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1 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 3 2 O QUE É ANTROPOLOGIA? ............................................................................... 4 3 LINHAS GERAIS DA ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA DE PANNENBERG ........ 7 3.1 Pressupostos Antropológicos ............................................................................ 8 3.2 A Dignidade do Homem .................................................................................... 9 3.3 Homem: Unidade Corpo e Alma ...................................................................... 14 3.4 Abertura ao Mundo .......................................................................................... 16 3.5 Pressupostos Teológicos ................................................................................ 20 3.6 Releitura do Gênesis, Revendo a Concepção do Estado Original .................. 21 3.7 O Ser Imagem de Deus Como Destino do Homem ......................................... 24 4 A CONSTRUÇÃO DA RELIGIÃO COMO UMA CATEGORIA ANTROPOLÓGICA........... .................................................................................... 26 5 A CONSTRUÇÃO DA RELIGIÃO NO INÍCIO DA MODERNIDADE EUROPEIA.................... ........................................................................................ 29 6 A RELIGIÃO NA MODERNIDADE ..................................................................... 31 7 O PLURALISMO RELIGIOSO E A PRESENÇA DA RELIGIÃO NO ESPAÇO PÚBLICO...... ......................................................................................................... 36 8 RELIGIÃO CRISTÃ E TEOLOGIA: COMO A ESSÊNCIA HUMANA SE TORNOU A ESSÊNCIA DE DEUS ........................................................................................ 39 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 51 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 O QUE É ANTROPOLOGIA? Ao analisarmos o significado da palavra antropologia, verificamos que tem origem na língua grega: antropo significa “homem” e o radical logia significa “estudo”. A antropologia, portanto, é uma ciência cujo objeto de estudo é o homem na sua totalidade, ou seja, nos seus aspectos históricos, biológicos, sociais e culturais (OLIVEIRA, 2018). Trata-se de uma ciência social recente, que surgiu entre os séculos XVIII e XIX. Assim, o campo de estudo e atuação da antropologia é vasto, pois inclui aspectos biopsicossociais e culturais da humanidade, visando analisar e compreender a diversidade e complexidade do ser humano (OLIVEIRA, 2018). O autor François Laplantine, antropólogo francês, na obra Aprender antropologia (1989), afirma que o conceito de homem e a fundação de uma ciência para estudar, não apenas especular, as questões e complexidades próprias da existência humana ocorreram somente a partir do século XVIII: Enquanto encontramos no século XVI elementos que permitem compreender a pré-história da antropologia, enquanto o século XVII (cujos discursos não nos são mais diretamente acessíveis hoje) interrompe nitidamente essa evolução, apenas no século XVIII é que entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1996), na modalidade. Apenas nessa época, e não antes, é que se pode apreender as lições históricas, culturais e epistemológicas de possibilidade daquilo que vai se tornar a antropologia (LAPLANTINE, 1989, p. 54). Nesse sentido, o autor coloca que o projeto de formulação de uma ciência antropológica supôs a construção de certo número de conceitos, começando pelo conceito de homem — como sujeito e objeto do saber —, bem como a constituição de um saber de observação, não só de reflexão, ou seja, um novo modo de acesso ao homem, na sua existência concreta — o que envolve as suas linguagens, relações e comportamentos (OLIVEIRA, 2018). Assim, a antropologia estuda, principalmente, costumes, crenças, hábitos e aspectos físicos dos diferentes povos que habitaram e habitam o planeta. Portanto, os antropólogos se dedicam ao estudo da diversidade humana, tanto de sociedades antigas quanto modernas, seus hábitos, rituais, crenças e mitos, por 5 exemplo. Os aspectos da evolução humana também integram os temas da antropologia (OLIVEIRA, 2018). Uma das perguntas relativas ao estudo do homem é como coletar dados sobre os diferentes grupos. Não basta viajar, especular ou ter curiosidade, mas organizar, sistematizar, processar e interpretar dados e observações. Assim, como fontes de pesquisa, os antropólogos podem utilizar desde livros, documentos e objetos até depoimentos, vivências e observação (OLIVEIRA, 2018). Dessa forma, os principais métodos de estudo utilizados na antropologia envolvem pesquisas de campo, como a etnografia e a observação participante — que consiste basicamente em vivenciar experiências e práticas de outras culturas, com imersão, para entendê-las. Essas pesquisas foram desenvolvidas por importantes antropólogos ao longo da história, como (OLIVEIRA, 2018): • o antropólogo polaco Bronislaw Malinowski, que conviveu com povos nativos australianos no século XX e registrou os seus estudos etnográficos no livro Os argonautas do Pacífico Ocidental; • o americano Franz Boas, que estudou povos nativos e esquimós norte- americanos; • o francês Marcel Mauss, que estudou a reciprocidade entre sociedades, além de religiões e sociedades esquimós; • o francês Claude Lévi-Strauss, que escreveu sobre antropologia estrutural, mitos e parentesco, além de ter vivido alguns anos no Brasil, considerado fundador do estruturalismo na antropologia; • o estadunidense Clifford Geertz, da antropologia contemporânea, realizou estudos de campo e publicou obras como O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa No Brasil, importantes antropólogos são referências em estudos, pesquisas e obras, como Darcy Ribeiro, que escreveu sobre a formação do povo brasileiro e educação, Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, Roberto Kant de Lima, Lilia Schwarcz, além de Alba Zaluar, entre outros (OLIVEIRA, 2018). 6 Tratando-se das principais tendências do pensamento antropológico contemporâneo, podemos verificar que as principais são (OLIVEIRA, 2018): • antropologia americana; • antropologia britânica; • antropologia francesa. Há autores que caracterizam diferentes escolas antropológicas, como (OLIVEIRA, 2018): • evolucionismo social; • escola antropológica (ou sociológica) francesa; • funcionalismo; • culturalismo norte-americano; • estruturalismo; • antropologia interpretativa; • antropologia pós-moderna. O quadro a seguir elucida as tendências gerais contemporâneas, com base em Laplantine(1989, p. 100). 7 3 LINHAS GERAIS DA ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA DE PANNENBERG Observaremos os pressupostos que consistem nos princípios que conduzem a sua visão da realidade humana, os quais definem tanto a sua interpretação da máxima do relato sacerdotal que qualifica o homem como criado segundo a imagem e semelhança de Deus, como também o seu posicionamento perante a reflexão teológica que já foi feita sobre este assunto na história do pensamento cristão. Contudo antes de descrevermos os pressupostos antropológicos e teológicos, faz-se necessário que destaquemos como deve ser feita em sua visão uma ressaltante abordagem da antropologia teológica. Quais inter-relações ela deve conter para que seja capaz de desempenhar verdadeiramente sua tarefa, ou seja, qual metodologia deve ser seguida pela reflexão cristã ao abordar a realidade humana (SILVA, 2009). Para Pannenberg, para ser relevante, a reflexão da antropologia teológica deve levar em consideração três inter-relações que são capitais para a adequada compreensão da realidade humana. São elas a relação entre a antropologia teológica, a doutrina da criação e a cristologia, principalmente porque somente essas inter-relações permitem entender a criação do homem segundo a imagem divina, que está vinculada à sua posição dentro da criação, com as suas características ontológicas e com o seu destino à comunhão com Deus, que foi concretizado em Jesus Cristo (PANNENBERG, 1993). Pois só assim uma reflexão antropológica é capaz de achar as repostas necessárias que a fé cristã deve dar à sociedade e às ciências humanas, tal reflexão proporciona Pannenberg em sua obra Antropologia em Perspectiva Teológica. Ao partir de uma base mais vasta, pôde construir uma abordagem antropológica mais abrangente. Nela, sua abordagem toca a realização do destino do homem como parte da providência divina, à luz dos fundamentos biológicos da vida humana, de sua circunstância no mundo, de sua dimensão social e etc. (SILVA, 2009). 8 Podemos dizer que essa postura de Pannenberg é imagem da Teologia Patrística, que é vista por ele como um molde que precisa ser seguido pela reflexão da antropologia teológica contemporânea. Isso porque a Teologia Patrística, desde o princípio da história cristã, ao refletir sobre o homem, percebeu que a sua natureza consistia em três dimensões: psíquico, corpórea e espiritual. Assim ela expôs a complexidade da realidade humana através de uma abordagem profunda levando em consideração as inter-relações necessárias (PANNENBERG, 1993). Por causa dessa particularidade, Pannenberg afirma que a abordagem patrística tornou-se um marco nas explanações bíblicas do homem como imagem de Deus. Essa conclusão consta tanto na obra acima mencionada, como no capítulo VIII do segundo volume de sua Teologia Sistemática, que é uma súmula de seu pensamento antropológico (SILVA, 2009). Procuraremos seguir esse princípio do pensamento de Pannenberg, para isso, inicialmente, elencaremos seus pressupostos antropológicos e teológicos, buscando compreender os desdobramentos ontológicos apontados pelo fato de que a criação do homem se deu apenas segundo a imagem de Deus. Veremos quais são as particularidades ontológicas que essa condição de imagem divina deu ao homem, e quais os pressupostos teológicos determinados pela sua criação segundo a imagem e semelhança divina. A partir daí faremos a relação entre as qualidades ontológicas do homem e seu significado teológico, buscando entender à luz da fé qual é a relação das características ontológicas com o seu destino de deleitar-se da comunhão com Deus, de forma que possamos entender porque, na visão de nosso autor, a concretização plena deste destino está estreitamente relacionada com a cristologia. Uma vez que, na sua compreensão, o destino que foi escolhido pelo próprio Deus na criação do homem, cumpriu-se prolepticamente na vinda e vida de seu filho Jesus Cristo (SILVA, 2009). 3.1 Pressupostos Antropológicos Para melhorar o nosso aprofundamento na compreensão de Pannenberg sobre a realidade humana, devemos alçar a seguinte indagação: na sua concepção, 9 em que consiste o homem? Buscando responder a essa pergunta, veremos então quais são os pressupostos antropológicos, ou seja, em que consiste a realidade humana na antropologia de Pannenberg. Vale lembrar que estamos seguindo também aqui, a abordagem antropológica realizada em sua Teologia Sistemática (SILVA, 2009). Verificaremos que ele concebe o homem como detentor de uma dignidade peculiar, que fica manifestada nas suas características ontológicas e na sua participação no domínio, ou seja, senhorio do próprio Deus sobre a terra. Pannenberg também qualifica o homem como detentor de uma complexidade única, porque sua realidade não é apenas psíquico-corpórea, mas possui também uma dimensão espiritual. Assim, veremos que as mesmas características ontológicas que expressam seu local de destaque são os meios utilizados pela ação divina. Pois, através delas, a providência divina opera sobre o homem, fazendo dele um ser transcendental, anelante e inacabado, que está sempre em devir, dessa maneira podemos dizer que ela causa uma abertura que conduz o homem para além das coisas finitas em direção ao seu criador, tornando-o por isso um andarilho que peregrina a partir de sua realidade vital, da concreticidade de sua existência, de sua fábula individual rumo ao infinito que o atrai (SILVA, 2009). 3.2 A Dignidade do Homem Pannenberg começa ressalvando a dignidade peculiar do gênero humano. Fato que implica diretamente na diferença e superioridade do homem diante das demais criaturas de Deus, essa postura adotada por ele é baseada inicialmente no relato sacerdotal, que afirma que a criação do homem ocorreu segundo a imagem e semelhança divina. Assim, Pannenberg entende que esta criação segundo a imagem de Deus, faz com que o homem goze de uma posição de destaque, o que implica dois desdobramentos. O primeiro é a superioridade humana, que é evidente por meio de uma simples comparação entre o homem e todo o restante da criação. O segundo é que essa superioridade é a base do cargo para a qual ele foi chamado por Deus a cumprir (SILVA, 2009). 