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Autora: Profa. Tânia Sandroni Colaborador: Prof. Roni Everson Muraoka Storytelling Professora conteudista: Tânia Sandroni Doutora em Letras pelo Programa de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP, 2018), mestra em Ciências da Comunicação pela USP (2001) e graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo (1990), pela USP. É professora titular da Universidade Paulista (UNIP). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S219s Sandroni, Tânia. Storytelling / Tânia Sandroni. – São Paulo: Editora Sol, 2021. 164 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Storytelling. 2. Narrativas. 3; Jornalismo. I. Título. CDU 659 U511.22 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Vera Saad Willians Calazans Sumário Storytelling APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 STORYTELLING: CONCEITOS E DEFINIÇÕES ..............................................................................................9 1.1 Introdução ao storytelling ...................................................................................................................9 1.2 O que é storytelling? ........................................................................................................................... 14 1.3 Storytelling como ferramenta e técnica ..................................................................................... 16 1.4 Poética de Aristóteles e suas aplicações modernas ............................................................... 20 2 O PODER DAS ESTÓRIAS............................................................................................................................... 24 3 ESTRUTURAS NARRATIVAS.......................................................................................................................... 33 3.1 Estrutura narrativa do mito ............................................................................................................. 33 3.1.1 Jornada do herói ..................................................................................................................................... 37 3.2 Estrutura narrativa dos contos maravilhosos ........................................................................... 51 4 TEXTO NARRATIVO .......................................................................................................................................... 67 4.1 Tipologia textual ................................................................................................................................... 67 4.2 Elementos constitutivos da narrativa .......................................................................................... 71 4.2.1 Enredo ......................................................................................................................................................... 71 4.2.2 Narrador ..................................................................................................................................................... 74 4.2.3 Personagens .............................................................................................................................................. 82 4.2.4 Espaço .......................................................................................................................................................... 85 4.2.5 Tempo .......................................................................................................................................................... 86 Unidade II 5 STORYTELLING E NARRATIVA JORNALÍSTICA ....................................................................................... 94 5.1 Narrativa jornalística e narrativa literária .................................................................................. 94 5.2 Histórias e sensacionalismo ...........................................................................................................102 5.3 Storytelling no jornalismo contemporâneo ............................................................................105 6 STORYTELLING COMO ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO NO MARKETING .............................114 6.1 Marcas e seus significados .............................................................................................................114 6.2 Marcas e arquétipos ..........................................................................................................................120 Unidade III 7 STORYTELLING E OS TEXTOS PUBLICITÁRIOS .....................................................................................129 8 TRANSMÍDIA E STORYTELLING .................................................................................................................140 8.1 Transmídia e crossmídia ...................................................................................................................140 8.2 Narrativa transmidiática e jornalismo .......................................................................................144 7 APRESENTAÇÃO Storytelling é uma palavra “em alta” nos ambientes corporativos e comunicacionais ultimamente. Oficinas, livros, artigos e vídeos dedicam-se a ensinar essa ferramenta a profissionais e a estudantes de marketing, publicidade e jornalismo. Ela tem sido apontada como capaz de agregar valor às marcas e de ter grande poder de persuasão sobre o receptor. Embora a palavra possa ser nova, a ideia é bastante antiga. Em tradução literal, storytelling significa “contação de estória”. Trata-se, em português, da técnica, ou da arte, de se contar bem uma história, de se construir da melhor forma possível uma narrativa. Desde os primórdios da humanidade, as histórias (ou estórias) encantam, informam, formam e entretêm. As narrativas estão presentes nas mais diferentes formas no cotidiano de todas as pessoas. Imaginemos uma rotina nos dias atuais. Você acorda, lê uma reportagem sobre um estudante que superou as dificuldades da infância e ingressou na universidade. Na sequência, ouve de um amigo a história da viagem que ele fez com a namorada. No trabalho, escuta um colega contar sobre um assalto no bairro dele. Ainda no trabalho, ouve uma anedota de um cliente. No ônibus, o passageiro ao seu lado conta como teve que migrar de cidade. Na rua, ouve as pessoas comentando sobre as personagens da novela. À noite, momento bastante aguardado, assiste a três episódios daquela série que você adora. Percebeu que todos os momentos expostos anteriormente envolvem histórias? Em todas as situações, alguém construiuuma narrativa. Agora pense: por quais narrativas nos interessamos? Além de prestarmos mais atenção naquelas que têm conteúdos importantes ou necessários para nós, também somos envolvidos pelas histórias bem contadas. Há pessoas que não sabem contar bem uma piada, e ela perde a graça. Há outras que não dosam adequadamente os elementos da narrativa, e a história fica chata. Isso significa que, além de termos uma boa história, precisamos saber contá-la. Por isso, storytelling é uma junção de duas palavras (story + telling). Não há fórmulas fixas para se construir uma boa narrativa, mas o conhecimento de conceitos e de alguns exemplos é fundamental para que você desenvolva essa técnica. Assim, o objetivo da disciplina Storytelling é fazer com que o aluno desenvolva ferramentas de linguagem em diferentes mídias, tradicionais ou não, e explore recursos de produção de bons textos e conexões em narrativas aplicadas às demandas das diferentes áreas da comunicação. Essa habilidade é essencial para o jornalismo. O jornalismo, afinal, vive de narrativas. Podemos dizer que o jornalista é um contador de histórias da contemporaneidade. E essas histórias precisam ser bem contadas! Bom estudo! 8 INTRODUÇÃO Era uma vez um jovem estudante que sonhava em ser jornalista. Esforço e vontade eram características que não lhe faltavam. Ainda criança, imaginava-se no telejornal, para orgulho da família. Ele desejava ter sucesso profissional, mas também aspirava contribuir, com seu trabalho, para que as pessoas tivessem acesso a informações e a leituras diversas da realidade. Idealista, pensava que deveria lutar por um mundo mais justo. Neste ano, o sonho do nosso personagem começou a se concretizar: foi aprovado no curso que tanto queria. Com a matrícula feita, acessou, no site da instituição, as disciplinas que cursaria e, entre elas, estava Storytelling. O que seria isso? A curiosidade o atiçou... Gostou da estória? Identificou-se com aspectos dela? Este início do nosso livro-texto tem como função mostrar a você, caro aluno, como as narrativas, por mais simples ou comuns que sejam, nos atraem, nos despertam o interesse. Esta disciplina, Storytelling, aborda a arte de contar histórias, tão presentes em nossas vidas. Trata-se de uma técnica que tem ganhado destaque no mundo comunicacional. Para que se aplique a técnica de storytelling como ferramenta de comunicação, é necessário ter alguns conhecimentos básicos de áreas diversas, como teoria literária, marketing, jornalismo, psicologia, sociologia e história. Por quê? Porque as narrativas são textos (orais ou escritos), que envolvem linguagem e são produzidos em determinadas épocas e em determinados lugares, com funções e intencionalidades distintas. Não se restringem a áreas específicas e dependem do bom repertório de quem os produz. Assim, para abordarmos o conteúdo desta disciplina, este livro-texto foi dividido em três unidades (unidade I, unidade II e unidade III). Na primeira unidade, estudamos conceitos e definições do storytelling e abordamos o poder que as histórias/estórias têm sobre os seres humanos desde tempos remotos. Também explicamos, de forma breve, as estruturas clássicas das narrativas, como a narrativa do mito e a narrativa dos contos de fada. Ainda, detalhamos os elementos que constituem uma narrativa. Na segunda unidade, apresentamos o uso da técnica do storytelling nas áreas de jornalismo e marketing. Embora a contação de estórias acompanhe a humanidade desde os primórdios, ela tem ganhado destaque no mundo corporativo apenas nos últimos anos. O novo contexto tecnológico, marcado fortemente pela internet e pelas redes sociais, tem impulsionado novos paradigmas comunicacionais. O excesso de informações a que somos diariamente submetidos tem estimulado a busca por novas formas de atrair a atenção das pessoas. Para facilitar a apreensão de conceitos, mostramos alguns casos de storytelling, bem-sucedidos ou não. Por fim, na terceira unidade, comentamos sobre o uso dessa técnica na publicidade e sobre o fenômeno da narrativa transmídia, especialmente no jornalismo. 9 STORYTELLING Unidade I 1 STORYTELLING: CONCEITOS E DEFINIÇÕES 1.1 Introdução ao storytelling O sociólogo, crítico literário e ensaísta alemão Walter Benjamin escreveu, em 1936, um ensaio intitulado “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, cuja proposta era fornecer uma análise social, cultural, histórica e literária do romance (pós-)moderno. Esse texto tornou-se ponto obrigatório no estudo da literatura e do ato de narrar. Nele, Benjamin afirma que narrar é um componente essencial à experiência; em termos muito simplificados, narrar a vida é viver. Quando narramos nossas experiências, estamos revivendo-as, ressignificando-as e tornando-as coletivas. Em outras palavras, estamos dando sentido ao vivido. Benjamin escreveu sobre o ato de narrar no século XX, e o conceito de storytelling só se tornou um campo de estudos popular em anos ainda mais recentes. No entanto, o ato de contar histórias é algo que acompanha a espécie humana desde tempos muito remotos. As pinturas rupestres, nossos mais comuns indicativos do desenvolvimento de sociedades e culturas, contam histórias, e as mais antigas delas a que temos acesso foram produzidas por volta de 40.000 a.C., no período Paleolítico Superior. O Épico de Gilgamés (ou Gilgamexe) compila uma série de histórias acerca do herói mitológico de mesmo nome, quinto rei da dinastia de Uruque da Suméria, que governou por volta de 2900 a.C. Na China, histórias são contadas sobre a dinastia Xia, Estado que existiu aproximadamente entre 1900 e 1350 a.C. na província de Henan. O Velho Testamento, com todas as histórias nele compiladas, foi escrito entre 1500 e 450 a.C. Recontamos até hoje, ao menos no mundo ocidental, diferentes variantes da história de Cleópatra, faraó do Egito no século I a.C., tão lendária que era considerada uma reencarnação da própria deusa Ísis. Todos esses são apenas exemplos de que temos conhecimento da antiga prática de contar histórias. 10 Unidade I Figura 1 – Pinturas rupestres no Parque Nacional do Catimbau, em Pernambuco Figura 2 – Tábua sobre a epopeia de Gilgamés, também conhecida como a Tábua do Dilúvio 11 STORYTELLING Mas por que contamos histórias, afinal? Por que a prática do storytelling parece estar tão firmemente integrada com a história humana? Se observarmos animais sociais (isto é, animais que vivem em grupos), veremos que eles desenvolvem formas de comunicação próprias. Para animais que vivem e caçam em conjunto, a comunicação é essencial, independentemente do modo como ela seja feita. Não é incomum que os macacos de um mesmo bando revezem-se no papel de vigia, por exemplo, alertando o resto do grupo quanto à presença de predadores e à existência de outras possíveis ameaças; para tanto, eles fazem uso de um sistema predominantemente vocal de comunicação. Em outras palavras, a capacidade do bando de se comunicar interfere diretamente em suas chances de sobrevivência. Como nós, humanos, compartilhamos com os macacos modernos um ancestral comum, é bastante possível, se não provável, que as linguagens humanas tenham surgido a partir da necessidade de nos comunicarmos uns com os outros e, posteriormente, evoluído para o uso de palavras como símbolos. Mas como histórias poderiam ter servido para aumentar nossas chances de sobrevivência? Geralmente, quando tratamos do processo evolutivo da espécie humana, costumamos falar de polegares opositores, de nossa lenta transição para andar em duas “patas” em vez de quatro, da criação de ferramentas, do desenvolvimento da agricultura… Talvez, falemos também do desenvolvimento das linguagens. O que não costumamos explorar com mais profundidade, tanto pela escassez de evidências históricas quanto pela relativa impopularidade do tema na mídia, é a ideia de culturas pré-históricas. Conforme já mencionamos, sabemos que nossos ancestrais paleolíticos já produziam arte,um dos elementos importantes de uma cultura, alguns 40.000 anos atrás. Coincidentemente ou não, estima-se que também nesse período os seres humanos tenham desenvolvido uma linguagem mais semelhante à nossa. Além disso, por volta do período Paleolítico Superior, existem evidências da existência de ao menos uma religião. Para um exemplo mais claro de como as histórias que contamos são ferramentas de cultura, avancemos no tempo para os contos de fadas. Pensemos na história de Chapeuzinho Vermelho, por meio da qual ensinamos nossas crianças que elas devem obedecer aos adultos. Ou na história de Cinderela, por meio da qual ensinamos que nossos sonhos podem se realizar se formos boas pessoas e trabalharmos duro. Histórias nos ensinam valores socioculturais, nos ensinam como “devemos” ser. Não é à toa que elas mudam com o tempo, que variam de lugar para lugar; a Branca de Neve da Disney, por exemplo, tem muito pouco em comum com a sua antecessora nos contos dos irmãos Grimm. A versão dos irmãos Grimm, imaginamos, é em si diferente das versões orais contadas antes deles. E, ainda que a história seja a mesma, as lições que ela contém podem mudar de acordo com a interpretação. Consideremos as muitas histórias acerca de Joana D’Arc, personagem histórica que rapidamente se tornou também mitológica: seu papel central nas batalhas da França contra a Inglaterra pode conter tanto uma lição acerca do poder do divino quanto uma lição acerca da importância da mulher, mesmo em campos tradicionalmente considerados masculinos. Ou, ainda, recordemos as histórias bíblicas e suas muitas possíveis leituras. 12 Unidade I Figura 3 – Joana D’Arc – Arquivos Nacionais (França) – AE-II-2490. Datado entre os séculos XV e XX Figura 4 – Pôster de O martírio de Joana D’Arc (La passion de Jeanne d’Arc), de Carl Theodor Dreyer, 1928 13 STORYTELLING Agora, aplique o mesmo princípio em tempos bem mais remotos. Imagine nossos ancestrais, naquela clássica imagem que criamos em nossas mentes, em volta da fogueira, e a importância dos ensinamentos por histórias. Uma história de caça pode fornecer informações importantes acerca das melhores técnicas e táticas, a história de alguém que morreu depois de ser picado por uma cobra pode nos ensinar que aquele animal é venenoso, a história de alguém que foi curado de uma doença pode nos indicar possíveis práticas de cura. É claro que as informações que tiramos de histórias nem sempre são exatas ou corretas; é sempre possível que o sucesso da caça tenha tido mais a ver com sorte do que com habilidade, que a vítima da cobra tenha na verdade morrido de outra coisa que não veneno, que a recuperação do doente tenha ocorrido independentemente das técnicas de cura. Histórias não são fatos, são experiências. Substitua a fogueira por uma mesa, e nossos ancestrais por nós, humanos modernos. Quase inevitavelmente, compartilhamos histórias e somos afetados por elas. Tem-se falado muito atualmente da propagação de notícias falsas (fake news), principalmente por meio das redes sociais. Esse fenômeno é mais um exemplo do poder de sedução das histórias. Tendemos a tomar por verdade aquilo que, de alguma forma, queremos que seja verdade, aquilo que melhor se encaixa com nossas experiências pessoais, nossas crenças, nossas histórias. A charge a seguir ilustra como temos tendência a acreditar naquilo que confirma nossas crenças. Figura 5 – Fake news As redes sociais são, afinal, espaços de histórias, e, ainda que saibamos que fato e experiência são coisas distintas, nada é tão real ou verdadeiro para nós quanto nossas próprias experiências. É preciso que exercitemos frequentemente nossa compreensão para que sejamos capazes de reconhecer quando nossa experiência não coincide com os fatos, ou mesmo para que reconheçamos que nossa experiência não constitui nenhum tipo de verdade universal. Tendemos a desejar, compreensivelmente, que nossas experiências sejam validadas pelas histórias dos outros e, quando encontramos histórias que cabem em 14 Unidade I nossas identidades, damos a elas caráter de verdade. É clara a armadilha em que nos colocamos com essa expectativa, já que, insistiremos novamente, histórias não são fatos, não são verdades universais e, certamente, não são o que poderíamos chamar de imparciais ou neutras. Histórias são flexíveis, mas raramente acidentais e nunca sem propósito. Elas constroem e destroem pessoas, perpetuam empresas e instituições, apagam culturas, formam e inibem identidades... Mais do que isso, as histórias e suas estruturas variam de cultura para cultura, mas o fato de que existem histórias a serem contadas não, o que parece corroborar a hipótese de que o ato de contar histórias tem algo de primitivo; algo, talvez, das próprias raízes de nossas linguagens. Lembrete Histórias não são fatos, são experiências. O ato de narrar é tão poderoso que Walter Benjamin vê na mudança do papel do narrador na literatura um indício de mudança estrutural da própria experiência humana; tão persistente que lemos até hoje histórias contadas e escritas há milênios; tão sedutor que frequentemente torna nossas vidas mais toleráveis. Quantas pessoas não buscaram escapar para universos de fantasia como os presentes em O Senhor dos Anéis, Harry Potter, Star Wars e outros? O que são os RPGs senão oportunidades de contarmos nossas próprias histórias em outras realidades? Quantas pessoas não sentem alívio em compartilharem suas histórias? Não à toa, o campo da psicologia também dá ênfase à narração como elemento de descobertas e aprendizagens. Quantas pessoas não se sentem confortadas ou inspiradas pelas narrativas de outros? Histórias têm poder. Embora isso só venha a ser propriamente reconhecido nas áreas mais comerciais contemporaneamente, várias formas de estudo decorrem, ao menos em parte, desse princípio. A própria arte – a literatura, o teatro, o cinema e a pintura, por exemplo – provém em parte do poder das histórias. Os estudos religiosos e mitológicos existem porque entendemos que as histórias são indícios e influenciadores culturais. Em outras palavras, não é preciso ir muito longe para compreender por que storytelling se tornou, com tanta velocidade, uma ferramenta potente para certas áreas, como o marketing. 