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Autor: Prof. Carlos Augusto de Melo Colaboradoras: Profa. Cielo Festino Profa. Joana Ormundo Profa. Tânia Sandroni Teoria Literária Professor conteudista: Carlos Augusto de Melo O professor Carlos Augusto de Melo é professor titular da Universidade Paulista (UNIP) em Campinas, na qual, há 5 anos, leciona as disciplinas do núcleo de Literatura do curso de Letras, especificamente as de teoria da literatura (prosa e lírica) e as de literatura portuguesa (poesia e prosa). Foi coordenador do curso de letras da UNIP, campus Limeira. Considera‑se apaixonado pelas Letras/Literatura. Graduado em letras pela Unesp, campus de Assis, próximo ao sítio dos pais, onde viveu até os 21 anos, possui mestrado e doutorado na área de Teoria e História Literária pela Unicamp. Possuindo experiência com ênfase em Literatura Brasileira e Portuguesa, atua principalmente nos seguintes temas: Literatura brasileira e portuguesa, Teoria da literatura, Crítica e História literária e Historiografia. Escreveu alguns artigos que foram publicados em periódicos especializados da área e ganhou o prêmio UFES (2010/2011) de Teoria e Crítica Literária. Alguns de seus artigos são: A história da literatura brasileira “vista de fora”: a contribuição do estrangeiro Ferdinand Wolf (1796‑1866) – Revista Ipotesi (UFJF, v.12, 2008); O Ensino de literatura brasileira no império – Revista Travessias (UNIOESTE, v.07, 2009); Alejo Carpentier e sua “viagem interior” pela selva americana” – Revista Raído (UFGD, v.4, 2010). Há alguns anos, vem se especializando nas disciplinas de EaD da área de Letras, com o propósito de contribuir para a expansão do universo das letras no país. Além disso, atua como orientador de Trabalho de Conclusão de Curso da Formação para Professores para o Atendimento Educacional Especializado (AEE/TC) da UFC, um novo desafio que aceitou com bastante entusiasmo, já que há algum tempo trabalha como orientador de TC e Iniciação Científica na UNIP/Campinas. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M528t Melo, Carlos Augusto de Teoria literária / Carlos Augusto de Melo. ‑ São Paulo: Editora Sol, 2011. 224 p., il. Notas: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2‑046/11, ISSN 1517‑9230. 1. Teoria literária. 2. Definições 3. Gêneros I. Título CDU 82‑1/‑9 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Luanne Aline Batista da Silva Geraldo Teixeira Júnior Simone Oliveira Sumário Teoria Literária APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 CULTURA E ARTE ..............................................................................................................................................11 1.1 Cultura .......................................................................................................................................................11 1.2 Arte ............................................................................................................................................................. 18 2 OS CONCEITOS DE LITERATURA ................................................................................................................. 25 2.1 Wellek e Warren .................................................................................................................................... 26 2.2 Danziger e Jhonson ............................................................................................................................. 32 2.3 A Literatura e a formação do homem ......................................................................................... 38 2.4 A natureza da Literatura .................................................................................................................... 43 3 OS GÊNEROS LITERÁRIOS ............................................................................................................................ 46 3.1 Classificação tradicional dos gêneros literários ....................................................................... 46 3.1.1 Definição .................................................................................................................................................... 46 3.1.2 Os gêneros literários na Antiguidade ............................................................................................. 49 3.2 A trajetória dos gêneros literários ................................................................................................. 54 3.3 Uma classificação moderna dos gêneros literários ................................................................ 56 3.3.1 Poesia e prosa literária: quais as fronteiras? ............................................................................... 58 Unidade II 4 O GÊNERO POESIA .......................................................................................................................................... 68 4.1 Definições ................................................................................................................................................ 68 4.1.1 Dicionários ................................................................................................................................................. 68 4.1.2 Alguns teóricos ........................................................................................................................................ 69 4.2 Poesia e poema.......................................................................................................................................71 4.2.1 O gênero poesia ....................................................................................................................................... 73 4.2.2 O poema, a poesia e a prosa poética .............................................................................................. 74 4.2.3 O poema em prosa ou a prosa poética .......................................................................................... 74 4.2.4 As características do gênero poesia ................................................................................................ 74 4.3 As espécies literárias ........................................................................................................................... 76 4.3.1 A espécie épica ......................................................................................................................................... 77 4.3.2 A epopeia ...................................................................................................................................................78 4.3.3 O poemeto ................................................................................................................................................. 79 4.3.4 O poema épico ......................................................................................................................................... 80 4.3.5 A espécie lírica ......................................................................................................................................... 81 5 ELEMENTOS ESTRUTURAIS DO GÊNERO POESIA ..............................................................................109 5.1 Os versos ................................................................................................................................................ 113 5.2 A estrofe (ou estância) ..................................................................................................................... 117 5.3 A metrificação .....................................................................................................................................120 6 ALGUMAS REGRAS PARA ENTENDER OS VERSOS ...........................................................................122 6.1 Classificação dos versos ...................................................................................................................126 6.2 Em busca de conceitos: ritmo e rima .........................................................................................133 6.2.1 O ritmo poético .................................................................................................................................... 137 6.2.2 A rima ....................................................................................................................................................... 138 6.3 As principais figuras de linguagem .............................................................................................144 Unidade III 7 O GÊNERO PROSA .........................................................................................................................................150 7.1 Definições ..............................................................................................................................................150 7.1.1 Dicionários .............................................................................................................................................. 150 7.1.2 Alguns teóricos ......................................................................................................................................151 7.2 Algumas características ...................................................................................................................153 7.3 As formas do gênero prosa ............................................................................................................153 4.4 As formas da prosa de ficção ........................................................................................................162 7.5 As principais formas da prosa de ficção ...................................................................................165 7.5.1 O romance .............................................................................................................................................. 165 7.5.2 A novela ................................................................................................................................................... 168 7.5.3 O conto .................................................................................................................................................... 169 8 ELEMENTOS ESTRUTURAIS DA PROSA DE FICÇÃO ..........................................................................174 8.1 Tema, assunto e mensagem ...........................................................................................................174 8.2 A fábula e a trama .............................................................................................................................175 8.3 A estrutura narrativa ........................................................................................................................177 8.4 A personagem de ficção ..................................................................................................................180 8.5 O tempo da narrativa .......................................................................................................................185 8.6 Teorias do espaço narrativo ...........................................................................................................186 8.6.1 Espaço e ambientação ....................................................................................................................... 187 9 O NARRADOR .................................................................................................................................................192 9.1 O foco narrativo ..................................................................................................................................194 9.1.1 Narrador onisciente intruso (editorial omniscience) ............................................................ 195 9.1.2 Narrador onisciente neutro (neutral omniscience) ................................................................ 196 9.1.3 “Eu” como testemunha (“I” as witness) ...................................................................................... 197 9.1.4 “Eu” como protagonista (“I” as protagonist) ............................................................................. 198 9.1.5 Onisciência seletiva múltipla (multiple selective omniscience) ........................................ 199 9.1.6 Onisciência seletiva (selective omniscience) ............................................................................ 200 9.1.7 Modo dramático (the dramatic mode) ........................................................................................201 9.1.8 Câmera (the camera) ...........................................................................................................................202 9.1.9 Análise mental, monólogo interior e fluxo da consciência ................................................ 203 9.2 Técnicas ficcionais ..............................................................................................................................203 7 APRESENTAÇÃO Caro(a) aluno(a), seja bem‑vindo(a) ao ambiente virtual da disciplina de Teoria Literária! Eu sou o professor Carlos Augusto de Melo, responsável pelo conteúdo da disciplina. Mestre e Doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, há cinco anos, leciono na UNIP/Campinas na área de Letras/ Literatura. Também trabalho com as disciplinas da EaD, com o objetivo de ampliar a formação de todos aqueles interessados pelas Letras e pela Literatura nas várias partes do Brasil. Elaborei este material com o objetivo de orientá‑lo na parte teórica sobre Literatura e deixá‑lo bem preparado para o estudo de textos literários em suas mais diversas manifestações, presentes nas várias disciplinas do curso de Letras da UNIP, como as de Literatura brasileira e Literatura portuguesa. Desse modo, este livro‑texto contém três unidades. Na unidade I, estudaremos os conceitos gerais que giram em torno do conhecimento de Cultura, Arte e, especificamente, Literatura, dentro das principais linhas da teoria literária. Estudaremos alguns pontos sobre a crítica, estudo e análise literários, que são fundamentais para desenvolvermos a prática de leitura literária em sala de aula. Todas as teorias são aqui estudadas por meio de textos selecionados, com os quais se farão os trabalhos de leitura, interpretação e análise. Na unidade II, veremos as características gerais e específicas do gênero poesia e, na unidade III, do gênero prosa, com o propósito de trazermos os seus fundamentos estruturais e estéticos. E, assim, como professor(a) e/ou estudioso(a)da literatura, você será capaz de examinar, aprofundar e avaliar os textos literários dos gêneros poesia e prosa em suas mais diversas manifestações estético‑literárias. Portanto, os objetivos desse curso são levar o aluno a conhecer as principais correntes das teorias literárias nacionais e estrangeiras ligadas à criação da Literatura em poesia e prosa, bem como amadurecer a leitura crítica e interpretativa do texto literário em poesia e prosa. As teorias da leitura perpassam o curso em que estão equidistantes a prática e a teoria. Buscamos, portanto, conscientizá‑lo da estrutura e do funcionamento dos vários tipos de textos literários e do modo de articulação estética que se estabelece entre forma e conteúdo das obras literárias. E, além disso, propiciar o amadurecimento crítico por meio da experiência com o texto literário, a relação com a cultura nacional e internacional e, sobretudo, com os meios de comunicação em geral, para enfim ser capaz de instalar o texto literário entre as outras formas de produção de arte (intertextualidade). Vale dizer que todos esses conceitos aos quais nos dedicaremos advêm de bases teóricas e críticas reconhecidas, que estão relacionadas na bibliografia, e é de extrema importância que você sempre as consulte para o entendimento e complementação do nosso estudo. Prepare‑se para um bom aproveitamento deste curso, feito especialmente para você! 8 INTRODUÇÃO Primeiro de tudo, devemos reconhecer que qualquer ser humano, seja leigo ou não, já teve algum tipo de contato com literatura ou expressão literária. Ela é muito mais presente do que imaginamos na nossa vida. Porém, mesmo assim, é muito comum surgirem alguns questionamentos sobre a sua importância, validade e necessidade, até mesmo por parte de estudantes ou professores da área de letras. Se você já se questionou por diversas vezes sobre isso, não se sinta sozinho. É muito comum aparecerem essas dúvidas. Claro que não deve se acomodar e achar que não há respostas para elas. Dentro das escolas, esse questionamento ainda é maior, principalmente por se tratarem dos locais em que ocorrem os primeiros contatos com essa disciplina e por conta da grande exigência e obrigatoriedade de lidar com ela. Muitos alunos reclamam e questionam a respeito do porquê de estudá‑la em sala de aula. É muito comum ouvirmos: “Para que devo estudar literatura? Que diferença isso fará na minha vida? O que ganho com isso?” Essa inquietação advém do espírito prático e funcional de nossa sociedade contemporânea. De alguma maneira, queremos que tudo possua resultados práticos, visíveis e funcionais, que satisfaçam às nossas necessidades mais concretas e imediatas. Por isso, torna‑se complicado trabalhar com a literatura que, por ser uma categoria mais abstrata e pouco imediata, não atende a essas expectativas, gerando recusa ou negação. Essa problemática não envolve apenas a literatura propriamente dita, mas também o universo da arte em geral, do qual faz parte. É um grande exercício tentar responder a essas questões. Torna‑se, então, inevitável ao professor de Língua e Literatura portuguesa quebrar essa barreira inicial e construir a ponte sólida entre a literatura e o público leitor durante as suas aulas. Para tanto, ele deverá saber e reconhecer o significado e a real importância do que seja literatura para levá‑la adiante; com isso, estará desconstruindo também essa visão totalitária de realizações imediatas e, até mesmo superficiais, que as pessoas vêm estabelecendo já há algum tempo. É nosso papel ajudar os alunos a desvendarem esse magnífico e complexo mundo da literatura E mais: você, estudante de Letras, mesmo que apenas pretenda especializar‑se na área de linguística ou língua inglesa/espanhola, é fato que os textos literários servem como proveitoso material para o ensino. Torna‑se por isso primordial que você saiba o significado do que seja literatura e a sua real importância na vida do homem, evitando, como professor, problemáticas de ensino e aprendizagem. Em sala de aula, é comum muitos professores lidarem com o texto literário de maneira mecanizada, por desconhecer ou não levar em conta a especificidade e a importância da literatura. Tomar contato com a literatura significa adentrar em um mundo singular, regido por características próprias que precisam ser conhecidas para que possamos compreender melhor e deixar fruir maior intensidade de toda riqueza que o texto literário revela. O primeiro passo é tentar responder àquelas questões que incomodam muita gente. E, antes de nos aprofundarmos, esperamos que você faça esse tipo de exercício, revelando‑nos suas concepções iniciais a respeito de nosso precioso material de trabalho. A seguir, lançamos algumas perguntas para que você 9 possa respondê‑las de maneira breve, objetiva e pessoal. Tente já pensar nas suas respostas com uma postura crítica e consistente, sempre evitando os desvios da linguagem padrão: • o que é literatura? • qual sua importância? • por que estudar literatura? Refletiu sobre essas questões? Agora vamos consolidar esses conceitos, a partir da leitura de renomados teóricos, críticos e historiadores da literatura de várias épocas que, por diversas vezes e à sua maneira, repensaram o papel da literatura e contribuíram para desvendar esse particular mundo literário. De início, torna‑se necessário começar pelos conceitos que norteiam a formação do objeto literário, no caso a Cultura e a Arte. Lembre‑se que, daqui em diante, você pode acompanhar essas reflexões, aprofundando‑se nelas com a bibliografia da disciplina que se encontra ao final deste livro‑texto. Os textos de Roque Laraia, Mércio Gomes, Marlies K. Danziger, Stacy Johnson, René Welleck, Austin Warren, Antonio Candido, Massaud Moisés e Salvatore D’Onófrio serão os mais utilizados nesta primeira parte conceitual. 11 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Unidade I Atenção, aluno! Nesta unidade, abordaremos os conceitos fundamentais sobre Cultura, Arte e Literatura. Em seguida, estudaremos detalhadamente algumas das definições de Literatura mais pertinentes por parte de alguns teóricos e críticos literários, tanto nacionais quanto internacionais. 1 CULTURA E ARTE A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração, e implicando em uma atitude de gratuidade. (CANDIDO, 1965, p. 64). Vamos falar sobre Cultura e Arte, em busca da base de entendimento do conceito de Literatura. Comece pensando em possíveis definições para essas duas categorias e, principalmente, como podemos correlacioná‑las para a nossa área de estudo das Letras! O que é Cultura? O que é Arte? Qual a importância delas para a vida do homem? 1.1 Cultura Os conceitos de Cultura, Arte e Literatura são complexos e muitas vezes bastante complementares entre si. Essa complexidade torna o nosso estudo ainda mais interessante e instigante. Desvendar, nem que sejam apenas alguns aspectos, é gratificante. Observação Lembre‑se: os termos Cultura, Arte e Literatura serão sempre usados aqui com letras iniciais maiúsculas, para demarcar conceitualmente cada uma dessas áreas específicas de conhecimento. 12 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Conceituar Literatura não é tão complicado como parece ser. O único problema é que, como acontece com a complexidade das manifestações humanas,há várias formas de abordá‑la. Tentaremos trazer os conceitos gerais, aqueles de consenso entre os teóricos e críticos e, depois, mostrar suas particularidades. O pressuposto é: a Literatura é um ramo do conjunto de conhecimentos e produções sociais do homem. Ela foi uma das maneiras que ele encontrou de manifestar seu conhecimento e transmiti‑lo aos seus semelhantes, o que, de algum modo, o diferencia dos demais animais. Ela é símbolo do que seja cultura. O homem é o único ser na natureza capaz de produzir e acumular conhecimentos, além de criar cultura. Desde seu nascimento, o ser humano é inserido em uma história que o precede, herdando todo o saber acumulado por seus ancestrais, que é colocado à sua disposição para que dele usufrua e, com suas experiências de vida, possa ampliá‑lo. A Cultura é material de grande interesse dos antropólogos1, que se preocupam em buscar respostas para a forma como cada geração contribui para o aumento e a preservação dos saberes da humanidade, consolidando, então, culturas. Os embasamentos teóricos com esse enfoque de estudo tiveram ascensão nas Grandes Navegações, período em que os europeus entraram em contato com outros povos, descobrindo grandes diferenças com relação a eles. Marilena Chaui (2008, p. 55) afirma que o termo cultura advém da palavra colere que: significa o cultivo, o cuidado. Inicialmente, era o cultivo e o cuidado com a terra, donde agricultura, com as crianças, donde puericultura, e com os deuses e o sagrado, donde culto. Como cultivo, a cultura era concebida como uma ação que conduz à plena realização das potencialidades de alguma coisa ou de alguém; era fazer brotar, frutificar, florescer e cobrir de benefícios. No conhecimento teórico e científico, sempre haverá diversas possibilidades conceituais de Cultura, por partirem de pontos de vista heterogêneos, em alguns momentos divergentes ou convergentes, de grupos de estudiosos de áreas também diversas. Como estudante e professor, é fundamental que você busque conhecer o máximo possível dos conceitos e, ao longo dos anos, use os que mais se aproximem e se adéquem à sua filosofia profissional, de vida ou aos contextos nos quais serão utilizados. Mais adiante, esse sentido se perde, surgindo outro no século da Ilustração, associado à ideia de civilização e progresso: Sabemos que civilização deriva‑se de ideia de vida civil, portanto, de vida política e de regime político. Com o Iluminismo, a cultura é o padrão ou o 1 “A Antropologia é a ciência que estuda o homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas” (LAPLATINE, 2000, p. 16). 13 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA critério que mede o grau de civilização de uma sociedade. Assim a cultura passa a ser encarada como um conjunto de práticas (artes, ciências, técnicas, filosofia, os ofícios) que permite avaliar e hierarquizar o valor dos regimes políticos, segundo um critério de evolução. No conceito de cultura introduz‑se a ideia de tempo, mas de um tempo muito preciso, isto é, contínuo, linear e evolutivo, de tal modo que, pouco a pouco, cultura torna‑se sinônimo de progresso. Avalia‑se o progresso de uma civilização pela sua cultura e avalia‑se a cultura pelo progresso que traz a uma civilização (CHAUI, 2008, p. 55). Essa concepção chega até o século XIX, justificando todas as formas europeias de colonização e de práticas etnocêntricas. Conforme Rocha (2006, p. 7), práticas etnocêntricas, ou seja, etnocentrismo é: uma visão do mundo com a qual tomamos nosso próprio grupo como centro de tudo, e os demais grupos são pensados e sentidos pelos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimos de estranheza, medo, hostilidade etc. Os primeiros antropólogos constataram as diferenças entre os homens, como crenças, valores, costumes, instituições, que se instauravam em tempos e lugares variados. Porém, essas diferenças eram vistas de maneira determinista. O homem apenas poderia carregar em si as marcas de um determinado tipo de cultura, na qual seria predestinado pelos aspectos biológicos e geográficos. É o que Roque Laraia (2009) reflete sobre a problemática do “determinismo” para o conceito de cultura. Contudo, nesse mesmo período, ocorrem algumas modificações advindas das reflexões filosóficas alemãs. Mais adiante, o determinismo será combatido pelas características adaptativas do homem de criar e receber cultura em todos os sentidos da palavra, surgindo o que Mércio Gomes (2009) conceitua como a capacidade de aculturação humana. A Antropologia Moderna passará a acreditar então que: “não existem de fato hoimens não modificados pelos costumes de lugares particulares, nunca existiram, e o que é mais importante, não o poderiam pela própria natureza do caso” (GEERTZ, 1989, p. 26). Além disso, os conceitos modernos avaliam que a Cultura é um dos aspectos que, certamente, podem diferenciar o homem do animal, do qual é originário. O homem foi/é o único animal que pode gerar cultura, porque possui capacidade cognitiva e linguística, criando símbolos e transmitindo‑os ao longo do tempo, de geração para geração. Daí, a Cultura terá uma dimensão humana pela perspectiva do trabalho, da linguagem e do sentido. As teorias modernas reformulam alguns conceitos e consideram várias possibilidades. Para Laraia (2009), o antropólogo Roger Kessing acredita que a Cultura define‑se por meio dos comportamentos sociais transmissíveis em comunidades com relação às necessidades de adaptação aos modos de vida padronizados, como crenças, religiões, políticas, economias, tecnologias etc. Outras conjeturas, pelas quais Roger Kessing refere‑se às teorias idealistas de cultura, apoiam‑se em três abordagens: 14 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 • a Cultura percebida como um sistema cognitivo, advinda do próprio sistema de conhecimento desenvolvido pelos membros de uma comunidade. Teoria representada por W. Goodenough2; • a Cultura percebida como sistemas estruturais, os quais, segundo Lévi‑Strauss citado por Laraia (2009), definem‑se, por meio de um sistema simbólico acumulativo da mente humana, regras inconscientes que controlam as manifestações empíricas de uma determinada comunidade ou grupo; • a Cultura percebida como sistemas simbólicos, teoria representada por Clifford Geertz3 e David Schneider4. O primeiro considera que a Cultura é uma espécie de “programa”, conjunto de mecanismos de regras, instruções, controle etc. que o homem está apto a receber e a se adaptar. O último acredita que a “Cultura é um sistema de símbolos e significados. Compreende categorias ou unidades e regras sobre relações e modos de comportamento” (SCHNEIDER apud LARAIA, 2009, p.63). Observação Sugerimos que consulte, estude e faça resumos dos dois primeiros capítulos do livro Antropologia, de Mércio Gomes e de todos os capítulos do livro Cultura: um conceito antropológico, de Roque de Barros Laraia. Dessa forma, você poderá aprofundar‑se nas diversas reflexões em torno da concepção de Cultura. Para tanto, consulte: GOMES, M. Antropologia: ciência do homem: filosofia da cultura. São Paulo: Contexto, 2009 e LARAIA, R. Cultura: um conceito antropológico. 23 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. A Cultura pode ser entendida como produções sociais próprias da atividade humana. O homem é o único ser vivo que pode produzi‑la e transmiti‑la, concomitantemente, ao longo do tempo, constituindo e caracterizando‑se a partir dela. É uma das possibilidadesque o distingue do animal. No senso‑comum, a ideia de Cultura remete às hierarquias ou status sociais, envolvendo questões como níveis de educação, dinheiro e família. Geralmente, afirma‑se que quem tem Cultura é aquele indivíduo interessado pelas artes, que aprecia músicas eruditas e conhece vários lugares. Porém, na visão científica, a Cultura compreende qualquer tipo de prática humana que envolva realizações materiais e/ou intelectuais em coletividade numa sociedade. Ela é o modo como percebemos o mundo à nossa volta e damos sentido ao que vemos e vivemos, percebendo o outro em coletividade. E os modos variam imensamente: podem ser crenças, costumes, culinária, produção artística, linguagem etc. A essência da Cultura é a sua diversidade. 2 Úrsula W. Goodenough nasceu em Nova Iorque em 16 de março de 1943. É professora de Ciências Biológicas da Universidade de Washington em St. Louis. Escreveu o famoso Sacred Depths of Nature (Profundidades sagradas da natureza). 3 O antropólogo Clifford James Geertz nasceu em São Francisco em 1926 e faleceu na Filadélfia em 2006. Conhecido mundialmente, ele foi professor da Universidade de Princeton em Nova Jérsei e publicou vários livros, como A Interpretação das Culturas de 1973. 4 David Murray Schneider foi um antropólogo cultural americano. Nasceu em Nova Iorque em 1918 e faleceu em Santa Cruz – Califórnia – em 1995. Lecionou na Universidade da Califórnia e ficou conhecido pelos estudos referentes à antropologia simbólica. Uma das suas obras mais famosas é American Kinship: a cultural account de 1968. 15 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Lembrete Uma das ciências que estudam diretamente os conceitos de Cultura e suas diversas manifestações é a Antropologia, que teve seus primeiros estudos mais sistematizados no século XIX. Leia as palavras de Laplantine (2000, p. 21), a propósito da existência da diversidade cultural: Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropologia [...] faz tanta questão, é a sua aptidão praticamente infinita para inventar modos de vida e formas de organização social extremamente diversas. Essas formas de comportamento e de vida em sociedade que tomávamos todos espontaneamente por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos da nossa existência...) são, na realidade, o produto de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos têm em comum é a sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, línguas, modos de conhecimento, instituições, jogos profundamente diversos; pois se há algo natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é a sua aptidão à variação cultural. Assim, a Cultura possui um poder atuante na vida do ser humano. Ela pode ser vista como uma programação de padrões culturais específicos, que cada um recebe como herança do processo social e histórico. Por outro lado, essa programação pode sofrer algumas adaptações por parte da interferência subjetiva, criativa, pessoal e coletiva do próprio homem. Essa atuação condiciona a visão do mundo e do homem, interfere nos planos biológico e psicológico. Como? Ela influencia no modo como pensamos, falamos, sentimos, expressamos, comemos, vestimos, agimos etc. Ela define os aspectos morais, políticos, comportamentais, sentimentais etc. Ruth Benedict citada por Laraia (2009, p. 67) afirma que “a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo. Homens de culturas diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas”. Essa lente é construída pela herança cultural que recebemos e cultivamos. Muito do que somos e do modo como agimos advém das relações culturais que estabelecemos. Perceba o modo como se constrói o eu lírico da canção Paratodos de Chico Buarque. Essa construção aparece mesclada tanto nas partes temáticas quanto estruturais. Saiba mais Chico Buarque é um literato completo e já produziu canções, poemas, romances, peças teatrais etc. Ficou conhecido pelas suas músicas no período dos festivais e de suas críticas ao regime ditatorial brasileiro. Para mais informações, consulte o site do artista para conhecer mais sobre sua vida e obra: <http://www.chicobuarque.com.br/>. 16 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Paratodos O meu pai era paulista Meu avô, pernambucano O meu bisavô, mineiro Meu tataravô, baiano Meu maestro soberano Foi Antonio Brasileiro Foi Antonio Brasileiro Quem soprou esta toada Que cobri de redondilhas Pra seguir minha jornada E com a vista enevoada Ver o inferno e maravilhas Nessas tortuosas trilhas A viola me redime Creia, ilustre cavalheiro Contra fel, moléstia, crime Use Dorival Caymmi Vá de Jackson do Pandeiro Vi cidades, vi dinheiro Bandoleiros, vi hospícios Moças feito passarinho Avoando de edifícios Fume Ari, cheire Vinícius Beba Nelson Cavaquinho Para um coração mesquinho Contra a solidão agreste Luiz Gonzaga é tiro certo Pixinguinha é inconteste Tome Noel, Cartola, Orestes Caetano e João Gilberto Viva Erasmo, Ben, Roberto Gil e Hermeto, palmas para Todos os instrumentistas Salve Edu, Bituca, Nara Gal, Bethania, Rita, Clara Evoé, jovens à vista O meu pai era paulista Meu avô, pernambucano O meu bisavô, mineiro Meu tataravô, baiano 17 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Vou na estrada há muitos anos Sou um artista brasileiro. (BUARQUE, 1993). Saiba mais Procure conhecer agora a interpretação que Chico Buarque fez dessa canção, Paratodos (faixa 15) no DVD Chico Buarque – meu caro amigo (2005). Essa canção é exemplar para refletirmos sobre o papel da Cultura na constituição do indivíduo. Para se declarar “um artista brasileiro”, o eu lírico constrói uma argumentação de maneira a mostrar os detalhes que configuram e justificam o que sejam “artista” e “brasileiro”, o que só é possível pelas diversas influências regionais e musicais que possui. É clara a ideia de variedade cultural e nacional que defende. Pelo que parece, ele acredita que brasileiro é representado pela heterogeneidade, como as misturas das raízes regionais. Ele só pode afirmar‑se como tal, então, porque seus laços paternos revelam e confirmam essa questão: “meu pai era paulista/meu avô pernambucano [...]” Em seguida, ele prova de todos os modos ser “artista” pela influência direta e heterogênea de intelectuais, compositores e intérpretes de reconhecido nome. Por fim, a argumentação de ser um “artista brasileiro” completa‑se, e de forma bastante convincente, uma vez que, além de ser brasileiro pelos seus traços paternos e artista pela influência de artistas renomados, ele só se baseia em artistas que, pelo histórico, são brasileiros e fizeram a história da música brasileira. Nitidamente, vemos que a espécie de “lente cultural” possuída pelo eu lírico dessa canção foi construída pela herança artística, regional e heterogênea de determinada sociedade. Dela, ele se percebe e elabora sua identidade musical e, por conseguinte, passa a ver o mundo, as demais pessoas e os outros artistas. Considere, agora, as reflexões do alemão Thomas Mann5: Figura 1 – Thomas Mann 5 Romancista alemão, considerado por muitos críticos literários como um dos maiores romancistas do século XX. Recebeu o Nobel de Literatura de 1929. 18 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia /Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 A cultura não se obtém com um labor obtuso e intensivo e é antes o produto da liberdade e da ociosidade exterior. Não se adquire, respira‑se. O que trabalha para ela são os elementos ocultos. Uma secreta aplicação dos sentidos e do espírito, conciliável com um devaneio quase total em aparência, solicita diariamente as riquezas dessa cultura, podendo dizer‑se que o eleito a adquire a dormir. Isto porque é necessário ser dúctil para se poder ser instruído. Ninguém pode adquirir o que não possui ao nascer, nem ambicionar o que lhe é estranho. Quem é feito de madeira ordinária nunca se afinará, porque quem se afina nunca foi grosseiro. Nesta matéria, é também muito difícil traçar uma linha de separação nítida entre o mérito pessoal e aquilo que se chama o favor das circunstâncias (MANN, 2000, p.57). Considerando a canção e o que afirma Mann, busque agora se autoconhecer e perceba quais são as suas heranças culturais. Reflita: você é o que é por conta do modo como se relaciona com as culturas? Bem, devemos pensar: quais são os outros aspectos relacionados à formação cultural do homem? É possível dizer também que o homem diferencia‑se do animal pelas suas capacidades cognitiva, linguística e comunicativa. Ele é o único animal capaz de raciocinar, produzir conhecimento e, por conseguinte, construir símbolos para transmiti‑lo aos seus demais. Ele tem um sistema de comunicação simbólico para viver em sociedade. Os símbolos são modos de atribuir significados às coisas do mundo e, geralmente, são de base consensual entre os indivíduos, permitindo que se entendam. A Cultura depende dessa capacidade humana, uma vez que sem ela os indivíduos não conseguiriam compartilhar e transmitir crenças, valores, ideias, línguas, o que diminuiria muito a capacidade de compreensão e integração social. Geertz (1973) afirma que a Cultura é um sistema simbólico que permitiu ao ser humano conseguir atribuir significados e sentidos às coisas do mundo, de maneira sistemática, racional e estruturada: uma maneira mais complicada de apresentar essa dimensão é dizer que a Cultura inclui o estudo de processos de simbolização, ou seja, de processos de substituição de uma coisa por aquilo que a significa, que permitem, por exemplo, que uma ideia expresse um acontecimento, descreva um sentimento ou uma paisagem; ou então que a distribuição de pessoas numa sala durante uma conversa formal possa expressar as relações de hierarquia entre elas. [...] De fato, os processos de simbolização são muito importantes no estudo da Cultura. É a simbolização que permite que o conhecimento seja condensado, que as informações sejam processadas, que a experiência acumulada seja transmitida e transformada (SANTOS, 2006, p. 41‑42). 1.2 Arte Uma das maneiras de simbolizar é a linguagem. A linguagem construída pelo homem oferece significado em comum às coisas entre determinados indivíduos e estabelece o processo de comunicação, 19 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA permitindo que se entendam. A linguagem é variada, ou seja, pode ser escrita, falada, filmada, gesticulada etc. A Arte integra essas práticas humanas e é tida como Cultura. E o que é Arte, então? Só de mencionarmos a palavra “Arte”, em qualquer situação de comunicação, o que vem à mente automaticamente são quadros, pinturas ou esculturas conhecidas universalmente. Figura 2 – Pietá – (Piedade) – 1499, de Michelangelo (1475‑1564) Figura 3 – La Gioconda (1503 ‑ 1519), de Leonardo da Vinci (1452 ‑ 1519) De fato, a maioria das pessoas, principalmente aquelas detentoras de uma cultura média, associa a ideia de arte a esculturas ou a pinturas famosas de Da Vinci, Michelangelo, Monet, mesmo não se lembrando dos nomes das obras ou reconhecendo de quem são. Isto permitiu a Bosi (2000, p. 7) afirmar que a “arte lembra objetos consagrados pelo tempo, e que se destinam a provocar sentimentos vários”, especialmente, o sentimento do Belo e do Sublime. Desde a pré‑história, a arte é uma atividade fundamental para o homem. Em todas as culturas, as diversas manifestações artísticas (dança, pintura, escultura, canto, desenho etc.) são um poderoso meio de expressão dos sentimentos, das crenças e dos valores humanos. Os objetos artísticos provocam estados psíquicos no receptor (prazer, tristeza, admiração, emoção etc.), o que nos permite crer que a arte é um modo específico de os homens entrarem em relação com o universo e consigo mesmos, como afirma Bosi (2000), citando Luigi Pereyson, para quem o processo artístico compreende três momentos: o fazer, o conhecer e o exprimir. 20 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 A Arte é um fazer, uma construção, uma atividade que muda a forma, transformando a matéria encontrada na natureza e na cultura. O metal ouro, por exemplo, transforma‑se em uma joia; a argila, em um vaso. Assim, qualquer atividade humana que tenha esse caráter transformador pode ser considerada artística. Observação Durante o Império Romano, por um critério socioeconômico, as operações artísticas foram classificadas em dois tipos: • as artes liberales: ligadas à emoção, eram exercidas por homens livres, considerados artistas; • as artes serviles: eram os ofícios realizados por pessoas humildes. Essa diferença conceitual entre os termos artista e artífice (do latim: artifex – o que faz arte), mantém‑se até nossos dias, estabelecendo uma oposição entre o trabalho intelectual e o manual. Dentro dessa perspectiva, Arte é produção, ou seja, um trabalho que arranca o ser do não ser, a forma do amorfo. De um bloco de granito, “o não ser”, obtém‑se uma escultura, “o ser”. O conceito de arte como construção vem dos antigos gregos que a chamavam de teckné, que significa “o modo exato de se fazer algo”. Na língua portuguesa, a palavra arte vem do latim ars, termo do qual também deriva o verbo articular, que significa fazer junturas entre as partes de um todo, fazer as partes se relacionarem entre si. Devido a esse caráter estruturante, eram consideradas artísticas não apenas as operações que tinham por objetivo comover a alma (música, poesia, teatro), mas também os ofícios de artesanato (cerâmica, tecelagem, ourivesaria etc.). De fato, no exercício de criação dos trabalhos manuais (pintura ou escultura), o olho, a mão e o cérebro atuam simultaneamente, transformando a matéria. É nesse sentido que, conforme Bosi (2000), Platão, em O Banquete, reafirma que criação (poíèsis) é tudo aquilo que “passe do não ser ao ser”, além de afirmar que “todas as atividades que entram na esfera de todas as artes são criações; e os artesãos destas são criadores ou poetas (poietés). Para Platão, um músico tocando lira ou um político manejando os cordéis do poder exercem arte” (BOSI, 2000, p. 14). Desse modo, podemos afirmar que “arte é a produção de um ser novo que se acrescenta aos fenômenos da natureza” (BOSI, 2000, p. 14). Esse conceito percorreu a história da Arte, marcando a distinção entre o que é natural (dado por Deus) e o que é construído pelo homem. Devemos considerar ainda o postulado da inspiração, ideia pela qual, desde Platão, concebem‑se o poeta e o músico como seres habitados por uma força divina. Segundo Danziger e Johnson (1974), para Platão, a arte era a sabedoria mais profunda, uma vez que seria testamento ou profecia divinos, criados espontaneamente num estado de êxtase. Por isso, músicos e poetas eram chamados de “entusiasmados”, do latim enthousiasmós, que significa “aquele que recebeu um deus dentro de si.” Contudo, vale lembrar que tais forças seriam responsáveis apenas pela escolhados procedimentos de linguagem, não pela produção da expressão. 