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Psicologia Social Cultura e Psicologia Social Desenvolvimento do material Patricia Castro de Oliveira e Silva 1ª Edição Copyright © 2022, Afya. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Afya. Sumário Cultura e Psicologia Social Para início de conversa… ................................................................................ 3 Objetivo .................................................................................................... 3 1. Cultura e Subjetividade ........................................................................ 4 2. Aspectos Transculturais dos Fenômenos Psicossociais ......................................................................... 7 3. História, Cultura e Sociedades Indígenas no Brasil .................................................................................................... 9 Referências .................................................................................................... 13 Para início de conversa… Você já se pegou pensando que o mundo como você conhece não é o único? Que existem diferentes maneiras de pensar, sentir e estar no mundo e que elas não devem ser classificadas em termos dicotômicos, como certo ou errado? O mundo em que você vive é constituído, desde sempre, por diferentes povos que têm diferentes atitudes, hábitos, valores, normas e regras de convivência. Isto é, a vida se forma em meio a diversidade cultural. A cultura é um conceito polissêmico, ou seja, pode ser definido de diferentes formas, com base em diferentes áreas do conhecimento. De todo modo, o importante é ter claro que se trata de um aspecto que constitui o ser humano, estando diretamente relacionado à sua maneira de estar, sentir e ver o mundo. Nesse sentido, existem diferentes maneiras de ver a diversidade cultural: uma seria a partir da perspectiva etnocêntrica; e a outra por meio da relativização cultural. Neste capítulo, falaremos sobre como o conceito de cultura é capaz de contribuir para a construção do conhecimento das sociedades e de que forma a história das culturas e dos povos pode ou não estar enviesada por determinadas visões dominantes. Objetivo Compreender o conceito de cultura à luz da Psicologia Social. Psicologia Social 3 1. Cultura e Subjetividade O homem é um ser biopsicossocial e cultural. O comportamento de todos está, também, diretamente relacionado à cultura na qual se constituem enquanto pessoas, em que são socializados e inseridos cotidianamente. Os estudos sobre cultura para a psicologia estão centrados na influência cultural, não apenas sobre o comportamento, mas acerca do pensar e sentir de cada um em perspectiva com o contexto histórico e social. Nesse sentido, Miranda e Hedler (2011), apoiados em Fink e Mayrhofer (2001), afirmam que a comunicação entre os grupos e indivíduos é um objeto de estudo privilegiado quando se pensa nas contribuições da psicologia social em relação à cultura. Bonin (1998) nos coloca que a perspectiva histórico-cultural, na psicologia social, entende que o ser humano nasce com determinados comportamentos referentes à sua estrutura biológica. Porém, ao longo de seu desenvolvimento, nos processos de socialização, os comportamentos se constituem pela influência da cultura de outras pessoas com as quais ele interage. As pessoas, ao nascerem, já encontram um sistema de códigos, normas e instituições que vem se constituindo ao longo da história da humanidade, assim, começam a interagir com as instâncias encontradas, passando, também, a exercer a função de constituintes dessa sociedade. Elias (1994-1995 apud 1998, p.58) expõe que: ‘‘ Cada indivíduo pode ser considerado como um nó em uma extensa rede de inter- relações em movimento. O ser humano desenvolve, através dessas relações, um ‘eu’ ou pessoa (Self), isto é, um auto-controle “egóico’”, que é um aspecto do ‘eu’ no qual o indivíduo se controla pela auto-instrução falada, de acordo com sua auto-imagem ou imagem de si próprio. É um ser que tendo ‘instintos’ ou comportamentos pré-programados passa através da vida social a adquirir a fala e planejar e controlar sua atividade e a de outrem, através das representações mentais.’’ O conceito “eu” diz respeito ao sujeito ativo que toma decisões e se orienta no mundo e, por outro lado, se refere à autoestima/ autoimagem, em uma referência à noção de “me” ou “mim” em George Mead (1972). É na interação com cuidadores primários – na relação interpessoal – que a criança vai construir as noções sobre como deve se comportar, vai adquirir um controle intrapessoal (BONIN, 1998). Nessa perspectiva, o indivíduo parte de uma relação interpessoal – do processo de socialização primária e secundária (LUCKMANN; BERGER, 1998) – para se auto-regular e planejar suas atividades. Bonin (1998), apoiado em Vygotsky (1984 apud BONIN, 1998) afirma que isso se torna possível pela existência da linguagem. Assim, esta,enquanto expoente e constituinte da cultura, é fundamental para a compreensão do indivíduo na perspectiva da psicologia cultural. O conceito de cultura, para a psicologia social, ajuda na compreensão de como as subjetividades se constituem nas relações coletivas e Psicologia Social 4 institucionais, que estão fundamentadas em normas e regras que se manifestam de diferentes maneiras em diferentes épocas e contextos sócio-históricos e promovem processos de inclusão e exclusão de determinados grupos e pessoas (NORIEGA et al., 2011). Na literatura, existe uma diversidade de conceituações sobre cultura, mas a perspectiva antropológica parece ser a mais usada. Assim, ela poderia ser “definida como o modo de pensar, sentir e agir em determinado grupo de indivíduos” (MIRANDA; HEDLER, 2011, p.314). Bonin (1998) nos coloca que a cultura também pode ser compreendida como um conjunto de hábitos, instrumentos forjados, manifestações artísticas, maneiras de relações interpessoais, regras sociais e instituições de um determinado grupo. Abordando as diferentes perspectivas para estudar a relação indivíduo- cultura na psicologia social, Bonin (1998) nos apresenta quatro possibilidades. O autor coloca que a primeira seria a cultura entendida como uma variável independente, em que cultura e mente seriam entendidas separadamente; na segunda, a cultura seria a mente como inserida nas práticas e atividades culturais; na terceira, a cultura é tida como a descrição das atividades e práticas de um grupo, ou seja, a cultura na mente; na quarta seu pensamento afirma: “a cultura e a pessoa, ou seja, a pessoa como agente intencional em mundo que é constituído de interpretações e objetos culturais.” (BONIN, 1998, p.61) Os termos “variável dependente” e “variável independente” são utilizados originalmente pela área da estatística, mas absorvidos pela pesquisa científica de maneira ampla, em especial, nas pesquisas de cunho experimental, como algumas vertentes da psicologia social. Por exemplo: um estudo de caso sobre o consumo de álcool e risco para câncer de fígado. A variável dependente seria a ocorrência ou não de câncer de fígado, e a variável independente seria o consumo de álcool. De maneira bastante resumida, pode-se dizer que a variável independente se refere à causa primeira, à origem e aos antecedentes dos eventos em estudo; e a variável dependente diz respeito às consequências relacionadas à variável dependente. Entre as décadas de 1960 e 1970, a cultura era fundamentalmente pensada como separada da mente, em uma perspectiva dicotômica e dualista: mente X cultura. A mente era entendida como uma espécie de processador da cultura, sendo externamente afetada por esta. A maneira de estudá-la nessa perspectiva era, de modo geral, o método experimental. Nos estudos interculturais dessa época, não se levava em conta o contexto histórico-culturalda pessoa, que trabalha com uma perspectiva mais ativa de sujeito na sociedade – sujeito que constrói a cultura, mas, apenas como receptáculo da mesma. Nesse sentido, vale lembrar que George Mead já havia, desde a Escola de Chicago, proposto Psicologia Social 5 pensar a pessoa na sociedade para além de um binômio, como instâncias separadas que se sobrepunham uma à outra, mas de maneira dialética, instâncias que se constituíam na interação de forças dos contextos psico-sócio-histórico e culturais. Em um momento posterior, cultura e mente deixaram de ser pensadas como variáveis independentes. A mente passou a ser concebida como inserida nas práticas e atividades de um grupo cultural. Nesse sentido, a cognição se tornou um objeto privilegiado de