10 Já no início de sua arguição Pannenberg mostra que a dignidade peculiar do homem foi entendida desde a época pré-cristã em diversas sociedades. Citando um exemplo disso na antiguidade, Pannenberg cita Cícero (in De Oficiis I, 30, 106), que a explicou na razão, ou seja, na capacidade racional do homem que lhe dá condição de se portar de forma distinta dos animais (PANNENBERG, 1993). Além dele, outros pensadores dentro da história antiga e contemporânea também defenderam uma posição de destaque do homem baseada apenas na razão. No entanto não podemos diminuir a superioridade do homem à sua razão, porque fazendo uma análise comparativa com as outras criaturas, vemos que a razão do homem não está desligada das outras características ontológicas e corporais que tem. Dessa forma, podemos afirmar que ela consiste na força orgânica que diante da influência social, e sobretudo, da providência divina, funciona como um motor, estimulando todas as capacidades humanas a entrarem em ação (SILVA, 2009). Ao falar de uma análise comparativa entre o homem e o remanescente da criação, e assim descrever a ampla superioridade do homem, Pannenberg cita o grande erudito Johann Gottfried von Herder, que a seu ver exerceu uma importante influência no pensamento antropológico, de maneira que pode ser considerado o pai da antropologia contemporânea. Herder parte da comprovação que o homem tem uma característica ontológica que o distingue do restante da criação, característica que consiste na sua abertura ao mundo. Fundamentado então nas conclusões de Herder, Pannenberg destaca a dignidadedo homem em contraste com a vinculação que liga os animais ao ambiente em que vivem (PANNENBERG, 1993). Desse modo, o conceito de abertura ao mundo desempenha uma função importantíssima nas conclusões teológicas de nosso autor, pois a transcendentalidade marca o diferencial do homem, ou seja, sua dignidade e o alicerce de sua postura no mundo (SILVA, 2009). Pannenberg em parte baseia seu posicionamento em Herder, que assegura que os animais estão presos por uma necessidade comum a um ambiente exterior predeterminado. Nesse caso, não podemos deixar de dizer que Pannenberg apela 11 também às conclusões das ciências zoológicas, que garantem ainda que os animais não percebem o mundo ambiente na sua completa riqueza, pois a sua percepção do mundo está limitada apenas ao que é significativo para os seus instintos. Essa questão é tão importante para Pannenberg que, segundo ele, ela decide tanto a estrutura biológica do homem como a dos animais (SILVA, 2009). Nos animais, o que tem uma influência decisiva são os instintos, pois são eles que mediam e definem a sua percepção do mundo. Assim, perante os sinais perceptíveis pelos seus instintos, eles apresentam sempre uma reação prevista, ou seja, programada biologicamente. Vale lembrar que a influência de seus instintos é tão intensa, que eles só vivem o que já conhecem antecipadamente do mundo numa forma de percepção e comportamento herdados. Aprofundando ainda mais essa distinção entre os homens e os animais, Pannenberg cita o behaviorismo, uma corrente científica que decifrou o homem a partir de sua corporalidade. E devido a essa metodologia, atribuiu sobre ele a mesma limitação vivida pelos animais e plantas. Pannenberg critica o behaviorismo, articulando que para fazer suas afirmações, ele necessitou ignorar a noção de consciência e a capacidade cognitiva do homem (SILVA, 2009). Pois somente ignorando a noção de consciência, o behaviorismo pôde tomar uma postura tão negativa, ou seja, retirar o homem de um lugar de destaque na natureza, igualando-o aos outros seres, e afirmando que ele está subordinado aos estímulos da mesma maneira que os demais seres vivos, estando assim enquadrado no mesmo horizonte de possibilidade de reação. Ao avaliar o princípio científico que consiste em interpretar o homem a partir da sua corporalidade e, especialmente, a partir de sua conduta observável, Pannenberg assegura que os limites do condutismo, em contrapeso, servem como argumentos a favor da posição única e independente do homem na natureza (SILVA, 2009). Isto porque o que é mais fácil acolher a partir das descobertas científicas é o oposto das afirmações embasadas numa interpretação do homem a partir de sua corporalidade. Pois o homem não está na sua experiência do mundo sujeito a um meio determinado e nem reage apenas dentro de uma limitação de conduta ligada ao ambiente que o rodeia. Ele defende que apenas o homem tem a faculdade de 12 experimentar objetos no verdadeiro sentido da palavra, porque faz parte do espírito humano abrir-se, e colocar-se curiosamente perante algo, deixando-se adentrar pelo desejo de entender suas particularidades (SILVA, 2009). Então, para Pannenberg, o mundo ambiente aplicado ao homem não se compõe na verdade em fronteiras biológicas, mas sim de instituições culturais de sua própria criação. Dessa maneira, ao rejeitar as limitações biológicas estabelecidas pelo behaviorismo, Pannenberg ressalta que em toda a sua vida o homem segue acessível às possibilidades da existência humana. E que apenas animais e plantas se limitam a reconhecer o que está determinado pela pertença a sua espécie, porque no homem os impulsos não são orientados por nascimento, sendo o único ser capaz de gozar de independência em relação aos condicionamentos atribuídos por ambientes e instintos (SILVA, 2009). Podemos citar aqui a realidade da liberdade, que apenas o homem entre toda a criação desfruta, assim ela também pode ser vista conexa ao seu diferencial dos animais. Porque liberdade e abertura ao mundo estão ligadas fortemente, de forma que não estando predeterminado pelos instintos como os animais, o homem cumpre a sua condição de decidir como vai procurar saciar sua indigência de Deus. Daí a sua posição de destaque na criação, devido sua abertura ao mundo e também por causa da liberdade desfrutada, fato confirmado na própria estrutura do seu corpo, visto que ela lhe fornece uma imensurável vantagem em relação aos animais. Por ter os órgãos humanos uma ampla variedade de funções, como é o caso da mão, podemos entender como a estrutura corpórea do homem lhe consente sempre ter a capacidade de executar novas e distintas experiências com uma vasta gama de variantes, como possibilidade para sua reação. Então, é diante da intervenção de excitantes externos que terá na vida do homem a polarização (SILVA, 2009). Os fatores que influenciam de maneira drástica as formas vitais de existir, são para Pannenberg construções humanas, de forma que o modo como o homem vivenciará sua abertura é influenciado pela educação obtida, pelos valores culturais e pelos costumes passados. Pois ele é capaz de afastar-se e libertar-se vivendo a auteridade, vislumbrando como pode lidar com tais construções. Devido sua liberdade intrínseca, nenhuma ocorrência externa que lhe sobrevenha, opressão, 13 calamidade ou maus tratos pode extinguir a dignidade com a qual foi dotado na criação. Apenas ele mesmo pode sacrificar essa imagem, desobedecendo a sua condição ao levar uma vida adversa ao seu destino divino. Sua dignidade perde-se quando peca, ou seja, ao portar-se indignamente, pois assim deprava sua imagem divina e desvia-se do destino predeterminado pelo seu Criador. Para nosso autor, esta atitude de fechamento em relação ao seu destino que se conforma em pecado é a raiz da verdadeira desgraça do homem, visto que ela o aliena de seu destino, como também da razão e da finalidade de sua criação (SILVA, 2009). Sua abertura transcendental, sinal de sua criação à imagem e semelhança divina, faz o homem gozar de uma posição de destaque na criação, a tal ponto que é convocado para representar Deus, participando do senhorio divino sobre ela. Essa função dada por Deus é vista pelo relato sacerdotal como sinal de sua proximidade com Ele. Pannenberg também abre mão desse argumento para expressar o local de destaque do homem perante a criação. Mesmo num olhar leviano, pode-se perceber a magnitude de sua superioridade comparado às demais criaturas. Expõe ainda outra evidência que confirma essa interpretação da diferenciação do homem perante aos demais animais a partir de sua posição de destaque, diante do seu privilégio de dar nome as outras criaturas, função que comprova as faculdades da linguagem e da inteligência (SILVA, 2009). Dessa maneira, sua posição de domínio mostra a sua proximidade com Deus que se acha também vinculada à sua razão. Devido a sua racionalidade e suas propriedades corporais, o homem tem condição de reagir positivamente às diferentes situações e adaptar-se a elas com inteligência, aptidão esta que o caracteriza como a coroa da criação, o ente mais evoluído e o dono de uma condição insuperável. No entanto, para o relato sacerdotal, o que distingue o homem das outras criaturas é a sua posição frente às demais criaturas, demonstrada na função de participar do senhorio divino e na incumbência de dominar a terra (SILVA, 2009). 14 3.3 Homem: Unidade Corpo e Alma Ao pensarmos na unidade que há entre o corpo e a alma humana no pensamento de Pannenberg, a primeira ressalva que devemos fazer é, que para ele, o homem não deve de forma alguma ser reduzido a apenas uma das duas dimensões, o corpo ou a alma. Ainda, não se pode compreender o corpo e a alma como duas realidades desconexas, como muitas vezes ocorreu na história e no pensamento cristão.Ou até mesmo conceber o corpo como o cárcere que só termina com a morte, como postulava o platonismo que diversas vezes influenciou a filosofia e a fé cristã. Perante essa influência platônica, que defende uma autonomia da alma frente o corpo, Pannenberg nota que essa postura vai muito além do que consentem os modernos conhecimentos científicos, pois hoje as conclusões científicas não nos deixam aceitar e nem sustentar o corpo como a prisão da alma, nem a autonomia de uma das dimensões ou as duas dimensões humanas desvinculadas uma da outra (SILVA, 2009). A influência do platonismo acarretou para o cristianismo o dualismo antropológico, influência que apareceu desde as primeiras reflexões. Ela pode ser entendida em Tertuliano, que falava do corpo e da alma como duas importâncias distintas, ainda que vinculadas entre si. No entanto, Pannenberg lembra ainda que, mesmo tendo o platonismo desempenhado uma forte influência no cristianismo, a fé cristã não cedeu totalmente a ele, pois a compreensão moderna da inter-relação corpo e alma já estava presente na antropologia cristã primitiva, desde a primeira Patrística. De tal modo, diante do platonismo que havia se transformado a filosofia dominante, a fé cristã teve condição de assegurar que a alma e a consciência estão fortemente enraizadas na corporeidade do homem (SILVA, 2009). A reflexão cristã também foi capaz de destacar uma visão positiva do corpo, afirmando que ele, bem como a alma, foi criado bom por Deus, ao amparar a visão de que a união dos dois incidia no cumprimento da vontade criadora divina, e possibilitar ainda a arriscada afirmação cristã de que o corpo humano não é um corpo sem vida, sendo animado em todas as suas amostras de vida. Pannenberg em sua crítica da compreensão cristã dessa questão, aponta que a profundidade da 15 visão bíblica da união da alma e do corpo no homem não foi adquirida plenamente na antropologia patrística. Este acontecimento se deveu para ele por causa da limitação atribuída pelo modelo da união das duas substâncias, e também foi devido à ampla influência da doutrina agostiniana, que partia de um fundamento antropológico platônico, que fez com que se trabalhasse só com a ideia de iluminação, advogando assim uma dependência da razão com analogia à luz da verdade divina. Desta maneira, considerou-se mais uma vez a razão, como uma amplitude autônoma apontada para Deus, contendo por conta disso um fim sobrenatural (SILVA, 2009). Fazendo também um retorno histórico precedente ao período do cristianismo primitivo, Pannenberg nota que essa concepção dos processos vitais como funções das partes essenciais constitutivas do homem e de sua alma, só adentrou no pensamento judeu através do helenismo, que identificou o pneuma com a sabedoria, ou seja, com o noûs humano, ligação esta que também conduziu a uma interpretação helenizante. Porque ela concebeu a razão do homem como esse pneuma divino que lhe foi soprado na criação, identificando o espírito humano com a razão que derivou numa aceitação de que há uma parte superior da alma, a alma espiritual do homem (SILVA, 2009). No entanto, cabe ressaltar que a teologia cristã se afastou da ideia corrente da divindade da alma espiritual. De acordo com Pannenberg, podemos afirmar isso porque perante a divinização da alma, essa teologia garantiu que todas as manifestações da vida humana, até mesmo a razão, se remetem à constante atuação do Espírito divino. Sendo assim, exigiu que a atuação do Espírito vivificante no homem não pode se identificar apenas com a razão, visto que todas as funções vitais precisam ser atualizadas pelo Espírito criador de Deus. Para alcançar tal conclusão, a primitiva reflexão cristã baseou-se no fato de que as escrituras rabínicas e as paulinas não dão base para afiançar que a alma é algo divino no homem. Essa compreensão paulina é especificada em I Co 2,10 onde o apóstolo Paulo contesta o Espírito de Deus ao espírito do homem, entendendo que a vida animada não vive por si mesma, mas pelo Espírito de Deus que a vigora com seu hálito. Pois o Espírito no significado bíblico não significa o entendimento, e sim a 16 força criadora de vida, elucidando o fato que as criaturas sempre estão dependentes do espírito-vento ou do hálito divino. Pois só com Ele, elas podem permanecer vivas, o que não significa que o Espírito divino seja um componente constitutivo da criatura (SILVA, 2009). Na Alta Escolástica da Idade Média, aprofundou-se esse assunto a partir da concepção de Tomás de Aquino que originou um grande avanço na antropologia cristã ao perceber a alma como forma substancial do corpo. A sua posição foi corroborada pela Igreja em 1312 no Concílio de Viena, que ponderou que a alma não é somente um dos componentes constitutivos do homem, sendo sim o que constitui o homem enquanto homem na sua realidade corporal (SILVA, 2009). 