1.2 O que é storytelling? Storytelling é um termo em inglês que pode ser diretamente traduzido para “contação de estórias”. Conforme já discutimos, estórias aparecem nos mais diversos âmbitos da sociedade; filmes e livros, sabemos, contam histórias, mas elas também são contadas por jornais, por marcas, por indivíduos em redes sociais. 15 STORYTELLING Observação Alguns autores preferem usar, em português, o termo “estória”, no lugar de “história”, valendo-se da distinção de sentido entre as duas palavras. História estaria relacionada a fatos reais; estória, por sua vez, estaria ligada à ficção. Trata-se de uma diferença que aparece claramente na língua inglesa: history e story. No Brasil, durante um tempo, usamos os dois termos, respeitando a distinção entre eles. No entanto, isso foi alterado e permaneceu apenas “história”. Mesmo assim, há quem defenda o uso de “estória” para o que se narra em filmes, novelas, séries, romances, contos etc., e “história” para os acontecimentos ocorridos realmente. Neste livro-texto, em vários contextos, usaremos “estórias”. Não queremos com isso estabelecer uma fronteira rígida entre ficção e realidade, mas apenas sinalizar essa distinção. Apontamos, também, que a contação de estórias é uma parte antiga e importante das artes como um todo e que aquilo que cerca nossas histórias e estórias também é de suma importância; não à toa, diversos romances longos podem ter seus enredos resumidos em um ou dois parágrafos, mas perdem aquilo que os torna especiais no processo. Parafraseando Paul Valéry, filósofo e escritor francês dos séculos XIX e XX, resumir uma obra de arte é matá-la, porque como contamos as estórias é mais importante, nas artes, do que as estóriasem si. Exemplo de aplicação Considere a estória a seguir. Um rapaz consegue se casar com o amor de sua adolescência e tem um filho com ela. Um dia, passa a desconfiar de que foi traído pela mulher e por seu melhor amigo. Ele começa a crer que o filho, de fato, não é dele. A partir de então, afasta-se da esposa e da criança e torna-se um homem ensimesmado. Achou interessante? Contada dessa forma, a história de Dom Casmurro não tem nada de genial. O que a torna uma obra-prima da literatura mundial é a forma como Machado de Assis a conta. Assim, nessa perspectiva, uma narrativa literária diferencia-se de outra não literária pelo trabalho estético com a linguagem. Reflita, com base nisso, sobre o quanto ler os resumos de obras literárias o afasta do valor que elas têm. 16 Unidade I Saiba mais Para saber mais sobre a história contada por Machado de Assis em Dom Casmurro, leia: ASSIS, M. Dom Casmurro. 41. ed. São Paulo: Ática, 2019. 1.3 Storytelling como ferramenta e técnica Em seu livro Storytelling: histórias que deixam marcas, Adilson Xavier define o conceito de storytelling como “a tecnarte de elaborar e encadear cenas, dando-lhes um sentido envolvente que capte a atenção das pessoas e enseje a assimilação de uma ideia central” (XAVIER, 2015, p. 11). O autor considera o ato de contar histórias ao mesmo tempo uma técnica e uma arte, daí o neologismo tecnarte. A definição de Adilson Xavier ilustra bem uma reinterpretação moderna baseada na teoria aristotélica das narrativas. Não à toa, ele usa o termo “encadear”, isto é, colocar em cadeia no sentido de sequência, que evoca a ideia aristotélica de começo, meio e fim como elementos sequenciais indissociáveis do todo que formam. Storytelling é, em síntese, a capacidade de contar bem boas estórias. O que torna sua conceituação turbulenta é que ela propõe uma pergunta subsequente, mas não menos importante: o que é, afinal, uma “boa história”? Esse ponto é ainda mais contencioso do que a definição de storytelling em si. A verdade é que é difícil estabelecer regras universais acerca do que constitui uma boa história. Somos influenciados pela cultura dos Estados Unidos, por exemplo; isso ocorre em grande parte do mundo ocidental, de modo que as histórias deles parecem caber bem em nosso repertório. Mas você já assistiu, por exemplo, a um filme de Akira Kurosawa, um dos mais famosos e influentes diretores japoneses? Se sim, é possível que tenha sentido bem mais as diferenças culturais do que com filmes estadunidenses. Talvez até tenha percebido que aquilo que constitui uma história e, principalmente, o que constitui uma boa história, é significativamente diferente na nossa cultura e na cultura japonesa. Embora as culturas ocidentais tendam a um gosto pela linearidade cronológica (algo bastante aristotélico), Sonhos, por exemplo, é um filme que obedece a uma cronologia própria, estranha a nós, mas provavelmente reconhecível, ao menos em alguns aspectos, pelo espectador japonês. 17 STORYTELLING Figura 6 – Cena do filme Sonhos, de Kurosawa Figura 7 – Cena de “Corvos”, episódio de Sonhos, de Kurosawa “Monte Fuji em vermelho” e “O demônio que chora”, respectivamente sexto e sétimo episódios de Sonhos, são geralmente considerados os menos interessantes pelo espectador ocidental, mas, certamente, refletem um aspecto histórico e cultural muito importante no Japão: o marcante trauma social dos efeitos da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki. Em ambos, existe um tom pós-apocalíptico, representando um mundo destruído pela radioatividade, um mundo vazio, em que a própria natureza nos é estranha. Apesar de o medo generalizado de uma guerra nuclear ter infiltrado também a arte ocidental, a experiência japonesa faz com que esse aspecto seja muito mais relevante. Para fazermos uma comparação, tome como exemplos de storytelling ocidental as histórias de super-heróis. Vejamos o caso de Bruce Banner, que, após um acidente que lhe causa envenenamento por radiação, torna-se o Incrível Hulk (lembramos que o primeiro de seus quadrinhos foi publicado em 1962, bem antes de Sonhos, lançado em 1990). O Hulk é geralmente um personagem destrutivo e quase infantil em termos de temperamento, enquanto seu alter ego, Bruce Banner, é um cientista 18 Unidade I racional e considerado brilhante por seus pares. Isto é, existe um aspecto de certa selvageria associado à sua exposição à radiação. Ainda assim, o Hulk é um super-herói, um dos “mocinhos”. Isso diz respeito à experiência estadunidense em relação à Segunda Guerra e ao uso da bomba atômica: o uso de armas radioativas é selvagem e sub-humano como o Hulk, mas, como o Hulk, é também um símbolo do poderio militar dos Estados Unidos, um símbolo de supremacia e força quase ilimitada. Não é preciso ir muito longe para entender por que esse não é o caso na cultura japonesa. Na verdade, as histórias de super-heróis podem fornecer valiosas pistas sobre a cultura e a história dos Estados Unidos. O exemplo mais clássico é o Capitão América, criado em 1941 pela Timely Comics (antecessora da Marvel Comics). Está longe de ser coincidência que, em plena década de 1940, tenha surgido e ganhado popularidade um super-herói estadunidense patriota (também não é nenhum acidente, afinal, que o traje do Capitão América seja direta e claramente baseado na bandeira dos Estados Unidos), que luta contra as forças do Eixo. Observação Alemanha, Itália e Japão eram países do Eixo na Segunda Guerra Mundial. Eles lutaram contra os Aliados, nos quais estavam os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a União Soviética e muitas outras nações. Nessa época, a cultura estadunidense já compreendia e dava muito valor ao poder das imagens, dos símbolos e das histórias; por esse motivo, os Estados Unidos demoraram a se envolver na guerra. Uma vez envolvidos na guerra, era preciso que houvesse uma expressiva e forte imagem do país como um herói que luta contra as forças do mal. Como sugere Xavier em sua definição de storytelling, era preciso que a história do Capitão América despertasse no público um sentimento de heroísmo patriótico; aquilo que o autor chama de “ideia central”. Veja, a seguir, imagens diferentes do super-herói. Observe que, na primeira figura, ele aparece socando um homem que tem no braço um símbolo do nazismo. Na capa, que data de 1941, ele luta sozinho com vários homens e, mesmo assim, temos a indicação de que ele sairá vitorioso. Já na capa da figura seguinte, de 2017, o herói está, obviamente, fora do contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mas ele aparece forte e destemido a lutar. Atrás da sua imagem, percebemos o mapa dos Estados Unidos. É como se ele protegesse seu país. 19 STORYTELLING Figura 8 – Capa da primeira edição de Capitão América, em março de 1941 Figura 9 – Capa de Capitão América (Steve Rogers, v. 3), em agosto de 2017 20 Unidade I A criação e a divulgação de heróis e de suas histórias como estratégia política, especialmente nos períodos de conflito, no entanto, não era algo novo nem nos anos de 1940. Na verdade, o nosso modelo de herói ainda é, até hoje, muito reminiscente dos heróis gregos clássicos, como Ulisses e Aquiles, mas nos aprofundaremos nos aspectos que dizem respeito à jornada do herói apenas mais adiante. Por enquanto, buscamos apenas evidenciar como o que constitui uma boa história tem muito a ver com questões culturais, políticas e históricas. Listamos todos esses exemplos para que fique claro como storytelling é uma tecnarte, para usar a terminologia de Adilson Xavier, flexível. Como toda técnica e toda arte, a contação de estórias está sujeita ao seu contexto temporal, espacial e cultural. 1.4 Poética de Aristóteles e suas aplicações modernas A narrativa é estudada desde a Antiguidade, com Platão e Aristóteles. Platão, em A República, examina a poesia mais detalhadamente, procurando descrever algumas de suas características. De acordo com o filósofo, temos a seguinte perspectiva tripartida (ZILBERMAN,2012, p. 48): • relato puramente imitativo, como se encontra na tragédia e na comédia, gêneros em que impera o diálogo, sem interferência do narrador; • relato não imitativo, em que fatos são relacionados pelo próprio poeta, que fala em seu nome; • relato que utiliza os dois recursos precedentes, como acontece na epopeia, em que há partes em que o poeta se expressa e outras em que são as personagens que falam. Aristóteles, no campo da literatura, com ênfase na dramaturgia, defende, em sua Poética, que uma história precisa ser estruturada de modo a ter começo, meio e fim – daí, inclusive, a divisão de peças teatrais em atos. Isso não é tão óbvio quanto parece. Aristóteles delineia uma série de critérios para o que constitui começo, meio e fim que não nos são interessantes neste preciso momento; o que nos interessa é saber que a dramaturgia grega de que falava Aristóteles não era constituída por histórias inéditas. Pelo contrário, a tradição literária da época privilegiava aquelas histórias que já eram conhecidas pelo público, que faziam parte do imaginário popular. Hoje, consideramos bastante provável que os frequentadores do teatro no período grego clássico já conhecessem, por exemplo, a história de Édipo. E, se a história já lhes era conhecida, ou ao menos familiar, por que a preocupação de Aristóteles em produzir o que era essencialmente um manual de dramaturgia focada nos aspectos de storytelling? De novo, a resposta parece ter mais a ver com como a história é contada do que com o que ela conta. 21 STORYTELLING Figura 10 – Édipo Rei Figura 11 – Ilustração simulando a apresentação de uma peça teatral na Grécia clássica 22 Unidade I O velho ditado “quem conta um conto aumenta um ponto” diz muito sobre storytelling. Você deve conseguir se lembrar de um exemplo em que duas ou mais pessoas que passaram pela mesma experiência descrevem os eventos de formas totalmente diferentes. Insistiremos que histórias não são fatos, mas construções acerca de fatos, percepções e interpretações. É muito improvável, portanto, que um grupo de pessoas que presenciou o mesmo fato conte a mesma história. Mais do que isso, consideraremos algumas histórias melhores do que outras, ainda que factualmente elas se refiram à mesma coisa. A figura a seguir ilustra que o mesmo fato pode ser visto de perspectivas diferentes, e isso certamente altera o que será contado. Figura 12 – Pontos de vista Lembrete Os primeiros passos de uma teoria da narrativa foram dados por Platão e Aristóteles, na Antiguidade. Com isso em mente, retomemos à Poética de Aristóteles. Segundo o filósofo grego, todos os elementos de uma história devem estar conectados como vemos em uma corrente, em que uma parte leva à outra, dialoga com a outra, e, assim, forma-se um todo coeso, que não pode ser separado de seus elementos constitutivos sem desintegrar-se por completo. É por isso que a arte não pode ser resumida sem perder pelo menos parte de sua essência: porque a construção da história depende do todo, que depende das partes, e, desse modo, estabelece-se um ciclo em que a obra, se produzida com qualidade, torna-se autossustentável, completa e viva. Quando falamos há pouco em começo, meio e fim, nos referíamos a isto: não a partes separadas do texto, como se fossem caixas colocadas em sequência, mas a elementos do todo que estão intrinsecamente ligados. 23 STORYTELLING Anton Tchekhov, escritor russo do século XIX, desenvolveu um princípio que chamamos de “a arma de Tchekhov”. Basicamente, ele dita que, se em algum momento é apresentada ao leitor ou ao espectador uma arma pendurada na parede, aquela arma precisa disparar. Trata-se de uma metáfora usada para dizer essencialmente o mesmo que dizia Aristóteles: todos os elementos, cada uma das partes de uma obra, devem ter algum propósito. Se indiquei ao público de minha peça, por qualquer meio que seja – diálogo e construção de cenário, por exemplo – que há uma arma que fica pendurada na parede, na perspectiva de Tchekhov, estou prometendo aos espectadores que aquela arma tem um propósito para minha história. É aquele antigo elemento narrativo que também podemos chamar de foreshadowing: dicas e momentos implícitos no texto que nos dão pequenos indícios do futuro. Existem teorias que divergem parcial ou totalmente desses conceitos. Para alguns autores e críticos, elementos “sem propósito” podem ser uma estratégia narrativa interessante. Além disso, precisamos levar em conta que nossas narrativas contemporâneas já não seguem, necessariamente, começo, meio e fim como estruturas cronológicas, de modo que, ao menos em seus aspectos literários, a teoria aristotélica encontra-se um tanto quanto defasada. Menos defasada do que se poderia presumir, no entanto, dada a distância geográfica e temporal entre a Grécia clássica e o Brasil contemporâneo, por exemplo. Embora a perspectiva de Aristóteles não dê mais conta da literatura de maneira geral, ela é fundamental em um de seus aspectos: a contação de estórias. Outro ponto essencial apontado por Aristóteles diz respeito à verossimilhança. O filósofo abordou tal conceito no estudo sobre as tragédias encenadas no seu tempo. De acordo com ele, a empatia do público com a peça era possibilitada pela ilusão de verdade do que era narrado. A isso, ele denominou verossimilhança (aparência de verdade). Trata-se da lógica interna do enredo que o torna verdadeiro para o leitor, independentemente da verdade dos fatos. Assim, um herói ter poderes mágicos é verossímil em uma narrativa, mesmo que esse fato não seja verdadeiro no mundo real. Observação Em algumas narrativas, como as narrativas jornalísticas, os fatos, além de verossímeis, devem ser verdadeiros. Saiba mais Para saber mais sobre a poética clássica, leia o capítulo 3 do livro Teoria da literatura, de Regina Zilberman: ZILBERMAN, R. Teoria da literatura I. Curitiba: IESDE Brasil, 2012. 24 Unidade I 2 O PODER DAS ESTÓRIAS Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias. (GALEANO, 2013) Fazemos questão de pontuar que algo comum a todas as nossas culturas conhecidas é a contação de histórias. Culturas diferentes produzem histórias e estórias diferentes, mas storytelling está sempre presente. Afinal, toda mitologia é composta de estórias. A mitologia em torno dos mortos-vivos, como zumbis e vampiros, muito popular contemporaneamente, também se tornou popular historicamente em um período em que a medicina ainda não conseguia nos informar com precisão se alguém estava morto ou não. Como consequência disso, as pessoas eram enterradas vivas com relativa frequência, alimentando as estórias, que, por sua vez, ressignificavam os fatos não como um erro médico, mas como resultado de forças sobrenaturais. Leia o trecho a seguir, extraído do conto “O enterro prematuro”, de Edgar Allan Poe. Nele, o protagonista sofre de catalepsia e tem pavor da possibilidade de ser enterrado vivo. O enterro prematuro Permaneci imóvel alguns minutos, depois que essa imagem se apoderou de mim. E por quê? Eu não podia armar-me de coragem para mover-me. Não ousava fazer o esforço necessário para certificar-me de minha sorte, e, contudo, havia algo no meu coração que me sussurrava que ela era fatal. O desespero – como de nenhuma outra desgraça que jamais salteou o ser humano – só o desespero me impeliu, após longa irresolução, a erguer das pálpebras de meus olhos. Ergui-as. Estava escuro, totalmente escuro. Senti que o ataque tinha passado. Senti que a minha doença há muito desaparecera. Senti que me achava agora completamente, em pleno uso de minhas faculdades visuais. E, contudo, estava escuro, totalmente escuro, daquela escuridão intensa e extrema da noite que dura para sempre. Tentei gritar, e meus lábios e minha língua seca moveram-se convulsivamente, em comum tentativa, mas nenhuma voz saiu dos cavernosos pulmões, que, como oprimidos sob o peso de esmagadora montanha, arfavame palpitavam com o coração a cada trabalhosa e penosa respiração. O movimento das mandíbulas, no esforço de gritar bem, mostrava-me que elas estavam amarradas, como se faz usualmente com os mortos. Senti também que jazia sobre alguma coisa sólida e que a mesma coisa também me comprimia estreitamente em ambos os lados. Até então eu não me atrevera a mover qualquer dos membros; mas agora, violentamente, levantei os braços que tinham estado até então sobre o peito, com as mãos cruzadas. Eles bateram de encontro a uma madeira sólida, que se estendia sobre 25 STORYTELLING uma altura de não mais do que seis polegadas de meu rosto. Não podia mais duvidar de que repousava dentro de um caixão. Fonte: Poe (2009, p. 16). Observação Edgar Allan Poe (1809-1849) é considerado o mestre das obras de horror e suspense. Escreveu inúmeros contos e foi, também, crítico literário. Algo semelhante ocorreu com as histórias de lobisomens; atualmente, acreditamos que o mito do lobisomem tenha surgido de doenças até então pouco explicadas, como a raiva, cujos sintomas incluem salivação excessiva, espasmos musculares e confusão mental, que podem dar ao infectado um aspecto animalesco. Para ilustrar mais uma vez o poder das estórias, aproveitamos o gancho das doenças mentais para tratar das chamadas “síndromes ligadas à cultura” (culture-bound syndromes ou CBS). A licantropia clínica, por exemplo, é a condição em que o afetado acredita ser ou se transformar em um animal. O nome “licantropia” provém da mitologia dos lobisomens, também chamados licantropos. Em países como o Japão, a Coreia e a China, que têm como forte aspecto mitológico a figura da raposa como espírito ou demônio, a depender da tradição, encontramos síndromes em que os afetados acreditam estar possuídos pelo espírito de uma raposa. Muitas doenças de caráter psiquiátrico podem manifestar delírios religiosos, como a crença de que o afetado foi escolhido como mensageiro, profeta ou mártir, ou a interpretação de alucinações como mensagens divinas. Gostaríamos de apontar, no entanto, que isso não quer dizer que os membros de qualquer comunidade religiosa venham a desenvolver transtornos mentais. Essa forma de pensamento nos levaria a conclusões equivocadas, particularmente porque algumas religiões trabalham, de modo direto, com aspectos de comunicação com o divino, visões e possessão. O que buscamos demonstrar é que as estórias que nos constituem são tão fortes, tão intrínsecas e tão enraizadas, que influenciam aspectos que consideraríamos mais distantes do âmbito da cultura, como as patologias. As estórias que constituem nosso repertório, sejam elas mais ou menos factuais, fornecem ensinamentos que moldam nossas visões de mundo, nossas interpretações e nossa própria identidade. A “descoberta” desse campo tão influente pelo marketing foi, como se pode imaginar, absolutamente revolucionária. Para além dos produtos, do relacionamento com o cliente, dos preços e dos eventos, entre outras possibilidades, a marca pode ter um diferencial ainda mais marcante: uma história. Tanto Adilson Xavier quanto Fernando Palacios e Martha Terenzzo listam, em seus respectivos livros acerca de storytelling, numerosos exemplos de marcas que se tornaram populares em função, ao menos em parte, de suas histórias. Trataremos mais detalhadamente desses casos adiante; por ora, nos limitaremos a escolher um exemplo que ilustre bem a influência das histórias. 