um grupo de homens de periodicidade mensal, o qual se mantem ativo até hoje, e a resposta numérica expressiva no evento organizado por ocasião do Dia da Saúde do Homem na unidade básica de saúde (UBS) em que atuava, que contou com participação de alunos da graduação de sete áreas da saúde. Em 2009, a partir do lançamento da Política Nacional de Atenção à Saúde Integral do Homem (PNAISH), o tema da saúde do homem passou a fazer parte da agenda de gestores, mas ainda hoje permanece marginal na formação dos médicos de família, de acordo com o reduzido número de trabalhos apresentados em congressos regionais e nacionais da área na última década. Uma vez que não se discute na graduação ou mesmo pós- graduação médica de que forma e em que dimensão o exercício da masculinidade influencia o autocuidado e como se expressa no contexto clínico, tenho questionado sobre a adequação da abordagem dos homens nas consultas da Medicina de Família e Comunidade (MFC). Apesar de os cursos da área da saúde terem incorporado o ensino de habilidades de comunicação (Machado et al., 2018), estas têm se mostrado insuficientes para modificar a situação atual da relação assistencial permeada por aspectos relacionados a gênero. Portanto, este projeto visa identificar elementos na relação médico (a) - paciente que os homens consideram ser necessários para comunicação efetiva e mais enriquecedora para se formar uma aliança que seja realmente terapêutica no amplo sentido da palavra. Em síntese, esse trabalho se justifica pelo vácuo que percebo na formação médica acerca desse tópico e pelo meu interesse no aprimoramento da comunicação no contexto da prática clínica, pela riqueza emergente da relação com homens e mulheres atendidos ao longo da última década, seja no período como docente em que se sobrepunha o papel do ensino dentro da supervisão do atendimento a estudantes num ambulatório de medicina de família, seja posteriormente na minha prática como médico de família e comunidade. Assinalo aqui a minha opção por me concentrar nesse profissional sem com isso desmerecer a importância do trabalho efetuado pelas demais áreas e profissões dentro da perspectiva do trabalho em equipe na Atenção Primária à Saúde*; mas entendo que posso contribuir de forma mais efetiva a partir do ponto de vista do meu pertencimento e prática. Por fim, acredito na especialidade de MFC como estratégica para promover uma relação igualitária pela defesa da autonomia e respeito ao indivíduo. Considero que a melhoria da comunicação no contexto desta prática clínica irá promover sua aproximação do papel de referência para o cuidado em saúde para pessoas, guardados seus pertencimentos de gênero, classe, geração, sexualidade e raça/cor. Esta tese está organizada em sete partes, sendo que a primeira contém a apresentação e introdução ao tema, delimitação do problema de pesquisa e objetivos gerais e específicos. * Nesta tese optei por usar o termo APS ao invés de Atenção Básica (AB) ciente da controvérsia na literatura (Sampaio et al, 2018; Giovanella, 2018) na qual alguns autores defendem o uso de AB porque historicamente a denominação APS estaria vinculada a abordagem seletiva de cesta se serviços que foi traduzida por Mario Testa como atenção primitiva ou “medicina pobre para pobres” (Testa, 1992). Por outro lado, a denominação APS se relaciona de forma lógica com os demais níveis de atenção e dialoga de forma coesa com a literatura internacional. Ainda assim, cabe aos formuladores das políticas e gestores garantirem recursos para que a meta presente no compromisso diante dos preceitos do SUS quanto a atenção primária à saúde integral e de qualidade permaneça ao alcance de todos. Em seguida o referencial teórico-metodológico compreende os marcos teórico-conceituais assim como o detalhamento do percurso metodológico de produção, tratamento e análise dos dados. Por fim, as questões éticas que norteiam esta pesquisa em especial observações referentes a pontos fortes e limitações pelo fato de o pesquisador ser integrante da instituição em que os dados foram coletados. Na quinta parte são apresentados e discutidos os dados a partir do diálogo proposto entre as partes que não costumam discutir essa relação. A sexta parte buscou oferecer sugestões para o aprimoramento da prática dos profissionais de saúde. Além dessa contribuição, busquei inserir ao longo da tese situações da minha prática cínica para ilustrar e contextualizar alguns aspectos da tese, visando amplificar o diálogo pretendido com o leitor. As considerações finais são apresentadas na sétima parte. As referências bibliográficas, os anexos e os apêndices referenciados ao longo do texto estão organizados na última parte. Por fim, cabe um esclarecimento acerca do título: baseado numa expressão que insinua intimidade, muitas vezes evitada pelos homens em geral, mas intimidade que pode se criar nessa relação médico-paciente. Afinal, busca-se no ‘tempo ao tempo’ a oportunidade de aproximação entre as partes, o que pode ser catalisada pela vulnerabilidade ou circunstâncias envolvidas nesse processo de autoconhecimento proporcionada pelo adoecer ou idealmente na busca pela manutenção da saúde. Essa relação pode até mesmo incluir outros membros da família, em função da abordagem proporcionada pela especialidade principalmente no ambiente da ESF. Fazer esta roda girar a partir do estranhamento pelo desconhecido até se criar o hábito dessa referência em saúde é objetivo imanente, seu sucesso vai depender da permeabilidade das partes ao novo, em ambiente propício, mediante as circunstâncias vivenciadas. Portanto, o convite que faço é: ‘vamos discutir essa relação’?1 1 INTRODUÇÃO Esta introdução se inicia com a aproximação ao tema e objeto desta tese a partir do recurso de uma revisão de literatura não exaustiva, produzida nacional e internacionalmente. A busca bibliográfica, a partir da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), da Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), foi inicialmente realizada em fevereiro de 2018 e atualizada em dezembro de 2019. Utilizou-se os descritores “relação médico-paciente” e “saúde do homem”. A pesquisa se concentrou em artigos relativos à medicina de família publicados em português, inglês, francês e espanhol entre os anos de 2009 e 2019. Adicionalmente, foram incorporados artigos e documentos (teses) considerados consagrados, pela importância dentro dos temas pesquisados, a partir de sugestão de outros pesquisadores e professores, mesmo fora do recorte temporal definido. Foram revisados 508 referencias, das quais 350 revelaram maior pertinência com a temática desse projeto. A partir da década de 1980, a saúde do homem ganhou destaque no meio acadêmico internacional com uma série de congressos e livros publicados, tais como o de Brod (1987) e a coleção de livros editados por Sabo e Gordon (1995). Entre os autores destas coletâneas, Waldron (1995) destacou a menor expectativa de vida masculina e o impacto dos padrões de comportamento e papéis sociais desempenhados. Além disso, o autor destacava a preponderância de doenças cardiovasculares e causas externas no perfil de morbimortalidade masculina nos Estados Unidos ao longo da década de 80 do século XX. O final do século foi marcado pela Conferência Internacional sobre a Saúde do Homem em Viena (1999) seguido do Relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2000) que foi debatido nos editoriais do ‘British Medical Journal’ (BMJ, 2001) e The Lancet (2001). Em comum a mensagem pela organização de um movimento acerca da A revisão da literatura, sumariamente apresentada na sessão de introdução, não teve como objetivo tratar de forma exaustiva os temas e o debate que envolve os artigos captados na busca, mas utilizá-los para melhor situar o objeto desta tese. 2 saúde do homem e uma chamada pela colaboração entre órgãos internacionais. Na Europa a expectativa de vida ao nascer dos homens se elevou em todos os países no período 2000-2016 alcançando 81.2 anos na Suíça e 64.7 no Turquimenistão, enquanto a expectativa de vida saudável é de 72.4 anos de idade para os países nórdicos e da Europa Ocidental (WHO, 2018). O relatório destaca ainda a mortalidade prematura, ocorrida entre os 30 e 69 anos de idade, relacionadas a doenças não transmissíveis e ferimentos intencionais e não intencionais; as inequidades na saúde física e mental e a busca de melhoria nas áreas de autocuidado, paternidade, trabalho não remunerado, prevenção de violência e saúde sexual e reprodutiva. O estudo sobre o Impacto Global das Doenças (WHO, 2014) mostrou que, no período de 1970-2010, a expectativa de vida da mulher ao nascer aumentou de 61 para 73 anos, enquanto a do homem cresceu de 56 para 67 anos. Esse substancial aumento entre as mulheres alargou a disparidade da expectativa de vida entre homens e mulheres de 4,8 anos para 5,8 anos. Estudos globais sobre mortalidade revelaram que, dos 67 fatores de risco listados, 60 responderam por mais mortes masculinas do que femininas Lim et al. (2012). Peralta et al. (2010) e Robertson et al (2016) apontam que o exercício da masculinidade aumenta a probabilidade de comportamentos de risco, contribuindo para piores indicadores de saúde quando comparados às mulheres. Mais recentemente, o relatório da organização não governamental (ONG) Promundo mostrou associação entre sete tipos de comportamento, a saber: dieta pobre, uso de tabaco, álcool, riscos ocupacionais, sexo não seguro, uso de drogas e reduzida procura de serviço de saúde, estavam relacionados a metade das mortes e 70% das causas de adoecimento (Ragonese et al., 2019). 1.1 Homens, padrões de mortalidade e políticas de saúde Acerca do paradoxo da relação homens-saúde, no qual ao mesmo tempo em que os homens detêm poder e prestígio frente às mulheres na 3 sociedade, apresentam sobretaxas de mortalidade para a grande maioria das causas de morte (Gomes e Nascimento, 2006; Couto e Gomes, 2012), agências internacionais e governos de diferentes países buscaram formular políticas para fazer frente ao chamado Déficit de Saúde dos Homens, que tem sido identificado e debatido desde os anos de 1970. Courtenay (2000a) e outros autores indicaram a relação entre as construções sociais das masculinidades e impacto na saúde (Robertson et al., 2016). Diante disso, entre 2001 e 2008 a Irlanda promoveu extenso e abrangente estudo vindo a se tornar o primeiro país no mundo a formular uma política nacional voltada para a saúde do homem. Na época foram destacadas a preocupação com a taxa de mortalidade prematura, principalmente entre aqueles de nível socioeconômico mais baixo e o aumento das taxas de suicídio, especialmente entre os mais jovens (Irlanda, 2008). A revisão da política acerca do período 2008-2013 apontou que existe forte evidência de que uma abordagem sensível ao gênero pode contribuir ainda mais para a melhoria da saúde dos homens (Baker, 2015). Mais recentemente, o Plano de Ação para o período 2017-2021 do governo da Irlanda (Ireland, Health Service Executive, 2016, p.08) recomendou a “criação de ambientes de suporte a serviços sensíveis a questões de gênero visando ampliar parcerias e engajamento entre setores para reforçar ações comunitárias que apoiem iniciativas vinculadas a saúde do homem”. Além disso, os gestores irlandeses propuseram uma abordagem intersetorial levando-se em conta que diversos aspectos pessoais e sociais afetam o bem-estar dos homens e que não haveria um formato de programa que seja do interesse de todos. Essa abordagem considera os determinantes sociais de saúde sob as lentes de gênero, mantendo como referência o engajamento da comunidade tanto em relação aos participantes como em relação às organizações já existentes buscando formar parcerias. Os organizadores valorizam e recomendam permanente presença na comunidade para engajar moradores e promover lideranças entre os participantes. 4 Entre as diversas iniciativas, destaque para um grupo semanal que se reúne no Centro Larkin, em Dublin. O projeto se caracteriza pela confecção de um programa de atividades realizadas, de forma proativa, usando abordagem informal, estimulando a contação de estórias, priorizando momentos de perguntas e respostas, trabalho em pequenos grupos ou exercícios por equipe. Assim, ao longo de 10 semanas é realizada verificação do estado de saúde no início e ao final do período; incluindo testes de aptidão física, treinos de futebol com treinadores do time local (Glasgow Celtic); oficinas de educação e saúde abordando diversos temas usando linguagem apropriada (saúde mental, saúde sexual, tabagismo e uso de álcool, fisioterapia, entre outros) liderados por facilitadores experientes; e aulas de culinária (Lefkowich et al., 2015). A análise dos resultados revelou que propiciando segurança, apoio, confiança e trabalho em equipe foram abordadas normas e pressões sociais vivenciadas pelos homens tais como a expectativa de ser independente e se colocar de forma passiva em assuntos de saúde. Participantes valorizavam as características, o estilo dos facilitadores que demonstram atitudes positivas perante as masculinidades e a saúde do homem vindo a servir como ‘role models’ por conseguirem envolver os homens no processo. A Austrália, por sua vez, tem desenvolvido ações e reflexão consistentes desde a década de 1990, tendo instituído sua Política Nacional em 2010, ano seguinte à publicação da Política Nacional de Atenção Integral a Saúde do Homembrasileira (PNAISH, 2009). Estudos apontam quadro australiano similar ao brasileiro quanto às barreiras pessoais e sistêmicas na procura e uso de serviços de atenção primária (Smith et al., 2006). O programa Men´s SHEDS começou em 1993 e, desde então, se disseminou por diversos países tais como Irlanda, Canadá, Nova Zelândia. A palavra ‘Shed’ tem, entre seus significados, um lugar onde se guarda ferramentas e, neste projeto, se refere ao espaço de encontro para homens desenvolverem atividades em conjunto. O professor Golding (2014), que iniciou essa nova fase do movimento, defende que a iniciativa auxilia a reduzir o desequilíbrio na saúde dos homens, inclusive atuando diretamente no apoio a pessoas 5 com Demência, por exemplo. Ele criou o termo ‘shedagogia’ e argumenta que o aprendizado dos homens ocorre ‘ombro a ombro’. Esse aspecto peculiar de sua visão acerca dos homens deve ser considerado entre os profissionais de saúde, pois a maior parte de nossas atividades de educação em saúde ocorre de forma linear, estruturada, quase clássica no antigo senso da palavra. Entre os participantes, um dos aspectos identificados é a impressão de que cada participante é professor e aluno ao mesmo tempo. Segundo um dos relatórios de avaliação (Misan, 2008), o ‘SHED’ é uma ferramenta para melhoria do letramento em saúde (‘health literacy’), definido por Pessamai (2012) como “(...) o grau pelo qual os indivíduos têm a capacidade para obter, processar e entender informações básicas e serviços necessários para a tomada de decisões adequadas em saúde” (p.301), por propiciar que as preocupações acerca da saúde sejam discutidas entre os pares diferente dos espaços onde se é instruído pelos ‘experts ‘sobre determinado tema. No Brasil, estudos sobre a relação homens-saúde se iniciam na década de 1990 influenciados pelos movimentos mundiais galvanizados pela Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, Egito,1994) e IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz (Pequim, China, 1995) organizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) com ampla participação dos países membros e de Organizações Não Governamentais (ONG). Os documentos formulados trataram da “(...) saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, numa perspectiva de defesa promoção da igualdade de gênero, reconhecendo-se explicitamente que as relações de poder entre homens e mulheres são desiguais” (Leal et al., 2012, p.2610). A presença da discussão de gênero e masculinidades nas publicações do campo da Saúde Coletiva no Brasil avançou a partir dos anos 2000, segundo Araújo, Schraiber e Cohen (2011). Couto e Dantas (2016) realizaram revisão narrativa de artigos veiculados na revista Saúde e Sociedade tendo como critérios de inclusão a categoria analítica ou conceitual sob a perspectiva de gênero e/ou masculinidades. A partir da 6 leitura de 66 trabalhos, as autoras realizaram seleção conforme critérios estabelecidos e chegaram a 49 trabalhos para análise descritiva. Entre os temas mais prevalentes destacam-se a sexualidade, reprodução, agravos à saúde, violência de gênero e suas variações, trabalho e masculinidades, além de outros temas emergentes ou pouco explorados, como envelhecimento e saúde mental. Após detida análise as autoras afirmam que, entre outras conclusões, não existe uma única masculinidade e que elas são mutantes. Reconhecem que essa abordagem permitiu a busca de particularidades das formas de ser homem e da relação com os processos de saúde-adoecimento e cuidado. Assim se aprofundou a discussão sobre as masculinidades. As autoras destacam a importância do trabalho de Connell por situar gênero em intersecção com outros marcadores sociais e que este debate ainda vai se aprofundar no Brasil. Considerando-se a realidade brasileira, em 2017, a expectativa de vida dos homens (72,8 anos) foi menor do que das mulheres (79,6 anos), sendo que a maior diferença foi verificada no estado de Alagoas (9,5 anos a favor das mulheres), enquanto Maranhão, Alagoas e Piauí apresentaram a menor expectativa de vida masculina (66,9 anos). A discrepância entre os sexos é observada desde o primeiro ano de vida: “(...) para cada 1000 nascidos calculou-se a morte de 13 meninos antes de completar o primeiro ano de vida enquanto para o sexo feminino seriam 11 meninas (IBGE, 2018). A PNAISH, como assinalado, foi concebida no período 2008-09, em conformidade com a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), após estudos realizados pela recém-criada Área Técnica de Saúde do Homem (ATSH) do Ministério da Saúde (MS). No processo de elaboração da política, houve período de articulação e debates entre as diversas sociedades médicas, particularmente a de cardiologia, pneumologia, urologia e psiquiatria, que lidam com as causas de mortalidade mais prevalentes além de pesquisadores da temática nos centros de pesquisa, universidades e ONGs. O texto inicial da proposta também foi aberto para consulta pública no período de agosto de 2008 a maio de 2009. Segundo a equipe 7 responsável da ATSH, a política nacional de saúde do homem foi elaborada com o objetivo de melhorar as condições de saúde da população masculina entre 20 e 59 anos de idade, visando reduzir sua morbidade e mortalidade, a partir das causas principais, a saber: doenças do aparelho circulatório; neoplasias (pulmão e fígado); causas externas; doenças do aparelho digestivo e algumas doenças infecciosas e parasitárias. Segundo Censo de 2012, a população masculina dessa faixa etária é formada por 53 milhões de pessoas (IBGE 2011-2012) com a seguinte distribuição por faixa etária (Tabela 1). Tabela 1 - População brasileira na faixa etária de 20 a 59 anos por sexo – Brasil, 2012 Faixa Etária Masculino Feminino Total 20 a 29 anos 17.393.558 17.562.246 34.955.804 30 a 39 anos 14.736.999 15.410.113 30.147.112 40 a 49 anos 12.212.809 13.041.087 25.253.896 50 a 59 anos 8.876.466 9.830.449 18.706.915 Total 53.219.832 55.843.895 109.063.827 Fonte: 2011-2012: IBGE – Estimativas populacionais enviadas para o TCU, estratificadas por idade e sexo pelo MS/SGEP/DATASUS O relatório acerca do perfil da morbimortalidade masculina no Brasil (PMMB, 2018), é baseado nas taxas de internação hospitalar, conforme foi realizado na formulação da PNAISH, em 2009, baseada em dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM, 2005). Dados de 2015 mostram que ocorreram aproximadamente 4 milhões de internações na população de 20 a 59 anos de idade, com discreto predomínio do sexo masculino (3.758/100 mil homens e 3.639/100 mil mulheres). A distribuição de acordo com o CID 10 para as oito primeiras causas, que representam 80 % das causas de morte, de acordo com faixa etária, consta da Tabela 2. 8 Tabela 2 – Taxa de internação/100 mil homens por capítulo CID-10 e faixa etária – Brasil, 2015 No Capítulo CID 10 Taxa 20-29a Taxa 30-39a Taxa 40-49a Taxa 50-59a Taxa Total /100mil 1 XIX. Lesões, Envenenamentos Causas Externas 978 991 921 940 962 2 XI. Doenças do Apar. digestivo 296 453 660 1036 546 3 IX. Doenças do apar. circulatório 79 188 479 1345 412 4 I. Algumas doenças infecciosas e parasitárias 197 271 340 494 300 5 X. Doenças do apar. respiratório 160 196 271 539 258 6 V. Transtornos mentais e comportamen- tais 176 256 267 258 233 7 II. Neoplasias (tumores) 71 112 253 723 233 8 XIV. Doenças do apar. geniturinário 1321 191 257 443 229 Total 2.730 3.189 4.191 6.120 3.758 * Demais grupos suprimidos representam menos de 20% do total Fonte: Ministério da Saúde – Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS). O relatório PMMB compara dados de 2009, ano de lançamento da PNAISH com 2015 e aponta que “houve um aumento significativo das taxas de internações, em todas elas, devidoàs lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas, e chama atenção as taxas da faixa etária de 50 a 59 anos, que em 2009 era 642 e em 2015 subiu para 940.” (Relatório PMMB, 2018, p.19) Em 2015 a doença pelo vírus HIV passou a liderar as causas de internação masculina no grupo das doenças infecto-parasitárias. Cabe destacar que no período 2009-2015 houve grande melhora no tratamento com a introdução de novos medicamentos e disponibilidade dos esquemas 9 PEP (Profilaxia Pós-Exposição ao HIV) cujo número de tratamentos fornecidos pelo SUS subiu de 15 mil para 52 mil/ano nesse período tendo chegado a 82 mil em 2017 (GIV, 2018). Quanto ao perfil de mortalidade, em 2014, ocorreram aproximadamente 360 mil mortes no Brasil na faixa etária de 20 a 59 anos (excluindo os óbitos por gravidez parto e puerpério) com uma taxa de predomínio do sexo masculino de 464 contra 203/100 mil do sexo feminino (maiores detalhes na Tabela 3). Entre os homens, houve aumento nas três principais causas de mortalidade quando comparado aos dados de 2009. Destaque para o aumento na taxa devido às causas externas de morbidade e mortalidade, que subiu de 158 em 2009 para 172/100 mil em 2014. Na comparação por sexo, a taxa por causas externas de morbidade e mortalidade é aproximadamente sete vezes maior no sexo masculino, o que acompanha perfil de outros países, embora a magnitude do risco de ser homem no Brasil seja impressionante e persistente, principalmente para os negros e pobres (Batista, 2005). Considerada a gravidade do alarmante número de óbitos por causas externas, vale destacar alguns pontos. A agressão por meio de disparo de outra arma de fogo ou de arma não especificada foi a principal causa de morte masculina, sendo essas taxas de mortalidade maiores quanto menor for a idade (Gráfico 1). Aos 22 anos, a chance de um homem vir a óbito é quatro vezes maior que a de uma mulher e em relação ao homem branco, morre o dobro de negros (Batista, 2005). A mortalidade precoce resulta em imenso impacto socioeconômico ao refletirmos sobre os dados do Ministério da Saúde que estima termos 700 mil mães adolescentes e 300 mil pais nessa faixa etária (Instituto Papai, 2006) Inclui mortalidade por lesões, envenenamento e algumas outras consequências de causas externas e por causas externas de morbidade e mortalidade. 10 Tabela 3 - Taxa de mortalidade em homens por capítulo CID-10 e faixa etária – Brasil, 2014 No Capítulo CID 10 Taxa 20-29a Taxa 30-39a Taxa 40-49a Taxa 50-59a Taxa Total /100mil 1 XX. Causas externas de morbidade e mortalidade 204 176 141 142 172 2 IX. Doenças do apar. circulatório 10 30 96 291 82 3 II.Neoplasias (tumores) 8 17 57 212 56 4 XI. Doenças do apar. digestivo 4 18 50 98 34 5 I. Algumas doenças infecciosas e parasitárias 10 24 38 58 28 6 XVIII. Sint. sinais e achados anormais Ex. clínicos e de laboratório 10 17 34 66 27 7 X. Doenças do aparelho respiratório 6 12 26 75 24 8 IV. Doenças endócrinas nutricionais e metabólicas 2 6 16 53 15 9 V. Transtornos mentais e comportamentais 2 7 15 24 10 Total 262 318 492 1.060 464 * Demais grupos suprimidos representam menos de 10% do total Fonte: MS/SVS/CGIAE – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM. 11 Gráfico 1 - Taxa de mortalidade por causas externas em homens por faixa etária – Brasil,2014 Fonte: MS/SVS/CGIAE – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM. Quanto aos óbitos por neoplasia afetando os brônquios, pulmões, esôfago e estômago e aqueles relacionados ao aparelho digestivo (doença alcoólica do fígado e a cirrose hepática), tais patologias têm em comum o consumo excessivo de álcool e tabaco ou cigarro como fatores de risco muito relevantes e prevalentes nesse grupo populacional. A pesquisa nacional de saúde, a partir de inquérito domiciliar que usa a amostra mestra da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) revelou que a prevalência do consumo abusivo de álcool entre os homens nos 30 dias anteriores a pesquisa foi de 21,6%, entre os jovens de 18 a 29 anos (18,8%) de cor negra (16,6%) que avaliaram sua saúde como boa ou muito boa (15,6 a 14,9% respectivamente) e sem morbidades referidas (Garcia e de Freitas, 2015). Com base na mesma pesquisa, Malta et al. (2015), relataram a prevalência do uso atual do tabaco ou fumo em torno de 18% para os homens e 11% entre as mulheres, com destaque para pessoas de baixa escolaridade e entre negros e pardos. Visando o enfrentamento destas disparidades em termos de mortalidade, a PNAISH enfrenta dificuldades desde sua formulação. Martins e Malamut (2013) indicaram que sua elaboração se deu a partir de uma decisão política e não de uma demanda reconhecida e compartilhada por toda a população, sobretudo, a masculina. Carrara, Russo e Faro (2009) observaram que o objetivo principal da política estaria no enfraquecimento daquilo que denominaram como resistência masculina à medicina, isto é, 12 seguir protocolos e condutas para os quais este segmento da população ainda não havia sido cooptado. Em outras palavras, a PNAISH impactaria no sentido da medicalização da saúde do homem, o que vai na contramão daquilo que os movimentos feministas buscaram quando contribuíram efetivamente para a formulação do Programa de Atenção Integral da Saúde da Mulher (PAISM, 2004), política pública nacional instituída em 1983. Rohden (2012), por sua vez, relata como se deu no ano anterior ao lançamento da PNAISH a engenhosa articulação entre o slogan “a saúde sexual como portal da saúde do homem” e a divulgação na mídia nacional dos 10 anos de lançamento da famosa ‘pílula azul’ (Viagra®, por exemplo), seguida de campanha no ‘site’ da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) onde se destacava a disfunção erétil como indicativo de cardiopatias, hipertensão arterial e diabetes mellitus. Encontrava-se, desta forma, a estratégia de chamamento para trazer o homem para os serviços de saúde. Por outro lado, diversos autores criticaram a não incorporação das discussões de gênero (Medrado et al., 2010; Leal et al., 2012). Para Nascimento et al. (2009) e Storino et al. (2013), a PNAISH veio a tornar o homem objeto ao invés de sujeito de uma política específica, porque precisaria ser protegido de si mesmo. Esta estratégia proveu mais um passo no processo de “medicalização” do corpo masculino tendo a próstata como foco hipertrofiado. Por sua vez, Couto e Gomes (2012) apontaram a necessidade de articulação com outras políticas a fim de se garantir a transversalidade da matriz de gênero no campo da saúde. Estratégia esta que foi reconhecida na Irlanda, primeiro país a formular uma política nacional tendo obtido resultados consistentes que serão explorados no capítulo seis (Richardson e Carroll, 2018). Enquanto isso, após uma década desde seu lançamento, a PNAISH ainda não conseguiu ser disseminada e implementada conforme planejado, apesar do avanço da cobertura de 50,8% para 63,8% da população pela Estratégia de Saúde da Família (ESF) (DATASUS, 2019). Entre os principais fatores, pode-se listar a escassez de recursos alocados, limitado envolvimento de grupos de interesse, característica desde a concepção da 13 política e insuficiente rol de intervenções específicas para este segmento da população segundo alerta de Medrado et al (Papai, 2009). Pesquisas realizadas para avaliação da PNAISH entre 2010-2011 junto a gestores e profissionais de saúde revelaram a falta de padronização dos indicadores na sua construção e limitações inerentes ao acesso de dados (Moura et al., 2012). No estudo de Leal et al (2012) foram entrevistados profissionais de 11 serviços de saúde (sendo oito da Atenção Básica)em cinco municípios das cinco regiões do país. Destacaram o desagrado quanto a sobrecarga das equipes e falta de profissionais médicos, bem como o pouco conhecimento dos gestores sobre a própria política. Além disso, indicaram treinamento insuficiente e voltado apenas para os profissionais de nível superior, assim como ausência de coordenação específica a nível municipal, além da falta de material didático, diretrizes ou protocolos da coordenação nacional da Área Técnica de Saúde do Homem. Enquanto a investigação de Gomes et al. (2012) apontou, entre outros aspectos, dificuldades de inserção das ações dentro da rotina do serviço de APS entre os gestores e profissionais de saúde. Os autores ainda criticam “a implantação de políticas que se reduz a eventos e não ao planejamento e desenvolvimento de processos” (p.2593), o que apenas reflete a construção tortuosa e sem o necessário alicerce dos diversos setores da sociedade que não se encontram representados. Por sua vez, Moura et al. (2014) verificaram significativa dissonância entre a visão dos gestores e dos homens entrevistados acerca dos motivos de procura de consulta em unidades selecionadas conforme cobertura das ESF localizadas em 10 municípios de diversos portes populacionais de todas as regiões do país, sendo todas pactuantes da PNAISH entre 2009 e 2010. Estudos de revisão sobre a implantação da PNAISH no Brasil, como o de Separavich e Canesqui (2013), destacam as diversas formas de representação de cuidado para os homens e o fato de que a discussão sobre ‘invisibilidade dos homens’ nos serviços de saúde é perpassada pelo 14 entendimento do próprio homem sobre o que entende como necessidades e demandas em saúde. No bojo dessa discussão, os autores destacam “(...) as masculinidades distintas que não partilham do mesmo poder” (p.423) no que tange a homens negros quando comparados aos brancos. Além disso, abordam que o conceito de homem que deve ir além do ‘universal, sem gênero, evocado nas representações sociais como dominador e inabalável...’. Os autores clamam, portanto, pelo descobrimento de homens de diferentes pertencimentos sociais e que estes se tornem visíveis e escutados pelos gestores e profissionais de saúde. Deste modo, a sociedade ainda aguarda por esse reconhecimento às diferentes masculinidades já que a PNAISH não as reconheceu de fato, exceto num breve ‘discurso’ bem-intencionado. Conforme demonstrado pelas mulheres, terá que partir da articulação dos movimentos sociais a conquista do reconhecimento social e político que a PNAISH, até o momento, perdeu a oportunidade de exercer. Quanto à repercussão da PNAISH na mídia, esta tem sido esporádica e reduzida a campanhas de combate ao câncer de próstata. Infelizmente, após 11 anos desde seu lançamento, pouco se avançou na discussão de outros temas de maior impacto sobre a mortalidade e sobre o convívio em sociedade. Assim, a cada ano, nos chega o “Novembro Azul”, campanha liderada pela Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica e Instituto Lado a Lado Pela Vida, que se caracteriza pela ênfase no rastreamento do câncer de próstata. Esta atitude proativa se encontra também entre aqueles que não admitem esperar diante do diagnóstico do câncer de próstata localizado, o que contribui para que adiram a intervenções terapêuticas para ‘livrar-se do problema’ (Xu et al, 2012). Entre as inúmeras críticas a esta estratégia, destaca-se a sólida evidência baseada em ensaios clínicos com seguimento de grupos populacionais por período que se estendeu entre quatro e 14 anos que não identificaram redução de mortalidade com a estratégia de rastreamento de câncer de próstata. A partir dessa análise, várias organizações tais como a agência governamental United States Peventive Services Task Force 15 (USPSTF) dos EUA, o United Kingdom National Screening Comittee (Comitê Nacional de Screening do Reino Unido) e a ‘Cochrane Library’*† formularam seus pareceres contrários ao rastreamento. Além disso, o rastreamento preconizado resulta em potenciais malefícios que superam seus potenciais (e questionáveis) benefícios. Por conta das evidências, o Ministério da Saúde do Brasil, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) e Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) se manifestaram contrários ao rastreamento proposto pelas entidades médicas (Modesto et al., 2018). Além destes motivos, profissionais das unidades de saúde se mostraram críticos acerca do recorte da campanha associado a PNAISH que ameaça reduzir o papel de outros agravos de maior importância quanto ao perfil de morbidade por não pertencerem ao aparelho gênito-urinário, motivo preponderante na formulação da PNAISH tingida pelo viés imposto pelas sociedades médicas já citadas (Gomes et al., 2012). Por fim, entendemos que situação e estratégias utilizadas pela Irlanda e Austrália quanto à formulação, implantação e avaliação de políticas e programas de atenção à saúde do homem merecem ser acompanhadas e analisadas pelos gestores e pesquisadores brasileiros, diante da semelhança do perfil de morbidade entre os países e experiência acumulada na última década por estes países, apesar das diferenças de contexto cultural e organizacional entre os respectivos sistemas de saúde. 1.2 Homens, padrão de morbidade e a busca dos serviços de saúde Segundo Moura (2012), “a pesquisa nacional por amostra de domicílios (PNAD), realizada em 2008, apontou que 20,8% dos homens e 10,1% das mulheres com idade entre 20 a 64 anos referiram não ter realizado nenhuma consulta médica nos doze meses antecedentes à pesquisa. As mulheres relataram maior número de consultas médicas nos últimos 12 meses (3,9), quando comparadas aos homens (1,8) (IBGE, † Coleção de bancos de dados que contêm diferentes tipos de evidência independente, de alta qualidade para subsidiar processo de decisão no sistema de saúde. Traduzido do site https://www.cochranelibrary.com/about/about-cochrane-library acessado em 05 de Abril 2020 16 2010a) ” (p.53). Segundo o Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS), em 2010, na média, ocorreu 0,06 consulta/ano dos homens entre 20 e 59 anos de idade. Bocolini e Souza Jr (2015), usando dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), baseado em amostra domiciliar realizada em 2013, verificaram indicadores de subutilização do sistema de saúde entre 22 milhões de adultos o que representa 15% desse segmento. Os dados mostram que são mais afetados os homens, pobres com menor nível educacional, autodeclarado não brancos, resultando em maior probabilidade de nunca terem tido consulta médica ou de dentista, terem verificado sua pressão arterial ou medido sua glicemia. Por outro lado, em Ribeirão Preto, SP, Moraes et al. (2014) identificaram que homens mais velhos, com maior escolaridade, que foram hospitalizados anteriormente ou tinham hipertensão arterial ou diabetes mellitus tinham maior probabilidade de uso de serviços de saúde Enquanto isso, dados do ‘Center for Diseases Control’ (CDC, 2010), dentro da realidade diversa do sistema de saúde dos Estados Unidos da América (EUA), indicam que os homens relatam número semelhante de consultas (3,0) em relação às mulheres (2,8). Contudo, os autores alertam que se deve considerar a influência dos planos privado de saúde acessíveis aos que estão no mercado de trabalho formal. A título de contextualização desses dados, naquela ocasião, 61% dos adultos acima dos 18 anos que foram entrevistados (n=27.157) avaliaram sua saúde como excelente ou muito boa. Por fim, faz-se necessário ampliar essa leitura visto que aquilo que motiva as pessoas a procurar pela consulta, não necessariamente é o que o A autora observa que o sistema de informação não é confiável quando se buscou realizar alguns ajustes nas taxas encontradas(Moura, 2012). Estes dados visam apenas ilustrar a situação em diferentes países sem que se pretenda ou se acredite que consultas ocorreriam em proporções semelhantes em sistemas de saúde mais estruturados, sem antes considerar o contexto histórico e as inúmeras diferenças biopsicossociais dos segmentos populacionais que resultam na decisão em consultar. 17 sistema de saúde considera ‘necessidade’ (Moller-Leimkuhler, 2002). Conforme alertavam Wright, Williams e Wilkinson (BMJ, 1998), as preocupações de organizar um sistema de saúde que facilite o acesso e se oriente pela equidade precisa também considerar o quanto é apropriada e efetiva a busca do serviço. Transpor essa discussão para o sistema de saúde brasileiro tem ainda maior ressonância a partir da implantação do SUS em 1988, conforme a Lei 8.080, de 1990 (Brasil, 1990) cujos princípios visam garantir a universalidade, equidade e integralidade. Desde então, se por um lado, a população gradativamente passou a exercer seus direitos quanto ao uso dos serviços de saúde no setor público, por outro a melhoria da qualidade deste setor atraiu o segmento oriundo dos planos de saúde com os quais não puderam mais arcar em função da escalada de custos associada a recessão econômica e perda de poder aquisitivo. Este aspecto merece destaque porque esse segmento costuma trazer algumas demandas extras, o que gera aumento dos custos quando os profissionais cedem a pressão, além do tempo dispendidos quando tentam demonstrar a inadequação de alguns desses pleitos, muitos deles orientados pelo referencial de qualidade do serviço enquanto um bem a ser adquirido ou garantido a partir de exames ou medicamentos, que muitas vezes não tem embasamento em evidência científica. Em 1995 Siegrist formulou um modelo acerca da busca de cuidado em saúde (‘Health seeking behavior’) que veio a ser adaptado por Moller- Leimkuhler (2002). Este consiste em quatro estágios no processo de procura de auxílio. A partir da percepção dos sintomas incide fatores biológicos, individuais e socias que são catalisados. Sua avaliação e busca de informações pode gerar dois caminhos, não necessariamente excludentes, seja aquele de normalizar, subestimar ou ainda negar a existência de problema. Assim como, a pessoa pode optar pelo automedicação. Nesta etapa, considera-se que a informação vinda de pessoas significativas pode levar a reinterpretação de sintomas, podendo se chegar a um consenso sobre sua causa ou ainda vir a sofrer pressão social pela busca de outras ações. Daí se opta, com ou sem auxílio de outras pessoas, por procurar 18 auxílio no sistema leigo ou no sistema de saúde. Os autores que seguem esse modelo salientam que quando os sintomas envolvem aspectos emocionais ou depressão se torna mais difícil a aplicação desse esquema, o que já foi verificado por outros autores (Johnson et al., 2012). No caso da depressão entre os homens, por exemplo, os sintomas iniciais como raiva, irritabilidade, agressividade, hostilidade, atitudes de risco ou ainda comportamento escapista, podem ser relegados pelos profissionais de saúde como a ‘atitude típica de homem’, o que sugere necessidade de melhoria nos eventos de educação permanente em saúde (Ogrodniczuk, Oliffe e Gross, 2016), o que será detalhado em outra seção desta tese. Aspecto adicional a ser considerado na tomada de decisão para consulta médica é o conceito do letramento funcional em saúde definido como “(...) o grau pelo qual os indivíduos têm a capacidade para obter, processar e entender informações básicas e serviços necessários para a tomada de decisões adequadas em saúde” (Passsamai et al., 2012, p.301). Segundo Moraes (2014) “(...) as mulheres percebem mais facilmente os riscos à saúde que os homens, por terem maior acesso a essas informações” (p.335). Enquanto outros autores afirmam que os homens são menos propensos a perceber risco para sua saúde e relatam de forma reiterada que consideram sua saúde melhor do que realmente é (Courtenay, 2000a, 2000b, 2003; Oliffe et al., 2010). Nesse contexto, a busca de informação sobre a saúde pode ser classificada como ativa ou passiva, sendo este o estilo mais prevalente entre os homens (Saab et al., 2017). Este aspecto já foi verificado em estudos acerca de sintomas específicos do homem, independente de orientação sexual, como no caso do câncer de testículo (Saab et al., 2017b) e neoplasias não específicas por gênero (Hunt et al., 2010). Vale destacar que o conceito de letramento funcional em saúde não é diretamente relacionado ao nível de escolaridade. Dados europeus (WHO, 2018) revelam que “(...) em 23 de 30 países pesquisados, homens com escolaridade mais elevada são menos propensos a procurar auxílio profissional do que mulheres com menor escolaridade” (p.59). Nos EUA, alguns estudos realizados entre afro-americanos sugerem que vergonha, 19 machismo e medo são fatores que dificultam essa busca (Ford et al., 2006; Friedman et al., 2009). No Brasil, Machin et al. (2011) e Gomes et al. (2007) alertam que muitos homens interpretam a demanda por cuidado de saúde como um desvirtuamento diante de seu papel de provedor. Por sua vez, Fernandes et al. (2009) destacam que em estudo transversal de base populacional realizado em Porto Alegre, mulheres acima dos 60 anos de idade com menor nível sócio econômico e sem cobertura por plano de saúde e com auto percepção de saúde muito ruim são três vezes mais propensas a frequentar a unidade de saúde de família. Além do processo de decisão pela consulta médica, convém destacar o relato na literatura científica e percepção entre os profissionais de saúde de que os homens demoram a procurar os serviços de saúde pelos motivos expostos acima e que isso traria mais danos a sua saúde e custos ao sistema, conforme relato no texto da própria PNAISH (2009). Por outro lado, estudo de base populacional publicado no Reino Unido em 2014 (Wang et al.) refuta tal noção ao mostrar que “(...) os padrões de consulta com médicos de família prévios a diagnóstico de três tipos de câncer não relacionados ao sexo mostraram pequena diferença entre homens e mulheres. Este dado poderia desafiar a noção de que homens retardam a busca de cuidado profissional para doenças graves e que, portanto, seriam diagnosticados em estágio mais avançado, pior prognóstico e reduzida expectativa de vida” (p.60). Acerca da presença masculina nos serviços de saúde no Brasil, pesquisadores exploraram as justificativas usadas pelos homens para não procurarem atendimento, dentre eles o horário restrito de funcionamento, a feminilização das unidades de saúde e a prevalência de profissionais do sexo feminino, assim como o distanciamento do homem em relação ao autocuidado (Figueiredo, 2005; Gomes et al., 2007; Couto et al., 2010). No estudo de Gomes (2007) com 18 homens de escolaridade básica e de nível superior foi apontada a falta de serviços específicos para esse grupo. 20 Considerando que esta queixa se repete na literatura brasileira (Vieira, 2013; Leite et al., 2016), cabe o questionamento a quais aspectos da saúde necessariamente se referem. A hipótese aqui levantada é de que significativa parcela dos homens vem motivada pela preocupação com a saúde da próstata e buscam se desfazer do medo de câncer, recorrentemente propagado pela mídia. Na medida em que os (as) médicos (as) de família têm se capacitado para avaliação e diagnóstico de tais patologias, suponho que os entrevistados ocultam essa demanda (Modesto, 2016) ou nem chegam a se consultar com esses profissionais. Ou ainda pior, pensando no fluxo de atendimento, desistiram na entrada do serviço quando informados que ‘não havia urologista’, como costumo ouvir de muitos homens, na prática cotidiana. Com o intuito de compreender o percurso dos homens que acessam as unidades de saúde, Gomes et al.