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LITERATURA INFANTIL TAINÁ THIES Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6651-3 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 5 1 3 Código Logístico 59464 Esta obra intenciona esmiuçar a literatura infantil por diversos ângulos, se não todos os possíveis, ao menos aqueles mais relevantes para entender e trabalhar com esse gênero. O estudo sobre a literatura infantil se esta- belece em uma fronteira entre a Teoria da Literatura e a da Pedagogia, uma vez que obras voltadas para as crianças são instrumento de trabalho para o campo educacional. Porém, mais do que auxiliar em um projeto pedagógi- co, a literatura infantil possui outras tantas funções pecu- liares e importantes para o desenvolvimento das crianças enquanto sujeitos. Assim, a literatura infantil ainda se en- caixa nos estudos da Psicologia do Desenvolvimento, que tenta identificar como se relacionam os elementos literá- rios com a formação do indivíduo. Levando em consideração que a leitura é motivadora de cidadania e que a literatura é capaz de transformar va- lores e visões de mundo, esta obra é um ponto de partida para expandir a visão sobre o trabalho da literatura infantil em sala de aula e em outros espaços, transformando essa prática pedagógica em atividade reflexiva. Literatura Infantil Tainá Thies IESDE BRASIL 2020 © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Envato Elements Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ T369L Thies, Tainá Literatura infantil / Tainá Thies. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020. 182 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6651-3 1. Literatura infantojuvenil. 2. Literatura infantojuvenil - História. I. Título. 20-64170 CDD: 028.5 CDU: 087.5 Tainá Thies Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em Linguística pela Universidade Gama Filho (UGF), graduada em Letras Português pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e graduanda em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Professora do ensino superior, atuou, também, como consultora educacional e coordenadora de projetos em educação. Atua na formação de professores para o ramo editorial, como professora em cursos de pós-graduação e como autora de materiais didáticos para o ensino básico e superior, além de produzir contos e histórias infantis. SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! 1 Processo histórico da literatura infantil 9 1.1 Origens da literatura infantil 10 1.2 Literatura infantil do Brasil 16 1.3 Tendências atuais: do impresso ao digital 30 2 Literatura e leitor infantil 36 2.1 O papel da literatura na formação do leitor 37 2.2 Pequenos leitores 45 2.3 A linguagem na literatura infantil 54 3 Estrutura do livro infantil 64 3.1 O projeto editorial do livro infantil 64 3.2 A história contada pela ilustração 75 3.3 Gêneros textuais na literatura infantil 84 4 Temas da Literatura Infantil 94 4.1 Fantasia x realidade 94 4.2 Aventuras e heróis reais e imaginários 99 4.3 A literatura infantil e o desenvolvimento emocional da criança 104 5 Literatura infantil no currículo 112 5.1 Literatura infantil na legislação educacional brasileira 112 5.2 BNCC e literatura infantil 119 5.3 Literatura infantil no livro didático 132 6 Trabalho pedagógico com literatura infantil 141 6.1 Papel do professor 141 6.2 Contação de história 149 6.3 Formando o leitor crítico 155 7 Literariedade e análise de obras infantis 162 7.1 Literariedade na literatura infantil 162 7.2 Análise de obras para educação infantil 172 7.3 Análise de obras para os anos iniciais do ensino fundamental 176 Esta obra intenciona esmiuçar a literatura infantil por diversos ângulos, se não todos os possíveis, ao menos aqueles mais relevantes para entender e trabalhar com esse gênero. O estudo sobre a literatura infantil se estabelece em uma fronteira entre a Teoria da Literatura e a da Pedagogia, uma vez que obras voltadas para as crianças são instrumento de trabalho para o campo educacional. Porém, mais do que auxiliar em um projeto pedagógico, a literatura infantil possui outras tantas funções peculiares e importantes para o desenvolvimento das crianças enquanto sujeitos. Assim, a literatura infantil ainda se encaixa nos estudos da Psicologia do Desenvolvimento, que tenta identificar como se relacionam os elementos literários com a formação do indivíduo. Para realizarmos esse objetivo, portanto, trabalharemos no capítulo inicial com uma reconstrução das origens da literatura infantil, buscando identificar as ligações de seu surgimento com reflexões sobre o contexto em que surge. Também passaremos pelo histórico do gênero no Brasil, apresentando os principais autores e identificando possibilidades de leitura em diferentes suportes. No segundo capítulo, buscamos nos aprofundar no leitor da literatura infantil, a criança. Tentaremos traçar um curso para encontrar respostas sobre a influência desse gênero sobre a formação do sujeito e do leitor literário. Para isso, é necessário identificar quem é esse leitor e como a linguagem influencia seu processo de formação. Uma vez que identificamos um panorama histórico e algumas especificidades sobre o leitor, devemos partir para o suporte em si, o livro de literatura infantil. Assim, o terceiro capítulo trabalhará a forma do livro, o projeto editorial dos gêneros mais empregados nas obras de literatura infantil. E para apreendermos a forma desse livro em sua totalidade, votaremos nossa análise para a compreensão de como se estabelece a relação entre as imagens e o texto em livros de literatura infantil. Seguindo em frente, discutiremos então o conteúdo dos livros infantis no quarto capítulo. Discorreremos sobre a fantasia e a criação de mundos maravilhosos, bem como a necessidade do equilíbrio entre fantasia e realidade, identificando uma estrutura básica que percorre todas as narrativas de heróis. Além disso, buscaremos compreender como a literatura infantil e seus cenários conseguem influenciar o desenvolvimento emocional do sujeito. APRESENTAÇÃO No quinto capítulo iniciaremos a nossa jornada para o reconhecimento da literatura infantil no espaço escolar e, mais notadamente, nos documentos que norteiam a educação básica brasileira. Logo, discutiremos a relevância de obras literárias na legislação educacional brasileira, como os PCNs, as DCNs e a BNCC. Também veremos como estão inseridas obras literárias infantis nos livros didáticos, instrumentos tão utilizados nas escolas brasileiras. Após vermos o lugar da literatura na educação, vamos analisar o papel do professor na disseminação e motivação da leitura de livros literários infantis na escola. O sexto capítulo, então, lançará luz sobre práticas possíveis de serem desenvolvidas em sala de aula, bem como a necessidade de uma formaçãopara a leitura crítica. No sétimo e último capítulo nos debruçamos sobre práticas em sala de aula de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, trazendo roteiros que visam trabalhar a apreciação literária e a formação do leitor crítico, além de verificarmos possíveis categorias de análise a serem levantadas no estudo da literatura infantil. Levando em consideração que a leitura é motivadora de cidadania e que a literatura é capaz de transformar valores e visões de mundo, acreditamos que esta obra seja um ponto de partida para expandir a visão sobre o trabalho da literatura infantil em sala de aula e em outros espaços, transformando essa prática pedagógica em atividade reflexiva. Processo histórico da literatura infantil 9 1 Processo histórico da literatura infantil Pedrinho, na varanda, lia um jornal. De repente parou e disse à Emília, que andava rondando por ali: — Vá perguntar à vovó o que quer dizer folk-lore. — Vá? Dobre a sua língua. Eu só faço coisas quando me pedem por favor. Pedrinho, que estava com preguiça de levantar-se, cedeu à exigência da ex-boneca. — Emilinha do coração — disse ele —, faça-me o maravilhoso favor de ir perguntar à vovó que coisa significa a palavra folk-lore, sim, teteia? Emília foi e voltou com a resposta. — Dona Benta disse que folk quer dizer gente, povo; e lore quer dizer sabedoria, ciência. Folclore são as coisas que o povo sabe por boca, de um contar para o outro, de pais a filhos – os contos, as histórias, as anedotas, as superstições, as bobagens, a sabedoria popular etc. e tal. Monteiro Lobato, em Histórias de Tia Nastácia Antes de pensarmos a literatura infantil enquanto forma de es- crita para um público específico, vamos nos lembrar das histórias que conhecemos quando crianças. Você se lembra dessas histó- rias? Como teve contato com elas? Alguém leu para você? Teve acesso a esses livros? Na maior parte das vezes, as histórias que marcaram nossa infância nos foram passadas por outra pessoa, normalmente um adulto, seja em casa, seja na escola. E o mais interessante é que se pensarmos, hoje, em histórias para contar para as crianças, verificaremos que elas são as mesmas ao longo de várias gerações e em diversos países. Mas qual a sua origem? Como tantos povos as contam ao longo de tanto tempo? Vamos descobrir a resposta para essas perguntas neste capítulo! 10 Literatura Infantil 1.1 Origens da literatura infantil Vídeo A história da literatura infantil se confunde com a história da lite- ratura, e elas começam com a humanidade e o desenvolvimento da linguagem. Pode até parecer esquisito pensar que sociedades primi- tivas possuíam literatura, mas esse pensamento só se torna inusitado se acreditarmos que literatura é apenas aquela que está escrita, com ilustrações bem feitas e em papel brilhante. Mas se entendermos que literatura não é uma prática ligada somen- te à escrita, fica mais compreensível sua relação com o desenvolvimen- to da humanidade e da cultura. Todos os fenômenos precisavam de explicação com o advento da linguagem humana e das línguas. O trovão, a chuva, o nascimento, a morte etc. Tudo estava ali para ser descoberto e simbolizado pela linguagem. Entretanto, como explicar tudo se ainda não havia um único ser que soubesse como as coisas aconteciam? Como dizer às crianças que não deveriam correr sozinhas, pois se fizessem isso seriam de- voradas por grandes animais? Ou como impor os novos valores so- ciais e culturais, como o casamento? Pois bem, nasce aí o folclore e suas histórias. Em inglês, o termo folklore significa “tradição do povo”. Assim, o di- cionário Michaelis (2015) define a palavra folclore como: fol·clo·re sm 1 Costumes tradicionais, crenças, superstições, cantos, fes- tas, indumentárias, lendas, artes etc., conservados no seio de um povo; cultura popular, populário: “Heitor Villa-Lobos foi o maior compositor erudito do Brasil, apesar da inegável in- fluência do folclore popular brasileiro em suas composições” (TM1). 2 Parte da antropologia cultural que estuda esses elementos. 3 FIG Sequência de acontecimentos reais ou imaginários. [...] 4 FIG Algo meramente criado pela imaginação; fantasia: Essa história não passa de folclore. Temos quase certeza de que você aprendeu na escola que, para se referir à literatura, usa-se a palavra estória, em oposição à história, que designa a disciplina que estuda os acontecimentos no tempo. Certo? Em todo caso, estória é um daqueles termos arcaicos que as pessoas ainda usam, mesmo anos depois de cair em desuso. Essa palavra foi retirada de nossa norma culta em 1943, com uma deliberação da Academia Brasileira de Letras, e, mesmo assim, continuou sendo usada na educação até pelo menos os anos 1990! Saiba mais Tente lembrar com detalhes de uma história que você ouviu ou leu quando criança e, se possível, anote-a. Depois, procure essa história para ver se sua versão bate com a que circula hoje em dia. Desafio Processo histórico da literatura infantil 11 Logo, o folclore é a própria cultura feita pelo povo para explicar o mundo a sua volta e dar cores à vida. Fazem parte do folclore as lendas, as fábulas, os contos, os poemas, as quadrinhas, as canções e outros gêneros textuais que versam sobre os comportamentos e os valores de uma sociedade. Narrativas de heróis da Antiguidade já davam o tom para uma litera- tura que traria aspectos de fantasia, mas são as fábulas e os contos popu- lares que acompanharão a história da literatura infantil desde seu início. Os pioneiros nesses gêneros foram Esopo, Fedro, La Fontaine e Perrault. Esopo foi um escravo que viveu na Grécia Antiga e contava histórias com animais personificados, isto é, animais que se comportavam como humanos. Suas histórias, ou fábulas, traziam uma moralidade popular, como em A cigarra e a formiga e A tartaruga e a lebre, bem conhecidas nossas e que vêm sempre acompanhadas de uma moral sobre vícios ou virtudes do povo. Séculos depois, Fedro, um ex-escravo de Roma, aprimorou as fá- bulas de Esopo, inserindo-as na sociedade romana e disseminando tal gênero por todo o Império. Então, já no século XVII, La Fontaine remodela a obra de Esopo, es- crevendo novas fábulas e inserindo-as no contexto moderno, sempre seguindo o modelo de utilizar animais personificados para criticar com- portamentos. Sua crítica se valia, sobretudo, de misérias e injustiças praticadas especialmente pela corte para expressar seu descontenta- mento com a sociedade de sua época. Ainda no século XVII, Charles Perrault escreveu Contos da Mamãe Gansa (no título original, Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades), abrindo caminho para uma literatura popular específica para crianças. Assim, como o próprio título original sugere, a obra traz contos populares com o objetivo de demonstrar comportamentos que seriam exemplares. Há uma curiosidade aqui que devemos levar em consideração: Charles Perrault não quis assinar a obra, para não per- der seu prestígio, pois uma literatura que se voltasse para crianças era considerada de menor valor diante das outras artes e de outros gêne- ros. Então, quando da sua escrita, Perrault coloca o nome do filho como autor, Pierre Darmancourt, e dedica seu livro à neta do rei da França, Luís XIV, fazendo com que a obra fosse aceita por “circular entre as crianças”. Outro ponto muito importante de sua obra é que com ela se Esopo Perrault La Fontaine 12 Literatura Infantil inicia a utilização dos “contos de fadas” como forma literária infantil, sobre os quais discorreremos adiante nesta seção. O folclore não era feito para crianças, mas para todos, e podemos perceber em contos que perpetuamos até hoje para nossos pequenos qual era o valor dado à criança. Vejamos o exemplo do conto João e Maria: Perto de uma grande floresta, vivia um pobre lenhador com sua mulher e dois filhos. O menininho chamava-se João e a meni- na chamava-se Maria. Nunca havia muito o que comer na casadeles, e, durante um período de fome, o lenhador não conseguiu mais levar pão para casa. À noite ele ficava na cama aflito, re- mexendo-se e revirando-se em seu desespero. Com um suspiro, disse para sua mulher: “O que vai ser de nós? Como podemos cuidar de nossos pobres filhinhos quando não há comida bas- tante nem para nós dois?” “Ouça-me”, sua mulher respondeu. “Amanhã, ao romper da au- rora, vamos levar as crianças até a parte mais profunda da flo- resta. Faremos uma fogueira para elas e daremos uma crosta de pão para cada uma. Depois vamos tratar dos nossos afazeres, deixando-as lá sozinhas. Nunca encontrarão o caminho de volta para casa e ficaremos livres delas.” “Oh, não!” disse o marido. “Não posso fazer isso. Quem teria co- ragem de deixar essas crianças sozinhas na mata quando ani- mais selvagens vão com certeza encontrá-las e estraçalhá-las?” “Seu bobo”, ela respondeu. “Nesse caso vamos os quatro morrer de fome. É melhor você começar a lixar as tábuas para os nossos caixões”. (TATAR, 2004, p. 52-53) Essa versão do conto é o que podemos chamar de mais próxima do original, pois muitas outras versões suavizam a história, contando que João e Maria se perderam na floresta ao colher amoras. Assim, é possível identificar o pensamento da época nesse conto. Os mais im- portantes eram os adultos completos, e não os adultos miniaturas, as crianças. Estas poderiam ser descartadas no caso de não haver mais comida, por exemplo. A sobrevivência falava mais alto, e o abandono dos mais frágeis era visto como algo comum. Compreendemos a literatura infantil também como uma represen- tação dessas transformações sociais. Aos poucos, os mesmos contos que são contados para todos vão sendo modificados para uma lingua- gem que priorize a criança e seus comportamentos infantis. Outro gênero bastante lido (e principalmente ouvido) por todo o povo eram as novelas de cavalaria, muito comuns por toda a Europa. Aliás, há uma delas em particular que todos conhecemos de alguma forma: as histórias sobre o Rei Arthur, Merlin e os Cavaleiros da Távola Redonda. Essas novelas exaltavam a elevação espiritual por meio de valores morais e mesclavam o contexto real de duelos e cruzadas com elemen- tos maravilhosos. Você pode estar imaginando que nunca viu uma dessas novelas e, por isso, elas não são tão significativas para o nosso contexto. Porém, temos um gênero no Brasil que bebe diretamente dessa fonte: o cordel. Trata-se de uma poesia oral que junta elementos reais e maravilhosos em um contexto de devoção e muita bravura, assim como no dos cavaleiros! Saiba mais Sabendo que a literatura espe- cífica para crianças só começa a se esboçar no século XVII com Charles Perrault, será que não existiam crianças antes disso? Sim, essa pergunta é absurda mesmo, mas se as crianças existiam, por que não havia uma literatura para elas? Atividade 1 Processo histórico da literatura infantil 13 Assim, João e Maria passa a ser, hoje, uma história de cooperação, de triunfo por união e de retorno feliz à casa. Dessa forma, a literatura infantil precisou primeiro passar pelo desen- volvimento do próprio conceito de infância para então ser pensada com es- tética, forma e conteúdo específicos. Algumas obras ou compilações são vistas atualmente como iniciadoras desse processo. O que elas têm em comum entre si é exatamente o uso de histórias capazes de moldar com- portamentos das crianças dentro de um sistema de valores da sociedade em que estão inseridas. Coelho (2000, p. 41, grifos do original) nos diz que: dentre os fatores que podem ser apontados como comuns às obras adultas que falaram (ou falam) às crianças, estão os da popularidade e da exemplaridade. Todas as que se haviam trans- formado em clássicos da literatura infantil nasceram no meio popular (ou em meio culto e depois se popularizaram em adap- tações). Portanto, antes de se perpetuarem como literatura in- fantil, foram literatura popular. Em todas elas havia a intenção de passar determinados valores e padrões a serem respeitados pela comunidade ou incorporados pelo indivíduo em seu com- portamento. Mostram as pesquisas que essa literatura inaugural nasceu no domínio do mito, da lenda, do maravilhoso. Conforme Coelho (2000), a literatura popular, que dá origem à lite- ratura infantil, nasce do domínio do “maravilhoso”, ou seja, aquilo que é gerado pela fantasia quando há presença do sobrenatural e de even- tos misteriosos e sem explicação possível. O elemento maravilhoso é capaz de colocar em pauta uma coletividade narrativa, isto é, os fatos narrados não são individuais, mas, sim, comuns a diversos povos que compartilham mitos e lendas e, logo, valores e crenças. É justamente por isso que, quando lemos contos de Perrault ou dos Irmãos Grimm, as histórias tendem a ser parecidas; até se perde a no- ção de qual história é de quem. Temos que lembrar também que essas histórias contadas por eles não foram, de fato, inventadas por eles. Charles Perrault e Jacob e Wilhelm Grimm compilaram os contos folclóricos comuns na região em que viviam e que eram contados por camponeses nas tavernas e nas vilas. Acontece que, como já vimos aqui, povos compartilham valores e crenças, e também histórias, como no caso de Chapeuzinho Vermelho, uma história encontrada em ambas as compilações, com algumas diferenças. estética: estudo da beleza na criação artística. Glossário Para conhecer um pouco sobre a evolução do conceito de infância, su- gerimos a leitura do livro História social da criança e da família, de Philippe Aries, o qual revisita a presença da criança em obras de arte para tentar estabelecer quando ela passa a ser uma figura importante na história das famílias. ARIES, P. São Paulo: LTC, 1981. Livro Você sabia que muitos dos contos de fadas não foram escritos inicialmente para crianças? Um exemplo são os contos dos Irmãos Grimm, que teriam surgido de uma pesquisa acadêmica para adultos. Para saber mais sobre esse assunto acesse o link a seguir: https://tinyurl.com/ya2ougzs Saiba mais 14 Literatura Infantil Histórias contadas visando o público de cada época foram sendo revistas a cada transformação dos valores sociais. Peguemos o exem- plo de Chapeuzinho Vermelho. Charles Perrault publicou sua adapta- ção do conto em 1697, e o final era aquele em que o Lobo devorava Chapeuzinho e Vovó. Já a versão dos Irmãos Grimm, de 1812, coloca em cena o Caçador para salvar Chapeuzinho, suavizando a violência presente no conto e aproximando-o muito mais do público infantil. Se procurarmos, encontraremos muitas outras versões da mesma histó- ria, produzidas ao longo dos séculos. Segundo Coelho (2010, p. 30), essa violência ou crueldade vai desaparecendo desses contos maravilhosos à medida que os tempos passam ou que a huma- nidade vai refinando seus costumes. Isso é facilmente notado nas alterações que se produzem em certos contos, ao passarem da versão de Perrault para a de Grimm e desta para as versões contemporâneas. Hoje, transformados em literatura infantil, per- deram toda a agressividade original. Assim, todos esses contos populares que vão sendo reunidos ao longo dos séculos acabam por se tornar o que chamamos de início da literatura infantil. Podemos ver que não foi um projeto pensado exclusi- vamente para as crianças. Porém, como parte da cultura, contendo pa- drões e normas de comportamentos, eram ótimas ferramentas para os pequenos (agora já compreendidos como crianças), que precisavam se inserir nos modelos solicitados pela sociedade dos adultos. Bem, até aqui você já identificou que a literatura se inicia como for- ma de transmitir valores e comportamentos de uma sociedade por ge- rações, bem como para preservar sua identidade. Mas como saltamos disso para uma literatura específica para crian- ças, já que o folclore não se destinava somente aos pequenos, mas, sim, a todo o povo? Antes de vermos quando se inicia convencionalmente a literatu- ra infantil, precisamosentender outro ponto: a concepção de criança como sujeito. Isso mesmo, a criança só é vista como um sujeito, com suas especificidades e diferenças, a partir do século XVII, quando au- menta o interesse por representar a criança na pintura em suas formas harmônicas e apropriadas. Se você observar pinturas da Idade Média, verá que não são crianças representadas, e sim adultos menores, des- proporcionais às formas de uma criança (ARIÈS, 1981). Será que existem outras versões de Chapeuzinho Vermelho? Você consegue pensar em alguma? Faça uma pesquisa para levantar possíveis versões ou adaptações. Desafio Processo histórico da literatura infantil 15 Quando ouvimos que não havia crianças na Idade Média ou em outras épocas, devemos entender, na verdade, que não havia a com- preensão das crianças como seres especiais, as quais eram chamadas de “adultos tolos”. Exatamente isso! Adultos que ain- da não tinham a capacidade de um adulto, mas que participavam da vida adulta como se fizessem parte dela. Então, naquela época, as crianças assistiam às execuções em praça pública, estavam presentes du- rante as relações sexuais dos pais (até mesmo por- que não havia divisão de cômodos) e trabalhavam desde muito cedo, sem questionamento por parte da sociedade. Somente após o século XVIII, com reflexões da fi- losofia, da arte e da Igreja Católica, a criança passa, gradativamente, a ser vista como especial e com a ne- cessidade de ser protegida. Porém, essa nova visão de criança não surge apenas do sentimento de pro- tegê-la, mas também em decorrência da Revolução Industrial e de novos valores trazidos à tona. Com a Revolução Industrial no século XVIII, a bur- guesia (donos de indústrias, profissionais liberais, comerciantes e artesãos) se estabelece como uma classe social forte e precisa garantir sua perpetuação ao longo do tempo, ou seja, não bastava conquistar status de classe ascendente, era necessário fazer com que seus des- cendentes protegessem seus valores. Portanto, a burguesia passa a olhar para a família e para a criança como pilares para sustentar uma nova lógica burguesa, conferindo-lhes novos papéis: ao homem era so- licitado o sustento da família; à mulher, o cuidado da casa, bem como a educação dos filhos; e à criança, um novo olhar para seu desenvol- vimento enquanto indivíduo que poderia ser moldado pela educação para uma sociedade recém-formada. Ainda nesse período, tanto a pedagogia quanto a psicologia se de- senvolvem enquanto ciências, e a escola também é solicitada a formar crianças e jovens de acordo com os ideais burgueses. Nesse sentido, eram necessários produtos específicos para serem utilizados em am- biente escolar e familiar com intuito educacional. O livro se torna, en- tão, um produto que se encaixa muito bem nesse novo sistema. Assim, W ik im ed ia C om m on s BONDONE, G. di. Ognissanti Madonna. 1310. Têmpera sobre painel, color., 204 x 304 cm. Galeria Uffizi, Florença, Itália. Figura 1 Ognissanti Madonna, de Giotto di Bondone – repre- sentação da criança. Para entender melhor a evolução do conceito de criança e de infância, assista ao vídeo Karnal: não existiam crianças antes do século XX, do filósofo Leandro Karnal, publicado pelo canal Band Jornalismo. Disponível em: https://tinyurl. com/yagawo5s. Acesso em: 30 mar. 2020. Vídeo 16 Literatura Infantil o livro infantil nasce com contos folclóricos e fábulas, a fim de garantir comportamentos exemplares, e se aprimora como uma mercadoria para assegurar a passagem dos valores da classe que estava no coman- do dos meios de produção. A preocupação excessiva com o uso pedagógico e moral da literatura infantil acabou por lhe conferir um título de arte com menor valor, uma vez que suas características estéticas foram sendo deixadas de lado nesse cenário. Porém, mesmo em meio a esse contexto, algumas obras merecem destaque por serem livros que transcenderam o pe- dagógico e o utilitário, dando ênfase aos elementos estéticos que produzem a literatura como forma de arte. Como exemplo, ainda no século XVIII, temos Robinson Cru- soé (1719), de Daniel Dafoe, e As viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift. No século XIX, podemos encontrar Os contos dos Irmãos Grimm (1812); Contos (1833), de Hans Christian Andersen; Alice no País das Maravilhas (1863), de Lewis Carroll; As aventuras de Tom Sawyer (1882), de Mark Twain; e Pinóquio (1883), de Carlo Collodi. Todos esses livros se consolidaram como literatura infantil (e juvenil) de qualidade por todo o ocidente, tendo inclusive inúmeras adaptações e versões, tanto em linguagem verbal quanto em outras linguagens, como a do cinema e a dos quadrinhos. Então, não é de se espantar que você conheça a maioria dessas histórias, senão todas! Nossa infân- cia foi povoada por personagens dos contos de fadas europeus, com coleções que traziam adaptações e versões simplificadas para várias idades. Mas não só de literatura estrangeira viveram as crianças brasi- leiras! Nós também fizemos (e continuamos fazendo) muita literatura infantil, e da boa, diga-se de passagem! Vamos ver? 1.2 Literatura infantil do Brasil Vídeo Entre o período do estabelecimento da colônia e o século XIX, não havia produção editorial no Brasil, assim, todos os livros eram im- pressos em Portugal. Logo, as obras literárias que você viu na seção anterior passavam por uma tradução para o português de Portugal, Figura 2 Madone des Guidi de Faenza, de Sandro Botticelli, – representação da criança no Renascimento. BOTTICELLI, S. Madone des Guidi de Faenza. 1470. Têmpera sobre painel, color., 73 x 49 cm. Museu do Louvre, Paris, França. W ik im ed ia C om m on s Entre as obras citadas, pesquise a respeito daquelas que chamarem mais a sua atenção. Quem sabe essa pesquisa possa terminar em uma boa leitura! Desafio Processo histórico da literatura infantil 17 e assim vinham ao Brasil, para aqueles que podiam pagar. No caso do povo em geral, prevaleciam ainda os contos populares da tradição oral, vindos em sua maioria da cultura ibérica e com temáticas de ca- valaria ou religiosas. Com a vinda da família real para o Brasil, já no século XIX, diversos setores se modernizaram para se adequar ao status de nova sede da realeza. Assim, setores culturais e educacionais se desenvolveram e foi iniciada a produção editorial brasileira, com a Imprensa Régia, implan- tada em 1808. Em 1810, D. João VI implementou a Biblioteca Nacional, com a importação de inúmeros volumes de Portugal. Tal progresso continuou a avançar a passos largos com a Indepen- dência proclamada por D. Pedro I, com a estabilidade das recentes uni- versidades e criação de novas e com o reconhecimento da educação como necessidade às elites. Assim, o livro infantil também se estabe- lece enquanto necessidade pedagógica e, em especial, como artefato para a alfabetização. As literaturas escolares, ou livros de leitura, que passam a ser produzidas no Brasil no século XIX se firmam – assim como na Europa do século XVIII – como utilitárias e ligadas aos valores da sociedade brasileira da época. Conforme Coelho (2010, p. 223): Analisadas em conjunto, essas obras pioneiras (sejam adapta- ções, traduções ou originais) revelam facilmente a natureza da formação ou educação recebida pelos brasileiros desde meados do século XIX. Uma educação orientada para a consolidação dos valores do Sistema herdado (= mescla de feudalismo, aristocra- cismo, escravagismo, liberalismo e positivismo). Coelho (2010) ainda salienta que os valores contidos nos livros escolares brasileiros desse período podem ser caracterizados por nacionalismo, intelectualismo, tradicionalismo cultural e mora- lismo e religiosidade. Veja a seguir as características de cada um des- ses valores: 18 Literatura Infantil Nacionalismo Intelectualismo Tradicionalismo cultural Moralismo e religiosidade Maior ênfase na língua falada no Brasil, diferen- ciando-se do Português europeu. Ascensãosocial e econô- mica por meio do saber proporcionado pelo estudo e pelo livro. Valorização de autores consagrados e clássicos europeus. Cumprimento dos preceitos cristãos de caráter, honestidade e pureza. Preocupação com os símbolos da Pátria. Cultura clássica e es- trangeira a ser utilizada como molde para cria- ções nacionais. Destaque ao amor pela terra e pela vida no cam- po, incompatível com a vida urbana. Quadro 1 Características dos valores nos livros escolares do século XIX Fonte: Adaptado de Coelho, 2010, p. 224. Podemos citar algumas obras que introduzem a literatura para crianças enquanto artefato pedagógico. Entre elas: graphixmania/ Shutterstock 186 1 186 8 187 7 188 2 189 0 189 3 189 5 O livro do povo, de Antônio Marques Rodrigues, traz de modo acessível a doutrina cristã e os princípios de economia e ordem. Mesmo com uma literatura utilitarista, acaba por ser um precursor da popularização do livro infantil no país. Método Abílio, de Abílio César Borges, Barão de Macaúba. Com base no modelo europeu, escreveu vários livros de leitura e realizou adaptações de outros livros europeus para que as escolas empregassem como método de alfabetização e ensino da matemática, das ciências, das artes e da leitura. Livros de leitura e série didática, de Felisberto de Carvalho. Essa série concorria diretamente com a de Hilário Ribeiro e instaurava no Brasil um novo método de ensino, com divisão por lições e exercícios de recapitulação, ditado, redação e recitação. Coisas brasileiras, de Romão Puiggari. Sua intenção era a de trazer bom humor para os livros didáticos e repensar o uso de autores e valores estrangeiros em detrimento dos nacionais. Para ele, poemas, histórias, cenário e assuntos tratados deveriam enaltecer o Brasil, inserindo-se, assim, no nacionalismo romântico da época. Anthologia nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Um dos livros escolares mais populares no início do século XX, sendo adotado em grandes colégios das capitais. Era uma antologia de textos a serem trabalhados na escola, sempre dando ênfase à produção literária nacional. Série Instrutiva, de Hilário Ribeiro, foi uma coleção muito popular em diversos estados do Brasil até a década de 1930. Era composta de quatro volumes: Cartilha nacional – primeiro livro e silabário; Cenário infantil; Na terra, no mar e no espaço; Pátria e dever – elementos de educação moral e cívica. Essa coleção instaura de vez o uso do método silábico para a alfabetização nas escolas brasileiras. Conforme Coelho (2010, p. 228), “nessa Série Instrutiva, estão bem caracterizados os valores da Sociedade-liberal-burguesa-cristã, que alicerçam toda a produção didática e literária da época”. O livro do nenê, de Joaquim José de Meneses Vieira, autor de vários outros livros didáticos 1 . 20 contos morais (1880), Manual para os jardins de infância (1882) e Amiguinho Nhonhô (1882). 1 método silábico: trabalho de alfa- betização por meio da compreensão de estruturas maiores do que somente as letras, as sílabas. Glossário Processo histórico da literatura infantil 19 Visualizamos nessas obras a influência incontestável de um pensa- mento positivista que estava presente em todos os setores. As palavras do escritor Francisco Vianna, autor de Leituras infantis (1900), esclare- cem bem o sentimento que imperava nos livros de leitura do fim do século XIX e início do século XX. De acordo com Vianna, citado por Pfromm Neto et al. (1977): ao escrevermos tais livros, não podemos e nem devemos subor- diná-los exclusivamente ao gosto e às tendências das crianças. Toda leitura, qualquer que seja, exerce uma certa reação sobre quem a faz, pois, como demonstrou A. Comte, nada há de indi- ferente ao sentimento. Assim sendo, convém aproveitar em tais lições assuntos que concorram para a formação de seus senti- mentos e de seu caráter, em suma, de seu moral. Isto só se pode obter desenvolvendo o altruísmo e comprimindo o egoísmo. (apud COELHO, 2010, p. 235) Logo, podemos entender por esse trecho o quão atreladas ao ensi- no de valores e da aquisição da habilidade de leitura eram tais obras. Além disso, precisamos lembrar que o crescente interesse pelos livros didáticos ainda está ligado ao sentimento burguês que descrevemos anteriormente. Esses valores, já estabelecidos na Europa, chegavam até nós com o amadurecimento de uma sociedade brasileira ainda muito jovem. Assim, a necessidade de se educar para a formação do ca- ráter e da moral, como citado no trecho visto anteriormente, é também uma necessidade de perpetuar valores da classe dominante, afinal, no século XIX e início do século XX, quem frequentava as escolas? Pois é, somente pessoas com condições financeiras enviavam seus filhos para serem educados e para perpetuarem os valores nascidos com a burguesia europeia. Os mais pobres, as meninas e os filhos de escravizados recém-alforriados não estavam nessa equação (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007). Porém, embora o início da literatura infantil se confunda com o dos livros didáticos, não devemos pensar que não havia literatura in- fantil como forma de arte. Temos, sim, algumas obras que, já no sé- culo XIX e início do século XX, podem ser consideradas por seu valor estético. Veja algumas: Para trabalhar contos em sala, nada melhor que utilizar compilações com comentários e fatos históricos. Para isso, leia os livros de Ângela Carter e de Maria Tatar, os quais trazem inúmeros contos (conhecidos ou não) para você se encantar. CARTER, A. 103 contos de fadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. TATAR, M. (ed.). Contos de fadas: edição comentada e ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. Livro 20 Literatura Infantil • Contos infantis (1886), de Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira. São 60 histórias em prosa e em verso, as quais se consa- gram como o primeiro livro destinado também à diversão, além da instrução. Júlia Almeida ainda escreveu outros títulos que se ligam ao nacionalismo e à pedagogia, mas sempre trazendo o maravilhoso em suas histórias. • Contos da carochinha (1896), de Figueiredo Pimentel. Essa foi a primeira coletânea de contos infantis, fábulas, lendas, parábolas e outros gêneros traduzida para o português do Brasil, dissemi- nando a cultura dos contos de fadas em território nacional. • Livro das crianças (1897), de Francisca Rolim. A poetisa escreveu contos em historietas em versos, e seu livro foi adotado para as escolas do estado de São Paulo. • Livro da infância (1899), de Francisca Júlia, poetisa parnasiana que escreveu 40 textos em poesia e prosa, com grande influência de escritores alemães. Sua obra também foi adotada pelo estado de São Paulo para suas escolas. • O tico-tico (1905), jornal infantil que permaneceu no mercado por muitos anos. Inaugurou no país uma cultura de histórias em quadrinhos (HQs), trazendo inicialmente cópias de ilustrações de HQ americana Buster Brown, que, para nossa realidade, foi trans- formado no personagem travesso Chiquinho. Após Buster Brown ser cancelada nos EUA, Chiquinho continuou a aparecer no jornal infantil por intermédio de diversos artistas nacionais, que, aos poucos, foram criando outros personagens. O jornal também trazia quebra-cabeças, jogos e enigmas e esteve em circulação por 53 anos. Foi por suas páginas que nós tivemos o primeiro contato com O Gato Félix e Mickey Mouse, ambos de Walt Disney. • As nossas histórias (1907), de Alexina de Magalhães Pinto, é uma cole- tânea folclórica produzida em um esforço de renovação da literatura infantil. • Páginas infantis (1908), de Presciliana Duarte de Almeida, é uma coletânea de historietas que intenta divulgar novas ideias educa- cionais e, também, feministas. • Era uma vez (1908), de Viriato Correia, é uma reunião de contos maravilhosos e folclóricos, com maior preferência pelas fábulas e por tratar temas históricos de maneira divertida. Processo histórico da literatura infantil21 • Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manuel Bonfim. Um mar- co na nossa literatura infantil, traz uma única história de aventu- ra (uma novela), e não vários contos e pequenas histórias como seus antecessores. Também insere o gênero de viagem pedagó- gica, utilizado na Europa, fazendo com que seus personagens principais viagem pelo Brasil conhecendo suas diferenças histó- ricas, geográficas, naturais e culturais. • Biblioteca infantil (1915), Arnaldo de Oliveira Barreto. Foram 25 títulos de contos, como O patinho feio, Gato de Botas, O soldadi- nho de chumbo, entre outros, todos ilustrados pelos artistas mais consagrados da época. Tal coletânea se perpetuou por muitos anos e chegou até nós com melhorias gráficas e adaptações. • Saudade (1919), de Tales de Andrade. Nos moldes da novela de Olavo Bilac e Manuel Bonfim, abriu caminho para uma literatu- ra infantil com temática rural, a qual foi bastante explorada nos anos seguintes. A vida rural se insere aqui com o reconhecimen- to de novos ideais de paz e justiça social após uma guerra que abalou os valores de progresso e urbanização. Saudade mescla ficção e realidade e enaltece uma vida simples e desvalorizada pela cidade, bem como a natureza. Tales de Andrade instaurou uma nova categoria a ser perseguida por autores de literatura infantil no século XX, a de ruralismo, uma exal- tação à vida simples e dura do campo, com um quê de bucolismo e amor pela natureza. E aqui estão lançadas as bases para uma literatura infantil genuinamen- te brasileira e com ênfase em seu estado de arte. Será que você consegue pensar em algum escritor que compreende esse cenário em que são ne- cessários livros para a educação escolar e para o ensino de valores como o ruralismo, mas que não deixa de lado o divertimento e o maravilhamento? 1.2.1 Monteiro Lobato e o nascimento da literatura infantil brasileira Como vimos, o cenário brasileiro aos poucos foi se modificando, pas- sando de uma necessidade por copiar modelos europeus de arte e edu- bucolismo: temas campestres retratados na arte. Glossário 22 Literatura Infantil cação para encontrar um tom que fosse brasileiro, levando em conta nossa geografia, história e natureza. Assim, a literatura infantil, a partir dos anos 1920, leva em conta também algumas das características pro- duzidas por novos valores da primeira fase do movimento modernista, como a liberdade, o humor, o nacionalismo, o relato do cotidiano e uma busca pela língua brasileira, pelos falares do povo. Eis que então surge José Bento Renato Monteiro Lobato, figura que inicia sua carreira no jornal O Estado de São Paulo denunciando as quei- madas no interior do país, pois antes de ser escritor, Monteiro Lobato era fazendeiro. Inicialmente, Lobato ficou conhecido por suas críticas sociais na figura do Jeca, um caboclo a quem o autor via como um para- sita, alguém preguiçoso e sem cuidado com a terra. Da mesma forma, o escritor também criticava os governos, por estarem mais ligados à Primeira Guerra Mundial na Europa do que às necessidades do país. Aos poucos, Lobato alterou sua visão do homem do interior, do cabo- clo. Percebeu que sua condição vem da falta de educação e de condições básicas para a sobrevivência e entendeu, assim, que seu modo de vida não é enaltecido como faziam no Romantismo. No período romântico da literatura brasileira, o homem do interior era tido como afortunado por poder viver em contato com a natureza; depois, passou a representar uma cultura arcaica e simples demais, com seus contos e folclores. À essa época, a literatura brasileira estava mergulhando no Moder- nismo, movimento que prezava muito pelas vanguardas europeias e por novos rumos para a cultura e sociedade brasileiras. Entretanto, Lobato se opunha a esse pensamento modernista, pois pensava que a literatura feita em território nacional deveria promover uma literatura realmente brasileira – olhando para suas raízes, sua língua, seus folclo- res –, e não importar estilos europeus de arte. Ao criticar alguns dos preceitos do movimento modernista, identifican- do certo vazio de significados nessas obras, Lobato foi colocado à margem do movimento e tido como conservador e pré-modernista. O escritor le- vantava, ainda, que uma arte que não era compreendida pelo povo não seria popular, e sim mais um artefato produzido pela e para as elites. Lobato defendia que era do povo que deveria surgir a arte natu- ralista brasileira, afirmando que o povo possuía capacidade para de- senvolver um estilo próprio com base em suas raízes. Dessa forma, Processo histórico da literatura infantil 23 contestava a arte canônica de estilo rebuscado e inacessível à popula- ção, arte essa que vinha do tempo do Império. O escritor também foi proprietário da Revista do Brasil – periódico de cultura que se tornou editora, a qual, anos depois, foi rebatizada como Monteiro Lobato & Cia Editores –, publicando seu primeiro livro, Urupês, em 1918, com a tiragem de mil exemplares esgotada em um mês, um fenômeno para a época, sendo um pioneiro no mercado edi- torial brasileiro. Para Lobato, portanto, a arte deveria ser popular, feita das raízes do povo e para o povo. Assim, conforme o pesquisador Vitor Lacerda (2008, p. 22), citando o pensamento de Lobato: acreditando que o estilo nacional deveria estar em íntima conso- nância com o povo, Lobato afirma que ele não poderia ser criado, mas que deveria nascer naturalmente “por exigência do meio”. Contudo, como essa exigência não estaria colocada no Brasil, ela deveria ser provocada não pelos grandes mestres, mas sim pelo “artista legião”, o artesão anônimo, capaz de moldar a “feição es- tética duma cidade”: o marceneiro, o serralheiro, o entalhador, o fundidor, o estofador e o ceramista. A formação desse artista seria responsabilidade do Liceu de Artes e Ofícios, que deveria incitá-lo a “olhar em torno de si e a tirar da natureza circunjacen- te os assuntos das composições, o motivo dos ornatos, a matéria prima, enfim, da sua arte”. Assim, embora Monteiro Lobato tenha sido um divisor de águas da literatura infantil e elevado os padrões estéticos dessa arte, a necessi- dade de pensar a literatura para crianças enquanto formadora ainda permaneceu, porém com maior liberdade criadora e sem os preceitos moralizantes das obras anteriores. Sua obra foi um marco, pois ultra- passa o didatismo e a questão educacional e pedagógica para incentivar uma ação leitora de liberdade criadora. Seus livros infantis permitiram a criatividade, a curiosidade e a descoberta do mundo. Com esse desejo, o de levar conhecimento e gosto pelo saber, Lobato se colocou a favor de um novo modelo de educação, publican- do seu primeiro livro infantil, A menina do narizinho arrebitado (1920). Com fins escolares, Lobato apresenta, nessa obra, um pensamento que mais tarde se aproxima do movimento da Escola Nova, aproximação dada tanto por sua afinidade com um novo projeto educacional quanto Com uma visão de desenvolvi- mento nacional, especialmente ligado aos meios de extração, como poços de petróleo e latifúndios, Lobato acreditava que as crianças seriam o futuro do Brasil e, assim, precisavam ser formadas com a cultura brasileira, e não estrangeira. Também entendia que a literatu- ra para crianças não deveria ser moralizante e nem rebuscada, porém, para ele, o processo de escrita deveria ser empregado com um fim de transmissão de uma mensagem, e não apenas como forma entretenimento. Importante 24 Literatura Infantil por sua amizade com Anísio Teixeira, que travava uma batalha para a implantação do novo sistema de ensino. Sendo assim, Lobato, em sua obra infanto-juvenil, valoriza o dom da inteligên- cia e o emprego de um tipo de educação que a estimule, que a torne criadora, por meio das descobertas e das invenções, portanto livre de restrições, repetitivismos e preconceitos. Uma didática baseada no vital, no real, no concreto constituiria a via para inovações e revelações. Consistiria,pois, numa pedagogia para o progresso. (NUNES, 1998, p. 250) Para alcançar esse intento, Lobato sentiu a necessidade de fazer uso de fábulas e mitos brasileiros. O autor criou, então, o que se torna- ria uma coletânea de 23 obras originais voltadas para o público infantil. Essas obras contavam com um estilo simples, reunindo elementos da realidade rural e suas peculiaridades com a fantasia, o imaginário fol- clórico e a mitologia grega, abordando ensinamentos de história, ma- temática e geografia. Veja a linha do tempo das principais obras infantis de Monteiro Lobato: Saiba mais Entre 1952 a 1964, o programa O sítio do Pica-pau Amarelo, exibido pela TV Tupi, foi um grande sucesso tele- visivo. A série, adaptada por Tatiana Belinky e dirigida por Júlio Gouveia, teve 360 episódios. A segunda versão da série para a televisão foi realizada pela Rede Globo entre os anos de 1977 e 1986, com roteiros de Benedito Ruy Barbosa, Marcos Rey, Silvan Paezzo e Wilson Rocha, e dirigida, em sua maioria, por Geraldo Casé. Em 2001, a TV Globo realizou uma nova versão de O sítio do Pica-pau Amarelo, com inúmeros roteiristas e diretores e trazendo uma criança para interpretar o papel de Emília. Para saber mais sobre as adaptações desse clássico da nossa literatura infantil, visite o site disponível em: https://tinyurl.com/ybam2p6h. Acesso em 5 abr. 2020. Monteiro Lobato não é imune a críticas, em especial quando avançamos no sistema de valores vigentes. Há alguns anos, começaram discussões a respeito do racismo presente em suas obras. Enquanto escritor, não se retira seu peso da história da literatura infantil, mas com certeza não se pode deixar de lado tal discussão. Leia a matéria es- crita por Adilson Miguel para a Revista Emília e reflita sobre suas impressões acerca da obra de Lobato e sua relação com o racismo. Disponível em: https://revistaemilia.com.br/lobato-e-o-racismo/. Acesso em: 7 maio 2020. Atividade 2 1921 1935 1937 1941 19441927 19331931 1922 1930 1932 1934 1936 1939 1942 1947 O saci Aritmética da Emília; Geografia de Dona