26 Unidade I Porque acreditamos ser talvez o mais imediatamente reconhecível, começaremos pelo caso da Disney – ela é, afinal, uma empresa que claramente se sustenta no campo das estórias. A princípio, as estórias da Disney giravam em torno do personagem de Mickey Mouse, ratinho simpático criado em 1928. Walt Disney o havia nomeado Mortimer, mas sua esposa, Lillian Bounds, achou o nome muito formal e sugeriu o substituto Mickey. Essa foi só a primeira das mudanças sofridas pelo personagem: em 1929, Mickey tem sua primeira aparição com as luvas brancas que se tornarão parte essencial do personagem, e, em 1930, Mickey, um personagem que inicialmente fumava e bebia, já havia se tornado mais apropriado para crianças. Embora Mickey e seus companheiros, como Minnie e Pluto, tenham feito imenso sucesso, particularmente nos Estados Unidos, e ainda hoje sejam elementos proeminentes da imagem da Disney, eles não foram capazes de sustentar, sozinhos, o sucesso comercial da empresa. Como era de se esperar, concorrentes pela posição da Disney como o mais bem reconhecido estúdio de animação não demoraram a surgir, e o ratinho foi lentamente perdendo seu charme. Em resposta, a Disney lançou uma série de filmes de sucesso, a maioria deles recontações de histórias tradicionais de contos de fadas (Branca de neve, Cinderela e A bela adormecida, por exemplo) ou de livros consagrados (Peter Pan, Mogli, Dumbo, Bambi e Alice no País das Maravilhas, por exemplo). Figura 13 – A Rainha de Copas em ilustração original de Lewis Carroll, 1862-1864 27 STORYTELLING Figura 14 – Alice em Alice no País das Maravilhas. Disney, 1951 Nos anos de 1970, a Disney começava a perder sua popularidade. Nos anos de 1980, a competição se acirrava ainda mais com Don Bluth, ex-animador da Disney, saindo na frente com seu próprio estúdio (para o qual ele levou 11 outros animadores da Disney) e concorrentes internacionais como o Studio Ghibli de Hayao Miyazaki ganhando força. É quando começa o período que costumamos chamar de Renascença da Disney. Esse período inicia-se em 1989, com o lançamento de A pequena sereia, e termina em 1999, com o lançamento de Tarzan. Durante 10 anos, a Disney produziu uma série de sucessos comerciais e de crítica, como Rei Leão, Hércules, Mulan, A bela e a fera e Aladin. Figura 15 – Cena de Mulan, filme da Disney, 1998 28 Unidade I Saiba mais Conheça também o filme de animação japonesa Nausicaä do Vale do Vento, do escritor, diretor e ilustrador Hayao Miyazaki: THAÍS. Nausicaä do Vale do Vento completa hoje 36 anos. O Megascópio, 11 mar. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3l89FUq. Acesso em: 11 mar. 2021. Até hoje, mais de 20 anos após o fim do período de extremo sucesso da Disney, esses filmes e seus personagens persistem no nosso imaginário. Mais do que isso, eles sobrevivem como parte integral da imagem da Disney e sua história. Nos mundos da Disney, os personagens mais populares não são mais Mickey Mouse e seus companheiros, mas as “princesas”. Encaixamos na categoria de princesa essencialmente qualquer mulher que protagonize um filme da Disney, embora as princesas da Disney propriamente ditas sejam aquelas dos contos de fadas. Ser ou não uma princesa no sentido estrito não carrega importância alguma: as “princesas” são um elemento integral da imagem da Disney enquanto produtora. Talvez pelo seu ramo de atuação, diretamente ligado ao storytelling, a Disney percebeu com alguma rapidez que histórias também eram importantes no âmbito da própria marca. Ela investiu em uma imagem baseada na fantasia e nos contos de fadas. Criou o que são essencialmente cidades dedicadas aos seus universos ficcionais, como o Walt Disney World e as Disneylands, presentes em vários lugares do mundo. Construiu histórias acerca de seu criador, Walt Disney, que o colocam em um patamar quase divino. Aproveitaremos este momento para tocar brevemente nas questões de verdade, de ficção e de verossimilhança. Primeiro, insistimos novamente que histórias não são fatos, mas versões e interpretações de fatos, ocorridos ou imaginados. Mesmo a mais factual das histórias apresenta uma das versões possíveis de “verdade”, ou seja, ela é ao menos parcialmente ficcional. Observação O jornalismo trabalha com fatos e tem forte compromisso com a verdade. Mesmo assim, suas narrativas são construções desses fatos. O bom jornalismo sempre apresenta a melhor versão possível do que ocorreu, após a apuração com diversas fontes. Como seres humanos, gostaríamos que existissem verdades universais,imparciais e objetivas, no mínimo porque nossa interpretação de mundo seria mais simples. No entanto, vários âmbitos de estudo, como a linguística, as ciências sociais e a psicologia, indicam que essa é uma visão excessivamente simplista. Muitas “verdades” diferentes podem ser constituídas a partir dos mesmos fatos. O Walt Disney como figura pública é uma possível versão dos fatos de sua vida como pessoa – uma das muitas possíveis verdades. É contado que Disney certa vez disse a um amigo: “Eu não sou o Walt 29 STORYTELLING Disney. Eu faço várias coisas que o Walt Disney não faria. Walt Disney não fuma. Eu fumo. Walt Disney não bebe. Eu bebo”. Ou seja, o próprio Disney tinha ciência de que sua imagem pública não estava ligada diretamente aos fatos, à sua história em sua totalidade, mas, com base nos fatos, criava-se uma nova história. O Walt Disney público não bebe, não fuma, não é uma pessoa difícil de lidar, como descreviam seus funcionários, e não morre. Afinal, o Walt Disney “pessoa” morreu em 1966, mas o nome persiste, sua imagem persiste. Isto é, a história persiste. Trataremos da suposta oposição entre realidade e ficção em mais detalhes adiante, mas citamos a história criada pela marca acerca da figura de Walt Disney como exemplo de sua proeza em storytelling. Ciente de que histórias nos permitem escapar da realidade para universos de fantasia, ela construiu universos de fantasia no mundo real. Até hoje, não é difícil encontrarmos pessoas com algum tipo de vínculo emocional com a Disney enquanto marca, seja esse vínculo baseado em suas histórias mais antigas, seja em histórias mais contemporâneas. Esse vínculo leva as pessoas a visitarem os parques, que, por sua vez, oferecem suas próprias histórias e lembranças, aprofundando o vínculo. Tudo isso é feito quase exclusivamente no âmbito do storytelling. Adilson Xavier trata, na obra já citada, de mais detalhes acerca do caso da Disney e seu uso de storytelling, de modo que não nos estenderemos mais nesse caso específico. Nosso objetivo em descrever, de maneira breve, o processo da Disney é simplesmente o de demonstrar como histórias são importantes na construção de uma marca, e, no mesmo sentido, como são influentes e marcantes em relação ao público. Fica evidente que a influência social, cultural e psicológica das histórias representa uma poderosa ferramenta no campo do marketing, bem como em muitos outros. Mais adiante, exploraremos as funções específicas do storytelling em diferentes áreas. Por ora, buscaremos compreender os elementos e estruturas que compõem uma estória. Por fim, temos que lembrar que, quando falamos no poder das estórias, vem à mente As mil e uma noites, obra em que Xerazade dribla a morte ao contar, todas as noites, uma história para o rei persa. Após descobrir que a mulher era infiel, o rei Xariar decidiu que, a cada noite, desposaria uma virgem, que seria morta na manhã seguinte, para que ele não fosse mais traído. O vizir era quem levava as moças ao sultão. Um dia, uma filha do vizir, Xerazade, pede ao pai para ser ela a nova esposa, pois tem um plano. Depois do casamento, Xerazade pede ao marido para que sua irmã entre no quarto para que possam se despedir. A partir de então, ela começa a contar uma história que é interrompida, em um momento crucial, com o amanhecer. O rei, curioso para saber o final da estória, concede mais um dia de vida de Xerazade e isso se repete por mil e uma noites. Assim, a habilidade em contar histórias não só salvou de Xerazade como também acabou com a matança das jovens do reino. Temos, assim, o importante ponto referente à infinitude das estórias. 30 Unidade I Observação Alguém lhe contava estórias quando você era criança? Além das estórias presentes nos livros, muitos familiares apelam à imaginação para criar estórias para as crianças. Leia, agora, o conto “A quinta história”, de Clarice Lispector. A quinta história Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem. A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro delas. Assim fiz. Morreram. A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou. A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam 31 STORYTELLING endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompeia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras – subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! – essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de...” – de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo. A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-áuma população lenta e viva em fila-indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? Como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”. A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas. Fonte: Lispector (1999, p. 74-76). Repare que, no início, o texto menciona As mil e uma noites, indicando que as histórias poderiam se desdobrar infinitamente. Perceba, também, que há uma moldura que sustenta as cinco histórias. Cada uma, no entanto, segue um caminho. A primeira é quase um relato banal, factual, que será repetido nas demais. As narrativas, de fato, são desenvolvidas, nas três histórias subsequentes. Na segunda, intitulada “O assassinato”, surgem toques de crueldade, com a satisfação perversa da narradora em matar: “meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte”. Aparece o prazer de matar cada barata, com um “medo excitado”, como se eliminam os males secretos. Observa-se que o verbo “aviar” remete ao preparo medicinal ou ao ofício de uma bruxa. Ocorre, então, uma inversão irônica do mal. As baratas, que representam “naturalmente” o sujo, o mal, passam a ser vítimas da perversidade sádica da dona de casa que cuida da higiene do lar. 32 Unidade I Os requintes de maldade permanecem na terceira e na quarta histórias. Na terceira, intitulada “Estátuas”, há a contemplação do resultado do assassinato, com os corpos espalhados pela área de serviço, cada qual em uma posição, mas todos petrificados pela massa branca. Na quarta, sem título, inicia-se a nova era, com a opção da narradora pela dedetização ante a possibilidade do retorno infinito das baratas e do ritual de morte. Deve haver a escolha entre o “eu” e “a minha alma”, entre a maldade instintiva e a vida construída na civilização. A narradora, na segunda história, havia se referido ao seu “próprio mal secreto”, que a guiava no preparo da receita. A dedetização coloca a “placa de virtude” porque suaviza os instintos cruéis. A quinta narrativa apresenta um título estranho ao restante do conto, “Leibnitz e a transcendência do amor na Polinésia”, e não chega a ser desenvolvida. O contraste entre o título e o início da história soa irônico, uma vez que não parece haver relação entre eles. Com esse exemplo, mostramos que, com o mesmo fato, ou com o mesmo mote, podemos desenvolver inúmeras narrativas distintas. Além disso, vemos que um episódio banal, como o fato de matar baratas, pode render várias estórias. Exemplo de aplicação Observe os quadrinhos da figura a seguir. Veja que as histórias/estórias que lemos mudam nosso modo de ver o mundo, e isso, muitas vezes, exige de nós mais reflexão, mais esforço. Figura 16 – Calvin e os livros Reflita sobre a relação entre a leitura e a formação de uma pessoa. 33 STORYTELLING 3 ESTRUTURAS NARRATIVAS 3.1 Estrutura narrativa do mito No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez. Nele, estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:1-5) Toda cultura está intimamente ligada às suas narrativas mitológicas. Todo mito, afinal, é recheado de simbolismos que se intercomunicam com a história de um povo. A Guerra de Troia é um fato histórico que foi “mitificado”; o Egito, que nos seus períodos antigo e clássico dependia majoritariamente do rio para sua prosperidade, tem vários mitos que cercam o Nilo; no Japão, em que por muito tempo foi usado óleo de peixe para acender lanternas, existem mitos acerca de demônios na forma de gatos que ficam em pé em duas patas, como os gatos fariam para alcançar as lanternas que cheiravam a peixe. Em outras palavras, os exemplos são muitos e diversos. A palavra mito provém do grego mythós, significando discurso, mensagem, palavra, narrativa ou relato. O mito, verdade seja dita, é tudo isso. Mas gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que o mito está etimologicamente ligado à linguagem: sem palavra, sem discurso, sem narrativa, não há mito. Daí termos escolhido, como epígrafe desta seção, o mito de criação bíblico em que “no princípio era o Verbo” (João 1:1). As narrativas mitológicas têm mais consciência de si do que poderíamos imaginar: não é raro que um mito de origem se refira à origem do próprio mito, por exemplo. Da mesma forma, as narrativas mitológicas têm consciência de que dependem da palavra, da linguagem, da capacidade de comunicação humana. Em outros termos, o mito é um conceito que só pode existir dentro de uma sociedade, um povo, uma cultura. Seres humanos são, como já salientamos, seres narrativos. Precisamos de histórias porque precisamos de sentido – porque precisamos compreender o mundo de alguma forma. O mito existe para suprir aquele doloroso vazio existencial na psique humana: a nossa incapacidade de conhecer tudo. Aquilo que não entendemos precisa, ainda assim, ser explicado, para que tenhamos paz. O não saber é uma tortura para o ser humano e, coincidentemente ou não, é também aquilo que nos move. O desconhecimento, afinal, cria o mito, o simbolismo e a própria ciência. Não à toa, vários de nossos mitos conhecidos, nas mais diversas culturas, tratam de aspectos como a criação da espécie humana, da Terra e do Universo. Em geral, são o que chamamos de “mitos de criação” ou “mitos de origem”. 34 Unidade I Observe, por exemplo, a narrativa a seguir, extraída do livro Nascimentos, do historiador uruguaio Eduardo Galeano. Nessa obra, ele aborda aspectos da América pré-colombiana e o processo dominador da colonização. O fogo As noites eram de gelo e os deuses tinham levado o fogo embora. O frio cortava a carne e as palavras dos homens. Eles suplicavam, tiritando, com a voz quebrada; e os deuses se faziam de surdos. Uma vez lhes devolveram o fogo. Os homens dançaram de alegria e alçaram cânticos de gratidão. Mas de repente os deuses enviaram chuva e granizo e apagaram as fogueiras. Os deuses falaram e exigiram: para merecer o fogo, os homens deveriam abrir peitos com um punhal de pedra e entregar corações. Os índios quichés ofereceram o sangue de seus prisioneiros e se salvaram do frio. Os cakchiqueles não aceitaram o preço. Os cakchiqueles, primos dos quichés e também herdeiros dos maias, deslizaram com pés de pluma através da fumaça e roubaram o fogo e o esconderam nas covas de suas montanhas. Fonte: Galeano (2010, p. 22). Veja que se trata de uma explicação mitológica para o domínio do fogo pelos homens. Outros povos também criaram explicações para esse fenômeno. Na Grécia antiga, por exemplo, contava-se que o titã Prometeu havia roubado o fogo de Zeus para dar aos mortais. Por essa ação, ele foi condenado a um castigo horrível: foi acorrentado a um rochedo, e uma ave todos os dias devorava seu fígado, que se regenerava à noite. Foi salvo muitos anos depois. Leia um trecho da tragédia Prometeu acorrentado, elaborada por Ésquilo. Trata-se de uma peça teatral. O poder Eis-nos chegados aos confins da terra, à longínqua região da Cítia, solitária e inacessível! Cumpre-te agora, ó Vulcano, pensar nas ordens que recebeste de teu pai, e acorrentar este malfeitor, com indestrutíveis cadeias de aço, a estas rochas escarpadas. Ele roubou o fogo – teu atributo, precioso fator das criações do gênio –, para transmiti-lo aos mortais! Terá,pois, que expiar este crime perante os deuses, para que aprenda a respeitar a postetade de Júpiter, e a renunciar a seu amor pela Humanidade. Fonte: Ésquilo (2005, p. 5). 35 STORYTELLING Repare que as duas narrativas, produzidas em épocas e em locais bem distintos, associam o domínio do fogo ao ato de alguém tê-lo roubado dos deuses para doá-lo aos homens. Em seu livro Antropologia estrutural, Claude Lévi-Strauss diz, acerca do mito, o que se reproduz a seguir. É melhor reconhecermos que o estudo dos mitos nos leva a constatações contraditórias. Tudo pode acontecer num mito. A sucessão dos eventos não parece estar aí submetida a nenhuma regra de lógica ou de continuidade, qualquer sujeito pode possuir qualquer predicado, qualquer relação concebível é possível. Contudo, os mitos, aparentemente arbitrários, se reproduzem com as mesmas características e, muitas vezes, os mesmos detalhes, em diversas regiões do mundo. Daí a questão: se o conteúdo do mito é inteiramente contingente, como explicar que, de um extremo a outro da terra, os mitos se pareçam tanto? […] Aproximar o mito da linguagem não resolve nada: o mito faz parte da língua, é pela palavra que o conhecemos, ele pertence ao discurso. Se quisermos dar conta das características específicas do pensamento mítico, devemos, portanto, estabelecer que o mito está ao mesmo tempo na linguagem e além dela (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 223-224). Buscaremos aqui esclarecer alguns pontos da declaração de Lévi-Strauss. Precisamos estabelecer que a linguagem, como a mitologia, é aparentemente arbitrária. Não há nada acerca dos sons da palavra “mesa” que os conecte logicamente à mesa como objeto, por exemplo. Prova disso é que, embora línguas geográfica, etimológica e culturalmente próximas ao português, como o espanhol, usem sons semelhantes, isso está longe de ser verdade para todas as línguas do mundo. Existem algumas semelhanças, por vezes, entre línguas muito diferentes, embora elas sejam menos consistentes do que as semelhanças entre mitos, mas, de maneira geral, a língua é um sistema de signos arbitrários que usamos para designar certas coisas. E é por ser arbitrária e, principalmente, por ser essencial à comunicação humana, que a linguagem nunca é neutra. Não existe “ponto morto” na linguagem, porque ela é toda feita de simbolismos, e símbolos são necessariamente culturais. As linguagens, em particular as linguagens verbais, são tão integralmente ligadas à nossa cultura que se tornam quase indissociáveis de nossa psique. Pensamos em linguagem, imaginamos em linguagem e sentimos em linguagem. Você já pegou raiva de um nome por causa de uma pessoa específica, por exemplo? Já parou para pensar em como xingamentos são diferentes em diferentes línguas? Já percebeu como, na tradução de obras em outras línguas, nomes são frequentemente mudados para evitar más associações na língua-alvo? As linguagens estão sujeitas aos aspectos sociais, culturais e psíquicos. Prova disso é que as línguas mudam de acordo com o tempo, o espaço e o grupo: fossem as línguas formadas de elementos factuais, era de se esperar que a variação fosse mínima, e, no entanto, observamos o contrário. Nenhuma 36 Unidade I linguagem pode, portanto, ser neutra. E, se é pela linguagem que acessamos o mito, ele tampouco pode ser neutro. Como diz Lévi-Strauss, o mito existe no campo do discurso, é parte da língua. Mas por que, então, diz o autor que o mito está também além da linguagem? Ora, se a linguagem se cria, varia e se adapta de acordo com elementos sociais, culturais, temporais e geográficos, o mesmo pode ser dito do mito. E, sendo os simbolismos dos mitos integralmente ligados à sua cultura de origem, esses mesmos simbolismos terão efeito na linguagem, que por sua vez terá efeito no mito, e assim por diante. Linguagem e mito estão intrinsecamente ligados em um processo cíclico de formação cultural. Além disso, Lévi-Strauss também observa que a linguagem exibe comportamentos e especificidades no âmbito narrativo do mito. Embora o autor destaque, para os fins de seu trabalho, os aspectos linguísticos específicos das narrativas mitológicas, gostaríamos de pontuar que esse fenômeno ocorre em todo e qualquer campo discursivo; isto é, todo ambiente discursivo particular, como a esfera jurídica, médica, jornalística ou publicitária, entre muitas outras, apresenta certas estruturas e particularidades linguísticas próprias. Apresentaremos, posteriormente, por exemplo, uma das estruturas típicas de narrativas ficcionais na forma da jornada do herói. A razão pela qual somos capazes de desenvolver essa estrutura é que existem elementos discursivos comuns ao campo das narrativas ficcionais, particularmente as narrativas de fantasia. Lévi-Strauss também apresenta, baseado no que acabamos de discutir, “lições provisórias” acerca do mito, apresentadas a seguir. • Se os mitos têm um sentido, ele não pode decorrer dos elementos isolados que entram em sua composição, mas na maneira como esses elementos estão combinados. • O mito pertence à ordem da linguagem, faz parte dela; entretanto, a linguagem, tal como é utilizada no mito, exibe propriedades específicas. • Tais propriedades só podem ser buscadas acima do nível habitual da expressão linguística; em outras palavras, elas são de natureza mais complexa do que encontramos em uma expressão linguística de um tipo qualquer. Se forem aceitos esses três pontos, ainda que como hipóteses de trabalho, decorrem deles duas consequências muito importantes (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 226): • como todo ser linguístico, o mito é formado por unidades constitutivas; • essas unidades constitutivas implicam a presença de todas aquelas que intervêm normalmente na estrutura da língua, a saber, os fonemas, os morfemas e os semantemas. Cada forma difere da que a precede por um grau mais alto de complexidade. Por essa razão, chamaremos os elementos que são próprios do mito (e que são os mais complexos de todos) de grandes unidades constitutivas (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 226). 