(2011b) entrevistaram 201 homens de seis cidades brasileiras que revelaram seu desconforto nos serviços de saúde, o que os levava a se comportarem como se estivessem fora de seu território. Na pesquisa de Tonelli et al. (2010) foram entrevistados 11 coordenadores (as) dos programas de saúde sexual e reprodutiva do Hospital Universitário de Florianópolis. Os gestores apontaram questões culturais refletidas na alegação do trabalho como motivo de não consultar e busca de tratamento em detrimento de aspectos preventivos. Nesse estudo, duzentos e sessenta homens, sendo metade entre 18-25 anos e a outra entre 45-55 anos de idade, participaram de grupos focais quando reafirmaram o comportamento percebido pelos profissionais ao se apoiarem no imaginário estoico de suportarem o desconforto ou a dor até o limite. Além disso, relataram que ao vivenciar uma doença se sentem mais vulneráveis por se verem diante de uma situação desconfortável. Esta reação é semelhante àquela identificada por Courtenay (2000b) pela adesão ao modelo de masculinidade hegemônica entre homens estadunidenses o que os torna mais suscetíveis à depressão e maior reatividade cardiovascular em situações de estresse. 21 Storino et al. (2013) investigaram as necessidades de saúde de 27 homens atendidos numa UBS de Belo Horizonte, MG. Os autores concluíram que: (...) a capacidade dos profissionais e dos serviços de acolherem, traduzirem e construírem um cuidado contínuo e adequado para as necessidades de saúde desse público é fundamental para que o valor de uso do trabalho em saúde seja reconhecido e para que os homens se reconheçam como sujeitos do seu cuidado e de suas necessidades (Storino et al., 2013, p.637). Após a implantação da PNAISH, Knauth et al. (2012) realizaram estudo entre os profissionais de nível superior, em sua maioria atuando na atenção básica, que revelou que o homem é visto como mais objetivo e resistente a mudanças. Além disso, trabalhadores da saúde admitem que as falhas na rede impedem ou dificultam resposta às demandas trazidas. Os autores ratificaram o papel do trabalho como impeditivo para a procura por consulta, e isso se agrava pela possibilidade de não ter garantia em obter a consulta. Nessa situação, os homens demonstram urgência em resolver seus problemas, tendem a não questionar os “prós” e os “contras” sobre a terapêutica oferecida e desvalorizam atividades de prevenção que tendem a trazer benefícios a médio e longo prazos. A presença de homens nos centros de saúde (CS) comumente é vista pelos profissionais como aquele usuário mais objetivo quando comparado a mulher, que busca solução rápida e se mostra avesso a conversa, que busca um atestado médico para justificar sua falta ao trabalho, pois, na concepção desses homens, não existiria motivo que a justificasse (Machin et al., 2011). Nesse sentido, ficaram registrados dois aspectos: em primeiro lugar, o espaço do CS que ainda é mais frequentado majoritariamente por mulheres, crianças e idosos. Em segundo lugar, a presença masculina gera a suspeita, indício de que o homem que o frequenta está sendo desonesto, o que fere o senso de honra, como proposto por Bourdieu, o qual atribui a honra o significando e as dimensões simbólicas que “tornam o homem verdadeiramente homem” (Bourdieu, 2003, p.61). Neste caso, a busca do cuidado com sua saúde é desconsiderada, ficando limitada à resolução dos sintomas que o afastam do trabalho. Faz-se importante reforçar o quanto a 22 função laboral permanece como definidora do ‘lócus’ do homem na sociedade, marca identitária que legitima seu espaço, o qual, se por um lado traz destaque, por outro significa risco à saúde através dos acidentes no exercício da função. Segundo Dantas (1998), os homens se colocavam, portanto, enquanto grupo que buscava reforçar sua especificidade entre os demais grupos, ratificar seu poder através de prover recurso num momento crítico de cuidado a saúde do familiar. Por outro lado, quando necessitavam usar o serviço de saúde, preferiam procurar serviços de emergência na busca de resolução rápida de seu problema e, mais importante, de forma anônima perante seus vizinhos no bairro, conforme relatado por homens de uma vila de Porto Alegre. Nessa época, pesquisa realizada por Stein (1998) na mesma cidade mostrou que pessoas com acompanhamento médico definido tinham três vezes mais chances de procurar o serviço de emergência por motivo adequado. No estudo de Gomes (2011a) feito entre os profissionais de saúde incluindo gestores, de nível superior, e médio da atenção primária na Zona Oeste do Rio de Janeiro (RJ), estes afirmaram sua impressão de que o homem é mais objetivo e impaciente em resolver seu problema. Além disso, parte deles se mostra envergonhado em atividades de grupo e deseja privacidade. Interessante notar que esses profissionais demonstraram desconforto pela presença masculina e que estes homens, em algumas circunstâncias, exigiam respostas não oferecidas pelo serviço e, portanto, eram percebidos como agressivos, em termos verbais, quando da demora no atendimento. Ficou evidenciado o não reconhecimento da singularidade dos homens, o que dificulta aproximação necessária na busca do cuidado e estímulo ao autocuidado. Os autores ainda salientaram a lógica do atendimento focado na doença, sem considerar aspectos específicos dos homens e a estrutura dos serviços, cujos profissionais não demonstraram habilidade para acolhê-los. Faz-se interessante perceber o contraste denunciado pela visão que se tem dos usuários. Enquanto um dos médicos enaltece o fato de a mulher seguir sua orientação e consultar com outros 23 especialistas, outra prefere atender o idoso por se sentir mais seguro ao invés do homem adulto que considera agressivo e impaciente. A falta de habilidade dos profissionais também foi percebido no meio rural entre homens com doença crônica em pesquisa realizada no Rio Grande do Sul. Participantes relataram a insensibilidade do especialista focal diante da queixa e indicaram preferência pela busca da unidade de pronto atendimento acessível no turno da noite para não prejudicar sua necessidade de se manter na lavoura (Burille e Gerhardt, 2014). Em outro estudo, realizado no meio rural na Nova Zelândia, Noone e Stephens (2008) destacaram o dilema vivenciado por alguns homens que decidem não procurar assistência à saúde e assim tendem a ser vistos como “membro imoral” da sociedade. Em contrapartida, quando decidem procurar, percebem que assim arriscam a sua imagem tipicamente masculina, por se aproximarem da imagem social que tem das mulheres, que frequentam os serviços regularmente. No contexto brasileiro, Burille et al. (2018) destacam a negação do corpo que ‘fala’ através de sintomas em função do controle do corpo masculino, conceito que foi discutido por Schraiber e Figueiredo (2011), corpo este que é ferramenta essencial para o trabalho que faz parte de sua identidade. Este homem que não quer, não se permite pensar-se doente, se amedronta diante da possibilidade de depender do outro, o que arranha sua pretensa invulnerabilidade. Na Austrália, Smith et al. (2008) questionam o senso comum e as pesquisas que afirmam que os homens são desinteressados ou lenientes acerca de sua saúde. Após entrevistarem 38 homens listaram indicadores usados para ativamente auto monitorar problemas que justificariam adiar ou antecipar a procura por atendimento. Concluíram que a decisão por procurar assistência médica é precedida por período de racionalização no qual o homem pondera, baseado em seu conhecimento, acerca de indicadores para auto monitoramento de sua saúde, entre eles: a possibilidade de que o problema se resolva espontaneamente, avaliação de experiência prévia, presença de dor persistente e limitações nas ações do dia a dia acerca do momento de consultar.24 Outro aspecto importante nesse intervalo de tempo para tomada de decisão é se o homem teve uma experiência positiva em evento anterior, na qual o (a) médico (a) assistente respaldou e legitimou sua preocupação, o que os auxilia a reduzir o tempo de espera num evento futuro. Douglas et al. (2013) também criticam o preconceito quanto ao suposto desinteresse masculino, pois entendem que não é possível excluir outros fatores como idade e estruturas sociais e isolar masculinidade como aspecto determinante de seu interesse pela saúde. Em síntese, e especialmente considerando as pesquisas brasileiras, revela-se com nitidez o estranhamento entre homens não habituados a frequentar serviços de atenção primária onde são acolhidos por profissionais não capacitados para entender e/ou esclarecer suas demandas, suas formas de se comunicar. Algumas vezes, por acreditar que a queixa se limita a questões urológicas para as quais não caberia se consultar naquele serviço (Knauth et al., 2012), em outras por não se aperceber da frustração que vive o cidadão que na maioria das vezes é penalizado financeiramente pelo empregador quando busca o serviço de saúde sem a contrapartida de ter seu problema resolvido, ou ao menos devidamente encaminhado. Esses desencontros remetem à imagem da rosa dos ventos cujas pontas miram para horizontes opostos, leste e oeste, norte e sul, portanto não se conhecem e não se reconhecem unidas pelo eixo central, que seria a consulta. Parte dos homens a postergar enfrentamento de seus males pelo risco de encarar sua vulnerabilidade e parte dos profissionais que carregam ou alimentam estereótipos que promovem a permanência desse ‘ciclo de invisibilidade’. Para mitigar o desencontro, muitas vezes ao término de consultas rápidas voltadas para eliminar sintomas, a resposta médica vem na forma da medicalização, seja através de medicamentos ou exames, que tem se tornado resposta reflexa a esse ‘modus operandi’ de oportunidades perdidas. Afinal: (...) a vida é mais ampla do que os meios que a gente vai encontrando para que ela se mantenha saudável. O processo de “medicalização da vida” faz diminuir a autonomia e aumenta a dependência ou a resistência ao tratamento, fazendo de uma 25 interminável sucessão de consultas, exames e procedimentos o centro da vida (PNH, 2009, p.30). Esse atrito entre as expectativas tem importante potencial de interferência na construção do vínculo entre homens e profissionais de saúde, especialmente na APS, o que pode vir a afetar a satisfação dos usuários conforme ilustrado por dos Santos et al. (2018). Na pesquisa de Gomes et al (2011b) 201 homens entrevistados apontaram que buscam atendimento que seja atencioso, ancorado na comunicação, resolutivo e que ocorra tão logo seja possível. Em Natal, RN, Leite et al. (2016) abordaram 24 usuários, sendo 12 de cada contexto de prática na APS: uma unidade básica (UBS) em bairro de classe média, e uma Unidade de Saúde de Família (USF) em bairro de classe popular. Os sentidos produzidos se vinculam às experiências vividas especialmente no tocante a relação profissional-usuário e a oferta de serviços. A maioria dos respondentes da UBS indica a baixa resolutividade, enquanto na USF destacaram o acesso e acolhimento a partir de um vínculo positivo com membros da equipe. Além disso, relataram que empatia e interesse dos funcionários propiciavam satisfação pelo serviço prestado. Por outro lado, em ambos os grupos o encaminhamento para atenção secundária gerou frustração pela demora e quebra do relacionamento. Também se registrou insatisfação pela assistência pública que não goza de boa reputação nos círculos imediatos como também alimentado pela mídia. Por conseguinte, a assistência à saúde do homem deve ser pensada no sentido da especificidade das suas demandas, considerando a perspectiva de gênero para se alcançar um maior conhecimento das necessidades de saúde desse segmento. O conflito em potencial na interação se deve, em parte, à pouca exposição e experiência dos profissionais de saúde (‘denominado como NÓS’ na Figura 1) ao lidar com esses usuários, o que fomenta a manutenção do ciclo de invisibilidade dos homens nesses serviços (Dantas, 2012), conforme ilustrado na Figura 1: 26 Fonte: adaptado Dantas (2012). Figura 1 - Ciclo de invisibilidade do homem no serviço de saúde 27 2 OBJETIVOS 2.1 OBJETIVO GERAL Compreender abordagens de comunicação entre médicos (as) de família e homens atendidos na Atenção Primária à Saúde (APS) para identificar os limites e possibilidades de um cuidado efetivo a este segmento da população. 2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS Têm-se como objetivos específicos: a) Identificar experiências da relação médico (a) - paciente com os homens que consultaram com médicos (as) de família no último ano e com homens que não se consultaram com médicos (as) de família nos últimos dois anos; b) Investigar como médicos (as) de família abordariam as dificuldades vivenciadas nas consultas médicas pelos homens, segundo os relatos destes; c) Conhecer a opinião dos homens usuários sobre as abordagens propostas pelos (as) médicos (as) de família em resposta às dificuldades que apresentaram 28 3 REFERENCIAL TEÓRICO 3.1 Masculinidade e cuidados A fim de compreender o campo da saúde do homem, devemos considerar os aportes conceituais sobre masculinidades e a construção social em torno dos seus sentidos atribuídos em nossa sociedade. Segundo Joan Scott (1995), em seu texto “Gênero, uma categoria útil de análise histórica”: gênero é, ao mesmo tempo, uma noção teórica e uma categoria para pesquisas empíricas. Compreende os significados culturais que instituíram a noção de diferenças biológicas/anatômicas entre os sexos e, igualmente, atribuíram diferenças e desigualdades de status, poder e prestígio a tais diferenças. Refere-se, assim, aos atributos, papéis ou funções sociais culturalmente legitimadas para indivíduos do sexo masculino e do sexo feminino, estabelecendo-os com determinados valores sociais diferentes e desiguais entre si. Nisso, o conceito de gênero diz respeito a relações entre indivíduos (homens, homens-mulheres e mulheres) que transcendem o biológico/reprodutivo e que terminam por configurar relações de poder construídas social e culturalmente. É importante assinalar que o gênero varia espacialmente (de uma cultura a outra), temporalmente (na mesma cultura em diferentes tempos históricos) e longitudinalmente (ao longo da vida de um indivíduo). As marcas do ‘socialmente construído’, do caráter ‘relacional’ e da dimensão de ‘poder’ constituem os fundamentos da categoria proposta por J. Scott. Em síntese e em suas palavras: “Quando falo de gênero, quero referir-me ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se refere apenas às ideias, mas às instituições, às estruturas, às práticas cotidianas, aos rituais e a tudo o que constitui as relações sociais. O discurso é um instrumento de ordenação do mundo e, mesmo não sendo anterior à organização social, é inseparável desta. Portanto, o gênero é a organização social da diferença sexual” (1995, p. 115). Segundo Connell, a masculinidade é: 29 (...) “ao mesmo tempo a posição nas relações de gênero, as práticas pelas quais os homens e as mulheres se comprometem com essas posições de gênero e os efeitos destas práticas na existência corporal, na personalidade e na cultura” (Connell, 1995, p. 35). Enquanto a Organização Panamericana de Saúde (OPAS, 2019, p.01) considera masculinidade como “(...) um conjunto de atributos, valores, funções e comportamentos que são assumidos como essenciais para homens numa cultura específica”. Connell (1998) e Figueroa-Perea (2003) acrescentam que “(...) tais especificidades podem conduzir a um arco de masculinidades que podem ter elementosem comum associados a formas dominantes de masculinidade, mas que incluem formas muito diferentes de ser homem, como por exemplo determinadas por grupo étnico, classe, estado migratório, orientação sexual, trabalho e nível educacional” (p.31 apud WHO, 2018). Por sua vez, Gomes (2008) refletiu sobre a Masculinidade como: Espaço simbólico que serve para estruturar a identidade de ser homem, modelando atitudes, comportamentos e emoções a serem adotados (...) [representando] um conjunto de atributos, valores, funções e condutas que se espera que um homem tenha em uma determinada cultura. (p.70) Na medida em que as masculinidades são construídas em oposição ao que pertence ao universo feminino (Courtenay, 2000), a noção de cuidado fica comprometida no campo da saúde. Ainda hoje, o homem exerce a crença de ser forte e menos suscetível aos riscos que assume, o que o leva a práticas de pouco cuidado com o próprio corpo, tornando-o vulnerável em diversas situações no trabalho e no lazer. Connell e Messerchmidt (2005) destacaram que: “(...) a masculinidade não representa um certo tipo de homem, mas a forma como os homens se posiciona através de práticas discursivas” (p. 841). Essas características fazem parte do conceito da masculinidade hegemônica (Connell, 1995), que 30 veio a ser reformulado por Connell e Messerschmidt (2005, p.829) em quatro áreas, a saber: (...) um modelo de hierarquia de gênero enfatizando o protagonismo das mulheres; reconhecimento explícito da geografia das masculinidades enfatizando a interação de níveis regionais e globais; busca de tratamento mais especifico da personificação social (embodiment) em contextos em que se discute privilégio e poder e, finalmente, ênfase mais robusta sobre as dinâmicas da masculinidade hegemônica reconhecendo contradições internas e possiblidades de movimento no sentido de uma democracia de gênero. Segundo Connell (1995) a face pública da masculinidade hegemônica não é, necessariamente, o que os homens mais poderosos são, mas aquilo que sustenta seu poder e aquilo que muitos homens são motivados a apoiar. Construída em relação às mulheres e a outras masculinidades referentes a grupos dominados, a masculinidade hegemônica as oculta e as subordina, embora não as elimine, posto que relações de hierarquia pressupõem o “outro”. A função ideológica deste modelo de análise é explicitada: embora não necessariamente represente a maneira de ser dos homens da elite, nem dos homens subordinados, a cumplicidade de todos com a masculinidade hegemônica explica-se pelo fato de que é a expressão cultural da sua dominação sobre as mulheres, que legitima e naturaliza práticas de subordinação. Assim, a masculinidade hegemônica é um modelo cultural ideal que, não sendo atingível por nenhum homem, exerce sobre todos, homens e mulheres, um efeito controlador. Implica um discurso sobre a dominação e a ascendência social, atribuindo aos homens (categoria social construída a partir de uma metonímia do dimorfismo sexual) este privilégio potencial. Ainda, a própria masculinidade é internamente constituída por assimetrias (como heterossexual/homossexual) e hierarquias (de mais a menos “masculino”), em que se detectam modelos hegemônicos e variantes subordinadas. Mais tarde, Connell (2014) esclareceu que na reformulação do conceito de masculinidade hegemônica quando se refere a personificação, considera 31 que, enquanto gênero é personificado a partir de uma relação social, a masculinidade hegemônica precisa estar conectada dentro desse entendimento de personificação social. A autora também se refere a geografia das masculinidades, sobre a qual deve-se ponderar que a masculinidade pode ser considerada hegemônica numa determinada localidade, mas não em outra. Quanto ao uso da palavra hegemonia, Connell alerta sobre uma concepção equivocada quando associada ao autoritarismo citando como exemplo propostas de mudança por uma paternidade engajada na Escandinávia ou ainda a ‘paternidade afetiva’ observada na América Latina. Griffith (2016) destaca que, individualmente, cada homem exercita certas características da masculinidade hegemônica para formar o seu padrão de masculinidade, moldada dentro do contexto em que vive. O autor destaca que muitos deles são marginalizados por seu ‘status’ econômico e social, etnia, orientação sexual ou classe e ficam inabilitados a atingir alguns aspectos da masculinidade hegemônica. Em relação ao autocuidado, esse modelo estereotipado também tem contribuído para a manutenção da desigualdade entre homens e mulheres na busca da assistência à saúde, comportamentos de risco e morte prematura. Ainda na busca de compreensão dos indicadores em relação a saúde do homem/perfil de morbidade, Cloutier et al. (2005) desenvolveram um modelo explicativo composto de cinco fatores (Figura 2), a saber: 32 Fonte: elaborado pelo autor. Figura 2 - Modelo de Identidade do Papel de Gênero 1 - Sensibilidade diferenciada (SD): a hipótese é da existência de mecanismos de detecção, ponderação, ativação e seleção de trilhas de comportamento que possuem uma especificidade entre os homens. Os autores ilustram através da metáfora de que homens funcionam com fusíveis de 30 amperes quando o sistema aciona o disjuntor quando a tensão atinge 20 amperes. Os autores citam estudos sobre limiar para tolerância da dor que relacionam a diferença entre os sexos a fatores hormonais. Eles argumentam que a resposta mais saudável faria parte de um mecanismo de proteção. Contudo, entre certos homens, haveria um mecanismo psicológico distinto em que o estímulo poderia ser percebido pelos sentidos, mas não atingiria o limiar cognitivo necessário para desviar o indivíduo de seu alvo funcional a ponto de atrair sua atenção para a busca do cuidado e da precaução. Lynch e Kilmartin (1999) explicam tal mecanismo pelo processo de socialização masculina que supervaloriza alcançar os objetivos. Essa insensibilidade relativa aos corpos se manteria na medida em que muitos homens associam vantagens em superarem os medos, manter a direção diante de seus objetivos, em ir adiante 33 2. Viés otimista masculino: Seria a tendência de perceber os eventos como mecanismo de controle pessoal, mas que não correspondem à realidade. Seria o sentimento de que as chances de viverem momentos prazerosos são maiores do que os riscos da ocorrência de eventos negativos comparado a seus pares na comunidade (Weinstein e Klein, 1996). Isto se daria em função da diferença entre a estimativa subjetiva e o risco objetivo além das diferenças individuais em matéria de vulnerabilidade objetiva (Joffe, 1999). Os autores indicam que tal viés existiria na maioria das culturas, mas num grau mínimo naqueles em que a interdependência social é maior valorizada do que o individualismo. Naqueles em que a solidariedade comunitária é mais forte, o poder de controlar eventos negativos seria melhor recurso coletivo do que o atribuído a iniciativa individual. Em matéria de saúde a percepção adequada de sua vulnerabilidade é necessária para adoção de atitudes saudáveis o que levaria estas pessoas a não se proteger dos perigos (Polivy e Herman, 2002). Desta forma os comportamentos de risco relativos a dirigir em alta velocidade, abuso de álcool, comportamento sexual de risco ou excesso de trabalho comprometem mecanismos de proteção e aumentam os riscos para a saúde, como ocorre, por exemplo, entre os mais jovens (Courtenay, 2000b). 3. Radicalismo comportamental: Baseado em pesquisa realizada na província do Quebec, Canadá (Inquérito Social e Sanitário do Québec – ESSQ 98), Daveluy et al. (2000), os autores situam que homens realizam atividades físicas de lazer mais intensas assim como em atitudes e consumação de atos suicidas com maior letalidade. Em relação aoutros comportamentos também é observada esta tendência como por exemplo no uso exagerado do fumo assim como na forma radical quando decide cessar. Em outras palavras, seria a preferência pela atitude que percorre os extremos ao invés de realizar redução gradual de danos ou riscos. 4. Bloqueio seletivo relacional: Segundo diversos autores, os meninos desenvolvem identidade baseada na afirmação pessoal, independência instrumental e ambição enquanto as meninas desenvolvem maior 34 sensibilidade emocional, habilidade verbal e na qualidade relacional no seu meio social. Segundo os resultados da pesquisa denominada ESSQ 98, os homens demonstram menos habilidades no domínio relacional que as mulheres representadas por bloqueios que podem afetar sua saúde. Por exemplo, eles apresentam tendência a negar sintomas por período mais prolongado sem se importar com a gravidade da doença ou problema (Dulac, 2001). De maneira geral, tendência de consultar menos frequentemente um profissional de saúde, o que também foi verificado em dados brasileiros, ou pedir ajuda a amigo (a) em situações que assim exigem, incluindo na eventualidade de uma doença. Esta é caracterizada por um valor social que é considerada pelos homens como fonte de desvalorização potencial de forma mais acentuada do que entre as mulheres. Assim, a busca de auxílio profissional evidencia a perda de controle sobre si e intrusão na sua intimidade de forma mais marcante do que para as mulheres (Dulac, 1997). Todavia, estudo empírico realizado por Turcotte et al (2002), revela que mesmo aqueles refratários a pedir auxílio, na medida em que eles conseguem vencer sua resistência, se torna mais fácil buscar o cuidado profissional. Afinal, diante dos ideais pretendidos de força, independência e competitividade da masculinidade tradicional, se torna mais difícil aceitar o adoecimento. A necessidade de manter controle de si e da situação torna incompatível a ideia de revelar suas crenças íntimas, expressão emocional diante da doença (Brooks, 1998). Este bloqueio relacional, portanto, limita sua capacidade na busca de recursos interpessoais ou resolver seus problemas de saúde em tempo hábil. Por sua vez, autores como Moynihan (1998), refutam a ideia de que o apoio social seja incompatível com a masculinidade, enquanto os profissionais de saúde deveriam considerar que o apoio pessoal mútuo, isto é, auxiliar o homem a perceber que pode auxiliar o outro nessa rede de forma bidirecional. 5. Identidade de papel de gênero: os autores reivindicam a identidade de papel e gênero como pano de fundo desses quatro fatores, que em graus variados evoluem em relação ao processo de socialização de 35 meninos e homens. A construção de identidade conforme papéis sociais masculinos típicos aumentam a probabilidade do aparecimento de certos componentes em detrimento de outros. Assim, haveria um certo grupo de homens mais tradicionais que teriam mais dificuldade em aceitar ajuda, aceitar cuidado ou se expressar emocionalmente diante das dificuldades (Bruch 2002; Trembaly e L´Heureux, 2002). Cientes das críticas aos estereótipos de gênero masculino e feminino, os autores ratificam que é muito clara a presença de categoria de gênero entre os valores, atitudes e expectativas da sociedade (Chick e Loy, 2001). Ao mesmo tempo admitem variabilidade na expressão dessas referências sociais e alertam que comportamentos ‘hipermasculinos’ como atos de bravura ou gestos heroicos, estoicismo no trabalho etc.) são menos bem documentados que os negativos (agressão, delinquência, vandalismo, etc). Em comum, se situa o desejo de provar sua masculinidade. Esta dinâmica faria parte de uma ‘masculinidade compensatória’, cujo papel seria uma resposta a insegurança latente relativa a masculinidade que é mediada pela sociedade para o ganho de poder e reconhecimento. Mais recentemente, verifica-se outro tipo de pressão social denominada ‘homem relacional’, aquele que participa da educação dos filhos, expressa sentimentos, que se preocupa com os demais a sua volta. (o que seria contrário a visão da masculinidade tradicional). Assim, viveríamos período de redução e denuncia desta postura ao mesmo tempo que é estimulada. A mensagem dupla lança os homens na tensão identitária que precisam solucionar (Pleck, 1982, Corneau, 1989). Como em qualquer modelo, seus conceitos não devem ser considerados de forma rígida ou estanque. Os autores destacam que os componentes propostos se situam num continuum de forma que o indivíduo se aproxima ou se distancia deles de acordo com as circunstâncias. Portanto, propõe-se considerar essa flexibilização por considerar que, do contrário, seria o mesmo que afirmar que homens ou mulheres não tem capacidade de se adaptar a novas circunstâncias ou aprender a partir de trilhas percorridas que não levaram a resultado satisfatório. Ainda assim, o 36 modelo fornece um referencial para se debater estratégias para auxiliar na relação com os homens e outros profissionais envolvidos no cuidado. A busca em compreender o estudo da saúde dos homens a partir de certos comportamentos masculinos ganhou nova dimensão, a partir do final da primeira década dos anos 2000 à medida em que marcadores sociais foram incorporados na análise do gênero masculino. Robertson et al. (2016), por exemplo, exploraram fatores relacionados à obtenção de apoio social e condições de trabalho que, entre outros motivos, afetaram o nível de estresse, procura por serviços de saúde e participação em campanhas de promoção de saúde. Na medida em que se enfrenta um período de recessão econômica que gera risco para manutenção do emprego, verificou-se maior frequência do abuso de substâncias e atitudes arriscadas. Nesta direção, o relatório europeu sobre saúde e bem-estar dos homens (WHO, 2018) indicou a necessidade de nos apropriarmos de conhecimento acerca da dinâmica social de gênero, o que deve incluir a perspectiva do ciclo de vida, sendo esta uma das ferramentas usadas pela Medicina de Família e Comunidade. Este aporte viabiliza identificar fatores protetivos para prevenção de doenças e promoção de saúde. Assim, gestores devem acompanhar os efeitos sobre a socialização dos meninos, incluindo adaptação às escolas, pois estudos mostram associação de maior mortalidade entre os adultos que tinham menor nível de educação formal (Mackenback et al., 2017). Em relação às famílias, Sundstrom et al. (2009) chamam atenção de que a socialização não se limita a estar na companhia de adultos, mas a forma como adultos reforçam comportamento e expressão verbal de meninos e meninas. Em vista disso, os pesquisadores demonstram preocupação quanto ao impacto do tempo dispendido usando computadores ou videogames. Entre os adultos, a correlação entre força física e realização de funções que envolvem risco marca o perfil de morbimortalidade, pois o trabalho ainda define seu status dentro da hierarquia masculina. Aliado ao estoicismo que caracteriza o exercício da masculinidade hegemônica, configura-se o período de negação da dor e estresse elevado. Por exemplo, aqueles homens caracterizados pela 37 personalidade ‘tipo A’ se tornam propensos a desenvolver doenças coronarianas que contribuem para maior risco de infarto do miocárdio (Evans et al., 2011). Quanto ao envelhecimento masculino, os autores destacam que esse processo implica não só na redução de sua força física, mas no aumento do risco de perda de emprego e perdas correlatas de poder e status social. Prejuízo similar ocorre entre homens com doença crônica, pois, conforme Charmaz (1995) aponta, existe perda de ‘status’ na hierarquia da masculinidade, o que muda sua sensação de poder em relação às mulheres e levanta questionamento sobre sua própria masculinidade. Esse aspecto ganha mais destaque para o homem do meio rural que dependeessencialmente da força física para desempenhar sua função laboral. Segundo os entrevistados de Burille et al. (2018), a dependência de outras pessoas, inclusive profissionais de saúde, é considerado vergonhoso. Além disso, eles se mostraram despreparados para a velhice, diferente das mulheres, as quais se dedicavam às atividades sociais que antes não podiam realizar em função do trabalho. No caso dos homens, à medida em que perdem sua força física, reduz-se a relação de dominação- subordinação, ratificando a observação de Scott (2011) de que as vulnerabilidades nas relações entre os gêneros variam ao longo da vida. Por sua vez, Griffith et al. (2012) destacam que, à medida em que estas masculinidades tradicionalmente praticadas envelhecem, há uma tendência em haver mais espaço para a demonstração de responsabilidade no exercício da paternidade, no papel de provedor e parceiro. No Brasil, cuja expectativa de vida é inferior à média dos países ocidentais anteriormente discutidos, o envelhecimento se reflete na queda da taxa de mortalidade por causas externas, que declina acentuadamente a partir dos 45 anos de idade, enquanto a prevalência de doenças crônicas cresce e se assemelha àquelas que acometem as mulheres sem necessariamente resultar em taxas de mortalidade similares (Brasil, 2008). Isto se deve, em parte, pelo estágio avançado com que estes homens iniciam o acompanhamento clínico adequado, mas também pela pouca 38 familiaridade com as medidas de prevenção à saúde. Ao debate deve-se acrescentar que existem poucas ações efetivas e recomendadas em que o homem precise realmente comparecer a unidade de saúde. Em outras palavras, se faz oportuno redimensionar o conceito de ‘invisibilidade masculina’ (Couto et al., 2010), que foi originalmente concebida “(...) diante da incapacidade dos profissionais de notarem sua presença” (p.264), mas associada por alguns críticos à negligência ou negação do risco à sua pretensa invulnerabilidade. Passados 10 anos da PNAISH utilizando abordagens de relativo impacto e diante de indicadores de saúde ainda preocupantes, buscamos construir leituras que permitam avançar. Assim, Griffith et al. (2012) examinaram as disparidades existentes na saúde dos homens que indicam caminhos que evidenciam maior risco de os homens adoecerem ou morrerem de certas doenças. Foram identificados aspectos positivos das masculinidades que permitiram aos homens se sobrepor aos efeitos do racismo, opressão étnica, e outros aspectos que podem afetar negativamente suas vidas. A partir desses dados, os autores decidiram explorar o uso da interseccionalidade dos marcadores sociais da diferença como abordagem que viabilize novas estratégias visando maior poder de compreensão e ação política para a saúde dos homens. A expressão interseccionalidade foi cunhada pela advogada e feminista negra norte americana Crenshaw nos anos 90 e foi adotada por Connell, Messerschmidt e outros estudiosos dos estudos de masculinidades. Segundo Griffith et al. (2012), essa ferramenta irá auxiliar pesquisadores a considerar como masculinidades e determinantes sociais de saúde dialogam e os motivos pelos quais afetam a saúde dos homens. Os autores clamam pela necessidade de compreender como características socialmente definidas moldam a saúde do homem e influenciam sua relação com as masculinidades. Estas características também podem trazer aspectos positivos como verificado entre aqueles homens maduros que se tornam provedores, pais e maridos responsáveis (Hammond e Matiz, 2005). Por outro lado, Snow (2008) alerta que tais medidas de masculinidade foram 39 estabelecidas entre homens jovens, o que limita sua compreensão usando o mesmo prisma à medida que esses homens envelhecem. Lembremos que Connell (1995) em suas obras anteriores já abordava as configurações gerais e locais de gênero nas masculinidades e apontava para um referencial de análise que coloca gênero interseccionado com outros marcadores sociais (raça/cor, classe social, geração). Em suas palavras, “(...) para entender gênero, então, devemos ir constantemente além do próprio gênero. O mesmo se aplica inversamente. Não podemos entender nem classe, nem raça ou desigualdade global sem considerar constantemente gênero” (p. 36). Abaixo, o algoritmo da interseccionalidade (Figura 3), que relaciona diversos marcadores sociais que impactam sobre a vida humana e seu potencial impacto sobre as disparidades em saúde. Faz-se interessante observar como gênero se encontra no centro do eixo que é afetado por aspectos fenotípicos de raça, além de idade e sexo. A partir disso, gênero se expressa sobre comportamentos relativos à saúde e doença e resposta fisiológica aos estressores. Por fim, estes elementos atuam sobre as disparidades verificadas na saúde que também sofrem influência de outros estressores afetados pelo ambiente econômico. 40 Fonte: Griffith et al. (2012). Figura 3 - Algoritmo da interseccionalidade 3.2 Os Homens, a saúde e a prevenção quaternária A medida em que o movimento de prevenção quaternária (P4), definida como “detecção de indivíduos em risco de tratamento excessivo para protegê-los de novas intervenções médicas inapropriadas e sugerir-lhes alternativas eticamente aceitáveis” (Norman e Tesser, 2009, p.2013), tem apontado a ineficácia e o risco da realização de exames periódicos conhecidos como ‘check-up’ (Jamoulle, 2008; Heneghan e Mahtani, 2019). Assim, a P4, que esteve adormecida por duas décadas, nas palavras de Jamoulle, busca evitar “(...) diagnósticos nos gráficos abusivos e questões éticas, incluindo aqueles ligados à sobrecarga de informação e à sobremedicalização” (Jamoulle, 2015, pag.01). No caso dos homens, permanece a próstata como ícone iatrogênico. 41 Machin et al. (2011) entrevistaram 69 profissionais de saúde de nível superior atuando na APS em quatro estados brasileiros, acerca dos significados associados a ser homem e a relação entre masculinidade e cuidados de saúde. Os profissionais afirmaram que homens têm maior dificuldade em buscar assistência em razão da sua percepção de que o cuidado consigo seria uma tarefa do feminino. Também foi percebido o reforço de um padrão hegemônico de masculinidade que acarreta em pouco envolvimento do público masculino no autocuidado. De acordo com Wetherell e Edley, são muitas as estratégias para prática da masculinidade hegemônica, enquanto Jefferson (2002) (apud Noone e Stephens, 2008) pondera que estas se modificam de acordo com o contexto. Os autores também descrevem profissionais de saúde que reforçam o estereótipo no qual os homens são percebidos como teimosos por não procurarem serviços de saúde, enquanto mulheres seriam as hiper utilizadoras, como já descrito pelos (as) pesquisadores (as) brasileiros (as). Quanto às atividades de grupo realizadas nas unidades de saúde, são aquelas nas quais, teoricamente, se pode refletir sobre promoção e educação em saúde considerando as relações de gênero e o contexto sociocultural de inserção. Infelizmente, esses momentos não os beneficiam na medida em que conforme crítica de Malta e Merhy (2010), os homens precisariam de “(...) grupos que lhe façam sentido, e não preleções que não lhe estimulam a rever nada no seu modo de viver, ou seja, grupos que consigam, junto com ele, operar a criação de novos sentidos para o viver” (p.597). Caso tais cuidados não sejam considerados quando os homens começarem a se aproximar efetivamente da atenção primária, os profissionais de saúde estarão fomentando a medicalização do corpo masculino catalisada pela tentativa de implementar a PNAISH (Carrara, Russo e Faro; 2009). Além dos tradicionais grupos de hipertensos e diabéticos, que costumam se ‘confundir’ com grupos de idosos com ínfima presença masculina, o grupo de pré-natal invariavelmente ignoraa presença masculina seja no convite, seja na elaboração de temas para discussão 42 apesar da proposta de sua inclusão no projeto da Rede Cegonha lançada em 2011 e inserida na Caderneta de Gestante reformulada em 2015. Assim se perde oportunidade de promover saúde e hábitos saudáveis quando os homens estão mais sensibilizados pela iminência da mudança de fase no ciclo de vida (Carter e McGoldrick, 1995). Portanto, ao considerarmos os diversos aspectos já discutidos sobre o autocuidado e a presença de homens nos serviços de saúde, cabe aos(às) profissionais de saúde encarar alguns desafios que têm apontado para a necessidade de aprimorar a comunicação desde a chegada à unidade de saúde, cujo primeiro contato é previsto que ocorra através do acolhimento com aplicação dos princípios da prevenção quaternária (Norman e Tesser, 2009) e destituídos das preconcepções tradicionais sobre motivo da procura de determinados grupos como de homens em idade laboral que pode permanecer ausente na medida em que raras são as intervenções indicadas, conforme as evidências atuais. Para a adoção de um acolhimento efetivo, faz-se necessárias, portanto, de algumas mudanças substantivas na organização e no aprimoramento do trabalho em equipe, como enumerado por Tesser et al. (2010): preferencialmente que a equipe de referência acolha a população de sua área de abrangência; acesso facilitado a médicos e enfermeiras visando agilizar resolução das demandas; apoio humano e institucional para a equipe, entre outras ações para proteger a equipe diante do fluxo da demanda; reuniões semanais para discutir e avaliar o trabalho e envolvimento das equipes num processo de educação permanente, sendo esta última também recomendada por Ceccim (2005), entre outros. Tesser et al. (2010) acreditam que a adoção do Acolhimento de forma efetiva seria uma das medidas pertinentes à desmedicalização social, aspecto prevalente na população atendida pelas equipes de saúde da família. Nesse sentido, cabe trazer a definição de medicalização social, segundo os autores: “(...) um processo sociocultural complexo que vai transformando em necessidades médicas as vivências, os sofrimentos e as dores que eram administrados de outras maneiras, no próprio ambiente https://www.saude.gov.br/saude-para-voce/saude-da-mulher/rede-cegonha, acessada em 09-03-2020. https://www.saude.gov.br/saude-para-voce/saude-da-mulher/rede-cegonha 43 familiar e comunitário, e que envolviam interpretações e técnicas de cuidado autóctones” (p. 3615). De acordo com Rose (2007), a Medicina enquanto instituição de controle social usou de seu prestígio para avançar sobre os campos espiritual, moral, legal e criminal. Illich avançou na crítica à medicina institucionalizada como grande ameaça à saúde ao retirar “(...) progressivamente do cidadão o domínio da salubridade no trabalho e o lazer, a alimentação e o repouso a política e o meio” (Tabet et al., 2017, p.1191). Assim se considerou legitimada a regular fenômenos como alcoolismo, aborto, práticas consideradas desviantes como homo e transexualidade além do uso de drogas ilícitas (Russo, 2004). Esta trajetória ficou muito evidente no que veio a ser difundido como a ‘epidemia de depressão’ que corresponde a banalização do diagnóstico seguido do excessivo, por vezes indiscriminado, uso de psicotrópicos que medicalizaram sentimentos como tristeza, luto ou irritabilidade (Brasil, 2009; Whitaker, 2017). Por sua vez, Johansson et al. (2016) alertam para os riscos intrínsecos daquilo que os autores denominam como um “excesso de medicina” a balizar decisões que envolvem problemas éticos e julgamentos complexos baseados em valores pessoais dentro de uma conjuntura, ao menos no ocidente, em que o consumismo abarcou a saúde como mercadoria associado ao acesso facilitado à informação nem sempre fidedigna ou, por vezes, tendenciosa. Afinal, concluem os autores, vive-se num contexto em que a prática da chamada medicina preventiva, a redução dos limiares diagnósticos que passam a nomear pessoas como doentes, como se deu na mudança de critério para diagnóstico de diabetes mellitus tipo II e ainda a aplicação de tratamento para lidar com fatores de risco, como se fossem doenças, exige mais atenção dos profissionais para evitar que pessoas, no legítimo exercício de sua autonomia, mas carentes de informação, venham a tomar decisões sem uma compreensão da complexidade dos fatores acima descritos. 44 À vista disso, cabe aos profissionais de saúde buscar desconstruir discursos e práticas imperativas de ordenação de mudanças de hábito como se faz rotineira e indiscriminadamente. As consultas, que por serem episódicas e espaçadas ao longo do tempo da vida do adulto, exigem sensibilidade ainda maior do profissional, na medida em que não conhecem com mínima profundidade aqueles (as) que atende. Propõe-se, por conseguinte, que ao lidar com homens não habituados a esse nível de interferência sobre suas práticas seria mais adequado aproximar-se demonstrando interesse em conhecer a pessoa, perceber efetivamente qual é a sua demanda, inclusive a possibilidade de estar oculta, conforme assinalado por Modesto e Couto (2016). E, a partir daí, modular o tom da mensagem na busca de pontos em comum antes de propor mudanças de hábitos há muito arraigados. Esta postura vai ao encontro dos princípios postulados por diversas formas de abordagem comunicacional na clínica, mas que ainda não foram efetivamente adotadas nas escolas médicas e pelos serviços de saúde o que será debatido em maiores detalhes no capítulo seis. 3.3 A Relação Médico (a) + Pessoa na Prática da Medicina de Família e Comunidade Inicialmente é importante registrar a escolha da denominação adotada por Lopes (2005) no uso da denominação médico (a) – pessoa ao invés da tradicional e histórica ‘relação médico-paciente’. Isto se deve em função da carga simbólica vinculada a palavra paciente no que encerra enquanto passividade e perda de autonomia nessa relação já tão desigual por fatores históricos, sociais e econômicos. Além disso, proponho que a nomenclatura para se referir a essa relação adote o sinal de soma como em ‘médico + pessoa’ ao invés do hífen que separa os dois elementos dessa relação. Acredito que o símbolo serve para nos lembrar do efeito da soma ao invés da separação que, boa parte de nós médicos de família, conseguimos dissipar afastando a mesa que distancia imageticamente o encontro. 