estudo, especialmente, a partir das diferentes formas de escrita na cultura (BONIN, 1998). Nessa perspectiva, a cultura é entendida como práticas coletivas e normativas que passam a ser apropriadas pelas crianças na interação com os adultos. A cognição é estudada como uma habilidade prática da vida cotidiana. A tradição cultural, assim, “se faz através de ações e interpretações nas práticas cotidianas que são transmitidas através da história de um grupo”. (BONIN, 1998, p.63) No entanto, a participação dos menos experientes nesse processo não é passiva, mas participativa nas atividades do grupo. As pessoas vão aprendendo aos poucos e, em diferentes processos, vão se apropriando da cultura. Na terceira maneira de se pensar a cultura em psicologia social, Bonin (1998) afirma que os processos cognitivos não são mais trabalhados como unidades de análise, mas sim como um conjunto de narrativas (interpretações) das atividades das pessoas no cotidiano. Logo, a relação indivíduo-cultura é pensada como uma descrição sobre os modos de agir e pensar das pessoas. Para além das categorias cognitivas, como memória, percepção, linguagem etc., nesse momento, se refere a pensar a vida, com base em uma perspectiva da psicologia do cotidiano, que leva a cultura a ser vista como sistema simbólico de classificação e interpretação da atividade humana. O autor ainda nos dá como exemplo o fato de que se ingerimos algo, é porque esse algo já teria sido classificado como um alimento (BONIN, 1998). Por outro lado, isso não impede que esse alimento seja pensado em outras possibilidades de utilização para a vida humana por alguém, sem que tenha sido ensinado por outrem. Dessa forma, nem tudo necessita de uma interpretação prévia. A questão de fundo, nessa perspectiva, está na possibilidade de aprendizagem com ou sem a ajuda do outro, ou seja, aprendizagem mediada e não mediada pela fala. A última forma de se pensar a cultura como objeto de estudo de psicologia social ou psicologia cultural – como um tipo de psicologia social – seria a cultura na pessoa, em que o sujeito cria e seleciona suas ações, em um continuum de aceitação e rejeição da interferência do outro no seu percurso cotidiano. Essa corrente propõe que a sociedade é criada individual e coletivamente, de modo a revelar uma intenção do produtor. Os objetos, muitas vezes, são criados para que você se lembre da intenção de autorregulação na sociedade. Por exemplo, bilhetes que você escreve para você mesmo com a intenção de se lembrar de Psicologia Social 6 compromissos, ou mesmo o despertador que você coloca para te acordar para o trabalho. Nessa perspectiva, “a pessoa é entendida como um agente intencional em um mundo de objetos culturais e que o mundo é constituído de interpretações” (BONIN, 1998, p.64). Desse modo, as relações interpessoais revelam, também, intenções e ironias sobre as próprias intenções, através de gestos significativos que vão além da fala. Por exemplo, uma pessoa pode estar falando com uma sobre determinado assunto, mas com uma piscadela pode comunicar a outra que isso que está falando não é tão verossímil assim, indicando que fala uma coisa, mas com a piscadela, indica a flexibilização da própria fala, ou ironiza a mesma para uma outra pessoa. Isto é, o ser humano é capaz de enganar simbolicamente, pois consegue se colocar no lugar do outro e consegue pressupor suas ações e possíveis consequências das mesmas. Características próprias do ser humano enquanto sujeito social e cultural. Dentre os psicólogos sociais pioneiros que se dedicaram a pensar a construção da subjetividade em perspectiva com a cultura, está Lev Vygotsky com sua psicologia sócio-histórica ou psicologia histórico- cultural. Vygotsky é conhecido como o primeiro psicólogo social a sistematizar os mecanismos pelos quais a cultura constitui o indivíduo, tendo logrado explicar a transformação dos processos psicológicos elementares em processos complexos dentro da história. 