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Código Logístico I000046 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-65-5821-060-3 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 6 0 3 Imagem e cultura visual Rafael Araldi Vaz IESDE BRASIL 2021 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2021 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: TATYANA Yamshanova/Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ V497i Vaz, Rafael Araldi Imagem e cultura visual / Rafael Araldi Vaz. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2021. 132 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-060-3 1. Imagens. 2. Comunicação visual. I. Título. 21-72298 CDD: 302.2 CDU: 316.77 Rafael Araldi Vaz Doutor e mestre em História Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Licenciado e bacharel em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Professor no ensino superior, ministrando as disciplinas de Teoria e Metodologia da História, História da Arte, História das Religiões e Religiosidades, História das Relações Étnico-Raciais, História Contemporânea e História do Brasil Republicano. Autor e pesquisador na área de História, atuando principalmente nos seguintes temas: religião e religiosidades, imaginários religiosos, subjetividade e práticas de subjetivação, relações de poder, saúde e doença, políticas de saúde pública, arte e produções culturais, historiografia, teoria e metodologia da história, com ênfase nos estudos de Michel Foucault. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 História, imagem e visualidade 9 1.1 O mundo das imagens 10 1.2 A imagem como fonte histórica 17 1.3 O problema da visualidade 20 1.4 Da historiografia à historiofotia:a conversão da história em imagens 24 2 Teorias da imagem e da visão 30 2.1 Linguagem visual e cultura visual 31 2.2 A iconologia de Erwin Panofsky e a semiótica de Roland Barthes 34 2.3 A virada visual e os estudos visuais 40 2.4 Oculocentrismo, sociedade escópica e regime de visualidade 43 2.5 A imagem entre realismo e simulacro 48 3 Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 53 3.1 História da arte e iconografia 54 3.2 A pintura em Aby Warburg e Ernst Gombrich 57 3.3 Baxandall e o olhar de época 62 3.4 Ginzburg e o paradigma indiciário 64 3.5 Imagem, sujeito e tempo em Didi-Huberman 68 4 A imagem na era da reprodução técnica 74 4.1 Fotografia, cinema e a era da reprodução técnica 75 4.2 Imagem, cultura de massa e sociedade do espetáculo 84 4.3 O uso da fotografia e do cinema como fonte histórica 88 4.4 A narrativa histórica na fotografia e no cinema 94 5 Imagem e visualidade no ensino de História 99 5.1 Uso da pintura e da fotografia no ensino de História 100 5.2 Uso do cinema e histórias em quadrinhos (HQs) no ensino de História 109 5.3 Imaginário, imagem e memória 120 Gabarito 127 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Nesta obra você vai encontrar um panorama dos principais debates sobre imagem e cultura visual, verificando importantes linhas teóricas no estudo da imagem e da visualidade. Dessa forma, poderá entender como a historiografia se serviu das contribuições fornecidas pelas teorias da imagem e pela história da arte. Ao mesmo tempo, vai compreender como utilizar esses instrumentos e conceitos para o ensino de História. No primeiro capítulo vamos conhecer as diferentes formas de utilização e compreensão das imagens pelas sociedades antigas e contemporâneas. Vamos abordar também a importância da imagem e da visualidade como objetos de estudo para a História, conhecendo, por conseguinte, os principais debates sobre os limites e as possibilidades da conversão da escrita da história para o formato (áudio)visual. No segundo capítulo vamos entender a imagem como uma forma de linguagem organizada pela cultura visual. Nesse sentido, vamos perceber as transformações históricas nos estudos teóricos sobre a imagem, bem como as diferenças entre iconografia, iconologia e semiótica. Desse modo, vamos reconhecer as contribuições da virada visual e dos estudos visuais para o estudo das imagens, observando os conceitos de oculocentrismo, sociedade escópica e regime de visualidade para apreender a tensão epistemológica entre realismo e simulacro no estudo das imagens. No terceiro capítulo vamos identificar as origens dos estudos iconográficos e as contribuições fornecidas pela história da arte no estudo das imagens para, então, compreendermos os métodos de estudo de Aby Warburg e Ernst Gombrich, as inovações de Baxandall para a história da arte e as contribuições do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg para o estudo da História e o estudo das imagens. Assim, vamos tratar das relações entre imagem, sujeito e tempo na obra de Georges Didi-Huberman, bem como as novas questões colocadas para a história da arte por esse autor. APRESENTAÇÃOVídeo 8 Imagem e cultura visual No quarto capítulo vamos discutir o papel da fotografia e do cinema na reconfiguração da arte e as transformações trazidas para o campo da imagem. Em primeiro lugar, vamos entender a relação entre indústria cultural, cultura de massa, sociedade do espetáculo e produção de imagens na modernidade. Vamos tratar, então, do conceito de aura desenvolvido por Walter Benjamin para a definição da pintura como obra de arte, dos diferentes usos da fotografia e do cinema como fonte histórica para os historiadores, bem como dos seus papéis na elaboração da narrativa histórica. No último capítulo vamos verificar possibilidades de uso da imagem no ensino de História com metodologias e estratégias didático-pedagógicas que se sirvam da utilização da pintura, da fotografia, do cinema e das histórias em quadrinhos para demonstrar a importância do debate sobre visualidade e cultura visual. Além disso, buscamos demonstrar a importância de se problematizar a imagem como suporte na construção do imaginário social e como lugar de memória. Esta obra foi pensada para a formação de profissionais do componente curricular de História e para a área de Ciências Humanas. Nosso objetivo é fornecer os principais fundamentos conceituais e teóricos para o estudo das imagens em uma linguagem acessível, de modo a contribuir para a formação de futuros professores. História, imagem e visualidade 9 1 História, imagem e visualidade Neste capítulo, vamos conhecer como a imagem foi compreendida ao longo da história e de que forma a visualidade moldou o olhar de algumas sociedades. Imagem e visualidade estão intimamente ligadas a tal ponto que sem uma não somos capazes de compreender inte- gralmente a outra e vice-versa. Mais ainda, vamos perceber de que maneira o conceito de imagem foi compreendido em suas origens no mundo antigo e como o compreendemos atualmente. Ao introduzirmos as primeiras noções sobre imagem e visualidade, vamos adentrar no modo em que as imagens passaram aser trata- das quando estudadas pelos historiadores, verificando como se deu a passagem do estatuto da imagem nos estudos históricos, a qual foi, primeiramente, negligenciada pelos historiadores do século XIX e, posteriormente, inserida nos debates dos historiadores do século XX como uma fonte histórica complementar, seja na condição de apoio, de prova ou de ilustração. Por fim, vamos apontar os novos caminhos abertos nas décadas de 1970 e 1980 no estudo das imagens e na sua reformulação como fonte e objeto de pesquisa. Ao final, vamos compreender como a visualidade adentrou modes- tamente no campo da história e como tem fornecido novas formas de estudos sobre o papel da imagem nela. Ao mesmo tempo, verificare- mos algumas propostas desenvolvidas pelos historiadores no sentido de superar os limites da história escrita, convertendo-a em história visual. Assim, poderemos compreender as tensões e possibilidades de os historiadores fazerem história por meio de imagens, ou seja, ir além da historiografia e produzir historiofotia. 10 História, imagem e visualidade 1.1 O mundo das imagens Vídeo Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • reconhecer as diferentes formas como as imagens foram utilizadas e compreendidas pelas sociedades antigas e contemporâneas; • relacionar a ampliação da noção de documento histórico e a inclusão das imagens como fonte para o campo da história; • perceber a importância da visualidade como objeto de estu- do para a história; • apreender os principais debates sobre os limites e as possi- bilidades da conversão da escrita da história para o formato (áudio)visual. Objetivos de aprendizagem Ao assistirmos a um filme, olharmos um álbum de fotografias, ob- servarmos placas publicitárias, navegarmos pela internet, visitarmos uma exposição de arte visual, passearmos pelas cidades observando monumentos públicos, vitrais e mosaicos de catedrais, ou mesmo na devoção aos santos e orixás dos terreiros das religiões de matriz afri- cana, nessas e em muitas outras ocasiões vivenciamos experiências de contato com imagens. Até mesmo quando pensamos e projetamos ideias, quando recor- damos uma lembrança da infância ou ainda quando sonhamos, as ima- gens estão lá, auxiliando nossas experiências cognitivas e afetivas, fato que demonstra como as imagens povoam nossas vidas, a tal ponto que podemos falar de um mundo das imagens. Como podemos notar com os exemplos citados, as imagens são for- mas de comunicação visual que compartilhamos em nossa sociedade e cultura e vivenciamos organicamente em nossa própria biologia. Em suma, as imagens são o resultado mais direto de uma de nossas princi- pais capacidades sensoriais: a visão. Nesse sentido, o olhar humano é a capacidade biológica primordial para a produção de imagens. Fruto da evolução e da adaptação aos ambientes e às tecnologias criadas pelos seres humanos, o olhar hu- mano é um instrumento de natureza biológica, mas que foi moldado História, imagem e visualidade 11 pelas experiências socioculturais ao longo da história. Por isso, pode- mos afirmar que existiram e existem tantas formas de olhar quanto ti- pos de sociedades ao longo da história. E é por esse motivo que damos o nome de visualidade às diversas formas com que as sociedades ope- ram o seu modo de ver a realidade que vivem e as invenções que criam. Podemos assim dizer que há uma relação de interdependência na- tural entre visão e imagem. Essa interdependência é tão fundamental que uma pessoa que não dispõe da visão desde seu nascimento não poderá usufruir de uma experiência direta com as imagens, exceto exercendo um contato indireto na forma da sinestesia. Muito embora existam inúmeros casos em que as imagens possam aparecer em so- nhos e pensamentos para pessoas que desenvolveram cegueira total ao longo dos anos, a capacidade comunicativa das imagens se torna reduzida ou anulada para quem, em algum momento de sua vida, se tornou cego. Podemos notar, nesses casos extremos, como a imagem possui alto grau de interdependência com o sentido natural da visão. Pode parecer óbvio, mas, partindo dessa constatação, podemos compreender que as imagens são produzidas e endereçadas ao olhar, sendo fabricadas justamente para que sejam vistas. Por esse motivo, nenhum estudo que tenha por objetivo compreender as imagens poderá se abster de entender as dinâmicas da visualidade, já que esta diz respeito às características biológicas e culturais que fornecem as condições de visualização, interpretação e comunica- ção das imagens. Ao considerarmos o fato de que existe um número imenso de ti- pos de culturas e sociedades humanas ao longo da história, podemos constatar que as formas de comunicação e interpretação das imagens são diretamente dependentes do tipo de visualidade produzida em determinada sociedade. Assim como a imagem, a visualidade também é uma criação cultural. Em poucas palavras, podemos dizer que toda imagem possui uma capacidade de comunicação que, por sua vez, pos- sui uma ou mais formas de visualidade correspondente para interpre- tá-la e torná-la inteligível. Nesse contexto, um bom exemplo aparece na história da América, conta-se que durante a chegada das caravelas de Cristóvão Colombo, as populações nativas, que se encontravam na costa da praia, ao olhar a linha do horizonte, não eram capazes de identificar a vinda das em- sinestesia: relação de interdependência entre os quatro sentidos: visão, audição, tato e paladar. O sinestésico é capaz de suprir a ausência de um dos sentidos com os demais, o que possibilita, por exemplo, que um cego possa perceber uma imagem com o apoio dos outros sentidos. Glossário Janela da Alma é um belíssimo documentário que apresenta a história de dezenove pessoas com variados tipos de deficiência visual – cada uma conta como é a sua percepção de visão, como vê o mundo e as pessoas. A película também traz revelações pessoais sobre aspectos relacio- nados à visão segundo grandes nomes como José Saramago, Hermeto Pascoal, Wim Wenders e outras personalidades, explorando as diferentes dinâmicas da visualidade e como elas são trabalha- das ao nível da subjetivi- dade e da memória. Direção: João Jardim; Co-direção: Walter Carvalho. Brasil: Copacabana Filmes e Produções, 2001. Documentário 12 História, imagem e visualidade barcações espanholas, pois acreditavam que era um tipo de formação de ondas incomuns, mas sem conseguirem perceber de fato que eram embarcações. Para o olhar indígena, as caravelas eram desconhecidas e, por esse motivo, seria improvável que as reconhecessem navegando no mar, já que sua cultura não possuía uma experiência de visibilidade com esse tipo de objeto, o que dificultava sua compreensão nos mes- mos termos definidos pelos europeus (GRUZINSKI, 2006). Devido à constatação das diversas formas de visualidade, muitas áreas do conhecimento foram sendo desenvolvidas para pensar seu papel e a função comunicativa da imagem. Sendo assim, a iconologia, a iconografia e a semiótica foram algumas das formas de estudo cien- tífico responsáveis por essa compreensão; todas elas são muito impor- tantes para se compreender o uso das imagens na área da história. Mas, afinal, o que é imagem? Seguindo a etimologia da palavra, en- contramos sua origem no latim imago (HOUAISS, 2009), que indica um tipo de máscara mortuária utilizada em rituais romanos antigos. Por essa designação, podemos perceber como a palavra imagem está liga- da, ao mesmo tempo, a dois aspectos, segundo Didi-Huberman (2015): Uma forma de representação de algo ou alguém que não existe mais: a imagem faz referência à alma de um ancestral, o que a torna ligada à ideia de um substituto para algo ou alguém ausente. Por esse motivo, imago se liga à lembrança ou à memória. Um símbolo utilizado em rituais religiosos, o que demonstra a ligação da imagem com o sagrado. Até aqui podemos perceber que o sentido latino da palavraimagem demonstra que ela se liga diretamente à religiosidade, às crenças, aos mitos. Imagem, portanto, possui em sua origem uma relação muito ín- tima com o culto aos mortos. Por esse motivo, podemos afirmar que as imagens, na antiguidade, possuíam necessariamente um valor sagra- do, pois eram uma forma de ligação entre seres humanos, ancestrais e deuses. História, imagem e visualidade 13 Um dos melhores exemplos do uso das imagens no culto aos mortos são as pinturas e os relevos encontrados nos túmulos do Egito Antigo. Para os egípcios, o culto aos mortos era uma forma es- sencial de preservação da vida e da sociedade. Eles acreditavam que ao menos dois conhecimentos eram fundamentais para a passagem dos mortos ao Duat (o mundo dos mortos, local em que seriam jul- gados pelo tribunal de Osíris): a preservação do cadáver por meio da mumificação e os encantamentos realizados por meio de imagens e símbolos (GRALHA, 2017). De acordo com a crença egípcia, apresentada por Gralha (2017), tudo o que existe no mundo possui uma matriz ou forma original cha- mada Ka (corpo). Uma árvore, uma pessoa, um animal ou um objeto possui, portanto, uma forma essencial no mundo invisível que é an- terior à sua manifestação no mundo visível. Devido a essa crença, os egípcios acreditavam não só na existência de uma essência original que criava a vida, mas também que essa mesma energia poderia ser manipulada para criar a vida no além-túmulo. Assim, acreditavam ser possível projetar nesse mundo o tipo de vida perfeita que desejavam. Para essa finalidade, as imagens eram fundamentais, pois era por meio delas que se poderia projetar magicamente a vida nos campos de junco – o paraíso dos egípcios. Figura 1 Decorações no Templo de Hatshepsut, em Luxor, Egito Pr ze m ys la w "B lu es ha de " I dz ki ew ic z/ W ik im ed ia C om m on s As decorações nesse templo demonstram o uso de imagens em ações mágicas realizadas por sacerdotes em reverência ao deus Rá. 14 História, imagem e visualidade Para os egípcios, as imagens tumulares não eram meras decorações ou simplesmente uma forma de lembrança dos ancestrais, como entre os gregos e os romanos antigos. Tratavam-se, na verdade, de projeções visuais que poderiam concretizar os encantamentos no mundo dos mortos. Mas as imagens também poderiam servir para a realização de encantamentos no mundo dos vivos, sendo usadas como instrumento de comunicação com os deuses (neterus) e como meio para realização de operações mágicas (GRALHA, 2017). A imagem agindo como forma de encantamento é algo, sem dú- vidas, muito mais antigo do que os próprios egípcios; é uma prática que remonta ao período Paleolítico. Inúmeras inscrições rupestres, en- contradas em diversas regiões do mundo, apontam para essa relação íntima entre imagem e magia. É comum encontrarmos cenas de caça em cavernas como Lascaux, na França, ou no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Brasil. Em todo caso, essas imagens apontam para um possível uso da imagem como forma de projeção de uma intenção de manipulação das forças da natureza para o êxito durante a caça. Figura 2 Pinturas rupestres M in is té rio d a Cu ltu ra /W ik im ed ia C om m on s As pinturas rupestres no Parque Nacional da Serra da Capivara registram episódios da vida cotidiana dos povos do Paleolítico e demonstram uma forma de uso das imagens que aponta para a busca de manipulação das forças da natureza. Um segundo aspecto da origem da palavra imagem é que imago vem da raiz latina imitari, que designa a ideia de imitação ou semelhança. Uma terceira ligação aproxima o termo imagem do conceito grego de História, imagem e visualidade 15 mimesis. Essas duas designações, imitari e mimesis, apontam para a no- ção da imagem como representação, assim a imagem não é algo real, nem sequer uma recriação de algo real, mas a imitação de um objeto. Nesse ponto, o conceito de imagem perde a sua conotação mais an- tiga, deixa de ter aquele poder de projeção sobre a realidade e seu poder mágico-religioso, o qual se encontraria no período Paleolítico ou entre os antigos egípcios. Por volta dos séculos V e IV a.C., a palavra mimesis adquire, entre os gregos, o sentido de imitação ilusória, ilusio- nismo ou aparência. Ou seja, trata-se do oposto ao que é real, concre- to e verdadeiro. A imagem como mimesis, portanto, significa que ela é uma aparência ilusória e enganadora do objeto real e verdadeiro o qual ela busca representar (DIDI-HUBERMAN, 2015). Perceba como há uma grande diferença entre esses dois modos de interpretação das imagens. De um lado, vimos como a palavra imago compreende a ideia da imagem como uma substituta do real, sendo dotada de um sentido mágico-religioso e de uma capacidade de pro- jeção mágica sobre o real. Nesse caso, a imagem não se opõe à rea- lidade, mas a apoia, a sustenta e, ainda por cima, é capaz de criar e agir sobre ela. Por outro lado, encontramos na palavra mimesis uma ideia oposta ao conceito de imago. Como mimesis, a imagem é uma aparência irreal, possui uma qualidade enganadora, pois é completa- mente oposta ao real. Contudo, tanto na noção de imago quanto na de mimesis encontramos a ideia da imagem como representação, ou seja, a imagem não é o real que ela informa, mas uma “reapresentação” do real sob uma forma específica, a qual não pode ser confundida com o objeto por ela representado. Note como todas essas reflexões demonstram a diversidade de significados que estão ligados às imagens. O que importa perceber é que as imagens possuem sentidos, significados e finalidades bastante diferentes de um lugar do mundo para outro e de uma época para ou- tra. Isso porque as imagens, como fonte de conhecimento, expressam muito sobre o funcionamento de cada cultura e sociedade. Por sua vez, cada cultura e sociedade atribui funções, entendimentos e significados particulares sobre as imagens que produzem. Um bom exemplo disso é o modo como os portugueses tratavam os povos não cristãos durante a colonização da África, entre os séculos XV e XVIII. Ao ter contato com os africanos na Costa da Guiné, os conquista- dores portugueses, que eram católicos, deram o nome de fetiche para fetiche: objeto ao qual se atribui poder mágico ou sobrenatural e a que se presta culto. Glossário 16 História, imagem e visualidade definir os ídolos de pedra dos povos africanos. Essa palavra, portanto, era uma maneira pejorativa e preconceituosa usada para definir as ima- gens cultuadas pelos povos africanos como uma forma de idolatria. Os portugueses faziam isso, pois eram incapazes de compreender como era possível que os africanos consultassem imagens – ídolos de pedra, argila ou madeira – como se elas fossem um oráculo. Porém, os africanos po- deriam levantar a mesma suspeita sobre o modo como os portugueses rezavam sob os pés de uma cruz ou sob a imagem de uma mulher cha- mada Maria (LATOUR apud DIDI-HUBERMAN, 2015). Percebam como a diferença no modo como portugueses e africanos compreendiam suas imagens foi determinante para gerar desentendimentos e preconceitos que levaram a conflitos e guerras entre culturas diferentes. No mundo contemporâneo, acabamos por herdar algumas concep- ções sobre o significado das imagens. Em todo caso, os antigos mo- delos de imago e de mimesis foram preservados, sofrendo algumas modificações em seu sentido original. Podemos dizer que se manteve preservado o uso de imagens como forma de lembrança dos mortos (vide o uso de fotografias em cemitérios ou no álbum de família), assim como na forma de culto religioso (tal como encontramos na imagem dos santos da Igreja católica). Contudo, houve uma ampliação significativa tanto nos usos quanto nos significados atribuídos à imagem. Desse modo, a fotografia, por exemplo, passou a ser usada, desde o século XIX, como meio de identi- ficação dos cidadãos e até mesmo na identificação de criminosos; pos- teriormente, ela também começou a aparecer nas notíciasdos jornais, assim como a pintura passou a se disseminar no espaço público por meio dos grafites. Podemos incluir no rol de novidades o aparecimento da imagem digital, que amplificou a quantidade de imagens por meio da internet e virtualizou nossos rostos nas redes sociais. Todos esses exemplos têm em comum o fato de a imagem ter se transformado em um dos principais meios de comunicação no mundo contemporâneo. Ao longo do século XX, encontramos o ápice da explosão da cultura de massa, a qual, por meio da fotografia e do cinema, converteu as sociedades modernas naquilo que, a partir de 1960, Guy Debord (1939- 1994) denominou de sociedade do espetáculo (HAGEMEYER, 2012), ou seja, uma sociedade em que a imagem é responsável por mediar (de onde se origina o conceito de mídia) as relações humanas em direção a uma vida pautada no consumo acelerado de bens, serviços, informa- ções e valores estéticos efêmeros. História, imagem e visualidade 17 1.2 A imagem como fonte histórica Vídeo A história como campo das ciências humanas desenvolveu-se no século XIX. Nessa época, era vital para os historiadores elaborarem pesquisas baseadas em fontes escritas, já que os documentos es- critos utilizados eram o reflexo do tipo de objeto de pesquisa que interessava a eles. Grande parte eram documentos oficiais (como leis, tratados, cartas diplomáticas), os quais demonstravam como os assuntos desenvolvidos pelos historiadores deveriam dar conta da história dos Estados nacionais, da sua política, das suas guer- ras, das grandes personalidades e dos grandes acontecimentos. Em suma, a história como área do conhecimento científico nasceu como uma história política baseada em documentos escritos e oficiais (BURKE, 2012). Foi somente com a Escola dos Annales, movimento de renovação da história – iniciado em 1929, na França –, que os historiadores passaram a reconhecer gradativamente a importância das imagens como fonte para a criação de uma outra forma de história. Essa ou- tra forma de escrever a história passou a considerar a cultura, a so- ciedade e a economia como elementos fundamentais para explicar a vida dos seres humanos ao longo dos tempos. Essa guinada de uma história política para uma história social e cultural foi seguida de uma nova posição metodológica na pesquisa dos historiadores com rela- ção às suas fontes. Passa a se compreender, a partir de então, que se a história como campo do conhecimento pretende compreender a totalidade da vida humana, não apenas personalidades ilustres, precisará fazer uso de todos os tipos de fontes possíveis. Chamamos essa transformação no método histórico de ampliação da noção de documento histórico. Sobre esse assunto, os historiadores Cardoso e Mauad (1997, p. 172) afirmam que da Escola dos Annales: para cá, tanto a noção de documento quanto a de texto conti- nuaram a ampliar-se. Agora, todos os vestígios do passado são considerados matéria para o historiador. Dessa forma, novos textos, tais como a pintura, o cinema, a fotografia etc., foram incluídos no elenco de fontes dignas de fazer parte da história e passíveis de leitura por parte do historiador. Tal tendência está promovendo uma aproximação da história com outras disciplinas das ciências humanas, no sentido de desenvolver uma metodologia adequada aos novos tipos de textos. No livro A Escola dos Annales 1929-1989: a revolução francesa da his- toriografia, o historiador Peter Burke apresenta a trajetória das três gera- ções de historiadores que revolucionaram o modo como a escrita da história era desempenhada na França. O autor procura demonstrar as inovações em termos de novos objetos de pesquisa, novas abordagens e problemas, destacando a valorização do conheci- mento histórico com base na ideia de história total, ou seja, história de toda a produção humana ao longo dos tempos. BURKE, P. São Paulo: UNESP, 2012. Livro 18 História, imagem e visualidade Sendo assim, essa ampliação da noção de documento ou fonte histórica teve início com a primeira geração dos Annales, liderada pelos historiadores Marc Bloch (1886-1944) e Lucién Febvre (1878- 1956), no entanto se tornou mais acentuada na segunda e na ter- ceira geração, uma vez que a primeira foi conhecida por ter iniciado esse movimento de abertura, dando espaço para o uso de materiais originalmente pertencentes a outras áreas, como a geografia, a an- tropologia, a economia e a arqueologia. Desse modo, a aproximação entre as áreas fazia parte da propos- ta do movimento de construção de uma história interdisciplinar e foi assim que a história passou a utilizar materiais visuais de diferentes áreas do conhecimento, como a cartografia e seus diferentes mapas; a arqueologia e suas estelas; os utensílios agrícolas; os objetos ritua- lísticos; a numismática e as imagens em moedas; a paleografia me- dieval com seus textos repletos de ilustrações; a arte de um modo geral e suas inúmeras expressões plásticas: a pintura, a escultura e a arquitetura. Nessa mesma época, na década de 1930, um segundo movimen- to denominado Escola de Frankfurt, liderado por intelectuais como Horkheimer (1895-1973), Adorno (1903-1969) e Benjamin (1892- 1940), renovou os estudos no campo das artes, cultura e comuni- cação, analisando o impacto da cultura de massa do capitalismo sobre as sociedades modernas. Esses estudos foram centrais para que as ciências sociais avançassem em territórios novos, tal como as pesquisas sobre a fotografia e o cinema. A Escola de Frankfurt se transformaria em uma referência para inúmeras áreas no cam- po das ciências sociais, a exemplo da história que acolheria, mesmo que tardiamente (nas décadas de 1970 e 1980), os estudos sobre a fotografia e o cinema realizados por Walter Benjamin. Na segunda geração dos Annales (décadas de 1950 e 1960), hou- ve pouco investimento no desenvolvimento das pesquisas com fon- tes visuais, porém, na terceira geração (décadas de 1970 e 1980), emergiu uma preocupação mais interessada em aprofundar o uso das imagens como documento histórico. Dessa forma, a imagem passou a ser debatida entre a condição de documento histórico e a condição de objeto de pesquisa. Com pensamento filosófi- co e sociológico, a Escola de Frankfurt nasceu de um projeto de intelec- tuais da Universidade de Frankfurt - Alemanha em parceria com o Instituto de Pesquisa Social, no início do século XX. Com base na teoria crítica, foi criada uma interpretação do marxismo, da socio- logia e da política, sendo um importante marco na história. Importante História, imagem e visualidade 19 Sendo documento histórico, a imagem passa a ser reconhecida como testemunho do passado, um tipo de testemunho diferenciado em relação aos documentos escritos. Sua particularidade é o fato de se tratar de um tipo de fonte que possui uma linguagem diferen- te dos demais. Nesse sentido, os historiadores passam a buscar os códigos de leitura ou a “gramática” própria a cada tipo de imagem. Logo, a pintura, a fotografia e o cinema passam a exigir dos historia- dores um esforço maior no sentido de ler aquilo que não se encon- tra escrito na forma de palavras. Já como objeto de pesquisa, destacaram-se alguns estudos sobre o cinema e suas formas de influência sobre o comportamento e o imaginário social. O trabalho mais destacado foi o do historiador Marc Ferro (1924-2021), que publicou em 1974 um artigo na obra de três volumes nomeados: História: novos objetos; História: novos problemas; História: novas abordagens. Essa obra representou uma forma de apresentação dos novos objetos, problemas e abordagens propostos pela chamada Nova História (CARDOSO; MAUAD, 1997). O trabalho de Marc Ferro destaca a importância de os historiadores to- marem as imagens tal como elas se apresentam, não buscando nelas a função de ilustração de conteúdos ou a confirmação da veracidade de determinadas informações encontradas em outras fontes. Sendo assim, se tratando de cinema, Ferro defendeo filme como sendo algo entre fonte e objeto: “partir da imagem, das imagens. Não pro- curar somente, nelas, ilustrações, confirmações ou desmentidos de um outro saber, o da tradição escrita. Considerar as imagens tais quais são, mesmo se for preciso apelar para outros saberes para melhor abordá-las” (FERRO, 1992, p. 85). Os saberes a que o autor se refere aqui são a semiótica, a icono- logia e a história da arte. Isso demonstra a perspectiva que atraves- sou as três gerações da Escola dos Annales: produzir uma história interdisciplinar que possa se utilizar de conhecimentos oriundos de inúmeras áreas do saber, as quais deem apoio para ampliar o conhecimento histórico sobre o ser humano ao longo dos tempos. Atualmente, alguns historiadores têm apontado os limites na forma como as imagens foram tratadas pelas últimas gerações de historia- dores dos Annales. Podemos entender melhor essa crítica se perce- bermos como outras áreas do conhecimento, como a antropologia e 20 História, imagem e visualidade a sociologia, estiveram muito à frente da história no aprofundamento teórico e na qualidade do uso das imagens em suas pesquisas. Ain- da hoje, é possível encontrar essas limitações no uso da imagem por parte dos historiadores, principalmente pela prevalência do emprego da imagem como ilustração e como forma de confirmação do que se encontra nas fontes escritas (MENESES, 2003). Contudo, tanto a fotografia quanto o cinema são exemplos de um bom uso da imagem entre os historiadores. Nesses tipos de ima- gens, é notável o avanço metodológico no uso delas como fonte e no reconhecimento do problema da visualidade de modo interdepen- dente ao estudo das imagens. 