Benta; História das invenções Serões de Dona Benta; O poço do Visconde; Histórias de Tia Nastácia A reforma da natureza Os doze trabalhos de Hércules (dois volumes) As Aventuras de Hans Staden Caçadas de Pedrinho e História do mundo para as crianças Reinações de Narizinho (inclui A menina do narizinho arrebitado e outras histórias da década de 1920) Fábulas Peter Pan Viagem ao céu Emília no País da Gramática Dom Quixote das crianças; Memórias da Emília O Pica-pau Amarelo; O minotauro A chave do tamanho Histórias diversas https://revistaemilia.com.br/lobato-e-o-racismo/ Processo histórico da literatura infantil 25 por sua amizade com Anísio Teixeira, que travava uma batalha para a implantação do novo sistema de ensino. Sendo assim, Lobato, em sua obra infanto-juvenil, valoriza o dom da inteligên- cia e o emprego de um tipo de educação que a estimule, que a torne criadora, por meio das descobertas e das invenções, portanto livre de restrições, repetitivismos e preconceitos. Uma didática baseada no vital, no real, no concreto constituiria a via para inovações e revelações. Consistiria, pois, numa pedagogia para o progresso. (NUNES, 1998, p. 250) Para alcançar esse intento, Lobato sentiu a necessidade de fazer uso de fábulas e mitos brasileiros. O autor criou, então, o que se torna- ria uma coletânea de 23 obras originais voltadas para o público infantil. Essas obras contavam com um estilo simples, reunindo elementos da realidade rural e suas peculiaridades com a fantasia, o imaginário fol- clórico e a mitologia grega, abordando ensinamentos de história, ma- temática e geografia. Veja a linha do tempo das principais obras infantis de Monteiro Lobato: Saiba mais Entre 1952 a 1964, o programa O sítio do Pica-pau Amarelo, exibido pela TV Tupi, foi um grande sucesso tele- visivo. A série, adaptada por Tatiana Belinky e dirigida por Júlio Gouveia, teve 360 episódios. A segunda versão da série para a televisão foi realizada pela Rede Globo entre os anos de 1977 e 1986, com roteiros de Benedito Ruy Barbosa, Marcos Rey, Silvan Paezzo e Wilson Rocha, e dirigida, em sua maioria, por Geraldo Casé. Em 2001, a TV Globo realizou uma nova versão de O sítio do Pica-pau Amarelo, com inúmeros roteiristas e diretores e trazendo uma criança para interpretar o papel de Emília. Para saber mais sobre as adaptações desse clássico da nossa literatura infantil, visite o site disponível em: https://tinyurl.com/ybam2p6h. Acesso em 5 abr. 2020. Monteiro Lobato não é imune a críticas, em especial quando avançamos no sistema de valores vigentes. Há alguns anos, começaram discussões a respeito do racismo presente em suas obras. Enquanto escritor, não se retira seu peso da história da literatura infantil, mas com certeza não se pode deixar de lado tal discussão. Leia a matéria es- crita por Adilson Miguel para a Revista Emília e reflita sobre suas impressões acerca da obra de Lobato e sua relação com o racismo. Disponível em: https://revistaemilia.com.br/lobato-e-o-racismo/. Acesso em: 7 maio 2020. Atividade 2 1921 1935 1937 1941 19441927 19331931 1922 1930 1932 1934 1936 1939 1942 1947 O saci Aritmética da Emília; Geografia de Dona Benta; História das invenções Serões de Dona Benta; O poço do Visconde; Histórias de Tia Nastácia A reforma da natureza Os doze trabalhos de Hércules (dois volumes) As Aventuras de Hans Staden Caçadas de Pedrinho e História do mundo para as crianças Reinações de Narizinho (inclui A menina do narizinho arrebitado e outras histórias da década de 1920) Fábulas Peter Pan Viagem ao céu Emília no País da Gramática Dom Quixote das crianças; Memórias da Emília O Pica-pau Amarelo; O minotauro A chave do tamanho Histórias diversas https://revistaemilia.com.br/lobato-e-o-racismo/ 26 Literatura Infantil 1.2.2 Literatura infantil pós-Lobatiana até os anos 2000 Após Lobato, os governos e outras esferas sociais passaram a ter maior preocupação com o panorama educacional, impulsionando a pro- dução de literatura infantil. Durante as décadas de 1920, 1930 e 1940, somente Lobato se levantou como autor de histórias literárias, e não me- ramente educativas, com todos os outros autores do período acabando por exagerar no tom pedagógico de suas obras infantis. Dessa forma: o panorama dos anos de 1930-1940 mostra que, além dos livros de Lobato e das obras clássicas traduzidas ou adaptadas, apenas alguns escritores, entre os que escreveram na época, atingiram a desejável literariedade. No geral, predomina o imediatismo das informações úteis e da formação cívica. (COELHO, 2010, p. 265) Segundo Coelho (2010), nas décadas de 1920 e 1930, com o crescen- te interesse pela educação, instaurou-se uma briga entre a literatura de fantasia e a literatura realista. Para a escola em geral, a literatura de fan- tasia era fútil; a única que deveria ser pensada era a realista, aquela que mostrava a realidade do país e preparava alunos para situações da vida cotidiana. Assim, a habilidade de sonhar e de criar estava sendo deixada de lado pela escola e, consequentemente, pela literatura infantil. Enfim, nos anos 40, surge um tipo de literatura para crianças e jovens que procura eliminar, de sua gramática narrativa, as “ir- realidades”, o extraordinário e o maravilhoso que sempre carac- terizaram a Literatura Infantil. Fadas, bruxas, duendes, talismãs, gênios, gigantes, castelos, princesas ou príncipes encantados, etc. foram sistematicamente combatidos como “mentiras”. De- fendia-se o princípio de que os contos de fada ou maravilho- sos em geral falsificavam a realidade e seriam perigosos para a criança, pois poderiam provocar em seu espírito uma série de alienações como: perda de sentido do concreto, evasão do real, distanciamento da realidade, imaginação doentia, etc. (COELHO, 2010, p. 272) Enquanto diversão despretensiosa de moralidadese desarticula- da do cenário didático, seguiam em alta os livros de Lobato e a revis- ta O Tico-Tico. Além deles, outras revistinhas, que não duraram tanto tempo, também foram surgindo, sempre trazendo histórias divertidas que eram grande sucesso entre as crianças e os jovens. Com essas re- vistas, iniciamos uma nova fase na literatura infantil brasileira, a dos A era de nascimento dos super-heróis coincidiu com a quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929 e o período de recessão econômica que perdurou até 1933. Nesse período, muitos trabalhadores perderam seus empregos e os índices de criminalidade se elevaram sensivelmente. Assim, nasceram super-heróis como o Batman para proteger cidadãos e combater o crime. Saiba mais Processo histórico da literatura infantil 27 quadrinhos, especialmente com traduções de HQs americanas de su- per-heróis, como Batman, Superman, entre outros títulos, e a entrada do gênero policial, em especial com Sherlock Holmes. Se com Lobato tivemos personagens centrais femininas como Narizinho e Emília, o que você acha que passou a acontecer a partir da década de 1930? Você acertou se disse que os protagonistas das grandes histórias subsequentes eram todos homens (ou meninos). Inicia-se uma divisão de literatura para meninos e para meninas. Para meninos, logicamen- te, a diversão, o humor, as invenções e a investigação. Para meninas, relacionamento e valores morais ligados ao seu papel no lar. Além de princesas, é claro! Vale fazermos uma leitura breve das obras para meninas na me- tade do século XX, afinal super-heróis e contos policiais não precisam de apresentação, pois estão aí até hoje entretendo pessoas de todas as idades e conquistando milhões em dinheiro no cinema! Mas essa é uma outra história. A literatura dessa época ficou conhecida como literatura rósea, se- gundo Coelho (2010). De fato, foi um gênero criado já no Romantismo e que formou muitas das mulheres até quase a década de 1960 com uma visão de mundo paternalista e dedicada à inserção da mulher na vida familiar e doméstica. Eram normalmente coleções, das quais fa- ziam parte: Coleção Menina e Moça (José Olympio); Biblioteca das Moças (Editora Nacional); e Coleção Rosa (Livraria Acadêmica). Aí você pode se perguntar: e para as crianças? Bem, para meninas, assim que conquistassem a alfabetização, dado que, até aqui, a litera- tura infantil era pensada sempre no sentido educacional, então, antes da alfabetização, as histórias contadas eram os velhos contos de fadas e fábulas já tão perpetuados no imaginário coletivo, além de histórias com linguagem infantilizada, enfatizando as travessuras (e o preço pago por elas) e o encorajamento do respeito às ordens dos adultos (COELHO, 2010). Nos anos seguintes (década de 1950), a maior diferença em relação a décadas anteriores é que a fantasia começou (muito timidamente, veja bem!) a retornar aos livros infantis. Mas as obras ainda seguiam os mesmos preceitos de suas antecessoras. Então, o fator mais louvável Para você, por que ainda hoje encontramos a separação de livros para meninos e para meninas? Qual o reflexo dessa divisão no desenvolvimento das crianças? Atividade 3 Os sites a seguir trazem listas de livros que trabalham a relação de gênero na literatura in- fantil. É muito importante considerarmos obras que reflitam a respeito dos papéis impostos sobre meninos e meninas na sociedade e sobre seu re- flexo no desenvolvimento emocional de cada um e na construção de suas identidades enquanto seres sociais. Disponíveis em: https://tinyurl.com/ya3urhjj https://tinyurl.com/yb6dgean (Acesso em: 5 abr. 2020) Site 28 Literatura Infantil nesse campo foi a maior disseminação dos quadrinhos (em especial de- vido à maior abrangência dos aparelhos de televisão e do cinema), com a introdução de Pato Donald nos jornais e nas revistinhas brasileiras. Mas claramente essa disseminação das HQs não passaria desperce- bida por uma sociedade tão ligada aos valores tradicionais de ensino quanto a sociedade brasileira. Uma comissão, da Secretaria de Educa- ção de São Paulo, atribuiu aos quadrinhos a “preguiça de ler” crescente entre os alunos, vetando sua entrada nas bibliotecas. É claro que, como ocorre em toda boa proibição, o mercado editorial se beneficiou mui- tíssimo dos quadrinhos, ampliando edições, títulos e tiragens. Na década de 1960, temos a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB de 1961), a qual promove o trabalho com li- teratura para a aquisição da gramática, impulsionando a produção de obras voltadas aos públicos infantil e juvenil nas décadas de 1960, 1970, 1980 e 1990. Nesse impulso, nasceram HQs brasileiras e obras de grandes autores em prosa, verso e teatro. Essas décadas marcaram o florescimento de uma literatura engaja- da socialmente, em especial pelo período da ditadura militar instaurada com o golpe de 1964. O reflexo desse movimento será percebido inclusi- ve nos anos finais do governo ditatorial e no início da nova democracia. A seguir, temos uma lista tímida de autores mais importantes nes- ses 40 anos, mas que continuam em alta até hoje. Nos quadrinhos: Ziraldo (O menino maluquinho) e Maurício de Sousa (Turma da Mônica). Na prosa: • Clarice Lispector – O mistério do coelho pensante (1967) e A mulher que matou os peixes (1968). • Lygia Bojunga – A bolsa amarela (1976). • Ana Maria Machado – suas obras mais famosos são Bisa Bia, Bisa Bel (uma novela de 1981) e Menina bonita do laço de fita (2000). • Ruth Rocha – escreveu histórias inéditas, como Marcelo, mar- melo, martelo (1976), e adaptações como, Romeu e Julieta e A arca de Noé. • Rachel de Queiroz – O menino-mágico (1969) e Cafute e Pena-de-prata (1986). • Pedro Bandeira – obras como A marca de uma lágrima (1985) e É proibido miar (1983). • Tatiana Belinky – Limeriques (1987). Processo histórico da literatura infantil 29 No teatro: • Pedro Bandeira – O fantástico mistério da Feiurinha (1985). • Ana Maria Machado – O rapto das cebolinhas (1954); Pluft, o fantasminha (1955); A menina e o vento (1963); entre muitas outras obras. Na poesia: • Marina Colasanti – A centopeia. • Mário Quintana – Poeminha do contra. • Sérgio Capparelli – Canção para ninar dromedário. • Cecília Meireles – Ou isto ou aquilo (1964); A canção dos tamanquinhos. • José Paulo Paes – Convite. • Vinícius de Moraes – As borboletas. Não podemos deixar de lado um capítulo importantíssimo da lite- ratura infantil brasileira em versos. O capítulo da Música Popular Bra- sileira (MPB). Internacionalmente, bandas e estilos musicais diversos surgiam, comandados pela banda The Beatles e por estilos como o Blues e o Rock. Já no Brasil, o cenário era outro. Com o golpe militar de 1964 e uma ditadura que acirraria as frontei- ras da censura, a música viu o desenvolvimento da Bossa Nova, criada anos antes, e de todo um movimento de denúncia e crítica daquele mo- mento histórico brasileiro por meio do lirismo da MPB, a qual ganhou os palcos televisionados dos festivais de música brasileira, podendo le- var uma cultura ímpar para todos os cantos do país. Compositores e cantores como Chico Buarque (“Os saltimbancos”), Vinícius de Moraes (“A casa”), Toquinho (“Aquarela”) e Caetano Veloso (“Leãozinho”) fizeram algumas das canções brasileiras mais conheci- das até hoje, com diversas interpretações e adaptações para teatro e cinema. Nesse novo cenário da literatura infantil brasileira, deixamos para trás (quase) todas as características das obras anteriores à década de 1960. Ao menos com grandes autores. Se espiarmos bem, encontra- mos ainda muitas obras que servem ao didatismo mais que ao pra- zer da leitura. Mas, no geral, talvez seja seguro dizer que, com esses e tantos outros escritores, a literatura infantil deixou o patamar de “arte menor”, conforme as palavras de Coelho (2010, p. 283): 30 Literatura Infantil A par de inúmeros “continuadores” que seguem nas trilhas bati- das,surgiram dezenas de escritores e escritoras de “arte maior”, sintonizados com a nova palavra de ordem: experimentalismo com a linguagem, com a estruturação narrativa e com o visualis- mo do texto; substituição da literatura confiante/segura por uma literatura inquieta/questionadora, que põe em causa as relações convencionais existentes entre a criança e o mundo em que ela vive, questionando também os valores sobre os quais nossa so- ciedade está assentada. (2010, p. 283) A literatura infantil brasileira transitou entre o didatismo e a estética para se estabelecer como uma necessidade existencial, de experiência da realidade por meio do simbólico. Isto é, nossa história, embora cruel e opressora, promoveu o aprimoramento de uma arte que coloca em pauta a crítica da realidade, a fantasia e também a própria construção do sujeito no mundo. Nas décadas de 1980 e 1990, inúmeros títulos caíram nas graças dos pequenos leitores e das escolas. Tanto obras brasileiras quanto estrangeiras foram muito aclamadas, como a série Harry Potter, de J.K. Rowling. A década de 1990 viu um mercado literário se adaptar e se expandir para dar conta de um público novo (em idade, afinal crianças sempre foram movidas a histórias), reconhecendo o valor artístico e de mercado de obras para crianças. O maior desafio (o qual ainda persiste) seria o trabalho com a litera- tura nas escolas, pois os cursos de formação de professores não acom- panharam tal evolução, embora atualmente vejamos um movimento docente muito mais consciente da necessidade do bom trabalho com literatura e arte. Assim, com tantas obras que trazem à tona uma reflexão sobre a realidade do leitor, adentramos o novo século. Mas não sem desafios para a literatura infantil. Reinventar-se é preciso, então vamos desco- brir essas reinvenções do século XXI. 1.3 Tendências atuais: do impresso ao digital Vídeo Com o século XXI, vimos florescer o uso da tecnologia em todos os setores, e a literatura não ficou de fora. Em primeiro lugar, vemos o uso abundante de novos projetos gráficos, com ilustrações de diferentes traços, fontes diversas, novos materiais e novas formas de se pensar o design e o uso do livro infantil. Processo histórico da literatura infantil 31 Várias editoras aumentaram seus faturamentos com a publicação de livros infantis, especialmente em decorrência de programas gover- namentais para a aquisição de tais obras, destinadas à escola pública, e de novas legislações iniciadas já na década de 1990. Com uma nova legislação educacional, outras formas de pensar literatura e educação surgiram. Uma delas são os chamados temas transversais, temáticas li- gadas a outras áreas do conhecimento e que devem ser tratadas em livros literários, como ecologia, saúde e cidadania. Temas transversais também iniciam o movimento de uma literatura que coloca em cena a diversidade e as minorias. Porém, com um belo caminhar, temos hoje livros que não tratam mais essas temáticas en- quanto transversais a outras disciplinas, e sim colocam questões de gênero, raça, etnia, classe, direitos humanos e marginalização como centrais em suas narrativas. Vemos, então, o estabelecimento de uma visão que privilegia a fun- ção social e artística da literatura, em comparação com o grande peso didático e instrucional dado a ela em décadas anteriores. A linguagem acessível às crianças trouxe ainda a valorização das culturas brasileiras e a transformação de significados da língua e da sociedade, ampliando tanto o vocabulário quanto o arcabouço de conhecimentos e capacida- de crítica. Os livros infantis atualmente deveriam ter como objetivo tanto a imaginação, a criatividade e a fantasia quanto uma postura questio- nadora dos contextos sociais. Afinal, se ler é um ato político, isto é, a construção de significados capazes de nos inserir nos diferentes con- textos sociais e transformá-los, a literatura para crianças deve seguir esse curso, sempre explorando uma vertente de reflexão crítica, inde- pendentemente da linha que aderir. E por falar em linhas, como ficam as características básicas dessa literatura crítica e criativa para crianças? Será que para propiciar essas discussões é obrigatório termos obras que só trabalhem com o plano real? O que você pensa a respeito disso? Com certeza, não! Podemos usar muitos mundos, reais e imaginá- rios, para refletir sobre as diferenças, a sociedade e as situações que a vida nos apresenta. Veja a seguir as tendências que marcam a literatura infantil e juvenil na atualidade: Relate como você percebe as diferenças entre a literatura atual e a literatura do início do século XX no Brasil. Atividade 4 Se fôssemos fazer uma lista extensa com todas as obras relevantes para atualidade, não sairíamos mais deste capítulo! Brincadeiras à parte, as listas dos seguintes sites podem lhe dar uma boa ideia de obras voltadas às crianças na atualidade. Pesquise aquelas que lhe interessarem mais e faça, se possível, a leitura de algumas, para ter mais familiaridade com esse universo. Disponíveis em: https://tinyurl.com/y7fqxhbh https://tinyurl.com/y9wggzx2 https://tinyurl.com/y7p4jnc3 https://tinyurl.com/ y8a8l347https://tinyurl.com/ yclotqdx (Acesso em: 4 abr. 2020) Site 32 Literatura Infantil Linha realista Linha fantástica Linha híbrida Testemunha o cotidiano em que se insere o leitor e permite o contato com outras realidades distintas. Mundo fantástico, maravilho- so, criado pelo mundo das ideias. Realismo mágico, muito utilizado na América Latina por inúmeros escrito- res, entre eles Monteiro Lobato. Informa hábitos e costumes de diferentes culturas. Personagens animais; ficção científica; espaço atemporal do “era uma vez”; metafísica; distopias. Entrada de um contexto irreal, mági- co, no contexto real do cotidiano. Explora situações-problema como a poluição e a desigualdade. Trazem uma atração pelo desconhecido, por situações que, embora irreais, pode- riam acontecer. As narrativas indígenas e africanas podem ser híbridas quando misturam a história de seus povos com elemen- tos maravilhosos. Coloca em pauta dores e sofrimentos normais da vida, preparando psicologicamente os leitores. Aventuras que não têm lugar na realidade concreta. Livros que demandam interação da criança pequena, fazendo a vez de livro-objeto, como no caso dos livros de borracha para banho ou de livros em outros suportes e formatos. Quadro 2 Tendências da literatura infantojuvenil Fonte: Adaptado de Coelho 2010, p. 289-291. Como podemos ver, as linhas realista e fantástica são nossas conhe- cidas e caminham juntas desde a invenção da literatura. Vamos nos de- ter um pouco na linha híbrida e, mais especificamente, nas obras que promovem interações diferentes entre suporte e leitor. O livro em formato pop-up não tem nada de novo. A técnica foi in- ventada já no século XIV, porém, na atualidade, ganhou força, em es- pecial recontando grandes histórias. Outro formato difundido para crianças são os livros com interações, como dedoches, cartões, peda- ços móveis, peças com velcro, e assim por diante, sempre explorando os sentidos de maneira interativa e lúdica. Mas a maior revolução veio de fato com a tecnologia. A primeira revolução se deu com a hipertextualidade, nova possibilidade de lei- tura que o digital nos proporciona. Com a era do hipertexto, podemos apresentar às crianças leituras que não acabam em si. Com os livros digitais (e-books), a era da interação com a narrativa se amplificou, en- globando diversos formatos em uma narrativa que pode ser construída com a ajuda do leitor. Apesar de o nome pop-up re- meter a algo novo, esse formato de livro é bem antigo. Para saber mais sobre o livro em formato pop-up, acesse o link: https://tinyurl.com/y9b65q6y Saiba mais dedoches: fantoches de dedo. hipertextualidade: possibilidades de colaboração na construção do texto, com vídeos, imagens, entre outros recursos, além de maior contribuição do leitorpara a construção dos significados da narrativa. Glossário Processo histórico da literatura infantil 33 As editoras de materiais didáticos são as que mais investem atual- mente no formato de livro digital. Ao iniciar a leitura, uma criança (ou seu mediador) poderá decidir se continua de modo linear, conforme seguem as páginas, ou se clica em vídeos, áudios e jogos atrelados à narrativa e ocultos sob links. Entre as atrações, a realidade aumentada tem sido uma febre, tanto para a literatura quanto para conteúdos didáticos. Para essa tecnolo- gia, as editoras utilizam o livro impresso com imagens que podem “ga- nhar vida” em 3D ou acionar um jogo com o uso do celular ou tablet. Aliás, atualmente jogos também são formas literárias, pois muitos baseiam seus mundos e personagens em uma narrativa bem formula- da. Logo, analisando a natureza dessa literatura, neste limiar do século XXI, conclui-se que hoje não há um ideal absoluto de Literatura Infantil/Juvenil (nem de nenhuma outra espécie literária). Será “ideal” aquela que corresponder a uma certa necessidade do tipo de leitor a que ela se destina, em consonância com a época em que ele está vivendo... Vista em conjunto, a atual produção de Literatura destinada a crianças e jovens, entre nós, apresen- ta uma crescente diversidade de opções temáticas e estilísticas, sintonizadas com a multiplicidade de visões de mundo que se superpõem no emaranhado da “aldeia global” em que vivemos. (COELHO, 2010, 289) A próxima etapa com certeza será explorar o uso de óculos de rea- lidade virtual para interagir com o mundo criado pelas obras infantis, inserindo o leitor como um participante que construirá a história den- tro do cenário. Agora é aguardar pelos próximos capítulos! E você, já pensou em como será a literatura infantil do futuro? Para aprofundar seus conhecimentos sobre a literatura infantil em tempos de avanço das mídias digitais, leia o artigo A literatura infantil digital: o design das histórias interativas, de Douglas Luiz Menegazzi e Cristina Sylla, publicado pela Revista de Educação, Ciência e Cultura, que trata exatamente sobre o design de histórias que são interativas, trazendo categorias de análise para a crítica dessas obras digitais. Acesso em: 6 abr. 2020. https://tinyurl.com/yblcqs8j Artigo Acesse o vídeo Qual é a diferença entre Realidade Virtual e Realidade Au- mentada, publicado pelo canal GCFAprendeLivre, para saber mais sobre as diferenças entre rea- lidade virtual e realidade aumentada. Disponível em: https://tinyurl.com/ yd9yd4sp. Acesso em: 5 abr. 2020. Vídeo Veja como fazer dedoches no vídeo Superfácil: Aprenda a fazer dedoches, publicado pelo canal da revista Crescer. Disponível em: https://tinyurl.com/ y7glcyme. Acesso em: 5 abr. 2020. Vídeo O aplicativo “O rapto da vaca sagrada”, do Centro de Educação e Cultura, é gratuito e foi desenvolvido para ser um livro interativo com atividades educa- tivas. Baixe-o sem custo algum pelo Google Play e navegue pela história. Livro Eletrônico https://tinyurl.com/yblcqs8j https://tinyurl.com/yd9yd4sp https://tinyurl.com/yd9yd4sp 34 Literatura Infantil CONSIDERAÇÕES FINAIS Esperamos que você tenha apreciado esse breve panorama históri- co da literatura infantil. Foi apenas um resumo, pois não haveria como descrever todas as obras em todos os momentos literários através dos séculos. Com certeza, faltariam páginas para isso! Porém, a intenção era a de fazer com que você identificasse como a literatura infantil foi se moldando ao longo da história e como ela chegou até o patamar em que está hoje. Reveja os pontos que mais chamaram sua atenção ao longo deste ca- pítulo e pesquise outras fontes que o auxiliem a se aprofundar no históri- co da literatura para crianças. REFERÊNCIAS ARIÈS, P. História social da criança e da família. São Paulo: LTC, 1981. COELHO, N. N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. COELHO, N. N. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das origens indo-europeias ao Brasil contemporâneo. Barueri: Manole, 2010. LACERDA, V. A. Um mergulho na Hélade: mitologia e civilização grega na literatura infantil de Monteiro Lobato. Belo Horizonte, 2008. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais. LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura Infantil brasileira: história e histórias. São Paulo: Ática, 2007. LOBATO, M. Histórias de Tia Nastácia. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2009. MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 2015. Disponível em: https:// michaelis.uol.com.br/. Acesso em: 16 abr. 2020. NUNES, C. Novos estudos sobre Monteiro Lobato. Brasília: UNB, 1998. TATAR, M. (ed.). Contos de fadas: edição comentada e ilustrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. GABARITO 1. Embora existissem crianças, não havia um entendimento delas enquanto sujeitos com características próprias e com necessidades de cuidados específicos. As crianças eram vistas como adultos em miniatura, pessoas ainda sem toda a capacidade intelectual de um adulto formado. Assim, não houve literatura ou práticas pensadas para esse público antes de ocorrer uma reflexão sobre a própria infância e suas necessidades. 2. A atividade pede uma resposta pessoal, mas deve trazer elementos que demonstrem a compreensão da obra de Monteiro Lobato enquanto um marco na literatura infantil brasileira ao mesmo tempo em que, mesmo assim, ela pode conter diversos elemen- Processo histórico da literatura infantil 35 tos racistas como forma de representação tanto da realidade vigente quanto do posi- cionamento do autor. Outro ponto relevante trazido pela matéria e que é possível de ser incorporado na resposta é que, mesmo que houvesse um cenário racista, muitos outros escritores e artistas já questionavam as representações do negro na arte, e talvez Lobato não tenha refletido sobre isso e continuado com práticas enraizadas em sua construção enquanto um homem branco e da elite agrária. 3. Embora seja uma resposta de cunho pessoal, deve discorrer sobre os valores tradicio- nais ainda vigentes na nossa sociedade, mas que encontram um cenário que cada vez mais compreende a necessidade de desenvolvimento de novas relações de gênero para todas as crianças. Além disso, deve demonstrar compreensão da necessidade de se questionar os papéis impostos a meninos e meninas, pois eles engessam o ser humano e não permitem sua plena expressão. Assim, é necessário que a literatura proponha essas discussões para auxiliar as crianças a verem que não existem apenas as possibilidades de papéis aceitas até aqui, mas que podem construir outras relações emocionais e sociais. 4. A literatura do início do século XX era voltada quase que exclusivamente para o dida- tismo da alfabetização e dos valores morais das classes dominantes que produziam e consumiam tais obras. No Brasil, além dessas características, o ruralismo, o intelec- tualismo, o tradicionalismo cultural e a religiosidade também estavam presentes. Já no século XXI, estão em cena obras que privilegiam a estética literária, a diversidade de estilos e temas, as múltiplas visões de mundo, a criatividade, a imaginação e o questionamento da realidade. 36 Literatura Infantil 2 Literatura e leitor infantil As pessoas grandes aconselharam-me deixar de lado os desenhos de jiboias abertas ou fechadas, e dedicar-me de preferência à geografia, à história, ao cálculo, à gramática. Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma esplêndida carreira de pintor. Eu fora desencorajado pelo insucesso do meu desenho número 1 e do meu desenho número 2. As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as crianças, estar toda hora explicando. Saint-Exupery, em O pequeno príncipe As pessoas grandes muitas vezes tolhem os desejos e as ex- pressões das crianças, tentando fechá-las dentro de caixinhas da- quilo que entendem como útil, objetivo. Ainda bem que existe a literaturapara permitir à criança que abra essas caixinhas e viaje por outros planetas, dando voz às necessidades infantis, como um elefante dentro de uma jiboia. Neste capítulo, vamos passear por alguns planetas, todos den- tro de um sistema solar literário. Inicialmente, veremos qual o pa- pel da literatura na formação de sujeitos leitores e como podemos contribuir para o crescimento de tantos “pequenos príncipes”, me- ninas e meninos com curiosidade para explorar o mundo e suas possibilidades. Na sequência, veremos a ligação entre a literatura e as fases de desenvolvimento infantil, fazendo um diálogo com o papel da lite- ratura em cada etapa. Por fim, vamos nos aprofundar na linguagem infantil e em como ela é empregada pela literatura, a qual, por sua vez, influencia na aquisição da linguagem pela criança. Bons estudos! Literatura e leitor infantil 37 2.1 O papel da literatura na formação do leitor Vídeo Quando éramos crianças, mal podíamos nos conter diante da possi- bilidade de ouvir histórias, especialmente aquelas que se iniciam com a expressão Era uma vez… Tínhamos (e ainda temos) a necessidade de nos maravilhar, de usar a linguagem em favor de uma estrutura cognitiva infantil que necessita da fantasia para simbolizar o real em seu cérebro ainda em desenvolvimento. Já adentramos, então, em um dos papéis mais importantes da literatura na formação do leitor: propiciar a simbolização do real. Na psicologia histórico-cultural de Lev Vygotsky, a linguagem (pela qual se dá a comunicação) é o que nos possi- bilita a existência enquanto seres humanos. Pela linguagem, somos capazes de dar significado ao mundo ao redor, à realidade. Assim, ao atribuirmos sentido ao que nos rodeia, damos sentido a nós mesmos, em um processo de aquisição dos símbolos que produzem uma relação entre “eu” e o mundo real. Em outras palavras, a criança vai adquirindo, por meio da linguagem, tudo aquilo que a constitui enquanto ser humano (cultu- ra, valores, símbolos etc) e estabelece novas formas de relação com esse mundo – sua forma própria de se comunicar, de interagir, de acei- tar ou não o que lhe é imposto, e assim por diante. Uma ideia central para a compreensão das concepções de Vygotsky sobre o desenvolvimento humano como processo socio-histórico é a ideia da mediação. Enquanto sujeito de co- nhecimento o homem não tem acesso direto aos objetos, mas um acesso mediado, isto é, feito através dos recortes do real operados pelos sistemas simbólicos de que dispõe. […] Se por um lado a ideia de mediação remete a processo de representa- ção mental, por outro lado refere-se ao fato de que os sistemas simbólicos que se interpõem entre sujeito e objeto de conheci- mento têm origem social. Isto é, é a cultura que fornece ao indi- víduo os sistemas simbólicos de representação da realidade e, por meio deles, o universo de significações que permite construir uma ordenação, uma interpretação, dos dados do mundo real. (LA TAILLE; OLIVEIRA; DANTAS, 2016, p. 27) Desafio Como você se sente quando uma história se inicia com “Era uma vez…”? Faça um teste: procure um conto ou livro infantil que comece com essa estrutura e, antes de con- tinuar a história, pergunte-se o que essa frase lhe proporciona – ansiedade, maravilhamento, curiosidade, entre tantas outras possibilidades. Atividade 1 Qual é o papel da literatura na formação do leitor e da criança? 38 Literatura Infantil Dessa forma, enquanto os sistemas simbólicos fazem uma media- ção entre o leitor e o que está posto no livro infantil, é por meio da linguagem (sistema simbólico e cultural por excelência) que a criança interpreta o mundo e se constrói. O livro se constitui, assim, como um objeto de auxílio para a apreensão do mundo real a um leitor que ainda não tem competência para encontrar esse mundo em sua materialida- de, isto é, quando a criança ainda não tem maturidade suficiente para se deparar com as situações que a vida lhe apresenta, como o próprio crescimento, a desigualdade ou a morte. Ao mesmo tempo em que a linguagem nos dá a representação do mundo real, é por meio dela que expressamos quem somos, e expres- sar quem somos (individual ou coletivamente) é tão fundamental quan- to o instinto natural de sobrevivência. Afinal, tudo é narração! É como se, ao expressarmos quem somos por meio da linguagem (e das histó- rias), pudéssemos sobreviver ao tempo. Um pouco de nós se perpetua quando contamos uma história, seja do outro ou a nossa própria, afinal a nossa vida também é uma narrativa, não é mesmo? Desafio Que tal compreender melhor a narrativa de sua própria vida? Para realizar essa atividade, vamos nos basear em um modelo para a reconstrução de memórias e do significado dado à trajetória pessoal. Você precisará de algumas pedras, sendo que o tamanho delas fica a seu critério, e de algumas flores. Além disso, também precisará de barbante, papel e caneta. Pensando na narrativa da sua história, crie uma linha com o barbante, indicando os eventos ruins/difíceis com pedras e os momentos bons/felizes com flores. Lembre-se de que os momentos bons não são necessariamente eventos grandiosos, podendo ser aqueles em que você se sentiu feliz consigo mesmo ou em alguma situação, como ao conseguir um trabalho ou ao tomar um banho de chuva. Aos poucos, crie a sua linha identificando cada elemento com um pedaço de papel que descreva o evento da pedra ou da flor. No fim, olhe para a sua linha e perceba que tanto os eventos ruins quanto os bons fazem parte da sua história, de quem você é. Pergunte-se o que aprendeu com os momentos ruins e como pode multiplicar os bons para continuar a escrever a sua narrativa! Sabendo que narrativas sobrevivem ao tempo, qual seria o papel delas na nossa história? Bem, com toda a certeza, elas se perpetuam porque são capazes de explicar a existência do ser humano, uma vez que, mesmo no século XXI, estamos sempre indagando qual o senti- do da nossa existência. Assim, se continuamos a nos questionar sobre isso, estamos sempre necessitando das explicações construídas ao lon- go do tempo, dos mitos, das lendas e dos contos populares, mesmo que essas explicações já estejam dentro de nós e não mais precisemos ficar lendo todos esses textos ao longo de nossas vidas. Literatura e leitor infantil 39 Para entender melhor isso, vamos utilizar um conceito descrito por Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica. Jung acreditava na existência de um “inconsciente coletivo”, o qual guardaria traços de uma história da humanidade e seria povoado pelos “arquétipos”, isto é, uma “forma universal de pensamento (ideia) que contém um grande elemento de emoção” (HALL; LINDZEY; CAMPBELL, 2000, p. 89). Logo, arquétipos seriam todas as experiências da humanidade à dis- posição da formação dos indivíduos, e esses arquétipos chegariam até nós por meio dos mitos, das fábulas e das lendas, perpetuando ideias gerais sobre o que é ser humano, pai, mãe, filho etc. Não nos aprofun- daremos aqui em relação à sua teoria, nem iremos reelaborar as cren- ças de Jung a respeito de um inconsciente coletivo que fosse biológico. Mas, para a compreensão da literatura infantil, seu conceito de arquéti- po cabe perfeitamente, enquanto categoria cultural que transmite atra- vés dos séculos todo o pensamento existencial do ser humano. Assim, imagens que muitas vezes consideramos enraizadas em nos- so instinto nada mais são do que a experiência humana contada por meio da cultura, isto é, o papel da mãe e do pai, o papel da natureza, da criança, e assim por diante, todos inseridos nas narrativas funda- mentais perpetuadas pela história da humanidade. A construção de uma identidade passa pela capacidade de sim- bolização e é auxiliada em larga escala pela literatura infantil. Um exemplo são as cantigas populares incansavelmente cantadas em casa, na escola e na televisão. Analisemos uma para entender esse conceito de identidade. Ciranda, cirandinha Ó ciranda cirandinha Vamos todos cirandarVamos dar a meia volta Volta e meia vamos dar. O anel que tu me deste Era vidro e se quebrou O amor que tu me tinhas Era pouco e se acabou. Ciranda, cirandinha Vamos todos cirandar. Vamos ver dona Chica, Que já está pra se casar 1 . Por isso, dona Chica Entre dentro desta roda, Diga um verso bem bonito, Diga adeus e vá -se embora. (Cantiga popular) Pode ser que você conheça essa cantiga com algumas variações, mas há de concordar que em qualquer versão ela fala de casamento, não é mesmo? Assim, com pequenas cantigas, já se inicia a formação Assista ao filme Os Croods, uma animação da Disney, lançada em 2013, que conta a história de uma família pré-histórica na luta pela sobrevivên- cia. Preste atenção nos momentos em que a família se reúne ao longo do filme para compar- tilhar histórias e tente depreender o significado simbólico delas para a construção de cada personagem. Também perceba o significado da construção da história contada por Guy, um jo- vem nômade que auxilia a família. Direção: Chris Sanders; Kirk DeMicco. EUA: DreamWorks Animation, 2013. Filme Estrofe usualmente retirada nas versões modernas. 1 Analise a letra da cantiga “A barata diz que tem” com base na construção da identidade da per- sonagem. Como sua identidade é construída? Como a barata se afirma? Para realizar a atividade, você pode acessar uma versão dessa cantiga disponível no seguinte link: https://tinyurl. com/y94alpn4. Acesso em: 22 maio 2020. Atividade 2 40 Literatura Infantil da identidade de uma criança enquanto alguém a quem a sociedade espera que siga o curso do casamento. A identidade construída pela literatura é tanto comunitária quanto individual. É comunitária pois insere mitos de formação do ser huma- no, do mundo, dos animais, dos deuses e dos costumes, e é individual porque traz questionamentos acerca da vida de cada ser humano, quem ser, o que se tornar, o que fazer quando crescer, como lidar com as situações da vida. Assim, pela simbolização do real, construímos uma identidade tanto coletiva quanto individual, perpetuando nossas histórias por meio de narrativas. Outro fator fundamental da literatura para a formação dos leitores é a humanização, a qual diz respeito à capacidade de sermos abertos ao diferente daquilo que somos, à sociedade, à natureza e ao outro. Porém, para nos abrirmos a realidades diferentes, é preciso ter contato com elas de alguma forma, e a literatura promove esse encontro entre o leitor e outros mundos, reais ou imaginários. Às vezes, podemos pensar que mundos imaginários não serão ca- pazes de proporcionar essa humanização, mas nenhum mundo ficcio- nal se faz do nada, de puro fruto de uma criação sem base no que é conhecido. Mesmo ficções científicas e futuristas têm seu ponto de partida na realidade objetiva e se constroem em um sistema que já contém em si todos os significados possíveis, a língua. Entretanto, os mundos ficcionais, exatamente por serem construídos em relação com a realidade, conseguem aproximar o leitor de outros mun- dos. Talvez a criança nunca tenha tido contato com situações de perda dos pais ou com o sentimento de não ter uma família, mas pode se aproximar disso em livros como O pato, a morte e a tulipa, do escritor alemão Wolf Erlbruch. Por meio d’O Pequeno Príncipe, ela pode experimentar a solidão. No plano do real, é bem provável que muitos dos nossos leitores nunca tenham estado em contato com a guerra, mas um livro como o brasileiro Layla, a menina síria, de Cassiana Pizaia, Rima Zahra e Rosi Vilas Boas, pode ligar dois mundos distintos. Literatura e leitor infantil 41 Livro Três belos livros infantis que não podem faltar na sua prateleira O Pato, a morte e a tulipa traz a história de um pato e seu relaciona- mento com a morte, interligando seu ciclo de vida com os ciclos da natureza de maneira muito poética. Além do livro, você pode conferir uma adaptação para animação disponível no seguinte link: https:// tinyurl.com/ya6qame8. Acesso em: 15 abr. 2020. ERLBRUCH, W. São Paulo: Cosac & Naify, 2009. Layla, a menina síria conta a história de uma família que foge da guerra da Síria para encontrar morada no Brasil, narrando todas as dificuldades do percurso. VILAS BOAS, R.; PIZAIA, C.; AWADA, R. Curitiba: Editora do Brasil, 2018. O Pequeno Príncipe é com certeza uma obra que dispensa introdu- ções, mas que merece um lugar de destaque por suas sutilezas e profundidade ao trabalhar a condição humana SAINT-EXUPÉRY, A. de. Rio de Janeiro: Agir, 2009. Portanto, a humanização requer que o leitor tenha contato com o maior número de realidades possíveis. No entanto, isso só se dá com acesso à literatura infantil de qualidade, nem sempre possível em nos- so país. Uma vez que a Declaração dos Direitos Humanos prevê o direi- to universal à cultura e a suas manifestações artísticas, aí também está posto o direito à literatura. Por fim, outro grande papel da literatura infantil é propiciar o de- senvolvimento da criatividade. Entendemos a criatividade como uma capacidade que deve ser trabalhada desde a tenra infância, como for- ma de fazer com que o sujeito encontre soluções diferentes para seus problemas ao longo da vida. Assim, ao estimular a criatividade, a criança constrói as ferramentas para lidar com o mundo de maneira eficiente, na medida em que os desafios lhe aparecerem. Somando-se a ela a humanização, a constru- ção da identidade e a simbolização do real, percebemos o quanto a literatura e as artes são necessárias para a vida do ser humano pleno. Logicamente, necessitamos de alimento para o corpo para vivermos, mas precisamos de um alimento para a alma para nos desenvolvermos! No ano de 2020, vivemos uma situação inusitada, a qual nunca antes pensamos que viveríamos no mundo contemporâneo. Com o distanciamento/isolamento social, foi possível perceber o quanto precisamos da arte para viver bem, não é mesmo? Tenho certeza que nesse período (e em todos os outros) a literatura, o cinema, a música, a pintura etc. foram seus grandes compa- nheiros nas horas difíceis de um período algumas vezes solitário, outras vezes angustiante. Assim, com o conhecimento já adquiri- do, questione-se como seria um mundo sem arte alguma. E mais, como seria um momento como o de isolamento sem nenhum contato com arte, seja ela visual, cinestésica ou auditiva? Desafio 42 Literatura Infantil Desafio Já que estamos falando de criatividade, por que não trocar um pouco os papéis e ser um(a) escritor(a)? Veja alguns exercícios para treinar a criatividade na escrita e os desenvolva aos poucos, treinando toda semana. 1. Escreva sua autobiografia em até 500 palavras. 2. Escreva um significado imaginário para uma palavra desconhecida (pode-se usar um dicionário para procurar palavras diferentes). 3. Descreva o ambiente a sua volta em até 300 palavras. 