3.4 Abertura ao Mundo Agora aprofundaremos em que incide a abertura do homem ao mundo, base da sua posição de destaque e marca da sua superioridade. Esta abertura do homem no pensamento de Pannenberg consente afirmar que dentre toda a criação, pode- se demandar do homem coisas que não se pode das demais criaturas, vejamos quais exigências Pannenberg elenca: Que ele tenha em conta o mundo em sua plenitude mesmo diante de seu caráter incompleto; que ele desenvolva uma relação com a procedência do universo; que ele alcance o destino para o qual foi cunhado, de modo que nele se resuma e consuma o sentido de toda existência finita (SILVA, 2009). O próprio Pannenberg elucida estas questões, articulando que a primeira se cumpre no reconhecimento de Deus como o criador do mundo. A segunda e a terceira estão intensamente ligadas por causa da sua disposição frente à criação que serve de alicerce para sua realização definitiva, que se dá a partir de uma relação apropriada entre a criatura e o criador. Pannenberg fala ainda que Herder exibiu a diferença entre o homem e o animal da mesma maneira como vem fazendo a antropologia atual. Por isso a dinâmica da moderna antropologia leva até a teologia cristã e o seu pensamento basal sobre Deus. Assim ele resumiu seus resultados (SILVA, 2009): 17 1. A abertura ao mundo real no homem conota uma relação com Deus, porque o homem tem a Deus como escopo por estar sempre projetado para além do mundo. 2. A abertura da vida humana não se exaure em seu significado reduzida apenas à cultura. A ligação ambiental e vital que individualiza o animal corresponde ao substrato que permite ao homem uma relação que vai além do mundo natural, além da cultura, provocando uma dependência indigente de Deus e dando-nos condição de assegurar analogamente com os outros seres que a dependência que o mundo ambiente provoca para o animal, Deus provoca para o homem. Pois assim como os animais são dependentes do meio em que vivem, meio que desperta suas necessidades e as satisfazem, o homem em compensação é dependente de Deus, pois não conhece limites para o seu ambicionar e necessitar (SILVA, 2009). Vinculando a dignidade intrínseca do homem e sua categoria em relação às demais criaturas, já que foi criado segundo a imagem de Deus, ressalta-se que tudo isso tende ao destino para qual ele foi criado, que tem sua realização decisiva, no encontro do homem com Deus. Destino este que, foi levado a termo de forma soberana e insuperável na vida concreta de Jesus de Nazaré, que em sua encarnação, manifestou o destino do homem como indivíduo e como espécie, assegura Pannenberg (SILVA, 2009). Nosso autor vai adentrar ainda mais o sentido religioso da abertura ao mundo, ao basear-se no conto javista da criação, chega a dizer que a abertura é algo inerente do ser humano. Demonstrada essa verdade ao classificar a realidade total do homem como alma vivente “nephesh haya”, assegurando que a alma não é apenaso princípio vital do corpo, mas consiste no corpo animado, o ser enquanto tal. Então, ao ver o homem por esse prisma, o determina como o ser do desejo, um ser que está para sempre na busca de suprir uma deficiência interna, que é fundamento de sua abertura ao mundo. Nessa questão, Pannenberg menciona Arnold Gehlen, que deu uma grande ajuda para o seu entendimento ao articular que o homem tem uma “obrigação indeterminada”, que o faz exceder qualquer nível de 18 vida verificada. Sendo essa “obrigação indeterminada” identificada como o impulso da atitude religiosa, asseverando que ela exprime a tendência infinita do homem, sua necessidade que não encontra satisfação dentro dos limites acessíveis (SILVA, 2009). A sua abertura incondicional a um objeto desconhecido fora de si, que foi percebida pela antropologia moderna como abertura ao mundo (transcendentalidade), pode ser vista também como a religiosidade assentada na essência do homem em sua criação, pois é essa abertura que está direcionada para um campo que a atrai, e que dilata continuamente o desejo do homem. Desejo este que chamamos Deus, pois Ele é o objeto de inquietude e da infinita indigência humana. Então, ante a argumentação que vimos acima, podemos compreender porque a criação do homem segundo a imagem de seu criador está intensamente ligada ao seu destino em desenvolver uma relação viva e comunhão plena com Ele (SILVA, 2009). Ao receber um destino distinguido das outras criaturas, o homem também ganhou uma posição de destaque em relação a elas. Posição que o tornou um ser diferenciado, tanto ontologicamente como em sua estrutura corporal, sendo cunhado como um ser relacional, podendo, além de desenvolver relação com o infinito, desenvolver relação com o finito. Porque ao ganhar capacidade para desenvolver relações em múltiplos níveis, e interagir com a realidade que o cerca, o homem foi habilitado para relacionar-se consigo mesmo enquanto pessoa e espécie, e com as outras criaturas e com Deus, sendo capaz de cumprir a missão que lhe foi passada, que é representar no mundo o senhorio do próprio Deus (SILVA, 2009). Queremos, ainda nessa questão, mencionar a contribuição de Agostinho e outros pensadores da Igreja citados por Pannenberg. Eles expuseram o caminho percorrido pela razão humana para reconhecer a realidade que a circunda (epistemologia). Essas contribuições nos ajudam a compreender como se dá a abertura do homem ao mundo, auxiliando-nos a entender que a razão humana por estar aberta ao conhecer, faz proposições (o conhecer especulativo). E esse fantasiar da razão humana na verdade está baseado numa forma superior de 19 receptividade, que vai além do ganhar as informações que os sentidos apreendem. Assim tais pensadores compreenderam que o fundamento da razão humana está no infinito que a seduz, em algo além dos dados finitos da consciência, e então é a atitude especulativa (a vida da fantasia) que agrega a receptividade e a liberdade, sendo imprescindível à atividade da razão. Isso também nos auxilia a compreender a afirmação que a razão é dependente da atuação do Espírito divino para poder ser o alicerce da liberdade e subjetividade do homem, ou seja, o embasamento que viabiliza a diferenciação do eu e do mundo (SILVA, 2009). Para Pannenberg, só no campo da intersubjetividade e da relativização do eu e do mundo é que se pode diferenciar o corpo da alma, pois apenas frente a alma como o mundo interior da consciência, se acha o corpo. Esse impulso causado pelo Espírito divino promove a diferença entre o sujeito e o objeto, transcendendo- os e dando por conta disso à consciência humana a condição de compreender as mais variadas informações e realidades, viabilizando então a intersubjetividade. Mais uma vez vale citar o contraste da condição do homem em relação à situação dos animais e plantas. Eles não têm em si esta abertura, estando diminuídos a reagir da forma antevista pelos seus instintos, estando vinculados inteiramente ao ambiente que os rodeia. O homem, por causa de sua abertura, pode ser encarado como um ser religioso, que com detenção de sua liberdade relativiza todo o finito, e vai além dele na direção do infinito, alcançando assim o seu destino (SILVA, 2009). De acordo com nosso autor, também não se pode discorrer da realização deste destino fora de Jesus Cristo, nele toda clara relação do homem com Deus é possibilitada e inaugurada pela relação de filiação. Pois nenhuma outra configuração de relação do homem com Deus é capaz de superá-la, visto que foi a encarnação de Jesus que fez possível a todo homem participar da filiação de Deus. Assim como diz o Evangelho: “...deu-lhes a prerrogativa de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,12)”, ou seja, abrangendo o homem como espécie acima do mundo natural e inserindo-o na dinâmica do amor divino. Dinâmica esta que conduz o homem a desenvolver o amor em dois sentidos, o vertical (Deus) e horizontal (espécie e a natureza). Por isso a dignidade inerente do homem está vinculada ao seu destino de estar em comunhão com Deus. Porque a comunhão com Ele o 20 coloca na dinâmica do amor “comunidade de amor”, e tirando-o da situação de inimizade em relação a Deus e da situação de violência do homem como espécie (SILVA, 2009). 3.5 Pressupostos Teológicos Na primeira parte vimos em que incide a realidade humana (pressupostos antropológicos), e de algum modo tocamos um pouco de seu significado teológico. Mas devido à importância de penetrarmos no significado teológico das propriedades ontológicas do homem e alguns postulados bíblicos sobre a realidade humana, dedicaremos esta etapa designadamente à visão teológica do autor. Primeiramente veremos a sua reinterpretação de Gênesis à luz das afirmações neotestamentárias, que ponderam Jesus Cristo como a verdadeira imagem de Deus. Deixando irreversivelmente de lado a compreensão tradicional, que advoga um início da história humana em que o homem existia num estado de perfeição e de justiça original ou graça original (SILVA, 2009). Verificaremos que Pannenberg chega à conclusão que o homem nunca foi verdadeiramente a imagem divina, mas criado segundo ela, baseando-se na contribuição de Irineu. Irineu estabeleceu as seguintes categorias: imagem-cópia e imagem-modelo. Ao partir desta compreensão ele pôde assegurar que na verdade a verdadeira imagem de Deus é Jesus Cristo, sendo o homem apenas imagem- cópia deste, ou seja, sendo criado para atingir este destino que significa converter- se na imagem-modelo que é Jesus Cristo. Por isso não poderíamos deixar de aprofundar nesta etapa a abrangência de Pannenberg sobre o fato que a criação do homem segundo a imagem de Deus está densamente relacionada com o seu destino de viver em comunhão com Ele, destino que foi obstruído por causa do pecado que tem provocado o fechamento do homem em relação a Deus. Assim em sua abordagem, o pecado é tido essencialmente como algo que gera a alienação do homem em relação ao destino para o qual foi cunhado, fazendo com que o homem viva na miséria, por estar afastado da intenção original de Deus quando o criou (SILVA, 2009). 21 Veremos ainda, que o nosso autor considera o homem sempre adaptado pela sua história, o que significa que o homem está sempre em devir, ou seja, é um ser incompleto. Além disso, é na história individual que a providência divina opera atraindo-o para Deus, porque ele não é capaz de por si só elevar-se e colocar-se de acordo com o seu destino. Deste modo, a antropologia teológica percebe a realização do destino humano, como objeto da atuação divina, atuação redentora que está completamente vinculada à sua consumação futura, escatológica. Por isso Pannenberg defende que as afirmações antropológicas fundamentais da antropologia cristã sobre a criação do homem à imagem divina e sobre o pecado, adotadas em conjunto,constituem o pressuposto da mensagem de que Deus redime o homem por Jesus Cristo, a qual incide em como veremos na realização do destino do homem, destino que se dá prolepticamente em Cristo, dentro da história concreta da humanidade, possuindo então uma relevância universal (SILVA, 2009). 3.6 Releitura do Gênesis, Revendo a Concepção do Estado Original Para Pannenberg, a doutrina da Imago Dei não pode de maneira alguma ignorar que Cristo é a verdadeira imagem de Deus, imagem em que todos os homens deverão tornar-se. Desta forma, Jesus de Nazaré deve ser visto como a realização do destino do homem, como paradigma de relação com Deus que todos os homens devem adotar. Vale lembrar que este posicionamento de nosso teólogo está intimamente calcado na sua compreensão de que a criação do homem se deu segundo a imagem de Deus, visando primeiramente à comunhão com o Criador como defendeu Irineu, o primeiro pensador cristão a perceber que em Gênesis capítulo um; verso vinte e seis; e também no capítulo cinco; verso um e capítulo nove; verso seis, não se classificava o homem como feito a imagem de Deus, mas segundo a imagem d’Ele (SILVA, 2009). Por causa desta compreensão, Irineu fez uma diferenciação categorial, advogando a realidade de uma imagem de Deus molde que é Cristo e classificando a imagem divina presente no homem, como uma imagem fundamentada não diretamente na de Deus, mas, na de Cristo. Concluindo então que o homem é uma 22 imagem-cópia dele, a teologia de Irineu além de fazer uma distinção categorial entre imagem-modelo e imagem-cópia, fala de uma relação em graus distintos. Desta maneira, pôde enxergar em Adão a possibilidade de um certo grau de semelhança com Deus e também a plenificação dessa semelhança somente em Cristo, ou seja, maior e absoluta representação do reproduzido (SILVA, 2009). Pannenberg aplica o conceito de imagem na representação de Deus pelo homem, percebendo que isso significa que ele foi criado segundo a imagem de Deus, mas nem sempre em igual grau ele a representa. Foi partindo deste princípio argumenta que a antropologia cristã pôde conceber no começo da humanidade uma semelhança do homem imperfeita que está apalavrada à perfeição. Ainda mais levando em consideração o efeito do pecado, que deformou a sua imagem, o que confirma a posição de que a plena representação da imagem de Deus só se alcançou concretamente na encarnação de Jesus Cristo. O pensamento de Pannenberg ao seguir este pensamento, deixa