1.3 O problema da visualidade Vídeo Visualidade e cultura visual são dois conceitos desenvolvidos no interior das áreas de estudos culturais na década de 1980, que só passaram a adentrar na área da história muito timidamente nos anos 2000 (KNAUSS, 2008). Para os historiadores que enxergavam nas imagens apenas seu potencial como fon- te histórica ou objeto de pesquisa, o proble- ma da visualidade e da cultura visual trouxe novas possibilidades, novos objetos, novos problemas e novas perguntas para o ofício da história. Em poucas palavras, o problema da visua- lidade apontava para os aspectos antropoló- gicos da imagem. Ou seja, apontava para os diferentes modos de como os seres humanos manifestavam formas de olhar, de observar e de representar o que viam. Como já mencio- namos anteriormente, as diferentes formas de visualidade são sempre dependentes das características culturais, pois estas informam não apenas valores, crenças e conhecimentos específicos, mas também um modo particular de olhar a realidade. Para esse modo diferen- ciado de observar e descrever a realidade, damos o nome de cultura visual. Figura 3 Alto-relevo egípcio Ch ip da we s/ W ik im ed ia C om m on s A imagem apresenta Seth (deus com cabeça de íbis) e Hórus (deus com cabeça de falcão) adorando Ramsés II. A posição da cabeça, dos braços, das pernas e dos pés aparecem em perfil, enquanto o tronco está defronte. As linhas do desenho prezam pelos ângulos retos. História, imagem e visualidade 21 Podemos demonstrar o problema da visualidade em uma cultura ao observarmos o modo como pes- soas, animais e plantas eram representadas nas pin- turas egípcias e o modo como esses mesmos objetos eram representados na cultura clássica grega. En- quanto egípcios prezavam por modelos de represen- tação antropozoomórficos para retratar seus deuses – isto é, uma mistura entre humano e animal–, os gregos faziam essa representação explorando mui- to mais o caráter humanístico dos deuses. No que diz respeito às formas e às técnicas empregadas, en- quanto os egípcios valorizavam as formas retas e um tipo de perspectiva particular no uso das duas dimen- sões, os gregos exploravam as curvas e certa noção de movimento. Considerando a comparação entre as duas socie- dades, poderíamos afirmar que uma possui um tipo de representação mais realista do que a outra? Cer- tamente, não. O que ocorre é que em cada socieda- de um tipo de visualidade específica foi desenvolvido por sua cultura. O estilo de representação encontra- do na imagem, portanto, revela uma forma de olhar que é específica em cada cultura; isso demonstra que o próprio ideal de uma imagem realista é sempre relativo, de- pendendo da cultura visual que uma sociedade possui. Podemos perceber com os exemplos apresentados como o estu- do sobre a visualidade e a cultura visual são fundamentais para se compreender a produção de imagens ao longo da história. Simul- taneamente, podemos afirmar que se desejamos, na condição de historiadores, compreender a estrutura de funcionamento de uma imagem, precisamos antes compreender qual é o tipo de cultura em que ela está inserida; mais ainda, quais são as formas de representa- ção produzidas, como funcionam e quais são as particularidades da linguagem visual da cultura estudada, ou seja, quais são as formas de leitura e interpretação das imagens. Ao tratarmos, inicialmente, das questões culturais básicas referentes ao modo de vida de uma sociedade, estamos mais aptos a compreender como funciona o sis- tema de comunicação das imagens, isto é, o que elas pretendem Figura 4 Escultura grega Gi or ce s/ W ik im ed ia C om m on s A imagem apresenta a deusa grega Afrodite. A escultura, situada no Museu Arqueológico de Bérgamo, na Itália, procura valorizar as curvas e os movimentos do corpo e do drapeado que o envolve. 22 História, imagem e visualidade comunicar e por qual motivo realizam essa comunicação de uma forma e não de outra. A visualidade não é, entretanto, só um meio para se conhecer melhor o processo de produção das imagens, pois não há dúvidas do quanto ela pode favorecer a compreensão de uma fonte visual; e quando situamos essa fonte no espaço/tempo em que é produzida, compreendemos o tipo de cultura que produz a imagem em ques- tão. Para os historiadores, a visualidade deve ser também um objeto de pesquisa, assim como são as religiões, a política, a economia ou a sexualidade. Dizer que ela é um objeto significa que os historiadores que trabalham com imagens devem também estudar as diferentes formas de olhar produzidas por determinada sociedade. Por sua vez, a visualidade pode ser um importante caminho não só para a compreensão das imagens, mas para a demonstração das ideo- logias que organizam uma sociedade. Ela é, nesse sentido, uma manei- ra de olhar que pode ser dirigida, ordenada, organizada por formas de poder. Isso significa que tanto o modo de olhar e ver quanto a imagem produzida não são expressões neutras ou sem intenção. Pelo contrá- rio, tanto a visualidade quanto a imagem estão envolvidas em relações sociais e podem ser objeto de disputas entre grupos. Uma outra maneira de abordar as relações entre visualidade e poder pode ser encontrada em estudos sobre o chamado regime es- cópico (METZ apud MENESES, 2003), regime de visualidade ou regime visual. A palavra regime designa, aqui, a noção de norma ou padrão, ou seja, trata-se de normas, regras ou padrões ensinados socialmen- te, os quais naturalizam um modo geral de como se olhar a realida- de. Nesse caso, é importante notar que esse padrão é o resultado do trabalho de inúmeras instituições (família, escola, exército etc.), responsáveis por orientar o aprendizado sensorial (olhar, apalpar, cheirar etc.) das pessoas em sociedade. Então, compreendemos que o poder não é apenas uma ideologia ou instituição (como o Poder Judiciário, por exemplo), mas é o efeito gerado por qualquer rela- ção social que produza um efeito no comportamento individual e coletivo. Assim, o regime escópico pode ser compreendido como o conjunto de elementos visuais que orientam o olhar de acordo com os tipos de relações sociais a que um indivíduo está sujeito. Uma terceira forma de estudar a visualidade como objeto de pes- quisaé abordar o papel das tecnologias no desenvolvimento da visão No livro A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019), a imagem é, notavelmente, uma estratégia ideológica que é capaz de moldar a vi- sualidade de uma cultura dominada pela cultura dominante. A dominada, nesse caso a indígena, é capaz de produzir táticas de sobrevivência e resis- tência diante da cultura dominante, católica e eu- ropeia. Mas, independen- temente de quem vença a guerra das imagens, na disputa entre essas culturas surge um novo tipo de cultura visual, um novo tipo de visualidade e produção de imagens, o qual é notado ainda hoje na cultura nacional mexicana. GRUZINSKI, S. São Paulo: Cia das Letras, 2006. Livro História, imagem e visualidade 23 e na transformação dos modos de visualização, isto é, como deter- minadas tecnologias foram responsáveis por transformar o regime visual da sociedade moderna. Dessa forma, da criação do microscó- pio ao desenvolvimento da câmera fotográfica, é possível verificar a interferência das tecnologias nas formas de olhar e interpretar o mundo e, mais ainda, na modelação e na orientação da visão. As- sim, podemos afirmar que o surgimento de inúmeras tecnologias modernas não só alterou as formas de representação das imagens, como também criou condições de recodificar a atividade do olho, ordená-la, elevar sua produtividade e impedir sua distração, no con- texto das sociedades capitalistas industrializadas (CRARY, 2012). Contudo, diferentemente de como fazem os antropólogos e so- ciólogos da imagem, essas três abordagens ainda foram pouco apli- cadas entre os historiadores. Considerando esse hiato no campo da história, Meneses (2003, p. 30) sugere três focos que, segundo o autor, merecem a atenção urgente dos historiadores na atualidade, afirmando que eles não podem ser tratados de maneira isolada: a) o visual, que engloba a “iconosfera” e os sistemas de comu- nicação visual, os ambientes visuais, a produção / circulação / consumo / ação dos recursos e produtos visuais, as institui- ções visuais, etc.; b) o visível, que diz respeito à esfera do poder, aos sistemas de controle, à “ditadura do olho”, ao ver/ser visto e ao dar-se/ não-se-dar a ver, aos objetos de observação e às prescrições sociais e culturais de ostentação e invisibilidade, etc.; c) a visão, os instrumentos e técnicas de observação, os papéis do observador, os modelos e modalidades do “olhar”. O visual, o visível e a visão são, portanto, três aspectos centrais para a análise da visualidade no trabalho historiográfico. O visual diz respeito a todo o sistema de comunicação visual, ao ambiente visual que recebe o nome de iconosfera, isto é, à estrutura de produção, ao consumo e ao uso de todo o produto visual. Sendo assim, propagan- das, mídias digitais e de massa ou o próprio mercado de consumo de imagens físicas ou virtuais estão inseridos nesse sistema e são responsáveis não só por fornecerem informações, mas também por produzirem formas de visualidade que influenciam comportamen- tos e hábitos, assim moldando o imaginário social. Por sua vez, o visível diz respeito ao que se deixa ou não ser vis- to em conformidade com perspectivas políticas e ideológicas; ao A noção de regime visual adentrou os estudos visuais com o livro Vigiar e punir: nascimento da prisão. Nele, Foucault analisa o nascimento dos sistemas de controle e vigilância em escolas, exércitos, fábricas e pri- sões, realizados com base em aparelhos de controle visual como o panóptico (mecanismo criado pelo jurista Jeremy Bentham, consistindo em uma torre com um holofote giratório para vigiar o mo- vimento dos presidiários em suas celas). Esse livro inaugurou a concepção de que a visualidade pode envolver formas de poder capazes de padro- nizar comportamentos corporais, gerando uma sociedade disciplinarizada e obediente. FOCAULT, M. Petrópolis: Vozes, 1997. Livro 24 História, imagem e visualidade mesmo tempo, pode se referir aos códigos de diferenciação social, a como são produtos visuais de determinada marca, até mesmo aos padrões de vigilância e controle. Por fim, a visão, como já aponta- mos, é moldada tanto pelos conhecimentos, técnicas e tecnologias criadas em cada contexto histórico, quanto pelas estratégias de con- trole e orientação do olhar por meio de aparelhos tecnológicos como câmeras, aplicativos de smartphones, satélites, microscópios etc. 1.4 Da historiografia à historiofotia: a conversão da história em imagens Vídeo Quando procuramos demonstrar o efeito que uma imagem pode produzir sobre seus observadores, costumamos usar uma antiga ex- pressão atribuída ao filósofo Confúcio: “uma imagem vale mais que mil palavras”. Essa frase possui uma interessante constatação, pois, em primeiro lugar, estabelece uma comparação entre imagem e pa- lavra e, em segundo, conclui que as imagens possuem um poder de demonstração muito superior a qualquer conjunto de palavras. Apesar de essa constatação vigorar na cultura popular, a ima- gem foi, durante muito tempo, relegada à marginalidade, tanto pela ciência ocidental quanto pela disciplina de História. Em parte, esse fato se deve ao logocentrismo, ou seja, à concepção de que a pala- vra possui um grau de importância e de qualidade explicativa maior do que qualquer imagem. Tal concepção foi desenvolvida na Europa por dois fatores fundamentais (DIDI-HUBERMAN, 2015): Em toda a Idade Média, a palavra tinha um alto grau de reconhecimento. Seja pelo cristianismo, religião fundada na palavra escrita da Bíblia, seja pelo valor da palavra falada, base da tradição dos juramentos de honra entre os cavalei- ros e os membros da nobreza (herança da tradição bárbara, a qual não pos- suía leis escritas), a palavra tinha um estatuto de confiabilidade maior do que a imagem. Aliás, a imagem fora utilizada de modo ambíguo na Idade Média, ao mesmo tempo que era utilizada como forma de veneração dos santos e márti- res da Igreja, ou mesmo por sua qualidade pedagógica como elemento central na educação cristã para as populações não letradas, ela fora também bastante empregada como instrumento de controle, por meio do medo do diabo ou das danações do inferno (muitas imagens em catedrais góticas foram utilizadas nesse sentido). Por outro lado, alguns tipos de imagens eram reconhecidos por seu poder de ilusão, por sua capacidade de enganar a consciência dos fiéis, sendo assim assimiladas como obra do diabo. História, imagem e visualidade 25 A partir da Revolução Científica do século XVI, a palavra escrita passa a ser reconhecida como a base principal para a elaboração e a credibilidade do conhecimento científico. Filósofos, como René Descartes, compreendiam que a base de todo o pensamento científico passava pela construção do texto escrito, seja na linguagem gramatical ou na matemática. A história como ciência, por sua vez, produziu a concepção de que as únicas fontes históricas reconhecidas seriam os documentos oficiais escritos. Ao mesmo tempo, herdou uma visão epistemológica oriunda do direito positivista: para provar a autenticidade de um documento histórico, este deveria ser cotejado com base em outros documentos escritos oficiais e, para ter valor de prova, era fundamental que fosse regido por autoridades de instituições reconhecidas pela lei, a qual, por sua vez, também era escrita. Mesmo em escolas posteriores, em que as fontes adquiriram uma maior amplitude, sendo a própria imagem reconhecida como fonte, a escrita continuou sendo a principal forma de se investigar e de se fazer ciência histórica. A justificativa elementar era e é a de que a história é um tipo de ciência e, como tal, só se desenvolve por meio de análises e críticas, as quais só poderiam fazer sentido na forma da linguagem es- crita. Não é à toa que, quando no campo da história se faz referência a algum estudo científico realizado ou aos procedimentos e métodos da história como ciência, fala-se em historiografia,em escrita da história, não em imagem ou iconografia da história. Evidentemente, não encon- traríamos a imagem como o centro da produção acadêmica da história simplesmente pelo fato de que a palavra escrita sempre foi o seu meio principal de produção, pelos motivos explicitados, e, novamente, pelo fato de que a história como ciência é filha, portanto, do logocentrismo. Mas, afinal, é possível que a história como campo do conhe- cimento científico seja feita por meio de imagens? Dito de outro modo, é possível ou mesmo desejável que a história se liberte do logocentrismo? Sem dúvida, não existe uma resposta absoluta para essas perguntas. O que podemos fazer para melhor respondê-las é verificar o estado da arte, ou seja, quais estudos, debates e expe- riências foram capazes de colocar uma nova condição para a pro- dução do conhecimento histórico por meio de imagens. Podemos iniciar afirmando que grande parte da crítica feita ao uso de imagens para produzir um trabalho histórico esteve cen- 26 História, imagem e visualidade trada no audiovisual. Em segundo lugar, a crítica inicial dos his- toriadores sobre a suposta impossibilidade de produzir história audiovisual está ligada à crítica da narrativa, segundo a qual a fun- ção dos historiadores não seria narrar, mas explicar e analisar. Em último lugar, é importante apontar que até a década de 1980 a comunicação audiovisual não era pensada como tendo o mesmo potencial da comunicação escrita, na medida em que o audiovi- sual seria supostamente limitado à dimensão narrativa no fluxo do tempo, sem atingir a intensidade analítica da comunicação escrita (HAGEMEYER, 2012). Um dos primeiros historiadores a superar essas críticas e traba- lhar a questão da história audiovisual de modo bastante aprofunda- da foi Robert Rosenstone (1936-). Esse historiador norte-americano foi responsável por uma vasta produção historiográfica que pôde ser adaptada na forma de documentário histórico. Para ele, dois aspectos são centrais no debate entre a história escrita e a produ- ção de documentários históricos: a narrativa histórica e a análise dos dados resultantes da pesquisa histórica (HAGEMEYER, 2012). Com base nos estudos de Rosenstone, Hayden White (1928- 2018) produziu o conceito de historiofotia, como demonstração de um tipo de história desenvolvida com base em imagens. Diferente da historiografia, que seria marcada pela centralidade da palavra, a historiofotia é a história feita tendo por recurso principal o uso de imagens, particularmente em sua forma audiovisual. Contudo, a questão central que movimenta os debates sobre a produção da história audiovisual é a sua relação com a ficção e a narrativa. A ficção por ser apontada como o mal do qual todo historiador deve fugir e a narrativa por ser o modo pelo qual a ficção costu- ma ser explorada. Nesse sentido, toda a produção audiovisual se- ria desenvolvida em duas formas possíveis: como filme/ficção ou como documentário. Fomos acostumados a perceber essa divisão como uma maneira de assegurar quando um audiovisual está fa- zendo referência a “fatos reais” ou quando está fazendo referência a uma história fantasiosa ou imaginária. Entretanto, tal divisão entre documentário e filme/ficção impede a percepção de que tanto no caso deste quanto no daquele estão em jogo aspectos ficcionais, como o estilo e a montagem, os quais O filme/documentário Cabra marcado para morrer trata da morte do líder camponês João Pedro Teixeira (1962, Paraíba), que foi assassi- nado por latifundiários. Começou a ser rodado em 1964, foi interrompi- do pela ditadura militar e retomado em 1981. Os atores foram os próprios camponeses moradores do Engenho da Galileia (PB) e a esposa do camponês assassi- nado, Elisabeth Teixeira. Coutinho conseguiu pro- duzir um documentário histórico entre realismo e ficção, influenciado pelo neorrealismo italiano (sem preocupação em esconder o processo de produção dos filmes). Direção: Eduardo Coutinho. Brasil: Mapa Filmes do Brasil, 1964-1984. Documentário História, imagem e visualidade 27 procuram figurar uma remontagem do passado. Da mesma forma, na escrita da história há também um trabalho de montagem (resul- tado da pesquisa, seleção de fontes, tipo de abordagem, tema etc.) e um estilo de escrita. No que diz respeito ao estilo, tanto a história quanto o cinema/documentário trabalham ao modo da linguagem da literatura. Ambos possuem um enredo que pode ser trágico, cô- mico, romanesco ou satírico. Sendo assim, tanto a história escrita (historiografia) quando a história visual (historiofotia) podem con- ter elementos ficcionais e ao mesmo tempo realistas/científicos. Desse modo, Hayden White (2010, p. 219 apud HAGEMEYER, 2012, p. 141) afirma que: nenhuma história, visual ou verbal, “espelha” todos ou mesmo a maior parte dos acontecimentos ou cenas do que ela se propõe a relatar, e isso também é verdade até mesmo para a mais estreitamente restrita “micro-história”. Toda história escrita é produto de um processo de condensação, deslocamento, simbolização e qualificação, exatamente igual àqueles usados na produção de uma representação fílmica. É apenas o meio que difere, não a maneira pela qual as men- sagens são produzidas. Portanto, a diferença estaria mais no meio utilizado para nar- rar e analisar (audiovisual ou escrito) do que entre uma linguagem mais ficcional ou mais realista/científica. Nesse sentido, o debate deveria estar mais preocupado em compreender como cada meio é capaz de extrair efeitos positivos para a reconstrução da história de que se pretende tratar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pudemos observar até aqui, os debates sobre imagem e vi- sualidade têm muito a contribuir para o desenvolvimento do campo da história. Mesmo que grande parte dos historiadores ainda tenha pouca familiaridade com as teorias que orientam o uso das imagens, houve um grande avanço nos últimos anos no sentido de melhorar as possibilida- des de como se escrever a história com base nestas. Mais do que isso, é possível afirmar que as imagens impõem aos historiadores do século XXI a necessidade de reavaliar os métodos da história e por quais meios ela pode ser produzida. 28 História, imagem e visualidade O mundo digital, marcado pela presença constante de imagens, é pro- va dos desafios que os historiadores têm pela frente no que diz respeito ao uso das imagens em seus trabalhos. Desafio que não está apenas na quantidade de imagens e na necessidade de utilizá-las ou de como fazê- -las, mas sim no estudo sobre as transformações nas formas de visua- lidade das sociedades contemporâneas. Ao mesmo tempo, a presença massiva do audiovisual nas plataformas digitais, a construção de inúmeras narrativas históricas por meio do YouTube, a produção de novos filmes e documentários históricos em séries da Netflix têm recolocado aos histo- riadores a necessidade de envolvimento tanto na crítica quanto na produ- ção de materiais audiovisuais. Não só a preocupação em se envolver na produção audiovisual, como também a atenção em debater e problematizar as diversas formas de nar- rativas presentes nesses meios virtuais são, sem dúvidas, o novo papel que o mundo das imagens impõe aos historiadores contemporâneos. Se que- remos estar presentes na construção qualificada de materiais audiovisuais e auxiliar na análise crítica dos diversos tipos de produtos audiovisuais, na sua exploração mercadológica ou nos abusos ideológicos, como o revisio- nismo histórico e as fake news, é importante estarmos habilitados com os instrumentos teóricos necessários para o estudo crítico das imagens. ATIVIDADES 1. Vimos como imago está ligada à lembrança de algo ou alguém ausente. Apresente um exemplo de imagem que possui algum valor afetivo em sua vida e procure verificar quais tipos de lembranças aparecem em sua mente. Procure descrever quais outras imagens mentais surgem associadas a essa primeira imagem. 2. Quais são os problemas encontradospelos historiadores no uso da imagem como ilustração? 3. O que é visualidade e qual é a sua importância no estudo da história? 4. Em sua opinião, a história feita por meio de imagens possui alguma vantagem comunicativa em relação à história escrita? Justifique sua resposta. Vídeo História, imagem e visualidade 29 REFERÊNCIAS BURKE, P. A Escola dos Annales 1929-1989: a revolução francesa da históriografia. São Paulo: UNESP, 2012. CARDOSO, C. F.; MAUAD, A. M. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CRARY, J. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: História da Arte e anacronismo das imagens. São Paulo: Humanitas, 2015. FERRO, M. O filme, uma contra-análise da sociedade? In: FERRO, M. (org.). Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 79-115. GRALHA, J. C. M. Deuses, faraós e poder: legitimidade e imagem do deus dinástico e do monarca no antigo Egito. Rio de Janeiro: JCG Editor, 2017. GRUZINSKI, S. A guerra das imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019). São Paulo: Cia das Letras, 2006. HAGEMEYER, R. R. História e audiovisual. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. HOUAISS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. KNAUSS, P. Aproximações disciplinares: história, arte e imagem. Anos 90, Porto Alegre, UFRGS, v. 15, n. 28, p. 151-168, dez. 2008. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/ article/view/7964. Acesso em: 26 jul. 2021. MENESES, U. T. B. de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45. p. 11-36, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16519.pdf. Acesso em: 26 jul. 2021. https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/7964 https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/7964 https://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16519.pdf 30 Imagem e cultura visual 2 Teorias da imagem e da visão Neste capítulo vamos estudar algumas importantes teorias sobre a arte, a imagem e a visualidade, procurando demonstrar como os pro- cessos de comunicação e leitura das imagens foram compreendidos por alguns historiadores da arte, linguistas, semiólogos e outros. Como você vai perceber, os estudos sobre arte, imagem e visualidade têm um forte caráter interdisciplinar, e é justamente por isso que muitas teorias pude- ram ser desenvolvidas com tanto rigor e qualidade. Como forma de compreender a qualidade expressiva e comunicativa das imagens, vamos começar apresentando os estudos realizados pela linguística e pelo estruturalismo. Vamos acompanhar os esforços não só da linguística como também da semiótica e da iconologia no sentido de desenvolver diferentes formas de estudo das imagens, e assim perceber as particularidades de cada proposta de estudo. Além disso, vamos com- preender a importância da virada visual e dos estudos visuais e culturais, bem como suas contribuições para novos debates, questionamentos e propostas para o estudo das imagens. Este capítulo trará a oportunidade de nos aprofundarmos em al- guns conceitos como sociedade escópica e regime de visualidade. Por fim, verificaremos as tensões epistemológicas no estudo da história da arte e da imagem, traduzidas nos conceitos de realismo e simulacro. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • compreender a imagem como uma forma de linguagem organizada pela cultura visual; • perceber as transformações históricas nos estudos teóricos sobre a imagem; • perceber as diferenças entre iconografia, iconologia e semiótica; • reconhecer as contribuições da virada visual e dos estudos culturais para o estudo das imagens; • dominar os conceitos de oculocentrismo, sociedade escópica e re- gime de visualidade; • compreender a tensão epistemológica entre realismo e simulacro no estudo das imagens. Objetivos de aprendizagem Teorias da imagem e da visão 31 2.1 Linguagem visual e cultura visual Vídeo Quando dizemos que uma imagem é capaz de comunicar, entende- mos por comunicação a ação pela qual uma mensagem é transmitida. Não há dúvidas de que as imagens transmitem algo, por mais subje- tiva que possa ser essa transmissão. O que interessa notar é que, no processo de transmissão de uma mensagem, temos um comunicador (a imagem) e um receptor (quem a observa); entre o comunicador e o receptor algo é comunicado. É esse “algo” – um dado, uma informação, um sentimento, uma lembrança – que concede à imagem o poder de nos tocar, de nos afetar como observadores. Então pensemos bem: se a imagem é capaz de nos tocar, de nos afetar, de nos comunicar algo, não teria ela uma natureza semelhante à da linguagem? Foi pensando dessa forma que muitos estudiosos procuraram compreender a capacidade de comunicação da imagem. Nesse sen- tido, tornou-se comum afirmar que a linguagem não é uma proprie- dade exclusiva da palavra falada ou escrita, mas sim um conjunto de instrumentos de comunicação da qual as imagens também fazem parte. A esse tipo de linguagem fornecida pelas imagens se deu o nome de linguagem visual. Para entendê-la, porém, precisamos an- tes conhecer como se deu a organização dos primeiros estudos da linguagem que influenciariam as formas e os métodos de interpre- tação da linguagem visual. Os estudos da linguagem se tornaram muito influentes sobre as mais diversas áreas das ciências humanas e sociais a partir de 1950. Pelo menos desde a publicação do livro As estruturas elementares do parentesco (1948), do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), a linguagem passou a ganhar espaço central no modo como as so- ciedades humanas e suas criações passaram a ser estudadas por sociólogos, antropólogos, historiadores, filósofos, psicanalistas e ou- tros estudiosos. É possível afirmar que o impacto dessas novas pesquisas centra- das no estudo da linguagem abriu caminho para o movimento que, a partir da década de 1940, na França, foi denominado de estruturalis- mo (CARDOSO; MAUAD, 1997). O estruturalismo era uma designação para essa nova perspectiva metodológica, que muitos pesquisado- res passaram a compartilhar. Em linhas gerais, esse movimento retomava os ensinamentos de Ferdinand de Saussure (1857-1913), Compreendendo a cultura como um sistema de signos compartilha- dos, Claude Lévi-Strauss estudou alguns povos como os aborígenes australianos. Seu obje- tivo era compreender o funcionamento dos sistemas de matrimônio e parentesco, verificando como a linguagem e a nomenclatura permitem definir os círculos de parentes e aliados. Na compreensão do antro- pólogo, existem entre as diversas culturas algumas estruturas inconscientes e universais, que passam pela linguagem, respon- sáveis por organizar comportamentos sociais, a exemplo da interdição do incesto. LÉVI-STRAUSS, C. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982. Livro 32 Imagem e cultura visual famoso linguista francês que procurou demonstrar, no início do sé- culo XX, como a linguagem era a base de todos os significados e sentidos criados pelos seres humanos em sociedade. Sendo assim, a língua seria responsável por dar sentido a todas as atividades hu- manas e da natureza, a todos os objetos e sujeitos, podendo mesmo se afirmar que ela seria responsável por dar sentido a toda a vida de um modo geral. Se a língua é tão determinante para definir a realidade em que vive- mos, a linguagem (a capacidade de comunicação escrita e verbal) era o primeiro instrumento ou tecnologia desenvolvida pelo ser humano para organizar as diversas línguas existentes. Perceba que, ao falar em linguagem, estamos tratando de uma faculdade ou capacidade huma- na, enquanto, ao falarmos de língua, estamos nos referindo a uma es- trutura formal de códigos, símbolos ou caracteres que uma sociedade específicadesenvolveu e que a difere das demais. A língua pode também ser definida pela oralidade, sem necessitar de uma escrita que a organize. No entanto, mesmo assim, ela possui uma estrutura formal, um sistema de sons vocálicos que, nesse caso, tem por base a voz e não a escrita. De um modo ou de outro, temos o fato comum de que toda linguagem possui uma estrutura ou sistema que a organiza. Foi reconhecendo a existência desse sistema ou estrutura que o movimento estruturalista passou a considerar que, para se com- preender qualquer sociedade humana, é necessário antes de tudo en- tender o funcionamento da linguagem dela (CARDOSO; MAUAD, 1997). Mas, afinal, qual é o motivo de começar pela linguagem? Por que a linguagem é tão importante? Por que ela é a primeira referência para se entender uma sociedade? As respostas para essas perguntas estão no fato de que a linguagem é a primeira forma de expressão organizada do pensamento humano. E, se o pensamento é a base racional de toda a criação humana, necessariamente devemos passar pela linguagem se desejamos compreender as criações humanas, sejam elas materiais e tecnológicas, sejam os próprios conhecimentos e técnicas desenvolvi- dos. Em suma, todas as invenções humanas são produto da linguagem. O principal resultado que podemos destacar de todo esse empenho na valorização do poder da linguagem foi o que viria a ser denominado na década de 1960 de virada linguística (linguistic turn) (CARDOSO; MAUAD 1997). Com esse nome, procura-se abarcar todo um movimen- Teorias da imagem e da visão 33 to de intelectuais das mais diversas áreas, os quais estavam antena- dos na importância de mapear os principais efeitos da linguagem na vida social. O psicanalista Jacques Lacan (1901-1981), que definiu o in- consciente como uma forma de linguagem, e o filósofo Michel Foucault (1926-1984), o qual demonstrou com o conceito de discurso que todas as formas de saber constroem a lente ou a grade de leitura pela qual mensuramos e naturalizamos nossa realidade, são alguns exemplos de intelectuais envolvidos de diferentes formas em análises sobre a lin- guagem e seus efeitos sociais, culturais, políticos e psicológicos. Roland Barthes (1915-1980) foi um dos intelectuais franceses que se dedicou a compreender as estruturas da linguagem, inicialmente no campo da literatura, e buscou, posteriormente, compreender os mecanismos envolvidos na produção de imagens, em particular no es- tudo da fotografia (CARDOSO; MAUAD, 1997). Foi nessa oportunidade que Barthes desenvolveu, com base na influência da linguística, os pri- meiros estudos sobre semiótica, isto é, a ciência que estuda os signos visuais e seus significados. Contudo, somente na década de 1980 iniciou-se outra forma de es- tudo das imagens, que era independente dos estudos da linguagem e que, portanto, passava a reivindicar a autonomia da imagem e da visualidade em relação à linguagem simbólica, semiótica ou iconológi- ca (KNAUSS, 2008). Esse movimento teve origem nos EUA e recebeu o nome de estudos visuais, uma espécie de ramificação dos chamados es- tudos culturais e que, em oposição ao movimento da virada linguística, denominou-se visual turn, ou virada visual. A grande crítica lançada por esse movimento foi a de que a imagem não poderia simplesmente ser reduzida ao papel de uma linguagem, tal como proposto pelo movimento estruturalista. Muito embora tenha a capacidade de comunicar, a imagem deveria ser tratada como um elemento autônomo em relação à linguagem falada e escrita. Portanto, seus problemas e implicações não poderiam ser reduzidos às análises baseadas em códigos linguísticos, como signos, caracteres e sons. Sua estrutura de comunicação era outra, suas implicações eram outras, seus problemas e questões eram outros, simplesmente porque se tra- tava de uma outra modalidade de comunicação. Devido a essas críticas, os estudos sobre a imagem adquiriram ou- tros contornos e conteúdos. A imagem passou necessariamente a ser 34 Imagem e cultura visual integrada à noção instrumental da visão, a qual passava a ser objeto de interesse para se estudar adequadamente os problemas da imagem. Unindo imagem e visualidade como elementos interdependentes, nas- ceu uma nova noção de estudo denominada cultura visual. Com esse conceito, buscou-se demonstrar que o estudo das imagens precisava necessariamente passar pelo estudo das diferentes formas de olhar. Entrou em questão, a partir desse momento, a necessidade de enfren- tar o dilema do observador, ou seja, de como as diferentes formas de olhar são construídas socialmente por meio da cultura. São as manei- ras de olhar, os tipos e formas de visão, portanto, que vão deslocar o problema da imagem como uma questão de linguagem para uma questão de visualidade. A imagem passou, assim, a ser compreendida menos como o resul- tado de uma linguagem visual e mais como o resultado de uma cultura visual. Não que a linguagem visual fosse questionada como inexistente, mas, ao fortalecer a ideia de cultura visual, pretendia-se demonstrar a centralidade da cultura e da experiência, muito mais baseada na vi- são, no olhar, do que propriamente na fala ou na escrita. Dessa forma, tornou-se possível demonstrar que mesmo considerando o potencial de comunicação das imagens, isto é, a imagem como uma forma de linguagem, sua compreensão não poderia se limitar aos mesmos mé- todos de análise fornecidos pela linguística e pelo estruturalismo lin- guístico. Seria necessário propor métodos que encarassem as imagens muito mais em seu aspecto não verbal, como um problema relaciona- do à visão e ao seu modo particular de comunicação. 