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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/324744075 Sinalização entre plantas e bactérias Chapter · July 2016 CITATIONS 0 READS 5,848 1 author: Carolina Kleingesinds University of São Paulo 7 PUBLICATIONS 20 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Carolina Kleingesinds on 25 April 2018. 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Dra. Cláudia Maria Furlan Autores Ana Maria Amorim Annelise Frazão Antônio Azeredo Coutinho Neto Bruno Michael Brabo Bruno Viana Navarro Carolina Krebs Kleingesinds Daniele Rosado Dêvisson Luan Oliveira Dias Erik Yasuo Kataoka Fabiana Marchi dos Santos Fabio Nauer Fernanda Anselmo Moreira Fernanda Mendes de Rezende Filipe Christian Pikart Gabriela Carvalho Lourenço da Silva Geisly França Katon Geovani Tolfo Ragagnin Gisele Alves Janaína Pires Santos Jéssica Nayara Carvalho Francisco Juan Pablo Narváez-Gómez Juliana Lovo Laura Montserrat Leandro Francisco de Oliveira Luis Carlos Saito Luíza Teixeira-Costa Luiz Henrique Martins Fonseca Marcelo Tomé Kubo Marco Octávio de O. Pellegrini Mario Celso Machado Yeh Matheus Martins Teixeira Cota Naomi Towata Nuno Tavares Martins Paulo Tamaso Mioto Priscila Primo Andrade Silva Renata Souza de Oliveira Ricardo Ernesto Bianchetti Sabrina Gonçalves Raimundo Vanessa Urrea-Victoria Victoria Carvalho Wilton Ricardo Sala de Carvalho São Paulo 2016 VI Botânica no Inverno 2016 / Org. Miguel Peña H. [et al.]. – São Paulo: Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, Departamento de Botânica, 2016. 223p. : il. ISBN Versão online: 978-85-85658-61-8 Inclui bibliografia 1. Biodiversidade e evolução. 2. Ensino em Botânica. 3. Recursos econômicos vegetais. 4. Estrutura e desenvolvimento VI Botânica no Inverno 2016. 5 PREFÁCIO Fundado em 1934 pelo professor Felix Kurt Rawitscher, o Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo atualmente é referência em nível internacional de pesquisa e ensino. Possui uma equipe formada por 28 docentes (3 aposentados), os quais estão distribuídos em 8 áreas de conhecimento. Apresenta como infraestrutura 11 laboratórios, um herbário com a coleção de plantas vasculares, algas e madeiras estimado em 300.000 espécimes e um fitotério, com uma coleção de plantas vivas para uso didático, estufas e casas de vegetação. Somando-se ao grande número de pós-graduando (dentre esses, estrangeiros) e a alta atividade científica dessa comunidade, a Pós-Graduação de Botânica possui conceito CAPES 6, o mais alto entre as botânicas do país. Realizado desde o ano de 2011, o curso de Botânica no Inverno, é uma iniciativa dos pós- graduandos que visa divulgar esse trabalho realizado no Departamento de Botânica, possibilitando o futuro acolhimento de alunos/(potenciais) pesquisadores ao seu corpo discente. Na VI edição, o Curso de Botânica no Inverno pretende, com os alunos de graduação e recém-formados, revisar e atualizar conceitos fundamentais das subáreas Anatomia Vegetal, Educação em Botânica, Ficologia, Fisiologia Vegetal, Fitoquímica, Sistemática e Taxonomia Vegetal e Biotecnologia Vegetal, além de proporcionar a experiência de vivenciarem as atividades realizadas em nossos laboratórios, despertando o primeiro interesse dos possíveis futuros acadêmicos em projetos de pesquisa do Departamento. Para a realização do VI Botânica no Inverno, agradecemos à Universidade de São Paulo, à direção do Instituto de Biociências, à chefia do Departamento de Botânica, à Comissão Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Botânica, às agências de fomento FAPESP, CAPES e CNPq, à Monsanto, ao Hospeda-SP, ao Residencial das Bromélias, à Sinth, à Editora GrupoA, ao Garoa Hostel, ao Guest House Butantã e à RCS Copiadora. O conteúdo dos capítulos é de responsabilidade dos respectivos autores. Desejamos a todos um bom curso. Comissão Organizadora do VI Botânica no Inverno 6 ÍNDICE PREFÁCIO ......................................................................................................................................................... 5 PARTE I: DIVERSIDADE E EVOLUÇÃO Capítulo 1: Sistemática vegetal: conceitos, estado atual e perspectivas futuras ................................................... 8 Capítulo 2: Inferindo a história evolutiva de organismos: dos fundamentos básicos da obtenção dos dados à reconstrução de uma hipótese filogenética .............................................................................................20 Capítulo 3: Introdução às macroalgas marinhas ..................................................................................................41 Capítulo 4: Histórico de vida em algas ...............................................................................................................48 Capítulo 5: Diversidade Intraespecífica: modificações da do talo em algas vermelhas (Rhodophyta) ...............57 Capítulo 6: Aquecimento Global ........................................................................................................................63 Capítulo 7: Ecologia de costões rochosos e metodologias de amostragens ........................................................66 PARTE II: ENSINO EM BOTÂNICA Capítulo 8: Formação de professores de botânica: bases teoricas e dificuldades na formação............................78 Capítulo 9: Por que a botânica é tão chata ...........................................................................................................86 PARTE III: RECURSOS ECONÔMICOS VEGETAIS Capítulo 10: Vias de síntese de metabólitos secundários em plantas ..................................................................93 Capítulo 11: Ensaios in vitro para determinação do potencial medicinal de extratos de plantas.......................105 Capítulo 12: Compostos bioativos em macroalgas ............................................................................................119 Capítulo 13: Algas marinhas como fonte de polissacarídeos: Ficocoloides ......................................................124 PARTE IV: ESTRUTURA E DESENVOLVIMENTO Capítulo 14: Plantas Parasitas .......................................................................................................................... 