muito claro o conceito de devir, entendendo que a imagem de Deus no homem está em processo. Ela é plasmada na história da humanidade, num processo ligado à manifestação de sua plenitude no Filho. Acontecimento que transformará os homens da humanidade toda na imagem de Cristo, a verdadeira imagem de Deus (SILVA, 2009). Não é preciso ir muito longe para perceber que as afirmações que vimos acima colidem-se fortemente com os posicionamentos da dogmática clássica, tanto protestante como católica, que mesmo com suas diferenças, são influenciadas densamente por Agostinho, mostrando que a complexidade deste tema tem provocado uma compreensão muito diversificada, tanto da imago Dei como do estado de justiça original. O embate dá-se pelo fato de que a dogmática clássica protestante, idealiza o estado original do homem como um estado de perfeição que foi totalmente abalado pelo pecado (SILVA, 2009). Desde Lutero, toda a linha majoritária da teologia reformada rechaçou qualquer diferença entre os termos imagem e semelhança, que em contraste com a posição católica os compreendia como sinônimos. Então identificaram a criação do homem à imagem de Deus, com a doutrina do estado de graça original de Agostinho. Nisso, seguiam uma tradição que se afastava cada vez mais da 23 interpretação que Irineu fazia da afirmação do código sacerdotal em Gênesis 1,26; como também da afirmação neotestamentária da Carta de Paulo aos Colossenses 3,10, que fala da renovação do crente no conhecimento de Deus, segundo a imagem de Cristo. Notemos que os reformadores concebiam a imagem de Deus no homem, contendo um estado de justiça original (perfeição), que causava comunhão com o Criador. Então segundo o pensamento de Lutero, tal estado foi completamente perdido por causa do pecado. Calvino teve uma postura um pouco menos radical, ao discorrer não de uma perda, mas de uma tremenda deformação ocasionada pelo pecado. Tais posicionamentos tornam necessária para todos os reformadores uma restauração através de Cristo, que obra a renovação do ser humano e o restabelecimento da comunhão, ou seja, daquele estado ou relação original anterior a queda (SILVA, 2009). Na diferença de postura entre Pannenberg e os posicionamentos dos reformadores podemos notar a influência da concepção evolutiva do ser humano, uma influência do pensamento antropológico herderiano. Em sua obra: Antropologia en Perspectiva Teologica, menciona Herder como o ponto de partida da antropologia contemporânea, afirmando que ele já no ano de 1772 com seu escrito premiado intitulado: Der Ursprung der Sprache, afastou-se da concepção teológica tradicional de sua época. É importante observarmos que Pannenberg em sua obra acima tem um tópico apenas para falar da diferença entre o pensamento de Herder e a dogmática tradicional (SILVA, 2009). Com a sua concepção da imago Dei em devir, descarta a viabilidade de se amparar a historicidade de um estado original de perfeição antes do pecado. Pois na sua visão a concepção tradicional era problemática devido ao fato da impossibilidade de se coadunar com a compreensão evolucionista. No entanto não foi Herder, diz Pannenberg, o primeiro a entender a natureza do ponto de vista evolutivo. Antes dele já Marcílio Ficino, que foi o fundador do platonismo florentino, rejeitou o estado inicial de perfeição ao interpretar a encarnação como a execução perfeita do destino religioso do homem. Esse pensamento teve continuação pelo seu discípulo Pico de La Mirandola, que assegurava que na conduta ética de Jesus Cristo a imago Dei alcançou a sua realização completa. De modo que ela viabiliza 24 a humanização do ser humano à medida que ocorre sua assimilação a Deus (SILVA, 2009). 3.7 O Ser Imagem de Deus Como Destino do Homem Ao vermos que a afirmação de um estado de perfeição original é para Pannenberg insustentável, faz-se necessário que percebamos porque a perfeição deve ser vista como destino. Buscando então penetrar o conteúdo deste destino, logo de início devemos reafirmar que o destino do homem está estreitamente ligado à sua criação. Esta criação se baseia numa dotação original para uma comunhão com Deus. Partindo deste alicerce teológico, Pannenberg afirma que tanto as particularidades ontológicas como a personalidade e as particularidades corporais do homem concreto se baseiam nesse destino. Destino que a seu ver não está explícito nos escritos veterotestamentários, pelo fato deles não aprofundarem nada além da condição de domínio dos homens perante as demais criaturas (SILVA, 2009). Então ele nota que é preciso que se conceba a imago Dei como destino ligado à encarnação de Cristo, e Ele sendo visto como a verdadeira imagem de Deus. Assim é dada a Jesus uma função maior do que apenas retirar da humanidade o castigo do pecado, porque ao se ver Jesus Cristo como a verdadeira imagem de Deus, condiciona-se todo o gênero humano a ter que renovar a sua relação com Deus a partir d´Ele. Pannenberg adiciona que a imago Dei deve ser pensada em parte como dom original e em parte como destino. Pois a dissolução da doutrina do estado original fez com que se encare o homem como imbuído de um dinamismo que não é ainda a sua semelhança atual com Deus, mas é sua possibilidade (SILVA, 2009). Esta compreensão tem a vantagem de dirigir ao aprofundamento do significado e da intuição da afirmaçãodo relato sacerdotal, e também do sentido das afirmações neotestametárias, que qualificam Jesus Cristo como a verdadeira imagem de Deus, em consonância com as palavras do apóstolo Paulo (I Co 15,44- 49). Porque a abordagem bíblica panorâmica, clarifica a mensagem de Jesus Cristo 25 no Novo Testamento e conecta a manifestação do Filho de Deus na carne para vencer o pecado e a morte. Permitindo a compreensão da manifestação de Cristo como a realização em si mesmo do destino do homem, que é gozar da comunhão com Deus, a partir da condição de filiação trazida por Jesus (SILVA, 2009). Pannenberg menciona que também Tomás de Aquino relaciona a imagem de Deus no homem com seu destino, porque em sua compreensão o motivo para o qual ele foi criado é a comunhão com Deus, ao afirmar que a imagem de Deus no estado original de Adão deve ser alcançada como realização inicial desta imagem que seria inteiramente realizada em Cristo. Assim, mediante o que vimos sobre a argumentação de Pannenberg e de suas menções até aqui, podemos inferir que o destino do homem a ser imagem de Deus foi admitido por Jesus em sua encarnação. Isso porque nela tal destino é levado a termo, através do ser criado como distinto de Deus que entra em comunhão com Ele (SILVA, 2009). Para Pannenberg, de fato o código sacerdotal deixou em aberto no que incide a semelhança que conecta a imagem-modelo à imagem-cópia, fazendo-se necessário vincular o destino do homem com sua criação à imagem de Deus, para fazer possível o aprofundamento do sentido desta criação. Assim se impede a sua redução do destino humano na delegação de dominar a terra, o que para ele é uma leitura superficial de Gênesis. Então, assegurando antes de tudo que a comunhão com Deus é a razão da criação a sua imagem, rompe as barreiras impostas pelo código sacerdotal, que condicionou a comunhão de Deus com o homem à aliança feita com Abraão destinada apenas para sua descendência (SILVA, 2009). Então nosso autor defende que um discurso sobre o homem à imagem de Deus deve fundar-se na semelhança da essência eterna de Deus. Para isso ele fundamenta sua argumentação na literatura sapiencial de Israel, visto que ela aprofundou o sentido da imagem de Deus no homem, determinando-a como participação em sua glória e em sua incorruptibilidade. Pois ser imagem de Deus para a literatura sapiencial quer dizer a participação na sabedoria e na justiça divina e também a comunhão com sua essência imperecível (SILVA, 2009). Assim, se por um lado a interpretação judia relacionava as afirmações acima ao estado de magnificência da Adão antes do pecado e da morte no mundo, 26 por outro lado, o apóstolo Paulo encara as afirmações acima como a manifestação da imagem de Deus que ocorreu somente em Cristo, porque a partir de sua ressurreição Jesus Cristo inaugurou a realidade da vida nova imperecível (SILVA, 2009). 4 A CONSTRUÇÃO DA RELIGIÃO COMO UMA CATEGORIA ANTROPOLÓGICA Em muito do pensamento evolucionário do século XIX, a religião era avaliada como uma condição humana primeira a partir da qual o direito, a ciência e a política contemporâneos emergiram e se separaram. Neste século, grande parte dos antropólogos abandonou as ideias evolucionárias Vitorianas, e muitos reptaram a noção racionalista de que a religião é apenas uma forma primitiva e, assim, ultrapassada das instituições que atualmente nós encontramos em sua figura verdadeira na vida moderna (direito, política, ciência). Para esses antropólogos do século XX, a religião não é um jeito arcaico do pensamento científico, nem de qualquer outra campanha secular que nós valorizamos hoje em dia: ela é, ao contrário, um espaço característico da prática e da crença humanas que não pode ser amortizado a nenhum outro. Disso parece acompanhar que a essência da religião não deve ser embaraçada com, digamos, a essência da política – mesmo que em muitas sociedades as duas possam se acrescentar e se entrelaçar (ASAD, 2010). Com a sutileza que lhe é predicado, Louis Dumont nos conta que a cristandade medieval constituiu em uma sociedade compósita desse tipo: Eu tomo como dado que uma mudança nas relações implica uma mudança naquilo que está relacionado. Se ao longo de nossa história a religião impulsionou (em grande medida, havendo algumas outras influências em jogo) uma revolução nos valores sociais e deu à luz, como por cissiparidade, a um mundo autônomo de instituições e especulações políticas, então, certamente, a própria religião terá se transformado nesse processo. Da existência de algumas mudanças importantes e visíveis, todos temos consciência, mas acredito que não estejamos conscientes das mudanças que afetaram a própria natureza da religião como ela é vivida por um indivíduo qualquer, digamos, por um católico. Todos sabem que a religião era, anteriormente, uma questão coletiva e que se tornou uma 27 questão individual (em princípio, e também na prática, ao menos em vários ambientes e situações). Mas se concluirmos que esta mudança está correlacionada com o nascimento do Estado moderno, não estamos mais no lugar- -comum da proposição anterior. Avancemos um pouco mais: a religião medieval foi um grande manto – penso aqui no manto de Nossa Senhora das Mercês. Uma vez que ela se tornou uma questão individual, perdeu sua capacidade totalizante e se tornou apenas um dentre outros fatores em aparente pé de igualdade, entre os quais o político foi o primeiro a nascer. Cada indivíduo pode, é claro, e talvez o faça, reconhecer na religião (ou na filosofia) a mesma capacidade totalizante com que antes ela era dotada socialmente. No entanto, no nível do consenso social ou da ideologia, a mesma pessoa migrará para uma configuração de valores distinta, na qual valores autônomos (religiosos, políticos, etc.) são aparentemente justapostos, assim como os indivíduos estão justapostos na sociedade. (Dumont, 1971, p. 32; ênfase no original). De acordo com essa visão, a religião medieval, mesmo influindo ou englobando outras categorias, ainda seria identificável analiticamente. É este fato que torna plausível dizer que a religião teria atualmente a mesma essência que tinha na Idade Média, ainda que sua extensão e função sociais fossem distintas nas duas épocas. A insistência na tese de que a religião teria uma essência independente – que não poderia ser misturada com a essência da ciência, da política ou do senso comum – convida-nos, entretanto, a definir a religião como um fenômeno trans- histórico e transcultural. Talvez seja uma afortunada coincidência que esse esforço de significação da religião seja convergente com a exigência liberal de nossa época: que ela seja sustentada bem separada da política, do direito e da ciência – espaços nos quais múltiplos poderes e razões articulam nossa vida distintamente moderna. Essa definição é, igualmente, parte de uma tática de confinamento (para os liberais seculares), e de defesa (para os cristãos liberais) da religião (ASAD, 2010). No entanto, essa separação entre religião e poder é um princípio Ocidental moderno, fruto de uma singular história pós-Reforma. A tentativa de entender as tradições muçulmanas perseverando em que nelas, religião e política estão conectadas. Em sua forma mais ambígua, essas tentativas nos instigam a assumir uma posição a priori na qual os discursos religiosos no campo político são vistos como uma camuflagem para o poder político (ASAD, 2010). No que se segue, gostaria de analisar as maneiras como a procura teórica por uma essência da religião nos convida a dividi-la conceitualmente do domínio do poder. Ao explorar a definição universalista de religião ofertada por um eminente 28 antropólogo: “Religião como sistema cultural”, de Clifford Geertz. Vale enfatizar que não se trata aqui prioritariamente de uma revisão crítica das ideias de Geertz sobre religião, mas sim identificaralgumas das alterações históricas intrincadas no processo de produção de nosso conceito de religião como o conceito de uma essência trans-histórica (ASAD, 2010). Partindo do argumento básico que as formas, as pré-condições e os efeitos socialmente calháveis daquilo que era avaliado religião durante a época cristã medieval eram muito distintos dos [efeitos, pré-condições e formas] que são tidos como religião na sociedade moderna, chegando a este fato amplamente reconhecido sem incidir em mero nominalismo. Aquilo a que titulamos de poder religioso era distribuído de outra maneira e tinha um ímpeto distinto. Eram diferentes as formas pelas quais esse poder criava e irrompia instituições jurídicas; eram diferentes as subjetividades [selves] que ele compunha e às quais se reportava; eram diferentes as classes de conhecimento que ele autorizava e fazia disponível. Entretanto, uma consequência é que aquilo com que o antropólogo se afronta não é apenas uma coleção arbitrária de elementos e métodos que por acaso chamamos de “religião”. Pois o fenômeno todo deve ser visto, em grande medida, no contexto das tentativas cristãs de conseguir uma coerência em doutrinas e práticas, regras e regulamentos, ainda que esta situação nunca tenha sido inteiramente alcançada. O argumento é que não pode existir uma definição universal de religião, não somente porque seus elementos constituintes e suas relações são historicamente peculiares, mas porque esta definição é ela mesma o fruto histórico de processos discursivos (ASAD, 2010). Uma definição universal (i.e., antropológica) é, no entanto, precisamente aquilo que Geertz pretende: uma religião, ele propõe, é: (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatalidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas (Geertz, 1989, p. 67). 