45 Portanto, acredito que essas mudanças provocam profissionais e pesquisadores(as) a considerar essa assimetria danosa que está arraigada em nosso pensar e agir. Faz-se oportuno também registrar que a troca de paciente por pessoa foi adotada pela SBMFC nos princípios que regem a especialidade. Apesar disso, em alguns momentos, optei por manter a denominação tradicional ‘médico-paciente’ em respeito às diversas publicações que assim a denominam. 3.4 Contextualização da Medicina de Família e Comunidade Na década de 70, o crescimento inicial da Medicina Geral e Comunitária (MGC) no sistema de saúde se deu a partir de uma relação conflituosa com o grupo da Medicina Preventiva e Social (MPS) em função de suas diferentes propostas de atuação na Saúde Pública. No início dos anos 80, a MPS já havia alcançado a devida relevância na relação com as políticas de saúde, sobre as quais seus profissionais viriam a ocupar espaços na gestão do sistema público de saúde. Apesar disso, “(...) o Governo federal determinou corte de todas as bolsas da RMPS mantendo apenas aqueles cujos programas se transformassem em MGC” (Massuda et al., 2009, p.635), área que em 1979 havia estabelecido seu primeiro programa de residência. Segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a “(...) manobra visava, principalmente, impedir a politização da questão dasaúde, presente na formação dos profissionais sanitaristas” (Abrasco, 2006, p.82). Diante dessa ameaça, a Abrasco se mobilizou e através do Programa de Apoio as Residências de Medicina Social, Medicina Preventiva e Saúde Pública (PAR) conseguiu aumento substancial do número de vagas até o ano de 1981. A relação pouco harmoniosa se manteve entre as duas correntes no campo da saúde coletiva até a ruptura que configurou a corrente de MGC com objetivo de formar médico generalista numa perspectiva biopsicossocial com treinamento na APS e o da Medicina Preventiva e Social que visava formar profissionais com a perspectiva coletiva do cuidado, articulando práticas socialmente 46 estruturadas e determinantes sociais do processo saúde-doença. Esta corrente criticava a MGC por considerar que, como havia ocorrido em outros países, a especialidade iria segmentar a assistência entre cidadãos de primeira classe, a serem atendidos pelas especialidades focais, e os pobres, ficando estes sob o cuidado da medicina de família (Campos e Belisário, 2001). Segundo Sater (2017), os sanitaristas alegavam que era perda de tempo atender as pessoas, enquanto Falk (2004) registra a crítica de que a MGC iria atuar apenas como ‘tampão social’, porque se concentrava em atender a população. Outra crítica se referia a seu crescimento inicial através de financiamento de organizações como a Fundação Kellogg e Ford, diretamente apoiadas pelo governo dos EUA e baseadas em concepções focalizadas e restritas dos serviços de saúde e elementos do modelo liberal da prática médica. Num contexto brasileiro de pujança do movimento sanitário latino-americano, luta armada e clandestinidade, a MGC foi criticada profundamente por “(...) atuar politicamente junto a populações historicamente marginalizadas, além de atendê-las” (Sater, 2017, P.44). Nesse contexto, o ano de 1978 se tornou um marco para a saúde coletiva a partir da conferência de Alma Ata, organizada pela OMS, que indicou a atenção primária como força motriz para alcançar a meta de “Saúde para Todos no ano 2000”. Em documento histórico se formulou três diretrizes essenciais: acesso universal e primeiro ponto de contato do sistema de saúde; indissociabilidade da saúde do desenvolvimento econômico social, reconhecendo-se os determinantes sociais; e participação social – três componentes símbolo que iriam embasar os princípios do SUS a ser implantado na década seguinte. A década de 80 se iniciou com a formalização do programa de residência em MGC seguido da abertura de poucos programas pelo Brasil enquanto a Medicina Preventiva e Social estabelecia 20 novos programas com impulso determinante da Abrasco. Em 1986, o Conselho Federal de Medicina veio a reconhecer a MGC com especialidade médica. 47 Desde os anos de 1970, a articulação entre as lideranças na saúde pública num movimento conhecido como Reforma Sanitária e, nos anos de 1980, contando com lideranças acadêmicas e de organizações como o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), a Abrasco, as universidades e sindicatos trabalharam na construção de propostas e diretrizes chave que foram debatidas na VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) e, posteriormente, incorporadas no texto da Constituição Federal de 1988. Na etapa seguinte, esses atores com apoio de segmentos da sociedade civil conceberam as propostas que vieram a resultar na implantação do SUS em 1990, após o longo período da ditadura. No bojo do retorno progressivo da democracia e incremento da participação popular, 1994 marcou a instalação do Programa de Saúde da Família (PSF) que promoveu a reorientação do modelo assistencial a partir da Atenção Básica em conformidade com os princípios do SUS e da Conferência de Alma Ata. Tendo a família como centro da atenção e atuando vinculada ao território dentro de seu contexto social, o PSF veio a se tornar o principal mercado de trabalho para os médicos generalistas, assim como de outras especialidades e egressos dos programas de residência em Medicina de Família e Comunidade. Em 1998 quando o país contava com três mil equipes instaladas, o PSF foi aprimorado e renomeado Estratégia Saúde da Família (ESF), que veio a expandir e consolidar a atenção primária a partir de reorientação e aprofundamento de suas diretrizes visando ampliar a resolutividade e impacto na situação de saúde da população. Em 2008, quando a ESF completou 10 anos havia aproximadamente 29 mil equipes, 558 vagas nos programas de residência de MFC, 5.200 vagas para especialização e 582 vagas no programa de residência multiprofissional. (Brasil, 2010); Dez anos depois, o programa de Residência em MFC havia crescido seis vezes alcançando quase 3.600 vagas para residentes de primeiro ano (MEC, 2018). A operacionalização da ESF ocorre a partir de um trabalho em equipe multiprofissional composta de médico (a), enfermeiro (a), técnico de enfermagem e, originalmente, agente comunitário de saúde (ACS), sendo 48 estipulado uma equipe para no máximo 4 mil pessoas e um ACS para 750 pessoas por ACS. Em 2003, a equipe original foi ampliada passando a contar com dentista e técnico de higiene dental. Em 2008 foi estabelecido o Núcleo de Apoio a Saúde de Família (NASF), concebido nas modalidades 1 e 2 e incorporou profissionais de diversas áreas tais como a Farmácia, Nutrição, Psicologia, Psiquiatria, Serviço Social, Fisioterapia, Educador Físico, entre outros. O acesso ao atendimento ocorre mediante discussão dos casos nas equipes da ESF com as quais compartilham a responsabilidade do cuidado da população do território. Além disso as equipes de ESF são articuladas com outros setores como, por exemplo, a educação através do Programa Saúde na Escola (PSE). Os Núcleos de Atenção à Saúde da Família (NASF) atuam de forma integrada à Rede de Atenção à saúde e seus serviços tais como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) que se dividem por faixa etária (adulto ou infantil/adolescente) e pela especificidade quanto aos transtornos de saúde mental ou ainda quando relativos ao abuso de álcool e drogas através do CAPS AD (PNAB, 2012). O avanço da APS através da alavancagem da expansão da ESF nos anos 90 atingiu a cobertura de 53% da população em 2013 (Malta et al., 2016) e em dezembro de 2019 chegou a 65% sendo a menor, 68% na região Sudeste e a maior, 85% no Nordeste (DATASUS, 2019). Através do trabalho exercido por 44 mil equipes espalhadas pelo território com potencial de resolutividade de 80% das queixas nas consultas (Starfield, 2002) são aspectos marcantes da ESF que ressoam num sistema de saúde que a cada ano precisa de mais recursos. Entre outros motivos, diante da complexidade das tarefas, custos operacionais envolvendo exames e medicamentos, além do envelhecimento da população. Em virtude de a medicina de família e comunidade buscar oferecer assistência à saúde caracterizada por longitudinalidade, integralidade e reconhecer a importância da relação médico (a) – pessoa vem, desta forma, a responder a duas das fontes de conflito para a sociedade frente a fragmentação e desumanização do cuidado. 49 Por sua vez, diante da alta resolutividade alta e a busca de eficiência no uso dos recursos financeiros contribuíram para atrair o interesse do setor privado que através , entre outras iniciativas, de associações de funcionários da companhia aérea VARIG nos anos 1990 e em 2003 da Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil (CASSI) criaram estruturas que guardam semelhanças com a ESF no que tange a busca de ações de promoção de saúde e prevenção de doenças; vinculação a trabalho conjunto de médicos(a)s e enfermeiras e racionalização do custo dos serviços de saúde oferecidos a funcionários e familiares. A onda mais recente se deu em 2005 através da Agência Nacional de Saúde Suplementar que iniciou política indutora(Machado et al., 2019) liderada pelas operadoras de planos de saúde que passaram a abrir espaço para atuação dos MFCs (Amil, 2016; Machado et al., 2019). Segundo matéria publicada na Folha de São Paulo (2015), a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade estimava na ocasião que, dos cerca de 5.000 profissionais afiliados, 10% trabalham em consultórios particulares. Este movimento numa sociedade com severa restrição no orçamento federal do setor e com pequeno número de especialistas na área concentrados nos grandes centros, anuncia o risco de progressiva migração de recursos humanos do setor público. Nesse sentido, cabe acrescentar a sistematização elaborada por Silva Junior (1998): ... a MGC oriunda da concepção estadunidense é caracterizada por um conjunto de 8 elementos: (...) 1) coletivismo restrito – restringindo a clínica a uma comunidade local, onde haveria uma dinâmica própria distinta da sociedade como um todo e um consenso integrado de interesses; 2) integração de atividades de promoção, prevenção e cura a grupos entendidos como “vulneráveis e de risco”; 3) desconcentração de recursos; 4) hierarquização do acesso a partir de um nível primário, sem pressupor necessariamente a organização de uma rede de serviços; 5) adequação de tecnologias acessíveis e disponíveis; 6) inclusão de práticas médicas “alternativas” – a partir de distintas racionalidades, além da biomédica; 7) utilização de equipe de saúde multiprofissional e 8) participação comunitária (apud SATER, 2017, p.41). Segundo McWhinney e Freeman (2009), diferentemente da grande maioria das especialidades, a MFC não se restringe ao estudo de um grupo 50 de órgãos ou sistemas, tampouco está vinculada a determinada tecnologia. Essa denominação quando ‘traduzida’ para o contexto brasileiro se mostra incompleta e até confusa, na medida em que Merhy (1997) se apropriou e ressignificou o conceito de tecnologia em três aspectos: leve (dos saberes, da capacidade de decisão do profissional), tecnologia “leve-dura” (protocolos, que deverão ser adaptados pelo cuidador na singularidade do sujeito) e “tecnologias duras” (exames, imagens, procedimentos). No ocaso da MFC, a especialidade transita principalmente na aplicação das tecnologias leves e leve-dura na perspectiva da construção do cuidado que Malta e Merhy (2010) advogam que seja “(...) centrada nos usuários e suas necessidades e não de um modelo que atenda aos interesses do mercado” (p.594). Outrossim, o (a) médico (a) de família busca conhecer a pessoa de maneira integral ao longo do ciclo de vida individual e familiar, independentemente do agravo pelo qual possa vir a ser acometido. Dessa forma, o médico (a) utiliza a consulta para fomentar um vínculo que aprofunde a compreensão do ser saudável e dos significados do adoecimento para a pessoa e sua rede de apoio existente ou potencial. Nesse sentido, Spence (1960) frisa que a consulta propicia uma possibilidade de confiança depositada no (na) médico (a) como unidade essencial da prática médica, enquanto todo o resto apenas deriva desse ‘setting’. A especialidade é regida por quatro princípios, a saber: o médico de família e comunidade é um clínico qualificado; sua atuação é influenciada pela comunidade; o MFC é o recurso de uma população definida e a relação médico-pessoa é fundamental para o desempenho desse médico (Lopes e Dias, 2019). Este último cabe ser destacado por ser crucial no seu arcabouço teórico e prático. Entre outros motivos, pelo fato de que o (a) médico(a) lida com situações em que a incerteza diagnóstica pode se prolongar, quando então a confiança fomentada na relação se torna requisito essencial para manutenção do vínculo. Nesse sentido, Adler e Herbert (1997) reconhecem que a coleta de informações sobre a história da doença 51 pode ser terapêutica, desde que o médico demonstre sensibilidade, segurança, competência afetiva e cognitiva. Ainda assim, Houston (1938 apud Dixon, 1989) observava que esse tema, apesar de tão presente na prática, raramente era discutido entre profissionais da década de 1930. Nessa época o médico e professor Peabody demonstrava grande interesse pelo tema tendo ele mesmo se tornado paciente devido a um câncer de estômago enquanto alertava seus alunos “(...) a importância da íntima relação entre médico e paciente não pode ser excessivamente enfatizada para um grande número de casos, ambos o diagnóstico e tratamento dependem diretamente disso...o segredo do cuidado do paciente, é cuidar do paciente” (Lock et al., 2001, p.192). Em 1989, a relação médico-paciente foi tema central da revista do Colégio de Médicos de Família do Canadá. Em seu editorial, Dixon (1989) faz uma revisão histórica do tema sob diferentes prismas. Esse autor mostra que, na percepção social de Bastide (1972), a relação não se resumia aos dois indivíduos diretamente envolvidos, mas sim à troca entre médico (a) e paciente; já para o físico Henderson (1935), ao longo do tempo a relação entre os indivíduos teria o potencial de atingir um equilíbrio interdependente. Freidson (1988), por sua vez, considerava que visões e experiências tão diversas quanto às do indivíduo e do (a) profissional se encontravam num estado de conflito em potencial. Na segunda metade do século XX, em decorrência do acelerado avanço tecnológico apoiado no modelo biomédico, a relação médico (a)- paciente se tornou mais centrada no(a) médico(a) e na doença, em detrimento do foco no(a) paciente e sua subjetividade (Ballester et al., 2010). Nessa época, o psiquiatra húngaro Michael Balint (1957), entre outros pesquisadores, desenvolveu intenso e extenso trabalho de supervisão de grupo de médicos de família na Inglaterra. Suas observações trouxeram imensa contribuição para a compreensão e aplicabilidade dos princípios do cuidado centrado na pessoa sobre diversos aspectos da relação médico pessoa. Crítico do modelo biomédico como “medicina de uma pessoa”, seu trabalho, aliado ao desenvolvido por Carl Rogers (1951, apud Mead e 52 Bower, 2000), destacava que a aproximação do mundo do paciente viabiliza a empatia permitindo assim que o profissional entenda os sentimentos e assim se estabeleça a efetiva comunicação (Rogers, 1992). Em outras palavras, Balint salienta que o objetivo é “(...) entender as queixas oferecidas pelo paciente e os sintomas e sinais encontrados pelo médico, não apenas em termos das doenças, mas também como expressões da individualidade singular do paciente, seus conflitos, e seus problemas” (citado em Henbest e Stewart, 1989 apud Mead e Bower, 2000, p.1089). Essa concepção alerta para um equívoco banalizado no ensino e prática da medicina em que a pessoa sendo cuidada é reduzida a um rótulo diagnóstico, quando a patologia se sobrepõe ou anula a pessoa, o que costuma ser descrito no jargão médico como ‘a pneumonia do leito 12’, entre outras referências reducionistas e despersonalizadas do sujeito. Portanto, o reconhecimento da pessoa a ser cuidada na relação contribuiu para o reconhecimento da formação da parceria que se influenciava mutuamente, originando daí o conceito “medicina de duas pessoas”. Além desses aspectos, Balint refletiu sobre o potencial da ação do (a) médico (a) sintetizado através do aforismo ‘the doctor as a pill’, isto é, sobre o uso do profissional enquanto medicamento. Em outras palavras, a atuação do profissional seria semelhante ao uso de um medicamento, mas sobre o qual advertia que se desconhecia a apresentação, a dosagem e possíveis riscos associados. Nessa época, para descrever a relação médico(a)-paciente, Szasz e Hollender (1956) propuseram três modelos baseados nos diferentes níveis de participação do paciente: a) a situação em que ocorria a total obediência às orientações médicas (atividade-passividade), que ilustravam com situações agudas, envolvendo risco devida ou trauma severo que impediriam a comunicação; b) o modelo intermediário de participação, chamado orientação-cooperação, no qual o(a) paciente se mostraria mais Pode-se fazer um paralelo desta expressão, com a frase creditada a Voltaire, que teria afirmado: “Médicos são homens que prescrevem medicamentos dos quais eles conhecem pouco, para curar doenças das quais eles sabem ainda menos para seres humanos dos quais eles não conhecem nada” (Lock et al., 2001). 53 ativo e aceitaria a orientação daquele(a) que tem o poder “traduzido” em conhecimento, tendo como exemplo o manejo de um quadro infeccioso agudo, cenário no qual os autores reconhecem haver risco de exploração por parte do(a) médico(a), supostamente imbuído do princípio da beneficência; e c) o modelo denominado ‘participação mútua’, que pressupõe três aspectos: igualdade de poder entre médico(a) e paciente, interdependência mútua e engajamento em um projeto que traga satisfação para ambos. Nesse caso, o (a) profissional, sem ter exata noção do que é melhor para o (a) paciente, o (a) auxilia tornando-se parceiro (a) na tomada de decisão. Essa abordagem se mostra benéfica, por exemplo, em doenças crônicas como a diabetes, em que o conhecimento dos hábitos e sua adaptação depende em muito do que o (a) paciente pretende adotar. Os autores admitiam que esse modelo baseado em referenciais de parceria e amizade era uma relação pouco comum na medicina da época. Além disso, consideravam que cada modelo poderia ser pertinente numa determinada situação e que a relação médico (a)-paciente poderia se transformar à medida que as circunstâncias e expectativas de cada um se modificassem. No final da década de 1970, Engel (1977) reforça as críticas às limitações do modelo biomédico e lança as bases do modelo biopsicossocial, no qual inclui a perspectiva do (a) paciente, o contexto social em que vive e o sistema complementar formado pelo papel do(a) médico(a) e o sistema de saúde. Segundo Brody (1980), a insatisfação da população estadunidense foi propulsora da publicação da lei sobre os direitos dos pacientes (Patient's Bill of Rights) pela Associação Americana de Hospitais em 1972. Nessa época, o termo de consentimento informado, criado na década de 10 do século XX, ainda não era enfatizado, vindo a se tornar um instrumento poderoso na medida em que o movimento dos grupos de autoajuda (self- help) se fortaleceu. Brody acrescentou que a relação médico-paciente tradicional, na qual o paciente ocupa uma posição passiva, como recipiente das decisões tomadas pelo (a) profissional, gerava grande insatisfação pela perda de autonomia. A partir deste tipo de relação, propõe uma abordagem que estimulasse mútua participação na consulta a ser organizada em quatro 54 etapas. Inicialmente se deve criar atmosfera que tranquilize o (a) paciente; em seguida recomenda que se conheça as expectativas e objetivos; na etapa seguinte busca-se informar sobre o problema clínico, discutir as opções de manejo e, em alguns casos, explicitar a recomendação médica; finalmente, tenta-se conhecer a preferência do paciente e esclarecer, caso haja discordância com a proposta do médico (a). Vale destacar que o MCCP criado na década seguinte aprimora essa abordagem ao propor conhecer a agenda da pessoa logo no início da consulta. O autor enfatiza que a flexibilidade e empatia do profissional seriam essenciais para melhor uso desta abordagem. Ainda assim, Brody alerta que o (a) médico (a) teria o direito de recusar apoio à decisão que pudesse colocar o paciente em risco assim como, em tese, este deveria procurar outro profissional, caso as partes não chegassem a um acordo. Já na década de 1990, Emanuel e Emanuel (1992), por sua vez, discutiram o potencial conflito entre autonomia e manutenção da saúde a partir do papel do (a) paciente no processo de tomada de decisão. Os autores delinearam, então, quatro modelos: paternalista, informativo, interpretativo e deliberativo. No modelo paternalista, o (a) médico (a), como guardião da saúde, assume que compartilha objetivos com o (a) paciente, seleciona informação referente à investigação e ao tratamento, enquanto o (a) paciente daria consentimento para prosseguir com a intervenção proposta. Entre a autonomia e bem-estar do (a) paciente, o (a) médico (a) optaria por este último. No modelo informativo, também chamado científico (ou do consumidor), o (a) paciente selecionaria a intervenção que deseja a partir das informações fornecidas pelo (a) médico (a), ou seja, a natureza do problema, riscos e benefícios associados à intervenção e às incertezas. A partir dos valores do (a) paciente, os fatos seriam repassados para sua tomada de decisão, que seria então adotada pelo(a) médico(a). Nesse modelo, o(a) médico(a) não deve oferecer recomendação pelo receio de impor sua visão e afetar o controle que o(a) paciente deve ter sobre a decisão. Esse modelo, porém, é criticado por reforçar a tendência vigente à 55 especialização e impersonalização da profissão médica. Além disso, não prevê que o(a) paciente reflita e revise suas preferências. No modelo interpretativo, o objetivo da consulta é elucidar os valores do(a) paciente, esclarecendo o que ele(a) quer, além de auxiliá-lo(a) a selecionar a intervenção que corresponda a seus valores para torná-los mais coerentes com as decisões a serem tomadas pelo(a) paciente. Como já ocorre no modelo informativo, o(a) médico(a) atua como um conselheiro, que informa sobre a natureza do problema, riscos e benefícios das possíveis intervenções. Além disso, tem a preocupação de engajar o(a) paciente no processo de tomada de decisão. Nesse caso, fazia-se o alerta sobre a habilidade do(a) médico(a) e a falta de tempo, que poderiam levar o(a) profissional a impor seus valores. Por último, no modelo deliberativo, o(a) médico(a) é tido como professor ou amigo que auxilia na definição e escolha dos valores relacionados à saúde que melhor podem ser empregados na situação clínica em questão. Supõe-se que o(a) paciente tenha poder para considerar valores alternativos relacionados à saúde, ao seu valor e às suas implicações para o tratamento. Nesse processo, os críticos apontam o risco de se implantar um paternalismo não intencional. Em resumo, os autores discutem modelos baseados na autonomia do(a) paciente, mas que diferem na postura do(a) profissional, que reconhece, em maior ou menor grau, aspectos como empoderamento e respeito aos valores do indivíduo frente a situações com diversos graus de risco de morte. Nesse contexto de crítica pela perda de autonomia e insatisfação representado pelo aumento de número de processos contra profissionais médicos, em 1988 o Programa ‘Picker/Commonwealth’ de Cuidado Centrado no Paciente formulou o conceito do “Cuidado Centrado na Pessoa” (Barry e Edgman-Levitan, 2012). Este, por sua vez, se caracteriza pela ênfase no conhecimento das necessidades do(a) paciente e sua experiência com o problema ou enfermidade que o aflige. Segundo Mead e Bower (2000), esta abordagem do cuidado médico não gozava de consenso 56 entre vários autores proeminentes. Assim, para Edith Balint (1969) seria conhecer a pessoa como ser humano singular, enquanto para Byrne e Long (1976) representa o estilo de consulta onde o médico utilizaria o conhecimento do paciente e experiência para guiar a interação. Já para McWhinney (1989), líder do grupo na criação do Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP), compreendia a abordagem como “a entrada do médico no mundo do paciente, vendo a enfermidade através de seus olhos” (p.1087). Finalmente a publicação do artigo de Mead e Bower (2000) veio a sistematizar os elementos característicos do cuidado centrado no paciente, a saber: (1) estar atento a aspectos biológicos, psicológicos e sociais da saúde (perspectiva biopsicossocial);(2) explora o significado da enfermidade para a pessoa; (3) aumento do envolvimento do paciente no seu cuidado a saúde (compartilhamento do poder e responsabilidade); e (4) colocando maior prioridade sobre a relação pessoal entre médico e paciente; O cuidado centrado na pessoa foi definido pela OMS como o cuidado que responde a expectativa das pessoas e respeita seus desejos. A organização reconhece esta abordagem como parâmetro de bom funcionamento dos sistemas de saúde (OMS, 2010, 2015). Outrossim, foi demonstrado que essa forma de cuidado melhora os resultados diante de agravos como diabetes mellitus e reabilitação de acidente vascular encefálico. Foi verificada também a melhora da relação entre pacientes e clínicos assim como satisfação, aumento de aderência e da qualidade de vida. Quanto ao sistema de saúde, estudos demonstraram redução de tempo de hospitalização e redução de custos para o sistema de saúde (Brickley et al., 2019). Por outro lado, instituições como o ‘Royal College’ que representa os médicos de família do Reino Unido indica dificuldades dos profissionais seja pela sua aptidão técnica, seja pela necessidade de conciliar ‘linhas de conduta/diretrizes’ recomendadas com as preferências das pessoas atendidas. Além disso, o sistema de saúde pode acrescentar limitações pelo sistema de pagamento ou forma de organização das clínicas (2014). 57 Nessa perspectiva, o processo de tomada de decisão que, historicamente foi atribuição exclusiva do profissional de saúde, se tornou objeto de estudo na medida em que o cuidado a saúde centrado na pessoa veio a se tornar referência para algumas correntes de cuidado. Esta abordagem consiste no compartilhamento da melhor evidência disponível no intuito de se tomar decisões clínicas. Isto se dá a partir do apoio aos pacientes na consideração de suas opiniões visando alcançar escolhas informadas (Elwyn et al., 2010). Para que esse processo de decisão ocorra de forma adequada, Towle e Godolphin (1999) descrevem os atributos necessários para profissionais e pacientes. Estes precisam definir que tipo de relação médico(a)-paciente preferem e o(a) profissional adequado à sua visão. A partir daí, espera-se uma reflexão sobre seus problemas de saúde, sentimentos, expectativas de forma objetiva e sistemática e uma comunicação clara durante a consulta. Caberia ainda ao paciente acessar e avaliar a informação, negociar decisões e dar feedback ao seu médico(a) até definir um plano de manejo de seu(s) problema(s). Quanto aos profissionais, estes precisariam estabelecer parceria com seus pacientes para conhecer suas preferências e valores, responder a seus questionamentos e preocupações. Baseado nestas condições, identificar escolhas e avaliar evidência relativa a seu paciente e discutir alternativas e possíveis impactos da decisão a ser tomada. Finalmente, definir em conjunto um plano de ação e estabelecer o seguimento das consultas. Elwyn et al. (2012) destacam que este processo se baseia no princípio da autodeterminação e do respeito à autonomia do sujeito. No contexto brasileiro, Malta e Merhy (2010) destacam a importância de “(...) considerar a singularidade e autonomia dos sujeitos na definição das opções terapêuticas adequadas ao seu contexto de vida” (p.598). E ao mesmo tempo compreender que a autonomia é fundamental para fortalecer escolhas responsáveis, a sua qualidade de vida. Além disso, segundo Elwyn et al. (2012), é essencial que o clínico tenha sólidas habilidades de comunicação e conheça suficientemente aqueles dos quais cuida. Os autores relatam uma extensa série de ensaios clínicos randomizados nos quais os benefícios aos 58 pacientes demonstram ganho de conhecimento, confiança na tomada de decisão e envolvimento neste processo. Acerca das dificuldades para a efetiva utilização do processo de tomada de decisão compartilhada, Barry e Edgman-Levitan (2012) declaram que, dentre os maiores desafios está o envolvimento dos(as) pacientes nesse processo, apesar destes(as) indicarem o desejo em participar. Os autores apontam que os(as) pacientes deveriam receber ferramentas que facilitem sua participação ao mesmo tempo em que sejam apoiados(as) emocionalmente para expressar seus valores e preferências sem se sentirem censurados(as) pelos seus clínicos(as) ao pedir esclarecimentos. Por sua vez, os médicos (as) precisariam se desligar de uma atitude por vezes autoritária ou paternalista para se tornarem efetivamente parceiros (as) com a postura ativa de perguntar sobre interesses e valores que efetivamente importam para seus (as) pacientes. A prática clínica muitas vezes passa ao largo das ferramentas existentes para auxiliar no processo de tomada de decisão compartilhada (TDC), entre elas o Modelo ‘SHARE’, ‘5As e, ‘IAIS’ já testadas na atenção primária e muito úteis quanto a rastreamento de câncer (O’Connor et al, 2015). Visando aplicação às demais situações clínicas, não vinculada a órgão ou sistema específico, os autores recomendam o ‘Ottawa Personal Decision Guide’. A fim de aproximar o processo de tomada de decisão da prática clínica, Legaré e Thompson-Leduc (2014) revisaram artigos publicados entre 1982-2013 relativos ao processo de TDC. Definiram como mitos aquelas crenças que não tinham apoio na evidência. Entre elas, vale destacar a suposição de que as pessoas não querem tomar parte no processo de decisão, quando na verdade os artigos mais recentes do estudo (2000-2013) mostraram que, em média, 71% dos respondentes queriam participar. A outra possibilidade é a de que nem todos têm talento para participar da tomada de decisão, quando os estudos mostram que é um comportamento que pode ser aprendido e que existem ferramentas revisadas pelo Grupo Cochrane que mostrou redução do percentual de quem prefere permanecer passivo ou indeciso, que facilitam a tomada de 59 decisão compartilhada, inclusive são mais eficazes quando envolvem pacientes e profissionais simultaneamente. Quanto ao temor do aumento do tempo de consulta, o estudo do Grupo Cochrane mostrou, em média, um acréscimo de 2 minutos na sua duração. No Brasil, desde 2017 a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) promove campanha educativa chamada ‘Choosing Wisely’ que foi criada no Canadá em 2014 com o objetivo de auxiliar médicos (as) e pacientes a dialogar sobre testes, tratamentos ou procedimentos desnecessários. Esta ferramenta, portanto, visa aproximar os membros desta parceria a tomar decisões que garantam a qualidade do cuidado médico. Desta forma se coloca como instrumental para a discussão da prevenção quaternária e evitar a medicalização tão presentes em nossa sociedade Em instigante e recente artigo no renomado e influente Journal of American Medical Association (JAMA), Rabi et al. (2020) afirmam que as diretrizes têm recomendado de forma crescente incorporar o TDC, embora admitam que este processo de discussão não agrada médicos e ‘pacientes’, que só desejam saber ‘o que devo fazer’. Os autores alertam que o posicionamento de recomendação classificada como robusta pode inibir abordagem centrada na pessoa e que podem ter sido exageradas em algumas circunstâncias clínicas pela pouca praticidade de serem aplicadas, apesar de terem demonstrado os melhores resultados nos ensaios clínicos. Por fim, o artigo clama que a complexidade multidimensional e desgaste causado por alguns tratamentos propostos podem se mostrar inviáveis e potencialmente prejudiciais à saúde. Ao concluir, os autores recomendam que médico (a) e ‘paciente’ conversem sobre a natureza, magnitude e relevância do problema considerado (risco cardiovascular, por exemplo) para chegarem juntos a definir a conduta de forma sensível às circunstâncias de cada pessoa. 60 Esta abordagem me faz lembrar de uma pesquisa da qual participei quanto ao uso da mediçãode RNI ( INR - international normalized ratio)* para avaliar risco de coagulação, medida feita a partir de coleta de sangue. Entrevistei um homem de 65 anos que se mostrou orgulhoso ao trazer o registro de todos os valores de RNI ao longo de vários meses numa planilha em papel com 2 metros de extensão. Ele estava habituado a receber chamadas telefônicas regulares da enfermeira da clínica de medicina de família onde se tratava orientando sobre ajuste de dose do medicamento. Portanto, para esta pessoa, em particular, a proposta de manter monitoramento com exames para outras condições parece viável, enquanto para outras com problemas de mobilidade ou de compreensão, seria prejudicial pelo desgaste e risco de consequências desastrosas que se tentava evitar ao aplicar a recomendação proposta pelas diretrizes. Portanto, o uso da TDC depende das habilidades e experiência do médico (a) e sensibilidade e conhecimento das circunstâncias daqueles que atende, pois estas podem impedir os benefícios calculados ‘no mundo da pesquisa’ onde os participantes aceitam ser monitorados diligentemente ao longo de meses ou anos. Ainda assim, médicos (as) de família se encontram na melhor posição para encararem o desafio de propor a aplicação da TDC, pois faz parte de sua abordagem buscar o equilíbrio entre as peculiaridades do ‘mundo real’ onde vivem as pessoas que atendem e a seus familiares e calcular o benefício máximo ou risco de malefício advindos de recomendações oriundas do ‘mundo ideal’ pesquisado. Essa busca em verificar se as condutas propostas ressoam para as pessoas atendidas faz parte da premissa de que objetivos e expectativas de médicos (as) e pacientes (ou membros da díade) acerca da consulta podem ser diversas na medida em que partem de campos diferentes que se encontram na consulta. Portanto, seria muito valioso identificar aspectos que pudessem contribuir para melhoria da qualidade e satisfação mútua. Além disso, por se tratar de uma relação assimétrica onde as implicações éticas * Medida realizada a partir de dosagem no sangue de elementos que fornecem indicação sobre ajuste de dose de cumarínico que visa evitar risco de trombose ou acidente vascular encefálico. 61 acerca do poder médico, do impacto das decisões sobre a saúde e, ainda hoje, pouca permeabilidade para participação de uma terceira pessoa nessa relação terapêutica, colaboram para que raramente os profissionais tenham oportunidade de conhecer a opinião ou preferência daqueles (as) que atende. Acredito, inclusive, que a palavra ‘consulta’ não é internalizada pelas pessoas atendidas, muito menos pelos profissionais. Em outras palavras, a rigor, a intenção de comparecer a uma consulta deveria implicar em expor uma situação e ouvir uma opinião abalizada acerca de como investigar ou manejar o problema. Infelizmente dentro da perspectiva de uma relação que deveria promover a autonomia e respeito, o ‘script’ é bem diverso, a tônica é de que o ‘paciente’, no sentido tradicional do termo, obedeça a recomendação. Portanto, na maioria das vezes não ocorre um diálogo, mas uma prescrição que pressupõe obediência a uma determinada diretriz. Nesse sentido, a etapa de devolutiva desta pesquisa busca estabelecer essa ponte no diálogo que, pela arraigada tradição autoritária da relação, raramente ocorre. Em parte porque médicos (as) em geral acreditam que o seu conhecimento é suficiente para determinar o que é melhor a ser feito, sem abertura para questionamentos, posição reforçada pela idéia de que, por dever de ofício, praticam o bem, que suas opiniões são isentas de viés que perturbe aquilo que a ciência estipula. Infelizmente no mundo real, esse equilíbrio não ocorre até porque muitas das vezes, não é possível ter a clareza necessária sobre o que é mais indicado. Afinal, a incerteza é inerente a medicina como explicitado por Wellbery (2010) no editorial da revista The Lancet. E no caso da medicina de família e comunidade (MFC), a dúvida se torna mais explícita na medida em que os problemas costumam se apresentar em sua fase inicial, para a qual a lógica biomédica, na maioria dos casos, não se ateve a compreender e definir parâmetros de conduta (Weston et al, 1989). Esta situação típica da especialidade e frustrante para especialistas focais, pode ser ilustrada com os episódios de ‘virose’. Nesses casos as pessoas atendidas costumam se mostrar inconformadas diante dessa hipótese que lhes parece vaga, o que é 62 compreensível. Esse encontro com a incerteza clínica seria, portanto, a fenda necessária para se iniciar o diálogo sobre opções, sobre benefícios e riscos o que não costumam ser explicitados. Afinal, as posições de médico e ‘paciente’ ainda hoje pressupõem manter o equilíbrio dessa balança onde o peso da opinião do médico se impõe sobre a posição de quem está do outro lado da mesa. Quando surge a incerteza ou um desequilíbrio na confiança tácita, a ‘magia’ se parte. Nesse caso, a busca da chamada ‘segunda opinião’ costuma significar, na maioria das vezes, o rompimento daquela relação que seria de confiança supostamente absoluta, inerente a procura inicial. Esta confiança não deveria ser superdimensionada, mas sim relativizada a partir das variáveis explicitadas. Ainda assim, compreendo que seja muito difícil encontrar esse equilíbrio num ambiente em que as pessoas trazem na bagagem inquietações de diversas origens e o estressse pelo que sentem e pelo que supõem estar ocorrendo e potencial impacto em suas vidas, o que pode levá-las a se negar ou evitar participar do processo de decisão. Diante dessa equação complexa, a MFC se propõe a oferecer diálogo mais aberto, a apresentação dos possíveis desfechos e diante da incerteza sugerir observar a evolução natural dos sintomas através da conduta expectante (‘watchful waiting’) (Driffield e Smith, 2007). Nesse sentido, não se trata apenas de uma questão filosófica, a priori menos agressiva ou intervencionista, mas também pelo aspecto estatístico em que pela tendência das queixas se apresentarem no estágio inicial, a espera pela realização do exame complementar pode aumentar seu valor preditivo (May et al, 2012). No intuito de refletir sobre esses cenários, remeto ao filósofo Martin Buber, que influenciou o trabalho de Paulo Freire ao propor o conceito de comportamento dialógico, que consiste na possiblidade de os membros de uma relação se reconhecerem como influenciadores mútuos. Em outras palavras, Buber propõe que “(...) cada um dos dois se torne consciente do outro de tal forma que, precisamente por isso, assuma para com ele que não o considere e não o trate como seu objeto, mas como seu parceiro num acontecimento de vida” (Buber, 1982, p.137-138). Nessa perspectiva, 63 Caprara e Franco (2006) complementam: “As relações se dão entre dois que se consideram parceiros” (p.90). Por outro lado, os autores ressaltam que outros estudiosos contestam a ideia de “parceiros nas relações” na medida em que as diferenças de poder ou de compreensão da realidade impossibilitariam sua efetivação. Ainda assim, Caprara e Franco postulam que, na medida em que o poder do médico está ameaçado pela busca de adesão como uma possibilidade, mas não como certeza, ele (a) precisa constituir uma relação de parceria com quem atende (quem o/a consulta). A questão da possibilidade ao invés da ‘certeza’ aprendida ou na qual muitos médicos tendem a querer acreditar baseada no modelo cartesiano ainda muito arraigado, me remete a experiência vivida quando recém- formado e atuava como clínico geral numa ONG para meninos (as) de rua. Certa ocasião veio um adolescente entre 10 e 13 anos se consultar e então perguntei seu nome. Ele respondeu ‘Roberto’, e comecei a escrever na sua ficha. De repente, ouço uma voz da sala ao lado. Em tom autoritário, talvez apurada em me alertar sobre a informaçãocorreta, a técnica de enfermagem gritou em sinal de alerta: ‘é Joao, nome dele é João’. Lembro daqueles segundos em que refleti sobre o que aprendemos na faculdade de medicina e como deveria proceder. Desmenti-lo para me atrelar a informação ‘correta/oficial’ e correr o risco de desmanchar a possibilidade de vínculo já no primeiro minuto de consulta? Ou ir adiante e ignorar o ‘auxílio externo’? E rindo por dentro me dei conta: ‘Não, não aprendi nada sobre isso na faculdade’. Então encarei o menino e perguntei: ‘Então, como prefere ser chamado?’ E ele repetiu com convicção: ‘Roberto’. ‘Ok, e o que tá acontecendo contigo?’ Daí anotei o nome escolhido / nome oficial e reiniciamos o nosso primeiro e único encontro, como muitos outros em que não houve sequência, pois, a vida, naquele lugar, era muito ligeira. Basta dizer que, alguns que passaram por ali não terminaram o ano no mundo dos vivos. Esta e outras situações naquela instituição me levaram a refletir sobre o poder médico, na verdade tão frágil e fugaz, e o quanto dependemos das pessoas que atendemos para aquilo que hoje entendo como formação dessa parceria, a busca do vínculo, até firmar-se uma relação de confiança, e não 64 de medo diante do poder pelo qual o médico (a) exerce sua autoridade, aprende a se apoiar, pois dele se beneficia e goza de alguma forma de prazer. Esta situação de consulta remete ao argumento de Buber (1982) de que os seres humanos se ligam e se reúnem na qualidade de pessoas ao mesmo tempo dependentes e independentes entre si. Adotar essa postura ainda se coloca como um grande desafio na prática clínica no Brasil na medida em que a perspectiva caritativa descrita por Casate e Correa (2005) ainda prevalece baseado num modelo de comunicação unidirecional de forma paternalista, em que o profissional indica o que considera a melhor conduta ou de forma meramente informativa no qual repassa informação sem conhecimento do impacto ou compreensão acerca do conteúdo (Emanuel e Emanuel, 1992). A fim de reverter esse quadro, Caprara e Franco (1999) buscam subsídio na abordagem hermenêutica que incorpora o ponto de vista dos usuários e de seus familiares. À medida em que os sujeitos envolvidos rompem o vidro que os separa dos médicos podem se engajar em se explicar e se conhecerem melhor transformando o encontro clínico numa consulta – isto é, em discutir a relação que se forma nesse momento de efetivo encontro (Caprara, 2003). Admito que trazer essa discussão sobre o poder médico e a relação médico(a)+paciente assimétrica para o contexto do homem que não costuma ter vínculo ao médico(a) seja uma proposta ousada. Porém, diante de seu perfil de morbi-mortalidade nos propomos a investigar quais fatores influenciam no vínculo entre as partes, se existe algum aspecto na comunicação que afeta a aderência ou a surda insatisfação daqueles que não retornam ao consultório. Pretendo que o estudo traga aos profissionais material para refletir sobre outras possibilidades de abordagem que, a princípio, consideramos que não sejam exclusivas do homem. Embora nesse trabalho, tenha visado identificar particularidades que contribuam especificamente para identifcar barreiras na comunicação com esse segmento. 