131 Capítulo 15: Metabolismo ácido das Crassuláceas ............................................................................................138 Capítulo 16: Nitrogênio: um dos elementos essenciais para as plantas .............................................................144 Capítulo 17: Formação e controle dos estômatos ..............................................................................................153 Capítulo 18: Espécies Reativas de oxigênio ......................................................................................................161 Capítulo 19: Fisiologia de frutos: aspectos bioquímicos e hormonais...............................................................169 Capítulo 20: Embriogênese vegetal: aspectos gerais e aplicações biotecnológicas ...........................................184 Capítulo 21: Sinalização entre planta e bactéria ................................................................................................193 Capítulo 22: Marcadores moleculares na delimitação de espécies: um enfoque nos retrotransponsons ...........200 Capítulo 23: Evolução molecular: a base da biodiversidade .............................................................................205 Capítulo 24: Ilustração botânica ........................................................................................................................212 7 PARTE I DIVERSIDADE E EVOLUÇÃO 8 CAPÍTULO 01 Sistemática vegetal: conceitos, estado atual e perspectivas futuras Juliana Lovo Erik Yasuo Kataoka Matheus Martins Teixeira Cota Gisele Alves Jéssica Nayara Carvalho Francisco Bruno Michael Brabo Marco Octávio de O. Pellegrini Introdução Considerada a ciência da diversidade dos organismos, a Sistemática abrange a descoberta e a interpretação da diversidade biológica, assim como a síntese destas infomações sob a forma de sistemas de classificação preditivos. O propósito fundamental desta ciência é desvendar os ramos da árvore da vida, documentando e relatando as modificações que ocorreram durante a evolução dos organismos, além de buscar identificar os processos responsáveis por esta diversidade. A Sistemática consiste de quatro elementos básicos: Descrição, Identificação, Nomenclatura e Classificação. A escola mais aceita da sistemática atualmente é baseada no critério de que as classificações devem refletir a história evolutiva dos organismos, adicionando a reconstrução filogenética como um de seus elementos. A descrição é produzida em forma escrita pela listagem detalhada de todos os atributos estruturais do organismo, sendo, no caso das plantas, iniciada pelos órgãos vegetativos: raiz, caule e folhas; seguidos pelos reprodutivos: flores, frutos e sementes. A identificação é o processo de determinação de um nome a um espécime, um indivíduo inteiro ou suas partes. Este nome está associado a um material testemunho, o tipo nomenclatural, que é designado quando se elabora a descrição da espécie. O método mais usual para a identificação de um organismo é a utilização de chaves de identificação, sendo as dicotômicas as mais utilizadas, possibilitando a identificação do material por meio de características morfológicas objetivas e excludentes entre si. Abaixo segue um exemplo simples de chave de identificação: Chave de identificação para alguns super-heróis: 1. Super-herói homem 2. Usa capa vermelha, tem super-poderes, é vulnerável à kryptonita, seu símbolo é um “S” de coloração vermelha. ..................................................................................................... Super Homem 2*. Usa capa preta, não possui super-poderes, não é vulnerável à kryptonita, seu símbolo é representado por um morcego de coloração preta .................................................................. Batman 1*. Super-herói mulher 3. Usa uma tiara com estrela, cabelo de coloração preta, luta com um laço da verdade, não pode voar, por isso usa um jato invisível ....................................................................... Mulher Maravilha 3*. Não usa tiara, possui cabelo branco, luta controlando o clima e pode voar ................ Tempestade A identificação pode também ser realizada por comparação, através de descrições das espécies candidatas ou por comparação com espécimes já identificados, vivos ou fixados, depositados em coleções biológicas. Apesar de ser um método eficiente deve-se levar em consideração a confiabilidade da identificação dos espécimes da coleção para que não ocorra a duplicação de uma identificação errônea. 9 Por isso é importante a utilização de materiais identificados por pessoas (consideradas especialistas) que tenham um profundo conhecimento do grupo em questão. A nomenclatura é fundamental para que o nome aplicado ao organismo descrito seja único e universal. Para isso a nomenclatura vegetal é regida pelo Código Internacional de Nomenclatura para Algas, Fungos e Plantas, cujas regras visam à indexação de todo o conhecimento disponível acerca do organismo nomeado. O código pode ser alterado apenas durante o Congresso Internacional de Botânica que ocorre a cada seis anos. Dessa forma, a nomenclatura é atualmente regida pelo Código de Melbourne (2011) e no próximo congresso, que ocorrerá em 2017 na cidade de Shenzhen na China, será produzido o futuro Código de Shenzhen. A classificação consiste na ordenação das plantas em níveis hierárquicos de acordo com suas características (atualmente, de acordo com as relações filogenéticas). Assim, um nível hierárquico mais inclusivo (mais abrangente) incluirá níveis menos inclusivos (menos abrangentes) e suas respectivas características. As categorias são atualmente estabelecidas de acordo com linhagens monofiléticas sendo o Reino a mais inclusiva e a de Espécie a menos inclusiva (Figura 1). Figura 1. Níveis hierárquicos das categorias taxonômicas. Sistemática e Taxonomia - Um breve histórico A Sistemática usualmente segue atrelada à Taxonomia, e, algumas vezes, divide opiniões quanto às suas diferenças conceituais. Para alguns autores, a Taxonomia é caracterizada por ser uma área mais empírica e descritiva, que nomeia e classifica os organismos de forma subjetiva. Outros ressaltam certas diferenças entre elas, mas frisam sua complementariedade, como o paleontólogo George Gaylord Simpson, que define Sistemática como o estudo científico dos tipos de diversidade e organismos, bem como todas as relações entre eles, e a Taxonomia como o estudo teórico da classificação,incluindo suas bases, princípios, procedimentos e regras. De modo geral, podemos considerar a Taxonomia como parte importante da Sistemática, cujas análises subsidiam estudos mais aprofundados na classificação e compreensão da biodiversidade. A história da Sistemática Vegetal tem início na Antiguidade (Figura 2), quando Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C) tentou fazer o primeiro sistema de classificação dos vegetais, separando as plantas pela presença ou ausência da estrutura floral. Esse sistema foi utilizado durante a maior parte da idade média e pode ser considerado o início da classificação dos vegetais. Desde Aristóteles até o presente momento podemos dividir a História da Sistemática vegetal em 6 fases. 