4. Faça uma entrevista fictícia com um personagem de que você gosta. Assim, a literatura acaba por ter uma função formadora, porém não devemos confundir formadora com pedagógica. Ela é formadora por trazer assuntos que tratam da condição humana, de sua existência, seus desafios e suas conquistas, auxiliando na construção da própria identidade do indivíduo. A literatura pedagógica é utilitária e tem por objetivo principal o ensino e uma única interpretação, sem margem para a imaginação, vi- sando informações oficiais. A literatura com finalidade utilitária constrói no entendimento das crianças a noção de que ler é buscar confirmações do já per- cebido, é reafirmar, é reproduzir sem participar. Temos, assim, a arte transformada em ferramenta. No entanto, a literatura propõe um texto diferenciado, cuja finalidade é mais de recusa do utilitário e de proposta de pensamento divergente. (COSTA, 2013, p. 28, grifo do original) De acordo com Costa, uma literatura que tenha o objetivo princi- pal de ensinar possui uma finalidade utilitária, sem margem para o questionamento ou a reflexão crítica. Afinal,uma vez que determinado assunto está posto para ser aprendido é porque alguém já disse que aquilo é a verdade, logo por que questionar? Isso é ou não correto? São bons questionamentos para reflexão. Hoje, vemos que os próprios materiais didáticos têm tentando mu- dar um pouco a visão do trabalho com a literatura, mas ainda assim eles se prestam a um objetivo pedagógico, o de aquisição da língua e da leitura. O pesquisador Richard Bamberger levanta quatro funções sobre a leitura, as quais são apresentadas na Figura 1. Literatura e leitor infantil 43 Figura 1 Funções da leitura de acordo com Richard Bamberger LEITURA INFORMATIVA LEITURA ESCAPISTA LEITURA LITERÁRIA LEITURA COGNITIVA Informações que dão mais credibilidade quando lidas. Busca de um prazer que não está na realidade objetiva. Simbolização do real para construção de significados internos. Função de conhecer e compreender o ser humano e o mundo. Fonte: Adaptada de Costa, 2013, p. 21-22. Vy ac he sl av ik us / M F pr od uc tio n/ AV Ic on /S hu tte rs to ck Embora exista a distinção de uma leitura literária, a literatura pos- sui em si os quatro tipos de leitura, algo que outros tipos de texto não necessariamente conseguem atingir. Um jornal produz uma leitura pri- mariamente informativa, que pode ser acompanhada de uma leitura cognitiva. Atualmente, poderíamos categorizar leituras sobre vidas de famosos ou até mesmo memes dentro de uma leitura escapista, en- quanto a filosofia, a sociologia, a psicologia e outras ciências se utiliza- riam primordialmente da leitura cognitiva. De acordo com Costa, tais funções da leitura podem ser descritas em três outras funções específicas para a literatura: Quadro 1 Funções da leitura Abrangência Relação autor/mensagem/leitor Objetivos da formação de leitores individual Momento de encontro entre leitor e livro. Para crianças pe- quenas, é o primeiro contato físico e visual com o livro. informar Comunicar informa- ções com clareza. experiências pessoais Infundir valores e com- portamentos diversos que construirão a identidade. social Socialização da leitura e de impressões. O contato com a história através de um media- dor. educar Ensinar habilidades ou ampliar gradativa- mente o conhecimen- to de determinado assunto. aprendiza- gem e co- nhecimento como fonte de prazer Acesso ao conheci- mento com formação pessoal e emocional. (Continua) 44 Literatura Infantil Abrangência Relação autor/mensagem/leitor Objetivos da formação de leitores privado Diz respeito aos livros individuais, de ordem de uma biblioteca pessoal que pode ser consultada sempre. entreter Proporcionar pra- zer na atividade de leitura. entreter Proporcionar prazer na atividade de leitura. público Obras disponíveis na escola, em bibliotecas ou em outros locais públicos. persuadir Convencer o leitor a acreditar em algo ou agir de determi- nada forma. constru- ção do lei- tor crítico Lidar com diferentes realidades e textos, incorporando as leituras dentro de uma visão pessoal e coletiva. expressar uma opinião ou ideia Expôr opiniões, sentimentos e experiências. Fonte: Adaptado de Costa, 2013, p. 23-33. Pode-se perceber pelo esquema que o papel da literatura recai so- bre os objetivos de formação de um leitor descritos por Costa. Assim, uma literatura infantil de qualidade, isto é, que leve em consideração o leitor em sua totalidade, e não apenas em sua dimensão de aprendiz, deve partir do pressuposto de que é, primeiramente, uma arte (a arte da palavra), a qual constrói novas realidades, próximas ou não do leitor. Até aqui temos falado muito sobre a literatura em si. Mas e o leitor a quem ela se destina? Quem é esse leitor de literatura infantil? Vamos descobrir! Livro Uma ótima forma de se aprofundar no assunto é lendo o livro A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual, de Te- resa Colomer, uma pesquisadora espanhola que traz elementos de análise da produção de livros para crianças e jovens. COLOMER, T. São Paulo: Global Editora, 2003. Acesse a matéria do blog da Leiturinha e saiba mais sobre a influência da literatura na forma- ção das crianças. Disponível em: https://tinyurl.com/y7wtesoq. Acesso em: 11 abr. 2020. Site Literatura e leitor infantil 45 2.2 Pequenos leitores Vídeo Temos falado até aqui sobre obras que constituem uma literatura infantil e o seu papel na formação de sujeitos leitores. Porém, quem são tais leitores? Do que gostam? Que mundos habitam? Por que leem? Para descobrirmos as respostas a essas perguntas, precisamos pri- meiro entender que a literatura age por uma dupla de códigos, como diria Hunt: a experiência (ou “criação”) com o texto converge (ou causa em- bate) entre dois conjuntos de códigos: os da “vida” (conhecimen- to de mundo/ causalidade/ probabilidade etc.) e os do “texto” (conhecimento de convenções, expectativa genérica, referência intertextual etc.). Ambos são importantes para a teoria e para a produção de textos para crianças. (HUNT, 2010, p. 116) Assim, se pensarmos na criança pequena (até seis anos), pouco é o conhecimento do código do texto em relação às suas convenções, ou seja, as regras da língua e dos gêneros. Provavelmente, as referências intertextuais não estarão ainda tão bem amadurecidas, mas com certe- za um leitor de cinco anos já terá algumas referências de histórias e personagens. Dessa forma, mesmo que as crianças ainda não estejam versadas nesse código, estarão em desenvolvimento, adquirindo a fa- miliaridade com ele. O código da vida também está em desenvolvimento para essas crianças. Às vezes, pensamos que as experiências infantis não têm tan- to a agregar em uma leitura literária enquanto conhecimento de mun- do, mas essa é uma visão que deve ser ultrapassada. A criança tem um mundo de experiências riquíssimo e muito mais ativo que o dos adultos, afinal tudo é novo, e novas aventuras são muito bem-vindas. A diferença está nos significados produzidos por crianças e adultos em contato com um livro. E para sa- bermos como uma criança simboliza essa experiência de leitura, podemos observá-la em sua interação com o mundo e com o livro. Não nos esqueçamos nunca que a leitura de mundo precede a leitura da palavra, como bem afirmou Paulo Freire (1989). O educador Paulo Freire discor- reu muito sobre a linguagem, além de usá-la como forma de reinterpretar o mundo, como bem diria ele. Caso tenha interesse, acesse uma palestra professada por ele na USP em 1994 para perceber as nuances tanto de seu pensamento quanto de sua experiência com a linguagem. Disponível em: https://tinyurl.com/y7e9r77p. Acesso em: 15 abr. 2020. Saiba mais 46 Literatura Infantil Porém, esse trabalho já foi minuciosamente descrito por inúmeros teóricos, como Sigmund Freud, Jean Piaget, Lev Vygotsky, Donald Winni- cott, Melanie Klein e outros. Então, vamos nos valer de alguns dos con- ceitos desenvolvidos por eles para podermos compreender a interação da criança com o mundo e, consequentemente, com o livro literário. Antes de mais nada, vamos lembrar que cada um dos pesquisadores que estudaram o desenvolvimento humano o fizeram levando em consi- deração hipóteses dentro de suas teorias; por isso mesmo, temos tantas variações que tentam explicar como e por que somos quem somos. Dividimos as teorias do desenvolvimento em cinco perspectivas, conforme é observado no Quadro 2. Quadro 2 Perspectivas das teorias do desenvolvimento Perspectiva Teoria Princípios Estágios Ativo/Passivo Psicanalítica Freud – teoria psicossexual Impulsos inconscientes contro- lam o comportamento. Sim Passivo Aprendizagem Pavlov/Skinner – behaviorismo (com- portamentalismo) O ambiente é responsável por controlar o comportamento. Não Passivo Cognitiva Piaget – teoria dos estágios cognitivos O desenvolvimento é desenca- deado de maneira ativa pelas crianças. Sim Ativo Vygotsky – teoria socioculturalO desenvolvimento da cog- nição se dá pela interação social e por processamento de símbolos. Não Ativo e passivo Evolucionista/ sociobiológica Bowlby – teoria do apego Há uma predisposição inata para a aprendizagem, e o desenvolvimento se dá por períodos críticos em que os mecanismos adaptativos agem. Não Ativo Contextual Bronfenbrenner – teoria bioecológica Há cinco sistemas contextuais que interagem no desenvolvi- mento do ser humano. Não Ativo Fonte: Adaptado de Papalia, Olds e Feldman, 2010, p. 30-31. Literatura e leitor infantil 47 Para discorrermos sobre o papel do leitor literário, iremos nos ater às teorias que estabelecem estágios, mais especificamente na de Pia- get. Porém, antes, vamos contextualizar um pouco melhor cada uma das teorias vistas no Quadro 2 para compreender sua ligação com tudo o que temos discutido até o momento. Sigmund Freud fundou a psicanálise, linha teórica da psicologia que compreende o desenvolvimento como sendo “moldado por forças in- conscientes que motivam o comportamento humano” (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2010, p. 32). Para ele, nascemos todos com impulsos biológicos que precisam ser readequados para podermos viver na sociedade. Assim, por meio de um conflito entre os impulsos internos (desejos, necessidades) e o que a sociedade espera é que acontece o desenvolvimento do indivíduo e de sua personalidade. Freud descreve, então, cinco fases de desenvol- vimento, em que a passagem de uma zona de gratificação para outra ocorre com o deslocamento desses impulsos. Em outras palavras, cada fase se fixa na gratificação de desejos rela- cionados às zonas erógenas no corpo. Para melhor compreensão, veja na Figura 2 as cinco fases. Figura 2 Fases de desenvolvimento de Freud 1 2 3 4 5Oral0 a 18 meses Anal 18 meses a 3 anos Latência 6 anos à puberdade Genital puberdade à vida adulta Fálica 3 a 6 anos A fonte do prazer está na boca – alimentar-se, sugar, experimentar o mundo pela boca. A fonte do prazer está em contro- lar os esfíncteres – treinamento de desfralde. Momento de tranquilidade no de- senvolvimento, com maior sociali- zação e grande salto de aprendi- zagem. Impulsos sexuais inseridos em uma sexualidade madura. A fonte de prazer se transfere para os genitais, em forma de conhecimento do próprio sexo e reconhecimento das diferenças. Momento de desenvolvimento das regras e da moral. Fonte: Adaptada de Papalia, Olds e Feldman, 2010, p. 33. Bo ris S na ev /S hu tte rs to ck 48 Literatura Infantil Portanto, para Freud, as experiências infantis, o relacionamento entre crianças e seus cuidadores e os impulsos sexuais inerentes aos seres humanos formulam uma teoria inicial, embora ainda muito estu- dada, acerca do desenvolvimento humano. Passando para a perspectiva da aprendizagem, o behaviorismo é uma corrente teórica que crê no desenvolvimento enquanto aprendiza- gem de novos comportamentos. Para o behaviorismo, comportamentos são tanto nossas atitudes quanto eventos privados, como sentimentos e pensamentos. Assim, para seus teóricos, o desenvolvimento aconte- ce quando o indivíduo consegue se adaptar ao ambiente, o que ocorre constantemente – e por ocorrer a todo momento, não há estágios como os indicados por outras linhas teóricas. Portanto, seres humanos apren- dem reagindo ao ambiente (seguro ou ameaçador) ao seu redor. As teorias evolucionistas/sociobiológicas colocam sua ênfase em comportamentos que são adaptativos no sentido de espécie (diferente- mente do behaviorismo). Um grande representante dessa linha é John Bowlby, autor da teoria do apego, a qual discorre sobre a necessidade de um apego do bebê com seu cuidador para a sobrevivência. É uma perspectiva que leva em conta um código genético que liga todos os seres da espécie humana. Na perspectiva contextual, o desenvolvimento individual não pode ser separado do ambiente e do contexto social e histórico, aproximan- do-se de certa forma da teoria de Vygotsky. A diferença aqui é que Bronfenbrenner identifica cinco sistemas contextuais que atuam no desenvolvimento do indivíduo: • microssistema (o indivíduo); • mesossistema (interação de dois ou mais microssistemas – famí- lia, escola etc.); • exosistema (interação entre dois sistemas não ligados diretamente ao indivíduo – por exemplo: a empresa possibilita que a mãe saia para amamentar em livre demanda, situação que afeta o indivíduo); • macrossistema (padrões culturais); • cronossistema (eventos e mudanças ao longo da vida). O interessante da teoria contextual é que podemos perceber que o desenvolvimento não depende de um ou dois fatores, mas de toda uma inter-relação de pessoas, eventos e estruturas que interferem di- reta ou indiretamente na vida de cada um de modo distinto e único. Literatura e leitor infantil 49 Figura 3 Sistemas contextuais que influenciam no desenvolvimento do indivíduo Indivíduo Microssistema Mesossistema Exossistema Macrossistema Indivíduo Individual, sexo, idade, personalidade, habilidades. Microssistema Casa, escola, trabalho, igreja, amigos. Mesossistema Interação entre dois sistemas – ex.: casa interagindo entre si. Exossistema Governo, mídia, religião, sistema educacional. Macrossistema Crenças e ideologias que regem a sociedade. Cronossistema Mudanças pessoais, sociais, históricas, culturais e ambientais ao longo da vida. Fonte: Adaptada de Define..., 2020. Chegamos por fim às teorias cognitivistas, deixadas propositalmen- te por último para as inserirmos na discussão sobre a leitura. Embora possam parecer deslocadas, as teorias detalhadas anteriormente tam- bém se ligam ao papel da literatura. Ora, se para o desenvolvimento ocorrer são necessárias experiências diversas e contextos variados, aí se coloca a literatura como forma de apresentação e reflexão desses contextos, não é mesmo? Bem, em linhas muito gerais, Lev Vygotsky foca o estudo das influên- cias sociais e culturais no desenvolvimento da cognição infantil. Para ele, aprendemos ao interagir com o mundo, internalizando o mundo e seus símbolos. Sua teoria também estabelece que, uma vez que a criança adquire as bases para o aprendizado por meio da mediação de adultos, ela passará a construir o próprio aprendizado e desenvol- vimento. Vygostky dá grande ênfase no trabalho com a linguagem em sua interação social. Pense sobre todos os sistemas que se relacionam para formar quem você é. Pegue um papel em branco e desenhe o mesmo esquema dos sistemas contextuais, apresentado na Figura 3, indicando quais são os sistemas que influenciaram no seu desenvolvimento. Com essa atividade, você conseguirá compreender melhor todos os agentes envolvidos na formação de um indivíduo. Desafio 50 Literatura Infantil Porém, para esse momento, e para compreendermos as necessi- dades dos leitores em cada etapa do seu desenvolvimento, vamos en- tender os estágios cognitivos descritos por Jean Piaget. Segundo esse teórico, o desenvolvimento é um esforço ativo do indivíduo para a com- preensão do mundo, mas esse esforço vem de uma capacidade inata, biológica, de adquirir aprendizado e de se adaptar. Em sua teoria, os estágios ocorrem por meio de três processos: organização, adaptação e equilíbrio. Vamos ver um pouco mais sobre cada um no esquema da Figura 4. Figura 4 Estágios cognitivos segundo Piaget ORGANIZAÇÃO A criança passa a adquirir esquemas complexos com base em suas experiências, criando um sistema de conhecimentos. Por exemplo, um bebê tem um esquema inicial do ato de sugar, que, aos poucos, vai se complementando, por sugar a mamadeira, sugar o peito, sugar o dedo, e assim por diante, organizando essas realidades em esquemas. ADAPTAÇÃO É a forma como lidamos com novas informações com base naquilo que já sabemos. Podemos absorver nova informação e assimilá-la à estrutura cognitiva já existente (por exemplo: portas diferentes, com uma ou duas folhas, mas que se enquadram na categoria de objetos que servem para abrirpassagem) e acomodar novas informações ajustando as estruturas já existentes (por exemplo: uma porta de sanfona é diferente das portas de uma ou duas folhas, mas ainda assim tem a função de abrir passagens, logo entra no mesmo esquema. EQUILIBRAÇÃO É a passagem da assimilação para a acomodação, sendo que o equilíbrio se dá pelo constante jogo entre incorporar e ajustar novas informações. A busca por esse equilíbrio motiva o desenvolvimento, sempre em busca de novas informações, mas nunca muito distantes do que a criança já conhece, aumentando aos poucos o grau de complexidade para esse jogo entre assimilação e acomodação. Fonte: Adaptada de Papalia, Olds e Feldman, 2010, p. 37-38. Já podemos começar a perceber que a literatura também precisa corresponder a esses processos, pois se uma leitura traz muitas infor- mações novas, indo além do que os esquemas infantis podem dar con- ta, ela automaticamente se torna desinteressante. Pense em quantas Um conceito de Vygotsky que é muito difundido (mas nem sempre bem compreendido) é o de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). A ZDP é como um espaço entre o que a criança já adquiriu de conhecimento e o que ela ainda não tem competência para fazer. É como o “quase sabe”, mas ainda há espaço para se desenvolver. Para se aprofundar nesse assunto, leia o artigo da pesquisadora Andréia Zanella acerca da ZDP. Disponível em: https://tinyurl. com/y8tbk8wk. Acesso em: 15 abr. 2020. Saiba mais Desafiamos-lhe a se indagar de forma profunda sobre o que lhe motiva a ler alguma coisa. Por que você escolhe um livro? Que tipo de livro desperta seu interesse e sua curiosidade? Desafio Literatura e leitor infantil 51 vezes você já abandonou uma leitura por não ter o conhecimento intro- dutório sobre o assunto e, por isso, considerar o texto pesado demais, incompreensível! Imagine, então, um aluno lendo algo completamente afastado de sua realidade, em uma linguagem que não lhe é familiar, e com temá- ticas a qual nunca teve acesso. Temos, assim, uma fórmula para minar o desejo da leitura! Assim, é muito importante entendermos quem é o leitor da litera- tura infantil e conhecer os processos pelos quais ele passa em seu de- senvolvimento. Sem levar em consideração os níveis de compreensão e os elementos que devem fazer parte de uma literatura para diferentes idades, corremos o risco de oferecer algo que não corresponda às ex- pectativas e desestimule a experiência com o livro. Desse modo, vamos ver os estágios de desenvolvimento descritos por Piaget para identificarmos a leitura em cada uma das idades. Veja a seguir o esquema com os quatro estágios. Figura 5 Estágios cognitivos de desenvolvimento de Piaget 1 2 3 4Sensório-motor0-2 anos Pré-operacional 2-7 anos Operações formais 11 anos em diante Operações concretas 7-11 anos Organiza seu ambiente por meio de atividades sensoriais e motoras. Sugar, pegar, morder, engatinhar, andar etc. Utiliza-se de símbolos para repre- sentar o mundo. Linguagem e jogo simbólico. Pensamento abstrato, situações hipotéticas e possibilidades. Problemas lógicos e presentes no ambiente po- dem ser resolvidos (por isso há necessidade de uso de materiais para o ensino de conceitos abs- tratos), mas com dificuldade de abstração. Fonte: Adaptada de: Papalia, Olds e Feldman, 2010, p. 33. A infância é um período compreendido entre 0 e 12 anos incompletos, sendo sucedida pela adolescência. A respeito do desenvolvimento na infância, quais perspectivas teóricas levam em consideração um sujeito ativo? Qual o significado disso para um leitor infantil? Atividade 3 Bo ris Sn ae v/ Sh ut ter sto ck 52 Literatura Infantil Embora Piaget não tenha dado ênfase ao contexto social de desenvolvi- mento (como o fez Vygotsky), ele não o descarta completamente. Segundo o teórico, essa é uma categoria muito ampla de análise, e a socialização é algo adquirido e em diferentes graus. Conforme suas palavras: se tomarmos a noção do social nos diferentes sentidos do termo, isto é, englobando tanto as tendências hereditárias que nos levam à vida em comum e à imitação, como as relações exterio- res […] dos indivíduos entre eles, não se pode negar que, desde o nascimento, o desenvolvimento intelectual é, simultaneamente, obra da sociedade e do indivíduo. (PIAGET, 1973 apud LA TAILLE; OLIVEIRA; DANTAS, 2016, p. 11) Portanto, para o autor, o social não é excluído de sua teoria, mas se torna agente em conjunto com o indivíduo. Assim, sendo a literatura um fenômeno social e cultural, podemos encontrar um lugar especial para ela dentro da teoria dos estágios cogni- tivos. Vamos, então, ampliar o esquema recém-visto, descrevendo a liga- ção entre os comportamentos e a literatura nos três primeiros estágios. Quadro 3 Correlações entre literatura e estágios do desenvolvimento Estágio Comportamentos Ligações com a literatura Sensório- motor Uso de reflexos – bebês de até um mês. Há o exercício dos reflexos. A literatura continua chegando (pois na gesta- ção se espera que já tenha chegado), especial- mente por meio das cantigas de ninar. Reações circulares primárias – de 1 a 4 meses. Iniciam-se o agarramento e a repetição de movimentos que foram feitos ao acaso. Livros macios, de borracha, os quais já podem ser colocados à disposição para o toque e para a boca, visto que o bebê é essencialmente sen- sorial nessa fase. Reações circulares secundárias – dos 4 aos 8 meses. O ambiente é mais interessante, e experimentá-lo é pra- zeroso. Livros de pano, de banho e com texturas, que auxiliam no descobrimento do mundo. Tam- bém as histórias contadas pelos pais no reco- nhecimento do corpo (ex.: falar sobre os pezi- nhos para que ele comece a se reconhecer). Coordenação de esquemas secundá- rios – dos 8 aos 12 meses. Inicia-se a antecipação de eventos, e seus com- portamentos são dirigidos para metas. Os mesmos livros e histórias anteriores, porém com maior intenção, como uma rotina de his- tórias no banho, trabalhando a antecipação. Também livros com dedoches e histórias com fantoches, além de livros sonoros, em especial com sons de animais e algumas canções. (Continua) Literatura e leitor infantil 53 Estágio Comportamentos Ligações com a literatura Sensório- motor Reações circulares terciárias – dos 12 aos 18 meses. Há grande curio- sidade, com tentativa e erro para so- lucionar problemas (como colocar os dedinhos na tomada para ver o que acontece, sendo que isso faz parte da exploração; nós é que devemos providenciar o ambiente seguro). Todos os anteriores e também livros acartona- dos e resistentes em tamanhos variados, com muitas imagens. Livros com espaços para usar a coordenação, encaixar e desencaixar. Combinações mentais – dos 18 aos 24 meses. Já há maior antecipação dos eventos, sem tanta necessidade de tentativa e erro. A ênfase é no uso de símbolos, como a linguagem fala- da e os gestos. Os anteriores ainda valem, mas livros de banho e somente com imagens começam aos poucos a conter algumas palavras ou letras e números. Aumenta-se a narrativa com inserção de mais elementos. Pré-operacional Há uma concentração em apenas um aspecto da situação, gerando in- capacidade de ver a situação como um todo. Livros com temáticas que comecem a explorar a causalidade e o processo dedutivo com ques- tionamentos simples sobre os personagens e sobre o cenário. Circunstâncias em que os per- sonagens conseguem reverter a situação, como voltar para casa após se perder. Sentimentos e pensamentos diferentes e próximos aos da criança, mostrando que outros sentem diferen- te. Utilização de objetos animados e animais personificados. Há dificuldades para compreender que as situações podem ser reverti- das ou desfeitas. Não há ainda raciocínio dedutivo; assim, as crianças criam uma causa onde não existe. O egocentrismo da fase faz com que a criança ache que todos sentem e pensam como ela. As crianças atribuem vida a objetos inanimados. Operaçõesconcretas Habilidades maiores em: • pensamento espacial; • causa e efeito; • categorização; • raciocínio dedutivo e indutivo; • conservação de volumes; • números e matemática. Os livros para crianças a partir dos 7 anos, em fase de alfabetização ou alfabetizadas, devem trazer, progressivamente, possibilidades para treino do raciocínio lógico, da criatividade e da reflexão sobre os fatos do livros. Uma vez que o pensamento abstrato ainda não se formou, o melhor são as histórias que contenham os elementos em si mesmas, isto é, sem tantas re- ferências a outras obras ou a um conhecimento de mundo muito além da faixa etária. Também são interessantes os livros com humor e piadas, para desenvolver a capacidade de abstração. Além disso, toda temática que trabalhe com causalidade é bem vinda. Assim, temas diversos em contos policiais, obras de fantasia, biografias, poemas etc. podem e devem ser trabalhados, respeitando a aquisição da linguagem escrita. Fonte: Adaptado de Papalia, Olds e Feldman, 2010. 54 Literatura Infantil Podemos verificar, então, que na primeira e segunda infâncias (sensório-motor e pré-operacional) os livros precisam de grande apelo visual e sensorial para corresponder às necessidades da fase de desen- volvimento. Isso não significa que a história não importe, ao contrário, mesmo com um suporte que permita maior interação com o material, as histórias devem ser variadas, criando, aos poucos, o hábito de leitu- ra tanto para as crianças quanto para os cuidadores. Por fim, na terceira infância o foco recai sobre as temáticas, o estilo, a estética do texto e a linguagem, aumentando sua complexidade gra- dativamente e inserindo novos desafios ao leitor, diminuindo-se aos poucos o uso de cores e de ilustrações muito grandes, passando a pre- dominar o texto verbal. Embora tais características sejam boas diretrizes para a escolha dos livros infantis, elas com certeza não são uma norma, pois cada criança tem um ritmo de desenvolvimento próprio, e a divisão por idades se- gue um esquema que é formal/teórico e não reflete obrigatoriamente o dia a dia das crianças em diferentes culturas. Então, o principal é compreender em que estágio a criança em ques- tão está, independentemente da idade, e escolher livros que instiguem sua vontade de interação e de mergulho na literatura! Agora que você já compreendeu como se processa o desenvolvi- mento infantil e sua ligação com a literatura, vamos nos aprofundar nas especificidades da linguagem. 2.3 A linguagem na literatura infantil Vídeo Já dissemos anteriormente que não se pode confundir literatura apenas com os livros, com algo físico (mesmo porque a literatura passa pela oralidade e pelas canções), especialmente em relação aos bebês. Então, vamos entender um pouco mais sobre como se desenvolve a linguagem em bebês e crianças, fazendo sua ligação com a literatura. Obviamente, a linguagem não é um fenômeno distinto do proces- so de desenvolvimento. Ela se desenvolve conjuntamente com outras funções, seguindo uma sequência que pode variar no tempo conforme cada criança. Mesmo que as fases de desenvolvimento descrevam algu- mas idades, é provável que você já tenha visto bebês com 10 meses fa- lando várias palavras; por outro lado, já deve ter visto também crianças Para ver algumas opções de leitura para bebês, acesse o blog da Leiturinha, que contém indicações bem legais. Disponível em: https://tinyurl. com/y9sk5q53. Acesso em: 14 abr. 2020. Leitura Que tal assistir a um filme bem curioso sobre o desenvolvimento dos bebês? O documentário Bebês acompanha o nas- cimento e crescimento de quatro bebês em diferen- tes culturas durante seus dois primeiros anos de vida. Vale muito a pena conferir e refletir sobre a aquisição de habilidades, a descoberta do mundo e de si e a interação com o ambiente. Direção: Thomas Balmes. França: Studio Canal; Chez Wam, 2010. Filme Literatura e leitor infantil 55 de dois anos e meio ou três anos com um vocabulário ainda pequeno em comparação com outras. Isso é normal, cada criança tem seu tempo! Em linhas gerais, um bebê se utiliza de uma fala pré-linguística, emi- tindo sons por meio de choro, arrulhos, balbucios, imitação acidental e imitação deliberada. O bebê nasce com um aparelho fonador (boca, lín- gua, palatos, úvula, pregas vocais, laringe) capaz de produzir qualquer som de qualquer língua! Então, o que faz o bebê perder alguns sons pelo caminho? A especialização e a aquisição de uma língua materna (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2010). Quando o bebê começa a imitar sons produzidos pelos cuidadores de forma acidental e, depois, de forma intencional, ele vai aos poucos diminuindo o número de sons produzidos para a quantidade de sons presentes na sua língua, e por volta dos 10 meses já possui os fonemas restritos à sua língua materna. Por esse motivo, depois de certa idade, temos mais dificuldade para produzir sons de línguas muito distintas da nossa. É por isso que, nesse momento, o ato de contar histórias é tão im- portante. Ao ouvir os diferentes sons e entonações, o bebê também estabelece uma ligação emocional com a língua, preparando-se para ser um leitor de fonemas e, posteriormente, de palavras. A conscientização das regras fonológicas, bem como do reconheci- mento de unidades silábicas na constituição da língua, vai se tornando mais clara a partir dos 18 meses de idade. As palavras começam a ga- nhar novas formas e passam a possuir regras. Outra linguagem interessante que se desenvolve em conjunto com a língua é a dos gestos simbólicos. Ao mesmo tempo em que o bebê aprende palavras como sim e não, também aprende que existem ou- tros símbolos para se referir a essas duas palavras, como balançar a cabeça para cima e para baixo em sim e para os lados em não. Aos poucos, o gestual vai dando lugar à língua falada, mas é uma lin- guagem de apoio ao aprendizado da língua materna, pois materializa no corpo algo que ainda não é dominado no nível da abstração. Dito isso, você sabia que os bebês compreendem muito mais pala- vras do que conseguem produzir? A aquisição da língua não deve ser medida somente pela fala, pois pode ser que a via de produção de fala Você pode entender melhor como funciona a aquisição de linguagem e do processo de leitura com o livro O aprendizado da leitura. KATO, M. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Livro Por falar em sons, você conhece algumas das línguas mais dife- rentes do mundo? Leia a matéria da revista Superinteressante, que traz algumas dessas línguas, com seus estalos, assovios ou pouquíssimos fonemas. Disponível em: https://tinyurl. com/ybgfcucx. Acesso em: 14 abr. 2020. Leitura 56 Literatura Infantil (ativa) ainda não esteja madura, mas que o vocabulário passivo já este- ja sendo construído com maior velocidade. Assim, pode ser que um bebê apenas fale uma sílaba, ma, mas essa sílaba pode ser referir à mãe presente no ambiente, à falta da mãe (como uma pergunta: “onde está a mamãe?”) ou a um alimen- to, entre outros contextos. Ou seja, o bebê já sabe que existem ter- mos específicos para cada uma das situações, mas usa uma palavra holofrase para se comunicar. A palavra holofrase é aquela que ex- pressa um pensamento completo, como o ma citado (PAPALIA; OLDS; FELDMAN, 2010). Entre os 18 e 24 meses, o vocabulário dobra e a criança passa a se comunicar com mais palavras, em geral mais substantivos que verbos. Também se inicia o processo de junção de duas palavras para formar uma ideia, gerando uma fala telegráfica, por exemplo: “nenê ame”, ou “o neném está com fome”. Já dos 24 aos 36 meses, há inferência de significados de adjetivos pelo contexto. Ainda, a competência nas regras da sintaxe começa a se ampliar, aumentando a capacidade de juntar sentenças com prepo- sições, artigos, conjunções, formas verbais etc. Ao mesmo tempo, há maior consciência do ato comunicativo da fala, conseguindo se comu- nicar relativamente bem na língua oral. Portanto,durante a primeira infância, a criança possui a capacidade de compreender as relações gramaticais, embora não consiga ainda re- produzi-las. Nessa fase, o significado das palavras é supergeneralizado; por exemplo: a palavra papai, que se aplica a qualquer homem, pois a palavra homem ainda não está disponível. Como a gramática ainda não está interiorizada, as regras aca- bam por ser universais, sem levar em conta as exceções, logo plu- rais e conjugações verbais seguem a mesma regra. Por exemplo: mão-mãos/mamão-mamãos; eu entro/eu cabo. As regras serão aos poucos refinadas, consolidando-se com a alfabetização. Segundo Papalia, Olds e Feldman (2010, p. 186, grido do original): ler para um bebê ou para uma criança pequena oferece opor- tunidades de intimidade emocional e promove a comunicação entre pais e filhos. A frequência com que os pais ou cuidado- res leem para os bebês, bem como o modo como o fazem pode influenciar o desenvolvimento do letramento, a capacidade de Literatura e leitor infantil 57 ler e escrever. Crianças que aprendem a ler cedo tendem a ser aquelas cujos pais liam para elas frequentemente quando eram bem novas. Então, como vimos, ouvir histórias inicia a criança no mundo da lin- guagem e da língua, habilitando-a também para o processo de alfabe- tização que se seguirá. Cabe aqui fazermos uma breve distinção entre o letramento e a al- fabetização antes de prosseguirmos. De modo abrangente, a alfabeti- zação prevê a aquisição do código da língua, as regras e sua estrutura. O letramento diz respeito à aquisição de competências diversas envol- vidas na leitura e na escrita, entre elas a capacidade de reflexão e de aplicação do que é lido. Porém, letramento se refere a tudo o que pode ser lido: palavra, imagem, som, relações, mundo. Assim, podemos, ainda, pensar em um letramento literário, com a aquisição de habilidades específicas volta- das para esse tipo de leitura. Contudo, o letramento literário se efetiva quando acontece o relacionamento entre um objeto material, o livro, e aquele uni- verso ficcional, que se expressa por meio de gêneros específicos – a narrativa e a poesia, entre outros – a que o ser humano tem acesso graças à audição e à leitura. (ZILBERMAN, 2012, p. 130) Dessa forma, o letramento literário prevê o trabalho com livros de literatura desde muito cedo, para que se tenha acesso ao objeto mate- rial que veicula as narrativas e os poemas. Para Papalia, Olds e Feldman (2010, p. 186), há três estilos distintos de leitura, os quais são utilizados com as crianças: 1. Descritor: descrever o que acontece nas imagens pedindo auxílio da criança. Exemplo: “olha só esse lobo, que rabo comprido!” 2. Entendedor: ajudar o leitor a fazer inferências sobre a situação. Exemplo: “o que você acha que o lobo vai fazer?” 3. Orientado para o desempenho: fazer a leitura completa da obra, realizan- do um resumo no começo e perguntas no final. A utilização dos estilos descritor e entendedor auxilia a criança a construir a história, colocando o adulto como ouvinte ao fazer pergun- tas que instiguem a interação das crianças. Obviamente, as perguntas 58 Literatura Infantil devem ser desafiadoras e podem se relacionar com as experiências da própria criança. Exemplo: “você já viu um lobo? Mesmo? Como ele era?” Passamos então às crianças na educação infantil. Como será que a linguagem se relaciona à literatura nessa fase? Se você já teve contato com uma criança entre três e cinco anos, deve ter percebido o número de questionamentos feitos por minuto por ela! E mais, que visão de mundo peculiar e criativa elas têm, não é mesmo? Uma criança aos três anos tem, em média, um vocabulário de umas 950 palavras. Aos seis, com a linguagem oral mais desenvolvida e com contato com diversos livros e experiências, seu vocabulário pode che- gar em 2.600 palavras, mas com uma compreensão de mais ou menos 20.000 palavras. Com o fortalecimento dos circuitos de leitura na alfa- betização, esse número chegará a uma média de 80.000 palavras! A facilidade maior está ainda na aquisição de substantivos, exata- mente por se referirem a coisas concretas em sua maioria, diferen- temente dos verbos, que são palavras que designam ações, e muitas delas abstratas. As melhorias no uso da gramática acompanham o próprio desen- volvimento cognitivo e também a percepção do eu. Quando uma crian- ça nasce e começa a desenvolver a linguagem, é preciso que o outro lhe diga quem é. Ou seja, a criança não sabe que é criança, ou ser humano, que se chama Maria ou João. Aos poucos, a família (e a sociedade) vai dizendo a ela quem é. Isso tem uma implicação também na linguagem. Até por volta dos três anos, a criança ainda não tem reconhecimen- to de si, e então se refere a si mesma na terceira pessoa, “o nenem”. Após maior internalização da linguagem e da experiência de atuar no mundo, ela vai construindo esse senso de ser a primeira pessoa, o “eu” da gramática. Assim, a segunda infância é marcada por uma explosão de aquisi- ção de vocabulário e maior maestria na sintaxe e no uso da linguagem, seja para comunicar um desejo ou necessidade, seja para narrar. Até aqui, conseguimos visualizar o papel da linguagem dentro da literatura. Livros para a segunda infância devem levar em consideração que, mesmo sem as crianças estarem alfabetizadas, a narrativa precisa instigar perguntas e respostas, trazendo al- guns desafios linguísticos para melhoria constante de vocabulário e gramática. “– Joãozinho, coloca o chapéu porque o sol está muito quente! – Ué, e vai deixar de ficar quente se eu colocar o boné?” Podemos ver aí um pensamento muito lógico de Joãozinho, afinal ele não vê a ligação de algo implí- cito na frase – o sol queima. Você se lembra de uma fala sua ou de alguma criança que tenha esse efeito de humor sem ser planejado? Se tiver contato com crianças, um desafio bem legal é anotar essas frases criativas e analisá-las depois, tentando compreender qual o raciocínio infantil por trás da fala. Desafio A primeira infância é marcada pelo uso da terceira pessoa para se referir a si mesma(o). Explique esse fenômeno. Atividade 4 Literatura e leitor infantil 59 Além disso, como nessa fase vemos um desejo de comunicar e nar- rar, nada mais natural do que livros que proporcionem essa interação com descobertas e que despertem o interesse de usar a história lida para incrementar suas próprias histórias contadas para amigos e família. Há ainda mais um ponto da linguagem nessa etapa: o discurso par- ticular. Da mesma forma que a primeira infância marca o desafio de reconhecer o “eu”, a segunda infância traz uma dificuldade de internali- zação do discurso, que será superada em pouco tempo. O discurso particular nada mais é do que falar em voz alta consigo mesmo! Como essa fase se relaciona com a necessidade de concretude (e dificuldade de abstração), é normal que as crianças não consigam ainda pensar dentro de suas cabeças; é preciso materializar o que pen- sam e sentem para poderem fazer uso da linguagem. Portanto, o discurso particular permite tanto a descrição do que se faz, sem finalidade de comunicação, quanto uma tentativa de regulação do comportamento. Se não há um adulto ditando as regras naquele momen- to, as regras já internalizadas serão seguidas com os comandos de sua própria voz. Os sentimentos também são processados por meio desses discursos em voz alta, afinal, falar e se ouvir é sempre um ótimo remédio! A terceira infância é marcada pelo aprendizado da leitura e da escri- ta e por maior desenvoltura linguística, com as crianças passando a ter domínio da voz passiva e de orações subordinadas, além de metáforas e alegorias. À medida que progridem no ensino, a capacidade de produzir e de absorver narrativas mais longas e complexas também se amplia. No início da alfabetização, narrativas com estruturas como “Era uma vez…”, fábulas e pequenos contos são mais compreendidas por já serem familiares. É nosso papel acrescentar diferentesformas e te- máticas para que, quando alfabetizada, a criança possa compreender contextos diferentes, múltiplos personagens, mudanças de tempo e lu- gar, foco maior nos pensamentos do que nas ações dos personagens e resolução de problemas trazidos pela trama. Ainda, os livros para a terceira infância devem explorar outras rea- lidades e levar os leitores a refletirem sobre seu próprio contexto so- cial e cultural. Apresentação de contos de outras culturas, descobertas de outros tempos, situações desafiadoras (como enigmas e mistérios) e sentimentos desconhecidos (como o luto) são temáticas relevantes Marina tem oito anos e está no 2º ano. Na aula de Ciências, Marina está desenvolvendo uma atividade de acompanhar o cres- cimento do seu feijão plantado no algodão. A professora pediu aos alunos que realizassem a tarefa sozinhos e em silêncio. Porém, ao longo da atividade, Marina constantemente interage com os dados coletados falando em voz alta, mas para si mesma. A professora se aborrece e pede diretamente à Marina que faça silêncio. Entendendo que possivelmente Marina ainda não tenha internalizado o discurso, qual seria a melhor postura da professora? Estudo de caso 60 Literatura Infantil entre muitas outras possíveis para essa etapa do desenvolvimento da criança e de sua linguagem. Vimos até aqui como ocorre a ligação entre a literatura e as fases de aprendizado da linguagem na criança. Mas como se classificam as obras infantis? Será que elas seguem o padrão de desenvolvimento infantil? Não necessariamente. Ainda há editoras que praticam a divisão por idade, que não reflete exatamente as necessidades infantis. Perceba que mesmo no caso de as crianças passarem pelas mesmas fases de desenvolvimento, o acesso a experiências que propiciem essa passa- gem entre as etapas é decisivo. Como bem sabemos, temos uma grande desigualdade social em nosso país, e não podemos imaginar que uma criança que vive sem saneamento, com pouca comida e sem muita atenção tenha o mesmo ritmo de desenvolvimento de uma criança da mesma idade moradora de bairro nobre, com acesso a comida, escola e um ambiente amoroso. Sabemos então que cada criança terá seu ritmo, a depender de mui- tos fatores, entre eles ambientais e biológicos (quando estão envolvidas síndromes ou transtornos decorrentes da formação biológica). Logo, precisamos de uma divisão que leve em consideração que nem todas as crianças da mesma idade apresentam as mesmas características. Desse modo, as editoras atualmente praticam outra forma de or- ganização de seus livros infantis: a classificação por níveis de leitura. Ela já é muito empregada em livros para aprendizado de idiomas, es- pecialmente os ligados à União Europeia, pois os europeus, possuindo diversas línguas em seu bloco, estabeleceram os níveis de proficiência linguística como forma de identificar os aprendizes. Assim, podemos encontrar algumas classificações por níveis, con- forme a tabela a seguir. Porém, a mais utilizada hoje pelos catálogos das editoras brasileiras é o modelo da pesquisadora Nelly Novaes Coelho (SOARES, 2008). Visite a página do Centro de Línguas da Universidade Federal Fluminense para compreender melhor como funcionam os níveis de proficiência em línguas. Disponível em: https://tinyurl. com/yajkazkv. Acesso em: 22 abr. 2020. Site Literatura e leitor infantil 61 Quadro 4 Classificação dos níveis de leitura para livros infantis Autores Níveis para leitura de livros infantis Nelly Novaes Coelho Pré-leitor: 1ª infância – 15/17 meses aos 3 anos; 2ª infância – a partir de 2/3 anos. Leitor iniciante: a partir dos 6/7 anos. Leitor em pro- cesso: a partir dos 8/9 anos. Leitor fluente: a partir dos 10/11 anos. Leitor crítico: a partir dos 12/13 anos. Betty Coelho Pré-escolar até 3 anos: fase pré-mágica. Seres personificados, animais, brinquedos e crianças. Pré-escolar 3-6 anos: fase mágica. Contos de fadas e histórias sobre repetições e acumulações (senti- mentos, coisas, ações). Fase escolar após os 6 anos. Richard Bamburg 2-5/6 anos: livros com gra- vuras e versos. 5-8/9 anos: fase dos contos de fadas e do realismo mágico. 9-12 anos: histórias que relatem aconte- cimentos e ambientes diferentes. 12-14/15 anos: histórias de aventuras. 14-17 anos: fase em que o leitor se desen- volve estetica- mente. Glória Pondé 1ª fase: o livro deve propiciar o conhecimen- to do mundo ao redor da criança. 2ª fase: a literatura psicológica auxilia na liberação dos medos inconscientes – contos de fadas e folclóricos. 3ª fase: identi- ficação com os personagens. 4ª fase: visão crítica de mun- do. Maria Antonieta Antunes Cunha Fase do mito: 3/4-7/8 anos. Lendas, mitos, fábulas e contos de fadas. Fase do conhecimento da realida- de: 7/8-11/12 anos. Romances de aventuras possíveis. Fase do pensa- mento racional: 11/12 anos em diante. Terezinha Cassanta 10 meses-2 anos: livros à prova de brin- cadeiras. 2-3 anos – fase do aqui e agora: histórias do mundo concreto. 4 anos: histó- rias de animais, crianças e transportes/ viagens. 5 anos – fase da curiosidade sobre fenôme- nos físicos. Não indica contos de fadas antes dos 7 anos por não apresentarem experiências próximas da realidade infantil. Gládis Kaecher 0-2 anos: livro-brinquedo para aproximar da leitura. 2 anos: narrativas curtas e com poucos personagens. Grandes ilustrações que permitam que a criança conte a história. 3 anos: contos de fadas. 4-6 anos: lendas, narra- tivas maiores e poesia. Fonte: Adaptado de Debus, 2005. 62 Literatura Infantil Podemos ver pelas teorias elencadas que algu- mas parecem se distanciar do público infantil, des- considerando crianças na primeira infância. Mas como compreendemos a leitura enquanto processo mais amplo, concordamos aqui com as classifica- ções realizadas por Nelly Novaes Coelho e Glória Pondé. Teríamos então teorias que, em sua maioria, não pensam a divisão dos livros por idades fixas, mas por blocos maiores, em que a criança pode se reconhecer no seu processo de desenvolvimento in- Uma ótima leitura sobre como desenvolver um trabalho eficaz e prazeroso em letramento literário é o livro homônimo Letramento Literário: teoria e prática, de Rildo Cosson. É um livro com exemplos práticos de como estimular a leitura na escola. COSSON, R. São Paulo: Contexto, 2009. Livro dividual, que também auxilia àqueles que selecionarão os livros para a leitura da criança. Se a linguagem estrutura o pensamento infantil, nada mais natural que livros de literatura para auxiliar o leitor nesse processo. Da mesma forma, a linguagem está a serviço da criação do leitor, que, ao interagir com ela, reinventa-a! CONSIDERAÇÕES FINAIS Este capítulo lançou uma reflexão sobre como uma criança se torna um indivíduo e, ao mesmo tempo, um leitor. Também trabalhamos a re- lação entre o desenvolvimento, a linguagem e a literatura, e acreditamos que você tenha agora bases mais sólidas para continuarmos pelo mundo dos livros infantis. Esperamos que você tenha compreendido a importância do univer- so da literatura para a experiência de se tornar sujeito, alguém capaz de saber quem é e de refletir sobre a própria existência. Desejamos que em sua próxima leitura literária você possa se construir um pouquinho mais, sempre ampliando sua identidade a cada nova leitura! REFERÊNCIAS COSTA, M. M. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: Intersaberes, 2013. DEBUS, E. S. D. O que se dá a ler a quem dizem que não lê: as concepções de leitura/leitor e os critérios na escolha de livros para as crianças de 0 a 6 anos. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL – COLE, 15., 2005, Campinas. Anais [...]. Campinas: PUC-CAMPINAS; UNICAMP: 2005. Disponível em: http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_ anteriores/anais15/alfabetica/DebusElianeSantanaDias2.htm. Acesso em: 22 abr. 2020. DEFINE these termsof bioecological model of development flashcards. ProProfsFlashcards, 4 mar. 2020. Disponível em: https://www.proprofs.com/flashcards/story.php?title=ecological- http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais15/alfabetica/DebusElianeSantanaDias2.htm http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais15/alfabetica/DebusElianeSantanaDias2.htm Literatura e leitor infantil 63 theory. Acesso em: 27 maio 2020. FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1989. HALL, C. S.; LINDZEY, G.; CAMPBELL, J. B. Teorias da personalidade. Porto Alegre: Artmed, 2000. HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010. LA TAILLE, Y.; OLIVEIRA, M. K. de; DANTAS, H. Teorias psicogenéticas em discussão. 27. ed. São Paulo: Summus, 2016. PAPALIA, D. E.; OLDS, S. W.; FELDMAN, R. D. Desenvolvimento humano. 10. ed. Porto Alegre: Artmed, 2012. SAINT-EXUPÉRY, A. de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 2009. SOARES, M. Livros para a educação infantil: a perspectiva editorial. In: PAIVA, A.; SOARES, M. (orgs.). Literatura infantil: políticas e concepções. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 21-34. ZILBERMAN, R. A leitura e o ensino de literatura. Curitiba: Intersaberes, 2012. GABARITO 1. A literatura tem um papel de auxiliar na simbolização do real, na aquisição de habili- dades de criatividade, na humanização e reflexão sobre outros contextos e na cons- trução da identidade do sujeito. 2. A resposta deve refletir que o aluno compreende que a barata da cantiga está sempre procurando se mostrar como algo que não é, dizendo que tem coisas que na verdade não tem. Por exemplo: “A barata diz que tem um chinelo de veludo, é mentira da barata, ela tem o pé peludo”, entre outras coisas que diz ter. Se analisarmos a letra, trata-se da busca da barata por ser alguém, ser reconhecida, uma busca pela sua pró- pria identidade. Podemos até mesmo ampliar essa discussão demonstrando o quanto a identidade tem sido construída por “ter/possuir” algo, e não por “ser alguém”. 3. As perspectivas teóricas que acreditam que o sujeito é agente de seu desenvolvimento são as cognitivas, a evolutiva e a contextual. A hipótese de que a criança é ativa em seu desenvolvimento prevê que, ao interagir consigo mesma e com os outros, há uma ação que a leva a explorar as suas habilidades, alargando suas fronteiras de limites e promovendo, assim, o desenvolvimento. Uma teoria que crê na criança enquanto agente engloba a exploração e a interação com a literatura, em um movimento de descoberta e reflexão. 4. Como a criança ainda está construindo sua identidade, ela não se reconhece ainda enquanto um ser e nem possui uma condição de referência a si mesma por meio da língua. Embora use gestos como dar batidinhas no peito para indicar que está falando dele mesmo, o bebê não consegue representar isso pela linguagem, pois não possui ainda um sentido de eu, tendo como referência apenas o que os outros dizem dele, e os outros o tratam pela terceira pessoa, logo ele também irá se referir a si mesmo dessa maneira. 64 Literatura Infantil 3 Estrutura do livro infantil Modéstia à parte, a bagunça que eu faço tem nome de arte. Ziraldo, em O pequeno livro de hai-kais do Menino Maluquinho Não só de palavras vive o ser humano! E não apenas de letras que se faz um livro! O livro infantil é mais que uma narrativa conta- da pelas marcas gráficas em seu miolo. Ele é um objeto complexo, cheio de significados da capa ao número da página, da ilustração ao espaço em branco. Assim, neste capítulo vamos lançar um olhar sobre todos os com- ponentes de um livro infantil. Também veremos a importância de um projeto editorial e as relações entre livro e mercado livreiro no Brasil. Ainda, analisaremos mais a fundo como se dá a relação entre texto e imagens, e entre texto e gêneros textuais, compreendendo o livro enquanto objeto formado por partes tangíveis, materiais, e intangíveis, suas partes abstratas. 