21 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Observação Platão considerava as artes cópias afastadas dos objetos feitos pelo homem, cópias de uma cópia. O artista tem o poder mágico de recriar a realidade de acordo com suas vivências, sonhos e ideais. Cada civilização, por meio de seus artistas, poetas e escritores, reflete sua cultura em manifestações artísticas, sendo a Literatura uma delas. A literatura participa do desenvolvimento da cultura em que se integra e, por meio da utilização da língua dessa cultura, expressa suas dimensões culturais, logo, há uma estreita relação entre cultura, língua e literatura. Portanto, assim como se classifica a cultura em cultura ocidental, cultura europeia, pode‑se falar em literatura ocidental, literatura europeia, literatura brasileira etc. (PROENÇA FILHO, 1999, p. 34). A Arte é produto humano e uma prática social. O conceito de Arte é amplo e variado também. Mesmo assim, a essência do que seja é a maneira que o homem encontrou de ler e compreender o indivíduo, a sociedade e o mundo, e de transfigurá‑los em padrões ficcionais para que, de alguma forma, atinja a todos e cause sensações de Belo e Sublime, ou seja, o prazer estético. Além disso, a Arte consegue transcender‑se e ultrapassar as barreiras de tempo e de espaço e, como dizem os poetas, garante a eternidade. Segundo Collingwood, o artista deveria ser visto como um profeta: [...] não no sentido de prever coisas que virão, mas no sentido de que ela conta à sua audiência, sob o risco de seu desprazer, os segredos de seus próprios corações. A razão pela qual ela precisa dele é que nenhuma comunidade conhece o seu próprio coração;e por falhar em conhecê‑lo, uma comunidade engana‑se a si mesma sobre uma matéria em relação a qual ignorância significa morte... A arte é a medicina comunitária para a pior doença de mente, que é a corrupção da consciência (COLLINGWOOD, 1974, p. 336). Observe a belíssima canção Sahariene, de Chico César, que traduz exatamente essa ideia de que tudo falece, morre, se extingue, desde as coisas carnais, concretas, até os sentimentos mais abstratos, menos a Arte: “o carneiro sacrificado morre/ o amor morre/ só a arte não”. Saiba mais Chico César é cantor, músico e compositor, reconhecido pelos seus textos altamente poéticos, muitos deles exploram temas populares, sociais e políticos. Atualmente, além da música, trabalha como Secretário de Cultura do Estado da Paraíba. Consulte o site oficial do artista: <http://www2.uol.com.br/chicocesar/>. 22 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Saharienne Estive pensando em você uma foto junto a uma fonte congelada pela câmara água de beber camará a roupa leve lembrança de neve gelo seco no sertão saharienne saharienne saharienne daqui de onde estou diante da televisão sem som posso ouvir e ouço o alarido surdo dos curdos sinto cheiro de carne humana assada a morte assídua promíscua conspícua e tão pouco asseada saharienne saharienne saharienne saravá sarah vaughan quem te escravisaurou o que fez a beirute fez ao rio a teia de aranha midi me dá conforto e arrepio o carneiro sacrificado morre o amor morre só a arte não saharienne saharienne saharienne. (CESAR, 2003). Saiba mais Ouça a interpretação de Saharienne, de Chico César, na faixa 8 do CD Aos Vivos (1995). Na história do homem, percebe‑se que há várias manifestações artísticas conhecidas: artes plásticas, escultura, música, teatro, arquitetura, literatura etc. Observe a seguir alguns exemplos de como esses artistas constataram particularidades do mundo e, diante de uma construção imaginativa, criadora e perceptiva, puderam transmitir‑nos algo que chama a atenção, que leva à reflexão e causa sensações diversas, reconstruindo as nossas próprias percepções do mundo e de nós mesmos. 23 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Figura 4 – A liberdade guiando o povo (Delacroix – 1798‑1863) Figura 5 – Torre Eiffel – Paris Figura 6 – Estátua David (1501‑1504), de Michelangelo 24 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Sintetizando o que vimos até agora, dentro da Arte, a Literatura é uma das manifestações culturais humanas, ou seja: a) o homem produz cultura, ou melhor, diversas manifestações culturais (religião, esporte, costume, culinária, estilo de roupa, arte etc.); b) uma delas pode ser a Arte, pelas suas características específicas; d) a Literatura é uma das expressões culturais do homem. c) a Arte, por conseguinte, subdivide‑se em vários setores artísticos, com também suas peculiaridades, como, por exemplo, a literatura, a escultura, a música, a pintura e o teatro; Figura 7 Pensando num esquema mais prático ainda. Observe os ramos que se ligam à raiz conceitual de “Cultura”: Cultura Esporte Religião Costume Arte Arquitetura Literatura Etc. Escultura Música Figura 8 – Elementos da Cultura. Depois desta breve síntese sobre os conceitos de Cultura e Arte, os quais estão estritamente interligados à natureza de produção cultural humana, podemos concluir que a Literatura é um dos ramos de atividade artística que o homem criou dentro de sua prática cultural em sociedade ou grupo. Agora, passaremos a algumas das possíveis delimitações sobre o significado de Literatura, por parte de grandes estudiosos dessa área de conhecimento. Esses conceitos nos ajudarão a (re)elaborar e a (re) estruturar as nossas percepções e, também, possíveis preconceitos sobre esse objeto de estudo, uma vez que, se conhecermos mais dele, poderemos apreender e captar os diversos sentidos do texto literário e perceber a sua importância e relevância na vida homem. 25 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Saiba mais A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) criou o projeto PROIN, conhecido como um sistema de hipertexto no ensino de Literatura. Nele, é possível encontrar um conjunto de textos de Teoria e Crítica Literária, divulgados na íntegra ou parcialmente, com possibilidade de download, para ajudar os estudantes de Letras a consultarem, estudarem e aprimorarem vários conceitos literários e culturais. Consulte‑o e bom estudo: <http://www.ufrgs.br/proin/>. 2 OS CONCEITOS DE LITERATURA Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta‑se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida — umas porque usam de fórmulas visíveis e, portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso. (PESSOA, s/d, p. 392‑393) Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela singularidade mística [...] Mas a nós,que não somos nem cavaleiros da fé nem super‑homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça, salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. (BARTHES, 1978, p.16) Os conceitos são complexos e complementam‑se também. Todos os estudiosos tentam explicar as ideias gerais e, muito mais, as particularidades da Literatura, demonstrando sua essencial participação na sociedade, que justifica sua permanência ao longo dos anos na História dos homens. Seria a Literatura qualquer texto escrito? Há alguma diferença entre um texto científico e um romance realista? A crítica Nelly Novaes Coelho acredita que o conceito de Literatura é bastante amplo e complexo, e que, apesar das múltiplas tentativas de conceituações ao longo da história da humanidade, ainda não 26 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 se conseguiu nenhuma definição definitiva: “cada época fundamenta‑se de acordo com a sua maneira de entendimento quanto à vida e ao mistério da condição humana” (COELHO, 1980, p. 24). Massaud Moisés defende que o tema Literatura é uma permanente preocupação do homem há tempos: “Não é de hoje que filósofos, estetas, críticos e historiadores vêm procurando conceituar Literatura dum modo convincente e conclusivo” (MOISÉS, 1997, p. 19). Vejamos, então, os pontos de vista de alguns teóricos mais reconhecidos sobre o assunto na corrente de Teoria e História Literária. 2.1 Wellek e Warren Em Teoria da Literatura (1971), os autores começam preocupados em abordar a Literatura, diferenciando‑a dos estudos literários. Para eles, temos as seguintes distinções: Distinções Iniciais: Literatura: arte, criação, ficção. Estudos Literários: uma modalidade de conhecer, compreender e aprender a literatura e transpor essa experiência em termos racionais e intelectuais. Figura 9 Os estudos da Literatura enfrentam uma problemática. Muitos acreditam que a Literatura serve apenas para apreciação e só é possível compreendê‑la, produzindo e escrevendo literatura. Estudá‑la seria como se estivéssemos nos afastando dos seus propósitos. As primeiras preocupações de estudá‑la e sistematizá‑la advêm dos métodos das ciências naturais. Os estudiosos transferiram os métodos científicos para estudo dela, percebendo‑os como antecedentes causais e origem dos textos literários. Aplicaram os métodos dedutivos, analíticos, sintéticos e comparativos. Eram leis gerais e, muitas vezes, vazias, baseadas em intuições, apreciações pessoais e subjetivas. Essas constatações foram se modificando e os estudiosos preocuparam‑se em perceber as particularidades, as unidades e os valores literários que possibilitariam a sua caracterização e individualização. Os estudos literários detêm‑se então a quais obras são ou não são literárias e perguntam sobre a essência e a natureza da Literatura. Wellek e Warren apresentam três definições de Literatura possíveis dentro da história dos estudos literários. Vejamos: • Literatura como tudo aquilo que se produz em letra de forma, impressa e escrita; • Literatura limitada aos cânones literários pela forma exemplar de expressão, seus fundamentos estéticos e estilos de composição; • Literatura ligada à arte da literatura imaginativa, com modo particular de utilização da linguagem, incluindo todas as manifestações escritas e orais. 27 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA É a partir desta última formulação que os autores conseguem trazer uma definição própria de Literatura6. Primeiro de tudo, percebem que o material da Literatura é a linguagem: A maneira mais simples de resolver o problema é a de pôr em evidência o modo particular de utilização da linguagem na literatura. A linguagem é o material da literatura, tal como a pedra ou o bronze o são da escultura, as tintas da pintura, os sons da música. Mas importa ter presente que a linguagem não é uma matéria meramente inerte como a pedra, mas já em si própria uma criação do homem, e, como tal, pejada da herança cultural de um grupo linguístico [...] (WELLEK; WARREN, 1971, p. 28). Eles concordam que haja uma diferenciação entre a linguagem literária e a linguagem científica: O problema é crucial, mas está longe de ser simples na prática, uma vez que a literatura, diferentemente das outras artes, não tem um meio de expressão próprio, e uma vez que indubitavelmente existem muitas formas mistas e muitas transições subtis desses usos. É bastante fácil diferençar a linguagem da ciência da linguagem da literatura. O simples contraste entre o “pensamento” e “emoção” ou “sentimento” já, porém, não é suficiente. A literatura contém sentimento, realmente, mas a linguagem emocional não está confinada à literatura: basta atentarmos numa conversa de namorados ou numa discussão vulgar. Contudo, a linguagem científica ideal é puramente “denotativa”: visa a uma correspondência de um para um entre o signo e a coisa significada [...] (WELLEK; WARREN, 1971, p. 28). Desse modo, a linguagem literária diferencia‑se da científica por transmitir emoções, sentimentos e, em outras palavras, subjetividade. Esse aspecto aparece por meio do uso exploratório e sistemático dos recursos da linguagem em nível conotativo. Para Wellek e Warren, a linguagem literária é mais conotativa, enquanto a linguagem científica é denotativa. A linguagem literária, comparada com a científica, parecerá deficiente nalguns aspectos. Abunda em ambiguidades; como qualquer outra linguagem histórica, está cheia de homônimos e de categorias arbitrárias ou irracionais como o gênero gramatical; é permeada de acidentes históricos, por recordações e por associações. Numa palavra: 6 Como Wellek e Warren, Marisa Lajolo ressalta a importância da linguagem para caracterizar o texto literário: “é a relação que as palavras estabelecem com o contexto, com a situação de produção da leitura que instaura a natureza literária de um texto [...]. A linguagem parece tornar‑se literária quando seu uso instaura um universo, um espaço de interação de subjetividade (autor e leitor) que escapa ao imediatismo, à predictibilidade e ao estereótipo das situações e uso da linguagem que configuram a vida cotidiana” (LAJOLO, 1995, p. 38). 28 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 é uma linguagem altamente “conotativa.” Acresce que a linguagem literária está longe de ser apenas referencial: tem o seu lado expressivo, comunica o tom e a atitude de orador ou do escritor. E não se limita, tão pouco, a afirmar e a exprimir o que diz, quer ainda influenciar a atitude do leitor, persuadi‑lo e, em última instância, modificá‑lo. (WELLEK; WARREN, 1971, p. 28‑29). Resta, então, saber o que seja denotação e conotação. Os professores Platão e Fiorin (2002) trabalham o conceito, percebendo a denotação na relação direta entre significante e significado de um signo linguístico, enquanto a conotação relacionada a outras possibilidades desse significado, advindas de características mais subjetivas, emocionais, pessoais, culturais e sociais, que lhe atribuímos. Como estudado na linguística, o signo linguístico constitui‑se de duas partes distintas: o significante o significado. Significante Significado Signo Linguístico = Figura 10 – Signo linguístico. O homem tem a capacidade de dar significado às coisas do mundo. Tudo ao nosso redor possui um conceitointeligível. O significado concretiza e se expressa por meio de um significante, que são os sons que podem ser representados por letras. Quando vemos uma árvore, por exemplo, temos uma ideia, ou seja, o significado dela, e o expressamos a partir do som e de sua representação: árvore. O signo linguístico possui essa unidade de significante e significado que, nas palavras de Platão e Fiorin, são respectivamente o plano de expressão e o plano de conteúdo. Além disso, no signo linguístico, podemos encontrar um significante que possua vários significados. Podemos utilizar o significante linha, que possui vários conceitos ou significados, como um material próprio para costurar ou bordar tecidos; os trilhos de um trem ou bonde; certa conduta ou postura de um indivíduo; entre outros. Essa característica é conhecida como polissemia da palavra. 29 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Significante 1. significado 2. significado etc. Polissemia = signo linguístico = Figura 11 – Polissemia Pela característica polissêmica da palavra, é possível estabelecermos a conotação, ou seja, atribuirmos outros significados a um mesmo significante. Claro que conotação não é polissemia, só é se utilizada dessa capacidade polissêmica. A polissemia atribui vários significados ao significante, mas são esclarecidos diante do contexto empregado na superfície textual. A conotação vai além dos significados habituais das palavras. Platão e Fiorin definem‑nas assim: • denotação: a “relação existente entre o plano da expressão e o plano de conteúdo configura aquilo que chamamos de denotação. Desse modo, significado denotativo é aquele conceito que um certo significante evoca no receptor. Em outras palavras, é o conceito ao qual nos remete um certo significante” (PLATÃO; FIORIN, 2002, p. 113). • conotação: “significados paralelos, carregados de impressões, valores afetivos, negativos e positivos. Um outro plano de conteúdo, constituído de valores sociais, de impressões ou reações psíquicas que um signo desperta... o sentido conotativo varia de cultura para cultura, de classe social para classe social, de época para época [...]” (PLATÃO; FIORIN, 2002, p. 114). Assim, a Literatura constitui‑se como um discurso singular, que tem suas regras e procedimentos próprios; ao trabalhar com os signos linguísticos, possibilita que o mesmo significante possa ter outros significados e que um significado tenha um significante que não lhe era usual. Tudo isso faz com que o discurso poético sobreponha ao discurso linguístico um significado novo, inusitado, criando novas realidades. Para o poeta ou o escritor, não importa apenas o que se diz, mas o modo como se diz. Isso faz com que a Literatura tenha características peculiares. Nos textos literários, a função poética da linguagem assume o primeiro plano, pois o signo linguístico liberta‑se de seu sentido primeiro, do dicionário, referencial, objetivo, denotativo, e assume outro sentido, figurado, pessoal, conotativo. Por exemplo, a palavra flor tem como significante os fonemas /f/ /l/ /o/ /r/ e, por significado, planta, vegetal. Esse sentido é objetivo, impessoal, encontrado no dicionário e chama‑se denotativo (denotação). Na linguagem literária, esse signo (o conjunto de seu significante e seu significado), torna‑se significante de outro significado, o poético. Assim, na frase: Teresa é uma flor, o termo flor pode sugerir a ideia de beleza, delicadeza, doçura etc. Esse segundo sentido é subjetivo, conotativo (conotação). É um sentido novo, polivalente, plurissignificativo, pois sugere um feixe de possibilidades interpretativas. 30 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 O texto literário modifica as relações que as palavras têm consigo mesmas em seu sentido usual e estabelece relações subjetivas com o leitor, geradoras de diferentes interpretações, pois cada leitor tem seu repertório cultural. Observe os versos a seguir do poema Cerâmica, de Carlos Drummond de Andrade: Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara. Sem uso, ela nos espia do aparador. (ANDRADE, 1963, p. 217). O substantivo concreto cacos, na expressão “cacos da vida”, torna‑se abstrato e possibilita várias interpretações, tendo em vista não só as relações que estabelece com o restante do texto, mas também com a interpretação pessoal de cada leitor; o mesmo vale para “estranha xícara”. Dessa maneira, para Wellek e Warren, a conotação é a essência da linguagem literária. Mas apenas esse tipo de linguagem recorre à conotação? Os autores ressaltam que a linguagem diária, cotidiana e corriqueira também pode ser conotativa, expressando sensações e sentimentos. A diferença está então no modo como se utiliza da conotação. Para eles, a linguagem diária não é uniforme e possui variantes regionais, históricas, comerciais etc. porém pretende ser mais objetiva e influenciadora: Mais difícil de formular é a distinção entre linguagem diária e linguagem literária. O conceito da linguagem diária não é uniforme: inclui largas variedades, como a linguagem coloquial, a linguagem do comércio, a linguagem oficial, a linguagem da religião, o calão dos estudantes. É, contudo, evidente que muito do que ficou dito acerca da linguagem literária é aplicável também aos outros usos da linguagem, exceto ao científico. Assim, a linguagem de todos os dias também tem a sua função expressiva, embora esta possa variar – desde uma incolor comunicação oficial até a uma apaixonada veemência suscitada por um momento de crise emocional. A linguagem diária está repleta dos irracionalismos e das mudanças contextuais da linguagem histórica, embora momentos existam em que visa atingir quase a perfeição da descrição científica [...] É, assim, quantitativamente que antes de mais nada se pode diferenciar a linguagem literária das diferentes utilizações de todos os dias. Na literatura, os recursos da linguagem são explorados muito mais deliberadamente e sistematicamente. Na produção de um poeta subjectivista manifesta‑se‑nos uma ‘personalidade’ muito mais coerente e impregnante do que nas pessoas tais como as “vemos em situações quotidianas. Certos tipos de poesia chegam a utilizar‑se do paradoxo, da ambiguidade, da modificação contextual do sentido, até da situação irracional de categorias gramaticais como gênero ou o tempo, com plena deliberação. A linguagem poética estrutura, torna mais cerrados os recursos da linguagem corrente e às vezes chega a violentá‑los num esforço para que demos por eles e neles atentemos [...] (WELLEK; WARREN, 1971, p. 29‑30). 31 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Esse uso aparece em diferentes níveis de representação, como ocorre nas formas: romance e poema, em que o grau de conotação é diferente. O romance é menos conotativo do que o poema. Lembrete Diferenças entre texto literário e texto não literário: Texto não literário Texto literário Denotação Objetividade Valorização da função informativa Finalidade utilitária Realidade Conotação Subjetividade Valorização da função poética Finalidade estética Verossimilhança Esse trabalho com a linguagem é essencial para que se tenha uma nova maneira de compreender e elaborar o mundo e de ver as coisas que já sabemos que existem na prática. Portanto, a Literatura é uma forma de conhecimento, a partir da criação de um mundo particular sobre a realidade empírica. Ela torna ficção a nossa realidade. vale‑se da fantasia que aproximao público‑leitor. Divertimento e aprendizado são elementos que coexistem na Literatura. Então, ficcionalidade, invenção, imaginação e linguagem seus traços característicos7. Essas foram algumas das ideias trabalhadas por Wellek e Warren. Para aprofundar‑se mais nelas e perceber outras reflexões que estão presentes no estudo da Literatura, como as relações entre esta e a história, sugerimos que leia toda a obra desses autores, intitulada Teoria da Literatura. Saiba mais Além de Wellek e Warren (1971), estude ainda: D’ONOFRIO, S. Caracteres da ficção literária. In: Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria narrativa. São Paulo: Ática, 1995. LAJOLO, M. O que é Literatura. 17 ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. 7 Salvatore D’Onófrio também concebe a Literatura pelos traços ficcionais e linguísticos autônomos num universo próprio de realização textual: “A Literatura é chamada de ficção, isto é, imaginação de algo que não existe particularizado na realidade, mas no espírito de seu criador. O objeto da criação poética não pode, portanto, ser submetido à verificação extratextual. A Literatura cria o seu próprio universo, semanticamente autônomo em relação ao mundo em que vive o autor, com seus seres ficcionais, seu ambiente imaginário, seu código ideológico, sua própria verdade” (D’ONOFRIO, 1995, p. 19). 32 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 2.2 Danziger e Jhonson Outra explanação bem detalhada e bastante válida sobre literatura encontra‑se no livro Introdução ao estudo crítico da literatura (1974), de M. Danziger e W. Stacy Johnson. Há três teorias complementares que concebem o texto literário: teoria da imitação, teoria do efeito e teoria da expressão. Primeiro, os autores partem do princípio de que a definição de Literatura não é óbvia e, muito menos, fácil. Ela perpassa vários sentidos. É possível considerá‑la como qualquer coisa escrita em verso e em prosa; como obras de certo mérito; até mesmo, entender tudo como Literatura. Diante dessas definições amplas, eles preferem concebê‑la sob um conceito mais dirigido e perceberem‑na como existente no domínio da arte que a diferencia do conhecimento prático ou da ciência. É uma arte que se utiliza da palavra como meio de expressão, ou seja, uma arte verbal: Para os nossos propósitos, será preferível começar por defini‑la de um modo tão amplo e neutro quanto possível, simplesmente, como uma arte verbal; isto é, a literatura pertence, tradicionalmente, ao domínio das artes, em contraste com as ciências ou o conhecimento prático, e o seu meio de expressão é a palavra, em contraste com os sinais visuais da pintura e escultura ou os sons musicais (DANZIGER; JOHNSON, 1974, p. 9). Domínios do conhecimento Arte Ciência visual = ex.: artes plásticas cênica = ex.: teatro verbal = ex.: Literatura } Figura 12 – Domínios do conhecimento. Saiba mais Patrícia Melo, em um artigo interessante, publicado no site da revista Isto é, fornece ideias funcionais sobre escritor, obra e forma literária. Confira trechos dele em seguida, não deixando de consultá‑lo na íntegra em: MELO, P. Arte é Forma. Revista Isto É, ano 35, n. 2157, p. 114, 16 de março de 2011. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/colunas‑e‑blogs/colunista/38_ PATRICIA+MELO>. Acesso em: 10 abr. 2011. 33 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Porém Arte, não custa repetir, é forma. O conteúdo é apenas e tão somente seu subproduto. Arte, portanto, não tem moralidade nem senso de justiça, muito menos bula ou modo de usar. Arte não serve para nada (e muito menos nós, os artistas). Arte é arte. E a razão de se fazer arte é a própria arte, da mesma forma que a razão da vida é a própria vida ou o mistério que ela emana. É triste e desesperador ver a França que moldou os ideais iluministas no passado agindo da mesma forma que a Alemanha hitlerista: apontando e segregando a arte “degenerada” e elegendo a arte pura e edificante como arte oficial (MELO, 2011, p.114). M. Danziger e W. Stacy Johnson repensam a etimologia da palavra literatura, que advém do termo latino littera (letra), tratando‑se da linguagem escrita e impressa, e percebem que a definição pode ultrapassar o seu sentido etimológico, uma vez que há a tradição literária oral, como, por exemplo, a Ilíada e Odisseia, de Homero, ou Beowulf8, da literatura anglo‑saxônica. Sendo assim, para esse estudo, preferem “considerar a literatura como arte verbal, deixando em aberto a questão se as palavras são escritas ou faladas” (DANZIGER; JOHNSON, 1974, p. 9‑10). Figura 13 – Primeira página do manuscrito Beowulf. Ela pode ser vista no Museu Britânico 8 Escrito por um anônimo anglo‑saxão, por volta do século XI, o poema épico Beowulf é referência na história da literatura inglesa e um cânone da literatura medieval. A temática volta‑se a fatos ocorridos na Suécia e Dinamarca. O poema narra os grandes feitos do forte e corajoso herói da tribo gautas, Beowulf, que livra os dinamarqueses de monstros e luta contra um poderoso dragão. 34 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Saiba mais Em língua portuguesa, podemos consultar Beowulf em duas traduções: BEOWULF. Trad., intro. e notas de Ary Gonzalez Galvão. São Paulo: Hucitec, 1992; Beowulf. Trad., intro. e notas de Erick Ramalho. Belo Horizonte: Tessitura, 2007. Há uma adaptação homônima para o cinema, dirigida por Robert Zemeckis em 2007, protagonizada pelos atores: Ray Winstone, Robin Wright, Anthony Hopkins e Angelina Jolie. Depois dessas considerações, Danziger e Johnson procuram então entender que sentido específico permite à Literatura ser uma Arte. Para eles, dentro do estudo da Literatura, percebem‑se três tipos de teoria. A primeira delas é a literatura como uma arte de imitação, sendo “o meio de reproduzir ou criar em palavras as experiências da vida” (p. 18‑19). Essa ideia é tradicional e foi percebida pelos filósofos da antiguidade clássica, Platão e Aristóteles. Em A República, Platão julga a literatura e a pintura como imitações duplamente afastadas da realidade, defendendo o que nós temos como “realidade” como uma cópia da “realidade ideal”, da essência ou absoluto. Em Poética, Aristóteles delineia os modos de imitação (mimesis) como representações ou recriações da vida, como são os gêneros literários: a poesia épica, a tragédia, a comédia e a poesia lírica. Observe as várias representações sobre a ideia dum piquenique numa sociedade burguesa, percebidos pela forma imaginativa do literato Cesário Verde e do artista plástico Thomas Cole: De tarde Naquele pic‑nic de burguesas, Houve uma coisa simplesmente bela, E que, sem ter história nem grandezas, Em todo o caso dava uma aquarela. Foi quando tu, descendo do burrico, Foste colher, sem imposturas tolas, A um granzoal azul de grão‑de‑bico Um ramalhete rubro de papoulas. Pouco depois, em cima duns penhascos, Nós acampamos, inda o Sol se via; E houve talhadas de melão, damascos, E pão‑de‑ló molhado em malvasia. 35 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Mas, todo púrpuro a sair da renda Dos teus dois seios como duas rolas, Era o supremo encanto da merenda O ramalhete rubro das papoulas! (VERDE, s/d, p.101) Figura 14 – The Pic‑Nic [O piquenique] (1846), de Thomas Cole (1801‑1848) Observação Aristóteles legitimaa capacidade de imitação das artes. Segundo o filósofo, elas apenas se diferenciam na maneira como imitam as coisas do mundo, provinda da capacidade artística e da escolha da forma de determinado artista. Ele valoriza a tragédia como exemplo de arte que representa a ação humana e consegue edificar o homem. Essa representação é apenas parcial e não pode ser cópia, uma vez que é criação da forma imaginativa. Em outras palavras, tem‑se aí o conceito de verossímil em que a arte trabalha o que as coisas poderiam ser. Esses textos, tanto o verbal quanto o não verbal, conseguem refletir uma experiência humana, no caso, um grupo de pessoas fazendo piquenique. Perceba que a reflexão de cada texto possui particularidades no “modo como” captam a mesma situação. A imitação da vida pode ser o total de experiências variadas e particulares ou de aspectos gerais e permanentes. Para Danziger e Johnson (1974), dentro da Literatura, há que se considerar o “modo como” a vida é imitada com objetivo de ser reinterpretada e recriada. Na Literatura, então, a vida, sua matéria‑prima, é modelada e transformada por uma espécie de “espelho” que reflete as experiências vividas. A recriação da vida ou o “modo como” ela é reinterpretada torna‑se possível, considerando o processo de criação literária, tendo o criador, “o poeta, dramaturgo ou romancista” (DANZIGER; JOHNSON, 1974, p. 23) e o 36 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 público‑leitor como peças importantes. Portanto, Danziger e Johnson (1974) tratam da teoria de expressão e da teoria de efeito. Na teoria de expressão, a Literatura é definida de duas maneiras: • expressão originária da inspiração “divina” — o poeta (os autores utilizam‑se desse termo) deve ser “dotado de inspiração divina, um profeta, ‘possuído’ pela musa ou deidade que fala através dele. Portanto, acredita‑se que o poeta, no momento da criação esteja quase fora de si, dominado por aquilo que Platão descreveu como uma loucura divina” (DANZIGER; JOHNSON, 1974, p. 23‑24). • expressão proveniente da prática de composição — o poeta como artífice “com plena consciência do que está fazendo no momento de composição e, depois, quando se dispõe a polir e retocar sua obra.” A literatura como peça artística: “algo fabricado pelo homem e que pode ser trabalhado, transformado e burilado” (DANZIGER; JOHNSON, 1974, p. 24). Já na teoria de efeito, Danziger e Johnson definem a Literatura a partir da relação com seu público, do efeito que pode exercer sobre ele. Para corroborar essa concepção, os autores ilustram a reflexão de Aristóteles acerca da tragédia e as definições de Quintiliano e Horácio acerca da Literatura. Segundo eles, Aristóteles considerava no gênero trágico o estado de catarse – a purgação9 do medo e da compaixão –, dos espectadores durante a representação da peça. Quintiliano dizia que a finalidade da Literatura seria a comoção do público, quando desperta neste uma forte reação ou o prazer. Além de considerar o deleite, Horácio percebia que a Literatura possuía um lado útil, de instrução, serviria também para ensinar. As teorias mais modernas consideram que não se devem determinar os efeitos da Literatura, uma vez que as reações psicológicas são diversificadas, dependendo do público e da obra. Saiba mais Para aprofundar‑se nas teorias de Aristóteles, sugerimos a leitura dos seguintes livros: ARISTÓTELES. Poética. Tradução e comentários de Eudoro de Souza. Brasília: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1998. ___. Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ___. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale; tradução Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2001. 9 Purgação é o ato ou efeito de limpar ou purificar; purificação. 37 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Danziger e Johnson acreditando que essas teorias (teoria da imitação, teoria da expressão e teoria do efeito) sejam ainda incompletas, propõem duas ideias sugeridas pelos críticos contemporâneos, que descrevem “a qualidade especial e característica que distingue uma obra literária per se” (p. 25). Sendo assim, as considerações conceituais valorizam mais o aspecto formal da Literatura, ou seja, o que acontece dentro de uma obra literária. A primeira ideia é sobre a ficcionalidade ou o universo virtual da Literatura que, a partir da realidade, constrói um mundo que parece existir, mas é totalmente ficcional: Uma vez por outra, poderemos até sentir que conhecemos tão bem essas personagens que elas nos parecem ser pessoas nossas conhecidas, gente de nossas relações sociais cotidianas, e talvez sejamos levados pela curiosidade a querer saber que espécie de vida era a delas antes de começar a peça ou o romance. O que é que Hamlet estudava em Wittenberg? Que espécie de esposa teve o Rei Lear? Se reconhecermos que tais especulações são tão absurdas quanto indagar o que é que há do outro lado de uma sebe pintada num quadro de paisagem, estaremos reconhecendo que, por mais fielmente que representem a vida real, essas personagens não se movimentam num universo real, mas um universo ficcional que lhes é próprio (DANZIGER; JOHNSON, 1974, p. 25). A outra ideia é perceber a obra literária como estrutura propriamente dita. Em outras palavras, ela é uma “organização extremamente complexa e [...] os seus numerosos componentes ou facetas estão correlacionados entre si de tal forma que o todo é maior que as suas partes” (ibidem, p. 26). Essa correlação não é mecânica, mas dinâmica: inter‑relaciona as peças componentes da obra, dando‑lhe unidade e integridade. Nesse sentido, a estrutura é fundamental para modelar o tema refletido e recriado na Literatura, rejeitando, então, a divisão estanque entre forma e conteúdo. Como sugere o poema de Quintana, o autor “veste” (elabora uma forma) a “verdade” (o conteúdo) que se acha dentro de si: Qualquer ideia que te agrade, Por isso mesmo... é tua. O autor nada mais fez que vestir a verdade Que dentro em ti se achava inteiramente nua... (QUINTANA, 2007, p. 35). Saiba mais O professor René Girard explica o conceito da origem da Teoria da Mimesis na Conferência Imatatio de 2008. Essa explicação pode ser encontrada em diversos sites. Sugerimos que consulte as obras do escritor Luiz Costa Lima que é, no Brasil, referência sobre o assunto. 38 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 2.3 A Literatura e a formação do homem Os estudos literários sempre se preocuparam com as funções da Literatura, com o objetivo de ressaltar sua importância. Wellek, Warren, Danziger, Jhonson, Massaud Moisés, Salvatore D’Onófrio e Marisa Lajolo foram alguns estudiosos envolvidos nessa preocupação. O sociólogo e professor de literatura, Antonio Candido, também ficou bastante conhecido ao dedicar‑se a essa linha de conceituação, porém ele se deteve na vertente mais social do conceito. Em 1972, pronunciou uma conferência na XXIV Reunião Anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) com o título A literatura e a formação do homem, que, mais adiante, foi publicada na Revista Ciência e Cultura da USP. Nela, o crítico destaca a função humanizadora da Literatura, ou seja, “a capacidade que ela tem de confirmar a humanidade do homem” (CANDIDO, 1974, p. 803). Essa ideia é revelada em três diferentes funções: • função psicológica; • função formativa de tipo educacional; • função de conhecimento de mundo e do ser. O texto é estruturado em trêspartes. Na primeira, Candido apresenta os pressupostos teóricos e as distinções de função e estrutura. Na segunda, trata das duas funções humanizadoras propriamente ditas, “isto é: satisfazer à necessidade universal de fantasia e contribuir para a formação da personalidade” (CANDIDO, 1972, p. 806). Na terceira, destaca o poder e o caráter de conhecimento propiciado pela Literatura. O conceito de função é pensado para o papel que alguma coisa desempenha num dado contexto, quando ela possui um caráter mais dinâmico, atuante e processual numa perspectiva histórica. Nesse sentido, ela envolve o sistema literário estabelecido pela presença do escritor (a produção), da obra (o produto) e do público leitor (a recepção), valorizando não apenas a estrutura, mas também “os problemas individuais e sociais que dão lastro às obras e as amarram ao mundo onde vivemos” (ibidem, p. 804). A função da Literatura é percebida como um todo, inserida num sistema composto pela obra literária, escritor e leitor. Esse posicionamento é referente ao momento crítico de estudo da obra literária, quando se indaga “sobre a validade da obra e a sua função como síntese e projeção da experiência humana” (p. 804), em contraposição ao momento analítico, de cunho científico, que deixa de lado os problemas relativos ao autor, ao valor e à atuação psíquica e social da Literatura: Há no estudo da obra literária um momento analítico, se quiserem de cunho científico, que precisa deixar em suspenso problemas relativos ao autor, ao valor, à atuação psíquica e social, a fim de reforçar uma concentração necessária na obra como objeto de conhecimento; e há um momento crítico, que indaga sobre a validade da obra e sua função como síntese e projeção da experiência humana (ibidem, p. 804). A Literatura é a tentativa de representação da vida do homem, isto é, a verossimilhança de sua realidade; é o conhecimento do próprio homem, de seus sentimentos, de seus medos, de seus pensamentos. 39 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Por outro lado, ela não é estática, não ocorre apenas no plano estético, ou seja, nos aspectos formais. A natureza literária é totalmente dinâmica, pois consegue transformar e influenciar o homem, tendo um papel singular de fazê‑lo refletir sobre si próprio, compreendendo tanto autor quanto leitor. Portanto, a Literatura possui a função humanizadora que exprime o homem e depois age na sua própria formação: a Literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando‑a, aceitando‑a, deformando‑a. A obra não é um produto fixo, unívoco, ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro [...] (idem, 1995, p. 74). A Literatura tanto representa o homem quanto o transforma em cada possibilidade de representação, humanizando‑o: “A Literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (idem, p. 249). Considerando esse caráter humanizador, Antonio Candido atribui três funções à Literatura: psicológica, formativa e de conhecimento. Na função psicológica, a Literatura atua de maneira a satisfazer ou responder à necessidade universal humana de ficção e de fantasia como uma de suas necessidades mais elementares. Essa necessidade de fantasia ocorre no mundo primitivo e civilizado, na criança e no adulto, no instruído e no analfabeto e manifesta‑se de diversas maneiras: nas formas mais humildes, como anedota, adivinhação, trocadilho, narrativas populares, cantos folclóricos, lendas, mitos; e, no ciclo civilizado, como livro, folheto, jornal, revista, romance, conto, poema, cinema, telenovela, comercial de TV, internet etc. Pode aparecer em via oral ou visual, em formas curtas ou extensas e elementares ou complexas. A Literatura nesse cenário é ainda a fonte mais rica de sistematização dessa fantasia, mesmo com a existência de outras modalidades mais atuais de fantasia, como a televisão. Candido demonstra que, em qualquer sociedade, a fantasia e a realidade possuem um estreito vínculo. Segundo ele, na construção do pensamento científico, o devaneio, exemplo das possibilidades ficcionais do homem, é fundamental ao cientista. Considerando o caso de Bachelard10, Candido constata: o “devaneio lhe foi aparecendo, não apenas como etapa inevitável, ou solo comum a partir do qual se bifurcam reflexão científica e criação poética, mas a condição primária de uma atividade espiritual legítima” (idem, p. 805). Da mesma forma que o escritor na gestação da sua obra cria um mundo imaginário, e o povo também o cria para tentar explicar algum fato, o cientista parte de um devaneio para, por intermédio da 10 Gaston Bachelard (1884‑1962) foi filósofo e cientista. Antonio Candido considera‑o exemplo de cientista que se utilizou dos momentos de abstrações para suas constatações científicas. 40 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 ciência, buscar o caminho da sua concretização. Um bom exemplo é o invento do avião, que deriva do sonho do homem de voar como os pássaros. Voar, que para o homem há alguns séculos era apenas uma fantasia, hoje é algo simples e cotidiano para muitas pessoas. Fantasiar é o caminho da efetivação do pensamento do homem, é o ponto de partida para a realidade sensível do mundo. As criações ficcionais são a função integradora do plano imaginário com a realidade concreta do mundo, e a Literatura é a forma exemplar para essa realização. Saiba mais Leia também: CANDIDO, A. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 140‑162. ___. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2000. ___. Direito à literatura. In: Vários escritos – edição revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995. A Literatura é uma forma de sistematizar a fantasia: podendo referir‑se constantemente ao mundo real, cria um vínculo entre ficção e realidade que influencia e reflete na vida particular de cada leitor, seja por um personagem semelhante a ele mesmo, seja por uma realidade compartilhada, seja por uma sensação descrita em palavras. Conforme Candido, o poeta organiza por meio de sua obra o caos interior de cada leitor, transformando sentimentos e experiências normalmente vagas para este em “estrutura organizada, que se põe acima do tempo e serve para cada um representar mentalmente as situações” (1995, p. 247). Essa sensação de compartilhamento e identificação de realidades e sentimentos resulta em algo que poderia ser classificado como vivências que o leitor assimila e às quais pode recorrer em sua vida. Essas vivências são, para Candido, o resultado da função psicológica da Literatura e não se limitam a conhecimentos de mundo ou acontecimentos empíricos. Elas envolvem algo mais poderoso: as experiências de vida que o leitor adquire sem ter de vivê‑las. Conforme Candido, “as criações ficcionais e poéticas podem atuar de modo subconsciente e inconsciente, operando uma espécie de inculcamento que não percebemos” e “talvez os contos populares, as historietas ilustradas, os romances policiais ou de capa‑e‑espada, as fitas de cinema, atuem tanto quanto a escola e a família na formação de uma criação e de um adolescente” (1972, p. 805). Na função educativa, a Literatura age na formação da personalidade, assumindo caráter formativo. As obras literárias podem oferecer um aprendizado muito rico ao homem, não aquele escolarizado como a pedagogia tradicional realiza,em que a Literatura é limitada e dirigida para os conceitos de “verdadeiro”, “bom” e “belo”; e valores sociais, cristãos e nacionalistas. Nessa 41 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA concepção pedagógica, a Literatura é vista como um manual de virtude e boa conduta, uma vez que a escola acaba excluindo‑a ou adaptando‑a, a partir do prisma ideológico moral. Contudo, pode originar‑se um grande paradoxo: é quando a essência literária rompe com as convenções de formação pedagógica, e o leitor tem acesso, por exemplo, ao “bem” e ao “mal”, de maneira indiscriminada, como acontece na própria vida: A Literatura pode formar, mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê‑la ideologicamente como um veículo da tríade famosa – o Verdadeiro, o Bom, o Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes [...]. Ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa com ela – com altos e baixos, luzes e sombras (CANDIDO, 1972, p. 805). Saiba mais Assista à matéria Ensino de Literatura, realizada pelo programa Entrelinhas, da TV Cultura, disponível em: <http://www2.tvcultura. com.br/entrelinhas/videos.asp?videodata=12/5/2008>, dedicada aos seguintes temas: os tempos das novas tecnologias, como ensinar literatura e como chamar a atenção dos jovens estudantes para o mundo dos livros. O Entrelinhas mostra que, dentre as várias técnicas utilizadas por professores de São Paulo, destaca‑se o uso dos textos literários. Leia ainda CALOBREZI, E. T. Uma abordagem do texto literário. In: GOMES, A. L. (org.). Entretextos. São Paulo: Antiqua, 2005. A Literatura apresenta uma poderosa força de iniciação para o leitor e “não corrompe nem edifica, traz livremente em si o que chamamos de bem e o que chamamos de mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (ibidem, p. 806). Isso contribui para a formação da personalidade do ledor, pois lhe permite liberdade para reflexão, não o prende assim a uma visão pré‑formada, não o molda pela sociedade. Ele é livre para pensar sobre a problemática contida na obra literária e para escolher e assumir uma postura. Saiba mais Há vários filmes que exploram as várias funções que a Literatura pode exercer numa sociedade. A seguir, indicamos alguns deles, seguidos de links para a consulta da sinopse e resenha. Bom filme! Escritores da Liberdade (2007), <http://recantodasletras.uol.com.br/resenhasdefilmes/641978>; A Sociedade dos Poetas Mortos (1989), <http://pt.wikipedia.org/wiki/Dead_Poets_Society>; O Carteiro e o Poeta (1994), < http://pt.wikipedia.org/wiki/Il_postino>. 