65 Portanto, nessa pesquisa tive oportunidade de refazer o caminho que alguns pesquisadores já realizaram sem terem explicitado o enfoque de gênero. De acordo com a revisão da literatura feita por Mazzi et al (2016), pesquisas realizadas em centros europeus revelaram que ‘pacientes’ que desempenham papel mais ativo na consulta alcançam maior aderência ao tratamento e menor taxa de desistência, além de maior satisfação (Chewning et al., 2012; Legaré et al., 2014). A fim de identificar aspectos da consulta que trazem maior satisfação aos pacientes, Mazzi et al. (2015) construíram cenários de consulta apresentados a 798 pessoas de quatro países (Itália, Bélgica, Holanda e Reino Unido) para que opinassem sobre o que consideravam relevante antes, durante e depois da consulta e indicassem os papéis a serem desempenhados pelos próprios pacientes e médicos (as). Segundo Mazzi et al. (2015, p. 58), os entrevistados indicaram que, (...) pacientes delegam aos médicos (as) maior responsabilidade do que a eles mesmos em assegurar que a consulta seja efetiva. Os dados relativos a sugestões aos médicos indicam que os pacientes são percebidos com menos responsabilidade ou menos poder que os médicos (as), que sao percebidos como ‘líderes’ da interação. Além disso, pacientes acreditam que devem assumir responsabilidade de abordar questoes psicossociais quando necessário, contudo consideram ser responsabilidade do médico (a) de provocar para que o paciente se abra e que cabe ao profissional checar se o paciente entendeu adequadamente sua situação, e não vice versa como seria esperado numa relação equilibrada, isto é, que o paciente assumisse a responsabilidade de garantir que o médico (a) compreenda o que lhe perturba. A partir da reflexão acerca do cuidado centrado na pessoa, autonomia e tomada de decisão compartilhada propostos pelos diversos autores, iremos nos debruçar sobre algumas das abordagens de comunicação em consulta que se coadunam com os postulados acima discutidos por incluírem em seus pressupostos, o respeito ao sujeito e sua autonomia combinada à participação na tomada de decisão. Afinal, a abordagem tradicional esteve até o momento centrada na doença e no médico, que costuma utilizar estratégias de educação em saúde baseadas no julgamento de forma crítica e moralizadora, ou ainda a 66 repreensão por seus hábitos. Questiona-se se esta postura foi efetiva em contribuir para que os homens encampassem noções de autocuidado e desenvolvessem autonomia? Ou pelo contrário, se contribuíram para seu afastamento de um acompanhamento médico regular? 3.5 Aspectos da Comunicação na Consulta Médica “Se você não consegue se comunicar, não importa o que você sabe” Chris Gardner (Lock et al., 2001) Acerca da consulta médica, Pendleton et al. (2011) destacam que neste espaço se precisa vir a conhecer a pessoa e seu contexto, tarefa precípua através da qual vai se explorar o mundo do outro, o que permitirá propor alternativas para o manejo das demandas apresentadas. Nesse enfoque fica evidente como e o quanto o profissional deve sair de seu centro de saber para adentrar o desconhecido que é aquilo que o outro traz para o encontro. Ao vislumbrar que estes momentos se repetirão cotidianamente na prática clínica como parte da atuação do profissional que busca estabelecer maior participação através do diálogo, devemos nos dedicar a propor e estimular o vínculo para que suas queixas e preocupações ao longo do tempo, mesmo que aparentemente de menor importância, venham a ser compartilhadas. Em função disso, longitudinalidade e integralidade se tornam dimensões de referência da engrenagem que é a relação médico (a) + pessoa. Nessa perspectiva, buscamos nos orientar através de educadores como Cassell (1995) que proclamou que a descoberta da pessoa seria a tarefa da medicina para o século XXI. No artigo em que descreve a pessoa, o autor (2010) nos remete ao fato de que adoecer é fenômeno individual, que é relativo às características da pessoa, “(...) lembra que a medicina centrada na pessoa indica que a medicina está focada nos objetivos, Diretor de comunicação, Faculdade de Medicina, Universidade de Yale, EUA. 67 expectativas e necessidades determinadas pela pessoa, é uma medicina respeitosa e responsiva às preferências do indivíduo, suas preferências, necessidades e valores” (p.52). No Brasil, Gomes et al. (2012) investigaram a interação médico+pessoa na ESF através de entrevista com os membros da díade e observação de campo no Ceará. Identificaram que as consultas se deram com três enfoques diversos: centradono paciente; encontro sem entendimento e aquele realizado a curto prazo, de forma pontual, no qual o sintoma foi fio condutor resultando no tratamento medicamentoso. Quanto ao vínculo, os autores concluem que este requer “(...) mudanças na organização dos serviços, com ênfase numa formação profissional que valorize a cultura, o protagonismo e a reflexão filosófica da convivência humana, visando à qualificação da atenção primária” (p.1101). Ironicamente, e a propósito do estudo da comunicação no cuidado a saúde, estes aspectos não promovem o diálogo, conforme nos alerta Gardner (2001), quando a pessoa em busca do cuidado tem pouca familiaridade com a abordagem integral proposta pela MFC (Lopes e Dias, 2019). Assim, principalmente quando necessitam abordar temas desprovidos de caráter eminentemente orgânico, se sentem receosos, não autorizados quanto à pertinência naquele espaço terapêutico. Malta e Merhy (2010) denunciam que o modelo assistencial praticado pode se dar através da “voz” do profissional e pela “mudez” do usuário numa relação “objetal”, na qual trocas e compartilhamentos de saberes não costumam ocorrer assim como a autonomia daquele que busca cuidado. Infelizmente, essa crítica se mostra fiel a realidade da assistência praticada em boa parte do sistema de saúde do Brasil. Além disso, os códigos de comunicação estabelecidos numa consulta são precedidos pelo contexto social e história de vida de cada membro da díade. Desta forma, o processo de construção social do homem irá influenciar no ‘tempo e timing’ em que irá compartilhar seu momento de vida, aspectos que remontam, em maior ou menor grau ao exercício estoico da crença na sua invulnerabilidade seja em 68 relação ao risco de adoecer, ou ainda outros aspectos que lhe afetam. Ademais, homens acreditam menos do que as mulheres acerca de terem controle sobre a sua saúde no futuro ou atitudes pessoais que possam contribuir para serem saudáveis (Courtenay, 2003; Oliffe e Philips, 2008; Robertson, 2009). Assim, se estabelece gradual isolamento a medida em que muitos homens aprendem a não compartilhar o que pode vir a ser socialmente rotulado como fraqueza, enquanto os (as) profissionais de saúde não familiarizados (as) com suas particularidades e que os desconhecem deixam de abordá-los de forma a suscitar maior participação na consulta, conforme já ilustrado pela rosa dos ventos. 3.6 Métodos de Abordagem na Relação Médico + Pessoa A seguir serão apresentados e discutidos dois métodos de abordagem da relação que, em comum, tem como eixo o cuidado centrado na pessoa: a Clínica Ampliada e Compartilhada e o Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP) A clínica ampliada é uma das diretrizes que a Política Nacional de Humanização (PNH) (Brasil, 2001) propõe para qualificar o modo de trabalho na saúde. Baseado no respeito ao sujeito, sua história, suas vulnerabilidades, saberes e crenças, privilegiando sua autonomia e participação direta na confecção do plano de terapia singular que conta com participação dos profissionais de saúde de diversas áreas. Bedrikow e Campos (2014), a partir da crítica à clínica “oficial ou tradicional’, que se caracteriza por ter a doença como único objeto de trabalho e que ainda prevalece nas escolas médicas, consideram a clínica ampliada e compartilhada (denominada Clínica Ampliada a partir de agora) e a medicina centrada na pessoa (denominada MCP) como respostas à fragilidade da ‘clínica oficial’ que, atrelada ao paradigma positivista e insensível as dimensões subjetiva e social das pessoas, se desresponsabiliza pela integralidade dos sujeitos. Quanto à sua 69 aplicabilidade, os autores entendem que tanto esta como o Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP) potencialmente convergem para a atenção primária pela facilidade de acesso, longitudinalidade do cuidado e proximidade e vínculo com os profissionais de saúde que vem sendo capacitados nessa perspectiva (Lopes e Ribeiro, 2015). Neste espaço se concentram as demandas que não se encontram nos tratados de medicina, que não podem ser classificadas diante da ciência moderna, o que torna a clínica ampliada mais adequada para o seu acolhimento e aliada na desmedicalização da vida. Sua metodologia de abordagem foi sistematizada a partir de cinco eixos (Brasil, 2009): 1. Compreensão ampliada do processo saúde-doença através do tensionamento dos limites de cada matriz disciplinar. 2. Construção compartilhada dos diagnósticos e terapêuticas - tanto na equipe como com os usuários por defenderem a potência desse envolvimento ao invés da abordagem pontual e individual tradicional 3. Ampliação do “objeto de trabalho” visando desfazer a fragmentação do processo de trabalho na medida em que ‘pessoas se responsabilizam por pessoas’. Propõe-se equipes e de referência e apoio matricial como instrumentos de abertura. 4. A transformação dos “meios” ou instrumentos de trabalho 5. Comunicação transversal na equipe e entre equipes (nas organizações e rede assistencial). Mas, principalmente, são necessárias técnicas relacionais que permitam uma clínica compartilhada. A capacidade de escuta do outro e de si mesmo. Segundo Bedrikow e Campos, a fim de alcançar tais objetivos, o profissional precisa desenvolver escuta mais apurada para conhecer e entender o sujeito de que passa a cuidar, sua história, a coletividade, seu processo de adoecimento. Diante das dificuldades inerentes a essa aproximação, cabe ao médico (a) considerar e reconhecer o empenho da 70 pessoa atendida. Além disso, a fala deve propor o diálogo para identificar a compreensão de suas orientações ao invés de se fixar no tradicional roteiro de cobrança por ‘tarefas’ que deveriam ter sido adotadas ou ‘obedecidas’. Da mesma forma que precisa se afastar das recomendações culpabilizantes viabilizando assim a aproximação do outro num mecanismo saudável de vinculação Quanto à instituição, diante dos desafios expostos acima, faz-se necessário que apoie os profissionais que precisarão renunciar à neutralidade advogada pelos centros de formação e que tendem a se desgastar diante dos afetos e subjetividades inerentes ao processo de mão dupla envolvida nessa efetiva relação profissional. Nesse contexto, caberia a equipe desenvolver uma parceria entre seus membros para amenizar e propor novas reflexões na medida das complexidades envolvidas no processo de cuidar no qual se estimulam os vínculos e afetos. Ao passo que o Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP) foi uma metodologia publicada em 1995 a partir dos trabalhos de Rogers (1951), Balint (1957), Engel (1977) e Levenstein (1986). Desenvolvida pelo Grupo de Comunicação Médico Paciente no Departamento de Medicina de Família da Universidade de Western Ontario, Canadá, o método foi aprimorado em 2013 (Stewart et al., 2014), e pressupõe que o (a) médico (a) esteja imbuído da meta de fomentar autonomia ao paciente e de equilibrar aspectos objetivos e subjetivos da relação em resposta ao sofrimento. Em outras palavras, o médico (a) precisa deixar a posição hierárquica habitual de ter controle da situação diante do (a) qual aquele (a) que consulta se encontra numa posição passiva. Essa mudança dialoga diretamente com as características que são intrínsecas à filosofia da medicina de família, o que tem feito do método uma ferramenta estratégica da prática de uma clínica voltada para o cuidado centrado na pessoa. Nessa abordagem, dividida em quatro componentes, o profissional de saúde busca na consulta, primeiramente compreender a experiência da doença de maneira que não limite seu olhar a uma visão limitada, 71 biologicista do adoecimento. Na segunda etapa, o(a) médico(a) precisa conhecer melhor a pessoa, sua história de vida, questões de seu desenvolvimento pessoal e seu contexto (família e comunidade). A partir disso, se estabeleceuma agenda em comum com o intuito de estabelecer um plano de ação. Finalmente, a partir da empatia e compaixão, reforça-se a relação médico(a)-paciente, considerando transferência e contratransferência, com o intuito de fomentar esperança e processo de cura, conforme o contexto clínico. Cabe aqui destacar a diferença proposta entre ‘illness’ e ‘disease’: a primeira descreve a subjetividade do adoecimento, a experiência da pessoa diante do desconforto em relação a algo que sente não estar bem em seu corpo ou mente, enquanto ‘disease’, traduzida como “doença”, se refere a aspectos objetivos para os quais a pessoa pode receber os benefícios e riscos da medicina científica (Kleinman,1988). Cabe ao médico de família esclarecer a distinção e tratar ou compartilhar o cuidado com o(a) especialista focal. Vale salientar que na tradução brasileira do livro acerca do método MCCP (Stewart et al., 2010), o revisor da tradução optou por usar a palavra “pessoa” ao invés de “paciente”, por se entender que esta denominação remete ao modelo biomédico em que se espera que o paciente permaneça passivo e alheio à tomada de decisão. Quanto a aplicação do cuidado centrado no paciente, Hudon et al. (2011) elaboraram revisão sistemática de artigos publicados entre 1980 e 2009, na qual foram identificados dois instrumentos capazes de medir a percepção dos pacientes acerca dessa abordagem: o ‘Patient Perception of Patient Centeredness Questionnaire’ (PPPC), criado pelo grupo que formulou o Método Clínico Centrado no Paciente (MCCP) e o ‘Consultation Care Measure’ (CCM), da Grã-Bretanha. O instrumento PPPC, que foi validado no Brasil (Kolling, 2012), não avalia a relação médico paciente enquanto o PPPC conta com apenas um de seus 21 itens para mensurá-la. Contudo, cabe registrar que ambos ficaram defasados na medida em que o MCCP foi reformulado em 2013 para uma versão em que se reduziu o modelo de seis para quatro componentes anteriormente descritos. 72 A aplicação do método MCCP tem demonstrado benefícios para saúde física e mental dos pacientes em diversos contextos clínicos, solicitação de menos exames complementares e encaminhamentos, assim como maior satisfação e aptidão para lidar com os sintomas, segundo as pesquisas de Little et al. (2001), Stewart et al. (2000), entre outros. A fim de ilustrar sua aplicação entre os homens participantes dessa pesquisa, destaco duas consultas nas quais fica nítida a postura e a aplicação do MCCP. Iniciaremos pela descrição da experiência de Vagner, 55 anos, aposentado, atendido por uma médica residente MFC recém graduada. V – Já passei por três residentes, sempre com supervisão, isso aconteceu no tempo da residente T. E- ...e não foi nenhum impedimento de pensar ‘o que essa jovem tem para me dizer?’... V - Não, achei legal, porque a abordagem que ela, foi muito engraçado, ela disse, primeira vez quando eu relatei tudo isso, ela disse assim ‘ó eu vou digerir tudo isso que você me passou, porque ela colocou tudo isso no computador né e se me dá uma semana? Eu falei ‘dou não tem problema’. Eu achei isso legal, porque ela não se colocou como Deus, que já sabia a resposta de tudo na hora, né, foi procurar, foi estudar o meu caso que normalmente os médicos não fazem isso. Ela foi estudar o meu caso, não sei se em conjunto, não sei se foi com o professor, seja lá quem for né. Ela estudou meu caso, voltei..., ela disse: ‘o começo de pirâmide é o seguinte, você têm todos esses problemas, mas o começo da pirâmide pra gente poder começar a caminhada, a tua questão hormonal, é que vai regular todo esse outro problema, se isso aqui tiver desregulado nada mais vai funcionar, se topa fazer isso comigo?’ Eu disse: ‘topo’, quer dizer ela foi humilde... Vinícius, 40 anos, autônomo, casado, atendido pelo MFC residente João, recém graduado, em cujo relato se destaca o processo de decisão acerca do tratamento. 73 “(...) mas ele perguntou se eu queria uma área que fosse encaixar mais naquilo vamos dizer assim: ‘não, não, está beleza’. Ele me explicou a gente conversou bastante e tal, aí ele perguntou se eu queria, é, tratamento com medicação tal, aí ele foi analisando e tal, a gente foi conversou algumas vezes, não fui só uma vez, e ele me encaminhou tal, me deu medicamento tal, perguntou seu eu queria: ‘claro, não, quero, claro, vamos ver...’ E falou: ‘acho que acho melhor assim’, mas eu gostei bastante assim, eu achei bem, bem importante essa parte assim”. “...e a gente foi desenvolvendo, foi, foi tentando chegar a um ponto, identificar o que estava acontecendo, mas depois de um tempo eu tomei medicação, tomei o medicamento lá tal, não lembro qual medicamento, mas tomei, e depois de um tempo eu parei, parei por conta própria mesmo assim, estava me sentindo, quer dizer me sentindo, senti vontade de parar e parei, beleza fiquei tranquilo, não aconteceu nada e tal, mas isso depois de um tempo, depois de um ano talvez”. Há, porém, críticas e questionamentos acerca do MCCP, como em Starfield et al. (2011), ao considerarem que o método se concentra na consulta ao invés de focalizar a longitudinalidade. Em contraponto, portanto, recomendam o Cuidado Focado na Pessoa, que seria baseado no conhecimento da pessoa e da população ao invés de orientado por doenças específicas. Desta forma, observam-se vários pontos de contato entre esta abordagem e a Clínica ampliada e Compartilhada, sendo que esta apresenta ‘tradução mais fluida’ por ter sido elaborada a partir do conhecimento do contexto socioeconômico histórico brasileiro enquanto a abordagem canadense oferece uma sistemática mais simples e já avaliada na literatura e praticada em diversos países e culturas. Preciso registrar que discordo dessa interpretação dos autores, já q o MCCP preconiza a prática do cuidado da pessoa com ou sem doenças organizadas, com ou sem queixas, mas sim a pessoa e seu desejo de manifestar aquilo que lhe convém naquele momento da consulta. 74 O debate sobre o poder médico e o controle sobre a tomada de decisão na consulta prossegue em consonância com as transformações na sociedade ocidental contemporânea. Encontrar o equilíbrio entre as forças implicadas é desafio ético a ser enfrentado por todos os envolvidos no cuidado, visando alcançar equidade e maior satisfação. Essa tese, ao discutir a comunicação médico-pessoa, também busca contribuir para a discussão sobre se os métodos da Clínica Ampliada e MCCP podem contribuir para a inclusão do homem nos serviços de APS. Traz, portanto, esse dilema em seu cerne, propondo a reflexão e autocrítica entre os médicos de família acerca da escuta desse segmento para o centro do debate da relação médico + pessoa. Em 2019, Brickley et al. (2019) realizaram revisão da literatura de artigos publicados em inglês entre 2003 e 2018 acerca do cuidado centrado no paciente na prática da medicina de família, de acordo com nomenclatura usada na língua inglesa. Os autores concluíram pela criação de um novo modelo também composto de quatro componentes, conforme o MCCP, mas que difere em dois deles, a saber: a vivência do tempo para a díade, e por fim, a meta de alcançar resultados positivos. Quanto ao primeiro componente, entendendo a pessoa como um todo, os autores não fizeram proposta diferente do que já preconizava o MCCP. Em relação ao segundo componente, ‘elaborando um plano conjunto de manejo de problemas’, a revisão indicou a importância da confiança no profissional para que se alcance este objetivo e sua relação com satisfação do paciente (Brickley, 2019). No tocante ao terceiro componente, a vivência do tempo para a díade em relação ao tempo disponível seja na consulta seja quanto a longitudinalidade. Estudos mostraram que tanto pacientes quanto médicos (as) de família desejam maior tempo de consulta visando atuar na dinâmica da integralidadedo cuidado sendo o tempo considerado instrumental para maior confiança e satisfação na relação enquanto menor tempo de consulta restringia o uso da empatia e escuta ativa. 75 Por fim, com relação a meta de alcançar resultados positivos acerca do desfecho clínico, identificou-se apenas um estudo que visava medida clínica, através de controle de pressão arterial a partir de técnicas de empoderamento e fomento a maior participação no cuidado, mas não se encontrou evidência positiva de resultado clínico como resultado do cuidado centrado no paciente. No que tange ao desfecho positivo para o paciente, verificou-se a correlação entre comunicação, tempo suficiente de consulta e satisfação elevada para aqueles (as) que participavam mais efetivamente da tomada de decisão. No tocante ao desfecho para o médico (a) de família, apenas um estudo foi identificado e mostrou que médicos (as) lidando com pessoas que não tinham expectativa de cura vinham a representar desgaste psicológico para os profissionais. Brickley et al., concluem que este componente tem o potencial de fortalecer a parceria médico-pessoa e reforçar a experiência do tempo dispendido conjuntamente. Contextualizando, a consulta costuma expor fragilidades e receios do processo de adoecimento, muitas vezes, cercados de incertezas sobre repercussões no presente e futuro. Portanto, à medida que se tem mais tempo seja na consulta seja a longo prazo, mais oportunidades de esclarecimento e definição de metas devem propiciar cuidado mais satisfatório para ambos os lados, inclusive familiares que venham a participar diretamente do encontro. Em contrapartida, tempo reduzido contribui para perda de autonomia e satisfação do profissional, o que traz potencial de perda de continuidade caso ele (a) venha a desistir de atuar naquele cenário de prática. Estudos revisados reforçaram a importância da continuidade interpessoal do cuidado, o que já foi identificado por Haggerty et al. (2003) e discutido anteriormente nesta tese. A relevância do tema foi alvo da organização que representa os médicos de família da Austrália alertando sobre necessidade de reestruturação no sistema de saúde (‘Royal Australian College of GPs’, 2019). Espera-se que a proposta de abordagem formulada por Brickley et al (2019) venha a ser avaliada e comparada às demais apresentadas nessa 76 tese e na literatura a fim de verificar seu potencial benefício para a relação médico + pessoa. A síntese acerca das diferentes abordagens apresentadas visou estimular o debate e propor e alternativas conforme as situações que se nos apresentam na prática clínica assim como prosseguir na investigação de maneiras mais eficazes de comunicação com os homens na ESF. Fica nítido perceber que ambas exigem significativa mudança na visão dos profissionais acerca da capacidade daqueles (as) que atende no sentido de maior empoderamento e autonomia no processo de tomada de decisão. Ao mesmo tempo, apesar das distorções emanadas da ideia de saúde como bem de consumo, parte da sociedade começa a requerer mudança de atitude da parte dos médicos (as) que mantêm abordagem paternalista e pouco aberta ao diálogo. Para concluir, faz-se notar, porém, que os modelos de comunicação aqui discutidos não se debruçam sobre a categoria gênero na relação médico (a) + pessoa. Este tese, ao se apoiar na perspectiva de gênero e das masculinidades, especificamente na relação homens – saúde – cuidado, visa contribuir para um debate de como esta categoria de análise influencia a relação médico(a)+pessoa e, a partir daí, delinear propostas que possam contribuir para uma abordagem mais efetiva da população masculina pelo (a) médico (a) de família, seja na consulta médica, seja através de outros pontos de contato na linha de cuidado como através dos grupos de educação e saúde ou nas visitas domiciliares. 77 4 METODOLOGIA Esta tese se baseou em pesquisa empírica de abordagem qualitativa a partir da perspectiva da construção social das realidades investigadas no contexto da APS, no município de Florianópolis. Pretendeu-se conhecer as perspectivas dos participantes, profissionais médicos e homens usuários a partir de seus universos de significados, crenças, valores e atitudes (Minayo, 2001). O estudo se caracterizou por abordagem exploratória descritivo- analítica, tendo como finalidade se aproximar de fenômenos ainda pouco conhecidos no meio acadêmico (Gil, 1999), como é o caso da comunicação e relação estabelecida entre usuários homens e médico(a)s de família no contexto da APS. A consecução de estudos exploratórios descritivo- analítico, como o que será apresentado a seguir, tem como virtude poder auxiliar na formulação e esclarecimento de conceitos e ideias referentes ao objeto de pesquisa em questão, sugerir novos desenhos de investigação e contribuir para o debate do corpo de produção técnico-acadêmica sobre o tema da pesquisa. Em termos do uso de técnicas de produção de dados, os propósitos e características da investigação orientaram a pesquisa para o uso da triangulação de métodos na produção dos dados empíricos primários ou originais (Denzin; Lincoln, 2011). As principais técnicas de produção de dados utilizadas foram: entrevistas semiestruturadas com usuários e com médico(a)s e grupos focais. Optou-se por utilizar entrevistas semiestruturadas pela possibilidade de captar, por meio desta técnica, os relatos de experiência narrados, representados e recontados pelos participantes. Com essa modalidade de entrevista qualitativa, os eventos narrados seguem uma ordem significativa, coerente, permitindo uma articulação entre passado, presente e futuro. Como salienta Ricouer (2012), a partir da entrevista são produzidas informações que ocorreram no passado com o olhar do presente e a 78 projeção do futuro. Nesse sentido, a técnica de entrevista proporciona ao entrevistado contar suas histórias com reduzida interferência, numa sequência de fatos para os quais encontra explicações e sentidos possíveis (Jovchelovitch; Bauer, 2015). A técnica de grupos focais foi selecionada pela potencialidade de captar tendências humanas, atitudes e percepções relativas a aspectos da vida social. Partindo da noção de que somos influenciados pelo ambiente circundante e pelas pessoas a nossa volta, a técnica enfatiza o processo de interação entre os participantes, mediados pelo roteiro previamente construído e pela atuação do moderador (Barbour, 2009; Nóbrega, Andrade, Melo, 2016). Neste estudo, em que o grupo focal, como sintetizado por Gaskell (2015), se torna uma entidade em si mesma, entendeu-se que a interação entre os participantes permitiria ao grupo se fortalecer, ao discutir diferentes opiniões, reduzindo a possibilidade de os participantes se intimidarem diante de um entrevistador médico tratando de situações de consulta. 4.1 O desenho da pesquisa O desenho de estudo se pauta por uma perspectiva relacional, ao abordar o tema-objeto, comunicação entre profissionais da saúde (médicos) e homens usuários ou potenciais usuários, e longitudinal, com entrevistas semi estruturadas com medico(a)s usuários, além de grupos focais com homens usuários, em momentos distintos. As pesquisa se constitui em três etapas: na primeira parte-se da compreensão das experiências dos homens em consultas médicas nos 12 meses que antecederam o estudo, no contexto de unidade(s) de saúde pertencentes à ESF de Florianópolis-SC (CS Acosta e CS Bagé). Igualmente, com o intuito de identificar experiências diversas, foram entrevistados homens que não se consultaram nos últimos dois anos em suas unidades de saúde de referência. Desssa forma se buscou alcançar 79 aqueles que se consultaram mais recentemente assim como aqueles que se consultavam com periodicidade mais espaçada, no caso dos homens,há pelo menos dois anos. A partir da análise dos dados produzidos nesta etapa inicial da pesquisa, vinhetas representativas de experiências dos usuários no contexto clinico-assistencial foram elaboradas e, posteriormente, utilizadas na etapa de pesquisa subsequente, que incluiu médicos(as) de família das unidades citadas. O intuito da composição metodológica em duas etapas interconectadas foi o de explorar as propostas de abordagem comunicacional na prática dos Médicos(as) de MFC, a partir das proposições, impasses e críticas apontados pelos homens usuários entrevistados na primeira etapa do estudo. Por fim, os resultados obtidos com a produção dos dados com as entrevistas com o(a)s médico(a)s foram compartilhados em grupo focal e entrevistas semiestruturadas com os participantes da primeira etapa, visando identificar as proposições do(a)s médico(a)s que consideram mais adequadas. A seguir apresenta-se um fluxograma (Figura 4) para melhor visualização das etapas descritas anteriormente. Fonte: elaborado pelo autor. Figura 4. Fluxograma – Etapas da coleta de dados. •Entrevista de 11 homens • CS Acosta • Entrevista de 07 homens do CS Bagé 1ª. Etapa •02 MFCs CS Acosta •02 MFCs CS Bagé* 2ª. Etapa ▪ENTREVISTA de 5 Homens da 1ª Etapa ▪ 01 Gr. Focal com 4 Homens da 1ª. Etapa 3a. Etapa 12 VINHETAS DEVOLUTIVA Apresentadas 04 VINHETAS Avaliadas Julho 2017-Março 2018 Maio a Dezembro 2018 Março de 2019 80 4.2 Caracterização do campo de pesquisa 4.2.1 Estrutura da APS em Florianópolis A pesquisa foi realizada no município de Florianópolis, cuja população é estimada em 500 mil habitantes em 2019, sendo 75% entre 15 e 64 anos de idade, taxa de mortalidade infantil de 7,7/1000 nascidos vivos, IDH 0,87, sendo este o 3º mais elevado entre as cidades brasileiras (IBGE, 2010). Seu território se divide entre a ilha e o continente. A rede de atenção primária é composta por 49 Centros de Saúde onde estão alocadas 132 equipes, que se consolidou ao longo da última década (SISSON, 2011). Florianópolis foi a primeira capital brasileira a atingir 100% de cobertura da população em 2015 e, desde então, tem sofrido declínio, chegando a 74% em novembro de 2019**. Além disso, a rede é formada por 4 Policlínicas, 3 Centros de Atenção Psicossocial, sendo um deles específico para crianças e adolescentes, um CAPS – Álcool e Drogas e 3 Unidades de Pronto Atendimento (Florianópolis, 2017***). Segundo dados do setor de recursos humanos da Secretaria Municipal de Saúde (SMS, Florianópolis, 2020), quanto ao perfil dos profissionais médicos, 58% são do sexo feminino; idade média 41 anos; atuando na ESF da prefeitura, em média, há seis anos e seis meses e tempo médio no mesmo CS de seis anos. Aproximadamente 70% do(a)s Dados acessados em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sc/florianopolis/panorama>. No verão, a população dobra, sendo que significativa parcela dos turistas são oriundos dos países do Cone Sul (principalmente Argentina, Chile e Uruguai), o que sobrecarrega a rede pública de saúde e compromete os serviços, seja nas Unidades de Pronto Atendimento, seja na rede de APS, que costuma ter reduzida sua força de trabalho em função das férias escolares coincidentes neste período. ** Dados acessados em: <https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCoberturaAB.x html;jsessionid=NIJt44QQKMxT5Glq6Hjw4ljN> *** Dados acessados em: <http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/saude/> https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sc/florianopolis/panorama https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCoberturaAB.xhtml;jsessionid=NIJt44QQKMxT5Glq6Hjw4ljN https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCoberturaAB.xhtml;jsessionid=NIJt44QQKMxT5Glq6Hjw4ljN http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/saude/ 81 médicos(a)s possuem especialização ou título de residência em Medicina de Família e Comunidade. 4.3 Sobre o campo de pesquisa: a produção do material empírico Em 2016, quando iniciamos o planejamento da pesquisa de campo, Florianópolis era dividida em cinco distritos: Norte, Sul, Leste, Centro e Continente. Até que se iniciou a coleta de dados, os Centros de Saúde (CS) do Leste foram redistribuídos entre os distritos vizinhos. A escolha dos dois CS localizados no distrito Centro se baseou em três critérios: estar vinculado a um distrito onde nunca atuei como médico de família; incluir médicos de ambos os sexos e onde as equipes já atuavam há, pelo menos, dois anos, inclusive o(a)s médico(a)s. Estes critérios eram estratégicos para propiciar relatos mais diversos, densos e maior possibilidade de que os homens entrevistados já tivessem estabelecido relação mais consolidada tanto com as equipes, mas principalmente com os (as) MFCs. Quanto às unidades selecionadas, elas atendem populações de perfil diverso, a partir do qual se buscou conhecer um espectro amplo de experiências na interação usuários-profissionais de saúde. Assim, o trabalho de campo foi desenvolvido em dois bairros da região mais central, cujo CS foi denominado Acosta*, com grande contingente de estudantes, acesso a diversos serviços públicos e privados, servido por densa malha de transporte público. Enquanto o bairro atendido pelo CS denominado Bagé possui duas áreas bem distintas: sendo uma de alto poder aquisitivo e idade populacional média acima dos 45 anos e a outra de nível socioeconômico mais baixo, variação etária e população mais dependente dos serviços públicos de saúde e educação. No tocante aos participantes da primeira etapa da pesquisa, foram convidados homens entre 20 e 59 anos que se consultaram nos últimos 12 * Os nomes dos serviços de saúde participantes da pesquisa aqui mencionados são fictícios, visando resguardar o anonimato destes e dos participantes da pesquisa, sejam médico(a)s e usuários. 82 meses, visando conhecer suas experiências na consulta médica, e homens da mesma faixa etária que não se consultaram com médico(a) de família nos últimos 2 anos. A escolha dessa faixa etária se deve ao fato de este segmento da população ser o alvo da PNAISH. 4.3.1 Etapa 1: Entrevistas com homens usuários Para a realização da primeira etapa, foram utilizadas algumas estratégias de “entrada em campo”. Como pesquisador executante e responsável, compareci a reunião das equipes dos centros de saúde selecionados, expliquei os objetivos da pesquisa e entreguei folhetos contendo informação essencial sobre a investigação. Solicitei auxílio à equipe das unidades (especialmente o(a)s médico(a)s) na indicação dos participantes, homens de 20 a 59 anos atendidos no último ano ou que não tenham sido atendidos nos últimos dois anos por médico(a) de família. Enfatizei que homens que não tinham boa relação com membros da equipe deveriam ser incluídos a fim de evitar uma pré-seleção daqueles que poderiam emitir apenas opiniões favoráveis aos profissionais e ao serviço. Após algumas semanas, refiz o contato com médicos e coordenadores dos Centros de Saúde. Através do aplicativo WhatsApp ™ recebi os nomes indicados pelas equipes tendo contado com maior participação do(a)s médico(a)s do CS Acosta, seguidos das agentes comunitárias de saúde (ACS) e técnico(a)s de enfermagem. Por parte da equipe do CS Bagé houve maior participação dos ACS nas indicações dos potenciais participantes da pesquisa. Deste segundo CS, mantive contato com ACS durante algumas semanas devido à baixa taxa de resposta dos potenciais entrevistados. Esclareci e reforcei a necessidade de conseguir mais alguns nomes no intuito de manter número semelhante entre os serviços de saúdeparticipantes do estudo. No CS Acosta foram convidados 15 homens e 11 foram entrevistados enquanto no CS Bagé foram convidados 19 e sete entrevistas foram realizadas. Dessas, cinco foram agendadas para o domicílio e duas em local 83 público. Das 11 entrevistas do CS Acosta, oito delas ocorreram após consulta médica ou com a enfermagem no centro de saúde, duas em local público e a outra no domicílio do entrevistado. Ao final desta primeira etapa, foram realizadas 18 entrevistas, 11 do CS Acosta, sete do CS Bagé, que ocorreram em diversos locais conforme preferência do entrevistado, a saber, no centro de saúde (8), no domicílio (6), local de trabalho (3) e local público (1). A Tabela 4 sintetiza as informações sobre os convites e as entrevistas realizadas. Tabela 4 - Entrevistas com usuários conforme CS origem e local de realização Local de realização ETAPA 1 Convidados Aceitaram Centro de saúde Local público Domicílio CS Acosta 15 11 08 02 01 CS Bagé 19 07 - 02 05 Total 34 18 08 04 06 Fonte: elaborado pelo autor Quanto aos motivos de recusa, no CS Acosta a maioria se deu pela impossibilidade de efetivar contato telefônico (cadastro não atualizado da unidade), enquanto no CS Bagé a maior parte dos que recusaram afirmou não se consultar com médico(a) de família e/ou não consultar no Centro de Saúde por terem plano de saúde. Esta resposta foi surpreendente na medida em que seus nomes foram indicados por médicos ou agentes de saúde que, provavelmente, os conhecem há alguns anos. Outra justificativa seria o estranhamento, pelo convite na medida em que homens raramente são chamados a participar de pesquisas/entrevistas. No CS Bagé, a maioria dos potenciais participantes foi sugerida pelos agentes de saúde, sendo que um deles foi indicado pelo próprio pai entrevistado, enquanto no CS Acosta 84 houve maior participação dos médicos (as) assistentes e do próprio pesquisador abordando os homens usuários antes ou depois das consultas com ou sem intermediação dos funcionários da recepção. A realização das entrevistas se iniciou em junho de 2017. O roteiro de entrevista (ANEXO A) explorou aspectos relacionados à experiência dos homens durante as consultas médicas, desde o(s) motivo(s) que os levaram a se consultar, acolhimento e orientações recebidas durante a mesma, motivos de satisfação ou insatisfação, dificuldade de comunicação, atentando para a (não) paridade de gênero entre medico(a) e usuário. As entrevistas foram concluídas em agosto de 2018, quando consideramos ter atingido saturação. Segundo Gomes et al. (2005) e Fontanella et al. (2011), a saturação é alcançada quando o(a) pesquisador(a) percebe que alcançou, a partir da repetição das entrevistas, um corpus de falas, cuja riqueza e diversidade possibilitou a emergência de significados atribuídos à experiência dos usuários sobre o contexto da consulta clínica e a relação estabelecida neste contexto com o(a) médico(a)s. Ou seja, quando o pesquisador compreende que os depoimentos de novos participantes pouco acrescentariam ao material empírico já obtido, para a conformação das categorias temáticas antevistas e emergentes. Os resultados encontrados são apresentados nas Tabelas 5 e 6. A média de idade dos participantes foi de 43 anos respeitando a faixa etária contemplada na PNAISH, 20 a 59 anos de idade. Dos 18, sete nasceram em Florianópolis; quatro no interior do estado, cinco são oriundos de outros estados e dois são estrangeiros, sendo que um veio para o Brasil na infância. Quanto ao estado civil, oito são solteiros, oito casados, um separado e um viúvo. Nove deles têm filhos. Do total, dez trabalham, quatro estão aposentados, sendo que três por doença incapacitante; um desempregado e um afastado temporariamente por doença. Quanto a escolaridade, quatro não completaram 1º. Grau, oito completaram 2º. Grau, cinco completaram 3º. Grau sendo dois estudantes de pós-graduação. Dos 18, um é negro, um pardo e os demais brancos (auto referido); quatro são homossexuais e os demais heterossexuais. 85 Tabela 5 - Caracterização dos entrevistados Etapa 1 da Pesquisa (CS ACOSTA). Fonte: elaborado pelo autor (*) – Denominação criticada por autores que a consideram implicar na retirada da responsabilidade do indivíduo (Schimidt, et al., 2019) CS ACOSTA Nome Estado Civil, Idade (a) Cor da pele Naturalidade Escolaridade Orientação Sexual Ocupação Consulta no último ano Contexto Familiar / Adoecimento Alfredo Solteiro, 26 Branca Florianópolis 2º Grau Homossexual Trabalha Sim Mora com os pais Amadeu Solteiro, 34 Branca Ceará 3º Grau incompleto Homossexual Trabalha Sim AIDS. 1 ano acompanha com médico residente em MFC Antônio Solteiro, 53 Branca Grande Florianópolis 1º Grau incompleto Heterossexual Aposentado por invalidez Sim Hipertenso, artrose. Aposentado. Filho dependente químico*. Ângelo Casado, 58 Branca Florianópolis 2º Grau Heterossexual Trabalha Não Faz 10 anos que consultou MFC através do plano saúde André Solteiro, 37 Branca Mato Grosso do Sul Pós-Graduando Homossexual Estudante Sim Atendido por MFC da mãe por vários anos. Diferentes MFC em Florianópolis Aureliano Solteiro, 36 Branca Colombia Pós-Graduando Heterossexual Estudante Sim Artur Separado 49 Branca Interior (SC) 2º Grau Heterossexual Afastado por doença Sim Dpd químico*, vive em Comunidade Terapêutica. ‘Crises de asma ‘esconderam’. Augusto Solteiro, 27 Branca Interior (SC) 3º Grau Heterossexual Trabalha Sim Celíaco. Mãe falecida. Antunes Casado, 53 Negro Florianópolis 1º Grau incompleto Heterossexual Trabalha Sim Foi atendido pelo MFC do CS há 30 anos. Acompanha pré-natal. Amandio Casado, 41 Pardo Pará 1º Grau incompleto Heterossexual Trabalha Sim Acompanha com MFC há 2 anos Acidente de caminhão. Alberto Viúvo, 52 Branca Florianópolis 2º Grau Heterossexual Aposentado por depressão Sim Episódio depressivo, 1 consulta com MFC, pretende dar seguimento 86 Tabela 6 - Caracterização dos entrevistados Etapa 1 da Pesquisa (CS BAGÉ). Fonte: elaborado pelo autor CS BAGÉ Nome Estado Civil, Idade (a) Cor da pele Naturalidade Escolaridade Orientação Sexual Ocupação Consulta no último ano Contexto Familiar / Adoecimento Vanderlei Casado, 57 Branca Interior (SC) 1º Grau incompleto Heterossexual Aposentado pós infarto. Sim Enfartado aos 52 anos. Hipertenso e diabético. Há 5 anos acompanhado pelo mesmo MFC. Vagner Casado, 55 Pardo Rio de Janeiro 3º Grau Heterossexual Aposentado Sim Acompanha com médico residente, troca anual (3 x), mas MFC do CS como referência Vilson (militar ref.) Casado, 57 Branca Interior (SC) 2º Grau Heterossexual Trabalha Não Acompanha com Cardiologista por HAS e Urologista há 6 anos. e uma consulta com MFC Vinicius Casado, 40 Branca Florianópolis 3º Grau Heterossexual Trabalha Não Músico, mora com namorada na casa dos pais. Acompanhou com MFC por episódio depressivo Vanderson Casado, 33 Branca Interior (RS) 2º Grau Heterossexual Trabalha Sim Acompanha há 5 Anos c. outro MFC no mesmo CS que o pai. Virgílio Solteiro, 36 Branca Argentina 2º Grau Heterossexual Trabalha Sim Vive no Brasil desde a infância Vitor Solteiro, 40 Branca Florianópolis 2º Grau Homossexual Trabalha Não Administrador Hospitalar. Mora com a mãe. Pai falecido, irmão (alcoolistas) 87 4.3.2 Etapa 2: Entrevistas com médicos de família e comunidade A segunda etapa, segundo o desenho original (e que se manteve) do estudo, teve início após a análise preliminar dos dados da primeira etapa. Para tanto, foram criadas vinhetas a partir de situações positivas e conflitivas captadas nasentrevistas com os usuários, as quais foram utilizadas nas entrevistas semi estruturadas com quatro médicos de família dos distritos selecionados. Segundo Veloski et al. (2005), vinhetas clínicas são usadas para avaliar abordagens médicas quanto a diagnóstico e tratamento sendo que a aplicação da técnica de pacientes simulados (‘standard patients’) seria mais adequado para verificar habilidades de comunicação e realização de exame físicos. Esta não foi utilizada pela falta de recursos financeiros e a logística necessária para convite e ensaio dos atores/atrizes, seguido de agendamento para consultas simuladas com os médicos participantes. Como critérios de inclusão dos médicos nesta etapa, tem-se a atuação há pelo menos dois anos na mesma unidade de saúde da ESF Florianópolis e que tenham realizado especialização lato sensu ou residência em medicina de família e comunidade. A Tabela 7 apresenta o perfil dos médicos entrevistados. Tabela 7 – Perfil dos médicos de família entrevistados. Nome Idade Experiência como MFC Tempo de atuação em Florianópolis Tempo de Atuação no CS atual Maior período atuando no mesmo CS Aurora 33 05 05 4 4 Alice 33 05 04 4 4 Raul 35 09 07 7 7 Rildo 42 13 07 2 5 Fonte: elaborado pelo autor Obs.1: Tempo medido em anos. Obs. 2: Todos atuam como preceptores dos alunos do Internato em MFC durante seu estágio de 2 meses e residentes de MFC por 2 anos. Obs.3: Dados relativos a 2018 quando ocorreram as entrevistas com os MFCs. 88 O roteiro para coleta de dados nesta segunda Etapa foi elaborado a partir dos achados e análises da primeira Etapa. Buscou-se elencar temas que expressavam situações prevalentes que afetavam a relação médica pessoa conforme os relatos de experiência e de acordo com os objetivos da pesquisa. A partir disso, foram selecionadas doze vinhetas (ANEXO B) (pequenos excertos de falas) que obedeceram aos preceitos recomendados para formulação de uma vinheta eficaz: instruções claras, situações realistas e estratégia para análise de dados (Veloski et al., 2005). Desta forma, as vinhetas foram apresentadas por escrito com o objetivo de explorar a experiência dos profissionais para que criassem ou compartilhassem abordagens a serem posteriormente apresentadas para apreciação do mesmo grupo de homens entrevistados na primeira etapa (Quadro 1). Quanto ao possível efeito sentinela em que o(a) médico(a) se sinta avaliado por um colega, este não foi observado na medida em que o entrevistador problematizava as propostas de abordagem para se obter mais detalhes e visando tornar a ideia o mais efetiva possível visando melhoria da comunicação com os homens atendidos. Além disso, os profissionais da rede de APS de Florianópolis tem o hábito de se exporem com os colegas e residentes das várias áreas de saúde, seja através de reuniões de equipe, grupos de PBI (‘Problem Based Interview’) em que se discute estratégias de comunicação utilizadas nas consultas ou ainda através de grupos Balint nos quais se discute formas de estabelecer relações médico-paciente mais adequadas (Brandt, 2009). Em suma, a metodologia escolhida visou provocar um diálogo entre as duas partes que convivem no consultório, mas que não costumam discutir a relação que vem a se estabelecer seja esta satisfatória ou não. 89 Quadro 1 – Orientação ao MFC diante das vinhetas recebidas. Ao MFC _________ - Nessa segunda parte da entrevista, a idéia é apresentar as seguintes vinhetas e que você comente aquelas que mais te chamam a atenção. Seus comentários devem tentar responder, propor uma abordagem ao que aparece na vinheta escolhida. Seria como você compartilhar sua experiência ao lidar com vinhetas que remetem ao que já vivenciou OU propor algo nas vinhetas q te provocaram seu interesse. Suas respostas (de forma anônima) serão levadas na 3ª. e última etapa aos homens entrevistados para que avaliem sua aplicabilidade. Fonte: elaborado pelo autor. Na tabela 8, são listadas aquelas que provocaram maior repercussão entre os médicos de família entrevistados. Optou-se por disponibilizar as vinhetas selecionadas livremente ao invés de direcionar para que um subgrupo fosse comentado. Considerando que os médicos convidados têm formação e prática clínica semelhante, observou-se que praticamente todas as quatro listadas abaixo foram alvo de reflexão pelos quatro profissionais a exceção do MFC Raul que escolheu outras vinhetas além das duas abaixo identificadas (1 e 4). A nomeação das categorias a partir das vinhetas de maior repercussão (resposta) se deu após a coleta de dados. Dada a variedade de situações presentes na atenção primária, e aquelas trazidas pelos usuários na Etapa 1, foram priorizados temas complexos em relação à comunicação médico-pessoa, e alguns (a título comparativo) bastante recorrentes e de abordagem rotineira no serviço. Pretendeu-se assim problematizar tanto dificuldades corriqueiras quanto as incomuns da relação médico – usuário no sentido de proporcionar novas maneiras do profissional se colocar para a interação da díade conforme objetivo do projeto. 