37 STORYTELLING Ao tratarmos das estruturas da narrativa segundo Aristóteles, mencionamos sua premissa de que uma história se constitui de partes indissociáveis do todo e de um todo indissociável de suas partes. A ponderação de Lévi-Strauss de que o sentido do mito não pode decorrer das partes isoladas de sua composição, mas da relação entre essas partes segue um caminho semelhante, em que a interligação entre os elementos é mais importante do que os elementos em si. Coincidentemente ou não, nossas línguas também se estruturam da mesma forma. Fonemas, morfemas e semantemas são as unidades constitutivas de uma língua e, no entanto, não nos é possível, salvo como exercício acadêmico, separá-los de seu todo. Não à toa, a fonologia, a morfologia e a sematologia fazem parte do guarda-chuva teórico da linguística. E há, ainda, outro elemento: a sintaxe, que se refere às possíveis relações entre palavras. Isto é, há um reconhecimento parcial ou total de que o estudo linguístico precisa passar não só pelas partes, mas pela relação entre elas. Lévi-Strauss propõe o mesmo para o mito. 3.1.1 Jornada do herói Na tradição grega clássica, os heróis têm linhagens divinas. Vejamos os exemplos a seguir. • Odisseu é um entre muitos bisnetos de Zeus; • Héracles (ou Hércules) é um famoso herói grego, filho de Zeus; • Aquiles é filho de Tétis, uma das nereidas (ninfas filhas de Nereu, antigo deus marinho associado ao mar Egeu); • Peleu é outro dos descendentes de Zeus; • Helena, também conhecida como Helena de Troia, é filha de Zeus. Vemos que heróis são semideuses, ao mesmo tempo humanos e sobre-humanos, mortais e imortais, profanos e divinos. Afinal, que mortal comum poderia interessar tanto aos deuses, ou sobreviver à sua ira? É preciso que se seja um semideus, como Héracles, para sobreviver aos monstros lendários, como a Hidra de Lerna, o Touro de Creta, o Leão de Nemeia; ou, no caso de Odisseu, o ciclope Polifemo, sobreviverà bruxa Circe e aos monstros Cila e Caríbdis. Os heróis gregos têm “superpoderes” diferentes, como os nossos. Enquanto Héracles tem sua força sobre-humana, Aquiles tem sua agilidade e Odisseu, sua inteligência. Observe as figuras a seguir. 38 Unidade I Figura 17 – Héracles (vestindo a pele do Leão de Nemeia) e Iolau lutam contra a Hidra de Lerna. Ânfora produzida entre 540 e 530 a.C., exposta no Museu do Louvre Figura 18 – Hidra no filme Hércules (Disney, 1997) Da mesma forma, que mero mortal poderia ter derrotado o bruxo mais poderoso de todos os tempos, ou derrubado um império galáctico? Mas ainda há algo além: existem estruturas narrativas que permeiam as histórias dos heróis gregos, bem como permearão as histórias dos nossos heróis modernos. São esses elementos comuns às epopeias que chamamos “a jornada do herói”. A figura a seguir esquematiza essa jornada. 39 STORYTELLING Retorno Partida Transformação ATO I – PARTIDA 1. Chamado à aventura 2. Recusa do chamado 3. Intervenção externa 4. 1º limiar ou portal menor 5. Partida 6. Encontro com mentor 7. Experiência ATO III – RETORNO 1. Último limiar ou portal do retorno 2. Recusa do retorno 3. Fuga ou desaparecimento 4. União de dois mundos 5. Liberdade para viver 6. Crise e decadência 7. Morte 8. Consequências ATO II – TRANSFORMAÇÃO 1. Teste 2. Sucesso e fracasso 3. Crise interna e/ou externa 4. Tentação 5. Morte do herói 6. 2º limiar ou portal maior 7. Caminho de volta 8. Metamorfose e ressurreição 9. Retorno vitorioso 10. Recompensa e/ou apoteose Figura 19 – Esquema da jornada do herói A jornada do herói se divide em três partes: partida, transformação e retorno. Nas palavras de Joseph Campbell (2009), temos separação, iniciação e retorno. Campbell também indica o caráter ritualístico dessas três fases, que remetem a estruturas de rito de passagem em diversas culturas. Conforme já discutimos, o ato de contar estórias está intimamente ligado a aspectos ritualísticos; afinal, mitos são estórias, e mitologia e ritual alimentam-se constantemente um do outro. Vejamos como isso se dá a seguir. Dioniso (Baco, em latim), deus grego das festas, da loucura, do teatro e do vinho, particularmente associado à intoxicação como contato com o divino, é filho de Zeus com a mortal Sêmele, neta de Áries e Afrodite. Quando Sêmele estava em seu sexto mês de gestação, ela foi enganada por Hera, que a convenceu a insistir que Zeus lhe mostrasse sua verdadeira forma. Exposta diretamente à divindade dos deuses olímpicos, Sêmele foi fulminada por um raio e morreu. Zeus, então, removeu o feto de seu ventre e o costurou em sua coxa, de onde nasceria Dioniso algum tempo depois. Segundo algumas versões do mito, esse é o segundo nascimento de Dioniso. Seu primeiro nascimento foi de Perséfone, violentada por Zeus antes de ser raptada por (ou, em algumas versões, ir voluntariamente 40 Unidade I com) Hades. Zagreu – outro dos nomes de Dioniso, geralmente usado para se referir a ele nesse período de seu primeiro nascimento – foi criado pelos titãs. Ainda criança, ele foi destroçado por esses mesmos titãs sob a influência de Hera, restando apenas seu coração, resgatado por Atena. É justamente esse coração que Zeus teria implantado no ventre de Sêmele, proporcionando o renascimento de Dioniso. Para tentar esconder o filho da ira de Hera, Zeus entregou-o a Hermes, que, por sua vez, o levou até Ino, irmã de Sêmele, para que fosse criado como sua filha (Zeus ordenou que Dioniso fosse criado como mulher, provavelmente para despistar Hera). Hera fez com que Atamante, marido de Ino, enlouquecesse e matasse seu filho, Learco. Em seguida, Ino, também enlouquecida, matou seu outro filho, Melicertes, e atirou-se ao mar com ele. Porque Hera sabia que o filho de Zeus era um menino, ela achou que ele também tivesse sido morto; Zeus, então, escondeu Dioniso entre as ninfas de Nisa, que, por seu serviço a Zeus, foram transformadas nas estrelas Híades. Como consequência desse mito, Dioniso foi consistentemente associado à loucura, e geralmente punia mortais que o desafiavam com ela. Na tragédia As Bacantes, presenciamos Dioniso (Baco, na cultura romana) fazer a mãe, as tias e as irmãs do rei Penteu de Tebas entrarem em um frenesi em que despedaçam o rei com as próprias mãos. Dioniso era conhecido por produzir uma espécie de transe, particularmente em mulheres. Tendo sido criado inicialmente como uma mulher, e posteriormente entre as ninfas, ele é particularmente ligado à feminilidade. Por vezes, como no caso de As Bacantes, esse transe era irrefreavelmente violento; outras vezes, ele era uma conexão profunda com os deuses, quase como uma ascensão à divindade, e parte de ritos regulares a Dioniso. As Bacantes (chamadas de Mênades, em grego) que dão nome à tragédia de Eurípedes, por sinal, são ninfas que cultuam Dioniso, e delas provêm muitos de seus ritos e cultos, imediatamente reconhecíveis pela expressiva presença de mulheres, estrangeiros e escravos, bem como os transes provocados neles. Figura 20 – Estátua de Dioniso, produzida no século II d.C., exposta no Museu do Louvre 41 STORYTELLING Figura 21 – A morte de Penteu, tigela de cosméticos produzida por volta de 450-425 a.C. exposta no Museu do Louvre A história de Dioniso era formadora dos ritos dedicados a ele, bem como seus ritos eram formadores de sua história. Outro exemplo é o tradicional sacrifício feito a Dioniso, em geral, de cabras e cordeiros. Afinal, o deus aparece frequentemente na forma de um bode e está intimamente ligado – de novo em função de sua história – à morte e ao renascimento. Narramos brevemente a história de Dioniso para que fique claro que a conexão entre storytelling e os processos ritualísticos é antiga e mais íntima do que nos pode parecer a princípio. Não nos parece muito difícil entender por que a jornada do herói tem forte conexão com o mito. Como veremos, as mitologias divinas e a jornada do herói têm muito em comum. Aproveitaremos também este momento para tratar de um aspecto oculto, porém comum da jornada do herói: a ideia de destino. Para exemplificar a ideia grega de destino, narraremos aqui duas famosas histórias da mitologia grega: a história de Édipo e a história de Aquiles. Talvez a mais amplamente conhecida das tragédias gregas, Édipo Rei, de Sófocles, narra a história de um bebê deixado para morrer, com os pés amarrados, no Monte Citerão, entre Tebas e Corinto. Levado por um pastor a Corinto, a criança é adotada por Pólibo. Muitos anos depois, quando o jovem consulta o Oráculo de Delfos acerca de sua origem, ele recebe uma terrível profecia: ele matará seu pai e se casará com sua mãe. Buscando evitar seu destino, Édipo deixa Corinto. No caminho, ele encontra um velho viajante, com quem discute. Enfurecido, Édipo mata o viajante e quase toda sua comitiva. O que Édipo não sabe, é claro, é que o viajante é Laio, rei de Tebas e seu pai biológico. Andando sem rumo, Édipo encontra-se às portas de Tebas, onde a Esfinge lhe propõe um enigma. A resposta correta de Édipo salva sua vida e a cidade. Como recompensa, Creonte, irmão da rainha e até então regente de Tebas, oferece-lhe a rainha Jocasta em casamento e o título de rei. Quinze anos depois, a cidade se vê assolada por uma terrível peste. Creonte aconselha Édipo, dizendo que é preciso que se encontre o assassino de Laio, falecido rei de Tebas e marido de Jocasta, que morrera misteriosamente. Tirésias, o sábio cego que aparece como mentor para alguns heróis, incluindo Odisseu, informa Édipo de que o assassino está mais próximo do se imagina. Nesse meio-tempo, o palácio recebe 42 Unidade I a notícia da morte de Pólibo, pai adotivo de Édipo. Na sequência, aparece o único sobrevivente da comitiva de Laio: o pastor que levara Édipo, ainda criança, ao Monte Citerão para morrer sob comando do rei, que temia uma profecia que recebera acerca do filho. O homem reconhece tanto o bebê que abandonara quanto o assassino de Laio namesma pessoa: Édipo, rei de Tebas. Diante dessa descoberta, Jocasta comete suicídio e Édipo se cega, furando os próprios olhos. Ele cumprira a profecia que lhe fora dada: matara o próprio pai e casara-se com a própria mãe. Apesar das tentativas de Laio e de Édipo de evitar a profecia, ela se cumprira de uma maneira inesperada. Observação Na década de 1990, o jornal sensacionalista Notícias Populares teve uma campanha publicitária baseada na ideia de que as grandes histórias da literatura mundial também continham doses de violência. Em uma das peças, valeu-se da tragédia de Édipo, como se vê no anúncio a seguir. Figura 22 – Anúncio do jornal Notícias Populares Contrastemos a história de Édipo com a de Aquiles. Filho da ninfa Tétis e do rei Peleu (neto de Zeus), Aquiles é o herói grego por excelência e o mais poderoso dos guerreiros que lutaram em Troia. No começo da Ilíada, Aquiles, insultado por Menelau, recusa-se a voltar ao campo de batalha. Temendo que a ausência de Aquiles encorajasse os troianos, Agamenon envia Ajax e Odisseu para que o convençam a retornar. Aquiles, tomado pela fúria cega que é sua marca, recusa. Mais tarde, diante das dificuldades encontradas pelos aqueus sem Aquiles, Pátroclo, amigo e amante de Aquiles, lhe pede sua armadura e o direito de comandar em batalha suas tropas, os lendários e valentes mirmidões, na esperança de que a mera imagem de Aquiles seja suficiente para fazer recuarem os troianos. Aquiles concede, mas instrui Pátroclo para que apenas expulse os troianos e não os persiga. 43 STORYTELLING Vestindo a armadura de Aquiles, Pátroclo força os troianos a recuarem e, desobedecendo ao conselho de Aquiles, os persegue até as muralhas da cidade. Heitor, percebendo que não era de fato Aquiles quem os atacava, luta com Pátroclo e o mata. Imediatamente, desenrola-se uma disputa pelas armas de Aquiles, que acabam por serem tomadas por Heitor. Ajax recupera o corpo de Pátroclo, que leva de volta ao acampamento grego. Aquiles, tomado completamente pelo luto da morte de Pátroclo, vai a sua mãe, Tétis. Ela lhe promete novas armas, e vai a Hefesto, deus da forja, pedir que elas sejam produzidas. Tétis oferece também conselhos ao filho. Ela diz que Aquiles tem dois destinos: se escolher lutar, ele morrerá jovem, mas será eternamente lembrado como o maior dos heróis; se ele se recusar a lutar, viverá uma longa vida, mas será esquecido. Já movido pelo desejo de provar-se como herói, a morte de Pátroclo leva Aquiles a tomar o passo final e escolher a própria morte. Com armas novas e tomado por uma fúria incontrolável – tão incontrolável, na verdade, que Zeus permite que todos os deuses participem do combate, temendo que a ira de Aquiles destrua Troia antes do tempo –, Aquiles faz com que o exército aqueu avance até as muralhas da cidade. Lá, ele entra em combate com Heitor, e os dois dão três voltas na cidade em seu duelo, ao final do qual Aquiles mata Heitor e arrasta seu corpo de volta ao acampamento grego. À noite, o velho Príamo, pai de Heitor, procura por Aquiles e implora pelo corpo de seu filho, para que ele possa receber os ritos fúnebres que merece. Comovido pela sinceridade do sofrimento de Príamo, a ira de Aquiles finalmente se abranda e ele devolve o corpo de Heitor aos troianos. Os ritos fúnebres de Heitor encerram a Ilíada – após a morte do maior de seus heróis, a queda de Troia é apenas uma questão de tempo. Aquiles sobrevive à Guerra de Troia, mas já recebe de Heitor a profecia de sua morte. Posteriormente, Aquiles será morto com uma flecha envenenada de Páris, guiada pelo deus Apolo. Narramos brevemente essas duas conhecidas histórias para ilustrar como o conceito grego de “destino” é complexo e de difícil definição. No caso de Édipo, o destino parece fixo e inescapável, independentemente de qualquer escolha que poderia ser tomada por ele. Já no caso de Aquiles, existem dois destinos, e é sua escolha que sela o que virá a seguir. Mais do que isso, ele parece desafiar aquilo que já foi estabelecido pelos deuses – do contrário, por que Zeus temeria sua ira? Por que teria sido necessário conter Aquiles antes que ele saqueasse Troia? Embora a história tenha garantido diversas semelhanças culturais entre a Grécia clássica e o mundo ocidental moderno, o conceito grego de livre-arbítrio parece-nos um pouco obscuro. Para os gregos, a influência dos deuses não se opõe ao livre-arbítrio dos mortais; afinal, deuses e mortais não são criaturas tão essencialmente diferentes. Basta pensar que, na mitologia grega, os deuses viviam no Monte Olimpo, lugar físico e real da Grécia, para começar a compreender que mortais e deuses não estão muito distantes – e deuses e heróis menos distantes ainda. Não à toa, os deuses gregos são antropomórficos, isto é, se parecem com humanos, apenas ocasionalmente disfarçando-se como animais. Os deuses e o contato com os deuses são parte integrante da vida dos mortais; não é possível separar, portanto, a influência divina do livre-arbítrio. 44 Unidade I Figura 23 – A morte de Aquiles, pelo pintor Peter Paul Rubens O conceito de destino habita esse mesmo campo híbrido entre deuses, heróis e mortais. Aquilo que foi estabelecido pelos deuses – por vezes, por forças ainda maiores do que os deuses – não pode ser descartado ou ignorado, mas tampouco é completamente imutável. É como se houvesse um mapa que contém apenas um círculo em torno da destinação, mas nenhum caminho. O caminho será construído pelo herói, que chegará, eventualmente, a uma destinação já demarcada, mas ainda assim surpreendente. Repare como as profecias são ao mesmo tempo específicas e gerais: Édipo matará seu pai e casará com sua mãe, mas não sabemos se isso se refere aos seus pais adotivos ou biológicos. Aquiles morrerá em batalha (porque escolheu esse entre os seus destinos), mas não sabemos onde, quando nem como. O entrelugar do destino na mitologia grega tem também sua interpretação moderna. Retomemos, por exemplo, obras como Harry Potter e Star Wars. No primeiro, vemos o uso moderno da profecia, não muito diferente de seu uso clássico: é profetizado por Trelawney que “ao final do sétimo mês” nascerá um menino, filho daqueles “que o desafiaram três vezes”, com o poder de derrotar Voldemort. Esse menino será marcado pelo Lorde das Trevas como seu igual, e um dos dois deverá ser morto pelo outro. A princípio, ao saber da profecia e temendo sua realização, Voldemort encontra dois candidatos possíveis, que cumprem as características listadas por Trelawney: Harry Potter e Neville Longbottom. 45 STORYTELLING Voldemort pretende matar as crianças ainda pequenas, removendo assim a ameaça ao seu poder. Como o foi para Édipo, sua tentativa de mudar o destino é o que garante que ele se cumpra. Ao tentar matar Harry, ele acidentalmente faz do menino uma Horcrux (um receptáculo que pode armazenar parte da alma de um bruxo, protegendo-o da morte), deixando Harry com a cicatriz que o marca como um igual, conforme havia sido predito. A segunda parte da profecia, em que um deverá matar o outro, acontece em duas partes: primeiro, quando Voldemort “mata” Harry e acaba, na verdade, por matar sua própria Horcrux e, por fim, quando Harry derrota o Lorde das Trevas. Em Star Wars, sabemos que é o destino de Anakin Skywalker trazer equilíbrio à Força. A interpretação que os Jedis fazem dessa profecia, baseados nos seus próprios valores, é de que Anakin destruirá os Sith. A Força, no entanto, tem um caráter moralmente ambíguo que também pode ser observado nas divindades: ela não está do lado dos Jedis, tampouco do lado dos Sith. A Força simplesmente existe. Isso permite que Anakin cumpra sua profecia de forma inesperada. Primeiro, ele mata o Conde Dookan, um dos Sith. Isso faz com que exista apenas um Sith para vários Jedis; a Força, portanto, está desequilibrada. Tentado, como frequentemente são os heróis, pelo amor e pelo desejo de uma vida comum, Anakin será gradualmente tomado por uma fúria incontrolávelmuito semelhante à de Aquiles. É essa fúria que o levará a tornar-se Darth Vader. Ao final do Episódio III, existem apenas dois Jedis (Obi-Wan Kenobi e Yoda) e dois Siths (Darth Sidious e Darth Vader): isto é, existe equilíbrio na Força. O destino de Anakin foi cumprido; e, porque seu destino foi cumprido, o lugar de herói é tomado por seu filho, Luke Skywalker. O destino, em outras palavras, é tão certo quanto é misterioso. Ele ocupa um espaço ambíguo próprio do mito e das divindades, de modo que é difícil encontrar seu lugar na jornada do herói. Mais do que um dos elementos em uma sequência, o destino é o elemento que permeia todas as partes da jornada do herói. Tendo estabelecido por que o destino não aparece em nossa esquematização da jornada do herói, aproveitamos também para esclarecer que essa esquematização tem caráter inteiramente didático. Ato I – Partida No começo do primeiro filme da saga de Star Wars, que posteriormente viria a se tornar o Episódio IV da série, somos apresentados ao jovem Luke Skywalker. Ele é um jovem simples, honesto e um tanto ingênuo, vivendo uma vida comum no planeta desértico de Tatooine com seus tios, que são fazendeiros. É a típica vida rural, “pacata”, que provoca no espectador – particularmente considerando que a maioria dos espectadores, especialmente quando do lançamento do filme, viviam em cidades – um senso de estabilidade, monotonia, quase tédio. Além das condições de pobreza em que vivem os Skywalker, bem como a maioria dos habitantes de Tatooine, há um senso de empatia pelo protagonista. Pelo que parece a princípio ser uma coincidência do destino, ele encontra uma mensagem da Princesa Leia de Alderaan – que posteriormente descobriremos ser sua irmã – endereçada a Obi-Wan Kenobi. Movido pela mensagem, Luke vai em busca de Ben Kenobi, nome adotado por Obi-Wan em Tatooine. É Obi-Wan, como primeiro mentor de Luke nos assuntos da Força, que consolida o primeiro estágio da jornada: o chamado à aventura. 