42 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Além das funções psicológica e formativa, Antonio Candido finaliza sua argumentação apresentando uma terceira função da Literatura: a de conhecimento de ser e de mundo. Nela, a Literatura atua como fonte de conhecimento sobre o mundo e conhecimento do próprio ser humano por meio das problemáticas e representações contidas nas obras. De acordo com Candido, a Literatura é uma construção de objetos semiologicamente autônomos, pela qual representa de maneira subjetiva a realidade do espírito, da sociedade, da natureza. A Literatura possui relação com a realidade concreta. Essa aproximação com o real permite que seja aceita pelo leitor no sentido de ser identificada e configurada com uma vivência dele: “a obra literária significa um tipo de elaboração das sugestões da personalidade e do mundo que possui autonomia de significado” (CANDIDO, 1972, p. 806). Desse modo, é possível perceber esses aspectos no Regionalismo brasileiro, que “forneceu elementos para a autoidentificação do homem brasileiro e também para uma série de projeções ideais” (ibidem, p. 806). Candido ilustra a construção de personagem nas obras dos escritores Simão Lopes Neto e Coelho Neto. O movimento regionalista envolve‑se na função social da Literatura, funcionalidade considerada perigosa por Candido, que a compreende tanto como possibilidade de ser utilizada para a formação humanizadora quanto, pelo contrário, de servir para alienação dos leitores. Saiba mais Simões Lopes Neto (1865–1916): escritor brasileiro considerado representante do Regionalismo do Rio Grande do Sul. Em suas obras, valorizou as tradições dos gaúchos. Vale a pena conferir as obras Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Coelho Netto (1864 –1934) escritor, político e professor maranhense, foi o primeiro intelectual a ocupar a cadeira nº 2 da Academia Brasileira de Letras. Possui uma bibliografia extensa, com diversos títulos. Leia: A capital federal (1929) e A conquista (1985). Para Candido, é possível que isso ocorra, por conta da tensão criada entre tema e linguagem. Observa que Simões Lopes Neto constrói a fala de seu personagem regional utilizando vocábulos marcadamente regionais, consegue balancear as linguagens e, desse modo, trazer o regionalismo para todas as esferas de leitores. O texto literário aproxima a realidade do leitor e permite que ele aceite a experiência literária e a incorpore à sua experiência, ou seja, “o leitor [...] se sente participante de uma humanidade que é a sua e, deste modo, pronto para incorporar à sua experiência humana mais profunda o que o escritor lhe oferece como visão da realidade” (CANDIDO, 1972, p. 809). Já Coelho Neto chega a ser extremista: querendo traçar as peculiaridades regionais, grafa as falas de suas personagens reproduzindo o aspecto fônico. Ele utiliza de uma estética limitada e pictórica, cria na obra um preconceito e transforma o personagem num ser exótico. Esse autor, com isso, distancia‑se da linguagem culta e acadêmica e torna seu texto literário completamente segregador. 43 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Antonio Candido quis mostrar que a Literatura torna‑se essencial para o ser humano em todos seus aspectos, pois contribui para a sua humanização, construindo sua personalidade, dando várias opções de escolhas, a partir do conhecimento de mundo e do conhecimento de si próprio. E, por isso, defende que ela deve ser de acesso livre ao homem, ou seja, deve ser‑lhe um direito indispensável. Neste momento, é necessário relembrarmos quais as funções da Literatura: • função psicológica: necessidade universal de ficção e de fantasia (ao lado da satisfação das necessidades mais elementares); ocorrências: no primitivo e no civilizado; na criança e no adulto, no instruído e no analfabeto; a Literatura é resposta a essa necessidade universal; ninguém pode passar um dia sem fantasiar (sonho, devaneio, televisão, literatura); é uma forma de sistematizar a fantasia; a fantasia nunca é pura, possui laços com a realidade; o devaneio é a necessidade básica para uma atividade espiritual legítima; a atuação da Literatura acontece no subconsciente e no consciente; • função formativa de tipo educacional: muito mais complexa do que a forma como é entendida pelo ponto de vista pedagógico tradicional; a Literatura não é limitada, age com o impacto indiscriminado da própria vida e age como ela, com altos e baixos, luzes e sombras etc; • função de conhecimento do mundo e do ser: a obra literária representa a realidade social e pessoal; sugestões de personalidade e do mundo em autonomia de significado; a função social: humanizar # alienar; um exemplo: Regionalismo brasileiro – fornece ao leitor o conhecimento de uma das variedades do homem brasileiro. 2.4 A natureza da Literatura Desde Platão, considera‑se funçãoda Literatura ser agradável e útil, ou seja, proporcionar lazer e gozo intelectual (catarse, purificação das emoções e alívio). Somente no século XVIII, o texto literário será visto pela perspectiva da linguagem, atentando à seleção vocabular e à combinatória sintático‑semântica. Daí, decorre o conceito de correspondência da Literatura à criação estética, ou seja, a textos que fujam da linguagem usual, proporcionando prazer estético por sua forma, conteúdo e organização do conjunto. Assim, são características da Literatura: • a conotação: a linguagem literária que explora todas as potencialidades da palavra, ou seja, é polivalente e aberta a várias interpretações; • a novidade: a linguagem literária que se desvia do uso normal do signo linguístico, e esse desvio provoca uma novidade no leitor, um efeito de estranhamento, levando‑o a prestar mais atenção à organização da mensagem. Isso ocorre também em relação aos demais processos empregados pelo autor na construção de seu texto; 44 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 • a estruturação: o modo como a mensagem é organizada, a maneira como são combinados os aspectos linguísticos, as imagens, a sonoridade, a sintaxe e outros elementos utilizados na construção da mensagem, decorrentes das escolhas que o autor faz para se expressar; Saiba mais O conceito de singularização introduzido pelos formalistas russos consiste em observar o objeto e descrevê‑lo de maneira que pareça a primeira vez, originando uma representação insólita, que estabelece relações novas com a realidade e provoque o “estranhamento” no leitor. Leia mais sobre essa concepção em CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In: TOLEDO, D. O. T. (org.). Teoria da literatura: formalistas russos. Tradução de A. M. R. Filipouski, M. A. Pereira, R. G. Zilberman e A. C. Hohlfeldt. Porto Alegre: Globo, 1971, p. 39‑56. • a verossimilhança: a “suprarrealidade” criada pelo autor precisa parecer verdadeira, isto é, ser verossímil, o que significa sugerir ao leitor a possibilidade de poder ser ou poder acontecer. Há dois tipos de verossimilhança: — verossimilhança interna: é a coerência entre aquilo que o texto diz e seus elementos estruturais (motivação, causalidade, equivalência dos atributos e ações das personagens etc.). Se faltar verossimilhança interna, a obra será incoerente, aproximando‑se do não sentido. Ex.: uma personagem apresentada como honesta e gentil não cometeria atos de crueldade, pois tais atitudes estariam em desacordo com as qualidades que lhe foram atribuídas. — verossimilhança externa: as regras do bom‑senso devem ser respeitadas, caso contrário entramos no domínio do fantástico, teorizado por Todorov (2008, p. 30‑31) como sendo uma “hesitação” entre o estranho e o maravilhoso, ou seja, acontecimentos que não são explicados pelas leis de nosso mundo familiar, como a volta de alguém que já morreu para falar com a família, como ocorre no romance Incidente em Antares, de Érico Veríssimo. Todorov assim se refere ao gênero fantástico: Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz‑se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e, nesse caso, as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então 45 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário; ou então existe realmente, exatamente como os outros seres vivos: com a ressalva de que raramente o encontramos. • a ficcionalidade: a Literatura é ficção, uma criação baseada na imaginação do autor, de acordo com sua visão de mundo. Apoiado em dados da realidade e nas estruturas linguísticas, sociais e ideológicas, o autor cria uma “suprarrealidade”, um universo particular, imaginário, regido por suas próprias leis, onde animais podem falar; tapetes, voar, etc. A incerteza em se distinguir se é imaginação ou se realmente o fato ocorreu é o fantástico; ao escolher uma das duas possibilidades, o leitor penetra no gênero do estranho ou do maravilhoso. Observação D’Onófrio (1995, p. 19‑20) defende que mais “importante é a verossimilhança interna, a coerência estrutural da obra, porque, quanto à verossimilhança externa, a fuga para o fantástico, para o mundo da imaginação, é comum à literatura.” Essas características anteriores revelam as especificidades da linguagem dos textos literários. A obra literária tem por base a linguagem que o autor elabora para expressar sua maneira de ver a realidade, criando, de acordo com sua imaginação, uma suprarrealidade, seja ela muito próxima ou afastada do real. Tal trabalho com a linguagem manifesta‑se nas diversas expressões dos gêneros literários que veremos na próxima unidade: a prosa ou a poesia. Saiba mais A propósito da Literatura e o ensino, pesquise e leia o artigo Repensando o ensino de literatura, de Aldo Bizzochi, publicado pela Folha de São Paulo (12 jul. 2000, p. A3), no qual se questionam algumas bases tradicionais que regulamentam o ensino de Literatura na escola, pensando‑se em novas possibilidades para a aplicação do estudo de literaturas, artes e de cultura de modo geral. É possível acessá‑lo pelo site de Bizzochi: <http://www.aldobizzocchi.com.br/ artigo18.asp>. 46 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 3 OS GÊNEROS LITERÁRIOS Figura 15 3.1 Classificação tradicional dos gêneros literários Nos tópicos anteriores, conseguimos ter uma visão ampla sobre a Literatura e pudemos trazer algumas definições. Como se trata de uma arte verbal, que utiliza uma linguagem específica, devemos focá‑la nos seus aspectos estruturais pelos quais se manifesta e nos alcança. Para tanto, dentro da Teoria Literária, utilizamos um método estrutural e temático de classificação: os gêneros literários. Devemos levar em conta alguns pressupostos ao tratarmos dessa sistematização: • qualquer tipo de classificação pode aplicar‑se a diversos assuntos já estudados e estar aberta a outros novos, ou seja, a um crítico literário é permitido que (re)classifique tipos de textos literários mencionados ao longo da história da Literatura, tem ele total liberdade de sistematizar novos textos que, por ventura, surjam; • não nos podemos valer rigorosamente dos nomes classificatórios dos gêneros literários, uma vez que estes variam semanticamente de acordo com pontos de vista históricos e teóricos. 3.1.1 Definição A palavra gênero origina‑se na língua latina: Generu-us (latim vulgar‑acusativo) – família; raça = agrupamento de indivíduos ou seres portadores de características comuns – conceito da Biologia, aplicado aos estudos literários –; Lit: designa famílias de obras dotadas de atributos iguais ou semelhantes (MOISÉS, 1970, p. 34). Genus generis (latim) – espécie, ordem ou tipo = gênero está relacionado com palavras tais como gene, geração e geral, um fato que indica referir‑se a certas categorias genéricas ou subdivisões da literatura. Sugere o interesse em classificar obras literárias pelo que elas têm em comum, pelo que distingue um grupo de obras de outro (DANZIGER; JOHNSON, 1974, p. 98). 47 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o- 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Para maior compreensão, importa conhecermos a etimologia do termo: 1. gênero vem do latim: genus, generis, que significa “espécie”, “ordem” ou “tipo”; 2. gênero vem do latim vulgar: generus e significa “família, raça”. Portanto, o gênero literário está ligado a palavras como geração e geral, relaciona‑se a categorias de divisão e subdivisão da Literatura: a necessidade de classificação das obras literárias pelo que elas têm em comum, pelo que distingue um grupo de obras de outro; literariamente, por gênero, entende‑se famílias de obras, cujas características sejam iguais ou semelhantes. A discussão a respeito dos gêneros literários vem desde a Antiguidade Clássica, com Platão e Aristóteles, e continua sendo matéria de pesquisa, devido à sua natureza controversa. Platão Figura 16 – Recorte da figura de Platão da obra A escola de Atenas (1509), de Rafaello Sanzio (1483‑1520) Platão, em A República, divide a obra poética em três tipos, conforme o critério de imitação (ou representação): • a tragédia e a comédia (o teatro): que são inteiramente imitativas, o poeta desaparece, deixando que as personagens falem; • a poesia lírica: que apresenta um relato do poeta e pode ser encontrada principalmente nos ditirambos11; 11 Ditirambos eram cantos dionisíacos festivos que exprimiam intensa alegria ou tristeza profunda. 48 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 • a poesia épica12: que une os dois tipos anteriores e é própria das epopeias. Aristóteles Figura 17 – Recorte das figuras de Aristóteles, à esquerda, e Platão, à direita, da obra A escola de Atenas (1509), de Rafaello Sanzio (1483‑1520) Efetivamente, com os mesmos meios pode um poeta imitar os mesmos objetos, quer na forma narrativa (assumindo a personalidade de outros, como faz Homero, ou na própria pessoa, sem mudar nunca), quer mediante todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas (Aristóteles, 1993, p. 71). Aristóteles concorda em parte com seu mestre e também parece referir‑se aos gêneros épico (narrativo) e dramático. Diferencia duas maneiras de narrar: • uma em que há a introdução de um terceiro personagem (equivalente ao narrador), e os próprios personagens manifestam‑se; • outra em que se insinua a própria pessoa (do autor), sem a intervenção de outro personagem; essa forma aproxima‑se da poesia lírica. A forma dramática é aquela em que a imitação dá‑se pelos próprios personagens em atuação, executando ações diante do público. 12 Epopeia vem do termo grego épos, que significava palavra, narração e também um tipo de verso (hexâmetro) empregado em poemas longos que exaltavam os feitos heróicos das divindades ou homens ilustres. Tal forma passou a designar um tipo de poesia, a épica, chamada também de epopeia (D’ONÓFRIO, 1995, p.112). 49 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Observação Em Poética, conforme Moisés (1970, p. 29), Aristóteles admite como expressões poéticas a epopeia, a tragédia, a comédia, o ditirambo, a aulética e a citarística, mas em sua abordagem privilegia a comédia e, sobretudo, a tragédia, de modo que sua classificação fica portanto incompleta. 3.1.2 Os gêneros literários na Antiguidade Como vimos resumidamente, na Grécia Clássica os textos literários dividiam‑se em três gêneros que direcionavam e representavam as manifestações literárias da época. Vejamos suas características específicas. Drama ou tragédia • temos as ações e falas combinadas de personagens que se movimentam num palco; • há a representação e atuação; • a ação conduz a um clímax e daí tem‑se um desfecho com a trama ou enredo dramático; • a temática varia desde a tragédia (história) à comédia (vida cotidiana); • as personagens são destaques e aparecem. Observe o excerto da tragédia Medéia (431 a.C.), de Eurípides. O texto apresenta o drama de uma personagem feminina, Medéia, que vive as maiores loucuras em nome do amor. A parte em que, depois de rejeitada Medéia constata que errou ao confiar seu amor a Jasão, é uma das mais emocionantes. Em Medéia, revela‑se exatamente a essência do gênero dramático: a encenação teatral de personagens nobres, por meio da ação dramática, leva a audiência a um estado de forte tensão emocional, chamada, em termos teóricos, de catarse: [...] (Entra Jasão) JASÃO Não é a primeira vez que noto, muitas vezes notei, a desgraça que é um temperamento exacerbado. Por exemplo, agora, bem poderias permanecer neste país e nesta casa, se soubesses obedecer à vontade dos que te são superiores. Quem te expulsa de Corinto não somos nós, até condescendentes. São tuas palavras insensatas. A mim essas palavras não me dizem nada. Pode continuar apregoando ao mundo que Jasão é o mais vil dos homens. Mas, depois do que gritas contra o soberano, o banimento é até uma punição bastante generosa. [...] 50 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 MEDÉIA (Soberba) A única expressão que minha língua encontra para definir teu caráter, tua falta de virilidade, é o mais baixo dos canalhas. Vieste a mim, estás aqui, para quê, tu, ser odiado pelos deuses, odiado por mim e por toda a humanidade? Não é prova de coragem nem de magnanimidade olhar na cara os ex‑amigos, na esperança de que esqueçam todo o mal que lhes fizeste. A isso se chama cinismo, e vem com as piores doenças do caráter humano – a falta de pudor, a ausência de vergonha. [...] Abandonei pai e pátria e vim contigo para Iolco; meu amor era maior que a minha prudência. Depois, provoquei a morte de Pélias do modo mais terrível: nas mãos das próprias filhas. E assim te livrei de todos os temores. Tudo isso eu fiz por ti, e, vil traidor, procuraste uma nova esposa, embora já tivéssemos procriado dois filhos. Se eu não houvesse te dado descendência, teria perdoado tua busca de um novo leito. Já morreu em mim há muito tempo toda e qualquer confiança em tuas juras. [...] Céus, a que coração traiçoeiro confiei minha esperança. [...] (EURÍPEDES, 2004, p. 32‑35). Saiba mais Vale a pena ler as tragédias clássicas: • Prometeu acorrentado e a trilogia Oréstia, de Ésquilo: ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. ___. Oréstia. 1. ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. • Édipo rei, Electra e Antígona, de Sófocles: SÓFOCLES. Édipo rei. 1. ed. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2001. ___. Electra. 1. ed. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. 51 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA ___. Antígona. 7. ed. Tradução de Millôr Fernandes. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 2007. Você perceberá que, na teoria moderna, a tragédia vincula‑se à forma narrativa teatral (peças teatrais). Épica: • compreende poemas narrativos de forma discursiva, bastante longos; • possui estrutura menos sólida, com vários episódios não muito diretamente ligados à trama principal; • o tema envolve figuras heroicas, homens de extraordinária estatura e até deuses, cujas proezas e feitos, que afetam civilizações inteiras, são impregnados de vasto significado; • tem inspiração na história e no mito;• há a presença e interrupção do narrador ao longo do poema. Há vários poemas épicos representativos. Alguns dos mais conhecidos são Eneida (publicado entre 29 a.C. a 19 a.C), de Virgílio (70 a.C. – 19 a.C.); Ilíada (aprox. 750‑725 a.C) e Odisseia (aprox. 743‑713 a.C.), de Homero (aprox. sec. IX a. C. – VIII a.C.); A Divina Comédia (aprox. 1307‑1321), de Dante Alighieri (1265‑1321); e Os Lusíadas (1572), de Camões (aprox. 1524‑1580). Todos os detalhes sobre a épica serão abordados no tópico sobre o gênero poesia. A seguir, apenas como ilustração, apresentamos o excerto de Ilíada, para que você já possa observar algumas características da épica. Figura 18 – Ilíada, de Homero 52 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 A guerra entre os gregos e os troianos deixa o cansaço e a vontade de voltar para casa. Os combatentes tentam várias formas para terminar a guerra. Castigado por Apolo, sofrendo, Agamêmnon entrega a prisioneira de guerra, Criseida, a seu pai. Na ágora13, Agamêmnon decide roubar a escrava do grande guerreiro Aquiles, que era filho de uma deusa com um mortal. [...] No peito hirsuto do Peleide a angústia assoma. O coração partido em dois hesita. Ou arranca do flanco a espada pontiaguda e afastando os demais abate o Atreide no ato, ou reprime o furor, doma a revolta no ânimo. Tudo isso lhe rodava no íntimo e, entretanto, ia sacando da bainha o gládio enorme. Então, do céu, Atena desce. Enviou‑a Hera, dos braços brancos, que ama os dois, por ambos vela. Por trás, segura‑lhe os cabelos louros, só visível para ele; ninguém mais a vê. Espanta‑se o Peleide; gira o corpo, e logo dá com Palas Atena: os olhos terríveis brilham! Dirigindo‑se à deusa diz palavras rápidas: Filha de Zeus tonante, portador de escudo, por que vens? Assistir à audácia de Agamêmnon? Pois declaro o que penso e hei de ver cumprido: seu belicoso orgulho vai causar‑lhe a morte. Brilho de olhos azuis, responde a deusa Atena: Descendo do alto céu, acalma‑te a ira (se acaso me obedeces), vim a mando de Hera, deusa dos braços brancos, que por ambos vela. Vamos, pára essa briga! Deixa em paz a espada! Insulta‑o com palavras, sim, o quanto queiras. Agora vou dizer‑te o que se cumprirá: um dia hão de pagar‑te o triplo dos dons esplêndidos como preço da afronta. Acalma‑te e obedece.” Recomeça a falar Aquiles, pés‑velozes. Deusa, em respeito às duas, tenho de ceder, ainda que raive o coração. Melhor assim. “Os deuses dão escuta a quem se curva aos deuses.” Disse, e deixou pesar no punho prateado a mão; o formidável gládio embainhou. Palas, vendo‑se obedecida, retornou ao céu, ao Olimpo de Zeus, porta‑escudo, entre os deuses. (HOMERO, 2001, vv. 188 a 222). Lírica • cantada com acompanhamento de um instrumento musical, a lira; • possui textos mais curtos do que os de outros gêneros; • apresenta grande unidade e limita‑se à exploração de um único estado de espírito; 13 Nesse contexto, Ágora significa a praça pública, na qual os gregos realizavam assembleias e discutiam as leis. 53 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA • temática: sentimentos pessoais, como o amor ou a mágoa; sentimentos públicos, como a admiração patriótica de heróis nacionais ou a reverência a deuses ou a Deus. • há a expressão direta do eu lírico, quer como pessoa ou como indivíduo social. Há uma vastidão de poemas pertencentes ao gênero lírico. Na Antiguidade, podemos citar as odes de Píndaro, um poeta lírico da Grécia do fim do século VI. Na sua maioria, as odes eram homenagens aos vencedores dos jogos dos grandes festivais gregos. Há nelas a frequente alusão a mitos ou narração deles. Em Para Theoron de Acragás, perceba a expressão subjetiva do eu lírico no modo como explora algumas concepções sobre vida, força, e divindade. Para Theron de Acragás (a II Olímpica) Sempre em noites iguais, em dias iguais com sol, isenta de penas os bons recebem a vida, e a terra não revolvem com a força de seus braços, nem a água do mar, ao longo de uma vida vazia; pelo contrário, junto dos que são caros aos deuses, aqueles que se regozijaram com a fidelidade aos juramentos passam uma vida sem lágrimas. Os outros padecem uma provação que o olhar não suporta. (PÍNDARO, 2011, s/p). Observação No gênero lírico, há a evasão subjetiva do eu lírico, mas nem sempre se relaciona à temática amorosa. Antes de continuarmos, vamos rever alguns dos conceitos apreendidos até agora. O termo gênero nos estudos da Literatura é usado para a classificação dos textos literários. Tradicionalmente, a definição dos gêneros dramático, lírico e épico baseia‑se nos conceitos de Platão e Aristóteles. Assim, pertence: • ao gênero lírico: a poesia lírica (poema curto, com musicalidade e que expressa a subjetividade do artista). Exemplo: ode, soneto, rondel etc.; 54 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 • ao gênero épico narrativo ou de ficção: obras em que um narrador apresenta personagens e conta uma história. Exemplo: a epopeia, o romance, a novela, o conto etc.; • ao gênero dramático: obras dialogadas, em que os personagens atuam por meio de gestos e discursos, sem a intervenção de um narrador, procurando representar o conflito entre homens e seu mundo (o texto de teatro). Exemplo: a tragédia, a comédia, o drama etc. 3.2 A trajetória dos gêneros literários Como vimos, os gêneros literários servem para classificar e sistematizar em grupos ou tipos as variedades de produções literárias existentes, de acordo com suas características mais convergentes, possibilitando, assim, melhor compreensão e interpretação dos conteúdos e formas literárias. Na tradição da retórica e poética, os escritores tentavam segui‑la rigidamente para a elaboração de seus textos. Atualmente, a classificação facilita aos interessados o estudo da Literatura. Porém, é importante sempre lembrar que: os gêneros existem como uma instituição, portanto foram criados por alguém, vale dizer, por determinados escritores, embora seja impossível apontá‑los, pois a formação dos gêneros é uma obra coletiva, que se efetua por etapas sucessivas (MOISÉS, 1970, p. 36). A tradição clássica dividia os gêneros em três tipos: dramático, épico e lírico. Com o tempo, essa classificação foi sendo desenvolvida e aprimorada com a aparição de novos tipos de textos literários que não se “encaixavam” nas características dos gêneros literários. Até os dias de hoje, os conceitos clássicos ainda são as bases para compreendê‑la, permitem o estudo mais aprofundado das produções literárias. Porém, ao longo da história, tivemos outras importantes contribuições que a aprimoraram, adequando‑a às exigências de cada época. Vejamos. Na Idade Média, houve pouca contribuição sistemática a respeito dos problemas literários. As concepções dos teóricos gregos eram modelos acabados e imutáveis. Basicamente, considerava‑se o seguinte para a classificação dos textos literários: • a evolução das formas estróficas e os versos silábicos da poesia lírica; • o romance em prosa; • os conceitos de teatro moderno. No Renascimento, retomaram‑se os parâmetros dos gêneros literários clássicos como regras e leis a serem respeitadas. Dentro da aliança “engenho e arte”, o poeta entendia que os gêneros preexistiam e eram comportamentos estanques e “puros”. Isso se impunha como “lei”: a inspiração e as regras poéticas andavam sempre juntas! Só o Romantismo mudou as regras do jogo, e os gêneros caíram por terra. A partir dele, as concepções clássicasforam repensadas, substituídas e/ou adaptadas. Isso pode ser entendido como fruto do espírito 55 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA de liberdade, liberalismo e relativismo desse período. Como marco, então, a classificação dos textos literários deixa de ser rígida e impositiva. O poeta passa a possuir a liberdade de experimentação e invenção de novos tipos literários. Massaud Moisés (1970, p. 32) ressalta, citando René Wellek, que, com o Romantismo: o gênero deixa de ser entendido como preexistente, pois ‘a moderna teoria dos gêneros é manifestamente descritiva. Não limita o número de possíveis gêneros nem dita regras aos autores. Supõe que os gêneros tradicionais podem ‘mesmo clarear‑se’ e produzir um novo gênero (como a tragicomédia). Exemplo de aplicação Então, é importante lembrar‑se sempre de que, na história dos gêneros, há as teorias tradicionais e, com os novos pensamentos relativistas, as teorias modernas que oferecem novos sentidos à produção literária. Você pode dizer quais são as diferenças? Descreva‑as no quadro abaixo: Gêneros Literários Teorias Clássicas Teorias Modernas Já no final do século XIX, por exemplo, Olavo Bilac classificava apenas os gêneros poéticos em cinco categorias: épico, lírico, dramático, satírico e didático. • Épico: O molde do gênero épico é a – epopeia, que se pôde definir: narração poética, em que se celebram ações heroicas, de caráter legendário ou histórico (BILAC, 1905, p. 91). • Lírico: O que essencialmente distingue a poesia lírica da poesia épica é o seu caráter subjetivo. Na poesia épica, o poeta é um simples narrador limitando‑se a descrever os factos heroicos, religiosos ou guerreiros que celebra; na lírica, ao contrario, o poeta desvenda e analisa os seus próprios sentimentos. O gênero épico é impessoal; o lírico é pessoal. (p. 106). 56 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 • Dramático: As principais formas d’este gênero poético são a tragédia e a comédia, ambas de origem grega. [...] A Tragédia em verso é hoje «uma composição ‘dramática, de vários personagens, com uma ação intensa, capaz de excitar o terror e a piedade, e terminando ordinariamente por uma catástrofe, ou acontecimento funesto (trágico). A Comédia é «um poema dramático, em que se representam uma ou mais situações da vida comum, pintando, de maneira divertida ou maliciosa, os costumes, os defeitos e os ridículos de uma época. (p. 186‑187). • Satírico: É uma composição poética, em que se atacam e ridicularisam os vícios, a hypocrisia, a petulância dos homens, ou os costumes, os defeitos, as tolices de uma época. (ibidem, p.198) • Didático: Este gênero literário pertence mais à prosa do que à poesia. Ainda assim, é necessário abrir‑lhe lugar nesta rápida enumeração dos gêneros poéticos, para poder classificar as máximas, os apólogos e as fábulas em verso. A Máxima é uma curta sentença, que encerra uma lição filosófica ou moral. [...] O Apólogo é uma parábola, ou alegoria, na qual transparece um ensinamento moral. [...] A Fábula é a narração poética e simples de um fato atribuído ordinariamente a seres distíntos do homem, – a animais privados da razão e da palavra –, e da qual se tira uma lição moral (ibidem, p. 202‑204). 3.3 Uma classificação moderna dos gêneros literários Você já deve estar se questionando: de tantas teorias, quais devemos utilizar? Qual é a mais válida? Como dissemos, depois da flexibilidade das teorias, muitas contribuições recebemos e fica a cargo de cada estudioso saber escolher a que melhor se ajuste às suas perspectivas de leitura, é claro, dentro de um limite de rigor teórico e metodológico. Das teorias modernas, a mais consensual entre os críticos e professores da área de Literatura é estabelecer dois grandes eixos: poesia e prosa. Como veremos, estes se classificam por ordem compartilhada de expressão (interior e exterior) e estruturação. Nesse caso, o gênero subdivide‑se, conforme suas configurações secundárias, em espécies e subespécies (formas). As espécies são especificidades da poesia apenas e ligam‑se ao modo de expressão lírica ou épica. Na poesia épica, por meio da subjetividade do poeta, reflete‑se sobre um povo, uma raça, ou até 57 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA mesmo sobre a humanidade. Na poesia lírica, têm‑se as reflexões de um “eu” central, o poeta expressa seu mundo interior, manifesta seu estado de alma, de modo que se configura no poema um caráter confessional. As formas são moldes estruturais (métrica, estrofação, estilo da construção do texto), que podem ser adotadas por qualquer espécie, mas, em geral, devido à sua especificidade, são mais valorizadas pelo gênero poesia, que prima pelas formas e conteúdos. As formas da poesia lírica seriam o soneto, a ode, a canção, o rondel, o tiolé, o rondó, a balada, o vilancete etc. À poesia épica corresponderiam as formas: poema, poemeto e epopeia. A prosa não apresenta espécies, mas variados tipos e modalidades, como os contos, novelas e romances. Observe o esquema14: Quadro 1 – Classificação dos gêneros literários Gêneros literários Espécies Formas Poesia lírica soneto, ode, canção. épica poema épico, poemeto, epopeia. Prosa ‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑ oratória, história, crítica, ensaio, carta, crônica, teatro, conto, romance, novela, fábula, apólogo, anedota etc. Exemplo de aplicação Dedicando‑nos à teoria literária, adiante estabeleceremos as especificidades dos gêneros poesia e prosa e seus desdobramentos. Antes, concentre‑se e estabeleça em notas as diferenças entre os gêneros poesia e prosa e, mais ainda, responda a esse questionamento bastante comum quando se estuda Literatura. Há uma fronteira teórica entre poesia e prosa? Quais? Poesia Prosa 14 As definições e detalhamentos sobre o gênero poesia e suas respectivas espécies e formas, assim como sobre o gênero prosa e suas formas, serão apresentados no decorrer deste livro‑texto. 58 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Retomando o que vimos até agora, podemos dizer que os gêneros literários são definidos pela classificação: • poesia e prosa Depois, há as suas subdivisões, ou seja, as “configurações secundárias dos gêneros”: • espécies (específico da poesia): ligam‑se ao modo de expressão; • formas (subcategoria das espécies): são moldes formais e estruturais (métrica, estrofação, estilo, arquitetura do poema, do conto etc.). Atenção: a prosa não apresenta espécies. Segundo Massaud Moisés (1970, p. 39), quanto à prosa, a prosa não apresenta espécies. Os vários tipos e modalidades de contos, novelas e romances longe estão de constituir espécies; são, por assim dizer configurações ou características fundamentais de conteúdo. Assim, um romance é de tipo satírico se a sua substância contiver sátira, individual ou coletiva, uma novela é de aventuras se a intriga predominar. Nesse caso, afigura‑se mais acertado falar simplesmente em tipos ou modalidades. 3.3.1 Poesia e prosa literária: quais as fronteiras? Tudo que não for prosa é verso e tudo o que não for verso é prosa. (MOLIÈRE apud VILLAMARIN, 2002, p. 425) Antes de mais nada, citamos a famosa frase do francês Jean Baptiste Molière (1622‑1673), retirada do livro de citações de Alberto J. G. Villamarin. Na verdade, originalmente, elapertence à peça teatral O burguês fidalgo, publicada em 1670. Nela, há uma conversa entre Jourdain que solicita ajuda de um filósofo para escrever um bilhete galante à amada da Nobreza. Ele queria escrever algo que não fosse nem verso e nem prosa, e eis que o filósofo ensina‑lhe essa distinção abrangente de gêneros. Saiba mais O francês Jean Baptiste Molière (1622‑1673) escreveu várias peças teatrais e dirigiu sua própria companhia de teatro, por toda a França. As apresentações eram consideradas geralmente muito irônicas e avançadas para a época. Uma daquelas que se tornaram mais conhecidas foi a comédia D. Juan (1655). Consulte: MOLIÈRE, R. W. D. Juan. Londres: Nick Hern Books, 1997. Há várias adaptações para o cinema conhecidas: a primeira é Don Juan (1926), direção Alan Crosland; a segunda, D. Juan de Marco, por Jeremy Leven (Playarte – 1995). Vale a pena conferir! 59 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Assim como esse filósofo, buscamos definir os gêneros literários. E, para tentar defini‑los, torna‑se inevitável estabelecermos a comparação entre eles, questionando: há uma fronteira teórica entre poesia e prosa? Quais? Se solicitássemos que, nesse instante, você citasse um exemplo de texto que representasse o gênero poesia, qual mencionaria? Seria bem natural se citasse algum soneto de Camões, Vinícius de Moraes ou até mesmo uma música de Adriana Calcanhoto, Renato Russo e assim por diante. Quando mencionamos a palavra poesia, automaticamente, lembramos daqueles textos curtos com uma estrutura em versos, estrofes e rimas (conceitos básicos de poema que aprendemos com a vida), que expressam algum sentimento. Leia e analise atentamente os textos a seguir: Soneto de fidelidade De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento Quero vivê‑lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa lhe dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. (MORAES, 1946, p.7) Vidas secas (excerto) Fabiano, apertado na roupa de brim branco feita por Sinhá Terta, com chapéu de baeta, colarinho, gravata, botinas de vaqueta e elástico, procurava erguer o espinhaço, o que ordinariamente não fazia. Sinhá Vitória, enfronhada no vestido vermelho de ramagens, equilibrava‑se mal nos sapatos de salto enorme. Teimava em calçar‑se como moças da rua – e dava topadas no caminho. Os meninos estreavam calça e paletó. Em casa sempre usavam camisinhas de riscado ou andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de pano branco na loja e incumbira Sinhá Terta de arranjar farpelas para ele e para os filhos. Sinhá Terta achara pouca a fazenda, e Fabiano se mostrara desentendido, certo de que a velha pretendia furtar‑lhe os retalhos. Em consequência as roupas tinham saído curtas, estreitas e cheias de emendas (RAMOS, 1994, p. 71). 60 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Agora, releia‑os, buscando os seus sentidos. Se possível, leia‑os em voz alta e com calma. Observe as palavras e os seus significados (consulte um dicionário, se necessário), depois, os aspectos estruturais, ou seja, visualize a disposição e a organização delas, reparando nas escolhas lexicais, na utilização dos aspectos gráficos (ponto final, exclamações, reticências) etc. O que percebeu? Naturalmente, poderíamos considerar que os dois textos parecem ser distintos, temática e estruturalmente. O Soneto de Fidelidade é escrito de maneira mais pessoal, com revelações do sentimento amoroso do eu lírico: expressa questões interiores, ou seja, a subjetividade. As frases não ocupam a margem inteira da página e são colocadas em blocos que, conforme veremos depois, podem ser rotulados pelo nome de verso e estrofe. Elas apresentam musicalidade, e todas as palavras finais parecem respeitar um esquema sonoro parecido com o que chamamos de rima. Se perguntássemos a você o que é o Soneto de Fidelidade, responderia “poesia”, “poema”, alguma coisa nesse sentido? Por outro lado, o excerto de Vidas Secas apresenta‑se de maneira mais tranquila e arbitrária, sem a contensão das palavras e presença rítmica. As frases são mais naturais e de fácil compreensão. O conteúdo refere‑se a alguma situação ou fato exterior a quem objetivamente relata. Nesse caso, qual seria a resposta à pergunta feita acima? Responderia o nome “prosa”, “narrativa”? Se a resposta foi afirmativa às duas indagações, você deve ter notado que, por conta dessas divergências entre as características dos dois textos, se os agrupássemos nos gêneros literários da Teoria Moderna, já teríamos noção das definições do gênero prosa e do gênero poesia, sabendo dessa forma distingui‑los. Claro que as definições vão além dessas características iniciais, como percebemos, mas o primeiro passo já se define de imediato, e muitos já sabem classificá‑las sem mesmo ter noção da Teoria da Literatura. Vale lembrar que essas classificações, ditando características específicas para cada gênero, obedecem à tendência do espírito sistematizador tradicional. Elas facilitam a abordagem do texto literário e a leitura, a análise e a interpretação do mesmo. Porém, nem sempre é fácil definir essas fronteiras literárias. Primeiramente, sabemos que o autor escolhe o gênero, a espécie e a forma que melhor corresponda à emoção e aos conceitos que deseja transmitir. Entretanto, de acordo com as teorias modernas, em Literatura não existe pureza em sentido absoluto, portanto os gêneros, as espécies e as formas se interpenetram. O que há é a predominância de um componente sobre o outro, como podemos observar no célebre episódio lírico de Inês de Castro, contido no Canto III d’ Os Lusíadas, poema épico de Camões. Esse canto revela a possibilidade da construção lírica dentro da espécie épica. Leia o excerto dele: 61 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo doce fruito, Naquele engano da alma, ledo e cego, Que a Fortuna não deixa durar muito, Nos saudosos campos do Mondego, De teus fermosos olhos nunca enxuito, Aos montes insinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas. [...] De outras belas senhoras e Princesas Os desejados tálamos enjeita, Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas, Quando um gesto suave te sujeita. Vendo estas namoradas estranhezas, O velho pai sesudo, que respeita O murmurar do povo e a fantasia Do filho, que casar‑se não queria. (CAMÕES apud MOISÉS, 2004, p. 105) Há contos inteiramente dialogados, contos com trechos líricos, romances cômicos e poemas (baladas) dialogados e narrativos, como, no exemplo a seguir, o poema de Manuel Bandeira, Balada do rei das sereias: O rei atirou Seu anel ao mar E disse às sereias: — Ide‑o lá buscar, Que se o não trouxerdes Virareis espuma Das ondas do mar! Foram as sereias, Não tardou, voltaram Com o perdido anel Maldito o capricho De rei tão cruel! O rei atirou Grãos de arroz ao mar E disse às sereias: — Ide‑os lá buscar, Que se os não trouxerdes 62 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia /Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Virareis espuma Das ondas do mar! Foram as sereias Não tardou, voltaram, Não faltava um grão. Maldito capricho De mau coração! O rei atirou Sua filha ao mar E disse às sereias: — Ide‑a lá buscar, Que se a não trouxerdes Virareis espuma Das ondas do mar! Foram as sereias... Quem as viu voltar?... Não voltaram nunca! Viraram espuma Das ondas do mar. (BANDEIRA apud MOISÉS, 2005, p.423) Os textos a seguir evidenciam não haver uma determinação de que as expressões literárias devam pertencer a um gênero literário absoluto, como queriam os teóricos clássicos. Analise: O estrangeiro — Diga, homem enigmático, de quem gosta mais? De seu pai, de sua mãe, de sua irmã ou de seu irmão? — Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão. — Amigos? — Você usa de palavras cujo sentido até aqui desconheço. — Pátria? — Ignoro a que latitude se situa. — Beleza? — Deusa e imortal, de bom grado a amaria. — O ouro? — Odeio‑o como você odeia a Deus. — Mas que gosta então, estrangeiro extraordinário? — Das nuvens... as nuvens que passam... lá longe... lá longe... as maravilhosas nuvens! (BAUDELAIRE, 2010, p. 21) 63 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Anônimo Sou linda; gostosa; quando no cinema você roça o ombro em mim aquece, escorre, já não sei mais quem desejo, que me assa viva, comendo coalhada ou atenta ao buço deles, que ternura inspira aquele gordo aqui, aquele outro ali, no cinema é escuro e a tela não importa, só o lado, o quente lateral, o mínimo pavio. A portadora deste sabe onde me encontro até de olhos fechados; falo pouco; encontre; esquina de Concentração com Difusão, lado esquerdo de quem vem, jornal na mão, discreta. (CESAR apud FERRAZ, 2004, p. 145) Mulher vestida de homem Dizem que à noite Márgara passeia vestida de homem da cabeça aos pés Vai de terno preto, de chapéu de lebre na cabeça enterrado, assume o ser diverso que nela se esconde, ser poderoso: compensa fragilidade de Márgara na cama. Márgara vai em busca de quê? de quem? De ninguém, de nada, senão de si mesma, farta de ser mulher. A roupa veste‑lhe outra existência por algumas horas. Em seu terno preto, foge das lâmpadas denunciadoras; foge das persianas abertas; a tudo foge Márgara homem só quando noite. Calças compridas, cigarro aceso (Márgara fuma, vestida de homem) corta, procissão sozinha, as ruas que jamais viram mulher assim. Nem eu a vejo, que estou dormindo. Sei, que me contam. Não a viu ninguém? Mas a voz é pública: chapéu desabado, camisira negra, negras botinas, talvez bengala, talvez? revólver. Esta noite – já decidi‑ levanto, saio solerte, surpreendo Márgara, olho bem ela 64 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 e não exclamo, reprovando a clandestina veste inconcebível. Sou seu amigo, sem desejo, amigo‑ amigo puro, desses de comprender sem perguntar. Não precisa contar‑me o que não conte a seu marido nem a seu amante. A (o) esquiva Márgara sorri e de mãos dadas vamos menino‑homem, mulher‑homem de noite pelas ruas passeando o desgosto do mundo malformado. (ANDRADE apud FERRAZ, 2004, p.127) Dentro da sistematização tradicional, diríamos que O Estrangeiro, de Baudelaire, e Anônimo, de Ana Cristina Cesar representariam os textos do gênero prosa e o último, Mulher Vestida de Homem, de Carlos Drummond de Andrade, seria configurado pelos padrões do gênero poesia. Contudo, um olhar mais atento perceberia que todos eles possuem características que fogem às concepções limítrofes dos gêneros literários. Baudelaire mesclou diálogos com a poeticidade, ritmo e sentimentalismo das palavras, afastando‑se da objetividade e exatidão das personagens. Ana Cristina ocupou toda a margem da folha com frases corridas, deixando de lado os versos tradicionais, mas sem se esquecer da concisão e intensidade poética. Por fim, Drummond trouxe lirismo ao falar de Márgara, dentro dos padrões tradicionais de versos e estrofes, acrescentando, porém, um narrador e personagem comuns à prosa de ficção. Em síntese, a teoria clássica estabelece três gêneros: o lírico, o épico e o dramático, separados com certo rigor por sua estrutura e natureza. A teoria moderna sobre os gêneros propõe um critério aberto para sua classificação, admitindo‑os como categorias dinâmicas e sujeitas a variações, contaminações e interpenetrações, uma vez que: As tradicionais modalidades das narrativas de ficção, bem como as manifestações em verso, vêm modernamente perdendo os contornos; as formas vêm‑se descaracterizando como tal e novos modelos surgem desafiando a argúcia e a ciência dos estudiosos (PROENÇA FILHO, 1999, p. 68). O texto literário manifesta‑se em prosa e em verso, que seriam as duas maneiras que o artista emprega para expressar sua cosmovisão. Assim, “os gêneros seriam a expressão, a estrutura de dois modos fundamentais de ver o mundo: o voltado para fora – a prosa –, e o voltado para dentro – a poesia” (MOISÉS, 1970, p. 69). 