90 Tabela 8 – Vinhetas escolhidas pela maioria dos médicos de família entrevistados VINHETAS Escolhidas (*) MFC CONCEPÇÕES SAÚDE – DOENÇA e as MASCULINIDADES EXPERIÊNCIAS dos Homens nos serviços de APS “Nunca me cuidei, sempre fui um pouco relaxado, só queria trabalhar, trabalhar, e trabalhar, e não cuidava da saúde. Quando deu [Infarto], quando aconteceu isso daí, aí o cara cai na real e vi que se tivesse cuidado não teria sofrido tanto como eu sofri, né?” Rildo Aurora Raul Alice Frequente mudança de Médico (a) “... Mas cadê a médica que consultava comigo? primeira vez mudou a equipe, agora já é outra equipe. Aí depois tu ias lá de novo já era outra equipe. Então era tudo médico diferente, aí tu tinhas que contar tudo de um para outro, no final das contas era até chato sabe, porque tu tinhas que contar tudo de novo” Rildo Aurora Alice Tempo satisfatório, mas Atenção do Médico dividida “...todos eles me tratam super bem, não tem pressa na consulta, a minha consulta é mais longa do que um consultório particular, só que às vezes a gente está falando e a pessoa não está ouvindo preocupada com alguma coisa que está lá fora acontecendo.” Rildo Aurora Alice Consulta além da Abordagem Técnica “E assim... o suporte não só médico, emocional uma coisa assim, você saber que tem uma pessoa que está preocupada contigo, que quer saber como você está, toda vez que eu vim aqui, sempre. Eu sei que para o senhor isso é normal, né? Mas pra mim isso é muita coisa, que a pessoa quer saber meu peso, o que eu estou comendo, né? Aí só uma coisa que ela me perguntou, se a minha família sabe. A minha família não sabe [do diagnóstico de HIV]” Rildo Aurora Raul Alice Fonte: elaborado pelo autor No segundo semestre de 2018 foram entrevistados quatro médicos de família, sendo duas vinculadas ao Centro de Saúde Acosta e dois outros médicos com perfil profissional semelhante ao dos médicos (as) do CS Bagé, cujos usuários e pacientes do serviço aceitaram participar da pesquisa (Etapa 1). Desta forma, mantive a proporção médicos e médicas, assim como foi garantido o critério de ter experiência na rede de APS de pelo menos dois anos atuando num mesmo Centro de Saúde. Estas 91 prerrogativas, não previstas no desenho original do estudo, se deu a três motivos: 1. Interesse dos convidados pela temática; 2. Facilidade de acesso aos profissionais entrevistados; 3. Fato de que o estudo visa estudar a relação médico + pessoa, mas não especificamente da díade médico(a) - paciente em determinado centro de saúde. O benefício desta mudança foi permitir maior conforto para os participantes na medida em que na 3ª. Etapa, a devolutiva na qual foi apresentada aopinião e abordagem proposta pelos profissionais não trazer, necessariamente, a opinião ou abordagem proposta pelo (a) médico (a) assistente com quem se tem uma relação estabelecida. Assim se evitava um potencial desgaste que poderia advir caso o homem se sentisse desconsiderado numa vinheta que o representava ou abordava tema pertinente a sua condição. Por exemplo, um homem soropositivo que viesse a considerar a forma como é abordado em suas consultas muito diversa daquela proposta por algum dos profissionais. Supondo, nesse cenário, que fosse revelada uma opinião estigmatizante, mas que não necessariamente teria sido emitida pelo seu médico(a). Considerou-se que a possibilidade de que tal opinião tivesse sido emitida por este(a) poderia vir a prejudicar a relação no futuro. Assim, a escolha de outros profissionais (dois dos quatro) permitiu reduzir a possibilidade desse potencial desgaste. 4.3.2 Etapa 3: Devolutiva com os homens usuários A terceira Etapa, como prevista originalmente, constituiria em ‘devolutiva’ aos participantes da primeira Etapa, através de grupos focais e entrevistas, para apresentar as abordagens médicas propostas na Etapa 2 e verificar sua adequação às expectativas daqueles homens. Percorrer a trajetória e identificar alguns benefícios dessa participação que resultou na melhora da aderência ao tratamento, redução 92 da quebra de continuidade no seguimento e aumento da satisfação (Chewning et al., 2012; Legare et al., 2014). A etapa da devolutiva ocorreu em março de 2019, um ano e nove meses após a realização das primeiras entrevistas. O roteiro para a execução dessa 3ª Etapa consta no Anexo C do presente trabalho. Conforme previsto no projeto de pesquisa, foi feito contato com os 18 homens entrevistados na Etapa inicial, através de ligação telefônica e mensagens via aplicativo WhatsApp™. Numa mensagem curta, o pesquisador se reapresentou e os convidou a participar de um encontro com a presença de outros homens também entrevistados com objetivo de debater a abordagem proposta pelos médicos de família. Foram ofertados duas datas e dois horários, às 15 horas e às 17 horas, com duração prevista de duas horas. Além disso, foi solicitado sugestão de outra data conveniente visando manter a possibilidade de captar maior número de participantes. Vale esclarecer que, considerando o objetivo do estudo e a previsível dificuldade em obter resposta satisfatória, após longo período sem qualquer contato, o convite foi feito a todos os homens, isto é, sem limitar a vinculação a determinado centro de saúde. Após três tentativas ao longo de uma semana, quatro homens confirmaram participação em um grupo focal de 17 às 19 horas no centro de saúde situado no bairro mais próximo ao centro. Além destes, cinco homens aceitaram realizar entrevista individual, sendo que três delas ocorreram na própria moradia, uma no centro de saúde e uma em local público. Dos 18 usuários participantes iniciais, um se encontrava no exterior com retorno previsto para além do período destinado a coleta de dados. Assim, dos 17 potenciais participantes, nove foram entrevistados de forma individual ou grupal. Dos oito que não participaram, dois afirmaram não dispor de tempo e seis não responderam aos diversos convites realizados. Das cinco entrevistas individuais, de acordo com as preferências dos entrevistados, uma ocorreu no CS, uma em local público e três no domicílio (Tabela 9). 93 Tabela 9 – Distribuição dos participantes de acordo com a CS na devolutiva Convidados Aceitaram Entrevista Grupo Focal CS Acosta 11 05 02 03 CS Bagé 07 04 03 01 Fonte: elaborado pelo autor. Em termos de tratamento dos depoimentos produzidos a partir das entrevistas semiestruturadas e grupos focais, foi utilizado o método de interpretação de sentidos, baseando-se em princípios que buscam interpretar o contexto, as razões e as lógicas de falas, ações e inter-relações entre grupos e instituições (Gomes et al., 2005). Na trajetória analítico-interpretativa, percorreremos os seguintes passos: (a) leitura compreensiva, visando impregnação, visão de conjunto e apreensão das particularidades do material da pesquisa; (b) identificação e recorte temático que emergem dos depoimentos; (c) identificação e problematização das ideias explícitas e implícitas nos depoimentos; (d) busca de sentidos mais amplos (socioculturais), subjacentes às falas dos sujeitos da pesquisa; (e) diálogo entre as ideias problematizadas, informações provenientes de outros estudos acerca do assunto e o referencial teórico do estudo; e (f) elaboração de síntese interpretativa, procurando articular objetivo do estudo, base teórica adotada e dados empíricos. Destaque-se que no tocante aos grupos focais, por sua especificidade de buscar o caráter coletivo da produção de sentido, a análise privilegiou, também, os consensos e discordâncias processadas pelos participantes do grupo. 4.4 Aspectos éticos Em termos éticos, a pesquisa atende ao disposto na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto foi submetido à 94 avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (CEP ‒ FMUSP) e aprovado sob o n. 1.913.359 (ANEXO D). Trâmite semelhante foi seguido junto a Escola de Saúde Pública da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis, que através da Comissão de Acompanhamento de Projetos de Pesquisa em Saúde avalia a pertinência e rigor ético em todas as etapas do projeto de pesquisa (ANEXO E). A pesquisa de campo se iniciou após a aprovação regulatória e pelas instituições participantes da pesquisa. Todos os entrevistados, usuários e profissionais médicos, foram adequadamente informados sobre o projeto através de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que garante anonimato, confidencialidade e liberdade para interrompam a participação na pesquisa a qualquer momento (ANEXO F). Antes de iniciar cada entrevista os participantes receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (ANEXO G), momento em que me disponibilizei para tirar dúvidas eventuais e reforçar a questão do anonimato, visando assegurar o participante de que não haveria mal-estar nas futuras consultas. A partir disso, o termo foi lido e assinado juntamente com o pesquisador. Etapas semelhantes foram cumpridas em relação aos médicos de família, bem como na etapa de devolutiva com os usuários. Na Terceira etapa, no que concerne a realização do grupo focal, contei com a assistência de um residente do Serviço Social que auxiliou na condução, explicação e coleta dos TCLE (ANEXO H) assim como aspectos sobre o sistema de saúde de forma geral. Foram garantidos o anonimato e a confidencialidade dos dados e dos participantes da pesquisa, bem como a possibilidade de interromper a entrevista a qualquer momento, em conformidade com os termos do TCLE. Para tanto, todos os nomes dos participantes (nas condições de usuários e médicos), foram trocados por nomes fictícios. Por questões éticas, os usuários participantes selecionados para as entrevistas não pertenciam a área adscrita do Centro de Saúde no qual o 95 pesquisador realiza suas atividades clínicas. Outra informação importante é a de que foi vedado ao investigador acessar os prontuários dos participantes do estudo para verificar dados de cadastro (telefone) ou aspectos clínicos. 4.5 Impressões do pesquisador (médico) acerca do trabalho de campo Nesta breve seção, e considerando as implicações e as intersubjetividades envolvidas na relação entre pesquisador-campo de pesquisa, pesquisador-participantes da pesquisa, e entre distintos participantes, considerei relevante discorrer sobre algumas impressões e percepções sobre aquilo que em pesquisa qualitativa é denominado “o campo”. Tal relevância está diretamente relacionadaà escolha do método qualitativo, o qual propicia maior colaboração dos participantes da pesquisa com o pesquisador, na medida em que as interações são fundamentais para que se alcance em profundidade a experiência quanto ao fenômeno estudado. Entretanto, cabe ao pesquisador o cuidado na formulação das perguntas para se evitar o que Oliffe e Mroz (2005) ponderam ser equivocado quando os respondentes se sentem testados em seu nível de conhecimento da situação quando o objetivo precípuo desta investigação foi de conhecer a experiência dos homens acerca da relação estabelecida na consulta médica. Considerando os participantes usuários homens adultos no contexto da primeira etapa do campo, para alguns deles, este aspecto se mostrou desafiador por notarmos, principalmente no início da entrevista, a tentativa por parte deles de convergir para respostas que pressupunham ‘adequadas’ ou ‘mais agradáveis’, seja no modo reticente de responder ou, inserindo um elogio ao profissional ou equipe de saúde em geral de modo entusiástico, apesar de não ter perguntado acerca do profissional, da equipe ou sobre o serviço de saúde. 96 Esta dificuldade, inerente a metodologia escolhida, deriva de alguns conceitos arraigados ao lidar com profissionais de saúde, pois o sistema de saúde pública traz uma série de regras que os usuários, em maior ou menor grau, têm que se adaptar implícita ou explicitamente; um sentido de reproduzir uma certa “tradição”. A título de exemplo, houve um entrevistado que, na segunda entrevista (devolutiva), mencionou o receio de reclamar pois lembrava do cartaz afixado no centro de saúde que alertava sobre o risco de processo judicial para o usuário que distratar o funcionário público. Nas consultas médicas, por exemplo, muitas vezes os profissionais (e inclusive o pesquisador) se deparam com pessoas que trazem sintomas adornados pelo jargão médico, na tentativa de colaborar com o profissional para que a consulta se torne mais rápida e eficaz, o que não se comprova na maioria das vezes. Um outro exemplo que merece destaque, dado o desenho metodológico do estudo: na seleção dos participantes, os profissionais médicos pediam autorização de seus pacientes no intuito de indicá-los para participar do estudo, mediante anuência destes. Assim, pode ter ocorrido o viés de “busca de convergência” (‘social desirability bias’) (Babbie, 1983) quando o respondente tenta moldar sua resposta para aquilo que pareça apropriado ou politicamente correto. Em outras palavras, alguns usuários podem ter demonstrado interesse em colaborar, como forma de “agradar” ou não “contrariar” seu (sua) médico (a) assistente. Para tentar minimizar esse efeito indesejado, na primeira etapa antes de iniciar a entrevista eu reforçava que os profissionais não sabiam quais daqueles indicados viriam a participar da entrevista. Este cuidado foi facilitado na terceira etapa, a devolutiva, pois o intervalo em relação a etapa inicial foi de seis a 21 meses. Além disso, havia se passado o desconforto inicial inerente a este tipo de entrevista. Relacionado a este aspecto, mas problematizando quanto à paridade de gênero entre pesquisador – participantes, Oliffe e Mroz (2005) endossam o impacto sobre a dinâmica e compartilhamento de informação. Nesse sentido, Williams e Heikes (1993) descreveram a denominada performance de gênero em estudo realizado com enfermeiros entrevistados por 97 pesquisadoras. A fim de buscar reduzir o viés do gênero do entrevistador (masculino) ao conversar com homens (Sallee e Harris, 2011), convidei uma psicóloga com experiência em pesquisa qualitativa para realizar duas das entrevistas da primeira etapa, a fim de avaliar a necessidade de me afastar ou reconfigurar as estratégias da produção das entrevistas. Conforme material transcrito, e em discussão com a orientadora, definimos que eu poderia dar seguimento com as demais entrevistas, já que não houve diferenças significativas na linguagem, conteúdo e postura dos participantes quando da presença do pesquisador ou da pesquisadora. Esses aspectos foram trazidos no grupo focal quando os entrevistados, já se sentindo mais à vontade, buscavam entender o ‘real’ motivo do estudo, onde eu trabalhava e o porquê de realizar a investigação fora do local de atuação clínica. Merece também consideração, o fato de o entrevistador ser médico de família na rede municipal de Florianópolis, o que pode ter criado algum embaraço, especialmente na parte inicial das entrevistas da primeira Etapa. Entretanto, ficou manifesto que, ao longo da entrevista, quando os poucos que se lembravam deste fato, o faziam de forma positiva, já que esse aspecto criava certa cumplicidade quanto ao entendimento da situação compartilhada, como por exemplo, na dificuldade de adesão a algumas orientações médicas às quais eu me referia ao longo da entrevista inicial ou na devolutiva. Nesses momentos, a entrevista ficava mais rica pela exposição mais detalhada das experiências do homem entrevistado, conforme Vanderlei descreve abaixo. Entre os benefícios trazidos pelo estudo, percebi que alguns homens, durante as sessões de entrevistas e nas devolutivas, se instrumentalizaram quanto ao funcionamento da APS no município e sua relação com o nível secundário de atenção à saúde, além de esclarecer dúvidas acerca da inserção de sua consulta no contexto da ESF. Esse aspecto foi reforçado no grupo focal pela presença de um residente do Serviço Social da Residência Multiprofissional vinculada a PMF atuando em outro centro de saúde, que trouxe aspectos sociais e políticos para melhor compreensão das particularidades da rede do município. Considero estes momentos de grande 98 valor pelo potencial em suscitar interesse em participação social desses atores tradicionalmente alheios aos mecanismos existentes como o conselho local de saúde. Esse debate foi enriquecedor para a desmistificação do que seja pesquisa, situação a qual os homens não costumam estar afeitos, principalmente ao se tratar da abordagem qualitativa. Em suma, ao final do trabalho de campo, considero que a metodologia desenhada e aplicada em três etapas propiciou maior reflexão no intervalo entre a primeira e última etapa, que foi concebida para oferecer a devolutiva a partir das experiências que compartilhei junto aos profissionais médicos entrevistados na segunda etapa. Portanto, naquele momento, seja através de nova entrevista individual, seja através do grupo focal, alguns homens tiveram oportunidade de elaborar algumas de suas colocações iniciais. Dessa forma, na fase de devolutiva com Vanderlei, um ano e nove meses depois da primeira entrevista, eu me reaproximei de um aspecto que havia sido relegado anteriormente retomando o episódio do ‘susto’ sofrido quando sentiu mal-estar ao fazer atividade física extenuante e sozinho. Na ocasião optei por não o interromper, mas na devolutiva pude investigar em mais detalhes como ele havia processado a orientação recebida de seu médico de família que o acompanhava há cinco anos: V-... então, às vezes, eu vou até de bicicleta, mas aquela coisa o cara vai, mas como eu já fui... E- O senhor já teve um susto, né? V- Já tive que parar no caminho, né... E- Com dor. V- Isso eu tive que parar, porque... E- O senhor me contou que fez, era uma ’bicicletada’ longa que o senhor fez, foi lá na beira mar... V- É, é... E- O senhor vai longe também, né? V- É o cara se empolga, o cara se empolga e vai embora sabe, o cara não para. E- Tá gostoso, né... 99 V- Sim, é... E- Tá se divertindo, está esfriando a cabeça. V- Exatamente. E- Refrescando a cabeça. V- Na hora tu não lembra de nada [orientação do médico para não ir longe, nem fazer atividade física sozinho], só lembra de ‘porra como está legal pedalar’, olha pra um, olha pra outro, né, então o cara... E- Distrai.V- Distrai, então e pra mim é bom caramba sabe, é muito bom. E- É bom pra cabeça? V- Pra tudo, né, pra tudo... então o cara trabalha de zelador, então tu anda bastante, então tu bota a máquina nas costa e vai cortar grama, então tu fica o dia todinho envolvido com aquilo dali, tu acredita eu falei para o doutor Guilherme, para o doutor [MFC dele] eu disse assim: ‘até a minha insulina, o meu açúcar baixou de trezentos passou pra cento e poucos, cara’... Como se verifica nesse trecho, ele confundiu meu nome com o do médico que o acompanha há cinco anos e com o qual demonstrou ter bom vínculo. Além disso, ele descreveu que, apesar de ciente da orientação recebida, não resistiu a realizar atividade prazerosa mesmo sob risco para sua saúde física. Nessa segunda entrevista, inclusive, ele se queixou como a vida havia ficado monótona na medida em que os familiares não dispunham de tempo para acompanhá-lo na atividade física conforme orientação médica. Estes aspectos devem ser considerados e problematizados na interação com os homens, pois a adaptação a novos hábitos vai além da compreensão da necessidade da mudança de hábitos. Acredito que, baseado numa relação horizontal e franca amadurecida ao longo do tempo pode se buscar adaptações ao que seja preconizado, mas sempre considerando o indivíduo, seu contexto e seu desejo em manter autonomia, principalmente quando limites tentam obstruir a plena realização do indivíduo. Infelizmente, a longitudinalidade dessa relação se vê fragilizada pela frequente troca de médico (a) como será discutida em outro capítulo. No grupo focal Alberto (A) lembrou da entrevista realizada na primeira etapa, sete meses antes, e trouxe para o contexto da discussão em grupo o 100 potencial existente na consulta com médico (a) de família diante da possibilidade de abordar outros aspectos além da sintomatologia ou da renovação de uma prescrição, como ele manifestou que fazia. A- O senhor falou naquela entrevista comigo ali [na sala em que foi entrevistado meses antes] que tu [o homem] entra no consultório, se puder falar outras coisas, tu tem que te abrir com o médico, não... Daí eu perguntei: ‘doutor, pode?’ E - Pode. A - Entendeu ? (se dirigindo aos demais), não é só saber do teu problema, tu tem a liberdade de contar outros problemas, de... E- Sim, e esclarecer... será que uma coisa [queixa] tem a ver com a outra?... A- Exatamente.[de forma enfática] Ou ainda o trecho em que Antonio se interessa em conhecer sobre o processo de pesquisa: Antonio- Tu trabalha aqui não? ... Antonio- Pela prefeitura? E- Pela prefeitura, eu estou há cinco anos na mesma unidade [Centro de saúde]. ... Antonio- Por que tu veio aqui nesse C. Saúde [nome do CS]? E- Porque a minha pesquisa não podia acontecer junto das pessoas que eu atendo, porque, em geral, é um constrangimento. Imagina quando eu fiz a sua entrevista você de repente tem uma situação ruim tua comigo em uma consulta como é que você ia falar isso pra mim, pra evitar esse constrangimento eu vim para outro território. Antonio - Foi só aqui nesse bairro [as entrevistas]?* E- Aqui e outro bairro, e eu não passo pra elas [médicas] quem eu entrevistei, elas não vão ficar sabendo, isso aqui [sobre esse encontro] quando for publicado [eu vou descrever como] ‘são homens dos dois bairros, dessa faixa-etária’, entende? Para que todo mundo ficasse bem à vontade pra responder, isso tudo são preocupações de uma pesquisa, pra [o texto] ficar o mais isento [neutro] possível... * Observação do Pesquisador - Percebe-se como o entrevistador se tornou entrevistado, em parte, porque eles se sentiram mais à vontade para perguntar nesse segundo encontro. 101 Conforme ilustrado pelos trechos acima, o grupo focal permitiu uma multiplicação de enfoques e maior envolvimento dos participantes (Krueger, 1994; Bauer e Gassel, 2015). Além disso, propiciou o debate sobre vários temas, entre eles, supostamente de maneira inédita neste grupo, acerca dos direitos dos usuários, sobre a APS e as particularidades da abordagem da medicina de família. Ao longo das entrevistas e grupo focal ficou nítido como a especialidade ainda é desconhecida pelos participantes apesar de solidificada na APS de Florianópolis há pelo menos 15 anos. 102 5 RESULTADOS E DISCUSSÃO 5.1 Concepções saúde–doença e as masculinidades: as experiências dos homens nos serviços de APS A partir das falas dos entrevistados, esta categoria visa discutir a interseção do binômio saúde e doença e alguns aspectos do autocuidado na sua interface com as masculinidades. Desta forma pretendemos debater a trajetória percorrida pelo homem naquilo que compreende como necessidade de busca do cuidar de si no serviço de saúde. Cabe aqui esclarecer que não acredito que a busca do cuidado se reduza a procura pela consulta, até porque esta ação pode se desdobrar na crescente medicalização das queixas e investigações diagnósticas sem evidência científica o que tem sido verificado de forma ‘avassaladora’ no setor privado que muitas vezes adere a lógica de que o ‘cliente tem sempre razão’. Neste caso, para determinado segmento da população, a busca da saúde se reduz a um mero produto a ser consumido cuja qualidade se mede pelo número de exames complementares solicitados e medicamentos prescritos. Infelizmente esse viés tem avançado sobre a consulta no serviço público no ambiente da APS sob a égide da busca de seus direitos, enquanto no setor privado se traduz na compra de planos de saúde ‘premium’ ou na consulta a profissionais adeptos dessa lógica Na APS*., essa temática será analisada a partir das experiências vivenciadas pelos entrevistados. Entre os 18 homens se percebe ampla gama de fatores que os levaram a consultar. O sexagenário Vanderlei, por exemplo, se dedicou ao trabalho até que adoeceu e se viu obrigado a frequentar o serviço de saúde: Nunca me cuidei, sempre fui um pouco relaxado, só queria trabalhar, trabalhar e trabalhar e não cuidava da saúde. Quando deu, quando aconteceu isso aí. Daí o cara cai ‘na real’ e depois vê que se tivesse cuidado (risos) não teria sofrido tanto como eu sofri né. * Gomes et al. (2007) esclarecem que essa procura não necessariamente alude a uma preocupação em cuidar de si, nem tampouco a reduza, mas consideram que em nossa sociedade a busca pelo serviço já emana tal preocupação. 103 Já a trajetória de Ângelo, 58 anos, repercute achados de outros estudos apresentados anteriormente acerca do cuidado de saúde entre os homens (Couto et al., 2010; Gomes et al., 2010; Pinheiro et al., 2012): É, doutor, eu não sou muito de frequentar médico, então pra mim eu procuro se eu tiver sentido algum desconforto em mim mesmo, por enquanto está tudo certo. Foi tudo tranquilo, tudo bem, eu estou bem né, graças a Deus. Então não tem por que tá ruim. Então eu fui justamente porque a mulher pega no pé: ‘vai fazer uns exames, ver como tu tá’, esse é o motivo [para consultar]. E- Uhum, tá, mas o senhor estava tranquilo, ficou meio apreensivo? E4- Não, não, tranquilo. E- Foi tranquilo? E4- Tranquilo como estou tranquilo agora, conversando com o senhor agora. Faz-se necessário contextualizar essa entrevista que ocorreu no meio da tarde em sua loja. Ao longo de uma hora, apenas uma pessoa passou e o cumprimentou. Ainda assim, Ângelo não demonstrava tranquilidade, na verdade se mostrava ressabiado, desconfortável com as perguntas acerca de sua experiência de consulta. Sua expressão era de querer entender algum motivo subjacente para se detalhar algo que, no seu relato, parecia tão simples: ‘Agendar consulta pressionado pela esposa, realizar exames, resultados normais, dever cumprido’. Esta situação de aparente normalidade, quando, de fato, seria o período assintomático, não é tão estável ou perene como ele tenta transparecer. Bastanotar sua inflexão ao afirmar ‘por enquanto, está tudo bem’, o que denota reconhecimento do imponderável, pois pelo menos até aquele momento sua estratégia foi satisfatória. Também foi curioso contrastar seu estilo em lidar com a consulta médica quando comparada à sua atitude diante da consulta com dentista da qual sabia o nome da profissional e agendava consulta regularmente sem necessidade de interferência da esposa. Interessante observar que a postura tradicional de 104 ‘chefe da casa’ ou se colocar como detentor da ‘última palavra´ em outros domínios como aspectos financeiros, decisões quanto ao trabalho se esvanecem ao tratar de sua própria saúde pois assume que delega a esposa a marcação de consulta. Robertson (2009) caracteriza essa atitude como uma tentativa de manter a performance masculina hegemônica intacta. Além disso, esta atitude propicia a justificativa para se consultar, pois, em última análise, o homem não costuma considerar legítima sua presença no consultório quando assintomático. Nesse sentido, devemos cogitar que o diferimento pode estar relacionada a noção de que a busca por atenção médica remete a potencial desfecho desfavorável, aqui entendido como ameaça a sua independência, crença na sua invulnerabilidade, limitação para o trabalho ou ainda o vislumbre da morte. Esta associação já foi observada anteriormente no estudo de Gomes et al (2011). Sadovsky (2005) e Holland (2005) defendem que parceiras devam ser incluídas como motivadoras para que os homens venham a se consultar, estratégia refutada por Robertson (2009) que recomenda auxiliá-los a buscar formas de legitimarem a adoção de estilo de vida mais saudável. Ângelo e Vitor, por exemplo, demonstram uma ‘aproximação cautelosa’ na qual destacam que a ausência de sintomas e/ou exames com resultados normais ratificam aquilo que entende como estar saudável (OU atestam a garantia procurada, ‘não estou doente (sintomas), ‘não tenho que me limitar ou abrir mão do que gosto’). Vitor, 40 anos, técnico de enfermagem atuando no setor administrativo de um hospital em Florianópolis, se mostrou favorável a busca de cuidados preventivos baseado no seu conhecimento teórico ainda que não o aplicasse de forma efetiva: Exatamente acabo não fazendo, de acordo com o meu [meu grifo] protocolo. Mais é questão de tempo também e comodidade, no caso eu faço caminhada, três, quatro vezes na semana...então como aparentemente estou bem de saúde, acabo não solicitando alguns exames pra fazer um check-up né? A idade vai chegando o correto seria fazer um check-up pra verificar se está tudo ‘ok’ e de preferência no posto de saúde com o médico de família, justamente também pra reduzir custo, porque se você faz algum diagnóstico ali você será encaminhado, senão você não precisaria usar os 105 hospitais, emergências, quando tivesse um problema simples que acha que é grave, né, muitas vezes acha que é grave”. Esta posição de valorizar os exames complementares como ’atestado de saúde’ conta com o subsídio de sociedades médicas como a de urologia (SBU) que preconiza que a população masculina realize exames como a dosagem sérica do PSA e se submeta ao toque retal a partir dor 50 anos e para os homens de raça negra ou com parentes de 1º. Grau acometidos seriam orientados a procurar ‘profissional especializado’ para iniciar rastreamento aos 45 anos*. Esta orientação pressupõe a redução de mortalidade, o que não se sustenta na literatura científica na qual se baseia o INCA (2013), SBMFC (2015) e outras instituições de renome internacional como o NHS (sistema de saúde do Reino Unido)**, a USPSTF dos Estados Unidos da América (Fenton et al, 2018) e ‘Canadian Task Force’*** que não recomendam rastreamento antes dos 55 anos de idade pela maior incidência de riscos do que benefícios. Ainda assim, um segmento da população masculina brasileira é cooptado a aderir ao rastreamento sob a expectativa de garantir sua invulnerabilidade. Ironicamente, as consequências relativas aos efeitos colaterais pouco divulgados podem contribuir para a perda dessa invulnerabilidade seja através da disfunção erétil ou da incontinência urinária conforme verificado pelas revisões sistemáticas mais recentes. Entre aqueles que aderem, Vilson, 55 anos, demonstra postura proativa e descreve sua decisão de forma contundente: (...) eu trabalho da seguinte maneira: tudo que aparecer em mim eu vou tentar resolver o mais cedo possível, nunca tenho medo de cirurgia, nunca tenho medo de nada. Se aparecer um câncer agora eu fiz esse daí do * Disponível em: <https://portaldaurologia.org.br/medicos/destaque-sbu/nota-oficial-2018- rastreamento-do-cancer-de-prostata/>. Acessado em 21/02/2020. ** Disponível em: <https://www.nhs.uk/conditions/prostate-cancer/psa-testing/>. Acessado em 29/02/2020. *** Disponível em: <https://canadiantaskforce.ca/guidelines/published-guidelines/prostate- cancer/>. Acessado em 29/02/2020. https://portaldaurologia.org.br/medicos/destaque-sbu/nota-oficial-2018-rastreamento-do-cancer-de-prostata/ https://portaldaurologia.org.br/medicos/destaque-sbu/nota-oficial-2018-rastreamento-do-cancer-de-prostata/ https://www.nhs.uk/conditions/prostate-cancer/psa-testing/ https://canadiantaskforce.ca/guidelines/published-guidelines/prostate-cancer/ https://canadiantaskforce.ca/guidelines/published-guidelines/prostate-cancer/ 106 teste [PSA], se aparece algum problema vamos em frente, enfrentar, porque quanto mais cedo melhor, se esconder pra que? Então eu trato assim. E lamenta a postura de alguns amigos que não seguem sua escolha: (...) e muitos nem vão. Tem amigos meus que tem problema de ejacular, por exemplo, a urina e não foi nem fazer o teste de PSA porque tem medo da picada o de saber que tem alguma coisa... E- E o senhor fala com eles isso... Vi- Já falei várias vezes. E- Deu o seu exemplo, falou da sua experiência? Vi- Não adianta. E- E por que o senhor acha... Vi- Não sei, ele é gaúcho, aí sei lá é macho, acho que isso aí não leva nada, daqui a pouco ele vai embora e vai deixar a gente, infelizmente. E- É, e mais de uma pessoa? Vi Tem, têm vários. Já perdemos várias pessoas [nas Forças Armadas] que são assim, nunca foram daí quando foram não tinha mais jeito e diziam pra gente: “puxa nunca prestei atenção nisso aí que falavam, que a gente tinha que fazer depois dos quarenta”. A análise dos discursos configura a existência de dois polos: Vilson e Vitor, com as devidas observações já realizadas, se encontrariam no polo proativo onde o homem busca garantias quanto a sua saúde através de exames. Enquanto no polo reativo, definido por Machin et al. (2011) como “(...) ausentes, pouco participativos, impacientes, desconhecedores dos códigos sociais que permeiam o atendimento na APS, aqueles que buscam práticas curativas, etc” (p.4510) estariam Vanderlei e Angelo. Essa postura traduz o receio de que a consulta venha a romper a aparente segurança de sua pretensa invulnerabilidade, o que foi explicitado por Vanderlei (V), 57 anos, aposentado após ter enfartado: E- Mas o senhor acha que tinha receio, medo de que podiam descobrir alguma coisa [caso fosse consultar]? V - Exatamente... E- ‘Deixa quieto’... V - É. 107 E- ‘Deixa quieto, não mexe’. V - Um pouco foi isso, porque eu já tive pessoas da família que foi, que mexeu naquilo ali sabe... E- E aí o que aconteceu? V - E aí descobriu, né, aí entrou em depressão e, né, ao invés de ficar melhor, ficou pior, então eu lembrava disso daí também, né... E- E era gente próxima do senhor? V - Uma foi a minha mãe, né, que entrou em depressão, a minha irmã a mesma coisa, a minha irmã mais velha, também foi assim, ela entrou em depressão, porque descobriu que tinha diabetes, descobriu que tinha... E- Problema parecido com o senhor? V - Igual o meu, tinha que fazer uma cirurgia, essas coisas todas. E- Entãoo senhor foi vendo isso na sua volta... V - Isso aí, né, aí o cara receio, fica com receio de ir no médico... E- Aham sim, e aí o trabalho toma conta do resto? V - É, aí o cara só fica atirado, se eu for mexer com isso vai aparecer, então eu vou trabalhar e não vou cuidar da saúde, sabe isso era o que pensava, né, mas não foi bem assim... Outro aspecto intimidante embutido na busca do cuidado através da consulta é o receio dos homens de que venham a sofrer restrições e até proibições quanto a manter seus hábitos que trazem prazer em seu dia a dia, o que contraria um dos aspectos mais valorizados (Courtenay, 2000), que seria a preservação de sua autonomia, como descrito por Vanderlei: (V) - Gosto, gosto de caminhar, gosto de pedalar, mas aí aquele negócio relaxei em tudo, sabe? Quando eu fiz a cirurgia eu perdi vinte e seis quilos. E- Ficou com cinquenta e poucos. (V) - É, sim eu estava legal cara, fininho... como o cara está acostumado a comer bem. E- Tirou a atividade. (V) - Ah sim, aí também... E- Sai do trabalho. (V) - É, também não podia, pra eu caminhar, ele mesmo o doutor [MFC ] me indicou que eu não podia ir sozinho, [dizia] ‘sempre tem que ir alguém comigo’, 108 mas é difícil o cara, em casa. E- Mesmo hoje em dia depois de tanto tempo devia ter esse cuidado? (V) - Sim, sim. [Telefone toca] E- Então [havia] recomendação de ter alguém para caminhar junto e não tinha ninguém [disponível] em casa? (V) - Não tinha, os meus filhos todos trabalham, então é difícil. Não tem, até no começo me ajudaram um pouco, a gente ia à noite, me deram uma força assim, sabe. O cara não pode obrigar, porque eles trabalham no outro dia e eu não, não faço nada, né? Então pra mim... E- E como é que fica o dia para o senhor agora? (V) - Ah, é assim né, como diz o outro ‘come, bebe e dorme’, não faço nada, passa o dia não faço nada. E- Fica desanimado, dá uma tristeza? (V) - Ah, sim, como dá, porque era uma coisa que eu gostava muito de caminhar, gostava muito de pedalar, saía todo dia cedo ia pedalar. De acordo com a metodologia da pesquisa, as principais colocações de alguns homens foram apresentadas para quatro médicos(as) de família que compartilharam seus pontos de vista através de entrevista individual. A MFC Aurora, por exemplo, reflete sobre aspectos envolvidos na tomada de decisão quanto a consulta médica: (...) alguns ‘não querem vir [consultar] também pra não descobrirem nada’; que fique ‘dependente do serviço’, de ficar vindo várias vezes Além da questão do trabalho, que a pessoa acaba priorizando outras coisas em relação a saúde, alguns têm medo de que encontre coisas, mas sim dela mesma ter que se cuidar, ter que tomar várias medicações, ter que correr atrás das coisas pela saúde dela. Vinícius, 40 anos, que não tem um trabalho formal, reflete sobre o aprendizado em sua família da maior relevância do trabalho em relação a consulta, mas enfatiza a prioridade que o cuidado a saúde exige contrariando a fala de Amadeu, que destacou o risco do desemprego, e se ancora na reflexão da médica Aurora: 109 (...) eu escutei desde pequeno, né, o negócio do trabalho. Também eu acho que pra quem já não está muito, né, a fim de ir, né, coloca como desculpa o trabalho, né, tem medo que encontre coisa, né, se cuidar, é assim como a médica [Aurora] fala da prioridade da saúde, né, tem que correr atrás de coisas pela saúde, sim claro. Nesse contexto de forças tensionando entre a pertinência em se consultar e a pressão do mercado de trabalho desfavorável, mesmo Amadeu, que se mostrou proativo no que concerne a busca da consulta quando entende ser necessária, alertou que o processo de tomada de decisão é influenciado não só pelo aspecto cultural, mas também por aspectos socioeconômicos: (...) mas vou complementar aqui a [fala] da [médica] Aurora. Não é só isso, não é só questão cultural, também tem a questão estrutural... quando você está principalmente numa época de desemprego aqui em Florianópolis tem uma alta rotatividade, né? quando tu é jovem, quando tu trabalha, os primeiros três meses [se] tu falta muito, tu não renova contrato. Aí o pessoal fica guardando doença por três meses, seis meses, pra não desagradar na empresa. Aí o que eu penso que tem essa vulnerabilidade socioeconômico que não tem como contornar, não é cultura, é sócio econômico, porque a pessoa, na questão de priorizar o trabalho, precisa ter trabalho... A preocupação aparentemente corriqueira descrita por Amadeu encontra ressonância na análise de Hone et al. ( 2019) cujos dados do período de recessão econômica entre 2012-2017 exacerbada pela precarização do trabalho mostrou a correlação entre recessão e excesso de mortes, sendo os grupos mais atingidos os homens, negros ou pardos, de 30 a 59 anos de idade. O MFC Raul, na sua prática clínica, problematiza o peso que o homem se impõe ao privilegiar o trabalho em detrimento do cuidado a saúde: Mas como médico, considero o homem como vítima desse sistema, da sua dificuldade de se desvencilhar das várias obrigações: ‘tem que sustentar casa, etc’ e o restante deixa de ser importante. 