2.2 A iconologia de Erwin Panofsky e a semiótica de Roland Barthes Vídeo Os primeiros e mais consistentes estudos sobre o funcionamento comunicativo das imagens se deram a partir da disciplina de História da Arte. Desde o século XIX, o estudo sobre a pintura era realizado com base em dois aspectos centrais: forma e conteúdo. A forma dizia res- peito ao tipo de representação, à modelagem ou ao estilo dos objetos e personagens presentes nas pinturas. Já o conteúdo se referia aos sig- nificados presentes na pintura e em cada forma representada. De um modo geral, os historiadores da arte deram o nome de iconografia para a atividade de descrição e compreensão das imagens. A palavra icono- Teorias da imagem e da visão 35 grafia, etimologicamente, significa a descrição verbal de um ícone, ou seja, de uma imagem (HOUAISS, 2009). Em linhas gerais, podemos dizer que era exatamente este o tipo de trabalho ao qual os historiadores da arte se dedicavam: descrever verbalmente os significados das imagens. Erwin Panofsky (1892-1968), historiador da arte alemão, desenvol- veu obras como O significado nas artes visuais (1955) que renovaram o estudo das imagens, particularmente da pintura. Em sua análise de- senvolveu o método iconológico, que compreendia que a iconografia era apenas uma das etapas do trabalho de decifração das imagens. Dessa forma, demonstrou que enquanto a iconografia correspondia ao trabalho de descrição dos significados da imagem, a iconologia com- preendia o objetivo final do trabalho de análise: a interpretação da ima- gem, como meio de encontrar o seu significado profundo no interior de uma cultura mais ampla. Assim, dividiu o estudo das imagens em três etapas: pré-iconográfica, análise iconográfica e análise iconológica (PANOFSKY apud DIDI-HUBERMAN, 2015). De acordo com Panofsky, as três etapas do método iconológico po- deriam ser descritas da seguinte forma: Fase primária (nível pré-iconográfico): essa fase ou nível diz respeito ao contato natural que uma pessoa tem diante de uma imagem. Nesse momento, o que conta é a experiência visual, que não supõe nenhum conhecimento prévio sobre os significados da imagem, limitando-se a uma descrição superficial. 1 Panofsky (apud DIDI-HUBERMAN, 2015) dá o exemplo da imagem de um homem segurando o seu chapéu. Qualquer pessoa que visua- lizeesse homem e a ação que ele realiza saberá identificar tanto o homem quanto o chapéu. Um outro exemplo clássico seria a pintura A Última Ceia, de Leonardo da Vinci (1452-1519). Na fase pré-iconográ- fica da análise dessa obra, basta que se reconheça a presença de tre- ze homens sentados em uma mesa. Poderíamos especificar detalhes como as vestes, os alimentos, os objetos e todos os demais elementos que poderiam ser identificados sem esforço. Perceba que se trata de um modo muito similar ao que uma criança faria ao descrever um qua- dro. Contudo, se chegarmos a definir que se trata de Jesus, seus após- tolos ou mesmo reconhecermos a pintura, já teremos avançado para a fase secundária ou iconográfica. O filme O Código da Vinci apresenta o professor de Iconografia Religiosa e Simbologia da Universi- dade de Harvard, Robert Langdon, interpretado por Tom Hanks. Inspirado no livro homônimo de Dan Brown, o filme retrata Langdon tentando solucionar o assassinato do curador do Museu do Louvre, Jacques Saunière. Como bom semiólogo, o professor procura pistas em quadros de Leonardo da Vinci, como Mona Lisa e A Última Ceia, explorando um thriller de conspiração e mistério, envolvendo ordens secre- tas como o Priorado de Sião e símbolos lendários como o Santo Graal. Direção: Ron Howard. EUA: Columbia Pictures, 2006. Filme 36 Imagem e cultura visual Fase secundária (nível iconográfico): nessa etapa há um notável avanço qualitativo na descrição da imagem. O primeiro aspecto é a identificação do tema, dos personagens, do artista que produziu a obra e uma percepção avançada sobre os significados de cada elemento (personagens, objetos, formas, cores) na composição do quadro. 2 É o momento em que a imagem do homem tirando o chapéu ganha significação. Agora podemos afirmar que o gesto de tirar o chapéu é uma forma de cumprimento, de cavalheirismo, o qual remonta ao período medieval, quando os cavaleiros retiravam seus elmos em sinal de paz (PANOFSKY apud DIDI-HUBERMAN, 2015). Voltando ao exemplo de A Última Ceia, podemos afirmar que, ao identificarmos o pintor Leonardo da Vinci como autor da obra, descrevermos o tema da pintura (a última ceia de Jesus com seus apóstolos) e reconhecermos os símbolos e ícones que per- mitem identificar cada personagem, o ambiente e os significados possíveis de cada elemento da imagem, estamos adentrando no nível iconográfico propriamente dito. A percepção e o estudo so- bre o contexto, valendo-se de outras referências, bibliografias e fontes sobre o autor, a obra e o período em que foi produzida, são também parte dos instrumentos do nível ou método iconográfico. Fase do significado intrínseco ou conteúdo (nível iconológico): esse último nível se trata mais de uma síntese do que propriamente de uma análise da imagem. Considerando que a descrição seja a função da iconografia, a iconologia se vale dos elementos anteriormente apreendidos para então captar o significado último da obra no contexto em que foi criada, verificar que tipo de mensagem a obra transmitiu para seus contemporâneos. Mais ainda, nessa fase entram na análise os elementos extrínsecos à obra. 3 Aqui entram detalhes sobre a vida do artista, sua formação, os motivos que o levaram a pintar tal tema, os fatos envolvidos na confecção da obra, para quem se destinava, o local em que foi pro- duzida ou em que seria exposta. No caso da pintura de A Última Ceia, podemos reconhecer o fato de a pintura ser destinada ao re- feitório do Convento de Santa Maria das Graças em Milão. Assim, podemos apontar para o fato de Leonardo da Vinci ter escolhido o tema do quadro em conformidade com o local ao qual seria desti- nado por seus compradores, o que revela que a escolha do tema Teorias da imagem e da visão 37 da última ceia se relacionava diretamente ao ambiente no qual o quadro deveria ser exposto. Figura 1 Quadro com referência ao local de exposição He llo w or d/ W ik im ed ia C om m on s Fonte: DA VINCI, L. A Última Ceia. 1945. Pintada têmpera e óleo sobre duas camadas de gesso aplicadas em estuque. 460 x 880 cm. Refeitório de Santa Maria delle Grazie, Milão. Apesar de a apresentação do método de Panofsky parecer em um primeiro momento ser organizado em fases distintas e progressivas, é mais adequado compreender essas fases como níveis interdepen- dentes, que podem ser realizados alternadamente em um mesmo tempo. Assim, a análise iconográfica é um nível da análise iconoló- gica, o que significa que a descrição do tema da imagem poderá ser desenvolvida enquanto se analisam as ligações da imagem com a cultura que a torna possível. Um segundo intelectual de grande importância para o estudo das imagens foi Roland Barthes. Diferentemente de Panofsky, que esta- va situado especificamente no campo da História da Arte, Barthes fora professor de Semiologia Literária no Collège de France na dé- cada de 1970. Sua aproximação com a linguística e os estudos li- terários são centrais para compreendermos como sua atuação no campo das imagens, especificamente da fotografia, foi marcada por uma outra forma de análise, absolutamente baseada nas noções de signo, significante e significado presentes na linguística de Ferdinand de Saussure. 38 Imagem e cultura visual Barthes desenvolveu seus estudos com base na semiologia de- senvolvida por Saussure, ou seja, no estudo dos sistemas de signo e comunicação presentes nas sociedades. A semiologia ou semiótica, nesse sentido, pode também ser compreendida como o estudo do sis- tema de significação presente em qualquer suporte comunicativo – na língua ou fala, na escrita do texto, na fotografia, no monumento, no fil- me etc. (CARDOSO; MAUAD, 1997). É possível compreendê-la, portan- to, como o estudo de discursos presentes em qualquer suporte que ofereça a capacidade de construir significados. Esse aspecto da sua metodologia de estudo é muito importante para entendermos como sua análise das imagens é dependente dos estudos sobre a linguagem e as formas de comunicação. Em sua obra A Câmara Clara (Le Chambre Claire – 1980) encontramos Barthes se dedicando a compreender a estrutura de funcionamento da imagem fotográfica. Estudos anteriores, como A mensagem fotográfica (Le Message Photographique – 1961) e Retórica da Imagem (Rhetorique de l’Image – 1964), já exploravam o caráter semiótico da imagem fotográ- fica. Entretanto, na última obra há um intenso investimento na análise desse tipo de imagem, deslocando o modo como as imagens vinham sendo compreendidas pela iconologia até então. Conforme afirmam Cardoso e Mauad (1997, p. 580), citando a visão de Barthes: para ele, “a fotografia impressa é uma mensagem formada por uma fonte emissora, um canal de transmissão com um ponto de recepção”. Tal mensagem assume vários sentidos, dependendo do canal pelo qual foi expressa. Mas o que transmite não é a realidade, mas sim seu analogon. Neste sentido, a imagem fo- tográfica, tal como todas as artes imitativas (desenhos, pintura, cinema e teatro), é uma mensagem sem código, pois, ao invés de transformar a realidade, na verdade a reduz. O processo de re- duzir a realidade múltipla a imagem resulta, entretanto, de uma escolha que, sem dúvida, deverá ser estabelecida com base em critérios ou regras que pressupõem a existência de um código. Vemos aqui que, diferentemente da iconografia e da iconologia, que propõem uma forma de interpretação da imagem em que os códigos de representação podem ser descritos e recolocados pelo historiador da arte em seu contexto original, na semiótica de Barthes a imagem é uma mensagem sem código. O que significa dizer que a mensagem não possui um código? Significa que, diferente do que ocorre na linguagem escrita ou falada, a imagem não é capaz de predicação (WHITE apud Teorias da imagem e da visão 39 HAGEMEYER, 2012). Em outras palavras, a imagem por si só é incapaz de declarar, discursar ou narrar sobre o que nela se passa. Contudo, ela tem a capacidadede conotação – é capaz de evocar elementos sub- jetivos na forma de signos (pose, objetos, forma, estética, fotogenia, efeitos especiais, sintaxe etc.). Nesse sentido, a imagem é capaz de pro- duzir códigos apenas na medida em que é possível extrair dela formas de conotação. No que diz respeito à fotografia, Barthes pretende resol- ver tal questão por meio da noção de “paradoxo fotográfico”. Para ele, “a fotografia insere um paradoxo que pode ser constatado a partir da existência de duas mensagens: (a) uma sem código – a analogia foto- gráfica; (b) a outra com código – a arte ou o tratamento, a escrita ou a retorica da foto” (CARDOSO; MAUAD, 1997, p. 580). Logo, podemos considerar que a imagem fotográfica possui um código de conotação, que pode ser encontrado na sociedade e época em que a fotografia é tirada. Sendo assim, devido à existência desse código, a leitura e a interpretação da fotografia são sempre históricas. Em segundo lugar, a fotografia só possui significado quando é verba- lizada, e, aliás, só é percebida se verbalizada. A metalinguagem, por- tanto, é a chave de leitura da imagem. Em última instância, é somente a linguagem verbal o signo universal, ou seja, o único signo capaz de produzir uma interpretação das imagens. Há em Barthes, dessa for- ma, uma clara rejeição da iconicidade do código, do valor semântico da imagem pela imagem. Esse é um modelo para a análise de imagens baseado totalmente na interpretação linguística proposta por Barthes (CARDOSO; MAUAD, 1997). Um dos grandes problemas da redução da imagem fotográfica à análise linguística é não conseguir explicar a relação entre o plano da forma do conteúdo e o plano da forma da expressão. Ambos, conteúdo e expressão, não são elementos naturais presentes na imagem foto- gráfica, pois são o resultado da escolha de ângulos, planos, iluminação, enquadramento etc. (CARDOSO; MAUAD, 1997). Tais escolhas técnicas, somadas ao que Fabris (apud VAZ, 2009) denomina como partido com- positivo – os códigos de representação social que dão sentido à pose do fotografado –, são o resultado de uma experiência construída so- cialmente. Sendo assim, o modelo linguístico não consegue dar conta de tais aspectos, que são referentes ao caráter não verbal da imagem. Isso acaba reduzindo as possibilidades de comunicação e produção de sentido nas mensagens presentes nas imagens. 40 Imagem e cultura visual Desse modo, a crítica apresentada ao trabalho de Roland Barthes ve- rificou que sua análise teria sido demasiadamente focada no conteúdo da imagem fotográfica, na sua tradução por meio da linguagem verbal, deixando de perceber o caráter da imagem fotográfica como artefato. Explorar a imagem como artefato significa reconhecer o seu aspecto ma- terial, de objeto produzido por uma sociedade, portanto o modo como participa e circula em um determinado contexto histórico, fazendo parte da cultura material ou mesmo da cultura visual de uma sociedade. 2.3 A virada visual e os estudos visuais Vídeo Na década de 1980, os estudos visuais abriram novas perspectivas para o estudo das imagens. Tais estudos se desenvolveram como uma nova alternativa em relação a métodos considerados ineficazes para a resolução das novas problemáticas da imagem. De um lado, estavam a iconografia e a iconologia de matriz panofskyana, que pareciam não dar conta das novas questões lançadas sobre o problema da visuali- dade e da cultura visual; de outro, as limitações impostas pela análise exclusivamente linguística oriunda da semiótica de Roland Barthes. Os estudos visuais foram um resultado da intersecção entre os es- tudos sobre cultura visual e os estudos culturais. A chamada visual turn (virada visual) ou pictorial turn (virada pictórica) foi o movimento res- ponsável por esse trabalho de superação da linguagem como elemento central para a análise das imagens. Ao mesmo tempo, era um reflexo de novas interrogações e novos problemas colocados pela visualidade e pela cultura visual. Entretanto, a virada visual foi antecedida pelo que se convencionou denominar de cultural turn (virada cultural), a qual, no início dos anos 1980, colocava a cultura como o centro do debate sobre o social (KNAUSS, 2008). Podemos afirmar que foi com base em um trabalho interdisciplinar entre departamentos de pesquisa nos EUA e na Inglaterra que tiveram origem as primeiras pesquisas em estudos visuais. Em 1989, fora criado o programa de Estudos Culturais e Visuais da Universidade de Rochester, nos Estados Unidos. Esse programa foi responsável por articular uma colaboração interdisciplinar entre a história da arte e a literatura compa- rada. Em 1998, foi a vez do programa de Estudos Visuais da Universidade de Califórnia de Irvine (UCI), por iniciativa dos programas de cinema e Teorias da imagem e da visão 41 história da arte (KNAUSS, 2008). Na Inglaterra, o interesse pelos objetos visuais e pela cultura visual ampliaram os interesses do estudo da visua- lidade para além do campo da história da arte (disciplina e área). É importante salientar que os estudos visuais são o resultado de um abandono da ênfase no pictórico para dar lugar ao visual e à visua- lidade como o centro da reflexão sobre a problemática da imagem. O próprio termo cultura visual procura dar conta desse aspecto centrado na visualidade, procurando demonstrar a especificidade cultural da vi- sualidade, “não tomar a visão como dado natural e questionar a univer- salidade da experiência visual” (KNAUSS, 2008, p. 155). De acordo com o autor, existem dois fundamentos gerais que explicam a cultura visual, de modo abrangente e restrito: inicialmente, pode-se caracterizar uma definição abrangente que aproxima o conceito de cultura visual da diversidade do mundo das imagens, das representações visuais, dos processos de vi- sualização e de modelos de visualidade. [...] Em contraposição, é possível reconhecer um outro ponto de vista que define cultura visual de modo restrito, como o de Chris Jenks, que serve para abordar especificamente a cultura ocidental, definida pela cen- tralidade do olhar. Esse ocularcentrismo, segundo o argumen- to do autor, estabelece a primazia do olhar como recurso para relacionar uma natureza exterior com uma mente interior, que traduz a metodologia da observação e o princípio epistemológi- co do empirismo como base do pensamento científico ocidental. (KNAUSS, 2008, p. 155) Seja de modo amplo ou restrito, o conceito de cultura visual se tor- nou central para compreender tanto a diversidade do mundo das ima- gens e seus modos de representação quanto a centralidade do olhar no processo de configuração da ciência ocidental, configurando-se como a base para estruturação de seu pensamento. Entretanto, é possível identificar um conjunto bastante amplo de desdobramentos com base nos debates sobre a cultura visual. O primei- ro deles é apontado por Mirzoeff (apud KNAUSS, 2008), que compreen- de como função central do estudo da cultura visual o entendimento da mediação tecnológica da imagem digital na visualidade global con- temporânea. Nesse caso, a cultura visual é tomada em um contexto independente das imagens e focada na “tendência moderna de figurar ou visualizar a existência” (MIRZOEFF, 1999, p. 5 apud KNAUSS, 2008 p. 156). Essa tendência está relacionada ao modo como a cultura visual 42 Imagem e cultura visual pode ser explorada para demonstrar a ligação entre representação e poder cultural na era global. No caso da Inglaterra, temos um outro trabalho sobre cultura visual desenvolvido pelo historiador da arte Michael Baxandall (1933-2008) denominado Olhar Renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença, o qual elaborou o conceito de olhar de época, que desig- na os padrões visuais compartilhados e que demarcam as formas de visualidade com que uma época é capaz de interpretar suas imagens (BAXANDALL, 1991). Assim, tanto o pintor quanto o consumidor de arte compartilham uma competência visual socialmente informada.Como se percebe com esse exemplo, no caso anglo-saxão, a crítica está cen- trada em dessacralizar o objeto artístico, desnaturalizando tanto o con- ceito de arte quanto o estatuto do artista (KNAUSS, 2008). É necessário salientar aqui que o que estava em jogo nos estudos anglo-saxônicos, inicialmente, era romper com a teoria universal que fundou a história da arte. Desse modo, foi possível reconhecer que o valor estético não era algo permanente, mas sim uma construção social constante ao longo da história. Esse deslocamento no modo como se observava o caráter estético da imagem forneceu condições para a afir- mação das teorias sobre a cultura visual. Como consequência, teve-se uma história da arte que, a partir de então, passou a ser reconhecida mais como uma história das imagens e das formas de visualidade do que como uma dos estilos e das técnicas da arte. Um terceiro movimento teórico ligado à cultura visual e ao visual turn foi aquele desenvolvido na Alemanha, desde Aby Warburg (1866-1929) e Erwin Panofsky. Ambos foram responsáveis pelo desenvolvimento de estudos sobre iconografia e iconologia (não desenvolvendo estudos so- bre cultura visual). Porém, o que os coloca em posição singular quanto à tradição da história da arte é o fato de se dedicarem ao estudo de um amplo conjunto de imagens, como a fotografia e o cinema, não ficando restritos somente ao âmbito tradicional do que se entendia como alta cultura artística. Evidentemente, esses autores não estiveram presen- tes na virada visual dos anos 1980, mas seus estudos foram de grande importância para o desenvolvimento da cultura visual na Alemanha. Se- gundo Horst Bredekamp (apud KNAUSS, 2008), cabe sublinhar: que nessa tradição a história da arte engloba todo o universo de imagens, tomando todas as suas formas seriamente como objeto de estudo. Mas o que fica evidente no esforço de conceitualização Teorias da imagem e da visão 43 do historiador da arte alemão é a intenção de manter os estudos das diversas fontes visuais no âmbito da história da arte, evitan- do assim a ideia de que a história da arte só se dedica a obras da alta cultura. Há claramente um projeto de definição alargada da história da arte como Bildwissenschaft para evitar a construção de uma oposição disciplinar entre o objeto da história da arte e do estudo de outras imagens. Nesse sentido, ele aponta o pro- blema de uma certa tendência dos estudos visuais, tal como se apresenta na vertente anglo-saxônica contemporânea, de mui- tas vezes contrapor-se à história da arte, restringindo também o seu foco. Divergindo da visão anglo-saxônica sobre a história da arte, para Bredekamp, o objetivo dos estudos visuais não é contestar a história da arte, mas alargar os objetos com que ela se ocupa. É, portanto, trans- formar a história da arte em um campo que reconheça na cultura vi- sual um instrumento para o estudo de todas as formas de imagem: de propaganda, filmes, iconografia política, arte digital e uma gama de expressões figurativas e visuais que compõem o mundo das imagens na contemporaneidade. Outro aspecto destacado no estudo da cultural visual é a pesqui- sa da imagem como artefato, ou seja, como instrumento que pode- rá circular na forma de objeto visual. Essa visão, apesar de retomada pela virada visual, pode ser considerada mais uma contribuição de Aby Warburg para o estudo das imagens. Nela tem-se a perspectiva de uma história da imagem amplamente situada em uma ciência da cultura (kulturwissenschaft), inspirada nos estudos culturais de Jakob Burckhardt. Entretanto, no contexto da virada visual, a iconologia sofre um deslocamento, indo de uma ciência da análise e interpretação de imagens na história da arte para uma história da imagem e, ao mesmo tempo, uma antropologia da imagem, à qual vem se somar uma histó- ria do olhar (BELTING apud KNAUSS, 2008). 2.4 Oculocentrismo, sociedade escópica e regime de visualidade Vídeo A cultura visual pode também ser um indicativo sobre como a cons- trução epistemológica – portanto, a construção do conhecimento – tem uma forte base visual no Ocidente. Ao menos desde o Renascimento Cultural, o olhar fora compreendido como um dos sentidos mais im- 44 Imagem e cultura visual portantes e confiáveis para a captação da realidade no mundo ociden- tal, ao que damos o nome de oculocentrismo. Mais ainda, o olhar fora considerado uma espécie de sentido superior aos demais, o que levou o próprio método científico a se desenvolver tendo por base principal a observação visual. Meneses (2003, p. 13) indica que com a Revolução Científica logo mais vai assentar as bases do “oculo- centrismo” do mundo moderno, particularmente no que diz res- peito à representação do espaço e às teorias ópticas — que não negam seus débitos para com a Antiguidade clássica. As guerras de imagens, na Reforma, ou na colonização europeia do Novo Mundo, demonstram a permanência do caráter predominante- mente afetivo e ideológico. Todavia, o aparecimento de algumas tecnologias e conhecimentos ópticos desenvolvidos no século XIX foi responsável por uma guina- da no modo como a compreensão sobre o papel do olhar se dava até então. Concluiu-se, a despeito do notável reconhecimento do elevado estatuto do olhar como instrumento do conhecimento científico, que a realidade observada está intimamente relacionada ao tipo de obser- vador que sobre ela lança o seu olhar (CRARY, 2012). Ao mesmo tempo, chegou-se à conclusão de que uma visão integral da realidade era uma absoluta ilusão – não só óptica, mas também cultural – compartilhada pelas sociedades ocidentais. Cabe salientar que algumas tecnologias como o taumatrópio, o zoo- trópio e o estereoscópio foram responsáveis por transformar o regime visual da sociedade moderna. Figura 2 Taumatrópio M ic ha el Fr ey /W ik im ed ia C om m on s Taumatrópio é um disco no qual há um desenho em cada lado, de modo que, quando ele é girado rapidamente, os desenhos se completam. O exemplo ilustrado mostra um vaso de um lado e um ramo de flores do outro. A impressão gerada pelo movimento do disco é a de que as flores estão dentro do vaso. https://commons.wikimedia.org/wiki/User:MichaelFrey Teorias da imagem e da visão 45 . Figura 3 Zootrópio An dr ew D un n/ W ik im ed ia C om m on s Zootrópio é um cilindro com perfurações por meio das quais é possível enxergar desenhos que representam uma sequência de movimentos. Um eixo gira o cilindro dando a sensação de que a imagem está em movimento. Um exemplo conhecido é o desenho de um cavalo em seus movimentos respectivos. Quando o cilindro é girado, dá a impressão de que o animal está correndo. Figura 4 Estereoscópio Jo aq ui m A lve s Ga sp ar /W ik im ed ia C om m on s Estereoscópio é um dispositivo que possui duas lentes com diferentes graus e uma plataforma com duas imagens (fotografias) similares. O dispositivo produz a impressão de se estar observando uma imagem tridimensional. 46 Imagem e cultura visual Tal como na criação do microscópio e no desenvolvimento da câ- mera fotográfica, é possível verificar a interferência dessas tecnologias nas formas de olhar e interpretar o mundo e, mais ainda, na modela- ção e orientação da visão. Desse modo, é possível considerar que o surgimento dessas tecnologias modernas não só alterou as formas de representação das imagens, como também criou condições de reco- nhecer um fenômeno que se tornou conhecido como persistência re- tiniana, segundo o qual a visão não é instantânea e os objetos vistos permanecem durante um tempo mesmo após deslocado o olhar que sobre eles se dirigiam (CRARY, 2012). O primeiro desdobramento desse fenômeno para o estudo da vi- sualidade e da cultura visual é o de que a imagem é o resultado da percepção do observador, não uma projeção da realidade sobre ele. O segundo desdobramento é o reconhecimento do “engano” visual, fruto não somente de uma falha no olhar, mas da própria constituição do corpo/mentee da sua relação com a tecnologia (CRARY, 2012). A visão, a partir de agora, perde a relação com o seu referente, pois ela passa a valer por si própria, e a representação da imagem passa a ser consi- derada pura representação. Em outras palavras, se uma imagem antes era entendida como a representação de um objeto (referente), agora, com essas novas experiências tecnológicas, o olhar passa a ser enten- dido como um instrumento incapaz de alcançar a verdade da imagem. Por esse motivo, qualquer representação de uma imagem será tão so- mente uma representação, não mais uma possibilidade de compreen- der o objeto representado. Como veremos adiante, uma das consequências dessa modificação no regime de visualidade no século XIX foi a configuração da noção de simulacro, a qual é a ideia de que a imagem é o resultado de uma simulação que engana o olhar e impede o encontro com o realismo, concernente à verdade da imagem. Percebam que, de uma época para outra, as convenções e regras que definiam o papel do olhar e sua capacidade de percepção da reali- dade foram radicalmente alteradas. Os motivos são muitos, mas, em li- nhas gerais, o que se pode afirmar é que tal mudança foi o resultado de uma transformação tanto nas tecnologias, nos conhecimentos produzi- dos, quanto nas regras que orientavam e estabeleciam as convenções visuais. Em suma, damos o nome de regime de visualidade para esse conjunto de regras, convenções, tecnologias, conhecimentos e ferra- Teorias da imagem e da visão 47 mentas que moldam a visualidade de uma época. Quando falamos em regime de visualidade, no entanto, devemos compreender as relações de poder que estão colocadas na relação entre olhar, imagem e tec- nologias/conhecimentos. Cabe lembrar que a palavra regime designa, aqui, a noção de normas, regras ou padrões ensinados socialmente, os quais naturalizam um modo geral de como se olhar a realidade. É im- portante notar que esse padrão é o resultado do trabalho de inúmeras instituições, responsáveis por orientar o aprendizado sensorial (visão, olfato, tato, audição e paladar) das pessoas em sociedade. Nesse caso, compreende-se que o poder não é apenas uma ideo- logia ou instituição (como o Poder Judiciário), mas o resultado gerado por qualquer relação social que produza um efeito no comportamento individual e coletivo. Assim, o regime escópico pode ser compreendido como o conjunto de elementos visuais que orientam o olhar de acordo com os tipos de relações sociais a que um indivíduo está sujeito. Michel Foucault (apud CRARY, 2012) demonstrará como a sociedade moderna do século XIX se converteu em uma sociedade escópica, que passa a ser moldada por inúmeros dispositivos, tecnologias e saberes ligados ao olhar e à visualidade. Nas décadas de 1960 e 1970, a sociedade capitalista ocidental passou por uma segunda fase da sociedade escópica denominada sociedade do espetáculo. De acordo com Guy Debord (apud MENESES, 2003), essa sociedade seria a nova fase cultural do capitalismo. Nes- sa etapa, a imagem é um instrumento central para mediar as relações sociais. Mais ainda, a imagem se transforma em um instrumento que cumpre o papel de mediar não somente as informações entre emissor e receptor, mas também a produção e o consumo. Sendo assim, a indústria cultural e os grandes meios de comuni- cação se convertem em propulsores de um estilo de vida pautado no consumo, no qual as imagens têm um papel central como media- doras do processo de comunicação e orientação do comportamento cultural, a exemplo das campanhas publicitárias, dos outdoors ou mesmo do design visual. Seja como for, o que o novo regime de vi- sualidade dos séculos XIX e XX produziu progressivamente foi uma crise no que diz respeito ao realismo da imagem. E é sobre isso que falaremos adiante. 48 Imagem e cultura visual 2.5 A imagem entre realismo e simulacro Vídeo A perspectiva realista trouxe a noção de que a imagem pode ser o resultado de processos seguros de captação da realidade, os quais seriam o resultado do emprego adequado de técnicas visuais unido a uma compreensão racional do funcionamento da imagem. Os re- nascentistas são os melhores exemplos desse investimento em tor- no de uma arte que pretende retratar com fidelidade a realidade, valendo-se do apuro técnico e de um vasto leque de conhecimentos que possam cobrir as falhas dos seus predecessores no processo de representação visual da realidade. A busca pelo controle de formas, cores, luz e sombra, o movimento do traço, o emprego adequado da perspectiva por meio do ponto de fuga são alguns exemplos das téc- nicas voltadas para esse empreendimento ambicioso em retratar um objeto realisticamente. Entretanto, quando os estudos visuais deslocaram o problema do estudo da imagem para o da cultura visual, ficou perceptível como o processo de elaboração das imagens era o resultado de um regime de visualidade que abria a possibilidade de um tipo de pintura e um tipo de artista. Mais ainda, ao se perceber como as tecnologias, os conhecimentos, as regras e os códigos circulavam em sociedade com- pondo um regime de visualidade, tornou-se claro que o realismo era tão somente o resultado de uma experiência possível de visualidade entre tantas outras possíveis. Se o olhar é, portanto, um instrumento suscetível de ser dirigido, enquadrado, organizado, moldado ou simplesmente orientado pela cultura em que se vive, isso é um sinal evidente de que o realismo difi- cilmente seria uma categoria possível de ser pensada universalmente em todos os lugares e momentos da história. Se o realismo é o resul- tado do seu tempo ou do modo como cada sociedade compreende o que lhe parece merecer tal denominação, ele sem dúvida é uma expe- riência relativa e, então, existiriam muitas formas de realismo, o que, no final das contas, demonstra como nenhuma dessas formas é sufi- cientemente realista. Ernst Gombrich (1909-2001), historiador da arte austríaco, levan- tou, em muitas ocasiões, o questionamento sobre os diferentes modos como o mundo visível fora representado nas diversas culturas que es- No livro Simulacros e si- mulação, Baudrillard traz o conceito de simulacro como símbolos e signos que não possuem mais relação com a realida- de, apresentando três formas: natural (imita a realidade; diferencia re- presentação e realidade), produtivo (cópias produ- zidas por máquinas após a Revolução Industrial; cópia vista como ameaça ao objeto real) e ciberné- tico (não há mais objeto real a ser representado; o simulacro é virtual, sem relação com um referente real). No cibernético, percebe-se a saturação do mundo simbólico, transformando o mundo real em um mundo per- dido; signos e símbolos funcionam sozinhos, sem referentes reais. BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’água, 1991. Filme Teorias da imagem e da visão 49 tudou. Algumas questões levantadas por esse autor são fundamentais para entendermos os limites do realismo: por que diferentes idades e diferentes países representaram o mundo visível de maneira tão distinta? As pinturas [e fotografias] que hoje consideramos fiéis à realidade parecerão tão pouco convincentes para futuras gerações como a pintura egípcia para nós? Será inteiramente subjetivo tudo que diz respeito à arte ou haverá padrões objetivos na matéria? E se houver, se os métodos ensinados hoje nas classes de modelo vivo resultam em imita- ções mais fiéis da natureza que as convenções adotadas pelos egípcios, por que os egípcios não as adotaram? (GOMBRICH, 2007, p. 3) Diante das perguntas de Gombrich, algumas respostas foram for- necidas, seja por ele, seja pelos estudiosos da cultura visual. Em linhas gerais, poderíamos dizer que as diferentes formas de representação da realidade não são o resultado da diferença entre limitação e apuro técnicos. Em outras palavras, a qualidade técnica ou as convenções pic- tóricas não garantem que uma pintura será fiel à realidade. Isso quer dizer que não há umaforma artística que possa ser mais realista do que outra, simplesmente pelo fato de que o real passa, antes de tudo, pelo olhar. Sendo assim, trata-se de uma questão de como a visualida- de impacta o modo como um objeto é representado e como tal repre- sentação pode ser considerada satisfatória para os padrões visuais de uma cultura e época. E o que dizer quando as tecnologias e os saberes começam a de- monstrar que a experiência do olhar é sempre parcial, limitada ou mesmo falha? É aí que encontramos a ideia de simulacro, isto é, a concepção de que a imagem ou os nossos próprios olhos nos enga- nam. Com a ideia de simulacro, tornou-se provisoriamente possível elaborar uma oposição ao realismo como forma de leitura das ima- gens. Alguns estudos voltados à compreensão do papel mercadoló- gico das imagens – textos de orientação marxista que procuravam verificar o papel do fetichismo da mercadoria atuando por meio das imagens, seja em propagandas, rótulos, marcas ou na própria noção de sociedade do espetáculo – demonstraram o poder enga- nador e alienador das imagens (BENJAMIN apud DIDI-HUBERMAN, 2015). A imagem aqui retomava suas origens como imago, noção religiosa de sacralização, que seria capaz de enganar devido ao seu encanto estético. 