29 5 A CONSTRUÇÃO DA RELIGIÃO NO INÍCIO DA MODERNIDADE EUROPEIA As primeiras tentativas sistemáticas de criar uma definição universal da religião foram realizadas no século XVII, após a fragmentação da unidade e da autoridade da Igreja de Roma e os consequentes conflitos religiosos que dividiram os principados europeus. Um passo significativo na história dessa definição foi o De veritate de Herbert. “Lord Herbert”, segundo Willey, difere de outros homens como Baxter, Cromwell ou Jeremy Taylor principalmente porque, não satisfeito com a redução do credo a um número mínimo possível de fundamentos, ele regressa em relação ao Cristianismo ele mesmo, indo à busca de uma crença que deveria reger o consentimento universal de todos os homens enquanto homens. Deve ser lembrado que aquela antiga situação, simples, na qual a cristandade se auto representava como o mundo, apenas com os abomináveis pagãos do lado de fora e os judeus nos portões, já havia acabado para sempre. A exploração e o comércio haviam ampliado o horizonte e em muitos autores do século pode- -se perceber que as religiões do Oriente, ainda que imperfeitamente conhecidas, começavam a pressionar as consciências. Foi o interesse pioneiro nessas religiões, juntamente com a costumeira preocupação dos eruditos da Renascença com a mitologia clássica, que levou Lord Herbert a buscar um denominador comum para todas as religiões e, assim, promover (ou assim ele esperava) a muito necessária eirenicon para as disputas do século XVII (1934, p. 114). De tal modo, Herbert produziu uma definição substantiva do que posteriormente veio a ser formulado como Religião Natural – em questão de crenças (em um poder supremo), práticas (sua devoção organizada) e ética (um código de conduta fundamentado em recompensas e punições após esta vida) –, sobre a qual se dizia haver em todas as sociedades. Essa evidência na crença queria dizer que, daquele ponto em diante, a religião poderia ser idealizada como um conjunto de proposições para as quais os fiéis ofereciam seu consentimento e que poderia, por conseguinte, ser julgada e comparada, como uma dentre as distintas religiões e em contraposição às ciências naturais (Harrison, 1990). Segundo Asad (2010), a ideia de Escritura (um texto divinamente produzido/interpretado) não era essencial a esse “denominador comum” das religiões, em partes porque os cristãos já tinham se familiarizado mais com sociedades sem escrita por meio das redes comerciais e da colonização. Mas uma 30 razão ainda mais importante está na mudança de atenção, que aconteceu ao longo do século XVII, das palavras aos trabalhos de Deus. A “Natureza” tornou-se o verdadeiro sítio da escrita divina e, em algum momento, a autoridade incontestável que deve ser submeter a verdade de todos os textos sagrados, escritos com linguagem simplesmente humana (Velho e Novo Testamentos). Assim: O texto de Locke A Razoabilidade [Reasonableness] do Cristianismo popularizou uma nova versão do cristianismo ao reduzir sua doutrina ao menor denominador comum: a crença em Jesus como Messias, cujo advento havia sido narrado pelas profecias do Velho Testamento. Mesmo esse credo reduzido deveria ser medido em contraposição à Religião Natural e à Religião da Ciência Natural, de modo que a Revelação, além de ter de se justificar com base no padrão de Locke, também teria de se apresentar como uma reiteração da Religião Natural. Por algum tempo, de fato, a Palavra de Deus assumiu uma posição secundária em relação às suas obras, iniciadas no momento da criação do universo. Pois, enquanto o testemunho das últimas era universal e ubíquo, a evidência da Revelação se limitava a livros sagrados escritos em línguas mortas, cuja interpretação não gerava consenso nem mesmo entre os cristãos confessos, além de estar relacionada a eventos distantes, que haviam ocorrido em tempos remotos, apartados dos centros de conhecimento e civilização (Sykes, 1975, p. 195-96). Dessa forma, a Religião Natural não apenas se tornou um fenômeno universal, como passou a ser diferenciada do domínio emergente da ciência natural e a comprová-lo. Vale ressaltar que a ideia de Religião Natural foi um passo capital na formação do conceito atual de crença, experiência e prática religiosas, e que foi uma ideia desenvolvida em resposta a problemas característicos da teologia cristã numa conjunção histórica particular (ASAD, 2010). Em 1795, Kant foi capaz de abrolhar uma ideia de religião inteiramente essencializada, que poderia ser contraposta a suas maneiras fenomênicas: “Pode, sem dúvida, haver diferentes tipos de fé” que não radicam na religião, mas na história dos meios utilizados para o seu fomento, pertencentes ao campo da erudição; e pode igualmente haver diferentes livros religiosos (Zendavesta, Veda, Corão, etc.); mas só pode existir uma única religião válida para todos os homens e em todos os tempos. Por conseguinte, as crenças apenas contêm o veículo da religião, que é acidental e pode variar segundo os tempos e os lugares. (Kant, 2009). 31 Dali em diante, a classificação das confissões históricas no quesito de religiões mais ou menos elevadas tornou-se uma opção cada vez mais conhecida para filósofos, teólogos, missionários e antropólogos nos séculos XIX e XX. A existência de tribos reservadas que não tivessem desenvolvido nenhuma maneira de religião era repetidamente sugerida, mas como uma questão reconhecidamente empírica, que não comprometia a essência da religião ela mesma (ASAD, 2010). Assim, o que surge aos antropólogos de hoje como auto evidente, isto é, que a religião é fundamentalmente uma questão de significados simbólicos vinculados a ideias de ordem geral, que ela tem funções/características comuns, e que ela não deve ser confundida com nenhuma outra de suas maneiras históricas ou culturais particulares, éde fato uma visão que tem uma história cristã característica. De um conjunto sólido de regras práticas ancoradas em processos característicos de poder e conhecimento, a religião passou a ser abstraída e universalizada. Neste movimento, não há um mero acréscimo da tolerância religiosa, nem, seguramente, apenas uma nova descoberta científica, mas a alteração de um conceito e uma série de práticas sociais que é, ela mesma, parte de uma modificação mais ampla na paisagem contemporânea do poder e do conhecimento. Essa alteração compreendeu um novo tipo de Estado, um novo tipo de ciência e um novo tipo de sujeito jurídico e moral. Para entender essa modificação, é essencial sustentar claramente diferente aquilo que a teologia tende a obscurecer: o acontecimento de eventos (enunciados, práticas, disposições) e os procedimentos autoritativos que dão sentido a esses eventos e incorporam esse sentido em instituições concretas (ASAD, 2010). 6 A RELIGIÃO NA MODERNIDADE A relação do religioso com a modernidade é qualificada pela tensão entre a visão religiosa do mundo, eivada de símbolos e liturgias sacrais, com as diversas esferas sociais, regidas por normas e princípios seculares, profanos (WEBER, 2002). As instituições e os vários campos (científico, cultural, jurídico, etc.) que conformam as sociedades contemporâneas, se autonomizaram do religioso. Desta 32 maneira, os grupos religiosos tradicionais com suas cosmovisões “encantadas” se insurgem contra certos valores da modernidade, como o individualismo, o racionalismo e o materialismo, concebendo a sociedade moderna como dessacralizadora. Entretanto, tal tensão não constitui que a religião tenha se tornado irrelevante e sem importância no mundo contemporâneo. Ao contrário do que almeja a teoria da secularização, a religião permanece viva em nosso tempo. Não assistimos a “morte de Deus”, “o fim da religião”, “o eclipse do sagrado”. Se é verdade que a religião já não é mais o elemento axial em volta do qual gravitam as várias esferas da vida social, sua influência e poder se conserva. Segundo Renato Ortiz: [...] o advento da sociedade industrial não implica o desaparecimento da religião, mas o declínio de sua centralidade enquanto forma e instrumento hegemônicos de organização social. Ou seja, o processo de secularização confina a esfera de sua atuação, a limites mais estreitos, mas não a apaga enquanto fenômeno social. [...] Na verdade, a modernidade desloca, sem eliminá-lo, o lugar que ocupava nas sociedades passadas (2001, p.62). Hoje em dia o religioso se transforma, desloca-se, reconfigura-se (SANCHIS, 2001). A religião na modernidade não se fez “invisível”, uma realidade simplesmente subjetiva, privatizando-se. De acordo com Geertz (2001) as questões religiosas, no mundo atual, se movimentam em direção ao centro da vida social e política: Hoje em dia, a ‘luta religiosa’ refere-se quase sempre a ocorrências bastante externas, a processos ao ar livre que acontecem em praça pública – choques em vielas, audiências em tribunais superiores. Iugoslávia, Argélia, Índia e Irlanda. Políticas de imigração, problemas das minorias, currículos escolares, observância do sabá, xales para cobrir a cabeça e debates sobre o aborto. (...) Não há nisso nada de particularmente privado – encoberto, talvez, ou sub-reptício, mas dificilmente privado (GEERTZ, 2001, p.151). O aparecimento do fundamentalismo islâmico, o revigoramento do integrismo católico, a expansão evangélica, a explosão de novos movimentos religiosos de feição místico-esotérica e a inquestionável presença de atores religiosos nos grandes debates públicos contemporâneos, evidenciam a atualidade e vigência do religioso em nosso tempo (JÚNIOR, 2009). 33 Para Laplantine (2003), o procedimento de transformação do religioso na modernidade proporciona fundamentalmente duas direções, uma primeira direção qualificada pela afirmação das fronteiras, pela singularização e desta maneira pelo rechaço à modernidade, é o fato dos fundamentalismos e integrismos. Na segunda direção as fronteiras são ignoradas, aparecem novas religiões sincréticas que se contrapõem as religiões tradicionais. As crenças se subjetivam, se individualizam, há uma disposição cada vez maior dos crentes em “bricolar” seu sistema de crenças (HERVIEU-LÉGER, 1999). É a religião à la carte, onde cada crente edifica seu universo de crenças a partir dos bens simbólicos alocados a disposição pelo mercado religioso. Na atualidade ocidental, marcada pelo individualismo, as pertenças religiosas se tornam opcionais, o fato de uma pessoa nascer em certa religião não significa que ela professe esta religião por toda sua vida. De acordo com Pierucci: “Nas sociedades pós-tradicionais, et pour cause, eivam as filiações tradicionais. Nelas os indivíduos tendem a se desencaixar de seus antigos vínculos, por mais confortáveis que antes pudessem aparentar” (2004, p.19). Neste contexto de alto nível de autonomia individual, concordamos com a nota de Steil: “É o indivíduo, em sua liberdade, que opta frente a uma imensa variedade de alternativas religiosas que se apresentam” (2001, p.210). Os novos movimentos religiosos, nascidos na contemporaneidade, ao estilo New Age e neognósticos são altamente desinstitucionalizados, não exibindo assim o caráter de igreja. Não têm uma hierarquia rígida e sacerdotes especializados, responsáveis pela direção dos cultos e rituais. É uma forma de crença religiosa sem vínculos institucionais, é o crer sem pertencimento religioso (believing, without belonging), tendo desta maneira mais o aspecto de culto, de pequenos grupos (HERVIEU-LÉGER, 1999). Assegura-se nestes novos movimentos religiosos uma religiosidade centralizada no indivíduo, no self, que valoriza o corpo, o bem-estar físico e a realização pessoal. Desta maneira, os novos movimentos religiosos proferem elementos próprios da esfera religiosa com valores que são peculiares da modernidade, como o individualismo, a tendência a psicologização e a utilização de 34 uma linguagem e práticas próprias do campo científico, para Camurça: “[...] são ‘movimentos’ que aparecem entre o