110 A gente precisa perceber na nossa vida e levar para o consultório, perceber o significado da vida além do trabalho. O que dá sentido para vida? Na 3ª etapa do estudo, devolutiva, quando esta colocação foi apresentada a Augusto (A), 27 anos, Antropólogo e economista, ele demonstra ambivalência: mostra-se proativo em relação a busca de informação dentro e fora do consultório acerca da doença celíaca, diagnosticada há cinco anos, mas reproduz a postura do polo do reativo quando, mesmo ciente dos riscos, coloca o trabalho acima do cuidado com sua saúde : A - Então tu pensa assim, tem muito essa questão de ser, ‘ah eu sou forte, eu sou macho’, não sei o que lá, por alguma razão realmente ele [pai] forte pra caramba, sei lá, a saúde dele está absolutamente destruída, o corpo dele está destruído, não sei como ele está vivendo, meu pai já tem setenta, apesar de eu ser novo ele é quase um ’pai avô’ assim digamos, e eu sempre acreditei, eu acreditava que eu tinha tentado me criar pra ser diferente dele, mas o que eu percebi é que, às vezes, eu faço coisas que talvez eu não destrua a meu corpo fumando e bebendo álcool, mas eu trabalho demais, talvez eu faça mal mais ao meu psicológico do que meu corpo, eu sempre me alimento muito bem, minha alimentação é redonda, mas... E- Até porque você tem uma questão de saúde que se você não cuidar... A - É sou obrigado, doença celíaca e lactose eu tenho que me alimentar bem, eu tenho que fazer minha comida, mas eu admito que principalmente a questão psicológica eu provavelmente eu passo demais, às vezes, do limite de trabalho, de cansaço, de stress, por sorte nunca meu deu nada o que me faz continuar focando no erro. E- E esse médico [RAUL] então que falou isso, né, dessas perguntas que ele coloca na mesa tipo ‘o que dá sentido pra vida’ e ‘como é que fica a busca pela saúde’, se a gente carrega todas essas obrigações, se ele te colocasse isso, você acha que isso de alguma forma possa te ajudar? Ou... A - É que eu acho que é muito uma questão de que assim eu sei o que eu estou fazendo de certa forma faz mal para minha saúde, mas a crença é, se eu não trabalhar, se eu não me esforçar, se eu não der cem por cento agora, talvez eu não consiga fazer nada vida assim. Então vale a pena o risco de arriscar a minha vida num curto prazo pra talvez ter um longo prazo mais interessante, mais prazeroso, do que, é uma questão de sacrificar o presente pra ter o futuro assim, se não tiver fazendo isso talvez a 111 vida perca o sentido assim sabe, se eu não tiver fazendo algo que seja, produzindo, né, se tu não está produzindo eu acho que a tua vida perde um pouco o sentido, né... E- Mesmo colocando a tua saúde em risco?A - Absolutamente. E- Está ciente de que está colocando... A - Sim, sim. E- Mas ainda assim você acha que vale a pena? A - Eu acho que vale a pena o risco, porque se eu não tiver isso eu não tenho mais nada pra mim, eu sou muito, ganância não é a palavra, mas também sou um pouquinho ganancioso, eu quero alcançar muita coisa na vida, se eu estou fazendo uma coisa muito mais que eu posso fazer agora, estou vendo que eu não estou conseguindo fazer tudo que planejava para o ano, parei de me culpar disso, porque eu sei que eu estou fazendo o meu melhor, eu trabalho mais de dez horas por dia, tenho que dar mais, e até é uma coisa que eu aprendi esse ano, mas ao mesmo tempo eu estou triste, porque bom não estou alcançando, não estou mais me culpando, mas continuo um pouco triste, porque ‘droga, putz eu queria ter feito mais’, eu queria alcançar mais já esse ano, não consegui, mas azar então... E- E esse comentário de que os homens se colocam uma carga por achar que tem que levar, que tem que fazer, você se vê nisso também, você percebe uma cobrança externa ou é algo só seu, que você se cobra? A - Eu sinto que é eu que me cobro assim, é que eu não sei se eu sou o melhor exemplo assim, minha família acha que eu deveria estar fazendo uma coisa da minha vida, e eu estou fazendo outra, uma pós-graduação, tentando abrir uma startup na área de tecnologia, não é o negócio mais seguro, outra coisa que eu não estou conseguindo é segurança, não é o mais seguro, o mais obvio, pega um emprego, eu tinha um emprego muito bom, larguei o emprego para estar fazendo isso agora, para estudar para o mestrado, pra tentar abrir uma startup, é um negócio que eu não tenho garantia de ganho, é um risco completo, eu diria que esse meu ano é o ano que eu estou em risco absoluto, mas eu vejo que ou eu arrisco ou eu, se não eu vou ter uma vida que eu não quero ter, sabe... E- Uhum. A - Então eu acho que é muito sacrifício no momento presente pra tentar ganhar o futuro assim, falta saúde, dinheiro, tudo, nesse sentido eu acho que na questão de estar saudável ou não, eu acho que estou pecando em todas as áreas possíveis assim... E- Mas alguma coisa do que esses médicos falam te ajudaria nesse caso, te ajudar a pensar, te ajudar a refletir sobre? A - Talvez se alguém me mostrasse que se eu trabalhasse uma hora a menos por dia eu posso alcançar tanto quanto trabalhando uma hora mais talvez , talvez, mas eu acho que é muito uma, talvez se alguém me 112 mostrasse... o próprio fato de eu não estar me sentindo culpado por não ter alcançado tudo foi um negócio que eu aprendi, demorei muito tempo pra aprender, eu me fazia mal, me sentia mal por não estar acontecendo tanto quanto, e hoje em dia eu já aprendi que eu posso ficar doente, eu posso descansar, descansar é permitir, não é um pecado... Esta longa explanação aponta para o enorme significado que o trabalho tem na vida de Augusto. Mesmo quando confrontado com o risco à saúde, incluindo o risco de morte, ele ainda barganha consigo mesmo alegando que sua atitude melhorou. E em seguida, quando provoco sua reflexão acerca do papel do profissional de saúde nessa questão, ele solicita por uma garantia. Simplesmente aguarda que alguém, não por acaso na figura simbólica do médico que possa lhe garantir algo valioso caso desista do sacrifício que se impõe. Afinal, o trabalho vai muito além de garantir a subsistência ou reconhecimento de seu valor pela sociedade, o trabalho define a sua identidade, como já observado no estudo de dos Santos et al. (2017). Já no polo proativo, e mais próximo do questionamento do MFC Raul acerca do papel do trabalho que vem a sacrificar a saúde, colocou-se o colombiano Aureliano, 36 anos, estudante de pós-graduação em área de humanidades. Vivendo no Brasil há quatro anos, ele critica a pretensa invulnerabilidade masculina o que reforça sua motivação para não adiar a procura pela consulta: ‘Cara, o risco da gente ter alguma coisa sempre está, ‘quem que é você para não ser atingido por uma doença, sabe?’. Então eu acho que faz mais sentido de ir, e porque eu gosto muito de viver, eu acho que sinto mais medo de não fazer alguma coisa do que fazer, ...eu acho que minha mãe desde criança, né, todos os anos pegava minha irmã e eu levava no médico, então eu acho que isso eu me acostumei meio a que ir no médico. Por sua vez, Vagner, 55 anos, traz cores vívidas a dois aspectos da vivência da masculinidade na sua relação com o autocuidado. O isolamento ou auto isolamento (exclusão) do homem, que não costuma ter rede de apoio para compartilhar suas inseguranças e sua expectativa de que seja 113 necessário um grave motivo que claramente justifique se ausentar do trabalho para se consultar. ‘(...) porque eu não vim antes, né, porque eu deixei chegar nesse ponto, né?’ Então essa, é um ponto que a gente sempre ‘puxa, podia ter vindo antes’, né?’ E isso tudo remete aquela cultura que eu acredito que está mudando um pouco no século XXI já está mudando um pouco, mas até o século XX, era uma cultura de que você só vai no médico se sentir dor, né, mas é muita dor, uma dorzinha não vai no médico, ‘você tem que ser forte, homem não chora’, as baboseiras que você ouviu a vida inteira, né, então quando você chega nesse ponto você diz assim ‘poxa vida eu deveria ter vindo antes, né?’ ...Acaba sendo com ele [médico (a)], acaba sendo com ele, porque a não ser que seja um amigo muito íntimo, de muitos anos, né, mas certas intimidades você não tem confiança com ninguém, né, o médico é o elo de confiança, né, e se a gente puder, né, falar com ele já diretamente é um tanto melhor, né? O isolamento, ainda, é muito marcante na construção social do homem, mas alguns trabalhos indicam que este começa a se romper em redes de apoio seja através de rodas de conversa (Arruda, 2013) ou ainda em grupos estruturados de homens na UBS (Strey et al., 2014) ou outros espaços (de Freitas et al., 2012). De maneira geral, permanecer isolado ganha contornos críticos na medida em que o adoecer denuncia sua vulnerabilidade, ameaça sua convicção de força, rasga o mito do herói que a tudo supera para se manter como provedor, aquele que garante ou sustenta sua autoridade na família e no meio social. Quanto a postura do profissional, independente do sexo, Payne e Doyal (2010) revelam que alguns profissionais de saúde podem se mostrar menos atentos na identificação de problemas de saúde em mulheres ou homens por conta dos estereótipos de gênero dos pacientes. Nesse sentido, Clareus e Renstrom (2019) realizaram estudo na Suécia junto a 90 médicos generalistas que, diante da vinheta de paciente com dor lombar, tendiam a diagnosticar mais mulheres como portadoras da condição com sintomas medicamente inexplicados, diagnóstico de exclusão, isto é, quando não se confirma suspeita de dor de causa mecânica. Os autores esclarecem que o tratamento de sintomas inexplicados requer o direto envolvimento do 114 paciente o que pode ser prejudicial quando, de fato, a dor é de origem anatômica. Essa conduta ilustra o viés de gênero mesmo quando controlado para gênero do profissional e tempo de experiência profissional. No Brasil, alguns estudos têm questionado o estereótipo veiculado pelos profissionais de saúde quanto ao não cuidado associado ao homem (Couto et al., 2010; Machin et al., 2011). Afinal, como bem descreve Burille et al. (2018), “(...) se o cuidado é atrelado às representações de feminilidade, ser homem pode ser assumido, nessa perspectiva, como não ter que cuidar de ninguém – inclusive nem de si mesmo” (p.437). Este argumento endossa a necessidade de discussão acerca dos estereótipos de gênero, para então vislumbrar possibilidades para além da culpabilização ou da vitimização dos homens (Medrado; Lyra; Azevedo, 2011). Retomo o relato dos profissionais entrevistados no estudode Knauth et al. (2012), quanto a perpetuação desse viés também em relação ao critério usado para emitir atestado para homens pois estes costumam ser vistos como simuladores de queixa para obter afastamento do trabalho sem motivo plenamente justificado*. Desta forma a referida invisibilidade nos serviços de saúde vai além do ambiente feminilizado; preponderância de profissionais de saúde do sexo feminino, visão preconceituosa sobre sua presença e horários de funcionamento que limitam a procura (Machin et al., 2011; Knauth et al., 2012). Quanto a prática clínica, a presença de estereótipos e viés de gênero se reproduz, por exemplo, em relação a tolerância ao choro nas consultas das crianças sendo do sexo masculino (‘um menino grande chorando?’, ‘que coisa feia chorar por isso’) ou feminino (‘já vai passar, que menina bonita...’). Visto por este ângulo, o afastamento desse grupo começaria nessa fase até seu alijamento na adolescência onde a função reprodutiva ainda é tratada * Na minha experiência clínica, este aspecto é sobreposto pelo hábito da maioria dos empregadores que, apesar da mudança da legislação, ainda exigirem ou pressionarem pela inclusão do motivo do afastamento no atestado, o que tornava o empregado ainda mais exposto ao assédio moral e coerção para que sua ausência não viesse a se repetir . 115 como de responsabilidade da mulher e a infantilização do adulto jovem que, em geral, pouco participa do processo de decisão e responsabilização. Quanto a abordagem dos (as) MFCs ao lidar com os homens que consultam, a médica Alice faz uma distinção por idade: “(...) na verdade, eu replico essa fala [de Vanderlei] para os novos, para os jovens, eu falo: “olha nessas de ficar relaxado, ficar lá fora trabalhando, então tá aí, não tem como depois no futuro, né, tem que se cuidar agora, vamos aproveitar esse momento, tira um tempinho”, então eu vejo que essa fala [de Vanderlei] como um neon [alerta], quando o homem mais novo, né, quando ele chega mais velho me contando isso, na verdade, eu conforto e falo: “não, mais ainda tem tempo, vamos se cuidar agora, né”... Virgílio, 36 anos, elogia a proposta motivacional de Alice: “(...) ela está realmente tendo uma abordagem cuidadosa e adequando diante das circunstâncias, enquanto o próprio Vanderlei, 57 anos quando é apresentado às respostas dos (as) médicos (as), admite ter ouvido esse tipo de orientação, mas refuta sua eficácia: - Eu acho que sim, eu acho que sim, é um incentivo, né, isso é um incentivo, eu acho que isso, né, isso ai na época a gente escutava isso, então, mas só que é aquela coisa, eu não digo, eu não digo que são todos iguais a mim, mas eu era assim eu não ligava muito para que o médico dizia, não prestava muito atenção, até inclusive hoje tem muita coisa que o MFC me fala assim sabe, e eu digo que vou fazer e não faço. Essa fala revela imensa riqueza que acredito não ser percebida pelos (as) médicos (as) na maior parte do tempo. Ainda mais quando se trata de homens dos quais pouco conhecemos acerca de suas crenças e experiências anteriores de cuidado conforme ilustrado/esquematizado pelo Ciclo de Invisibilidade do Homem no sistema de saúde (Dantas, 2012). Vanderlei alerta que a mensagem foi recebida, os fatos vividos não se devem a ignorância, como se costuma apontar nas equipes de saúde que os rotula como ‘difíceis, resistentes, teimosos’. Porém, as circunstâncias de vida, de trabalho, de escolaridade não foram favoráveis, como alerta Amadeu. No intuito de reverter esse quadro, irei me debruçar sobre 116 estratégias e abordagens no capítulo 6, Sugestões para aprimoramento, visando ‘quebrar o ciclo de invisibilidade’. 5.2 Experiências dos homens nos serviços de APS Durante o grupo focal, Virgílio criticou a postura de alguns profissionais a partir das colocações da médica Aurora, quando reconhece o aspecto cultural no qual homens evitam procurar auxílio para não demonstrar fragilidade, o que gerou debate entre os participantes do grupo: Virgílio – ‘Passa uma pomadinha’ ao invés, né, de incentivar ‘que legal você está preocupado com o seu corpo, querendo saber um pouco mais sobre essa doença, querendo melhorar um pouco a tua bronquite, e tal’, o que mais você pode ir atrás pra ver, consultar. Então assim estimular essa qualidade de vida, essa busca por uma vida melhor, mais saudável mesmo, acho que esse seria fundamentalmente o papel dos profissionais da área da saúde, quebrar essa visão de que ‘ah o homem é assim mesmo, não gosta de se sentir frágil’. Enfim, por isso que muitas vezes não querem ir ao médico, não quer descobrir alguma coisa, a gente já sabe disso, né, mas aí quem pode quebrar isso, só os profissionais da saúde mesmo pra estimular quando chegar essa população masculina, incentivar: ‘olha que legal que você está aqui, é isso mesmo, né, vai atrás, não tem problema ser frágil, não tem problema ficar doente’... Amadeu- Você não é menos homem porque está doente. Virgílio - Exatamente, ter esse acolhimento... E- Então você nota um certo rechaço em relação a queixa que ele traz, né, não é suficiente pra você estar vindo aqui, né? Virgílio - É. E- E disso que você está falando? Virgílio - É. E Os profissionais não validam a chegada do homem... Virgílio - Os profissionais acabam... E - ‘Por esse motivo que você está vindo aqui?’... Virgílio - É acabam... E - Reforçando... Virgílio - Às vezes, até de forma, não consciente ou por vontade, mas acabam reforçando essa característica, de tipo ‘ah tu é um cara tão forte, porque está vindo aí só por causa de uma tosse?’. 117 Angelo- É isso daí também é muito de cada um, né, cada profissional, né, profissional que já não está nem aí, quer mais é se livrar do cara, ele nem olha pra ti... E - ‘É um atestado que você quer, né?’... Virgílio - Exatamente, mas que está muito ligada a essa questão cultural mesmo... Angelo- - Claro, questão cultural. Virgílio - ‘Tu é um homem forte aí, vai trabalhar’... E- Se fosse mulher fazendo uma queixa talvez ia ter um outro olhar... Virgílio - Já ia ter outra abordagem, outro olhar... As experiências relatadas ilustram o desconforto perante um profissional que não acolhe suas queixas ou preocupações, o que converge com o estudo de Smith et al. (2008). Além disso, do diálogo captado emerge a potência quando homens reunidos num grupo focal têm oportunidade de se articular e expressar as dificuldades vivências em consulta. Os participantes abordam a experiência quando suas vozes são silenciadas, como descrito pelos entrevistados de Separavich (2014), vozes que gritam quando a limitação os impede de trabalhar. Quando decidiram se consultar, suas queixas foram rechaçadas (invisibilizadas) pelos médicos, sugerindo a inadequação da presença masculina como não merecedores do cuidado profissional A desqualificação de sua queixa, porém, remete ao que na literatura já foi apontado como a ‘invisibilidade masculina’ nos serviços de saúde de APS brasileira (Couto et al, 2010; Gomes et al, 2011), resultado de uma série de fatores já amplamente debatidos na produção científica nacional, incluindo a PNAISH que nessa década de implementação apontou mas não conseguiu reverter a maioria das limitações apontadas: espaços de saúde não receptivos ao segmento, feminilização do espaço e ainda a falta de atividades estruturadas dentro e fora dos centros de saúde (Figueiredo, 2005; Couto et al., 2010; Gomes et al., 2011; Knauth et al., 2012; Coelho e de Melo, 2018). No entanto, acima dessa complexa situação, o desconhecimento acerca das masculinidades aliado a estereótipos de 118 gênero dificulta a mudança desse cenário e denunciam o desconforto dos profissionais de saúde com a presença do homem que vem a frequentar os serviços de atenção primária sobreposto ao desconhecimento dos gestores acerca dasdiretrizes da PNAISH (Gomes et al., 2012; Moura et al., 2014). Tendo em vista que as medidas apontadas pela PNAISH e por diversos pesquisadores (as) não foram efetivadas, não causa surpresa que a somatória desses aspectos favoreça a perpetuação da (des) assistência cotidiana desse segmento da população. (Des) assistência aqui definida como a assistência equivocada, disfuncional e até acusatória da imputada irresponsabilidade do homem. Ademais, faz-se necessário destacar que alguns MFCs legitimam o discurso de que o trabalho justifica postergar a busca da consulta, seja por acreditarem nessa justificativa, postura identificada por Machin et al. (2011) entre profissionais da ESF, seja pela demanda excessiva na agenda médica que esvazia o questionamento. Assim se configura um ambiente inóspito para mudança de padrão, do ‘modus operandi’ em relação a atenção a saúde do homem na medida em que os homens trazem consigo (se apoiam) o modelo da masculinidade hegemônica e seus riscos para saúde enquanto os profissionais reforçam estereótipos. Conforme denunciado por Amadeu, a demora na busca de consulta não se limita a uma ‘questão cultural’, as normas sociais do estereótipo de gênero que indicam que a masculinidade se define pelo trabalho e a autoridade que dele emana dentro das famílias tradicionais aparentemente podem trazer alguns benefícios imediatos, por outro lado, o perfil morbimortalidade denuncia perda brutal: anos e qualidade de vida. Nesse contexto, o(a)s médico(a)s ouvem os relatos quanto ao risco de demissão ou desemprego por tempo prolongado e deixam de questionar sobre o alegado motivo de que o trabalho se sobrepõe a consulta; o que, em algumas ocasiões, serve para não enfrentar o receio de ‘descobrir algo errado’, o que afetaria sua pretensa invulnerabilidade. 119 Visto que frequentam menos o serviço quando comparados às mulheres, suas falas evidenciam o seu desconhecimento quanto ao papel das unidades de saúde assim como a gama de serviços prestados pela equipe de ESF/NASF. Apesar de não ser necessariamente inédito, esse aspecto merece destaque no caso específico de Florianópolis por conta da solidez que a APS alcançou ao longo da última década quando em 2015 se tornou a primeira capital a atingir 100% de cobertura territorial (DATASUS, 2019), sem que isso tenha se traduzido em maiores taxas de utilização pela população masculina Além dos motivos já discutidos, os dados denotam a falta de estratégias específicas visando o segmento masculino apesar de prevista nas Diretrizes da PNAISH. De forma incipiente, à medida que alguns homens passaram a frequentar o serviço, perceberam a importância dos demais membros da equipe, assim como a satisfação alcançada por essa abordagem, como destacado por André, 37 anos e Augusto, 27 anos: “(...) enfermeiros super competentes, tive uma relação muito boa com elas, mas de médico eu tive várias mudanças (André) Augusto - Sim, certamente ela [médica] estava me ouvindo, ela estava prestando atenção, só que ela estava em uma correria doida pelo jeito ali, atendendo outra pessoa enquanto ela estava me atendendo. E- Ela interrompia e ia em outra sala? A - Sim, aí eu continuava com a enfermeira, daí foi basicamente assim. E- Mas as duas estavam juntas na sala, não? A- Eu estava na sala com enfermeira X e a médica ia e voltava. E- E como é que foi para você? Augusto - Sinceramente, assim, se atacou o problema, resolveu o problema pra mim, o que eu precisava, tá bom assim. Não sei se como deveria ser, se está certo, se está errado. Alguns, como Aureliano, 36 anos, revelaram-se positivamente surpreendidos pela qualidade do atendimento: “(...) realmente me explica muito bem as coisas ... mesmo que ela [MFC] já tenha explicado outras vezes, e é sempre super tranquilo assim, né, é realmente um acolhimento, tem um acolhimento assim. 120 Amadeu, 34 anos, que é HIV+, por sua vez, destacou o interesse da equipe da ESF: “(...) eu passo muito tempo sem vir assim, mais de duas semanas, três, aí o pessoal aqui do postinho liga pra mim... Porque assim eles querem saber como eu estou, eles querem, se preocupam mesmo. E- Como é isso pra você deles ficarem... Ah é muito bom, muito bom. E- Não te incomoda? De jeito nenhum, bem, porque meus pais já são falecidos e ter alguém que se preocupa contigo, é muito bom. Enquanto Virgílio, 36 anos, se mostraria inclinado a consultar mais caso o acesso fosse facilitado. “(...) pra você conseguir ser atendido você tem que ir lá no posto, sei lá, quatro e meia da manhã, cinco e meia da manhã, e ficar na fila porque são vagas restritas por dia, se você não consegue estar dentro daquele número de vagas você não consegue ser atendido. Como síntese interpretativa das categorias até aqui tratadas, vê-se que a trajetória pela busca da consulta médica para os homens é influenciada pelos diversos fatores que afetam também as mulheres: idade, estado civil, escolaridade e nível socioeconômico. Mas, em termos de particularidades dos homens, observa-se que estes mesmo quando percebem a necessidade ou estão cientes da recomendação por consultas médicas periódicas, o trabalho, como categoria social de identidade masculina, ainda exerce grande pressão limitadora para a busca de assistência e cuidado. Considerando o horário tradicional de funcionamento vigente nas unidades de saúde (entre 8 e 17 horas) na ocasião da coleta de dados, muitos relataram ter procurado de forma tardia ou ainda quando as condições socioeconômicas se modificaram (aposentadoria, perda do plano de saúde privado, gestação da esposa, doença na família) conforme já ilustrados na seção 5.1. 121 Diante do quadro apresentado em que percebemos barreiras na aproximação ao serviço de saúde, ou inserção a partir de evento quase fatal, cabe aos gestores e equipes de saúde, e aqui particularmente os MFCs, planejarem novas estratégias de aproximação. Robertson (2009) destaca que homens ainda precisam de formas de legitimar a busca de estilo de vida saudável e se vincular aos serviços de saúde. Propõe, portanto, que gestores e profissionais de saúde busquem identificar fatores que possam motivar os homens na busca de práticas saudáveis. A literatura traz exemplos ocorridos a partir dos CS como já implementado em outros municípios como se deu na região de Ermelino Matarazzo em São Paulo e São Luiz do Maranhão (BIS, 2012). Na mesma ocasião, numa UBS de Porto Alegre se iniciou um grupo de homens liderado por um agente comunitário de saúde que há 10 anos realiza encontros mensais discutindo temas de interesse dos participantes apesar de limitados recursos disponíveis (Strey et al., 2014). Outra estratégia utilizada tem sido de ir ao encontro de grupos de homens como em locais de trabalho predominantemente masculinos (mineração, construção civil) ou ainda participar de festividades como o dia do Caminhoneiro onde se discutiu material produzido pelo Instituto Barong em São Paulo (BIS, 2012). Internacionalmente, na última década, países como Escócia e Inglaterra se notabilizaram por ações promovidas através dos esportes populares como futebol e rugby estimulando perda de peso e mudanças no estilo de vida (Robertson e Baker, 2017). Além dessas estratégias, diferenças culturais tais como o papel da mulher e do machismo no cuidado da saúde, além da expectativa de receberem atenção personalizada por parte do profissional de saúde precisam ser consideradas, como observado em estudo realizado junto à comunidade mexicana vivendo nos Estados Unidos (Sobralske, 2006). 122 5.3 Considerações sobre a Frequente Troca de Médicos Essa categoria precisa ser analisada no contexto de um segmento da população que, historicamente, frequenta o serviço de saúde aquém do preconizado, principalmente no que concerne a APS. Além disso,tipicamente, e não só no Brasil, quando suas enfermidades já se encontram em estágio mais avançado (PNAISH, 2009). Os fatores envolvidos nessa dinâmica já foram amplamente discutidos na literatura e citados anteriormente. Esta tese parte do encontro no consultório visando identificar aspectos da relação que sejam identificados como passíveis de ajuste. A partir deste ponto, pode se iniciar a construção da relação médico (a) + pessoa até que venha a se formar o vínculo. Ao longo das consultas, a parceria poderá se efetivar à medida que são conhecidas as nuances de cada um e a construção de códigos e propostas de engajamento terapêutico. Tempo e ‘timing’ são fatores delicados no molde e refino dessa parceria. O tempo entremeia a sequência dos encontros que se colocam como pedras a construir o caminho desde que articuladas, pois envolve a construção da confiança. Nas entrelinhas pode se ouvir: ‘posso mesmo confiar em você?’, ‘o que você espera de mim?’, ‘até onde você irá para manter esse vínculo?’, ‘quais são as regras não ditas do rompimento?’ ‘em que momento você vai me deixar?’ Nesse sentido, o sistema de saúde pública costuma falhar na medida em que a rotatividade se mostra mais como regra do que exceção, como é o caso de Florianópolis, onde a APS se encontra mais consolidada. No município, o tempo médio de permanência do médico de família que trabalha com a mesma comunidade é de seis anos, o que sugere que ‘tempo’ de permanência favorece a construção da relação, cabendo investigar se o ‘timing’ é utilizado de forma a desenvolver uma relação satisfatória. Na minha prática clínica, percebo que ‘tempo e timing’ são marcadamente distintos, que não existem regras pré-estabelecidas exceto a instabilidade. Diante da inconstância dos encontros, o ‘timing’ seria a 123 habilidade de perceber quando e como se aproximar, os riscos de rompimento iminentes, a falta de tempo é crítica. Nesse sentido, formulei o ‘ciclo de invisibilidade do homem no sistema de saúde’ (Dantas, 2012) que visa contribuir para a discussão do nó crítico que favorece a perene ‘desassistência’ ao homem, mais especificamente para a criação de sólida relação com o médico (a). Diante disso, a crítica à frequente troca de médico (a) se torna ainda mais contundente e esclarecedora, pela sua repercussão para o esfacelamento de laços terapêuticos, como explicitado por Vanderlei, 58 anos: ‘(...) mas cadê a médica que consultava comigo? primeira vez mudou a equipe, agora já é outra equipe. Aí depois tu ia lá de novo já era outra equipe. Então era tudo médico diferente, aí tu tinha que contar tudo de um para outro, no final das contas era até chato sabe, porque tu tinha que contar tudo de novo’. Vanderlei veio a estabelecer vínculo com seu médico de família após o infarto, relação que já dura cinco anos, algo raro entre os entrevistados. Este aspecto provavelmente contribuiu para que viesse avisar seu médico que não queria ser atendido por estudantes ou médico(a)s residentes. Felizmente, no seu caso, o Centro de Saúde estabelece que consultas agendadas sejam preferencialmente com seu/sua médico(a), o que as difere das consultas não programadas sobre a qual ele descreve o processo. Ainda assim, se ressente quando não é atendido pelo seu médico de família: V - [Médico Residente] Lê o prontuário e dali ele começa a me perguntar, então não precisa ele me perguntar desde o começo, aí o que acontece, e aí ‘hoje como é que o senhor está’ (?), ‘ah não, hoje eu estou assim, assim, assim’, então o que acontece ai ele vai lá e passa para o MFC, ai depois ele vem ou o [meu médico] vem e fala pra mim, né? Ou então o [meu médico] manda dizer pra mim o que eu tenho que fazer, ai ele [residente] diz assim, ‘não, [meu médico] mandou pedir para o senhor fazer isso, aquilo, então isso é... E- E aí como é que fica para o senhor quando acontece desse jeito? V - Eu não gosto, eu não gosto, porque eu gosto mesmo é de consultar com ele, né, não gosto que atrapalhem, mas aí como eles [a 124 equipe] dizem que é bom, porque é estagiário, eles têm que saber como é que faz então... E Vanderlei conclui sobre a relação estabelecida com seu médico: - Sim, é assim eu o [meu médico [MFC] a gente sei lá, a gente se entende bem pra caramba, tanto que ele uma vez eu estava meio atrapalhado aí, me aconselhou um monte, então ele é o médico, meu conselheiro, ele é tudo, pra mim ele é muito, pra mim ele é uma pessoa que eu nunca posso falar mal dele, muito bom... A seguir, Vilson, que não tem proximidade nem experiência com a medicina de família, comenta sobre a frequente mudança de médica vivenciada com os especialistas focais: V - É, pelo meu convênio teve uma época que não tinha urologista, aí o que aconteceu comigo, eu precisava, eles me passavam um médico X que não estava conveniado. Quando eu precisava de novo já não era mais aquele, já era outra clínica, então nunca iam um protocolo de um lugar para o outro, um médico novo não sabia o que a gente falava, aí fazia tudo de novo, isso foi cinco, seis vezes. E- E o que o senhor achou dessa situação? Não, foi péssimo. Hoje não, hoje tem aquele me acompanha, está tudo anotado lá. Se tem algum problema, tipo isso que aconteceu comigo agora, seria um diferente aí faz exame de toque, faz não sei o que, vai para outro, faz de novo porque ele não sabe. Aí estava complicado. Assim está melhor, ajuda bastante né quando tem um que acompanha mais tempo. André, 37 anos, que já havia desenvolvido familiaridade com a abordagem da Medicina de família acompanhando sua mãe nas consultas, ressalta sua experiência em Florianópolis desde 2014, onde ressalta o papel da troca de profissionais: “(...) eu tive uma atenção maior nos últimos dois anos assim, que foi até legal, enfermeiros super competentes, tive uma relação muito boa com elas, mas de médico eu tive várias mudanças assim... eu tive atendimentos com médicos que foram muito bons, com ela eu acho que foi bem legal, mais porque eu tive uma repetição, né, assim, talvez se ela tivesse ocupado o posto da área em que eu estava morando então por isso eu tive consultas mais frequentes, eu tive médicos muitos bons, mas foram poucas consultas, 125 né, esse residente que me atendeu alguma vezes eu achei ele super legal assim, foi super bom consultar com ele, mas foram poucas vezes também. 5.4 Percepções dos médicos de família Diante desses relatos, o MFC, Rildo, que trabalhou por cinco anos no mesmo centro de saúde (Tabela 7), comenta: [a troca representa] prejuízo enorme para os pacientes, Eu [médico] estou perdendo quatro anos e meio de trabalho ‘eu sou seu médico, eu sou a pessoa que cuida de você, confia em mim pra criar esse vínculo, né?’ E REPETIR Deixar a pessoa ciente que: “eu sou o cuidador, ou eu sou a sua referência” (para cuidado de sua saúde) Na devolutiva (fase 3 da pesquisa de campo), Vinícius reagiu a esse comentário por não acreditar que se pode manter vínculo duradouro com o profissional médico: - Não pra mim não assim, na minha opinião eu, claro, eu acho que se o cara me fala isso aqui eu fico, claro, eu fico contente e tal, mas eu não vou, eu não vou me basear muito assim, eu vou ficar muito crente nisso aqui, porque eu sei como que funciona, ... eu acho uma frase eu acho muito assumir um compromisso muito grande e tal, mas que conforta algumas pessoas sim cara isso aqui, uma pessoa chegar pra ti e falar ‘ó eu vou cuidar de ti e tal, e depois muda como está dizendo aqui, depois muda’... Em resumo, nas entrelinhas, a fala de Vinícius denota a desconfiança no funcionamento da ESF no que tange a possibilidade de vinculação a determinado médico (a). A MFC, Aurora, igualmente destaca a importância do vínculo e a sua consequente perda decorrente com a troca de profissional. Como eu estou com uma residente aí geralmente eles estranhamquando tem que passar por ela, né, mas aí eu explico, né, que o prontuário a gente deixa tudo anotado certinho, que a gente é uma equipe, então o que ela fizer, né, a gente vai discutir junto depois, né, e aí isso dá uma tranquilizada, né, mas em relação a mudança, né, de lotação [troca de CS], né, aí é uma coisa mais complexa, né, por enquanto eu não consegui 126 elaborar nenhuma estratégia pra minimizar isso assim, porque eles reclamam mesmo, né, fez o vínculo todo, né, e tem que mudar, é complicado. E- Tem um certo, talvez um certo luto, né, de término daquela relação, que às vezes nem foi explicada que ia terminar, né? Aurora - Uhum. E -E você recebe essa pessoa que começa se queixando que o outro saiu. Aurora- Sim. E - E às vezes te questiona se você não vai sair também. Aurora – Aham Considerando a importância da relação médico+pessoa, um dos quatro princípios estabelecidos pela especialidade medicina de família e comunidade no Brasil (Lopes e Dias, 2019), a médica busca amenizar a perda destacando que o prontuário proporciona a continuidade do cuidado. Infelizmente, instrumento tão importante costuma se restringir a armazenar informações técnicas e raramente algumas impressões do profissional. Isto porque existem nuances e peculiaridades da relação que são difíceis de serem incorporadas pela falta de tempo ou por serem consideradas de menor valor para outro profissional que venha a participar do cuidado. Sobre estes fatores ainda paira a censura vigente no treinamento médico, no qual tradicionalmente se enfatiza a importância dos aspectos clínicos e técnicos em detrimento de aspectos subjetivos* (Engel, 1977). * Para exemplificar, no quarto ano da graduação atendi uma senhora de meia idade que morava sozinha, parecia triste, de poucas palavras. Naquele roteiro típico de um estudante da graduação, acabei perguntando um pouco mais e soube que ela tinha um gato. E nessa observação merece o adendo de que, como graduado, existe tendência a se firmar mais na chamada objetividade da história, traduzida por sintomas e circunstâncias. Ao discutir o caso com o supervisor eu me concentrei, conforme ‘a bússola biomédica’, nos aspectos clínicos, em buscar um diagnóstico para em seguida propor um tratamento. Foi então que o supervisor me perguntou sobre o nome do gato. Fiquei aturdido por alguns segundos. Quando ele quebrou o silêncio e esclareceu: ‘o gato deve ser muito importante para ela, se você souber e anotar o nome do gato, na próxima consulta poderá perguntar por ele na próxima consulta e, quem sabe, contribuir para seu tratamento’. Tendo adotado essa sugestão para minha carreira, hoje compreendo que se tratava daquilo que Balint (1985) chamou de ‘doctor as a pill’, o efeito que o profissional pode provocar dentro da relação. Passadas algumas décadas, a relação se deteriorou e a medicina brasileira chegou na era da judicialização da prática médica na qual os profissionais passaram a conviver com o 127 A MFC, Alice, enquanto preceptora de estudantes ou residentes de MFC, precisa se basear nesse registro quando atende ‘seus’ pacientes: “(...) mas todos [casos atendidos] passam comigo, então os pacientes entendem que eu sou deles, né, que eu sou a médica deles, ne? ...alguns passaram algumas consultas só comigo, então eles tiveram, vamos dizer, aquele momento comigo,[então simula a fala de um dos pacientes] ’não eu vou atender com a minha médica’, e agora não, eles são atendidas com outras pessoas, mas no final de toda a consulta, eu vou”. Na sua fala, destaca que, pelo fato de já ter atendido a maioria das pessoas que vêm ao Centro de Saúde, sua presença momentânea no consultório seria suficiente. Interessante observar como enfatiza que a relação profissional se mantém apesar de não estar presente. Refuto se, diante da alta demanda, seria possível comparecer a todas as consultas e se a breve presença é suficiente para a pessoa atendida. Esta preocupação se revela no comentário de Alberto, 53 anos, que foi atendido por esta médica apenas uma vez: - Então tu deixa, tu vai consultar tu vê que é totalmente diferente entendeu a abordagem dele [estudante] contigo, paciente com o médico, e ela fica na outra sala fazendo outro atendimento, aí você fica naquela...‘será que ela [a médica], está ali [ao lado]?’, tu vê que tem perguntas que ele faz , que tu não fica à vontade assim entendeu?... E- Uhum. Alberto- Aí ele coloca tudo no sistema, aí na hora de fazer o medicamento a doutora vem e tal, [paciente simula frase da médica] ‘Alberto, eu estava aqui, tem muita gente [para ser atendida]’, [Alberto complementa] mas deveria ficar junto com o profissional, né... a gente não se sente seguro. Alberto, como a maioria dos homens que consulta, não conhece o fluxo de atendimento, o trabalho em equipe, as circunstâncias de funcionamento do centro de saúde. Provável que não tenha sido orientado pela equipe pois dí viria a saber que caso a preceptora comparecesse a todas as consultas, o atendimento de sua agenda seria interrompido várias receio e até ameaça que seu registro em prontuário possa vir a ser a ser alvo de interpelação judicial. 128 vezes ao dia. Este aspecto é de grande relevância para a relação assim como para o adequado treinamento em serviço dos alunos do curso de medicina e residentes da especialidade. Enquanto isso, outros homens se mostraram mais receptivos ao lidar com estagiários, sejam estudantes de medicina, sejam residentes da especialidade: Amadeu- Eu fico bem tranquilo, porque eu sei que tem o médico ali supervisionando, né, que discute o diagnóstico, que discutem o diagnóstico tudo entre eles, né, aí pra mim isso é bem tranquilo. Angelo - É, porque o residente também ele quer ir mais a fundo, porque ele quer mostrar serviço. Como síntese interpretativa desta categoria destacou-se o fato de que a APS tem como seus atributos essenciais a atenção ao primeiro contato, a integralidade, a coordenação do cuidado e a longitudinalidade e, como atributos derivados, a orientação familiar e comunitária e a competência cultural (Starfield, 2002), sendo esta considerada característica central e exclusiva da APS (Cunha e Giovanella, 2011). De acordo com os postulados da Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2012), “(...) a longitudinalidade do cuidado pressupõe a continuidade da relação clínica, com construção de vínculo e responsabilização entre profissionais e usuários ao longo do tempo e de modo permanente” (p.21). Na literatura, Haggerty et al. (2003), após extensa revisão de documentos com subsequente discussão do tema com profissionais de diversas áreas explorando diferentes cenários, definiram a continuidade como a forma pela qual pacientes vivenciam a integração de serviços e sua coordenação. Os autores concluíram que para todas as especialidades foram identificadas três dimensões de continuidade. A primeira diz respeito à continuidade relacionada à informação quanto ao conteúdo e registro dos eventos, seja focado na doença ou na pessoa afetada. A segunda dimensão seria de gerência (management), especialmente para casos complexos que contam com diferentes profissionais envolvidos, uso de protocolos compartilhados e flexibilidade visando adaptar o cuidado às necessidades individuais. E a terceira dimensão, que será mais detalhada ao longo deste 129 trabalho, a continuidade relacional que se baseia na relação terapêutica entre paciente e um ou mais profissionais de saúde baseada no conhecimento acumulado sobre as preferências do paciente e circunstancias que raramente são registradas de maneira formal e confiança interpessoal baseado na experiência do cuidado ocorrido no passado e expectativa positiva quanto a competência no futuro (Guthrie et al., 2008). Este aspecto da continuidade é de grande valia na APS, na geriatria e na saúde mental, entre outrasespecialidades que prezam pela longitudinalidade. A ênfase em cada uma dessas dimensões depende do tipo de cuidado e ‘setting’ de atuação. Saultz (2003), outra referência nesse tema, diferiu do grupo de Haggerty ao destacar a continuidade longitudinal que trataria da linha do tempo num determinado serviço de saúde e denominando a continuidade relacional como interpessoal, sendo esta de maior aplicabilidade para o presente estudo. Sua extensa revisão do tema identificou maior satisfação do paciente de diversas faixas etárias, inclusive gestantes, quando a continuidade interpessoal estava presente. Gray et al. (2003), por sua vez, identificaram forte evidência entre a continuidade relacional e adoção de práticas preventivas, aderência a tratamento e aumento da satisfação com o cuidado. A importância da continuidade se dá na medida em que a sequência de consultas fomenta o vínculo, base para tecer a construção da relação e, com isso, a adesão a um plano de cuidado. Vale deixar claro que, considerando as idiossincrasias das relações humanas, essa sequência não costuma se dar de forma linear e sem obstáculos, porém estes fazem parte do processo de construir a relação. A revisão da literatura traz alguns estudos que avaliaram motivos priorizados pelas pessoas atendidas na APS. Baseados em vinhetas de consulta hipotéticas enviadas pelo correio. Respondentes indicaram que o conhecimento técnico e relacionamento continuado superavam a importância de abordagem centrada na pessoa (Cheraghi-Sohi et al., 2008). Na Dinamarca, pesquisa qualitativa com 22 pessoas, sendo 12 com acompanhamento regular com médico(a) de família e 10 que não faziam 130 acompanhamento regular indicou que não bastaria ter acompanhamento regular, mas que o paciente se sentisse respeitado e lembrado pelo médico(a), isto é, o valor da continuidade interpessoal precisava ser combinada com o reconhecimento da pessoa. (Frederiksen et al., 2009). Por sua vez, Rubin et al. (2006) estudaram as variáveis que influenciam decisão em consultar em relação a facilidade de acesso, rapidez da marcação da consulta e escolha do profissional. A partir da observação realizada por 1153 pacientes, os autores concluíram que para aqueles com doença crônica, ser atendido pelo seu médico regular era 7 vezes mais importante que agendamento antecipado em um dia; mulheres aceitavam esperar por mais dois dias e idosos por dois dias e meio. Estes estudos colaboram para a reflexão de aspectos considerados na tomada da decisão em consultar e a importância aferida pelos pacientes quanto a continuidade do cuidado. No Brasil, dos Santos et al. (2018) esclarecem que continuidade do cuidado, longitudinalidade ou vínculo longitudinal são denominações de sentidos semelhantes, tendo verificado que são utilizados muitas vezes como sinônimos. Quanto ao vínculo, segundo a Política Nacional de Atenção Básica, “(...) consiste na construção de relações de afetividade e confiança entre o usuário e o trabalhador da saúde, permitindo o aprofundamento do processo de corresponsabilização pela saúde, construído ao longo do tempo, além de carregar, em si, um potencial terapêutico” (Brasil,2012,p.21). No sentido de aprimorar as ações da APS, o avanço da política de Humanização no SUS (2004) requer o aprimoramento de seus princípios que poderão fortalecer o vínculo alicerçados na continuidade do cuidado (Ayres, 2004). Por sua vez, a medicina de família e comunidade aplica diretrizes que convergem e potencializam os atributos que norteiam a APS. A partir da implantação da ESF em 1994, os serviços de saúde desenvolveram ações que vieram a ser mensuradas em relação aos conceitos acima discutidos. Nesse sentido, Mendoza-Sassi e Beria (2003) realizaram estudo entre indivíduos acima dos 15 anos e idade na cidade de Rio Grande, RS, o qual revelou a prevalência de médico de referência entre 131 37,4% dos entrevistados. Os fatores associados a continuidade interpessoal na atenção à saúde foram sexo feminino, aumento da idade, rendas familiares per capita mais elevadas, plano de saúde privado, relato de doença crônica e auto percepção quanto à saúde classificada como ruim. Em 2008, estudo semelhante realizado por Rosa Filho et al. (2008) com população acima dos 20 anos de idade em Pelotas, RS, a prevalência de continuidade interpessoal foi de 43.7%. Fatores associados foram sexo feminino, idade mais elevada, maior renda, ter consultado no ano anterior, presença de doença crônica e consulta no sistema privado. Ter se consultado no último ano permaneceu associado significativamente à continuidade interpessoal na atenção à saúde. Entre aqueles que consultaram numa unidade básica de saúde, as mulheres tiveram duas vezes mais