65 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Então, devido à sua extensão e complexidade, o universo literário é estudado a partir de um conjunto de textos, agrupados de acordo com os procedimentos estilísticos que expressam. Assim, a teoria da lírica é o estudo relativo a tudo o que se refere à arte literária do poema. Os limites entre poesia e prosa literária são tênues; é preciso ter em conta que prosa e poesia são expressões originárias da palavra grega poiésis, que significa o ato de criar, o fazer artístico; portanto, a natureza e as funções da linguagem literária equivalem para ambas. Não é uma tarefa muito simples a conceituação do gênero poesia, as definições são complexas e discutíveis. Muitas vezes, é complicado e difícil estabelecer as fronteiras entre prosa e poesia. Por outro lado, é importante estudá‑la, porque pertence ao espírito sistemático e classificatório dos estudiosos e professores; melhora a leitura e a análise literária; e é útil conhecer os antecedentes, a tradição ou as convenções que um escritor está utilizando ou contra as quais atua, conscientemente, uma vez que o desconhecimento destes pode limitar ou mesmo desvirtuar o significado de uma obra. Enfim, nem sempre é interessante trazer padrões absolutos para estudar as expressões literárias. Em nenhuma hipótese, como leitor, estudioso e professor, você deve ficar preso aos possíveis limites dos gêneros literários, ao modo mecânico e delimitador de conceituação, que pode motivar o desinteresse pelos estudos do complexo, rico e heterogêneo mundo literário. A definição das características dos gêneros é bastante importante para o aprimoramento da leitura, análise e interpretação da Literatura, porém é necessário sempre estar aberto a outras possibilidades de desbravar os sentidos literários. Logo mais, dedicaremo‑nos em especial a esses padrões do gênero poesia e do gênero prosa – orientadores da disciplina Teoria Literária –, mas não se esqueça de relativizar sempre alguns dos conceitos apreendidos! Exercícios Questão 01 (FUVEST, 2007). Leia o poema: Procura da Poesia Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. (...) Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, 66 Unidade I Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na men to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 há calma e frescura na superfície intata. Ei‑los sós e mudos, em estado de dicionário. (...) Carlos Drummond de Andrade, A rosa do povo. No contexto do livro, a afirmação do caráter verbal da poesia e a incitação a que se penetre “no reino das palavras”, presentes no excerto, indicam que, para o poeta de A rosa do povo: A) Praticar a arte pela arte é a maneira mais eficaz de se opor ao mundo capitalista. B) A procura da boa poesia começa pela estrita observância da variedade padrão da linguagem. C) Fazer poesia é produzir enigmas verbais que não podem nem devem ser interpretados. D) As intenções sociais da poesia não a dispensam de ter em conta o que é próprio da linguagem. E) Os poemas metalinguísticos, nos quais a poesia fala apenas de si mesma, são superiores aos poemas que falam também de outros assuntos. Resposta correta: alternativa D. Análise das alternativas: A) Alternativa incorreta. Justificativa: o poema não tem por objetivo criticar o capitalismo como sistema econômico, o autor contempla o modo de se fazer a poesia, penetrando no “reino das palavras”. B) Alternativa incorreta. Justificativa: em nenhum momento, o poeta defende a norma culta ou padrão da linguagem. Ele afirma que o poeta deve saber “explorar” as palavras. C) Alternativa incorreta. Justificativa: o poeta não considera que a poesia deve ser incompreensível aos leitores. D) Alternativa correta. Justificativa: o poeta, na visão do autor, deve ser concebido como alguém hábil e sensível, capaz de penetrar no “reino das palavras” e de lá extrair os poemas. E) Alternativa incorreta. 67 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Justificativa: embora o poema da questão utilize a metalinguagem, indicando como se fazer poesia, o autor não afirma que esse tipo de texto é superior aos demais. Questão 02 (FUVEST, 2008). Leia o texto a seguir. A borboleta Cada vez que o poeta cria uma borboleta, o leitor exclama: “Olha uma borboleta!” O crítico ajusta os nasóculos e, ante aquele pedaço esvoaçante de vida, murmura: Ah!, sim, um lepidóptero... Mário Quintana, Caderno H. nasóculos = óculos sem hastes, ajustáveis ao nariz. Depreende‑se desse fragmento que, para Mário Quintana: A) A crítica de poesia é meticulosa e exata quando acolhe e valoriza uma imagem poética. B) Uma imagem poética logo se converte, na visão de um crítico, em um referente prosaico. C) O leitor e o poeta relacionam‑se de maneira antagônica com o fenômeno poético. D) O poeta e o crítico sabem reconhecer a poesia de uma expressão como “pedaço esvoaçante de vida”. E) Palavras como “borboleta” ou “lepidóptero” mostram que há convergência entre as linguagens da ciência e da poesia. Resolução desta questão na plataforma. 68 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Unidade II Atenção, aluno! Nesta unidade, abordaremos o gênero poesia e seus elementos estruturais, além de apresentar algumas regras para entender versos. 4 O GÊNERO POESIA Como você pode ver, definições são bastante complicadas e complexas, mas necessárias. Falar sobre o gênero poesia é valorizar uma das maneiras de conhecer o ser humano por dentro, a partir de seus sentimentos, emoções e individualidade. Há algumas coisas a serem definidas antes de partirmos para as características desse gênero. Primeiro, lembre‑se de que há a diferença entre os significados dos termos gênero poesia, poesia e poema. Eles podem ser parecidos, porém são utilizados para funções distintas. Veja adiante algumas definições de poesia. 4.1 Definições 4.1.1 Dicionários Do dicionário Houaiss de Língua Portuguesa • substantivo feminino 1 Rubrica: literatura. arte de compor ou escrever versos 2 Rubrica: literatura. composição em versos (livres e/ou providos de rima) cujo conteúdo apresenta uma visão emocional e/ou conceitual na abordagem de ideias, estados de alma, sentimentos, impressões subjetivas etc., quase sempre expressos por associações imagéticas 3 Rubrica: literatura. composição poética de pequena extensão 69 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA 4 Rubrica: literatura. arte dos versos característica de um poeta, de um povo, de uma época 5 arte de excitar a alma com uma visão do mundo, por meio das melhores palavras em sua melhor ordem 6 poder criativo; inspiração 7 o que desperta o sentimento do belo 8 aquilo que há de elevado ou comovente nas pessoas ou nas coisas Do dicionário Aurélio [Do gr. – poíèsis, ‘ação de fazer algo’, pelo lat. poesis] S.f. 1. Arte de escrever em verso. 2. Composição poética de pequena extensão. 3. Entusiasmo criador; inspiração. 4. Aquilo que desperta o sentimento do belo. 5. O que há de elevado ou comovente nas pessoas ou nas coisas. 6. Encanto, graça, atrativo. 4.1.2 Alguns teóricos Ezra Pound (1970, p. 40): Grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível. [...] Começo com a poesia porque é a mais condensada forma de expressão verbal. Basil Bunting, ao folhear um dicionário alemão‑italiano, descobriu que a ideia de poesia como concentração é quase tão velha como a língua germânica. “Dichten” é o verbo alemão correspondente ao substantivo “Dichtung”, que significa “poesia” e o lexicógrafo traduziu‑o pelo verbo italiano que significa “condensar”. A saturação da linguagem se faz principalmente de três maneiras: nós recebemos a linguagem tal como a nossa raça a deixou; as palavras têm significados que “estão na pele da raça”; os alemães dizem, “wie in den Schnabel gewaschsen”: como que nascidas do seu bico. E o bom escritor escolhe as palavras pelo seu “significado”. Mas o significado não é algo tão definido e predeterminado como o movimento do cavalo ou do peão num tabuleiro de xadrez. Ele surge com raízes, com associações, e depende de como e quando a palavra é comumente usada ou de quando ela tenha sido usada brilhante ou memoravelmente. 70 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Octavio Paz (1982, p. 17): Um soneto não é um poema, mas uma forma literária, exceto quando esse mecanismo retórico – estrofes, metros e rimas – foi tocado pela poesia. Há maquias de rimar, mas não de poetizar. Por outro lado, há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesia sem ser poemas. Pois bem, quando a poesia acontece como uma condensação do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta, estamos diante do poético. Quando – passivo ou ativo, acordado ou sonâmbulo – o poeta é o fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na presença de algo radicalmente distinto: uma obra. Um poema é uma obra. A poesia se polariza, se congrega e se isola num produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; o poema é criação, poesia se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente. É lícito perguntar ao poema pelo ser da poesia, se deixarmos de concebê‑lo como uma forma capaz de se encher com qualquer conteúdo. O poema não é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem. O poema é um organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. Forma e substância são amesma coisa. Antonio Candido (2004, p. 21‑22): Esclareçamos: “Poema” e não “poesia” Não abordaremos o problema da criação poética em abstrato: o que é a poesia, qual a natureza do ato criador no poeta; etc. Isto não quer dizer que o nosso curso não sirva, no fim, para ajudar o entendimento de problemas deste tipo. Este esclarecimento é necessário também para se avaliar a relação do poema com a poesia, pois desde o Romantismo e do aparecimento do poema em prosa (de um lado) e da depuração do lirismo, de outro, sabemos: • que poesia não se confunde necessariamente com o verso, muito menos com o verso metrificado. Pode haver poesia em prosa e poesia em verso livre. Com o advento das correntes pós‑simbolistas, sabemos inclusive que a poesia não se contém apenas nos chamados gêneros poéticos, mas pode estar autenticamente presente na prosa de ficção. • que pode ser feita em verso muita coisa que não é poesia. Julgamentos retrospectivos a este propósito são inviáveis, mas não a percepção 71 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA de cada leitor. Assim, embora a poesia didática do século XVIII, por exemplo, fosse perfeitamente metrificada e constituísse uma das atividades poéticas legítimas, hoje ela nos parece mais próxima dos valores da prosa. Esse três teóricos problematizam algumas características essenciais do gênero poesia. Em primeiro lugar, então, devemos considerar a construção dos significados pela linguagem. A linguagem poética é essencialmente mais condensada, enxuta e concisa, como salienta Ezra Pound. O poeta revela a capacidade exímia de adequar seus conceitos dentro dos restritos limites poéticos. Ele deve fazer as escolhas lexicais bem mais elaboradas e carregadas de significados para que se consiga transmitir todas suas ideias, o que só é possível por conta da polissemia da palavra. A linguagem é conotativa, portanto. Dessa maneira, entende‑se que o gênero poesia concilia a forma e o conteúdo. Octavio Paz considera ser a forma o poema, e o conteúdo a sua própria essência poética, a poesia. A poesia encontra‑se por toda a parte, mas apenas com a atividade do poeta que, captando‑a, polarizando‑a e transformando‑a em linguagem, pode‑se ter o poema. A forma e a poesia são categorias indissociáveis. A última consideração, a de Antonio Candido, permite encontrar um sentido – não tão usual sobre os termos poesia e prosa. O poema é a expressão em versos fixos, sistemáticos e padronizados e, por outro lado, a poesia revela‑se mais livremente tanto em prosa quanto em versos livres. Perceba algumas considerações nos próximos tópicos para conseguirmos desvendar essas categorias literárias. 4.2 Poesia e poema Observe o seguinte comentário de Pedro Lyra (1986, p.7): Se o poema é um objeto empírico e se a poesia é uma substância imaterial, é que o primeiro tem uma existência concreta e a segunda não. Ou seja: o poema, depois de criado, existe per si, em si mesmo, ao alcance de qualquer leitor, mas a poesia só existe em outro ser: primariamente, naqueles onde ela se encrava e se manifesta de modo originário, oferecendo‑se à percepção objetiva de qualquer indivíduo; secundariamente, no espírito do indivíduo que a capta desses seres e tenta (ou não) objetivá‑la num poema; terciariamente, no próprio poema resultante desse trabalho objetivador do indivíduo‑poeta. As reflexões de Pedro Lyra são interessantes. Há uma confusão entre a definição de poesia e poema, como vimos. Geralmente, esses termos são utilizados aleatoriamente. Porém, eles possuem significados distintos dentro da teoria literária. Diferente das definições dos gêneros poesia e prosa, as fronteiras entre poema e poesia são bem mais simples e perceptíveis. Você sabe dizer quais são, então? O que é poema? O que é poesia? 72 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 De acordo com as definições apresentadas na seção anterior, percebemos que aqueles estudiosos entendem a poesia como tudo o que toca o espírito, provocando emoção e prazer estético, que revela a essência da vida. Pode ser encontrada também na pintura, na dança, na música, nas paisagens, na vida etc. É o elemento abstrato (não depende do verso). Você consegue perceber a poesia nos quadros de Monet, Picasso e Tarsila do Amaral? E nas composições musicais de Mozart e Bach? Nas vozes líricas de Maria Callas? Nas interpretações românticas de Marisa Monte, Adriana Calcanhoto e Roberto Carlos e assim por diante? Claro que são perguntas tocantes a preferências pessoais, e você pode não ter percebido a poesia em alguns desses exemplos. O importante é saber que a poesia está em todos os lugares, e apenas aquele com sensibilidade estética pode captá‑la e transmiti‑la via alguma linguagem, seja ela verbal ou não. A poesia está ao nosso redor, e só a identificamos quando nos causa uma sensação ou emoção estética, por meio de nossos sentidos. Já o poema, é a combinação de palavras, versos, sons e ritmos. É o elemento concreto, o resultado da Arte. O poema oferece uma forma à poesia por meio da linguagem verbal. Porém, como salientou Octavio Paz, “o poema não é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem.” Ele possui uma estrutura, mesmo que não obedecendo aos padrões de metrificação e rimas da tradição literária. O poema tem a função de imprimir a poesia do mundo, e de, ao mesmo tempo, captada pelo poeta, levar essa transfiguração da poesia aos demais homens, de alguma maneira, transformando‑os. É como salienta o eu lírico do poema de Drummond. A poesia está nele, mas transformá‑la em versos é outra questão: Poesia Gastei uma hora pensando um verso Que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro Inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair. Mas a poesia deste momento Inunda minha vida inteira. (ANDRADE, 1948, p. 25). O estudioso e crítico literário Antonio Candido, em O estudo analítico do poema (2004), chama a atenção para o fato de que os estudos acerca da poesia são relativos à natureza da criação literária ou poética, em abstrato, ou seja, é um assunto que se volta para o ato da criação. No entanto, o autor mostra a necessidade desse esclarecimento para que se entenda como o poema relaciona‑se com a poesia. Segundo Candido, a poesia não se confunde com verso ou métrica, já que podemos encontrar poesia nos textos em prosa, nos poemas em versos livres e até mesmo na prosa de ficção. Por outro lado, o professor Antonio Candido também chama a atenção para o fato de que um texto não é poesia só porque é feito em verso. 73 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA A teoria da lírica está interessada na forma como a poesia manifesta‑se no poema, isto é, no texto cujo aspecto formal predomina o verso, ou, ainda, como a poesia pode ser apresentada nas mais diversas formas da lírica. Assim, os estudos acerca do poema voltam‑se, de forma objetiva e concreta, para as várias estruturas já utilizadas na composição desse tipo de texto. Em contrapartida, quando estudamos o que o poema transmite por meio do “eu lírico”, isto é, o conteúdo do poema e a maneira como esse conteúdo é subjetivamente abordado pela voz do sujeito que nele fala, aproximamo‑nos dos estudos da poesia, do que é abstrato. Além disso, é possível dizer que a poesia é fingimento, simulacro do real: uma coisa é o sentimento em si, outra é a expressão do sentimento. Os versos do poeta português Fernando Pessoa, em Autopsicografia, representambem a questão da criação poética: O poeta é um fingidor finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. (PESSOA, 1977, p. 79). 4.2.1 O gênero poesia Quando falamos em gênero, a palavra poesia refere‑se às expressões específicas da Literatura, representadas por uma estrutura poética que chamamos de poema em suas diversas manifestações. Observação Lembre‑se de que as nomenclaturas podem variar de crítico para crítico e não são estanques. Em vários estudos, você poderá encontrar a palavra poesia referindo‑se ao poema em si; ou apenas ao gênero literário poesia; e ainda o termo lírica no lugar de poesia, e assim por diante. Nesta disciplina de Teoria Literária, tentaremos diferenciá‑las para facilitar o aprendizado. 74 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 4.2.2 O poema, a poesia e a prosa poética O verso não é exclusivo da poesia, pode haver poesia em prosa e poesia em verso livre; a diferença entre poesia e prosa reside na expressão de um conteúdo. Poesia é linguagem de conteúdo lírico e emotivo, manifestação dos estados do “eu”, expressos por meio de metáforas, imagens e palavras polivalentes. Há ainda as formas intermediárias, os chamados poemas em prosa ou prosas poéticas. Vale trazermos a definição de Beraldo (1998, p.21) de que: “O poema junta elementos que nos rodeiam, em palavras que revelam emoções. A pontuação no poema é menos rígida que a pontuação na narrativa”. 4.2.3 O poema em prosa ou a prosa poética Até o neoclassicismo, século XVI, a distinção prosa/poesia baseava‑se mais no aspecto formal do que no efeito de sentido produzido. A poesia caracterizava‑se pelo uso da versificação, da escolha das palavras e das figuras de estilo. Entretanto, a partir do pré‑romantismo ocorre significativa mudança: a prosa literária tende a poetizar‑se pelo emprego de imagens, símbolos e ritmos, e a poesia busca aproximar‑se cada vez mais da prosa literária, desprezando os esquemas formais: métricos, rítmicos e estróficos. O verso livre passa a ser entendido como impedimento ao retorno fônico propiciado pela rima. A poesia atual privilegia o paralelismo sonoro. Observemos o exemplo retirado do livro Iracema, de José de Alencar (2006, p. 45): Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; verdes mares que brilhais, como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros! No exemplo anterior, composto linearmente em forma de prosa, vê‑se abundância de recursos de linguagem poética: predominam as palavras em sentido conotativo (“mares bravios”, “verdes mares” são comparados à “líquida esmeralda”), recorrências sonoras, como a repetição de fonemas (/r/ em “Verdes mares bravios”; “terra”; “brilhais”; “frondes”). Nota‑se ainda que a maioria das palavras é paroxítona, conferindo ao texto uma cadência rítmica pela alternância das sílabas fortes e fracas e refletindo uma visão subjetiva do autor a respeito dos elementos naturais da região descrita. Assim, o que passa a distinguir prosa literária de poesia é o nível de poeticidade que apresentam, ou seja, a poesia diferencia‑se da prosa literária pela presença, em maior grau, dos elementos fônicos, lexicais, sintáticos e semânticos, constitutivos da linguagem poética. 4.2.4 As características do gênero poesia Neste livro‑texto, dedicamos espaço ao estudo sobre o gênero poesia, apresentando apenas algumas características do gênero prosa, pela necessidade comparativa de sistematização. No item Gênero prosa, elas serão tratadas com mais profundidade. 75 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Massaud Moisés diz o seguinte (1970, p. 38): Já vimos que, por sua própria essência literária, a poesia e a prosa se aparentam numa série de aspectos. Destes (sic), o mais importante é aquêle (sic) que caracteriza a própria Literatura: expressão dos conteúdos da ficção, da imaginação, numa palavra, o subjetivismo. Na poesia, como acabamos de ver, o sujeito, o “eu”, volta‑se para dentro de si, fazendo‑se ao mesmo tempo espetáculo e espectador. A prosa, todavia, inverte completamente essa equação. Com efeito, a prosa é a expressão do “não eu” do objeto. Por outras palavras: o sujeito que pensa e sente está agora dirigido para fora de si próprio, buscando seus núcleos de interesse na realidade exterior, que assim passa a gozar de autonomia em relação ao sujeito [...]. Bem, não é a rima, o metro, o ritmo ou a estrofe que garantem a distinção entre prosa e poesia, pois há poemas sem rima ou divisão estrófica e com metro irregular. Mesmo assim, vale lembrar que há alguns critérios para defini‑lo. Salvador D’ Onófrio (2006, p.25‑26) apresenta dois deles: • a presença do verso: a palavra verso (do latim versus) tem o sentido de retorno, volta para trás, já o termo prosa, oriundo do latim prorsus, tem o significado de ir para a frente, avançar sem limites; assim, enquanto a prosa constitui‑se pela continuidade, um poema constitui‑se pela segmentação de sua escrita: cada verso é um recorte no continuum do discurso, estabelecendo pausas fônicas, independentemente das pausas sintáticas; • o grau de credibilidade: a poesia pertence mais ao domínio da fantasia, e a prosa tende a ser crível ou verossímil, pois busca‑se nela a aparência de verdade. Lembrete Alguns pontos sobre o gênero poesia: compreende textos de forma concisa, introspectiva etc. apresenta e preocupa‑se com a construção da conotação; é a expressão do eu lírico. Para alguns, o gênero poesia possui algumas características bastante evidentes: • a poesia associa‑se a imagens e a linguagem metafóricas. Ela apresenta linguagem mais conscientemente escolhida do que a linguagem comum; com mais detalhes e esmero, permite possibilidades sugestivas e interpretativas; • a poesia é menos discursiva, com significados sugestivos sem esclarecimentos imediatos e completos. Explora metáforas abundantes e subjetivas da realidade; 76 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 • o texto em poesia opta pela polivalência da metáfora, pelo uso quase completo da linguagem conotativa. Muitas vezes, busca aspectos da linguagem denotativa e objetiva, oferecendo equilíbrio entre as duas linguagens; • a poesia é conhecida pela utilização da métrica e da rima, com versos de comprimento variados. Lembrete Não se esqueça: a prosa poética é uma forma intermediária entre a poesia e a prosa, na qual as palavras são dispostas como se formassem um parágrafo em prosa, mas possui um acentuado ritmo de poesia. 4.3 As espécies literárias Dentro do gênero poesia, classificamos duas maneiras de expressão e conteúdo. São as espécies e suas respectivas formas: Quadro 2 – As espécies literárias Gêneros literários Espécies Características Poesia lírica (exemplos de poetas líricos: Lamartine; Musset; Garrett; Casimiro de Abreu; Vinícius de Moraes) • expressa conflitos sentimentais; • subjetividade; • alegrias e prazeres humanos; • individualismo e liberdade. épica (exemplos de poetas épicos: Homero; Virgílio; Dante; Camões) • encontro com as antíteses do mundo; • ânsia pela integração do homem com o universo; • mitologia e deus(es); • eventos históricos Nesse quadro, você podeperceber algumas características centrais que definem as duas espécies dentro do gênero poesia. Ambas envolvem questões do ponto de vista do eu lírico, com algum grau de subjetividade e conotação. Essas espécies carregam os traços do gênero que vimos nos tópicos antecedentes, mas as temáticas e o modo de tratá‑las são distintos. De modo geral, consideramos que a espécie épica preocupa‑se com questões exteriores, e seu ponto de vista narrativo é mais objetivo em relação a elas, o que a torna matriz do gênero prosa. Nos tópicos seguintes, veremos algumas explicações definidoras sobre as duas espécies, começando pela épica. 77 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA 4.3.1 A espécie épica Figura 19 – Homero Figura 20 – Virgílio Figura 21 – Camões A espécie épica define‑se como um poema narrativo e é uma das formas mais antigas do gênero poesia. Trata‑se praticamente de uma narrativa feita em versos. Ela possui todas as características estruturais do poema (versos, estrofes, métrica, rimas etc.), principalmente o aspecto musical e rítmico, expressa o tom de exaltação e permite fácil memorização do seu conteúdo. Com uma voz que tem muito pouco dos traços de um eu lírico e muito mais de um “narrador”, conta histórias e façanhas de personagens que as vivem durante certo período histórico e local. Esse narrador preocupa‑se com fatos exteriores a ele e os narra de maneira objetiva, sem envolvimento sentimental. Ele apresenta o mundo e a vida exterior objetiva e concretamente, tendo como intuito oferecer ao leitor a impressão do real. Ele assume uma posição de observador da realidade ao seu redor, esquecendo‑se de sua subjetividade e interioridade. Geralmente, a espécie épica oferece espaço para que os homens narrem suas experiências durante as batalhas e o desbravamento de territórios longínquos e inóspitos. Ela reproduz as narrativas contadas por eles, sobre suas aventuras heróicas, a pequenos grupos durante a noite ou em momentos festivos. Desse modo, há sempre um narrador e personagens, num determinado tempo e espaço fictício ou não. Como na épica é produzida ficção, a história e a mitologia sempre são valorizadas. Os poetas clássicos obedecem a algumas normas poéticas, de modo que o texto divide‑se em: • preposição: o resumo da história; • invocação: a solicitação de inspiração criativa por parte de uma divindade; • oferecimento: o momento em que se dedica a obra a alguém; • narrativa: o relato da história em si; • epílogo: o fechamento do poema. 78 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Dentro dessa espécie, as formas mais representativas são: Gêneros literários Espécies Formas Poesia épica poema épico, poemeto, epopeia. Na espécie épica, o poeta constrói histórias maravilhosas, com figuras sobrenaturais, seres mitológicos ou divindades cristãs. A ordem da história começa pelo seu resumo; somente depois, a narrativa propriamente dita é retomada, por meio de narradores, lembranças de personagens, sonhos etc. A estrutura da obra divide‑se em: preposição; invocação; oferecimento; narrativa; epílogo. As formas são: o poema épico, o poemeto e a epopeia. Não se esqueça: a espécie épica é a matriz da prosa de ficção, como o conto e o romance. 4.3.2 A epopeia Na espécie épica, tem‑se uma forma literária em verso de maior extensão, na qual se celebram feitos grandiosos e heroicos da história do homem ou da mitologia, baseando‑se num fundo histórico. O tema é abrangente: compreendendo questões nacionais ou universais, pode ser aplicado à vida como um todo. Os exemplos mais famosos são Ilíada e Odisseia, de Homero; Eneida, de Virgílio e Os Lusíadas, de Camões. Por exemplo, Os Lusíadas narra os descobrimentos e as conquistas dos portugueses no período das Grandes Navegações. Embora nacional, o poema toma proporções universais, ao explorar a bravura, a aventura e o ímpeto dos heróis portugueses. A sua estrutura é longa, com dez cantos de aproximadamente cem estrofes de versos decassílabos. Leiamos a introdução do canto I: Os Lusíadas (excerto): Canto I, Estrofes 1 a 3 As armas e os barões assinalados Que da ocidental praia lusitana Por mares nunca dantes navegados Passaram ainda além da Trapobana, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana Entre gente remota edificaram Novo reino, que tanto sublimaram E também as memórias gloriosas Daqueles reis que foram dilatando A Fé, o Império, as terras viciosas 79 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA De África e Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da morte libertando: Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte. Cessem do sábio grego e do troiano As navegações grandes de fizeram; Cale‑se de Alexandre e de Trajano A Fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre lusitano, A quem Netuno e Marte obedeceram. Cesse tudo que a musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta [...]. (CAMÕES, 1999, p. 11) 4.3.3 O poemeto15 Na épica, poemeto equivale a uma composição literária com extensão bem menor do que a epopeia. Geralmente sua temática abrange questões mais específicas e individuais, como a dos negros em Navio Negreiro, de Castro Alves ou a dos indígenas em Caramuru, de Santa Rita Durão, e, também, em I‑Juca Pirama, de Gonçalves Dias. Caramuru (excerto) Canto I De um varão em mil casos agitados, Que as praias discorrendo do Ocidente, Descobriu recôncavo afamado Da capital brasílica potente; Do Filho do Trovão denominado, Que o peito domar soube à fera gente, O valor cantarei na adversa sorte, Pois só conheço herói quem nela é forte. II Santo Esplendor, que do Grão Padre manas Ao seio intacto de uma Virgem bela, Se da enchente de luzes soberanas Tudo dispensas pela Mãe donzela; 15 O termo poemeto pode significar apenas poemas curtos e desprovidos de metrificação e rimas; sem, portanto, estar relacionado à espécie épica especificamente. 80 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Rompendo as sombras de ilusões humanas, Tudo do grão caso a pura luz revela; Faze que em ti comece e em ti conclua Esta grande obra, que por fim foi tua. III E vós, Príncipe excelso, do Céu dado Para base imortal do luso trono; Vós, que do áureo Brasil no principado Da real sucessão sois alto abono; Enquanto o império tendes descansado Sobre o seio da paz com doce sono, Não queirais designar‑vos no meu metro De pôr os olhos e admiti‑lo ao cetro. [...] (DURÃO apud BRANDÃO, 2001, p.200). 4.3.4 O poema épico É uma forma literária que apresenta temática de interesse regional em contraposição aos temas universais da epopeia e, até mesmo, dos poemetos. É exemplo o texto O Uraguai, de Basílio da Gama, que apresenta a história do extermínio dos nativos brasileiros dos Sete Povos das Missões no Rio Grande do Sul do século XVIII. O Uraguai ‘At specus, et Caci detecta apparuit ingens Regia, et umbrosae penitus patuere cavernae.’ Virg. A eneid. Lib. Viii. Ao ilustríssimo e excelentíssimo senhor Conde de Oeiras Soneto Ergue de jaspe um globo alvo e rotundo, E em cima a estátua de um Herói perfeito; Mas não lhe lavres nome em campo estreito, Que o seu nome enche a terra e o mar profundo. Mostra na jaspe, artífice facundo, Em mudahistória tanto ilustre feito, Paz, Justiça, Abundância e firme peito, Isto nos basta a nós e ao nosso mundo. 81 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Mas porque pode em século futuro, Peregrino, que o mar de nós afasta, Duvidar quem anima o jaspe duro, Mostra‑lhe mais Lisboa rica e vasta, E o Comércio, e em lugar remoto e escuro, Chorando a Hipocrisia. Isto lhe basta. (GAMA apud TEIXEIRA, 1999, p. 75) Canto primeiro Fumam ainda nas desertas praias Lagos de sangue tépidos e impuros Em que ondeiam cadáveres despidos, Pasto de corvos. Dura inda nos vales O rouco som da irada artilheria. Musa, honremos o Herói que o povo rude Subjugou do Uraguai, e no seu sangue Dos decretos reais lavou a afronta. Ai tanto custas, ambição de império! E Vós, por quem o Maranhão pendura [...] (GAMA apud BRANDÃO, 2001, p. 263) 4.3.5 A espécie lírica O termo lírica relaciona‑se à lyra, instrumento musical usado pelos gregos, desde o século VII a. C., para acompanhar versos poéticos. Utiliza‑se a palavra mélica (de melos: canto, melodia) para designar pequenos poemas nos quais os poetas manifestavam seus sentimentos pessoais, como cantigas de ninar, lamentos de morte, cantos de amor, por meio de composições sempre acompanhadas de instrumentos musicais como a flauta e a lira. Observação Ezra Pound (1970, p. 63) considera como essencial da lírica a melopeia, ou seja, a característica de ”produzir correlações emocionais por intermédio do som e ritmo da fala” A cantiga trovadoresca, Ondas do mar de Vigo, de Martim Codax, é exemplo dessas espécies líricas que eram acompanhadas pela lyra. Até hoje, ela é muito famosa pelos seus aspectos sentimentais e melódicos. Ondas do mar de Vigo, se vistes meu amigo! E ai Deus, se verrá cedo! 82 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Ondas do mar levado, se vistes meu amado! E ai Deus, se verrá cedo! Se vistes meu amigo, o por que eu sospiro! E ai Deus, se verrá cedo! Se vistes meu amado, por que hei gran cuidado! E ai Deus, se verrá cedo. (CODAX apud GONÇALVES, 1983, p.261) Com o tempo, por volta do século XV, esse tipo de manifestação cantada entrou em declínio, e, desde então, a denominação lírica passou a referir‑se a todos os textos literários que possuem a voz, a expressão das emoções, ideias e sensações individuais do eu lírico. Neles, traduz‑se uma vastidão de sentimentos e sensações humanas, procurando‑se então valorizar os recursos estruturais rítmicos e sonoros. Observemos os traços líricos do poema Voo, de Cecília Meirelles: Alheias e nossas As palavras voam. Bando de borboletas multicolores, As palavras voam. Bando azul de andorinhas, Bando de gaivotas brancas, As palavras voam. Voam as palavras como águias imensas. Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam. Oh! alto e baixo em círculos e retas em cima de nós, em redor de nós as palavras voam. E às vezes pousam. (MEIRELES apud GOUVÊA, 2007, p. 251) Na poesia lírica, ao contrário da épica, o poeta não recebe nenhum tipo de inspiração dos deuses, nem é orientado por esses; seu canto é parte de sua vontade de cantar, e o material de sua poesia é ele mesmo, suas incertezas, suas aventuras, suas angústias. Observamos, portanto, um movimento que parte do “eu”: o poeta conhece o que vai cantar e parte dele esse conhecimento, ele não o recebe de nenhuma divindade, isto é, o poeta lírico projeta um eu 83 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA lírico que se refere a si mesmo, que fala de um amor que ele mesmo sofre, e expõe seu mundo interior em forma de lamento. Essa diferença essencial, que distancia a lírica da épica, está no fato de que é na poesia lírica que primeiramente podemos notar o desabrochar da subjetividade do poeta. É ela que responde ao anseio do homem de expressar‑se individualmente e subjetivamente. Por isso, o poeta lírico, diferentemente do aedo16 épico, põe‑se a falar de si e para que possa tornar verossímil sua poesia, vale‑se da primeira pessoa, toma a si mesmo como personagem ou exemplo. Na Poética, Aristóteles distingue o tom da poesia pontuando que a lírica possui um tom mais baixo que a épica, posto que a primeira fala da subjetividade, da passionalidade e dos valores particulares do eu lírico, e a segunda, das virtudes dos grandes heróis da história. Entretanto, ainda que os sentimentos, a interioridade, sejam mais simplórios que os valores do herói, são comuns a todos os homens; dessa forma, tudo o que o eu lírico toma em primeira pessoa universaliza‑se, pois o pathós, isto é, o sofrimento, faz parte da natureza humana. Embora vários poetas da Antiguidade tenham se dedicado à composição lírica, esse gênero não era tão valorizado quanto o épico, que era usado como instrumento para a educação dos jovens, por se valorizar a história e se exortarem os valores tradicionais. A poesia lírica não poderia ser associada à educação, visto que seria mais propensa a romper com os valores tradicionais e a elevar os valores do presente (hic et nunc)17. Figura 22 – Francesco Petrarca 16 Aedo: (do grego: cantar) refere‑se ao artista da Grécia Clássica que cantava poemas épicos, acompanhado de instrumento musical. Homero foi um dos mais representativos aedos desse período. 17 Hic et nunc: expressão do latim que significa aqui e agora. 84 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Observação Um dos poetas gregos da Antiguidade que adaptaram a poesia épica a novas formas foi Arquíloco. Ele nasceu na ilha de Paros por volta de 650 a.C. e compôs versos satíricos e ferinos, e canções sensuais. Seus poemas tornaram‑se muito populares. Os antigos colocavam‑no em pé de igualdade com o próprio Homero. Francesco Petrarca (Arezzo, 20 de Julho de 1304 – Arquà Petrarca, 19 de Julho de 1374) importante intelectual, poeta e humanista italiano, considerado o inventor do soneto. Pesquisador e filólogo, divulgador e escritor, é tido como o “pai do Humanismo”. Deve sua fama principalmente a seus poemas, redigidos em língua italiana. Apenas no Renascimento, quando o centro das atenções passa a ser o homem, é que a poesia de expressão subjetiva ganha reconhecimento, e o público é conquistado pela lírica amorosa de Petrarca e seus seguidores, como Shakespeare, na Inglaterra, e Camões, em Portugal. Enfim, os sentimentos e a pessoalidade são o substrato dessa poesia, que revela a intimidade do eu lírico exteriorizada em forma de lamento, resgatando a origem clássica do lirismo, como podemos ver neste soneto de Florbela Espanca, poetisa portuguesa do século XX. Fanatismo Minh’alma, de sonhar‑te, anda perdida. Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão do meu viver, Pois que tu és já toda a minha vida! Não vejo nada assim enlouquecida... Passo no mundo, meu amor, a ler No mist’rioso livro do teu ser A mesma história tantas vezes lida! “Tudo no mundo é frágil, tudo passa...” Quando me dizem isto, toda a graça Duma boca divina fala em mim! E, olhos postos em ti, digo de rastros: “Ah! Podem voar mundos, morrer astros, Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...” (ESPANCA, 2007, p.17) 85 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o -07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Figura 23 – Florbela Espanca Saiba mais Florbela Espanca (1894–1930): poetisa portuguesa. A tela anterior foi pintada pelo artista Botelho. Para conhecer a qualidade poética de Espanca, sugerimos que consulte a obra: Charneca em Flor. Coimbra: Livraria Gonçalves, 1931. Nesse soneto, nas duas estrofes de quatro versos (dois quartetos), o eu lírico feminino revela a força do amor que sente, assumindo que seus olhos enxergam apenas o ser amado, que se transforma em sua própria vida, e por isso “andam cegos”, o que faz com que ela leia sempre a mesma história no objeto de seu amor: a história do sentimento que a arrebata e toma conta de seu ser, o amor. Nos dois tercetos, o eu lírico ouve a opinião de outras pessoas sobre a transitoriedade do amor, entretanto, como o ser amado tornou‑se sua própria vida, ele passa a ser um Deus, seu princípio e seu fim, portanto, maior que o eu lírico, e não há nada que seja capaz de enfraquecer esse sentimento, o que nos ajuda a deixar mais claro o significado de seu título, Fanatismo. Fanatismo é o amor incondicional, a paixão cega e absoluta do eu lírico em relação ao ser amado. 4.3.5.1 Características fundamentais da lírica Ritmo e musicalidade das palavras e dos versos O ritmo e a musicalidade são um realce na sonoridade. Desde as suas origens, o gênero lírico está intimamente ligado à música e ao canto. Mesmo quando a poesia dissociou‑se da música, 86 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 ao passar da forma oral para a escrita, sendo composta para ser lida, a musicalidade continuou presente nos versos, por meio dos recursos que aproximam música e palavra, como metro, acentos, repetições de fonemas (aliterações, assonâncias18), de palavras ou de versos (refrão), de estrofes, de ritmos e rimas. Na ópera e na canção popular, ainda se encontram vestígios da união palavra/música: Alheias e nossas As palavras voam. Bando de borboletas multicolores, As palavras voam. Bando azul de andorinhas, Bando de gaivotas brancas, As palavras voam. Voam as palavras como águias imensas. Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam. Oh! alto e baixo em círculos e retas em cima de nós, em redor de nós as palavras voam. E às vezes pousam. (MEIRELES apud GOUVÊA, 2007, p. 251) Nos versos anteriores, além da presença de muitas vogais (assonâncias), há uma predominância da vogal /a/ (28 ocorrências) e do fonema /b/ e /s/ (aliterações). Subjetividade Por meio de uma voz central, o eu lírico exprime um estado de alma, suas emoções e disposições psíquicas, concepções, reflexões e vivências intensamente experimentadas, assim como pudemos perceber, no poema de Cecília Meirelles, a visão e a reflexão pessoal da poetisa sobre o poder e o alcance das palavras. Observação A propósito, é preciso diferenciar a pessoa física do poeta, no caso, Cecília Meirelles, do “eu lírico” que se manifesta no texto. O poeta (pessoa 18 Aliteração corresponde à repetição de consoantes ao longo dos versos, e assonância à repetição de vogais ao longo dos versos. Ex.: ”Pedro pedreiro penseiro esperando o trem” (Chico Buarque). 87 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA física) não necessariamente vivencia o que ali está expresso. Lembre‑se de que o poema é criação do poeta. Emocionalidade A aproximação com a música permite uma melhor compreensão da característica marcante do gênero lírico: a emocionalidade. Lírico e emocional são muitas vezes empregados como sinônimos. Saiba mais Jakobson define a função emotiva como aquela que tem o foco no emissor. Leia mais sobre o assunto em Funções da linguagem, de Samira Chalhub. 7. ed. São Paulo: Ática, 1999. De acordo com D’onófrio (2006), a poesia lírica é classificada como uma explosão de sentimentos, sensações e emoções do emissor, portanto, centrada na função emotiva da linguagem. A metáfora é, dentre outras figuras de estilo, o recurso mais empregado pelo poeta lírico para exprimir os estados vagos de seu “eu” interior. Valendo‑se da metáfora, o poeta estabelece associações entre palavras e objetos de campos semânticos diferentes. Metáfora é a figura de linguagem em que um termo substitui outro, em vista de uma relação de semelhança entre os elementos que esses termos designam. A relação de semelhança é subjetiva, pois depende do criador da metáfora. Assim, em: Bando azul de andorinhas, / Bando de gaivotas brancas, / As palavras voam. A qualidade comum entre os termos aproximados palavra e ave produz uma imagem que se apropria das qualidades da palavra, como leveza, liberdade, agilidade, amplidão, para estabelecer possíveis associações com o termo ave. Nos versos anteriores, as palavras e as aves estão sendo aproximadas por traços em comum, numa relação totalmente subjetiva estabelecida pela poetisa. Na base da relação metafórica, há sempre uma comparação (ou símile) sem a presença do conectivo comparativo: As palavras voam (como) bando azul de andorinhas, As palavras voam (como) bando de gaivotas brancas. Comparação ou símile consiste na aproximação explícita entre dois elementos de universos diferentes. Por exemplo: voam as palavras como águias imensas. Nos versos anteriores, comparam‑se as palavras às aves (águias imensas), sendo que cada elemento da comparação pertence a universos diferentes. Os elementos estão aproximados por causa de uma qualidade comum: a amplitude (ou a força). 