50 Imagem e cultura visual Um bom exemplo do modo como a arte passou a ser pensada como simulacro é a tela do pintor surrealista René Magritte (1898- 1967) denominada A traição das imagens. Exposta em 1929, nela encontramos a imagem de um cachimbo acompanhada da ines- perada legenda: Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo). O quadro é uma paródia, mas possui uma perspectiva teórica bas- tante literal. A impressão causada pela visão da imagem e a leitura da mensagem que questiona o que os olhos veem são a de que o observador está, portanto, diante de um engano. A proposta da pintura é justamente colocar o problema da vi- sualidade no próprio quadro, fazer pensar até que ponto estamos realmente diante de um cachimbo. Em que medida o ícone repre- sentado é apenas um ícone? Ou mesmo, em que medida nossos olhos nos enganam ao crermos estar diante de um cachimbo? Es- ses questionamentos e reflexões encontrados nessa obra são o re- flexo de uma preocupação mais ampla com o estatuto da imagem e do olhar, que passaram a ser definidos com a palavra simulacro. Figura 5 Releitura da obra A traição das imagens em grafite, em Bucareste (Romênia) bi xe nt ro /W ik im ed ia C om m on s Teorias da imagem e da visão 51 CONSIDERAÇÕES FINAIS A iconografia, a iconologia e a semiótica foram, durante muito tempo, os instrumentos teóricos disponíveis para o estudo das imagens. A en- trada em cena dos estudos visuais abriu espaço para um outro modo de estudar as imagens e de responder às questões fundamentais da história da arte, como a diferença entre estilos artísticos, técnicas e a própria inter- pretação do significado do conteúdo das imagens. A grande contribuição dos estudos visuais para a história da arte, afinal, foi colocar as perguntas de uma outra forma, deslocar as questões sobre forma e conteúdo das imagens para as questões de visualidade. Por esse motivo, o conceito de cultura visual se tornou tão importante. Foi graças a ele que se tornou possível compreender como determina- dos estilos, técnicas e valores estéticos eram absolutamente dependentes da cultura visual de uma sociedade. Com isso, abriram-se novas formas de abordar as convenções artísticas como o resultado de códigos visuais compartilhados socialmente. Ao mesmo tempo, foi possível dar-se conta de que o realismo seria uma categoria inapropriada para compreender as diferentes formas de representação visual. Assim, ao considerarmos que a própria visão agiria como um filtro im- perfeito, limitado e parcial daquilo por ela observado, chegou-se à con- clusão de que a imagem refletiria muito mais o modo de olhar de uma sociedade do que a realidade por ela um dia vista. ATIVIDADES 1. Apresente uma breve definição sobre cultura visual. 2. Considerando a relação existente entre as inovações tecnológicas e a visualidade, apresente exemplos que demonstrem como as tecnologias alteram a nossa cultura visual. 3. Vimos como os estudos visuais acabaram acentuando uma crítica antiga à ideia de realismo na arte. Em sua opinião, é possível produzirmos uma arte realista? Justifique sua resposta. Vídeo 52 Imagem e cultura visual REFERÊNCIAS BAXANDALL, M. Olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. CARDOSO, C. F.; MAUAD, A. M. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CRARY, J. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. São Paulo: Humanitas, 2015. GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação. São Paulo: Martins Fontes, 2007. HAGEMEYER, R. R. História e audiovisual. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. KNAUSS, P. Aproximações disciplinares: história, arte e imagem. Anos 90, Porto Alegre, UFRGS, v. 15, n. 28, p. 151-168, dez. 2008. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/ article/view/7964. Acesso em: 26 jul. 2021. MENESES, U. T. B. de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16519.pdf. Acesso em: 26 jul. 2021. VAZ, R. A. O que o retrato retrata? Identidade e Ficcionalidade no Retrato Fotográfico. Revista Esboços, Florianópolis, UFSC, v. 15, n. 19, p. 257-261, 2009. Disponível em: https:// periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/2175-7976.2008v15n19p257/9184. Acesso em: 26 jul. 2021. https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/7964 https://seer.ufrgs.br/anos90/article/view/7964 https://www.scielo.br/pdf/rbh/v23n45/16519.pdf https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/2175-7976.2008v15n19p257/9184 https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/2175-7976.2008v15n19p257/9184 Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 53 3 Da História da Arte aos estudos históricos da imagem Neste capítulo, vamos conhecer a trajetória dos estudos das imagens no campo da história e da história da arte. Primeiro, vamos compreender qual é o papel da história da arte e da iconografia no desenvolvimento das primeiras formas de estudo sobre pintura e estética, analisando casos específicos de estudos da imagem dentro do campo da história da arte. Em seguida, verificaremos as contribuições de alguns autores para o de- senvolvimento da história social por meio do estudo das pinturas como fonte histórica. O primeiro caso que analisaremos é o estudo da pintura de autores como Aby Warburg (1866-1929) e Ernst Gombrich (1909-2001), buscando compreender como eles se serviram dos instrumentos metodológicos da história da arte de diferentes formas. No segundo caso, vamos analisar, de modo mais aprofundado, o estudo produzido por Michael Baxandall (1933-2008) e de que forma esse autor trouxe uma abordagem inovadora para a história da arte, valendo-se de um estudo sobre o olhar de época e seu papel no desenvolvimento dos códigos de representação estéticos. Ao mesmo tempo, vamos focar as contribuições de seu trabalho para a história social da arte. Por fim, vamos analisar o modo pelo qual dois autores, de maneira dis- tinta, forneceram instrumentos para o estudo das imagens. O historiador Carlo Ginzburg (1939-) detectou uma metodologia histórica denominada de paradigma indiciário. Já o historiador e filósofo Georges Didi-Huberman (1953-) foi o responsável por revolucionar o estudo das imagens com baseem uma análise sobre o tempo, o sujeito e a imagem. 54 Imagem e cultura visual 3.1 História da arte e iconografia Vídeo Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • identificar as origens dos estudos iconográficos e as contribui- ções fornecidas pela história da arte no estudo das imagens; • compreender os métodos de estudo de Aby Warburg e Ernst Gombrich; • reconhecer a inovação da abordagem de Baxandall em rela- ção à tradição da história da arte; • entender o paradigma indiciário proposto por Carlo Ginzburg para o estudo da história e sua contribuição para o estudo das imagens; • compreender a relação entre imagem, sujeito e tempo em Georges Didi-Huberman. Objetivos de aprendizagem O reconhecimento da imagem como objeto de estudo científico apareceu muito tardiamente na história europeia. Podemos afirmar que os primeiros movimentos surgiram na história dos antiquários nos séculos XVI e XVII. De acordo com Francis Haskell (1928-2000) (apud MENESES, 2003), os antiquários possibilitaram o uso empírico de dados retirados de esculturas, pinturas, catacumbas, moedas e outros artefa- tos preservados desde o período clássico da Grécia e da Roma. Desse modo, antiquários, foram responsáveis por superar um pre- conceito histórico no uso de imagens, conferindo a elas o valor de fonte histórica (KNAUSS, 2008). Cabe destacarmos que “no Renascimento já houvera um esforço sistemático de coletar e organizar imagens artís- ticas e decodificar simbolicamente seus significados, esforço que vai desembocar mais de três séculos depois na iconografia como prática científica“ (MENESES, 2003, p. 13). Os primeiros estudos de história da arte desenvolvidos durante o Renascimento foram realizados pelo artista florentino Giorgio Vasari (1511-1574). Essa experiência de estudo histórico da arte constituiu o primeiro movimento no sentido de mapear as biografias de artistas e o trabalho em torno de suas obras. Trata-se do primeiro estudo de ca- ráter teleológico, ou seja, que pretende delinear um sentido histórico definido para arte. Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 55 Vasari acreditava que a arte teria passado por ciclos de auge, decadência e renascimento. Assim, desde Giotto di Bondone (1267-1337), no século XIV, a Europa estaria vivendo o renascimento de valores estéticos antigos, perdidos durante a Idade Média. A história da arte seria, portanto, uma demonstra- ção da evolução estética em direção à perfeição. É importante salientarmos que, desde suas ori- gens, a história da arte não se limitou ao estudo das obras e dos artistas, mas envolveu uma preo- cupação constante com o contexto histórico, a his- tória da crítica e da teoria artística, debates sobre o valor estético, o belo, o desenvolvimento de co- nhecimentos técnicos, estilos, formas e conteúdos. Desde cedo, a história da arte demonstrou nítida preocupação com as dimensões sociais, políticas e econômicas que vigoravam e explicavam a relação entre a obra, o artista e o seu contexto histórico. Assim, ela envolveu uma preocupação constante com a circulação, a troca, a negociação, os diversos mediadores do processo artístico (colecionadores, conservadores, curadores, mecenas e destinatá- rios da obra de arte), como também com os elementos comunicativos, a emissão e a recepção da obra de arte. Contudo, foi com os trabalhos desenvolvidos no contexto germâni- co (austríaco e alemão) que a história da arte ganhou maior sistemati- zação. Em 1764, foi publicado o livro História da arte na Antiguidade, de Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), um importante estudo que demonstrou a historicidade do gosto e da estética. Marcado pelo período neoclássico, Winckelmann identificou, em sua época, um período de crise (com a presença do estilo rococó) e, ao mesmo tempo, de busca e retorno ao clássico. Entretanto, a grande contribuição de seu trabalho foi observar a notável distância entre os conceitos de belo na Grécia Antiga e na Europa do século XVIII. Com esse estudo, a história da arte dava um passo em direção ao reconhecimento das transformações históricas dos conceitos es- téticos na arte. Fonte: DI BONDONE, G. A Crucificação. c.1330. Têmpera sobre madeira. 39 x 26 cm. Museu de Belas Artes, Estrasburgo. Figura 1 Renascimento dos valores estéticos. Eu ge ne a /W ik im ed ia C om m on s 56 Imagem e cultura visual Contudo, foi somente com o desenvolvimento da história da arte como disciplina científica, no século XIX, que o estudo das imagens passou a receber um tratamento metodológico consistente. Nessa época, encontramos alguns desses movimentos, chegando mesmo a constituir uma disciplina autônoma, como se deu a partir de 1844, na Universidade de Berlim. Ao mesmo tempo, o século XIX marcou o aparecimento dos museus e o desenvolvimento da arqueologia, fruto do desejo de descobertas mais detalhadas sobre as formas de vida das populações colonizadas da Ásia e da África. O imperialismo europeu foi responsável pelo saque e pela pilhagem de uma vasta quantidade de obras de arte, arquite- tura, escultura, estatuária e cerâmica dos povos africanos e asiáticos. Na Europa, os museus receberam grandes levas de objetos e imagens oriundas desses povos. Academias de Belas Artes se espalharam pela Europa; e o cresci- mento dos movimentos nacionalistas e das revoluções transformaram a arte em instrumento da política. Movimentos de renovação da arte moderna, como o impressionismo, passaram a questionar os cânones estéticos e uma multidão de estilos artísticos despontaram, ampliando dramaticamente o papel da arte e do artista na sociedade europeia. Nesse caldeirão de transformações, vemos a história da arte se firmar como uma disciplina, organizando métodos mais consistentes, que procuravam responder às necessidades de estudo e de análise das mais diversas formas artísticas possíveis. Figura 2 A arte como instrumento político Cr is co 1 49 2/ W ik im ed ia C om m on s Fonte: DELACROIX, E. A liberdade guiando o povo. 1830. Óleo sobre tela, 260 x 325 cm. Museu do Louvre, Paris. Esse quadro foi símbolo nacional da Revolução Francesa. Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 57 A iconografia aparece, nesse contexto, como um instrumento meto- dológico central para a análise das imagens. Em linhas gerais, foi enca- rada como o estudo dos significados convencionais da imagem, ou seja, dos seus elementos comunicativos, da mensagem transmitida pela obra de arte. Ela já estava presente desde os primeiros estudos durante o Renascimento, mas só veio a se fixar como uma prática científica a partir do século XIX. Contudo, foi apenas a partir da segunda metade do século XX que a iconografia teve seu auge. Foi com a chamada Escola de Warburg que alguns teóricos da arte, como Erwin Panofsky (1892-1968), desenvol- veram estudos que definiram critérios mais sofisticados no trabalho de interpretação das imagens. Com Panofsky, fortaleceu-se os estudos sobre a iconografia, posi- cionando esta como um instrumento central para uma análise descri- tiva e de detalhamento dos aspectos das imagens. Panofsky dividiu a atividade de análise da obra de arte em três fases: Fi re of he ar t/ Sh ut te rs to ck Pré-iconográfica: primeiro contato visual com a imagem. Iconográfica: temas, conteúdos e alegorias, bem como a contextualização histórica dos significados simbólicos da imagem. Iconológica: todos os aspectos do entorno cultural da obra de arte. Para Panofsky (2011, p. 47), a iconografia seria, portanto, “o ramo da história da arte que trata do tema ou mensagem das obras de arte em contraposição à sua forma”. 3.2 A pintura em Aby Warburg e Ernst Gombrich Vídeo Aby Warburg é, sem dúvida, um dos maiores expoentes dos estudos sobre imagens entre o século XIX e XX. Sua figura costuma ser lembra- da por seu grande trabalho de estudo das imagens denominado Atlas Mnemosyne. Trata-se de um conjunto de 79 painéis compostos de cerca 58Imagem e cultura visual de 900 imagens de diversas obras de arte – pinturas, fotografias de es- culturas e ânforas, desenhos, propagandas etc. – de diferentes épocas, as quais compõem uma unidade visual na medida em que procuram expressar a força sensível e atemporal que permeia cada conjunto de imagens. Pertence a uma estratégia para criação de uma história da arte sem palavras, “uma história de fantasma para pessoas adultas”, como afirmava o próprio Warburg (apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 42). Ao mesmo tempo, Warburg é lembrado por algumas excentricida- des biográficas, como o fato de ter herdado como primogênito a fortu- na de seus pais e tê-la repassado para um irmão, com a condição de que este o presenteasse com todos os livros e obras de arte que War- burg quisesse comprar. Dessa fortuna se tornou possível a criação do Instituto Warburg, originalmente construído na Alemanha e transferido para a Inglaterra durante a ascensão do nazismo em 1933. Foi por meio de Warburg e seu instituto que a iconologia se desenvolveu, influen- ciando historiadores da arte como Erwin Panofsky, Fritz Saxl (1890- 1948) e Ernst Gombrich. Assim, Warburg é considerado o pai da iconologia no século XX. Contudo, diferente de seus herdeiros intelectuais, Warburg cons- truiu um modo revolucionário de abordar a história da arte, rompen- do com tradições consolidadas. Diferentemente de historiadores da arte, como Vasari e Winckelmann, que compreendiam a história da arte como uma história dos estilos artísticos, Warburg a compreendia como uma história das formas de emoção ou de expressão que teste- munham uma maneira de sentir e experimentar, mais do que apenas uma forma de ver. Denominou esse modo de sentir e experimen- tar de pathosformel, algo que poderia ser melhor traduzido como a “forma (ou fórmula) dos sintomas”. De acordo com Didi-Huberman (apud MICHAUD, 2012, p. 23, grifos do original): aqui, o sintoma deve ser entendido como movimento nos corpos, um movimento que fascinava Warburg, não apenas por ele o ver “agitado pelas paixões”, mas também porque o julgava “despro- vido de vontade”. [...] as pathosformel devem ser consideradas as expressões visíveis de estados psíquicos que as imagens teriam, por assim dizer, fossilizado. [...] ele havia compreendido que os sintomas não são “sinais” (os sémeîa da medicina clássica) e que suas temporalidades, seus nós de instantes e durações, suas misteriosas “sobrevivências”, pressupõem uma espécie de me- mória inconsciente.Fonte: BOTTICELLI, S. O nascimento de Vênus. c. 1485. Têmpera sobre tela. 172,5 x 278,5 cm. Galleria degli Uffizi, Florença. Figura 3 Lápide do túmulo de Aby Warburg com referência ao seu trabalho Mnemosyne Da da m ax / W ik im ed ia C om m on s https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Dadamax Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 59 Na tese O nascimento de Vênus e a primavera de Sandro Botticelli, de- fendida em 1891, Warburg procurou demonstrar uma outra visão sobre o Renascimento. Estudando o movimento do drapeado, particular- mente as vestes das ninfas pintadas por Sandro Botticelli (1445-1510), Warburg procurou demonstrar que toda a vez que o pintor precisava explorar o movimento das vestes e dos cabelos, Botticelli retomava for- mas representativas antigas, presentes na antiguidade clássica. Desse modo, Warburg procurou demonstrar o que denominou de nachleben (sobrevivências), isto é, aspectos figurativos que sobreviveram da anti- guidade até a modernidade, os quais só foram capazes de sobreviver devido à própria Idade Média ter sido responsável por preservá-los. Assim, Warburg rompia com o consenso dos historiadores da arte que compreendiam a história da arte como uma história da decadência de estilos artísticos e de seu posterior renascimento e auge. Rompia também com a noção de que o Renascimento seria uma expressão da genialidade e da consciência de um novo tipo de artista, que procurava superar os limites impostos pela Idade Média, entendida pelos historia- dores renascentistas, a exemplo de Vasari, como uma época de limita- ções ao gênio criativo da arte. Figura 4 Nova visão do Renascimento M vu ijl st / W ik im ed ia C om m on s Fonte: BOTTICELLI, S. O nascimento de Vênus. c. 1485. Têmpera sobre tela. 172,5 x 278,5 cm. Galleria degli Uffizi, Florença. Para Warburg, no Renascimento, a sobrevivência de determinadas formas de pathos (sintomas) – formas de expressão, de sintomas e de https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Mvuijlst 60 Imagem e cultura visual movimento dos corpos, a pathosformel – revelavam que os pintores des- se período vivenciaram um profundo conflito de consciência. Conflito entre a força orgíaca da pathosformel antiga e a rígida moral cristã de sua época. Conflito entre o nascimento do racionalismo científico e a so- brevivência de superstições cristãs e mitos da antiguidade clássica. Esse estado de polaridade entre estados psíquicos opostos, entre tempos opostos (a dialética dos tempos) e entre formas visuais antigas e novas demonstrava, para Warburg, que a história da arte não era linear e evo- lutiva, história que partiria da arte primitiva, irracional e mágica indo em direção à arte civilizada, racional e científica. Warburg afirmava que essas duas formas se cruzavam, se debatiam no interior da psique humana, provocando seu drama existencial. O movimento das formas visuais, encontrado na arte renascentista, era um testemunho desse estado psíquico. A arte, assim, era o lugar em que seria possível encontrar as formas visuais desse drama de cons- ciência, desse nó que atava em um só tempo, em uma só imagem, passado e presente, razão e emoção, ciência e superstição. Assim como aponta Michaud (2012, p. 32): Warburg inverteu os princípios da estética winckelmanniana e a hierarquia das artes que dela procede: no lugar do modelo for- necido pela escultura, pôs o da dança, enfatizando a dimensão cênica e temporal das obras. Os artistas do Renascimento não preservaram nas formas antigas uma associação entre a subs- tância e a imobilidade [...]. Ao contrário, reconheceram uma ten- são, um questionamento do comparecimento ideal dos corpos no visível. Suas obras levam a marca de uma força que não é de harmonia, mas de contradição, uma força que mais desestabiliza do que unifica a figura. É muito importante notarmos como Warburg compreendeu a histó- ria da arte como uma história repleta de impurezas. A impureza, para ele, significava a compreensão de que nenhuma obra de arte era pura em si mesma, ou seja, nenhuma era original, nem mesmo um resultado único e exclusivo de seu próprio tempo. Isso pois Warburg compreen- dia toda obra como o resultado de hibridismos culturais, de misturas (não só de elementos visuais, de ícones, de estilos, mas uma mistura de tempos) e, portanto, de impurezas. Uma pintura seria, assim, uma obra preenchida com muitas temporalidades. Nesse sentido, a obra de arte teria uma dimensão arqueológica, pois traria na pintura aquilo que Freud (1856-1939) denominou de fós- Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 61 sil em movimento, ou seja, elementos do passado que são carregados ao longo do tempo até o presente (DIDI-HUBERMAN apud MICHAUD, 2012). Didi-Huberman (apud MICHAUD, 2012, p. 25, grifo do original) afirma que “o pensamento warburguiano abala a história da arte por- que o movimento que abre nela constitui-se de coisas que são, ao mesmo tempo, arqueológicas (fósseis, sobrevivências) e atuais (gestos, experiências)”. Podemos perceber, portanto, como Warburg era um tipo de estu- dioso que não se limitava à disciplina de história da arte, nem mesmo às propostas da iconologia, tal como seria desenvolvida posterior- mente por Panofsky. Warburg foi inspirado pelos trabalhos de Jacob Burckhardt (1818-1897), o qual, por sua vez, procurou no Renascimento algo muito maior do que a cultura artística de uma época: a tensão cultural entre tradição e inovação. Um tipo de tensão que demons-trava que o Renascimento não criou um estilo próprio. Nesse sentido, Didi-Huberman (2013, p. 66) afirma que “o Renascimento é impuro, tanto em seus estilos artísticos quanto na temporalidade complexa de suas idas e vindas entre o presente vivo e a Antiguidade rememorada”. Essa lição de Burckhardt demonstrou para Warburg que realmente “o Renascimento é impuro. Warburg nunca se cansaria de aprofundar e de construir – graças aos conceitos específicos de Nachleben e Pathos- formel – essa observação”. Algumas décadas após a morte de Warburg, em 1970, o historia- dor da arte Ernst Gombrich pretendeu concluir sua biografia. Entre- tanto tentou retirar da biografia de Warburg as ideias que se tornaram incômodas para a história da arte; particularmente, a ideia de que a história da arte seria marcada pela impureza do tempo das imagens. Gombrich pretendeu reduzir a importância do conceito de sobrevivên- cia (nachleben), justamente porque ele reduzia os esquemas de expli- cação lineares da história da arte e colocava a condição de incerteza com relação à originalidade dos estilos artísticos. Como afirma Didi- -Huberman (2013), o conceito de sobrevivência foi exorcizado primeiro por Panofsky e, depois, por Gombrich, pois limitava a construção de uma periodização nítida e esquemática da história da arte, na medida em que trabalhava com a noção de uma multiplicidade de tempos so- breviventes em um mesmo tempo ou época. Gombrich passou a ser reconhecido desde então como um grande biógrafo de Warburg e, ao mesmo tempo, uma nova referência para a história da arte. 62 Imagem e cultura visual Nos estudos produzidos por Gombrich, encontramos a noção de que a história da arte não pode ser limitada à ideia de que os estilos artísticos são a expressão de um conjunto de superartistas. Para Gombrich (2002), as obras de arte não são somente uma expressão de uma época ou de um contexto histórico, mas são o veículo de uma mensagem particular, que pode ser compreendida pelo espectador à medida que este conhe- ce o contexto semântico em que a imagem está situada. Gombrich considerava que métodos como o iconográfico ou icono- lógico são passíveis de erro, ao passo que não permitem abertura para novas interpretações. A obra de arte mobiliza experiências e recorda- ções que o espectador tem do mundo visual, o que significa e que a inter- pretação poderá ser realizada por qualquer pessoa, desde que lhe seja a mais apropriada. Há, no entanto, um conjunto de convenções para a elaboração de uma imagem, uma articulação esquemática daquilo que se sabe. O que importa, portanto, em sua teoria é o que se sabe so- bre a imagem, e não propriamente aquilo que se vê. Por esse motivo, Gombrich é reconhecido como um historiador da psicologia da arte. 3.3 Baxandall e o olhar de época Vídeo Um trabalho de história da arte de importância singular foi desen- volvido pelo historiador galês Michael Baxandall, denominado Olhar Renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Essa obra foi responsável por inovar o estudo de história da arte ao des- viar da abordagem iconográfica e iconológica, focando uma história social da arte que pretende demonstrar o que denomina de olhar de época. Esse conceito designa os padrões visuais compartilhados que demarcam as formas de visualidade com que uma época é capaz de interpretar suas imagens. Assim, de acordo com esse estudo sobre o Renascimento, tanto o pintor quanto o consumidor de arte compartilhavam de uma compe- tência visual socialmente informada. A crítica que essa obra desenvolve com relação à história da arte está centrada em dessacralizar o objeto artístico, desnaturalizando tanto o conceito de arte quanto o estatuto do artista. De acordo com Knauss (2008, p. 158): nesta obra, ao procurar relacionar arte e história social de modo original, Baxandall introduziu a noção de period eye, que pode ser traduzido de modo aproximado como um “olhar de Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 63 época” que identifica hábitos visuais e modos cognitivos de per- cepção. A interrogação desenvolvida propõe que os quadros são pintados a partir de uma experiência geral que sustenta modelos e padrões visuais construídos e que caracterizam a ca- pacidade de entendimento de imagens como uma habilidade historicamente demarcada. De acordo com Baxandall, pode-se dizer que o equipamento mental ordena a experiência visual humana de modo variável, uma vez que este equipamento é culturalmente relativo e orienta as reações diante dos objetos visuais. O espectador se vale de uma competência visual que é socialmente estabelecida, do mesmo modo que o pintor depen- de da resposta de seu público. Baxandall apresenta uma análise sobre as operações que envol- vem o olhar do Renascimento. Nessa obra, é importante destacarmos que o olhar é compreendido, ao menos, de três formas distintas e complementares: Fi re of he ar t/ Sh ut te rs to ck A ação fisiológica do olhar. As diferentes convenções interpretativas (estilo cognitivo). A experiência com relação ao objeto e à imagem observados e suas técnicas de produção. Baxandall sugeriu que as obras de arte, consideradas como docu- mentos históricos, podem dizer muito sobre a economia, a religiosi- dade, a cultura e as convenções de uma época. As pinturas obedecem a questões muito além do estilo e da técnica, como o mercado das artes (mecenas/clientes), as exigências de preciosismos religiosos (matéria-prima das cores e correspondências entre cor/objeto/perso- nagem), o reconhecimento dos tipos de habilidades técnicas exigidas (por clientes, especialistas ou críticos) e os modelos de representação mais ou menos comuns, originários do teatro, da dança e da gestuali- dade dos pregadores do século XV. Esse último aspecto é uma grande contribuição de Baxandall para a iconologia, visto que conseguiu demonstrar o modo como os códigos de 64 Imagem e cultura visual representação visual circulam em meio à sociedade do Quatrocento 1 , o que sugere que a leitura das pinturas só era possível à medida que suas formas de representação, como a gestualidade e seus significa- dos, eram reconhecidas e compartilhadas por algumas camadas so- ciais da época. Nesse sentido, “frequentemente as melhores pinturas exprimem sua cultura não só diretamente, mas também de modo complementar, pois é enquanto complemento da cultura que melhor se prestam a sa- tisfazer as necessidades do público, que não necessita daquilo que já tem” (BAXANDALL, 1991, p. 56). No entanto, para compreender as modalidades do olhar nas pintu- ras do Quatrocento, Baxandall recorre a um rico acervo documental, como contratos entre clientes e mestres/artesãos, manuais religiosos e comportamentais, tratados sobre pinturas, catálogos de linguagens de sinais e movimentos, livros e anotações de pintores como Leonardo da Vinci (1452-1519) e críticos como Cristoforo Landino (1424-1498). Esse conjunto de fontes históricas auxiliam o processo de compreensão da obra de arte, seus códigos de representação, mas, acima de tudo, apontam para a cultura visual e material que circulava na sociedade de Florença no início do Renascimento. Para os historiadores que se propõem a trabalhar com imagens, certamente, é um texto que oferece excelentes reflexões sobre cultura visual, as relações entre as imagens e os códigos de representação de dado período, abrindo, talvez, a possibilidade de se pensar a imagem como índice, caminho ou pista, conforme aponta Carlo Ginzburg, via- bilizando, por meio de elementos constitutivos da imagem, uma com- preensão sobre os modos de representação, bem como a experiência social de uma época (GINZBURG, 1990). 3.4 Ginzburg e o paradigma indiciário Vídeo Carlo Ginzburg é um historiador italiano, representante da cha- mada micro-história. Suas obras mais conhecidas giram em torno da história das práticas de bruxaria e inquisição por meio de pequenos grupos e indivíduos marginais da cultura popular italianamedieval e moderna. Como historiador atento aos métodos da história e aos O Quatrocento com- preende uma das três fases do Renascimento: Trecento (século XIV); Quatrocento (século XV); Cinquecento (século XVI). 1 Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 65 documentos históricos, produziu inúmeras reflexões sobre historio- grafia e história da arte. A micro-história italiana é uma corrente historiográfica desenvolvida na déca- da de 1970 com a revista Quaderni Storici. Edoardo Grendi, Carlo Poni, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi são os principais historiadores a desenvolverem pes- quisas nessa linha historiográfica. A micro-história se firmou como uma corrente historiográfica ao elaborar métodos que têm em comum a microanálise do so- cial. Desenvolvendo pesquisas que têm como ponto de partida a vida dos atores históricos, observados dentro das dimensões microssociais, a micro-história propõe como base de seu método o jogo de escalas, ou seja, acompanhar a vida dos atores históricos em sua dimensão micro, procurando extrair elementos que contribuam para a compreensão das dimensões históricas e sociais no nível histórico macroanalítico. Alguns textos de Ginzburg se dedicaram a pensar o método de Aby Warburg e o de Ernst Gombrich. A perspectiva apresentada por Ginzburg visa demonstrar o modo como esses autores permitiram pensar a obra de arte e o seu processo de fabricação ao longo da his- tória. Interessa a Ginzburg analisar como esses historiadores da arte se aproximaram ou se afastaram das questões sociais e históricas que interessam aos historiadores. De outro modo, como elaboraram uma reflexão sobre o papel da arte como testemunho do passado ou, ao contrário, de que maneira sugeriram que a arte figurativa, as pinturas e gravuras apresentam um modo particular de produção que talvez re- vele mais sobre a transmissão visual de estilos entre uma obra e outra, do que as conexões entre obra e contexto histórico (GINZBURG, 1990). As questões levantadas por Ginzburg são, sem dúvida, importantes para o trabalho não só dos historiadores da arte, mas também dos historiadores de modo geral. Um importante aspecto a se destacar é a preocupação apresentada por Ginzburg com relação aos métodos de estudo desenvolvidos pela história da arte e em que medida esses mé- todos dialogam com a perspectiva de trabalho dos historiadores, par- ticularmente no que diz respeito aos cruzamentos entre a linguagem visual das imagens e as fontes literárias. Outro aspecto a se observar é o modo pelo qual os historiadores podem se servir de documentações tão distintas, como são as imagens e os textos, e extrair de seu cruza- mento uma forma de compreensão da vida dos atores históricos. O livro O queijo e os ver- mes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição conta a história do moleiro Dome- nico Scandella (Menóquio) condenado pela Santa Inquisição, no século XVI. Ginzburg busca, nas fon- tes oficiais da Igreja Cató- lica, pistas que apontam para a cosmovisão desse personagem singular. O autor discute as excêntri- cas ideias de Menóquio, e como a visão de mundo de sua época mostra sua condição incomum (um camponês que sabia ler), explicando como as ideias de Menóquio foram responsáveis pela construção daquelas que o levariam à condenação perante o Tribunal da Santa Inquisição. GINZBURG, C. São Paulo: Cia das Letras, 1996. Livro 66 Imagem e cultura visual Em um de seus estudos, Ginzburg propõe um modelo epistemoló- gico, responsável por unir o trabalho de historiadores da arte e histo- riadores do social e as ciências humanas de modo geral. Esse método foi definido pelo autor como paradigma indiciário. No texto intitulado “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, Ginzburg (1990) apresenta as características gerais desse método. A apresentação do método se inicia quando Ginzburg mostra, em seu artigo, o método de Giovanni Morelli (1816-1891). Este produziu, entre 1874 e 1876, uma série de artigos sobre a pintura italiana. Fazen- do-se passar por um russo, sob o pseudônimo Ivan Lermolieff, Morel- li escreveu textos nos quais revelava em que consistia o seu método. Basicamente, Morelli passou a analisar obras antigas de museus euro- peus cujos autores eram desconhecidos ou obras que eram atribuídas a autores erroneamente. Ele, portanto, apresentava um método que permitiria diferenciar obras originais de cópias ou mesmo descobrir a autoria das obras de maneira bastante assertiva. A base desse método estava em não se fundamentar nas caracterís- ticas mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis nos quadros. Ao contrário, “é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés” (GINZBURG, 1990, p. 144). Basicamente, Morelli se va- lia de sua formação médica, seu conhecimento da anatomia dos cor- pos e do método elementar da ciência médica, a semiótica do corpo, um olhar treinado para detectar doenças e formular diagnósticos. Com base nesse método, a semiótica médica, Morelli se tornou capaz de identificar minúcias invisíveis ao olhar da maioria dos historiadores da arte. Conforme aponta Ginzburg (1990, p. 145): os livros de Morelli – escreve Wind – tem um aspecto bastante insólito se comparados aos de outros historiadores da arte. Eles estão salpicados de ilustrações de dedos e orelhas, cuidadosos registros das minúcias características que traem a presença de um determinado artista, como um criminoso é traído por suas impressões digitais [...] qualquer museu de arte estudado por Morelli adquire imediatamente o aspecto de um museu criminal. Essa comparação foi brilhantemente desenvolvida por Castel- nuovo, que aproximou o método indiciário de Morelli ao que era atribuído, quase nos mesmos anos, a Sherlock Holmes pelo seu criador, Arthur Conan Doyle. O conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria. Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 67 De acordo com Ginzburg, o método indiciário de Morelli propunha apontar para os aspectos in- visíveis do quadro e para elementos inconscientes da ação do pintor. Nesse sentido, esse método se aproximaria da psicanálise de Freud, elaborada quase na mesma época, no fim do século XIX. Freud, inclusive, teria produzido alguns textos sobre o in- consciente com base nas análises de Morelli. Em um texto de 1914, “O Moisés de Michelangelo”, Freud faz referência a Morelli para demonstrar o paren- tesco existente entre o método do médico italiano ao da psicanálise freudiana. Um método comum, pois ambos consistem em trabalhar com aquilo que é despercebido pela maioria dos observadores, procurando expor aspectos ocultos e inconscientes (GINZBURG, 1990). Importante notarmos que Morelli, Freud e o pró- prio autor do personagem literário Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle (1859-1930), eram médicos. Portanto, tinham em comum o fato de se servirem da semiótica médica para procurarem pistas para fatos, fenômenos ou imagens imperceptíveis para a maioria. Haveria, portanto, uma analogia entre os métodos de Morelli, Freud e Holmes. Na forma de sintomas (Freud), indícios (Holmes) ou signos pictó- ricos (Morelli), os três trabalhavam com pistas infinitesimais capazes de captar uma realidade mais profunda (GINZBURG, 1990). Ginzburg demonstrou que esses métodos, com suas particularida- des, mas em essência muito similares, fariam parte de um paradigma mais amplo, por ele denominado de paradigma indiciário. Este remon- taria ao período Neolítico, época em que caçadores desenvolveram habilidades de perseguir pistas deixadas por animais, como pegadas, pelos na relva, restos de esterco etc. Essa leitura decifrativa da natureza também apareceria na história de outros saberes e povos da antiguidade, como mesopotâmicose gre- gos; saberes fundados na decifração de signos, como sintomas ou da própria escrita. Esses saberes conformariam um paradigma que atra- Figura 5 Giovanni Morelli. Ilustrações de pintores italianos. 1892. Gi ov an ni M or el li/ W ik im ed ia C om m on s 68 Imagem e cultura visual vessaria, de modo quase imperceptível, inúmeras atividades e formas de conhecimento, tendo por base a conjectura e a semiótica. De acordo com Ginzburg (1990, p. 155), “os médicos, historiadores, os políticos, os oleiros, os carpinteiros, os marinheiros, os caçadores, os pescadores, as mulheres: são apenas algumas das categorias que operavam, para os gregos, no vasto território do saber conjetural”. Podemos dizer que esse paradigma atravessou os tempos, chegan- do ao século XIX e influenciando inúmeras áreas do conhecimento, particularmente as ciências humanas. A paleontologia, a arqueologia, a medicina, a psicanálise, a história e a própria história da arte poderiam ser, assim, consideradas saberes que apelaram para o método semióti- co e conjectural para dar conta de aspectos invisíveis do passado, seja de um indivíduo, seja de toda uma sociedade. Muito embora o paradigma indiciário tenha fornecido a Morelli uma forma de investigar os quadros, deduzindo sua autenticidade e encon- trando a marca inconsciente de seus autores, seu método foi rejeitado posteriormente por ser considerado excessivamente positivista ou por não dialogar com os elementos estéticos da obra de arte. Contudo, sua influência permaneceu presente no trabalho dos historiadores da arte, à medida que precisaram se debruçar sobre os detalhes e as particula- ridades das pinturas, imperceptíveis a um olho destreinado. 3.5 Imagem, sujeito e tempo em Didi-Huberman Vídeo Didi-Huberman é um historiador e filósofo francês que se dedica ao estudo da história da arte e de suas diferentes epistemologias. Seus trabalhos são responsáveis por realizar um deslocamento no modo como tradicionalmente a história da arte compreendeu o trabalho de conhecimento sobre as imagens. Em suas obras, emerge uma crítica profunda à iconografia e à iconologia de matriz panofskyana; particu- larmente, pela ambição de decifrar as mensagens das obras de artes, sem considerar um problema fundamental para o estudo das imagens: sua condição de ambiguidade, incerteza ou mesmo a impossibilidade de encontrar um significado seguro para as imagens. Influenciado pelos trabalhos de Warburg e Walter Benjamin (1892-1940), Didi-Huberman propõe uma análise sobre a condição da imagem e do olhar com base no que ele denomina de dialética da ima- Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 69 gem, do visível e do invisível. Por dialética, conceito extraído de Walter Benjamin, deve se considerar as dinâmicas das imagens entre o que se vê e o que não se pode ver. Nesse sentido, a imagem é pensada não como um objeto com uma dimensão visual que poderia ser deci- frada e compreendida em sua mensagem final, mas como algo que se encontra em constante tensão, sem garantias de uma compreensão absoluta. Tensão entre os tempos da imagem, entre o que nela per- manece e o instante em que é novamente encontrada por um novo olhar, entre o que ela dá a ver e o que ela esconde, entre aparecimento e desaparecimento. Em poucas palavras, Didi-Huberman procura tratar da tensão em dois sentidos, a forma e a transformação: Fi re of he ar t/ Sh ut te rs to ck Refere-se ao visual, tratado por uma perspectiva semiótica. Envolve a relação entre o sujeito que observa e a imagem observada. Forma Transfor- mação Podemos notar aqui a evidente contribuição dos estudos de Warburg sobre a nachleben (sobrevivência) das imagens, bem como a pathosformel (a fórmula do sintoma), que compreende a imagem muito além de sua dimensão racional e científica, mas que a toma por meio de seus efeitos emotivos duradouros e de sua qualidade trans-histórica e anacrônica. Por esse motivo, na obra Diante do Tempo (DIDI-HUBERMAN, 2015) encontramos a preocupação em demonstrar o modo como a imagem se relaciona com o tempo. O tempo é, portanto, uma variável fundamental para se pensar a imagem, pois demonstra a importância decisiva do olhar para a sua significação. Nesse sentido, o sujeito que olha tem um grande poder de decisão sobre o que a imagem deverá significar, então, quando ele se encontra diante de uma imagem, está se deparando com muitos tempos, tanto do seu próprio (o presente em que observa) quanto dos muitos tempos que sobrevivem na imagem como memória. 70 Imagem e cultura visual Contudo, mais do que demonstrar a importância dos mui- tos tempos que atravessam a imagem e o sujeito que a observa, Didi-Huberman pretende demonstrar que mesmo na época em que a imagem foi produzida, ela também possui muitos tempos. Ou seja, no fim das contas, cada tempo presente, cada contemporaneidade, é marcado pela presença de muitos tempos. Nesse sentido, nem sempre um artista será realmente contem- porâneo ao outro, assim como nenhuma imagem será totalmente contemporânea ao seu próprio tempo. Com isso, o autor procura evidenciar que o anacronismo, a divergência entre os tempos, está intimamente presente em todas as imagens. Não somente entre a imagem de uma época e o observador de outra, mas também na ideia de que uma mesma época, uma mesma imagem é detentora de muitos tempos. Como afirma Didi-Huberman (2015, p. 21-22, gri- fos do original): ficamos com a impressão de que os contemporâneos, com fre- quência, se compreendem menos do que indivíduos separados no tempo: o anacronismo atravessa todas as contemporanei- dades. A concordância dos tempos – quase – não existe. Fatali- dade do anacronismo? Eis o que pode separar os dois perfeitos contemporâneos que foram Alberti e Fra Angelico, porque eles não pensavam de forma alguma “num mesmo tempo”. [...] Mais vale reconhecer como valiosa a necessidade do anacronismo: ela parece interna aos próprios objetos – as imagens – dos quais tentamos fazer a história. O anacronismo seria, assim, numa primeira aproximação, um modo temporal de exprimir a exu- berância, a complexidade, a sobre determinação das imagens. Assim, é possível demonstrar na análise do autor como a atividade de análise das imagens envolve um trabalho de compreensão e in- compreensão. Uma compreensão que não desvela seus segredos, não revela sua semântica, nem mesmo decifra sua verdadeira men- sagem. Uma compreensão que reconhece muito mais a mobilidade e a impermanência. Mobilidade das interpretações e impermanên- cia dos códigos de representação e dos instrumentos de leitura vi- sual. Ao mesmo tempo, o reconhecimento de que a imagem tem áreas obscuras, indiscerníveis e incompreensíveis. Reconhecer essa Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 71 imensa área de incompreensão significa compreender a dialética da imagem, sua capacidade de ser clara e, ao mesmo tempo, obscura, ou seja, de explicitar a clareza do que se vê e a impossibilidade de decodificação de uma mensagem única e clara. Novamente, vemos a importância de se reconhecer que o sujeito que olha tem um papel central no desenvolvimento da imagem. To- davia, esse sujeito não é um decifrador, um revelador do significado instantâneo e mais recente da imagem observada, mas é aquele que estabelece a relação dialética com a imagem. Nessa relação, o su- jeito movimenta significados ao mesmo tempo que é tomado pelo incognoscível e irracional da imagem. Portanto, a relação entre sujeito e imagem é também uma re- lação tensa, na qual tanto a imagem quanto o sujeito saem afeta- dos. pois ambos se abrem para que suas memórias e seus tempos possam passar, emergindo em um novo tempo de experiências. De acordo com Didi-Huberman (2010, p. 77 apud Furtado, 2019, p. 196): o ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas. O ato de ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderamunilateralmente do dom visual para se satisfa- zer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Entre aquele que olha e aquilo que é olhado. “Entre aquilo que olha e aquilo que é olhado”, entre sujeito e ima- gem, é que se estabelece a difícil relação do ver. Difícil, pois o que a imagem transmite é, ao mesmo tempo, da ordem do cognoscível e incognoscível. Ver, portanto, é uma atividade fendida, inquieta e agitada, pois ver é confrontar-se com a invisibilidade no visível, é não encontrar segurança definitiva em um único sentido, é saber que nem o olhar nem a imagem carregam a certeza de uma com- preensão certeira. É saber que a imagem não é o resultado seguro da racionalidade, mas é preenchida de efeitos, sintomas, afetos e emoções ambíguas. São esses afetos carregados pela imagem que demonstram também seu anacronismo, sua dialética dos tempos, entre sobrevivências e novos e mutáveis instantes. 72 Imagem e cultura visual CONSIDERAÇÕES FINAIS A história da arte trouxe inúmeras contribuições para o estudo das imagens. Foi o primeiro movimento que, do ponto de vista dos histo- riadores, trouxe a possibilidade de reconhecimento da imagem como fonte de estudos para a história. Contudo, a constituição da história da arte como campo de estudos independente no século XIX fortaleceu uma abordagem sobre esse campo como uma história dos valores e modelos estéticos. A reabertura proposta por autores como Baxandall, que propuseram uma história da arte comprometida com a análise do social, trouxe a possibilidade de valorizar as formas de compreensão das sociedades por meio da arte. Nesse sentido, auxiliou a história em seu processo gra- dativo de uso das imagens como documentos históricos, a exemplo dos trabalhos realizados por Carlo Ginzburg, que orientou a proposta de um novo paradigma para o estudo das imagens em história, como também de Didi-Huberman, que contribuiu para uma análise mais aprofundada sobre as dimensões incognoscíveis das imagens, bem como das diversas temporalidades que as perpassam. Essas contribuições foram centrais para que hoje possamos, como historiadores, encontrar alternativas sólidas para como lidar com o uso de imagens em pesquisas, tendo uma base teórica e metodológica con- sistente para o estudo das imagens, formas de visualidade, sociedades e culturas do passado. ATIVIDADES 1. Qual é a contribuição de Giorgio Vasari para o desenvolvimento da história da arte? 2. Para Aby Warburg, o que significa dizer que a obra de arte está repleta de impurezas? 3. De acordo com Carlo Ginzburg, qual era a base do método desenvolvido por Giovanni Morelli? Vídeo Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 73 REFERÊNCIAS BAXANDALL, M. O Olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo. História da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: UFMG, 2015. FURTADO, R. M. M. A potência pedagógica do olhar no Filme Janela da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho. In: 8° ENCONTRO ANUAL DA AIM, 195-201. Anais [...] Aveiro: AIM, 2019. Disponível em: https://aim.org.pt/atas/indice/Atas-VIIIEncontroAnualAIM-18-Furtado.pdf. Acesso em: 26 jul. 2021. GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. GOMBRICH, E. A história da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012. KNAUSS. P. 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Verificaremos, assim, como a fotografia e o cinema reconfiguraram o conceito de arte, abrindo no- vas possibilidades e apontando problemas para o campo das imagens. Já no segundo, vamos compreender como a proliferação de imagens, na segunda metade do século XX, produziu o que Guy Debord (1931-1994) in- titulou como sociedade do espetáculo, isto é, sociedade em que a imagem se converte em objeto mercadológico da cultura de massa. O terceiro e o quarto eixos serão dedicados às transformações geradas na disciplina de História pela presença da fotografia e do cinema. Dessa forma, vamos abordar os diferentes usos dessas mídias como fontes históricas, bem como seus papéis na reconstrução da narrativa histórica. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • reconhecer os conceitos de cultura de massa e sociedade do espetáculo; • compreender a relação entre cultura de massa, sociedade do espe- táculo e produção de imagens; • perceber o papel da fotografia e do cinema na reconfiguração da arte e as transformações trazidas para o campo da imagem; • compreender o conceito de aura, desenvolvido por Benjamin para a definição da pintura como obra de arte; • entender os diferentes usos da fotografia e do cinema como fonte para os historiadores; • compreender a construção da narrativa histórica por meio da fotografia e do cinema. Objetivos de aprendizagem A imagem na era da reprodução técnica 75 4.1 Fotografia, cinema e a era da reprodução técnica Vídeo A comunicação de massa é uma das marcas da sociedade capitalista moderna desde, ao menos, a primeira metade do século XX. Podemos afirmar que ela é o resultado direto do desenvolvimento de inúmeras tecnologias voltadas aos processos de comunicação. Seu nascimento pode remontar ao desenvolvimento técnico da imprensa de tipos mó- veis do século XV, passando pela fabricação do jornal impresso, da fo- tografia, do cinema, do telégrafo e do telefone no século XIX. Figura 1 Imprensa de Gutemberg Am fe li/ W ik im ed ia C om m on s Século XVII. Museu de Arte de Girona. Contudo, é somente na primeira metade do século XX, na chamada era do rádio (HOBSBAWM, 2000), que encontramos todos esses mecanis- mos de reprodução técnica (BENJAMIN, 2012) agindo conjuntamente, de modo a cumprir uma função transformadora no que diz respeito à pro- dução e ao controle de informações – o termo reprodução técnica ou re- produtibilidade técnica foi cunhado pelo filósofo alemão Walter Benjamin. O livro A Escola de Frankfurt: história, desenvol- vimento teórico, signifi- cação política apresenta o movimento desde a fundação do Instituto de Pesquisas Sociais da Escola de Frankfurt, patrocinado por FelixWeil, na década de 1920, até as novas gerações, na década de 1960 e 1970, e a posterior reorganização do instituto nos Estados Unidos da América (EUA) por Horkheimer. Essa escola foi responsável pela interligação de singulares intelectuais marxistas, como Adorno, Benjamin, Marcuse, Habermas, Neumann, Kirchheimer e o próprio Horkheimer, que foram responsáveis pela elaboração de uma inovadora crítica à mo- dernidade e às formas de produção cultural no inte- rior do sistema capitalista. WIGGERSHAUS, R. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. Livro 76 Imagem e cultura visual Em seu estudo sobre a transformação da arte na era da reprodução técnica, Benjamin (2012) apontava que o desenvolvimento de tecnolo- gias como a imprensa, a fotografia e o cinema foi decisivo para moldar um novo comportamento tanto na produção quanto no consumo da arte. Segundo o autor, a reprodução técnica levaria a arte a perder sua aura, ou seja, perder a experiência estética do artista e a autenticidade da obra, em favor de um controle maior desse indivíduo e da reprodução massiva para o consumo merca- dológico da obra de arte. Nessa época nascia a Escola de Frankfurt, que encabeçaria a crí- tica à chamada indústria cultural. Juntamente a Walter Benjamin, autores como Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) procuraram demonstrar como esse conjunto de tecnologias se tornou responsável por moldar o compor- tamento social, cultural, econômico e político das socie- dades modernas. De acordo com Adorno e Horkheimer, a indústria cultural pode ser definida como a experiência da transformação da cultura, da arte e da informação em mercadorias. Conforme aponta Costa (2013, p. 138): Adorno e Horkheimer constatam que o cinema e o rádio, por exemplo, não precisam mais se camuflar de arte, uma vez que o caráter de mercadoria já está estampado em cada um deles. Música, cinema, literatura magazine etc., tudo está a serviço do mercado. “A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que pro- positalmente produzem” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 100). Para eles, o novo não é a atitude comercial da obra de arte, mas o fato de hoje serem de fato indústrias como tal, renegando a própria ideia de arte. Para Adorno e Horkheimer, toda forma de comunicação de massa na modernidade só poderia ser devidamente compreendida quando se percebesse sua filiação à indústria cultural. Ou seja, o fenômeno da comunicação de massa era um produto da modernidade capitalista e, como tal, estava submetido a essa lógica de pensamento pautada no consumo e na mercantilização de todos os aspectos da vida. A cultu- ra e a arte, como componentes centrais da vida humana, não foram desprezadas pela classe burguesa; assim, teriam se convertido em objeto do capitalismo. Dianakc/Wikimedia Commons Figura 2 Walter Benjamin A imagem na era da reprodução técnica 77 Dessa maneira, podemos compreender como esses autores perceberam os meios de comunicação de massa associados ao fe- nômeno da indústria cultural. Nesse sentido, esses meios seriam tec- nologias apropriadas pela indústria cultural, a qual teria reduzido o valor da arte e da cultura à condição de mercadorias. Como tal, a arte produzida pela indústria cultural seria um instrumento que levaria à alienação e à redução da experiência genuína das culturas. Boa parte da análise produzida pela Escola de Frankfurt sobre a indústria cultural foi fruto da influência dos trabalhos de Benjamin (COSTA, 2013). Entretanto, ele foi o responsável por aprofundar mui- tos pontos sobre a fotografia, o cinema e o impacto da reprodutibili- dade técnica na obra de arte. Vamos ver, daqui em diante, a análise desenvolvida por Benjamin em seu ensaio A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. A ideia central desse ensaio é demonstrar como as formas de repro- dução técnica, particularmente a fotografia, trouxeram uma situação nova ao campo da arte. Para entender essa situação, é necessário an- tes perceber o modo como as sociedades tradicionais compreenderam a obra de arte. De maneira geral, podemos afirmar que, até o século XVIII, na Europa, a relação que as pessoas estabeleciam com as ima- gens (pinturas, esculturas etc.) era marcada pela autenticidade da obra. Essa autenticidade significa não apenas a originalidade, mas o fato de se tratar de uma obra única, tanto por não possuir cópias quanto por estar exposta e vinculada a um mesmo lugar. Esse fator de autenticida- de da obra fundava uma relação entre observador e obra, marcada por dois aspectos centrais: tradição e valor de culto. A tradição basicamente consiste, no entendimento de Benjamin (2012), na configuração de uma experiência social baseada na memó- ria. Logo, notamos que toda forma de experiência é o resultado da ma- turação de vivências. Assim, essa maturação só pode ser garantida por uma atividade de repetição, em que a memória aparece como instru- mento de retomada de uma lembrança, fixando-a até que tal experiên- cia se converta em tradição. Já o valor de culto se refere ao modo como se compreendia o valor da obra de arte dentro de determinada tradição. Por valor de culto pode se entender tanto no sentido de culto religioso da obra quanto no de valo- rização da unicidade dessa, sua singularidade, originalidade e condições O livro A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica foi publicado pela primeira vez na Revista do Instituto de Pesquisas Sociais em 1936, sendo um dos mais importan- tes textos produzidos por Benjamin. Nele, encontramos as principais transformações operadas pelo cinema e pela fotografia no estatuto da arte. O autor demonstra como os mecanismos de reprodutibilidade técnica da modernidade reduzi- ram a “aura” da obra de arte, impulsionando a reprodução à condição de obra. BENJAMIN, W. Porto Alegre: Zouk, 2012. Leitura 78 Imagem e cultura visual elementares para o seu valor dentro de determinada tradição. Perceba que o valor de culto da obra de arte só pode se dar quando ela só puder ser contemplada em condições também únicas. Por isso, Benjamin (2012) explica que o valor da obra está fundado em seu aqui e agora, isto é, em sua posição única no tempo e no espaço em que é contemplada. Assim, ela não pode ser retirada de sua posição de culto, pois está presa ao lugar em que pode ser observada. O obser- vador, nessas condições, aprecia a obra por sua condição de só poder ser vista em circunstâncias muito específicas. Nesse sentido, ele valori- za o seu tempo de experiência diante dela, levando para casa apenas a memória dessa experiência. Conforme afirma Cavalcanti (2013, p. 200): em contrapartida, a partir da reprodutibilidade técnica a existên- cia única da obra, o aqui e agora que sela o encontro do especta- dor com o objeto de arte, deixa de ser um elemento importante, pois a possibilidade de produzir inúmeras cópias do original e de transportá-las para diferentes locais desloca o próprio modo como a obra de arte é compreendida. Como observou Benjamin, a reprodução técnica pode colocar a cópia de um original em si- tuações antes impossíveis para o original, de modo que a pintura situada no interior de uma igreja pode ser levada para casa, o concerto executado ao ar livre pode ser escutado em um quarto. Para Benjamin, autenticidade, tradição, valor de culto, aqui e ago- ra, conformam o que ele denomina de aura da obra de arte. O uso desse conceito é, sem dúvida, mais amplo na obra desse intelectual (CAVALCANTI, 2013). Como um filósofo também do messianismo judai- co, Benjamin se vale do conceito de aura como uma conotação ligada ao sagrado – sacralidade que ele enxerga em tudo que conserva em si uma força originária, uma espécie de potência imanente que impregna a noção de obra original. Mas, em linhas gerais, pode-se compreender, com a palavra aura, a condição de autenticidade que liga a obra de arte a uma tradição, na qual a obra possui valor de culto.Logo, torna-se possível compreender as transformações imputadas à arte pelos aparelhos de reprodução técnica. A primeira delas, per- cebida por Benjamin (2012), é que, na reprodução técnica, o valor de culto da arte é substituído pelo seu valor de exposição. Isto é, o valor A imagem na era da reprodução técnica 79 da obra passa a se dar à medida que se ampliam seus lugares de ex- posição, seja pelo fato de a obra ser encontrada em qualquer lugar em que haja uma cópia, seja pela multiplicação de novos usos para ela. Um bom exemplo é a utilização do quadro Mona Lisa ou La Gioconda, de Leonardo da Vinci. Atualmente, essa pintura pode ser encontrada em camisetas, capas de cadernos, como souvenir ou mesmo como plano de fundo na tela dos computadores. Figura 3 Monalisa, de Leonardo da Vinci, 1503-1506. M ar ko K1 98 4/ W ik im ed ia C om m on s Em segundo lugar, a crítica lançada por Benjamin (2012) à era da reprodução técnica é de que os aparelhos de reprodução técnica e a própria modernidade, portanto, pulverizaram toda a tradição (entendi- da como experiência). Sem tradição, o ser humano moderno se torna incapaz de consolidar formas de experiências por meio da arte, con- vertendo-se em um ser alienado de sua própria cultura, guiado pela cultura do consumo e por uma arte descartável e mercadológica. 80 Imagem e cultura visual Podemos sintetizar a análise de Benjamin (2012) da seguinte forma: Aura – a obra de arte é única (autenticidade). A obra, como valor de culto, evoca uma força religiosa de ligação com o sagrado. A autenticidade se liga à tradição, à experiência e, portanto, à memória. Com a reprodução técnica, a obra passa a ter valor de exposição. A obra tem valor de culto. Contudo, ao mesmo tempo que a reprodução técnica modificou a relação com a obra de arte, ela foi responsável por produzir uma apro- ximação entre a obra e o observador, de tal forma que se estabeleceu uma relação de intimidade no uso da obra de arte. Como afirma Benjamin, “cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou an- tes, na sua cópia, na sua reprodução” (1985b, p. 170 apud CAVALCANTI, 2013). Enquanto isso, apesar das críticas dirigidas aos meios de repro- dução técnica, Benjamin também procurava demonstrar a importância da fotografia para o desenvolvimento do estudo da arte – particular- mente, a capacidade de a fotografia tornar visíveis as dimensões da realidade, antes invisíveis ao olhar ou inacessíveis em seus pormeno- res. A esse aspecto revelado pela fotografia, mas invisível ao olhar do observador, Benjamin dá o nome de inconsciente ótico. De acordo com Benjamin (1985a, p. 94), citado em Cavalcanti (2013, p. 203), a fotografia nos revela o que Benjamin chamou de “inconsciente ótico”, ou seja, aquilo que o olhar humano não é capaz de fixar, mas que a técnica torna visível, revelando novas dimensões da realidade: “A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente”. Benjamin procurou demonstrar, em seus estudos sobre a fotogra- fia, como a máquina fotográfica possibilitou enxergar o inobservável, por sua capacidade de congelamento do instante. A percepção sobre animais, pessoas, trens, carros e toda a sorte de movimentos antes inal- A imagem na era da reprodução técnica 81 cançáveis ao olhar se tornou, notavelmente, ampliada pelo uso da foto- grafia. Além do movimento, a percepção de lugares antes inalcançáveis pela distância ou pela dimensão (objetos muito pequenos) também foi gradativamente alcançada. A ampliação da escala de observação, por meio da capacidade de aproximação da câmera, foi, da mesma forma, alterada. A arte, sem dúvida, beneficiou-se da descoberta desse imenso inconsciente ótico. Um exemplo do modo como a fotografia aprofundou a perspectiva da obra de arte pode ser encontrado na pintura A Criação de Adão, de Michelangelo Buonarroti. Pintada no teto da Capela Sistina, essa obra permaneceu pouco acessível para um estudo minucioso durante anos. Com o advento da fotografia, tornou-se possível, para os artistas e os es- tudiosos da arte, aprofundar a perspectiva dessa obra de arte, estudan- do seus pormenores e reconhecendo aspectos antes imperceptíveis. Figura 4 A fotografia para o estudo da obra de arte Er za lib ill as /W ik im ed ia C om m on s Fonte: BUONARROTI, M. A Criação de Adão. C. 1511. Afresco. 230 x 480 cm. Capela Sistina, Roma. Figura 5 Detalhe de A Criação de Adão W eb G al le ry o f A rt/ W ik im ed ia C om m on s Fonte: BUONARROTI, M. A Criação de Adão. C. 1511. Afresco. 230 x 480 cm. Capela Sistina, Roma. 82 Imagem e cultura visual Os estudos de Benjamin (2012) sobre a era da reprodutibilidade técnica também estiveram centrados no cinema como forma de arte. Nesse caso, sua análise se dirige às condições técnicas que compõem a produção cinematográfica. De acordo com Benjamin, o cinema é fruto de um conjunto de aparelhos, funções técnicas e técnicos que têm o papel de garantir a produção de uma forma de arte. A câmera, o microfone, a iluminação (dispositivos técnicos), os técnicos e o diretor (produção técnica) compõem a maquinaria que ope- ra como um fundo invisível na fabricação das cenas que vão constituir um filme. Deixando de lado os debates sobre até que ponto o cinema pode se constituir como arte ou não, o interesse central de Benjamin está em demonstrar qual é o papel executado pelo ator no contexto desses mecanismos técnicos. Segundo Benjamin, o papel do ator de cinema é radicalmente dife- rente do de teatro. Nesse último, ele possui um público, para o qual se dirige. Já no primeiro, o ator tem, em sua frente, a câmera, a luz, o micro- fone e todo o conjunto de operadores e tecnologias que o enquadram. Para o filósofo, o ator de cinema é, antes de tudo, um trabalhador, res- ponsável por superar a condição de alienação que toda a aparelhagem técnica impõe à sua humanidade. Como trabalhador, sua função é cum- prir com a difícil tarefa de preservar a sua humanidade e a sua dignidade em meio a toda a maquinaria. Benjamin (2012, p. 179, grifo do original) afirma que: o intérprete do filme não representa diante de um público, mas de um aparelho. O diretor ocupa o lugar exato que o controla- dor ocupa num exame de habilitação profissional. Representar à luz dos refletores e ao mesmo tempo atender às exigências do microfone é uma prova extremamente rigorosa. Ser aprovado nela significa para o ator conservar sua dignidade humana dian- te do aparelho. O interesse desse desempenho é imenso. Porque é diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadi- nos precisa alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fá- bricas, durante o dia de trabalho. À noite, as mesmas massas enchem os cinemas para assistirem à vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do aparelho sua humanidade (ou o que aparece como tal aos olhos dos espectadores), como coloca esse apare- lho a serviço do seu próprio triunfo. A imagem na era da reprodução técnica 83 Contudo, Benjamin reconhece que, da mesma forma que o ator de cinema se transforma em alguém que é capaz de expor sua humani- dade, conseguindo representar a si mesmo na tela, diferentemente do teatro, em que representaria um personagem, as massas de trabalha- dores também sonham em se ver representadas no cinema. Entretan- to, a busca dos trabalhadores se converte em uma busca vã, na medida em que a indústria cinematográfica impede o acesso da legião de tra- balhadores ao processo produtivo do cinema. De outro lado, a indústria cinematográfica ilude o público com atra- ções publicitárias, explorando o estrelato e as relações amorosas dos atores, de modo a desviar o desejo legítimo das massas pelo cinema como mecanismo de emancipação. Nesse sentido,Benjamin (2012) re- conhece que a reprodução técnica possa ser um instrumento positivo de emancipação, desde que o cinema se converta em ferramenta de consciência de classe e de luta política. Porém, o que Benjamin enxerga, na segunda metade do século XX, é, ao contrário, dois movimentos complementares, com o mesmo pa- pel alienante: a mercantilização do cinema pela indústria cinematográ- fica e a politização do cinema pelos regimes fascistas. Assim, o autor assiste à época o desenvolvimento das primeiras for- mas de propaganda política no cinema. A exemplo do filme Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl, que apresenta a clara apropria- ção do cinema pelo nazismo, Benjamin demonstra sua preo- cupação com o uso desse mecanismo de reprodução técnica como instrumento de controle das massas. Esse fenômeno foi denominado de estetização da política. Seja pela indústria cultural, seja pelo fascismo, Benjamin (2012) traz uma das primeiras constatações do perigo do uso do cinema como ferramenta de mercantilização da vida e alienação. Atento às questões de seu tempo, ele advoga que os mecanismos de reprodução técnica, como o cinema, de- veriam se converter em instrumentos para a politização da arte. Diferentemente da estetização da política, que seria o uso da arte pelo fascismo, a politização da arte significava a assunção de uma arte engajada, que convertesse a indústria cultural em instrumento da luta política, em favor da eman- cipação social. Miraculamundi/Wikimedia Commons Figura 6 Pôster do filme nazista Triunfo da Vontade, dirigido por Leni Riefenstahl. 