continuidade interpessoal na atenção à saúde do que os homens. Grupos com maior vulnerabilidade, denominados como baixa renda ou usuários do sistema público de saúde mostraram menor prevalência de continuidade de cuidado. A continuidade também foi estudada em nível mais abrangente a partir de um estado federativo por Kristjansson et al. (2013) que investigaram os fatores associados a continuidade relacional em atenção primária entre diferentes tipos de prática (serviços de saúde), na província de Ontário, Canadá. Quanto ao perfil dos respondentes, confirmou-se outros estudos que apontam que a continuidade de cuidado está mais associada (presente) entre pessoas mais idosas ou com doenças crônicas. Por outro lado, pessoas com saúde mental debilitada, vivendo na área rural, maior nível educacional, que tinham emprego ou não tinham médico/enfermeira que o acompanhassem relataram menor índice de continuidade do cuidado. Quanto aos profissionais, aqueles que estavam formados há mais tempo, possuem maior número de pacientes em acompanhamento continuado. Em relação aos tipos de prática, aquelas que ofereciam menos de 24h/semana de plantão ou não abriam nos finais de semana apresentavam menor índice de continuidade do cuidado. Os autores identificaram mudança no perfil dos serviços de saúde da família no Canadá na última década com a formação 132 de redes de atenção (denominada ‘Family health networks’) substituindo paulatinamente as clínicas onde atuavam médicos (as) sem estrutura ampliada de recursos humanos, denominadas ‘solo pratice’ (contam com apenas um (a) MFC). O estudo mostrou que nos serviços com menor número de profissionais, a continuidade inter- relacional era maior. Por conta disso, eles anteveem que esta dimensão irá sofrer na medida em que a tendência para atuação em clínicas maiores, onde o cuidado é compartilhado, irá estimular o cuidado de forma menos personalizada. Este questionamento já havia sido aventado por outros autores no Reino Unido na década de 1990 quando foram iniciadas mudanças no sistema de saúde daquele país (Baker, 1997 e Freeman et al, 2003). Em relação à queixa dos entrevistados quanto à troca de médicos, denominada na literatura como ‘rotatividade’, Chiavenato (2000) a definiu como ‘(...) fluxo de entrada e saída de trabalhadores, ou melhor, a flutuação de pessoal entre uma organização e o seu ambiente’ (apud Sancho et al., 2012, p.432). Esta questão tem sido percebida como fator debilitante na busca da integralidade visando solidificação de APS qualificada e retrata a precariedade para fixar a mão de obra em decorrência, entre outras razões, das diversas formas de contratação. Sancho et al. (2012) alertam que não há um ponto de corte que indique o valor ideal, pois fatores internos e do mercado de trabalho dificultam análise mais substancial. A fim de superar as limitações previamente encontradas, foi utilizada a Taxa Líquida de Substituição modificada a partir do estudo de Campos e Malik (2008), que foi aplicada no ambiente da ESF. O índice geral de rotatividade na APS foi medido trimestralmente e ficou entre4,3 e 7,4, o que foi considerado aceitável. Contudo, a inclusão de setores como controle de zoonoses, laboratório e farmácia distrital prejudica a interpretação do dado. A outra limitação, quanto a rotatividade dos médicos especificamente, foi o não isolamento dos médicos da ESF em relação às demais especialidades. Quanto a forma de contratação, ficou nítido o papel do contrato administrativo sobre a rotatividade, pois aqueles vinculados nesse formato revelaram índice considerado crítico (42%). Por fim, o fator distância da 133 região central foi relevante, pois o distrito sanitário mais afastado apresentou índice de rotatividade de 12, 6%. Giovani e Vieira (2013) realizaram revisão bibliográfica sobre continuidade do cuidado e rotatividade de profissionais na qual citam estudo de Rodrigues, Pereira e Sabino (2013) relativo à cidade de Santo Amaro da Imperatriz (SC) com índice de rotatividade de médicos na ESF de 44%, considerado bastante crítico. Por outro lado, ao estudar a permanência dos médicos no município de Cachoeirinha (RS), localizada na grande Porto Alegre, Panni (2012) identificou que está se dava em função da infraestrutura das unidades, suporte das redes secundária e terciária, especialmente no que tange ao acesso a recursos diagnósticos, e salários Cunha e Giovanella (2011) indicam que para a fixação dos profissionais nas unidades, entre outras medidas, seriam necessárias a oferta adequada de serviços e estimular sua capacitação, sendo o investimento na educação permanente em saúde corroborado por Ceccim (2005) considerando que “(...) sua porosidade à realidade mutável e mutante das ações e dos serviços de saúde é sua ligação política com a formação de perfis profissionais e de serviços” (p.162). Por sua vez, Sancho et al. (2012) indicam que na medida em que os profissionais se fixam no território possibilita a melhoria da qualidade da assistência em função da formação de vínculos entre os profissionais assim como com os usuários e comunidade. Por conseguinte, o investimento na formação e aprimoramento profissional irá potencializar os resultados desejados por uma APS qualificada. Naquilo que tange a graduação do curso de medicina, a mudança das diretrizes curriculares nacionais é relativamente recente (Brasil, 2014). Desde então, a carga horária e exposição prática aos fundamentos da APS passou a ocorrer do 1o. ao 6º. Ano, entre outras alterações. Na medida em que efetiva repercussão para o mercado de trabalho possa ser estimada em 10 anos, a ênfase na educação permanente dentro da ESF se torna ainda mais indicada. Enquanto isso, a força de trabalho ainda se encontra 134 majoritariamente composta por profissionais formados no modelo hospitalocêntrico e sem experiência ou interesse pela atenção primária a saúde. Segundo Rodrigues, Pereira, Sabino (2013) em seu estudo sobre rotatividade de profissionais na ESF de Santo Amaro da Imperatriz, SC, identificou-se que metade não tinha capacitação para atuar na ESF. Mudança tão acentuada no modelo de formação exige significativa adaptação dos docentes para implementar as mudanças propostas pela Diretriz Curricular Nacional (Vieira et al., 2018). Além disso, cabe registrar que a maioria dos campos de estágio situados nas UBS do SUS não foram planejadas para receber os (as) alunos (as) assim como as equipes apesar de seu empenho para corresponder às necessidades dessa nova realidade*. Ademais, parcela significativa dos profissionais de saúde envolvidos não foi exposta às melhorias significativas dos indicadores de saúde a partir da implementação da ESF o que limita sua capacidade em reverter expectativas negativas e até preconceitos arraigados acerca da APS. Por sua vez, à medida que ela se solidifica tem conseguido reduzir taxas de hospitalizações desnecessárias, reduzir desigualdades socioeconômicas na saúde, com impacto ainda maior para pessoas portadores de doenças crônicas (Macinko e Mendonça, 2018). Estudo de Dourado et al. (2016) realizado com pessoas nessa condição refletiu o avanço da cobertura da ESF, na medida em que elas declararam ter a ESF como fonte usual do cuidado na mesma proporção que a população coberta por plano privado, 80%. Por outro lado, vale destacar estudo realizado por Bocolini et al. (2016) acerca das pessoas que não conseguiram se consultar devido à falta de um médico ou outro profissional em 49% das ocasiões. Diante do exposto, este cenário de instabilidade da presença do médico (a) nas equipes ou de profissional sem a formação adequada ainda deve perdurar por bastante tempo, considerando as diversas configurações de funcionamento da ESF nos milhares de municípios e a limitada capacidade de adaptação na esfera acadêmica. Aos gestores caberá * Portanto, a importância da educação continuada para que possam debater as nuances do campo com alunos (as) oriundos (as) de realidade educacional e social diversa. 135 organizar os recursos humanos que venham a acelerar o processo de inserção de novos (as) médicos (as) formados (as) a partir de modelo efetivamente centrado na APS para contribuir aos avanços alcançados pelo fortalecimento da ESF desde sua implantação. A partir da primeira consulta, que implica assumir que se precisa de ajuda, o profissional deve estar atento à leitura corporal e escuta para apreender indicativos que possam favorecer a construção do vínculo. De acordo com Haggerty et al, (2003), a continuidade do cuidado promove “(...) a afiliação do usuário a um profissional de saúde, envolvendo um contrato implícito, um sentido de lealdade e responsabilidade clínica” (apud Santos, Romano, Engstrom, 2018, p. 02). Vínculo implica na construção de relações de afetividade e confiança, dois aspectos inerentes às relações humanas que são mais delicados para os homens em geral, pois costumam se submeter a padrões de uma masculinidade hegemônica que os conforta como membro de um grupo, mas que os limita por requerer que mantenha o código de comportamentos considerados adequados para o homem (não chorar, não reclamar, não pedir ajuda, correr riscos desnecessários, entre outros). Cabe ao profissional, demonstrar a sensibilidade de um ‘dançarino’, aqui inspirado pelo professor Talbot, médico de família e terapeuta de família no Canadá que participou diretamente da formação de uma geração de médicos em várias cidades brasileiras na década de 1990. A relação enquanto um par de dançarinos desenvolve uma linguagem na qual se percebe o momento para o leve toque assim como o tônus adequado que permita sugerir mudança de direção ou ler o desejo do(a) parceiro(a). As palavras que podem confortar sem serem invasivas ou evidenciarem sinal de fraqueza. Observar os movimentos que indiquem o intuito de aproximação ou, pelo contrário, de se manter uma distância confortável. Essa dança de corpos e mentes, quando bem executada segundo parâmetros de ‘tempo e timing’, podem fortalecer a relação e o alcance a proximidade necessária para alcançar movimentos plenos e graciosos ou mais enérgicos e desafiadores. Esse processo requer o estabelecimento da confiança no 136 parceiro(a) a partir da abertura para se buscar respostas para quatro questões essenciais: quem fala (descrevendo seu momento de vida), o que fala, o que teme e o que busca. A fim de se alcançar o restabelecimento da saúde, seja física e/ou mental, a partir desse cuidadoso equilíbrio dentro da relação profissional, requer que ambos respondam a tais questionamentos. Os ingredientes para formação dessa parceria demanda, pelo menos, quatro requisitos: tempo, disponibilidade emocional, confiança e facilidade de acesso. Thom e Campbell (1997) estudaram o papel da confiança, definida pelos autores como a crença de que o médico irá fazer aquilo que é melhor para o paciente’ na relação médico paciente, que se mostrou relacionadaa satisfação do paciente. As categorias identificadas foram a compreensão da experiência individual do paciente; expressar afeto; comunicar-se clara e completamente; construção de parceria e compartilhamento de poder e demonstrar respeito e ser honesto com o paciente. Estes aspectos foram contemplados nos modelos que contemplam a centralidade do paciente no cuidado, o que foi sistematizado pelo Método Clínico Centrado na Pessoa (Stewart et al., 2014), já discutido anteriormente. A partir dessa compreensão sobre a confiança na relação, a frequente troca de médico inviabiliza que ela se estabeleça. Além disso, reduz a oportunidade para que o homem venha a se abrir antecipando que a parceria não é sólida, não irá perdurar como suspeitou Vinicius, um dos entrevistados. Não obstante termos experiências exitosas de parcerias bem estabelecidas tanto na literatura (Bocolini et al., 2013) como também entre os entrevistados dessa investigação, Vanderlei, Vagner, Amadeu e Antunes. Este processo, decerto, não afeta apenas os homens, mas na medida em que, historicamente, eles se colocam distantes dos serviços de saúde, portanto, desconhecendo os códigos subjacentes, conforme ilustrado nas entrevistas e grupo focal, ou ainda não foram acolhidos adequadamente, 137 resulta em maior dificuldade para o estabelecimento de uma relação que se pretende sólida*. Nos casos em que o profissional se afasta da comunidade se desfaz o vínculo o que contribui para perpetuar o modelo biomédico dentro do qual o (a) MFC e a doença se tornam centrais enquanto a pessoa e os determinantes sociais de saúde e doença ficam restritos ao trabalho dos demais membros da equipe. Portanto, para que se evite tais perdas e se alcance os resultados a que se propõem dentro da ESF, compete aos profissionais e gestores orientarem suas ações e reflexões em torno do respeito e comprometimento frente a esses princípios. Em suma, a prática da medicina de família e comunidade privilegia a excelência da relação médico + pessoa e para alcançar tal objetivo necessita da atenção integral e dedicação de seus profissionais e formandos. É uma prática artesanal, forjada na rotina, no conhecimento adquirido sobre as pessoas, seus familiares, vizinhos e comunidade o que catalisa a formação do vínculo ao longo do tempo. A falta de acolhimento, demanda excessiva ou pouca clareza sobre as prioridades e possibilidades de resposta às outras demandas do serviço que se intensificam na medida em que ocorre a troca frequente de médicos (as) dificultam e até impedem que se alcance os objetivos a que se destina a ESF. 5.5 Vínculo e relação médico + pessoa 5.5.1 Tempo satisfatório, mas atenção do médico dividida Esta categoria se destacou pelo que se admite quanto ao tempo de consulta no SUS, tema sobre o qual portaria do MS, de 2002, preconizava 15 minutos, mas que foi revogada em 2015. No Brasil, estudos realizados entre 2004 e 2007 registraram consultas com duração entre 5 e 8 minutos. * Essa análise irá ser estendida a outras seções desta tese onde maior detalhamento acerca das perdas e ameaças para a formação do vínculo serão apresentados. 138 Enquanto no Reino Unido a duração média é de 9 minutos, países escandinavos entre 15 e 22 minutos e Portugal 15 minutos de duração (Irving et al., 2017). Entre os atributos derivados da APS, encontra-se a competência cultural, sendo este de grande relevância para a compreensão da relação médico+pessoa pelas expectativas associadas à consulta em diferentes países*. A partir da perspectiva do trabalho em saúde, e aqui particularmente dos médicos, a discussão sobre rotatividade dos médicos e o reconhecimento da síndrome de ‘burnout’ tem sido recorrente. Em Aracaju, por exemplo, Silva et al. (2015) detectaram prevalência entre 6,7% a 10,8% dos MFCs, afetando preferencialmente os mais jovens, de acordo com o Inventário de Maslach. Além disso, 54% dos profissionais apresentavam risco moderado a elevado para desenvolverem a síndrome. Morelli et al. (2015) realizaram revisão sistemática de 18 trabalhos publicados entre 2001 e 2013, sendo que nenhum deles com a população brasileira, detectou que a prevalência de ‘burnout’ entre médicos (as) da APS variou de 34,8% a 85,7%. Quanto a prevalência das dimensões de ‘burnout’, estas variaram entre 19 a 55,5% para alta exaustão emocional: de 15,7% a 54% para alta despersonalização e de 16% a 45,1% para baixa realização pessoal. Diante desse quadro, não surpreende que a geração de MFCs que sucedeu aquela dos formuladores da política da ESF passem a considerar a desistência de atuar no setor público onde as condições de trabalho costumam ser precárias e as pressões da demanda costumam ser muito intensas. Afinal, a realidade socioeconômica do país mudou consideravelmente desde a implantação da ESF que foi pautada e abraçada por profissionais que viveram período de acesso limitado da população sob a premissa de que saúde não era direito de todos. Atualmente, não só a * Tendo morado no Canadá por 10 anos onde fiz estágio observando consultas com médicos de família numa instituição acadêmica, percebi que em significativa parte das consultas, o ‘dito’ paciente faz uma consulta no sentido de checar opiniões, pontos de vista técnicos do problema trazido. Enquanto na minha experiência clínica de 18 anos, no Brasil, muitas pessoas procuram e descortinam um mundo de expectativa e dificuldades das mais diversas ordens que, pretensamente os (as) médicos (as) precisariam adequar a uma janela (tempo de consulta) de 15 minutos. 139 população cresceu e incorporou o direito, como também outras classes sociais que não podem arcar com os gastos com planos de saúde e vieram para as UBS reivindicar seu direito. Além disso, outro segmento da população buscou assistência através do pagamento de consultas em clínicas populares ou nos planos de saúde cujo valor da mensalidade é reduzido de onde levam imensas listas de exames complementares de necessidade duvidosa, vindo até a UBS para ‘apenas transcrever para o formulário de exame do SUS’. Portanto, o que esperar do profissional qualificado e competente que acreditou que a Medicina praticada no setor público não seria mais aquela descrita por Giovanella e Mendonça (2012), num período marcado pela “(...) concepção de atenção primária como cesta restrita de serviços básicos selecionados, voltados à população em situação de maior pobreza, (que) passou a ser hegemônica” (p.582). Essa concepção, encampada pelo Banco Mundial, foi denominada de APS seletiva, mas outras correntes nos anos 70 a traduziram como a ‘medicina de pobre para pobre’ (Testa, 1992). Como o profissional deveria fazer num tempo exíguo para propor uma discussão sobre evidências dos exames e medicamentos prescritos ou simplesmente ‘tocar ficha’, como se diz no jargão médico, e inchar as filas de exames e procedimentos de uma rede limitada pela contenção de gastos. Entre os entrevistados desta pesquisa, residentes em Florianópolis, cuja APS se encontra acima da média nacional quanto a tecnologias aplicadas na ESF, ao invés de crítica ao tempo reduzido das consultas, ganhou destaque a qualidade da atenção do profissional, contudo dividida com diversas atividades simultâneas, como outros atendimentos, supervisão de casos ou até mesmo tarefas administrativas. Vágner, 55 anos, faz tratamento por problema psiquiátrico e endócrino há pelo menos 20 anos e prefere se consultar com médico de família e psicóloga da ESF, mas também utiliza serviço privado. (...) todos eles me tratam super bem, não tem pressa na consulta, a minha consulta é mais longa do que um consultório particular, só que às 140 vezes a gente está falando e a pessoa não está ouvindo preocupada com alguma coisa que está lá fora acontecendo. Virgílio, 36 anos, por sua vez, reconhece a intençãoda abordagem integral feita pela medicina e família, enquanto aponta para a pressão da demanda assistencial durante sua consulta. “(...) ao mesmo tempo que eles estão ali tentando te dar uma atenção mais pessoal e tal, tem que se rápido porque já tem gente esperando pra ser atendido e tal, né, então um jogo assim, duplo assim, pra se virar. Ângelo, 58 anos, que não costuma consultar médico (a) de família, e que na maioria das vezes utiliza serviços privados explicita a postura médica que procura na consulta, apoiada pelos demais presentes ao grupo focal: “(...) o paciente quer o que, quer atenção do médico, assim não é, tu chega lá com algum problema, ela quer ver tu ali olhando na cara dele ali e te explicando: ‘olha isso e isso, e isso, vamos fazer um exame, assim, assim, assim, não precisa se preocupar e tal’, o paciente quer isso do médico... Eu, sinceramente, se eu estou ali com médico ali eu gosto deles voltado pra mim, com atenção total pra mim, porque eu estou expondo pra ela o meu problema, atender o telefone, bater na porta várias vezes... Eu não acho confortável [essas interrupções] entendeu, eu acho que tem que dar atenção pra mim ali naquele momento quando eu estou na mesa dele... Antônio - Esse é o pensamento dominante, a maioria das pessoas pensam assim? Alberto - Exatamente. No seu depoimento, merece destaque, pelo menos, dois aspectos: a necessidade da atenção total na escuta de seu problema pois venceu suas dificuldades para revelá-lo. E o outro aspecto foi o uso da expressão ‘na mesa dele’, que me remete a entrega, a permissão para se aproximar, para ser examinado. Diante de tamanha exposição, espera-se, portanto, atenção total, sem dispersão com outras situações, mesmo que envolvam pessoas em situação similar a dele. Desta forma, os homens apontam para suas barreiras pessoais até que conseguem compartilhar suas fragilidades, sua angústia diante daquilo 141 que lhes será dito e a repercussão em suas vidas. Portanto, para compensar esse esforço, esperam que lhes seja garantida dedicação. Gomes et al. (2011) trazem de sua pesquisa com 201 homens realizada nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Norte e Pernambuco os quatro aspectos que buscam na consulta médica: atendimento onde o tempo entre a procura e efetivação da consulta seja o menor possível, que seja atencioso; ancorado na comunicação; e finalmente, que seja resolutivo. Diante dessas colocações, Rildo, MFC que aprimorou seu olhar clínico ao acompanhar a comunidade por quatro anos e meio, destaca a importância de que o profissional se atente que está sendo observado durante a consulta. Perceba que não basta realizar sua sequência de perguntas e a propedêutica aprendida em seu treinamento. O homem percebe nossa linguagem corporal. Lembrar que o homem não está acostumado ao ‘nosso modo‘ de funcionar (várias tarefas além da consulta)... Avisar que vai deslocar atenção (tela do computador/ responder sobre algo fora que acontece fora da consulta). Não interromper ele de imediato, refletir um pouquinho sobre a ambiência, essa coisa da interrupção, do barulho. Ciente que realiza várias tarefas ao longo do encontro, ele recomenda que os (as) colegas explicitem quando precisa desviar sua atenção, mesmo que brevemente, para não prejudicar o vínculo que busca estabelecer. Chama atenção, neste caso, achados do estudo de Costa e Azevedo (2010), que aponta que a relação interpessoal é codependente da comunicação, podendo ser desenvolvida por meio da linguagem verbal e não verbal, que atuam em conjunto e permeiam todo o processo de interação entre os indivíduos. Aurora, MFC há três anos em outro Centro de Saúde, salienta como os demais acontecimentos paralelos prejudicam sua atenção e destaca o risco de o homem interpretar sua reação como se desconsiderasse a importância daquilo que é trazido na consulta. Ela vai além e corrobora a preocupação de Ângelo no tocante às dificuldades que o homem enfrenta para abordar aquilo que o incomoda e ao impacto sobre a adesão ao que 142 venha a propor em função dos problemas extra consulta que interferem na sua prática. “(...) essas preocupações que acontecem extra consultório isso é bem importante assim, muitas vezes eu me pego assim, né, com muita preocupação lá fora, consulta foi tão perturbado, que aí no final ele conseguiu ter coragem de falar mesmo o que trouxe a consulta, então eu acho que isso é uma coisa que atrapalha muito a questão da adesão, né? Como se eles falassem: ‘ah tem tanto problema, tanta situação mais urgente assim que talvez o meu problema não seja tão importante”. Acerca da aparente (des) importância do motivo de consulta, Vagner ratifica essa impressão da MFC Aurora: É isso mesmo, é isso mesmo que a gente pensa, a gente pensa ‘não o que a gente está falando aqui não é importante’, exatamente isso, Então eu compreendo perfeitamente isso [interrupção], eu compreendo, mas então é mais simples dizer isso: ‘um minuto por gentileza eu preciso dar uma resposta... não que o senhor não seja importante, mas eu preciso resolver isso aqui agora’, ‘encaminhei vamos lá, desculpa, pronto continuou’...a gente se sente valorizado. E Vagner, 55 anos, aponta o equívoco quando o profissional tenta conciliar as várias tarefas: É, o fingir que está fazendo isso é que o principal,’ eu vou fingir’... Nesse sentido, Vagner destaca a perda da confiança no profissional já que a linguagem corporal demonstra que ele(a) está dividido entre se dedicar sua atenção a quem traz um problema e o que ocorre fora do consultório. Esse é tema sensível aos homens no seu percurso entre decidir se consultar e vir a confiar no profissional, o qual está ciente do risco e tenta contornar as dificuldades da logística do Centro de Saúde quando muitas vezes está sozinho ou responsável por aluno e/ou médico residente, simultaneamente*. * As interrupções de consulta e múltiplas tarefas exercidas ao longo do dia alcançou o treinamento dos residentes. Em 2015, tive oportunidade de participar de uma sessão de PBI (‘Problem Based Interview’) na qual um experiente MFC preceptor decidiu compartilhar uma 143 A MFC Alice, compartilha a angústia de se dividir entre as várias tarefas simultâneas e admite que outros membros da equipe interrompem sua consulta com certa regularidade, o que ela classifica como intromissão: Gostaria de me explicar pra cada paciente [sobre as interrupções da consulta], muitas vezes eu sei que eles [membros da equipe] já estão na porta me esperando, p.ex., ‘, eu falo ‘olha desculpa as pessoas vão se intrometer’ Concluímos essa temática ressaltando que as opiniões escolhidas sintetizam aspecto crucial para a relação médico + pessoa. Os homens reconhecem a sutileza para se manter um diálogo para o qual se vencem barreiras pessoais para explicitar suas preocupações e medos, enquanto os profissionais se estressam para conciliar sua função de médico-preceptor na atenção a diversas demandas simultâneas. Torna-se claro o prejuízo para o ganho da confiança daquele que é atendido, risco para perda de seguimento e impacto na adesão são algumas das consequências admitidas. No caso específico da atenção à saúde dos homens, cabe destacar que os profissionais podem não ter uma segunda chance de corrigirem problemas surgidos desse disfuncionamento. Por terem larga experiência no atendimento das mulheres, os profissionais sabem que, em geral, estas se mostram mais compreensivas ou tolerantes, por menor expectativa ou ainda pela própria experiência pessoal no manejo de várias tarefas simultâneas e maior exposição às dificuldades da equipe no manejo das diversas demandas. Portanto, seria estratégico atuar em duas frentes simultâneas: a educação permanente visando habilidades de comunicação para médico(a)s atuando na ESF; assim como para os alunos,o que já demonstrou resultados conforme relato de Andrade et al. (2011). consulta gravada em vídeo na qual foi interrompido diversas vezes tanto na forma presencial, quando um membro da equipe entrou em seu consultório quanto virtualmente através das inúmeras chamadas via Messenger na tela do computador. Para reduzir a interferência, ele passou a tirar o som do sinal emitido, mas ainda assim fica nítida na gravação as oportunidades em que desvia o olhar para as mensagens recebidas a cada poucos segundos. O grupo formado por alunos em estágio MFC, residentes em MFC e seus preceptores se surpreenderam com a banalização quanto a esse evento na prática clínica, o desgaste para profissional e pessoa atendida e discutiram como lidar com as interrupções. 144 5.5.2 A consulta para além da abordagem técnica A experiência da consulta médica despertou em vários homens a percepção acerca das diferenças de abordagem usada pelos médicos de família em relação à prática dos especialistas focais. Eles destacaram a abrangência daqueles no tocante ao lidar com os problemas de saúde no dia a dia e o reconhecimento de que a atuação médica não se limita a diagnóstico e tratamento de doenças ou eliminar sintomas. À vista disso, Amadeu, 34 anos, descreve a angústia de se descobrir soropositivo, quando o medo e o isolamento podem se tornar nocivos ao enfrentamento daquela etapa do cuidado com sua saúde: “(...) o suporte não só médico, emocional uma coisa assim, você saber que tem uma pessoa que está preocupada contigo, que quer saber como você está, toda vez que eu vim aqui, sempre. Eu sei que para o senhor isso é normal, né? Mas pra mim isso é muita coisa, que a pessoa quer saber meu peso, o que eu estou comendo, né? Aí só uma coisa que ela me perguntou se a minha família sabe. A minha família não sabe. Eu só pessoal da saúde, só médicos, e agora um advogado do trabalho, né? E o contador, porque eu tinha uma empresa no meu nome, e contador tinha que saber tudo também. Então três pessoas que você abre o seu coração: o seu contador, seu médico e seu advogado, pronto. Só profissional, gente, a minha família lá no Nordeste não sabe... Vilson, 57 anos, apesar de acostumado a ser acompanhado por especialistas focais que tratam de órgãos ou sistemas específicos, apontou que, na sua experiência, alguns profissionais não demonstraram a devida preocupação com a pessoa, isto é, se limitaram a monitorar o funcionamento dos órgãos através de exames complementares. (...) a gente nota assim é que não só lá [clínica conveniada] a maioria dos médicos hoje em dia eles só tratam a doença eles não tratam a pessoa, muitas vezes a pessoa está ali, eles só olham ou nem olham, só anotam as coisas, nem olham pra pessoa, ‘ah deu, entendeu?’ Então, às vezes, a pessoa está com outro problema ou qualquer coisa, mas ele nem puxou assunto. 145 Vilson complementou relatando a experiência que teve numa dessas consultas com o urologista: V - Não, lá não, o que aconteceu que eu não gostei foi um dos urologistas que eu estava lhe falando ali, não sei por que cargas da água naquele dia eu estava bem cansado assim, inclusive cochilei na cadeira de espera, porque demorou um pouco e quando ele me chamou ele perguntou minha idade. Daí eu olhei pra ele, daí ele simplesmente disse assim ‘pra mim, você aparenta mais idade que você tem’. E- Logo no início da consulta? V - De cara, eu estava pô, bem pra baixo, com sono mesmo, aquilo me arrebentou,[tom de desabafo] ‘Pô eu vim aqui pra... nem falei o que eu precisava pra ele’, que era a parte que estava a testosterona baixa, aquele negócio todo. Saí praticamente arrasado dali, porque pô... E- E era a primeira consulta com ele? V - Era, é que nem eu disse, mudava o médico diferente... E- E o senhor não voltou nele? V- Não, nunca mais, nem disse o que eu queria. André, 37 anos, homossexual, viveu experiência na qual foram solicitados repetidos exames de HIV na vigência de infecções de garganta de repetição. Ciente que suspeitavam de ser soropositivo, comenta a abordagem: (...) não deixou uma lembrança negativa em relação a essa coisa do pedido do exame...Ela [MFC] pediu diferente assim, teve um tratamento diferente assim, acho que foi mais, eu acho que pelo fato de ela estar mais, dela investigar mais, de ela ter essa relação mais assim de investigar a vida e não só o momento pontual, eu acho que ficou mais dentro, mais encaixado fez mais sentido. Sobre essa médica, André descreveu outros aspectos positivos da relação como o fato de compartilhar aspectos de sua vida pessoal: (...) eu tinha abertura maior assim até porque ela tinha um jeito mais atencioso, mais aberto também disso, de falar um pouco da vida dela e tudo mais. Eu acho que tinha uma identificação, porque ela estava no período de pesquisa, então eu acho que até quando ela começou a investigar o caso de ansiedade ela estava falando bastante que fazia pós graduação eu acho que eu estava fazendo o processo seletivo do doutorado na época... então tinha um pouco de identificação, ‘estamos no mesmo lugar aqui sofrendo’, eu 146 acho que tinha um pouco disso. ... ela falou um pouco dela também, que eu achava engraçado, do tipo eu acho que ela tinha [sofrido] um acidente muito grave, e daí ela contava um pouco disso e eu acho que até quando ela indicou do psicólogo, ela falou assim: ‘ah esse centro aqui foi aonde eu me tratei quando eu tive problema na adolescência’, eu achei super legal, foi até onde eu acabei indo assim, foi onde coincidiu de ir, ...ela compartilhava também, volta e meia ela ficava doente, eu achei interessante isso também... Em comum, os homens reconheceram quão singular se torna a consulta quando incorpora uma dimensão mais afetiva, solidária, o que provocou a reflexão sobre o agente facilitador para que também compartilhem mais do que sintomas. Esse aspecto captou a atenção de Aureliano, 36 anos: [a consulta] não é somente uma questão técnica assim, também é uma questão de encontro, tanto assim, que as duas vezes que acabou o procedimento que ela estava fazendo e igual ficamos conversando três, quatro minutos a mais. Estes depoimentos subsidiam a aplicabilidade das reflexões de Engel (1980) quando propôs uma abordagem baseada em aspectos biopsicossociais inerentes ao processo saúde doença*. O desabafo de Amadeu quanto ao suporte recebido não se limitar a aspectos técnicos, mas incorporar o emocional, despertou no MFC Rildo, o seguinte comentário: Eu penso que de uma maneira geral, a gente não é estimulado, a gente como homem, uma questão cultural talvez simplista, mas assim eu penso que a gente não é muito estimulado a se colocar em relação a emoção, a dúvida, o medo, de uma maneira geral”. Enquanto a MFC, Aurora, destacou a importância do vínculo na relação médico (a) + pessoa: ‘quando tem esse vínculo estabelecido, né? Essa questão da confiança eles acabam, é achando que a gente, a gente acaba funcionando * Por sua vez, Camargo Jr. (2005), critica a justaposição desses termos que buscam aferir legitimidade a tal abordagem que considera padecer de uma fragmentação que a limita enquanto olhar sobre o processo saúde-doença. 147 como a rede de apoio na verdade. Então eles conseguem se abrir, né, e fica uma relação que com o paciente fica mais fluida assim, você consegue ser bem atendida’. Ao passo que o MFC Raul, ressaltou como o adoecimento pode revelar aspectos outrora relegados. Conseguir se conectar com suas emoções, se utilizar, se confortar com a palavra, compreensão, olhar afetuoso... Interessante perceber essa delicadeza no discurso do homem, que pode se conectar com suas fragilidades, encontrar aquilo que precisa para se conectar... Raul também examinou o impacto que o adoecimento pode gerar: Afinal, para um homem, na nossa sociedade, visto como ‘chefe de família’, reconhecer que a equipepassou a ser sua família... Talvez pela dor, pelo sofrimento, consigamos tocar nessas dimensões. Por sua vez, a MFC Alice destacou as peculiaridades da formação do médico (a) de família no que tange a escuta e suporte emocional nas diversas circunstâncias que se apresentam, que no caso de Amadeu, foi o apoio recebido a partir do diagnóstico de HIV. “a gente tenta abordar os mais diversos aspectos no homem, por saber que ele tem com o médico de família, né? Eu não sei se um especialista também faria isso. Acho que não, porque nós tivemos formação pra isso, talvez um médico mais empático, mais preocupado sim, né? Mas o médico de família tendo essa formação, pra perguntar além dos sintomas, né, aqui ele fala assim, e assim um suporte médico, não só médico, o suporte, né? ...então é o que a gente como médico de família busca, nem sempre, às vezes, numa queixa aguda, num acolhimento de urgência a gente consegue estar trabalhando esses outros aspectos. Alice ainda destaca a especificidade ao atender os homens no que se refere a não se perder a oportunidade ao atender pessoas que não costumam se consultar: Mas na medida do possível sabendo que é um homem, né, a gente sim tenta, né, mas vamos se pesar [verificar peso], [e questiona se] ele está 148 preocupado com alguma coisa, e a sua família, tenta interagir mais e buscar outros aspectos... Acerca dessas colocações, Virgílio, 36 anos, comenta: (...) minha percepção sobre o médico de família é, realmente, é essa diferença assim de ter esse olhar para além do que você de repente está levando pra ele naquele momento, para além do que de repente você está tendo como doença ou digamos aflição naquele momento, ter essa abordagem que permite permear outros aspectos, né, permite perguntar um pouco mais sobre a sua vida, sobre a sua família, sobre o lugar onde você mora, por exemplo, ... então ter realmente esse olhar que vai além, né, de começar a conhecer o meio que permeia aquele individuo ali, né, e através desse cuidado poder, né, realmente ter uma atenção mais direcionada, um cuidado melhor com aquela pessoa, eu acho que o médico de família realmente se diferencia nesse aspecto, realmente tem esse olhar mais cuidadoso mesmo, é eu acho que é uma coisa que vale a pena reforçar, porque é importante, é importante que dentro, no meio de saúde exista esse profissional com esse olhar, né? que não seja só um olhar técnico de cuidar e resolver o que paciente tem, não, é realmente ter esse olhar mais acolhedor... A aflição e vulnerabilidade ficaram expostas no relato de Vagner, 55 anos: É pesado, é pesado, mas ao mesmo tempo dependendo da empatia ou da, é, do como ele falar, né, porque uma coisa é você falar grosseiramente, e outra coisa é você não falar olhando nos olhos, né, e aí entra um, uma bifurcação aí muito séria nisso daí, porque em alguns momentos a queixa do paciente ela não é entendida, é uma bifurcação, né, ou ela é entendida, mas o profissional, às vezes, tende a fazer meio ‘en passant’ aquela coisa, dá um chute e vamos pra frente, né? E isso dificulta muito a retomada do controle do que você está precisando, né, dificulta demais isso, então nessa minha caminhada eu encontrei vários médicos que sabe... E- Não valorizaram? V - Não valorizaram, ah ‘de cabeça baixa estava, de cabeça baixa ficou’ e ‘pega uma receita e vai na farmácia’, o que eu não encontrei, aliás o que eu encontrei no médico de família, né, por todos os que eu passei eles se importam com você como um todo, né? O todo que eu digo é você, família e etc, né, então é muito importante isso, porque muitas vezes o médico consulta particular ele quer resolver o problema na hora, né, ele não quer ter uma visão mais ampla, né? E é importante isso pra nós, é importante esse acompanhamento, esse, o abraçar o paciente, a expressão 149 é essa, o ‘abraçar o paciente’, né, saber que você é único, muito embora a gente sabe que não seja assim, mas naquele momento você é único e isso é importante pra nós. Por outro lado, Aureliano, 36 anos, abordou a riqueza das situações surgidas na consulta médica. A partir dos depoimentos dos médicos, essa questão trouxe à tona alguns aspectos sobre os quais não havia refletido, em particular, a demanda oculta, conforme discutido por Modesto (2016) enquanto sinal de desencontro entre usuários e profissionais: A consulta médica tem muitas nuances, podem ser bem feitas e responder aquilo que você quer, que você precisa, ou, às vezes, que você nem sabe que precisa, mas aquela pessoa [médico/a] te apresenta alguma coisa e podem ser bem negativas quando te tratam de uma forma que você não é reconhecido, né, não é valorizado, né.. As experiências de Aureliano e Vilson reforçam as nuances presentes nas diversas camadas evidentes ou ocultas na consulta. As diversas experiências aqui relatadas ressaltam a importância da regularidade desse encontro para que se propicie a formação do vínculo que pode resultar em benefício mútuo para a díade que se forma. Na minha prática clínica, por exemplo, em inúmeras oportunidades atendi casais separadamente e até no mesmo dia quando ouvi relato de problemas familiares trazidos pela esposa, mas ignorados pelo marido mesmo após perguntar diretamente se havia algum outro problema a abordar. Acredito que isso se deva a alguns motivos, entre eles: a concepção de que a consulta médica é para se tratar de problemas de ordem física; pela crença de que são problemas íntimos que devem ser resolvidos em família ou ainda pelas raras consultas realizadas o que dificulta alterar conceitos previamente aprendidos sobre o que seria adequado abordar numa consulta. Tornou-se comum a experiência de médicos de família e comunidade que em algum momento desse encontro vêm a ouvir de homens e mulheres num misto de curiosidade e aproximação a interjeição: ‘o senhor é meio psicólogo, não é?’ 150 Diante das peculiaridades discutidas em relação a masculinidade hegemônica e o isolamento presente entre os homens, as consultas médicas podem servir como alavanca para se tratar de demandas inicialmente omitidas. Aos profissionais cabe se manterem alertas, como mencionado pela MFC Alice, pelo potencial isolamento a que os homens, em geral desprovidos de rede de apoio, se impõem na expectativa de que seus problemas possam desaparecer espontaneamente ou serem resolvidos sem que assumam efetiva participação no processo. Ragonese e Barker (2019) alertam para a cristalização dos conceitos em torno da masculinidade que muitos dos profissionais entrevistados na literatura já introjetaram como impermeável a mudanças, quase uma fatalidade ou custo associado a ser homem. Para reverter esse quadro, os autores propõem que se reconheça que muitos homens se cuidam e são parceiros no bem estar de suas famílias. Até porque, como eles destacam, o custo social e econômico do adoecimento deles termina por recair sobre suas parceiras ou parceiros. Nesse contexto, ainda é vigente o ciclo de invisibilidade do homem no sistema de saúde brasileiro (Dantas e Modesto, 2019), onde a especialidade médica que visa a compreensão de aspectos não valorizados pelas demais dentro do processo saúde e doença ainda tem pequena penetração junto aos homens em grande parte pelas limitações estruturais no funcionamento das unidades de saúde do serviço público conforme pesquisas realizadas nos últimos 15 anos, já discutidas aqui. Por outro lado, a maioria dos homens já adoecidos segue acompanhada pelas demais especialidades, seja no sistema público ou privado, que costuma enfatizar mais as doenças do que os impactos em diversas esferas sobre as pessoas afetadas, sem que eles se beneficiem da coordenação do cuidado e ações promotoras de saúde realizadas pela MFC, mas não de forma exclusiva. Assim se evita ou minimiza a possibilidade de gastos desnecessários ou uso inadvertido demedicamentos prescritos por médicos (as) de diferentes especialidades conforme se verifica entre as pessoas com várias comorbidades, com destaque para a população idosa. 151 Ainda assim, o uso de diversas especialidades por parte dos homens se coaduna com a visão imediatista de que seus corpos precisam ser consertados para voltar ao trabalho (setor produtivo) o que tem sido alimentado pelo movimento de especialização das últimas décadas (Pereira, 1979). Este percurso é apoiado no status de procurar ‘especialista em joelho’ ou ‘hipertensão’, entre tantos outros, enquanto na sociedade brasileira ainda sem tradição de Medicina Família e Comunidade, a busca de um único médico para todos os problemas soa, no mínimo, estranha. Além disso, como a penetração dessa especialidade no mercado se deu através do sistema público de saúde, esta ficou estigmatizada com menor valor de mercado, algo a que todos podem ter acesso, o que fere suscetibilidades nas classes mais abastadas. Ainda assim, como descrito anteriormente, a sociedade brasileira começa a se interessar pela atenção médica voltada para a pessoa e suas complexidades. Nesse sentido, alguns dos entrevistados como Vilson e Aureliano, refletiram sobre o atendimento ‘automatizado’, focado no órgão acometido em que não se problematiza o processo de adoecimento, o que gerou a frustração de não se sentirem efetivamente percebidos além dos sintomas manifestados. 5.6 Sexualidade e Saúde Mental: dimensões da expressão de si e do cuidado na relação médico + pessoa Antes de adentrar à discussão que remete ao convite desta tese “vamos discutir a relação”, considera-se oportuno trazer à cena outros temas que, embora não tenham se constituído como centrais (frente ao objeto de pesquisa recortado), emergiram da pesquisa de campo e se mostram pertinentes e merecedores de atenção. Ao longo das entrevistas buscamos identificar os temas que motivavam os homens a se consultar e se percebiam que teriam sido propostas condutas satisfatórias por parte dos (as) MFCs. Além disso, exploramos quais assuntos seriam de mais difícil abordagem, desde a perspectiva dos usuários. 