1º Fase. Classificações Antigas: Ainda, concomitante no século III a.C., temos as contribuições expressivas do filósofo grego Theophrastus (c. 371-286 a.C.), sucessor de Aristóteles, que utilizava um método de classificação em divisões sem muita complexidade. Theophrastus estabeleceu a primeira classificação artificial dos vegetais, em árvores, arbustos, sub-arbustos e ervas. Durante essa fase da 10 sistemática, outro personagem que se destaca na história é o médico do exército romano Pedanius Dioscorides, considerado fundador da farmacognosia, por meio da sua obra De materia medica, Ele apresentou interesse nas propriedades medicinais das plantas e em sua obra ele descreve cerca de 600 plantas. 2° Fase. Herbalista: Durante a idade média foram os médicos que deram uma ampla contribuição aos estudos dos vegetais, como Andrea Cesalpino (1519-1603). Nesse momento da história, surgem ilustrações e descrições que facilitam as identificações das plantas, essas informações eram feitas apontando as propriedades medicinais que elas possuíam. 3º Fase. Sistemas artificiais. Momento em que surgem os primeiros taxonomistas, nesse período a classificação busca agrupar as plantas por “afinidades naturais”, sem a preocupação de reuni-las por relação de parentesco. As plantas eram classificadas com base em poucos caracteres, avaliando a ausência ou presença de determinadas características morfológicas e considerando sua similaridade. Durante essa fase da história surgem grandes taxonomistas, um dos mais citados desse período foi de Carl Linnaeus (1707-1778), que escreveu Species Plantarum, baseando sua análise em um sistema de classificação denominado “sexual”, uma vez que buscava similaridades estruturais reprodutivas. Assim como o trabalho de todos os naturalistas da época, os sistemas de classificação buscavam refletir a Ordem Divina da Criação. 4º Fase. Sistemas Naturais: Tempo de oposição às doutrinas religiosas, ocorre no final do século XVIII. As plantas ainda eram classificadas de forma comparativa, porém os naturalistas levavam em conta um maior número de informações, essencialmente do conhecimento acumulado sobre morfologia vegetal. Figura 2. Linha do tempo ilustrando diferentes fases da sistemática vegetal ao longo da História. 5º Fase. Sistemas Evolutivos (Sistemática Evolutiva): Com o advento do evolucionismo no século XIX, a publicação de Origem das Espécies de Darwin direciona a sistemática para a compreensão das relações entre os grupos, modificando o cenário das classificações hierárquicas e passando a buscar as 11 relações evolutivas dos organismos. Nessa fase surge a escola Gradista, que apesar de ser baseada em conceitos evolutivos, não apresenta uma base metodológica com inferência empírica. A teoria da sistemática passou novamente por modificações a partir de 1950, quando o entomólogo alemão Willi Hennig (1913-1976) propõe que a classificação dos organismos deveria refletir seu parentesco filogenético e que somente novidades evolutivas compartilhadas por estes organismos (sinapomorfias) permitiriam inferir essas relações; é fundada a escola Cladística ou Filogenética, que buscava traçar a história evolutiva de ancestralidade dos organismos mediante um diagrama hipotético: o Cladograma. Para essa reconstrução, somente grupos de organismos que compartilham uma série de características únicas (apomorfias) com o mesmo ancestral (grupos monofiléticos) podem ser utilizados na classificação. 6º Fase. Sistemas Filogenéticos na atualidade: Os estudos taxonômicos da atualidade utilizam inúmeras ferramentas, incluindo a incorporação da biologia molecular e métodos que visam compilar os estudos da filogenia dos diversos grupos. O sistema de classificação atual mais utilizado hoje é o APG III (Angiosperm Phylogeny Group, 2009), sendo que acaba de ser publicado o APG IV (2016) que o substituirá. Esse sistema da classificação, proposto por Walter S. Judd e colaboradores na década de 90, reformulou os sistemas de classificação das angiospermas, considerando apenas grupos que compartilham o mesmo ancestral. O sistema do APG é amplamente aceito pelos sistemas atuais e isso ocorre principalmente porque a sistemática filogenética representa um importante avanço conceitual nos métodos utilizados para classificar os organismos. Fundada em um arcabouço teórico objetivo, que busca a opção mais válida das evidências disponíveis em uma análise, sujeitando-as a testes e confrontos com evidências adicionais, a sistemática filogenética possibilita um sistema de referência muito mais estável e preditivo. O papel da sistemática filogenética Criada por Hennig em 1955 a nova escola de sistemática filogenética ou cladística tornou-se o paradigma contemporâneo no campo da sistemática e taxonomia. Sua importância deve-se principalmente por proporcionar o entendimento da diversidade à luz da evolução e permitir a reconstrução de cenários histórico-evolutivos mais amplos e complexos. Trata-se de uma ferramenta que possibilita a interação de diversas áreas das ciências biológicas, proporcionando estudos mais completos de biologia comparada e melhor sistematização da diversidade biológica. Por isso, tem servido de base para diversos trabalhos com seres vivos, principalmente nos últimos 20-30 anos. Desse modo, a sistemática filogenética não se limita às classificações, mas também oferece um arcabouço para outros aprofundamentos a respeito dos padrões de relacionamento encontrados e as possíveis explicações para esses padrões (ou seja, processos evolutivos como seleção natural e migração). Dado isso, ela permite examinar ou testar hipóteses sobre o modo como os organismos ou caracteres específicos surgiram ou mudaram ao longo do tempo, além de elucidar novas teorias sobre os mecanismos da evolução e biogeografia. Por exemplo, a análise filogenética pode ser usada para avaliar mudanças passadas na distribuição biogeográfica de plantas neotropicais e para testar hipóteses sobre o soerguimento dos Andes. O contínuo avanço nos fundamentos teóricos e melhorias computacionais impulsionaram o campo da sistemática filogenética. Tal progresso possibilita o emprego de metodologias capazes de formular hipóteses testáveis de parentesco, bem como a concepção de métodos para avaliar a força dessas hipóteses, o desenvolvimento de novas fontes de informação e a percepção do poder dos padrões resultantes quando aplicado as perguntas que tratam da evolução dos organismos. As reconstruções filogenéticas tradicionalmente derivadas de dados morfológicos e anatômicos são agora integradas com múltiplas fontes de evidências cada vez mais robustas e precisas, tais como a citologia, ontogenia, embriologia, ecologia, química e, principalmente, genética. Por isso, a “taxonomia