2. Aspectos Transculturais dos Fenômenos Psicossociais Uma das abordagens usadas para investigar a cultura é feita por meio das diferenças no modo de pensar, sentir e agir de um determinado grupo de indivíduos e em diferentes contextos e territórios. Para Hofstede (1980), o estudo das diferenças entre grupos e sociedades envolve questões de relativismo cultural (apud MIRANDA; HEDGEL, 2011). O “eu” é construído pela conversação de gestos em determinados grupos sociais (BONIN, 1998). Essa concepção do “eu” está fundamentada na premissa de um sujeito ativo, um “eu” que decide sobre suas ações e em um “me”, como em Mead, que diz respeito à autoestima e à autoimagem. A sociedade ocidental atual está centrada no “eu” e não na coletividade cultural. Nesse sentido, como exemplo, Bonin (1998) apresenta estudos que comparam as culturas japonesa e norte-americana. Na cultura norte- americana, são valorizadas a independência e a autonomia, as pessoas se vêem como únicas e agem conforme valores e atributos internos. Já na cultura japonesa, o “eu” se faz na interação com o outro, não tem esse caráter individualista, o “eu” é parte integrante e constituinte da família ou grupo. A cultura japonesa traz uma visão que prioriza o contexto relacional em que outras pessoas participam e compõem a definição de si. Assim, pode-se dizer que os japoneses agem conforme as expectativas Psicologia Social 7 dos outros, não se colocando em primeiro lugar, mas “procurando harmonizar seus desejos e atributos pessoais com os de outrem (BONIN, 1998, p.67), isso indica uma interpretação do “eu” interdependente. Já nos EUA, os estudos sobre psicologia cultural revelam uma concepção do eu independente. As dimensões culturais entre o individualismo e o coletivismo têm sido área de grande interesse teórico-conceitual, seja no âmbito da análise individual ou no da análise social. Miranda e Hedgel (2011) indicam que essas dimensões têm se destacado nos estudos sobre a cultura em função do crescente número de pesquisas transculturais, mas também têm sido um aspecto relevante nas investigações entre indivíduos de uma mesma cultura (MIRANDA, 2001 apud MIRANDA; HEDGEL, 2011). Além disso, teóricos sugerem que as dimensões de individualismo e coletivismo podem representar importantes aspectos da cultura organizacional. Noriega et al. (2011) apontam que as pesquisas transculturais na busca de traços universais do ser humano e na análise da influência cultural no comportamento têm contribuído para uma produção importante sobre a diversidade cultural. Como exemplo, os autores citam os estudos do psicólogo social Geert Hofstede, que, em sua série de estudos transculturais, afirma a existência de quatro dimensões culturais como universais: a desigualdade de poder, a evitação da incerteza e as dicotomias individualismo-coletivismo; masculinidade- feminilidade. a. Distância de poder ou distância hierárquica: Refere-se à forma como as diferentes sociedades lidam com as desigualdades entre as pessoas. Nas sociedades com baixo nível de desigualdade, as pessoas têm os mesmos direitos, as hierarquias ocorrem por conveniência e as pessoas são tratadas socialmente de maneiraigual. As mudanças ocorrem natural e gradativamente. Nas culturas com alto índice de hierarquia de poder, a desigualdade é tomada como natural e aceita, as hierarquias são tomadas como necessárias e as pessoas com mais poder atuam sobre as outras, desfrutando de privilégios. Mudanças estruturais nessas sociedades acontecem por meio de revoluções. b. Evitação da incerteza: Diz respeito ao grau de desconforto que as pessoas de uma determinada sociedade sentem diante de situações incertas ou desconhecidas. Culturas com baixa evitação de incerteza apresentam pessoas com baixos níveis de estresse quanto às incertezas. Esta incerteza é tomada como parte da vida, diferentes opiniões são aceitas e as pessoas se sentem bem, mesmo correndo riscos. Culturas com alta evitação de incerteza têm altos níveis de estresse diante de situações de incerteza. Na vida, a incerteza é percebida e sentida como uma ameaça contínua a ser combatida, evita-se o fracasso e os consensos na sociedade são procurados. c. Individualismo-coletivismo: Relaciona-se com o nível em que as pessoas na sociedade pensam a vida a partir de si mesmas e de seus próprios projetos (cultura individualista) em perspectiva com culturas onde o si mesmo é reconhecido como produto das inter-relações em que a pessoa se pensa em relação ao coletivo (conforme visto Psicologia Social 8 acima). Nas culturas coletivistas, o foco social é no “nós” e não no “eu”. Os