3.1 O projeto editorial do livro infantil Vídeo A primeira pergunta que você provavelmente está se fazendo é: o que de fato significa projeto editorial, certo? Veja, como o nome já diz, é um projeto, mas um projeto que tem por objetivo produzir algo físico, material – o livro. Um projeto editorial é, en- tão, um documento em que constam todas as características que esse li- vro deverá apresentar. Também auxilia todos aqueles que trabalham na produção do livro (editor, escritor, ilustrador, revisor, diagramador, prepa- rador, encarregados de impressão, entre outros) a se manterem dentro de uma linha de qualidade e dentro dos objetivos planejados para a obra. Assim, toda a equipe que participa da produção do livro segue um projeto editorial visando a qualidade e o fluxo do trabalho. E, para man- Estrutura do livro infantil 65 ter esse fluxo, temos o editor, profissional que coordena esse trabalho de equipe e ajuda a estabelecer as diretrizes para o projeto, garantindo que sejam alcançados os objetivos propostos. Logo, dentro de um projeto editorial consta tanto o texto em si quanto todas as características de design que auxiliarão na constru- ção dos sentidos do texto, afinal, quando pegamos um livro, não le- mos apenas seu miolo, mas o livro como um todo, desde a capa. Desse modo, o design de um livro funciona como mediador entre o leitor e o conteúdo, por isso precisa de um olhar profissional e integrador, para que texto, ilustração e design geral não compitam entre si, retirando o foco do leitor e da construção de sentidos do texto. Tendemos a pensar sempre no escritor como o único autor do livro, mas essa não é toda a verdade. Ele pode ser autor do texto e ideali- zador do livro, pois é do texto que sairão as diretrizes para o design e a ilustração, especialmente no livro infantil. Contudo, o ilustrador e o diagramador também são autores. Afinal, pegar a essência do texto e transformá-la em arte visual também é processo de autoria. Da mesma forma, dar sentido aos espaços na diagramação é tarefa autoral, pois a coesão entre blocos de texto, imagem e espaços vazios também funcio- nará como mediadora da leitura. De acordo com Bárbara Necyk (2007, p. 86): como produto comercial, o design do livro é um fator que se soma a uma série de condições pertencentes à cadeia produti- va e comercial. O design do livro pode ser encarado como dife- rencial competitivo quando se apresentam soluções inovadoras, quando se percebe a integração do design à história, ou quando é rompida a estética “lugar comum” das histórias infantis. Geral- mente, livros que possuem excelente acabamento gráfico tradu- zem na sua materialidade a preocupação e o profissionalismo empregados pela equipe editorial e de criação. Portanto, a forma de dispor os elementos na página ajuda a contar a história, por isso o design é tido como mediador da leitura. De certa maneira, ele atua como controle do leitor, afinal, quem nunca escolheu um livro pela sua capa ou por considerar a edição bonita? Quando você entra em uma livraria, como reconhece os livros que são voltados para o público infantil? Pela capa! O projeto gráfico das capas em livros infantis é sempre muito bem pensado, pois, como vi- mos na citação anterior, o design traz elementos que também auxi- 66 Literatura Infantil liam na competição pela escolha do leitor. Entendendo que a criança (e nós adultos também) é atraída por cores, formas e texturas, as capas possibilitam um primeiro contato a distância, fazendo com que o leitor queira pegar aquele livro para ler. É na capa se se encontram as promessas e expectativas para aquela leitura e, por esse motivo, muitos livros recebem grande investimento na capa, com imagens menos nítidas ou acabamento inferior em sua parte interna. Isso é pensado exatamente para gerar destaque do livro, chamando a atenção do leitor (COLLARO, 2007). A capa também antecipa a história e, juntamente com o título, pode complementar ou não a obra. Pode,inclusive, servir como auxiliar na narrativa, como uma ilustração que se inicie na capa e vá até a contra- capa. Veja o exemplo na Figura 1. Figura 1 Capa de livro que antecipa a narrativa. N. Sa vr an sk a/ S hu tte rs to ck Ler é bom Tainá Thies Mas ler com amigos é melhor ainda! Observando o exemplo do livro Ler é bom, podemos ver que sua história inicia na capa e termina na contracapa. É uma capa que inclusi- ve traz em sua contracapa uma pista sobre o livro, com a frase mas ler com amigos é melhor ainda. Frase que é corroborada pela ilustração de vários amigos lendo lado a lado. A capa funciona como um elemento de início da leitura do livro. Como você pode ver na Figura 2, as imagens se referem a diferentes capas de um mesmo livro – O ratinho sonhador. Antes de continuar a leitura para a análise dessas capas, observe-as e tire suas conclusões sobre qual pode ser a história. Se puder, vá a livrarias e faça um exercício (se não for possível, faça pela internet mesmo). Na seção de livros infantis, observe as capas e tente descobrir a história; só depois de formular hipóteses, olhe o resumo ou leia o livro para ver se a capa correspondeu à história ou se te levou a acreditar em um enredo distinto do contato pela obra. Desafio Estrutura do livro infantil 67 Figura 2 Exemplos de capas como elemento inicial de leitura do livro. Yu lii a Ba hn iu k/ K OS TE NK O3 / S hu tte rs to ck Tainá Thies Uma história de Tainá Thies Tainá Thies Uma história de Tainá Thies Agora que você já observou com cuidado, vamos lá! A primeira capa mostra um ratinho preparado para dormir, no que parece ser um mó- bile de nuvem. Na segunda, o ratinho pilota um avião no céu noturno. O que você diria de cada uma das histórias ao olhar essas capas? A história do livro nos mostra um ratinho que gosta muito de sonhar e que não via a hora de seu dia de trabalho acabar para preparar um chá e poder sonhar com mundos distantes. Não há indicações de como são esses sonhos, se são devaneios, como mostrado na segunda capa, ou se são sonhos adormecidos, como na primeira capa. Por não haver indicação clara é que é possível termos leituras tão diferentes para uma mesma história. O fato é que estilos e escolhas diferentes na ilustração da capa dão ideias distintas sobre o conteúdo da obra. A narrativa ganha diferentes significados com cada releitura. Assim, na primeira capa temos um ratinho que não vê a hora de adormecer para sonhar dormindo, enquanto na segunda temos a ideia de que o ratinho aguarda a noite para poder bolar sonhos de futuro, de conquistas e de, provavelmente, pilotar um avião. 68 Literatura Infantil Agora veja esta outra capa (Figura 3). O título Cabum!!!!! está em re- lação direta com a imagem, indicando que a história terá claramente um cenário com fenômeno de tempestades e raios. Logo, os títulos complementam as ilustrações para que o leitor te- nha uma primeira experiência completa, como em Cabum!!!!!, em que o título casa com a ilustração em grande sintonia e cooperação. Aliás, o título deve ser bem escolhido, pois também é capaz de cativar muitos leitores. Capa e título compõem o que o teórico fran- cês Gerard Genette chamou de paratexto, elementos que controlam e direcionam a recepção do texto. Para Graham Allen, estudioso de intertextualidade: o paratexto, para Genette, assume várias funções que guiam os leitores do texto e podem ser pragmaticamente compreendidos em termos de várias questões simples, todas concernentes com a maneira da existência do texto: quando foi publicado? Por quem? Com qual propósito? Tais elementos paratextuais também auxi- liam a estabelecer as intenções do texto: como ele deve ser lido, como ele não deve ser lido. (2007, p.104, tradução nossa) 1 Para Genette, o paratexto é composto por título, ilustrações, notas e prefácios, guiando o leitor pela obra. Essa função de guia, nos livros infantis, pode ser mais ou menos explícita a depender da ilustração na capa e dos títulos. Para as pesquisadoras Maria Nikolajeva e Carole Scott podemos di- vidir os títulos de livros infantis em categorias. Quadro 1 Categorias de títulos para livros infantis, segundo Nikolajeva e Scott. Categoria Descrição Exemplo Título nominal Títulos que trazem o nome do persona- gem principal, acompanhado ou não de adjetivo ou substantivo. Gildo – Silvana Rando O menino do dedo verde – Maurice Druon Título de persona- gens coletivos Títulos com grupo de personagens, que podem estar ligados a um lugar. Vizinho, vizinha – Roger Mello e Graça Lima Título de gênero Títulos que vêm acompanhados por uma caracterização do gênero. Memórias de Emília – Monteiro Lobato Fábulas de Esopo – Esopo Lendas Indígenas (Continua) Figura 3 Capa com relação direta entre ilustração e título. Fonte: Elaborada pela autora.. The paratext, for Genette, performs various functions which guide the text’s readers and can be understood pragmatically in terms of various simple questions, all concerned with the manner of the text’s existence: when published? by whom? for what purpose? Such paratextual elements also help to establish the text’s intentions: how it should be read, how it should not be read. 1 Estrutura do livro infantil 69 Categoria Descrição Exemplo Título de objetos Títulos com objetos como personagens centrais. A bolsa amarela – Lygia Bojunga Título de narrativas Títulos que capturam a essência da his- tória. Nicolau tinha uma ideia – Ruth Rocha Títulos topográficos Títulos que indicam lugares. O menino e o mar – Lulu Ima e Lalan Bes- soni Fonte: Elaborado pela autora com base em Nikolajeva; Scott, 2006, p. 242-245. Com tal classificação, temos maior clareza de analisar um texto pelo seu título antes mesmo de chegarmos à história. Se não conhecemos a obra Memórias de Emília, de Monteiro Lobato, mesmo assim conseguire- mos saber que se trata de um livro biográfico de alguém chamada Emília. Uma vez que esse título vem acompanhado de uma ilustração na capa, saberemos que Emília se refere a uma boneca. Então já adentramos no universo do sítio sabendo que leremos sobre a vida de uma boneca. Muitas vezes não prestamos atenção na forma das letras do título, isto é, na sua tipografia, porém, geralmente ela também faz parte da história e foi pensada dentro do projeto editorial. Temos abaixo um exemplo da escolha da tipografia e sua relação com as imagens: Figura 4 Exemplo de tipografia ilustrada an n1 31 31 3/ S hu tte rs to ck 70 Literatura Infantil Na imagem, vemos uma tipologia que denota uma ideia escolar, di- retamente ligada ao título ABC, lembrando a aprendizagem do alfabeto. A ilustração de crianças com seus livros, cadernos e mochilas também transparece o significado escolar. Necyk nos fala sobre o pensamento dos logocentristas, que defen- diam a ideia de uma letra que tenha apenas a função de informar com neutralidade: na visão desses pensadores, a letra impressa deveria espelhar neutralidade, transparência, na condição única de veículo do conteúdo textual. Hoje, em alguns contextos, vemos que a tipo- grafia é deliberadamente utilizada para converter significado. Nessas aplicações, o texto impresso transmite a mensagem codi- ficada por meio do alfabeto, mas pode também, através do efeito visual produzido, criar significados simbólicos, da mesma forma que a imagem (2007, p. 90). Encontramos diversas obras (infantis ou não) que jogam com a for- ma das palavras para criar algo diferente. Podemos brincar, então, com as formas das letras e das palavras, por exemplo no caso dos poemas concretos, e isso não é diferente nos livros infantis. A esse respeito, Necyk (2007, p. 91) afirma que: de qualquer maneira, o livro infantil recupera a forma da letra e o uso do alfabeto como elemento gráfico de valor semântico. As formas de modelação da recepção da narrativa verbo-visual através da aplicação tipográfica podem se dar em vários níveis. Desde a leitura de um diálogoou de uma rima até o desenho das letras na forma de personagem da história, encontram-se várias formas de aplicação. Em todas, observa-se a tendência de usar o texto como imagem, de potencializar sua dimensão gráfica. Veja, na Figura 5, como o uso da tipografia potencializa a dimensão gráfica, conforme levantado por Necyk. Para saber mais sobre os poemas visuais e concretos, acesse o material preparado pelo site Plataforma do Letramento. É um material que traz explicações sobre o gênero e atividades de construção de poemas. Boa leitura! Disponível em: https://tinyurl. com/ybvhjav9. Acesso em: 12 maio 2020. Site Estrutura do livro infantil 71 Figura 5 Capa com onomatopeia ilustrada An ci V al ia rt/ S hu tte rs to ck Onomatopeias são sempre bem-vindas nos livros infantis, especial- mente se acompanharem formas visuais que as complementem, como no caso da Figura 5, em que o bang de uma explosão vem acompanha- do de um balão que também lembra tal explosão. Desse modo, o uso da tipografia transforma o texto verbal também em uma narrativa visual, dirigindo a recepção do texto. Chegamos, então, à diagramação do texto, responsável por dimen- sionar os espaços ocupados nas páginas, tanto pelo texto e imagem quanto pelos espaços em branco, pois eles também compõem uma obra. A relação entre os espaços para cada um dos elementos também é determinante no processo de leitura, pois se a integração entre eles for bem planejada a leitura será muito mais fluida e integrada do que imagens separadas de textos. Outra etapa muito importante em um projeto editorial é a seleção do formato do livro, isto é, se será pequeno, grande, quadrado, retan- gular etc., bem como seus materiais. Tanto material quanto formato provocam respostas diferentes do leitor, mesmo que seja a mesma história em diferentes formatos. Logo, normalmente associamos livros pequenos a um conteúdo mais sutil e gracioso do que um livro em tamanho grande, que pode proporcionar imagens muito maiores e com mais detalhes. 72 Literatura Infantil Livros em formato retangular são os mais comuns e, no livro infantil, podem trazer peculiaridades relativas à ilustração. Se o retângulo for horizontal haverá mais espaço para ilustrar o cenário e sua interação com o personagem. Por outro lado, se o retângulo for vertical, a ênfase maior será no personagem e não no cenário (NECYK, 2007). Ainda, o formato quadrado traz proporções mais básicas para o re- conhecimento infantil. Livros de cortes especiais, como redondos, em formato de casa, de animais e de outros objetos, proporcionam uma interação do leitor com a forma do livro. Até aqui vimos muitas informações sobre quais características são relevantes na produção de um livro infantil. Além desses tantos ele- mentos elencados, ainda precisamos discutir a ilustração, mas deixe- mos isso para o próximo tópico, uma seção especialmente voltada à discussão sobre a relevância da ilustração na literatura infantil. Porém, antes de finalizarmos a discussão sobre as características da produção editorial, vamos levantar a pedra sobre o mercado editorial. Levantar e olhar rapidamente o que há lá embaixo, pois para cavarmos precisaríamos de um tópico muito maior. Por isso mesmo, deixamos algumas indicações de leituras ao longo deste pincelamento sobre a relação entre livro literário infantil e mercado editorial. Sabemos que dentre os livros infantis encontraremos aqueles com boa qualidade editorial e outros nem tanto. Mas, em especial, o que sabemos é que livros infantis são caros! Bem, o processo de produção de um livro infantil, em primeiro lugar, deve considerar o público-alvo. E não, não são as crianças! Os primeiros destinatários do livro infantil são os avaliadores do PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola). Esses avaliadores sele- cionarão os livros que serão indicados para os professores das escolas escolherem. Então, o público-alvo acaba sendo os professores que sele- cionarão quais livros preferem em suas bibliotecas. Somente por último é que vem a criança, quando adultos já fizeram uma seleção por elas. Assim, livros que irão para a avaliação do PNBE ganham uma aten- ção especial, com altos investimentos. Todavia, isso não significa que o livro sairá para as livrarias. Muitas vezes a editora produz apenas o exemplar para que os avaliadores examinem. Caso não passe no pro- cesso, a obra poderá ser descartada. Por quê? Bem, porque o maior comprador de livros infantis no Brasil é o governo, e vender livros caros Leia as notícias dos sites Quindim e Editoras.com para compreender melhor o panorama do mer- cado editorial de livros infantis brasileiros. Disponível em: https://tinyurl. com/ydatvzo3 e https://tinyurl. com/y92uvq4q. Acesso em: 12 maio 2020. Site Se o livro infantil é pensado pelas editoras para a avaliação no PNBE, você acha que, independente do governo, os valores governamentais podem influenciar na escolha dos temas? É com certeza algo a se pensar! Para saber mais sobre o processo do PNBE, navegue pela página do programa em https:// tinyurl.com/y9pfzkw9. Site Estrutura do livro infantil 73 diretamente para os consumidores (pais e crianças) não traz lucro, exa- tamente por ser um produto caro. É um círculo vicioso. Veja o esquema na Figura 6 para com- preender melhor a cadeia do livro infantil. Nesse esquema, podemos ver que uma bai- xa tiragem, isto é, um número baixo de livros im- pressos, causa um alto preço no livro, fazendo com que poucas pessoas possam comprar. E na verdade, exatamente por serem poucos os que podem adquirir um livro com alto investimento, como um livro bem ilustrado e com bons ma- teriais, é que a tiragem é baixa, gerando o alto preço, seguindo-se nesse ciclo. Isso não possi- bilita que a maior parte das crianças brasileiras tenha acesso ao livro infantil de qualidade em suas casas, no âmbito privado. Por outro lado, na Figura 7, vemos que a compra governamental é o que faz com que as editoras invistam em tiragens altas, fazendo com que o preço por livro caia, gerando maior competitividade e maior volume de compras. Assim, com programas como o PNBE, as crianças passam a ter acesso ao livro em meio públi- co, na biblioteca escolar. Figura 7 Relações envolvidas na compra governamental. Menor preço unitário Maior competitividade Tiragem alta (volumes impressos) Compra governamental Fonte: Elaborada pela autora. Fonte: Elaborada pela autora. Figura 6 Funcionamento da cadeia do livro infantil. Tiragem baixa Preço Alto Sem compradores Maioria das crianças só tem acesso ao livro na escola Qual seria o papel do governo na produção dos livros de literatura infantil no Brasil? Atividade 1 74 Literatura Infantil Peter Hunt (2014) aponta que no percurso do livro até chegar à criança existem três elementos: o escritor, a editora e a criança. No Brasil, podemos acrescentar a esse percurso ainda os programas go- vernamentais, como o PNBE. O autor nos diz que o papel principal fica com a editora, que é quem atende ao mercado com a produção do livro. No fim das contas, o processo de produção do livro é um exercício de poder, seja ele inserido no próprio texto ou nas relações entre os elementos dessa cadeia do livro, em especial governo, editora e autor. Esse exercício de poder sofre influência, especialmente, devido a pressões financeiras e sociais mais do que literárias, pressões que são exercidas pelos compradores, os quais possuem diferentes demandas para a compra de um livro infantil. Em sua maioria, demandas educa- cionais, formadoras de valores e didáticas, muitas vezes em detrimento do prazer e do entretenimento. Porém, na contramão desse movimento vemos algumas iniciati- vas que tentam modificar esse fluxo. Pequenas editoras que publicam verdadeiras obras de arte infantis e também a autopublicação, uma prática em que os próprios autores publicam suas obras e colocam di- retamente no mercado para venda. Naera dos e-books, não poderia haver mais facilidade. Mas, em nosso país, é evidente que, hoje, a produção do livro infan- til é particularmente governada por forças econômicas que ditam quais livros serão impressos e quais não possuem valor de mercado (mesmo que possua um valor literário inestimável). A quem então se destina o livro infantil? Em última análise, aos que selecionarão os livros para as crianças, que receberão algo já filtrado por olhos adultos, que primeiro fizeram a crítica da obra, tirando um pouquinho da cor da espontanei- dade infantil. E para retomarmos essas cores perdidas no processo, vamos às ilustrações! Estamos em um momento no qual a autopublicação de um livro de qualquer gênero é possí- vel com um investimento baixo. Ao mesmo tempo, isso permite que muitos autores se lancem no mercado sem necessitar de uma editora. Como será que fica a qualidade das obras literárias para crianças nesse cenário? Se possível, busque ler algumas obras autopublicadas em for- mato e-book e tire suas próprias conclusões. Tais obras podem ser encontradas em sites de livros e em livros eletrônicos. Desafio O Centro de alfabetização, leitura e escrita (Ceale), da Universidade Federal de Minas Gerais, lançou, entre os anos de 1997 e 2008, 10 obras que tratam das relações da literatura com a educação em uma coleção intitulada Literatura e Educação. São assuntos como ilustrações, formação do pro- fessor, processo de letramento, discursos literários e políticas de leitura. Confira todos os títulos na página do programa. Disponível em: https://tinyurl. com/yc7dfjs2. Acesso em: 12 maio 2020. Saiba mais Estrutura do livro infantil 75 3.2 A história contada pela ilustração Vídeo A ilustração é elemento chave em uma literatura infantil, em espe- cial nas obras voltadas para a primeira e segunda infâncias. Aliás, você também não sente que as ilustrações atraem o seu olhar? Ramos e Panozzo (2015, p. 64) nos falam exatamente sobre essa atração da ilustração. Para elas, a ilustração atrai o olhar do sujeito que se deslumbra e se volta sobre o que vê, para interagir com o texto, ou seja, com a nova realidade apresentada pela imagem. Em síntese, a ilustração convida o leitor a viver uma experiência estética, não se trata apenas de observar uma obra artisticamente executada, perce- bendo seus materiais ou técnicas de produção, mas de recebê-la, percebê-la, senti-la, deixar-se levar pela emoção que aquele con- junto, artisticamente constituído, provoca. Assim, uma obra com texto e imagem não serve apenas ao intuito de facilitar a leitura para crianças, mas é uma experiência estética em si mesma, uma forma de sentir a arte. Não podemos dissociar, então, a ilustração de seu autor, o ilustrador, pois é ele quem vai dirigir o olhar do leitor, criando imagens a partir do texto verbal, mos- trando diferentes caminhos para a leitura. Ramos e Panozzo nos dizem ainda que a ilustração possi- bilita “a passagem a um novo ‘estado das coisas’, o deslum- bramento que provoca a fratura na cotidianidade e atrai o olhar” (2015, p. 64). Logo, a imagem não pode ser apenas um elemento acessório, ela transcende a realidade objeti- va, dando o tom da palavra escrita. E esse tom encontra coro no estilo do ilustrador. Se olharmos diferentes livros infantis encontraremos ilustrações com técnicas e nuances distintas, como nas figuras 8 e 9. Na Figura 8, de Beatrix Potter, vemos tons pastéis, com uso de técnicas de aquarela, formando um desenho muito suave. Já na Figura 9, muito próxima de livros infantis contemporâneos, demonstra um uso de co- res mais vibrantes, aproximando-se de um Be at rix P ot te r/ W ik im ed ia C om m m on s Figura 8 Ilustração em tons pastéis. babenkoirusa/Shutterstock Figura 9 Ilustração com técni- cas contemporâneas. 76 Literatura Infantil mundo digital em que a luz intensa tem predominância na tela com cores brilhantes. Assim, o estilo e a leitura do ilustrador podem produzir histórias completamente diferentes. Um bom exemplo são as versões do livro Nicolau tinha uma ideia, de Ruth Rocha. A obra conta a história de Nicolau, alguém que começou a compar- tilhar ideias quando as pessoas só tinham uma ideia por vez na cabeça. O texto não traz indicação de tempo ou local, por isso permite grande liberdade nas ilustrações. O livro teve três edições, a primeira delas com ilustrações de Walter Ono, em 1977, pela Editora Abril. Nela podemos perceber um perso- nagem jovem, mais próximo da realidade. As ilustrações internas tam- bém corroboram esse estilo. Já a segunda, com ilustrações de Mariana Massarani, foi lançada em 1998, pela Quinteto Editora, e mostra um Nicolau no tempo das cavernas e dos homens primitivos, ainda com muito a conhecer e inventar. Por fim, a última capa traz ilustração de Alcy Linares, publicada em 2014, pela editora Salamandra, e coloca Ni- colau como alguém com mais idade, com aparência sábia e acima de uma multidão, que olha para ele como seguidores. Saiba mais Para visualizar as capas das diferentes versões que analisamos de Nicolau tinha uma ideia, acesse os links a seguir e perceba as diferenças entre cada uma delas. 1ª versão: 2ª versão: 3ª versão: https://www.salamandra.com.br/main. jsp?lumPageId=4028818B2F212E9B012F- 2C6BF30801C2&itemId=8A8A8A8246E- C045D0146F7225DAE77D0 https://www.amazon. com.br/Nicolau-Tinha-I- deia-Edicao-Renovada/ dp/8530501969 https://surdohk.blogspot. com/2013/03/pensar-refle- tir-agir.html As diferentes ilustrações para uma obra, como essa da Ruth Rocha, funcionam como catalisadoras para que a leitura flua de acordo com a visão do ilustrador. Quando vemos um Nicolau da Idade da Pedra, temos uma visão de que o personagem estava descobrindo coisas no- Estrutura do livro infantil 77 vas. Já quando vemos Nicolau jovem, em um estilo urbano, não temos a mesma sensação, talvez ele seja alguém que está tirando as pessoas da mesmice, mas não abrindo novos horizontes para a humanidade. Já na última edição temos um personagem principal no oposto dos ante- riores, alguém que está acima dos outros, pois sabe mais e pode com- partilhar suas ideias. Logo, o estilo não é apenas relativo a um gosto do ilustrador. Ele ecoa todo um sistema simbólico vigente na época em que o desenho foi realizado. O estilo não é individual, como muitas vezes pensamos, uma marca registrada inventada do nada pelo autor (seja ele escritor ou ilustrador). O estilo é construído no diálogo com outros estilos que vieram antes dele, outros artistas, sua história, seu momento, seus símbolos culturais, reproduzindo o estilo de sua própria época, como vimos com Beatrix Potter. Um bom exemplo é o uso de xilogravuras, um estilo que tem seus pri- meiros registros no século V e que foi adotado pelos cordelistas brasileiros como marca de sua arte em versos. Veja abaixo um exemplo desse estilo: Figura 10 Exemplo de xilogravura HS T6 / S hu tte rs to ck Dessa maneira, ilustradores se embasam em uma tradição já esta- belecida, como a xilogravura, para contar histórias, como no caso da adaptação de Romeu e Julieta para o cordel. O ilustrador, então, em posse de um estilo permeado pelo diálo- go com tantos outros estilos, faz seu próprio relato do texto, mas em Acesse o site https://tinyurl. com/y7ams3xq e compreenda como é feita a xilogravura. Saiba mais Você também pode se deleitar com uma anima- ção em cordel do texto de Romeu e Julieta, adaptado por Ariano Suassuna, e publicado pelo canal Causos de Cordel,. Disponível em: https://tinyurl.com/ y8lyfccr. Acesso em: 12 maio 2020. Vídeo Uma ótima leitura é o livro Romeu e Julieta em cordel, uma adaptação de Sebas- tião Marinho do texto de William Shakespeare, com ilustrações de Murilo. MARINHO, Sebastião; MURILO. São Paulo: Nova Alexandria, 2011. Livro 78 Literatura Infantil formato visual. Relato que guia o texto verbal na leitura e que pode ampliar ou não a própria narrativa. Assim, mesmoque a ilustração seja proveniente da ótica do ilustrador, assim como a palavra é organizada pelo escritor, cada uma das linguagens tem uma função na construção discursiva, tentando estabelecer um vínculo com o leitor. Pela sua natureza de objeto artístico e estético, palavra e ilustração atuam como provocação de uma lacuna no processo do leitor, cuja interferência é respon- sável pela emoção estética do texto e da produção de sentido. (RAMOS; PANOZZO, 2015, p. 63) Como a imagem atua no espaço entre texto escrito e leitor, median- do o processo de leitura, nada mais natural que o trabalho de letra- mento para as imagens. Embora olhar uma imagem e se deleitar com cores e formas seja algo inato, a sua leitura reflexiva e sua relação com o texto precisam ser ensinados. De acordo com Ramos e Panozzo (2015), a mediação da leitura re- quer a construção de autonomia do leitor e não apenas a decodificação de palavras ou imagens, pois a ilustração dá vida a algo que muitas vezes não é material, como unicórnios e duendes, pedindo do leitor o que o escritor Umberto Eco chamou de “pacto ficcional”. Fazer esse pacto ficcional com a obra pode ser tanto pela capaci- dade de imaginar/pensar o que o escritor está descrevendo no texto quanto pela de interpretar um desenho. A linguagem visual age de forma simbólica para materializar a criação do escritor que está intei- ramente no mundo das ideias. Por meio dela podemos ter acesso a criações que nos são intangíveis, como as obras sacras, que represen- tam divindades. Sendo capaz de descrever a ideia do texto de modo mais direto e resumido, a imagem está estreitamente ligada aos livros infantis. Como se dirige a um público ainda em fase de aquisição da língua, textos infantis possuem economia de palavras, e as descrições que não foram realizadas pelo texto em si são (na maioria das vezes) en- globadas pelas imagens. Entretanto, a imagem não é sempre dependente do texto para es- tar presente nos livros infantis. Ela pode construir uma história inde- pendente da narrativa ou vir sem nenhum acompanhamento de texto A Plataforma do Letramento possui um material riquíssimo para o trabalho de leitura de imagens. Acesse o link abaixo e perceba as relações entre texto e imagem em uma plataforma interativa. Disponível em: https://tinyurl. com/yd48qxuf. Acesso em: 12 maio 2020. Site Estrutura do livro infantil 79 verbal. Nesse último caso, a imagem assume a função narrativa, e a sequência das ilustrações proporciona uma estrutura básica de enredo que deve ser preenchida pelo leitor. Logo, podemos dividir as ilustrações nos livros infantis de acordo com as classificações presentes na Figura 11. Figura 11 Relações entre texto e imagem nos livros infantis. Ki tty Ve ct or /L ub en ic a/ Sh ut te rs to ck + RELAÇÃO DIRETA ENTRE IMAGEM E TEXTO NARRATIVA PARALELA NARRATIVA INTERDEPENDENTE NARRATIVA DE ESTRUTURAÇÃO RELAÇÃO PÓS-PRODUZIDA ENTRE IMAGEM E TEXTO Como vemos pelo esquema, a relação entre imagem e texto pode se dar de forma direta ou pós-produzida. Vamos analisar cada uma delas. A relação direta entre imagem e texto é dada naquelas obras que trazem as duas mídias atuando em conjunto para formar a história. Porém, essa relação pode ser paralela ou interdependente. A relação paralela é aquela que conhecemos bem dos livros infantis em que temos a imagem enquanto auxiliar do texto, sendo que a his- tória é contada simultaneamente pelas duas formas midiáticas. Nessa relação o que está sendo dito também é mostrado pela ilustração, em uma tentativa de reafirmar os significados pretendidos pelo escritor. Veja o exemplo da primeira edição de A menina do narizinho arrebi- tado, de Monteiro Lobato, com imagens de Voltolino. e já estava a sonhar um lindo sonho quando sentiu cocegas no rosto. Arregalou os olhos e, com grande assombro, viu de pé na Diferencie relação direta e relação pós-produzida entre imagem e texto. Atividade 2 80 Literatura Infantil ponta de seu narizinho um peixinho vestido. Vestido sim, pois não! Trazia casaco vermelho, cartola na cabeça e flôr no peito: – uma galanteza! O animalzinho olhava para o rosto della com ar de quem não está comprehendendo coisa nenhuma. Tão admirada ficou a menina da maravilhosa scena que rete- ve o folego, com medo de assustar o curioso, e assim perma- neceu algum tempo até que a zoada de um insecto a distrahiu. (LOBATO, 1920, p. 5) A imagem apoia o texto ao demonstrar como seria a cena descrita por meio de palavras, cena em que Narizinho acorda com um peixe e um inse- to vestidos sobre seu rosto. Conforme Necyk (2007), essa relação paralela apresenta de certa forma um quê de teatralidade, pois acaba encenando a história, isto é, colocando em cena (na imagem) os elementos que escritor e ilustrador consideram relevantes na construção do cenário e das perso- nagens, produzindo uma história duplamente contada. Na relação interdependente temos a possibilidade de uma narrativa que seja verbo-visual e que pode tanto ampliar os sentidos dados pelo texto quanto contradizê-los. Muitas obras hoje seguem nessa linha, pensando o projeto de ilustração como possibilidade de expansão do gênero de literatura infantil. Segundo Agosto (1999), o papel principal em uma narrativa interde- pendente é performado pela “sinergia”, por uma coesão entre texto e ima- gem, sem a qual a história não pode ser compreendida em sua totalidade. Em A aranha tricoteira, é possível ver a relação de sinergia entre texto e imagem, produzindo uma narrativa interdependente em que o narrador ao mesmo tempo conta e conversa com a personagem. A história traz Milla como personagem principal, uma aranha que quer dar uma festa para os vizinhos e deixar sua teia muito arrumada, além de estar bonita. O humor está em que o narrador não segue ini- cialmente as imagens, contando uma história diferente, ou sua visão de que Milla é muito habilidosa, quando, pelas ilustrações, vemos que ela não tem lá tanto jeito assim. W ik im ed ia C om m on s Figura 12 Ilustração utilizada no li- vro A menina do narizinho arrebitado, de Monteiro Lobato. Estrutura do livro infantil 81 Mas Milla preparava uma surpresa para seus vizinhos e queria ficar bonita! Decidiu fazer um blusão bem tricotadinho. Ou não? Como Milla era habilidosa, logo logo estava pronto! É, parece que me enganei. Talvez Milla não fosse assim tão habilidosa, mas com certeza era dedicada. Fi re fly Pi ct /S hu tte rs to ck Essa narrativa cai, ainda, em uma subcategoria descrita por Agos- to (1999), a de narrativas visuais que amplificam o sentido do texto. A amplificação pode ocorrer por ironia, humor, intimação, representação fantástica ou transferência. Ao vermos o exemplo da aranha, percebemos que há um grau de ironia e humor que compõe a narrativa e que leva o leitor a questionar pelas imagens se o que o narrador está dizendo é de fato verdade. Po- rém, essa ironia não contradiz a história, mas sim a complementa, pois ao término da narrativa percebemos que Milla, embora desastrada pe- las imagens, consegue dar a volta por cima e ser habilidosa. Outra subcategoria descrita por Agosto (1999) é a de contradição dos sentidos, que pode acontecer por ironia, humor ou revelação. Para compreender melhor, veja o Quadro 2 com a descrição de cada uma delas. 82 Literatura Infantil Quadro 2 Relações entre imagem e texto. Relação direta entre imagem e texto Relação de interdependência Ampliação Contradição Ironia Discrepância entre expectativa e realidade, mas que colaboram para ampliar o sentido do texto. Ironia Discrepância entre expectativa e realidade, mas que produzem discrepâncias também no sentido do texto. Humor Adição de situações engraçadas à história, as quais colaboram para ampliar o sentido do texto. Humor Adição de situações engraçadas à história, as quais contradizem o sentido do texto. Intimação Adição de pistas que intimam o leitor a descobrir a narrativa. RevelaçãoQuando o leitor sabe de algo que o personagem não sabe. Representação fantástica Quando uma mídia descreve a realidade objetiva e a outra, a fantasia. Exemplo: texto verbal que fala sobre o dia comum de brin- cadeira da criança e imagens que mostram que o seu dia comum é cheio de monstros fantásticos. Transformação Quando texto ou ilustração transforma de modo radical a his- tória, adicionando sentidos mais profundos. Fonte: Adaptado de Agosto, 1999. Desse modo, Agosto (1999) nos diz que relações interdependentes acabam fazendo com que o leitor considere ilustração e texto, sem des- considerar um ou outro, e que essa relação auxilia no desenvolvimento da criatividade e do raciocínio crítico, pois faz com que o leitor tenha que navegar entre as duas mídias para obter todos os sentidos do texto. A última categoria é composta pelas narrativas de estruturação, li- vros infantis em que as ilustrações compõem a história sem acompa- nhamento de texto verbal. Esses livros podem ou representar histórias já conhecidas somente por imagens, como no caso de adaptações de contos de fadas e contos populares, ou também criar histórias comple- tamente novas. Veja algumas sugestões de livros de imagens com narrativas de estruturação. Contêiner, de Fernando Vilela. https://tinyurl.com/yd6f2bb6 De flor em flor, de Jonarno Lawson e Sydney Smith. https://tinyurl.com/ya9oouxv Vai e vem, de Laurent Cardon https://tinyurl.com/y934uzr5 Tem lugar para todos, de Massimo Caccia. https://tinyurl.com/y78bn9pd Livro Estrutura do livro infantil 83 Essas narrativas de estruturação, na verdade, são muito conhecidas por nós, em especial pelas tirinhas. Na Figura 13 apresentamos uma tirinha que fala de liberdade, independente do uso de texto verbal. Assim, essas histórias pós-produzidas possuem uma margem am- pla para a interpretação do leitor, pois como o próprio nome diz, elas são pós-produzidas por quem lê. Caberá ao leitor fechar os significados que aquelas imagens possuem para si. Figura 13 Tirinha como narrativa de estruturação. sl ee pw al ke r/ Sh ut te rs to ck Por fim, precisamos lembrar que é necessário ficar sempre atento ao uso que se faz da ilustração na perpetuação de estereótipos, como bem aponta Fanny Abramovich: ficar atento aos estereótipos, estreitadores da visão das pes- soas e de sua forma de agir e de ser… E ajudar a criança leito- ra a perceber isso. O resultado visual até pode ser bonito (e é, muitas e muitas vezes), mas onde vamos parar em termos dos preconceitos transmitidos? AFINAL, PRECONCEITOS NÃO SE PAS- SAM APENAS ATRAVÉS DE PALAVRAS, MAS TAMBÉM – E MUITO!! – ATRAVÉS DE IMAGENS. (1997, p. 40, grifos da autora) Nas imagens, assim como no texto verbal, estão colocadas inúme- ras relações de poder. Por isso mesmo, é preciso não apenas mostrar Procure por tirinhas sem falas e recorte os quadrinhos. Depois, como atividade divertida, você pode remontar essas histórias adicionando falas e narrações e até transformá-las em texto narrativo! É um exercício bem interessante para se perceber os efeitos da ilustração. Você pode consultar alguns quadrinhos da Turma da Mônica pelo site: https://tinyurl.com/y6uu7t6k. Desafio 84 Literatura Infantil a ilustração para a criança, mas fazê-la refletir sobre o que está vendo. Verificar se há representatividade nos livros infantis, se não há violên- cias ou perpetuação de estereótipos da mulher, do negro, do indígena e tantos outros povos e minorias que comumente são retratados como desiguais em uma relação na qual o homem branco civilizado é o herói ou personagem bom da história. Precisamos sempre estar atentos aos discursos presentes nas ima- gens, pois estamos falando da formação de um leitor, a qual se pretende que seja crítica e transformadora. Logo, ilustrações que não condizem com a diversidade e o respeito devem ser olhadas com olhos muito reflexivos e carregados de história, não apenas de histórias literárias! 3.3 Gêneros textuais na literatura infantil Vídeo Ouvimos falar de gêneros textuais desde a escola, mas essa é uma categoria com inúmeras definições ao longo do tempo e estudada por diversos pesquisadores. Por isso, vamos tratar do problema do gênero textual em uma visão compartilhada por Luiz Antônio Marcuschi, autor que percorre os estudos já realizados na área, afirmando que: a análise de gêneros engloba uma análise do texto e do discurso e uma descrição da língua e visão da sociedade, e ainda tenta res- ponder a questões de natureza sociocultural no uso da língua de maneira geral. O trato dos gêneros diz respeito ao trato da língua em seu cotidiano nas suas mais diversas formas. (2008, p. 149) O que Marcuschi diz é que estudar gêneros textuais tem ligação com o estudo do discurso e da sociedade que o produz, ao mesmo tempo em que esta é produzida e produtora de cultura e de uma língua, a qual, por sua vez, regerá os gêneros que organizarão a comunicação no cotidiano de seus falantes. É de fato um dilema saber quem veio antes, se é que há um antes quando falamos em sociedade, cultura, texto e discurso, pois provavelmente o berço de todos eles não tenha lá muita distinção. De modo geral, Marcuschi (2008) levanta a possibilidade de o gêne- ro ser muitas coisas ao mesmo tempo, dentre elas: um esquema cog- nitivo; uma ação da retórica; uma estrutura de texto; uma categoria cultural; uma forma de ação na sociedade ou mesmo de organização da sociedade. Amplie seus conheci- mentos sobre o uso de ilustrações em livros de literatura infantil com a leitura do livro A imagem nos livros infantis: cami- nhos para ler o texto visual, com análises de diversos livros infantis. RAMOS, Graça. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. Livro Estrutura do livro infantil 85 Portanto, o gênero textual acontece na interação entre os indiví- duos, visando a uma prática social. Ou seja, são atos (falados ou escri- tos) que realizamos em diferentes necessidades do uso da língua. Logo, gêneros textuais são flexíveis e podem ser inúmeros, pois, embora re- lativamente estáveis, são reativados e reorganizados a cada novo uso por seus emissários e interlocutores. Porém, mais do que pela forma, o gênero textual é definido por sua função social, pois “quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar lin- guisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares” (MARCUSCHI, 2008, p. 154). Então, ao aprendermos e dominarmos gê- neros textuais, dominamos formas que têm por função atingir um ob- jetivo comunicativo nas situações sociais. Logo, a comunicação não seria possível sem gêneros textuais, pois ela se efetiva pelo uso de estruturas para a obtenção de determinado obje- tivo, seja ele informar, dialogar ou narrar, por exemplo. Dessa maneira, Marcuschi levanta três conceitos importantes para o estudo do gênero: tipo textual, gênero textual e domínio discursivo. Veja a seguir o esque- ma com as explicações de cada um deles para compreender melhor. Figura 14 Definições de gênero textual, tipo textual e domínio discursivo. Fonte: Adaptada de Marcuschi, 2008, p. 154-155 e Köche; Marinello, 2015, p. 10-11. Outros discursos Discurso político Discurso religioso Discurso acadêmico Discurso jurídico Domínio discursivo Tipo textual Gênero textual Formas estáveis materializadas no ato comunicativo. Instâncias discursivas que dão origem a vários gêneros. Construção teórica definida por suas sequências linguísticas. Gênero Narração Conto; lenda; romance. Artigo de opinião; editorial. Exposições, como aulas; respostas a perguntas. Tanto em narrações quanto em dissertações. Receitas; leis. Horóscopo; previsão do tempo. Todos os que utilizam diálogos; teatro. Explicação Injunção Argumentação/ dissertação Descrição Predição Dialogal HQ Fábula Mito Notícia Receita Carta Teatro OutrosPoemaDefina gênero textual com suas palavras. Atividade 3 86 Literatura Infantil O domínio discursivo é algo maior que os textos e também mais abstrato, embora presente em todos os gêneros, pois os discursos são compostos por valores, ideias e crenças dos mais diversos grupos e setores da sociedade. Os gêneros textuais são a materialidade dos discursos, é por meio deles que passamos o que pensamos, com o objetivo de comunicar- mos algo. Esses gêneros possuem um formato mais ou menos estável, e não podemos quantificar todos os gêneros textuais do mundo, pois dentro dessa categoria cabem tanto a fábula, o mito e o poema quanto bulas de remédio, bilhetes e memes. Assim, para analisarmos os principais gêneros textuais empregados na literatura infantil, precisamos compreender que, bem possivelmen- te, não daremos conta de todos os existentes, pois precisaríamos de muito espaço e tempo para isso. Portanto, utilizaremos como base a classificação dos tipos textuais, levantada por Köche e Marinello (2015) para exemplificarmos algumas obras e alguns gêneros selecionados, a saber: conto, poema, HQ e teatro. 3.3.1 Conto O conto é uma narração de extensão curta e com poucas personagens, além de possuir cenário e tempo também restritos para sua estrutura nar- rativa breve. Além disso, o conto apresenta maior unidade na linguagem e nas técnicas empregadas, por ser breve e necessitar apresentar um estilo mais coeso, a fim de cativar o leitor. Seu enredo também contém poucas ações para não se perder em tão pouco espaço narrativo. Abaixo você pode ver um trecho do livro A história do coelhinho Peter, de Beatrix Potter, escrita e ilustrada em 1904. Ela conta a história de um coelho levado que se mete em confusão. Perceba que há falas, porém muita narração e também descrição. Era uma vez quatro coelhinhos, e seus nomes eram Flopsy, Mopsy, Rabinho de Algodão e Peter. Eles viviam com sua mãe numa toca sob a raiz de um enorme abeto. “Agora, meus queridos,” disse a velha Senhora Coelha certa manhã, “vocês podem entrar nos campos ou descer a alameda, mas não vão ao jardim do Senhor McGregor: seu pai sofreu um acidente lá; foi posto num pastelão pela Senhora McGregor.” “Agora, vão, e não se metam em travessuras. Estou de saída.” Assista a uma palestra sobre tex- to e discurso para compreender melhor a distinção e a relação entre os dois. Ela faz parte de um Colóquio de Letras da Universidade Estadual do Piauí, proporcionado pelo grupo de pesquisa Getexto. Disponível em: https://tinyurl. com/yd6jyl9r. Acesso em: 12 maio 2020. Vídeo Estrutura do livro infantil 87 Então, a velha Senhora Coelha pegou uma cesta e sua sombrinha e foi-se pelo bosque até a padaria. Comprou um pão de centeio e cinco bolinhos de groselha. Flopsy, Mopsy e Rabinho de Algodão, que eram coelhinhos bon- zinhos, desceram a alameda para colher amoras. Mas Peter, que era muito desobediente, correu certeiro para o jardim do Senhor McGregor, e se espremeu por baixo do portão! POTTER, Beatrix. A história do coelhinho Peter. Recife: EX! Editora, 2016. Edição do Kindle Podemos falar em outros gêneros que estão dentro do gênero con- to, dentre eles contos populares, fábulas e lendas. A maior diferença entre conto e conto popular recai em sua autoria e recepção. O conto popular é coletivo, não possui autoria e não visa a um público específi- co. São contos que partem de camadas populares da sociedade e que contam causas, crendices populares e protótipos de personagens, sem complexidade e ainda irracionais. O maior exemplo desses contos são as cantigas de ninar populares, como Boi da cara preta; as lendas urbanas, como a tão famosa da “loira do banheiro”, presente em quase todas as escolas do país; e também os contos de fadas, descendentes dos contos populares. A fábula pode se apresentar em verso ou em prosa e traz uma ação simples, mas com certa tensão; efetuada por animais personificados, sem grande complexidade. Seu objetivo maior é a de uma conclusão moral e crítica em relação aos comportamentos populares. O rato do mato e o rato da cidade Um ratinho da cidade foi uma vez convidado para ir à casa de um rato do campo. Vendo que seu companheiro vivia pobremente de raízes e ervas, o rato da cidade convidou-o a ir morar com ele: – Tenho muita pena da pobreza em que você vive – disse. – Venha morar comigo na cidade e você verá como lá a vida é mais fácil. Lá se foram os dois para a cidade, onde se acomodaram numa casa rica e bonita. Foram logo à despensa e estavam muito bem, se empanturran- do de comidas fartas e gostosas, quando entrou uma pessoa com dois gatos, que pareceram enormes ao ratinho do campo. Os dois ratos correram espavoridos para se esconder. – Eu vou para o meu campo – disse o rato do campo quando o perigo passou. – Prefiro minhas raízes e ervas na calma, às suas comidas gostosas com todo esse susto. Mais vale magro no mato que gordo na boca do gato. MEC. Contos tradicionais fábulas lendas e mitos. Brasília: FUNDESCO- LA/SEF-MEC, 2000. Edição do Kindle. 