integrativa” tenta fazer uso de muitas fontes diferentes de dados para delimitar as espécies de maneira mais estável e concisa. O advento de novas técnicas moleculares permitiu obter vasto conjunto de dados macromoleculares, por exemplo, DNA genômico, de maneira cada vez mais rápida e barata. Deste modo, 12 o aperfeiçoamento e desenvolvimentode técnicas de extração, sequenciamento de genes, alinhamentos de sequências e programas computacionais rápidos e eficientes são relevantes recursos para sistemática. Em virtude da disponibilidade de métodos moleculares houve um aumento significativo de filogenias baseadas em sequências genéticas. Tal fato tem gerado grande dinamismo e instabilidade na taxonomia e classificação botânica de famílias, ordens e hierarquias superiores (ver APG I, 1998; APG II, 2003; APG III, 2009; APG IV, 2016). Porém, ao mesmo tempo, diversos estudos corroboram as relações entre alguns táxons anteriormente sugeridos por estudos de morfologia comparativa. Portanto, estamos progressivamente mais próximos de um sistema de classificação filogenético consistente que seja capaz de retratar os diversos grupos de plantas. Embora as unidades operacionais (OTUs) das filogenias sejam representadas por táxons de um determinado nível taxonômico (ordem, famílias, gêneros, etc.), em última instância é preciso nomear as entidades biológicas que pertencem a uma categoria. Assim, ao longo do trabalho, é imprescindível que em algum momento sejam nomeadas as unidades básicas da biodiversidade, ou seja, as espécies. Por exemplo, uma filogenia onde reconhecemos relações entre táxons A, B, C, e D – tem pouco (ou nenhum) significado, se não soubermos nada sobre A, B, C e D. É essencial que possamos nomeá-los e caracterizá- los. Disso resulta que nomearmos e reconhecermos as espécies é essencial para qualquer tipo de trabalho, incluindo reconstrução de filogenias. Daí surge a importância fundamental das atividades taxonômicas básicas como trabalhos de campo, estudos florísticos, descrições de espécies e revisões taxonômicas. É importante salientar que o aprimoramento da sistemática filogenética depende de identificações corretas e a base científica estabelecida pelos passos iniciais da Sistemática e Taxonomia se mantém como extremamente importantes para que a classificação dos seres vivos mantenha esta eficiência. Com a disponibilização de diferentes ferramentas na biologia molecular, os trabalhos de base como floras, flórulas, estudos morfológicos e estruturais, descrições e monografias têm recebido menos atenção por grande parte dos sistematas, e filogenias inteiras baseadas em dados moleculares têm ganhado grande destaque e atraído mais as agências financiadoras de pesquisas (FAPESP, CAPES, CNPq). Análises completas e que melhor reflitam a realidade devem contar com um número grande de dados variáveis, que vão desde a identificação e descrições corretas dos organismos à disponibilidade de dados morfológicos, anatômicos, palinológicos, entre tantos outros. Autores como Quentin D. Wheeler tem chamado a atenção à importância da renovação da Sistemática Vegetal, apontando que a atualização desta ciência é extremamente necessária, bem como a utilização de dados de base combinadas aos dados e análises modernas. Assim, a nova geração de taxonomistas deve ser composta de cientistas de campo e laboratório capazes de integrar taxonomia clássica como eixo da sistemática e as diferentes ferramentas disponíveis. Dado a enorme bagagem necessária para desenvolver estudos desse porte, torna-se cada vez mais relevante o estabelecimento de parcerias entre pesquisadores de diferentes áreas. A importância fundamental de trabalhos taxonômicos Como exposto anteriormente, a busca por classificações mais robustas, requer que estudos taxonômicos clássicos e obtenção de filogenias sejam esforços cada vez mais interdependentes. Neste contexto, os trabalhos taxonômicos clássicos ganham importância cada vez maior também em outros âmbitos do conhecimento sobre a biodiversidade. A identificação de espécies e sua descrição geram informações iniciais essenciais sobre os organismos, que em interação com outros conhecimentos (evolutivos, biogeográficos, classificativos), geram informações sobre o status de conservação das espécies. Todas essas diversas informações permitem, por exemplo, elaborar e implementar planos de manejo mais adequados a cada ambiente. Assim, apesar da crescente e inegável importância dos métodos filogenéticos, computacionais e a multidisciplinaridade da sistemática atual, em última instância, é apenas depois de descrita que uma espécie nova fica disponível ao conhecimento do homem. Sendo assim, essa primeira etapa é crucial para que todo o restante possa ser desenvolvido. Novas espécies são ainda descritas regularmente e estudos indicam que o número de publicações contendo espécies novas aumentou desde meados da década de 1980. Além disso, sabe-se que muitas 13 espécies ainda se encontram em herbários e/ou na natureza desconhecidas do homem. Ainda não se sabe ao certo quantas espécies de plantas existem no planeta (há diversas hipóteses, com números bastante variáveis), mas estima-se que sejam ainda desconhecidos ca. 10- 20 por cento da flora. Esse cenário, associado ao contexto atual de grandes/rápidas mudanças globais, ressalta ainda mais a importância de trabalhos taxonômicos como descrições e inventários florísticos. Tipos de trabalhos taxonômicos Existem diferentes tipos de trabalhos taxonômicos. Em muitos casos, publicações como descrições de espécies podem ser realizadas sozinhas ou estar atreladas a trabalhos taxonômicos maiores, como inventários florísticos e outros. Dentre esses trabalhos taxonômicos mais abrangentes, ressaltamos: monografias, floras, guias de campo (field-guides) e listas de espécies (checklists). As floras são trabalhos que descrevem as espécies de um grupo taxonômico de uma região específica, com chaves de identificação, ilustrações científicas das espécies e/ou características diagnósticas (eg. Leguminosae – Flora do Brasil). Nesse tipo de trabalho, as descrições e discussões costumam ser mais restritas, relativas às populações do local estudado. Já as listas de espécies são trabalhos mais simples, pois apenas apresentam uma listagem das espécies identificadas sem sua descrição. Em geral são listas de plantas vasculares, comuns em artigos e em relatórios ambientais. Atualmente as floras e outros trabalhos taxonômicos são mais relevantes do que o foram no passado. Isso ocorre principalmente porque a legislação referente à conservação ocorre em escala nacional e as floras são a base para a compreensão da diversidade de uma dada área. Monografias são parecidas com as floras, pois também