46 Unidade I Após fornecer a Luke algumas meias-verdades acerca de seu pai, Anakin, Obi-Wan pede que ele se junte à Rebelião na luta contra o Império. Luke toma, então, o segundo passo de sua aventura: ele recusa o chamado, alegando que precisa cuidar de seus tios. Porque a história precisa seguir seu caminho, e porque o destino do herói nunca pertence a ele, vem então uma intervenção externa, com os tios de Luke sendo violentamente assassinados. Este é também seu 1º limiar, ou seja, seu primeiro teste, o primeiro portal que ele cruza em sua jornada como herói. Em seguida, observamos o ponto climático da primeira fase: a partida do herói de seu lugar de origem para um mundo que ele desconhece. No caso de Luke, o encontro com o primeiro de seus mentores ocorre antes mesmo da partida; em outros casos, porém, o encontro com o mentor só ocorrerá depois da partida. Pensemos em séries como Harry Potter, por exemplo, em que o protagonista só vem a encontrar seus mentores já em Hogwarts. A próxima fase, que chamamos de experiência, é o período em que o herói está em fase de treinamento, desenvolvendo suas habilidades, seus relacionamentos e sua própria identidade. No caso de Luke Skywalker, esse período se inicia quando ele deixa Tatooine e inclui os encontros com Han Solo, Chewbacca e Leia, entre outros, bem como os relacionamentos que se desenvolvem entre eles. Esse período acaba quando ele passa por seu primeiro teste, com a infiltração da Estrela da Morte e a resultante morte de seu primeiro mentor, Obi-Wan Kenobi. Figura 24 – Robô e Mestre Yoda de Star Wars Vejamos, ainda, a semelhante trajetória de Odisseu em relação à Guerra de Troia. Primeiro, o chamado à aventura vem na forma de Menelau, que vai a Ítaca recrutá-lo para o exército aqueu. Odisseu tenta recusar, fingindo loucura – afinal, que valor teria o grande Odisseu sem sua lendária astúcia? Vem então a intervenção externa, quando seu filho recém-nascido é colocado no caminho do arado. Odisseu 47 STORYTELLING desviou, revelando no processo que não estava de forma alguma senil e, como consequência, foi forçado a tomar parte na Guerra de Troia. Diante disso, ele parte para recrutar Aquiles, que se encontrava disfarçado entre as damas do palácio de Licomedes, onde fora colocado por sua mãe, Tétis, que temia a morte do filho se ele participasse da guerra: esse é o primeiro limiar de Odisseu, pois o evento coloca em movimento o que se seguirá na Guerra de Troia. Poderíamos traçar, ainda, percurso parecido para a partida de Odisseu após a Guerra de Troia. Dessa vez, o chamado à aventura tem origem em um deus: Poseidon. É importante que se esclareça que, na mitologia grega, era comum que os deuses competissem entre si, geralmente por intermédio de mortais escolhidos. Da mesma forma, há inimizades entre deuses e heróis. A própria Guerra de Troia começa com uma disputa entre os deuses. No caso específico de Odisseu, a inimizade com Poseidon que lhe custará quase dez anos de jornada parte principalmente de um dos primeiros eventos de sua jornada. Após terem todos os seus navios desviados por tempestades, Odisseu e seus companheiros são capturados pelo ciclope Polifemo, que devora parte dos homens. Odisseu oferece-lhe vinho, dizendo que a oferta vem de “Ninguém” e, quando o ciclope adormece, ele e seus companheiros afiam uma vara e perfuram o olho de Polifemo. Cego, o ciclope tateia ao seu redor, mas só consegue sentir o pelo de suas ovelhas, pois Odisseu e os demais tripulantes esconderam-se, agarrados às barrigas dos animais. Polifemo remove a enorme rocha que bloqueava a entrada da caverna e grita por ajuda aos seus irmãos ciclopes, dizendo que “Ninguém” o cegou. Já de volta em seu navio, no entanto, Odisseu comete um erro comum dos heróis gregos, chamado de húbris. Geralmente traduzido como “arrogância” ou “descomedimento”, o termo refere-se àquilo que frequentemente cega os heróis e enfurece os deuses: a crença de que eles, heróis, também são seres divinos. Seguro em seu navio, Odisseu revela seu nome a Polifemo e garante a inimizade de Poseidon, pai do ciclope, no processo. As intervenções de Poseidon arrancam Odisseu do que poderia ter sido uma viagem pacífica (como, por sinal, teve a maior parte dos outros heróis) de volta para casa e o forçam a uma jornada de aventura, repleta de testes e provações. Saiba mais Conheça também a minissérie A Odisseia (The Odyssey), de 1997, produzida pela NBC: A ODISSEIA. Direção: Andrei Konchalovsky. EUA: NBC, 1997. 150 min. 48 Unidade I Esse é um percurso comum que inicia a jornada do herói, o que não quer dizer que ele só possa ocorrer no começo da história. A saga de Star Wars, que já utilizamos como exemplo, tem ao menos três jornadas do herói completas, uma para cada um de seus protagonistas. É comum que sagas heroicas, como Star Wars, Harry Potter e O Senhor dos Anéis, para citar os exemplos mais famosos, repitam um ou mais dos percursos da jornada do herói, seja o protagonista outro ou o mesmo. Ato II – Transformação O que marca a transição entre a etapa da partida e a etapa da transformação é o primeiro grande teste do herói. Conforme mencionamos, no caso de Luke Skywalker esse teste envolve a infiltração na Estrela da Morte e a morte de Obi-Wan Kenobi. O teste geralmente resulta, depois de todos os sucessos do herói em seus desafios menores, em seu primeiro fracasso total ou parcial, que por sua vez conduz o herói a uma crise interna ou externa. Geralmente, a crise é provocada ou intensificada por algum tipo de tentação. Como já tratamos sobre a Disney anteriormente, observemos o exemplo do filme Hércules. Baseado na estória de Héracles, herói mitológico grego, o filme segue um percurso bastante reconhecível para estudarmos as estruturas narrativas das narrativas épicas. Já reconhecido amplamente como um herói, Hércules ainda assim se vê diante de um novo teste, um teste de sua própria identidade: ele não é um deus, mas tampouco é como os mortais. Ele é tentadotanto pelo desejo de tornar-se um deus quanto pelo desejo de viver uma vida mortal com Megara, por quem se apaixona. Quando é forçado por Hades a escolher entre Megara e seus poderes, Hércules escolhe proteger a amada. Ele falha em resistir à tentação do amor e consequentemente perde seus poderes – é isso, por sinal, que chamamos de morte do herói. Embora por vezes essa morte possa ser literal, física, ela é majoritariamente simbólica, indicando o momento em que o herói perde seus poderes, sua determinação, seu caminho e sua própria identidade. Ao decidir enfrentar o ciclope que está atacando a cidade de Tebas, mesmo sem sua força, Hércules está cruzando seu 2º limiar, o portal que o herói cruza quando retorna à ação depois de sua crise; isto é, quando ele decide ser ou não um herói. O caminho de volta, como ocorre com frequência, é indicado pelo mentor, e o herói ressurge, transformado, para cumprir seu destino. Seu retorno é geralmente vitorioso, como o é para Hércules, e ele é recompensado com a veneração de seu povo: aquilo que chamamos de recompensa e apoteose. Apoteose é uma palavra derivada do latim que indica deificação, ou seja, a inclusão no divino. Na série animada She-Ra e as Princesas do Poder de 2018, baseada na série She-Ra: Princesa do Poder de 1985, acompanhamos as aventuras da heroína Adora na luta contra a Horda. Diante da ameaça de uma arma de imenso poder localizada no interior de seu planeta, Etéria, Adora consegue impedir que o planeta seja destruído, mas não que ele seja transportado para outra dimensão, ocasionando uma nova ameaça. Isto é, seu teste resulta ao mesmo tempo em sucesso e fracasso. Como consequência de suas ações, Adora perde seus poderes e passa por uma crise ao mesmo tempo interna e externa, com a própria identidade e a segurança do planeta postas em jogo. 49 STORYTELLING Saiba mais Conheça a animação da Disney sobre Hércules e a minissérie She-Ra e as Princesas do Poder: HÉRCULES. Direção: Ron Clements; John Musker. EUA: Walt Disney Pictures, 1997. 93 min. SHE-RA e as Princesas do Poder. Direção: Noelle Stevenson. EUA: DreamWorks Animation Television, 2018. 24 min. Seu caminho de volta é relativamente lento quando comparado aos caminhos de heróis como Hércules, mas isso provavelmente se deve ao formato; afinal, estamos tratando de uma série, não de um filme. Ela também não é motivada a encontrar o caminho de volta por seus mentores, mas antes por seus relacionamentos. Adora cruza o segundo portal, tomando a decisão de cumprir seu destino como heroína, guiada pelo desejo de proteger aqueles que ama. Sua metamorfose é marcada, também, por uma mudança física em She-Ra, que renasce mais parecida com Adora em sua forma comum, indicando a fusão entre a protagonista e seu alter ego heroico. Seu retorno é vitorioso, e sua recompensa é o resgate de seus amigos. Insistimos que essas estruturas, embora comuns às narrativas de herói, não são tão fixas quanto podem parecer a princípio. Não é incomum, principalmente em mídias mais longas como séries e livros, que o herói passe pela fase de transformação mais de uma vez, por exemplo. Isso acontece no caso de She-Ra. Tampouco é incomum que haja variações na ordem dos elementos; no caso de Hércules, por exemplo, a tentação precede a crise. É possível, ainda, embora consideravelmente menos comum, que o herói não retorne de sua crise; isto é, que o herói decida rejeitar seu destino. Nesses casos, geralmente, a transformação indica a passagem do herói para o papel de antagonista ou vilão. Às vezes, o herói transforma-se em um mortal comum; ou, simplesmente, morre, abrindo espaço para um novo herói. Ato III – Retorno Se nas etapas anteriores indicamos que os elementos e sua ordem podem variar, no terceiro ato não estabeleceremos uma ordem. Antes, os itens que listamos como o encerramento da jornada do herói são diferentes possibilidades de final. É comum que um ou mais desses elementos se apresentem ao final da jornada do herói, sendo alguns mais comuns do que os outros. Uma vez cruzado o último limiar, o último dos portais, que leva o herói de volta ao começo, o que vem depois depende inteiramente das características do herói e sua história. Baseados nos heróis que usamos como exemplo, observemos como isso ocorre. Ao final de Hércules, vemos a recusa do retorno – após toda a sua jornada em busca da divindade, Hércules acaba por recusar voltar ao Olimpo para ficar com Megara. Isso lhe proporciona a união de dois mundos, ou seja, ele é um deus entre os mortais, e um mortal entre os deuses. Isso também abre 50 Unidade I caminho para aquilo que chamamos de liberdade para viver: o momento em que o herói, por fim, pode ter a experiência de uma vida normal. Édipo também passa pela recusa do retorno, mas seu percurso posterior é completamente diferente. Como boa tragédia, Édipo Rei não tem o que chamaríamos de um final feliz. Tomado por sua crise e decadência, Édipo recusa o retorno, seja ele a Corinto, onde foi criado, ou a Tebas, onde era rei. Ele escolhe vagar sem rumo pela Grécia guiado por sua filha, Antígona – isto é, ele escolhe a fuga e o desaparecimento e, eventualmente, a morte. Ainda outro herói que citamos a passar pelos estágios de recusa do retorno, crise e decadência, fuga e desaparecimento e morte é Luke Skywalker. Na trilogia mais recente de Star Wars, encontramos Luke isolado, em crise e recusando seu papel como herói. Diferentemente de Édipo, no entanto, esse caminho não o leva à morte – sua morte, na verdade, é consequência de seu retorno como herói. Não é coincidência que a história de Luke tenha tantos pontos de similaridade com a história de seu pai, Anakin Skywalker. Também Anakin recusa o chamado do retorno – feito na forma de sua esposa e seu mentor – e isso o leva para um caminho de crise e decadência. Para ele, a morte do herói parece ser permanente até o momento de sua morte física ao final do Episódio VI. A redenção de Anakin, portanto, é sua própria morte. Não é raro, por sinal, que encontremos, ao longo da jornada do herói, a ideia da morte como sacrifício, purificação e redenção. Que Aquiles escolha a própria morte o redime não só de sua culpa pela morte de Pátroclo, mas pelo seu desrespeito com o corpo de Heitor – é, afinal, o próprio irmão de Heitor quem o matará, apesar de Aquiles ser o maior dos heróis e Páris ser considerado pouco habilidoso como guerreiro. Em Harry Potter, quase todas as mortes são momentos de redenção, particularmente entre os mentores: Dumbledore, Snape e Sirius se redimem com o próprio sacrifício. Em O Senhor dos Anéis, Boromir e Gollum passam pelo mesmo processo. Em She-Ra e as Princesas do Poder, Ângela e Sombria também. Como podemos perceber, os exemplos são muitos. Deixaremos de lado quão bem realizados ou não são os arcos de redenção de cada um desses personagens. O debate acerca de quão efetivo é o papel da morte como redenção nessas narrativas, infelizmente, foge ao nosso escopo no momento. O que gostaríamos de pontuar é que o uso da morte – particularmente do sacrifício – como forma de redenção tem raízes fortes e profundas em muitas culturas. A imagem do mártir é culturalmente forte, especialmente nas culturas ocidentais e majoritariamente cristãs; mas, mais do que isso, o uso da morte purificadora como estrutura narrativa nos remete, mais uma vez, ao aspecto ritualístico das histórias. Afinal, não é raro que encontremos religiões em que a ideia de sacrifício é prevalente, seja ele material e físico, seja ele espiritual e metafórico. O cristianismo, com destaque para o catolicismo, por exemplo, baseia-se amplamente na ideia de sacrifício. Essencialmente, o ponto a que queremos chegar é que o herói, ao final de sua jornada, terá de lidar com as consequências de suas ações, sejam elas positivas, negativas ou mistas. Apesar de seu destino ter sido traçado ainda na mais tenra infância, Édipo terá de lidar com as consequências desse destino. Apesar de Harry Potter, similarmente,ter recebido ainda bebê a profecia de seu destino, as consequências serão suas. Da mesma forma, porque Aquiles escolheu a própria morte, ele deverá lidar 51 STORYTELLING com as consequências. Independentemente do grau de escolha e vontade do herói, as consequências lhe pertencem. Saiba mais Para saber mais sobre a jornada do herói, leia o livro: CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 2009. 3.2 Estrutura narrativa dos contos maravilhosos O formalista Vladimir Propp dedicou-se a identificar a estrutura básica de contos folclóricos russos. Em 1928, publicou Morfologia do conto maravilhoso, obra que pretende classificar personagens e funções narrativas desses textos. Observação Considera-se maravilhoso o conto que não problematiza a dicotomia entre o real e o imaginário. O mágico, o sobrenatural e o irracional inserem-se no universo da estória sem qualquer questionamento. Os contos de fada são contos maravilhosos. Propp mostrou que o conto maravilhoso se origina de concepções sagradas do mundo, e, dialeticamente, resulta da profanação do conteúdo religioso. O autor realizou uma descrição dos contos com base em suas partes constitutivas, nas relações entre elas e na relação entre essas partes e o conjunto do texto. Propp descobriu que, muitas vezes, os contos emprestam as mesmas ações aos personagens. Observação O formalismo é uma corrente de pensamento aplicado pela crítica literária no início do século XX. Os formalistas preocupavam-se, essencialmente, com o que tornava um texto literário. Em outras palavras, buscavam identificar, na forma, como era construída a literariedade. Na composição dos contos maravilhosos, Propp identificou sete papéis ou personagens fixos, com suas respectivas esferas de ação: 52 Unidade I • o herói; • o antagonista (ou agressor); • o doador; • o auxiliar; • a princesa (ou seu pai); • o mandante; • o falso herói. Além disso, estabeleceu 31 funções (ações) constantes: afastamento, proibição, transgressão da proibição, interrogatórios, informação sobre o herói, embuste, cumplicidade, dano, carência, mediação, início da reação, partida, primeira função do doador, reação do herói, recepção do objeto mágico, deslocamento no espaço, combate, marca do herói, vitória, reparação do dano ou carência, regresso do herói, perseguição, salvamento, retorno incógnito, falsa pretensão, tarefa difícil, tarefa cumprida, reconhecimento, desmascaramento, transfiguração, castigo e casamento. Essas funções são também chamadas de “sintagmas narrativos”. Nas palavras de Propp, temos o que segue. Por função compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação (PROPP, 1978, p. 22). Propp aponta a sequência em que se encadeiam as ações, afirmando que sua combinação não é aleatória: ela deriva de uma regra de composição que orienta o sentido da narrativa. Segundo o autor, é possível que um conto maravilhoso não apresente todas as funções, mas a ordem delas não se altera. Repare, por exemplo, na estória de Chapeuzinho Vermelho. A menina afasta-se da casa, recebe uma ordem da mãe e é enganada pelo lobo. Depois, ela é salva pelo lenhador (herói), e o lobo (antagonista) é punido. Segundo João Luiz Lafetá (2004, p. 79), Propp demonstrou que os contos populares se constituem sempre em torno de um núcleo simples. O herói sofre um dano ou tem uma carência, e as tentativas de recuperação do dano ou de superação da carência constituem o corpo da narrativa. 53 STORYTELLING Em linhas gerais, podemos identificar as funções distribuídas nas seguintes partes: • introdução; • nó da intriga; • intervenção dos doadores; • retorno do herói. O esquema a seguir mostra essas etapas, representadas respectivamente pelos números 1, 2, 3 e 4. α = situação inicial 2 A,a = dano ou carência B = mediação C = início da reação ↑ = partida 4 ↓ = retorno Pr = perseguição R = salvamento O = chegada incógnita L = reinvidações infundadas M = tarefa difícil N = solução Q = reconhecimento Ex = desmascaramento T = transfiguração U = castigo W = casamento 1 β = afastamento γ = proibição δ = violação ξ = informação ε = interrogatório ξ = informação θ = embuste η = cumplicidade 3 D = primeira função do doador E = reação do herói F = recepção de um agente mágico G = deslocamento físico entre dois reinos H = combate I = marca J = vitória K = reparação do dano Figura 25 – Ações de um conto maravilhoso de acordo com Propp Observação Os contos de fada normalmente trabalham com o maniqueísmo, isto é, a divisão dual entre o bem e o mal. Vale detalharmos um pouco melhor essas funções. 1. Afastamento: a personagem se afasta do local familiar. 2. Interdição: há a determinação de algo que a personagem não deve fazer sob pena de ser castigada. 3. Transgressão: a personagem desobedece. 4. Interrogação: o antagonista pergunta por meios pelos quais pode afetar a vítima. 54 Unidade I 5. Informação: o agressor consegue as informações de que necessita. 6. Engano: o agressor tenta enganar a vítima. 7. Cumplicidade: a vítima deixa-se envolver pelo antagonista. 8. Dano: surge o problema principal da narrativa. 9. Mediação: entra em cena o herói para enfrentar o problema. 10. Início da ação contrária: o herói vai contra o agressor. 11. Partida: o herói parte para sua missão. 12. Doação: um personagem ajuda o herói. 13. Reação: o herói supera a prova. 