84 Imagem e cultura visual 4.2 Imagem, cultura de massa e sociedade do espetáculo Vídeo Nas décadas de 1960 e 1970, época do surgimento da televisão, a massificação cultural sob orientação da indústria cultural chegará a tal ponto que se vai constituir, nas sociedades contemporâneas, o que Guy Debord denominou de sociedade do espetáculo. De acordo com Debord (1997), esta seria a nova fase cultural do capitalismo. Nessa etapa, a imagem é um instrumento central para mediar as relações sociais. Mais ainda, ela se transforma em uma ferramenta que cumpre o papel de mediar não somente as informações entre emissor e receptor, mas também a produção e o consumo. Sendo assim, a in- dústria cultural e os grandes meios de comunicação se convertem em propulsores de um estilo de vida pautado no consumo, em que as ima- gens têm um papel central como mediadoras do processo de comuni- cação e orientação do comportamento cultural. Debord publicou seu livro A sociedade do espetáculo em 1967 e, em 1973, o reapresentou na forma de filme. Em ambas as obras, o autor procura demonstrar a conversão da sociedade moderna em uma so- ciedade de aparências. Por aparência se compreende não apenas as formalidades reconhecidas pela própria sociedade, e sim um estado inconsciente, em que os sujeitos e as relações sociais não são capazes de existir senão como pura aparência. A imagem, então, entra como fa- tor de mediação das relações, uma vez que nenhuma relação genuína e real se estabelece entre os sujeitos modernos. O que justificaria a existência de uma vida reduzida à aparência? Para Debord (1997), a sociedade capitalista seria marcada, origi- nalmente, por esse aspecto delusório da vida, o qual seria sustenta- do por uma lógica que Karl Marx (1818-1883) define como fetichismo da mercadoria. Em Marx, esse fetichismo seria, inicialmente, a con- dição ilusória e, ao mesmo tempo, de fascínio produzido pela pró- pria mercadoria. A mercadoria seria, assim, o resultado não apenas do processo pro- dutivo e da alienação desse mesmo processo imputado ao trabalha- A imagem na era da reprodução técnica 85 dor, mas o efeito de disfarce que impediria a percepção concreta do processo produtivo por trás do produto. Mais ainda, esse disfarce da mercadoria não estaria tão somente em uma espécie de falsa naturali- dade do produto, e sim na ilusão contínua de que todas as relações so- ciais não seriam marcadas pelo valor do dinheiro e pela busca contínua de ampliação do seu valor. Em outras palavras, o termo fetichismo foi explorado por Marx para explicar o modo como o produto gerado como mercadoria pelas in- dústrias capitalistas simula, em sua aparência, ser o resultado de uma relação entre coisas, escondendo o conteúdo humano e as relações de trabalho que constituem esse mesmo produto. Ao se perceber que a produção industrial se trata, em essência, da venda da capacidade de trabalho e não de mercadorias, desfaz-se o mistério que encobre a mercadoria como fetiche. Dessa maneira, como aponta Marx (1983, p. 81 apud BENJAMIN, 2012, p. 190): a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as caracte- rísticas sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através dessa dissimulação os produtos do trabalho se tornam mercadorias [...] Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas [...] Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produ- ção de mercadorias. Da mesma forma que um conjunto de ações humanas é necessário para a produção de mercadorias, ele é também essencial para a elabo- ração de uma subjetividade de consumo em relação a essas mesmas mercadorias. Na modernidade, o fetichismo da mercadoria vem asso- ciado a uma estrutura comportamental, construída na relação com a mercadoria, que fabrica não apenas mercadorias, mas consumidores. Nesse sentido, o fetichismo da subjetividade maquia a venda e a circulação de bens simbólicos, os quais se dissimulam como elementos constitutivos dos sujeitos, naturalizando posturas, comportamentos e desejos e constituindo, portanto, as instâncias mais moleculares das próprias relações sociais. 86 Imagem e cultura visual Desse modo, torna-se possível a configuração de posturas de con- sumo e de descarte, convertendo a obsolescência dos objetos de con- sumo na dos sujeitos consumidores. Com isso, tanto a mercadoria (objeto) quanto o consumidor (sujeito) passam a sofrer os efeitos da mistificação e do disfarce das relações concretas e simbólicas que con- figuraram um e outro. Em última instância, consumidor (sujeito) e mercadoria (objeto) se confundem, a tal ponto que essa nova dialética converte o próprio sujeito e a sua subjetividade em uma forma de mercadoria. Como afirma Bauman (2008, p. 20), “na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as ca- pacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável”. Pode-se dizer, por fim, que o fetichismo da sub- jetividade produz uma ilusão de separação entre consumidor e mercadoria, quando, na verdade, o que se apresenta na modernidade é uma fusão tão íntima entre ambos que a forma de vida dos indivíduos se converteu em uma atividade econô- mica perpétua. Como a análise de Bauman (2008) deixa claro, nesse mundo líquido, a lógica fabril que organizava o fetichismo, a lógica econômica capitalista por excelência, espalhou-se em tantas camadas da vida humana que o sentido da vida mesmo se tornou absolutamente dependente das oscilações, dos flu- xos e das mudanças imputadas pelo modo de vida instável e descar- tável do capitalismo. No fundo, o que Marx pretendeu demonstrar, com o conceito de fetiche da mercadoria, era que a vida, na sociedade capitalista mo- derna, convertia-se concretamente em uma categoria inferior à pró- pria mercadoria. Em outros termos, a vida como força genuinamente concreta e realse transformava em mercadoria, sendo o seu caráter mercadológico disfarçado como a própria natureza da vida. r2 ho x/ W ik im ed ia C om m on s Crítica à sociedade de consumo. Figura 7 Cartazes na Avenida de Vigo em Madri, Espanha. A imagem na era da reprodução técnica 87 É nesse aspecto, travestida de mercadoria, que a vida passaria a ser mediada por imagens, ou seja, por representações visuais que si- mulariam ser a própria vida. Nesse sentido, compreende-se melhor o que se entende por sociedade do espetáculo, sendo essa uma socie- dade em que os espectadores assistem ao espetáculo da mercado- ria e ao das aparências – estas que organizam o funcionamento da sociedade inteira, tomando o lugar da vida em si e fazendo se passar pela própria vida. É no campo das artes, da indústria cultural e da cultura de massa, portanto, que Debord (1997) vai verificar uma estupenda contribui- ção para a construção das relações sociais como mercadoria. Nessas circunstâncias, as imagens socialmente compartilhadas seriam os instrumentos de consolidação da vida como mercadoria. O fenômeno da publicidade, a cultura pop, a moda, as vedetes e os astros seriam expressões multifacetadas de um mesmo problema, que atravessa toda a sociedade de consumo, o qual se refere à ima- gem como promessa e instrumento de contemplação perpétua de um estilo de vida e de uma forma cultural, que celebra a realização, a feli- cidade e as falsas conquistas da vida burguesa, para serem contempla- das e consumidas. A sociedade do espetáculo, então, é aquela em que as imagens se converteram na única possibilidade de acesso a um modo de vida que só existe como simulacro e nunca como realidade. Segundo Debord (1997, p. 41), as vedetes existem para representar tipos variados de estilos de vida e de estilos de compreensão da sociedade, livres para agir globalmente. Elas encarnam o resultado inacessível do traba- lho social, imitando subprodutos desse trabalho que são magicamente transferidos acima dele como sua finali- dade: o poder e as férias, a decisão e o consumo que estão no início e no fim de um processo indiscuti- do. [...] Aparecendo no espetáculo como modelo de identificação, ele renunciou a toda qualidade autônoma para identificar-se com a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas. A vedete do consumo, embora represente exteriormente di- ferentes tipos de personalidade, mostra cada um desses tipos como se tivesse igual acesso à totalida- de do consumo, e também como capaz de encontrar a felicidade nesse consumo. Figura 8 Jovem segurando cartaz para curtir e seguir. Canberra Multicultural Festival, 2016. Jo hn sc ot au s/ Wi kim ed ia C om mo ns 88 Imagem e cultura visual Essa perspectiva, apresentada por Debord (1997), pode ser consi- derada preditiva em relação ao que vivenciamos, hoje, em plena era digital. Não nos faltam exemplos. Dessa forma, notamos a presença dos perfis nas redes sociais e o modo como as pessoas dirigem suas vidas com base em imagens trabalhadas virtualmente, simulando uma correspondência com a realidade. Há uma imensa quantidade de imagens produzidas e disparadas pelas redes sociais e pelo WhatsApp, representando, influenciando e reorientando posições políticas. Todo o trabalho visual de propagan- das pela televisão ou internet, o chamado marketing digital, orienta no- vos padrões de consumo de maneira acelerada. Logo, o mundo das imagens não só desfila diariamente sob nossos olhos, como nos faz ser tomados pela necessidade de nos autorrepresentarmos por meio das imagens fornecidas pelas novas mercadorias e pela lógica capitalista sempre reatualizada. 4.3 O uso da fotografia e do cinema como fonte histórica Vídeo A fotografia e o cinema adentraram o campo da história muito tardiamente, devido, fundamentalmente, ao predomínio das fontes escritas – entendidas, até a primeira geração da Escola dos Annales, como os únicos testemunhos fiéis do passado. Assim, somente na década de 1970, vemos aparecer os primeiros trabalhos dedicados a pensar o pa- pel da fotografia e do cinema como fonte histórica. Entretanto, a maior parte dos estudos sobre essas formas de imagens é oriunda de áreas como a sociologia, a antropologia, a linguística e a comunicação. Dessas áreas deriva a maioria das metodologias utilizada pelos historiadores para o estudo das imagens fotográficas e cinematográficas. O interesse pela fotografia como fonte histórica se justifica por um conjunto de qualidades próprias desse tipo de imagem. Primeiramente, ela é capaz de revelar aspectos da vida material, o que a mais detalha- da descrição verbal seria incapaz de realizar. Desse modo, a fotografia pode ser tomada como índice visual de uma época. Em segundo lugar, destaca-se sua condição de artefato construído por uma sociedade e que possui o valor de relíquia ou lembrança (CAR- DOSO; MAUAD, 1997). Seja como for, a importância da fotografia para A imagem na era da reprodução técnica 89 os historiadores está menos em sua capacidade de ilustrar uma época e mais em seu caráter qualitativo, como reveladora de elementos ma- teriais e humanos que compõem a realidade de uma época. Entretanto, durante muito tempo, o interesse dos historiadores pela fotografia se limitou a essa condição de testemunho revelador de um passado. Nesse sentido, os historiadores tomaram a fotografia com base em uma perspectiva realista; segundo esta, ela seria entendida como a revelação transparente de uma dada realidade, ou seja, como uma forma precisa de revelar a realidade do passado. Porém, essa perspectiva não considerava duas questões fundamentais para a com- preensão da fotografia: A fotografia é sempre o resultado de uma montagem, o que significa que ela é construída por inúmeras peças (fotógrafo, câmera, formas de reve- lação fotográfica, cenário, personagens fotografados, pose etc.), as quais vão desde os aspectos técnicos do processo ao estilo e à postura fotográ- ficos dos personagens. Desse modo, toda fotografia possui uma dimensão ficcional, que contrasta com seu efeito de realidade. A fotografia possui um caráter conotativo. Ou seja, retrata uma dimensão parcial da realidade, a qual se limita à cena fotografada, porém, ao mesmo tempo, remete e se liga a um contexto mais amplo. Desse modo, é possível afirmar que a fotografia como fonte histó- rica coloca ao historiador o desafio não só de usá-la como testemunha realista do passado, mas como uma montagem que aponta para os códigos de representação de uma época. Por códigos de representa- ção, entendemos as formas culturais que uma época encontra para se autorrepresentar e para comunicar alguma informação na forma de imagem. Como afirma Cardoso e Mauad (1997, p. 574), ao historiador, a fotografia lança um grande desafio: como che- gar àquilo que não foi revelado pelo olhar fotográfico. Tal desafio impõe-lhe a tarefa de desvendar uma intricada rede de signifi- cações, cujos elementos – homens e signos – interagem diale- ticamente na composição da realidade. Uma realidade que se formula a partir do trabalho de homens como produtores e con- sumidores de signos; um trabalho cultural, cuja compreensão é fundamental para se operar sobre esta mesma realidade. O livro História e documen- tário apresenta impor- tantes e atuais questões sobre o uso do cinema como fonte histórica. Atravessando as primeiras décadas do século XX, pe- ríodo em que a produção cinematográfica brasileira estava centrada no eixo Rio-São Paulo, e passando por documentários da Era Vargas e da ditadura militar, o livro analisa o papel político exercido pelo cinema brasileiro, a exemplo das propagandas anticomunistas, que discu- tiam formas de represen- tações cinematográficas, como a figura do índio e de outras categorias sociais e políticas. MORETTIN, E.; NAPOLITANO, M.; KORNIS, M. A. Rio de Janeiro: FGV, 2012. Filme 90 Imagem e cultura visual Os signos ou códigos de representação são os elementos visuais que permitemcompreender como uma época, uma classe social e um tipo de grupo social procuram transmitir a sua própria imagem à sociedade de sua época. São eles, portanto, que permitem ligar a imagem fotográ- fica ao contexto em que ela pode ser mais bem compreendida. Fabris (2004) assinala que o papel da fotografia, no século XIX, apontava para o uso honorífico da imagem, ou seja, a sua capacidade de demarcar os lu- gares sociais das pessoas de uma época – um exemplo claro disso pode ser encontrado em imagens do Brasil no período escravagista. Nesse sentido, muitas fotografias de senhores com seus escravos apareceram ao longo do século XIX, no Brasil, procurando demonstrar o status da condição social do senhor. Ao mesmo tempo, essas ima- gens mostravam códigos de representação importantíssimos, que vi- goravam no período e que permitiam compreender o papel social de cada personagem, seja na fotografia ou fora dela. Um dos códigos mais comuns encontrados nessas fotografias é o uso dos sapatos como forma de distinção social. Enquanto os senhores de escravos eram retratados em pose aristocrática e com todas as ves- timentas próprias de sua condição social, incluindo os sapatos, as pes- soas escravizadas, apesar de bem trajadas (o que demonstrava o status do proprietário e não do escravo), apareciam sem calçados. Assim, os sapatos eram, nessas ocasiões, a principal maneira de distinguir senho- res e pessoas escravizadas em uma fotografia, além do fato da própria distinção racial e social entre ambos. Figura 9 Senhora e pessoas escravizadas Le ce n/ W ik im ed ia C om m on s Senhora na liteira (cadeira potátil e coberta), sendo carregada por pessoas escravizadas, na província de São Paulo, no Brasil, cerca de 1860. A imagem na era da reprodução técnica 91 Desse modo, é possível afirmar que a fotografia como fonte histórica coloca ao historiador questões centrais. Como relatam Cardoso e Mauad (1997, p. 574): a fotografia, enquanto componente desta rede complicada de significações, revela, através da produção da imagem, uma pista. A imagem considerada como fruto de trabalho humano pauta-se em códigos convencionalizados socialmente, possuin- do, sem dúvida, um caráter conotativo que remete as formas de ser e agir do contexto no qual estão inseridas as imagens como mensagens. Entretanto, tal relação não é automática, pois, entre o sujeito que olha e a imagem que elabora, existe muito mais do que os olhos podem ver. Por sua vez, o cinema também se tornou uma forma de produção visual importante como fonte histórica para os historiadores. Desde os trabalhos de Marc Ferro (1924-2021), na década de 1970, temos a proposta de estudar o cinema como fonte histórica, procurando trabalhá-lo não como ilustração ou confirmação de informações es- critas, mas, tomando sua condição própria, como comunicador de um passado. Contudo, no trabalho pioneiro de Marc Ferro, predomina-se a abordagem do cinema como fonte que busca revelar o conteúdo que estaria ligado a uma realidade externa do filme, este que seria uma espécie de testemunho. Assim, retirando os filtros ideológicos, as formas estéticas e os estilos de representação, seria possível chegar ao contexto histórico que interessa ao historiador. Portanto, o filme é por ele observado como “um produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são só cinematográficas: trata-se, em suma, de um testemunho” (CARDOSO, MAUAD, 1997, p. 583). Porém, outras formas de abordar o uso do cinema como fonte histórica foram sendo desenvolvidas por historiadores, influencia- dos, normalmente, pela semiótica e pela linguística. Nesses casos, o cinema é encarado como um suporte de comunicação complexo, na medida em que envolve não somente imagens, mas também o uso de sons que se ligam a elas, bem como a produção de uma narrativa es- crita e oral. A utilização do cinema como fonte histórica precisa, antes de tudo, considerar a dimensão técnica da criação dos filmes (roteiro, direção, recursos audiovisuais, atores, movimentação das câmeras etc.) e, também, as suas muitas formas de comunicação audiovisual. 92 Imagem e cultura visual Nessa perspectiva, de acordo com Cardoso e Mauad (1997, p. 548), podemos descrever os principais elementos que compõem um filme em seis pontos, conforme apresentados na figura a seguir: LA N0 2/ M ih ae l M ih al ev /S hu tte rs to ck A primeira categoria visual são imagens (fotográfi- cas ou eletrônicas, se considerarmos a TV e o vídeo) múltiplas e que dão a ilusão do movimento (cada unidade de leitura implica muitas imagens). 01 Outro elemento visual são os textos escritos que aparecem na tela. Aqui se pensa mais, obviamente, em legendas do cinema mudo, mas há também os bilhetes mostrados ao espectador em lugar de lê-los oralmente, bem como as placas e os cartazes com nomes de ruas ou instituições com finalidades de economia narrativa etc. 02 No elemento relativo ao domínio auditivo, temos, para começar, as falas gravadas e incorporadas ao filme. 03 Ainda dentro do elemento auditivo, há a música gravada na trilha sonora. 04 Da mesma forma, os ruídos pretensamente naturais (de fato selecionados e elaborados) são auditivos: barulho de passos, estampidos de tiros, ruídos de um papel ao ser amassado, entre outros. 05 Se considerarmos que, além dos textos explícitos (no sentido semiótico), há ainda outros implícitos, mas intrinsecamente necessários ao cinema, como medium (roteiro, montagem e movimentação de câ- meras), confirma-se que se trata de uma mensagem mista bem complicada. 06 A imagem na era da reprodução técnica 93 Assim, não podemos apontar um único método de análise do ci- nema como fonte histórica, mas precisamos reconhecer a comple- xidade técnica que envolve a produção cinematográfica, para que sua condição de fonte histórica possa ser devidamente explorada. Logo, considerando essa complexidade, podemos apresentar duas possibilidades de análise. A primeira, desenvolvida por Marc Ferro (2010), em sua obra Ci- nema e história, compreende o filme como uma contra-análise da sociedade – ou seja, mesmo se tratando de ficção cinematográfica, os filmes podem ser considerados um registro de memória de uma época. Nele, um setor da sociedade representa a história, de modo que personagens e aspectos dramáticos aparecem como alegoria de sua época. Portanto, a ideologia da classe dominante pode ser encontrada nas formas de representação, no roteiro, no estilo e em muitos ou- tros aspectos presentes no filme de ficção. “Um filme pode ser lido, desta forma, como expressão ideológica da sociedade, segundo as escolhas narrativas realizadas por seus atores, de acordo com o de- sejo de seus produtores” (HAGEMEYER, 2012, p. 48). Em outros casos, podemos encontrar uma relação entre cinema e história em que a preocupação pode estar menos centrada na aná- lise fílmica e mais nas condições de produção, distribuição e recep- ção crítica dos filmes. Esse tipo de análise implica pesquisas com documentação externa à obra cinematográfica, como jornais, fichas técnicas e correspondência comercial e diplomática, isto é, fontes que permitam dialogar com o contexto de produção fílmica (HAGE- MEYER, 2012). De todo modo, o que se destaca da análise do cinema como fonte histórica é a sua capacidade de informar não só as ideologias do- minantes de uma época, mas também as formas de representação, as convenções sociais e, acima de tudo, as emoções, os medos e as esperanças de uma época – em suma, um meio de reprodução e produção do imaginário social. Um exemplo claro do modo como os filmes auxiliam e repro- duzem o imaginário social pode ser visto no emprego do cinema hollywoodiano durante a Guerra Fria, nutrindo o sentimento antico- munista por meio da cultura de massas. 94 Imagem e cultura visual 4.4 A narrativa histórica na fotografia e no cinema Vídeo Desde a antiguidade clássica, a narrativa é um dos elementos cen- trais no desenvolvimento da história comoconhecimento do passado. Narrar era uma das formas centrais do exercício dos contadores de história, seja em seu modo oral ou escrito. Entretanto, para a história científica, que aparece a partir do século XIX, vem se somar à narrativa a análise cuidadosa dos fatos, procurando definir a história como uma ciência não apenas narrativa, mas de análise dos fatos passados. Na década de 1950, com a segunda geração da Escola dos Annales, torna-se presente uma crítica à narrativa dos fatos em detrimento da va- lorização da análise das estruturas históricas. Somente na década de 1970 se realiza uma retomada da narrativa histórica, a qual ocorre juntamente à análise dos atores históricos e das biografias; esse momento foi denomi- nado por Dosse (2013) como renascimento do acontecimento, período que coincide com a entrada da fotografia e do cinema como documentos his- tóricos, os quais serão valorizados, também, por sua dimensão narrativa. A capacidade das imagens de contarem histórias é, sem dúvida, no- tável. Muito embora possa ser apoiada pelo discurso verbal, a imagem, como discurso não verbal, possui, por si só, a qualidade de emissora de uma ou mais mensagens. Essas mensagens, evidentemente, passam pela recepção dos observadores, havendo um modo como a imagem pode ser lida e interpretada em cada época. Entretanto, o primeiro aspecto narrativo que interessa ao historiador é as imagens serem ca- pazes de fornecer um discurso sobre a época em que são criadas – isto é, sua capacidade de narrar uma história ou orientar sua narrativa. Para Mauad (2008), a imagem fotográfica possui quatro dimensões ou aspectos: 1. Produção Diz respeito à mediação feita pela tecnologia. 2. Recepção Refere-se às formas de valorização e significado dadas à imagem em uma época. 3. Produto Relativo à imagem como matéria e à sua capacidade de orientar uma narrativa partilhada socialmente. 4. Agenciamento Relaciona-se à história da trajetória das imagens como artefatos, manuseados e utilizados em diversos contextos. Se t L in e Ve ct or Ic on /A nd re w Kr as ov itc ki i/S hu tte rs to ck Historiadores brasileiros, americanos e europeus debatem, na obra História e narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica, os significados e os sentidos de escrever a história. Os textos reunidos discutem o papel da narrativa como recurso estilístico de síntese do conhecimento histórico. Atravessando os temas da filosofia da história e da teoria da linguagem e analisando as relações entre a dimensão empírica das pesquisas históricas e a elaboração da escrita historiográfica, o livro oferece um balanço das possibilidades da ope- ração historiográfica. MALERBA, J. Petrópolis: Vozes, 2016. Livro A imagem na era da reprodução técnica 95 Desses quatro aspectos, o terceiro – produto – demonstra o modo como a fotografia é capaz de orientar uma forma de olhar sobre determinada época. Nesse sentido, ela se torna capaz de organizar me- mórias e estruturar o sentido de uma narrativa, seja ela verbal ou visual. Um exemplo da organização de narrativas visuais são as fotografias do fotógrafo Marc Ferrez (1843-1923) no século XIX. As imagens pro- duzidas por ele retrataram tanto paisagens de algumas cidades bra- sileiras, trabalhos cotidianos de pessoas escravizadas nas fazendas e espaços urbanos quanto membros da corte brasileira no Rio de Janei- ro. Em todos os casos, é possível encontrar um estilo fotográfico que reproduz uma narrativa visual de lugares e personagens, o qual tem o valor de demonstrar uma maneira de visualidade típica do século XIX, bem como de produzir um relato visual sobre a vida cotidiana. Figura 10 Os filhos do Príncipe Gastão de Orléans, Conde d’Eu, e Princesa Isabel, da esquerda para a direita: Pedro, Antônio e Luís. M ar c Fe rre z/ W ik im ed ia C om m on s Fotografia tirada por Marc Ferrez, por volta de 1883. Assim, conforme apontado por Cardoso e Mauad (1997, p. 146): a imagem fotográfica compreendida como documento revela aspectos da vida material de um determinado tempo do passado de que a mais detalhada descrição verbal não daria conta. Neste sentido, a imagem fotográfica seria tomada como índice de uma época. Sob este aspecto, a própria fotografia integra um sistema sígnico não-verbal que pode ser compreendido através de um duplo ponto de vista: enquanto artefato produzido pelo homem e que possui uma existência autônoma como relíquia, lembrança etc.; enquanto mensagem que transmite significados relativos à própria composição da mensagem fotográfica. 96 Imagem e cultura visual O cinema, por sua vez, pode ser considerado a maior experiência narrativa no uso de imagens. É possível dizer que ele elabora múltiplas formas de narrativas, as quais precisam ser compreendidas para que os historiadores possam explorá-las adequadamente. Citando, nova- mente, Cardoso e Mauad (1997, p. 588): o segundo ponto, bem como o fato — já percebido por Metz, como dissemos — de ser o cinema intrinsecamente narrativo, levaram- -nos a uma escolha: a de privilegiar, na análise dos filmes, os seus aspectos narrativos. Seguindo Robert Scholes, a narrativa: “... re- pousa na presença de um narrador ou de um médium narrativo (atores, livro, filme etc.) e na ausência dos eventos narrados. Tais eventos estão presentes como ficção, mas ausentes como reali- dades. Dada esta situação, é possível distinguir diferentes tipos e modalidades de narrativa segundo o grau variável em que se enfatiza, seja o processo narrativo imediato (um ator pode cha- mar a atenção para si mesmo como aquele que representa, ou um escritor para si mesmo como estilista), sejam aqueles eventos imediatamente apresentados. Usando nossa terminologia crítica habitual, pode-se dizer que uma narrativa é mais ficcional na me- dida em que enfatiza os eventos narrados, mais lírica se enfatizar a sua própria linguagem, e mais retórica se usar ou a linguagem ou os eventos para algum fim persuasivo. Contudo, essas formas narrativas encontradas no cinema (fictícia, lírica e retórica) podem ser apresentadas dentro de dois modelos ge- rais: ficção cinematográfica e documentário. Esses modelos gerais são a base de uma forma de compreensão da narrativa cinematográfica que possui equívocos significativos. O equívoco parte da ideia de que a narrativa do cinema ficcional poderia ser dividida em gêneros, de acordo com o estilo da narrativa (drama, comédia, aventura, suspense etc.), enquanto o documentário, por ser um gênero realista, seria dividido por temas: histórico, geográ- fico, político, científico etc. Essa divisão cria a ilusão de que o cinema ficcional produziria tipos de narrativas poéticas, e o documentário teria uma narrativa efetivamente prosaica e realista, sem a mediação de um estilo. Como afirma Hagemeyer (2012, p. 117): como se o próprio documentário não adotasse uma tônica de caráter épico ao enfatizar o caráter heroico de uma luta, trági- co ao denunciar injustiças, de suspense ao revelar os passos de uma investigação, cômico ao representar o aspecto ridículo de determinadas negociações, ou representando de forma satírica os absurdos presentes em dada realidade. A imagem na era da reprodução técnica 97 Essa diferenciação entre cinema ficcional e documentário se esta- beleceu como um desdobramento de antigos debates que também emergem na história científica, quando esta procurava se diferenciar da literatura histórica. Do mesmo modo que ocorreu com o cinema, a história procurou diferenciar e separar sua função narrativa de sua função explicativa e analítica, de modo a dar maior cientificidade ao trabalho do historiador. Contudo, tanto na história quanto no cinema, a narrativa é um elemento central, pois demonstra a dimensão ficcio- nal encontrada em toda forma de linguagem e comunicação, seja ela artística ou científica. Nesse sentido, a melhor forma de abordar a elaboração narrati- va dos filmes é não estar presoà simples diferenciação entre cinema ficcional e documentário, mas sim focar o modo de articulação pre- sente em seus enredos. Dessa maneira, como sugere White (apud HA- GEMEYER, 2012), a dimensão narrativa, seja na história ou no cinema, pode ser definida em quatro tópicos ou modelos fundamentais: a tra- gédia, a comédia, a sátira e o romanesco ou épico. Esses quatro mo- delos narrativos compõem, de uma forma geral, a estrutura narrativa, seja na literatura, na história ou no cinema. Além disso, mais do que simplesmente narrar dentro de um estilo, eles são aspectos que orien- tam modelos explicativos de compreensão da realidade representada. CONSIDERAÇÕES FINAIS O papel da fotografia e do cinema é central para a história da mo- dernidade. Podemos dizer que esses mecanismos de reprodução técnica foram responsáveis por revolucionar não só o campo tecnológico ou o da arte, como também foram centrais para a produção de novas formas de representação visual, organização de padrões novos de visualidade, orientação de padrões de consumo, elaboração de códigos de repre- sentação e distinção social e definição de formas de identidade. Além disso, eles construíram o mundo moderno como um mundo em que as imagens se tornaram centrais na construção de narrativas e discursos. Mundo esse marcado pela presença constante de intertextualidades e de cruzamentos constantes entre imagem, texto e oralidade, no qual as di- versas formas de comunicação se cruzam, construindo mensagens cada vez mais híbridas. 98 Imagem e cultura visual Nesse sentido, as imagens do cinema e da fotografia cumprem o papel de orientar e fornecer insumos visuais para o que se denomina de imagi- nário social, isto é, o conjunto de imagens que referenciam os modos de imaginar e representar a realidade vivida. É diante desses elementos e desafios, lançados pelo uso das imagens, que os historiadores têm a função de articular questões e propor formas de compreensão dos inúmeros usos das imagens na história moderna. Valer-se da fotografia e do cinema como documentos históricos requer estar ciente de seus papéis na construção das sociedades modernas, bem como dos seus diversos usos e das suas finalidades como instrumentos de poder, seja em sua dimensão política, econômica ou cultural. ATIVIDADES 1. De acordo com Walter Benjamin, o que pode se entender por aura na obra de arte? 2. De acordo com Karl Marx, o que significa o conceito de fetiche da mercadoria? 3. O que são signos ou códigos de representação visual na fotografia? REFERÊNCIAS BAUMAN, Z. Vida para o consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012. CARDOSO, C. F.; MAUAD, A. M. História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (org.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CAVALCANTI, A. H. Arte, fotografia e formas de percepção em Walter Benjamin. Psicanálise e Barroco em Revista, v. 11, n. 2, p. 198-209. dez. 2013. Disponível em: https://biblat.unam. mx/hevila/Psicanalise&barrocoemrevista/2013/no2/13.pdf. Acesso em: 21 jul. 2021. COSTA, J. H. A atualidade da discussão sobre a indústria cultural em Theodor W. Adorno. Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 2, p. 135-154, ago. 2013. Disponível em: https:// www.scielo.br/j/trans/a/GsymXVvZTDrdFjMqgJz9ngv/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 21 jul. 2021. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DOSSE, F. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador – entre Esfinge e Fênix. São Paulo: Unesp, 2013. FABRIS, A. Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: UFMG, 2004. FERRO, M. Cinema e história. 2. ed. São Paulo: Paz e terra, 2010. HAGEMEYER, R. R. História e audiovisual. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2000. MAUAD, A. M. Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: UFF, 2008. Vídeo https://biblat.unam.mx/hevila/Psicanalise&barrocoemrevista/2013/no2/13.pdf https://biblat.unam.mx/hevila/Psicanalise&barrocoemrevista/2013/no2/13.pdf https://www.scielo.br/j/trans/a/GsymXVvZTDrdFjMqgJz9ngv/?lang=pt&format=pdf https://www.scielo.br/j/trans/a/GsymXVvZTDrdFjMqgJz9ngv/?lang=pt&format=pdf Imagem e visualidade no ensino de História 99 5 Imagem e visualidade no ensino de História Neste capítulo vamos abordar como fazer uso de imagens no ensino de História, apresentando as principais metodologias e estratégias didá- tico-pedagógicas para tal fim e demonstrando a importância do debate sobre a visualidade e a cultura visual no ensino dessa disciplina. Passaremos pelo estudo da pintura e da fotografia, apresentando a importância de se verificar as mudanças de visualidade em cada época da história, as formas de representação social, as mudanças técnicas e como isso auxilia no desenvolvimento das aulas de História. Verificaremos também como o cinema e as histórias em quadrinhos podem ser úteis para o ensino da disciplina, tanto por suas múltiplas lin- guagens quanto por sua dinâmica (áudio)visual e escrita, apresentando maneiras de o professor usar esses recursos em sala de aula. Por fim, apresentaremos uma seção que sugere a importância do de- bate sobre a imagem, o imaginário e a memória por meio das imagens. Com isso, demonstraremos como a imagem e as discussões que suscitam a visualidade e a cultura visual podem se converter em oportunidades para o desenvolvimento de aulas mais atrativas, reflexivas e colaborativas. Com o estudo deste capítulo, você será capaz de: • compreender as possibilidades de uso da imagem no ensino de História; • apreender as metodologias e as estratégias didático-pedagógi- cas no ensino de História por meio da pintura, da fotografia, do cinema e das histórias em quadrinhos; • reconhecer a importância do debate sobre a visualidade e a cultura visual no ensino de História; • reconhecer a importância de problematizar a imagem como suporte na construção do imaginário social e como lugar de memória. Objetivos de aprendizagem 100 Imagem e cultura visual 5.1 Uso da pintura e da fotografia no ensino de História Vídeo A imagem é uma ferramenta de grande importância para o ensino de História. Tradicionalmente, compreendeu-se a imagem como um instrumento para a ilustração de determinados aspectos históricos. Seja nos livros didáticos ou nas aulas, as imagens apareceram muitas vezes como uma forma importante de apoio ao conteúdo trabalhado. Isso por si só já é de grande relevância, na medida em que a imagem é capaz de atrair os alunos, dar maior vivacidade e auxiliar na compreen- são de fatos e processos históricos. Porém, o uso das imagens como ilustração é uma metodologia in- suficiente – para não dizer equivocada –, pois induz à suposição de que imagem e conteúdo estão naturalmente associados. Ou seja, a imagem passa a ser entendida como a prova visual da narrativa histórica. O grande problema do uso da imagem como ilustração dos fatos históri- cos está na sua naturalização como o retrato fiel dos fatos. A primeira forma de superar o problema de naturalização da ima- gem está em encará-la como fonte histórica. Só então é possível desen- volver o que os historiadores realizam com suas fontes ao utilizá-las para escrever a história. Em primeiro lugar, compreendendo que qual- quer fonte precisa ser problematizada, o que significa verificar o pro- cesso de composição, de criação dessa fonte na época em que foi feita. Alguns elementos são vitais para compreender a criação de qualquer coisa dentro de uma época: Perguntar sobre seu autor: sua condição social, suas ideologias. Reconhecer os limites técnicos e tecnológicos impostos por sua época. Inserir essa fonte na sociedade e na cultura quea envolve. Compreender o processo de criação, as técnicas empregadas, as finalidades do objeto criado para o contexto histórico. Imagem e visualidade no ensino de História 101 Em segundo lugar, levar em consideração que toda fonte histórica é uma representação que pode ser apresentada com a linguagem, a forma, o suporte ou o estilo com que um determinado acontecimen- to é descrito. Portanto, é necessário reconhecer que nenhuma fonte é o testemunho verdadeiro de dado acontecimento. Na realidade, toda fonte é parcial, nos aproxima do acontecimento, mas sempre por meio de um determinado filtro, interpretação ou subjetividade. Logo, nenhu- ma fonte é neutra ou isenta, nem mesmo totalmente objetiva. Dito isso, podemos começar a compreender como fazer uso das imagens no ensino de História. O primeiro passo, como vimos, é en- cará-las as imagens como fontes históricas. O segundo é saber que a imagem é um tipo de fonte bastante complexa e variável, o que signi- fica que, para cada tipo de imagem, é necessário um método de abor- dagem específico. Para demonstrar essas diferenças, vamos explorar o uso da pintura e da fotografia, procurando diferenciar seus métodos e compreender suas possibilidades de interconexões. 5.1.1 Uso da pintura A pintura é um instrumento didático-pedagógico muito proveitoso para o ensino de História, pois consegue transmitir beleza e emoção por meio do acontecimento histórico representado. Também é capaz de proporcionar, junto às metodologias ativas, formas lúdicas com as quais os alunos podem criar produtos, realizar exposições, construir cenários ou mesmo fabricar experiências intertextuais entre imagens antigas e contemporâneas. Entretanto, cabe lembrar que o uso de pinturas para o ensino de His- tória não se limita aos quadros que retratam temas históricos tradicio- nais. Elas também podem ser usadas para explorar elementos históricos do cotidiano – como as formas de alimentação, as vestimentas, a higiene, a sexualidade, os jogos, as brincadeiras infantis, as formas de trabalho, a vida no campo e na cidade –, as diferenças sociais, as atividades eco- nômicas, os papéis de gênero e classe social. As pinturas servem, ainda, para a análise de aspectos subjetivos, como as crenças, os mitos, as len- das, as ideias, os imaginários e as utopias, como também dos valores morais e dos preconceitos de setores da sociedade de cada época. 102 Imagem e cultura visual O quadro Jogos Infantis, de Pieter Bruegel (c. 1525-1569), apresenta- do na figura a seguir, é um exemplo de como se trabalhar com pinturas para explorar elementos do cotidiano. Figura 1 Quadro com elementos do cotidiano do fim da Idade Média Pa kl ao /W ik im ed ia C om m on s Fonte: BRUEGEL, P. Jogos Infantis. 1560. Óleo sobre tela. 118 x 161 cm. Museu de História da Arte, Viena. Figura 2 Jogos Infantis, de Pieter Bruegel, o Velho. Pi et er 1/ W ik im ed ia C om m on s Recorte mostra detalhe de crianças brincando de girar aro. Essa pintura apresenta cerca de 80 tipos diferentes de brincadeiras que eram bastante comuns na época de Bruegel, a Europa do século XVI. Jogos com bexigas de porco, bonecas, cavalos de pau, ou mesmo girar aros, correr, pular, andar sobre palafitas, brincar de sapo (imitar https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Paklao https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Pieter1 Imagem e visualidade no ensino de História 103 os pulos de um sapo), cabra-cega são algumas das brincadeiras e tipos de brinquedos que aparecem no interior do quadro. Essas brincadeiras poderiam ser exploradas por alunos com base na pintura de Bruegel, com a realização de comparações em relação às brincadeiras das crianças contemporâneas, procurando demonstrar as continuidades e as rupturas dos jogos infantis e os significados que cada brincadeira possuía em seu contexto de nascimento. É interessan- te observar que o quadro possibilita muito mais que isso: fornece infor- mações que podem sinalizar para as crenças medievais sobre a figura de Deus como pai e a imagem dos adultos como filhos, já que a propos- ta original desse quadro nem é tanto apresentar brincadeiras da época, mas demonstrar que, tal como as crianças se dedicam seriamente às suas brincadeiras ao olhar dos adultos, os adultos se dedicam com a mesma seriedade ao trabalho aos olhos de Deus (GOMBRICH, 2012). Por outro lado, a forma mais comum de utilização de pinturas no ensino de História se dá por meio dos quadros históricos, ou seja, da- queles que retratam cenas consideradas marcos ou eventos centrais da história. Um bom exemplo desse tipo de quadro é Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles (1832-1903). Pinturas que retratam cenas his- tóricas precisam ser trabalhadas com muita cautela pelos professores de História, sobretudo por comumente possuírem um caráter ufanista, isto é, de enaltecimento de grandes personagens ou heróis nacionais (CARVALHO, 2017). Outro ponto a se considerar é o fato de que toda a cena histórica pintada é influenciada por visões, crenças e ideologias, tanto do autor quanto do contexto histórico em que ele vive. Conhecer essa visão de época, bem como a vida do autor, é um passo fundamental para compreender melhor a leitura que o quadro pretende oferecer. É também uma forma de superar o anacronismo de nossa análise do quadro e do fato ao qual ele se refere, ou seja, uma maneira de não projetar as impressões e as ideias da nossa época sobre a do pintor, menos ainda de projetar a visão da nossa época sobre o passado retratado na pintura. O primeiro ponto a ser trabalhado em quadros históricos como o de Meirelles é o papel do artista na elaboração de um sentido para a história. É necessário se perguntar em que medida o pintor é responsá- vel por ilustrar uma história idealizada por grupos políticos específicos cabra-cega: também co- nhecida como cobra-cega, é uma brincadeira infantil em que um participante fica vendado e deve alcan- çar outro participante (e, em certas modalidades, identificá-lo) para ser por este substituído. Glossário Tetraktys/Wikim edia Com m ons Figura 3 Victor Meirelles 104 Imagem e cultura visual da história nacional. Nesse sentido, cabe sinalizar quais aspectos da pintura apresentada apontam para esses ideais. Ao mesmo tempo, é necessário perguntar, problematizando a obra: • Quais personagens são retratados? • Como eles são retratados ou representados? • Qual é o grau de protagonismo do personagem no interior da tela? • Qual(is) personagem(ns) é(são) o centro da cena representada? • Quais símbolos são centrais no quadro e o que eles procuram significar? Al ek sa nd r B ry lia ev /S to ck Ap pe al /S hu tte rs to ck Essas e outras questões são de grande relevância para que se possa utilizar o quadro em uma aula de História sem tomá-lo como um retra- to do passado (CATELLI JUNIOR, 2009). Outro aspecto fundamental na análise de um quadro é saber que as imagens não apenas dialogam com o tempo em que foram criadas, mas também se relacionam com o passado e com outros momentos da história. Um erro muito comum nas aulas de História é o professor se valer de um tipo de imagem como se o tema representado fosse contemporâneo ao autor da obra. Figura 4 A importância de reconhecer os aspectos históricos das obras de arte Te tra kt ys /W ik im ed ia C om m on s Fonte: MEIRELLES, V. Primeira Missa no Brasil. 1860. Óleo sobre tela. 268 x 356 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Imagem e visualidade no ensino de História 105 O caso de Victor Meirelles é simbólico, pois o artista não estava pre- sente no acontecimento da primeira missa no Brasil, que ocorreu pelo menos 350 anos antes da pintura. Esse dado é fundamental para com- preender a obra de arte e utilizá-la de modo adequado. A diferença temporal entre a época de Meirelles e a da primeira missa nos informa mais sobre a maneira como o artista e os historiadores da sua época procuraram representar o passadodo que sobre o passado realmente. Nesse caso, torna-se muito importante explorar em aula o fato de que o quadro Primeira Missa no Brasil ajuda a compreender a visão his- tórica que se tinha em 1850 de que determinados setores sociais com maior poder construíram, sobre a população brasileira, os projetos po- líticos e a própria visão de quem compunha o povo brasileiro de acordo com essa mesma elite. O quadro, mesmo retratando um período histórico diferente de quem o pintou, fornece informações preciosas: • o modo de representação idealizado que vigorava sobre os indígenas; • a visão ufanista do papel dos portugueses no nascimento da his- tória do Brasil; • o predomínio de uma visão eurocêntrica na narrativa da nossa história; • os ideais de civilização, de acordo com os quais a catequização representava o primeiro sinal de civilidade conforme a visão de historiadores, políticos e pintores do século XIX. Como é possível identificar, o quadro ajuda a compreender a cul- tura visual de uma época, ou seja, o modo como determinado período enxerga a si mesmo e o próprio passado. Nesse sentido, é importan- te demonstrar que, mesmo com a pretensão mais realista possível na composição da obra, o quadro apresentado é uma representação que aponta para as diferentes formas de visualidade construídas por seto- res específicos da sociedade brasileira do século XIX. Esse é um tipo de representação que nem sempre é compartilhada por toda a sociedade, mas por classes e setores sociais que possuem acesso à cultura artística da sua época, frequentadores de salões e aca- demias de belas artes. Assim, é um tipo de cultura muitas vezes restrita a uma pequena parte da sociedade, mas que revela a cultura visual com- partilhada pela aristocracia agrária e por setores da burguesia brasileira. 106 Imagem e cultura visual 5.1.2 Uso da fotografia A fotografia é outro instrumento visual importante para a com- preensão da história e da cultura visual de uma época. Diferentemente da pintura, ela coloca algumas questões técnicas específicas para que possa ser compreendida e trabalhada melhor como fonte histórica no ensino de História. É importante perceber, primeiro, que a fotografia substituiu os pin- tores retratistas pelos fotógrafos retratistas no século XIX. Embora o papel do pintor como artista não fosse abalado, a fotografia fundou uma nova modalidade de retrato, o retrato honorífico, responsável por demarcar a posição social das classes que tinham acesso a esse tipo de tecnologia, a exemplo da burguesia. Mais tarde, a disseminação da fotografia por meio do calótipo possibilitou seu uso como instru- mento de normatização (FABRIS, 2004), na medida em que passou a ser empregado no registro de detentos, pessoas com doenças mentais, na procura de criminosos e no registro geral dos cidadãos. A fotografia aparece como o resultado de um tipo de experiência mais documental e científica, diferente do caráter artístico da pintura. O fotógrafo possui um estatuto bastante diferente do pintor em muitos aspectos, como o fato de não ser exigido dele um estilo, o que daria a ilusão de realismo, a ideia de que a fotografia e o fotógrafo revelariam a realidade tal como ela se apresenta. Entretanto, a fotografia demons- trou ser um instrumento não menos fictício do que a pintura, uma vez que também seria o resultado de uma montagem de cenas, revelando o que Fabris (2004) denomina de partido compositivo, isto é, a composi- ção visual dos personagens da cena fotografada. A impressão de naturalidade com que os fotografados posam para o fotógrafo é um aspecto importante na fotografia. Por mais que possa- mos pensar na espontaneidade do ato fotográfico, as fotografias sempre exigiram daqueles que estão sendo fotografados que se colocassem em pose. Esse aspecto é muito importante na análise das fotografias, pois demonstra que o ato fotográfico é uma criação em certo sentido artísti- ca, já que é o resultado de uma experiência de montagem visual. A pose, os gestos, a cena escolhida, o ângulo da câmera e o en- quadramento são aspectos técnicos que não podem ser desprezados retrato honorífico: fotos em que a ambientação, a iluminação, a pose e a expressão eram derivadas das qualidades plásticas e dos elementos utilizados na pintura, contribuindo para forjar padrões dos retratos não só no século XIX, mas também durante os períodos posteriores. calótipo: técnica com câmara escura e negativo em papel sensibilizado com nitrato de prata. O papel é positivado no con- tato com papel idêntico. O calótipo ampliou a repro- dução de fotografias com o uso do papel. A técnica anterior, denominada daguerreótipo, limitava a reprodução fotográfica, pois era reproduzida em uma folha de prata sobre uma placa de cobre. Glossário Imagem e visualidade no ensino de História 107 quando se analisa uma fotografia e se tem a intenção de utilizá-la no ensino de História. Eles demonstram que a própria naturalidade que tenta se insinuar na imagem fotográfica é também uma montagem, seja pela encenação fotográfica, seja pela cultura que orienta os gestos corporais (FABRIS, 2004). Muitas fotografias de autoria do fotógrafo Marc Ferrez (1843- 1923) no século XIX foram responsáveis por construir uma narrativa visual sobre o Brasil da década de 1880. Ele produziu um rico acer- vo visual, apresentando tanto os centros urbanos quanto as áreas rurais, também registrando personagens do cotidiano brasileiro na época do Império, como senhores e pessoas que eram escravizadas trabalhando (MAUAD, 2008). Na cena registrada por Ferrez, apresentada a seguir, encontramos duas pessoas escravizadas lavando ouro em um rio de Minas Gerais. Essa imagem poderia ser explorada para se falar sobre as atividades de trabalho e sobre o papel da escravidão na sociedade brasileira ou sobre a continuidade da exploração do ouro no fim do século XIX. Figura 5 Escravizados lavando ouro em um rio de Minas Gerais. Marc Ferrez. 1880. M ar c Fe rra z/ W ik im ed ia C om m on s 108 Imagem e cultura visual Outro importante fotógrafo que registrou cenas de personagens his- tóricos em cenas do cotidiano foi Benjamin Abrahão Botto (1890-1938), que filmava e fotografava cangaceiros do bando de Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o Lampião, durante as décadas de 1920 e 1930. Para além de registrar os elementos visuais dos cangaceiros, roupas, armas e o cenário da caatinga do sertão nordestino, as fotografias de Benjamin Abrahão deram espaço para o debate sobre a construção da figura de Lampião 1 e as imagens idea- lizadas do cangaço. Para o ensino de História, essas imagens permitem tanto conhecer melhor o cangaço quanto compreen- der o processo de idealização da figura do cangaceiro como uma espécie de bandido-herói do sertão nordestino. Uma forma possível de abordar essas fotografias é se valer dos debates historiográficos sobre a figura dos cangaceiros. Uma sugestão para o uso das fotografias seria orientar os alunos para a leitura do texto de Urariano Mota: Lampião, bandido de marketing. Segundo o autor, o cangaço só teria ganhado essa estetização da violên- cia por causa da idealização concebida pelas fotografias de Abrahão e devido aos jornais da época que construíram o mito de Lampião. Por isso, Urariano fez uma crítica rigorosa à historiadora francesa Élise Jasmin, que compreendeu que os cangaceiros foram os responsáveis por explorar a espetacularização da violência por meio das fotografias de Abrahão, pois ele contrariava a ideia de que o cangaço fosse uma forma de banditismo. Com a leitura do texto e a análise das fotografias de Abrahão, os alunos po- derão organizar uma releitura das imagens produzindo literatura de cordel. Essa experiência pode levá-los a compreender as muitas linguagens por meio das quais foi se construindo o mito do cangaço, ao mesmo tempo que podem experimentar uma leitura crítica que explore suas múltiplas narrati- vas, seja o banditismo, a espetacularizaçãoou o papel do cangaceiro como ator da luta social em uma sociedade marcada pela desigualdade e pelo controle do grande latifúndio. Disponível em: https://www.lainsignia.org/2006/septiembre/cul_007.htm. Acesso em: 20 jul. 2021. OFICINA DE HISTÓRIA ga ra ge st oc k/ da vo od a/ Sh ut te rs to ck Figura 6 Retrato de Benjamin Abrahão Botto Ary Bezerra Leite/Wikimedia Commons Lampião, também conhecido como o Rei do Cangaço, foi um cangaceiro brasileiro que atuou na região do sertão nordestino do Brasil. 1 Imagem e visualidade no ensino de História 109 Figura 7 Retratos do cangaço St ur m /W ik im ed ia C om m on s Encontro de Abrahão com o bando de Virgulino. Foto tirada pelo cangaceiro Juriti em 1936. Da esquerda para a direita: Vila Nova, não identificado, Luís Pedro, Benjamin Abrahão (à frente), Amoroso, Lampião, Cacheado (ao fundo), Maria Bonita, não identificado. 5.2 Uso do cinema e histórias em quadrinhos (HQs) no ensino de História Vídeo As histórias em quadrinhos, ou HQs, possuem um tipo de lingua- gem bastante dinâmica para poder expressar as ações e os eventos que perpassam suas histórias. 5.2.1 Uso das HQs Podemos dizer que os HQs são uma forma de expressão que se dividem em dois eixos interconectados: • a linguagem icônica; • a linguagem verbal. Tanto uma quanto a outra são decisivas para a transmissão dos dis- cursos que compõem a narrativa das histórias. Podemos dizer, ainda, que a justaposição dessas duas linguagens é o que garante o dinamis- mo interpretativo dos quadrinhos. Isso ocorre, fundamentalmente, 110 Imagem e cultura visual pela ação da imagem, que de antemão sugere ao leitor o que com a narrativa, por si, demandaria uma maior articulação de códigos men- tais. Esses códigos, dados previamente pela imagem e aliados à narra- tiva, garantem o fluxo do processo de leitura (VERGUEIRO, 2005). De modo semelhante ao cinema, os quadrinhos surgiram no fim do século XIX com uma linguagem também similar. Tanto um quanto o outro exploraram o movimento das imagens aliado a uma narrati- va verbal, e talvez seja esse o motivo para o estrondoso sucesso dos quadrinhos durante o século XX. Sua linguagem dinâmica, que facilita- va a interpretação e garantia maior movimento nas histórias por meio das imagens, fez dessa arte motivo do apreço de milhões de crianças e jovens. Não por acaso, a utilização de quadrinhos como recurso pedagógico remonta à primeira metade do século XX. Segundo Vergueiro (2005, p. 18-19): Já durante a Segunda Guerra Mundial, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, com a colaboração do célebre de- senhista Will Eisner, utilizou fartamente os quadrinhos na ela- boração de manuais para treinamento de suas tropas. [...] Nos anos 50, na China comunista, o governo de Mao Tse-Tung uti- lizou fartamente a linguagem das histórias em quadrinhos em campanhas “educativas”, utilizando-se do mesmo modelo de retratar “vidas exemplares” explorado pelas revistas religiosas, mas enfocando representantes da nova sociedade que se pre- tendia estabelecer no país. A maior parte do investimento na produção de materiais educativos utilizando a linguagem dos quadrinhos deu-se a partir da década de 1970. Na França, por exemplo, a editora Larousse obteve um grande êxito comercial com a publicação de L’Histoire de France en BD, em oito volumes, que em sete anos teve mais de 600 mil coleções vendidas, abrindo caminho para que a editora lançasse, em 1983, também em oito volumes, outra obra em quadrinhos educativa: Découvrir la Bible. A obra foi editada em vários países, como Japão, Itália, Espanha e Estados Unidos (VERGUEIRO, 2005). Na venda desses trabalhos, muitas foram as iniciativas visando utili- zar a linguagem dos quadrinhos como uma forma lúdica de construção de saberes. Porém, a aplicação dessa linguagem em livros didáticos e no espaço escolar foi um pouco mais morosa. De acordo com Verguei- ro (2005, p. 20): Imagem e visualidade no ensino de História 111 A inclusão efetiva das histórias em quadrinhos em materiais di- dáticos começou de forma tímida. Inicialmente elas eram utili- zadas para ilustrar aspectos específicos das matérias que antes eram explicados por um texto escrito. Nesse momento, as HQs apareciam nos livros didáticos em quantidade bastante restrita, pois ainda temia-se que sua inclusão pudesse ser objeto de re- sistência ao uso do material por parte das escolas. No entanto, constatando os resultados favoráveis de sua utilização, alguns autores de livros didáticos – muitas vezes, inclusive, por parte das próprias editoras –, começaram a incluir os quadrinhos com mais frequência em suas obras, ampliando sua penetração no ambiente escolar. No Brasil, durante a década de 1990, após uma avaliação do Mi- nistério da Educação, a utilização da linguagem dos quadrinhos em livros didáticos passou a ser empregada em maior escala. Até então, boa parte dos quadrinhos vinha apenas na forma de textos informa- tivos e atividades complementares. Com esse aval do Ministério da Educação, o emprego didático das histórias em quadrinhos tornou-se mais corrente. Recentemente, em muitos países, vários órgãos oficiais de educação passaram a reconhecer a importância de incluir as histórias em quadri- nhos no currículo escolar. No Brasil esse reconhecimento já ocorreu pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (VERGUEIRO, 2005). Não há regras para utilização dos quadrinhos em sala de aula. Po- demos dizer que a única regra válida é a criatividade no emprego desse recurso. Um quadrinho pode tanto ser uma forma de abrir uma discus- são em sala quanto uma maneira de se conduzir uma aula inteira. Tudo depende de como o professor escolher usar esse material. Seu uso em aulas expositivas ou mesmo a distribuição de HQs para que os alunos desenvolvam alguma atividade são formas válidas de utilização desse recurso, e cabe ao professor definir os critérios para fazê-lo. Talvez a única recomendação que façamos é a de que esse material não deve ser encarado como uma forma ideal de dar aula, mas sim como mais um instrumento que possibilita a construção de uma aula agradável e dinâmica para os alunos. As HQs não são o segredo para uma boa aula. São apenas mais uma ferramenta que, se bem maneja- da, poderá operar melhoras consideráveis no interesse e na compreen- são dos alunos quanto às discussões propostas em aula. 112 Imagem e cultura visual Vimos, até então, que a utilização de HQs na composição de mate- riais pedagógicos já fora experimentada em vários momentos históri- cos justamente devido à sua linguagem dinâmica e lúdica. Discutiremos, agora, como esse recurso pode ser trabalhado em sala de aula, especi- ficamente com a disciplina de História, e sob quais perspectivas esse material poderá ser útil. Desse modo, as HQs podem possibilitar que determinados conteúdos da história sejam trabalhados. Para isso, o primeiro passo é identificar quais relações possíveis podem existir en- tre a temática do quadrinho e a da proposta para a aula. Um exemplo que podemos citar está presen- te nas aventuras do anti-herói V, personagem da HQ V for Vendetta, mais conhecido no Brasil como V de Vingança, do desenhista anarquista Alan Moore. Seus perseguidores e alvos são autoridades políticas de um governo fascista. A história de V se passa em um cenário político totalitário, encarnado nas entra- nhas do pulmão fabril de Londres, na Inglaterra. Sua saga se inicia com ataques a edifícios simbólicos, íco- nes que, para o anti-herói, representam uma repres- são visual, a expressão icônica do poder fascista, poder esse estaticamente fixado nas paredes desses prédios históricos (a exemplo do Parlamento) e in- cidindo nos olhos do povo que, dominado, observa, contempla e partilha das representações em torno de uma memória construída pelos membros de um governo golpista e controlador. Embora se trate de uma HQ fictícia, ainda en- contramos uma série de problemashistóricos que podem ser tra- balhados, como o anacronismo ou a postura política do autor, pois assim entendemos que as muitas informações presentes nesse qua- drinho podem nos abrir caminho para uma discussão produtiva em sala de aula. A temática de V de Vingança poderia ser perfeitamente útil para uma dis- cussão em torno dos governos totalitários. Assim, abarcaria temas como: • Segunda Guerra Mundial; • a criação do nazismo; • políticas fascistas e totalitárias; Figura 8 Grafite com a imagem do personagem V Za ra te m an /W ik im ed ia C om m on s Imagem e visualidade no ensino de História 113 • revolução e comunismo; • democracia; • terrorismo. Outras discussões possíveis seriam: • o papel da memória na história; • a utilização da memória como monumento, como referência sim- bólica, fornecendo legitimidade ao status quo; • o papel dos meios de comunicação como mecanismos regulado- res da população. Evidentemente, a escolha dos temas também passará pela criativi- dade do professor, que poderá desenvolver outros conteúdos com base no quadrinho. Um exemplo disso seria uma discussão sobre gê- nero tendo como referência as imagens do feminino e do masculino nas revistas, ou mesmo uma discussão sobre ciência e história por meio de quadrinhos de super-heróis, os quais comumente envolvem em suas tramas acidentes com experimentos científicos. Outra forma bastante esclarecedora de utilizar os quadrinhos na disciplina de História é focando o seu papel de fonte histórica; colocá- -los no contexto em que foram produzidos, permitindo assim o enten- dimento dos alunos de que o quadrinho pode nos dizer muito sobre o período em que foi criado. O quadrinho do Capitão América é outra opção que pode ser usada em sala de aula, pois foi criado durante a Segunda Guerra Mundial. Mesmo antes da entrada do EUA na guerra, vemos um posiciona- mento claro da parte do criador do personagem em relação a essa disputa, haja vista que o herói Capitão América tem como seus arquirrivais personalidades nazistas e autoritá- rias, como Adolf Hitler. Se observarmos mais atentamente, perceberemos que Jack Kirby (1917-1994), o criador do personagem, era um norte-americano de ascendência judaica. Essa infor- mação colabora para entendermos o porquê da escolha de inimigos antissemitas (discriminação contra judeus) para confrontarem o super-herói, mesmo antes do posiciona- mento dos EUA contra os países do Eixo. Figura 9 Retrato de Jack Kirby RayWyman/Wikimedia Commons 114 Imagem e cultura visual No mesmo quadrinho, acontece, durante a dé- cada de 1960, o aparecimento de um novo compa- nheiro para o Capitão, Falcon, um dos primeiros super-heróis negros da história dos quadrinhos. Falcon representa um antigo militante dos guetos norte-americanos e defensor das causas da sua et- nia, juntando-se ao Capitão América na defesa dos fracos e oprimidos. Podemos dizer que, como fonte, um quadrinho como esse é bastante significativo. Isso porque, primeiramente, considerado o ponto de vista do contexto histórico em que esse personagem é cria- do, vemos que ele sintetiza muito da sua época, a década de 1960, um período marcado pela afir- mação das minorias no cenário mundial. Negros, homossexuais, mulheres, todos esses grupos, que até então eram marginalizados e invisibilizados na sociedade, passam a afirmar o seu papel social e a necessidade de serem incluídos, mesmo que por vias não pacíficas. Nesse sentido, o personagem Falcon é um indi- cativo da potencialização revolucionária que essas forças sociais tomaram nesse curso da história, ou seja, uma referência para entendermos como essas ditas minorias conseguiram mobilizar forças de modo a afirmar a necessidade da sua inclusão política na so- ciedade de então (CATELLI JUNIOR, 2009). Como expressão artística, o tipo de linguagem específica dos qua- drinhos corresponde a um tipo particular de representação do mundo, criado pelo autor. Apesar disso, seja como ficção ou realidade, as HQs cor- respondem a formas de representações presentes no contexto em que são criadas. Esse vínculo de uma produção artística com o seu presente é decisivo para pensarmos quais tipos de representações podem estar sendo veiculadas à época em que um quadrinho é composto (CATELLI JUNIOR, 2009). Por exemplo, quando observamos um quadrinho da década de 1940, podemos ver inúmeras formas e concepções vigentes na socie- dade desse período – desde o padrão estético, como a concepção de Figura 10 Pôster para a série de filmes americanos Capitão América. 1944. Hy ju /W ik im ed ia C om m on s Imagem e visualidade no ensino de História 115 belo para a mulher e para o homem, até os tipos de preocupações polí- ticas presentes no enredo. Se tomarmos novamente o caso do Capitão América, poderemos explicar melhor essas questões. A roupa do herói, por exemplo, é um indicativo claro de como o “paladino da democracia” exerce uma função de representação simbólica dos EUA e do próprio patriotismo norte-americano ao usar as cores da bandeira do seu país como forma estética da sua indumentária. O próprio fato de o herói atuar de maneira autônoma, sem vínculos com o Estado, denota uma característica liberal, a da livre-iniciativa. De uma forma mais ou menos generalizante, podemos dizer que o Capi- tão América é uma representação-síntese da política norte-americana: um herói militarmente intervencionista, que faz justiça com as próprias mãos, sem vínculos com o Estado e que incorpora literalmente o nacio- nalismo exacerbado norte-americano ao se vestir com a bandeira do seu país (VERGUEIRO, 2005). A proposta de analisar com os alunos as formas de representação vigentes nos quadrinhos de cada período é significativa para que os alunos compreendam que as imagens e os símbolos presentes neles não estão desvinculados das concepções políticas, econômicas, sociais do autor do quadrinho e do tempo histórico em que o autor produz. Na realidade, as imagens e os diálogos dos HQs são repletos de signi- ficados históricos. 