descrevem espécies, mas são feitos de forma mais completa, incluindo o máximo de informação disponível, como por exemplo, sobre a biologia, ecologia e distribuição geral do grupo em questão. Além disso, as monografias diferem também por apresentarem resultados mais abrangentes relacionados à pesquisa do autor, como novidades taxonômicas (novidades nomenclaturais, espécies novas, etc.). São em geral, trabalhos bastante volumosos e que demandam bastante tempo e esforço para serem completados. Uma sinopse é um trabalho taxonômico mais conciso, onde são apresentas de forma resumida conhecimentos sobre os grupos em questão (morfologia, ecologia, classificação). São trabalhos focados na identificação de espécies e geralmente incluem uma chave de identificação e ilustrações. Apesar de cada trabalho taxonômico ter um foco diferente, todos utilizam uma mesma ferramenta fundamental: o conceito de espécie. Discussões acerca de o que é espécie sempre gerou grande interesse e muitas discussões, sendo incontáveis as publicações a esse respeito. As diferentes visões sobre o que é uma espécie sempre lidaram, em algum cien, com as diferenças e semelhanças entre os organismos dependendo do que é convencional, seja por meio social ou definido por estudiosos/especialistas de um grupo. Dentre os inúmeros conceitos de espécie já publicados (Rieseberg & Brouillet 1994, De Queiroz 2007), os três mais comumente empregados em trabalhos taxonômicos são os conceitosbiológico, filogenético e taxonômico. Os dois primeiros conceitos são mais utilizados quando os grupos taxonômicos estudados possuem vários outros trabalhos que auxiliam na sua melhor classificação. Já o conceito taxonômico de espécie, que é baseado no menor conjunto de características persistentes que as tornam distinguíveis entre outras, é geralmente utilizado em grupos com poucos estudos, onde as descrições são bem sucintas e/ou carecem de alguma informação. Entretanto, apesar dessa importância inegável, ainda são poucos os trabalhos taxonômicos que explicitam o conceito de espécie adotado e essa falta pode gerar mais divergências e dificuldade de compreensão do que são táxons, dado o caráter subjetivo que esse tema possui. Outro problema frequente em trabalhos de taxonomia é a falta de detalhamento e/ou padronização nas descrições. Nesse aspecto, os trabalhos atuais têm seguido padrões para descrições de espécies, seguindo dicionários botânicos e artigos de caracterização estrutural. Alguns dicionários botânicos exibem terminologias para todas as estruturas tanto vegetativas quanto florais utilizados de forma ampla nos diferentes grupos vegetais. Mas, há também outros trabalhos similares, porém mais 14 específicos, que apresentam certas estruturas e/ou complexibilidades não observadas em obras mais abrangentes. Atreladas às descrições, as ilustrações das espécies são de grande importância, pois representam visualmente todos os termos utilizados, evitando dúvidas. Portanto, trabalhos taxonômicos são tarefas complexas e dependem essencialmente de um grande esforço de levantamento de dados e envolvem diversas etapas que devem ser executadas sempre com rigor na padronização, precisão e detalhamento (p.e.: descrições, ilustrações), além da escolha e explicitação de um conceito de espécie que reflita todo o conhecimento obtido proporcionando uma melhor compreensão do trabalho. Taxonomia na atualidade A taxonomia é uma ciência que remonta à Antiguidade humana, mas foi operacionalizada e formalizada no século XVIII, com a publicação do Systema Naturae pelo botânico sueco Carolus Linnaeus. Considerado o pai da taxonomia, o sistema proposto por Linnaeus é empregado até os dias de hoje. O principal aspecto que caracteriza o trabalho dos taxonomistas é o de lidar com o total ou parcialmente desconhecido. Além disso, a motivação primária é de que os organismos só existem, sob uma visão antropocêntrica, se forem devidamente descritos. Assim, a taxonomia é primordial na maioria, senão todas, as áreas das Ciências Biológicas, pois delimita as unidades básicas de estudo (i.e. espécies) de qualquer trabalho que envolva seres vivos. Os dados gerados em trabalhos taxonômicos têm diversas aplicações e alguns exemplos incluem: (i) embasar estratégias conservacionistas, que têm como foco principal as espécies (p.ex. a lista vermelha de espécies ameaçadas, da IUCN e o Livro Vermelho da Flora do Brasil); (ii) monitorar espécies invasoras; (iii) gerar informações que permitem o uso humano direto da biodiversidade, entre outras. No entanto, ao longo do tempo, principalmente a partir da década de 80, taxonomia foi sendo pouco a pouco desvalorizada sob a justificativa de que essa se dedica “somente” à descrição de espécies. Este cenário é decorrente de diversos fatores, sendo os principais: a valorização de pesquisas experimentais, e consequentemente menos incentivo à ciência descritiva, o argumento de que não há testes de hipóteses em taxonomia e também ao status associado a novas metodologias, consideradas mais modernas. A taxonomia é, em sua essência, uma ciência descritiva que busca caracterizar a diversidade biológica em seus mais diversos níveis de organização, nem por isso pode ser menosprezada diante de outras áreas do conhecimento humano. Além disso, cada espécie constitui uma hipótese evolutiva inequívoca, estabelecida pelos taxonomistas a partir da análise criteriosa dos atributos do grupo de estudo. Desta forma, os argumentos que embasam algumas justificativas de menor valorização da taxonomia não se sustentam e basicamente demonstram o desconhecimento das bases desta Ciência. Atualmente, o conhecimento taxonômico constitui umas das metas mais urgentes, pois vivemos em meio a uma „crise de biodiversidade‟ na qual a velocidade de extinção supera a taxa de descrição de novas espécies. As consequências deste cenário de pouca valorização dos estudos taxonômicos são diversas, como a diminuição do número de taxonomistas treinados, seja pelo menor financiamento de pesquisas bem como pela supressão de posições, em institutos de pesquisa, para estes profissionais. Apesar disso, com a inclusão da questão da crise de biodiversidade na agenda da Convenção sobre Diversidade Biológica, realizada no Rio de Janeiro em 1992, foi estabelecido como metas: (i) completar o inventário sobre a diversidade biológica; (ii) elucidar as relações evolutivas entre as espécies; e, (iii) disponibilizar informações via Internet. A partir disso, diversas ações têm sido tomadas, dentre as quais estão a informatização de dados armazenados em coleções ao redor do mundo e, assim, a criação de iniciativas internacionais para armazenar e compartilhar dados da biodiversidade como, por exemplo, o GBIF (Global Biodiversity