88 Literatura Infantil A fábula O rato do mato e o rato da cidade traz dois animais personifi- cados em um dilema entre roubar de quem tem mais comida, mas correr o risco de ser morto, ou passar fome com tranquilidade no campo. A es- trutura é bem visível, trama rápida e simples, poucos personagens e uma moral ao final da história. A lenda por sua vez distingue-se enquanto narrativa, pois trata de seres maravilhosos do ideário popular. Seu enredo está ligado à expli- cação dos acontecimentos que não podem ser explicados pela lógica ou para os quais não se sabe a explicação. É um gênero que envolve um tempo passado, normalmente ligado a fatos históricos de uma ci- vilização ou povo, e que não possuem autoria definida, caminhando sempre para uma conclusão emblemática e simbólica. História do céu Lenda indígena Já existia o céu. Mas ainda estava se formando. O céu ainda esta- va se criando. Era baixo de um lado. Não era como hoje. Era igual a uma onda, levantando só de um lado. O povo antigo não queria o céu. E foram tentar derrubar com o machado. Eles batiam, abriam um buraco no céu, mas ele fechava. Imediatamente. Eles batiam de novo, abriam um buraco e o buraco se fecha- va. Foram batendo, batendo com o machado e os buracos fechando... Iam se revezando. Cada um batia um pouco com o machado. Iam cortando, e o céu se fechando... Então desistiram de derrubar: – Vamos deixar! Não estamos conseguindo cortar o céu! Foi assim. Assim que o povo antigo tentou derrubar o céu. Assim que se criou o céu. MEC. Contos tradicionais fábulas lendas e mitos. Brasília: FUNDESCO- LA/SEF-MEC, 2000. Edição do Kindle. A lenda indígena acima demonstra essa tentativa de explicar como a natureza surgiu, sempre com o fechamento emblemático que atesta a criação de algo, neste caso, o céu. 3.3.2 Histórias em Quadrinhos As Histórias em Quadrinhos, mais conhecidas como HQs, utilizam uma linguagem objetiva e específica para seu formato. Sua narrativa quadrinizada tem por base imagens divididas em quadros (cenas) e Estrutura do livro infantil 89 muitos diálogos, acompanhados de balões, legendas e grande uso de onomatopeias. O mais marcante é a presença do elemento visual que norteia todo o enredo, tendo o texto verbal como suporte. Aqui, tanto o tamanho de cada quadro como a tipologia empregada surtem efeito para a narrativa, ampliando o significado do texto verbal enxuto. Hoje temos inúmeras adaptações de obras clássicas para quadrinhos, além daquelas pensadas especialmente para esse formato, tanto para crian- ças quanto para adultos. Figura 15 Exemplo de História em Quadrinhos. Igo r Z ak ow sk i/S hu tte rst oc k - Te desejo um feliz aniversá- rio, amigo! - Interessante, meu aniversário é só em agosto. - Uma planta! Parece estranha, como será que se cuida dela? - Preciso descobrir. - Planta rara e exótica, demanda muitos cuida- dos… se alimenta de aves aquáticas como… … PATOS? Fonte: Adapatada deIgor Zakowski. No quadrinho acima vemos um pato que recebe uma encomen- da que se torna, na verdade, um motivo de preocupação, pois pode acabar comendo o próprio personagem. Nesse exemplo, está bem visível a divisão das cenas nos quadrinhos, o uso de onomatopeias, como ding dong, e o predomínio da cena visual para a compreensão da história. HQs não são apenas para crianças, veja abaixo alguns quadrinhos muito interessantes para jovens e adultos. Sandman, de Neil Gaiman. Maus, por Art Spiegelman. Persépolis, de Marjane Satrapi. Livro 90 Literatura Infantil 3.3.3 Poemas De acordo com Neusa Sorrenti (2013), a linguagem poética tem três características básicas que devem ser consideradas na literatura infan- til. A primeira delas é a sonoridade das palavras, que tem importân- cia por proporcionar uma percepção melódica e ritmada ao poema, dando tom de brincadeira e produzindo sensações no leitor. O uso de diversos sons e efeitos (aliteração, assonância, repetição) propicia um equilíbrio rítmico com o qual a criança pode interagir. Veja um exemplo de jogo de sonoridade: Tola, catola sovaco de mola um sol no poente grudado com cola. CAPARELLI, Sérgio. Tigres no quintal. Porto Alegre: Kuarup, 1989, p. 89. Outra característica fundamental do poema na literatura infantil é a multissignificação, pois um poema sempre permite um novo olhar e uma nova interpretação. É uma forma com estrutura muitas vezes fixa, mas com um conteúdo aberto à imaginação leitora e à criação, como no exemplo abaixo, que utiliza jogo de palavras, brincando com o poema. O sabiá laranjeira Avisou a vizinha Ave sou e você é avezinha Sabe a laranjeira? Só tem fruta azedinha MARTINS, Cláudio. Trocadilhos. Belo Horizonte: Suplemento Literário, out 1997, p. 6. Por fim, a terceira categoria mais relevante na análise de um poe- ma infantil é o uso de neologismos, isto é, de palavras novas, criadas pelo poeta para dar conta de passar os sentidos do poema. De certa forma, a própria poesia já é uma brincadeira com as palavras na litera- tura infantil, logo, nada mais natural que criar novas, como canfinfim e surucubicos. Na casa número 9, na Rua do Carrapicho, no largo do Bricabraque, moravam nove meninas, sendo belas todas elas. Com um naco de fricotes, um pouco de canfinfim, nadinha de piripaques e alguns surucubicos. ASSIS. Cecy F. de. Que nem elas que nem. Formato, p. 27. Para conhecer mais a fundo a estrutura do poema e seu uso na literatura infantil, realize a leitura da obra A poesia vai à escola: reflexões, comentários e dicas de atividades, um livro cheio de análises e atividades com poemas. SORRENTI, Neusa. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. Leitura Estrutura do livro infantil 91 3.3.4 Teatro O teatro é representado em texto pela peça teatral, texto em que se sobressaem os diálogos, com inserções do dramaturgo (autor da obra) para indicações de encenação, personagens e cenário. É um texto que tem por característica a interação em formato de ação no mundo obje- tivo. Mesmo que utilizemos a peça teatral como leitura silenciosa, sua função primeira é voltada à encenação. Ao ler as rubricas do autor, isto é, as indicações de como a peça deve ser conduzida, o leitor consegue se transportar ao cenário e aos diálogos da forma mais vívida possível. Porém, devemos lembrar que a prática de leitura e encenação de peças teatrais na escola ainda é muito tímida, portanto devemos im- pulsioná-la como forma de inserção da criatividade em uma manifesta- ção artística que acompanhará o leitor por toda a vida, seja por teatro, televisão ou cinema. A encenação, assim como a leitura dramática de textos em prosa ou verso, possibilita a expressão das emoções e o re- conhecimento de leitor em outros papéis. JOÃO GRILO - O cachorro de meu patrão está muito mal e eu queria que o senhor benzesse o bichinho! PADRE - De novo? Mas é possível? JOÃO GRILO - É mais do que possível. O senhor não ia benzer o do major Antônio Morais? PADRE - E de quem é que você está falando? JOÃO GRILO - De meu patrão. PADRE - E seu patrão não é Antônio Morais? JOÃO GRILO - Não. PADRE - Mas você ainda agora disse isso aqui, João! JOÃO GRILO - Eu? Quem disse isso foi Chicó. (Chicó dá um grande salto de surpresa.) PADRE - E quem é seu patrão? JOÃO GRILO - O padeiro. PADRE - E o cachorro dele também está doente? JOÃO GRILO - Está. PADRE - Também, oh terra para ter cachorro doente só é essa! JOÃO GRILO - E a mania agora é benzer, benzer tudo quanto é de bicho, (Ouvem-se, fora, grandes gritos de mulher.) JOÃO GRILO - É a mulher, com o cachorro. Como é, o senhor benze ou não benze? PADRE - Pensando bem, acho melhor não benzer. O bispo está aí e eu só benzo se ele der licença. (À esquerda aparece a mu- lher do padeiro e o padre corre para ele.) Pare, pare! (Aparece o 92 Literatura Infantil padeiro.) Parem, parem! Um momento. Entre o senhor e entre a senhora: o cachorro fica lá! MULHER - Ai, padre, pelo amor de Deus, meu cachorro está mor- rendo. É o filho que eu conheço neste mundo, padre. Não deixe o cachorrinho morrer, padre. SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: AGIR, 2008, p. 49-51. Vemos no trecho de Suassuna as marcas distintivas do gênero. Diá- logos constantes e marcações para cena e personagens, configurando um roteiro de peça teatral. Assim, vimos alguns gêneros possíveis para o trabalho com a litera- tura infantil, porém, como nos diz Marcuschi (2008, p. 158), os gêneros textuais são dinâmicos, de complexidade variável e não sabemos ao certo se é possível contá-los todos, pois como são sócio-históricos e variáveis, não há como fazer uma lista fechada, o que dificulta ainda mais sua classificação. Por isso é muito difícil fazer uma classificação de gêneros. Aliás, quanto a isso, hoje não é mais uma preocupação dos estudiosos fazer ti- pologias. A tendência hoje é explicar como eles se constituem e circulam socialmente. Logo, mesmo que façamos tal distinção entre gêneros para uma me- lhor compreensão, antes de selecionarmos um livro infantil é preciso levar em consideração sua função no desenvolvimento da criança e em seu aprendizado. Também é preciso compreender que são necessários muitos gêneros para que o leitor infantil construa um arcabouço de co- nhecimentos a respeito de como se comunicar em diferentes esferas e, especialmente, como construir criativamente histórias literárias, sejam elas roteirizadas, narradas ou versificadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esperamos que esse capítulo tenha sido esclarecedor quanto à tra- jetória do planejamento e da produção de um livro infantil, com melhor compreensão de todo o processo envolvido. Acreditamos que há ainda muito que você pode expandir nessa área, especialmente no estudo das relações entre imagem e texto e sobre os gêneros textuais. Por isso, não pare por aqui. Pesquise sempre mais, aprofundando-se naquilo que te desperta o interesse! Para ter acesso a peças teatrais e informações de como dramatizar com as crianças, acesse o site https://tinyurl.com/y9pu6tm7 e confira o banco de peças disponibilizado por eles. Site Muitas vezes nos deparamos com dúvidas a respeito dos gêneros textuais e suas caracte- rísticas, afinal, são tantos gêneros que é até normal certa confusão. Para desfazer qualquer dúvida, um bom livro de apoio é o Dicionário de gêneros textuais, que traz os gêneros como verbetes, explicando e contex- tualizando um grande número de textos. COSTA, Sérgio Roberto. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. Livro Estrutura do livro infantil 93 REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1997. AGOSTO, D. One and inseparable: interdependent storytelling in picture storybooks. Children’s Literature in Education, v. 4, n. 30, 1999, p. 267-280. ALLEN, G. Intertextuality. London and New York: Routledge, 2000. COLLARO, A. C. Produção gráfica: arte e técnica da mídia impressa. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2007. HUNT, P. Crítica, teoria e literaturainfantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010. KÖCHE, V. S.; MARINELLO, A. F. Gêneros textuais: práticas de leitura escrita e análise linguística. Petrópolis-RJ: Vozes, 2015. LOBATO, M. A Menina do narizinho arrebitado. São Paulo: Revista do Brasil; Monteiro Lobato e Cia, 1920. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. NECYK, B. Texto e imagem: um olhar sobre o livro infantil contemporâneo. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Design) - Departamento de Artes e Design - Centro de Teologia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. NIKOLAJEVA, M.; SCOTT, C. How picturebooks work. New York: Routledge, 2006. RAMOS, F. B.; PANOZZO, N. S. P. Mergulhos de leitura: a compreensão leitora da literatura infantil. Caxias do Sul-RS: Educs, 2015. SOARES, M. Livros para a educação infantil; a perspectiva editorial. In: PAIVA, A.; SOARES, M. (orgs.). Literatura Infantil: políticas e concepções. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 21-34. SORRENTI, N. A poesia vai à escola: reflexões, comentários e dicas de atividades. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. ZIRALDO. O pequeno livro de hai-kais do Menino Maluquinho. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012. GABARITO 1. Como o governo é o maior comprador de livros literários, ele faz uma avaliação que seleciona títulos possíveis de serem adquiridos pelas escolas no Programa Nacional Biblioteca na Escola – PNBE. Por isso, as editoras preparam seus livros para essas avaliações, com foco na compra governamental. 2. A relação direta é aquela em que ambas as mídias, texto e imagem, atuam na constru- ção da narrativa. Já a pós-produzida é uma relação que se constrói na leitura somente de imagens, em que o leitor precisa criar o enredo a partir do que vê. 3. Gênero textual é uma forma relativamente estável por meio da qual se dá a comu- nicação humana. São definidas em especial por sua função social e pelo objetivo co- municativo. Eles são a materialidade de um discurso e se estruturam com auxílio de tipos textuais. 94 Literatura Infantil 4 Temas da Literatura Infantil Gostaria de saber, disse para si mesmo, o que se passa dentro de um livro quando ele está fechado. É claro que lá dentro só há letras impressas em papel, mas, apesar disso, deve acontecer alguma coisa, porque quando o abro existe ali uma história completa. Michael Ende, em A história sem fim Neste capítulo, vamos adentrar na fantasia e na aventura para des- cobrir como tais narrativas são construídas e como se dá a jornada do herói que é, intrinsecamente, a nossa própria jornada pela vida. Também faremos uma discussão a respeito da necessidade de a psiquê infantil utilizar a fantasia como forma de resolução de seus conflitos no caminho para o desenvolvimento. Boa leitura! 4.1 Fantasia x realidade Vídeo Realidade ou fantasia? O que apresentar às crianças na literatura in- fantil? Essa discussão acontece de tempo em tempo e coloca em pauta o que devemos incentivar na leitura da criança. De fato, esse questio- namento não acontece apenas na literatura infantil, e parece ser um termômetro da época. Em alguns anos, a criação gira em torno de li- vros que se baseiam na realidade, enquanto em outros momentos é a fantasia que domina as obras. É preciso equilibrar, claramente, esses dois polos, pois, por um lado, a fantasia é um recurso psíquico para a criança, enquanto livros “reais” não devem cair no didatismo. Assim, a escolha de livros infantis deve levar em consideração sempre seu valor estético, variando as temá- ticas e os mundos em que as histórias se passam – mundos reais ou ficcionais –, para que aos poucos a criança também perceba a diferença entre eles. Temas da Literatura Infantil 95 Como a literatura auxilia na construção da identidade e criatividade da criança para a resolução de problemas, ela deve compreender gradativa- mente que existem soluções que dizem respeito exclusivamente ao uni- verso da fantasia, e outras que podem ser aplicadas em problemas reais. Poções mágicas que ressuscitam personagens não funcionarão com seus entes queridos no mundo real, mas talvez a partida de alguém na fantasia se relacione com a situação real de perder alguém. Assim, é preciso navegar pelos dois mundos para assegurar à criança o acesso a diferentes temáticas trabalhadas de diferentes formas. Um ponto muito importante a ser levado em conta, especialmen- te em narrativas que se passam na realidade, é o cuidado com a ca- racterização das personagens. É preciso tomar muito cuidado com os estereótipos que impregnam obras infantis, seja na descrição das per- sonagens e de suas situações de vida, seja nas ilustrações. A escritora Fanny Abramovich nos lembra que contos de fadas apre- sentam, em quase todos os casos, um padrão de beleza centrado na figura do europeu. Princesas são loiras e de olhos claros, príncipes até podem ter cachos castanhos, mas têm pele alva e olhos azuis ou verdes. De certa forma, sabemos que os primeiros contos de fadas chega- ram até nós vindos de países europeus com população majoritaria- mente branca. Porém, no século XXI e no nosso universo brasileiro, temos o dever de reconhecer o momento histórico em que os contos foram escritos e ultrapassá-lo. Afinal, a população brasileira é majorita- riamente negra. Logo, onde estão nossas princesas e nossos príncipes, com a beleza e as cores nacionais? Felizmente, temos visto um movimento literário que resgata a visi- bilidade tanto da população negra quanto da população indígena, em- bora esta ainda permaneça mais distante de nossas prateleiras, tendo, ainda, sua maior expressão em lendas e mitos das diferentes tribos. Da realidade sabemos bem, afinal ela nos rodeia a todo momento. Por isso mesmo, vamos entrar no mundo da fantasia e nos embrenhar, adiante, por eventos maravilhosos! Para entendermos a fantasia, precisamos, primeiro, saber que ela atua em uma narrativa autocoerente. Nesse sentido, Clute e Grant nos dizem que: Acesse a matéria e leia sobre representatividade do blog Leiturinha. Após a leitura, discorra sobre a necessidade de haver representatividade de diferentes imagens e comportamentos na literatura infantil. Disponível em: https:// tinyurl.com/y9psdsur. Acesso em: 26 maio 2020. Atividade 1 Temos hoje obras muito interessantes que colocam em pauta a representatividade negra. O site Geledés fez uma lista com 100 livros infantis para meninas negras (e meninos também, claro!). Acesse o site e procure mais obras infantis que retratem nossa história e nossa gente. Disponível em: https:// tinyurl.com/y7vhm793. Acesso em: 26 maio 2020. Saiba mais 96 Literatura Infantil Um texto de fantasia é uma narrativa autocoerente. Quando manifesta neste mundo, ela narra uma história que é impossí- vel no mundo como o percebemos; quando manifesta em outro mundo, este outro mundo será impossível, embora as histórias lá manifestas possam ser possíveis em seus próprios termos. (CLUTE; GRANT, 1999, p. 38, tradução nossa) 1 Dessa forma, se voar em um tapete mágico é impossível na realida- de, dentro de um mundo de fantasia – como em As mil e uma noites – é perfeitamente verossímil. Uma obra de fantasia é coerente em si mes- ma, pois delineia um mundo possível de acontecer na ficção, com seres e situações sobrenaturais que logo ganham a familiaridade do leitor, o que gera o efeito de maravilhoso. Sabemos que a literatura de fantasia não é nova, pelo contrário, ela está na base das histórias mais enraizadas de diferentes civilizações: nas lendas, nos mitos e nos contos populares e de fadas. As epopeias mais antigas a que temos acesso estão impregnadas com o elemen- to maravilhoso presente na fantasia. Homens travam batalhas em um mundo antigo povoado por monstros e deuses em obras como a Ilíada e a Odisseia (ambas compiladas por Homero) e Gilgamesh. Aos poucos, esse elemento maravilhoso foi se convertendo em con- tos de fadas e hoje está presente em boaparte das obras para crianças. Porém, há aqui uma distinção a ser feita. Nos contos de fadas, a fantasia entra como um auxiliar do personagem principal, seja como a bruxa da Branca de Neve ou como o beijo que tira uma princesa do sono eterno. Na literatura tida como fantástica há uma incorporação muito maior do elemento maravilhoso. A fantasia é a base da criação de um mundo completamente novo e com regras próprias. Se pegarmos um conto de fadas muito conhecido como Cinderella, teremos aí um mundo perfeitamente plausível. Uma jovem órfã, que fica aos cuidados de sua madrasta, torna-se empregada na casa e co- nhece um príncipe em uma festa. Perde um dos sapatos e se torna uma princesa. É uma história possível de acontecer no mundo real (mesmo que muito distante da realidade). A entrada do elemento fantástico ocorre quando Cinderella preci- sa de auxílio para (veja só) ascender a uma classe social mais alta. Ela não poderia ir ao baile como uma empregada. E como alguém nessa posição poderia ir a um baile em um castelo sem uma ajuda externa? A fantasy text is a self-coherent narrative. When set in this world, it tells a story which is impossib- le in the worlds as we perceive it; when set in an otherworld, that otherworld will be impossible, though stories set there may be possible in its terms. 1 A Ilíada, o documento mais antigo do mundo ocidental, é um poema épico, escrito em versos, divididos em cantos. Esses versos eram cantados na Grécia antiga acompanhados de instrumentos como a lira, um instrumento de cordas. Ela conta a história do término da guerra de Troia e traz as intrigas dos deuses em meio ao conflito. Para saber mais, assista a um resumo disponível em: http://youtu.be/ IGnxUzpNTKU. Acesso em: 26 maio 2020. Já o poema épico Gilgamesh foi escrito pelos sumérios na Mesopotâmia por volta de 2.000 a. C. É a história mais antiga da humanidade a que se tem conhecimento e narra a saga do Rei Gilgamesh para atingir a imortalidade. Para saber mais sobre essa narrativa, assista ao vídeo disponível em: youtu. be/46OsbgT_xLg. Acesso em: 26 maio 2020. Saiba mais http://youtu.be/IGnxUzpNTKU http://youtu.be/IGnxUzpNTKU Temas da Literatura Infantil 97 Pois bem, entram em cena os animais personificados (e que, de fato, se tornam pessoas na narrativa), como os ratinhos e cães, além da aju- da de um ser sobrenatural que possa torná-la capaz de transitar entre dois mundos sociais: uma fada madrinha. O resto é história, como você bem sabe. Ao confrontarmos, entretanto, uma narrativa dos contos de fadas com uma história como O Hobbit, obra escrita por J. R. R. Tolkien para crianças e jovens (de sua época claramente), percebemos grandes diferenças em re- lação ao uso que se faz da fantasia, ou Alta Fantasia, como veremos aqui. O Hobbit é um livro emblemático que cria todo um mundo novo, a Terra Média, em que a lógica segue seu rumo próprio – não é uma lógica como a de Cinderella, a fantasia não está a serviço de alguém que necessita. A fantasia aqui toma lugar central e constrói um cosmos para criaturas não conhecidas, como hobbits e orcs, e para aventuras impossíveis no mundo real. Ou matar um dragão seria algo possível na realidade? Logo, a diferença recai na “quantidade” de fantasia empregada. Em contos de fadas temos elementos que nos levam a crer em mágica e se- res não existentes na realidade objetiva. Em obras de fantasia, vemos um exagero do elemento mágico ou sobrenatural. É como se obras como essas tivessem a mesma certeza no maravilhoso que obras rea- listas têm na materialidade do mundo real. Podemos, portanto, dividir a fantasia em Alta Fantasia e baixa fan- tasia, com referência à composição dos mundos fantásticos e não à qualidade das obras de fantasia. Na baixa fantasia estariam as obras em que o sobrenatural é um mero intruso, enquanto na Alta Fantasia existiria um mundo à parte, regido por suas próprias leis. Assim, obras como Harry Potter ou As crônicas de Nárnia são consi- deradas Alta Fantasia. No Brasil a Alta Fantasia está mais presente na literatura juvenil, mas podemos tomar Monteiro Lobato como repre- sentante desses mundos ficcionais completos em si mesmos. Embora se passe em um sítio à primeira vista, os personagens são constante- mente transportados a mundos que desafiam a lógica do real, sejam os mundos antigos como em O minotauro, ou embaixo d’água como em O Reino das Águas Claras. Segundo Boyer, Tymn e Zahorski (1979), podemos dividir a Alta Fan- tasia em três categorias distintas, como se vê no quadro a seguir. Adotamos o uso distinto das ini- ciais em maiúscula e minúscula para as expressões Alta Fantasia e baixa fantasia de acordo com Tolkien (2006) Importante 98 Literatura Infantil Quadro 1 Categorias da Alta Fantasia Mundo secundário clássico Um mundo criado que não está ligado a nenhuma parte de um mundo real. O mundo real simplesmente não existe dentro da obra. • O Hobbit – J. R. R.Tolkien. • Terramar – Ursula Le Guin. • Guerreiros de Darinka – Renata Cantanhede. Mundo primário relacionado O mundo real não é ignora- do e normalmente usam-se portais para acessar outros mundos. • As crônicas de Nárnia – C.S. Lewis (o guarda-roupa é o portal). • Alice no país das maravilhas – Lewis Carroll (a toca do coelho é o portal) Um mundo dentro de outro mundo Não são mundos distintos à fantasia dentro da realidade, mas um mundo escondido dentro da realidade, na maior parte das vezes. • Harry Potter – J. K. Rowling (o mundo dos bruxos está em estreita ligação com o dos trouxas, mas os trouxas não conseguem ver esse outro mundo ligado ao deles). • Conexão Magia – Rosana Rios e Helena Gomes. Fonte: Adaptado pela autora com base em Boyer; Tymn; Zahorski, 1979. Os livros de Lobato podem ser classificados tanto na segunda cate- goria quanto na terceira, dependendo da obra. As personagens usam portais como o “pó-de-pirlimpimpim” e o “tchibum” para dar mergulhos em outros mundos, mas esses mundos muitas vezes estão dentro do próprio sítio. Assim, cada história terá uma classificação própria. Umberto Eco, em seus seminários compilados no livro Seis Passeios pelos Bosques da Ficção (1994), conta que um mundo ficcional é como um parasita do mundo real, pois apresenta número certo de persona- gens, bem como espaço e tempos limitados, além de ser produzido pela mesma linguagem que também produz o mundo real. Assim, mundos completamente distintos do real são impossíveis, pois se baseiam na linguagem e na enciclopédia conhecida por cada um, isto é, seu conhecimento prévio da própria realidade e de outras obras que já instalaram no leitor uma aceitação do que pode ser visto e tocado em um mundo distinto. O autor de uma obra de fantasia é, então, para Tolkien, um subcriador, pois essa narrativa se embasa no mundo real já criado para ser concebida, logo, o autor faz uma criação em cima do que já temos por conhecido. Assim, Tolkien (2006, p. 44) nos diz que: O que acontece de fato é que o criador da narrativa demons- tra ser um “subcriador” bem-sucedido. Ele concebe o Mundo Temas da Literatura Infantil 99 Secundário no qual nossa mente pode entrar. Dentro dele, o que ele relata é “verdade”: está de acordo com as leis daque- le mundo. Portanto, acreditamos enquanto estamos, por assim dizer, do lado de dentro. No momento em que surge a increduli- dade, o encanto se rompe; a magia, ou melhor a arte, fracassou. Então estamos outra vez no Mundo Primário, olhando de fora o pequeno Mundo Secundário Malsucedido. É necessário que o autor de fantasia mantenha ao longo da narrativa esse encantamento que prende o leitor como crédulo dentro de suas regras. Para isso, ele precisa de grande criatividade, referencialidade na linguagem e clareza de enredo e do caminho percorrido pelo herói. Portanto, a fantasia nos proporciona muito mais possibilidades de aventuras que obras embasadas no mundo real. Porém, obras realistas nos presenteiam com o enfrentamento darealidade de maneira crítica e reflexiva, tornando o leitor a um leitor político, engajado com a mu- dança de seu próprio mundo. Como resposta à pergunta inicial desta seção, “Realidade ou fanta- sia?”, concluímos que não há nem bom, nem ruim, há apenas a literatura! Em Sobre histórias de fadas, Tolkien escreve um tratado sobre as histórias de fantasia que é muito útil para a compreensão do gênero. É uma leitura leve e também eficaz! TOLKIEN, J. R. R. Trad. de Ronald Kyrmse. São Paulo: Conrad, 2006. Livro 4.2 Aventuras e heróis reais e imaginários Vídeo O encantamento proporcionado pelo elemento maravilhoso nas narrativas de fantasia coloca em cena uma coletividade que é a base de toda mitologia. Os mitos se constroem sobre valores ligados a um povo e, de acordo com Campbell (2005 p. 21), têm como principal função “fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo- -se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás”. Desafio Por diversas vezes o cinema traduziu mitos e lendas antigos para as telas. Que tal fazer a leitura do mito de Hércules e depois compará-la com a versão cinematográfica realizada pelos estú- dios da Disney? Disponível em: https://tinyurl.com/ybm4m5ma. Acesso em: 26 maio 2020. HÉRCULES. Direção: Ron Clements, John Musker. Estados Unidos: Disney; Buena Vista Pictures, 1997. 100 Literatura Infantil Assim, o mito é a grande narrativa, que deu origem às narrativas de fantasia e também às de heróis. Isso porque a narrativa mitológica apresenta uma estrutura de aventura com enredo de iniciação de um herói e de criação de algum mundo, fictício ou real. Dessa forma, para Mircea Eliade, O mito conta uma história sagrada; êle relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros têrmos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento [...] É sem- pre, portanto, a narrativa de uma “criação”: êle relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. [...] os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vêzes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (1972, p. 11) Aos poucos, conforme Eliade (1972), os mitos sofreram um processo de desmistificação, sendo despojados de seu conteúdo religioso ao se tornarem contos. Assim, conforme o autor, os mitos seriam “histórias verdadeiras”, ao contrário de fábulas e contos, que são “histórias falsas”. Para ilustrar essa distinção, Eliade nos diz que os Cherokees distinguem entre os mitos sagrados (cosmogonia, criação das estrelas, origem da morte) e as histórias profanas, que explicam, por exemplo, certas peculiaridades anatômicas ou fisiológicas dos animais. A mesma distinção é encontrada na África. Os Hererós consideram “verdadeiras” as histórias que re- latam a origem dos diferentes grupos da tribo, porque narram fatos que realmente aconteceram, enquanto que os contos mais ou menos cômicos não têm qualquer fundamento. E os indíge- nas de Togo consideram os seus mitos de origem “absolutamen- te reais”. (1972, p. 14) Ou seja, as histórias ditas “verdadeiras” por alguns povos são as liga- das à sua religião e à formação do mundo e dos seres, enquanto todo o resto entra no conjunto de histórias “falsas” dos contos. Assim, tudo o que se passa nos mitos diz respeito a uma realidade sentida pelos povos que as contam, enquanto os contos não modificam a condição Temas da Literatura Infantil 101 humana, os personagens continuam humanos, embora de classes so- ciais distintas, como princesas e príncipes. Os mitos trazem em seu bojo elementos da cultura em que foram forjados e sofrem transformações ao longo do tempo. Os deuses e entes sobrenaturais nos mitos são agora a realeza e os heróis nos contos maravilhosos e de fadas. Em todo caso, tanto fadas quanto heróis possuem algo em comum, não fazem parte de nosso dia a dia. E assim nascem os heróis e as heroínas! Com base em uma estrutu- ra mítica na qual heróis eram semideuses, ou filhos de deuses antigos, como Hércules e Aquiles, destinados a ajudar a humanidade. Da mes- ma forma, os super-heróis atuais também se colocam como salvado- res dos seres humanos, só que agora contra algo mais mundano que monstros ou deuses irados: lutam contra vilões muito mais reais, frutos da própria sociedade, como o Coringa ou o Magneto. Além da necessidade de salvar a humanidade das garras criadas pela própria sociedade, os super-heróis também transparecem o desejo do ser humano de ultrapassar os limites de sua condição, de ser mais do que realmente é e se tornar um dos deuses criadores de universos. Assim, “comportamentos míticos poderiam ser reconhecidos na obsessão do ‘sucesso’, tão característica da sociedade moderna, e que traduz o desejo obscuro de transcender os limites da condição humana” (ELIADE, 1972, p. 160). Com o desejo por sempre construir e consumir novidades, o ser humano aos poucos tenta se colocar num panteão de deuses, enfren- tando a própria morte. Hoje, quantos são os novos tratamentos que possibilitam que cheguemos facilmente à casa dos 80, 90 e até dos 100 anos de vida? Isso era, de fato, um feito mítico na antiguidade, pois as condições da ciência não permitiam que chegássemos tão longe. Também transcendemos nossa capacidade de comunicação e de lo- comoção, entre outras tantas áreas nas quais a civilização se desenvol- veu, deixando para trás um passado de incapacidades. Ao mesmo tempo que evoluímos tecnologicamente, outros setores não acompanham, em especial, o de desenvolvimento social. Dessa forma, super-heróis são cada vez mais necessários em um mundo onde conseguimos façanhas incríveis, ao qual, no entanto, somente alguns têm acesso. Os heróis representam a ponte para muitas vezes lutar contra aqui- lo que não podemos ou não conseguimos. Permitem que tenhamos Com suas palavras, explique a importância do mito para a literatura infantil. Atividade 2 102 Literatura Infantil acesso a resoluções de conflitos geralmente inconscientes. Em nossa leitura, tomamos os olhos de heroínas e heróis emprestados para fazer seus passos pelas narrativas e resolver conflitos compartilhados por todos os seres humanos. Assim, todos os heróis e heroínas compartilham de uma jornada, que traduz a própria jornada da humanidade, chamada por Campbell (2005, p. 14) de “monomito”. Ele está presente nos mitos, nas narrativas fanta- siosas e realistas, mas principalmente nas aventuras e nas histórias de super-heróis. É uma estrutura que foi, inclusive, incorporada pelo cine- ma, pois é uma estrutura reconhecida por nossa psiquê. Então, quem é um herói? Apenas o Super-homem ou o Batman? Campbell e Moyers nos esclarecem que: Mesmo nos romances populares, o protagonista é um herói ou uma heroína que descobriu ou realizou alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiência. O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo. (CAMPBELL; MOYERS, 1988, p. 137) Ou seja, de acordo com os autores, o herói é alguém capaz de reali- zar proezas, físicas ou espirituais. Físicas incluem batalhas e brigas com vilões; espirituais são aquelas proezas em que o herói precisa superar dificuldades psíquicas ou metafísicas e retornar com uma mensagem. Ainda, A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade. Essa pessoa então parte numa série de aventu- ras que ultrapassam o usual, quer para recuperaro que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida. Normalmente, perfaz-se um círculo, com a partida e o retorno. (CAMPBELL; MOYERS, 1988, p. 138) Então o herói pode ser qualquer um de nós, aliás, segundo os au- tores, os heróis apenas contam a trajetória que nós, seres humanos, trilhamos, desde os rituais de iniciação de tribos antigas e atuais (como enfrentar perigos na mata ou ter uma festa para marcar os 15 anos) até a aceitação da finitude da vida e da necessidade da maturidade. Portanto, somos todos heróis ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto psicológica quanto física, deixando a condição de criaturas aquáticas, vivendo no fluido Temas da Literatura Infantil 103 amniótico, para assumirmos, daí por diante, a condição de mamí- feros que respiram o oxigênio do ar, e que, mais tarde, precisarão erguer-se sobre os próprios pés. É uma enorme transformação, e seria, certamente, um ato heroico, caso fosse praticado cons- cientemente. E existe aí também um ato heroico de parte da mãe, responsável por tudo isso. (CAMPBELL; MOYERS, 1988, p. 138) Uma imagem muito bonita, de fato, essa de pensarmos que toda nossa vida nos transforma em heróis, e ainda mais, que as mulheres que dão à luz são duplamente heroínas, pois, como dizem os autores, é um trabalho que envolve desfazer-se de quem se é (filha) para tornar- -se outra pessoa (mãe), e isso dando ao mundo um presente material (a criança) (CAMPBELL; MOYERS, 1988, p. 139). Mas, então, como se dá a jornada do herói? Quais são as fases e como se passa pelas provações? Veja a seguir o infográfico com os passos percorridos por heróis e heroínas (reais e imaginários). PARTIDA • O chamado da aventura – convocação do destino para algo desconhecido. • A recusa do chamado – recusa à convocação e falta de sentido na vida x aceitação do chamado. • O auxílio sobrenatural – encontro com figura protetora e objetos auxiliares. • A passagem pelo primeiro limiar – o encontro com os guardiões do limiar entre o acessível e o inacessível aos humanos. • O ventre da baleia – o herói é jogado deste limiar para dentro do desconhecido. 1 RETORNO • A Recusa do retorno – trazer a sabedoria de volta ao reino humano. • A fuga mágica – se houver triunfo, o herói retorna com algum elixir necessário à sociedade fugindo dos perigos. • O resgate com auxílio externo – auxílio do mundo para resgate do herói. • A passagem pelo limiar do retorno – retorno do herói ao mundo humano. • Senhor dos dois mundos – liberdade de ir e vir entre os mundos. • Liberdade para viver – reconciliação entre a vontade do universo e a consciência pessoal. 3 A INICIAÇÃO • O caminho de provas – sobrevivência a provações no caminho. • O encontro com a deusa – encontro com a figura mitológica da mãe, externa ou internamente; a nutridora que protege. Teste para saber se o herói é capaz de receber a eternidade. • A mulher como tentação – redescobrir sua posição humana e deixar que sua humanidade o ajude. • Sintonia com o pai – confiar no apoio dado para suportar a crise. • A apoteose – a libertação de todos os medos e o enfrentamento da crise. 2 Figura 1 Etapas da Jornada do Herói Fonte: Adaptada pela autora de acordo com Campbell, 2005. A teoria de Campbell foi adap- tada por Christopher Vogler, que formulou a teoria da “Jornada do Herói”, muito empregada hoje na construção de obras literárias e cinematográficas. Veja as etapas da Jornada do Herói, disponíveis em: https://tinyurl. com/y87dq7v4. Acesso em: 26 maio 2020. Saiba mais 104 Literatura Infantil Como vemos na Figura 2, são muitas as etapas pelas quais o herói (e nós mesmos) passa ao longo das histórias. Porém, não quer dizer que todos os livros terão sempre essa mesma estrutura, apresentando todas as etapas. Livros para crianças muito pequenas tenderão a apresentar apenas algumas das etapas, focando, entretanto, em algumas delas. Porém, romances, também, não necessariamente utilizarão todos os estágios. A série Harry Potter, por exemplo, utiliza diversos estágios em diferentes livros e também na obra como um todo. Já obras me- nores como Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak, utiliza-se de etapas mais simples, e sempre de maneira breve. Mito e realidade se fundem na psiquê humana, construindo obras de arte e fantasias individuais, possibilitando que a criança se desenvol- va de modo autônomo e seguro. Assim, fantasia, realidade e aventuras são elementos-chave para o desenvolvimento infantil. Livro Duas obras indispensáveis para quem quer entender melhor os mitos e o efeito deles nas obras de literatura infantil são os livros O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell e Mito e realidade, de Mircea Eliade. Ambos os pesquisadores são nomes de peso quando se trata de mitologia e seu poder na psiquê humana. CAMPBELL, J. Trad. de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 2005. ELIADE, M. São Paulo: Perspectiva, 1972. 4.3 A literatura infantil e o desenvolvimento emocional da criança Vídeo Somos seres inerentemente imaginativos, afinal, para criar algo é preciso antes imaginá-lo, e isso faz parte do processo de adaptação do ser humano ao mundo material. Se adaptar-se é transformar o ambien- te para podermos habitá-lo com maior sintonia, então a imaginação se coloca como fator essencial para a adaptação e o desenvolvimento. O livro Onde Vivem os Monstros, de Maurice Sendak, é uma obra de arte por suas ilustrações e sua sensibilidade em tratar da imaginação infantil. A obra foi adaptada para o cinema e é um retrato de como uma criança lida com seus medos. Assim, faça a comparação entre a obra literária e sua adaptação para o cinema, se for possível. SENDAK, M. São Paulo: Cosac Naify, 2014. ONDE Vivem os Monstros. Direção: Spike Jonze. Estados Unidos: Warner Bros. Pictures, 2009. Desafio Temas da Literatura Infantil 105 Porém, não nascemos com a habilidade de imaginar pronta. Ela precisa ser construída gradativamente e seu pleno domínio depende das condições de desenvolvimento. Não podemos negar que é muito mais fácil desenvolver imaginação e criatividade em uma criança que tem acesso a ferramentas que proporcionam isso, como tempo para brincadeiras e materiais lúdicos de diversos tipos, do que em crianças desprovidas desse acesso. Ao mesmo tempo, só desenvolvemos a capacidade de imaginação com a faculdade da linguagem. Logo, nada melhor que a própria litera- tura como mediadora do processo de se tornar um criador por si mes- mo, seja para criar mundos imaginários ou transformar o mundo real. Portanto, a imaginação depende da forma de se enxergar o mundo e, por isso mesmo, é preciso cultivar o acesso a diferentes realidades para que o leitor construa uma visão de mundo particular. Dessa forma, a criança vai aos poucos internalizando a habilidade ima- ginativa com a literatura, com os jogos de faz de conta e com diferentes brincadeiras e atividades. De uma forma geral, cada faixa etária apresentará suas características em relação ao maior ou menor grau de uso da fantasia. Assim, crianças pequenas, entre o nascimento e seus 3 anos de ida- de, buscam a vivência sensorial mais que a imaginação, ou seja, o real se faz mais presente, afinal, é preciso primeiro absorver o mundo ao redor para depois reinventá-lo. Desse modo, as brincadeiras nessa fase levam em consideração a necessidade de exploração do ambiente e dos objetos de várias formas para alcançar maestria motora e também linguística, ao conseguir nomear tudo o que vê. A pesquisadora Daniele Silva nos diz que: O conceito de mediação semiótica representa um ponto central na obra de Vygotsky. Para o autor, a linguagem organiza a ativida- de mental e, também, viabiliza as trocas comunicativas entre os homens nas suas diferentes gerações. Ademais, o campo semióti- co fia a história e a cultura, constituindo específicos modos de sen- tir, imaginar, conhecer e agir. (SILVA, 2012, p. 19, grifos do original)Portanto, para imaginar é preciso antes adquirir certa competência linguística, que servirá na mediação entre a criança e os símbolos, cons- truídos culturalmente para dar conta do mundo, como bem aponta a pesquisa de Vygotsky. Para compreender melhor a capacidade imaginativa e sua relação com a realidade, assista ao vídeo Imaginação e criatividade, do canal do professor Flávio Gikovate. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?- v=uZJud5fC2ok. Acesso em: 26 maio 2020. Vídeo 106 Literatura Infantil Tendo adquirido o vocabulário e a estrutura da língua, bem como reconhecimento de vários símbolos culturais, a criança entre os 3 e os 7 anos passa a incluir a fantasia como forma de brincadeira e de reso- lução de seus conflitos com o mundo e consigo mesma. Aqui, se desen- volve também maior consciência emocional voltada à ressignificação dos objetos. Assim, a boneca não é apenas boneca, mas é também um bebê que precisa de carinhos; o carrinho não é um objeto inerte, é aquele que apaga o fogo e salva pessoas; isso falando apenas das brincadeiras mais generalistas. Após os sete anos, as brincadeiras em grupo tomam maior tempo e a socialização passa a estar sob a ótica das crianças, não sem a imaginação desenvolvida na fase anterior. Em todas as fases, a imaginação permite que a criança trabalhe seus desejos e caminhe para uma condição de pensamento abstrato, que será exigido dela na escola, especialmente. As brincadeiras vão passando de concretas, no presente, para re- presentações do mundo adulto, com suas regras e normas, incluindo as relacionadas ao gênero. Assim, vão do reconhecer seu corpo a ima- ginar mundos; mas vão, também, das relações concretas como pegar e morder os objetos às relações de representação de papéis impostos socialmente aos homens e às mulheres que virão a se tornar no futuro. Afinal, se a literatura constrói sujeitos, também reassegura que esses mesmos sujeitos cumpram papéis que a sociedade impõe a cada um dentro de seu sistema de valores. Para Vygotsky, realidade e fantasia se ligam por meio de quatro leis. Vejamos a seguir cada uma delas. 1ª Lei – o que subordina a atividade imaginativa: composição de elementos emprestados da realidade. A imaginação e a criação não aparecem do nada, de algo inexisten- te, mas sim de experiências vividas. É por meio de uma composição entre elementos vividos e fantasiados que a imaginação cria algo novo. Assim ocorre na criação de mitos, lendas, contos, livros de fantasia ou de aventura (VYGOTSKY, 2012, p. 30). Logo, a criatividade imaginativa tem relação direta com as experiên- cias vividas, as quais se constituem como elemento primordial para a fantasia. Assim, segundo Vygotsky (2012, p. 33): A conclusão pedagógica que podemos tirar daqui é a seguin- te: se queremos criar bases suficientemente sólidas para a sua Visto que a literatura possibilita o reconhecimento de conflitos do desenvolvimento infantil, a sexualidade também pode e deve ser tema de obras infantis. A pesquisadora Karina Souza analisou em sua dissertação de mestrado a ligação entre o trabalho de leitura de literatura na escola e as relações de gênero e sexualidade. SOUZA, K. V. L. A prática de leitura na escola e as relações de gênero e sexualidade: subsídios para reflexão inicial e continuada de professores(as). São Paulo, 2014. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/ disponiveis/48/48134/tde- 01122014-112932/publico/. Acesso em: 29 maio 2020. Leitura https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-01122014-112932/publico/ https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-01122014-112932/publico/ https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-01122014-112932/publico/ Temas da Literatura Infantil 107 atividade criativa, devemos considerar a necessidade do alar- gamento da experiência da criança. Quanto mais a criança viu, ouviu e experimentou, mais sabe e assimila. Quanto mais ele- mentos da realidade a criança tiver à disposição na sua experiên- cia mais importante e produtiva, em circunstâncias semelhantes, maior será a sua atividade imaginativa. Por isso, é tão importante o acesso tanto a brincadeiras que permitam o uso da imaginação como a experiências concretas. Além disso, vê-se a responsabilidade da escola (e do governo, no caso brasileiro) de proporcionar o contato com livros diversos que levem a uma consciência crítica. 2ª Lei – subordinação da imaginação a experiências alheias. Esta lei é um tanto complexa, pois de certa forma guarda estreita relação com a primeira. Na primeira lei, as experiências pessoais le- vam a uma possibilidade imaginativa, derivada dos elementos reais. Na segunda, também. A diferença entre elas está no que Vygotsky diz ser o “resultado da imaginação”. Se na primeira temos o conto de fadas como produto, na segunda teremos um produto real. Um bom exemplo para ilustrar seria a capacidade de nos imaginar- mos dentro de um momento histórico, como estarmos a bordo de uma das naus portuguesas no período da conquista do Brasil por Portugal. Mesmo que você já tenha experimentado estar em um barco, nunca o fez em uma nau como as utilizadas em 1500. Tampouco esteve com aquelas pessoas, roupas e com o pensamento da época. Porém, a segunda lei de ligação entre realidade e imaginação nos diz que se tivermos o conhecimento para tanto é possível imaginar, mesmo sem uma experiência prévia. Ela se dá pela socialização do co- nhecimento, ou pelas experiências de outra pessoa que esteve na nau e nos contou, como na Carta de Caminha, em que Pero Vaz de Caminha narra a conquista. Por conseguinte, a imaginação só é possível por meio do contato com os outros e com suas experiências. Para Vygotsky (2012, p. 35-36): Neste sentido, a imaginação adquire uma função muito importan- te no comportamento e no desenvolvimento humanos, transfor- ma-se em meio para o alargamento da experiência do homem, porque, deste modo, ele poderá imaginar o que nunca viu; po- derá, a partir da descrição do outro, representar para si também a descrição daquilo que na sua própria experiência pessoal não existiu, o que não está limitado pelo círculo e fronteiras estritas da 108 Literatura Infantil sua própria experiência, mas pode também ir para além das suas fronteiras, assimilando, com a ajuda da imaginação, a experiência histórica e social de outros. Desta maneira, enquanto na primeira lei precisamos da experiência para imaginar, na segunda, imaginar é a própria experiência. 3ª Lei – conjunção emocional. As emoções por nós sentidas se transformam em imagens e estas alteram nossa percepção do mundo. Se estamos tristes é bem provável que uma situação neutra se pareça muito ruim quando em outro mo- mento seria normal, por exemplo. Da mesma forma a imaginação e a fantasia podem influenciar na criação de imagens que se ligam a estados emocionais. Assim, ao ler- mos algo, aquilo nos toca e as emoções se ligam ao que estamos lendo, gerando uma percepção única. É muito fácil identificar a conjunção emocional na criação de crian- ças pequenas. O medo de monstros (criaturas fantásticas) é facilmen- te identificado – ou o medo do próprio escuro. Assim, uma imagem da realidade (monstro ou escuro) se liga a uma emoção gerando uma criação imaginária. Quantas vezes não ouvimos um barulho à noite, um estalar nos canos, por exemplo, e nossas emoções automaticamente criam um monstro, um espírito ou uma pessoa invadindo a casa? Da mesma maneira, rea- lidade e emoção se combinam para formar nossos devaneios e sonhos! 