88 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 O símile é subjetivo, depende da sensibilidade, do estado de espírito, da experiência de vida de quem o cria. Ex.: Como escuros morcegos / como negros abutres, / as palavras voam. Muitos símiles tornaram‑se clichês desgastados pelo uso, carentes de originalidade, por exemplo: Os seus olhos são verdes como esmeraldas; Ela tinha lábios vermelhos como rubi; O vencedor era rápido como uma lebre. Os versos de Cecília Meirelles criam uma comparação subjetiva entre “palavras” e “escuros morcegos” e “negros abutres”. As figuras de palavras consistem no emprego de um termo em um sentido diferente daquele em que é convencionalmente empregado. Importa destacar a seguinte concepção: Pelo processo psíquico da associação, a lírica encontra relações surpreendentes entre o sentimento do presente, as recordações do passado e o pressentimento do futuro, entre os fenômenos da natureza cósmica e os atributos do ser humano (D’ONÓFRIO, 2006, p. 57). Concentração/intensidade expressiva Devido à intensidade de emoções e sentimentos que expressa, a lírica manifesta‑se em poemas curtos (o soneto, a canção, a balada etc.). No entanto, momentos líricos podem estar presentes em outros gêneros literários, como a epopeia (ex.: o já citado episódio de Inês de Castro, em Os Lusíadas, de Camões) e o romance (ex.: a abertura de Iracema, de José de Alencar). Saiba mais Para melhor compreensão das formas poemáticas citadas, leia o artigo Formas e exemplos de liricidade, que pode ser encontrado no livro Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama, de Salvatore D´Onófrio. São Paulo: Ática, 2006. 89 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Assim, a lírica é sempre poesia, seja em verso ou em prosa, mas nem toda poesia em verso é lírica, o que conta é a presença das característicasmencionadas anteriormente, expressas nas seguintes formas poemáticas: balada, vilancete, ode, hino, canção, madrigal, elegia, rondel, rondó, epitalâmio, triolé, sextina, haicai, soneto etc. Observemos uma das composições mais conhecidas: o soneto. Soneto de Carnaval Distante o meu amor, se me afigura O amor como um patético tormento Pensar nele é morrer de desventura Não pensar é matar meu pensamento Seu mais doce desejo se amargura Todo o instante perdido é um sofrimento Cada beijo lembrado uma tortura Um ciúme do próprio ciumento. E vivemos partindo, ela de mim E eu dela, enquanto breves vão‑se os anos Para a grande partida que há no fim De toda a vida e todo o amor humanos: Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo Que se um fica o outro parte a redimi‑lo. (MORAES, 1978, p. 118) De influência italiana, fixada no Classicismo, o soneto é o poema de forma invariável mais conhecido. Composto de catorze versos, em geral, de dez sílabas (decassílabos) ou de doze sílabas poéticas (alexandrinos), distribuídos em dois quartetos (duas estrofes de quatro versos) e dois tercetos (duas estrofes de três versos). Há um tipo de rima nos quartetos (AB) e nos tercetos há outro (CD). O soneto é próprio para expressar, dialeticamente19, uma reflexão sobre algum tema. No exemplo anterior, Vinícius de Moraes reflete a respeito do amor e da morte, expressos na construção estética do poema. Nos quartetos, expõe as duas faces contraditórias do amor, suas alegrias e desventuras; nos tercetos, aborda a perspectiva da morte e sugere a cumplicidade que o amor encerra. 19 Dialética = [do gr. dialektiké (téchne), pelo lat. dialectica] S. f. Filos. Arte do diálogo ou da discussão, quer num sentido laudativo, como força de argumentação, quer num sentido pejorativo, como excessivo emprego de sutilezas. No soneto de Vinícius, o termo dialética pode ser entendido como discussão argumentativa. 90 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Vejamos mais alguns exemplos: Espécie lírica Tristeza Eu perdi minha vida e o alento, E os amigos, e a intrepidez, E até mesmo aquela altivez Que me fez crer no meu talento. Vi na Verdade, certa vez, A amiga do meu pensamento; Mas, ao senti‑la, num momento O seu encanto se desfez. Entretanto, ela é eterna, e aqueles Que a desprezaram – pobres deles! ‑ Ignoraram tudo talvez. Por ela Deus se manifesta. O único bem que ainda me resta É ter chorado uma ou outra vez. (MUSSET apud GRÜNEWALD, 1991, p.46‑47) Seus Olhos Seus olhos ‑ se eu sei pintar O que os meus olhos cegou ‑ Não tinham luz de brilhar. Era chama de queimar; E o fogo que a ateou Vivaz, eterno, divino, Como facho do Destino. Divino, eterno! ‑ e suave Ao mesmo tempo: mas grave E de tão fatal poder, Que, num só momento que a vi, Queimar toda alma senti... Nem ficou mais de meu ser, Senão a cinza em que ardi. (GARRETT, 1869, 212‑218) 91 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Lembrete A subjetividade, a emocionalidade, o poema de curta extensão, o ritmo e a musicalidade das palavras e dos versos são as principais características do gênero lírico. 4.3.5.2 As formas da espécie lírica Conforme estudamos, o gênero poesia manifesta‑se sob duas espécies, lírica e épica, que, por conseguinte, revelam‑se em formas literárias específicas para cada temática ou estilo literário. Quadro 3 – As formas da espécie lírica Gêneros literários Espécies Formas Poesia lírica (Exemplos de Poetas Líricos: Lamartine, Musset, Garrett, Casimiro de Abreu, Vinícius de Moraes) ode, epigrama, rondó, balada, vilancete, elegia, epitalâmio, trova, soneto, madrigal, canção, acróstico, haicai, sátira etc. Vejamos a definição e o exemplo de algumas delas: • Ode: é uma forma poética de origem grega que, acompanhada do instrumento musical lyra, era cantada em tom animado, alegre, festivo, sublime e entusiástico. Tradicionalmente, ela compõe‑se de estrofes semelhantes, com as mesmas medidas métricas, como, por exemplo, quatro versos e três unidades estróficas. Segundo o E‑Dicionário de Termos Literários: Poder‑se‑iam distinguir dois tipos de ode: a ode pública e a ode privada. A primeira destinava‑se às ocasiões de cerimónia [sic], tais como funerais, aniversários e eventos estatais. A ode privada celebrava, normalmente, acontecimentos pessoais e subjectivos e tinha tendência para ser mais meditativa e reflectiva (CEIA, 2005). Os poetas mais conhecidos que escreveram odes foram: Alceu, Safo, Anacreonte, Catulo, Horácio, Gabriel D’Annuzzio, Victor Hugo, Camões, Cruz e Silva, Fernando Pessoa etc. Ode a uma amiga noiva Igual aos deuses me parece o homem que pode contemplar‑te frente a frente e ouvir de perto a tua doce voz deliciosa, 92 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 e o riso teu ouvir, cheio de encanto, que no meu peito move o coração; falta‑me a voz se apenas te contemplo, só por te ver; foge‑me a fala e logo sob a pele queima‑me as carnes um fogo incessante. Já nada veem os meus olhos; surdos tenho os ouvidos. Corre o suor pelo meu corpo todo; sinto tremores, nada me alivia; fico mais verde que a viçosa relva: penso que morro. (SAFO, s.d.) • Epigrama: é uma composição poética breve em versos ou pequenas estrofes que revela pensamento, máxima, mexerico, intriga ou anedota, utilizando‑se da sátira ou crítica social. Ela revela uma mensagem reduzida e concentrada, mas com densidade impactante e de fácil memorização. Antigamente, o epigrama aparecia em monumentos, esculturas, lápides, muros, vasos ornamentais, paredes, tumbas etc. Exemplo: Epigrama número 2 És precária e veloz, Felicidade. Custas a vir, e, quando vens, não te demoras. Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo, e, para te medir, se inventaram as horas. Felicidade, és coisa estranha e dolorosa. Fizeste para sempre a vida ficar triste: porque um dia se vê que as horas todas passam, e um tempo, despovoado e profundo, persiste. (MEIRELES apud BOSI, 2003, p.126) • Rondó: expressão medieval francesa, caracterizada pela repetição do estribilho em todas as estrofes ou do(s) primeiro(s) verso(s) no início, meio ou fim do poema. Geralmente, a estrutura possui a forma fixa com três estrofes, respectivamente, uma quintilha com rimas aabba; um terceto aab e, por fim, outra quintilha no mesmo esquema rítmico. Os versos possuem oito ou dez sílabas poéticas. O estribilho não participa do esquema métrico. 93 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Exemplo: XXII De amor e ciúmes desatino, porque te amar é meu destino, — causa do gozo e do sofrer! — Se Vico é para te querer, mulher, fulgor, perfume ou hino! O meu desejo, astro divino, cerca‑te o vulto airoso e fino, como atmosfera, a te envolver, de amor! Ilha florida, eu te imagino, e julgo o ciúme, agro e mofino, que me transtorna todo o ser, um bravo mar sempre a gemer, a uivar, num ímpeto tigrino de amor! (ANDRADE, G., 1907, p. 23) Há outro exemplo mais conhecido: O Rondó dos Cavalinhos, de Manuel Bandeira. Como perceberá, a forma é modificada e diversa, respeitando apenas a repetição de alguns versos e colocação de algumas quadras. Rondó dos Cavalinhos Os cavalinhos correndo, E nós, cavalões, comendo... Tua beleza, Esmeralda, Acabou me enlouquecendo. Os cavalinhos correndo, E nós, cavalões, comendo... O sol tãoclaro lá fora E em minhalma — anoitecendo! Os cavalinhos correndo, E nós, cavalões, comendo... Alfonso Reys partindo, E tanta gente ficando... Os cavalinhos correndo, E nós, cavalões, comendo... 94 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 A Itália falando grosso, A Europa se avacalhando... Os cavalinhos correndo, E nós, cavalões, comendo... O Brasil politicando, Nossa! A poesia morrendo... O sol tão claro lá fora, O sol tão claro, Esmeralda, E em minh’alma — anoitecendo! (BANDEIRA, 1998, p. 69‑70) • Balada: em termos literários, significa uma forma medieval de poema musical destinada à dança e acompanhada de instrumentos musicais, com ausência de coreografia. A balada apresentava uma cena narrativa sentimental, em redondilha maior, melancólica. Muitas vezes, compunha‑se de forma dialogada, com perguntas e respostas. Ela possui traços e elementos populares. Essa expressão literária passou por várias modificações. No século XVI, por exemplo, possuía a forma fixa de três estrofes de oito versos metrificados, refrão e esquema de rimas (ABABACAC). O refrão tinha metade dos versos, com rimas (ACAC). Ele servia como ofertório ou oferenda, chamado também de evoi. Com o tempo, deixou de ser cantada. Os poetas brasileiros Olavo Bilac e Guilherme de Ameida escreveram algumas baladas bastante interessantes. Exemplo: Baladas Românticas – Verde... Como era verde este caminho! Que calmo o céu! que verde o mar! E, entre festões, de ninho em ninho, A Primavera a gorjear!... Inda me exalta, como um vinho, Esta fatal recordação! Secou a flor, ficou o espinho... Como me pesa a solidão! Órfão de amor e de carinho, Órfão da luz do teu olhar, — Verde também, verde‑marinho, Que eu nunca mais hei de olvidar! Sob a camisa, alva de linho, Te palpitava o coração... 95 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Ai! coração! peno e definho, Longe de ti, na solidão! Oh! tu, mais branca do que o arminho, Mais pálida do que o luar! — Da sepultura me avizinho, Sempre que volto a este lugar... E digo a cada passarinho: “Não cantes mais! que essa canção Vem me lembrar que estou sozinho, No exílio desta solidão!” No teu jardim, que desalinho! Que falta faz a tua mão! Como inda é verde este caminho... Mas como o afeia a solidão! (BILAC, 1996, p. 198) • Vilancete: é uma composição poética medieval, muito cultivada na Península Ibérica, no período trovadoresco. De caráter popular e adaptada ao canto, possui um mote, ou seja, uma introdução pequena que, ao longo do poema, desenvolve os pés, que são estrofes septilhas (sete versos), metrificadas em cinco ou sete sílabas poéticas (medida velha). Essas estrofes recebiam o nome de glosas, coplas ou voltas. O vilancete pode ser perfeito se houver repetição do último verso do mote no fim da estrofe. Os poetas Juan del Encina, Pedro Escobar e Camões dedicaram‑se a essa forma poética. Exemplo: Descalça vai para a fonte Mote Descalça vai para a fonte Lionor, pela verdura; vai fermosa e não segura. Volta Leva na cabeça o pote, o testo nas mãos de prata, cinta de fina escarlata, sainho de chamalote; traz a vasquinha de cote, mais branca que a neve pura. vai fermosa e não segura. 96 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Descobre a touca a garganta, cabelos d’ouro o trançado, fita de cor d’encarnado... tão linda que o mundo espanta! Chove nela graça tanta que dá graça à fermosura; vai fermosa, e não segura. (CAMÕES, 2007, p. 164) • Elegia: é uma forma literária grega que, originariamente, aplicava‑se aos poemas retóricos escritos em dois versos, chamados dístico elegíaco, que abordavam vários temas com objetivos de aconselhamento, reflexão ou comoção da plateia. Geralmente, eram acompanhados por apenas um instrumento musical, como a lira. Com Calímaco, temos as primeiras composições com temas melancólicos e tristes que, mais adiante, seriam recorrentes à elegia. Atualmente, ela é conhecida como um tipo de poema de temática terna, trágica, infeliz e fúnebre do próprio poeta. A forma é livre. Tibulo, Ovídio, Sá de Miranda, Camões e Fagundes Varela são os mais conhecidos dentre aqueles que escreveram elegia. Outros, mais contemporâneos, como Rilke, Vinícius de Moraes e Cecília Meirelles também produziram um repertório elegíaco. Vale a pena lermos novamente o excerto de Cântico do Calvário, de Fagundes Varela, que exemplifica bem os aspectos mais conhecidos dessa forma literária. Perceba a lamentação e a dor do eu lírico pela morte do filho ainda pequeno: Cântico do Calvário À memória de meu filho morto a l l de dezembro de 1863. Eras na vida a pomba predileta Que sobre um mar de angústias conduzia O ramo da esperança. – Eras a estrela Que entre as névoas do inverno cintilava Apontando o caminho ao pegureiro. Eras a messe de um dourado estio. Eras o idílio de um amor sublime. Eras a glória, – a inspiração, – a pátria, O porvir de teu pai! – Ah! no entanto, Pomba, – varou‑te a flecha do destino! Astro, – engoliu‑te o temporal do norte! Teto, caíste! – Crença, já não vives! [...] (VARELA apud RAMOS, 1965, p.289) • Epitalâmio: é um poema para louvarem‑se as bodas de alguém ou o evento do casamento ou os próprios noivos, invocando a proteção divina pela felicidade eterna desses. Na tradição, ressaltava‑se a importância das proteções de deuses, como Himeneu, que poderia proteger e unir os noivos. 97 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Epitalâmio foi usado também nas entoadas do quarto da noiva na noite do casamento. Os Cânticos dos Cânticos, de Salomão, presentes na Bíblia podem ser considerados como epitalâmios. Safo e Catulo, na literatura grega, e Sá de Miranda, Manuel da Costa, Basílio da Gama e Fernando Pessoa, na literatura de língua portuguesa, foram bastante representativos desse tipo composição. O modernista brasileiro Murilo Araújo também escreveu epitalâmios na obra Carrilhões, de 1917. Exemplo: O Cântico dos Cânticos Primeiro canto (excerto) Anseios de amor Ela. 2 Sua boca me cubra de beijos! São mais suaves que o vinho tuas carícias, 3 e mais aromáticos que teus perfumes é teu nome, mais que perfume derramado; por isso as jovens de ti se enamoram. 4 Leva‑me contigo! Corramos! O rei introduziu‑me em seus aposentos. Coro. Queremos contigo exultar de gozo e alegria, celebrando tuas carícias, superiores ao vinho. Com razão as jovens de ti se enamoram. Canção da amada Ela. 5 Sou morena, porém graciosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar, como os pavilhões de Salomão. 6 Não me olheis com desdém, por eu ser morena! Foi o sol que me bronzeou: os filhos de minha mãe, aborrecidos comigo, puseram‑me a guardar as vinhas; a minha própria vinha não pude guardar. Ambição do amor 98 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Ela. 7 Indica‑me, amor de minha alma: onde pastoreias? Onde fazes repousar teu rebanho ao meio‑dia? Para eu não parecer uma mulher perdida, seguindo os rebanhos de teus companheiros. Coro. 8 Se não o sabes, ó mais bela das mulheres, segue os rastos das ovelhas e leva teus cabritos a pastar perto do acampamento dos pastores! [...] (SALOMÃO apud COSTA, s/d,p.32) • Écloga: Uma écloga é um quadro, onde nas mais vivas cores se devem debuxar os longos da Idade do Ouro e as relíquias daquela antiga inocência, que nas selvas, onde teve origem, ainda se conservam. Os campos quase sempre hão de ser os mais férteis, os ares mais puros, os rios os mais serenos, as aves as mais harmoniosos, e ainda os mesmos montes hão de brotar copiosas flores [...]. Nos pastores deve reinar a singeleza, a inocência, uma simples alegria e ainda a mesma delicadeza, contanto que não seja buscada ou, como os franceses dizem, recherchée. Os seus discursos se hão de encerrar dentro dos limites do campo: poderão ser delicados, mas não excederão a esfera dum homem sem mais instrução que a que lhe pode permitir a guarda do rebanho e a tradição dos seus maiores (RAMOS, 1968, p. 31). A écloga é uma forma literária que se constitui de diálogos ou solilóquios entre personagens do campo; refere‑se a poemas pastoris ou bucólicos muito usados no Arcadismo. Pode ser confundida com outra expressão literária, chamada de idílio, que, do mesmo modo, aborda temas do campo20.. Em E‑Dicionário de Termos Literários, Carlos Ceia (2005) define que écloga ou égloga é um: Poema em forma de diálogo ou de solilóquio sobre temas rústicos, cujos intérpretes são em regra pastores. Inicialmente, o termo, que significava “poesia seleccionada”, foi aplicado aos poemas bucólicos de Virgílio. A partir daí, aplica‑se às pastorais e aos idílios tradicionais que Teócrito e outros poetas sicilianos escreveram. Outros poetas italianos como Dante, Petrarca e Boccaccio recuperaram o género, que acabaria por se tornar um dos 20 A única diferença entre essas duas formas é que a écloga contém diálogos. 99 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA preferidos dos poetas renascentistas e maneiristas europeus. A grafia égloga, popularizada por Dante, parte de uma falsa etimologia latina que derivava de aix (“cabra, bode”) e logos (“palavra”, “discurso”, “diálogo”). De acordo com o comentário irónico do poeta inglês Spenser, em “E. K.”, terá sido construída para significar qualquer coisa como “Goteheards tales” (“contos de cabreiros”). Luís de Camões, Bernardim Ribeiro, António Ferreira e Sá de Miranda estão entre os muitos poetas portugueses que nos legaram poemas do género. As suas composições seguem os modelos clássicos, não existia até então qualquer teorização portuguesa sobre as éclogas. A rigor, nem os modelos clássicos (Horácio e Diomedes) teorizam em particular sobre a écloga. O que sabemos sobre as regras da écloga advém dos próprios textos. No caso português, só em 1605 Francisco Rodrigues Lobo teoriza sobre o assunto em Discurso sobre a Vida e o Estilo dos Pastores (1605). Os poetas árcades do século XVIII ainda exploram o género tendo mesmo teorizado sobre a écloga, como Dinis da Cruz e Silva. Um dos melhores intérpretes da écloga nesta época é João Xavier de Matos, destacando‑se Albano e Damiana (1758). Exemplo: Belisa e Amarílis Écloga XV Corebo e Palemo. Cor. Agora, que do alto vem caindo A noite aborrecida, e só gostosa Para quem o seu mal está sentindo; Repitamos um pouco a trabalhosa Fadiga do passado; e neste assento Gozemos desta sombra deleitosa. O brando respirar do manso vento Por entre as frescas ramas, a doçura Dessa fonte, que move o passo lento; A doce quietação dessa espessura, O silêncio das aves, tudo, amigo, Ouvir a nossa mágoa hoje procura. Principia, Palemo; que eu contigo À memória trarei, quanto deixamos No sossego feliz do estado antigo. 100 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Que esperas, caro amigo? Sós estamos: Bem podemos falar: porque os extremos De nossa dor só nós testemunhamos. Pal. Não vi depois, que o monte discorremos, Há tantos anos, sempre atrás do gado, Noite tão clara, como a que hoje temos: Mas muito estranho ser de teu agrado, Que despertemos inda a cinza fria Da lembrança do tempo já passado. Oh! não sei, o que pedes: bom seria, Que desse qualquer bem não cobre alento O estrondo, que talvez adormecia. Loucura é despertar no pensamento O fogo extinto já de uma memória: Não sabes, quanto é bárbaro o tormento. Em nos lembrarmos da perdida glória Nada mais conseguimos, que ao gemido Dar novo impulso na passada história. Não se desperte o mísero ruído; Que veremos, amigo, o desengano De um bem caduco, de um prazer fingido. [...] (COSTA, 1976, p.97) • Madrigal: é uma expressão poética curta que, em forma variada ou, muitas vezes, em decassílabos e hexassílabos rimados, trata de pensamentos delicados e sentimentos amorosos e ternos. Às vezes, possui temática pastoril. Associada à língua espanhola, liga‑se diretamente à música. Os poetas Manuel Botelho e Silva Alvarenga deixaram uma herança de madrigais para a história da literatura de língua portuguesa. Exemplos: Madrigal III [Voai, suspiros tristes;] Voai, suspiros tristes; Dizei à bela Glaura o que eu padeço, Dizei o que em mim vistes, Que choro, que me abraso, que esmoreço. 101 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Levai em roxas flores convertidos Lagrimosos gemidos que me ouvistes: Voai, suspiros tristes; Levai minha saudade; E, se amor ou piedade vos mereço, Dizei à bela Glaura o que eu padeço. (BOTELHO apud. FERREIRA, 1952, p. 148) Madrigal XVIII [Suave Agosto as verdes laranjeiras] Suave Agosto as verdes laranjeiras Vem feliz matizar de brancas flores, Que, abrindo as leves asas lisonjeiras, Já Zéfiro respira entre os Pastores Nova esperança alenta os meus ardores Nos braços da ternura. Ó dias de ventura, Glaura vereis à sombra das mangueiras! Suave Agosto as verdes laranjeiras Co’a turba dos Amores Vem feliz matizar de brancas flores. (ALVARENGA, 1943, p.225) • Canção: é qualquer forma de poema que pode ser musicada ou destinada ao canto, valorizando bastante o ritmo e as várias temáticas subjetivas. Na época trovadoresca, esteve associado ao aspecto lírico e serviu para expressar sentimentos eruditos, perdendo depois essas características e passando a versar também sobre temas morais e heroicos. A estrutura é variada, mas a mais comum é aquela que possui uma introdução, o texto e a conclusão. — A introdução é a apresentação do tempo, do espaço e do assunto de que se tratava a canção. — O texto desenvolve o assunto. — A conclusão, denominada cabo ou finda, refere‑se à dedicatória da canção. Exemplo: Canção IV Vão as serenas águas do Mondego descendo 102 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 mansamente que até o mar não param; por onde minhas mágoas pouco a pouco crescendo, para nunca acabar se começaram. Ali se ajuntaram neste lugar ameno, aonde agora mouro, testa de neve e ouro, riso brando, suave, olhar sereno, um gesto delicado, que sempre n’alma me estará pintado. Nesta florida terra, Ieda, fresca e serena, Iedo e contente para mim vivia, em paz com minha guerra, contente com a pena que de tão belos olhos procedia. Um dia noutro dia o esperar me enganava; longo tempo passei com a vida folguei, só porque em bem tamanho me empregava. Mas que me presta já, que tão fermoso olhos não os há? Oh, quem me ali dissera que de amor tão profundo o fim pudesse ver inda alguma hora! Oh, quem cuidar pudera que houvesse aí no mundo apartar‑me eu de vós, minha Senhora, para que desdeagora perdesse a esperança, e o vão pensamento, desfeito em um momento, sem me poder ficar mais que a lembrança, que sempre estará firme até o derradeiro despedir‑me Mas a mor alegria que daqui levar posso, com a qual defender‑se triste espero, é que nunca sentia 103 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA no tempo que fui vosso quererdes‑me vós quanto vos eu quero; porque o tormento fero de vosso apartamento não vos dará tal pena como a que me condena; que mais sentirei vosso sentimento que o que minha alma sente Morra eu, Senhora; e vós ficai contente! Canção, tu estarás aqui acompanhando estes campos e estas claras águas, e por mim ficarás chorando e suspirando, e ao mundo mostrando tantas mágoas que, de tão larga história, minhas lágrimas fiquem por memória. (CAMÕES, 2007, p. 195‑198) • Quadra: conhecida como quadrinha ou trova, é uma forma poética popular que, com uma estrofe ou mais, possui quatro versos de redondilhas maiores (sete sílabas poéticas) e rimas presentes apenas no segundo e quarto verso. Elas são singelas e populares. Aparício Fernandes de Oliveira é representante dessa forma literária. Veja duas trovas dele: Parti do Norte chorando, que coisa triste, meu Deus!... Eu vi o mar soluçando e o coqueiral dando adeus... (OLIVEIRA apud CAVALCANTE, 2000, p.26) • Sextina: é um poema lírico bastante raro, com estrutura rígida de seis sextetos e um terceto final e esquema de rimas, estabelecido em ordem sequencial. Inventada por Arnaut Daniel, foi cultivada por alguns poetas como Petrarca e Camões. Exemplo: O Riso da Saudade A cálida alvorada já sorri e teu ser rejubila de vontade de abraçar essa estrela que se ri ao ver‑te decidida e destemida no fim desta tão triste e curta vida, vivida com carinho e com saudade. 104 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 No meio da tristeza da saudade que senti ao lembrar‑me que sorri dos sonhos que aspiravas para a vida... do modo como impunhas a vontade às dores que enfrentavas destemida... soltei as emoções e logo ri. [...] Se o tempo te sorri, faz‑lhe a vontade: abraça o sol que ri, já destemida, e vive em pleno a vida sem saudade. (BRANCO, 2011, s/p.) • Acróstico: de caráter lúdico, é uma composição poética de letras iniciais de cada verso que, lidas na vertical, formam um nome, uma mensagem ou uma ideia, temáticos no contexto do poema. Ela é bem comum nos dias de hoje, mas já vem sendo cultivada desde a Antiguidade. Um acróstico conhecido pode ser visto na peça Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare, referindo‑se à personagem Titânia no ato 3, cena I. Mas vejamos outro famoso, trata‑se da homenagem de Ofélia Queirós a Fernando Pessoa: Exemplo: Fazia bem em me dizer E grata lhe ficaria Razão porque em verso me dizia Não ser o bom‑bom para si... A não ser que na pastelaria Não lho queiram fornecer D’outro motivo não vi Ir tal levá‑lo a crer. Não sei mesmo o que pensar Há fastio para o comer? Ou não tem massa pr’o comprar?! Peço porém me desculpe Este incorrecto poema Seja bom e não me culpe Sou estúpida, e tenho pena O Sr. é muito amável Aturando esta... pequena... (QUEIRÓS, 1996, p. 15) • Haicai: originalmente, é uma composição poética japonesa que possui suas origens orientais da técnica Tanka ou Waka. Era uma produção clássica que expressava sentimentos puros e nobres 105 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA na estrutura de duas estrofes de, respectivamente, três e dois versos, contando 5/7/5 e 7/7 sílabas poéticas. Mais adiante, houve a multiplicação dos versos e surgiu o Renga, caracterizada pela sua extensão e cultivo de temas individuais relacionados às questões cotidianas. Nela, localiza‑se a primeira estrofe, chamada Hokku, que faz referência a uma estação do ano. Dela, surgiu o Haikai que possui maior liberdade criativa. Um das características do Haikai é a espontaneidade das reflexões que, pela ausência do esforço racional, transmitem momentos de insights originais do eu lírico. Estruturalmente, ele sempre possui o Kigo, ou seja, traços indicativos de alguma estação do ano. As temáticas são suaves, corriqueiras e naturais. No Japão, Bashô é o poeta mais reconhecido na construção de Haikais; e, no Brasil, Guilherme de Almeida. Os brasileiros modificaram a essência desse tipo de poema, elegendo, por exemplo, títulos e cargas mais densas de expressão sentimentais nos temas. Exemplo: Doente da viagem Meus sonhos perambulam Pelo campo seco (BASHÔ, 2011) OUTUBRO Cessou o aguaceiro Há bolhas novas nas folhas Do velho salgueiro (ALMEIDA, 2002, p.11) • Cordel: referida como Literatura de Cordel, esse poema narrativo pertence às camadas populares e regionais que, tradicionalmente, construíam versos musicados e os imprimiam em folhetos rústicos, vendidos em comércios ou feiras. O nome advém da técnica de comercialização dos folhetos colocados dependurados em varais no meio do público para serem vendidos. A estrutura é bastante variada, mas obedece um esquema de versos e rimas, por conta da extrema necessidade de valorização da musicalidade. Os cordéis aparecem geralmente em quadras rimadas. Os temas das narrativas são diversos, como, por exemplo, críticas sociais, debates repentistas etc. O cordelista brasileiro pioneiro foi Antônio Ferreira da Cruz. Saiba mais A Casa Rui Barbosa criou um site especializado em Literatura de Cordel, com biografia e obra dos principais cordelistas brasileiros, textos digitalizados, vocabulários e uma vasta bibliografia crítica. O site é bem ilustrado. Consulte‑o: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/ index.html>. 106 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Figura 24 – Antônio Ferreira da Cruz Exemplo: História da Machina que faz o mundo rodar [...] Cego, aleijado e moleque, Padre doutor e soldado, Inspetor, Juiz de Direito, Comandante e delegado, Tudo, tudo joga o dinheiro Esperando bom resultado. Matuto, senhor de engenho, praciano e mandioqueiro, Do agreste ao sertão Todos jogam seu dinheiro Se um diz que é mentiroso Outro diz que é verdadeiro. Na opinião do povo Não tem quem possa mandar Faça ou não faça a machina O povo tem que esperar Por que quem joga dinheiro Só espera mesmo é ganhar. Assim é que muitos pensam Que no abismo não cai Que quem não for no Juazeiro 107 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Depois de morto ainda vai, Assim também é crença Que a dita machina sai. Quando um diz: ele não faz, Já outro fica zangado Dizendo: assim como Cristo Morreu e foi ressuscitado Elle também faz a machina E seu dinheiro é lucrado. [...] (CRUZ, s.d,) • SONETO: é a forma lírica mais conhecida para expressar sentimentalismos e, principalmente, para falar de amor. Possui origem italiana (século XIII), no período renascentista, quando o poeta compromete‑se a seguir rígida e racionalmente a estrutura de versos metrificados, estrofes e esquemas rítmicos. Deve‑se ao pioneirismo de Jacopo Notaro, mas, como já mencionamos antes, Petrarca ficou mais conhecido como o poeta pioneiro dessa espécie lírica. O modelo mais popular é composto de dozes versos, geralmente decassílabos, divididosem quatro estrofes (duas de quatro e duas de três versos – dois quartetos e dois tercetos). As rimas são ABBA ABBA CDC e CDE. O soneto explora os sentimentos de maneira racional, perceptível pela estrutura formal e temática. Os temas são esquematizados em argumentos, desenvolvidos nas primeiras estrofes, e uma conclusão triunfal e marcante deixada para o último terceto. Há outras estruturas conhecidas, como, por exemplo, um bloco de doze versos e um dístico (dois versos). Camões, Shakespeare, Vinícius de Moraes e vários outros poetas também valorizaram essa forma literária. Exemplos: Sonnet XVIII Shall I compare thee to a summer’s Day? Thou art more lovely and more temperate: Rough winds do shake the darling buds of May, And summer’s lease hath all too short a date: Sometime too hot the eye of heavens shines, And often is his gold complexion dimm’d, And every fair from fair sometime declines, By chance, or nature’s changing course, untrimm’d; But thy eternal summer shall no fade, Nor lose possession of that fair thou ow’st; Nor shall Death brag thou wander’st in his shade, When in eternal lines to time thou grow’st: 108 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 So long as men can breathe, or eyes can see, So long lives this, and this gives life to thee. (SHAKESPEARE apud SMITH, 2001, p.8) Tradução Posso te comparar a um belo dia estivo? Bem mais suave e amena é a tua natureza; Crestam ventos brutais de maio ou tenros brotos E o baile de verão tem curta duração Às vezes, por demais ardente é a luz do Sol, Muitas vezes, porém, sua áurea tez te ofusca; Toda beleza perde o seu fulgor um dia, Quando despoja a Sorte ou dos anos o curso Mas não murchará nunca o teu verão eterno, Nem perderá jamais essa beleza tua; Nem de em seu negror ver‑te a Morte há de gabar‑se, Ao cresceres no tempo em meus versos eternos: Enquanto vida houver e o olhar puder ver, Meus versos viverão e te farão viver. (BRANDÃO apud NOVAES, 2005, p.123) Saiba mais Esse soneto “18”, de Shakespeare, foi interpretado pelo cantor Bryan Ferry na faixa 6 do CD Tributo – Diana Princess of Wales. Columbia, 1997. Confira! Sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; mas não servia ao pai, servia a ela, e a ela só por prêmio pretendia. Os dias, na esperança de um só dia, passava, contentando‑se com vê‑la; porém o pai, usando de cautela, em lugar de Raquel lhe dava Lia. Vendo o triste pastor que com enganos lhe fora assi negada a sua pastora, como se a não tivera merecida, começa de servir outros sete anos, 109 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA dizendo: “Mais servira, se não fora Para tão longo amor tão curta a vida.” (CAMÕES, 2007, p. 120) 5 ELEMENTOS ESTRUTURAIS DO GÊNERO POESIA Lembremo‑nos primeiramente dos fundamentos do gênero poesia: • linguagem conotativa: imagens e metáfora; • concisão, concentração e densidade; • escolhas das palavras e suas implicações; • subjetividade; • ritmo e musicalidade das palavras e dos versos; • emocionalidade; • intensidade expressiva; • níveis (lexical e sintático). Como vimos, o discurso poético apresenta natureza e linguagens próprias, manifestas em uma construção específica para exprimir o conteúdo escolhido pelo poeta. Vejamos alguns desses elementos tão significativos para a compreensão do poema. Observe com atenção esse poema: Canção do Exílio Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; 110 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite ‑ Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. (DIAS apud CARNEIRO, 2005, p. 419). Saiba mais O maranhense Gonçalves Dias (1823‑1864) foi representante do Romantismo brasileiro e seus poemas mais conhecidos são aqueles nos quais aparecem o ideal nacionalista e a temática indianista. É reconhecido pelo esmero em suas composições poéticas e pelas belezas metafóricas de seus poemetos indianistas. Sobre sua obra, consulte: CANDIDO, A. A formação da literatura brasileira. 6 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. Esse significativo poema de Gonçalves Dias oferece‑nos a expressão de um eu lírico saudosista que, diante da distância de sua pátria, reconhece e identifica‑se com os valores dela, potencializados por meio de características naturais inigualáveis. Inspirado pela tendência romântica de exaltação nacionalista, Gonçalves Dias escolheu desenvolver essa temática utilizando‑se da estrutura poética. Para tanto, valeu‑se dos mecanismos estruturais tradicionais do gênero poesia que organizam as ideias em frases ou linhas segmentadas com unidade rítmica, os versos, reunidas em blocos que são as estrofes, combinando esquematicamente os sons finais dos versos, as rimas, de modo a fornecer uma musicalidade ao poema. Os versos seriam essas frases que não respeitam a margem completa da página e organizam‑se uma seguida da outra e assim sucessivamente até o final do poema: Minha terra tem palmeiras, (1º verso) Onde canta o sabiá; (2º verso) 111 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA As aves, que aqui gorjeiam, (3º verso) Não gorjeiam como lá. (4º verso) Dicas A contagem dos versos pode ser feita de duas maneiras: • contam‑se os versos sucessivamente até o último verso do poema; Exemplo: Minha terra tem palmeiras, (1º verso) Onde canta o sabiá; (2º verso) As aves, que aqui gorjeiam, (3º verso) Não gorjeiam como lá. (4º verso) Nosso céu tem mais estrelas, (5º verso) Nossas várzeas têm mais flores, (6º verso) Nossos bosques têm mais vida, (7º verso) Nossa vida mais amores. (8º verso) [...] • contam‑se os versos limitados em cada estrofe (nesse caso, o estudioso deve sempre se referir aos versos, dizendo, por exemplo, o 2º verso da 1ª estrofe; o 4º verso da 2ª estrofe etc.). Exemplo: Minha terra tem palmeiras, (1º verso) Onde canta o sabiá; (2º verso) As aves, que aqui gorjeiam, (3º verso) Não gorjeiam como lá. (4º verso) Nosso céu tem mais estrelas, (1º verso) Nossas várzeas têm mais flores, (2º verso) Nossos bosques têm mais vida, (3º verso) Nossa vida mais amores. (4º verso) [...] Os versos desse poema organizam‑se em unidades estróficas, as chamadas estrofes. A delimitação da quantidade de versos que formarão as estrofes dependerá da inspiração do poeta, do estilo de época ou das regras de cada espécie literária (ode, soneto, canção etc.). Em Canção do Exílio, os primeiros versos reúnem‑se em quatro e depois em seis versos cada. Respectivamente, pela contagem de versos, recebem 112 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 a nomenclatura de quartetos e sextetos ou sextilhas. No total, o poemade Gonçalves Dias possui cinco estrofes em três quartetos e dois sextetos: Quadro 4 Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. (1º verso) (2º verso) (3º verso) (4º verso) 1ª estrofe 4 versos quarteto Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. (1º verso) (2º verso) (3º verso) (4º verso) 2ª estrofe 4 versos quarteto Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o sabiá. (1º verso) (2º verso) (3º verso) (4º verso) 3ª estrofe 4 versos quarteto Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite – Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.) (1º verso) (2º verso) (3º verso) (4º verso) (5º verso) (6º verso) 4ª estrofe 6 versos sexteto Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. (1º verso) (2º verso) (3º verso) (4º verso) (5º verso) (6º verso) 5ª estrofe 6 versos sexteto Saiba mais Vale a pena saber que o poema Canção do Exílio tornou‑se referência nacional. Muitos escritores posteriores estabeleceram intertextualidade com ele na produção de seus textos literários. Não deixe de consultar o poema Canto de regresso à pátria, de Oswald de Andrade, em: MOISÉS, M. A literatura brasileira através dos textos. 25ª ed. São Paulo: Cultrix, 2005). 113 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA No conjunto, os versos e as estrofes formam um esquema rítmico interessante e agradável, que imprime ao leitor as sensações, as emoções e os sentimentos do eu lírico. Os versos aqui apresentam sete sílabas (as famosas sílabas poéticas, que aprenderemos mais adiante), recebendo o nome de redondilha maior. Nos versos, há alternância entre sílabas fortes e fracas. Os sons finais dos segundo e quarto versos de cada estrofe combinam‑se em rimas. Observe o esquema rítmico (ER) que organizamos para estudar as três primeiras estrofes do poema. O número “7” refere‑se à quantidade de sílabas poéticas e, entre parênteses, marcamos a localização das sílabas fortes que, nos versos, estão em negrito. As letras A e B indicam as rimas externas: Canção do Exílio Mi – nha – ter – ra – tem – pal – mei – ras, ER: 7 (3‑7) On – de – can ‑ta o – sa –bi – á; (A) ER: 7 (3‑7) As – a – ves,‑ que a – qui – gor – je – iam, ER: 7 (3‑7) Não – gor – je – iam – co – mo – lá. (A) ER: 7 (3‑7) Nos‑ so – céu – tem – mais – es – tre – las, ER: 7 (3‑7) Nos – sas – vár – zeas – tem – mais – flo – res, (B) ER: 7 (3‑7) Nos – sos – bos – ques – tem – mais – vi – da, ER: 7 (3‑7) Nos – sa – vi – da – mais – a –mo – res. (B) ER: 7 (3‑7) Em – cis – mar, – so – zi – nho, à – noi – te, ER: 7 (3‑7) Mais – pra – zer – en – con – tro eu – lá; (a) ER: 7 (3‑7) Mi – nha – ter – ra – tem – pal – mei – ras, ER: 7 (3‑7) On – de – can – ta o – sa – bi – á. (a) ER: 7 (3‑7) Acabamos de fazer uma análise bem rápida da forma do poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, que possui alguns moldes tradicionais do gênero poesia. Você já pode ter algumas noções introdutórias para entender, em termos gerais, algumas nomenclaturas básicas a respeito da estrutura encontrada na maioria dos poemas que conhecemos como, por exemplo, o verso, a estrofe, as sílabas fortes e fracas, o ritmo e as rimas. Contudo, os fundamentos do poema são bem mais complexos. A partir de agora, veremos essa complexidade, focalizando suas definições e especificidades. Comecemos pelas linhas dos poemas as quais chamamos de versos. 5.1 Os versos • Verso: é cada linha do poema. Constitui‑se de palavra(s), apresenta ritmo sistemático e certa musicalidade. Os versos apresentam vários tipos: — versos regulares: são aqueles que, numa estrofe, possuem identidade métrica e rítmica, ou seja, podem ser metrificados. Eles possuem a mesma quantidade de sílabas poéticas e são rimados no final. As sílabas acentuadas repetem‑se na mesma posição de cada verso, sem nenhuma alteração. Os versos regulares foram mais valorizados pelos poetas clássicos, barrocos 114 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 e parnasianos. A forma conhecida foi o soneto. Vejamos o belíssimo exemplo da lírica amorosa de Gregório de Matos: Corrente, que do peito desatada Sois por dois belos olhos despedida, E por carmim correndo despedida Deixais o ser, levais a cor mudada. Não sei, quando cais precipitada As flores, que regais, tão parecida, Se sois neves por rosa derretida, Ou se a rosa por neve desfolhada. Essa enchente gentil de prata fina, Que de rubi por conchas se dilata, Faz troca tão diversa, e peregrina, Que no objeto, que mostra, e que retrata, Mesclando a cor purpúrea, e cristalina, Não sei, quando é rubi, ou quando é prata. (MATOS apud RONCARI, 2002, p. 134). — versos soltos ou brancos: obedecem às regras da métrica, mas não apresentam rima. Um exemplo famoso é a elegia Cântico do Calvário, do poeta Fagundes Varella, escrita à morte de seu filho de três anos de idade. Composto em dez sílabas poéticas (os decassílabos), com bastante rigor e ausência de rimas, seu eu lírico revela a dor da perda de alguém essencial a sua vida. Vejamos: Cântico do Calvário À memória de meu filho morto a l l de dezembro de 1863. Eras na vida a pomba predileta Que sobre um mar de angústias conduzia O ramo da esperança. — Eras a estrela Que entre as névoas do inverno cintilava Apontando o caminho ao pegureiro. Eras a messe de um dourado estio. Eras o idílio de um amor sublime. Eras a glória, — a inspiração, — a pátria, O porvir de teu pai! — Ah! no entanto, Pomba, — varou‑te a flecha do destino! Astro, — engoliu‑te o temporal do norte! Teto, caíste! — Crença, já não vives! [...] (VARELA apud MOISÉS, 2005, p. 178). 115 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA — versos livres: não obedecem a regras de métrica, posição das sílabas fortes ou de rima; cada verso pode ser de um tamanho. Variam de acordo com a leitura, entoação e maior ou menor rapidez da enunciação. Seu ritmo é apoiado na combinação da entoação e das pausas. É um verso típico do Modernismo. Observe como exemplo o poema Irene no céu, de Manuel Bandeira, poeta modernista brasileiro: Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor. Imagino Irene entrando no céu: — Licença, meu branco! E São Pedro bonachão: — Entra, Irene, você não precisa pedir licença. (BANDEIRA, 1998, p. 57). — versos polimétricos: (poli = muito; metro = tamanho) são um conjunto de versos que apresentam tamanhos diferentes. Observação Entonação: linha melódica, escala de elevação da voz com que se pronuncia uma frase. Observe outro poema modernista, de Mário de Andrade: O poeta come amendoim [...] Brasil não porque seja a minha pátria. Pátria é acaso de migrações e do pão‑nosso onde deus der... Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso. O gosto dos meus descansos, O balanço das minhas cantigas amores e danças. Brasil que eu sou porque é minha expressão muito engraçada, Porque é o meu sentimento pachorrento Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir. (ANDRADE, M. apud BETHÂNIA, 2003, faixa 4). 