Information Facility) e, no Brasil, o CRIA (Centro de Referência em Informação Ambiental), e especificamente para espécimes de plantas: o Herbário Virtual Reflora. As iniciativas de infraestrutura informatizada (do inglês, cyberinfrastructure) são consideradas promissoras e comumente elencadas como parte das medidas para que o conhecimento taxonômico seja difundido. Assim, essas medidas permitiriam a difusão do conhecimento taxonômico acumulado, e também 15 sensibilização do público e dos tomadores de decisões políticas sobre a importância da biodiversidade e das ciências que se encarregam de estudá-las Além disso, cada vez mais é reforçada a necessidade de uma taxonomia integrativa, baseada em evidências de múltiplas fontes que aumentará a robustez das delimitações de espécies. E é por meio destas abordagens que se busca pelo chamado renascimento da taxonomia. O Renascimento da Taxonomia no século XXI Como dito anteriormente, a taxonomia vem sendo considerada uma ciência datada, ultrapassada, “retrô” e limitada. Entretanto, a mesma vem sofrendo grandes mudanças e acompanhando os avanços tecnológicos mais recentes. Como resultado do aumento na taxa da extinção de espécies devido à ação antrópica, foi criada a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), uma estratégia global visando a conservação e o conhecimento da biodiversidade mundial. Como parte da criação da CDB, foram originadas estratégias específicas para grandes grupos biológicos e metas gerais e específicas a serem cumpridas pelos países membros. A Meta 1 da Estratégia Global para a Conservação de Plantas (GSPC- CDB) consistia na elaboração de listas de espécies (checklists) confiáveis, preferencialmente on-line, de todas espécies conhecidas de plantas. O objetivo final desta meta é a elaboração de uma Flora do Mundo, on-line e multilíngue. No final de 2010, a primeira meta foi cumprida em nível mundial com o lançamento do “The Plant List”, graças a colaboração entre o Missouri Botanical Garden e o Royal Botanic Gardens, Kew, U.K. Em setembro de 2013, com a colaboração de outras instituições ao redor do mundo, foi lançada uma versão atualizada do site, visando sintetizar todo o conhecimento taxonômico sobre plantas vasculares e briófitas (não abordando algas e fungos). O The Plant List apresenta uma lista com grande parte dos nomes científicos conhecidos, juntamente com links para os sinônimos para os quais cada espécie já foi conhecida. Uma outra iniciativa bastante importante foi o eMonocot, lançado também em 2010. O projeto foi coordenado pelo Royal Botanic Gardens,Kew, e teve como objetivo inventariar as monocotiledôneas. O eMonocot foi um dos primeiros sites a apresentar chaves interativas para a identificação de táxons, imagens de campo, dados sobre forma de vida, descrições, status de conversação, etc. Assim como foi a Lista do Brasil, e continua sendo a Flora do Brasil On-line 2020, o eMonocot é constantemente atualizado. E ele hoje é uma ferramenta essencial para o trabalho de especialistas em monocotiledôneas ao redor do mundo. Em âmbito nacional, o Brasil tem cumprido com louvor as metas propostas pela GSPC-CDB. Também em 2010, nós lançamos a primeira versão da Lista de Espécies da Flora do Brasil, um projeto coordenado pelo Intituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), com a coloboração de mais de 300 taxonomistas brasileiros e estrangeiros. Assim como o The Plant List, a Lista do Brasil se propunha a proporcionar uma lista de espécies vegetais aceitas e seus referentes sinônimos. Mas diferente do primeiro, a Lista do Brasil abrangia, além das plantas vasculares e briófitas, algas e fungos e apresentava a distribuição geográfica desses táxons. A cada ano, uma nova versão da Lista do Brasil era lançada, somando novidades como: detalhes sobre forma de vida, substrato, fotos de exsicatas e fotos de campo. Na última versão da Lista do Brasil, lançada em 2015, o sistema contava com a colaboração de cerca de 500 taxonomistas e apresentava um total de 46078 espécies aceitas para o território brasileiro. De forma bastante orgânica foi possível acompanhar a evolução de um checklist em uma flórula. No começo desse ano foi lançado o novo sistema da segunda etapa do projeto, a Flora do Brasil On-line 2020 (FBO 2020). No novo sistema, os taxonomistas são capazes de apresentar descrições, chaves de identificação, comentários e todos os outros requisitos para uma verdadeira flora. Tudo apresentado de forma trilíngue (Português, Inglês e Espanhol) e bastante dinâmica. O sistema já se encontra on-line e à medida que as monografias são concluídas, elas se tornam disponíveis ao público. Outra ferramenta clássica da taxonomia que se adaptou às últimas tecnologias, foi a chave de identificação. Como já comentado acima, algumas páginas da internet têm disponibilizado essas ferramentas para auxiliar na identificação de vários níveis taxonômicos. Existem algumas iniciativas bastantes importantes na botânica mundial, em relação a chaves virtuais. Uma das primeiras chaves virtuais foi disponibilizada na página Neotropikey. O site coordenado e compilado pelo Royal Botanic 16 Gardens, Kew, contou com a colaboração de especialistas do mundo todo, especialmente de brasileiros. O Neotropkey apresenta uma chave interativa para as famílias de Angiospermas da Região Neotropical e uma página individual para cada uma das famílias. Cada página faz uma breve sinopse sobre o grupo, listando os gêneros registrados para a Região Neotropical e como diferenciá-los. Outro excelente exemplo desse tipo é o CATE-Araceae, que primeiramente apresentou uma chave de identificação para todos os gêneros de Araceae (Monocot; Alistamatales), além de listagem de espécies, seus sinônimos e dados de distribuição. O site, gerenciado pelo Dr. Thomas Croat, é constantemente atualizado com fotos e todo tipo de dados sobre espécies da família. E agora com o grande acervo digital, especialmente de fotos, começou a produzir chaves de identificação ilustradas para todos os gêneros de Araceae. Páginas voltadas para grupos específicos têm se tornado cada vez mais comuns, com sites para Araceae, Caricaceae, Lecythidaceae, Malpighiaceae, etc. Além das páginas voltadas para grupos específicos, checklists, floras e chaves virtuais, praticamente tudo relacionado a taxonomia pode ser encontrado on-line hoje em dia. Índices e bibliotecas inteiros estão hoje disponíveis na internet e são constantemente atualizados. Exemplos marcantes de sites que se tornaram ferramentas diárias do taxonomista moderno são: o Tropicos.org, que apresenta informações sobre nomes aceitos, sinônimos, imagens, dados de distribuição, tipificação, obras originais, entre muitas outras; o Index Herbariorum, gerenciado