secular e o sagrado, especificando em sua configuração a co-presença das duas dimensões constitutivas da humanidade, em uma polaridade enfadonha e desafiadora” (2008, p.93). Por sua vez, a concepção de um Deus transcendente, fora do mundo, é suprida por uma perspectiva imanentista, que faz do “self ”, do “eu profundo” o lugar de manifestação do divino. O dualismo entre criador e criatura, espírito e matéria, sujeito e objeto, peculiar das religiões monoteístas, é excedido por uma cosmologia de fundo monista. A influência de cosmologias orientais é evidente em muitas destas novas religiosidades. A própria natureza é observada por estes novos grupos religiosos como uma realidade sagrada a ser conservada e cultuada, o ecologismo torna-se um dos feitios centrais do cenário religioso atual. De acordo com Colin Campbell: [...] esta forma de religião (ou talvez mais propriamente, de espiritualidade) pode também ser vista como sendo bem mais parecida com o modelo oriental do que com o ocidental, por sua ênfase na natureza polimorfa da verdade, no sincretismo e no individualismo. Além disso, percebe-se que o conceito oriental de auto aperfeiçoamento ou auto deificação substitui a ideia ocidental de salvação; a noção de igreja é deslocada por aquela de um grupo de seguidores ligados a um líder espiritual ou guru; finalmente, a distinção entre crente e descrente é substituída pela ideia de que todos os seres existem em uma escala de espiritualidade, uma escala que pode se estender além desta vida (1997 p.13). O sincretismo, o ecletismo, a mistura de assuntos e práticas é outro elemento desta religiosidade pós-tradicional que passa a surgir no Ocidente por volta das décadas de 1960 e 1970 (D’ANDREA,1996). Segundo Laplantine (2003), os novos movimentos religiosos têm um caráter fortemente emotivista e sentimentalista, com a valorização de práticas religiosas que abranjam fenômenos físicos como o transe, o exorcismo e a incorporação de espíritos. A religião torna-se assim uma maneira legítima de expressão do afeto e dos sentimentos. Por outro lado, o caráter intelectual, metafísico e especulativo das religiões baixa, a experiência pessoal, contígua e direta com o sagrado é colocada em primeiro plano. Para Hervieu-Léger (1997) um dos traços fundamentais da 35 religiosidade contemporânea é o que ela chamou de “emocionalismo comunitário”, acerca deste conceito afirma: [...] as comunidades emocionais dão um peso particular ao engajamento do corpo na oração, à manifestação física da proximidade comunitária e da intensidade afetiva das relações entre os membros (beijam-se, abraçam-se, tomam-se pela mão, pelo ombro, etc.) (HERVIEU- LÉGER, 1997, p. 33). As religiões habituais com forte caráter moralizante e rígidos códigos de conduta são contrapostas. Além disso, é cada vez mais claro que o comportamento moral das pessoas, mesmo aquelas vinculadas à Igreja Católica e a outros grupos religiosos, especialmente no que se refere à moral sexual, se afasta e até mesmo se opõe aos preceitos morais cristãos. Pode-se apreender atualmente uma diversificação e pluralização dos comportamentos sociais trazidos como legítimos. O divórcio, a homossexualidade, o aborto, o uso de métodos contraceptivos e outros comportamentos morais tidos como pecaminosos e desviantes em tempos antigos, atualmente são vistos com certa normalidade e são aceitos socialmente, assim observa-se uma perda de influência da religião no campo da moral particular e sexual (BAUBÉROT, 2007). Ainda podemos evidenciar um último traço do crer na modernidade, o trânsito religioso, em que os atores se movimentam de uma crença para outra, muitas vezes cometendo ao mesmo tempo diversos tipos de religiosidade (STEIL, 2001). Não se nota mais uma fidelidade irrestrita dos crentes a uma determinada confissão religiosa. Cabe ainda apontar aqui, que se observa na modernidade ocidental um tipo de sacralização do profano e do secular (RIVIÈRE, 1989). A ciência, o esporte, as sexualidades são divinizadas por certos segmentos. Em especial, a esfera política surge como uma instância onde em alguns casos, parece ter uma nova experiência do numinoso, transformando-se em um substituto, um equivalente funcional das religiões clássicas e sobrenaturais, o político é sacralizado. Múltiplos elementos, valores e símbolos contidos no universo religioso são transpostos para o campo político (SIRONNEAU, 1985). A esperança religiosa de salvação em outro mundo é trocada, nos mitos políticos contemporâneos, pelo desejo de uma salvação terrena 36 neste mundo. Isto se demonstra de forma bastante visível nas religiões políticas, como o comunismo e o nazismo. De acordo com Sironneau (1985), as ideologias políticas totalitárias exibem uma estrutura mítica fundamentada no milenarismo. Partem da visão mítico-religiosa de um passado majestoso, de uma Idade de Ouro, de um Éden, que foi perdido devido à “queda”, mas que pode ser reparado pela ação salvífica do partido, classe, nação ou raça que colocará na terra um reino milenar de paz e felicidade. De acordo com Voegelin (1982), algumas das mais respeitáveis ideologias políticas e correntes filosóficas nascidas na modernidade, possuem um fundo gnóstico, pois partem da hipótese de que é possível uma transfiguração radical da composição da realidade e uma transformação da natureza humana. O gnosticismo contemporâneo, baseado nas doutrinas gnósticas que apareceram nas primeiras eras cristãs, crê que o mundo terreno é intrinsecamente mau, não havendo outra saída senão o misticismo que estimula a fuga desta realidade ou a insurreição violenta contra este mundo visto como injusto e maléfico. 7 O PLURALISMO RELIGIOSO E A PRESENÇA DA RELIGIÃO NO ESPAÇO PÚBLICO O pluralismo de entendimentos de mundo, valores e crenças é uma das características basais da sociedade moderna. Ao contrário do que acontecia nas sociedades arcaicas e tradicionais, onde um singular sistema de valores e de crença abrangia tudo e a todos, na sociedade contemporânea se presencia a coexistência de múltiplos sistemas simbólicos que concorrem entre si. Assim, além da multiplicidade de alcunhas religiosas, o indivíduo pode eleger entre viver sem qualquer religião ou então se segurar a uma das múltiplas e variadas ideologias atuais. Segundo Peter Berger: O indivíduo moderno existe numa pluralidade de mundos migrando de um lado a outro entre estruturas de plausibilidade rivais e muitas vezes contraditórias, cada uma sendo enfraquecida pelo simples fato de sua coexistência involuntária com outras estruturas de plausibilidade. Além dos “outros significantes” que confirmam a realidade, 37 há sempre e em toda parte “aqueles outros”, incômodos refutadores, descrentes – talvez o incômodo moderno por excelência (1997 p.78). Dentre as diferentes formas de pluralismo existente na sociedade ocidental moderna, o que aqui preocupa é o pluralismo religioso que é, sobretudo, consequência do fim do monopólio religioso, da consumação de uma situação em que uma única religião continha todas as esferas da vida social. A desmonopolização religiosa proporcionou a diversificação e fragmentação do campo religioso tentando uma competição e disputa entre os vários grupos religiosos no sentido de atrair fiéis e conquistar espaços no campo público (MARIANO, 2003). A lógica do mercado, até então limitada ao campo econômico, invade a esfera religiosa. Desta maneira, constata-se em muitos países ocidentais uma recolonização da esfera pública pela religião, uma desprivatização e/ou publicização do religioso (BLANCARTE, 2001; BURITY, 2001), Segundo Burity: Igrejas ou organizações representativas daquelas vão a público, mantêm interlocução com as autoridades civis e políticas, publicam manifestos, apoiam abertamente candidatos a cargos eletivos, organizam manifestações de rua. O Poder Executivo conclama organismos religiosos a atuarem diretamente, de forma subsidiária ou substitutiva, na implementação de programas sociais em áreas como educação, saúde, violência ou geração de emprego e renda (em moldes que vão das parcerias às políticas de desinvestimento estatal na área social, que transfere a organismos privados a oferta e gestão de serviços de interesse público) (2001, p.33). A religião “invade”, adentra na arena pública, desafiando o exemplo republicano de uma esfera estatal e pública imparcial, indiferente ao religioso. Para Marcel Gauchet, nos deparamos com uma “situação paradoxal: de um lado, somos testemunhas de uma aceleração da saída da religião; de outro lado, assistimos a retorno da legitimidade do discurso religioso e da preocupação espiritual no espaço público” (2003, p.193). O conhecimento do espaço público como um espaço secular, onde as pessoas participariam dos grandes debates desprovidos de suas identidades (étnicas, religiosas, de gênero) e onde aconteceria a discussão racional é uma criação do liberalismo contemporâneo. O ideal republicano e liberal buscou 38 conceber e ver o cidadão, o homem cívico e político, mas não apreendeu e levou em consideração as outras dimensões da pessoa humana, como a dimensão religiosa. Asseverou o homo-civicus, mas esqueceu o homo-religiosus. Na realidade, o plano liberal de teor laicista buscou sem sucesso delimitar e amortizar a dimensão pública, cultural e social da religião. Procurava o laicismo radical, fazer do religioso assunto simplesmente privado, reservado ao interior das consciências, sem maior projeção e influência na arena pública (JÚNIOR, 2009). Contudo, a religião na contemporaneidade persiste em “contaminar”a política. Diversos Estado-nacionais modernos, ditos seculares, tomam os denominados “valores judaico-cristãos” como alicerce da ordem social e reivindicam o caráter “sagrado” do Estado-nação e dos princípios republicanos e democráticos (ASAD, 2007) como se verificou no governo neoconservador de Bush nos Estados Unidos da América do Norte, saturado de motivações teológico-políticas. A religião é vista em várias nações modernas como a base da identidade nacional, como é o caso do catolicismo na Polônia e na Irlanda, assim como da Igreja Ortodoxa na Grécia. Nos casos grego e irlandês, a constituição destes países foi expressa em nome da Santíssima Trindade. Na Grã-Bretanha, bispos da Igreja Anglicana têm assento na câmara dos lordes. Em países como Espanha e Itália, têm acordos formais entre Estado e Igreja Católica, tidos como concordatas, que afiançam a este grupo religioso uma série de privilégios. Mesmo na França, onde a laicidade é um marco e valor da cultural nacional, existe acordos entre instâncias governamentais e grupos religiosos nos departamentos da Alsácia e da Mosela. Na América Latina podemos mencionar outros exemplos que atestam um ajuntamento entre a esfera religiosa e a esfera política e desta forma à presença da religião na esfera pública. A constituição argentina assegura que o governo federal deve amparar e sustentar o culto católico. Por sua vez, a constituição peruana determina um regime de independência e autonomia entre Estado e grupos religiosos, mas distingue a importância da Igreja Católica na formação cultural, histórica e moral da nação e acolhe sua colaboração, bem como a cooperação com outras religiões. A constituição política do Paraguai, assevera a independência e 39 autonomia entre a esfera estatal e a esfera religiosa, mas garante também a possibilidade de cooperação entre Estado e religião (JÚNIOR, 2009). No caso brasileiro atesta-se também uma intensa presença do religioso na arena pública e sua difícil relação com o Estado. A existência de símbolos religiosos em repartições públicas, de feriados religiosos oficiais, a presença do ensino religioso nas escolas públicas, a invocação do nome de Deus no prelúdio da Constituição Federal de 1988, a crescente invasão de evangélicos na política nacional, a participação de atores religiosos na preparação de projetos de lei, bem como a influência e interferência do discurso religioso em disputas relacionadas com questões de bioética e direitos sexuais e reprodutivos apresentam com clareza que a esfera pública no Brasil não é inteiramente laica. A religião parece ampliar-se para além das fronteiras que o molde republicano e liberal almejava lhe circunscrever (MONTERO, 2003). A concepção de um Estado laico, imparcial em matéria religiosa e de um espaço público afastado da religião jamais se concretizou em nosso país. Para Oro: “[...] a laicidade e a secularização não são fatos consumados nem nos países em que a modernidade esteve na agenda da formatação dos Estados- Nações e, muito menos, no Brasil” (2005, p.436). 