relacionamentos são mais importantes do que as tarefas. Nessas culturas, o cumprimento das tarefas coletivas e a manutenção da harmonia no grupo, com evitação de enfrentamentos diretos, são tidos como um objetivo. d. Masculinidade-feminilidade: Refere-se ao nível, em uma cultura, de características associadas normativamente à identidade de gênero masculina ou feminina. A prevalência da agressividade, atividade, competitividade e busca por bens materiais e a resolução de conflitos pela imposição dos mais fortes sobre os mais fracos seriam características de uma cultura masculina. Características comuns das culturas femininas, por outro lado, são percebidas por Hofstede como focadas em qualidade de vida, em que a vida é percebida nas coisas pequenas e agradáveis do cotidiano, pela solidariedade com os menos abastados, onde os conflitos são resolvidos por meio do compromisso e da negociação. A análise de masculinidade e feminilidade, em uma sociedade e/ou grupo, também diz respeito à análise do grau em que as pessoas valorizam os relacionamentos e mostram sensibilidade e preocupação com o bem-estar dos outros. Sendo as que mais valorizam esses aspectos consideradas culturas mais femininas. Os estudos de Hofstede demonstraram a existência de grupos culturais nacionais, internacionais e regionais capazes de afetar o comportamento de sociedades e organizações, persistindo e resistindo através do tempo. No entanto, é importante observar que esses achados precisam ser relativizados à luz das várias intraculturas existentes em todos os países. Estes podem ser lidos culturalmente como tendo características gerais predominantes, que se sobressaltam em função de um jogo de forças, no qual determinados valores e normas acabam se sobrepondo a outros. No entanto, em todas as nações, grupos humanos, localidades e territórios, há diversas culturas. A predominância de determinados aspectos em uma cultura não significa a não existência de outras. Isso pode ser observado em processos de colonização, por exemplo, em que o colonizador busca, por meio de um processo de aculturação imposto/direto, eliminar as culturas dos povos locais e sobrepor o seu modo de pensar e agir. Porém, a história da humanidade tem demonstrado que, apesar ou por causa de processos e jogos de forças como esses, a diversidade cultural existe e resiste. A história dos índios brasileiros na chegada dos portugueses ao Brasil e a dos negros escravizados/as em território brasileiro são um exemplo dessa resistência e da diversidade cultural. 3. História, Cultura e Sociedades Indígenas no Brasil No Brasil, estima-se a existência de cinco milhões de indígenas à época da chegada dos colonizadores europeus. O genocídio dessa população se deu em função das doenças que também chegaram e pelas guerras de Psicologia Social 9 extermínio e escravização ocorridas no processo de colonização. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010) indicam que, atualmente, a população indígena brasileira corresponde a, apenas, 0,4% da população total, sendo equivalente a 896.917 pessoas. Ainda conforme o IBGE (2012 apud FERRAZ; DOMINGUES, 2016), existem, no país, 305 etnias que falam mais de 274 línguas. Somente a partir de meados do século XIX, a historiografia indígena começou a ser (re)construída de forma mais ampla e baseada em diferentes perspectivas, pois, até então, essa temática era considerada como área exclusiva da antropologia evolucionista. Toda ciência é construída sobre um determinado recorte. Na antropologia, no final do século XIX, prevalecia uma perspectiva evolucionista e etnocêntrica. Isto é, uma maneira de pensar todos os povos a partir do referencial cultural ocidental e europeu, em que a evolução seguiria em direção a esse referencial, e as singularidades culturais eram compreendidas como estágios ou etapas para se atingir esse padrão ocidental, europeu, de etnia branca e das elites econômicas e intelectuais. Nessas proposições científicas, são encontradas as justificativas para as chamadas missões civilizatórias, onde caberia aos povos ocidentais a aculturação de povos tidos como “primitivos”, com objetivo de que estes evoluíssem em direção a um modelo civilizatório, tido como padrão de evolução da humanidade. Essa linha antropológica teve