4ª Lei – construção de algo completamente novo. Por vezes a imaginação, embasada nas experiências individuais e co- letivas bem como nas emoções, pode dar origem a elementos completa- mente diferentes, tornando-se realidade. Assim se criam, por exemplo, a literatura de ficção científica que, a seu modo, também influencia na descoberta de máquinas, de processos modernos.Mas não apenas na literatura essa imaginação funciona, ela proporciona a construção de carros, telefones, computadores, ou até mesmo da própria roda. Podemos perceber então que a imaginação deve ser construída e incentivada ao longo da vida para que possa propiciar produtos reais, como na quarta lei, sejam esses produtos objetos inovadores, contos ou soluções para a vida diária. A imaginação para a criança, então, se torna uma forma de interpretar o mundo, e a fantasia segue aliada a Temas da Literatura Infantil 109 esse processo, pois sua importância “consiste em seu poder de simbo- lizar e ‘resolver’ os conflitos psíquicos inconscientes que ainda dizem respeito às crianças de hoje” (CORSO; CORSO, 2006, p. 16). Os contos que aparentemente não correspondem a questões do mundo atual interessam à criança, sempre aberta a todas as possibilidades da existência e capaz de identificar-se com as per- sonagens mais bizarras e as narrativas mais extravagantes. Como a criança ainda não delimitou as fronteiras entre o existente e o imaginoso, entre o verdadeiro e o verossímil (fronteiras estabele- cidas, em parte, pelo recalque das representações inconscientes), todas as possibilidades da linguagem lhe interessam para compor o repertório imaginário de que ela necessita para abordar os enig- mas do mundo e do desejo. (CORSO; CORSO, 2006, p. 17) Como a criança ainda está em crescente formação, não tem ainda seu julgamento fechado para o mundo, como os adultos. Por isso mes- mo a literatura age como mediadora na construção de um repertório imaginário, como apontam os autores na citação acima, por meio do qual serão decifrados os enigmas do mundo e as vontades infantis. Algumas histórias apontam para o descobrimento do amor paren- tal, como João e Maria e O patinho feio. São narrativas que confrontam a criança com seu sentimento de “estranheza” em relação ao seu lugar, auxiliando-a a redescobrir seu papel na família e no mundo. Já histórias de crianças perdidas ou expulsas de casa, como Pinó- quio e Peter Pan, ilustram a difícil jornada de sair de casa em direção ao mundo, jornada que será enfrentada pelas crianças, primeiramente pela necessidade de ir à escola – um lugar estranho de sua casa – e, posteriormente, à sociedade. E não só o papel da criança, mas também o dos pais em contos como Cinderella, Branca de Neve e O Mágico de Oz. São histórias que trabalham com figuras maternas e paternas, logicamente sempre este- reotipadas, mas que servem à psiquê infantil. Dessa forma, a literatura ajuda a criança a nomear o que antes não conseguia, sejam sentimentos ou sejam ações a serem tomadas no ca- minho do seu desenvolvimento. Conforme Bettelheim (2002, p. 13), Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança, deve entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida, deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver Os contos de fadas normal- mente não apresentam a figura materna ou, se apresentam, ela é representada pela madrasta. Essa situação é importante para o desenvolvimento da autonomia da criança. Sobre esse assunto, assista ao vídeo A importância dos contos de fadas para crianças, do canal Sua Psiquê, que explica melhor o porquê da omissão da figura materna nos contos de fadas. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=x_q3oj- vbYt8. Acesso em: 1 jun. 2020. Vídeo Para você, qual é a importância da fantasia no desenvolvimento emocional da criança? Atividade 3 110 Literatura Infantil seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmoniza- da com suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que a perturbam. Resumindo, deve de uma só vez re- lacionar-se com todos os aspectos de sua personalidade – e isso sem nunca menosprezar a criança, buscando dar inteiro crédito a seus predicamentos e, simultaneamente, promovendo a con- fiança nela mesma e no seu futuro. Portanto, a literatura infantil tem papel fundamental no desenvol- vimento emocional da criança, pois possibilita de modo seguro a cria- ção de experiências e confrontos com situações reais, ainda que não presentes na sua vida e mesmo que embaladas em uma roupagem de fantasia ou de aventuras. Vivemos em um mundo complexo, mais complexo ainda para a criança que, afinal, precisa desbravar muita coisa na vida. A literatura é refúgio e confronto ao mesmo tempo, é porto seguro para um desen- volvimento pleno. Livro Os livros A psicanálise dos contos de fadas e Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis trabalham o efeito da fantasia e dos contos de fadas na psiquê infantil com a análise de diversas histórias. São livros de cabeceira para quem se interessa pelo assunto! BETTELHEIM, B. São Paulo: Paz e Terra, 2002. CORSO, D.; CORSO, M. Porto Alegre: Artmed, 2006. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com este capítulo, tentamos passar as bases de como se processa a fantasia para o desenvolvimento da psiquê humana. Também nos embre- nhamos em reconhecer que a estrutura mitológica permeia nossa imagi- nação e que possui uma estrutura reconhecível em diferentes narrativas. Dessa forma, esperamos que você aprofunde seus conhecimentos com as leituras indicadas e se aventure cada vez mais na busca por conhecer a importância do equilíbrio entre fantasia e realidade na literatura infantil. Temas da Literatura Infantil 111 REFERÊNCIAS BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2002. BOYER, R.; TYMN, M.; ZAHORSKI, K. Fantasy literature: a core collection and reference guide. New Providence; New Jersey: R.R. Bowker Co., 1979. CAMPBELL, J.; MOYERS, B. O poder do mito. São Paulo: Pallas Athena, 1988. CAMPBELL, J. O herói de mil faces. Trad. de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 2005. CLUTE, J.; GRANT, J. The encyclopedia of fantasy. New York: St. Martin’s Press, 1999. CORSO, D.; CORSO, M. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006. ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. de Hildegard Feist. São Paulo: Cia das Letras, 1994. ENDE, M. A história sem fim. São Paulo: Martins Fontes, 2016. ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. Trad. de Ronald Kyrmse. São Paulo: Conrad, 2006. SILVA, D. N. H. Imaginação, criança e escola. São Paulo: Summus, 2012. VYGOTSKY, L. S. Imaginação e criatividade na infância. Lisboa: Dinalivro, 2012. GABARITO 1. A literatura infantil auxilia na formação da identidade da criança e, por isso mesmo, se apresentamos sempre a mesma imagem e os mesmos comportamentos, a criança crescerá identificando tais imagens e comportamentos como únicas verdades. Por isso, é preciso colocar em cena heroínas e heróis negros e indígenas, representantes de classes sociais mais baixas, situações e culturas distintas, para que a criança com- preenda que vivemos em um mundo diversificado. 2. O mito é constituído das narrativas mais primordiais para os seres humanos, narrati- vas que tentam explicar a formação do mundo e da própria espécie humana. Assim, o mito carrega em si elementos que correspondem às situações enfrentadas para o desenvolvimento infantil e sua entrada na vida adulta. A mitologia traz histórias de ritos de passagem e de resolução de conflitos internos do ser humano. Por isso, é uma estrutura muito utilizada na literatura e, em especial, na literatura infantil, pois coloca em cena passos que são característicos da espécie humana e que estão incrustados na nossa psiquê. 3. A fantasia permite que a criança trabalhe conteúdos relativos às suas inseguranças, seus medos e suas dificuldades de uma forma segura, pois se vê representada na his- tória dos personagens. Assim, ela contribui para que a criança vença as etapas de seu desenvolvimento de maneira saudável, criando autonomia e segurança para adentrar no mundo adulto quando chegar o momento. 112 Literatura Infantil 5 Literaturainfantil no currículo “Bichano de Cheshire”, começou, muito tímida, pois não estava nada certa de que esse nome iria agradá-lo; mas ele só abriu um pouco mais o sorriso. “Bom, até agora ele está satisfeito”, pensou e continuou: “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?” “Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato. “Não me importa muito para onde”, disse Alice. “Então não importa que caminho tome”, disse o Gato. Lewis Carroll, em Alice no País das Maravilhas A literatura infantil, durante muito tempo, foi relegada a status de arte menor por críticos e teóricos. Esse pensamento refletiu no ensi- no da literatura, inserindo-a como prática para aprimoramento de lei- tura, sem muita consideração pelo fazer literário e estético das obras. Isso foi se modificando com políticas públicas educacionais que passam, gradualmente, a ver a necessidade da literatura e da arte como formadoras do ser humano e digna de trabalho específico. Assim, neste capítulo veremos as legislações educacionais bra- sileiras que tratam do currículo e tentaremos identificar o papel da literatura infantil nesses documentos, investigando como essas orientações e normas se concretizam nos livros didáticos e nas ati- vidades com a literatura. 5.1 Literatura infantil na legislação educacional brasileira Vídeo Sabemos que a literatura é um instrumento de formação do leitor e da identidade infantil. Desse modo, nada mais natural que sua inser- ção nos currículos escolares. Porém, também sabemos que muitos não creem na importância da literatura para a formação de um indivíduo, que deverá trabalhar no mundo real e com funções práticas. Literatura infantil no currículo 113 Os que criticam muitas vezes consideram a literatura como fuga de uma realidade que deveria ser imposta à criança desde cedo, a verdade monetária, de que o único fim da vida é o trabalho e a geração de lucro. Mas esse não é o fim do ser humano, não é mesmo? Temos mais objetivos do que meramente consumir e pagar contas – ou pelo menos deveríamos ter. Precisamos dar sentido à nossa vida e ao nosso mundo, tornando nossa existência única e completa. Entre tantos elementos que nos au- xiliam nessa completude está a arte e, consequentemente, a literatura. Então, quando falamos de um lugar para a literatura no currículo, precisamos entender que esse lugar é também uma construção políti- ca, pois depende de legislações que afirmem a necessidade do ensino dessa arte, entre outras tantas áreas. Por isso, esse lugar foi sendo construído ao longo de diversos go- vernos e políticas educacionais, as quais se relacionam com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996) – também conhecida como LDB –, enquanto marco na legislação educacional brasileira. Em seu título primeiro, a LDB relata de modo geral o conceito de educação que permeia a lei: TÍTULO I Da Educação Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se de- senvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. § 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, pre- dominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias. § 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social. (BRASIL, 1996) A LDB reconhece a educação enquanto atividade que permeia todas as esferas da sociedade, mas, logicamente, rege sobre a educação que se passa nas instituições de ensino, indicando que ela deve estar ligada tanto ao mundo do trabalho, quanto à prática social. Se pensarmos, em um primeiro momento, na leitura, veremos que ela está inserida em ambos os mundos – do trabalho e da prática social –, pois é com a leitura que daremos sentido àquilo que nos rodeia. Já a literatura pode estar inserida no mundo do trabalho (afinal, aqui es- Somos levados a crer que a vida é trabalhar para consumir cada vez mais. Você já se deu conta de quantas coisas você compra sem necessidade? Pois é, e esse “treino” começa na infância! Por isso, há iniciativas que tentam combater a propaganda de produtos para crianças, tentando diminuir o consumismo infantil, tão enfatizado pelas televisões com programação para crianças. Nessa esteira, a iniciativa de monitorar a publicidade infantil foi levada a cabo no site Criança e Consumo. Lá, você encontra guias e notícias sobre o consu- mismo na infância. Vale a pena conferir. Disponível em: www. criancaeconsumo.org.br. Acesso em: 1 jun. 2020. Saiba mais 114 Literatura Infantil tamos discutindo literatura como forma de atividade de ensino, que é, também, uma prática profissional), mas está primordialmente ligada à prática social. Assim, a LDB, logo em seu primeiro título, embora não traga a literatu- ra explicitamente, prevê sua obrigatoriedade enquanto gênero atrelado à prática social. Seguindo em frente na Lei 9.394/1996, ainda encontraremos a literatura indiretamente em muitos trechos, como no artigo terceiro: TÍTULO II Dos Princípios e Fins da Educação Nacional Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: […] II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; […] IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância; […] IX - garantia de padrão de qualidade; X - valorização da experiência extra-escolar; XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. XII - consideração com a diversidade étnico-racial. (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013). (BRASIL, 1996) Por meio da literatura, o aluno tem acesso à liberdade de aprender cultura e arte, construindo respeito para com essa liberdade e maior tolerância em relação a diferentes culturas e formas de pensar. Ela também é uma prática que extrapola o ambiente escolar, fazendo uma ponte entre escola e experiências extraescolares e de práticas sociais. Além disso, a literatura permite ter contato com a diversidade étnico- -racial, dentro de um sistema que garanta um padrão de qualidade. Para a educação infantil, a literatura entra como fator de desenvol- vimento dos aspectos psicológicos, sociais e intelectuais, conforme o artigo 29: Seção II Da Educação Infantil Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelec- tual e social, complementando a ação da família e da comuni- dade. (Redação dada pela Lei n. 12.796, de 2013). (BRASIL, 1996) A educação possui diversos problemas (e alguns acertos também), mas é unânime entre teóricos da área que o grande mal dos sistemas educacionais de diversos países são as avaliações padronizadas, como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), por exemplo. O problema dessas avaliações é que elas balizam o ensino não para o verdadeiro aprendizado e para a curiosidade cientifica- mente embasada, mas apenas para passar em uma prova. Assim, os currículos acabam sendo levados para o que será cobrado no exame, e não para o que o aluno deveria conhecer e experimentar para construir um futuro que seja válido para si. Para se aprofundar nessa discussão, leia a entrevista com um professor finlandês ao site Nova Escola. Disponível em: https://tinyurl.com/y8w2mslf. Acesso em: 1 jun. 2020. Saiba mais Um dos sistemas educacionais que têm alcançado ótimos resultados e reconhecimento mundial é o da Finlândia. Para saber mais, assista ao vídeo Sistema educacional, escola na Finlândia: uma nova visão na educação c/ Michael Moore, no canal Protetores da Infância e Família. Disponível em: youtu. be/dHfjfIslm4s. Acesso em: 1 jun. 2020. Vídeo Literatura infantil no currículo 115 Já para o ensino fundamental, a literatura participa tanto nos pro- cessos de leitura e aprendizado escolares quanto na compreensão do mundo que rodeia o aluno, seus valorese manifestações artísticas, bem como o coloca em contato com outros mundos distantes do seu, desenvolvendo a solidariedade e a tolerância. Seção III Do Ensino Fundamental Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: (Redação dada pela Lei nº 11.274, de 2006) I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema polí- tico, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamen- ta a sociedade; III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a forma- ção de atitudes e valores; IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solida- riedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. (BRASIL, 1996) Visando a qualidade do currículo e o cumprimento dos preceitos es- tabelecidos na LDB, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o ensino fundamental foram redigidos em 1997, norteando a constru- ção de currículos, bem como a produção de materiais didáticos e de formação de professores, entre outros. Os PCNs são distribuídos em 10 volumes representando áreas e temas abrangentes, funcionando também como orientação para a prática pedagógica. Além dos conteúdos, dos históricos de cada área e dos objetivos para a formação integral dos alunos, os PCNs trouxeram critérios de avaliação, isto é, padrões para observação da progressão do aluno, sendo que a avaliação deve ser a base para se estabelecer as melhores estratégias de ensino. Assim, os PCNs de Língua Portuguesa trouxeram a visão do trabalho de alfabetização, leitura e escrita por meio de textos e da prática social, reorganizando a forma como se trabalhava a língua na escola. Nesse documento, a literatura já passa a ter um maior destaque, ganhando uma pequena seção “A especificidade do texto literário” que, embora tímida, amplia os holofotes sobre essa arte. Para compreender melhor o que são os PCNs para a Língua Portuguesa, assista ao vídeo Re- sumo dos Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa - Anos Iniciais, do canal Educação Futuro, com um resumo dos seus pontos principais. Disponível em: youtu.be/SGLgBp_zX5Q. Acesso em: 1 jun. 2020. Vídeo 116 Literatura Infantil Nesta seção, podemos ver que o significado dado à literatura tam- bém se atualiza, mesmo que ainda voltado ao reconhecimento da for- ma literária como aquisição de conhecimentos, sem tocar diretamente no valor estético e na importância dessa arte para a formação do sujei- to, e não apenas do leitor. A questão do ensino da literatura ou da leitura literária envolve, portanto, esse exercício de reconhecimento das singularidades e das propriedades compositivas que matizam um tipo particular de escrita. Com isso, é possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tratá-los como expedientes para servir ao en- sino das boas maneiras, dos hábitos de higiene, dos deveres do cidadão, dos tópicos gramaticais, das receitas desgastadas do “prazer do texto”, etc. Postos de forma descontextualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literá- rias. (BRASIL, 1997, p. 30) O interessante é notar que já existe esse movimento de compreen- der a literatura infantil como maior do que um veículo para o ensino de valores, maior que uma leitura paradidática, acompanhante de outro conteúdo que possua mais valor para a educação. Com os PCNs, a lite- ratura ganha um olhar mais acurado sobre sua composição e lingua- gem próprias. Além dos PCNs, ainda tivemos a construção do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) em 1998. O RCNEI é dividido em 3 volumes e integra os PCNs, sendo específico para orientar a educação infantil. Ele guia os objetivos, os conteúdos e as orientações pedagógicas para o trabalho de qualidade nessa etapa. Seus volumes se dividem em Introdução; Formação Pessoal e Social e Conhecimento de Mundo. De modo específico, somente no volume 3 temos a citação da literatura como componente de trabalho na edu- cação infantil. Assim, para o RCNEI, A leitura de histórias é um momento em que a criança pode co- nhecer a forma de viver, pensar, agir e o universo de valores, costumes e comportamentos de outras culturas situadas em outros tempos e lugares que não o seu. A partir daí ela pode estabelecer relações com a sua forma de pensar e o modo de Literatura infantil no currículo 117 ser do grupo social ao qual pertence. As instituições de educação infantil podem resgatar o repertório de histórias que as crianças ouvem em casa e nos ambientes que frequentam, uma vez que essas histórias se constituem em rica fonte de informação sobre as diversas formas culturais de lidar com as emoções e com as questões éticas, contribuindo na construção da subjetividade e da sensibilidade das crianças. (BRASIL, 1998, p. 143) Fica clara a maior preocupação com a inserção da literatura en- quanto forma de conhecer cenários diferentes de sua realidade, mas o documento, assim como os PCNs para o ensino fundamental, ainda não amplia o escopo de trabalho para a formação do sujeito e culti- vo da imaginação. Ambos os documentos trabalham ainda na visão de que a literatura é uma auxiliar no aprendizado da leitura e da escrita, com aquisição de conhecimento de diferentes culturas. Tantos os PCNs quanto o RCNEI trazem exemplos de práticas como forma de orientar e nortear o trabalho dos educadores, na tentativa de garantir um padrão de qualidade em todo o território. Porém são documentos que não possuem obrigatoriedade de aplicação, servem como consulta aos objetivos mais amplos pensados para a educação. Ainda na tentativa de promover uma regularização na qualidade do ensino ao longo de todo o território brasileiro, e utilizando a LDB, os PCNs e o RCNEI como base, foram discutidas por vários anos e promul- gadas em 2010 as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica, ou DCNs (Resolução CNE 04/2010). As DCNs objetivam: I – sistematizar os princípios e diretrizes gerais da Educação Bási- ca contidos na Constituição, na LDB e demais dispositivos legais, traduzindo-os em orientações que contribuam para assegurar a formação básica comum nacional, tendo como foco os sujeitos que dão vida ao currículo e à escola; II – estimular a reflexão crítica e propositiva que deve subsidiar a formulação, execução e avaliação do projeto político-pedagógico da escola de Educação Básica; III – orientar os cursos de formação inicial e continuada de profis- sionais – docentes, técnicos, funcionários – da Educação Básica, os sistemas educativos dos diferentes entes federados e as esco- las que os integram, indistintamente da rede a que pertençam. (BRASIL, 2013, p. 7) Qual é a visão da LDB e dos PCNs sobre o ensino de literatura? Atividade 1 118 Literatura Infantil Dessa forma, as DCNs têm por objetivo garantir o acesso igualitário de conteúdos, mas permitindo que cada região e local faça alterações de acordo com suas especificidades, para que todos os cenários possam ser contemplados. Logo, as DCNs orientam quanto à construção das propostas peda- gógicas de cada escola ou sistema de ensino. Não prevê engessamento da estrutura curricular, mas uma base para a construção de currículos que possam ampliar o escopo de conhecimentos do aluno e equipa- rá-lo com alunos de regiões distintas da sua. Enquanto os PCNs foram uma orientação para a elaboração curricular, as DCNs se estabelecem como normas para um currículo mínimo. Quanto ao trabalho com a literatura no currículo da educação infantil, o documentojá traz a necessidade de espaços específicos de comparti- lhamento de leituras enquanto trabalho de diversidade artística e cultural. Também é preciso haver a estruturação de espaços que facilitem que as crianças interajam e construam sua cultura de pares, e fa- voreçam o contato com a diversidade de produtos culturais (livros de literatura, brinquedos, objetos e outros materiais), de manifesta- ções artísticas e com elementos da natureza. (BRASIL, 2013, p. 91) Em relação ao período da alfabetização, compreendido até o 3º ano do ensino fundamental, as Diretrizes trazem a necessidade de explo- ração das linguagens artísticas, ainda voltada para o estudo de suas formas e visando uma ampliação de repertório escolar: A escola deve adotar formas de trabalho que proporcionem maior mobilidade às crianças na sala de aula, explorar com elas mais intensamente as diversas linguagens artísticas, a começar pela literatura, utilizar mais materiais que proporcionem aos alunos oportunidade de racionar manuseando-os, explorando as suas ca- racterísticas e propriedades, ao mesmo tempo em que passa a sis- tematizar mais os conhecimentos escolares. (BRASIL, 2013, p. 121) Ao longo do documento, a literatura surge em relação estreita com o trabalho a respeito de cultura indígena e afro-brasileira, sem ainda muita definição em relação à sua função. Entretanto, as diretrizes esta- belecem como normas a aquisição de livros de literatura infantil pelo governo para compor acervo e possibilitar acesso a obras de qualidade. Assim, a LDB, juntamente à Constituição Federal de 1988, continua sendo o documento máximo de regulação do ensino no Brasil, tendo como auxiliares os PCNs e as DCNs na construção de currículos que Para compreender as diferenças entre PCN, DCN e BNCC, acesse o vídeo Diferenças entre BNCC, PCN e Diretrizes Curriculares (Papo de Educador), do canal Tuneduc, com os comentários sobre os três documentos. Disponível em: youtu.be/T1ztHC8f2Os. Acesso em: 1 jun. 2020. Vídeo Qualquer profissional que se envolva com a educa- ção deve ter conheci- mento sobre a legislação educacional. Uma ótima obra para ampliar seus conhecimentos nessa área é o livro Sistemas de ensino: legislação e política educacional para a edu- cação básica. Essa obra faz um resumo de todas as políticas e legislações educacionais obrigató- rias para compreender o sistema educacional brasileiro. SOARES, K. C. D. Curitiba: Intersaberes, 2017. Livro http://youtu.be/T1ztHC8f2Os Literatura infantil no currículo 119 garantam acesso a um número mínimo de conteúdos em todos os es- tados e para todos os cenários brasileiros. No entanto, as DCNs ainda são preocupações com melhorias para a educação, em um sentido mais amplo e teórico. Assim, foi necessário um grande esforço para a concretização da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que operacionaliza as diretrizes para garantir a qualidade no ensino brasileiro! 5.2 BNCC e literatura infantil Vídeo Tentando dar materialidade aos dispostos nos DCNs, a BNCC sofreu grandes transformações e discussões ao longo do tempo para que fosse aprovada. Ainda assim, não está consolidada e poderá sofrer alterações, especialmente em relação ao ensino médio. Entretanto, consideraremos a homologação de 2018 para analisar sua influência nos conteúdos que trabalhem com a literatura infantil no currí- culo. Afinal, essa é a versão oficial para educação infantil e ensino fundamental no momento da es- crita deste livro. Com base na Constituição Federal e na LDB, a BNCC trabalha sobre dois grandes pilares: 1. As competências e as diretrizes devem ser comuns a todos os alunos. 2. Os currículos podem ser diversos. Assim, os currículos estão subordinados às competências, isto é, deve ser dado maior peso para a aquisição das competências e das habilidades. Dessa forma, a Base (assim como os outros documentos norteadores) define o essencial que o aluno deve adquirir ao longo de sua jornada escolar, em especial, quais as competências essenciais, e não cada conteúdo específico obrigatório a ser previsto no currículo, atendendo ao disposto no art. 26 da LDB: os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio devem ter base nacional comum, a ser comple- mentada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características Vídeo Assista ao vídeo Qual é o papel da BNCC?, do canal Movimento pela Base Nacional Comum, sobre o papel da BNCC, para entender melhor o porquê de necessitarmos de um currículo nacional comum. Disponível em: youtu.be/0_Ou-JqbWTM. Acesso em: 1 jun. 2020. http://youtu.be/0_Ou-JqbWTM 120 Literatura Infantil regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (BRASIL, 1996) Assim, a BNCC não engessa o currículo, como é muitas vezes repe- tido por alguns estudiosos da área. O que ela faz é estabelecer a aqui- sição mínima de competências necessárias ao aluno em cada etapa da educação, deixando espaço para que as peculiaridades e característi- cas locais possam ser contempladas no currículo. No âmbito da BNCC, e para diversas instituições internacionais, as competências aparecem como elemento central na discussão so- bre as políticas e avaliações educacionais. Assim, a Base compreende a competência como os saberes necessários (conhecimentos, valores, atitudes e habilidades) além do saber fazer, isto é, a capacidade de em- pregar esforços para mobilizar esses saberes. A BNCC, então, atua na educação integral, compreendendo-a como a necessidade de visar à formação e ao desenvolvimento humano global, o que impli- ca compreender a complexidade e a não linearidade desse desen- volvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva. Significa, ainda, assumir uma visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto – considerando-os como sujei- tos de aprendizagem – e promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades. Além disso, a escola, como espaço de aprendizagem e de democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática coercitiva de não discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades. (BRASIL, 2018a, p. 14) Logo, a educação integral prevê um entendimento plural do ser hu- mano e da sociedade, permitindo maior inserção da literatura infantil no desenvolvimento humano global. Cada escola possui (e deve garantir), portanto, a liberdade para pro- por as atividades pedagógicas, os projetos, os espaços e as formações que estejam de acordo com sua realidade cultural, social, étnica ou lin- guística, como no caso da educação indígena. A BNCC apresenta uma estrutura própria, subdividida entre as eta- pas da educação básica. Entretanto, há 10 competências gerais, apre- sentadas na Figura 1, que devem ser desenvolvidas ao longo de todos os anos escolares. O vídeo Escola indígena em SP alia currículo regular à cultura tradicional, do canal Instituto Claro, traz uma visão sobre a educação indígena e sua relação com as legislações educacionais brasileiras. Assista ao vídeo para compreender como a escola pode e deve garantir o acesso e a proteção das culturas dentro do território nacional. Disponível em: youtu.be/_QQFryOFl7I. Acesso em: 1 jun. 2020. Vídeo Literatura infantil no currículo 121 Figura 1 Competências gerais da BNCC Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testarhipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico- -cultural. 1 22 33 4 5 Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas. 6 7 8 9 10 Fonte: Brasil, 2018a, p. 9-10. T an ah co n/ Sh ut te rs to ck Pelo esquema, percebemos que a literatura permeia todas as com- petências gerais, podendo acompanhar o aluno ao longo de toda a educação básica e de todas as competências a serem desenvolvidas. A literatura possibilita a valorização de conhecimentos historica- mente construídos, das manifestações artístico-culturais e de seus sa- 122 Literatura Infantil beres; o exercício da curiosidade intelectual, da empatia, da resolução de conflitos e da cooperação; a utilização de diferentes linguagens e tecnologias; a argumentação consciente; além de autoconhecimento, autocuidado e consciência pessoal e coletiva. Ou seja, a literatura infantil, de fato, não pode ser tratada apenas como veículo para compreensão de uma linguagem artística própria, mas como elemento propiciador de integração entre diferentes com- petências e saberes. Além das competências gerais, a Base traz as competências que de- vem ser desenvolvidas em cada etapa de ensino. Assim, a educação infantil é entendida enquanto uma etapa em que as creches e pré-escolas, ao acolher as vivências e os conheci- mentos construídos pelas crianças no ambiente da família e no contexto de sua comunidade, e articulá-los em suas propostas pedagógicas, têm o objetivo de ampliar o universo de experiên- cias, conhecimentos e habilidades dessas crianças, diversifican- do e consolidando novas aprendizagens, atuando de maneira complementar à educação familiar – especialmente quando se trata da educação dos bebês e das crianças bem pequenas, que envolve aprendizagens muito próximas aos dois contextos (fami- liar e escolar), como a socialização, a autonomia e a comunica- ção. (BRASIL, 2018a, p. 36) Portanto, a educação infantil não pode ser confundida com um tem- po em que a criança será apenas cuidada/olhada por um adulto en- quanto os pais trabalham. Embora essa mentalidade venha mudando, ainda é possível percebê-la tanto em pais quanto em governantes que não compreendem a necessidade dessa etapa. A educação infantil tem grande peso no desenvolvimento da criança e impacto nos anos escolares seguintes. Assim, como citado no trecho anterior, não é um espaço apenas de cuidado, mas de um cuidado qua- lificado e que leva em consideração o desenvolvimento de habilidades e competências essenciais para a criança. O que você pensa sobre a importância da educação infantil no desenvolvimento das crianças? Agora, que tal perguntar para pessoas que não sejam da área educacional e ver o que elas pensam sobre essa etapa educacional? Para pensar o papel da etapa da educação infantil, assista ao diálogo com a professora Maria Carmem Barbosa. Disponível em: youtu. be/iKD0NATbdUk. Acesso em: 1 jun. 2020. Desafio http://youtu.be/iKD0NATbdUk http://youtu.be/iKD0NATbdUk Literatura infantil no currículo 123 A BNCC traz, assim, 6 direitos da criança na educação infantil: Figura 2 Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento na educação infantil CONVIVER com outras pessoas, linguagens, culturas e consigo mesmo. BRINCAR com formas, espaços, tempos, pessoas, imaginação, criatividade, corpo, emoção e cognição. PARTICIPAR de atividades e seus planejamentos, materiais e linguagens, posicionando-se. EXPLORAR a cultura e a ciência em suas diversas manifestações. EXPRESSAR necessidades, emoções, sentimentos, dúvidas, descobertas e opiniões. CONHECER-SE construindo sua identidade pessoal, social e cultural. Fonte: Adaptada pela autora com base em Brasil, 2018a, p. 38. Dessa forma, a Base entende a criança como um ser capaz de observar, questionar, realizar hipóteses e concluir realizando julgamentos sobre os conhecimentos que se constroem na sua interação com o mundo. Essa visão sobre as crianças na educação infantil pede do educador maior intencionalidade na proposição das atividades, para que elas possam reconhecer-se a si mesmas, e também em relação aos outros e ao mundo. Reconhecimentos que “se traduzem nas práticas de cuidados pessoais (alimentar-se, vestir-se, higienizar-se), nas brincadeiras, nas experimentações com materiais variados, na aproximação com a literatura e no encontro com as pessoas” (BRASIL, 2018a, p. 37). Desse modo, a etapa da educação infantil é elaborada com base nos seis Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento, e em seis Campos de Experiência. Além disso, cada campo de experiência traz objetivos específicos de aprendizagem e desenvolvimento para três faixas etá- rias dentro dessa etapa. Assim, a estrutura da BNCC para a educação infantil fica da seguinte forma: 124 Literatura Infantil Figura 3 Estrutura da Etapa de educação infantil na BNCC EDUCAÇÃO INFANTIL Direitos de aprendizagem e desenvolvimento Campos de experiências Objetivos de aprendizagem e desenvolvimento Bebês (0 – 1a6m) Crianças bem pequenas (1a7m – 3a11m) Crianças pequenas (4a – 5a11m) Fonte: BRASIL, 2018a, p. 25. Assim, temos os direitos de aprendizagem que são categorias ma- cro, as quais se aprofundam em cinco campos de experiência, a saber: Figura 4 Cinco campos de experiência da aprendizagem O EU, O OUTRO E O NÓS CORPO, GESTOS E MOVIMENTOS TRAÇOS, SONS, CORES E FORMAS ESCUTA, FALA, PENSAMENTO E IMAGINAÇÃO ESPAÇOS, TEMPOS, QUANTIDADES, RELAÇÕES E TRANSFORMAÇÕES 1 2 3 44 5 Fonte: BRASIL, 2018a. Literatura infantil no currículo 125 O primeiro campo diz respeito às interações eàs relações entre os indivíduos e também entre o indivíduo e a sociedade, construindo a noção de coletividade. O segundo trabalha consciência corporal, sen- sorial, espacial e rítmica. O terceiro insere a criança nas manifestações artísticas e científicas. O quarto campo permite o desenvolvimento da comunicação e da participação oral. Por fim, o quinto campo dá compe- tências para a compreensão do mundo físico e suas relações. Assim, os campos de experiência permitem que os objetivos educa- cionais possam ser divididos sem deixar nenhuma área de desenvolvi- mento infantil de lado. Quanto aos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, vamos nos atentar às experiências que dizem respeito à literatura infantil, mesmo que esta possa fazer parte de todo o processo e se ligar a todos os campos de experiência, com foco no campo de Escuta, Fala, Pensa- mentos e Imaginação. Os objetivos são normativas práticas para sabermos o que de fato a criança precisa atingir em determinada idade dentro daquele campo experiencial. Assim, a BNCC traz 93 objetivos específicos distribuídos entre os 5 campos de experiência e as 3 faixas etárias. Podemos selecionar, então, as seguintes habilidades a serem de- senvolvidas pelas crianças em relação à literatura: Quadro 1 Habilidades relacionadas com a literatura na etapa da educação infantil Bebês Crianças bem pequenas Crianças pequenas (EI01EF02) Demonstrar interesse ao ouvir a leitura de poemas e a apresentação de músicas. (EI02EF02) Identificar e criar dife- rentes sons e reconhecer rimas e aliterações em cantigas de roda e textos poéticos. (EI03EF02) Inventar brincadei- ras cantadas, poemas e canções, criando rimas, aliterações e rit- mos. (EI01EF03) Demonstrar interesse ao ouvir histórias lidas ou conta- das, observando ilustrações e os movimentos de leitura do adulto- -leitor (modo de segurar o porta- dor e de virar as páginas). (EI02EF03) Demonstrar interesse e atenção ao ouvir a leitura de his- tórias e outros textos, diferencian- do escrita de ilustrações, e acom- panhando, com orientação do adulto-leitor, a direção da leitura (de cima para baixo, da esquerda para a direita). (EI03EF03) Escolher e folhear li- vros, procurando orientar-se por temas e ilustrações e tentando identificar palavras conhecidas. (Continua) Para compreender melhor o pa- pel da base no ensino de Língua Portuguesa, assista ao vídeo intitulado Língua Portuguesa na BNCC, do canal Movimento pela Base Nacional Comum. Disponí- vel em: youtu.be/xtnSjQXXnt8. Acesso em: 1 jun. 2020. Vídeo http://youtu.be/xtnSjQXXnt8 126 Literatura Infantil Bebês Crianças bem pequenas Crianças pequenas (EI01EF04) Reconhecer elemen- tos das ilustrações de histórias, apontando-os, a pedido do adul- to-leitor. (EI02EF04) Formular e responder perguntas sobre fatos da história narrada, identificando cenários, personagens e principais aconte- cimentos. (EI03EF04) Recontar histórias ou- vidas e planejar coletivamente ro- teiros de vídeos e de encenações, definindo os contextos, os perso- nagens, a estrutura da história. (EI01EF05) Imitar as variações de entonação e gestos realizados pelos adultos, ao ler histórias e ao cantar. (EI02EF05) Relatar experiências e fatos acontecidos, histórias ouvi- das, filmes ou peças teatrais assis- tidos etc. (EI03EF05) Recontar histórias ou- vidas para produção de reconto escrito, tendo o professor como escriba. (EI01EF07) Conhecer e manipular materiais impressos e audiovi- suais em diferentes portadores (li- vro, revista, gibi, jornal, cartaz, CD, tablet etc.). (EI02EF06) Criar e contar histórias oralmente, com base em imagens ou temas sugeridos. (EI03EF06) Produzir suas próprias histórias orais e escritas (escrita espontânea), em situações com função social significativa. (EI01EF08) Participar de situações de escuta de textos em diferentes gêneros textuais (poemas, fábu- las, contos, receitas, quadrinhos, anúncios etc.). (EI02EF07) Manusear diferentes portadores textuais, demonstran- do reconhecer seus usos sociais. (EI03EF08) Selecionar livros e tex- tos de gêneros conhecidos para a leitura de um adulto e/ou para sua própria leitura (partindo de seu re- pertório sobre esses textos, como a recuperação pela memória, pela leitura das ilustrações etc.). (EI02EF08) Manipular textos e participar de situações de escu- ta para ampliar seu contato com diferentes gêneros textuais (par- lendas, histórias de aventura, tiri- nhas, cartazes de sala, cardápios, notícias etc.). Fonte: Adaptado pela autora com base em Brasil, 2018a, p. 49-50. Na faixa etária de 0 a 1 ano e 6 meses, os professores devem de- senvolver as habilidades de escuta de histórias e envolvimento com elas, passando aos poucos ao reconhecimento de imagens ligadas à narrativa. Para crianças bem pequenas (de 1 ano e 7 meses até 3 anos e 11 meses), além das habilidades desenvolvidas na fase anterior, os pro- fessores devem ampliar o interesse por ouvir histórias e estimular a participação oral dos alunos com suas impressões, produções e ques- tionamentos. Também devem ser estimulados a reconhecer outros gê- neros textuais e manipular os livros físicos. Literatura infantil no currículo 127 Crianças de 4 a 5 anos e 11 meses (crianças pequenas) necessitam ter a atenção dos professores na produção de histórias orais, sejam recontos ou criações, bem como estímulo à criatividade e à autonomia de selecionar e manipular livros. E assim, a criança chega ao ensino fundamental. A BNCC separa as duas fases dessa etapa e, como aqui estamos pensando a literatura infantil, voltaremos nosso olhar apenas para a primeira fase: o ensino fundamental anos iniciais (1º a 5º ano). Essa fase se propõe a continuar a valorização da ludicidade na educação, garantindo que as experiências vividas na etapa anterior sejam ressignificadas e atuando progressivamente para a sistematização do ensino. Logo, nos primeiros dois anos, o grande destaque é a alfabetização enquanto forma de expansão das práticas de linguagem e comunicação bem como de aumento da autonomia e da sistematização da língua. No entanto, não só de alfabetização vivem os anos iniciais do ensino fundamental. As relações entre os sujeitos, a natureza, o mundo, as culturas, a ciência e as manifestações culturais também se ampliam e, aos poucos, devem abrir espaço para o ingresso nos anos finais, que solicitarão competên- cias mais aprofundadas dos alunos, em especial, a autonomia. Assim, a BNCC para o ensino fundamental se estrutura da forma apresentada na Figura 5. Vemos pelo esquema que essa etapa é estru- turada em Áreas do Conhecimento (Linguagens; Matemática; Ciências da Natureza; Ciências Hu- manas e Ensino Religioso), as quais comportam os diferentes componentes curriculares. Todas categorias com base nas 10 competências gerais que já vimos na Seção 5.2 deste capítulo. Assim, nos fixaremos na área de linguagens, afunilando a busca pelo trabalho com a literatura dentro do componente de Língua Portuguesa. Qual é o papel da literatura infantil na educação literária para o ensino fundamental 1? Atividade 2 Compreenda como se deu a construção da BNCC para a edu- cação infantil. Para isso, acesse o vídeo Educação Infantil na BNCC, do canal Movimento pela Base Nacional Comum. Disponível em: youtu.be/gFU0YTvCH3c. Acesso em: 1 jun. 2020. Vídeo Figura 5 Estrutura da BNCC para ensino fundamental COMPETÊNCIAS GERAIS DA EDUCAÇÃO BÁSICA ENSINO FUNDAMENTAL Áreas do conhecimento Anos Iniciais (1° ao 5° ano) Componentes curriculares Linguagens Língua Portuguesa Arte Educação Física Matemática Ciências Matemática Ciências da Natureza Ciências Humanas Geografia História Ensino ReligiosoEnsino Religioso Língua Inglesa Anos Finais (6° ao 9° ano) EDUCAÇÃO BÁSICA Fonte: Brasil, 2018a, p. 27. http://youtu.be/gFU0YTvCH3c 128 Literatura Infantil Cada área do conhecimento possui competências específicas que de- verão ser alcançadas ao longo de todo o ensinofundamental, são elas: Figura 6 Competências específicas de linguagem para o ensino fundamental Compreender as linguagens como construção humana, histórica, social e cultural, de natureza dinâmica, reconhecendo-as e valorizando-as como formas de significação da realidade e expressão de subjetividades e identidades sociais e culturais. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital – para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao diálogo, à resolução de conflitos e à cooperação. Desenvolver o senso estético para reconhecer, fruir e respeitar as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, inclusive aquelas pertencentes ao patrimônio cultural da humanidade, bem como participar de práticas diversificadas, individuais e coletivas, da produção artístico-cultural, com respeito à diversidade de saberes, identidades e culturas. Conhecer e explorar diversas práticas de linguagem (artísticas, corporais e linguísticas) em diferentes campos da atividade humana para continuar aprendendo, ampliar suas possibilidades de participação na vida social e colaborar para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva. Utilizar diferentes linguagens para defender pontos de vista que respeitem o outro e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, atuando criticamente frente a questões do mundo contemporâneo. Compreender e utilizar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares), para se comunicar por meio das diferentes linguagens e mídias, produzir conhecimentos, resolver problemas e desenvolver projetos autorais e coletivos. 