116 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R evisâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Saiba mais Dica: No CD Brasileirinho, gravado pela intérprete Maria Bethânia, há a belíssima declamação do poema O poeta come amendoim, de Mário de Andrade, pela atriz Denise Storlos. Vale a pena conferir: BETHÂNIA, M. Brasileirinho. Rio de Janeiro: Biscoito Fino/Quitanda, 2003. — refrão ou estribilho: verso(s) que se repete(m) mais de uma vez no poema ou no final de cada estrofe. É muito comum a utilização de refrão ou estribilho em poemas populares. A repetição de alguns versos serve para a musicalidade, memorização e ênfase do conteúdo do poema. Um exemplo bastante conhecido é a poesia trovadoresca, com suas cantigas de amigo e amor. Vejamos a cantiga de amigo Ai flores do verde pino, de D. Dinis. Os versos em destaque representam o estribilho: Ai flores, ai flores do verde pinho se sabedes novas do meu amigo, ai Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado, ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amigo, aquele que mentiu do que pôs comigo, ai Deus, e u é? Se sabedes novas do meu amado, aquele que mentiu do que me há jurado ai Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss’amigo, e eu ben vos digo que é san’ e vivo: ai Deus, e u é? Vós me preguntades polo voss’amado, e eu ben vos digo que é viv’ e sano: ai Deus, e u é? E eu bem vos digo que é san’ e vivo e seerá vosc’ ant’ o prazo sa’ido: Ai Deus, e u é? 117 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA E eu ben vos digo que é viv’ e sano e seerá vosc’ ant’ o prazo passado: Ai Deus, e u é? (D. Dinis apud MOISÉS, 2004, p. 28‑29) Lembrete “O ritmo é formado pela sucessão, no verso, de unidades rítmicas resultantes da alternância entre sílabas acentuadas (fortes) e não acentuadas (fracas); ou entre sílabas constituídas por vogais longas e breves” (GOLDSTEIN, 2007, p. 11). 5.2 A estrofe (ou estância) Estrofe ou estância é o agrupamento e a sucessão de dois ou mais versos num poema. A quantidade de versos pode variar de um poema para outro ou em cada estrofe dum mesmo poema. As estrofes oferecem o “corpo” do poema e concentram e organizam os versos, de acordo com o esquema proposto pelo poeta. Para Massaud Moisés (1997, p. 171), entende‑se por estrofe cada uma das secções que constituem um poema, ou seja, cada agrupamento de versos, rimados ou não, com unidade de conteúdo e de ritmo. Para D’Onofrio (2000, p. 7), estrofe é o “movimento rítmico e ideológico do poema.” O poeta pode construir estrofes que possuam o mesmo número de versos, chamadas de uniformes, como Álvares de Azevedo fez no poema Se eu morresse amanhã, no qual há quatro estrofes de quatro versos (os quartetos) cada. Se eu morresse amanhã Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã; Minha mãe de saudades morreria Se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que manhã! Eu perdera chorando essas coroas Se eu morresse amanhã! Que sol! que céu azul! que doce n’alva Acorda a natureza mais louçã! 118 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Não me batera tanto amor no peito Se eu morresse amanhã! Mas essa dor da vida que devora A ânsia de glória, o dolorido afã... A dor no peito emudecera ao menos Se eu morresse amanhã! (AZEVEDO apud MOISÉS, 2005, p. 164). Se o poeta não obedecer a essa ordem, as estrofes receberão o nome de estrofes combinadas. Nesse caso, num mesmo poema, poderemos ver, por exemplo, estrofes de quartetos com tercetos (como acontece nos sonetos). Tudo dependerá da pretensão do poeta e dos padrões de poesia que o inspira. Exemplificamos essa composição com o soneto Perdoa‑me, visão dos meus amores, de Álvares de Azevedo: Perdoa‑me, visão dos meus amores Perdoa‑me, visão dos meus amores, Se a ti ergui meus olhos suspirando!... Se eu pensava num beijo desmaiando Gozar contigo uma estação de flôres! De minhas faces os mortais palores, Minha febre noturna delirando, Meus ais, meus tristes ais vão revelando Que peno e morro de amorosas dores... Morro, morro por ti! na minha aurora A dor do coração, a dor mais forte, A dor de um desengano me devora... Sem que última esperança me conforte, Eu – que outrora vivia! – eu sinto agora Morte no coração, nos olhos morte! (AZEVEDO, 1999, p. 412). As estrofes podem ser classificadas como: • simples ou isométricas: possuem o mesmo número de sílabas poéticas; • compostas ou heterométricas: o número de sílabas é aleatório; 119 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA • regulares: possuem de dois a dez versos no máximo, com a quantidade idêntica de sílabas poéticas em cada verso, e o mesmo esquema de rimas; • irregulares: sem esquema de rimas e métrica, ultrapassando dez versos. O esquema das estrofes e a organização dos versos são responsáveis pela simetria ou assimetria do poema. • simetria: quando os poemas apresentam o mesmo número de versos, métricas, rimas e estrofes uniformes ou combinadas. Exemplo: Vaidade Sonho que sou a Poetisa eleita, Aquela que diz tudo e tudo sabe, Que tem a inspiração pura e perfeita, Que reúne num verso a imensidade! Sonho que um verso meu tem claridade Para encher todo o mundo! E que deleita Mesmo aqueles que morrem de saudade! Mesmo os de alma profunda e insatisfeita! Sonho que sou Alguém cá neste mundo... Aquela de saber vasto e profundo, Aos pés de quem a Terra anda curvada! E quando mais no céu eu vou sonhando, E quando mais no alto ando voando, Acordo do meu sonho... E não sou nada!... (ESPANCA, 2007, p. 33). • assimetria: quando há a ausência de regularidade na estrutura do poema. Exemplo: Cidadezinha qualquer Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. 120 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus (ANDRADE apud VILLAÇA, 2006, p. 40). O poema tem como característica marcante a oralidade, é feito para ser lido, recitado ou cantado. Ainda que o leiamos silenciosamente, podemos perceber seu lado sonoro (musical) pelo modo de pronunciar as palavras, captando, assim, seu ritmo. Consulte, no quadro em seguida, as nomenclaturas das estrofes de acordo com o número de versos: Quadro 5 – Classificação das estrofes quanto ao número de versos Nº de versos Nomenclaturas dois dístico, parelha ou pareado três trístico ou terceto quatro tetrástico, quadra ou quarteto cinco pentástico, quinteto ou quintilha seis hexástico, sextilha ou sexteto sete heptástico, sétima, septilha, septena ou hepteto oito octástico ou oitava nove nona, eneagésima ou novena dez decástico, década ou décima mais de dez irregular 5.3 A metrificação Metrificação é a medida do verso, a quantidade de sílabas poéticas. O poeta escolhe as palavras que vai empregar e se vai respeitar ou não as regras métricas. Veja o que constata Olavo Bilac, o exímio poeta brasileiro que utilizou com rigor e zelo dos fundamentos do poema para construção de suas obras parnasianas: Para o gramático, todos os sons distintos, em que se divide uma palavra, são outras tantas sílabas, sejam estes sons uma simples vogal, um ditongo, ou uma vogal seguida de uma ou mais consoantes, que batam justas, querlhe fiquem antes, quer depois [...] O metrificador, diferentemente, apenas conta por sílabas aqueles sons que lhe ferem o ouvido, assinalando a sua existência indispensável. Quanto aos sons vulgares, da linguagem e audição comum, estes lhe passam completamente despercebidos, porque não formam sílabas, e são como se não existissem. Para o gramático, a palavra representa sempre o que é precisamente: nada lhe importa o 121 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA ouvido. O metrificador não se preocupa senão com o ouvido e com o modo como a palavra lhe soa. (BILAC, 1921, p. 37‑38). Escandir ou metrificar o verso é destacar suas sílabas métricas. Escansão é a contagem do número de sílabas poéticas, o que se estuda na versificação. Segundo Norma Goldstein, escandir (escansão) significa separar o verso em sílabas poéticas. Note que nem sempre significa que as sílabas poéticas correspondem às sílabas gramaticais. O leitor‑ouvinte pode juntar (ou separar) sílabas, quando houver encontro de vogais, de acordo com a melodia do verso. “O ouvido de cada um vai indicar como proceder” (GOLDSTEIN, 1999, p. 14). Para escandir o verso, você deve observar se: 1. as sílabas são fortes e fracas; 2. a contagem da sílaba poética ocorre até a última sílaba forte; 3. as sílabas são separadas a partir de sua entonação, ocorrendo, muitas vezes, a supressão de sons (elisão) ou a acomodação de vários sons a uma única sílaba métrica (sinalefa); 4. Utiliza‑se a sigla ER para marcar o esquema rítmico (métrico) de cada verso; 5. Há vários segmentos rítmicos (sem regras); Geralmente, as sílabas poéticas coincidem com as sílabas gramaticais. Porém, elas são diferentes em alguns aspectos, considerando‑se o artefato da sonoridade e expressão na realização do verso. Elas representam muito mais a situação de oralidade ou fala. Lembrete Lembre‑se: uma das maneiras mais adequadas para realizar a escansão dos versos e saber se estão metrificados corretamente é contá‑los em voz alta, procurando ouvir como se realizam na fala. Observe os versos a seguir21. Vamos fazer a divisão gramatical. Para tanto, seguiremos à risca a divisão dos hiatos, ditongos e tritongos e todas as regras de separação de sílabas que aprendemos na escola. Estamos fazendo apenas separação silábica, portanto, os números indicam a posição e a quantidade de sílabas: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 Je/sus/ ex/pi/ra/ o/ hu/mil/de/ e/ gran/de/ o/brei/ro 21 Exemplo extraído do livro Tratado de Versificação, de Olavo Bilac, 1910. 122 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 So/bem/ já/ pe/la/ cruz/ a/ci/ma/ es/ca/das 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 E/ nos/ cra/vos/ va/ra/dos/ no/ ma/dei/ro 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 Os/ ma/lhos/ ba/tem/ cru/zam/‑se/ as/ pan/ca/das Esses mesmos versos devem ser metrificados, ou seja, devemos contar as sílabas poéticas, levando em conta a sonoridade das palavras conjuntamente. Faremos a escansão dos versos: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Je/sus/ ex/pi/ra o hu/mil/de e/ gran/de o/brei/RO 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 So/bem/ já/ pe/la/ cruz/ a/ci/ma es/ca/das 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 E/ nos/ cra/vos/ va/ra/dos/ no/ ma/dei/ro 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Os/ ma/lhos/ ba/tem/ cru/zam/‑se as/ pan/ca/das 6 ALGUMAS REGRAS PARA ENTENDER OS VERSOS Essas regras também foram resumidas do livro Tratado de Versificação, de Olavo Bilac (1910): • união das vogais — quando uma vogal é colocada antes de outra, e as duas se amalgamam: ex.: ditongos: aumenta = au/men/ta; Hiato: frio = fri/o – frio// — quando a vogal final funde‑se com a vogal inicial da palavra seguinte: ex.: bondade infinita = bon/da/d’in/fi/ni/ta — vogal muito forte evita a aglutinação silábica: ex.: vá eu, que ficaria vaeu; ou, só uma – souma 123 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA • pronúncia das vogais — a = cara (uma sílaba) e cará (duas sílabas); — e = abertíssima em sé; aberta em mercê; surda na última sílaba em bondade; som de i na conjunção e: tu e eu = tu i eu; — o = abertíssima em nó; aberta na segunda e surda na última: pescoço; — u = não se modifica e é quase imperceptível: requinte; Lembrete Lembre‑se: a vogal mais fraca, menos acentuada, elide‑se na vogal seguinte. Ex.: bondad’infinita. • alteração das sílabas — aférese: supressão da sílaba no começo. Ex: até = té. — síncope: supressão no meio. Ex: maior = mór. — apócope: supressão no final. Ex: mármore = mármor. — prótese: acréscimo no início. Ex: metade = ametade. — epêntese: acréscimo no meio. Ex: afeto = afeito. — paragoge: acréscimo no fim. Ex: tenaz = tenace. • acentos e pausas poéticas — ocorrem com o som da sílaba em m ou n; Ex: tam/pa = ‑//U22 (1 sílaba); es/pe/ran/ça = UU//‑U (3 sílabas); — é necessário demora na pronunciação; — a pausa acontece predominantemente nas vogais abertas. Ex: a/mo = ‑//U; a/ma/do = U‑//U; a/ma/dor = U//U‑; 22 U significa as sílabas breves e “ – “, as sílabas pausadas. 124 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 • sílabas fortes — aguda = última sílaba (sol, visão, capataz, abacaxi etc.); — grave = penúltima sílaba (pato, cadeira, bofetada etc.); — esdrúxula = antepenúltima (tímido, pernóstico, catedrático etc.). Observação O poder do significado das consoantes num poema B e P = queda (bumba); tiro (pum); pancada e queda (tim‑bum); D e T = quedas repentinas, pancadas secas, tiros, tropeços, estalidos (bradar, bater, matraca, dar); C e S = serpente (silva); vento (assopra); F e V (mais áspero) = fortaleza, resistência, valentia; G, C, K e Q = exprimem coisas difíceis ou resistentes – angústia, tigre, calo etc; M e N = palavras com prolongamento: tocam o coração – amor, mamãe, sofrimento etc; R = duro e trêmulo – arranco, torrente, mumúrio; L = brando – mole, embalar etc. Leia o poema Eu, de Florbela Espanca. Faça a leitura em voz alta e atente‑se à sonoridade das palavras. Lembre‑se também de colocar em prática todo o conteúdo apreendido até o momento: Eu Eu sou a que no mundo anda perdida, Eu sou a que na vida não tem norte, Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada... a dolorida... Sombra de névoa ténue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!... 125 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Sou aquela que passa e ninguém vê... Sou a que chamam triste sem o ser... Sou a que chora sem saber porquê... Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver, E que nunca na vida me encontrou! (ESPANCA apud MOISÉS, 2004, p. 481). Vamos metrificar a primeira estrofe: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Eu / sou / a / que / no / MUN/ do an/ da / per / DI / (da) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Eu / sou / a / que / na / VI /da / não / tem / NOR / (te) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Sou / a / ir/ mã / do / SO / nho, e / des / ta / SOR / (te) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Sou / a / cru / ci / fi / CA / da a / do / lo / RI / (da...) Observação Podemos encontrar versos que variam de uma a 12 sílabas poéticas e que têm esquemas rítmicos específicos. Os versos mais conhecidos são os de cinco sílabas (redondilha menor) e os de sete sílabas (redondilha maior), os decassílabos (dez sílabas) e os alexandrinos (12 sílabas). Estude mais sobre isso em Versos, sons, ritmos, de Goldstein (2007). Esta estrofe apresenta versos decassílabos (de dez sílabas poéticas cada um); na escansão, conta‑se somente até a última sílaba tônica do verso: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Eu / sou / a / que / no / MUN/ do an/ da / per / DI / (da) As sílabas poéticas nem sempre coincidem com as sílabas gramaticais. Ao metrificar o verso, sempre que ocorrer um encontro vocálico entre o final de uma palavra e o início de outra, o poeta tem a liberdade (licença poética) de unir ou separar as vogais. Por exemplo, no primeiro verso da estrofe anterior, temos tanto a separação delas quanto a junção: Eu / sou / a / que / no / MUN/ do an/ da / per / DI / (da) 126 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Quando ocorre a união de vogais idênticas, temos uma crase, como no quarto verso da primeira estrofe: cru / ci / fi / ca / da a /do/ lo/ ri/ (da). Se as vogais forem diferentes, ocorre uma elisão, o que aconteceu na sétima sílaba do verso anterior: /do an /. As sílabas fortes dos versos dessa estrofe (e das demais) são a sexta e a décima. A alternância entre as sílabas fortes e fracas, aliada às rimas e a outras repetições sonoras, sugere o ritmo do poema. 6.1 Classificação dos versos De acordo com a expressão das sílabas poéticas, podemos escandir e classificar os versos em: • uma sílaba (ou monossílabos) Exemplo: Serenata sintética 1 ‑ Rua (Ru / a) Torta (Tor / ta) Lua morta Tua Porta (RICARDO, 1955, p. 174). • duas sílabas (ou dissílabos) Exemplo: A valsa [...] 1 2 ‑ Na valsa (Na / val / sa) Cansaste (Can / sas / te;) Ficaste Prostrada, 127 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Turbada! Pensavas, Cismavas, E estavas Tão pálida [...] (ABREU, C., 2009, p. 65). • três sílabas (ou trissílabo) Exemplo: Trem de ferro [...] 1 2 3 ‑ Foge, bicho (Fo / ge /, bi / Cho) Foge, povo (Fo / ge /, po / vo) Passa ponte Passa poste Passa pasto Passa boi [...] Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente... (BANDEIRA, 1998, p. 67‑68). • quatro sílabas (tretassílabo) Exemplo: A casa 1 2 3 4 ‑ Era uma casa (E / ra u / ma / ca / as) Muito engraçada (Mui / to en / gra / ça /da) 128 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Não tinha teto Não tinha nada Ninguém podia Entrar nela não Porque na casa Não tinha chão Ninguém podia Dormir na rede Porque na casa Não tinha parede Ninguém podia Fazer pipi Porque penico Não tinha ali Mas era feita Com muito esmero Na Rua dos Bobos Número Zero (MORAES apud MAIA, 2002, p. 17). • cinco sílabas (pentassílabo ou rendodilha menor) Exemplo: Tempo celeste Relógios certeiros: (Re / ló / gios/ cer / tei / ros) a noiva já desce, (a / noi / va/ já/ des/ ce) e está pronta e morta. Por sombra de flores Os carros deslizam, as portas afastam‑se. O mundo recende, cercado de lua vacilante rosa. [...] Dorme o pensamento Riram‑se? Choraram? Ninguém mais recorda [...] (MEIRELES, 2001, p. 664). 129 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA • seis sílabas (hexassílabo) Exemplo: Inesperadamente 1 2 3 4 5 6 Inesperadamente, (I / nes / per / ra / da / men / te) a noite se ilumina: (a / noi / te / se i / lu / mi / na) que há uma outra claridade para o que se imagina. Que sobre‑humana face vem dos caules da ausência abrir na noite o sonho da sua própria essência? Que saudade se lembra e, sem querer, murmura seus vestígios antigos de secreta ventura? Que lábio se descerra e – a tão terna distância! ‑ conversa amor e morte com palavras de infância? O tempo se dissolve: nada mais é preciso, desde que te aproximas, porta do Paraíso! Há noite? Há vida? Há vozes? Que espanto nos consome, de repente, mirando‑nos? (Alma, como é teu nome?) (MEIRELES, 2001, p. 1068) 130 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 • sete sílabas (heptassílabo ou redondilha maior) Exemplo: Cantiga Partindo‑se 1 2 3 4 5 6 7 ‑ Senhora, partem tão tristes (Se / nho / ra / par / tem / tão / tris / tes) 1 2 3 4 5 6 7 meus olhos por nós, meu bem (meus / o / lhos / por / nós / meu / bem) que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém tão tristes, tão saudosos tão doentes da partida tão cansados, tão chorosos da morte mais desejosos cem mil vezes que da vida Partem tão tristes os tristes tão fora de esperar bem que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém (CASTEL’BRANCO E VITORINO, 2011). • oito sílabas (octossílabo) Exemplo: A melhor do planeta 1 2 3 4 5 6 7 8 Tu pensas que tu é que és (Tu / pen / sas / que / tu / é/ que / és) 1 2 3 4 5 6 7 8 A melhor mulher do planeta, (A / me / lhor / mu / lher / do / pla / ne / ta) Mas eu é que não vou fazer Tudo o que te der na veneta. Tu foste marcar dois por quatro Batendo teus pés lá no chão do teatro Não entendo a opereta Fizeste a careta Pior do planeta. 131 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Tu foste dançar par constante Num baile de um clube da liga barbante Tu abafaste a orquetra Dizendo: “Sou mestra... Pior pro Palestra!” (NOEL apud CHEDIAK, 1991, p. 24). • nove sílabas (eneassílabo) Exemplo: Canto do Piaga [...] 1 2 3 4 5 6 7 8 9 (Não / sa / beis / o / que o / mons / tro / pro / cu / ra) Não sabeis o que o monstro procura? Não sabeis a que vem, o que quer? Vem matar vossos bravos guerreiros, Vem roubar‑vos a filha, a mulher [...] (DIAS apud RONCARI, 1995, p. 378). • dez sílabas (decassílabo) Exemplo: Vaidade 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 (So / nho / que / so/ u a / Poe / ti / sa / e / lei / ta,) Sonho que sou a Poetisa eleita, Aquela que diz tudo e tudo sabe, Que tem a inspiração pura e perfeita, Que reúne num verso a imensidade! Sonho que um verso meu tem claridade Para encher todo o mundo! E que deleita Mesmo aqueles que morrem de saudade! Mesmo os de alma profunda e insatisfeita! 132 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Sonho quesou Alguém cá neste mundo... Aquela de saber vasto e profundo, Aos pés de quem a Terra anda curvada! E quando mais no céu eu vou sonhando, E quando mais no alto ando voando, Acordo do meu sonho... E não sou nada!... (ESPANCA, 2007, p. 33). • 11 sílabas (endecassílabo) Exemplo: I‑Juca Pirama No meio das tabas de amenos verdores, Cercadas de troncos – cobertos de flores, Alteiam‑se os tetos d’altiva nação; São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, Temíveis na guerra, que em densas coortes Assombram das matas a imensa extensão (DIAS apud PATRIOTA, 2006, p. 94). • 12 sílabas (alexandrino) Exemplo: Amor Nas largas mutações perpétuas do universo O amor é sempre o vinho enérgico, irritante... Um lago de luar nervoso e palpitante... Um sol dentro de tudo altivamente imerso. (CRUZ E SOUZA, 1982, p. 46). A classificação dos versos obedece então às seguintes nomenclaturas: 133 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Quadro 6 – Classificação dos versos Sílabas poéticas Classificação do verso uma monossílabos duas dissílabos três trissílabos quatro tetrassílabos cinco pentassílabos ou redondilha menor seis hexassílabos sete heptassílabos ou redondilha maior oito octossílabos nove eneassílabos ou jâmbicos dez decassílabos = heróico (acentos na sexta e décima) ou sáficos (acentos na quarta, oitava e décima) 11 hendecassílabos ou datílicos 12 dodecassílabos ou alexandrinos mais de 12 bárbaros 6.2 Em busca de conceitos: ritmo e rima Norma Goldstein (1999) afirma que o ritmo é comum à atividade humana. Encontramos ritmo na respiração, na gesticulação e durante o trabalho, a prática esportiva, o descanso etc. Assim como na vida, a condição de existência do poema é a musicalidade, ou seja, seu ritmo. É, em outros termos, sua própria identidade. O poeta consegue transmitir adequadamente as sensações e as emoções do eu lírico por meio da expressão das palavras. O ritmo acontece na escolha do léxico, na valorização de sílabas fortes e fracas e, principalmente, na colocação das rimas. O ritmo pode decorrer da métrica, ou seja, do tipo de verso escolhido pelo poeta. Ele pode resultar ainda de uma série de efeitos sonoros ou jogo de repetições. O poema reúne o conjunto de recursos que o poeta escolhe e organiza dentro de seu texto. Cada combinação de recursos resulta em novo efeito. Por isso, cada poema cria um novo ritmo (GOLDSTEIN, 1999, p. 2). Observe o poema Hora Morta, de Fernando Pessoa: Hora Morta Lenta e lenta a hora Por mim dentro soa (Alma que se ignora!) Lenta e lenta e lenta, Lenata e sonolenta 134 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 A lua se escoa... Tudo tão inútil! Tão como que doente Tão divinamente Fútil – ah, tão fútil Sonho que se sente De si próprio ausente... Naufrágio ante o ocaso... Hora de piedade... Tudo é névoa e acaso Hora oca e perdida, Cinza de vivida (Que Poente me invade?) Porque lenta ante olha Lenta em seu som, Que sinto ignorar? Por que é que me gela Meu próprio pensar Em sonhar amar? (PESSOA, 1986, p. 45). Saiba mais Em Trabalhando com poesia, a escritora Alda Beraldo traz algumas assertivas bastante interessantes sobre os fundamentos rítmicos do poema27. Consulte essa referência: BERALDO, A. Trabalhando com poesia. v. 2. São Paulo: Ática, 1998. 23 O título Hora Morta já prepara o leitor para o conteúdo de expressão do poema. Os vocábulos apresentam sílabas concentradas nas vogais o, bastante fechadas, que traduzem o sentido carregado e pessimista do que seja algo abstrato e morto. Lendo o título, tanto os sentidos das palavras quanto sua sonoridade impedem que o leitor espere algo animador, alegre e otimista. Os primeiros versos ressaltam a qualidade do objeto temático do poema, a hora, carregado de lentidão. A palavra lenta é reiterada várias vezes, demarcando todo o ritmo do poema – 23 As palavras, em qualquer situação, podem despertar nossas lembranças e sensações. No processo de criação de poemas, muitas vezes uma palavra contamina a outra, seja pelo som, seja pelo significado. [....] Os poemas se constroem com versos e estrofes. Eles podem ter presente uma palavra muitas vezes repetida. Podem se construir com muitas ou poucas rimas. Algumas palavras podem aparecer revelando muitas significações. [....] Um som isolado pode significar pouco para nossa emoção. Mas, juntos, sons parecidos podem construir uma intensa sensação. [...] O poeta muitas vezes elege uma ou mais consoantes e as repete, pelo poema. Essa repetição produz um efeito sonoro que reforça a expressividade da mensagem (BERALDO, 1998, p. 25‑57). 135 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA iniciado pelo título24 – e, por conseguinte, a sensação de lentidão do tempo revelado e sentido pelo eu lírico. Podemos dizer que, se não houvesse essa preocupação rítmica com as palavras, ao entrar em contato com o poema, as sensações do leitor seriam mais difíceis de serem atingidas. Então, preocupado com a essência poética, como um verdadeiro poeta que foi, Fernando Pessoa produziu uma composição lírica comprometida não apenas com o trabalho da temática – pois, assim, não seria literatura –, mas também com as várias possibilidades estruturais de construção do poema, o que inclui a valorização do ritmo. Nas canções, também ocorre dessa maneira, e os compositores, da mesma forma, preocupam‑se com outras técnicas. De todo modo, observemos a relação entre ritmo e significado poético. Estude em seguida a composição Debaixo d’água, de Arnaldo Antunes, e perceba essa relação. Debaixo d’agua Debaixo d’água tudo era mais bonito mais azul mais colorido só faltava respirar Mas tinha que respirar Debaixo d’água se formando como um feto sereno confortável amado completo sem chão sem teto sem contato com o ar Mas tinha que respirar Todo dia Todo dia, todo dia Todo dia Debaixo d’água por encanto sem sorriso e sem pranto sem lamento e sem saber o quanto esse momento poderia durar Mas tinha que respirar 24 Conforme D’ Onófrio (2006, p. 7): “A função do título é semelhante à da etiqueta: serve para chamar a atenção do público, fazendo do texto uma mercadoria” 136 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Debaixo d’água ficaria para sempre ficaria contente longe de toda gente para sempre no fundo do mar Mas tinha que respirar Todo dia Todo dia, todo dia Todo dia Debaixo d’água protegido salvo fora de perigo aliviado sem perdão e sem pecado sem fome sem frio sem medo sem vontade de voltar Mas tinha que respirar Debaixo d’água tudo era mais bonito mais azul mais colorido só faltava respirar Mas tinha que respirar Todo dia Todo dia, todo dia Todo dia (ANTUNES, 2001). Saiba mais Se puder, ouça a interpretação dessa música pela cantora Maria Bethânia, no CD: BETHÂNIA, M. Mar de Sophia. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2006. A interpretação pelo próprio compositor pode ser conferida no CD: ANTUNES, A. Paradeiro. Sony e BMG, 2001. 137 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA A canção apresenta uma percepção em relação ao sentido da vida e à necessidade de enfrentá‑la com os pés no chão. A excelente metáfora“debaixo d’água” associa‑se à esfera de fantasia que podemos criar e cultivar, cheia de belezas, maravilhas e realizações, mas que não podemos sustentar na realidade de maneira integral. A mensagem passada sugere que, assim como estar “debaixo d’água” e “voltar em busca de ar” ou “respiração”, podemos viver a fantasia, voltando sempre à realidade. Lendo essa canção, mesmo sem acompanhamentos musicais, temos a sensação do sufoco sentido pelo eu lírico, a partir do ritmo arranjado na estrutura extensa das frases. Cumpre ainda falarmos sobre o enjambement ou encadeamento de estrofes, que consiste na ruptura da unidade sintática dos versos, oferecendo um ritmo para a leitura poética; é a continuidade da estrutura sintática de um verso para o outro. Em Já se afastou de nós o inverno agreste, de Bocage, o segundo verso possui uma estrutura fragmentada (“as aves de mil cores”) que prevalece em seguida no terceiro verso (“adejam entre Zéfiros), dando seu sentido: Já se afastou de nós o Inverno agreste Envolto nos seus úmidos vapores; A fértil Primavera, a mãe das flores O prado ameno de boninas veste: Varrendo os ares o subtil nordeste Os torna azuis: as aves de mil cores Adejam entre Zéfiros, e Amores, E torna o fresco Tejo a cor celeste: [...] (BOCAGE, 1994). Saiba mais Consulte esse e outros poemas do autor em: BOCAGE, M. M. B. Soneto e outros poemas. São Paulo: FTD, 1994. 6.2.1 O ritmo poético O ritmo é próprio da atividade humana, ou seja, da respiração, da gesticulação, do trabalho, do esporte etc. Pelo seu caráter musical, ele é uma das essências poéticas. Originalmente, as poesias eram cantadas acompanhadas pelo instrumento lyra. No gênero poesia, o ritmo pode resultar da métrica, (do tipo de verso utilizado pelo poeta, que pode construí‑lo de algumas maneiras, a partir do estrato gráfico e fônico (a escolha do título; a estrutura dos versos e a disposição das estrofes; a escolha lexical e das sílabas fortes e fracas; a construção das rimas). Os diferentes arranjos escolhidos por ele determinam assim os efeitos sonoros e conferem a cada poema seu próprio ritmo. A ocorrência das rimas, que são construídas de diversas formas na tradição literária, é bastante comum. 138 Unidade II Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 6.2.2 A rima Há vários teóricos que tentam definir a rima. Estude algumas definições no quadro em seguida: Quadro 7 – Definições de rima “Rima é o nome que se dá à repetição de sons semelhantes, ora no final de versos diferentes, ora no interior do mesmo verso, ora em posições variadas, criando um parentesco fônico entre palavras presentes em dois ou mais versos.” (GOLDSTEIN, 2007, p. 44). “A função principal da rima é criar a recorrência do som de modo marcante, estabelecendo uma sonoridade contínua e nitidamente perceptível no poema. Frequentemente a nossa sensibilidade busca no verso o apoio da homofonia final; e do sistema de homofonias de um poema extrai um tipo próprio de percepção poética, por vezes independente dos valores semânticos. É o esqueleto sonoro formado pela combinação das rimas.” (CANDIDO, 2004, 62). “Somos por isso de parecer que todos os versos devem ser rimados. As rimas chamam ideias, reclamam maior atenção para o trabalho; encantam, finalmente. Por isso julgamos que em composição alguma de versos se deve prescindir da rima. Ela é indispensável. (...) Rima é a uniformidade do som na terminação de dois ou mais versos.” (BILAC, 1905, 79‑80). “A rima, sendo cousa diferente de ritmo, deve, entretanto, considerar‑se como seu complemento. Num caso, repete‑se a acentuação, de espaço a espaço, no mesmo verso; noutro reiteram‑se sons do fim das linhas.” (SAID ALI, 1999, p. 121). Para melhor compreensão, vejamos novamente o soneto Eu, da poeta portuguesa Florbela Espanca: Quadro 8 Eu sou a que no mundo anda perdida Eu sou a que na vida não tem norte Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada... a dolorida... (rima A) (rima B) (rima B) (rima A) Sombra de névoa tênue e esvaecida, E que o destino amargo, triste e forte, Impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida! (rima A) (rima B) (rima B) (rima A) Sou aquela que passa e ninguém vê... Sou a que chamam triste sem o ser... Sou a que chora sem saber por quê... (rima C) (rima D) (rima C) Sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo p´ra me ver, E que nunca na vida me encontrou! (rima E) (rima D) (rima E) Eu sou a que no mundo anda perdida Eu sou a que na vida não tem norte Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Sou a crucificada... a dolorida (rima A) (rima B) (rima B) (rima A) (ESPANCA apud MOISÉS, 2004, p. 481) 139 Perceba que temos nele quatro estrofes: dois quartetos e dois tercetos, e as rimas externas (ABBA). Estudaremos agora as diversas classificações de rima. Lembrete A rima é a semelhança sonora no final ou no meio dos versos. Ela é um fenômeno fonético que contribui para o ritmo do verso, é a identidade de sons no meio (rima interna / coroada / eco) ou no fim do verso (rima externa). 6.2.2.1 A classificação das rimas • quanto à posição dos versos: — rimas externas são sons semelhantes no final de diferentes versos. Note, por exemplo, no poema anterior, que perdida (a) rima com dolorida (a) e norte (b) rima com sorte (b); — rimas internas ocorrem entre a palavra final de um verso e outra do interior do verso seguinte. Tome como exemplo a rima de perdida com vida no poema Tristezas, de João de Deus: Tristezas Na marcha da vida Que vai a voar Por esta descida Caminho do mar Caminho da morte Que me há‑de arrancar O grito mais forte Que eu posso exalar: O ai da partida Da pátria, do lar, Dos meus e da vida, Da terra e do ar… Já perto da onda Que me há‑de tragar, Embora se esconda No fundo do mar; 140 De noite e de dia Me alveja no ar O fumo que eu via Subir do meu lar! Que sonhos dourados Me estão a lembrar! Mas tempos passados Não podem voltar. Carreira da vida, Que vás a voar Por esta descida, Vai mais devagar; Que eu vou deste mundo Talvez… descansar, E nunca do fundo Dos mares voltar!... (DEUS apud AMORA, 1966, p. 128). • quanto à sua distribuição no final do verso, as rimas podem ser: — emparelhadas (AABB) Exemplo: Obrigado Aos que me dão lugar no bonde A e que conheço não sei donde, A aos que me dizem terno adeus, B sem que lhes saiba os nomes seus, B aos que me chamam deputado C quando nem mesmo sou jurado, C aos que, de bons, se babam: mestre! D inda se escrevo o que não preste, D [...] (ANDRADE, 1992, p. 972‑973). 141 — interpoladas e emparelhadas (ABBA) Exemplo: O sentimento dum ocidental Nas nossas ruas, ao anoitecer A (int.) Há tal soturnidade, há tal melancolia B (emp.) Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia B (emp.) Despertam‑me um desejo absurdo de sofrer A (int.) (VERDE apud GOLDSTEIN, 1999, p. 46). — cruzadas ou alternadas (ABAB) Exemplo: Dados Biográficos Mas que dizer do poeta A Numa prova escolar? B Que ele é meio pateta A E não sabe rimar? B Que veio de Itabira C Terra longe e ferrosa? D E que seu verso vira C De vez em quando prosa? D (ANDRADE apud GOLDSTEIN, 1999, p. 46). — mistas ou misturadas Exemplo: Vento Perdido Vem que vem o vento, A Vem que sopra num momento; A Vou montado num jumento, A Cavalgar o arco‑íris. B (BANDEIRA apud BERALDO, 1998, p. 56). 142 — perdida ou órfã Esse caso configura o verso branco, ou seja, sem a presença de termos com som semelhante ao de outro verso. Exemplo: Chuva no brejo Olha como a chuva cai A E molha a folha aqui na telha B Faz um som assim C Um barulhinho bom D (MORAES MOREIRA apud MONTE, 1996, cd. 2, faixa 3). • quanto à coincidência de letras e de sons, a rima pode ser: — perfeita, soante ou consoante: apresenta identidade ou semelhança em todos os fonemas, de consoantese vogais, a partir da vogal tônica: perdida/dolorida; ser / ver. Exemplo: A Leviana Tu és vária e melindrosa, Qual formosa Borboleta num jardim, Que as flores todas afaga, E divaga Em devaneio sem fim (DIAS, 1857, p. 21). — imperfeita, toante, assoante ou vocálica: apresenta semelhança na vogal tônica, sem que, necessariamente, as outras vogais ou consoantes coincidam: traçado / vassalas; encontro / noutras. Exemplo: Círculo vicioso Bailando no ar, gemia inquieto vaga‑lume: — “Quem me dera que fosse aquela loura estrela, Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!” Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: [...] (ASSIS, 2004, p. 151). 143 • quanto à categoria gramatical, a rima pode ser: — pobre: é a rima mais simples e comum; é quando rimam palavras da mesma classe gramatical: norte (substantivo) / sorte (substantivo); Exemplo: Canção do Boêmio Que noite fria! Na deserta rua. (subst.) Tremem de medo os lampiões sombrios (adj.) Densa garoa faz fumar a lua (subst.) Ladram de tédio vinte cães vadios (adj.) (ALVES, 2011, p. 1). — rica: rima melhor elaborada e mais difícil; ocorre quando rimam palavras de classes gramaticais distintas: morte (substantivo)/forte (adjetivo). Exemplo: À instabilidade das cousas do mundo Nasce o Sol e não dura mais que um dia (subst.) Depois da luz se segue a noite escura (adj.) Em tristes sombras morre a formosura (subst.) Em contínuas tristezas, a alegria (subst.) (MATOS apud MOISÉS, 2005, p. 44). • quanto à extensão dos sons (critério fônico): — pobre: quando a rima ocorre em apenas um fonema: vê/quê; — rica: quando a rima coincide a partir da consoante anterior à vogal tônica: perdida/ incompreendida; — rara: quando rimam palavras quase sem rima: cisne/tisne; — preciosa: é a que o poeta cria, inventa: tranquilo/redimi‑lo. Você poderá consultar, no quadro em seguida, todas as nomenclaturas das rimas descritas: 144 Quadro 9 Classificação quanto à Nomenclatura posição dos versos • rimas internas; • rimas externas. distribuição no final do verso • cruzadas ou alternadas – ABABAB; • emparelhadas – AA BB CC; • interpoladas – A............... A; • mista ou misturadas – ABAC.... • órfãs: ABCDEF.... coincidência de letras e de sons • perfeita, soante ou consoante; • imperfeita, toante, assoante ou vocálica. categoria gramatical • pobre (mesma categoria gramatical); • rica (categoria gramatical diferente). extensão dos sons (critério fônico) • rima pobre; • rima rica; • rima rara; • rima preciosa. 6.3 As principais figuras de linguagem Além das rimas, existem também algumas figuras de linguagem que contribuem para a musicalidade do verso. São estas: • aliteração: repetição de consoantes ou sílabas numa frase ou verso. Como exemplo, no poema Eu, de Florbela Espanca, ou no José, de Carlos Drummond de Andrade, encontramos a repetição do fonema /s/: Eu Eu sou a que no mundo anda perdida, eu sou a que na vida não tem norte, sou a irmã do sonho, e desta sorte sou a crucificada... a dolorida... Sombra de névoa tênue e esvaecida, e que o destino amargo, triste e forte, impele brutalmente para a morte! Alma de luto sempre incompreendida!... Sou aquela que passa e ninguém vê... Sou a que chamam triste sem o ser... Sou a que chora sem saber por quê... Sou talvez a visão que alguém sonhou. 145 Alguém que veio ao mundo pra me ver e que nunca na vida me encontrou. (ESPANCA apud MOISÉS, 2004, p. 481) José Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José! [...] (ANDRADE apud GOLDSTEIN, 1999, p. 10). • anáfora: a repetição da mesma palavra sempre no início, no meio ou no final do verso. Por exemplo, nos dois primeiros versos do soneto de Florbela Espanca, temos a anáfora do pronome eu, e nos dois últimos, do verbo sou. A repetição do som reitera a repetição do sentido, no caso, e reforça o desejo de autodefinição do eu lírico. Outro exemplo é o poema Vento Perdido, de Pedro Bandeira. A repetição da palavra vem perfaz toda a unidade do poema. Observe ainda que há também a ocorrência da aliteração na repetição da consoante inicial v. Vento perdido Vem que vem o vento, Vem que sopra num momento; Vou montado num jumento, Cavalgar o arco‑íris. Vem que vem cantar, Vem que vem sobrar, Vem que vai voltar, Vem que vai trazer Tudo aquilo que eu tive E que o vento carregou, Quando eu estava distraído A olhar pro meu umbigo E o momento já passou. 146 Vem que o vento volta, Desenvolvendo o meu sonho; Pesadelo tão medonho Que eu não quero nem lembrar Vem que vai ventar, Vem que vai voltar, Vento vai ventar, Apagando num momento Todo o arrependimento De um vento tão ventado, De um momento tão demais, De um vento tão perdido Que não vai ventar jamais (BANDEIRA apud BERALDO, 1998, p. 56). • onomatopeia: a repetição do som da letra lembra o som do objeto. No poema abaixo, as palavras “bem‑bem‑bem”, “bão‑bão‑bão” representam a sonoridade dos sinos. Os sinos Sinos de Belém, Sinos de Paixão... Sinos de Belém, Sinos de Paixão... Sinos de Bonfim!... Sinos do Bonfim... * Sinos de Belém, pelos que inda vêm! Sinos de Belém bate bem‑bem‑bem Sinos de Paixão, pelos que lá vão! Sinos de Paixão bate bão‑bão‑bão. Sinos de Bonfim, por quem chora assim [...] (BANDEIRA, 1998, p. 46). 147 Exercícios Questão 1. Leia o poema: Ouvir estrelas Ora (direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto, que, para ouvi‑las, muita vez desperto e abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto a via láctea, como um pálio aberto, cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido tem o que dizem, quando estão contigo?” E eu vos direi: “Amai para entendê‑las! Pois só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender estrelas”. (Olavo Bilac) Quanto ao poema anterior, podemos afirmar que: I. Trata‑se de um soneto. II. Todos os versos têm sete sílabas métricas. III. A primeira estrofe tem rimas intercaladas. A) Todas as afirmativas estão corretas. B) Somente as afirmativas I e II estão corretas. C) Somente as afirmativas I e III estão corretas. D) Somente as afirmativas II e III estão corretas. 148 E) Somente a afirmativa I está correta. Resposta correta: alternativa C. Análise das afirmativas I – Afirmação correta. Justificativa: o poema tem dois quartetos e dois tercetos, o que configura um soneto. II – Afirmação incorreta. Justificativa: todos os versos são decassílabos. III – Afirmação correta. Justificativa: as rimas da primeira estrofe são A/B/A/B, sendo, portanto, intercaladas. Questão 2. Leia a cantiga de amigo. Cantiga Ondas do mar de Vigo, se vistes meu amigo! e ai Deus, se verrá cedo! Ondas do mar levado, se vistes meu amado! e ai Deus, se verrá cedo! Se vistes meu amigo, o por que eu suspiro! e ai Deus, se verrá cedo! Se vistes meu amado por que hei gram cuidado! e ai Deus, se verrá cedo! Martin Codax • Verrá – virá. • Levado – encapelado. 149 Sobre o poema, não podemos afirmar que: A) Possui 4 tercetos. B) Todos os versos têm seis sílabas. C) Tem refrão. D) Os dois primeiros versos têm rimas emparelhadas. E) Trata‑se de um soneto. Resolução desta questão na plataforma. 150 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Unidade III Atenção, aluno! Nesta unidade, abordaremos o gênero prosa e seus elementos estruturais. 7 O GÊNERO PROSA 7.1 Definições Como vimos, a Literatura é um universo marcado por uma organização peculiar, que deve ser conhecida para podermos compreender os caminhos percorridos pelo autor no processo de elaboração de sua obra, para apreciarmos melhor os encantos e segredos que o texto revela ao leitor atento.Os textos literários agrupam‑se, conforme a modalidade e os procedimentos estilísticos escolhidos para a sua concepção. A esse agrupamento dá‑se o nome de gêneros literários. Vimos as especificidades do gênero poesia. Basta, agora, entrarmos nas do gênero prosa. Lembrete Lembre‑se de que os termos tradicionais lírico, épico e dramático também se referem aos traços estilísticos presentes em uma obra, independentemente de seu gênero. Na realidade, toda obra literária conterá, além dos traços estilísticos mais adequados ao seu gênero, também traços de estilos típicos de outros gêneros, uma vez que os gêneros podem misturar‑se em um mesmo texto. É sempre importante verificar as definições. As duas primeiras são de dicionário. As demais advêm de nossos estudiosos da Literatura. Vejamos todas elas e depois tracemos as suas características mais fundamentais: 7.1.1 Dicionários Primeiramente, observe as várias definições dos dicionários da língua portuguesa para o verbete “prosa”. Utilizamo‑nos dos dois mais conhecidos no mercado: Houaiss e Aurélio. Houaiss prosa s.f. (sXIII cf. FichIVPM) 1 expressão natural da linguagem escrita ou falada, sem metrificação intencional e não sujeita a ritmos regulares – p.opos. a 151 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA verso e a poesia 2 p.ext. aquilo que é material, cotidiano, sem poesia <a p. da realidade> 3 conversa informal <tive dois dedos de p. com o compadre> 4 B N. infrm. ato de namorar 5 MÚS forma da música religiosa antiga proveniente da sequência e que consistia numa adição de palavras e música a uma melodia conhecida – adj.2g.s.2g. 6 que ou aquele que se gaba ou aparenta gabar‑se, com ou sem fundamento, de merecimentos próprios ou dotes pessoais; vaidoso, convencido, fanfarrão <esse andar de moça p.> 7 que ou aquele que é dado a falar ou a conversar demais; conversador – p. literária LIT a narrativa de ficção, dos romances, novelas e contos – p. poética obra em prosa em que, no todo ou em partes, há a invasão do eu do autor, introduzindo um ponto de vista lírico na narrativa – ter boa p. infrm. 1 ter muito palavreado, muita lábia 2 ser um interlocutor interessante e agradável – ETIM lat. prósa,ae ‘id.’; ver pros(i)‑; f.hist. sXIII prosas, sXIV posa acp. de mús, 1720 prosa ‘expressão natural da linguagem escrita ou falada’ – SIN/VAR ver sinonímia de bocagem, fanfarrice, gabola, namoro e presumido – ANT ver antonímia de presumido. Aurélio [Do lat. prosa (oratione), ‘discurso que vai em linha reta até o fim’, ao contrário do que se dá com o verso, que volta quando completo.] S. f. 1. A maneira natural de falar ou de escrever, sem forma retórica ou métrica, por oposição ao verso. 2. Fig. Aquilo que é vulgar, trivial, positivo ou material. 3. Fam. Astúcia, manha, lábia; conversa fiada: “Eu estimo vosmecês mesmo, não é prosa, estimo” (Coelho Neto, Turbilhão, p. 68.) 