14. Prêmio: o herói é recompensado por vencer a prova com um objeto mágico. 15. Deslocamento: o herói vai para o lugar do conflito. 16. Luta: o herói enfrenta o agressor. 17. Marca: o herói após a luta ganha uma marca ou um objeto identificador. 18. Vitória: o bem vence o mal. 19. Reparação: o dano é corrigido. 20. Volta: o herói regressa para casa. 21. Perseguição: o antagonista persegue o herói. 22. Socorro: o herói se salva. 23. Retorno incógnito: o herói chega sem se identificar. 24. Falso herói: alguém se passa pelo herói. 25. Tarefa difícil: o herói deve cumprir a prova para mostrar quem é. 26. Tarefa cumprida: a prova é realizada. 55 STORYTELLING 27. Reconhecimento: o herói é identificado. 28. Desmascaramento: o falso herói é desmascarado. 29. Transfiguração: o herói é encoberto por uma aura que o transfigura. 30. Punição: o agressor é punido. 31. Casamento: o herói casa-se com a pessoa amada. Exemplo de aplicação Tente identificar os personagens e as ações propostas por Propp no conto a seguir. A Bela Adormecida Irmãos Grimm Era uma vez, há muito tempo, um rei e uma rainha jovens, poderosos e ricos, mas pouco felizes, porque não tinham concretizado maior sonho deles: terem filhos. — Se pudéssemos ter um filho! — suspirava o rei. — E se Deus quisesse, que nascesse uma menina! —animava-se a rainha. — E por que não gêmeos? — acrescentava o rei. Mas os filhos não chegavam, e o casal real ficava cada vez mais triste. Não se alegravam nem com os bailes da corte, nem com as caçadas, nem com os gracejos dos bufões, e em todo o castelo reinava uma grande melancolia. Mas, numa tarde de verão, a rainha foi banhar-se no riacho que passava no fundo do parque real. E, de repente, pulou para fora da água uma rãzinha. — Majestade, não fique triste, o seu desejo se realizará logo: antes que passe um ano a senhora dará à luz uma menina. E a profecia da rã se concretizou, e meses depois a rainha deu à luz uma linda menina. O rei, que estava tão feliz, deu uma grande festa de batizado para a pequena princesa que se chamava Aurora. 56 Unidade I Convidou uma multidão de súditos: parentes, amigos, nobres do reino e, como convidadas de honra, as treze fadas que viviam nos confins do reino. Mas, quando os mensageiros iam saindo com os convites, o camareiro-mor correu até o rei, preocupadíssimo. — Majestade, as fadas são treze, e nós só temos doze pratos de ouro. O que faremos? A fada que tiver de comer no prato de prata, como os outros convidados, poderá se ofender.E uma fada ofendida… O rei refletiu longamente e decidiu: — Não convidaremos a décima terceira fada — disse, resoluto. — Talvez nem saiba que nasceu a nossa filha e que daremos uma festa. Assim, não teremos complicações. Partiram somente doze mensageiros, com convites para doze fadas, conforme o rei resolvera. No dia da festa, cada uma das fadas chegou perto do berço em que dormia a princesa Aurora e ofereceu à recém-nascida um presente maravilhoso. — Será a mais bela moça do reino — disse a primeira fada, debruçando-se sobre o berço. — E a de caráter mais justo — acrescentou a segunda. — Terá riquezas a perder de vista — proclamou a terceira. — Ninguém terá o coração mais caridoso que o seu — afirmou a quarta. — A sua inteligência brilhará como um sol — comentou a quinta. Onze fadas já tinham passado em frente ao berço e dado a pequena princesa um dom; faltava somente uma (entretida em tirar uma mancha do vestido, no qual um garçom desajeitado tinha virado uma taça de sorvete), quando chegou a décima terceira, aquela que não tinha sido convidada por falta de pratos de ouro. Estava com a expressão muito sombria e ameaçadora, terrivelmente ofendida por ter sido excluída. Lançou um olhar maldoso para a princesa Aurora, que dormia tranquila, e disse: — Aos quinze anos a princesa vai se ferir com o fuso de uma roca e morrerá. E foi embora, deixando um silêncio desanimador e os pais desesperados. Então aproximou-se a décima segunda fada, que devia ainda oferecer seu presente. — Não posso cancelar a maldição que agora atingiu a princesa. Tenho poderes só para modificá-la um pouco. Por isso, Aurora não morrerá; dormirá por cem anos, até a chegada de um príncipe que a acordará com um beijo. 57 STORYTELLING Passados os primeiros momentos de espanto e temor, o rei decidiu tomar providências, mandou queimar todas as rocas do reino. E, daquele dia em diante, ninguém mais fiava, nem linho, nem algodão, nem lã. Ninguém além da torre do castelo. Aurora crescia, e os presentes das fadas, apesar da maldição, estavam dando resultados. Era bonita, boa, gentil e caridosa, os súditos a adoravam. No dia em que completou quinze anos, o rei e a rainha estavam ausentes, ocupados numa partida de caça. Talvez, quem sabe, em todo esse tempo tivessem até esquecido a profecia da fada malvada. A princesa Aurora, porém, estava se aborrecendo por estar sozinha e começou a andar pelas salas do castelo. Chegando perto de um portãozinho de ferro que dava acesso à parte de cima de uma velha torre, abriu-o, subiu a longa escada e chegou, enfim, ao quartinho. Ao lado da janela estava uma velhinha de cabelos brancos fiando com o fuso uma meada de linho. A garota olhou, maravilhada. Nunca tinha visto um fuso. — Bom dia, vovozinha. — Bom dia a você, linda garota. — O que está fazendo? Que instrumento é esse? Sem levantar os olhos do seu trabalho, a velhinha respondeu com ar bonachão: — Não está vendo? Estou fiando! A princesa, fascinada, olhava o fuso que girava rapidamente entre os dedos da velhinha. — Parece mesmo divertido esse estranho pedaço de madeira que gira assim rápido. Posso experimentá-lo também? Sem esperar resposta, pegou o fuso. E, naquele instante, cumpriu-se o feitiço. Aurora furou o dedo e sentiu um grande sono. Deu tempo apenas para deitar-se na cama que havia no aposento, e seus olhos se fecharam. Na mesma hora, aquele sono estranho se difundiu por todo o palácio. Adormeceram no trono o rei e a rainha, recém-chegados da partida de caça. Adormeceram os cavalos na estrebaria, as galinhas no galinheiro, os cães no pátio e os pássaros no telhado. Adormeceu o cozinheiro que assava a carne e o servente que lavava as louças; adormeceram os cavaleiros com as espadas na mão e as damas que enrolavam seus cabelos. 58 Unidade I Também o fogo que ardia nos braseiros e nas lareiras parou de queimar, parou também o vento que assobiava na floresta. Nada e ninguém se mexia no palácio, mergulhado em profundo silêncio. Em volta do castelo surgiu rapidamente uma extensa mata. Tão extensa que, após alguns anos, o castelo ficou oculto. Nem os muros apareciam, nem a ponte levadiça, nem as torres, nem a bandeira hasteada que pendia na torre mais alta. Nas aldeias vizinhas, passava de pai para filho a história da princesa Aurora, a bela adormecida que descansava, protegida pelo bosque cerrado. A princesa Aurora, a mais bela, a mais doce das princesas, injustamente castigada por um destino cruel. Alguns cavalheiros, mais audaciosos, tentaram sem êxito chegar ao castelo. A grande barreira de mato e espinheiros, cerrada e impenetrável, parecia animada por vontade própria: os galhos avançavam para cima dos coitados que tentavam passar: seguravam-nos, arranhavam-nos até fazê-los sangrar, e fechavam as mínimas frestas. Aqueles que tinham sorte conseguiam escapar, voltando em condições lastimáveis, machucados e sangrando. Outros, mais teimosos, sacrificavam a própria vida. Um dia, chegou nas redondezas um jovem príncipe, bonito e corajoso. Soube pelo bisavô a história da bela adormecida que, desde muitos anos, tantos jovens a procuravam em vão alcançar. — Quero tentar também — disse o príncipe aos habitantes de uma aldeia pouco distante do castelo. Aconselharam-no a não ir. — Ninguém nunca conseguiu! — Outros jovens, fortes e corajosos como você, falharam… — Alguns morreram entre os espinheiros… — Desista! Muitos foram os que tentarem desanimá-lo. No dia em que o príncipe decidiu satisfazer a sua vontade se completavam justamente os cem anos da festa do batizado e das predições das fadas. Chegara, finalmente, o dia em que a bela adormecida poderia despertar. 59 STORYTELLING Quando o príncipe se encaminhou para o castelo viu que, no lugar das árvores e galhos cheios de espinhos, se estendiam aos milhares, bem espessas, enormes carreiras de flores perfumadas. E mais, aquela mata de flores cheirosas se abriu diante dele, como para encorajá-lo a prosseguir; e voltou a se fechar logo, após sua passagem. O príncipe chegou em frente ao castelo. A ponte elevadiça estava abaixada e dois guardas dormiam ao lado do portão, apoiados nas armas. No pátio havia um grande número de cães, alguns deitados no chão, outros encostados nos cantos; os cavalos que ocupavam as estrebarias dormiam em pé. Nas grandes salas do castelo reinava um silêncio tão profundo que o príncipe ouvia sua própria respiração, um pouco ofegante, ressoando naquela quietude. A cada passo do príncipe se levantavam nuvens de poeira. Salões, escadarias, corredores, cozinha… Por toda parte, o mesmo espetáculo: gente que dormia nas mais estranhas posições. O príncipe perambulou por longo tempo no castelo. Enfim, achou o portãozinho de ferro que levava à torre, subiu a escada e chegou ao quartinho em que dormia a princesa Aurora. A princesa estava tão bela, com os cabelos soltos, espalhados nos travesseiros, o rosto rosado e risonho. O príncipe ficou deslumbrado. Logo que se recobrou, se inclinou e deu-lhe um beijo. Imediatamente, Aurora despertou, olhou para o príncipe e sorriu. Todo o reino também despertara naquele instante. Acordou também o cozinheiro que assava a carne; o servente, bocejando, continuou lavando as louças, enquanto as damas da corte voltavam a enrolar seus cabelos. O fogo das lareiras e dos braseiros subiu alto pelas chaminés, e o vento fazia murmurar as folhas das árvores. A vida voltara ao normal. Logo, o rei e a rainha correram à procura da filha e, ao encontrá-la, chorando, agradeceram ao príncipe por tê-la despertado do longo sono de cem anos. O príncipe, então, pediu a mão da linda princesa em casamento que, por sua vez, já estava apaixonada pelo seu valente salvador. Eles, então, se casaram e viveram felizes para sempre! Fonte: QDivertido (s.d.). 60 Unidade I Saiba mais Você assistiu ao filme Malévola? Trata-se da mesma estória de A Bela Adormecida, mas contada por um narrador que enxerga os fatos com a vilã. Na nova perspectiva, ela deixa de sertotalmente má. São apresentadas as origens de sua vingança e vemos o modo como ela se afeiçoa sinceramente à princesa. Nessa versão, é ela quem quebra o feitiço beijando Aurora. Afasta-se, assim, do pensamento maniqueísta: MALÉVOLA: dona do mal. Direção: Joachim Rønning. EUA: Walt Disney Pictures, 2019. 118 min. Décadas depois, a linha de análise dos formalistas russos influenciou os estudiosos do estruturalismo francês, movimento intelectual que teve o seu auge na década de 1960 e originou-se a partir das contribuições nos estudos linguísticos de Ferdinand de Saussure. A análise estrutural da narrativa foi alvo de estudo de nomes como Barthes, Greimas, Brémond, Todorov e Genette, entre outros autores. Suas teorias foram fundamentais para o surgimento da narratologia e, posteriormente, dos estudos narrativos em sentido mais amplo, que também abrangem as narrativas não literárias. Nesse sentido, “compreender uma narrativa não é somente seguir o esvaziamento da história, é também reconhecer nela ‘estágios’, projetar os encadeamentos horizontais do ‘fio’ narrativo sobre um eixo implicitamente vertical” (BARTHES et al., 2013, p. 27). Na teoria greimasiana, são identificadas três categorias atuacionais e vinte funções, agrupadas por oposições. Na essência, essas funções reduzem-se à ruptura e à restituição da ordem. Nos romances românticos, por exemplo, a estrutura básica é formada pelos obstáculos que impedem a união do casal e pela superação desses obstáculos. Saiba mais Sobre o assunto, leia o livro: BARROS, D. L. P. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2011. Brémond determinou uma sequência elementar a toda narrativa, com três funções: uma que abre a possibilidade do processo, uma que realiza tal possibilidade e uma que conclui o processo, com sucesso ou fracasso (GOTLIB, 2006). Ele procurou desenvolver um modelo formal aplicável a todos os tipos de relato, com base na ideia de que a narrativa é um conjunto de elementos que devem ser analisados. 61 STORYTELLING Brémond propôs um método de análise baseado simultaneamente na ideia de sequências e funções, argumentando que toda narrativa parte de uma possibilidade em direção a uma atualização e a um resultado. Segundo ele, “onde não há sucessão, não há narrativa” (BRÉMOND, 2013, p. 118). Saiba mais Para saber mais sobre a estrutura de uma narrativa, leia o livro: GOTLIB, N. B. Teoria do conto. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006. Essas três funções podem ser observadas em diversas narrativas, como no conto “Amor”, de Clarice Lispector, reproduzido a seguir. Amor Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação. Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida. Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem. No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem 62 Unidade I verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha – com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera. Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto – ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera. O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher. O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar – o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada – o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão – Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava – o bonde estacou, os passageiros olharam assustados. 63 STORYTELLING Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavamentre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida. Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito. A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível… O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão – e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram. O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa. Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca. Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite. 64 Unidade I Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico. Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo. A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si. De longe via a aleia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho. Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais. Um movimento leve e íntimo a sobressaltou – voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aleia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pelos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu. Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos. Ao mesmo tempo que imaginário – era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega – era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias 65 STORYTELLING boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno. Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo. Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria – e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto. Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito – o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava – que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado – amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal – o cego ou o belo Jardim Botânico? – agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe.A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o. Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha? Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver. 66 Unidade I Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado que lhe havia ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo – e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão. Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar. Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água – havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos. Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos. Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu. Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia 67 STORYTELLING aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico. Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado. — O que foi?! gritou vibrando toda. Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo: — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras. Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago. — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela. — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo. Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem de bondade. E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia. Fonte: Lispector (1998b, p. 19-29). Inicialmente, no conto, temos uma situação de ordem, que é quebrada com a aparição de um elemento (o cego mascando chicletes). Ocorre, então, uma etapa de desordem interior, em que a personagem vê seu “destino de mulher” abalado. Por fim, ocorre o retorno à situação inicial, ainda que mudanças psíquicas tenham acontecido à personagem. 4 TEXTO NARRATIVO 4.1 Tipologia textual Certamente, você deve ter reparado que existem diversos tipos de textos que apresentam estruturas e elementos de composição diferentes. Alguns contam uma história, outros defendem um ponto de vista e outros orientam como devemos agir. 68 Unidade I Observe, por exemplo, os quatros trechos a seguir. O primeiro é o início no segundo capítulo de Iracema, de José de Alencar. Trecho 1 Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Fonte: Alencar (s.d.). O segundo é um trecho de A sangue frio, de Truman Capote. Trecho 2 Perry e Dick tinham deixado aquela cidade portuária uma hora antes, depois de lá passar toda a manhã à procura de trabalho como marinheiros em várias companhias de navegação. Uma das empresas ofereceu-lhes emprego imediato num navio-tanque destinado ao Brasil, e, na verdade, os dois estariam agora a caminho caso seu futuro empregador não tivesse descoberto que nenhum dos dois tinha inscrição no sindicato nem um passaporte. Estranhamente, a decepção de Dick foi superior à de Perry: “O Brasil! É lá que estão construindo uma nova capital. A partir do zero. Imagine só, chegar a um lugar numa altura destas! Qualquer imbecil pode fazer fortuna”. “Aonde vocês estão indo?”, perguntou Perry ao garoto. “Sweetwater.” “Onde fica Sweetwater?” “Em algum lugar, nesta direção. No Texas. Johnny, aqui, é meu avô. E uma irmã dele mora em Sweetwater. Quer dizer, Deus queira que ainda more. Achamos que ela morava em Jasper, no Texas. Mas quando chegamos a Jasper, as pessoas nos contaram que ela e a família tinham se mudado para Galveston. Mas ela não estava em Galveston – e uma mulher de lá disse que ela tinha ido para Sweetwater. Confio em Deus para que a gente consiga encontrar ela, Johnny”, disse ele, esfregando as mãos do velho, como que para descongelá-las, “está ouvindo, Johnny? Estamos viajando num belo Chevrolet quentinho – modelo 56”. O velho tossiu, virou ligeiramente a cabeça, abriu e fechou os olhos e tornou a tossir. Dick disse: “Escute aqui. Qual é o problema dele?” Fonte: Capote (2003, p. 261). 69 STORYTELLING O próximo texto é um trecho do texto “Tipologia textual: os diferentes tipos textuais”, de Flávia Neves. Trecho 3 Astipologias textuais, também chamadas de tipos textuais ou tipos de texto, são as diferentes formas que um texto pode apresentar, visando responder a diferentes intenções comunicativas. Os aspectos constitutivos de um texto divergem mediante a finalidade do texto: contar, descrever, argumentar, informar… Diferentes tipos de texto apresentam diferentes características: estrutura, construções frásicas, linguagem, vocabulário, tempos verbais, relações lógicas, modo de interação com o leitor… Fonte: Neves (s.d.). Vejamos agora o último trecho: Trecho 4 MODO DE PREPARO Bata todos os ingredientes no liquidificador por dois minutos. Em seguida desligue e, com uma colher, misture a farinha que grudou no copo do liquidificador. Bata novamente só para misturar e reserve. Unte a frigideira com um fio de óleo e leve ao fogo até aquecer. Com o auxílio de uma concha, pegue uma porção de massa e coloque na frigideira, gire a frigideira para espalhar bem a massa. Abaixe o fogo e deixe dourar por baixo, em seguida vire do outro lado e deixe dourar, repita o processo com toda a massa. Fonte: Silva (s.d.). Você notou que os quatro textos apresentam estruturas e funções diferentes? No primeiro, o foco é fornecer ao leitor, por meio de comparações, características físicas da personagem Iracema, no romance de José de Alencar. No segundo, temos um episódio que envolve os personagens Perry e Dick, assassinos da família Clutter no Kansas em um trecho do famoso livro-reportagem de Truman Capote. No terceiro, há uma explicação didática sobre os tipos textuais. No quarto, por fim, vemos uma sequência de ordens para se fazer um prato. 