1 3 5 2 4 6 Fonte: Brasil, 2018a, p. 65. Percebe-se que as competências não são componentes ou habilida- des específicas a serem aplicadas em sala de aula, mas que os conteú- dos e atividades escolares devem levar à aquisição de habilidades que, ao término da etapa de ensino fundamental, desenvolverão no aluno a capacidade de realizar todas as competências descritas. A Língua Portuguesa é sem dúvida o componente curricular mais peculiar de todos, por sua especificidade e pela quantidade de conteú- dos ligados a ele. Por isso mesmo, a BNCC a dividiu em eixos e campos de atuação. Literatura infantil no currículo 129 Os eixos dizem respeito às práticas de linguagem, e são: oralidade, leitura/escuta, produção de textos e análise linguística/semiótica. Ou seja, temos aqui eixos que trabalharão diferentes formas de se praticar a linguagem, seja falando e escutando, escrevendo, lendo ou interpre- tando o código da língua. Já os campos de atuação dizem respeito às esferas de atuação da linguagem e da língua, sendo divididos em campo da vida pública, da vida cotidiana, das práticas de estudo e pesquisa e artístico-literário. Assim, a Base traz habilidades que são específicas na prática de estu- do e pesquisa, como resumos, mapas mentais e outros, assim como habilidades necessárias na vida pública, como notícias, legislações e requerimentos. Passa também por habilidades do cotidiano, como re- des sociais, receitas e brincadeiras, além de práticas artístico-literárias e suas experiências estéticas. Assim, vamos ver o lugar da literatura nos anos iniciais do ensino fundamental dentro do eixo de leitura, por compreendermos que é onde ocorrerá a maior interação com os livros infantis, embora, obvia- mente, eles possam se relacionar com os outros eixos: Quadro 2 Habilidades da BNCC que trazem o trabalho com literatura dentro dos anos iniciais do ensino fundamental. Campo 1º ano 2º ano 3º ano 4º ano 5º ano Todos (EF15LP01) Identificar a função social de textos que circulam em campos da vida social dos quais participa cotidianamente (a casa, a rua, a comunidade, a escola) e nas mídias impressa, de massa e digital, reconhecendo para que foram produzidos, onde circulam, quem os produziu e a quem se destinam. (EF15LP02) Estabelecer expectativas em relação ao texto que vai ler (pressuposições antecipadoras dos sentidos, da forma e da função social do texto), apoiando-se em seus conhecimentos prévios sobre as condições de produção e recepção desse texto, o gênero, o suporte e o universo temático, bem como sobre saliências textuais, recursos gráficos, imagens, dados da própria obra (índice, prefácio etc.), confirmando antecipa- ções e inferências realizadas antes e durante a leitura de textos, checando a adequação das hipóteses realizadas. (EF15LP03) Localizar informações explícitas em textos. (EF15LP04) Identificar o efeito de sentido produzido pelo uso de recursos expressivos gráfico-visuais em textos multissemióticos. Vida Cotidiana (EF15LP14) Construir o sentido de histórias em quadrinhos e tirinhas, relacionando imagens e palavras e interpretando recursos gráficos (tipos de balões, de letras, onoma- topeias). (Continua) 130 Literatura Infantil Campo 1º ano 2º ano 3º ano 4º ano 5º ano Artístico-lite- rário (EF15LP15) Reconhecer que os textos literários fazem parte do mundo do imaginário e apresentam uma dimensão lúdica, de encantamento, valorizando-os, em sua diversidade cultural, como patrimônio artístico da humanidade. (EF15LP16) Ler e compreender, em colaboração com os colegas e com a ajuda do professor e, mais tarde, de maneira autônoma, textos narrativos de maior porte como contos (popu- lares, de fadas, acumulativos, de assombração etc.) e crônicas. (EF15LP17) Apreciar poemas visuais e concretos, observando efeitos de sentido criados pelo formato do texto na página, distribuição e diagramação das letras, pelas ilustrações e por outros efeitos visuais. (EF15LP18) Relacionar texto com ilustrações e outros recursos gráficos. Todos (EF01LP01) Reconhe- cer que textos são lidos e escritos da es- querda para a direita e de cima para baixo da página. (EF35LP01) Ler e compreender, silenciosamen- te e, em seguida, em voz alta, com autonomia e fluência, textos curtos com nível de textuali- dade adequado. (EF35LP02) Selecionar livros da biblioteca e/ ou do cantinho de leitura da sala de aula e/ou disponíveis em meios digitais para leitura indi- vidual, justificando a escolha e compartilhando com os colegas sua opinião, após a leitura. (EF35LP03) Identificar a ideia central do texto, demonstrando compreensão global. (EF35LP04) Inferir informações implícitas nos textos lidos. (EF35LP05) Inferir o sentido de palavras ou expressões desconhecidas em textos, com base no contexto da frase ou do texto. (EF35LP06) Recuperar relações entre partes de um texto, identificando substituições lexicais (de substantivos por sinônimos) ou pronomi- nais (uso de pronomes anafóricos – pessoais, possessivos, demonstrativos) que contribuem para a continuidade do texto. (EF12LP02) Buscar, selecionar e ler, com a mediação do professor (leitura compartilhada), textos que circulam em meios impressos ou digitais, de acordo com as necessidades e interesses. Vida Cotidia- na (EF01LP16) Ler e compreender, em colaboração com os colegas e com a ajuda do professor, quadras, quadrinhas, parlendas, trava-línguas, dentre outros gêneros do campo da vida coti- diana, considerando a situação comunicativa e o tema/assunto do texto e relacionando sua forma de organiza- ção à sua finalidade. (EF02LP12) Ler e compreender com certa autonomia cantigas, letras de canção, dentre outros gêneros do campo da vida cotidiana, conside- rando a situação comunicativa e o tema/assunto do texto e relacionan- do sua forma de organização à sua finalidade. (EF05LP10) Ler e compreender, com autonomia, anedo- tas, piadas e cartuns, dentre outros gêneros do campo da vida cotidiana, de acordo com as con- venções do gênero e considerando a situação comunica-tiva e a finalidade do texto. (Continua) Literatura infantil no currículo 131 Campo 1º ano 2º ano 3º ano 4º ano 5º ano Artístico-lite- rário (EF02LP26) Ler e compreen- der, com certa autonomia, tex- tos literários, de gêneros variados, desenvolvendo o gosto pela leitura. (EF35LP21) Ler e compreender, de forma autô- noma, textos literários de diferentes gêneros e extensões, inclusive aqueles sem ilustrações, estabelecendo preferências por gêneros, temas, autores. (EF35LP22) Perceber diálogos em textos narrati- vos, observando o efeito de sentido de verbos de enunciação e, se for o caso, o uso de variedades linguísticas no discurso direto. (EF35LP23) Apreciar poemas e outros textos versi- ficados, observando rimas, aliterações e diferentes modos de divisão dos versos, estrofes e refrões e seu efeito de sentido. (EF35LP24) Identificar funções do texto dramático (escrito para ser encenado) e sua organização por meio de diálogos entre personagens e marcadores das falas das personagens e de cena. (EF12LP18) Apreciar poemas e outros textos versificados, observando rimas, sonoridades, jogos de palavras, reconhecendo seu pertencimento ao mundo imaginário e sua dimensão de encantamento, jogo e fruição. Fonte: Adaptado de Brasil, 2018a, p. 95-133. Pelo quadro, vê-se que há habilidades que precisam ser trabalhadas ao longo de todos os anos e outras que devem ser adquiridas em uma ou duas séries, pois essas habilidades auxiliarão nos anos seguintes. Assim, a BNCC prevê uma progressão no grau de dificuldade e na quan- tidade dos conteúdos e dos gêneros. Se continuássemos analisando as habilidades, veríamos que vai sendo dada aos poucos maior ênfase para gêneros de outros campos que não o artístico-literário, como forma de letramento global do alu- no. Contudo, esse campo estará presente durante toda a formação es- colar, sendo mais predominante na fase de alfabetização. Em todo caso, a BNCC regulamenta que as habilidades deverão ser atingidas durante o processo escolar, mas não diz quais atividades de- verão ser feitas para atingir esses objetivos. As atividades são de escopo da escola e do professor. Poderão ser desenvolvidas habilidades em sala de aula, em projetos integradores, em atividades fora da escola e tarefas de casa bem como quaisquer outras atividades que se possa imaginar. Por regulamentar as habilidades e não o modo como se atingir esses objetivos é que temos diversos materiais didáticos no mercado brasileiro para o trabalho com a linguagem e com a literatura. Assim, veremos como se materializam essas habilidades no livro didático e como é o processo de aprovação das obras. Para aprofundar seus conhecimentos a respeito da BNCC e sua ligação com os outros documentos norteadores da educação brasileira, indicamos a obra Ensino Fundamental: da LDB à BNCC. Esse livro traz discussões sobre a necessidade e as práticas educativas em cada componente curricular, articulando essa discussão com os documentos educacionais. VEIGA, I. P. A.; SILVA, E. F. São Paulo: Papirus, 2019. Livro Selecione uma habilidade do ensino fundamental e um texto literário (em verso ou prosa). Então produza uma atividade que consiga desenvolver essa habilidade selecionada. Desafio 132 Literatura Infantil 5.3 Literatura infantil no livro didático Vídeo Muito bem, até aqui vimos como é importante o trabalho com a lite- ratura dentro do currículo escolar, mas como tudo isso é materializado nos materiais empregados para o ensino? Primeiro, precisamos saber que para garantir o acesso a materiais que atendam às habilidades descritas pela BNCC e também que ofere- çam acesso a leituras de qualidade para todos os alunos, foi necessária a criação de alguns programas específicos para essa demanda. Assim, surgiram dois grandes programas de aquisição de livros pelo governo, o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) e o Progra- ma Nacional do Livro Didático (PNLD). Além de serem programas que garantem a compra dos materiais, eles possuem regras e comissões para a aprovação das obras que poderão ser compradas pelo governo, visando à qualidade dos materiais. O PNBE foi desenvolvido em 1997 com objetivo de ampliar o acesso à leitura por parte de alunos e de professores, possuindo 3 classifica- ções: PNBE Literário; PNBE Periódicos (jornais e revistas pedagógicos); e PNBE do Professor (livros técnicos e metodológicos). Vale salientar que o programa se propôs a atender a alunos da educação infantil ao ensino médio, cobrindo a Educação de Jovens e Adultos em todas as suas etapas. Em 2017, por meio do Decreto 9.090, o PNBE foi integrado ao PNLD, tornando-se o Programa Nacional do Livro e do Material Didático. Nessa nova configuração, o PNLD também teve seu escopo ampliado com a possibilidade de inclusão de outros materiais de apoio à prática educativa para além das obras didáticas e literárias: obras pedagógicas, softwares e jogos educacionais, materiais de reforço e correção de fluxo, materiais de formação e materiais destinados à gestão escolar, entre outros. (BRASIL, 2020c) Logo, o PNLD passou a ser o programa por meio do qual há seleção e disponibilização de obras didáticas, literárias e pedagógicas, garan- tindo a regularidade da disponibilização de tais obras a escolas públi- cas, além de instituições que possuam convênio com o poder público e aquelas que sejam comunitárias, filantrópicas ou confessionais, em especial na etapa da educação infantil. O canal FNDE desenvolveu em 2017 o vídeo A Fantástica História dos Livros Didáticos - PNLD (Programa do Livro - 80 anos), comemorando os 80 anos do Livro Didático no Brasil, contando um pouquinho da sua história. Disponível em: http:// youtu.be/0-Fz14JrQEw. Acesso em: 1 jun. 2020. Vídeo http://youtu.be/0-Fz14JrQEw http://youtu.be/0-Fz14JrQEw Literatura infantil no currículo 133 Para a compra e distribuição desses materiais, entra em cena o FNDE, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o qual finan- cia a compra e organiza a logística de entrega às escolas que estejam cadastradas no Censo Escolar. Dessa forma, nenhum desses órgãos recebe os materiais diretamen- te. O PNLD avalia e encaminha para as escolas a listagem aprovada. As escolas selecionam os livros e solicitam os títulos. O FNDE realiza a com- pra e organiza a entrega. Por fim, os Correios (ECT) realizam a entrega diretamente das editoras que produzem os materiais (BRASIL, 2018b). Figura 7 Fluxo do programa PNLD 1 4 7 10 13 2 5 8 11 3 6 9 12 Adesão das escolas ao programa Triagem e avaliação das obras Guia do Livro Escolha das escolas Pedido ao FNDE Produção dos livros Avaliação da qualidade física do livro pelo IPT Distribuição pelos Correios Recebimento dos materiais na escola Aquisição Solicitação das obras às editoras Edital Inscrição das editoras Fonte: Adaptada pela autora com base em Brasil, 2020a. k ai so rn / S hu tte rs to ck Podemos ver pelo infográfico que o processo se inicia em duas fren- tes, com o cadastramento da escola e a publicação de editais públicos para definição das regras de avaliação dos livros. Com base nisso, se- gue-se com o cadastramento das editoras e a posterior avaliação pelos técnicos contratados pela Secretaria de Educação Básica (SEB/MEC). É preciso saber que os editais não selecionam obras para todas as etapas todos os anos. No ano de 2020, por exemplo, foram sele- cionadas obras voltadas para alunos e professores dos anos finais do ensino fundamental e para o ensino médio. Veja abaixo a tabela de aquisições para o ano: 134 Literatura Infantil Tabela 1 Aquisições de materiais didáticos no edital PNLD 2020 Etapa de Ensino Escolas Benefi- ciadas Alunos Beneficia- dos Total de Exemplares Valor de Aquisição Educação infantil 17.069 3.204.748 28.407 R$ 749.606,65 Anos iniciais do ensino fundamental 88.674 12.337.614 71.816.715 R$ 458.638.563,27 Anos finais do ensino fundamental 48.213 10.197.262 80.528.321R$ 696.671.408,86 Ensino médio 19.249 6.270.469 20.198.488 R$ 234.141.456,77 Total Geral 123.342 32.010.093 172.571.931 R$ 1.390.201.035,55 Fonte: Brasil, 2020b. Embora o foco sejam os anos finais do ensino fundamental e o en- sino médio, o programa prevê a compra de materiais já selecionados em editais anteriores para as outras etapas. Isso acontece como forma de reposição de livros e pela entrada de novos alunos na etapa, neces- sidade de volumes a mais, porém não uma compra massiva. Para com- preender, compare com a aquisição do ano de 2019 na tabela a seguir: Tabela 2 Aquisições de materiais didáticos no edital PNLD 2019 Etapa de Ensino Escolas Benefi- ciadas Alunos Beneficia- dos Total de Exemplares Valor de Aquisição Educação infantil 74.409 5.448.222 646.795 R$ 9.826.136,60 Anos iniciais do ensino fundamental 92.467 12.189.389 80.092.370 R$ 615.852.107,23 Anos finais do ensino fundamental 48.529 10.578.243 24.523.891 R$ 224.516.830,94 Ensino médio 20.229 6.962.045 20.835.977 R$ 251.830.577,40 Total Geral 147.857 35.177.899 126.099.033 R$ 1.102.025.652,17 Fonte: Brasil, 2020b. Perceba que o total de livros adquiridos em 2019 para os anos fi- nais do ensino fundamental e ensino médio soma 45.359.868 exem- plares. Já no ano de 2020, para as mesmas etapas, foram adquiridos 100.726.809. Portanto, em 2019, os exemplares comprados represen- taram reposição de livros para alunos e professores. Já em 2020, para a etapa de educação infantil e ensino fundamental anos iniciais, foram Literatura infantil no currículo 135 repostos materiais para professores e materiais consumíveis para alu- nos, isto é, livros didáticos que são individuais, pois requerem que o aluno escreva no material, não podendo ser reutilizado. No entanto, para a literatura há um edital especial, o PNLD Literá- rio. O último edital destinado às obras literárias ocorreu em 2018 e analisaremos aqui os critérios de seleção contidos nesse edital para compreender melhor como ocorre o processo e a seleção da literatura infantil a ser distribuída para as escolas públicas brasileiras. Esse edital avaliou obras literárias para a educação infantil, os anos iniciais do ensino fundamental e o ensino médio. Os anos finais do en- sino fundamental foram contemplados no edital do ano de 2020, junta- mente aos livros didáticos. Em relação à obra física, o edital deixa claro que as editoras não poderão submeter livros que contenham espaços ou lacunas nas quais a criança possa interagir escrevendo no livro, pois, como é uma obra literária que comporá acervo, deve garantir a coletividade de seu uso. Além disso, no caso de obras para a educação infantil, os materiais de- verão ser atóxicos e, caso acompanhem brinquedos, estes deverão ser certificados pelo Inmetro. O edital dividiu as obras em seis categorias e seus subtemas que devem levar em consideração as faixas etárias e os dispostos na BNCC e nas DCNs: Figura 8 Categorias etárias e subtemas aceitos nas obras do PNLD Literário 2018. 1. Creche I: crianças de 0 – 1 a 6m Descoberta de si; A casa e a família; O mundo natural e social; Outros temas 3. Pré-escola: crianças de 4 anos – 5 a 11m Descoberta de si; Família, amigos e escola; O mundo natural e social; Diversão e aventura; Outros temas 4. Estudantes do 1º ao 3º ano do Fundamental Descoberta de si; Família, amigos e escola; O mundo natural e social; Diversão e aventura; Outros temas 5. Estudantes do 4º e 5º ano do Fundamental Autoconhecimento, sentimentos e emoções; Família, amigos e escola; O mundo natural e social; Encontros com a diferença; Diversão e aventura; Outros temas 6. Estudantes do Ensino Médio Projetos de vida; Inquietações das Juventudes; O jovem no mundo do trabalho; A vulnerabilidade dos jovens; Cultura digital no cotidiano do jovem; Bullying e respeito à diferença; Protagonismo juvenil; Cidadania; Diálogos com a sociologia e a antropologia; Ficção, mistério e fantasia; Outros temas 2. Creche II: crianças de 1 a 7m – 3 a 11m Descoberta de si; Família, amigos e escola; O mundo natural e social; Diversão e aventura; Outros temas Fonte: Brasil, 2018c, p. 4-5. 136 Literatura Infantil Vemos então que há temas base para a seleção de livros literários, com a possibilidade de inscrição de outras temáticas, contanto que se- jam justificadas pelas editoras. Em relação aos gêneros literários, o edi- tal traz as seguintes classificações: Figura 9 Classificações dos Gêneros Literários aceitos e seus critérios para avaliação no PNLD Literário 2018. POEMA CONTO, CRÔNICA, NOVELA, ROMANCE 1 LIVROS DE IMAGENS E LIVROS DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS LIVRO- -BRINQUEDO Coerência e consistência; complexidade da ambientação; caracterização multidimensional das personagens; cuidado com a correção e adequação do discurso das personagens às variáveis da língua. Relação adequada entre texto e imagem; possibilidades de leituras das narrativas visuais. Limites e potencialidades das interações e brincadeiras. Exploração das propriedades melódicas e dos aspectos imagéticos. Fonte: Brasil, 2018c, p. 32. Am m us / S hu tte rs to ck Já podemos delinear que as obras selecionadas seguem padrões de desenvolvimento do indivíduo e das relações que o cercam, tentando trazer reflexões por meio de diversas formas textuais. Deste modo, o edital nos diz que as obras inscritas: devem potencializar, entre os estudantes de todas essas etapas, a capacidade de reflexão quanto a si próprios, aos outros e ao mundo que os cerca. Estas obras devem proporcionar o contato com a diversidade em suas múltiplas expressões por meio de uma interação eficiente – e gradativamente crítica – com a cul- tura letrada, sem descuidar da dimensão estética dessa cultura. (BRASIL, 2018c, p. 30) O edital dá ênfase, então, ao trabalho com as relações humanas e com a diversidade, sem deixar de lado o valor estético das obras literárias. Outros gêneros que entram nessa classificação: teatro, texto da tradição popular, memória, diário, biografia, relatos de experiências, obras clássicas da literatura universal etc. 1 Qual é a sua opinião sobre a existência de um programa nacional que seleciona livros de literatura para os alunos? Atividade 3 Literatura infantil no currículo 137 As obras de educação infantil devem priorizar, de acordo com o edi- tal, a curiosidade com a escrita, permitindo o trabalho do professor enquanto mediador na familiarização com os livros e com a linguagem escrita e visual. Para os anos iniciais do ensino fundamental, elas de- vem continuar com as linguagens multissemióticas, permitindo maior entrosamento entre a escuta e a leitura dos textos, ampliando o escopo de conhecimentos sobre as temáticas e os gêneros literários. Também devem explorar a leitura e a reflexão sobre si e o mundo de modo pro- gressivo (BRASIL, 2018c). Para que uma obra seja aprovada, os avaliadores técnicos farão a apuração em quatro dimensões: qualidade do texto; adequação com a categoria, o gênero literário e o tema; projeto gráfico-editorial; e quali- dade do manual digital para o professor, caso haja. Em relação à qualidade do texto, o edital leva em consideração de que forma a obra explora os recursos expressivos da linguagem; como se estrutura o gênero literário proposto; se a linguagem está adequada à faixa etária; e se o tema está bem desenvolvido e coeso com o gênero literário selecionado. A qualidade também diz respeito às mensagens e à diversidade so- cial, cultural e étnica empregada nas obras, levando em consideração o convite à criatividade ativa durante a leitura, e não à manipulação do leitor pelo autor do texto. Por fim, embora o edital traga temas amplos para que as obras se encaixem, não são permitidos livros com cunho didático, doutrinário, panfletário ou religioso, resguardando a literatura infantil enquanto ex- pressão estética de apoio ao desenvolvimento global do ser humano. Assim, o número total de obras aprovadasnesse edital foi de 704 livros literários, distribuídos entre as 6 categorias etárias. Veja a seguir a tabela com a quantidade de obras aprovadas por gênero literário. 138 Literatura Infantil Tabela 3 Número de obras aprovadas no PNLD Literário 2018 por faixa etária e gêneros literários. Gêneros/faixa etária 1. Poe- ma 2. conto, crônica, etc. 3. Roman- ce 4. memória, diário etc. 5. obras clássi- cas 6. livros de imagens e HQs 7. livro- -brin- quedo Creche I 0 0 0 0 0 1 0 Creche II 1 11 0 0 0 11 0 Pré-escola 17 69 0 0 0 30 0 1-3 ano EF 39 131 1 11 2 23 0 4-5 ano EF 19 121 5 13 4 6 0 EM 19 53 61 16 24 16 0 Fonte: SAI O RESULTADO..., 2018. Percebe-se que a categoria de livro-brinquedo não teve nenhuma obra aprovada. Aliás, teve apenas uma obra inscrita, mas sua inscri- ção nem mesmo foi aceita para avaliação. Essa situação provavelmente ocorre, pois, para submeter para essa categoria, é necessário selo do Inmetro. Outro fato curioso é a situação dos livros para Creche I, na qual 8 livros foram inscritos e apenas 1 aprovado. O que é interessante observarmos é a ampliação progressiva dos gêneros pela faixa etária, iniciando com um gênero na Creche I, passando para 3 na Creche II e Pré-escola, e ampliando para 6 categorias nos anos seguintes. Os livros aprovados pelo edital e selecionados pela escola compõem o acervo para bibliotecas e cantinhos de leitura. Porém, se não houver um trabalho dos professores para o acesso a essas obras, elas não ser- virão a seu fim. Isso porque os livros didáticos trazem a literatura como componente da Língua Portuguesa para a realização de atividades de reconhecimento de diferentes gêneros e estruturas e, em sua maioria, atividades que usam a literatura como veículo para treino gramatical. Assim, a maior parte dos alunos depende do professor como me- diador para a indicação e o estímulo ao manuseio de livros e à leitura de diferentes títulos que estejam na biblioteca da escola. A discussão sobre o ensi- no de literatura por meio de livros didáticos já está sendo realizada há algum tempo no meio acadêmi- co. Para compreender as relações entre eles, leia o artigo O texto Literário no Livro Didático da pes- quisadora Maria Lúcia Outeiro Fernandes. FERNANDES, M. L. O. Itinerários, 17, UNESP/Araraquara, 2001, p. 165-177. Disponível em: https:// periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/ article/view/3457/3220. Acesso em: 1 jun. 2020. Artigo Literatura infantil no currículo 139 Os materiais didáticos atuais são produzidos em consonância com a BNCC, mas poucos são os que trazem indicações de leituras e trabalho específico com a literatura – aqueles com indicações o fazem apenas para o professor. Somente nas etapas mais avançadas de ensino é que indicações de livros e filmes ganham maior espaço. Portanto, se há todo um esforço concretizado em políticas públicas que garantem o acesso à literatura, é preciso que exista um agente que seja um elo entre aluno e livro, e esse elo é o professor. Sem o professor, os livros permanecem nas estantes da biblioteca! Artigo Para maior reflexão sobre o papel da literatura na BNCC e, consequentemente, nos livros didáticos, realize a leitura do artigo O papel da literatura na BNCC: ensino, leitor, leitura e escola. A pesquisadora faz uma discussão sobre o espaço dado à literatura na base curricular e que tipo de leitor esse currículo é capaz de formar. IPIRANGA, S. Revista de Letras, Fortaleza, v. 38, n. 1, p. 106-114, jan.- jun., 2019. Como prática de reconhecimento das habilidades da BNCC, pegue um livro de Língua Portuguesa do ensino fundamental, ou algum manual de atividades do professor de educação infantil, selecione um capítulo e – com apoio da BNCC – tente identifi- car as habilidades nas atividades propostas no livro didático. Desafio CONSIDERAÇÕES FINAIS Esperamos que este capítulo tenha possibilitado a você um maior co- nhecimento de como a educação literária se dá no contexto das legisla- ções educacionais brasileiras. Além disso, fizemos uma discussão acerca do lugar da literatura nesses documentos e, em especial, na BNCC. Cremos que com as informações a respeito de como é o fluxo da produção dos livros didáticos e literários no país você possa ter maior compreensão de todos os agentes envolvidos no processo e possa reco- nhecer a importância da autonomia do professor na construção de ativi- dades voltadas à literatura. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394. htm. Acesso em: 2 jun. 2020. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/ arquivos/pdf/livro02.pdf. Acesso em: 2 jun. 2020. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998. 140 Literatura Infantil Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume3.pdf. Acesso em: 2 jun. 2020. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Brasília, DF: MEC, SEB, DICEI, 2013. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizes-educacao-basica-2013- pdf/file. Acesso em: 2 jun. 2020. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2018a. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versaofinal_site.pdf. Acesso em: 2 jun. 2020. BRASIL. Programa Nacional Biblioteca da Escola. Brasília, DF, 2018b. Disponível em: http:// portal.mec.gov.br/programa-nacional-biblioteca-da-escola. Acesso em: 2 jun. 2020. BRASIL. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Secretaria de Educação Básica. Edital de convocação 02/2018 – CGPLI. Brasília, DF, 2018c. Disponível em: https://www.fnde.gov.br/index.php/centrais-de-conteudos/publicacoes/category/165- editais?download=12155:edital-pnld-lit-2018-3-retif. Acesso em: 2 jun. 2020. BRASIL. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Ministério da Educação. Programas do Livro. Funcionamento. Brasília, DF, 2020a. Disponível em: https://www.fnde. gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/funcionamento. Acesso em: 2 jun. 2020. BRASIL. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Ministério da Educação. Programas do Livro. Dados estatísticos. Brasília, DF, 2020b. Disponível em: https://www. fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/dados-estatisticos. Acesso em: 2 jun. 2020. BRASIL. Plano Nacional do Livro Didático. Brasília, DF, 2020c. Disponível em: http://portal. mec.gov.br/component/content/article?id=12391:pnld. Acesso em: 2 jun. 2020. CARROL, L. Alice no País das Maravilhas. Jandira: Ciranda Cultural, 2018. SAI O RESULTADO do PNLD Literário. Publishnews, 30 ago. 2018. Disponível em: https:// www.publishnews.com.br/materias/2018/08/30/sai-o-resultado-do-pnld-literario. Acesso em: 2 jun. 2020. GABARITO 1. A LDB não vai falar sobre a literatura em si, mas podemos perceber que essa manifes- tação artística pode ser utilizada para atingir os princípios fundamentais da educação básica conforme dispostos na LDB. Os PCNs tentam inserir a literatura como forma de ampliação do conhecimento sobre a realidade, mas não mais que isso. Os docu- mentos ainda veem a literatura como ferramenta para aquisição de leitura e escrita. 2. O ensino de literatura no ensino fundamental 1 deve se voltar para a construção de repertório, criatividade e autonomia para escolher, se interessar e debater literatura infantil em diversos gêneros, promovendo, também, a capacidade de produzir histó- rias orais ou escritas dentro do universo literário. 3. A resposta deve trazer as impressões pessoais, mas também a compreensão de que o programa proporcionao acesso à literatura de qualidade aos alunos e que, ao mesmo tempo, baliza o que os autores de literatura infantil escrevem, diminuindo a liberdade artística em certo grau, pois as obras serão escritas não mais para as crianças, e sim para os avaliadores. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume3.pdf https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/funcionamento https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/funcionamento https://www.publishnews.com.br/materias/2018/08/30/sai-o-resultado-do-pnld-literario https://www.publishnews.com.br/materias/2018/08/30/sai-o-resultado-do-pnld-literario Trabalho pedagógico com literatura infantil 141 6 Trabalho pedagógico com literatura infantil Pois não é que os meninos tinham trocado os medos? De tanto ouvir falar da bruxa, Tucho acabara se esquecendo do Lobo Mau e Nandinho, agora mais preocupado com o lobo do zoológico, ria sem parar da brincadeira da professora Tânia, que ele adorava. Heloisa Prieto, Lobo de estimação A literatura na escola não se faz sem seu mediador: o professor. Para compreendermos o trabalho pedagógico com a literatura infantil, precisamos verificar qual é o papel do docente nessa jornada de transformar a criança em um leitor. Ainda, não basta termos leitores, precisamos que sejam críti- cos, especialmente na contemporaneidade da era digital. Assim, o papel do professor enquanto mediador entre o aluno e o mun- do se intensifica. Também, vamos lançar um olhar sobre como contar histórias e engajar os alunos no mundo da literatura. 6.1 Papel do professor Vídeo Como você descobriu a literatura? Você se lembra? Talvez tenha sido em casa com a família, mas, provavelmente, você terá alguma me- mória ligada à escola e à leitura de livros de literatura para as aulas. É bem verdade que ensinar o gosto pela leitura não cabe apenas ao professor, mas ele se torna figura central na mediação entre aluno e livro literário em um país onde o livro é muito caro para ser adquirido e o acesso a bibliotecas ainda é precário. Para discutirmos o papel do professor, temos que entender como anda o papel da própria literatura dentro do âmbito escolar. Rildo 142 Literatura Infantil Cosson (2009) nos conta que, em palestras e cursos ofertados por ele, sempre recebe questionamentos acerca da necessidade de se ensinar literatura na escola. Essas questões vêm normalmente acompanhadas de críticas a esse trabalho, pois, para muitas pessoas, trabalhar litera- tura serve ao propósito de alfabetizar ou de estudar períodos literários. “Para alfabetizar, não é preciso literatura”, dizem as mesmas pessoas que questionam o pesquisador. Para elas, jornais, revistas e textos da vida cotidiana dão conta do recado e são mais acessíveis. Também, creem que estudar períodos literários se presta a passar em vestibulares e poderia muito bem ser um estudo realizado em outras matérias, como artes ou história. Por que exitem esses pensamentos e preconceitos em relação ao ensino de literatura na escola? Antes de tentarmos responder a essa pergunta, faremos outra muito importante: você lembra qual foi o últi- mo livro literário que leu na íntegra e quando foi realizada essa leitura? Se você conseguiu responder ou se teve dificuldade porque leu muitos livros literários, parabéns! Mas isso é uma exceção, como bem aponta Cosson (2009). A maioria dos professores não lê livros de litera- tura! E, muitas vezes, quando são questionados a respeito da utilização de literatura no ensino, relatam que os alunos têm falta de interesse. Mas, ora, se o próprio professor não tem interesse, como o construirá em seus alunos? Dentre tantos motivos para que os professores não sejam leitores e para que essa “não prática” se difunda entre os alunos, estão a for- mação inicial e continuada dos docentes e suas próprias experiências enquanto alunos, na educação básica. Segundo Cosson, “nossa leitura fora da escola está fortemente condicionada pela maneira como ela nos ensinou a ler” (2009, p. 26). Assim, os professores foram também alunos de uma escola tra- dicional que, muitas vezes, não soube como trabalhar a literatura, deixando-a descontextualizada ou, então, inserindo-a em práticas ex- tracurriculares às quais pouca importância se dá. Exemplo disso são os projetos extraclasse, que deveriam ter grande apoio de professo- res, de alunos e da comunidade escolar, mas que, por vezes, acaba sendo um motivo de aborrecimento, por ser algo “a mais” no currículo e nas atividades escolares. Trabalho pedagógico com literatura infantil 143 Professores com baixos salários, com muitas turmas e muitos alu- nos e com inúmeras avaliações (desnecessárias por vezes) para corrigir acabam se desmotivando quando há propostas de diversificação das atividades, mesmo que estas possam ser extremamente benéficas e simples. Projetos transdisciplinares são sempre muito louvados como possibilidade de quebrar a rotina da escola tradicional, mas são poucas as que conseguem o apoio de toda a comunidade escolar para imple- mentar tal plano. Como num ciclo vicioso, o ensino continua o mesmo. Exatamente por isso a forma como os professores aprenderam a literatura é re- fletido, também, em sua prática enquanto leitores e docentes. Nossos hábitos são moldados desde cedo, sabemos disso; logo, a visão que teremos da prática pedagógica já é construída desde muito cedo na escola. É necessário, então, transformar essa visão limitada e limitante do trabalho com a literatura, e essa modificação deve englobar todos os níveis de ensino. Dessa forma, os cursos de graduação e pós-graduação devem gerar conhecimentos aplicáveis aos sistemas de ensino, com parcerias entre si (como acontece em muitos locais); mas, para além disso, devem focar a modificação do pensamento do professor a respeito do que é ser um leitor. É preciso começar por quem vai formar os alunos; desse modo, os docentes precisam ser motivados a gostar de ler livros literários. Esse incentivo deve se dar desde os cursos de licenciatura até os de formação continuada, oferecidos pelas redes e sistemas de ensino. Sem engajarmos os professores na leitura, não avançaremos nem no ensino da literatura nem nos índices de compreensão leitora. Os cursos de licenciatura precisam adequar seus currículos, a fim de promover o gosto pela leitura, bem como realizar discussões e ati- vidades práticas de como trabalhar a literatura em sala de aula. Afinal, infelizmente, poucos são os cursos que dão ênfase, de fato, à maneira de realizar um trabalho pedagógico com o texto literário. Hoje, boa parte dos professores trabalha a literatura por meio do livro didático, fato que nos mostra a necessidade de uma avaliação cri- teriosa dos materiais empregados. Porém, mesmo avaliando criteriosa- mente, o livro didático só pode ir até certo ponto nesse trabalho, pois não consegue reproduzir na íntegra o texto todo, ou seja, traz recor- Para entender melhor como funciona o ensino por projetos, assista a uma aula da disciplina de Pedagogia de Projetos, liberada gratuitamente pela USP. Disponível em: http:// eaulas.usp.br/portal/video. action?idItem=675. Acesso em: 18 jun. 2020. Vídeo O Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA) apontou, em seu relatório de 2018, que o Brasil está muito atrás dos países considerados de primeiro mundo em todos os três quesitos: leitura, matemática e ciências. Veja a matéria Pisa: alunos brasileiros ‘estacionam’ em leitura, ciências e matemática e sofrem mais com bullying e solidão, da BBC, que trata dos resultados do país na avaliação. Disponível em: https:// www.bbc.com/portuguese/ brasil-50606790. Acesso em: 18 jun. 2020. Saiba mais 144 Literatura Infantil tes e atividades que proporcionam uma perspectiva pré-fabricada dos significados do texto. Em relação a essas atividades, Cosson nos diz que: de acordo com o conteúdo, as atividades desenvolvidas oscilam entre dois extremos: a exigência de domíniode informações sobre a literatura e o imperativo de que o importante é que o aluno leia, não importando bem o que, pois a literatura é uma viagem, ou seja, mera fruição. No ensino fundamental predo- minam as interpretações de texto trazidas pelo livro didático, usualmente feitas a partir de textos incompletos, e as atividades extraclasses, constituídas de resumos dos textos, fichas de lei- tura e debates em sala de aula, cujo objetivo maior é recontar a história lida […]. Isso quando a atividade […] não consiste sim- plesmente na leitura do livro, sem nenhuma forma de resposta do aluno ao texto lido. (COSSON, 2009, p. 22) Percebe-se, então, que a leitura de livros literários acaba receben- do pouca intenção pedagógica, tendo como atividades perguntas que levam o aluno a realizar somente uma confirmação das informações lidas, sem despertar interesse em debate ou na própria leitura. Tudo isso são barreiras a serem vencidas, mas que não são impossí- veis e nem tão difíceis assim. Para podermos estabelecer um trabalho efetivo, que leve em consideração a produção e a reconstrução das palavras e do mundo das ideias, precisamos repensar primeiro nossos hábitos de leitura, pois, sem exemplo, não há melhorias. Em seguida, procurar sempre a evolução do trabalho pedagógico, com o cuidado de levar em consideração o que se espera da literatura na escola. Não podemos confundir o papel da literatura infantil com o que é esperado para o trabalho com ela na escola. Seu papel está posto en- quanto desenvolvimento e formação do ser humano, contato com a di- versidade e forma de obtenção de conhecimento e prazer, entre outros. Já o que se espera da literatura na escola nos é dado pela BNCC. Dessa forma, o ensino de literatura na educação infantil deve le- var em conta o desenvolvimento da imaginação, o gosto pela leitura, a ampliação do conhecimento de mundo, a compreensão da escrita enquanto sistema de comunicação e a participação do aluno na cultu- ral oral. Portanto, trabalhar literatura infantil na escola não é apenas ler, mas ler visando ao desenvolvimento do aluno enquanto leitor e produtor de textos. Trabalho pedagógico com literatura infantil 145 Para o ensino fundamental, em seus anos iniciais, o ensino literário solicita que o professor trabalhe a reconstrução e a reflexão a respeito de como o texto é produzido e recebido, realizando a reconstrução da textualidade, da organização e da relação de suas partes, assim como da progressão dos temas. Além disso, é preciso levar o aluno a com- preender que os textos dialogam entre si, refletindo criticamente sobre os temas e sobre as informações lidas, para melhor entendimento dos efeitos de sentido produzidos pelo conteúdo e pela forma. Por fim, não podemos esquecer que ensinar a ler literatura é também ensinar es- tratégias de leitura para promover adesão do aluno às práticas leitoras. A esse respeito, Cosson relata que: falta a uns e outros uma maneira de ensinar que, rompendo o círculo da reprodução ou da permissividade, permita que a lei- tura literária seja exercida sem o abandono do prazer, mas com o compromisso de conhecimento que todo saber exige. Nesse caso é fundamental que se coloque como centro das práticas li- terárias na escola a leitura efetiva dos textos, e não as informa- ções das disciplinas que ajudam a constituir essas leituras, tais como a crítica, a teoria ou a história literária. Essa leitura tam- bém não pode ser feita de forma assistemática e em nome de um prazer absoluto de ler. Ao contrário, é fundamental que seja organizada segundo os objetivos da formação do aluno, com- preendendo que a literatura tem um papel a cumprir no âmbito escolar. (2009, p. 23) Portanto, o ensino de literatura deve considerar os objetivos pe- dagógicos estabelecidos para a área sem deixar de lado o prazer de ler. Logo, as atividades precisam ser mais estimulantes e, ao mesmo tempo, esclarecedoras a respeito do fazer literário e das informações contidas na superfície e nas entrelinhas do texto. Segundo o autor, a análise literária é necessária, uma vez que pro- move o reconhecimento da literatura enquanto processo comunicativo, o qual convida o leitor a explorar a obra por diferentes ângulos. Assim, “é só quando esse intenso processo de interação se efetiva que se pode verdadeiramente falar em leitura literária” (COSSON, 2009, p. 29). O primeiro passo no trabalho com a literatura em sala de aula diz respeito à escolha dos livros que serão trabalhados. Embora os livros passem, primeiramente, por um crivo para serem adquiridos nas es- colas públicas, podemos dizer que o elemento central nessa escolha Uma boa dica para saber como trabalhar melhor a leitura é o livro Estratégias de leitura. Essa obra traz atividades e níveis de leitura a serem desenvol- vidos com os alunos. SOLÉ, I. Porto Alegre: Penso, 1998. Livro 146 Literatura Infantil ainda é o professor. É essa figura que escolhe as obras a serem lidas e como serão realizadas as atividades. Esse papel, porém, precisa ir se diluindo aos poucos, com o avanço das séries escolares; isso porque é de intenção do próprio professor que os alunos possam começar a selecionar as obras a serem lidas desde cedo. Logo, no cenário em que o professor exerce o papel de mediador da leitura, irão se sobressair as obras de conhecimento dos docentes. Obras lidas em seu tempo enquanto estudante tendem a re- tornar como indicação de leitura. Dentro da literatura infantil, é necessário mais do que indicações de obras conhecidas, especialmente porque o mercado tem se aquecido ao longo dos anos com lançamentos de ótima qualidade. Mas, tam- bém, não se pode deixar de fora obras reconhecidas e com grande va- lor estético. Então, como o professor pode selecionar uma obra? De acordo com Cosson, há três formas de seleção de obras literárias para a sala de aula: o cânone, o contemporâneo e o plural. Quadro 1 Formas de seleção de obras literárias pelo professor Cânone Contemporâneo Plural Herança e identidade cultural Seleção de diversas linguagens Segue recomendações oficiais e teóricas Possui essência não questionável Temas diversos Quebra hierarquias impostas pela crítica Preconceitos e visão única da realidade Proximidade temporal entre autor e leitor Leitura como prática democrática Fonte: Adaptado de Cosson, 2009, p. 33-34. Em relação ao cânone, durante um longo período, nós mesmos tive- mos acesso quase exclusivo somente a obras consagradas em sala de aula. Afinal, autores como José de Alencar e Machado de Assis guardam nossa identidade cultural e não os ler seria também alienar o aluno de nosso passado literário. Porém, essa leitura precisa de criticidade, não é porque são cânones que não trazem em si preconceito e exclusão. Se por um lado o cânone coloca a identidade literária brasileira, por outro, ele coloca apenas uma parte dessa identidade em cena. Tente se lembrar de todos os livros canônicos da literatura brasileira e mundial que você leu. Faça uma lista e, se precisar, pesquise sobre os autores e suas vidas, de forma breve. Depois disso, reflita sobre as caracterís- ticas desses autores. Eles eram homens ou mulheres? Brancos, negros ou indígenas? Ricos ou pobres? Cultos ou iletrados? A que conclusões você chega olhando para essa lista? Desafio O poeta Sérvio Vaz é, hoje, reconhecido como um grande representante da literatura marginal brasileira. Ele é poeta da periferia e criador de movimentos culturais para a população das comunidades e para as minorias. Para saber mais sobre esse movimento, assista ao vídeo Literatura marginal na década de 1970 e nos dias de hoje, produzido pela TV Cultura e publicado pelo canal tvbrasil. Disponível em: http://youtu. be/2_35S2kUNro. Acesso em: 18 jun. 2020. Além disso, não deixe de conferir o poema Novos dias, de Sérgio Vaz, afinal, ler poemas é contar histórias. Disponível em: http://youtu.be/ oEr3U3hkLR0. Acesso em: 18 jun. 2020. Saiba mais http://youtu.be/2_35S2kUNrohttp://youtu.be/2_35S2kUNro http://youtu.be/oEr3U3hkLR0 http://youtu.be/oEr3U3hkLR0 Trabalho pedagógico com literatura infantil 147 São obras escritas por homens brancos e que, em sua maioria, perpe- tuam exclusões presentes à sua época. Não é porque havia preconcei- to e exclusão à época da construção de tais obras que não devemos questioná-las; na verdade, é o contrário. Ler os cânones também significa questionar onde estão as autoras mulheres, onde estão os autores negros, os indígenas, os imigrantes, os autores LGBT e os excluídos dos grandes centros urbanos e de classes menos favorecidas. Hoje, temos acesso a essa crítica e a obras que dão voz a esses grupos, mas não temos espaço para esses autores nos câ- nones. Então, precisamos lê-los, sim, mas com a certeza de que se algo se tornou cânone, é porque outras obras foram deixadas de lado. As obras contemporâneas são aquelas que estão em consonância com o tempo histórico daquele que a lê. São as obras novas no merca- do e, aqui, Cosson (2009) faz uma distinção muito importante. O con- temporâneo tem a ver com as obras que são escritas e publicadas no mesmo tempo que o leitor, mas que, por vezes, não possuem sentido para ele. Já as obras atuais são aquelas que possuem significado para o leitor em seu tempo, independentemente de quando foram escritas. Dessa forma, podemos ter uma obra recém-lançada que não toca- rá os leitores tanto quanto uma obra como 1984, escrita por George Orwell e publicada em 1949. Esse livro relata uma sociedade distópica 1 , em que prevalecem a vigilância sempre onipresente e a manipulação das informações. Na sociedade retratada, um ditador governa mani- pulando as informações, para que não haja pensamentos negativos, e controlando os jornais, de modo a alterar a percepção dos fatos histó- ricos, chegando a modificar, inclusive, a língua da população. Você acha que se parece com o que acontece em alguns lugares no mundo hoje? Livro Obras envolvendo distopias são indicações interessantes para a reflexão sobre a possibilidade de elas serem reproduzidas no mundo real. O livro O conto da Aia, que ganhou, inclusive, um seriado tele- visivo, é uma das obras mais premiadas de todos os tempos. Nele, o governo teocrático e autoritário subjuga as mulheres à procriação em um mundo com baixas taxas de natalidade. ATWOOD, M. São Paulo: Rocco, 2017. A escritora mineira Carolina Maria de Jesus escreveu uma obra-prima em 1960. Quarto de despejo é a prova de como precisamos rever o que é o cânone. Mulher, negra e moradora da favela, a autora teve mais de 1 milhão de obras vendidas no país, e sua obra foi traduzida para pelo menos 14 línguas. Saiba mais sobre ela no vídeo Quem foi Carolina de Jesus?, publicado pelo Canal Curta!. Disponível em: http://youtu. be/6P_q9O3VtIU. Acesso em: 18 jun. 2020. Vídeo Uma distopia é quando o universo ficcional impõe grandes desafios aos personagens por meio de um governo autoritário, ditatorial e opressor. Há muitos filmes e livros que exploram esse assunto, especialmente por ele não ser assim tão impossível de acontecer em nossa realidade. Normalmente, são livros para jovens ou adultos, por necessitar de maior reflexão crítica e fluidez na leitura. 1 http://youtu.be/6P_q9O3VtIU http://youtu.be/6P_q9O3VtIU 148 Literatura Infantil A seleção plural prevê todas essas exclusões, produzindo uma leitu- ra crítica e democrática, com diversidade de obras, gêneros e autores, possibilitando grande gama de influências, sem a obrigatoriedade de seguir a tradição ou buscar o valor estético. Sendo assim, promove to- tal liberdade de escolha. Porém, esta requer responsabilidades, para a qual, muitas vezes, o professor não está preparado, exatamente por não ser ele mesmo um leitor assíduo, com uma formação inicial sem direção para tal atividade. Logo, Cosson (2009) chega à conclusão de que a melhor maneira de selecionar obras é combinar de certo modo as três formas de sele- ção, entendendo os processos de construção e de recepção dos textos quando se fala de cânone, além de identificar a diversidade de temas, gêneros e autores a serviço de uma leitura democrática. Por fim, to- das as obras selecionadas devem levar em consideração o princípio da atualidade para o leitor, pois temas que tratem do cotidiano dos alunos engajam os sujeitos na leitura. Outro critério que deve fundamentar a escolha do professor é o equilíbrio entre o conhecido e o desconhecido, partindo de uma leitura simples para outra complexa, afinal, “é assim que tem lugar na escola o novo e o velho, o trivial e o estético, o simples e o complexo” (COSSON, 2009, p. 36). Passada a seleção das obras, o professor deve adequar o méto- do de ensino às características de sua turma. Por essa razão, realizar avaliações diagnósticas é tão importante; estas podem ser feitas por observação, debate ou tarefa formal. Quaisquer que sejam as especificidades da turma, o professor deve estimular o interesse inicial na leitura utilizando algum elemento da obra que atraia o olhar do leitor, dando sequência com atividades e estratégias previamente selecionadas. Esse é o momento de encantar, seja com a contação de histórias ou com o incentivo a cada parágrafo. Na sequência, as atividades que serão realizadas deverão estar em contato com a realidade do aluno, não somente levando-o a identificar as informações no texto de forma mecânica e compreendendo o texto literário apenas como veículo para alfabetização. É preciso engajar o aluno na construção de atividades motivadoras e desafiadoras, para que ele continue construindo seu conhecimento na arte literária. Outra dica interessante é a série Black Mirror. Nela, por meio de histórias in- dependentes entre si, são apresentadas histórias distópicas envolvendo a tecnologia das mídias digitais, com o intuito de retratar as possibilidades de um futuro sombrio para a humanidade. Criação: Charlie Brooker. Reino Unido: Zeppotron/House of Tomorrow, 2011-2019. Série Relate o que você compreen- deu sobre a seleção de livros literários. Atividade 1 Trabalho pedagógico com literatura infantil 149 Nesse sentido, de acordo com Andrade, o professor: deve adotar um método de ensino da literatura que proporcio- ne uma relação íntima entre as crianças e o universo literário. Assim, a escola fará seu papel de formação do leitor livre, lin- guisticamente competente, crítico, para que, no futuro, consiga ler muitos livros. Para isso, é necessário que o professor reavalie suas práticas de ensino, repense a dinâmica das aulas, o que en- tende por literatura, além de avaliar a importância da literatura para a construção da personalidade do aprendiz. A escola e o aluno devem entender que o ato de ler constitui uma relação íntima e profunda, e que a literatura provoca no leitor ativo um processo de transformação. (2014, p. 156) Portanto, o professor precisa, antes, reavaliar qual é o valor dado à literatura infantil na escola para que ele próprio possa se engajar em uma metodologia que motive os alunos, criando uma ligação afetiva com a leitura literária. Por fim, o seu papel passa pelo incentivo à atribuição de sentidos ao texto e em relacionar esses sentidos com o mundo do pequeno leitor, em um constante refletir e motivar. 