152 Temas relacionados à sexualidade não costumam ser abordados no contexto da APS, conforme já descrito por Pinheiro, Couto e Silva (2011) e Modesto e Couto (2018), apesar do impacto sobre a qualidade de vida, como descrito por Vanderlei: V - É porque assim Guilherme, hoje depois que aconteceu isso comigo [infarto] eu já não sou mais aquele homem que eu era, então essa parte eu converso muito com ele [MFC] sabe, até nós temos fazendo um negócio aí pra poder... E- Usar algum remédio alguma tentativa assim? V - É não sei o que ele vai fazer... E- Está pensando em alguma coisa. V - Está pensando em alguma coisa, porque é uma coisa, eu falei pra ele: ‘doutor o cara já não faz nada, o cara já fica o dia todo, como diz os outros coçando’, tem que ter alguma coisa pra dar uma animação para o cara, não sei se é por causa da minha diabetes.... E- Esse assunto só apareceu aqui com ele, lá no cardiologista nunca apareceu? V - Não, primeiro [a médica] era mulher, aí na hora eu queria falar, mas aí o cara não pode ser assim porque é médico né, mas toda vez que o cara ia lá, mudava, não era a mesma pessoa, já era uma outra médica, aí antes era uma médica mais coroa, ai essa última que eu fui já era uma guriazinha nova, então o cara fica com vergonha de falar daquilo ali. Outros temas, de caráter subjetivo e que muitas vezes não são associados pelos usuários como pertinentes ao contexto do atendimento em saúde, também foram citados. Questões familiares, exemplificado no notável relato de conflito de relacionamento entre Antônio, 55 anos, e seu filho, ilustra esta dimensão. Antônio não o havia mencionado nas consultas até que foi abordado pelo MFC que o acompanhava há bastante tempo. O diálogo ocorreu há alguns anos, mas ele (Antônio) resgatou o episódio de uma consulta de rotina, mas que se ampliou pela percepção do profissional, durante a entrevista: (...) assim, a gente vai ali por aquele motivo que você está sentindo, tem médico que percebe, ‘tem essa outra coisa ai’, por exemplo, eu já consultei uma vez acho que foi um médico [MFC], ‘tu não tem só isso aí tu tem outro problema’, aí ele começou a entrar no assunto, começou a perguntar e eu comecei a responder. [MFC disse]: ‘tu está com depressão, 153 tu está com problema de depressão, tu está com problema em casa’. Aí foi aonde [eu expliquei]: ‘não, meu filho é assim, assim’, ai ele [MFC] disse: ‘tem que trazer teus filhos aqui pra consultar’... aí expliquei pra ele, ele pediu até pra trazer ele, eu disse: ‘não doutor melhor deixar quieto, não vou trazer, porque ele não vai vim, eu sei que ele não vai vim, deixa quieto, não vou nem falar nada, deixa quieto’. Aí ele queria, ‘não, tu vai tomar um remédio’, [eu respondi] ‘não doutor, por favor, não, eu vou saber sair dessa. Eu já saí de tantas outras, eu vou saber sair dessa também’. Alberto, 55 anos, aposentado com depressão, descreve a consulta quando se limita a girar em torno de sintomas, doenças e exames: E- Com a médica de família você acaba falando disso, da tua rotina do teu dia a dia? A - Não, porque como você falou é mais um médico familiar, é mais tipo do dia a dia, da tua saúde, como é que tu tá, a pressão, mas assim a vida particular tipo, não sei nem se realmente é, né. E- Você nunca falou? A - Não, nunca cheguei. E- Nenhum médico de família assim, te acompanhasse há mais tempo? A- Não, não. A - Desabafava sim [para o psiquiatra], já era outro, né, porque tipo assim, não sei é o certo ou errado, mas o médico da família eu achava que, mas agora dependendo do que eu vou perguntar pra ela, a doutora, ‘... e essa sertralina* fico tomando até quando? ’... Eu achava que [a consulta com MFC] seria uma coisa muito direta, ‘o que tu tem, está sentindo o que?’... Eu não cheguei a desabafar com ela [MFC], chegar nesse ponto assim. As situações relatadas trazem em comum a importância de se estabelecer uma relação de continuidade e confiança para que assuntos delicados viessem a ser compartilhados. No caso dos homens esse aspecto é ainda mais estratégico porque eles não conhecem as ‘regras do jogo’, não perceberam ou não foram orientados sobre a liberdade para abordar qualquer assunto, seja físico ou mental. Apesar de alguma repercussão na mídia sobre a abordagem da medicina de família, o fato é que parte da * Cloridrato de Sertralina é um medicamento comumente usado para depressão. 154 população desacredita que efetivamente possa abordar qualquer assunto nesse ‘mundo de especialistas’ instalado em nossa cultura. Além desse aspecto, existe o desgaste dos profissionais da APS. Portanto, um homem aparentemente saudável que venha procurar consulta tende a ser subliminarmente induzido a realizar consultas pontuais, rápidas, pois existe ‘toda aquela população’ que requer mais tempo e já é conhecida pelas equipes. Além disso, a omissão desses problemas perpassa a noção arraigada de que a consulta médica se limita a abordagem de problemas físicos, exceto para a disfunção erétil, tema sensível que tem potencial de repercutir na redução de potência sexual, tão cara aos homens em geral. Afinal, prefere não passar pelo constrangimento de compartilhar uma queixa para a qual não tem expectativa de que o profissional possa ajudá-lo efetivamente. Acerca dessas limitações auto impostas, lembro de episódio quando era preceptor do internato em MFC no qual uma mulher diabética há muitos anos atendida num ambulatório por uma médica com formação em medicina de família veio a ser atendida por uma aluna. Sua abordagem mais ampla suscitou a surpresa dessa mulher que desconhecia poder expor outros assuntos na consulta além da diabetes mellitus. Nesse sentido, a troca de médicosque pode reduzir ainda mais a possibilidade da criação de vínculo, mas pode também abrir oportunidade para outras abordagens. A situação descrita vai ao encontro do que Caprara e Franco (2006) criticam como as “(...) relações que são frequentemente formais nos serviços de saúde” (p.88). Neste caso, Vanderlei expressou seu pudor e resiliência ao considerar a limitação do médico(a) para compartilhar seu problema: E- E você nunca foi consultar por causa disso, por que o assunto te incomoda? V - É não, sobre isso aí, eu não vou fazer pergunta pra médica, porque ela não pode fazer nada também, coitada [grifo meu], ela não pode fazer nada... 155 Por outro lado, Amadeu, 34 anos, soropositivo, descreve interação mais franca com a MFC que o acompanha há dois anos. Vale esclarecer que interação se refere às formas verbal e não verbal de comunicação: Ah não, eu falo de tudo, falo que estou desempregado, que voltei a trabalhar, Não, é tudo... - E eu estava com gânglios, eu estava com o meu pescoço, estava horrível, não tinha como eu sair, aí não dava, isso até me entristeceu bastante, aí tudo isso eu falei para a doutora, nossa eu fiz a doutora de psiquiatra coitada, o que eu desabafava com ela, Ela [me tranquilizava] ‘ não tudo bem a gente tá aqui pra isso mesmo’. E- Uhum. - Porque eu não ficava só no físico, todo o problema emocional eu despejava nela, bem assim. A temática de viver com o HIV ainda padece do preconceito a começar pela revelação do diagnóstico apesar de a epidemia já ter completado 40 anos no Brasil. Em 2003, o relatório sobre inovações no cuidado de condições crônicas da OMS anunciava que um “(...) sistema de atenção primária incapaz de gerenciar com eficácia o HIV/AIDS, o diabetes e a depressão iriam se tornar obsoleto em pouco tempo. De fato, a atenção primária deve ser reforçada para melhor prevenir e gerenciar as condições crônicas” (OMS, 2003, p.05). Desde então, o agravo alcançou mudanças significativas no seu perfil epidemiológico, acesso ao diagnóstico e tratamento que permitiram substancial melhora da qualidade de vida. Ângelo, 59 anos, soronegativo, expressa sua estranheza sobre a doença: Principalmente a questão de AIDS, né, HIV, né, isso aí o cara fica assim perdido, né... É uma coisa que não é normal, né, câncer e AIDS, não é normal. Na experiência de Amadeu, 34 anos, outros fatores devem ser considerados como a abordagem da equipe de saúde frente ao diagnóstico e seguimento de seu estado sorológico (HIV+). Além disso, diante de sua frágil rede de apoio, tal abordagem pode ter servido como catalisador de uma relação de confiança mais sólida, significativa, que se estabeleceu entre 156 o usuário e o serviço. Em outra seção, serão detalhados os aspectos que podem ter propiciado a criação de vínculo. Essas situações de consulta ilustram o que Moura (2012) denomina como ‘afunilamento da narrativa’, na qual a pessoa molda seu relato diante do que considera ser permitido ou esperado. Em outras palavras, o médico (a) é treinado a se concentrar na escuta biomédica da narrativa e excluir trechos que não sejam relacionados à queixa principal em seus aspectos orgânicos. No caso de Amadeu, o diagnóstico pode ter contribuído para que o (a) MFC tenha se afastado desse modelo para acolher sua necessidade de escuta. Em Florianópolis, segunda capital brasileira com maior número de casos de HIV e a terceira capital com a maior taxa de mortalidade, a APS se incorporou na linha de frente tanto no oferecimento do teste rápido em todas as unidades básicas de saúde, como no uso da Profilaxia Pré- Exposição (PrEP), assim como a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) que consiste numa forma emergencial de prevenção da infecção pelo HIV. Além disso, os (as) MFCs iniciam e manejam o tratamento contando com o apoio matricial dos infectologistas conforme descrito por Pinto e Capeletti (2019) e avaliado em artigo de Alves de Carvalho et al (2020). Nesse contexto, apesar de equipes experientes, mantem-se o receio quanto ao estigma do diagnóstico o que Amadeu, soropositivo, 34 anos, revelou na entrevista através do uso do código internacional de doenças: “(...)ela [MFC] me perguntou se a minha família sabe, a minha família não sabe, eu só, pessoal da saúde, só médicos, e agora um advogado do trabalho né, e o contador. Eu suportei sozinho, doutor. Nossa, eu em casa passando mal com febre, ainda não sabia se era tuberculose, se era linfoma, já sabia que era a B24 [Código do CID-10 que identifica a pessoa com AIDS], eu suportei sozinho, não sozinho, porque as médicas fizeram o papel da minha família pra mim. Tudo que eu devia fazer com a minha família, contar pra minha família, foi com elas, elas que tiveram que me aguentar, mas foi ótimo. Até hoje elas tem muito cuidado entendeu, uma coisa que fez muita diferença. Alfredo, 26 anos, por sua vez, vivenciou o preconceito quando procurou a UPA devido a corrimento uretral: 157 “Daí, aí a secreção estava saindo pelo pênis daí [médico] nem tocou [examinou], quando eu falei isso ele falou pra mim: ‘sai daqui, procura um posto de saúde’. Como eu ia procurar um posto de saúde se era feriado? Não tinha como encontrar, daí eu fiquei com medo, porque eu sou gay, mandou fazer exame de HIV, me botou bastante medo, não me deu receita, não fez o toque [não foi examinado], não me deu nada de remédio, nada, nada. Depois eu fui para outro médico, lá do outro lado da ponte, daí ele fez o toque [examinou], viu tudo certinho daí era uma íngua, me deu remédio, me fez tudo”. Amadeu viveu situação semelhante quando foi diagnosticado com tuberculose: “Na universidade eu até que falava, eu faltava muitas aulas aí eu tinha que justificar, porque eu estava faltando, levava o atestado... mas lá o pessoal é outra cabeça lá dentro, mas já aconteceu de eu ter que tomar medicamento no horário e me perguntarem o porquê, uma vez que eu estava no trabalho nem era de carteira [de trabalho assinada], era ‘free lancer’,e não me quiseram mais, aí já aconteceu esse tipo de discriminação”. A população LGBT no Brasil enfrenta grande dificuldade no seu dia a dia a partir da ameaça a sua integridade física e mental que se traduz no número alarmante de assassinatos. Em 2004 foi lançado o programa Brasil sem Homofobia e em 2008 a Política nacional de saúde integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2008). Albuquerque et al. (2013) realizaram revisão integrativa da literatura no período 2004 a 2013, na qual detectaram imensa resistência do segmento em procurar pelos serviços de saúde. Em resposta a grave alienação desse segmento da população, a rede de APS de Florianópolis conta desde 2015 com um ambulatório trans que atende semanalmente no período noturno (Pereira et al, 2019). Valadão e Gomes (2011) apontaram a falta de apoio da parte dos profissionais de saúde apesar da existência dos marcos legais instituídos há quase uma década. Os autores realizaram pesquisa em 102 municípios brasileiros, com uma amostragem de 2363 entrevistados, constatando que 89% dos participantes foram contra a homossexualidade masculina e 88% contra a lesbiandade e a bissexualidade de mulheres. Na presente pesquisa, dois dos três entrevistados homossexuais relataram experiências negativas acima descritas. Diversos pesquisadores identificaram situações de desestímulo a procura pelo serviço de saúde na APS e inabilidade na escuta 158 das demandas apresentadas (Machin et al, 2011, Knauth et al, 2012; Vieira, 2013) Na Inglaterra, Cant e Taket (2007) descreveram os obstáculos enfrentados por gays e lésbicas desde o acesso aos serviços de APS no norte de Londres, assim como questões relacionadas a sexualidade até a abordagem de médicos (as) de família que assumiam referencial heteronormativo das pessoas atendidas. No tocante à saúde mental, entre os 18 entrevistados,o tema da depressão foi abordado diretamente por cinco deles sem que houvesse um direcionamento específico entre os objetivos desse estudo. No Brasil, estudo de base populacional realizado em Pelotas através de inquérito domiciliar usando o questionário PHQ-9 (Patient Health Questionnaire) mostrou prevalência de 20,4%, com maior prevalência entre as mulheres, indivíduos mais jovens, menor nível socioeconômico, menor escolaridade, solteiros ou separados e aqueles com doença cardíaca (Munhoz, 2012). Nos países desenvolvidos, a proporção do diagnóstico é de 2 mulheres para cada homem (OMS, 2008), mas autores suspeitam que critérios diagnósticos não são sensíveis ao segmento masculino (Wilhelm et al., 2002). Bezerra investigou a prevalência dos transtornos mentais comuns (TMC), que envolvem um conjunto de sinais e sintomas relacionados principalmente a queixas somáticos e sintomas depressivos e ansiosos geralmente associados a condições de vida e à estrutura ocupacional. A partir de uma amostra de homens entre 21 a 59 anos na capital e cidades rurais da Paraíba, foram usados diversos instrumentos tais como SRQ-20 (já validado no Brasil) e questionários de estilo de vida e acesso a atendimento em saúde, de saúde mental e sociodemográfico. A prevalência de TMC foi de 46% na capital e 18,4% no meio rural com maiores índices entre os mais jovens e de 15% na faixa acima dos 50 anos. Quanto a escolaridade, índices mais elevados estavam presentes entre os de maior escolaridade Segundo Mahalik et al (2003) os homens apresentam menos sinais de alerta quanto a este desfecho. No Canadá a proporção de suicídios é 3: 1 159 entre os homens e na Irlanda 7: 1 (NOSP‡, 2014), sendo que esta mesma proporção ocorre entre os idosos no Canadá (Health Canada, 2002). Além disso, a literatura demonstra as peculiaridades quanto a prevalência, busca de atenção médica, apresentação clínica da depressão e risco de suicídio entre os homens (Addis, 2008; Oliffe et al, 2008; Robertson, 2009; Parent et al, 2018; Cant et al, 2017). Oliffe et al (2012) ao analisarem dados de uma coorte de 38 homens no Canadá alertam que ao falharem em reconhecer problemas de saúde mental foi detectada taxas de suicídio mais altas neste grupo. Em outro estudo realizado em Vancouver, Canadá, foram entrevistados 20 homens que pensaram ou tentaram suicídio. O isolamento estava entre os três fatores principais que contribuíram para esse desfecho (Oliffe et al, 2017). Estudos europeus verificaram correlação entre desemprego por tempo prolongado, depressão e uso de álcool e outras drogas Lappalainen et al., 2017). Além disso, a recessão econômica coincidiu com aumento significativo da taxa de suicídio entre homens (Karanikolos et al., 2013; Antonakakis e Collins, 2014; O’Donnell e Richardson, 2018) Oliffe e Phillips (2008) apontam a depressão como fator risco para suicídio o que remete aos profissionais de saúde que precisam estar atentos às peculiaridades dos sintomas entre os homens. Portanto, para este grupo recomenda-se atenção acerca de atitudes ou acontecimentos que costumam ser vinculados ao acaso ou inerentes às masculinidades pois podem ser manifestações da depressão. Assim, episódios de violência, irritabilidade, incapacidade de descrever ou expressar sentimentos, acidentes de automóvel, abuso de álcool e outras drogas, comportamento abusivo, perda de emprego, violência doméstica, podem ser tomados, nessa perspectiva, como eventos sentinelas a serem verificados com maior interesse (Ogrodniczk e Oliffe, 2008). Em resposta as diversas manifestações apresentadas pelos homens, Rutz et al. (2002) vieram a desenvolver uma escala, ‘Gotland Male Depression Scale’, para diagnóstico de depressão masculina numa região da Suécia com alta prevalência de suicídio. ‡ Irlanda, National Office for Suicide Prevention(NOSP) , relatório anual, 2014 160 Ainda acerca da depressão masculina, Addis (2008) desenha um panorama baseado na diferença da prevalência entre homens e mulheres; na tendência dos homens em esconder sintomas e experiências de depressão; os efeitos da socialização na expressão desses sintomas e como costumam responder a afeto de conotação negativa. Como resultante, verificamos a demora dos homens em procurar por assistência (Oliffe e Philips, 2008). Quanto aos fatores associados, Parent et al. (2018) analisaram banco de dados referente a 4.825 homens entre 20-59 anos de idade que mostrou maior procura por auxílio para saúde mental entre brancos, não heterossexuais, que não estavam em relacionamento, mais velhos e com depressão. Seidler et al. (2016) concluíram após revisão da literatura acerca da busca de auxílio de homens com depressão, que eles funcionam em conformidade com as normas tradicionais do gênero masculino que geram impacto três vezes maior sobre os sintomas da depressão, sobre atitudes e comportamentos relacionados a procura por auxilio e tipo de tratamento e estratégias para lidar e se engajar. Por outro lado, distinto do que se costuma acreditar, alguns trabalhos indicam que eles irão procurar auxílio que sejam acessíveis, apropriados e motivadores como a terapia cognitiva comportamental (Spendelow, 2015) ou terapia que reafirme seus pontos positivos (Englar-Carlson e Kiselica, 2013). A tentativa em suprimir suas emoções os coloca em risco de agravamento da piora de sua saúde mental, e quando de forma mais severa, consideram a autoagressão e suicídio. Acerca desse desfecho, Pinto, Assis e Pires (2012) analisaram o histórico de homens que cometeram suicídio no período 1996-2007 no qual “salientam que entre as várias vulnerabilidades masculinas encontra-se a negação do cuidado travestida pelo ideário de invulnerabilidade. Ao se incorporar à velhice masculina, a negação do cuidado pode funcionar como uma espécie de blindagem da masculinidade, já ameaçada pela saída do trabalho e pelo acometimento por doenças crônicas” (p.444). 161 Esse agravo veio à tona nas entrevistas de diversas maneiras. Alberto, 52 anos, viúvo, aposentado, 2 filhos, admitiu: E- E fora a questão de fazer os exames algum outro motivo que te leva a consultar aqui? A- Foi esse motivo da depressão também, que eu quero continuar fazer o meu tratamento aqui como eu sou do bairro, então eu estou tomando os medicamentos e... ... É foi tipo assim na verdade ela deu, eu não cheguei a conversar muito com ela sobre o problema da depressão, ela só me receitou o medicamento que eu já estava tomando, né, como eu falei para o senhor eu já estava sendo tratado pelo um psiquiatra, conversei com ele, depois quando eu vi que realmente não tinha mais condições de ficar com ele, eu resolvi aí ela me receitou esse medicamento. Enquanto Vagner, 55 anos, aposentado, compartilhou sua experiência com o manejo da residente em MFC: Quando eu tive uma época que eu estava com uma depressão muito grande né, eram muitos questionamentos né e a residente, foi muito bacana, ela disse assim: ‘Vagner é o seguinte você tem que, quando você era bom você era uma pessoa, agora você é outra pessoa, então ela começa a trabalhar isso comigo né? Ó, se você sabe que você não pode caminhar mais de dez quarteirões caminha um quarteirão para e olha uma loja, caminha mais outro quarteirão cumprimenta um amigo, toma uma café, entendeu? Já Vinicius, 40 anos, autônomo, expressa sua surpresa no manejo cuidadoso de João, residente em MFC: “(....) mas a mais marcante foi, foi há uns três anos atrás, uns três anos, é, acho que foi em 2014. Eu não estava me sentindo bem assim no sentido psicológico mesmo, não estava me sentindo bem, eu não estava com dor em nada, mas estava meio, daí fui para o postinho, fui no postinho me consultei né tudo normal, marquei a consulta pelo telefone, me consultei com o doutor com o médico lá, e foi tudo tranquilo. Assim, na verdade a gente conversoubastante, teve umas conversas, até achei interessante, porque geralmente não se conversa muito quando se vai em consultório assim padrões assim e tal, mas achei bem interessante, porque a gente conversou muito sobre, ele se preocupou bastante com isso, se preocupou bastante em me, nessa parte de esclarecimento conversa, e eu acho que até 162 noto isso, até antes disso já percebia que no posto o interesse dos profissionais assim pelo, por esse lado mais talvez mais humano sei lá da coisa era bem, bem, assim, se preocupava bastante com isso então, aconteceu de o médico, da gente conversar bastante e tal, daí ele me perguntou tu queres que eu marque uma psicóloga depois, tu está sentindo bem aqui e tal, eu disse ‘não cara tranquilo, pra mim está tudo certo a gente está conversando e tal’. Enquanto Aureliano, 36 anos, percebeu que não poderia esperar pelo acesso limitado a equipe do CS: ... quando eu comecei aquele período de depressão, aí eu fui lá, porque eu não estava me sentindo legal, não estava bom, aí fui, mas aí achei uma médica por outro canto. Aí eu preferi usar os serviços daquela médica, porque era uma questão urgente, né, e se eu esperar o que acontecia no centro de saúde ia passar muito tempo, e eu tinha medo que o negócio ficasse pior. Quanto a população homossexual, alguns estudos apontam que a depressão é três vezes mais prevalente que na população geral adulta (Cox, 2006; King et al., 2008). A procura por serviços de saúde é ainda menor que entre os heterossexuais por não considerarem os serviços adequados às suas necessidades. Cant et al. (2017), chamam atenção para dificuldades adicionais relacionadas a grupos étnicos de imigrantes na Inglaterra em encontrar profissionais de saúde adequados às suas necessidades. Lee et al. (2017) indicam a necessidade de profissionais de saúde, muitas vezes refratários a discutir a sexualidade daqueles que atende, considerarem a correlação entre depressão, suicídio e sexualidade. Manter-se vigilantes quanto aos agravos de saúde mental e conquistar a confiança são essenciais para o manejo clínico dessa situação de risco. Um indicativo acerca da inabilidade do sistema de saúde em responder a este grupo, fica evidenciado no trabalho de Luoma et al. (2002) no qual alertam que aqueles que cometeram suicídio consultaram no ano anterior ao evento. Quanto às abordagens de intervenção, Ogrodniczuk et al. (2016) descrevem algumas iniciativas como ‘Man-Up Against Suicide’ em que se utilizam fotografias e histórias de vida relativas a perda; em outro projeto ‘online’ (‘Heads Up Guys’, Canadá) visa-se demover os homens sobre a 163 ideia de que buscar o serviço de saúde seria como uma pressentida fraqueza, trabalhando com desejo de autonomia e independência para enfrentar a depressão. Em comum, esses projetos trazem linguagens diversas e inovadoras obtendo maior participação do que programas tradicionais considerados ineficazes pelos homens pesquisados. Portanto, na atenção primária, reconhecida como porta de acesso aos serviços de saúde, perceber a repetição de acontecimentos tomados como triviais ou ao acaso se torna ainda mais premente diante da severidade das consequências do não diagnóstico de depressão e pelo risco de oportunidades de intervenção perdidas. 5.7 Vamos portanto, finalizar essa ‘discussão da relação’ A partir do mapeamento das experiências dos homens em consulta com os médicos de família, ainda os vemos emparedados pelo paradigma biomédico, crente que seu corpo é máquina para viabilizar seu valor social na sociedade. Nesse espaço, torna-se conveniente aos membros da díade “transformar toda queixa em síndrome, “transtorno” ou doença de caráter biológico, desligando-a da vida vivida pelo doente”, seguida da crescente incorporação de diferentes aspectos da condição humana sob a órbita do “medicalizável” (Tesser et al., 2010, p.361). Nesse sentido, Schraiber et al. (2010) destacam que as necessidades de saúde dos homens são abafadas pela medicalização da consulta, reduzindo-as “(...) a questões biomédicas e impedindo que sejam enunciados carecimentos que não encontram possiblidade discursiva nessa linguagem” (p.962). Caprara e Franco (2006) destacam que as relações não ocorrem no vazio, que são influenciadas pelo grupo de origem de seus membros. Os autores trazem a contribuição de Hinde (1979, p. 14) que estabelece que uma relação “(...) requer uma interação intermitente entre duas pessoas envolvendo trocas em período extenso. Estas trocas têm algum grau de 164 mutualidade” (p. 88). No caso específico da relação médico+paciente, esta é influenciada por aspectos gerenciais do sistema, organizacionais da unidade de saúde, da formação do profissional médico e da história de vida da pessoa. Ayres (2009) alerta que “(...) para ser sujeito de fato, o paciente precisa sentir-se compreendido e valorizado e, para tanto, ter direito à voz e poder compartilhar com o profissional seu sofrimento, não apenas a dor física, mas suas dúvidas, medos, assim como alegrias e esperanças” (p.49). O autor enfatiza o aspecto relacional na construção de sujeitos e da necessidade de se reconstruir a ideia de sujeito com base na intersubjetividade, ou seja, vê-lo como aquele que se constrói a cada encontro entre profissional e usuário. Quanto à educação em saúde, a prática médica permanece arraigada nas antigas ‘orientações’ de estimular o cuidado através da exploração do medo e a desconsideração pelo contexto. Se ele não adere mais, em parte porque a Medicina moderna para Freidson (1988) é essencialmente heteronômica ao retirar autonomia do sujeito, a qual se deve obediência aos ditames sob a ótica do trinômio ‘certo/errado/castigo’. Portanto, se o homem no início da consulta era uma ‘ficha com ponto de interrogação’, ao fim desta será apenas uma figura a carregar uma solicitação de exames, uma prescrição e algum conselho de pouca serventia. Assim o ciclo de invisibilidade (Dantas, 2012) gira e a oportunidade do encontro se desfaz sob o risco de se abortar o retorno eliminando uma segunda chance para se aperfeiçoar o diálogo. Haveria peculiaridades na constituição do sujeito do gênero masculino? Como se dá o processo de cuidado para o homem? E de que homem estamos falando? Daquele que historicamente fez as regras do jogo ou dos invisíveis? Segundo Kimmel (1998) precisamos considerar que as masculinidades são socialmente construídas, portanto variam de cultura a cultura ao longo do tempo atravessada por um conjunto de variáveis que potencializam sua identidade. Nesta estava prevista a propriedade da terra, o aprimoramento e domínio de uma habilidade do ofício, mas não o cuidado, 165 não incluía a percepção do risco de que seus valores podiam ser ameaçados. Em resumo, “(...) a masculinidade poderia ser demonstrada através do autocontrole” (Kimmel, 1998, p.112). Essa construção foi forjada quando os benefícios da intervenção da ordem médica eram bem- intencionados, mas frágeis. Portanto, não merecedores de muita atenção. Assim na medida em que suas conquistas o valorizavam perante outros homens se estabelecia uma hierarquia entre as masculinidades, diferenciando as hegemônicas das subalternas. Garantido o seu lugar de destaque na sociedade, se tornava evidente o sucesso pela conquista, o acerto de sua decisão enquanto ‘self-made man’. Diante dessa conquista sem a devida atenção aos riscos ou cuidados na trajetória, o autocuidado e a busca do cuidado pareciam irrelevantes. A evolução tecnológica fez esse cenário mudar drasticamente no último século. Diante do avanço da medicina e da sociedade em geral no século XX, dentro do que Kimmel (1998, p.113) denomina “influências feminilizantes da civilização”. Portanto, como se posiciona esse sujeito dentro do sistema de saúde onde se dá (ou não) o encontro entre o homemque, na maioria das vezes, desconhece o ‘modus operandi’ do sistema e o (a) profissional de saúde? Afinal, dentro da ‘lógica’ do modelo biomédico ainda prevalente na formação médica, as crianças deixam de ser acompanhadas regularmente em torno dos dois anos de idade. Na puberdade, as adolescentes são trazidas pelas mães, na maioria das vezes, para orientação contraceptiva da qual os rapazes não costumam tomar parte, exceto pelo uso eventual do preservativo. Nessa trajetória, os homens se tornam alheios aos serviços de saúde, só retornando em casos de emergência, muitas das vezes ligados a acidentes de trabalho, acidentes de trânsito ou episódio de embriaguez. Das causas externas de óbito masculino, o Brasil teve 88 mil eventos entre 20-59 anos no ano de 2017 (DATASUS, 2017). Portanto, para o homem a construção da própria identidade masculina está apartada da construção do autocuidado aqui definido como mecanismo que permite que as pessoas desempenhem suas funções de maneira autônoma, que promovam ações 166 convergentes a preservação da vida, preservação da saúde, e bem-estar (Garcia et al., 2019). Daí urge a pergunta: por que o homem não iria buscar essa ferramenta já que diante de várias outras frentes, ele busca se impor e se manter no controle da situação? Suponha que, avesso a resposta simples ou unifatorial, esse homem entra em fadiga. Ele precisa, reconhecendo ou não sua limitação, interromper o circuito em que ele mesmo se colocou, de forma consciente ou não. Portanto ele adoece e nessa condição abre mão de todo controle que primou em alimentar. Adoecer o envergonha (Sousa et al., 2016; Amaral et al., 2017) e gera crise. Sem a reflexão sobre o processo, abre espaço para que ela se agrave ou que a crise se repita até que a dependência do outro, tão temida inicialmente, se instale. Rotulado como ‘homem doente’, ele ‘sai do jogo’ competitivo da vida no qual estava familiarizado a participar. Distante desse ‘locus’ e somado a seu estranhamento pelo novo status, historicamente o alvo prioritário da assistência primária à saúde é o binômio materno-infantil, sendo a formação dos profissionais que atuam nesta área pouco voltada às contribuições dos aspectos sócio culturais e psicológicos relativos à gênero, e especialmente aqueles associados às masculinidades. Diante deste cenário, a limitada habilidade do profissional de saúde, dada a formação que recebe, não potencializa o desenvolvimento de ações de cuidado que levem em conta, de forma crítica e balizada, as questões de gênero. Esse contexto foi sintetizado por Dantas (2012) no fluxograma denominado ‘Ciclo de Invisibilidade do Homem no sistema de saúde’ (Figura 1, apresentada na seção 1.2 do presente trabalho), a partir das experiências vivenciadas pelos homens atendidos por médicos de família e na sua atividade anterior enquanto docente. No livro “A Ordem Médica”, o psicanalista francês Clavreul (1983) se mostra bastante crítico em relação a escuta médica no que tange aquilo que não parece orgânico. Acerca da relação médico+pessoa, mais especificamente, ele denuncia que “(...) o suposto ‘diálogo médico-doente’ na verdade se trata de um monólogo, onde se evidencia a função silenciadora do discurso médico e sua identificação com o discurso 167 dominante” (p.118). Clavreul (1983, p.118) vai além ao afirmar que: “(...) não existe relação médico-doente, tampouco existe relação médico-doença. Existe apenas uma relação instituição médica-doença”. Quanto ao processo de tomada de decisão acerca do tratamento, Clavreul (1983) destaca que, em geral, a opinião do paciente não é considerada pois este se encontra na posição limitada a oferecer signos ao invés daquele que demanda, que participa do processo de decisão. Este posicionamento de Clavreul na França, distante ao menos quatro décadas da atualidade e apesar das mudanças curriculares implementadas a partir de 2014 por algumas escolas médicas, ainda terão que esperar uma década para tornar passado experiências como a vivida por Vagner, farmacêutico de 55 anos, que contrasta experiências no sistema privado, onde consulta especialistas focais, e setor público devido às suas várias enfermidades: V- Mas é que aí lá fora [sistema privado] o cliente ele tem que comprar coisas para poder valer a consulta, ele tem que pagar, ele [médico] tem que te vender um complemento vitamínico, ele tem que te vender, ‘ah vai nessa farmácia’, ele não vende, é proibido, ‘mas ‘essa farmácia aqui é muito boa, entende?’ Esse medicamento aqui é muito bom, olha você tem que tomar esse remédio que é muito bom, eu tenho que retribuir aquela consulta de alguma forma’ E aqui no posto de saúde, eu não preciso fazer isso, eu, eu, um exemplo né, eu tomo deposteron®* , certo, que me custa trinta reais por mês. Aí fui nessa consulta de setecentos reais, [médico disse] ‘não você tem que tomar a nebido ®, você tem tomar a nebido®**, a nebido®, não, não isso, aí tem que tomar a nebido®. E- Não se discute. V- Então o médico está dizendo, estudou pra isso, vou tomar a nebido®, quanto é que é a nebido®? Quinhentos reais, tá bem. Então vamos comprar a nebido®, são setecentos mais quinhentos, tomei a nebido®. No final de quinze dias eu estava igual. Voltei nele falei: ‘doutor não funcionou, não’,[médico retrucou] ‘mas espera aí, daqui a pouco funciona’. Esperei mais trinta dias, não funcionou, mas era três meses. [Pensei] daqui a pouco vai suspender e tal, não funcionou. Aí voltei para deposteron®, então eu gastei setecentos, mais quinhentos, mais as aplicações. * Nome comercial da cipionato de testosterona usada no tratamento de hipogonadismo primário ou secundário. ** Nome comercial do undecilato de testosterona. https://consultaremedios.com.br/cipionato-de-testosterona/bula 168 Diante do contexto de a comunicação médico(a)+pessoa estar limitada pelo modelo biomédico, ainda hoje o “principal modelo financiado pelo recurso público” (Caprara, 1999, p.650), o MS lançou a Política Nacional de Humanização (Brasil, 2004) cujos objetivos foram de “(...) valorizar os diferentes sujeitos implicados na produção da saúde através do fomento à autonomia e ao protagonismo; desenvolver práticas culturalmente sensíveis; defender a corresponsabilização na gestão e atenção em saúde; identificar as necessidades sociais; fortalecer o trabalho multiprofissional pautado na transversalidade e no sentido de equipe; entre outros aspectos” (p.5). A Política, aqui denominada ‘Humaniza-SUS’, preconizou uma assistência que valoriza ‘humanização’ a partir da qualidade técnica e ética do cuidado utilizando “tecnologias relacionais de alta complexidade que dizem respeito aos problemas complexos do cotidiano das pessoas relacionados aos modos de viver, sofrer, adoecer e morrer no mundo contemporâneo. Nesse sentido, aponta a necessidade dos profissionais se aproximarem dos saberes, práticas, crenças e afetos dos usuários com o desenvolvimento de estratégias de comunicação que potencializem a relação entre ambos” (Leite et al, 2016, p. 129). Nesse modelo, ganhou destaque o reconhecimento dos direitos do paciente, de sua subjetividade e referências culturais, a valorização do profissional e do diálogo entre os membros da equipe e entre as equipes, seja dentro do CS, seja com os colegas do NASF. Portanto, nesse sentido, o usuário foi colocado como centro da atenção. Quanto ao vínculo, a ‘Humaniza-SUS’ evidencia dois elementos bastante caros a uma concepção humanizada em saúde: longitudinalidade e confiança. O primeiro consiste em uma das características centrais da APS, pois a Longitudinalidade propicia “lidar com o crescimento e mudanças de indivíduos ou grupos no decorrer de um período de anos”(p.190), o que se consegue através de uma relação pessoal de longa duração entre os profissionais de saúde e as pessoas atendidas. Starfield (2002) destacaque a repetição permite o reconhecimento por parte dos indivíduos da disponibilidade de uma fonte segura de atenção (sentida como ‘sua’) a qual 169 existe independente da presença ou ausência de problemas específicos relacionados a saúde ou ainda do tipo de problema. A atuação num determinado território sob responsabilidade da equipe favoreceria o processo de vinculação e construção da confiança a partir das diversas oportunidades advindas desses encontros. Além disso, como tive oportunidade de perceber em minha prática clínica, esse processo permite que o (a) profissional venha a identificar padrões de risco como o compartilhamento de medicamentos entre os familiares ou ainda estratégias mais eficazes de educação e saúde a serem propostas diante das particularidades que se vêm a conhecer seja nas consultas, seja nas visitas domiciliares. Diante desses conceitos, algumas reflexões se anunciam no que tange aos homens e o processo de construir a relação médico-pessoa: Será que o processo de construir a confiança no profissional de saúde ocorre de forma semelhante para o homem em contraste ao processo experienciado pela mulher? E caso este processo seja em grande medida semelhante, caso a relação não se estabeleça, quais seriam as consequências? Em outras palavras, de que forma gênero modula esse processo de formação de vínculo? Em 2016, Thompson et al publicaram artigo onde avaliaram registro de consultas em dez estados do Canadá com 7.260 pacientes frequentando clínicas de medicina de família. Os dados mostraram que mulheres adultas procuravam consultar mais frequentemente do que os homens por queixas relativas à saúde física e mental, sendo que esta ocupou menor percentual como motivo de busca para ambos os sexos. Quanto a saúde mental, os fatores associados a busca por consulta tanto para homens como mulheres foram idade mais jovem, conhecimento sobre medidas para prevenção de doenças, confiança nos médicos e presença de condições crônicas. Em relação a queixas físicas, apenas entre as mulheres, confiança no médico foi fator preditor de busca de consulta. Nenhum dos fatores acima descritos predispunha os homens a consultar. O fato de os jovens afirmarem que 170 procurariam consultar por questões relativas à saúde mental foram creditadas às campanhas educativas lideradas por pessoas famosas na comunidade. Este dado nos leva a pensar sobre o uso desta estratégia em nossa sociedade como já ocorreu em relação a AIDS nos anos de 1990. Quanto a não ser proeminente a confiança no médico como motivo de procura em relação a saúde física faz ressoarem algumas hipóteses como a qualidade desse atendimento anterior e a pretensa invulnerabilidade do gênero masculino que ainda é muito marcada. Portanto, considero que gênero opera tanto na construção ou não do vínculo assim como em suas consequências. Isto sem desconsiderar o aporte que outros marcadores sociais como classe, orientação sexual ou etnia possam atuar e interagir na resultante aqui estudada, o processo de decisão pela procura da consulta. 5.8 Como esse homem na consulta é percebido pelos profissionais de Saúde, na maioria mulheres? No Brasil, alguns traços já foram delineados nas pesquisas de Knauth et al (2012), Tonelli et al (2010), Dantas (1998) e apresentados ao longo do texto. Pesquisas realizadas nos EUA (Roter et al, 2002; Roter e Hall,2004; Bertakis et al, 1995; Epstein et al, 2005; Zolnierek e Dimatteo 2009) indicam que as médicas têm estilo de comunicação mais centrado no paciente, são mais abertos para a troca de ideias, fazem mais perguntas e compartilham informação. Além disso, engajam em temas psicossociais e comportamentos de formação de parceria, e incentivam mais participação do paciente nessas interações. Em função disso, as pessoas atendidas e médicos (as) ficam mais satisfeitos, aumenta o nível de aderência a recomendações de tratamento, ocorreu melhora do estado físico e psicológico e redução de custos financeiros para o sistema de saúde. As diferenças apontadas entre os profissionais são tão ‘alarmantes’ que sugerem que os educadores médicos considerem programas de educação permanente no Brasil, pois percebo a possibilidade de se colocar 171 o foco sobre os homens enquanto empecilho por suas próprias barreiras socioculturais trazidas para as consultas, mas sob o risco de se perder de vista que são recepcionados por estilos bem diferentes de abordagem, pelo menos nos estudos supracitados. 5.8.1 Como os homens se sentem diante dessas médicas? Na presente pesquisa, os entrevistados se dividiram em grupos de tamanho similar entre aqueles que tinham preferência pelo atendimento por médico ou médica de família. Percebemos os extremos quanto a abordar sua intimidade entre os heterossexuais, como Vanderlei, 57 anos, aposentado, que não revelou a disfunção erétil para as médicas e sim para seu médico de família que o acompanha há cinco anos desde o infarto. Mas também conhecemos o caminhoneiro Amândio, 41 anos, que ao longo de dois anos acompanhado pela MFC Alice, 33 anos, relatou, sem demonstrar sinais de exibicionismo ou gratuidade, que se sentia à vontade para falar de relações extraconjugais ciente das orientações recebidas acerca dos riscos de contrair/transmitir infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Enquanto entre os quatro entrevistados homossexuais, Antônio (26) e Amadeu (34), manifestaram preferência por médica e médico respectivamente, sendo que ambos foram alvos de preconceito em consultas episódicas na UPA com médicos de ambos os sexos. Cabe destacar a resposta de Amadeu, homossexual, 34 anos, que preferia consultar com médico, mas é acompanhado pela MFC Aurora há dois anos: Eu não vou mentir eu me sinto mais à vontade com médico homem, só que as doutoras daqui [médicas de família] me tratam tão bem que assim eu meio que esqueço... o que é mais complicado pra mim, por exemplo, é ter que tirar a roupa, [com o] médico infectologista, tranquilo, foi só uma vez só, que ele queria ver se eu tinha gânglios e tudo né, aí foi tranquilo, mas é que nunca precisou, mas não sei se eu ficaria à vontade agora o senhor fez eu lembrar disso, eu nunca tinha pensado nisso, nunca precisei aqui [com médica de família], agora não sei, elas são muitos legais, mas não sei se eu ficaria à vontade. 172 Interessante observar que na medida em que a relação era satisfatória ao longo das consultas, sua preferência não o impedia de aderir ou solicitar por uma eventual troca de profissional, mas cabe esclarecimento de que em muitos Centros de saúde, essa troca não seria possível. Enquanto Alfredo, 26 anos, homossexual, que é atendido pela mesma MFC, comenta: A- Eu me travo mais com homem como eu falei pra ti, com mulher não tem problema não, eu falo tudo, falo tudo que aconteceu comigo... daí eu falo tudo sabe? [médico] Homem assim eu dou uma travada, mas mulher eu não me travo muito. E- Você acha que foi por conta desse episódio*? Ou teve outra situação fora da consulta? A- Não, eu nunca gostei, coisa de mim mesmo, não gosto de ser atendido por homem, muito difícil. Acerca do impacto do gênero do(a) médico(a) na comunicação durante as consultas, Roter e Hall (2004) fizeram revisão meta-analítica dos estudos realizados entre 1967-2001. As autoras identificaram que médicas de família se comunicavam de forma mais significativa, desenvolveram parceria, abordaram mais problemas psicossociais e mantiveram o foco nos aspectos emocionais. Estudos analisados apontaram que os(as) pacientes revelaram mais aspectos psicossociais para as médicas. E por fim, deixo um último questionamento: será que o modelo paternalista, descrito por Emanuel e Emanuel (1992) presente em muitas das consultas médicas no Brasil contribui para menor adesão ao acompanhamento com os médicos de família?