pela Barbara Thiers, que reúne todos os herbários registrados ao redor do mundo, seu curadores, contatos e inúmeras informações sobre as coleções; o Biodiversity Heritage Library (BHL) e o Botanicus.org, que são duas bibliotecas on-line que reúnem inúmeras obras e publicações, antigas e modernas. É cada vez mais comum os herbários terem suas coleções inteiras digitalizadas e fotografadas, auxiliando enormemente o trabalho dos taxonomistas. Páginas como o JABOT e o speciesLink se tornaram essenciais para a realização de qualquer trabalho de fundo taxonômico hoje em dia. Além dessas obras, duas publicações essenciais em trabalhos nomenclaturais e revisões taxonômicas também se encontram digitalizados. Atualmente, é possível acessar toda a coleção da obra por Stafleu & Cowan, Taxonomic Literature, e inúmeras versões do Código Internacional de Nomenclatura de Algas, Fungos e Plantas. No caso do Código, o site é de fácil navegação, com links para partes importantes e a possibilidade de procurar por termos específicos ao longo de toda a obra. Parte desse enorme processo de informatização, além de bibliografias e publicações, a digitalização de coleções é talvez uma das mais marcantes novidades taxonômicas da modernidade. Inúmeros herbários mundo à fora tem hoje pelo menos parte de suas coleções fotografadas em alta qualidade e com dados de etiqueta transcritos. O JSTOR funciona como uma enorme base de dados de todo o tipo de material científico e artístico. Dentro desta vasta coleção encontramos periódicos científicos e materiais-tipo de espécies, depositados em vários herbários ao redor do mundo. A ideia do projeto do JSTOR Plants é tornar acessível para taxonomistas do mundo todo os materiais-tipo dos grupos que eles trabalham. Deste modo, o projeto facilita o trabalho dos taxonomistas e evita o manuseio excessivo desses materiais. Entretanto, a empreitada mais icônica de digitalização de coleções é nacional. O Projeto REFLORA, coordenado pelo JBRJ, tem como principal objetivo informatizar e digitalizar coleções de herbários brasileiros. Uma vez fotografados e informatizados, esses materiais são incluídos na base de dados do Herbário Virtual REFLORA (HV), podendo ser acessados por qualquer taxonomista. A segunda e mais ousada etapa do REFLORA é o processo de repatriamento de espécimes da flora brasileira. Essa etapa é feita com base em parcerias entre o Brasil e coleções situadas em diversos países, como os Estados Unidos, França, Inglaterra etc. Nestas coleções todos os espécimes coletados em território brasileiro são fotografados e posteriormente tem os seus dados de etiqueta capturados por uma segunda equipe, situada no JBRJ. Assim, como os espécimes dos herbários brasileiros, os espécimes de herbários internacionais passam a integrar o Herbário Virtual, assim como o herbário digital de sua instituição original. Além de ser essencial para taxonomistas brasileiros em geral, essa etapa do REFLORA possibilita alunos de doutorado e pós-doutorado a viajarem para o exterior e desenvolverem seus projetos de tese. Os bolsistas selecionados trabalham meio expediente como membros do projeto e a outra metade do expediente é livre para o desenvolvimento de seus projetos. 17 Com todas essas ferramentas e facilidades da taxonomia moderna é possível fazer grande parte de um trabalho taxonômico sem nem precisar sair do seu computador. Essas ferramentas complementam e facilitam grandemente o trabalho dos taxonomistas, permitindo uma maior agilidade científica e um considerável aumento na acessibilidade à essas publicações e todo tipo de conhecimento científico. Fora isso, elas facilitam a realização de trabalhos de base, essenciais para odesenvolvimento de todos os trabalhos de ponta. O Quadro 1 representa um compilado dos endereços que mencionamos neste capítulo. Como muito bem expressado em inúmeros trabalhos sobre a valorização da taxonomia, floras e coleções científicas, sem esses trabalhos e sem os taxonomistas, não é possível conhecer, preservar, nem explorar o infinito potencial da nossa biodiversidade. A taxonomia é essencial para a construção do conhecimento científico, emergindo hoje em novos formatos e abordagens. A taxonomia hoje não é e não deve ser considerada uma ciência estática, mas sim uma área extremamente dinâmica, que sempre acompanha as inovações de nossa era. Quadro 1. Lista de endereços da Internet mencionados no texto. Projeto Endereço Atlas Digital de Sistemática de Criptógamas http://www.criptogamas.ib.ufu.br/node/5 BHL http://www.biodiversitylibrary.org/Default.aspx Botanicus http://botanicus.org/ CATE Araceae http://araceae.e-monocot.org/ CRIA http://blog.cria.org.br/2013/11/ cience.html e-Monograph of the Caricaceae http://herbaria.plants.ox.ac.uk/bol/caricaceae eMonocot http://e-monocot.org/ Flora do Brasil 2020 http://floradobrasil.jbrj.gov.br/reflora/listaBrasil/PrincipalUC/Princip alUC.do Handwritings from the Linnean Herbarium http://linnaeus.nrm.se/botany/fbo/hand/schreber.html.en Herbário Virtual REFLORA http://floradobrasil.jbrj.gov.br/reflora/herbarioVirtual/ConsultaPublic oHVUC/ConsultaPublicoHVUC.do Index Herbariorum http://sweetgum.nybg.org/ cience/ih/ Index Nominum Genericorum http://botany.si.edu/ing/ Index of All The World‟s Plant Species Together http://www.iplants.org IUCN Red List http://www.iucnredlist.org/ JABOT http://www.jbrj.gov.br/jabot JSTOR Plants https://plants.jstor.org/ Lecythidaceae Pages http://sweetgum.nybg.org/lp/ Livro Vermelho http://cncflora.jbrj.gov.br/arquivos/arquivos/pdfs/LivroVermelho.pdf Malpighiaceae http://www.lsa.umich.edu/herb/malpigh/ Neotropikey http://www.kew.org/ cience/tropamerica/neotropikey.htm Phyto Images http://phytoimages.siu.edu/index.html Plant Systematics http://www.plantsystematics.org SBB. Catálogo da rede brasileira de herbários. Sociedade Botânica do Brasil. http://www.botanica.org.br/rede_herbarios. Smithsonian plant image collection http://botany.si.edu/plantimages/ The Plant List http://www.theplantlist.org/ Tropical Plant Guides http://fm2.fieldmuseum.org/plantguides/ http://ibot.sav.sk/icbn/main.htm http://www.criptogamas.ib.ufu.br/node/5 http://www.biodiversitylibrary.org/Default.aspx http://botanicus/ http://araceae/ http://blog/ http://herbaria.plants.ox.ac.uk/bol/caricaceae http://e/ http://floradobrasil.jbrj.gov.br/reflora/listaBrasil/PrincipalUC/PrincipalUC.do http://floradobrasil.jbrj.gov.br/reflora/listaBrasil/PrincipalUC/PrincipalUC.do http://linnaeus/ http://floradobrasil.jbrj.gov.br/reflora/herbarioVirtual/ConsultaPublicoHVUC/ConsultaPublicoHVUC.do http://floradobrasil.jbrj.gov.br/reflora/herbarioVirtual/ConsultaPublicoHVUC/ConsultaPublicoHVUC.do http://sweetgum/ http://botany/ http://www.iplants.org/ http://www/ http://www.jbrj.gov.br/jabot https://plants/ http://sweetgum/ http://cncflora/ http://www/ http://www/ http://phytoimages/ http://www.plantsystematics.org/ http://www/ http://botany/ http://www/ http://fm/ http://ibot.sav.sk/icbn/main.htm 18 Tropicos http://www.tropicos.org Useful Plants of the Tropics http://www.plantasutilesdeltropico.com/?lang=en Virtual Classroom Biology http://www.vcbio.science.ru.nl/em/virtuallessons/landscape/raunkiaer / World Checklist of Selected Plant Families http://apps.kew.org/wcsp/prepareChecklist.do;jsessionid=22362E5D FBDE5CF19F16819509F1B678?checklist=selected_families%40%4 0064040320081717825 Referências Dicionários amplos Font Quer P. 