5.2.2 Uso do cinema O cinema também é um importante instrumento para o estudo da história, pois possui características similares às das HQs, na medida em que trabalha com múltiplas linguagens, verbal e não verbal. Podemos dizer que o cinema se divide em duas formas padrão: documentários e filmes de ficção. Apesar de essa divisão ser bastante limitada, possui utilidade prática em termos de organização para propostas de estudo nas aulas de História. Cabe lembrar, porém, que tanto o uso de filmes de ficção quanto de documentários, sejam eles considerados históricos ou não, é relevante para o ensino de História. Um filme não precisa necessariamente tratar de um tema histórico, nem possuir a definição “baseado em fatos”, ou se tratar de um documentário histórico para ter legitimidade como ins- trumento na disciplina de História. A legitimidade está menos no filme 116 Imagem e cultura visual em si do que na potencialidade que se pode extrair dele para a constru- ção de uma reflexão histórica. Por uma questão de praticidade, dividiremos os filmes analisados a partir de agora em três categorias: Fi re of he ar t/ Sh ut te rs to ck Filme de ficção Filme histórico Documentário histórico O filme de ficção é aquele que, grosso modo, não possui nenhum tipo de comprometimento em produzir um discurso realista ou factual. Podemos dizer que esse tipo de filme possui qualidades que estão jus- tamente em sua ausência de compromisso com qualquer fidelidade ao real. Apesar de parecer contraditório, podemos afirmar que qualquer filme de ficção, de algum modo, trata de uma realidade concreta em seu tempo histórico. Seja ao trazer o figurino disponível em sua época, os recursos técni- cos (como tipos de câmeras utilizadas e formas de edição), os modelos estéticos, seja por mobilizar formas de representação hoje desconhe- cidas, ao filmar ambientes e cenários naturais ou artificiais, objetos e lugaresque não existem mais, ou mesmo ao tratar de temas, de sen- timentos e sensibilidades, de medos, sonhos e desejos, o filme de fic- ção deixa sempre aspectos do seu tempo impressos em sua película. É na ausência de uma linguagem prosaica e pelo excesso da linguagem poética que o filme de ficção movimenta aspectos reveladores sobre a época em que foi produzido, talvez muito mais do que um filme realista (HAGEMEYER, 2012). Um exemplo de filme de ficção que pode ser empregado para com- preender inúmeros temas da história é o Avatar. Dirigido por James Cameron (1954-), trata-se de um épico de ficção científica que se passa no ano de 2154 em uma lua habitável chamada Pandora. Nesse territó- rio, vivem os Na’vi, nativos humanoides que defendem o seu território contra a invasão dos colonizadores humanos. Imagem e visualidade no ensino de História 117 Mesmo sendo uma ficção científica, o filme reflete questões centrais da história humana, como as práticas de colonização, a guerra por re- cursos naturais, a ciência como instrumento de dominação, a destrui- ção das culturas e sociedades nativas e suas formas de vida baseadas no equilíbrio com a natureza, o choque cultural entre diferentes visões de mundo etc. O filme possibilita trabalhar todos esses temas nas aulas de História, assim como serve para pensar sobre questões contempo- râneas como o aquecimento global, a grilagem de terras, a mineração e meio ambiente e o modo como podemos encontrar alternativas que sejam capazes de superar o modelo de vida proposto pela sociedade capitalista moderna (HAGEMEYER, 2012). Figura 11 Apoiadores da Ancient Forest An ci en tfo re st al lia nc e/ W ik im ed ia C om m on s Apoiadores da Ancient Forest em protesto contra o desmatamento. Podem ser considerados filmes históricos aqueles que possuem a fi- nalidade de representar com o máximo de fidelidade um período, um personagem, um fato ou um processo histórico de reconhecida relevân- cia. Esses filmes, muitas vezes, são responsáveis por construírem um passado idealizado, quando não por reproduzirem preconceitos histó- ricos arraigados na sociedade. Normalmente têm a pretensão de esta- rem o mais próximo possível da realidade do passado, o que os obriga a buscar a assessoria de historiadores para cobrir todos os aspectos histó- ricos, como as vestimentas, os objetos, a linguagem, o cenário, a música. https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Ancientforestalliance 118 Imagem e cultura visual Um filme exemplar em seu caráter histórico é 1942: A Conquista do Paraíso, de Ridley Scott (1937-). Essa película é um épico histórico pro- duzido em 1992 e que tem como personagem central Cristóvão Colombo, representado pelo ator francês Gérard Depardieu. O filme descreve os projetos e sonhos do navegador até o processo de descoberta da América e o contato com as populações indígenas. O trabalho de assessoria histó- rica é bastante apurado e procura retratar de maneira realista a vida de Colombo e o processo de conquista da América. Contudo, como todo filme histórico, é necessário problematizar sua pretensão de realismo histórico, não para encontrar os erros presentes no filme, mas para de- monstrar que ele apresenta um tipo de representação histórica específica, uma leitura do seu tempo sobre outro tempo. Nesse caso, problematizar significa produzir uma crítica ao filme no sentido de avaliar em que medida reproduz uma narrativa histórica consolidada quanto ao descobrimento e aos seus personagens centrais. Assim, o primeiro cuidado necessário ao se trabalhar filmes histó- ricos no ensino de História é não cair no erro de tomá-lo como uma ilustração dos acontecimentos, como se tratasse da própria realida- de histórica. É fundamental também nesse tipo de filme, demonstrar como ele reproduz narrativas consolidadas nos livros de história, as quais não refletem necessariamente a verdade histórica, mas uma in- terpretação possível. Nesse sentido, é muito importante verificar qual tipo de narrati- va o filme se propõe a refletir. Por fim, uma forma proveitosa de se trabalhar com filmes históricos é confrontar personagens, figurinos e narrativas com as fontes históricas da época, a exemplo do diário de Cristóvão Colombo. Ao mesmo tempo, é possível contrapor a versão da conquista apresentada no filme com a visão dos indígenas na mesma época em que ele foi produzido. Os documentários históricos são conhecidos por pretenderem re- montar fatos históricos apresentando as possibilidades e versões da história por meio de uma linguagem jornalística. Diferentemente dos filmes históricos, trabalham explicitando os documentos e os testemu- Figura 12 Cristóvão Colombo Representação de Cristóvão Colombo chegando à América. Pi xe l8t or/ Wi kim edi a C om mo ns Imagem e visualidade no ensino de História 119 nhos colhidos, de modo similar ao que seria realizado por um historia- dor em seu trabalho escrito. Contudo, esse tipo de filme é o resultado de montagens e edições, e às vezes emprega atores para ilustrar passagens históricas, tendo de trabalhar com figurinos e cenografia, tal como um filme histórico. Como se pode notar, tanto o documentário quanto o filme histórico resultam de montagens, ao mesmo tempo que se valem de um tipo de linguagem (romântica, trágica, satírica ou cômica) que orienta o enredo da história (HAGEMEYER, 2012). Um exemplo de documentário histórico é Guerras do Brasil.doc, di- rigido por Luiz Bolognesi (1966-) e lançado em 2019 na plataforma de streaming Netflix. Realizado no formato de série, esse documentário busca apresentar em cinco episódios de 26 minutos acontecimentos clássicos da história do Brasil, como a Guerra do Paraguai e a Revolu- ção de 1930. Nesse caso, entretanto, temos um tipo de documentário que possui uma linguagem mista entre ficção e realismo. Ao mesmo tempo que apresenta os principais conflitos armados do Brasil por meio de diferentes narrativas baseadas em depoimentos de estudiosos do assunto (historiadores, cientistas sociais, jornalistas), valendo-se de documentos históricos diversos, a obra é conduzida por trilhas sonoras de músicos contemporâneos e cenas de guerra são ilus- tradas por artistas brasileiros. O efeito final é um documentário pro- fundo em informações e, ao mesmo tempo, esteticamente atrativo. Esse tipo de documentário é um ótimo exemplo para se explorar nas aulas de História, pois contém uma linguagem realista e ficcio- nal, salientando claramente as diferentes perspectivas oferecidas por pesquisadores especializados no assunto e compondo um mosaico de narrativas históricas com um eixo temático comum. Uma sugestão de uso para essa categoria de documentário é na abertura de debates em sala de aula sobre o tema apresentado e sua relação com proble- mas contemporâneos. Ao mesmo tempo, o documentário pode proporcionar oportuni- dades para pesquisas e aprofundamentos realizados pelos alunos ou mesmo inspirar ideias de ilustrações para que eles desenvolvam HQs sobre o tema da aula. 120 Imagem e cultura visual 5.3 Imaginário, imagem e memória Vídeo As imagens no ensino de História são instrumentos valiosos para ajudar a compreender aspectos da realidade social, cultural, política e econômica de uma época. Porém, seu proveito pode ser intensificado quando se reconhece o poder das imagens na construção do imaginá- rio social e seu papel na elaboração, no controle e na organização da memória individual e coletiva. 5.3.1 Imaginário Os estudos sobre o que se convencionou denominar de história do imaginário têm demonstrado a importância das imagens na elabora- ção dos laços sociais, das crenças, das ideais, das utopias na formação de identidades coletivas ou mesmo no controle político de populações por governos autoritários. O imaginário, que pode ser definido como o conjunto de imagens criadas e compartilhadas socialmente, tem sido estudado para que se compreenda como as sociedades humanas ao longo da história elaboram explicações,sentidos e significados à vida, como também sensibilidades e afetos, construindo um modo de viver baseado em visões de mundo (DIDI-HUBERMAN, 2015). Como estudar o imaginário de uma sociedade? Como ensinar história com base na história do imaginário? Para responder a essas questões, é necessário reconhecer que cada época coloca em circulação, de acordo com suas capacidades técnicas e tipos de linguagem, imagens que possuem significados atribuídos por essa mesma sociedade. Uma mesma imagem pode ter muitos significa- dos, mas, quando esse significado é definido e colocado em circulação, dá início à organização de um imaginário social. Existem muitas formas de construção do imaginário, nem sempre dependendo de imagens fi- gurativas, bastando uma narrativa verbal, como ocorre com lendas e contos populares transmitidos pela oralidade. Entretanto, a forma mais eficaz de elaboração de um imaginário se dá, sem dúvida, por meio de símbolos e imagens compartilha- das socialmente. É possível encontrar a fonte de grande parte das Imagem e visualidade no ensino de História 121 formas de imaginação da realidade vivida, seja na forma de escul- tura, pintura, fotografia, cinema ou qualquer outra forma de pro- dução visual. Tanto o que se vive e o que se pensa quanto o que se sonha é influenciado por imagens compartilhadas socialmente (DIDI-HUBERMAN, 2015). Por esse motivo, é possível perceber a influência que filmes, nove- las, noticiários, desenhos animados e até jogos de videogame exercem sobre o imaginário social, ao mesmo tempo que os imaginários são também responsáveis por construir as formas de visualidade, a cultura visual de uma época, que, por sua vez, é o substrato para a criação das artes visuais e dos seus estilos. Em suma, pode-se dizer que o imaginá- rio é uma categoria da vida social que circula entre produtores e consu- midores de imagem. Por isso, ele tem vital importância na orientação da nossa vida psíquica, afetiva e social. Para responder à pergunta sobre como ensinar História com base na história do imaginário, podemos apresentar dois exemplos que de- monstram simultaneamente a importância do imaginário social e sua utilidade para a compreensão da história. O primeiro exemplo pode ser encontrado em pinturas produzidas no século XIX para a constru- ção do projeto republicano de identidade nacional brasileira. O his- toriador José Murilo de Carvalho (2017), em seu livro A formação das almas: o imaginário da República no Brasil, procurou demonstrar que, no início da Primeira República (1889-1930), tornou-se necessário in- fundir no povo brasileiro o sentimento de identidade com os símbolos republicanos. A maior parte da população brasileira, formada por pessoas escra- vizadas libertas e camponeses iletrados, tinha maior familiaridade com a monarquia e com a sua ligação simbólica com a Igreja Católica. Desse modo, a República que surgia não possuía nenhum sentido para a po- pulação brasileira. Cientes dessa condição, as lideranças republicanas deram início à elaboração de símbolos que procurassem dialogar com o imaginário popular, de modo a estabelecer laços de identidade com o regime republicano e com a noção de brasilidade que se pretendia construir (CARVALHO, 2017). Iniciou-se, então, uma série de concursos com artistas brasileiros para a construção dos símbolos nacionais que refletissem os ideais republicanos em toda a população. Um dos grandes símbolos elei- O livro A formação das almas: o imaginário da República no Brasil apresenta o processo de construção do imaginário republicano durante a Pri- meira República no Brasil, explorando as disputas em torno da construção dos símbolos nacionais, como a bandeira, o hino, os heróis nacionais etc. O autor procura demonstrar a preocupação da política brasileira em orientar a sensibilidade e o imagi- nário republicano das populações. CARVALHO, J.M. São Paulo: Cia das Letras, 1990. Livro 122 Imagem e cultura visual tos foi a figura de Tiradentes, escolhido como o herói da República. Personagem esquecido durante o Império e do qual não se possuía nenhuma imagem, com exceção de relatos extraídos dos processos da Inconfidência Mineira, Tiradentes foi pintado pela primeira vez na Primeira República. Morto como bandido durante o período colonial cem anos antes, renascia agora como o herói dos republicanos (CARVALHO, 2017). Um dos quadros mais aclamados e impactantes da imagem de Tiradentes foi pintado em 1893 por Pedro Américo (1843-1905). O quadro Tiradentes es- quartejado possui uma diversificada simbologia, que claramente associa Tiradentes à imagem de Cristo. Como se percebe, essa associação não é aleatória, mas bastante intencional. Grande parte dos quadros com a imagem de Tiradentes pintados durante o pe- ríodo republicano representavam sua imagem asso- ciada à imagem de Cristo justamente por se tratar de uma estratégia de aproximação com o símbolo mais conhecido e respeitado pela população brasileira. Desse modo, os republicanos acreditavam ser possí- vel produzir um sentimento de identidade nacional e ligar o povo à República. O quadro de Pedro Américo pode, assim, ser uti- lizado no ensino de História para demonstrar como o imaginário republicano foi sendo construído du- rante a Primeira República. Logo, a imagem presta uma função não apenas ilustrativa, mas simbólica do modo como as imagens se ligam às estratégias de poder e como servem para moldar o sentimento de identidade nacio- nal, compondo o imaginário social. O segundo exemplo vem do cinema: a série de filmes 007, do agen- te secreto James Bond, apresenta muitos elementos do imaginário da Guerra Fria. A ideia da espionagem é uma demonstração clara do ima- ginário de complôs, conspirações e agentes secretos que permearam o conflito. A disputa entre EUA e URSS foi responsável por mobilizar Fonte: AMÉRICO, P. Tiradentes esquartejado. 1893. Óleo sobre tela. 270 x 165 cm. Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora. Figura 13 Associação simbólica de Tiradentes com a imagem de Cristo W ilf re do r/ W ik im ed ia C om m on s https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Wilfredor Imagem e visualidade no ensino de História 123 acontecimentos concretos (como a espionagem), mas sob pretextos imaginários como a aproximação da Terceira Guerra Mundial, a emi- nente explosão de uma nova bomba atômica ou a expansão do comu- nismo no mundo. As aventuras do espião 007 reproduzem grande parte dessas ale- gorias, como a luta constante para impedir uma Terceira Guerra ou a desativação de artefatos nucleares. Ao mesmo tempo, grande parte dos personagens que representam os inimigos de James Bond são de origem russa, vietnamita ou de qualquer país sob o regime comunista. A SMERSH 1 trata-se de uma agência de contraespionagem russa que é uma ameaça constante ao trabalho de Bond e ao Serviço Secreto Bri- tânico (HAGEMEYER, 2012). Figura 14 London Barbican Centre, 50 anos desenhando Bond (Ank Kumar). Cartazes dos filmes 007. 2012. An k Ku m ar /W ik im ed ia C om m on s A série de filmes 007 pode contribuir no ensino de História para a compreensão do imaginário da Guerra Fria, assim como para o do tec- nológico futurista, sendo também uma oportunidade para se ter con- tato com a noção de como o imaginário é capaz de mobilizar emoções, como medos, angústias e desconfianças, e como essas emoções são construídas historicamente com finalidades políticas e econômicas. Ligar a produção cinematográfica à construção de imaginários sociais é uma abordagem central para compreender como a arte e as ima- gens interferem no comportamento político e social de uma época (HAGEMEYER, 2012). SMERSH, nome criado por Joseph Stalin, era uma organização que comandava três agências de contra-inteligência das Forças Vermelhas, União Soviética, formada por vol- ta de 1942 e oficializada em 1943. 1 https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Ank_gsx 124 Imagem e cultura visual 5.3.2 Memória e imagem Oúltimo tópico que apresentaremos é a relação entre memória e imagem. Muitos historiadores se valem da fotografia ou do cinema como forma de apreender a memória de indivíduos e grupos sociais. Nesse sentido, tomar contato com a história por meio desses suportes de memória é uma oportunidade bastante proveitosa em sala de aula. Um exemplo de como é possível ter contato com a construção da memória por meio do cinema pode ser encontrado no filme Shoah, de Claude Lanzmann (1925-2018). O longa-metragem é um documento antropológico e histórico, pois entrevista sobreviventes, testemunhas e perpetradores que estiveram envolvidos direta e indiretamente no holocausto ocorrido na Polônia durante a Segunda Guerra Mundial (HA- GEMEYER, 2012). O documentário toca em questões centrais sobre as relações en- tre memória e história, além de mostrar como essas lembranças são difíceis tanto para determinadas testemunhas que vi- veram nos campos de concentração quanto para as que conviveram com essa realidade próxima às suas casas, como os vizinhos desses campos. Ao mesmo tempo, demonstra como a memória, entre esquecimen- to, silêncio e lembrança, toca em questões centrais para a compreensão das tensões sociais e conflitos na história (HAGEMEYER, 2012). Nesse caso, trata-se de um documentário capaz de registrar a memória das testemunhas e produ- zir, portanto, uma memória coletiva do holocaus- to. Trata-se também de um trabalho que registra o silêncio de quem por vergonha ou dor é incapaz de falar. Como um documentário trabalhado em sala de aula, pode abrir muitas possibilidades de entendimento sobre a memória, seu papel na construção das narrativas his- tóricas e o valor do testemunho para a compreensão do passado. É também um documentário que permite abordar o silêncio como parte dos traumas gerados pela guerra, bem como tratar do esquecimento como forma de superação do passado e do apagamento proposital das memórias de acordo com os interesses políticos do presente. Figura 15 Conferência com Claude Lanzmann. 2011. Xa bie r C aña s/W ikim edia Comm ons https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Xabier_Ca%C3%B1as Imagem e visualidade no ensino de História 125 CONSIDERAÇÕES FINAIS O uso de imagens no ensino de História é uma forma eficaz e lúdi- ca de desenvolver conteúdo. Entretanto, é muito importante frisar que esse método não deve se limitar a um instrumento mediador de con- teúdo. A potencialidade das imagens para o ensino de História está em estudá-las como artefato responsável por elaborar formas de visualida- de, de imaginários e de memórias. Reconhecer o poder construtivo das imagens e seus efeitos sociais é uma forma perspicaz para compreender a imagem como artefato central na configuração da própria história. Tomar a imagem como documento histórico, como vimos, é um dos passos fundamentais na construção de aulas e materiais didáti- cos de História. Problematizá-la como documento, estabelecer com- parações entre imagens, verificar o seu poder narrativo, bem como sua capacidade de testemunhar o passado, são estratégias funda- mentais para seu bom uso na disciplina de História. Não limitar a imagem ao seu papel de ilustração é um dever para todo professor dessa disciplina. Como vimos, não há um método único, nem fórmulas definidas de como desenvolver o trabalho com imagens em sala de aula. As possi- bilidades de como utilizá-las são amplas. No entanto, é fundamental acercar-se dos conceitos, das categorias e dos métodos desenvolvidos pelos historiadores e estudiosos da imagem para que tenhamos uma base qualificada de onde partirmos. Com essas ferramentas em mãos, poderemos aperfeiçoar ou mesmo criar metodologias de trabalho ade- quadas ao contexto escolar no qual nos encontramos, contribuindo para a construção de um processo de aprendizagem de qualidade. ATIVIDADES 1. A imagem como instrumento do ensino de História deve ultrapassar a condição de ilustração dos fatos. Como superar essa condição? 2. Quais são os cuidados necessários para a utilização de filmes históricos em sala de aula? 3. Como o quadro Tiradentes esquartejado, de Pedro Américo, contribuiu para a construção do imaginário republicano na Primeira República? Vídeo 126 Imagem e cultura visual REFERÊNCIAS CARVALHO, J. M. de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2017. CATELLI JUNIOR, R. Temas e linguagens da história: ferramentas para a sala de aula no ensino médio. São Paulo: Scipione, 2009. DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. São Paulo: Humanitas, 2015. FABRIS, A. Identidades virtuais: uma leitura do retrato fotográfico. Belo Horizonte: UFMG, 2004. GOMBRICH, E. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012. HAGEMEYER, R. R. História e audiovisual. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. MAUAD, A. M. Poses e flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: UFF, 2008. VERGUEIRO, W. (org.). Como usar as histórias em quadrinhos em sala de aula. São Paulo: Contexto, 2005. Gabarito 127 GABARITO 1 História, imagem e visualidade 1. Vimos como imago está ligada à lembrança de algo ou alguém ausente. Apresente um exemplo de imagem que possui algum valor afetivo em sua vida e procure verificar quais tipos de lembranças aparecem em sua mente. Procure descrever quais outras imagens mentais surgem associadas a essa primeira imagem. As imagens que recordamos podem guardar sentidos, significados e valores afetivos pessoais. Ao mesmo tempo, permitem verificarmos como podem provocar associações com outras imagens mentais, ativando lembranças esquecidas. Assim, podemos compreender afetivamente como o conceito de imago era entendido em sua origem entre os romanos. Um exemplo de imagem com valor afetivo são as fotografias de familiares. Você pode usar essas imagens e verificar quais lembranças elas provocam. Observe como as lembranças trazem imagens, como a imagem de um lugar ou de outras pessoas associadas à pessoa da foto. Descreva esses lugares e pessoas ou mesmo as emoções que sentiu ao lembrar. Isso o ajudará a compreender como a ideia de imagem como imago está ligada à lembrança. 2. Quais são os problemas encontrados pelos historiadores no uso da imagem como ilustração? O uso da imagem como ilustração foi o modo convencional do qual os historiadores começaram a se servir. A imagem era utilizada, portanto, como forma de comprovação de um fato ou como modo de ilustrar uma explicação. O problema do uso da imagem como ilustração está em acreditar que a imagem possui maior valor de fidelidade à realidade ou ao valor de prova, como pensada no direito positivo. A fotografia é um bom exemplo dessa ideia. Contudo, o que os estudos das imagens têm demonstrado é que elas também são o resultado de uma construção e, portanto, não são mais fiéis à realidade do que qualquer documento escrito. Ao compreendermos que a imagem é uma montagem, podemos entender que ela também deve ser problematizada e posta à prova como qualquer outro documento histórico. 3. O que é visualidade e qual é a sua importância no estudo da história? A visualidade diz respeito às características biológicas e culturais que fornecem as condições de visualização, interpretação e comunicação 128 Imagem e cultura visual das imagens. Sua importância para o estudoda história está em compreender as diferentes formas de olhar que se organizam em cada sociedade e época. 4. Em sua opinião, a história feita por meio de imagens possui alguma vantagem comunicativa em relação à história escrita? Justifique sua resposta. Caso a resposta seja afirmativa, o argumento pode indicar que a imagem possui um poder de demonstração e impacto afetivo maior do que qualquer texto escrito. Caso a resposta seja negativa, é possível argumentar que a imagem é incapaz de substituir a qualidade narrativa, descritiva e analítica do texto histórico. 2 Teorias da imagem e da visão 1. Apresente uma breve definição sobre cultura visual. Para definir cultura visual, é importante salientar que esse conceito se refere ao olhar e ao modo como as formas de visualidade são desenvolvidas pela cultura, de acordo com o tempo e o espaço no qual uma sociedade se situa. O conceito de cultura visual, portanto, demonstra que as formas de visualidade orientam a produção de imagens e suas interpretações. Ao mesmo tempo, evidencia como o olhar como fenômeno biológico pode ser moldado pelos conhecimentos e pelas tecnologias disponíveis em uma cultura. 2. Considerando a relação existente entre as inovações tecnológicas e a visualidade, apresente exemplos que demonstrem como as tecnologias alteram a nossa cultura visual. O microscópio, a fotografia e o cinema são alguns exemplos de tecnologias responsáveis por moldar o nosso olhar. O microscópio ampliou nossa percepção sobre o universo molecular; a fotografia permitiu um controle visual mais detalhado sobre um instante do tempo congelado; e o cinema transformou o imaginário social. 3. Vimos como os estudos visuais acabaram acentuando uma crítica antiga à ideia de realismo na arte. Em sua opinião, é possível produzirmos uma arte realista? Justifique sua resposta. O objetivo da pergunta é permitir a reflexão sobre a crítica da noção de realismo na arte. Com o conceito de cultura visual, o realismo passou a ser reconhecido como algo relativo, ou seja, que depende dos tipos de instrumentos visuais disponíveis em determinada cultura. É possível fazer uma comparação entre a noção de realismo presente em uma sociedade que está habituada com o cinema 3D e Gabarito 129 outra que só conhece a fotografia, pois cada uma dessas tecnologias influenciou suas respectivas épocas, criando uma noção quanto ao que conhecemos como o realismo. Assim, é possível admitir que o realismo sofre variações ao longo do tempo ou que seja de fato improvável que encontremos uma imagem que possa representar um objeto realisticamente. 3 Da História da Arte aos estudos históricos da imagem 1. Qual é a contribuição de Giorgio Vasari para o desenvolvimento da história da arte? Os primeiros estudos de história da arte, desenvolvidos durante o Renascimento, foram realizados pelo artista florentino Giorgio Vasari (1511-1574). Essa experiência de estudo histórico da arte constituiu o primeiro movimento no sentido de mapear as biografias de artistas e o trabalho em torno de suas obras. Trata-se do primeiro estudo de caráter teleológico, ou seja, que pretende delinear um sentido histórico definido para arte. Vasari acreditava que a arte teria passado por ciclos de auge, decadência e renascimento. Assim, desde Giotto, no século XIV, a Europa estaria vivendo o renascimento de valores estéticos antigos, perdidos durante a Idade Média. A história da arte seria, portanto, uma demonstração da evolução estética em direção à perfeição. 2. Para Aby Warburg, o que significa dizer que a obra de arte está repleta de impurezas? É muito importante notar como Warburg compreendeu a história da arte como repleta de impurezas. Para ele, a impureza significava a compreensão de que nenhuma obra de arte era pura em si mesma, ou seja, nenhuma era original, nem mesmo um resultado único e exclusivo de seu próprio tempo. O historiador compreendia que toda obra era o resultado de hibridismos culturais, de misturas (não só de elementos visuais, de ícones, de estilos, mas uma mistura de tempos) e, portanto, de impurezas. Uma pintura seria, assim, uma obra preenchida com muitas temporalidades. 3. De acordo com Carlo Ginzburg, qual era a base do método desenvolvido por Giovanni Morelli? A base desse método estava em não se fundamentar nas características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis nos quadros. Ao contrário, “é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da 130 Imagem e cultura visual escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés” (GINZBURG, 1990, p. 144). Basicamente, Morelli se valia de sua formação médica, seu conhecimento da anatomia dos corpos e do método elementar da ciência médica, a semiótica do corpo, um olhar treinado para detectar doenças e formular diagnósticos. Com base nesse método, Morelli se tornou capaz de identificar minúcias invisíveis ao olhar da maioria dos historiadores da arte. 4 A imagem na era da reprodução técnica 1. De acordo com Walter Benjamin, o que pode se entender por aura na obra de arte? Para Benjamin, autenticidade, tradição, valor de culto, aqui e agora, conformam o que ele denomina de aura da obra de arte. O uso desse conceito é, sem dúvida, mais amplo na obra desse autor. Como um filósofo também do messianismo judaico, Benjamin se vale do conceito de aura como uma conotação ligada ao sagrado – sacralidade que ele enxerga em tudo que conserva em si uma força originária, uma espécie de potência imanente que impregna a noção de obra original. Mas, em linhas gerais, pode-se compreender, com a palavra aura, a condição de autenticidade que liga a obra de arte a uma tradição, na qual a obra possui valor de culto. 2. De acordo com Karl Marx, o que significa o conceito de fetiche da mercadoria? O termo fetichismo da mercadoria foi explorado por Marx para explicar o modo como o produto gerado como mercadoria pelas indústrias capitalistas simula, em sua aparência, ser o resultado de uma relação entre coisas, escondendo o conteúdo humano e as relações de trabalho que constituem esse mesmo produto. Ao se perceber que a produção industrial se trata, em essência, da venda da capacidade de trabalho e não de mercadorias, desfaz-se o mistério que encobre a mercadoria como fetiche. 3. O que são signos ou códigos de representação visual na fotografia? São os elementos visuais que permitem compreender como uma época, uma classe social e um tipo de grupo social procuram transmitir a sua própria imagem à sociedade de sua época. São eles, portanto, que permitem ligar a imagem fotográfica ao contexto em que ela pode ser compreendida melhor. Gabarito 131 5 Imagem e visualidade no ensino de História 1. A imagem como instrumento do ensino de História deve ultrapassar a condição de ilustração dos fatos. Como superar essa condição? A primeira forma de superar esse problema está em encarar as imagens como fontes históricas. Assim, é possível desenvolver o que os historiadores realizam com suas fontes ao utilizá-las para escrever a história. Primeiramente, é necessário compreender que qualquer fonte precisa ser problematizada, o que significa verificar seu processo de composição, de criação, na época em que foi criada. Perguntar sobre seu autor, sua condição social, suas ideologias, inseri-lo na sociedade e na cultura que o envolve, reconhecer os limites técnicos e tecnológicos impostos por sua época e entender o processo de criação, as técnicas empregadas, as finalidades do objeto criado para o contexto histórico são alguns elementos vitais para se compreender a criação de qualquer coisa dentro de uma época. Em segundo lugar, considerar que toda fonte histórica é uma representação, e por representação se entende a linguagem, a forma, o suporte ou o estilo com que um determinado acontecimento é descrito. 2. Quais são os cuidados necessários para a utilizaçãode filmes históricos em sala de aula? O primeiro cuidado que se deve ter ao trabalhar filmes históricos no ensino de História é não cair no erro de tomá-los como uma ilustração dos acontecimentos, como se tratasse da própria realidade histórica. Em segundo lugar, é fundamental demonstrar que esse tipo de filme reproduz narrativas consolidadas nos livros de história, as quais não refletem necessariamente a verdade histórica, mas uma interpretação possível. Nesse sentido, é muito importante verificar sobre qual tipo de narrativa o filme se propõe a refletir. 3. Como o quadro Tiradentes esquartejado, de Pedro Américo, contribuiu para a construção do imaginário republicano na Primeira República? O quadro Tiradentes esquartejado possui uma diversificada simbologia, que claramente associa Tiradentes à imagem de Cristo. Como se percebe, essa associação não é aleatória, mas bastante intencional. Grande parte dos quadros com a imagem de Tiradentes, pintados durante o período republicano, representavam-no dessa forma justamente por se tratar de uma estratégia de aproximação com o símbolo mais conhecido e respeitado pela população brasileira. Desse modo, os republicanos acreditavam ser possível produzir um sentimento de identidade nacional e ligar o povo à República. Código Logístico I000046 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-65-5821-060-3 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 6 0 3 Página em branco