70 Unidade I Portanto, temos, na sequência, os tipos textuais: descritivo, narrativo, expositivo e injuntivo. Trata-se, assim, de tipos textuais diferentes. Nesta disciplina, o foco é o texto narrativo, aquele que conta uma história, real ou ficcional. Entre os gêneros textuais que têm tal estrutura estão: romances, contos, crônicas, reportagens, telenovelas, músicas, séries e games, entre outros. Lembrete A narratologia é o ramo da teoria da literatura que se dedica a estudar o texto narrativo. Repare que o trecho 1 faz parte de um romance de José de Alencar. A obra tem estrutura narrativa, mas o trecho selecionado é descritivo. A descrição, geralmente, é muito necessária nas narrativas para apresentar personagens, épocas e ambientes. Os textos narrativos pressupõem transformações no tempo. A estrutura narrativa tradicional apresenta as fases mencionadas a seguir. • Situação inicial: na situação inicial, apresenta-se um panorama dos personagens, do cenário e da época. • Conflito (ou complicação): o conflito refere-se a algo que quebra a estabilidade da situação inicial. Sem isso, a história não se desenvolve. • Desenvolvimento: no desenvolvimento, com base no conflito, a história continua com as atitudes dos personagens. • Clímax: o clímax é o momento de maior tensão. • Desfecho: o desfecho corresponde ao final da história, em que há uma solução (feliz ou não) para o conflito. Essas partes serão retomadas nos itens seguintes. Observação A mera sucessão de fatos não constitui uma narrativa. Se um colega relata que pegou um ônibus às sete horas, chegou ao trabalho às oito horas, almoçou às 13 horas e foi para casa às 18 horas, não há conflito. Nesse caso, temos, portanto, apenas um relato. 71 STORYTELLING Como já dissemos, um texto narrativo deve ter verossimilhança, isto é, o que é narrado deve parecer verdadeiro para o leitor. Devemos, aqui, diferenciar verossimilhança e plausibilidade. A verossimilhança diz respeito à lógica interna do texto, e a plausibilidade refere-se à correspondência com o que conhecemos do real. Imaginemos uma história de alguém que voa, sem máquinas ou asas. Só com uma capa. Se estivermos no campo da ficção, em um episódio do Super-homem, por exemplo, isso é verossímil, e não importa que isso seria impossível na realidade. No entanto, se for uma reportagem, ainda que o jornalista crie uma explicação para tal fenômeno no enredo, a ação não é plausível, pois o discurso jornalístico deve ser ancorado na realidade. Observação Mesmo na literatura, a questão da plausibilidade é tratada de forma diferente conforme o movimento. Por exemplo, na literatura fantástica, o fato de um coelho falar, como no caso do texto “Teleco, o coelhinho”, de Murilo Rubião, é perfeitamente aceitável, é inquestionável. Na literatura realista, cujo fundamento é a plausibilidade, isso seria impossível, a não ser que o personagem que falasse com o coelho estivesse sonhando ou estivesse fora do juízo. 4.2 Elementos constitutivos da narrativa Existem elementos comuns às histórias, por mais diferentes que sejam. São eles: • enredo; • narrador; • personagens; • espaço; • tempo. 4.2.1 Enredo O enredo corresponde à história propriamente dita. Trata-se do conjunto de ações que acontecem ao longo da narrativa. Esse conjunto recebe outros nomes, conforme a perspectiva de quem o analisa. Uma distinção importante e necessária é separar discurso e história. A história/estória corresponde aos eventos em ordem cronológica, implicando ações e personagens que as executam; o discurso corresponde à “palavra real dirigida pelo narrador ao leitor” (TODOROV, 2008, p. 138). 72 Unidade I Regina Zilberman (2012, p. 129) também explica que o âmbito do discurso é o da composição, que depende do trabalho com o narrador que conta a história, valendo-se de distintos modos narrativos. O âmbito da história é o dos acontecimentos, a matéria pura a partir da qual se constrói a ação do narrador ao se projetar a comunicação com o leitor. Com base nessa distinção, os formalistas russos diferenciam trama e fábula. A fábula é composta pela sucessão cronológica dos acontecimentos. A trama é constituída pela ordem e pela forma com que os acontecimentos são apresentados ao leitor. Tomachevski, no ensaio “Temática”, apresenta a diferença, conforme mostrado a seguir. Chama-se fábula o conjunto de acontecimentos ligados entre si que nos são comunicados no decorrer da obra. Ela poderia ser exposta de uma maneira pragmática, de acordo com a ordem natural, a saber, a ordem cronológica e causal dos acontecimentos, independentemente da maneira pela qual estão dispostos e introduzidos na obra. A fábula opõe-se à trama, que é constituída pelos mesmos acontecimentos, mas que respeita sua ordem de aparição na obra e a sequência das informações que se nos destinam (TOMACHEVSKI, 1978, p. 173). O elemento estruturador do enredo é o conflito, pois ele é responsável pela criação de tensão, necessária à boa narrativa. No entanto, vale ressaltar que o conflito não é, como o nome pode falsamente sugerir, necessariamente uma briga ou um desentendimento. Lembra-se do conto “Amor”, de Clarice Lispector, que apresentamos anteriormente? O conflito é interno à personagem, disparado pelo encontro com um cego mascando chiclete. Esse elemento faz com que Ana tenha sua vida abalada. Se não houvesse o conflito desencadeado pelo cego, a personagem seguiria para casa, manteria sua rotina, e a narrativa não teria “graça”. Geralmente, tendo o conflito como elemento estruturante, as narrativas dividem-se nas seguintes partes: exposição, complicação, clímax e desfecho. Vamos tomar como exemplo a seguinte versão da fábula “A cigarra e a formiga”. A cigarra e a formiga Era uma vez uma cigarra que vivia saltitando e cantando pelo bosque, sem se preocupar com o futuro. Esbarrando numa formiguinha, que carregava uma folha pesada, perguntou: — Ei, formiguinha, para que todo esse trabalho? O verão é para gente aproveitar! O verão é para gente se divertir! 73 STORYTELLING — Não, não, não! Nós, formigas, não temos tempo para diversão. É preciso trabalhar agora para guardar comida para o inverno. Durante o verão, a cigarra continuou se divertindo e passeando por todo o bosque. Quando tinha fome, era só pegar uma folha e comer. Um belo dia, passoude novo perto da formiguinha carregando outra pesada folha. A cigarra então aconselhou: — Deixa esse trabalho para as outras! Vamos nos divertir. Vamos, formiguinha, vamos cantar! Vamos dançar! A formiguinha gostou da sugestão. Ela resolveu ver a vida que a cigarra levava e ficou encantada. Resolveu viver também como sua amiga. Mas, no dia seguinte, apareceu a rainha do formigueiro e, ao vê-la se divertindo, olhou feio para ela e ordenou que voltasse ao trabalho. Tinha terminado a vidinha boa. A rainha das formigas falou então para a cigarra: — Se não mudar de vida, no inverno você há de se arrepender, cigarra! Vai passar fome e frio. A cigarra nem ligou, fez uma reverência para rainha e comentou: — Hum!! O inverno ainda está longe, querida! Para cigarra, o que importava era aproveitar a vida, e aproveitar o hoje, sem pensar no amanhã. Para que construir um abrigo? Para que armazenar alimento? Pura perda de tempo. Certo dia, o inverno chegou, e a cigarra começou a tiritar de frio. Sentia seu corpo gelado e não tinha o que comer. Desesperada, foi bater na casa da formiga. Abrindo a porta, a formiga viu na sua frente a cigarra quase morta de frio. Puxou-a para dentro, agasalhou-a e deu-lhe uma sopa bem quente e deliciosa. Naquela hora, apareceu a rainha das formigas que disse à cigarra: — No mundo das formigas, todos trabalham e se você quiser ficar conosco, cumpra o seu dever: toque e cante para nós. Para cigarra e para as formigas, aquele foi o inverno mais feliz das suas vidas. Fonte: Portal Educação (s.d.). No texto apresentado, temos, no início, a exposição, que estabelece como era a vida da cigarra e da formiga. A complicação acontece quando a cigarra é alertada sobre a possibilidade de ficar sem comida 74 Unidade I no inverno e isso ocorre. O clímax acontece quando ela pede abrigo à formiga. O desfecho é a solução encontrada, em que formigas e cigarra ficam felizes. Na versão clássica, contada por Esopo e La Fontaine, o desfecho é outro: a cigarra, com fome e frio no inverno, procura ajuda, mas a formiga se nega a auxiliá-la. A cigarra morre, portanto. Em outras versões, paródias, a cigarra faz sucesso, fica milionária com seu canto, e a formiga continua carregando folhas. Repare que as estórias estão sempre ligadas ao contexto ideológico da sociedade em que se inserem. A crueldade da formiga ao negar ajuda passou a ser considerada, mais recentemente, como pedagogicamente inadequada às crianças, assim como a “lição” de que cantar (ou seja, a arte) é uma atividade improdutiva. Saiba mais Para estudar melhor o enredo e os demais elementos da narrativa, leia: GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. 9. ed. São Paulo: Ática, 2006. Observam-se diferenças no trato com o enredo conforme o gênero textual. Segundo Nádia Battella Gotlib (2006, p. 40), “o conto termina logo após o clímax; o romance deve apresentar o clímax antes do final, terminando por epílogo ou falsa conclusão”. 4.2.2 Narrador O narrador é aquele que nos conta a estória. Trata-se de uma instância criada pelo autor e projetada na narrativa. Não deve, portanto, ser confundido com o autor. Por exemplo, em Dom Casmurro, quem narra a estória é Bentinho, não é Machado de Assis. Bentinho é um personagem criado pelo autor, e a ele é concedido a voz de narrador. Saiba mais Em A hora da estrela, de Clarice Lispector, temos um interessante jogo de espelhos entre autora, narrador (Rodrigo S. M.) e Macabéa: LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 75 STORYTELLING A classificação básica do narrador é feita em três tipos, mencionados a seguir. • Narrador-personagem: quando quem narra também participa da história. • Narrador-observador: quando quem narra não participa da história nem sabe o que se passa no íntimo dos personagens. • Narrador-onisciente: quando quem narra não participa da história e tem acesso aos pensamentos e emoções dos personagens. Essa é a divisão normalmente ensinada nas escolas. No entanto, a questão do narrador historicamente tem sido objeto de estudos e discussões acadêmicas. O objetivo aqui não é detalhar esses estudos, mas, sim, apresentar um panorama das principais classificações. A discussão sobre aquele que narra o que viveu, viu ou imaginou data da Antiguidade. Platão e Aristóteles já faziam a distinção entre imitar (modo dramático) e narrar. Observação O modo dramático refere-se à ausência do narrador, observado em uma peça teatral, por exemplo, em que os personagens falam por si. Lembra-se do trecho da peça Prometeu acorrentado que apresentamos anteriormente? Trata-se de um texto em modo dramático, escrito por Ésquilo. Os filósofos gregos foram retomados por diferentes pensadores ao longo da história, que discutiram a questão dos gêneros literários e do narrador. Hegel, por exemplo, dedicou-se ao estudo da objetividade para distinguir o gênero épico dos gêneros dramático e lírico. Mas é apenas no final do século XIX e no início do XX que passa a se construir de forma mais sistemática uma teoria do foco narrativo. Perry Lubbock, em 1921, propôs um modelo de tipos de narrador, afirmando que a arte narrativa é governada pelo problema do ponto de vista. Ele também faz a distinção entre narrar (telling) e mostrar (showing), discutindo o grau de interferência do narrador. Essa oposição baseia-se na diferença entre sumário (panorama) e cena. Na cena, os acontecimentos são mostrados ao leitor, sem a mediação do narrador; no sumário, o narrador os resume e conta. Jean Pouillon, em 1946, deteve-se na questão de como revelar a interioridade das personagens em uma narrativa. Ele propõe, então, sua teoria das visões. Segundo ele, a relação narrador-personagem poderia acontecer de três formas: 76 Unidade I • a visão com; • a visão por trás; • a visão de fora. Na visão por trás, o narrador sabe mais sobre a personagem e seu destino. Podemos dizer que ele é onisciente. Na visão com, o narrador limita-se ao saber da personagem. Na visão de fora, limita-se ao externo, sem entrar nos pensamentos ou nas emoções da personagem. Tzvetan Todorov, na década de 1960, também associou os tipos de visão às possibilidades de conhecimento da matéria narrada. Assim, o narrador pode saber mais do que as personagens, tanto quanto elas ou até menos. Assim, segundo o estudioso estruturalista, temos as possibilidades a seguir, em que N representa o narrador e P representa a personagem. • N > P (o narrador sabe mais do que as personagens). • N = P (o narrador sabe tanto quanto as personagens). • N < P (o narrador sabe menos do que as personagens). A questão sobre o que o narrador conhece ou não tem papel fundamental na narrativa. Tomemos, como exemplo, o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, em que o narrador em primeira pessoa é essencial para a tematização da dúvida e da insegurança. Com esse tipo de narrador, é possível manter aberta a questão de Capitu ter ou não traído Bentinho. Se o narrador fosse onisciente, a questão deveria ser esclarecida. Observação Para dar efeito de objetividade na narrativa jornalística, cria-se a ilusão de que o narrador observa os fatos de fora. Trata-se de uma estratégia usada especialmente nas notícias. Norman Friedman, por sua vez, com base em outros autores, propôs a classificação do narrador nos tipos apresentados a seguir: • onisciente intruso; • onisciente neutro; • “eu” como testemunha; • protagonista; 77 STORYTELLING • onisciente seletivo múltiplo; • onisciente seletivo; • de modo dramático; • câmera. No tipo onisciente intruso, o narrador pode se colocar acima dos fatos e das personagens e ainda tecer comentários sobre a vida e os costumes. Machado de Assis usa esse recurso em muitas de suas obras, como se vê no trecho a seguir, do conto “Pai contra mãe”. Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parteera apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Fonte: Assis In: Gledson (2007, p. 466). Perceba que, com ironia, o narrador critica as relações baseadas na escravidão, observadas na sociedade brasileira. No tipo onisciente neutro, o narrador fala em terceira pessoa e pode se colocar acima dos fatos e das personagens, mas não faz intromissões, como ocorre no tipo apresentado anteriormente. Veja um exemplo, extraído do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. A mulher fora em tempos louca por ele; amara-o com mil e uma atitudes de servilismo, que ainda mais o afastaram dela. Outrora jovial, expansiva e apaixonada, tornara-se, ao envelhecer (como o vinho que, exposto ao ar, se transforma em vinagre), mal-humorada, lamurienta, nervosa. Sofrera tanto, sem se queixar, ao princípio, quando o via correr atrás de todas as marafonas da aldeia e quando, à noite, voltava dos piores lugares, embrutecido e a cheirar à bebedeira! Depois, o orgulho dela revoltara-se. Então tornara-se calada, engolindo a raiva num estoicismo mudo que conservou até à morte. 78 Unidade I Mantinha-se continuamente ocupada, tratando dos negócios da casa. Ia falar aos advogados, ao juiz, recordava-se do vencimento das letras, conseguia prorrogações; e, em casa, passava a ferro, cosia a roupa, lavava, vigiava os trabalhadores, liquidava as contas, enquanto, sem se preocupar com coisa nenhuma, o senhor, permanentemente entorpecido numa sonolência amuada de que só despertava para lhe dizer coisas desagradáveis, continuava a fumar ao canto da lareira e a cuspir nas cinzas. Quando ela teve um filho, foi preciso entregá-lo a uma ama. Logo que voltou para casa, o garoto foi amimado como um príncipe. A mãe alimentava-o com doces; o pai deixava-o correr descalço e, para se mostrar filósofo, dizia até que ele podia andar todo nu, como os filhotes dos animais. Ao contrário das tendências maternas, tinha ele um certo ideal viril da infância, segundo o qual procurava formar o filho, querendo que este fosse educado duramente, à maneira espartana, para adquirir uma boa constituição. Mandava-o ir deitar-se às escuras, ensinava-o a beber grandes doses de rum e a insultar as procissões. Mas, como era por natureza pacífico, o miúdo correspondia mal aos seus esforços. Fonte: Flaubert (2000, p. 8). No tipo “eu” como testemunha, o narrador fala em primeira pessoa, mas da periferia dos acontecimentos. Em outras palavras, o narrador é uma personagem secundária da trama. Podemos citar como exemplo as aventuras de Sherlock Holmes, narradas por seu fiel companheiro Watson. Enquanto eu os observava, Stapleton levantou-se e saiu da sala, enquanto sir Henry enchia o seu copo outra vez e recostava-se na cadeira, fumando o charuto. Ouvi uma porta rangendo e o ruído nítido de botas sobre o saibro. Os passos atravessaram o caminho do outro lado do muro atrás do qual eu estava agachado. Olhando por cima, vi o naturalista parar diante da porta de uma dependência no canto do pomar. Uma chave girou numa fechadura, e, quando ele entrou ali, ouvi um ruído curioso de luta vindo de dentro. Ele ficou apenas um minuto ali dentro; depois ouvi a chave girar outra vez e ele passou por mim e entrou novamente em casa. Vi quando ele entrou na sala onde estava seu convidado e voltei cautelosamente para o lugar onde meus companheiros estavam esperando para contar-lhes o que vira. — Você diz, Watson, que a mulher não está lá? — perguntou Holmes quando eu terminei meu relato. — Não. 79 STORYTELLING — Onde ela pode estar, então, já que não há luz em nenhum outro cômodo, exceto na cozinha? — Não posso imaginar onde ela esteja. Eu havia dito que sobre o grande charco de Grimpen pairava uma cerração branca e densa. Ela estava vindo lentamente em nossa direção e se acumulava como um muro daquele lado, baixa mas espessa e bem definida. A lua brilhava sobre ela, e parecia um grande campo de gelo bruxuleante, com os cumes dos picos rochosos distantes como rochas colocadas sobre a sua superfície. O rosto de Holmes virou-se para ela e ele resmungou impaciente enquanto observava o seu avanço lento. Fonte: Doyle (2017, p. 861). No tipo protagonista, o narrador em primeira pessoa conta sua própria história. Ele narra de um centro fixo, sem acesso ao estado mental das demais personagens. Além de Bentinho, de Dom Casmurro, podemos tomar como exemplo Riobaldo, de Grande sertão: veredas, como se vê no trecho a seguir. Explico ao senhor! o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz! e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela – já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até! nas crianças – eu digo. Pois não é ditado! menino – trem do diabo? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemoinho... Fonte: Rosa (2019, p. 10). No caso de narrador com onisciência seletiva múltipla, a história vem diretamente dos pensamentos e das emoções das personagens por meio do discurso indireto livre. Veja o trecho de Vidas secas, como exemplo. Ouviu o falatório desconexo do bêbedo, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por 80 Unidade I isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais – aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa? Se não fosse aquilo... Nem sabia. O fio da ideia cresceu, engrossou – e partiu-se. Difícil pensar. Vivia tão agarrado aos bichos... Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com bichos. Fonte: Ramos (2019, p. 18). No caso de narrador com onisciência seletiva, temos uma categoria bastante semelhante à anterior. A diferença é o que o narrador acompanha os pensamentos e as emoções de uma personagem apenas. Podemos citar como exemplo Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, em que o narrador permanece colado à protagonista, Joana. Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leves, alados. Então subitamente olhoucom desgosto para tudo como se tivesse comido demais daquela mistura. “Oi, oi, oi...”, gemeu baixinho cansada e depois pensou: o que vai acontecer agora agora agora? E sempre no pingo de tempo que vinha nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia acontecer, compreende? Afastou o pensamento difícil distraindo-se com um movimento do pé descalço no assoalho de madeira poeirento. Esfregou o pé espiando de través para o pai, aguardando seu olhar impaciente e nervoso. Nada veio porém. Nada. Difícil aspirar as pessoas como o aspirador de pó. Fonte: Lispector (1998c, p. 7). No caso de narrador do tipo dramático, a história é contada pela fala dos personagens, como no teatro. Como exemplo, leia o trecho inicial da crônica “Sexa”, de Luis Fernando Verissimo. 81 STORYTELLING — Pai... — Hmmm? — Como é o feminino de sexo? — O quê? — O feminino de sexo. — Não tem. — Sexo não tem feminino? — Não. — Só tem sexo masculino? — É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e feminino. — E como é o feminino de sexo? — Não tem feminino. Sexo é sempre masculino. — Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino. — O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra “sexo” é masculina. O sexo masculino, o sexo feminino. — Não devia ser “a sexa”? Fonte: Verissimo (2001 p. 53). No tipo câmera, o narrador é praticamente excluído da narrativa, que acontece na forma de flashes, como se eles fossem captados por uma câmera. Temos como exemplo o conto “Circuito fechado”, de Ricardo Ramos. Circuito fechado Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, 82 Unidade I paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço. Relógio, maço de cigarros, caixa de fósforos, jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapos. Quadros. Pasta, carro. Cigarro, fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda, copo com lápis, canetas, blocos de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de saída, vaso com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo. Bandeja, xícara pequena. Cigarro e fósforo. Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes, telefone, papéis. Relógio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboços de anúncios, fotos, cigarro, fósforo, bloco de papel, caneta, projetos de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro, fósforo, quadro-negro, giz, papel. Mictório, pia. Água. Táxi, mesa, toalha, cadeiras, copos, pratos, talheres, garrafa, guardanapo, xícara. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Escova de dentes, pasta, água. Mesa e poltrona, papéis, telefone, revista, copo de papel, cigarro, fósforo, telefone interno, externo, papéis, prova de anúncio, caneta e papel, relógio, papel, pasta, cigarro, fósforo, papel e caneta, telefone, caneta e papel, telefone, papéis, folheto, xícara, jornal, cigarro, fósforo, papel e caneta. Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Paletó, gravata. Poltrona, copo, revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres, copos, guardanapos. Xícaras. Cigarro e fósforo. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. Abotoaduras, camisa, sapatos, meias, calça, cueca, pijama, espuma, água. Chinelos. Coberta, cama, travesseiro. Fonte: Ramos (2012, p. 18). Saiba mais Para compreender melhor o narrador, leia o livro: LEITE, L. C. M. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 2002. Observação Perceba que a escolha do tipo do narrador depende do efeito que se pretende criar no texto. 4.2.3 Personagens As personagens são as responsáveis pelas ações da história e podem ser classificadas de acordo com diferentes critérios. Em relação ao papel desempenhado no enredo, podem ser divididas em protagonistas, antagonistas e secundárias. 83 STORYTELLING Em relação aos protagonistas, eles podem ser heróis ou anti-heróis. O herói apresenta características superiores em relação a seu grupo. Já o anti-herói apresenta características iguais ou inferiores às características do seu grupo. Como exemplo de anti-herói, temos o Leonardinho, “filho de uma piscadela e de um beliscão”, protagonista do romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Veja, no trecho a seguir, que o protagonista já se opunha às características clássicas de um herói desde a infância. Passemos por alto sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso memorando, e vamos encontrá-lo já na idade de sete anos. Digamos unicamente que durante todo este tempo o menino não desmentiu aquilo que anunciara desde que nasceu: atormentava a vizinhança com um choro sempre em oitava alta; era colérico; tinha ojeriza particular à madrinha, a quem não podia encarar, e era estranhão até não poder mais. Logo que pôde andar e falar tornou-se um flagelo; quebrava e rasgava tudo que lhe vinha à mão. Tinha uma paixão decidida pelo chapéu armado do Leonardo; se este o deixava por esquecimento em algum lugar ao seu alcance, tomava-o imediatamente, esganava com ele todos os móveis, punha-lhe dentro tudo que encontrava, esfregava-o em uma parede, e acabava por varrer com ele a casa; até que a Maria, exasperada pelo que aquilo lhe havia de custar aos ouvidos, e talvez às costas, arrancava-lhe das mãos a vítima infeliz. Era, além de traquinas, guloso; quando não traquinava, comia. A Maria não lhe perdoava; trazia-lhe bem maltratada uma região do corpo; porém ele não se emendava, que era também teimoso, e as travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas. Assim chegou aos sete anos. Fonte: Almeida (2011, p. 19). Quanto à caracterização, as personagens podem ser divididas em planas e redondas. As primeiras apresentam poucos atributos e não são complexas. Em alguns casos, são caricaturais. As segundas, por sua vez, apresentam complexidade e são definidas por características físicas, sociais, psicológicas, ideológicas e morais. As falas e os pensamentos dos personagens podem ser introduzidos na narrativa de três formas: pelo discurso direto, pelo discurso indireto e pelo discurso indireto livre. Vejamos tais tipos de discurso. • Discurso direto: no discurso direto, o narrador reproduz o que o personagem disse e, normalmente, usa para isso aspas ou travessões. 84 Unidade I • Discurso indireto: no discurso indireto, o narrador expressa com suas palavras o que o personagem falou ou pensou. • Discurso indireto livre: no discurso indireto livre, o pensamento do personagem mescla-se com a voz do narrador. Tomemos o exemplo a seguir. Exemplo I — Você não pode fazer isso comigo, disse Tom. Ele pensou em tudo que já havia feito por aquela moça. — Isso é uma ingratidão, continuou o rapaz. Agora vejamos o próximo exemplo: Exemplo II Tom disse à moça que ela não poderia agir daquela forma com ele, pois seria uma ingratidão depois de tudo o que ele havia feito por ela. E, por fim, vejamos o último exemplo: Exemplo III Você não pode fazer isso comigo, disse Tom. Quanta coisa ele já havia feito por ela! Não era justo! Era, sim, uma ingratidão. No exemplo I, temos a reprodução em discurso direto da fala de Tom e, na sequência, a voz do narrador. Em II, só o narrador se expressa e conta, em discurso indireto, o que o personagem falou. Em III, temos o mesmo início de I, com o discurso direto da fala do personagem. Na sequência, temos a expressão do pensamento do personagem mesclado na voz do narrador. Repare que não há qualquer indicação de que se trata do pensamento dele. Não, há, por exemplo, como em I, a menção de que “Tom pensou” ou “Ele achava”. Observe que, no último exemplo, fica a impressão de termos “mergulhado” na cabeça de Tom. 85 STORYTELLING Você deve ter lido Vidas secas, de Graciliano Ramos. Anteriormente, apresentamos um trecho do livro. Na obra, uma personagemimportante é a cachorra Baleia. O narrador onisciente da história permite que o leitor saiba o que a personagem sente e com o que ela sonha: um paraíso cheio de preás. Sem o discurso indireto livre, isso não seria possível. Observação O discurso indireto livre está condicionado à existência do narrador onisciente. 4.2.4 Espaço O espaço refere-se aos lugares em que se passa a história. De acordo com Cândida Vilares Gancho, o termo “espaço” diz respeito ao lugar físico onde ocorrem os fatos e, para designar um lugar psicológico, social ou econômico, usamos o termo “ambiente”. Assim, entende-se por ambiente o espaço carregado de características socioeconômicas, morais e psicológicas em que vivem as personagens. Neste sentido, ambiente é um conceito que aproxima tempo e espaço, pois é a confluência destes dois referenciais, acrescida de um clima (GANCHO, 2006, p. 27). O ambiente está, portanto, relacionado às condições histórico-sociais e às características das personagens e pode, também, refletir os conflitos vividos por elas. Na fase do ultrarromantismo, os ambientes sombrios e úmidos refletiam o estado emocional das personagens como se vê, por exemplo, nos contos de Noites na taverna, de Álvares de Azevedo. Além disso, o ambiente pode fornecer índices para o andamento do enredo, especialmente em narrativas policiais ou de suspense. É o que ocorre no conto “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe, em que o narrador atende ao pedido de um velho amigo e vai até sua casa. Leia o início do conto e veja como fica claro que a casa exerce um papel importante na narrativa. A queda da casa de Usher Durante todo um dia de outono, monótono, escuro e silencioso, quando as nuvens pendiam opressivamente baixas no céu, eu tinha passado sozinho, a cavalo, por um trecho de terreno singularmente lúgubre e, finalmente me encontrei, quando as sombras da noite se aproximavam, diante da triste visão da Casa de Usher. Não sei o motivo, mas, ao primeiro vislumbre do edifício, uma sensação de insuportável melancolia permeou meu espírito. Digo 86 Unidade I insuportável, pois a sensação não foi aliviada por quaisquer daqueles sentimentos algo prazenteiros, porque poéticos, com os quais a mente normalmente acolhe até mesmo as imagens naturais mais horrendas do desolado ou do terrível. Observei a cena diante de mim – a casa e a paisagem simples, características da propriedade, as paredes desoladas, as janelas como órbitas vazias, poucos canteiros de ervas daninhas e alguns troncos alvos de árvores podres – com uma profunda depressão da alma que não consigo comparar a nenhuma sensação terrena com mais propriedade do que à depressão após a euforia causada ao fumador pelo ópio – o amargo retorno à vida diária, o terrível cair do véu. Havia uma frigidez, uma prostração, uma repugnância do coração – um temor não suavizado em pensar que nenhum estímulo da imaginação seria capaz de extrair qualquer coisa do sublime. O que era – parei para pensar –, o que era que tanto me desalentava ao olhar a Casa de Usher? Era um mistério totalmente insolúvel; nem conseguia alcançá-lo com as ideias nebulosas que me abarrotavam enquanto ponderava. Fui forçado a ceder à conclusão insatisfatória de que, fora de qualquer dúvida, há combinações de desígnios naturais muito simples que, desse modo, têm o poder de nos afetar, mas que a análise desse poder está entre as reflexões que se encontram além do nosso alcance. Era possível, refleti, que um mero arranjo diferente de pormenores da cena, dos detalhes do quadro, fosse suficiente para modificar ou, talvez, aniquilar sua capacidade para impressões penosas; e, agindo de acordo com essa ideia, conduzi meu cavalo até a íngreme beirada de um pequeno lago negro e lúgubre que se estendia liso como um espelho perto da moradia e olhei abaixo – com um tremor mais intenso do que antes – para as imagens invertidas e modificadas dos arbustos cinzentos, dos troncos lívidos das árvores e das janelas iguais a órbitas vazias. Contudo, eu agora me propunha residir algumas semanas nessa mansão sombria. Seu proprietário, Roderick Usher, fora um dos meus alegres companheiros de infância; mas muitos anos haviam se passado desde o nosso último encontro. Uma carta, entretanto, me alcançara recentemente numa parte distante do país – uma carta dele –, na qual, em sua importuna natureza tempestuosa, não admitira senão uma resposta pessoal. O manuscrito evidenciava uma agitação nervosa. O redator falava de uma aguda doença física, de uma desordem mental que o oprimia e de um desejo intenso de me ver, como seu melhor, e de fato seu único amigo pessoal, com a finalidade de tentar, pela alegria de meu convívio, algum alívio de sua enfermidade. Fonte: Poe (2014, p. 9-10). 4.2.5 Tempo Toda história acontece em um período de tempo, que pode ser mais ou menos determinado. Quando pensamos no tempo, pensamos tanto na duração da história quanto na época em que ela ocorre. 87 STORYTELLING A época constitui o pano de fundo para o enredo e não coincide necessariamente com a da produção da obra. Por exemplo, George Orwell, em meados do século XX, projetou uma sociedade totalitária distópica no futuro, na obra 1984. Umberto Eco, na década de 1980, escreveu o romance O nome da rosa, cuja história se passa na Idade Média. Lembrete A época em que se passam os contos de fadas é imprecisa. Devemos diferenciar o tempo narrativo, ou diegético, do tempo discursivo, relativo à narração. Por exemplo, quando você vai contar a sua vida em um processo seletivo, você condensa seus anos em alguns minutos e procura destacar aquilo que julga mais importante para conseguir seu objetivo. Observação Segundo o Dicionário de termos literários (MOISÉS, 1978), diegese é o termo divulgado pelos estruturalistas franceses para designar o conjunto de ações que formam uma história narrada segundo certos princípios cronológicos. Nem sempre as narrativas seguem o tempo linear. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, por exemplo, o defunto autor começa sua narrativa com seu enterro e depois relembra sua trajetória desde a infância. Lembrete Uma boa narrativa depende da combinação adequada dos elementos aqui apresentados. As escolhas do autor interferem no efeito que o texto terá sobre o leitor. Assim, uma diferenciação importante a ser feita é entre tempo cronológico e tempo psicológico. O tempo cronológico transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, de modo linear. É mensurável em horas, dias, meses, anos, séculos. O tempo psicológico, por sua vez, transcorre de acordo com os desejos ou com as lembranças do narrador ou das personagens. Para captar a atenção do público, algumas narrativas começam no meio do enredo e depois acontecem flashbacks, que remetem ao que já teria ocorrido até se chegar àquele ponto. Na sequência, apresenta-se o desenrolar das ações. Esse recurso recebe o nome de in media res. 88 Unidade I O controle do tempo é fundamental para o envolvimento do leitor na história. Destacam-se, assim, as analepses e as prolepses. As analepses consistem na apresentação, na narrativa, de tempos passados. Trata–se de um fenômeno de anacronia, a qual também chamamos de flashback, cutback ou switchback, muito usado em livros e filmes, por exemplo. As prolepses, por sua vez, consistem na antecipação, na narrativa, de tempos futuros. Resumo Nesta unidade, apresentamos conceitos e definições de storytelling, com um breve panorama de como as histórias/estórias são marcantes para o ser humano desde tempos remotos. Em épocas primitivas, ao redor da fogueira, ou na contemporaneidade, ao redor dos celulares, as pessoas compartilham narrativas que transmitem conhecimentos e crenças e contribuem para a organização do mundo. As histórias têm poder sobre nós, como procuramos mostrar nesta unidade. Elas atuam sobre nosso imaginário e influenciam nossos valores e nossas ações. As narrativas refletem e (re)constroem o modo como enxergamoso mundo. Além disso, na unidade I, abordamos a importância dos mitos na apreensão do mundo para diferentes povos. Mostramos como as figuras e os temas subjacentes a eles ainda fazem parte da nossa vida. Também expusemos a jornada do herói com suas etapas, estrutura presente nos mitos antigos e em narrativas (pós-)modernas, como Star Wars. Na intenção de entendermos as estruturas narrativas, apresentamos, ainda, de forma breve, as considerações de Vladimir Propp sobre os contos maravilhosos e os desdobramentos de sua teoria para os estudos da narrativa. Por fim, elencamos os elementos constitutivos de qualquer narrativa: narrador (foco narrativo), personagens, espaço, tempo e enredo. Apresentamos características e classificações de cada elemento, não com o intuito de se decorar um modelo, mas, sim, de se compreender a importância da escolha desses elementos no efeito construído pela narrativa. 89 STORYTELLING Exercícios Questão 1. Leia o texto a seguir, de Millôr Fernandes, uma paródia da tradicional fábula “A raposa e as uvas”, atribuída a Esopo. A raposa e as uvas Figura 26 De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e gula de todos os tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra deliciosa do parreiral que descia por um precipício a perder de vista. Olhou e viu, além de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas maravilhosos, uvas grandes, tentadoras. Armou o salto, retesou o corpo, saltou, o focinho passou a um palmo das uvas. Caiu, tentou de novo, não conseguiu. Descansou, encolheu mais o corpo, deu tudo que tinha, não conseguiu nem roças a uvas gordas e redondas. Desistiu, dizendo entre os dentes, com raiva: “Ah, também não tem importância. Estão muito verdes”. E foi descendo, com cuidado, quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a pedra até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra, perigosamente, pois o terreno era irregular e havia o risco de despencar, esticou a pata e… conseguiu! Com avidez colocou na boca quase o cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes! Moral: a frustração é uma forma de julgamento tão boa como qualquer outra. FERNANDES, M. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991. p. 118. 90 Unidade I Com base na leitura, avalie as afirmativas. I – A narrativa apresenta os componentes da estrutura aristotélica clássica: apresentação, conflito, clímax e desfecho. II – Na versão de Millôr Fernandes, a moral da estória é modificada; por isso, não podemos apontar no texto elementos constitutivos das fábulas tradicionais. III – Só há, na estória de Millôr, uma personagem; logo, essa narrativa não apresenta conflito. É correto o que se afirma apenas em: A) I. B) II. C) III. D) I e III. E) II e III. Resposta correta: alternativa A. Análise da questão Temos, na narrativa de Millôr Fernandes, as quatro partes da estrutura clássica: • a apresentação, que mostra a raposa que, com fome, encontra os cachos de uvas; • o conflito, que é marcado pela incapacidade de a raposa pegar os cachos de uvas; • o clímax, que relata o fato de a raposa usar a pedra para alcançar os cachos de uvas; • o desfecho, que expõe as constatações de que as uvas estavam mesmo verdes e de que o esforço não valeu a pena. Trata-se, portanto, de uma fábula que apresenta todos os elementos constitutivos, como as demais. Ela difere, apenas, pela inversão do desfecho e, consequentemente, da moral. 91 STORYTELLING Questão 2. Leia o conto de Clarice Lispector. Felicidade clandestina Clarice Lispector Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”. Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía “As reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte, fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal 92 Unidade I sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo oque uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. LISPECTOR, C. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016, p. 393-396. 93 STORYTELLING Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas. I – O uso do narrador-protagonista, segundo a classificação de Friedman, faz com que o leitor viva a estória de acordo com a perspectiva da menina que queria o livro emprestado. II – Não há, na narrativa, qualquer indício que faça referências ao tempo ou ao espaço, pois o foco é relação entre a menina e o livro desejado. III – O narrador em primeira pessoa não permite a manifestação da fala dos demais personagens, pois é a voz dele que controla o que é narrado. É correto o que se afirma apenas em: A) I e II. B) II e III. C) I. D) III. E) I e III. Resposta correta: alternativa C. Análise da questão O narrador é em primeira pessoa (narrador-protagonista, segundo a classificação de Friedman) e, por isso, o leitor vive a estória na perspectiva da menina. As demais personagens manifestam-se por meio do discurso direto e do discurso indireto. Além disso, há, na narrativa, indícios do tempo e do espaço: sabemos que a estória se passa no Recife, na época da infância da protagonista. Como informação adicional, vale mencionar que o livro desejado foi publicado em 1931.