6.2 Contação de história Vídeo Pode parecer estranho utilizar essa palavra contação, uma vez que ela não consta nos dicionários; mas é um termo que vem sendo cada vez mais utilizado. Originada do verbo contar, significa exatamente o ato de contar, de narrar histórias, mas com a intenção de envolver os ouvintes e promover momentos coletivos de leitura. Com isso, percebemos a importância da contação de histórias na sala de aula e em outros espaços. Aliás, essa é uma prática empregada por espaços promotores de cul- tura, bibliotecas, saraus, e até mesmo locais como hospitais infantis. Nesse ponto, não cremos que seja necessário aprofundar o porquê de contar histórias ao público infantil,mas podemos relembrar que esse ato cria um vínculo maior entre o ouvinte e a literatura, esti- mulando o desenvolvimento cognitivo e emocional, instruindo e inserindo a criança no mundo das pala- Desafio Muitos lugares promovem momentos de contação de histórias. Busque na internet e em locais culturais, como bibliotecas, museus, casas de cultura e centros comuni- tários, eventos que contem histórias para as crianças. Ao observar uma contadora, você também aprende a contar histórias! 150 Literatura Infantil vras e gerando um momento de diversão que ajudará a consolidar o gosto por leitura e literatura. A contação de histórias se insere no campo das narrativas orais, tão ligadas à própria fundação da literatura infantil. Narrativas são necessárias desde sempre, seja para alertar sobre os perigos pelos quais o homem pré-histórico passou ou a sua sobrevivência, seja para perpe- tuar valores modernos. Por isso mesmo, a contação de histórias infantis faz parte de uma experiência popular que valoriza o folclore, os contos, as parlendas, os versos e o som como forma de comunicação e de apro- ximação afetiva do outro, como relata o pesquisador Nilo Souza. Narro porque só é possível manter-se em harmonia com as di- ferenças, quando me aproximo afetivamente do outro. Sem nar- rativa que o revele, o ser humano é uma porta fechada para a alteridade. Narro porque tenho a necessidade de me mostrar e saber do outro. Quem narra convida o ouvinte a se revelar tam- bém. (SOUZA, 2015, p. 291) A necessidade de narrar oralmente acompanha o desenvolvimento da espécie humana e estabelece laços para a compreensão de que o outro é diferente de mim e, mesmo assim, impacta a minha formação. Narrar é revelar e ter o outro revelado. Vivemos, hoje, em um mundo de imagens e cada vez mais indivi- dualista. As telas de celulares e tablets encobrem nosso olhar e nossa percepção do outro. A narrativa oral resgata o vínculo perdido entre as pessoas e, também, a poeticidade da vida cotidiana. Segundo Souza (2015), é no ato de narrar que saímos do individual para o coletivo, co- locando nossa marca em uma experiência performática. Aliás, de acordo com o autor, narrar oralmente é performar, ence- nar para reviver memórias e criar elos. Assim, em se tratando de narrativas orais, é preciso dizer que elas en- volvem mais do que um estudo sobre a cultura, as crenças, a linguagem e a mentalidade de uma dada sociedade: a oralidade envolve uma dramaturgia, ou seja, uma performance. É na per- formance que se encontram os elos entre o leitor-ouvinte e o passado revivido. O ato de narrar se estabelece na comunhão entre os elementos linguísticos (segmentais e suprassegmentais) e extralinguísticos (gestos, expressões faciais etc.). A performan- ce do narrador revela as estratégias para a atração. O objetivo (consciente ou inconsciente) das estratégias é proporcionar de tal forma a aproximação do espectador com o tempo da narrativa Trabalho pedagógico com literatura infantil 151 que possa transmitir uma experiência não vivida. No momen- to em que o sujeito deixa de ver o narrador e passa a somente vislumbrar a história, então a narrativa passa a ser concebida. (SOUZA, 2015, p. 289) Logo, contar uma história envolve mais do que a mera leitura me- cânica; envolve voz, corpo e atração. Então, veremos agora como criar esse momento de experiência entre conhecimento e ludicidade. Para contar uma história, você pode se basear em algumas dicas, adequando-as ao seu contexto. Veja-as a seguir. Escolhendo a obra: selecione-a de acordo com os critérios de atualidade, diversidade e qualidade, além de levar em consideração o seu gosto e o das crianças. LEIA E RELEIA Para contar, é preciso saber a história muito bem; assim; você terá maior liberdade para criar na hora da narração. CUIDADO Tenha atenção com as palavras empregadas na hora de contar. Nem sempre nos lembramos de todas as palavras e, às vezes, falamos o conteúdo com nossa própria fala, mas é preciso tomar cuidado com as expressões empregadas nesse reconto. IMAGINE Dê vida aos personagens, ao cenário, aos acontecimentos; sinta-se na história! Se você não se sentir, como fará os alunos se sentirem nesse universo literário? OLHE Ao contar a história, olhe nos olhos das crianças, para envolvê-las. TREINE Crie diferentes vozes para as personagens e para o narrador. Lembre: quanto menor a criança for, mais teatralizada a contação deve ser. Você pode treinar contando para alguém conhecido. LIBERTE-SE Na hora de contar, você já planejou. Então, solte-se e seja você, para seduzir os ouvintes para a leitura. 1 4 2 5 3 6 Agora, além dessas dicas, para um bom momento de contação de histórias, alguns preparos e cuidados são necessários. O primeiro deles é o planejamento. Pergunte-se sempre qual é o objetivo a ser alcança- do com a leitura daquela obra e qual é a melhor maneira de atingi-lo. Outro desses cuidados são os combinados, que deverão ser feitos com a turma ou o grupo antes de iniciar a contação. As regras podem ser tanto relacionadas à convivência naquele momento (não pertur- Como você vê a atividade de contação de histórias? Você crê que sejam necessários planejamento e técnicas ou a espontaneidade e a imprevisi- bilidade são os maiores aliados nessa hora? Atividade 2 152 Literatura Infantil bar o colega, levantar a mão para falar, etc.) quanto relacionadas ao próprio mistério da leitura (por exemplo: não se deve falar alto, senão o lobo os achará). Assim, é preciso criar um clima inicial dependendo da temática da história, se de suspense ou fantasia, ou, então, uma lenda ou narrativa de pistas. Para ajudar, é preciso pensar o cenário para a contação de histórias levando em consideração o espaço e os materiais disponíveis para aquela história, além de utilizar um figurino, ligando-se à história ou criando uma imagem do narrador. Se houver disponibilidade de tempo e de materiais, é possível pre- parar a sala toda para receber os alunos; caso contrário, pode-se pen- sar em cenários mais enxutos, que utilizem um pequeno espaço, como um baú ou um cantinho de leitura. Algo muito importante é ter os ma- teriais bem planejados e todos à mão para que a hora de contar seja fluida, sem imprevistos. Por isso, é sempre bom treinar antes. No espaço, deve-se cuidar também para que haja boa iluminação e conforto, além de prestar atenção no nível de ruído e distrações, tudo para manter a atenção do seu público, visto que crianças pequenas po- dem se distrair facilmente. Aliás, o tempo também deve ser planejado de acordo com a faixa etária e a responsividade das crianças, levando em consideração as possíveis participações dos ouvintes. Em relação às participações das crianças, combine anteriormente se podem ou não interferir (de preferência possibilite essa experiência, mas com algumas regras) e utilize as participações como auxílio na hora de contar, inserindo as dúvidas delas em sua narração, talvez envolvendo o grupo na resposta das questões levantadas, enriquecendo seu trabalho. A história deve ter um clímax para onde a contação deve se dirigir, captando a atenção das crianças até o ápice e o desfecho da história. Este também pede planejamento, pois o fechamento e a conversa ou as atividades posteriores são importantes. Aliás, a forma de contar é elemento central na contação de histórias. É preciso demonstrar en- tusiasmo e, ao mesmo tempo, uma interpretação condizente com os acontecimentos narrados, sempre utilizando uma linguagem clara com um bom ritmo: nem lento e nem rápido demais. Ao terminar a história, é interessante, especialmente para as crian- ças bem pequenas, que haja um sinalizador de término; pode ser um “e eles viveram felizes para sempre” ou um gancho, como “mas essa é Para os mais ousados (e com recursos disponíveis), que tal se inspirar no que fez um professor de uma escola nos Estados Unidos? Leia a matéria Professor transformasala de aula em Hogwarts – e fica incrível!, publicado pelo site Garotas Geek, e veja como o professor transformou o espaço no cenário de Hogwarts, a escola de Harry Potter. Disponível em: https://tinyurl. com/yapr2us6. Acesso em: 18 jun. 2020. Curiosidade Trabalho pedagógico com literatura infantil 153 uma outra história”. De toda forma, não há obrigatoriedade de seguir à risca as palavras do livro, você pode criar seu estilo de contar essa história, para fazer uma mediação entre o livro e o ouvinte. Depois disso, vem o debate! Mas não pense que é hora de dar explicações sobre a história. Ao contrário, é hora de ouvi-las! Acolha as interpretações dos alunos fazendo questionamentos, tanto sobre os fatos quanto sobre suas emoções e impressões. Certo, mas você pode estar se perguntando: “e como eu conto his- tórias de fato?”. Vamos ver, a seguir, algumas técnicas que você poderá treinar e aperfeiçoar. Primeiro, você deve decidir se quer contar a história na íntegra, como está no livro, ou se deseja fazer uma adaptação, de uma obra grande, por exemplo. Uma vez decidido isso, é hora de pensar nas for- mas de contar. Veja a seguir. 1. Leitura pública Com a utilização somente do livro, você pode realizar uma leitura pública, com entonação, mas não necessariamente com uma dramati- zação. Um exemplo disso pode ser encontrado no vídeo Leitura pública: o velho que assustava o medo. Você pode conferir essa leitura no link: http://youtu.be/uDm2hV2Y61o. As leituras públicas são muito utilizadas pelos próprios autores, para divulgar suas obras e seus lançamentos em livrarias e feiras do livro. Você pode utilizar essa técnica especialmente com crianças maio- res, que tenham maior atenção auditiva e não necessitem tanto de ou- tros suportes para ajudar na compreensão. 2. Leitura dramatizada Nessa leitura, você poderá utilizar elementos para representar per- sonagens ou cenas, mas não é obrigatório. O tom aqui é dado por di- ferentes vozes e pelo uso do corpo para encenar os personagens. Você pode conferir um exemplo no canal do blog Leiturinha, pelo link: http:// youtu.be/vsflCNe6ECM. 3. Leitura utilizando as imagens do livro Usando apenas o livro como suporte, você pode contar a história e mediar o contato dos alunos com o livro e com as suas imagens, traba- lhando, assim, a concepção da linguagem escrita e visual. Veja um exem- plo no vídeo Jujubalândia (Mariana Caltabiano), pelo link: http://youtu.be/ ZbDeOzGQJF4. O canal Nova Escola preparou o vídeo Como trabalhar a leitura dramática na sala de aula, com a explicação da professora Yara Miguel, para apresentar o modo adequado de trabalhar esse tipo de leitura com os alunos. Disponível em: http://youtu.be/ PDHJlv81qXg. Acesso em: 18 jun. 2020. Vídeo Selecione uma história de sua preferência, bem como uma das formas de contar, e tente preparar uma contação para seus amigos ou familiares. Assim, você começa a treinar para ser contador ou contadora de histórias. Desafio http://youtu.be/uDm2hV2Y61o http://youtu.be/vsflCNe6ECM http://youtu.be/vsflCNe6ECM http://youtu.be/ZbDeOzGQJF4 http://youtu.be/ZbDeOzGQJF4 http://youtu.be/PDHJlv81qXg http://youtu.be/PDHJlv81qXg 154 Literatura Infantil 4. Utilização de varal de histórias Ao selecionar a história, você pode imprimi-la, além de procurar imagens, coloridas e em bom tamanho, que correspondam aos per- sonagens e cenários, plastificando-as para que durem. Depois disso, providencie prendedores ou grampos e um bom comprimento de bar- bante. Pendure as imagens na ordem em que vai contar a história e utilize o varal como suporte para esse momento. 5. Teatro de sombras O teatro de sombras cria um clima mágico em sala de aula e prende a atenção das crianças. Atrás de uma tela que pode ser preparada com materiais reciclados, os personagens de papel dão vida à história em um jogo de luz e sombra. Assista ao vídeo Os três porquinhos: teatro de sombras, no link: http://youtu.be/pMX24VAc9cs. 6. Teatro de fantoches Aqui, você pode usar os fantoches de mão ou os dedoches, que são os fantoches de dedo. Personagens são sempre ótimos para contar a história, assim, as crianças mantêm o foco nos bonecos e também na sua voz. Em Teatro com caixa de sapato #PapelEmTudo | DIY - Faça você mesmo, Viviane Merlim ensina como montar um cenário com de- doches para contar suas histórias preferidas. Assista ao vídeo no link: http://youtu.be/f1y5Tyh94Sw. 7. Contação com dobraduras Para quem se arrisca a fazer (ou a aprender a fazer) dobraduras, essa é uma ótima opção, que pode engajar os alunos na hora da con- tação de histórias. Dependendo da idade deles, você pode pedir que façam a dobradura durante a narração, ou após, para poder auxiliá-los. Em Contação de história: a folha que queria ser um barquinho, no canal de Kátia Pecand, veja um belo exemplo. Assista ao vídeo no link: http:// youtu.be/x5MgGanLtwM. 8. Utilização de desenhos Outra opção bem legal para pedir a participação dos alunos é criar um momento para contar histórias aliada a desenhos. Assim como na dobradura, você pode desenhar antes e, depois, pedir que eles dese- nhem suas impressões da história; ou, então, solicitar que desenhem junto com você. Veja um exemplo no vídeo Bichinho preferido! Com can- tiga, no link: https://www.youtube.com/watch?v=MaA4zZkvKAk&t=9s. A matéria Como fazer um varal de histórias traz dicas para um varal de histórias que incremen- tará sua hora de narração. Disponível em: https://tinyurl. com/yajvxapy. Acesso em: 18 jun. 2020. Dica Assista ao vídeo DIY como fazer Teatro de Sombras e veja dicas para o seu teatro de sombras. Disponível em: http://youtu. be/atf_b-hlFsE. Acesso em: 18 jun. 2020. Dica Você pode ver mais ideias sobre como usar fantoches no vídeo Como utilizar fantoches em sala de aula ou contação de história. Disponível em: http://youtu.be/ uNhUGsnxNhw. Acesso em: 18 jun. 2020. Dica A contadora de histórias Kátia Pecand mostra outra forma de se contar histórias com dobraduras no vídeo Dobradura com história: final encantador. Disponível em: http://youtu.be/ EAOVkprvkUw. Acesso em: 18 jun. 2020. Dica Às vezes, ficamos com vergonha de desenhar junto com as crianças. Para resolver isso, veja os cursos básicos de desenho da Faber-Castell. Disponível em: https://cursos. faber-castell.com.br/. Acesso em: 18 jun. 2020. Dica http://youtu.be/pMX24VAc9cs http://youtu.be/f1y5Tyh94Sw http://youtu.be/x5MgGanLtwM http://youtu.be/x5MgGanLtwM https://www.youtube.com/watch?v=MaA4zZkvKAk&t=9s http://youtu.be/atf_b-hlFsE http://youtu.be/atf_b-hlFsE http://youtu.be/uNhUGsnxNhw http://youtu.be/uNhUGsnxNhw http://youtu.be/EAOVkprvkUw http://youtu.be/EAOVkprvkUw https://cursos.faber-castell.com.br/ https://cursos.faber-castell.com.br/ Trabalho pedagógico com literatura infantil 155 9. Caixa de histórias Você pode usar um recurso que causa mistério em torno da histó- ria, como uma caixa preparada para narrar a obra selecionada. Den- tro dela, você pode inserir os personagens e os objetos da história e ir tirando um a um quando for contá-la. Também, há a possibilidade de você ter uma caixa grande com todos os objetos das categorias an- teriores, como um baú de contação de histórias; assim, você pode ir mesclando as técnicas. Para ver como produzir uma caixa de histórias, acesse o vídeo Caixa de histórias – Oficina do varal de histórias, no link: http://youtu.be/zTtfBqCbEYk. Essas foram algumas técnicas, mas você pode combiná-las, modifi- cá-las e inventar as suas técnicas. Vale lembrar, apenas, que quem faz a mágica acontecer é você. Então, treine e use a criatividade para motivar o público infantil! Ah! E não se esqueça: sem a leitura do professor, não há como motivar o aluno! Um livro de cabeceira para quem quer contar histórias é O ofício de contador de histórias: perguntas e respostas, exercícios práticos e um repertório para encantar. Nessa obra, você encontrará muitas atividades que podem ser levadas para a salade aula e para outros espaços de contação de histórias. MATOS, G. A; SORSY, I. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Livro 6.3 Formando o leitor crítico Vídeo Ensinar leitura e literatura não serve apenas à descoberta do código ou ao prazer da leitura, mas também ao desenvolvimento da capaci- dade de julgar informações e utilizá-las de forma crítica. Esse ensina- mento vem desde muito cedo, com o questionamento sobre o que os alunos leram e as relações com outros textos, outras fontes e, também, sobre a interferência da visão de quem escreve. Ao ler este texto, por exemplo, você tem contato com informações de outros autores da área, as quais são passadas para você pela vi- são de quem está aqui escrevendo este livro. Não há neutralidade no discurso, mesmo que tentemos ser o mais neutros possível. Um texto sempre trará algumas características de quem o escreve, seja pela sele- ção dos fatos e dos autores, seja pela forma de escrever e representar suas ideias. Assim, desde pequenas, as crianças podem aprender a refletir sobre quem escreveu, quando isso ocorreu e quais eram os fatores históricos presentes naquele momento, identificando se esses fatores influencia- ram ou não a narrativa. Isso vai sendo realizado de forma progressiva e essa reflexão pode ser inserida nas atividades de debate antes e após http://youtu.be/zTtfBqCbEYk 156 Literatura Infantil a leitura, nas questões para promoção do reconhecimento do texto e prática de escrita ou mesmo em pesquisas. Esse trabalho “vai além da superfície do texto, além do que está explícito, do que está declarado. Uma leitura que mobiliza um sentin- do plural, portanto: que está no texto, que está no leitor, que está no contexto” (ANTUNES, 2009, p. 204). O que Irandé Antunes nos diz é que o trabalho de reflexão da leitura resgata as condições de produção do texto, relacionando-as com as condições de recepção por parte do lei- tor para a plena produção de sentidos. Aos poucos, o leitor aprende a empregar o mesmo raciocínio crítico para seus textos e discursos, sendo capaz de atuar como cidadão e su- jeito em diversas esferas da vida privada e pública. Especialmente hoje, por termos um contexto intrincado, em que as chamadas fake news se propagam rapidamente, como fogo em palha. Embora possamos achar que a literatura esteja desligada de tal fe- nômeno, pense em quantas vezes você recebeu um texto ou um poe- ma atribuído a Fernando Pessoa ou Luís Fernando Veríssimo quando, na verdade, a produção não era de suas autorias. Pode parecer trivial, mas o fato é que refletir em um contexto literário permite que o aluno possa estender o aprendizado a outros gêneros e a outros âmbitos de leitura. Apesar de o combate às fake news estar no escopo da BNCC para os anos finais do ensino fundamental, acreditamos que nunca é cedo demais para promover o debate com alunos que estão cada vez mais cedo ligados na tecnologia. Aliás, nós adultos tendemos a pensar que, por serem tão familiares com a tecnologia, as crianças sabem o que es- tão fazendo. Não é verdade! Elas continuam sendo crianças e precisam desenvolver o raciocínio crítico como em qualquer outra época. Dessa forma, a BNCC, sobre as fake news e a respeito da necessida- de de se combater os discursos de ódio, traz o seguinte: A questão da confiabilidade da informação, da proliferação de fake news, da manipulação de fatos e opiniões tem destaque e muitas das habilidades se relacionam com a comparação e análi- se de notícias em diferentes fontes e mídias, com análise de sites e serviços checadores de notícias e com o exercício da curado- ria, estando previsto o uso de ferramentas digitais de curado- ria. A proliferação do discurso de ódio também é tematizada em todos os anos e habilidades relativas ao trato e respeito com o Você sabe como combater as fake news? Desafie-se e reflita sobre cada notícia que você recebe nas redes sociais. Para saber como reconhecer uma notícia falsa, faça a leitura da matéria Sabe como identificar uma notícia falsa? Siga os 7 passos deste guia, da BBC news Brasil. Disponível em: https://tinyurl. com/yd8zvrzd. Acesso em: 18 jun. 2020. Desafio No ano de 2020, tivemos duas grandes pandemias: uma provocada, de fato, por um vírus, e outra, por uma chuva de informações falsas. A Agência Pública preparou uma notícia exemplificando como muitas notícias falsas sobre a pandemia de COVID-19 influenciaram negativamente o combate à doença. Leia o artigo e reflita sobre quais danos as fake news podem causar à saúde da população e ao sistema político e econômico de um país. Para isso, busque mais informações em fontes confiáveis. Disponível em: https://tinyurl. com/re6nqak. Acesso em: 18 jun. 2020. Artigo https://tinyurl.com/re6nqak https://tinyurl.com/re6nqak Trabalho pedagógico com literatura infantil 157 diferente e com a participação ética e respeitosa em discussões e debates de ideias são consideradas. […] Trata-se de promover uma formação que faça frente a fenômenos como o da pós-ver- dade, o efeito bolha e proliferação de discursos de ódio, que possa promover uma sensibilidade para com os fatos que afe- tam drasticamente a vida de pessoas e prever um trato ético com o debate de ideias. (BRASIL, 2018, p. 134-135) Como visto no trecho, mesmo que o trabalho de checagem dos fatos seja obrigatório para os anos finais, o combate ao discurso de ódio deve ser realizado em todas as séries. Aí está posta também a literatura, a qual deve promover o reconhecimento e o respeito pelas diferenças. O trecho cita também o fenômeno da pós-verdade. Esse fenômeno tem sido tratado por muitos autores e, em termos gerais, significa que fatos reais e objetivos passam a ter menos peso do que informações que apelem para a emoção e para as crenças pessoais, permitindo que as fake news se espalhem com grande facilidade. José Antônio Llorente nos diz que, na pós-verdade, “o objetivo e o racional perdem peso diante do emocional ou da vontade de susten- tar crenças, apesar dos fatos demonstrarem o contrário” (2017, p. 9). Também, podemos ligar a esse conceito as expressões verdade alterna- tiva e notícia fictícia, as quais demonstram o momento em que estamos vivendo, em que não há necessidade de a informação ser verdadeira contanto que ela demonstre aquilo que o leitor acredite. E isso é um grande perigo. Conforme Lúcia Santaella, o que se pode inferir das discussões levadas a cabo sobre o tema é que a falsidade funciona em toda a sua potência propagadora porque as pessoas tendem irrefreavelmente a se recolher den- tro das bolhas de seus preconceitos. Tornam-se, assim, presas fáceis de interesses dos quais não conseguem se dar conta. Por estarem retidas dentro de suas próprias cavernas platônicas tor- nam-se incapazes de furar o bolsão de suas crenças fixas para enxergar algumas clareiras fora delas. (2018, p. 47-48) Se não há mais verdades ou uma realidade objetiva, ficamos à mer- cê de narrativas que podem ser muito perigosas, perpetuando precon- ceitos e destruindo vidas. Aliás, empregamos o termo narrativas porque a maior parte das fake news utilizam uma estrutura narrativa para tocar A Revista Uno de comunicação lançou um volume com diversos artigos sobre o fenômeno da pós-verdade, analisando-o por diversos ângulos. Vale a pena a leitura. Disponível em: https://tinyurl. com/y9knxgaz. Acesso em: 18 jun. 2020. Leitura 158 Literatura Infantil o leitor de forma emocional, da mesma forma que a literatura; isto é, o storytelling, que traduzindo ao pé da letra nada mais é do que a narra- ção/contação de histórias. O storytelling, hoje, é muito utilizado pela publicidade, por palestran- tes e também pela pós-verdade, pois é a arte de contar uma história de forma atraente, que marque o leitor, que o faça comprar aquela ideia. É exatamente o que fazemos quando contamos uma história: tentamos atrair o leitor para o produto texto, seduzindo-o com a forma como contamos. O papel da escola e do professor,portanto, é formar leitores capa- zes de refletir criticamente sobre o que leem, veem e ouvem nas mídias impressas e virtuais, sejam elas de gênero literário ou não. Somente assim nossos alunos conseguirão se tornar cidadãos conscientes do mundo em que habitam e de seu papel na sociedade. E sabemos que cada vez menos conseguimos atingir esse objetivo. Ensinamos leitura, mas que leitura é essa se nossos alunos estão cada vez piores nessa habilidade? Ensinamos as letras, isso sim, mas não necessariamente a leitura do mundo e das ideias por trás das letras. Gênese Andrade aponta que a literatura propicia um leitor capaz de relacionar o que lê com sua própria subjetividade e de elaborar as ideias do texto sem que o outro lhe dê os sentidos. Assim, podemos dizer que o trabalho com a literatura infantil é funda- mental para a contribuição global na formação da criança e sua relação com a alteridade, ou seja, possibilita que ela entre em contato com aquilo que lhe é diferente e estranho, tanto no que se refere ao conteúdo dos textos, que podem abordar diferen- tes situações, realidades e pensamentos, quanto em razão das diversas interpretações que um mesmo texto pode possibilitar. Desse modo, podemos concluir que a literatura é forte instru- mento para a aniquilação de preconceitos e ideias preconcebi- das; ela é fomentadora do espírito crítico e da desalienação do ser. (ANDRADE, 2014, p. 15) Portanto, o combate à desinformação é o combate aos pensamen- tos preconcebidos, que podem carregar em si todo tipo de violências e preconceitos, e a literatura infantil é aliada nessa empreitada. O verbo alienar diz respeito à transferência de algo seu a outra pessoa. Na (des)alienação referida no trecho, percebemos que se alie- nar significa entregar o seu juízo crítico, a sua produção e a sua reflexão Lúcia Santaella é uma pesquisadora da área de Semiótica, discipli- na ligada às áreas de comunicação e literatura. Seu livro A pós-verdade é verdadeira ou falsa? promove discussões acerca do fenômeno da pós-verdade e da en- xurrada de informações na contemporaneidade. Vale a pena a leitura para refletir sobre o mundo em que vivemos. SANTAELLA, L. São Paulo: Estação das Letras, 2018. Livro Trabalho pedagógico com literatura infantil 159 a outro. Logo, ao nos alienarmos, não refletimos mais sobre nosso en- torno; permitimos que o outro o faça por nós, deixando de nos respon- sabilizar pelas informações recebidas e produzidas. Em relação à construção do leitor, Costa cita o estudo do crítico lite- rário mexicano Gabriel Zaid. Este menciona quatro aspectos relevantes sobre o leitor. Entre eles, está a condição de assimilação e difusão do conteúdo lido, ou seja, o que e como o leitor compreende as informa- ções lidas e como as repassa. Assimilar não para permanecer no que já se sabia, mas para pro- duzir energia capaz de dar vida ao cérebro, às inteligências, à sen- sibilidade. Uma adoção indiscriminada do conteúdo dos textos contraria o pensamento atual sobre leitura, que é antes de tudo resultado do embate que o leitor crítico trava com os textos que lê. Dessa troca de porquês e de respostas é que nasce a energia que sustentará argumentos e critérios. (COSTA, 2013, p.112) Assim, o ato de refletir sobre o que se lê é um alimento para a in- teligência. Sem reflexão, permanecemos sempre na situação anterior à leitura: sem adquirir, de fato, o conhecimento. Só conseguimos nos tor- nar competentes em dialogar, em expôr ideias e em selecionar obras de qualidade quando adquirimos a competência de sermos leitores críticos. Então, não temos como não lembrar do projeto de Paulo Freire para a formação de alunos críticos partindo da leitura. Para Yunes (2013, p. 6), “Paulo Freire, refletindo sobre a experiência considerou que os sujeitos se constroem no uso das linguagens que passam a dominar, em função do contexto histórico percebido criticamente”. Desse modo, ler – realmente ler, não apenas decodificar – significa perceber todo o contexto sócio-histórico em que crescemos, nos desenvolvemos e for- mamos nossas crenças e nossos valores. Isso nos permite compreen- der exatamente que nossas crenças pertenceram a alguém, antes de nós mesmos as tomarmos como nossas. Para que isso aconteça em um cenário escolar com crianças que ain- da estão desenvolvendo essa habilidade, é necessário que o professor compreenda esse processo e possibilite práticas que promovam a par- ticipação ativa e crítica dos alunos. Não é fornecer ao aluno todos os significados prontos, pois aí estaremos passando somente nossa visão a respeito das leituras; é promover um espaço de diálogo em que o aluno se sinta confortável para se lançar na reflexão. 160 Literatura Infantil Esse espaço de diálogo deve ser seguro o suficiente para que o alu- no não se sinta angustiado ou com medo de expor suas ideias, caso ele perceba que o professor tem opinião diferente ou espera uma única resposta. Ao mesmo tempo, deve ser um espaço que promova um mo- vimento de saída da zona de conforto. Como muitos professores ainda preferem ensinar os sentidos do texto de acordo com o que pensam ser certo, os estudantes passam a professar essa prática e também se sentem incomodados quando são interpelados a deixarem essa zona de conforto e ousarem refletir para além de ideias preconcebidas. Por esse motivo, os professores precisam caminhar sempre em direção ao objetivo de se tornarem mediadores. Não devem ser cas- tradores nem mesmo liberais demais, sem uma condução clara das atividades, mas devem dividir o poder e as descobertas com o aluno, para que, aos poucos, este possa “caminhar com as próprias pernas”, ou melhor, raciocinar com as próprias capacidades cognitivas. A psicanálise possui uma crença de que uma boa mãe deve se tor- nar, aos poucos, desnecessária. Isso porque a criança terá aprendido com ela como ser autônoma. Dessa forma devemos ver, também, o papel do professor, que, ao longo do tempo, deve se tornar “desne- cessário” ao aluno, entendendo ter ajudado a formar um ser humano crítico que, em breve, não mais precisará da mão do tutor. E isso é bom, pois significa que fomos capazes de fazer um bom trabalho. Assim, par- timos para tantos outros alunos que ainda virão. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com este capítulo, tivemos a intenção de “sacudir a poeira” – pelo me- nos um pouco dela – das práticas educacionais focadas apenas no papel de um aluno passivo. Cremos que uma boa prática pedagógica é aquela capaz de formar leitores e seres humanos críticos, capazes de refletir sobre sua subjetividade e como ela se constrói em relação ao mundo que a cerca. Não pare por aqui, continue buscando informações (e de fontes con- fiáveis)! Busque sempre julgar as informações que recebe, refletindo so- bre o lugar delas no momento social, político e econômico em que foram produzidas. E mais: libere a criatividade, para motivar os alunos a se en- cantarem com a literatura! Explique, com suas palavras, o que você entende sobre o papel do professor se tornar desnecessário aos poucos. Atividade 3 Trabalho pedagógico com literatura infantil 161 REFERÊNCIAS ANDRADE, G. (Org.). Literatura infantil. São Paulo: Pearson, 2014. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: http:// basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 18 jun. 2020. COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009. COSTA, M. M. da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: InterSaberes, 2013. LLORENTE, J. A. A era da pós-verdade: realidade versus percepção. Revista Uno, São Paulo, n. 27, p. 9, mar. 2017. Disponível em: https://www.revista-uno.com.br/wp-content/ uploads/2017/03/UNO_27_BR_baja.pdf. Acesso em: 18 jun. 2020. PRIETO, H. Lobo de estimação. Porto Alegre: Editora Projeto, 2009. SANTAELLA, L. A pós-verdade é verdadeira ou falsa? São Paulo: Estação das Letras, 2018. SOUZA, N. C. P. de. As narrativas orais ea formação do leitor. Boitatá, Londrina, v. 10, n. 20, p. 286-300, jul-dez. 2015. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/ boitata/article/view/31490/22056. Acesso em: 18 jun. 2020. YUNES, E. L. M. Um ensaio para pensar a leitura. Verbo de Minas, Juiz de Fora, v. 14, n. 23, p. 5-18, jan/jul. 2013. Disponível em: https://seer.cesjf.br/index.php/verboDeMinas/article/ view/417/307. Acesso em: 18 jun. 2020. GABARITO 1. A resposta trará reflexões subjetivas, mas deve conter as três possibilidades de sele- ção de livros e o entendimento de que a melhor forma de seleção é unir as três pos- síveis formas, sempre levando em consideração a atualidade das obras, a progressão dos temas e as especificidades da turma. 2. Mesmo que a espontaneidade seja fundamental para contar histórias, é preciso plane- jamento para que esse ato possua um objetivo e não seja apenas mais um momento desconexo do currículo. Técnicas são sempre bem-vindas, pois podem explorar mais a fundo os elementos da narrativa e envolver os alunos de diferentes formas. A im- previsibilidade sempre será um elemento passível de acontecer e, para isso, é preciso um planejamento que leve em conta a participação dos alunos, o conforto e a com- preensão da história. 3. O professor tem um papel árduo e belo a cumprir: o de auxiliar na formação do ser humano e do leitor crítico, capaz de refletir sobre o mundo em que vive e sobre as crenças e os valores que professa. Aos poucos, esse mesmo professor não deve mais ser necessário, pois já fez seu papel e atingiu o seu objetivo. O aluno caminhará por si próprio, pois, antes, teve o apoio do professor para construir essa autonomia. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/article/view/31490/22056 http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/boitata/article/view/31490/22056 162 Literatura Infantil 7 Literariedade e análise de obras infantis Você me pediu para eu descobrir o mistério da fuga do coelho. Tenho tentado descobrir do seguinte modo: fico franzindo meu nariz bem depressa. Só para ver se consigo pensar o que um coelho pensa quando franze o nariz. (…) Se você quiser adivinhar o mistério, Paulinho, experimente você mesmo franzir o nariz para ver se dá certo. É capaz de você descobrir a solução, porque menino e menina entendem mais de coelho do que pai e mãe. Quando você descobrir, você me conta. Eu é que não vou mais franzir meu nariz, porque já estou cansada, meu bem, de só comer cenoura. Clarice Lispector, em O mistério do coelho pensante De nada adiantaria trabalharmos sobre todos os ângulos da literatura e deixarmos de lado a prática em sala de aula. Assim, este capítulo traz as principais categorias de análise de obras lite- rárias para a educação infantil e o ensino fundamental anos iniciais, exemplificando por meio de obras diversas. Além disso, trazemos roteiros para trabalho com alguns livros e algumas histórias infantis para que você possa utilizá-los em sua prática profissional em sala de aula. Esperamos que você aproveite! Bons estudos! 7.1 Literariedade na literatura infantil Vídeo Afinal, o que faz o texto literário ser entendido como literatura? São muitas as discussões nesse sentido, mas aqui vamos tentar desmistifi- car essa área como algo muito aquém da linguagem cotidiana, buscan- do os elementos que a constituem. Dessa forma, vejamos como Antoine Compagnon reflete sobre a constituição e o papel da literatura. É interessante notar que o crítico li- terário aponta a literatura como uma forma capaz de ter um papel tan- to de confirmação quanto de dissensão. Isto é, a literatura pode servir à Literariedade e análise de obras infantis 163 ideologia dominante, confirmando os valores da classe que comanda e, ao mesmo tempo, servir de esclarecimento e ruptura com essa mesma ideologia. Segundo ele: se a literatura pode ser vista como contribuição à ideologia domi- nante, “aparelho ideológico do Estado”, ou mesmo propaganda, pode-se, ao contrário, acentuar sua função subversiva, sobretu- do depois da metade do século XIX e da voga da figura do artista maldito. (2010, p. 36) Assim, a literatura se estabelece em uma dicotomia: de um lado com obras que perpetuam discursos dominantes e do outro obras que tentam romper com tradições e discursos, estabelecendo um novo campo para a arte. Já em relação à forma e como ela influencia o reconhecimento de um texto enquanto literatura, Compagnon (2010) reflete sobre as teo- rias literárias que tomam essa área como uma linguagem que se afasta do cotidiano, gerando um uso estético da língua. Entretanto, para o autor, essa visão de literatura como afastada da linguagem comum, utilitária, acaba por separá-la da vida. É uma visão formalista, com a crença de que a literatura possui uma linguagem perene, expressiva, ambígua, enquanto a linguagem cotidia- na é transitiva, ou seja, esquecemos as palavras que foram ditas quan- do o ato comunicativo acaba. Porém, quem já não ouviu uma palestra que mais parece uma poesia oral, e nem por isso deixou de comunicar ou de ser uma linguagem cotidiana? Um exemplo disso são as palestras que o autor Ariano Suassuna apresentava em universidades. Em sua fala, havia uma função de passar conhecimento aos alunos, e não o de ser literatura, mas era extremamente literária. Logo, a visão formalista e dualista da literatura enquanto uma linguagem especial versus uma linguagem cotidiana nem sempre se sustenta. Ao mesmo tempo, devemos ao formalismo a construção do termo literariedade para designar o que distingue a literatura de outros textos. Foi necessária essa distinção para que os teóricos fundamentassem uma área específica para o estudo da literatura – a teoria literária –, a qual assumiu o estudo das especificidades dessa arte. Aprendemos na escola que existem funções da comunicação – expressiva, metalinguística, fática, referencial, conativa e poética), e Assista a uma aula dada pelo escritor Ariano Suassuna e perceba como sua fala é poética. Aliás, ele mesmo explica o motivo de sua fala. Em suas palavras, ele leva 20 minutos para dizer o que as pessoas dizem em 10, e fala por rodeios. E mesmo assim, sua fala é de uma beleza ímpar! Disponível em: http://youtu.be/B3KN-dn- R5s. Acesso em: 19 jun. 2020. Vídeo A teoria da literatura tem estudos de variadas escolas que advêm de pensamentos e nacionalidades distintas. Dois exemplos são o formalismo russo e o estruturalismo. Para saber mais sobre a primeira, acesse o vídeo disponível em: http://youtu.be/rKhgDr1d3pw. Acesso em: 19 jun. 2020. Já para saber mais sobre o estruturalismo, veja o vídeo disponível em: http://youtu.be/ R1csM3DdjTo. Acesso em: 19 jun. 2020. Vídeo http://youtu.be/B3KN-dn-R5s http://youtu.be/B3KN-dn-R5s http://youtu.be/rKhgDr1d3pw http://youtu.be/R1csM3DdjTo http://youtu.be/R1csM3DdjTo 164 Literatura Infantil aprendemos, também, que a literatura se encaixa na função poética, como se as outras não estivessem presentes, ou como se a função poé- tica não pudesse estar em outros textos. Essa definição da função poética para estudar e compreender a litera- tura foi promovida por Roman Jakobson, linguista e teórico literário russo. Segundo o pensador russo, nos textos de literatura há predomínio da fun- ção literária, não excluindo-se as outras, o que constitui essa função seria o uso da língua, assim, nas palavras de Compagnon (2020, p. 42): A literariedade (a desfamiliarização) não resulta da utilização de elementos linguísticos próprios, mas de uma organização dife- rente (por exemplo, mais densa, mais coerente, mais complexa) dos mesmos materiais linguísticos cotidianos. […] As formas lite- rárias não são diferentes das formas linguísticas, mas sua orga- nização as torna […] mais visíveis. Assim, temos duas teorias que tentam definir o que é literariedade.De um lado os formalistas russos, defensores de que a literatura tem uma linguagem própria, enquanto do outro, Jakobson, representando os estruturalistas e inserindo a ideia de que não há linguagem própria, mas, sim, a reorganização dos elementos linguísticos visando formar a literatura. Por fim, Compagnon sinaliza que, conforme a afirmação de outro estruturalista – Gérard Genette – há uma parte de verdade em cada uma dessas teorias, e completa que “é a sociedade que, pelo uso que faz dos textos, decide se certos textos são literários fora de seus con- textos originais” (COMPAGNON, 2010, p. 44). Portanto, mesmo com uma nova área específica para o estudo da literatura, ela não age sozinha, é sempre preciso se apoiar nos estudos linguísticos uma vez que sem a língua não há literatura. E assim bus- camos apoio nos estudos da Linguística Textual (LT) para iniciarmos a compreensão da literariedade. Sob um ponto de vista mais técnico, a LT pode ser definida como o estudo das operações linguísticas, discursivas e cognitivas re- guladoras e controladoras da produção, construção e processa- mento de textos escritos ou orais em contextos naturais de uso. (MARCUSCHI, 2008, p. 73) Logo, a LT nos dá base para um olhar inicial para obras literárias, em uma análise da construção do texto em si, de sua “tessitura”. As atividades que acompanham o texto literário nos livros didáticos Literariedade e análise de obras infantis 165 correspondem em grande parte a um trabalho proposto pela LT, pois a maioria das questões solicitam do aluno a identificação dos processos de construção e compreensão textual. 7.1.1 Elementos da textualidade Uma das áreas de estudo da LT é a textualidade, a qual também irá compor a literariedade. Assim, um texto não é um amontoado de palavras, mas uma prática que leva em conta um conjunto de critérios para que seja reconhecido como tal. “O texto é uma proposta de sentido e ele só se completa com a participação do seu leitor/ouvinte” (MARCUSCHI, 2008, p. 94). Para ter sentido, o texto precisa dar conta de sete critérios de textualização. Esses critérios proporcionarão essa construção de sentido para além de ser um manual de regras a serem seguidas. Assim, asseguramos que o receptor tenha condições de compreender o que lê, garantindo que o texto seja adequado. Produzimos textos por processos de textualização inadequados quando não conseguimos oferecer condições de acesso a algum sentido, seja por ausência de informações necessárias, ou por ausência de contextualização de dados ou então simplesmen- te por inobservância de restrições na linearização e violação de relações lógicas ou incompatibilidades informativas. Contudo, não convém confundir um texto de difícil compreensão com um texto impossível de ser compreendido. Às vezes, o que não en- tendo hoje entendo amanhã. (MARCUSCHI, 2008, p. 98) O que Marcuschi nos diz é que quando pecamos em um texto não é necessariamente por não seguirmos uma ortografia ou pontuação perfei- tas, mas, sim, quando as informações não conseguem fazer sentido para o leitor, seja porque estão incompletas, seja porque estão muito confusas. E quais são os critérios necessários para a escrita de um bom texto, seja ele literário ou não? Vamos ver a seguir: 1. Coesão A coesão é a característica que dá a conexão entre os elementos de um texto. São determinados padrões que possibilitam um texto de funcionar em determinada língua. Por exemplo, uma estrutura básica na língua portuguesa é uma sentença com sujeito-verbo-predicado. É claro que pode haver variações, mas é uma estrutura muito comum 166 Literatura Infantil e relevante para o reconhecimento de quem é o sujeito da ação, que ação é essa e como ela é realizada. Além disso, a coesão diz respeito à ligação entre as palavras e os blocos do texto. Ela pode ser tanto por referência (com uso de prono- mes e substantivos para se referir ao sujeito de uma frase ou parágrafo anterior) ou por sequência (com uso de conectivos). a. Coesão explícita: quando temos os pronomes e conectivos na superfície do texto, como no exemplo abaixo: Mary ora chorava, ora dormia. Só o que ela sabia era que as pessoas estavam doentes e que ela ouvia ruídos misteriosos e assustadores pela casa. Uma vez, foi andando pé ante pé até a sala de jantar e a encontrou vazia, embora houvesse restos de uma refeição em cima da mesa. (BURNETT, 2015, grifos nossos) O trecho foi retirado do livro O jardim secreto e podemos visualizar nos grifos em negrito os pronomes que formam a coesão por referên- cia. Já os grifos em itálico representam os conectivos. Perceba como nessas poucas orações há diversos elementos coesivos. b. Coesão implícita: embora sem utilização de pronomes e conectivos, alguns textos conseguem passar uma coesão, como é o caso do conto Circuito fechado de Ricardo Ramos: Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço. (RAMOS, 1974, p. 169-175) Somente com a utilização de substantivos é possível compreender o texto por se tratar de um retrato da rotina diária de alguém. Assim, um texto pode ser coeso sem necessariamente usar elementos coesivos, porém são pouquíssimos os que conseguem. 2. Coerência Alguns autores não separam a coerência da coesão, por entender que ambas promovem a continuidade do texto. Para Marcuschi, “há uma distinção bastante clara entre a coesão como a continuidade ba- seada na forma e a coerência como a continuidade baseada no sentido” (2008, p. 119, grifos do original). A obra A coesão textual se aprofunda nos mecanis- mos que produzem um texto coeso. É um livro obrigatório para quem escreve e ensina textos. KOCH, I. V. São Paulo: Contexto, 2016. Livro A coerência textual é uma obra que trabalha de modo detalhado e apro- fundado a construção dos sentidos do texto pela coerência. Leitura fundamental para quem trabalha com textos. KOCH, I. V.; TRAVAGLIA, L. C. São Paulo: Contexto, 2015. Livro Literariedade e análise de obras infantis 167 Assim, a coerência é uma relação de sentido que o texto estabelece com suas partes, com o leitor e com o mundo. São relações que estão ligadas à atividade cognitiva do leitor, pois partindo deste e de seu co- nhecimento, o sentido do texto tomará forma. É um critério de inter- pretação que possibilita compreendermos o texto de Ricardo Ramos, porque vivemos diariamente uma rotina muito próxima à descrita. Um texto incoerente, então, é aquele que não é possível semantica- mente ou não é possível para o leitor, pois lhe falta o conhecimento de alguma informação. 3. Intencionalidade É a celebre pergunta que sempre nos fizeram após lermos na esco- la: “O que o autor quis dizer neste texto?”. Este é um tópico complexo, pois não saberemos ao certo qual foi a intenção do autor. Logo, é um critério muito mais voltado ao próprio produtor do texto. Não quer dizer que não devemos nos perguntar a respeito das in- tenções do texto, ao contrário, é necessário refletir sobre isso, apenas não é preciso que fiquemos na busca eterna de recuperar a intencio- nalidade autoral, especialmente quando não conseguiremos essa res- posta em caso de autores já falecidos. E mais, como a pretensão é a de leitores reflexivos que reconstruam os caminhos da produção textual compreendendo o contexto, o leitor deve ser estimulado a encontrar diversas intenções pelo conteúdo que lê. 4. Aceitabilidade Se a intencionalidade tem grande foco no escritor, a aceitabilidade tem ênfase no leitor. Isso porque, de acordo com Marcuschi, “a aceita- bilidade diz respeito à atitude do receptor do texto […], que recebe o texto como uma configuração aceitável, tendo-o como coerente e coe- so, ou seja, interpretável e significativo” (2008,