8 RELIGIÃO CRISTÃ E TEOLOGIA: COMO A ESSÊNCIA HUMANA SE TORNOU A ESSÊNCIA DE DEUS Uma vez exibidos os elementos que constituem a essência humana, é possível concluir logicamente a derivação do conteúdo antropológico que, a rigor, compõe a essência da religião cristã e, a reboque, seus elementos doutrinários, como a fé, a crença em milagres ou mesmo na providência divina. Partindo do pressuposto de que a religião obra por meio de uma inversão possível pelo progresso da imaginação sobre a realidade, Feuerbach defende que “a religião é a consciência primeira e indireta que o homem tem de si” (FEUERBACH, 2012a, p. 45): “primeira e indireta” pois o homem religioso não é francamente consciente de si, visto que não (re)conhece que “a oposição entre divino e humano é somente ilusória” (FEUERBACH, 2012a, p. 45), na medida em 40 que a religião nada mais é que “o sonho do espírito humano” (FEUERBACH, 2012a, p. 24), e o sonho, a expressão onírica da fantasia. Sobre o tema, Feuerbach ainda diz: [O sonho] é a inversão da consciência em estado de vigília. No sonho o ativo é o passivo e o passivo é o ativo; no sonho eu apreendo as minhas autodeterminações como se fossem determinações vindas de fora, as emoções como acontecimentos, as minhas ideias e sentimentos como entidades fora de mim, eu sou o passivo do meu próprio ativo. O sonho refrata duplamente os raios da luz, daí a sua indescritível magia. É o mesmo Eu, o mesmo ser tanto no sonho quanto na vigília; a diferença é apenas que na vigília o Eu se determina a si mesmo e no sonho é determinado por si mesmo, mas como se o fosse por uma outra coisa. Eu me penso - não é afetivo, é racionalístico; eu sou pensado por Deus e só me penso como pensado por Deus - é afetivo, é religioso. A afetividade é o sonho de olhos abertos; a religião é o sonho da consciência desperta; o sonho é a chave para os mistérios da religião” (FEUERBACH, 2012a, p. 154). A consequência da tese exposta é a de que toda religião, para se compor como tal, parte da admissão antecedente de divindade, seja ela singular (como no monoteísmo) ou múltipla (politeísmo). Assim, no caso do monoteísmo peculiar da religião cristã, a que Feuerbach faz referência permanentemente ao longo de “A Essência do Cristianismo”, não existe religião sem uma ideia de deus, uma vez que abdicar à essência de deus significa abrir mão da religião (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 48); ainda no cristianismo, o Deus único profere dentro de si os elementos essenciais do ser humano: trata-se de um Deus em tudo análogo ao homem, portador de seus predicados, conquanto sejam pensados de modo abstrato. Os reais predicados humanos são, de tal modo, os predicados de Deus; os predicados de Deus, os predicados humanos espiritualizados. O que não fica elucidado naquela religião é a identidade entre Deus e o homem; nela, Deus e o homem, ainda que partilhem dos mesmos predicados de embasamento, são contraditórios entre si: a natureza imaterial de Deus não é a natureza material do homem; de fato, “Deus e o homem são extremos” (FEUERBACH, 2012a, p. 63): se o homem é palpável, Deus é abstrato; se o homem é ser corpóreo, Deus é espírito incorpóreo; se o homem é animal biologicamente apontado pela natureza, Deus é sobrenatural e isento de determinações naturais; o mesmo é dizer que 41 a cada indigência no homem se opõe uma perfeição em Deus: Deus é e tem precisamente o que o homem não é e nem tem. O que se atribui a Deus é negado ao homem e, vice-versa, o que se dá ao homem se retira de Deus. […] Quanto menos é Deus, tanto mais é o homem; quanto menos o homem, tanto mais é Deus (FEUERBACH, 2007b, p. 5 – tradução nossa). Feuerbach confirma, com base nisso, que o que abona o homem, o que faz do homem, homem, é exatamente a determinação que lhe conferem seus predicados, o que implica na aceitação da prioridade do predicado sobre o sujeito, pois “o predicado é o verdadeiro sujeito” (FEUERBACH, 2012a, p. 54). O ser humano é o conjugado de suas predicações e, devido isso, “o predicado é a verdade do sujeito; o sujeito somente o predicado personificado, existente” (FEUERBACH, 2012a, p. 49). Essa parece ser a razão pela qual, nas “Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia” [Vorläufige Thesen zur Reformation der Philosophie (1842)], no ano subsequente ao da publicação de “A Essência do Cristianismo”, Feuerbach argumenta que o método da crítica reformadora da filosofia especulativa em geral não se distingue do método já utilizado na filosofia da religião. Basta- nos transformar sempre o predicado no sujeito e, do mesmo modo, o sujeito em objecto e princípio - basta-nos, portanto, inverter a filosofia especulativa e teremos então a verdade desvelada, a verdade pura e nua (FEUERBACH, 2005f, p. 86). Podemos formar aqui, pois, um silogismo hipotético:se o que origina o sujeito é o predicado e os predicados humanos são naturais e, por isso, concretos, então o homem é um sujeito natural e, logo, concreto; quanto a Deus, se seus predicados são abstratos, logo o indivíduo deles é igualmente abstrato (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 51). Por esse motivo, independente da religião, sempre teremos em seu alicerce a abstração, embora possam ser diferenciados os objetos da abstração para as religiões (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 117). O Deus cristão incide, pois, na supranaturalidade dos atributos humanos: ele é o homem arrebatado da vida e da corporeidade, é adverso à natureza em função de sua infinitude. Deus é, na verdade, um tipo de “projeção” da tentação humana: o almejar ser imortal, ilimitado. Por isso, a conclusão de Feuerbach é análoga a dizer que o homem tem o Deus que quer ter para superar a corporeidade 42 e a natureza, a morte e a imperfeição, o que quer dizer que, ao mesmo tempo em que é produto da abstração, é também Deus uma precisão afetiva do coração humano e a satisfação de sua vontade carente. Daí que a unidade essencial conosco é a condição principal da divindade; o conceito da divindade torna-se dependente do conceito da personalidade, da consciência enquanto o que há de mais elevado que se possa pensar. Mas um Deus (significa ao mesmo tempo) que não é essencialmente diverso de nós não é um Deus (FEUERBACH, 2012a, p. 217). Se Deus e o homem são conflitantes entre si, Deus só pode ser elevado às custas de um rebaixamento do homem (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 55), o que denota que a afirmação de Deus é, do mesmo modo, a negação do homem, uma vez que “o homem e a divindade não cabem [...] conjuntamente no mesmo lugar” (CABADA CASTRO, 1999, p. 71). Mas se a essência do homem é apontada pela natureza, a assunção de Deus sugere necessariamente na supressão da natureza, o que dá vazão à crença no milagre e na providência. A religião cristã, nesse significado, assume os predicados humanos ou, o que é o mesmo, a essência humana como uma essência diferente, separada, porque primeira, especial (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 45), tal como é arquitetada pelo misticismo que, ao entendimento de Feuerbach, não passa de uma “psicopatologia”, “deuteroscopia” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 110), de “uma mina inesgotável de mentiras, ilusões, cegueiras, contradições e sofismas” (FEUERBACH, 2012a, p. 217). Por isso, a religião cristã está sujeita a alienação em Deus dos atributos humanos idealizados de modo absoluto, ilimitado, sobrenatural e, por isso, é dependente da fé, uma vez que esta, em contrassenso absoluto com a razão natural, “permite o que a natureza e a razão negam” (FEUERBACH, 2012a, p. 142), porque que é ela “[…] o olho espiritual, o olho da força da imaginação; ela vê o que não vê, quer dizer, o que não tem presente ante os olhos – a fé não se atém ao presente –, ela vê como eu vejo a um ser distante, separado de mim pela morte ou pelo espaço. […] [Entretanto,] quem vê o ausente, não vê o presente” (FEUERBACH, 2007b, p. 52), o que explica a tese de que “a diferença entre razão e fé [seja] um fato psicológico” (FEUERBACH, 2012a, p. 12). 43 Como o homem é provido de razão e a razão possui o poder da abstração, a fé faz de Deus o maximum da abstração, o que confere certa prioridade a Deus. Contudo, Deus é a expressão da própria razão abstrata do homem, ou, o que é o mesmo, “o ser eterno é uma existência abstrata, imóvel, não vital, privada de vida. Mas isto é exatamente a mesma razão abstrata” (FEUERBACH, 1982, p. 103 – tradução nossa). Sem aceitar isto, o crente ambiciona Deus dotado de prioridade ontológica: Deus é precedente, todo o resto, posterior. Não à toa a consequência de postular, na “vontade de Deus”, o comprovante para o mundo: este é cunhado pela prioridade absoluta de Deus. Assim, a prioridade de Deus recusa a prioridade do mundo: este é derivado, segundo, tem sua razão de ser naquele primeiro; ao mesmo tempo, a prioridade de Deus demanda, como ato da subjetividade absoluta, liberada de materialidade, a existência secundária do mundo; o mundo, a objetividade, aufere vida graças à subjetividade. Por isso, diz Feuerbach, a criação do mundo, privado da vontade ilimitada e arbitrária da subjetividade absoluta, compõe “o mais elevado clímax do princípio da subjetividade” (FEUERBACH, 2012a, p. 120), do homem místico. A vontade assim idealizada não encontra mais qualquer resistência: ela é definitivamente determinada apenas por si mesma, por sua arbitrariedade. O mundo objetivo é produto dela: tem, portanto, sua existência graças a ela, acarreta uma relação de dependência essencial em relação a ela como a uma origem: “o mundo é transitório, mas o homem eterno” (FEUERBACH, 2012a, p. 297). Isso quer dizer que a existência do mundo é afiançada pela onipotência da vontade arbitrária de Deus que, precisamente em razão de seu descomedimento, pode escolher por sua dissolução. Assim, a existência do mundo é indecisa, porque este não tem seu embasamento em si mesmo, mas num outro, que lhe é primordial (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 296). Por isso, pode Deus intervir a seu “bel prazer” na ordem natural e dar a conhecer sua onipotência, o que o vulgo nomeia como “milagre”, cuja expressão maior acontece na ideia de “providência” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 121), excepcionalmente devotada ao homem, mas não à natureza em geral (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 123): a providência é, então, a demonstração do egoísmo humano em relação à natureza, uma vez que ela, a natureza, 44 não ouve os lamentos do homem - ela é insensível com relação aos seus sofrimentos. Por isso o homem dá as costas à natureza, aos objetos visíveis em geral - volta-se para dentro, para aqui, escondido dos poderes insensíveis, encontrar atenção para os seus sofrimentos. Aqui confessa ele os segredos que o angustiam, aqui alivia ele o seu coração oprimido. Este alívio do coração, este segredo confessado, esta dor externada é Deus. Deus é uma lágrima de amor derramada pela miséria humana na mais profunda intimidade (FEUERBACH, 2012a, p. 138). Dessa forma, é possível concluir que há, para Feuerbach, uma vinculação estreita entre a religião cristã e a afabilidade humana: o homem é indivíduo marcado pela carência, pela dependência, pela necessidade (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 140), consequentemente Deus é a representação da possibilidade de satisfação interior da necessidade humana. Se, apesar disso, “para o homem afetivo é a imaginação […] a mais elevada atividade, a que o domina” (FEUERBACH, 2012a, p. 147), então a posição da necessidade de Deus nada mais é que produto da fantasia que domina o homem afetivo, o homem místico, na medida em que respalda sua funcionalidade na procura pelo bem-estar, pela satisfação do ilimitado desejo humano. No caso do cristianismo, é ainda mais conexo, pois não se trata da simples assunção de um Deus distante, como entidade puramente abstrata- racional, mas de um Deus-homem que adota na sua humanidade a dor, o sofrimento, a morte, mas a sobrepuja pelo poder divino que o ressuscita dos mortos. Cristo, o segundo indivíduo da trindade divina cristã e a encarnação do conceito abstrato num corpo material – como crê o homem que declara a fé cristã – nada mais é, para Feuerbach, que “a unidade de afetividade e fantasia” (FEUERBACH, 2012a, p. 160), enquanto para o cristão, que o toma por Aquele que profere em si a dupla natureza (divina e humana) em união hipostática, a aceitação d’Ele não pode abstrair do elemento da fé. Por isso, sustenta Feuerbach, o homem religioso é um ser de fé, posto que a fé é a condição para o milagre, para o fantástico – inclusive para explicar a dupla natureza de Cristo que é, por si mesma, um milagre; simultaneamente, contudo, segundo pensa Feuerbach, o homem religioso é uma pessoa de fé também em função do medo, em consequência do apelo dafé à afetividade. Daí que mesmo que a minha fé devesse ser livre quanto à sua origem, o medo sempre se mistura com ela; a minha afetividade está sempre presa; 45 a dúvida, o princípio da liberdade teorética, me aparece como um delito. Mas o conceito mais elevado, a essência mais elevada da religião é Deus: o supremo delito é, portanto, a dúvida em Deus ou a dúvida, se existe um Deus (FEUERBACH, 2012a, p. 194). A fé do homem afetivo se conecta ao fantástico e até antinatural, e essa é a premissa imprescindível para que seja espectador de milagres. De fato, é o milagre a decorrência da fé (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 307); e mesmo que a fé contrarie frontalmente a razão natural, isto não é ressaltante para a afetividade do homem místico, pois tudo o que este almeja é um mundo em que suas pretensões podem ser inteiramente satisfeitos, sem qualquer embarreiramento objetivo concreto, de forma que “Deus é a existência correspondente aos meus desejos e sentimentos: ele é o justo, o bom, aquele que realiza os meus desejos” (FEUERBACH, 2012a, p. 182): por isso, relata Feuerbach, “Deus faz a vontade do homem” (FEUERBACH, 2012a, p. 304). O mundo objetivo, que firmemente oferece resistência à satisfação da ansiedade incondicional do desejo, é, então, concebido como um obstáculo, um problema; “a natureza, este mundo é uma existência que contradiz os meus desejos, os meus sentimentos” (FEUERBACH, 2012a, p. 182), daí a precisão de postular a inessencialidade do mundo, o alheamento da natureza. A consequência é que quanto mais o homem se afasta da natureza, quanto mais subjetiva, i. e., sobre e antinatural se torna a sua concepção, tanto maior é o seu repúdio pela natureza ou pelas coisas e processos naturais que desagradam a sua fantasia, que lhe impressionam negativamente. O homem livre, objetivo certamente encontra também na natureza muita coisa nojenta e repelente, mas ele entende isso como uma consequência natural, inevitável e dentro desta concepção supera os seus sentimentos como sendo apenas sentimentos subjetivos, ilegítimos. O homem subjetivo, que só vive na afetividade e na fantasia, ao contrário, encara essas coisas com uma contrariedade especial. Ele possui o olho daquele infeliz descobridor que até na mais bela flor só percebeu os minúsculos “escaravelhos negros” que nela corriam e que com esta observação perdeu o prazer de contemplar a flor. O homem subjetivo transforma os seus sentimentos num critério do que deve ser. Tudo aquilo que não lhe agrada, que ofende a sua sensibilidade sobre ou antinatural, não deve existir. Mesmo que o que lhe agrada não possa existir sem o que lhe desagrada (o homem subjetivo não se baseia nas leis monótonas da lógica e da física, mas na arbitrariedade da fantasia) abandona ele numa coisa o que lhe desagrada, conservando o que lhe agrada (FEUERBACH, 2012a, p. 151). 