4. [...] 7.1.2 Alguns teóricos Para complementar, apresentamos ainda as definições do gênero prosa dos teóricos Antonio Soares Amora, Octavio Paz e Massaud Moisés. Dedique‑se à leitura crítica de cada uma, estabelecendo as devidas relações entre elas. Antonio Soares Amora A forma, elemento que conduz o conteúdo, de um para outro espírito, é também denominada linguagem ou expressão. A forma de uma obra literária pode apresentar‑se sob vários aspectos: prosa ou poesia; linguagem cotidiana ou linguagem erudita; linguagem figurada ou não figurada. A prosa: suas características A prosa é linguagem natural, espontânea, enquanto que a poesia é linguagem artificial. Quando falamos na espontaneidade da prosa, é necessário não supor que ela é um tipo primário de linguagem. Uma análise, mesmo 152 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 superficial, da prosa, revela‑lhe a complexidade formal.” (AMORA, 1969, p. 66) Octavio Paz (1982, p. 82‑83): Deste modo, o ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, mas só no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo não há poema, só com ritmo não há prosa. O ritmo é condição do poema, ao passo que é inessencial para a prosa [...] O prosador, porém, busca a coerência e a claridade conceptual. Por isso, resiste à corrente rítmica que fatalmente tende a se manifestar em imagens e não em conceitos. Massaud Moisés (1977, p. 84): A prosa, por sua vez, orienta‑se até certo ponto em sentido contrário ao da poesia. Já vimos que, por sua própria essência literária, a poesia e a prosa se aparentam numa série de aspectos. Dêstes (sic), o mais importante é aquele que caracteriza a própria Literatura: expressão dos conteúdos da ficção, da imaginação, numa palavra, o subjetivismo. Na poesia, como acabamos de ver, o sujeito, o ‘eu’, volta‑se para dentro de si, fazendo‑se ao mesmo tempo espetáculo ou espectador. A prosa, todavia, inverte completamente essa equação. Com efeito, a prosa é a expressão do ‘não‑eu’, do objeto. Por outras palavras: o sujeito que pensa e sente está agora dirigido para fora de si próprio, buscando seus núcleos de interesse na realidade exterior, que assim passa a gozar de autonomia em relação ao sujeito. A este interessam agora os outros ‘eus’ e as coisas do mundo físico como objetos alheios cuja natureza vale a pena decifrar. Está claro que a conduta do ‘eu’ diante do mundo exterior continua a ser radicalmente subjetivista, pela condição mesma de se tratar dum comportamento estético‑literário. Portanto, a base permanece subjetivista, pessoal, pois o ‘eu’ é que ‘vê’ a realidade; a visão do mundo continua egocêntrica. Como vimos, a poesia se caracteriza por ser a expressão do ‘eu’ por meio da linguagem conotativa, ou de metáforas polivalentes. Quanto à prosa, sabemos que constitui a expressão do não eu através de metáforas aproximadamente univalentes. Lembrete Lembre‑se de que o gênero prosa caracteriza‑se pela forma corrida, natural e discursiva; pela despreocupação com a linguagem, valendo‑se mais da denotação; e pela expressão do “não eu”. 153 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA 7.2 Algumas características Pelas várias definições, você pode constatar, como já dito, que as definições são variadas e complexas. No entanto, de alguma maneira, elas conservam alguns pontos próximos, os quais devem ser lidos como a matriz, a “essência” do que seja o gênero prosa. Ambos dicionários exploram a ideia de a prosa ligar‑se a aspectos da linguagem natural, ou seja, à maneira natural de falar, referindo‑se à conversa informal, ao papo coloquial e cotidiano, ao discurso corrido, “em linha reta”, e despreocupado, à narrativa em contraposição ao verso. Os teóricos ressaltam a qualidade espontânea da expressão prosaica, revelada pela forma de expressão mais cotidiana e coloquial, traduzindo os conceitos exteriores e mais objetivos do mundo. A linguagem constrói‑se denotativa e, dependendo do momento, exigirá a conotação. O ritmo, mais próprio à poesia, na prosa é menos concentrado e obedece ao fluxo da narrativa. Para Massaud Moisés (1977), a prosa: • destaca‑se pela simplicidade e objetividade dos enunciados; • apresenta uma linguagem cotidiana e/ou coloquial; • exige a denotação das palavras por ser mais discursiva; • expõe imagens mais objetivas e concretas na representação da realidade; • prefere ser mais explícita com os conceitos; • é construída em fluxo contínuo. Essas foram algumas reflexões gerais sobre as características do gênero prosa. Como dissemos anteriormente, há nele asformas literárias. Estude‑as agora. 7.3 As formas do gênero prosa Como vimos anteriormente, o gênero prosa possui apenas as formas (não possui espécies) de expressão, como, por exemplo, a carta, o romance e o teatro, e, considerando‑o numa concepção complexa, pode ele abranger muitos tipos de textos. Isso já pode já pode ser compreendido mesmo que não tenhamos ainda adentrado nas especificidades desse gênero, em se tratando da Literatura propriamente dita. Observe o quadro e perceba as formas dele: 154 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Quadro 10 – As formas do gênero prosa Gênero Forma Prosa oratória; história; crítica; ensaio; carta; crônica; teatro; romance; novela; conto; fábula; apólogo; anedota. Definimos em seguida as particularidades de cada forma de prosa, apresentando alguns exemplos, com o objetivo de torná‑las familiares antes de estudarmos as formas literárias. Seguimos a ordem sob a qual foram dispostas no quadro 4. Oratória É a arte de falar bem em público. Nascida por volta do século V a.C., com os gregos, foi utilizada em discursos políticos (Isócrates, 436 a.C.; Demóstenes, 334–322 a.C.; e Esquines, 339– 314 a.C.), mas passou a ser vista em discursos religiosos como precioso recurso para defender e propagar a fé cristã. Os mais reconhecidos criadores da literatura oratória foram Cícero (106, 43 a.C.), Quintiliano (48–118 d.C.) e Tácito (55–120 d.C.). A partir do século XVI, tivemos outros como Bossuet (1627–1704) e Antônio Vieira (1608–1697). Há vários tipos de oratória: política, sacra, acadêmica, conferências públicas etc. O Sermão da Sexagésima, de Padre Antônio Vieira, é exemplar dessa forma literária. Sermão da Sexagésima: pregado na Capela Real, no ano de 1655. Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 11. E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo‑lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe. Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão‑nos de medir a semeadura 155 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA e hão‑nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam, sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar‑lhes‑ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão‑lhes de medir a semeadura e hão‑lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar‑vos‑eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare (VIEIRA, 1965, p.1‑2). História Distingue‑se das narrativas ficcionais pelo seu caráter científico: “intui os fatos passados e depois procura, com métodos especiais e com o auxílio de certas disciplinas, aproximar, o máximo possível, essas intuições, daquilo que a razão, em face de certas provas, julga verdadeiro” (AMORA, 1969, p. 167). Tendo o caráter inicial de narrar os fatos vividos por alguns povos: • narra então fatos passados; • na perspectiva moderna, valoriza a imparcialidade, a capacidade de discernimento entre o impossível e o possível; a metodologia científica de pesquisa dos fatos e de apuração da autenticidade das fontes; e a reflexão crítica. Vejamos mais um exemplo: As patentes militares no Brasil até 1918 Para preservar a posse do Brasil, da investida dos concorrentes, era indispensável ocupar e, para ocupar, era necessário produzir. O gênero escolhido para se produzir foi o açúcar, do qual os portugueses já eram produtores tradicionais e com boa aceitação no mercado consumidor europeu. Para produzir para o exterior, para grande numero de consumidores, de forma a alcançar lucro, é necessário produzir um grande excedente o que requer força de trabalho numerosa, resultando que só a escravidão do africano poderia suprir esta necessidade. A escravidão do indígena não atendia por este não ser numeroso nem acomodado ao trabalho sedentário. A Coroa Portuguesa estabelece então que o produtor é livre na área da produção, em que a metrópole não interfere; mas esta se reserva, sob regime de monopólio, a área da circulação, em que o produtor não interfere. Não são apenas econômicos os poderes transferidos, são também políticos. O senhor de terras será, consequentemente, a autoridade pública. Investido, inclusive, do poder militar, salvo no mar, que é área de circulação e portanto monopólio da Coroa Portuguesa (SODRÉ, 1979, p. 78). 156 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Crítica literária Forma pouco praticada na Antiguidade e totalmente voltada à gramática, retórica e poética. Apenas no século XIX, começou a ser praticada, com um espírito renovador, buscando, no texto literário, outros aspectos que não apenas aqueles da gramática, retórica e poética. É uma forma de conhecimento intuitivo, o que a distancia das ciências e da filosofia: “a Crítica Literária é sempre intuição, é sempre uma forma de compreensão, de um espírito (o crítico) em face de uma realidade (a obra literária)” (AMORA, 1969, p. 169). Nesse sentido, há diversos tipos de crítica literária, mas não um método delimitado de como se proceder criticamente. Leia o trecho da crítica de Massaud Moisés a respeito da obra Senhora, de José de Alencar (1997, p. 136): O excerto que se acabou de ler, pertence a um romance de costumes, ou em que Alencar desenhou um dos “perfis de mulher” que pontilham sua obra de ficção. Conquanto não se possa afirmar que neste tipo de prosa estejam compendiados todos os outros que o escritor cearense cultivou, divisa‑se a presença da ficção histórica, a partir do fato de o romance iniciar‑se num tom de quem conta um “caso” desde o começo mais remoto: “Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela”. O tempo da narração, sendo o passado, auxilia a compor essa atmosfera de reconstituição histórica de uma psicologia sui generis de mulher e daqueles que lhe marcaram o destino. [...]”. Ensaios Criado por Montaigne (1533–1592), o ensaio é a exposição de ideias pessoais sobre algum assunto específico e significativo, sem ajuda bibliográfica e pretensões científicas de saber absoluto. Configura‑se, assim, como sendo um registro da atividade espiritual de um determinado autor. Vejamos um exemplo de ensaio escrito pelo próprio Montaigne: Da incoerência de nossas ações Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo. Mário, o Jovem, ora parece filho de Marte ora filho de Vênus. Dizem que o Papa Bonifácio VII assumiu o papado como uma raposa, conduziu‑se como um leão e morreu como um cão. E quem diria que Nero, essa verdadeira imagem da crueldade, como lhe apresentassem para ser assinada, de acordo com alei, a sentença contra um criminoso, observou: – Prouvera a Deus que eu não soubesse escrever! – tanto lhe apertava o coração condenar um homem à morte. Há tantos exemplos semelhantes, e tão facilmente os encontrará sozinho quem quiser, que estranho ver por vezes gente de bom senso procurando juntar tais contradições, mesmo porque a irresolução me parece ser o vício mais comum e evidente de nossa natureza, como o atesta este verso de Públio, o satírico: “Má opinião, a de que não se pode mais mudar.” É aparentemente 157 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA possível julgar um homem pelos fatos mais comuns de sua vida; mas, dada a instabilidade natural de nossos costumes e opiniões, pareceu‑me muitas vezes que os melhores autores erravam em se obstinar a dar de alguém uma ideia bem assentada e lógica. Adotam um princípio geral e de acordo com este ordenam e interpretam as ações, tomando o partido de as dissimular quando não as deformam para que entrem dentro do molde preconcebido. O imperador Augusto escapou‑lhes; deparamos nesse homem com uma tal flagrante diversidade de ações, tão inesperada e contínua no decurso de sua existência, que os mais ousados juízes, renunciando a julgá‑lo em seu conjunto, tiveram de deixá‑lo assim indefinido. Acredito que a constância seja a qualidade mais difícil de se encontrar no homem, e a mais fácil a inconstância. Quem os julgasse pormenorizadamente de acordo com seus atos, um por um, estaria mais apto a dizer a verdade a seu respeito (MONTAIGNE, 1987, p. 97). Teatro De criação grega, o teatro esteve sempre ligado à representação artística; apresentava‑se sob três formas distintas: tragédia (despertava no público os sentimentos mais nobres: amor à justiça, respeito aos deuses, entusiasmo pelos heróis), comédia (causava divertimento a partir de situações cômicas do cotidiano) e drama satiresco (com finalidade de cultuar o deus Baco, baseava‑se nos episódios da vida deste). Nas primeiras representações, as peças eram apresentadas em versos. Vejamos seus principais caracteres, que poderão ser conferidos, em seguida, com parte do scrapt da peça Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, de Caio Fernando Abreu: • origem: baseado na unidade de tempo (fatos que se passavam em 24 horas); na unidade de espaço (fatos passados num mesmo lugar) e na unidade de ação (só era representada a ação principal, o restante deveria ser suposto pelo público); • romantismo: mistura de gêneros, como, por exemplo, do trágico com o cômico; desrespeito às três unidades; cenário rico em ornamentação; valorização da prosa, condenando a linguagem poética do teatro antigo. Pode ser que seja só o leiteiro lá fora Personagens: • João • Leo • Baby • Mona (Carlinha Baixo Astral) • Rosinha 158 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 • Alice Cooper • Angel — São todos muito jovens. Entre 20 a 30 anos Cenário Sala de uma casa abandonada. Na verdade, parece mais um quarto de despejo, atulhado de objetos fora de uso, colchões furados, guarda‑roupas, espelhos quebrados, cadeiras rasgadas, lixo, enfim, e até mesmo objetos absurdos que ficam ao gosto do diretor. Cena I (Quando a ação começa, a cena está completamente às escuras. A luz de uma lanterna vai revelando alguns objetos. Tão lentamente que chegue a ficar monótono e angustiante, a lanterna pertence a João). Leo — (off) João, onde é que você está? João — Aqui, vem cá. Tem uma porrada de coisas. (Esbarrando num móvel). Merda! Leo — (Off, assustado) Que foi, cara? Que barulho é esse? Tem alguém aí? João — Não. Só uma porra no meio do caminho. Baby — (entrando, com um violão na mão) Tinha uma porra no meio do caminho... No meio do caminho tinha uma porra... (Para no meio do palco e faz uns gestos de cantor pop) Yeah! Everybody now! Tinha uma porra no meio do caminho... Leo — (Entrando) Fala baixo, cara. Pode ter gente aí. João — Melhor. Se tiver alguém morando a gente fica logo sabendo. (grita) Hei, tem alguém aí? Baby — Anybody here? Leo — (Baixo) Mania de falar Inglês... Baby — Língua internacional, meu santo. Quando você está no mundo, falando inglês as possibilidades de comunicações são muito maiores. João — Cala a boca, Baby! (ABREU, 2009, p.61) 159 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA A crônica Etimologicamente, a crônica deriva da palavra grega cronos, que significa tempo. Trata‑se do registro de um acontecimento num curto período de tempo e espaço. Em épocas passadas designava fatos de caráter histórico. Há também a crônica científica, policial, social, esportiva etc. produzida geralmente por profissionais que possuem um saber e metodologia específicos ao tema tratado. Saiba mais Para complementar sua leitura, consulte a obra A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações, organizada pelo setor de filologia da Fundação Casa de Rui Barbosa: CANDIDO, A. [et. al.]. A Crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora da Unicamp e Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. Nela, há vários artigos interessantes, incluindo o famoso texto introdutório de Antonio Candido A vida ao rés‑do‑chão. Forma em prosa feita para ser exclusivamente veiculada na imprensa, num espaço específico e com certa rotina de publicação, apresenta a característica de abordar o cotidiano com uma linguagem breve e crítica; geralmente, não faz uso da linguagem poética, mas não a descarta totalmente. O essencial da crônica é trabalhar o fato corriqueiro e encontrar certa beleza e/ou comicidade nele. A crônica literária é uma narrativa breve, na qual, em geral, o autor apresenta sua visão sobre um flagrante do cotidiano, transfigurado por sua subjetividade e fantasia. Elaborada em grande parte por poetas ou ficcionistas, torna‑se muitas vezes prosa poética, como é o caso dos textos de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira etc. Há também grandes prosadores que se dedicam a esse gênero narrativo, desde Machado de Assis a Fernando Sabino, Rubem Braga, Clarice Lispector entre outros. Crônica da Quinzena – O Velho A câmara temporária tem‑se ocupado da seguinte tarefa: Ouve os ministros lerem algumas linhas, umas dez ou doze linhas dos seus relatórios. Os deputados elegem por dia quatro comissões: cada comissão consta de três nomes: cada nome escreve‑se em uma linha: três vezes quatro doze – doze linhas. À uma, ou às duas horas, faz‑se a chamada, não há casa, e fecha‑se a sessão. 160 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Ordem do dia: linhas. Veja a pátria com que linhas a estão cosendo. E depois digam que sou velho rabugento e ralhador. No meu tempo os deputados não procediam assim. Mas também no meu tempo os deputados eram de casaca, e hoje são de paletós. Esta moda de paletó tem seu quê. Um amigo meu, velho e ralhador como eu, estudou com o maior cuidado a moda dos paletós parlamentares, e depois de muito parafusar chegou a concluir que os deputados tinham adotado a moda dos paletós, e proscrito a das casacas para não darem a conhecer muito visivelmente quais deles viravam as casacas. Se meu velho amigo errou ou acertou, não sei. Apelo para a consciência dos augustos e digníssimos. (MACEDO, 1862, p. 250‑256) Fábula Escrita em gênero poético e também narrativo,a fábula tem como característica concentrar‑se no tema da vida dos animais, com a finalidade de trazer uma lição de moral aos leitores. O lobo e o cordeiro, de Esopo (VI a.C) é um exemplo. O Pescador e o Peixe O pobre pescador tivera um mau dia: fora para alto‑mar em seu barquinho ainda de madrugada. E passara o dia jogando as redes na água e recolhendo‑as. Mas em nenhum momento pegara um único peixe. — Imagino se haverá algum peixe no mar – resmungou ele. Parece que não. Estava prestes a desistir e voltar tristemente para o porto quando lançou as redes pela última vez. Alguma coisa se debatia no fundo de uma delas. Com o coração disparado, o pescador se apressou a ver o que conseguira. Para seu desgosto, percebeu que capturara uma pequena espadilha, o menor peixe que existe. Essa espadilha era tão diminuta que cabia com facilidade na palma da mão do pescador. — Deixe‑me ir, por favor – pediu o peixinho. Você pode ver com seus próprios olhos que, tal como estou, pouco lhe sirvo. Mas se me devolver à água, tornar‑me‑ei um belo peixe grande. E você poderá fisgar‑me outra vez dentro de um ano, quando servirei para uma refeição. 161 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA — Nem pense nisso – disse o pescador. Se o deixo partir, você vai desaparecer! Moral: Mas vale um peixe na mão do que dois no mar. (ESOPO, 2002, P.82) Apólogo Parecido com a fábula, o apólogo tem como assunto a vida dos objetos inanimados, com fins morais. Exemplificamos aqui um fragmento de Um apólogo, de autoria de Machado de Assis: Um apólogo ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha: — Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo? — Deixe‑me, senhora. — Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. — Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe‑se com a sua vida e deixe a dos outros. — Mas você é orgulhosa. — Decerto que sou. — Mas por quê? — É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? — Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados... — Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando... 162 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 — Também os batedores vão adiante do imperador. — Você é imperador? — Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto [...] (ASSIS, 2004, p. 554‑556) Anedota Caracteriza‑se pelo tratamento da particularidade da vida de algum personagem histórico, consistindo também numa história curta com tom humorístico. Exemplo: Anedota Búlgara Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade. (ANDRADE, 1985 p.195) 4.4 As formas da prosa de ficção Até aqui, de modo geral, tratamos da prosa e de suas diversas formas. Em se tratando da Literatura, deve‑se considerar a prosa relacionada ao ato narrativo ficcional, ou seja, às características da prosa para construir o mundo ficcional dentro dos parâmetros literários, em outras palavras, a “prosa de ficção”. Desde a idade mais remota da humanidade, contar e ouvir histórias são atividades das mais antigas do homem; nossos ancestrais, sentados à beira do fogo assim transmitiam oralmente costumes, crenças e valores do grupo, ou gravavam nas paredes de pedras das cavernas feitos e fatos acontecidos. Assim temos os mitos (histórias das origens dos povos), os relatos bíblicos (histórias do povo cristão) etc. Modernamente, o cinema, as novelas, os noticiários televisivos e o vídeo clip podem ser citados como exemplos de narrativas. Lembrete Na Antiguidade, as narrativas eram transmitidas oralmente. 163 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Na tradição literária, o ato de narrar vincula‑se à força de vida e morte. Lembra‑nos a princesa Sherazade de As mil e uma noites. Para não ser morta ao amanhecer, a jovem contava histórias ao sultão, todas as noites, interrompendo‑as no momento do suspense para despertar‑lhe a curiosidade e ter a própria vida poupada. Figura 25 – Ilustração de duas páginas manuscritas árabes do livro As mil e uma noites, do século 14 da Síria. Atualmente, encontra‑se na Biblioteca Nacional em Paris A prosa faz parte da vida da humanidade; contar e ouvir história agrada às pessoas de todos os níveis socioculturais. Inventar, narrar, ouvir, ler ou assistir a histórias associam‑se à natureza lúdica do homem, na medida em que despertam o prazer. A prosa utiliza linguagem narrativa, verbal (oral e escrita) e não‑verbal, isoladas ou simultaneamente. Narra‑se por gestos (cinema, teatro), imagens (televisão, pintura) e palavras. O meio de expressão da prosa é a palavra oral ou escrita que se manifesta de variadas formas. Saiba mais Marcel Marceau é o mais famoso representante da arte sem palavras, a mímica. Conheça um pouco mais sobre ele no endereço: <http://oglobo. globo.com/cultura/mat/2007/09/23/297847198.asp>. 164 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Formas de Narratividade André Jolles apud D’Onófrio (1995), em seu livro Formas simples (1985), propõe dois tipos de formas de narratividade: • formas simples: são criações coletivas de autoria desconhecida que representam os anseios e temores de um povo: o mito, a lenda, o conto popular, a saga, a advinha, o causo, a anedota, o provérbio etc. • formas cultas: são criações individuais de arte: poesia épica; novela; romance; conto erudito; crônica. Entretanto, não há uma distinção rigorosa quanto ao emprego das formas em si: usa‑se o termo mito, saga, lenda, conto popular para designar uma mesma história ficcional. O mesmo se dá com as formas cultas. A obra Dom Quixote, por exemplo, é chamada ora de romance, ora de novela de cavalaria. Figura 26 – Capa da revista Don Quixote (1885), desenhada por Angelo Agostini (1843 –1910). Saiba mais Para saber mais sobre as formas narrativas, consulte: D’ONÓFRIO, S. Formas de narratividade, in: Teoria do texto: prolegômenos e teoria narrativa, São Paulo: Ática, 1995. 165 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA 7.5 As principais formas da prosa de ficção Nesse estudo, abordamos algumas das principais formas de prosa de ficção: o romance, a novela e o conto. Observe o quadro a seguir. Em seguida são apresentadas as definições de cada um deles. Quadro 11 – Prosa de ficção Gênero Forma Prosa de ficção romance; novela; conto. 7.5.1 O romance Forma narrativa mais importante e complexa dos tempos modernos, equivalente à antigaepopeia, o romance tem origem do termo romanice loqui (falar românico), o falar em um dos dialetos populares da língua romana, por oposição ao romanice loqui, a língua culta da Idade Média. Nesses dialetos populares europeus eram narradas histórias de amor e aventuras cavaleirescas. Desse modo, “a palavra romance passou a indicar uma longa narrativa sentimental” (D’ONÓFRIO, 1995, p. 116). Entre os gregos e romanos, ocorria algo semelhante: ao lado dos gêneros clássicos (tragédia, comédia, lírica, épica etc.) o povo analfabeto cultivava outras formas literárias. Em prosa, destacam‑se: a narrativa idealizante, histórias de amor e aventuras nas quais há o desejo da vitória do amor, da verdade, da justiça etc. e a narrativa satirizante, que retrata com bastante realismo cenas do cotidiano das várias camadas sociais. Veja uma das definições sobre o romance de um teórico brasileiro do século XIX: Lição XII: Romance ‘Forma o romance a transição entre a poesia e a prosa: conservando da primeira a faculdade inventiva, e os floreios da imaginação, e da segunda a naturalidade da frase. A atenção que importa prestarmos às composições em verso impede que seja duradoura, ao passo que a linguagem prosaica, menos fatigante, é também mais compreensível ao grande número de leitores. Lançaram em todas as épocas mão deste meio de instruir deleitando os mais abalizados autores; a Grécia nos oferece o exemplo do grande Xenofone escrevendo a sua Ciropédia, e apresentando‑nos a literatura latina em Quinto Cúrcio um distinto romancista histórico. Geralmente se sabe o gosto que na Idade Média havia pelas ficções em prosa, e do grande emprego que delas fizeram os trovadores na língua vulgar, ou romance, derivou‑se o nome por que são mais conhecidas (PINHEIRO, 1978, p.109). O romance (do latim romanice) nasceu na Idade Média, ligado à poesia épica, com a característica de narrar façanhas excitantes da Cavalaria e de donzelas em perigo (todos figuras nobres ou heroicas). Don Quixote de La Mancha, de Cervantes, pertencente ao século XVI, é um exemplo: possui a estrutura episódica, com aventuras umas atrás da outras, sobressaindo a temática amorosa em detrimento das 166 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 façanhas históricas. Outra peculiaridade desse tipo de ficção em prosa é a valorização dos eventos lendários e folclóricos, sendo assim abundante o elemento maravilhoso. Reconhecido como gênero literário somente no século XVIII, uma vez que a cultura oficial do classicismo só valorizava os textos em forma clássica, versificados, ficou conhecido popularmente como novela de cavalaria. O romance é considerado como a “literatura feita pelo, para e com o povo, especialmente a nova classe ascendente, a burguesia” (MOISÉS, 1970, p. 150). Entra no lugar da epopeia, por “constituir‑se no espelho dum povo, a imagem fiel duma sociedade.” (ibidem, p. 150). Torna‑se porta‑voz das ambições, desejos, veleidades, e, ao mesmo tempo e, sobretudo, ópio sedativo ou fuga da materialidade diária, entretenimento e passatempo da classe burguesa. Oferecendo uma imagem otimista dos relacionamentos burgueses e construindo também a imagem do que pretendiam ser, configura‑se também por uma crítica sutil e implícita do sistema. Representativo dos anseios do mundo burguês, ao contrário da epopeia, que exaltava os deuses ou pessoas ilustres, o romance volta‑se para o indivíduo, o homem comum que não precisa ter uma grande missão a desempenhar, como nos poemas épicos ou epopeias. É então o grande gênero literário, desde o século XIX, com o surgimento do Romantismo, quase sempre publicado em folhetins, seja apresentando crítica de costumes ou temática histórica. Quanto à temática, classifica‑se em vários tipos: romance sentimental, autobiográfico, de aventuras, picaresco, gótico (terror), romântico, realista, naturalista, de realismo crítico, de experimentalismo formal etc. Observação O romance picaresco vem do espanhol e trata das aventuras de um pícaro, personagem de baixo nascimento, que sobrevive de pequenos roubos até infrações mais sérias; é uma narrativa da desordem, da malandragem e do anti‑heróico. Primeiras características O romance dá uma visão global do mundo, recriando e/ou reconstruindo‑o, a partir de uma visão particular, única e original. Oferece a liberdade do emprego recursos de ficção vários: andamento pausado da narração; monólogo interior etc. Por uma visão macroscópica do universo, o escritor consegue captar o máximo por sua intuição. As outras áreas de conhecimento, como a filosofia, a história e a sociologia, são auxiliares nesse modo de recriação. O drama das personagens pode atingir um caráter universal, cujas técnicas de composição permitem explorar as inquietudes espirituais ou situações históricas universais. Esse gênero apresenta um compromisso (engajamento) com o leitor, mas conjuntamente pensando no seu entretenimento, divertimento, “no sentido de algo que nos distraia, nos tire a atenção de certos objetos, e nos dê, por isso mesmo também, alegria e bem‑estar” (ibidem, p. 157). O entretenimento pode estar na busca pelo “depois” da história, instigada no leitor etc. Por outro lado, o bom leitor não busca apenas isso: quanto mais culto, mais exige a outra faceta do romance 167 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA – os ensinamentos de formação do homem. O romance fica entre os extremos: entretenimento e formação. Características específicas Dentro da tradição literária, o romance distinguiu‑se pela sua singularidade no desenvolvimento estrutural das categorias narrativas, como, por exemplo, a ação, o espaço, o tempo e a personagem de ficção. Sinteticamente, pode‑se visualizá‑lo da seguinte maneira: • ação: o autor escolhe um drama central (uma história) que será narrado e problematizado ao longo do romance. Para desenvolvê‑lo, vale‑se de elementos narrativos como as personagens, espaço e tempo que nos dão a ideia de célula dramática. Paralelamente, outros dramas, ditos menos importantes, locados em células dramáticas, são narrados, mas correlacionados ao drama central. Nesse sentido, a ação é construída por meio: — da pluralidade dramática: células dramáticas; — da simultaneidade dramática: “os núcleos dramáticos interligam‑se apertadamente, ao mesmo tempo e, às vezes, num único lugar. Os conflitos decorrem simultaneamente, como na vida real acontece para todos... Mesmo que, num caso ou noutro, os dramas envolvam outras pessoas, estas devem estar diretamente vinculadas às figuras principais da narrativa.” (MOISÉS, 1970, p. 159). • espaço: a ação só é possível considerando que as personagens vivem os dramas centrais e os periféricos, locados em espaços, exteriores e/ou interiores, propícios à sua dinâmica narrativa. Pela pluralidade de células dramáticas, considere que o romance exige a pluralidade geográfica, a total liberdade de construção, dando vivacidade e dinamismo: ação. O espaço geralmente envolve: — pontos geográficos: exterior e interior; citadinos ou rurais. • tempo: é responsável pela construção do passado, presente e futuro das personagens e também pelo delineamento físico e psicológico destas, desde o seu nascimento até a sua morte. Geralmente, o romancista desenvolve os seguintes modos temporais: — tempo cronológico: percebido pelos dados exteriores: as mudanças da natureza, como por exemplo a passagem do dia para noite, as estações do ano, o clima, o movimento do Sol etc. Considera‑se que ele é linear, objetivo, matemático e visível, envolve datas, fatos, etc. que ajudam na percepção do correr da história: passado, presente e futuro; —tempo psicológico: é subjetivo e variável, com ritmo específico: incessante, múltiplo ou descontínuo; a noção de passado e presente desaparece. Nele, muitas vezes, quebram‑se as barreiras temporais, de modo a ter‑se a sensação de um presente contínuo, presente‑presente, (apreendido como dado imediato) e presente‑passado (associações da memória). Sendo subjetivo, volta‑se aos dados interiores, assim se conhece a história pela experiência narrada. 168 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 • personagem: considera‑se que, no romance, as personagens são em número variado, dependendo dos objetivos propostos pelo romancista. Essas personagens oferecem ação ao drama e geralmente aparecem como representação do ser humano, sendo mais concretas e objetivas. Podem ser classificadas como: — planas ou tipos: destituídas de profundidade; são estáticas (inalteráveis), sempre iguais; pertencem geralmente ao romance de ordem cronológica; — redondas: o contrário das planas ou tipos, têm profundidade e revelam uma série de características; são dinâmicas, causam surpresa ao leitor; possuem caráter; pertencem ao romance de ordem psicológica. Saiba mais A ficção que vale um doutorado Prestigiados pelo mercado editorial, romances apresentados como teses em bancas de pós‑graduação colocam em debate o gênero tradicional de escrita acadêmica [...] Confira a matéria completa em MURANO, Edgar. A ficção que vale um doutorado. Revista Língua. Disponível em: <http://revistalingua.uol.com. br/textos.asp?codigo=11627>. 7.5.2 A novela O termo novela origina‑se da palavra italiana novella, que significa notícia nova, novidade. A origem do termo relaciona‑se às canções medievais, poesias épicas que passam a ser prosificadas e tornam‑se novelas de cavalaria. Os críticos divergem quanto à conceituação da novela. Alguns a consideram um gênero intermediário entre o romance e o conto, entretanto, outros admitem a sua constituição de características peculiares. Nela ação é polivalente, ou seja, o enredo não está centrado em uma única história e “constitui‑se de uma série de unidades ou células dramáticas encadeadas e portadoras de começo, meio e fim. De onde semelhar uma fieira de contos enlaçados” (MOISÉS, 1974, p. 363). As células não têm sentido isoladas do conjunto do qual fazem parte e não podem ser retiradas dele ou comprometeriam a continuidade do mesmo. As células dramáticas sucedem‑se umas às outras, mas não se esgotam: o autor deixa pontos que podem gerar novos episódios, formando uma macroestrutura sempre aberta. Diferença entre novela e romance O romance tem estrutura fechada: a história e os demais personagens giram em torno da personagem principal e tem começo, meio e fim bem delineados; na novela a estrutura é aberta, 169 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA sempre se pode encaixar novo episódio, nova personagem, novo espaço etc. Por outro lado, o romance relaciona‑se mais com o real; a novela está voltada para a fantasia, não se preocupando com a questão da verossimilhança. Em relação ao romance, a novela apresenta menor número de personagens, conflitos e espaços, e a ação é mais veloz no tempo, devido à sucessão de aventuras. Há predominância da ação, sem deter‑se em análises psicológicas ou conflitos dos personagens. As novelas classificam‑se em: de cavalaria, sentimental e bucólica (Idade Média), picaresca (Renascença). Na época do romantismo, a novela confundia‑se com o romance, pois os romances em folhetim25 apresentavam características da novela, pela extensão da narrativa: longos capítulos publicados em jornais semanais como aconteciam com grande parte das obras de José de Alencar. Assim sendo, segundo D’Onofrio (1995), podemos classificar como romance a narrativa de larga extensão e estrutura fechada; e novela, a história fantástica, literatura de ficção produzida em série, capítulos ou fragmentos. 7.5.3 O conto “Conto é tudo aquilo que o autor diz que é conto.” (ANDRADE apud BEDÊ, 2007, p. 136) A brincadeira de Mário de Andrade talvez faça sentido em se tratando de um modernista radical e impaciente, contrário a determinado tipo de tradição literária. Contudo, foi aplicada a este texto, cumprindo o objetivo de levar você a refletir sobre a problemática de definir formas literárias como o conto, até mesmo por quem usou e abusou delas, como é o caso do modernista Mário de Andrade. Mesmo assim, difícil ou não, algumas formas literárias possuem um sistema próprio de caracterização, principalmente as mais tradicionais que foram cultivadas ao longo da história do homem. Passemos, então, a uma delas. Uma História O conto possui origem desconhecida, mas é a matriz das formas literárias. Suas primeiras aparições aconteceram: na Bíblia, com os conflitos de Caim e Abel, Salomé, Rute, a Ressurreição de Lázaro etc. na Odisseia, de Homero, com suas aventuras intercaladas; em Metamorfoses, de Ovídio. Do Oriente, são as versões mais próximas do verdadeiro conto: Mil e Uma Noites, Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, Simbad etc. A Idade Média (séculos XII–XIV), marcada pelas novelas de cavalarias, é a primeira fase de bons contistas, como o escritor Boccaccio. Nos séculos XVI–XVII, o conto passa a ser mais cultivado, principalmente na Itália por Matteo Bandello; Francesco Doni etc.; e na França por Perrault, La Fontaine etc. 25 Folhetim (espanhol folletín, diminutivo de folleto, folheto; francês feuillteon; feuille, folha). Surge no final do século XVIII, como um artigo de crítica literária publicado no rodapé de jornal. A partir de 1840, inicia‑se o romance ou novela em folhetim, longas narrativas de assunto sentimental, em capítulos intermináveis, procedimento que populariza a arte. Cf. Moisés (1974). 170 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 No século XIX, tem‑se a ascensão e o esplendor do conto, que se torna produto estritamente literário, com características próprias. É o reinado do romance e do conto. Temos Balzac, Flaubert (Trois contes/ Três contos), Maupassant, Stendhal, Edgar Allan Poe, Hoffmann, Machado de Assis, Eça de Queirós, Alexandre Herculano, Pedro Rabelo, Aluísio Azevedo etc. O século XX alcança sua grandiosidade como forma literária, com várias produções: Virgínia Woolf, Katherine Mansfield, Kafka, James Joyce, Hemingway, Monteiro Lobato, Osman Lins, Dalton Trevisan etc. Conceito e estrutura De forma narrativa curta, de menor extensão que o romance ou a novela, o conto pode abranger qualquer temática, seja de caráter fantástico, seja psicológico. Ele apresenta dois tipos principais: o conto popular e o erudito (ou literário). A diferença entre ambos é que o conto literário tem um autor historicamente conhecido e refere‑se a um episódio da vida real, verossímil embora de ficção, pois não pretende oferecer uma visão idealizadora da realidade, mas deseja contestar os valores sociais. Como estudiosos das letras, é sempre necessário buscar conhecer a definições etimológicas dos termos que estudamos na Teoria Literária. Tenha os significados de conto, a partir do Dicionário Eletrônico Houaiss (2002): 1) contagem, conta, cômputo; quantidade; 2) ant. crédito e/ou débito; conta; despesa; 3) ant. pequeno disco de metal us. para fazer contas; 4) ant. mil vezes mil <um c. de homens> <um c. de réis>; 5) ETIM lat. computus,i ‘cálculo, cômputo’, der. do v. computáre ‘calcular, contar, computar’, de mesma orig. que 1conto com o sentido de ‘cômputo máximo, a contagemmaior’; us. em conto de reais = conto de réis, isto é, 1.000.000 réis = mil mil réis’; 6) Rubrica: literatura: narrativa breve e concisa, contendo um só conflito, uma única ação (com espaço ger. limitado a um ambiente), unidade de tempo, e número restrito de personagens; 7) relato intencionalmente falso e enganoso; mentira, embuste, treta; 171 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Observação Note a ligação de conto também com o verbo do latim computare (contar), no sentido de enumerar e relatar os fatos dentro de uma narrativa. Vejamos ainda como a palavra é referenciada em outras línguas: • inglês: short‑story (narrativa literária) e tale (contos populares e folclóricos); • alemão: novelle e erzählung (short‑story) e märchen (tale); • italiano: novelle e racconto; • francês: conte; • espanhol: cuento. O conto possui os mesmos componentes do romance, mas de forma reduzida: o número de personagens, o conflito, o tempo e o espaço são limitados. Eliminam‑se as análises minuciosas e complicações no enredo, delimitando‑se fortemente o tempo e o espaço. Enquanto o romance pode abarcar toda a existência, o conto erudito equivale a um flagrante ou episódio instantâneo da vida de um personagem. Pode ser considerado a matriz da novela e do romance. Os elementos estruturais, ação, drama, conflito são unívocos e/ou univalentes. O conflito constrói‑se a partir de uma única célula narrativa e direção. Há uma síntese dramática: passado e futuro não importam. Não há transformação de conto para novela ou romance. Por exemplo, o conto Civilização, de Eça de Queirós, que se converteu no romance A Cidade e as Serras, não perdeu suas origens de conto. O espaço é reduzido. O “lugar geográfico, por onde as personagens circulam, é sempre de âmbito restrito. No geral, uma rua, uma casa, e, mesmo, um quarto de dormir ou uma sala de estar basta para que o enredo se organize [...]” (MOISES, p. 101). O conto possui também a unidade e o curto lapso de tempo (sem interesse pelo passado e futuro). Nele, há numa certa unidade de ideia (tom; impressão); os acessórios são desprezados. Há remissão temporal, sem grande significação: O conto, portanto, abstrai tudo quanto, no tempo, encerre importância menor, para se preocupar apenas com o centro nevrálgico da questão [...]. O conto caracteriza‑se por ser “objetivo”, atual: vai diretamente ao ponto, sem deter‑se em pormenores secundários. Essa objetividade, observável ainda noutros aspectos examinados, salta aos olhos com as três unidades: de ação, lugar e tempo (MOISÉS, p. 101). 172 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Conhecido então pela sua estrutura objetiva e direta, segundo Moisés, o conto caracteriza‑se como uma narrativa condensada, sem pormenores relativos ao passado, remoto ou próximo. Apenas são colocados dados que interessam ao desenvolvimento da ação. A descrição mostra o que é necessário e importante, sem pormenores. Observação Minicontos ou microcontos são narrativas muito curtas, contos muito pequenos, um tipo de produção que tem sido associada ao minimalismo26 e que ganhou destaque nas últimas décadas. Não figura, na teoria literária, entre os gêneros literários, mas, à parte, contudo têm sido muito produzidos, ganhando com isso repercussão entre os gêneros da narrativa. A ideia de redução do conto aplica‑se à colocação de poucas personagens. Algumas participam apenas como pano de fundo. Em geral, as personagens apresentam‑se de maneira estática: apenas uma faceta de seu caráter (não crescem e/ou evoluem) pode ser apreendida. Quanto à linguagem, valoriza‑se o diálogo. Muitas vezes, os conflitos residem na fala das personagens, utilizando assim do diálogo direto (discurso direto). A trama remete‑se à valorização do drama principal, sem prolongamento da narração de outros fatos. Geralmente, há a escolha de um foco para cada narrativa. Leia abaixo um fragmento do prólogo Por que doze, por que contos e por que peregrinos, de Gabriel Garcia Marquez, do livro de contos Doze contos peregrinos (1993). Nele, temos a voz de um contista revelando a arte do conto de maneira bastante esclarecedora. Veja: [...] Foi no México, ao meu regresso de Barcelona, em 1974, que ficou claro para mim que aquele livro não deveria ser um romance, como pensei no começo, e sim uma coleção de contos curtos, baseados em fatos jornalísticos mais redimidos de sua condição mortal pelas astúcias da poesia. Até então, havia escrito três livros de contos. No entanto, nenhum dos três fora concebido e resolvido como um todo; cada conto era uma peça autônoma e ocasional. Portanto, a escrita dos 64 podia ser uma aventura fascinante se conseguisse escrever todos com o mesmo traço, e com uma unidade interna de tom e de estilo que os fizesse inseparáveis na memória do leitor. Escrevi os dois primeiros – “O Rastro do Teu Sangue na Neve” e “O Verão Feliz da Senhora Forbes” – em 1976, e publiquei‑os em seguida em suplementos literários de vários países. Não me dei nem um dia de repouso, mas na metade do terceiro conto, que era aliás o dos meus funerais, senti que estava me cansando mais do que se fosse um romance. A mesma 26 Minimalismo: movimento das artes que representa o ápice das tendências reducionistas na arte moderna. Surgiu em Nova York no fim da década de 1960 e caracteriza‑se pela extrema simplicidade de formas, pelo resgate do essencial, do básico e pela busca do máximo através do mínimo. 