como maiores opositores Franz Boas e Bronislaw Malinowski, que, em seus estudos, romperam com o modelo evolucionista de análise das diferentes culturas. No modelo fundamentado no evolucionismo, a concepção de cultura é uma concepção universalista, baseada numa proposição de unidade psíquica da humanidade. Expoentes dessa corrente, como Edward Taylor, baseavam suas ideias no darwinismo. Boas e Malinowski se opuseram a esse modelo de estágios culturais rumo a evolução para uma cultura mais civilizada e superior, e propuseram uma perspectiva particularista que entendia cada cultura como única, sem compará-las. Esses antropólogos propunham que hábitos, costumes, valores e regras sociais deveriam ser analisadas a partir da função que desempenham em cada sociedade. No início do século XX, os trabalhos de Boas e Malinowski se tornaram emblemáticos em uma nova proposição para os estudos sobre cultura, que é o relativismo cultural, que combate o etnocentrismo, por meio do qual as culturas não dominantes são marginalizadas e estigmatizadas. No Brasil, a história de extermínio das populações indígenas está, em muito, relacionada ao etnocentrismo. No processo de colonização europeu vivido aqui, a partir do século XVI, bem como nas políticas de Estado que se seguiram ao longo da modernidade, é possível identificar um projeto genocida e etnocida, no sentido de extermínio das populações indígenas e de suas culturas. No decorrer da história do país, indígenas, de maneira geral, foram perseguidos, assassinados retirados de suas terras e destituídos de quaisquer direitos, inclusive, sobre a própria cultura. Psicologia Social 10 Ferraz e Domingues (2016) ressaltam que o projeto genocida e etnocida do Estado brasileiro contra as populações indígenas adentraram o século XX. As autoras, apoiadas em Maldos (2010), referem a existência de um plano oficial no período ditatorial brasileiro de aniquilamento da população indígena. Apontam como uma das fontes para essa colocação o Relatório Figueiredo (documento elaborado entre 1967-1968, que traz denúncias de tortura e práticas de extermínio executadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão oficial do governoque antecedeu a FUNAI). As autoras colocam, ainda, que: ‘‘ O relatório final elaborado pela Comissão Nacional da Verdade, que apurou as violações dos direitos humanos que ocorreram durante o período de ditadura militar no Brasil, traz um capítulo específico sobre as violações de direitos dos povos indígenas e mostra que estas violações por parte do Estado foram tanto violência direta quanto omissão. No período (entre 1946 e 1988) investigado pela comissão, ao menos 8.350 indígenas foram mortos pela ação direta do Estado ou por sua omissão, povos indígenas tiveram suas terras usurpadas, sofreram com transferências forçadas e tentativas de extermínio com oferta de alimentos envenenados, contágios propositais e massacre com armas de fogo. (BRASIL, 2014 apud FERRAZ, 2016, p.684)’’ Outro dado que reflete o etnocentrismo na cultura brasileira é o fato de que, apenas em 2008, o ensino da história e das culturas negra e indígena tornou-se obrigatório nos currículos escolares. Isso se deu pela Lei n° 11.645/08. Para Ferraz e Domingues (2016), essa inclusão tardia no processo educacional reflete a própria inclusão tardia dos indígenas na historiografia brasileira. Em verdade, a historiografia nacional e os estudos culturais, onde se incluem as contribuições da psicologia social, têm evidenciado que a cultura brasileira se constitui na diversidade de culturas e povos. Felizmente, a maioria dos estudos na atualidade tendem a ter como perspectiva teórico-conceitual o relativismo cultural. A seguir, veremos mais algumas contribuições da psicologia nos estudos e ações em relação à população indígena. A reconstrução de uma história dos saberes psicológicos no universo da cultura em perspectiva com as populações indígenas pode contribuir ao debate mais amplo acerca das relações entre psicologia e cultura. Essa área de estudos históricos é capaz de contribuir para a compreensão das relações entre processos psicológicos, enquanto objeto privilegiado de estudo da psicologia, e fenômenos culturais, enquanto expressões das diversas culturas humanas, objeto de estudo de diferentes