46 A religião tem em seu núcleo, portanto, também o envolvimento da afetividade, do sentimento, o que denota que guarda relação com outro elemento basal da essência humana, pensado como próprio de uma outra essência, diferente da humana. Aqui resiste, porquanto, um grande paradoxo para o homem religioso: ele provém sua existência de um ente abstrato, de um Deus-fantasma, cujas características são as suas próprias separadas das limitações naturais; por isso, a vida que ambiciona por viver é precisamente uma vida sem as barreiras físicas, sem as obstruções concretas ao seu bem-estar, aquilo que, a juízo de sua fé, lhe estaria disponível numa outra vida, arquitetada como verdadeira, a vida que não morre, a vida do além, a vida do céu. Explicando a questão no “Apêndice” de “A Essência do Cristianismo”, Feuerbach diz de Deus que este é, a juízo do homem de fé, o Actus purus, a mera atividade pura sem passividade, i. e., sem corpo, a atividade do olho, mas sem olhos, a atividade da cabeça, o pensar, mas sem cabeça. A questão: ‘Existe um Deus?’ é portanto a questão: existe um ver sem olhos, um pensar sem cabeça, um amor sem coração, uma geração sem órgão genital, um parir sem útero? ‘Eu creio em Deus’ significa: eu creio numa energia sem instrumento, num espírito sem natureza ou corpo, num abstrato sem concreto, numa essência sem ser, i. e., eu creio no milagre” (FEUERBACH, 2012a, p. 283); trata-se, portanto, da crença não somente na supra, mas especialmente na antinaturalidade da divindade, posto que “a natureza só ouve através do ouvido, só vê através do olho, só pensa através do cérebro” (FEUERBACH, 2012a, p. 285). Por isso, continua, o cristianismo desenvolve a ideia de um corpo sobrenatural, de um corpo sem corpo, um corpo espiritual como o verdadeiro corpo, este mesmo “[…] eterno, i. e., um corpo do qual são retirados todos os instintos objetivos, sensoriais, toda a carne, toda a natureza, […] é a matéria real, i. e., sensorial, carnal, negada, estabelecida como nula” (FEUERBACH, 2012a, p. 314). A consequência desta proposição não é outra senão a de que se “[…] para a teologia […] somente é verdadeiro o que para ela é sagrado, […] para a filosofia somente é sagrado o [que é] verdadeiro” (FEUERBACH, 2009, p. 23). No limite, a concepção da religião cristã determina que a vida, para o cristão, consista essencialmente na morte da materialidade, na morte do corpo (cf. 47 FEUERBACH, 2012a, p. 310) e, por isso mesmo, na separação do mundo (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 297): assim, quando a vida celestial é uma verdade, é a vida terrena uma mentira, quando a fantasia é tudo, a realidade não é nada. Quem crê numa vida celestial eterna, para ele esta vida perde o seu valor. Ou antes, já perdeu o seu valor: a crença na vida celestial é exatamente a crença na nulidade e imprestabilidade desta vida (FEUERBACH, 2012a, p. 172). A outra vida se confere, portanto, como uma espécie de compensação fantasiosa ou mesmo como uma rejeição psicológica subjetiva daquilo que o sujeito quer, mas não pode, em função das limitações estabelecidas por sua natureza. A consequência substancial não pode ser diferente desta: a privação é a genitora do “outro mundo”, do mundo da subjetividade interminável, do paraíso supraterreno, sobrenatural, imaterial e incorruptível; daí que “o além é apenas a realidade de uma ideia conhecida, a satisfação de um anseio consciente, a realização de um desejo: é apenas a supressão das limitações que aqui se contrapõem à realidade da ideia” (FEUERBACH, 2012a, p. 185) e, por isso, “o além é o aquém contemplado em imagem, embelezado, purificado de qualquer matéria bruta” (FEUERBACH, 2012a, p. 189). O além representa, então, o triunfo da subjetividade sobre a natureza, a superação do aquém e de suas contradições e indignidades, posto que o aquém, a natureza, além de coisas belas, também “[…] apresenta em si imperfeições, anomalias, excrescências que vão sendo extintas ou corrigidas aos poucos, num tatear evolutivo que leva milhões de anos. […] Ela […] [também] nos mostra […] degeneração, degradação, decadência” (BRANDÃO, 2009, p. 10). Por isso, o mundo é idealizado pelo crente como o locus da dor e da miséria, que deve ser exilado, execrado, para que chegue o “verdadeiro mundo”, eterno e inalterável, o mundo perfeito e feliz. O destino do homem afetivo, reflete ele, é achegar-se ao que é preciso, ao antinatural, é o céu, uma vez que “tudo que é necessário para a afetividade é também algo real” (FEUERBACH, 2012a, p. 159). Assim o sujeito abandona, como má, a natureza, esquecendo-se de que o homem é o que é pela natureza, por mais que deva o que é também à sua própria atividade; mas também a sua própria atividade 48 encontra o seu fundamento na natureza, i. e., na sua natureza. Sede gratos à natureza! O homem não se deixa separar dela (FEUERBACH, 2012a, p. 187). Conforme aponta Feuerbach, a consequência de tal constatação não poderia ser diferente: “a religião nos aliena e desvia da nossa essência” (FEUERBACH,2012a, p. 237), uma vez que consagra a incoerência com a razão natural (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 243), com a moral natural (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 245; 256), com a conexão comunitário entre os homens (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 246), com o amor humano (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 256; 258; 260), e, portanto, com a essência humana como um todo, na medida em que endeusa a razão e o sentimento como uma essência apartada do homem (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 280). Pela reflexão teológica, a religião cristã organiza uma teoria sobrenatural que, no limite, representa (i) a contraditoriedade teórica com a atividade da razão – que, para o crente, se compendia no conhecimento de Deus, cuja detenção só está disponível ao cristão, uma vez que Ele só desponta sua essência verdadeira e individual no cristianismo (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 288) –, o que a torna uma uma “fé em fantasmas” (cf. FEUERBACH, 2005f, p. 88) e (ii) a antinaturalidade prática (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 271), a qual deve conduzir a vida cristã, visto que “a meta e o objetivo prático do cristão é exclusivamente o céu” (FEUERBACH, 2012a, p. 288), o que corrobora a tese de que ao cristão não interessa o desenvolvimento da cultura , que “não tem outro objetivo a não ser realizar um céu terreno” (FEUERBACH, 2012a, p. 220) e se baseia na necessidade de contemplação de si por meio do outro e do mundo em geral (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 171). Assim, o que está camuflado “por trás” da religião cristã não é nada além da antropologia: na relação do homem com Deus existe uma relação do homem com o seu universal, com o seu gênero, não extraído de sua singularidade, o que concebe um aspecto absolutamente positivo. O negativo surge quando a religião, torna-se em teologia, teoriza o conceito de Deus e o deixa estranho ao homem, distinto dele : neste momento, ela trama uma antropologia paradoxalmente contrária àquilo que o homem é, porque “[...] o deísmo e a teologia arrancaram o homem de 49 sua esfera primitiva, natural e humana, e o tem isolado, como se fosse um ser independente da Natureza” (FEUERBACH, 1948, p. 28); a acusação de Feuerbach é enfática: “o cristianismo transformou o homem em um ser extramundano, sobrenatural” (FEUERBACH, 2012a, p. 308) e, ao fazer isso, ao tempo em que recusou aos seres humanos o que torna plausível a sua existência, metamorfoseou a relação intersubjetiva pela mudança do homem por Deus como “critério absoluto” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 48) para a ação humana. Devido isso, a ilusão religiosa acaba por deturpar a ética e a política humanas, uma vez que, amparada pelo “sentimento de conveniência” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 51) e, assim sendo, por um simples “prazer do egoísmo” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 57) que se fundamenta na consciência religiosa, adotada erroneamente como critério da verdade (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 100), torna nula a vida comunicativa, a vida relacional entre os seres humanos, a “vida verdadeira” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 92). Isso acontece quando se assume o próprio conceito de Deus no cristianismo, visto que o monoteísmo nada mais é que a negação da relacionabilidade de Deus, já que “Deus é […] o Eu sem o Tu. […] [Por isso, é] o ser somente-para-si-mesmo [que] contradiz o conceito da verdadeira vida, o conceito do amor” (FEUERBACH, 2012a, p. 127). Por conseguinte, egoísmo e monoteísmo não são diferentes: são a expressão da unidade do “em-si” e do “para-si” de Deus. Por esse motivo, Feuerbach recomenda que o egoísmo é essencialmente monoteístico, porque ele só tem uma coisa por meta: a si mesmo. O egoísmo recolhe, concentra o homem sobre si mesmo; ele lhe fornece um princípio de vida sólido, denso, mas limita-o teoricamente, porque é indiferente a tudo que não se relacione imediatamente com o próprio bem-estar (FEUERBACH, 2012a, p. 131). É nesse sentido que compete dizer que, a rigor, o cristianismo nega a comunidade em função da peculiaridade, despreza o gênero humano pela exaltação do sujeito (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 163), pelo “excesso de subjetividade” (FEUERBACH, 2012a, p. 170), de forma que o relacionamento intersubjetivo fica obstacularizado. Mais ainda quando se traz em conta o elemento 50 específico da fé, justificadamente tomado como condição imprescindível para a religião, pois a fé separa Deus do homem, portanto, o homem do homem; porque Deus nada mais é que o conceito genérico místico da humanidade, a separação de Deus do homem é, portanto, a separação do homem, a dissolução da união comunitária. […] [Assim,] a fé separa: isto é verdadeiro, isto falso. E somente a si atribui a verdade. […] A fé é por natureza exclusiva (FEUERBACH, 2012a, p. 246). A fé é exigente: corrobora a verdade a ser crida e, por isso, sustenta-se em si e por si mesma, recomendando sua não-aceitação como reprovável. Quem crê, tem a detenção da verdade; o que não crê é julgado como errado e mau, pois não acolhe a verdade. Está no alicerce da fé a ideia de condenação, que é devida ao que não acredita. Ao se contrapor à fé, o incrédulo se contrapõe a Deus mesmo, ao Bem supremo; se se contrapõe ao bem, é porque é mau; se é mau, está execrado. Daí o motivo do amor no cristianismo ser ilusório: ele só se conduz aos crentes, pois os incrédulos estão condenados de antemão, caso não aceitem a verdade cristã. Por isso a fé é fundamentalmente dissociativa e intolerante: ela nega a conexão natural entre os homens (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 251), o amor, e coloca em seu lugar um vínculo especial, aquele da crença; ao fazer isso, contrapõe-se ao amor, é-lhe indiferente (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 258), posto que, a juízo de Feuerbach, “um amor limitado pela fé é um amor ilegítimo” (FEUERBACH, 2012a, p. 260) porque evita o amor ao homem pelo que ele é. 51 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1989. ASAD, T. Religion, Nation-State, Secularism. In: LEHMANN, Helmut VAN DER VEER, P (Orgs.). Nation and Religion: Perspectives on Europe and Asia. New Jersey: Princenton University Press, 1999. p. 179- 196. BAUBÉROT, J. La laïcite, deux ou trois choses que je sais d’elle. 2007. BERGER, P. Rumor de Anjos: A sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. Petrópolis: Vozes, 1997. BLANCARTE, R. Laicidad y secularización en México. Revista Estudios Sociológicos, México n. 3, 2001. BURITY, J. Religião e Política na Fronteira: desinstitucionalização e deslocamento numa relação historicamente polêmica. Revista de Estudos da Religião. São Paulo, n. 4, p. 27-45, 2001. CAMPBELL, C. 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