173 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA coisa me aconteceu com o quarto. Tanto que não tive fôlego para terminá‑los. Agora sei por quê: o esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance. Pois no primeiro parágrafo de um romance é preciso definir tudo: estrutura, tom, estilo, longitude, e às vezes até o caráter de um personagem. O resto é o prazer de escrever, o mais íntimo e solitário que se possa imaginar, e se a gente não fica corrigindo o livro pelo resto da vida é porque o mesmo rigor de ferro que faz falta para começá‑lo se impõe na hora de terminá‑lo. O conto, por sua vez, não tem princípio nem fim: anda e desanda. E se desanda, a experiência própria e a alheia ensinam que na maioria das vezes é mais saudável começá‑lo de novo por outro caminho, ou jogá‑lo no lixo. Alguém que não lembro disse isso muito bem com uma frase de consolação: “Um bom escritor é mais apreciado pelo que rasga do que pelo que publica” A verdade é que não rasguei os rascunhos e as anotações, mas fiz algo pior: joguei‑os no esquecimento [...] (MARQUEZ, 1993, p. 11 – 12, grifos nossos). Para compreender ainda mais a ideia de unidade que perfaz toda a categoria dessa forma de prosa de ficção, o conto, fornecemos abaixo um esquema baseado em Moisés (1970): Dissertação (ausente) Unidade Dramática Unidade de Espaço Unidade de Tempo Personagens (reduzidos) Diálogo (dominante) Descrição (que se anula) Narração (que se anula) Conto Figura 27 – Esquema: a estrutura do conto Espero que, até agora, você tenha conseguido entender o funcionamento da Literatura, considerando dois aspectos fundamentais: a estrutura e o conteúdo ficcional do texto literário. Os dois andam juntos sempre. Qualquer ser humano é capaz de criação ficcional, mas são poucos aqueles que sabem o modo de criá‑la e transmiti‑la numa estrutura adequada, por meio do trabalho estético e do uso dos vários recursos da linguagem, que permitam ao seu interlocutor vivenciá‑la e,a partir dela, humanizar‑se. Essa estrutura configura o corpo pelo qual se materializam as essências conceituais que cada literato recriou e reinterpretou sobre a vida e a humanidade. Depois das reflexões a respeito das concepções da Literatura e da constituição dos gêneros literários, poesia e prosa, podemos aprofundarmo‑nos na estrutura desses dois gêneros para aprimorarmos o processo de análise e interpretação das obras literárias. Nesta unidade, abordaremos os elementos estruturais principais da poesia e da prosa, percebendo suas especificidades, que correlacionam expressão e conteúdo. Aproveite! 174 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 8 ELEMENTOS ESTRUTURAIS DA PROSA DE FICÇÃO Em prosa de ficção, devemos considerar os aspectos relacionados à narração, cuja etimologia advém do latim narratione, significando o ato de narrar, tornar conhecido. A narração, então, “consiste no relato de acontecimentos ou fatos e envolve, pois, a ação, o movimento e o transcorrer do tempo” (MOISÉS, 1974, p. 355). Assim, por narração, entende‑se uma “sucessão de fatos, imagens ou acontecimentos que, numa sequência ordenada, se configura num texto literário; é o modo como a narrativa se organiza.” (PROENÇA FILHO, 2007, p. 56). Já a narrativa “se caracteriza por fazer‑se de histórias fictícias ou simuladas, nascidas da imaginação” (idem, p. 50) e “caracteriza uma sequência, simples ou complexa, de conflitos ou tensões que se resolvem ou não” (ibidem, p. 56). Toda narrativa apresenta uma história imaginada como sendo real, com personagens movimentando‑se dentro de um tempo e espaço. Portanto, segundo D’Onófrio (1995), ela contém elementos constitutivos específicos e obedece a certas regras que garantem o caráter narrativo. Vejamos quais são. 8.1 Tema, assunto e mensagem Tema trata daquilo de que se fala, que garante a unidade dos elementos na obra. Pode haver um único tema para a obra toda ou temas diferentes para cada parte. Ele deve capturar a atenção do leitor e pode ser universal, como o amor, a morte, a justiça etc., interesses que permanecem os mesmos para toda a humanidade ou, ainda, o tema pode ser decidido pelo escritor de acordo com a categoria de leitor que deseja atingir. No século XVIII, por exemplo, por meio do folhetim, eram veiculados temas sentimentais, bem ao gosto do público da época: as mulheres burguesas. O tema é identificado por um substantivo (ou expressão substantiva) abstrato. Assunto é a concretização do tema, ou seja, como a ideia central é desenvolvida na narrativa por fatos narrados; corresponde a um substantivo concreto (ou expressão substantiva). Mensagem é um pensamento ou uma conclusão que se tira após a leitura da história, que nem sempre é a moral da história, pois nem todas as histórias apresentam valores morais aceitos socialmente. Vidas Secas, de Graciliano Ramos, conta a história de uma família de retirantes que tenta sobreviver em uma terra castigada pela miséria e a seca que, no final, parte em busca de uma vida melhor na cidade grande. Nessa obra, podemos identificar como: • tema: a miséria e o sofrimento provocados pela seca; • assunto: a luta diária da família para sobreviver naquela região; • mensagem: apesar do sofrimento, o ser humano não perde a esperança. Saiba mais Para incrementar seu estudo acerca da narrativa, propomos a leitura de GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1991. 175 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Assim, o tema é a ideia comum em torno da qual se desenvolve a história, ou seja, “que constrói o sentido pela união dos elementos mínimos da obra, os motivos” (SOARES, 2007, p. 42). Motivo Conforme sua própria etimologia (do latim movere, mover), o termo motivo significa o impulso para realizar uma ação; no caso da narrativa, é o que a faz prosseguir. Motivos são partículas mínimas das unidades temáticas que não podem mais se decompor. Note neste exemplo que o enredo vai se constituindo a partir da sequência das frases: A noite caiu. O herói encontrou uma arma. O herói se suicidou. Saiba mais No estudo comparativo da produção literária, lendas e contos de diferentes povos apresentam traços e situações comuns (o rapto da noiva, animais ou seres sobrenaturais que ajudam o herói, o reconhecimento do herói por um anel etc.). Chama‑se motivo a unidade temática, a situação típica que se repete, portanto, cheia de significado humano. Saiba mais em: KAYSER, W. Análise e interpretação da obra literária. Coimbra: Armênio Amado, 1976, p. 57. 8.2 A fábula e a trama Como vimos, “o tema apresenta certa unidade e é constituído de pequenos elementos básicos dispostos em uma certa ordem” (TOMACHEVSKI, 1978, p. 173). Há dois modos sob os quais se conforma: • de acordo com a causalidade, ordem natural e cronológica dos fatos, independentemente do modo como estão dispostos na obra: é a fábula; • apresenta‑se sem obedecer à causalidade ou à sucessão temporal: é a trama. A fábula é, então, a história, o argumento, o que aconteceu. A trama é o enredo (contém a fábula), é como o leitor toma conhecimento do acontecido. Observemos como isso ocorre no conto Machado de Assis, Cantiga de esponsais: Saiba mais Não deixe de ler ou reler Cantiga de esponsais. Você pode ter acesso a esse conto em: <http://www.releituras.com/machadodeassis_cantigas. asp.>. Acesso em: 15 jul. 2011. 176 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Quadro 12 Fábula Trama • casamento; • festa da igreja do carmo; • inspiração; • apresentação da personagem; • tentativa de compor; • jantar com os parentes; • fracasso; • apresentação do Preto José; • morte da esposa; ‘ • descrição da casa • doença; • causa da tristeza de Mestre Romão • nova tentativa; • casamento; • novo fracasso; • inspiração; • vitória de outro personagem; • tentativa de compor/fracasso • morte (desfecho). • morte da esposa; • doença; • nova tentativa / novo fracasso; • vitória da outra personagem; • morte (desfecho). Tema: inspiração x frustração Assunto: a incapacidade de um maestro em expressar sua inspiração numa composição. A trama é constituída pelos mesmos elementos da fábula, mas respeita sua ordem de aparição na obra e a sequência das informações dadas. Assim: • a fábula é o conjunto dos motivos em sua sucessão cronológica e de causa e efeito; • a trama é o conjunto desses mesmos motivos, mas na sucessão em que surgem dentro da obra, ou seja, em que o narrador os apresenta. De acordo com a função que exercem, os motivos podem ser: • associados: são indispensáveis à fábula (sua exclusão pode destruir a sucessão da narração); • livres: indispensáveis à trama (eles têm função dominante no enredo e determinam a construção da obra); • introdutórios: delimitam a situação e provocam o irromper da fábula; • dinâmicos: são modificadores da ação; • estáticos: não são modificadores da ação. 177 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA 8.3 A estrutura narrativa Conforme Gancho (2004), toda narrativa, por menor que seja, apoia‑se sobre cinco elementos que compõem a estrutura narrativa: • o enredo, que diz respeito ao que aconteceu, ao(s) fato(s), à história; • os personagens: quem viveu o(s) fato(s); • o tempo: quando aconteceua história; • o espaço: onde a história aconteceu; • o narrador: elemento organizador dos demais componentes, é ele que elabora os enunciados da narrativa, que intermedeia narração/autor, história/leitor. Observação É importante estabelecer a diferença entre narrador e autor. Narrador é a entidade de ficção, a voz criada pelo autor para contar a história e que só existe naquele texto. Autor é a pessoa física, real. Por exemplo: no romance Dom Casmurro, o autor é Machado de Assis, e o narrador, que se expressa em primeira pessoa, é Bentinho, um ser ficcional. Vejamos cada elemento da narrativa. Enredo O enredo é o conjunto dos fatos de uma história, é o resultado da ação das personagens. Embora a história não seja verdadeira, todo enredo precisa ter verossimilhança, isto é, ter lógica interna para merecer credibilidade do leitor. Observação Em Teoria Literária, há várias nomenclaturas para um mesmo termo literário. Por exemplo, enredo pode ser conhecido pelos nomes fábula, intriga, ação, trama ou história. A propósito disso, não deixe de consultar a referência: GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2004. Verossimilhança é a sensação de verdade desencadeada pela lógica dos fatos dentro do enredo (da ação): cada fato precisa ter uma causa (motivação) e desencadear consequência(s), novos fatos. 178 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 De acordo com D’Onófrio (1995), toda narrativa tem um ponto de partida, um caminho a percorrer e um ponto de chegada. Nesse percurso, surgem os obstáculos que constituem os conflitos que se resolvem ou não. Conflito (tensão) é o elemento estruturador da narrativa; é tudo que cria tensão entre personagens, personagem e ambiente, fatos, ou ainda sobre questões morais, econômicas e psicológicas (por exemplo, o conflito interior da personagem em crise emocional). É o conflito que determina a estrutura do enredo. Estrutura do enredo • Exposição (introdução, apresentação ou situação inicial): geralmente ocorre no começo da história, situando o leitor em relação aos fatos iniciais, personagens, tempo e espaço. • Complicação (desenvolvimento): momento em que se desenvolvem o(s) conflito(s),e o personagem demonstra sua competência, seu saber e/ou poder para agir. • Clímax: momento culminante da história e de maior tensão. É ponto máximo do conflito, quando a personagem executa sua ação derradeira. • Desfecho (desenlace, conclusão ou sanção): momento da solução dos conflitos, do castigo ou recompensa, do final negativo ou positivo. Examinemos o texto A velha contrabandista, de Stanislaw Ponte Preta, para identificarmos as partes de um enredo. A velha contrabandista Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega – tudo malandro velho – começou a desconfiar da velhinha. Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela: — Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco? A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais os outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu: — É areia! Aí quem riu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás. 179 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Mas o fiscal ficou desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia. Diz que foi aí que o fiscal se chateou: — Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista. — Mas no saco só tem areia! – insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs: — Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias? — O senhor promete que não “espáia”? – quis saber a velhinha. — Juro – respondeu o fiscal. — É lambreta. (PONTE PRETA, 2008, p. 79‑80). • A exposição envolve todo o primeiro parágrafo da história: quando se apresenta a personagem e sua ação. • A complicação ocorre desde o segundo parágrafo: “Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás [...]” até o momento em que o fiscal pergunta “qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?”; é quando se desenvolvem as ações que geram o conflito. • O clímax acontece quando a senhora pergunta: “— O senhor promete que não espáia?”, tendo como ponto culminante a hora da revelação da verdade. • O desfecho corresponde ao momento em que o conflito é solucionado: “Juro – respondeu o fiscal. — É lambreta.” É a maneira como termina a história, que, nesse caso, apresenta um final irônico e inesperado. Alguns autores, para fins didáticos distinguem, dois planos dentro da narrativa: • o plano da enunciação (o plano do discurso ou da narração): a posição do narrador dentro da história; • o plano do enunciado (da fábula ou da diegese = mundo ficcional): os elementos constitutivos do fato narrado. 180 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Dentro do plano do enunciado, podemos considerar três níveis, segundo D’ Onófrio (1995, p. 65): • o nível fabular (a história); • o nível atorial (as personagens); • o nível descritivo (o tempo e o espaço). Há também o enredo psicológico, no qual o conflito da narrativa é composto de fatos que acontecem no interior emocional da personagem e não equivalem a suas ações concretas; portanto, a progressão da narrativa passa‑se no plano psicológico. É o que acontece, segundo Candido (2004), no conto Amor, de Clarice Lispector. Dentro de um bonde, uma dona‑de‑casa observa um cego na calçada e a visão desencadeia nela emoções (fatos psicológicos) que compõem o texto, mais do que fatos exteriores. 8.4 A personagem de ficção Tento enrolar os fios variados do enredo e a complexidade dos meus pensamentos em torno destas pequenas bobinas vivas que são cada uma das minhas personagens. (GIDE apud CANDIDO, 2004, p. 11). A prosa de ficção constrói‑se a partir de uma série de fatos, lineares ou não, formando o enredo narrativo e, por conseguinte, as personagens vivem esse enredo. O enredo existe por intermédio das personagens e estas vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem a visão de vida que decorre da narrativa. Para Antônio Candido (2004), há então três elementos principais na prosa de ficção que estão estritamente relacionados e não podem ser separados: o enredo, a personagem e as “ideias” que são valores e significados atribuídos à vida da personagem. Por outro lado, o autor destaca que a personagem é o elemento de maioratuação nas formas de prosa de ficção, pois provoca a dinâmica entre os outros elementos. É o elemento mais atuante, participante e comunicativo da narrativa e, assim, torna‑se responsável pela intensidade e eficácia dela. A personagem apresenta grande vivacidade do enredo e a leitura depende essencialmente da verdade dela para com o leitor. Observação Lembre‑se que o estudo, A personagem do romance, de Antônio Candido, como o título já sugere, aborda a constituição da personagem na forma literária romance. Porém, algumas das concepções gerais, expostas pelo crítico, podem ser aplicadas ao estudo das demais formas de prosa de ficção, como a novela e o conto. Por isso, neste livro‑texto, utilizaremos a nomenclatura prosa de ficção ou narrativa ao invés do limitado termo romance. 181 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Para Antônio Candido (2004), enredo, personagem e ideias são três elementos narrativos intimamente ligados e inseparáveis: No meio deles, avulta a personagem, que representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificação, projeção e transferência. A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos (CANDIDO, 2004, p. 54). Candido (2004) entende a personagem como um ser fictício que representa um ser vivo e concretiza a relação entre o vivo e o fictício, tornando a narrativa verossímil. Lembrete Verossimilhança significa a “possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunicar a impressão da mais lídima verdade existencial” (CANDIDO, 2004, p. 55). Para compreender um pouco mais esse pensamento de Candido, é necessário analisar o processo de criação desse sentimento de verdade que as personagens transmitem. O escritor preocupa‑se com a “continuidade” relativa da percepção física e a “descontinuidade” da percepção espiritual ou psicológica, demonstrando a variedade de modos de ser, assim como são os seres humanos. Temos uma visão apenas fragmentária, uma vez que é impossível conseguir uma percepção integral do ser humano. O ser é, por natureza, misterioso e inesperado. Essa fragmentação dá‑se por meio de sequências de atos, afirmações, conversas sem pretensões de oferecer uma unidade. Candido considera que a personagem e o ser humano possuem diferenças e semelhanças. Uma personagem ficcional não pode representar a totalidade do ser, só pode ser explorada mediante uma visão aproximada, ou seja por apenas uma faceta diante da vastidão e da complexidade psicológica do homem. Além disso, o teórico defende que a personagem é uma criação do ficcionista. Nesse sentido, a personagem tem interpretação mais lógica, mais coesa que o ser humano, pois é previamente fixada pelo escritor, enquanto o ser vivo é misterioso e instável. É importante a escolha feita pelo autor de gestos e frases que caracterizem apersonagem e a identifiquem ao leitor. Candido destaca que o romance moderno buscou ampliar a complexidade das personagens por meio das seleções e combinações feitas pelo autor no intuito de reduzir a ideia de limitação do ente, dando a ilusão do ilimitado. A partir do século XVIII, o romance passou então do enredo complicado, com personagens simples, para o enredo simples, com personagens complicadas, distinguidas por terem traços não visíveis, desconhecidos na narrativa. Quanto à classificação, segundo Moisés, as personagens na prosa podem ser planas, obedecendo a certa linearidade como um vício ou uma virtude, ou podem ser personagens redondas, que possuem mais características. Assim, explica o autor: 182 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 É sabido que podem ser ordenadas em dois grupos, conforme suas características básicas: personagens redondas e personagens planas. Estas seriam bidimensionais, dotadas de altura e largura, mas não de profundidade: um só defeito ou uma só qualidade. Quanto às personagens redondas, ostentariam a dimensão que falta às outras, e, por isso, possuiriam uma série complexa de qualidades ou/e defeitos. (MOISÉS, 2002, p. 110). Candido define que “a personagem [...] [é] o que há de mais vivo no romance [...] é o elemento mais atuante [...], mas só adquire pleno significado no contexto” (2004, p. 54). Devido à escolha e organização dos elementos componentes da personagem, tem‑se a ilusão de que ela é ilimitada. O autor ressalta as novas características das personagens do romance moderno: personagens delimitadas, porém, mais complexas. De acordo com Johnson (apud CANDIDO, 2004, p. 61), no século XVIII, havia a definição de dois tipos de personagens: “personagens de costumes” e “personagens de natureza”. A primeira refere‑se a personagens com traços externos invariáveis que as diferenciam das demais. A segunda, personagem de natureza, possui características menos evidenciais e, por isso, são irregulares. Candido pontua como uma das principais funções da ficção a informação cognitiva mais completa e o conhecimento mais absoluto, diferente da visão fragmentada que possuímos dos seres. Reflete ele que a personagem tem de ter semelhanças com um ser vivo, não exatamente uma réplica deste, tendo em vista a dificuldade de se conhecer uma pessoa a fundo. Se assim fosse, a obra perderia o valor artístico. Ao relacionar realidade a ficção, o romancista passa ao leitor a ideia do conhecimento pleno da personagem. Baseando‑se nas ideias de Mauriac sobre o processo de criação de uma personagem, Candido conclui: [...] só há um tipo eficaz de personagem, a inventada; mas que esta invenção mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca; e que a realidade básica pode aparecer mais ou menos elaborada, transformada, modificada (CANDIDO, 2004, p. 69). Nesse processo de criação, Candido apresenta sete tipos possíveis de personagens decorrentes dos mecanismos de que o autor se vale no fenômeno de invenção: personagens baseadas em experiências internas (projetadas por ele por meio de sua vivência) ou externas (descrição de pessoas com quem teve contato), que são reproduzidas com certa fidelidade; personagens relatadas com base em documentos e testemunhos, criadas a partir dessas informações; personagens criadas tendo como eixo um modelo real que é modificado pelo autor; personagens construídas a partir de um modelo que é posteriormente reinventado pelo autor; personagens inspiradas em um modelo central e com característica de outros modelos secundários, com mudanças produzidas 183 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA pelo romancista; personagens baseadas em vários modelos vivos, nas quais há a reconstrução de uma personalidade totalmente nova; por fim, sendo o conceito mais distante da realidade, tem‑se a personagem arquetípica, construída a partir de valores interiores do autor, nesse caso, tem destaque as personagens machadianas “em geral homens feridos pela realidade e encarando‑a com desencanto” (CANDIDO, 2004, p. 73). Apresentado os modelos de criação das personagens, Candido (2004, p. 74) defende que: Em todos esses casos, simplificados para esclarecer, o que se dá é um trabalho criador, em que a memória, a observação e a imaginação se combinam em graus variáveis, sob a égide das concepções intelectuais e morais. O próprio autor seria incapaz de determinar a proporção exata de cada elemento, pois esse trabalho se passa em boa parte nas esferasdo inconsciente e aflora à consciência sob formas que podem iludir. E o autor ainda conclui: “O que é possível dizer, para finalizar, é que a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside o romance e das intenções do romancista” (CANDIDO, 2004, p. 74). Assim, partindo dos diversos conceitos acerca da personagem, Candido ressalta outro ponto que deve ser observado no romance: a coerência interna. Além de ter correspondência com a vida real, as personagens devem ter funcionalidade dentro da estrutura do texto. A verossimilhança do romance depende principalmente do fator interno, pois, “[...] embora o vínculo com a vida [...] seja a chave mestra da eficácia dum romance, a condição de seu pleno funcionamento, e, portanto, do funcionamento das personagens, depende dum critério estático de organização interna” (CANDIDO, 2004, p. 77). O contexto e os nexos produzidos na obra e a maneira como são arranjados pelo escritor permitem ao leitor a identificação da personagem. Candido mostra que a partir do Romantismo, estendendo‑se com mais força no Realismo, os romancistas atentaram‑se aos detalhes para tornar mais real a obra. Aproximando‑se mais da realidade pelas minudências, o romance ganhou mais sentido e tornou‑se mais convincente. Lembrete Personagem: ser fictício responsável pelo desempenho do enredo: aquele que faz a ação, “vive” a história, isto é, age ou fala e interfere no enredo. Estudamos os conceitos de Antonio Candido que revelam a essência e a importância da personagem para a construção da prosa de ficção. Agora, passemos à classificação das personagens de acordo com sua natureza, sua função e seu nível psicológico. Vejamos. 184 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Classificação por sua natureza biológica ou física: • seres humanos. Ex.: Bentinho (Dom Casmurro, Machado de Assis); • animais. Ex.: a cachorra Baleia (Vidas secas, Graciliano Ramos); • coisas. Ex.: a propriedade (O cortiço, Aluísio de Azevedo). Classificação quanto à função que desempenham no enredo: • protagonista: personagem principal. Classifica‑se em: — herói: protagonista com características superiores às de seu grupo; — anti‑herói: protagonista com características iguais ou inferiores às de seu grupo. • antagonista: personagem que se opõe à figura principal e oferece obstáculo à ação do protagonista; • personagens secundários: têm menos importância e menor participação na história; podem ser ajudantes ou confidentes dos protagonistas ou antagonistas. Classificação quanto à caracterização: • personagens planos: pouco complexos, caracterizam‑se por poucos atributos, que logo os identifica. Podem ser: — tipo: personagem típico, com características invariáveis, morais, sociais, econômicas e outras que os identificam em um grupo social, profissional, regional etc. Exemplo: a mãe, a beata etc.; — caricatura: personagem com características marcantes e ridículas, pertence geralmente a histórias de humor. Exemplo: o agiota, o soldado fanfarrão, a madrasta. • personagens redondos: mais complexos, caracterizam‑se por atributos: — físicos: corpo, voz, gestos, roupas; — psicológicos: personalidade e estados de espírito; — sociais: classe social, profissão, atividades sociais; — ideológicas: modo de pensar, filosofia de vida, opções políticas, religião; — morais: dependendo do ponto de vista adotado, o mesmo personagem pode ser: bom ou mau, honesto ou desonesto, moral ou imoral etc. 185 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA 8.5 O tempo da narrativa Nem sempre há coincidência entre a época em que a história se passa e o tempo real em que foi publicada ou escrita. As marcações de tempo são dadas pela narrativa, ou seja, a duração varia de acordo com o enredo e conforme sua tipologia; assim, os acontecimentos estendem‑se ao longo de anos ou em um curto período de tempo. O tempo na narrativa é de extrema importância na análise literária. Benedito Nunes (1988), em seu livro O Tempo na Narrativa, define os diferentes tipos de tempo existentes na prosa de ficção: • tempo cronológico: ligado aos aspectos físicos, é o “tempo dos acontecimentos, ou seja, o tempo objetivo e convencional das horas, dias, meses, anos, estações do ano, séculos, que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo; liga‑se ao enredo linear. É a medida exterior da duração da história” (NUNES, 1988, p. 20). • tempo histórico “representa a duração das formas históricas da vida, e podemos dividi‑lo em intervalos curtos ou longos, ritmados por fatos diversos.” Os intervalos curtos são acontecimentos ou eventos singulares, como, guerras, movimentos religiosos, revoluções, etc. Já os longos referem‑se ao processo histórico: por exemplo, a formação das cidades e o advento do capitalismo (idem, p. 21). • tempo físico: é aquele determinado objetivamente, uniforme, absoluto, baseado em medidas exatas e relações de causa e efeito. “Sendo uma sequência de eventos linear, independente da consciência do sujeito, sua ordem não pode ser alterada” (ibidem, p. 18). • tempo psicológico: é “a permanente descoincidência com as medidas temporais objetivas.” (ibidem, p. 18). É o tempo subjetivo, interior e relativo à experiência individual, que transcorre numa ordem determinada pelo desejo ou pela imaginação do narrador ou dos personagens; ligado ao enredo não linear. • tempo linguístico: organiza‑se exclusivamente na ação da palavra, no tempo do discurso e está relacionado com o ponto de vista narrativo. O autor mostra que “sendo [no tempo linguístico] a linguagem o único suporte, a ordenação dos acontecimentos faz‑se retrospectiva ou prospectivamente ao momento da fala” (ibidem, p. 22). 186 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 8.6 Teorias do espaço narrativo Figura 28 – Jeanne‑Marguerite Lecadre in the Garden Sainte‑Adresse (1867), de Claude Monet O espaço pode possuir uma grande importância na narrativa, assim como os outros elementos estruturais. Em algumas situações, ele pode estar diluído e, por isso, possuir uma importância secundária. Pode ter funcionalidade e organicidade graduais e assim revela‑se importante, de maneira harmônica, com os outros elementos da narrativa. Alguns teóricos ressaltam a importância dele para a transmissão de imagem verdadeira, ou seja é uma fotografia por intermédio da linguagem. É o respaldo para a veracidade do texto na ficção literária, o mecanismo de instaurar a verossimilhança, o lugar onde se passa a ação numa narrativa. A quantidade dos espaços varia de acordo com a quantidade de fatos na história. É reconhecido pela descrição na narrativa, podendo caracterizar‑se em aberto ou fechado, urbano ou rural etc. Lembrete É comum a ideia de que o espaço seja: • urbano: construção do homem; • rural: construção da própria natureza. Para Massaud Moisés (2004, p. 108), o espaço é o elemento fundamental na obra literária, pois sua relevância encontra‑se na funcionalidade e na condição que decorrer a ação. Moisés afirma que: 187 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA [...] a paisagem vale como uma espécie de projeção das personagens ou o local ideal para o conflito, carece de valor em si [...] não é pano de fundo, mas algo como personagem inerte, interiorizada e possuidora de forçadramática, ao menos na medida em que participa da tensão psicológica entre as personagens Uma narrativa pode passar‑se na cidade ou no campo, mas determinar o grau maior ou menor de importância que assume depende de seu caráter linear ou vertical. A construção do espaço depende então de diversos fatores, como os limites da forma, a tendência literária, os critérios do escritor etc. Espaço varia de acordo com a forma literária a tendência literária Figura 30 Observação Função do espaço: situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação, influenciar suas atitudes ou sofrer as transformações provocadas por eles. A aproximação entre o tempo e o espaço onde vivem os personagens e a construção de um clima carregado de características socioeconômicas, morais e psicológicas produzem a caracterização do ambiente, que tem as funções de: • situar os personagens no tempo, no espaço, no grupo social e nas condições em que vivem; • ser a projeção dos conflitos vividos pelos personagens; • estar em conflito com os personagens; • fornecer índices para o andamento do enredo (como “pistas” para o desfecho dos fatos); • configurar os traços das personagens ou da própria história. Por exemplo, n’ O cortiço, o ambiente daquele lugar promíscuo afeta o caráter de Jerônimo, um português honesto e trabalhador, que passa a beber e a gostar de farra, negligencia o trabalho abandona a esposa e a filha para se tornar amante da sensual mulata Rita Baiana. 8.6.1 Espaço e ambientação O espaço da narrativa é considerado tão importante quanto os outros recursos artísticos narrativos, como a personagem, o tempo, o narrador etc. Algumas vezes, ele é tão representativo em certas narrações 188 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 que “poderá ser prioritário e fundamental no desenvolvimento da ação, quando não determinante” (DIMAS, 1987, p. 6). Temos outras possibilidades teóricas de estudarmos o espaço na narrativa, ainda que sejam poucas as teorias dedicadas a esse estudo. Em Lima Barreto e o espaço romanesco (1976), o pesquisador brasileiro Osman Lins foi um dos poucos que elaborou uma teoria específica sobre essa temática. Ele conseguiu elaborar o conceito de ambientação que, segundo ele, são os modos de narrar e de construir o ambiente que se relaciona com o desenrolar da narrativa: Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para a aferição do espaço, levamos a nossa experiência do mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do autor, impõe‑se um certo conhecimento da arte narrativa.(LINS, 1976, p. 77). A ambientação torna‑se importante para o conhecimento e estudo da Literatura. Há espaços simples com significados mais complexos do que imaginamos. Diferente dos aspectos denotativos do espaço, a ambientação valoriza seus níveis conotativos que exigem uma capacidade interpretativa do leitor. A caracterização da ambientação abrange as condições materiais ou espirituais em que os acontecimentos se desenrolam; indica época; características físicas; aspectos socioeconômicos; aspectos psicológicos, morais, religiosos. Surgem, então, três tipos de ambientação: franca, reflexa e dissimulada, de acordo com Dimas (1987). • Ambientação franca: é o ambiente físico descrito pelo narrador que não participa da ação da obra. Trata‑se daquela ambientação composta por um narrador independente, que não participa da ação e que se pauta pelo descritivismo. Neste caso, torna‑se nítido um certo exibicionismo técnico, o que, muitas vezes, dá margem à gratuidade do recurso, já que o momento adere de forma plena à ação em curso (DIMAS, 1987, p. 20). Vejamos alguns exemplos retirados dos livros: O cortiço (texto 1), de Aluísio de Azevedo, e Olhai os lírios do campo (texto 2), de Érico Veríssimo: Texto 1: Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua intimidade de portas e janelas alinhadas. Um corredor alegre e farto de quem dormiu de uma assentada, sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo‑se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. 189 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha‑lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas (AZEVEDO, 2009 p. 29). Texto 2: Mas havia também bichos maiores. De costas para Eugênio, as calças frouxas, aquele homem gordo ali parecia um elefante. As conversas enchiam o saguão, cruzavam‑se no ar, era como se até as gárgulas de pedra das colunas estivessem falando recordando as muitas turmas de diplomados que haviam passado por aquele teatro e vivido instantes como aquele. De repente houve como que um hiato nas conversas. As aves cessaram de palrar, pressentindo a chegada dum bicho maior. Os olhares se voltaram para a escada que levava aos camarotes. Estrugiram palmas. Abriram‑se alas. Era o Presidente do Estado que descia cercado de amigos. Eugênio viu‑o apertar a mão de Alcibíades, que se inclinou em desmedida curvatura, a boca aberta num sorriso de felicidade imbecil. Eugênio sentiu uma pontinha de inveja e de despeito (VERÍSSIMO, 1976, p. 53). • Ambientação reflexa: é aquela percebida pela personagem, não sendo necessárias descrições separadas do local pelo narrador, que apenas acompanha a ação pela visão da personagem. Lins considera esses dois casos apresentados de fácil reconhecimento dentro da narrativa: formam blocos e ocupam vários parágrafos. O narrador deve atentar‑se a esses recursos para não formar espaços desnecessários dentro da narrativa, que interrompam a ação para descrever o ambiente. [...] a ambientação reflexa é característica das narrativas na terceira pessoa, atendendo em parte à exigência proclamada pelo estudioso Zola, de manter em foco a personagem, evitando uma temática vazia. [...] as coisas, sem engano possível, são percebidas através da personagem (LINS, 1976, p. 82). Exemplos: Texto 1: Olhou para o pequeno jardim de sua casa e viu com a imaginação o pai encurvado sobre o canteiro maior, cuidando da roseira predileta (Rainha das Neves), arrancando as ervas daninhas, que cresciam em torno, e matando as formigas. Ali se erguia agora a roseira, com todo o viço. Ângelo estava morto. Ele, Eugênio, fora também como a roseira predileta. Crescera e florira, graças aos cuidados do pai. Crescera para se envergonhar do jardineiro. Aquela tarde, descendo a rua. (VERÍSSIMO, 1976, p. 79). 190 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Texto 2: As ardósias deixavam cair a prumo um calor pesado, que lhe apertava as fontes e a sufocava. Arrastou‑se até a água‑furtada, fechada, tirou‑lhe o ferrolho e a luz deslumbrante entrou num jorro. À frente, para lá dos telhados, a campina estendia‑se a perder de vista. Embaixo, a praça da aldeia estava deserta; as pedras das calçadas cintilavam, as ventoinhas das casas estavam imóveis; da esquina da rua vinha dum andar térreo uma espécie de ronco de modulações estridentes. Era Binet que trabalhava no torno (FLAUBERT apud LINS,1976, p. 81). • Ambientação dissimulada ou oblíqua: é a mais difícil de perceber no texto, pois não depende do narrador ou de um personagem, mas está agregada à ação e ao espaço da narrativa, devendo o leitor estar atento para notá‑la, “[...] uma vez que nem se trunca o fluxo narrativo com o fito de se abrir uma clareira ornamental e nem se delega a um personagem a responsabilidade de nos transmitir, direta ou indiretamente, o setting em que se insere” (LINS apud DIMAS,1987, p. 26). Conduzidas através de um narrador oculto ou de uma personagem‑narrador, tanto a ambientação franca como a ambientação reflexa são reconhecíveis pelo seu caráter compacto ou contínuo, formando verdadeiros blocos e ocupando, por vezes, vários parágrafos. Constituem unidades temáticas perfeitamente identificáveis: o ocaso, o desfile, a sala, a casa, a estação, a tarde, a cidade. Com a ambientação dissimulada (ou oblíqua), sucede o contrário. A ambientação reflexa como que incide sobre a personagem, não implicando numa ação. A personagem, na ambientação reflexa, tende assumir uma atitude passiva e a sua reação, quando registrada, é sempre interior. A ambientação dissimulada exige a personagem ativa: o que a identifica é um enlace entre o espaço e a ação. [...] Assim é: atos da personagem, nesse tipo de ambientação, vão fazendo surgir o que a cerca, como se o espaço nascesse dos seus próprios gestos (LINS, 1976, p. 83) Exemplos: Texto 1: Azevedo Gondim tomava a bicicleta e, pedalando meia hora pela estrada de rodagem que ultimamente Casimiro Lopes andava a consertar com dois ou três homens, alcançava S. Bernardo. [...] Íamos para o alpendre, mergulhávamos em cadeiras de vime e ajeitávamos o enredo, fumando, olhando as novilhas caracus que pastavam no prado, embaixo, e mais longe, à estrada da mata, o telhado vermelho da serraria. [...] Levantei‑me e encostei‑me à balaustrada para ver de perto o touro limosino que Marciano conduzia ao estábulo (RAMOS, 1964, p. 8). 191 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 TEORIA LITERÁRIA Texto 2: Lia tirou a sacola do ombro e dependurou‑a na cadeira mais próxima. Olhou a mesa recoberta de poeira, o calendário enrolado apontando detrás da máquina, o copo com um resto de café no fundo. Desenrolou o calendário: ocupando mais da metade da folha, a gravura de uma loura de biquini, a boca polpuda se entreabrindo para emborcar a garrafa de Coca‑Cola. Deixou‑o cair e ele se enrolou como se tivesse molas. Voltou‑se para o teto pardacento, pontilhado de moscas estateladas, a maior parte morta em meio de fiapos de antigas teias. Sorriu. ‘Lorena se divertiria muito aqui’, pensou. No centro do globo de vidro leitoso, a mancha espessa de um amontoado de insetos que lá entraram e lá morreram aprisionados (TELLES, 1998, p. 124). Além disso, Lins destaca a existência da função caracterizadora do espaço, processo pelo qual o leitor consegue descobrir características relevantes das personagens. A descrição de um lugar e sua organização expõem traços importantíssimos da identidade psicológica de uma personagem, sendo assim determinante no desenvolvimento da narrativa, já que pode também nos mostrar, com esse tipo de pista, a ação futura da personagem. O espaço caracterizador é em geral restrito – um quarto, uma casa –, refletindo, na escolha dos objetos, na maneira de os dispor e conservar, o modo de ser da personagem [...] Constituem casos raros aqueles em que a psicologia da personagem, ou, ao menos, um traço importante da sua psicologia projeta‑se extramuros [...] (LINS, 1976, p. 98). A segunda função que o espaço pode exercer, apontada por Osman Lins, é aquela mediante a qual pode influenciar nas ações das personagens, permanecendo esse tipo de influência, muitas vezes, restrita ao psicológico. Aparece o espaço como provocador da ação nos relatos onde a personagem, não empenhada em conduzir a própria vida – ou uma parte da sua vida –, vê‑se à mercê de fatores que lhe são estranhos. O espaço, em tal caso, interfere como um liberador de energias secretas e que surpreendem, inclusive, a própria personagem. [...] enquanto isso, os casos em que o espaço propicia, permite, favorece a ação, ligam‑se quase sempre ao adiamento; algo já esperado adensa‑se na narrativa, à espera de que certos fatores, dentre os quais o cenário, tornem afinal possível o que se anuncia. (idem, p. 100‑101). Por fim, a última função seria aquela de apenas situar as personagens na narrativa, não se dizendo nada sobre a personalidade delas e nem mesmo as influenciando em seus atos. Todavia, essa qualidade do espaço pode não estar totalmente desprovida de significado no processo narrativo, pois se remete à conotação do texto literário e à sua simbologia. Em determinados momentos, o espaço “situador” desenvolve‑se de tal modo que, por uma leitura minuciosa, pode‑se detectar seu significado implícito, que nos leva ao entendimento global da narrativa. 192 Unidade III Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 07 /0 8/ 20 13 Saiba mais Consulte o artigo O espaço na narrativa: uma leitura do conto Preciosidade, de Júlio César Suzuki, para saber um pouco mais sobre a aplicação de alguns dos conceitos de espaço e ambientação na análise literária. Pode ser encontrado em: <http://www.geografia.fflch.usp.br/ publicacoes/rdg/RDG_19/06‑O_espaco_na_narrativa.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2011. 9 O NARRADOR A narrativa pode ser conduzida por um narrador que não participa dos acontecimentos ou por um personagem que toma parte do narrado. Para melhor compreensão do enredo, convém conhecer qual ângulo de visão, ponto de vista ou foco narrativo pelo qual a história é apresentada. Numa narrativa, o narrador é elemento central que aproxima e conduz os fatos ao público‑leitor, mas há maneiras e maneiras de se fazer isso e, portanto, há vários tipos de narradores. Os sentidos da narração em prosa de ficção são narrar o que se viu, o que se viveu, o que se testemunhou, imaginou ou sonhou. N’A República, de Platão, e n’Arte poética, de Aristóteles, percebemos que há um elo entre narrar e imitar. Assim, por exemplo, Platão entende que a “realidade” é uma imitação do plano ideal humano, e que a Literatura, como a arte trabalhando com a “realidade”, torna‑se a imitação da imitação. A narração é responsável pela transmissão desse significado. A epopeia foi a primeira forma literária a apresentar os primeiros modos de narração e tentativas de lidar com a representação do real nos moldes ficcionais. Mais adiante, no romance, as técnicas narrativas foram sendo desenvolvidas e, com isso, as questões de verossimilhança surgiram como fundamentais. Porém, desde sempre, a narração aparece com a necessidade de ser verossímil, sendo a ponte entre ficção e realidade. Nesse sentido, as técnicas de verossimilhança construídas estão relacionadas com o modo de construir e mostrar os acontecimentos. Em O Foco Narrativo, a teórica Lígia Chiappini Moraes Leite apresenta dois tipos: Na cena, os acontecimentos são mostrados ao leitor, diretamente, sem a mediação de um narrador que, ao contrário, no sumário, os conta e resume; condensa‑os, passando por cima dos detalhes e, às vezes, sumariando em poucas páginas um longo tempo da história (LEITE, 1997, p. 14). Vejamos com mais detalhes: • cena (showing): predominante nas narrativas modernas, refere‑se a uma narrativa direta. O narrador mostra os fatos com detalhes sem a mediação do narrador. Há menos informação e mais 193 Re vi sã o: L ua nn e - Di ag ra m aç ão : M ár ci o - 15 /0 9/ 11 // R ed im en sio na m en to - R ev isâ o: V irg ín ia / Di ag ra m aç ão :