áreas do conhecimento. Ferraz e Domingues (2016), em artigo de revisão sobre os estudos de Psicologia e povos indígenas, indicam a realização, em 2004, do seminário “Subjetividade e Povos Indígenas” como um marco da aproximação da psicologia brasileira com os povos indígenas de nosso país. O evento foi realizado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e teve como objetivo contribuir tanto para o trabalho do psicólogo junto a essa população, quanto pensar estratégias capazes de atender às demandas das comunidades indígenas, em especial, no que concerne à Psicologia Social 11 dívida histórica que a psicologia, de modo geral, possui com os povos indígenas no Brasil. Os estudos sobre culturas realizados a partir de uma perspectiva não etnocêntrica são capazes de contribuir para a construção de novas subjetividades e o estabelecimento de relações sociais capazes de superar ideologias etnocentradas e predatórias com outros povos e com a própria natureza. É fundamental reconhecer a potência das contribuições que minorias, como os povos indígenas, têm no sentido da construção de uma relação mais harmônica com o mundo e com o outro. Logo, é fundamental que se veja na diversidade cultural de nosso país e do mundo o potencial para mudanças necessárias nas relações sociais, de modo que esses povos que, muitas vezes, são considerados “primitivos” ou do passado, sejam vistos em sua grande capacidade de contribuição para toda população brasileira. A cultura é um aspecto estruturante de todo ser humano. Como tal, constitui, influencia, (des)constrói atitudes e comportamentos das pessoas e das sociedades de maneira geral. O conceito de cultura para a psicologia social contribui para a compreensão sobre a constituição das subjetividades nas relações coletivas e institucionais, no sentido de que tais subjetividades são forjadas sob normas e regras que se manifestam de diferentes maneiras, em diferentes épocas e contextos sócio- históricos e promovem processos de inclusão e exclusão nas sociedades. Inicialmente, os estudos sobre cultura eram tomados como área da antropologia evolucionista e, nesse sentido, eram etnocêntricos, ou seja, pensavam as culturas a partir do referencial ocidental europeu. Essa perspectiva esteve na base do extermínio de povos e culturas, como o caso da população indígena brasileira, ocorrido desde o processo de colonização até a modernidade. Na construção do conhecimento sobre culturas, em oposição ao etnocentrismo, surgiu o relativismo cultural, contrário à ideia de que uma cultura se sobrepõe à outra, mas, sim, busca compreender os aspectos culturais contextualizados em sua historicidade, funcionalidade, cotidianidade e importância para cada sociedade. A grande importância dos estudos sobre cultura que valorizam a diversidade cultural está em sua capacidade de contribuir para desconstrução de preconceitos, marginalizações e processos de exclusão, com base no reconhecimento de diferentes experiências e visões de mundo que não são consideradas nem boas, nem más; certas ou erradas, mas, apenas, diferentes. Psicologia Social 12 Referências BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1998. BONIN, F. L. R. Indivíduo, cultura e sociedade. In: STREY, M. et al. (Org.) Psicologia social contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1998. FERRAZ, I. T.; DOMINGUES, E. A psicologia brasileira e os povos indígenas: atualização do estado da arte. Psicologia: ciência e profissão, v.36, n.3, p.682-695, jul./set., 2016. NORIEGA, J. A. V. et al. La psicología social y el concepto de cultura: Social psychology and the concept of culture. Revista de Psicologia, Fortaleza, v.2, n.2, p.07-17, jul./dez., 2011. MEAD, G. H. Espiritu, persona y sociedad: desde el punto de vista del conductismo social. Buenos Aires: Paidós, 1972. MIRANDA, R. O.; HEDLER, H. C. Cultura, valores humanos e comunicação nas relações intergrupais. In: TORRES, C. V.; NEIVA, E. R. (Org.). Psicologia social: principais temas e vertentes. Porto Alegre: Artmed, 2011. [Minha Biblioteca] Psicologia Social 13 Cultura e Psicologia Social Para início de conversa… Objetivo 1. Cultura e Subjetividade 2. Aspectos Transculturais dos Fenômenos Psicossociais 3. História, Cultura e Sociedades Indígenas no Brasil Referências