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A diversidade de formas vivas e suas semelhanças e diferenças eram assuntos abordados por filósofos como Aristóteles e Platão e, posteriormente, pelos naturalistas, como eram chamados os estudiosos das ciências naturais. Atualmente, denominamos sistemática a área da ciência responsável por estudar a diversidade de organismos existentes em nosso planeta e organizá-los por meio da classificação destes em um sistema de referência. Como é inerente à Ciência, a Sistemática é bastante dinâmica, e ao longo de sua história, diversas escolas de classificação com inúmeros critérios foram propostas e empregadas por diferentes estudiosos. Foi, no entanto, nas décadas de 1950-1960 que modificações substanciais ocorreram representando um marco profundo na forma como o homem compreende e classifica os seres vivos. Essas mudanças foram propostas e sintetizadas pelo entomólogo alemão Willi Hennig em uma nova escola chamada de Sistemática Filogenética, na qual foi incorporada a premissa máxima da biologia evolutiva proposta por Charles Darwin, de que os organismos compartilham ancestrais comuns entre eles. Hennig propôs que os sistemas de classificação dos seres vivos refletissem seu grau de parentesco, ou seja, sua história evolutiva, resultando assim em sistemas mais estáveis e preditivos. Além de sugerir que o grau de parentesco passasse a ser o único critério utilizado como base para as classificações, Hennig desenvolveu um método prático que permitiria fazermos inferências sobre essas relações, ou seja, reconstruirmos a história evolutiva dos organismos. A partir desse momento, a Sistemática incorpora os conceitos de evolução biológica e ancestralidade comum como elemento ordenador da diversidade e passa a contar com uma base metodológica mais clara, objetiva e definida. A Sistemática Filogenética foi gradualmente aceita e implementada pelos sistemas de modo universal e sua conexão com diversas áreas da Ciência ampliou-se. O progresso tecnológico, principalmente nos últimos 30 anos, permitiu que diversos avanços fossem agregados e os estudos filogenéticos tornaram-se corriqueiros, servindo de base para classificações mais robustas. 21 Figura 1. Esquema hipotético mostrando os diferentes níveis em que a evolução ocorre e o que uma filogenia realmente representa. A partir de um nível individual, quatro indivíduos de uma espécie A de angiospermas (a) podem ser relacionados diretamente com sua geração parental e com a geração parental dos parentais deles e assim por diante, por meio de características herdadas (b e c). É possível ainda estabelecer a relação genealógica entre esses indivíduos em nível populacional (d) e da relação entre essas diferentes populações dentro da espécie (e). Por fim, essas populações com todas suas características representam uma espécie, que é utilizada para o estabelecimento da história evolutiva em relação a outras espécies (B, C, D, E) por meio de uma filogenia (f). Figura adaptada de Baum (2008). 22 Atualmente, os estudos de filogenia, além de serem úteis ao trabalho tradicional da taxonomia, possibilitam também uma grande interação entre disciplinas diversas como zoologia, botânica, genética, morfologia, fisiologia, ecologia, dentre outras, resultando no aumento do conhecimento sobre as dinâmicas evolutivas e sobre a geração da biodiversidade do planeta. Conceitos básicos da sistemática filogenética Uma das grandes inovações propostas pela Sistemática Filogenética foi apresentar um método capaz de reconstruir hipóteses sobre a história evolutiva que ocorreu no passado. Para isso, é necessário, inicialmente, procurar evidências ou vestígios dessa história para posteriormente estimar a hipótese que melhor explica a história evolutiva das espécies. Assim, o método consiste essencialmente no levantamento de evidências de parentesco evolutivo entre os organismos. Da mesma forma com que parentes de uma mesma família possuem semelhanças (morfológicas, fisiológicas, etc.) que sugerem sua relação próxima, o método proposto por Hennig implica na busca de características compartilhadas entre os organismos estudados para inferirmos suas relações. A essas características compartilhadas por herança do ancestral, ou partes correspondentes nos organismos, denominamos de caráter e a suas variações possíveis de estados de caráter. Analogicamente, a história evolutiva de uma parcela de diversidade biológica qualquer pode ser vista como um quebra-cabeça e as evidências. No entanto, como a evolução ocorre por processos históricos, o quebra-cabeças que tem um número exato de peças (a filogenia de um grupo) só poderá ser “montado” com algumas dessas peças disponíveis (caráteres e seus estados). Por este motivo, o que é possível acessar é uma hipótese sobre a evolução da parcela da diversidade biológica estudada. Neste contexto, o que os cientistas conseguem fazer é reconstruir o padrão que melhor explicaria a história evolutiva de organismos, sendo que representam este padrão por meio de um diagrama dicotômico, a árvore filogenética. Já os processos que geraram o padrão acessado pelos cientistas são quase inacessíveis, pois são eventos genealógicos, ou seja, ocorrem em intervalos menores de tempo entre uma geração e outra. Desta forma, uma genealogia representa os processos de mudanças herdadas ao longo de diferentes gerações em uma linhagem (Figura 1a-e), enquanto uma filogenia representa o padrão possível de ser acessado dadas as evidências disponíveis (Figura 1f). Figura 2. Árvore filogenética evidenciando relações entre os táxons A, B e C. Traços representam os caráteres observados nos organismos para inferência das relações. Símbolos em vermelho e azul estados de caráter presentes no ancestral de AB. Símbolos em branco representam estados de caráter que ocorriam no ancestral ABC e que continuam presentes na linhagem C. Dessa forma, um filogeneticista busca nos organismos estudados evidências que possibilitem criar hipóteses sobre suas relações evolutivas. Por exemplo, na Figura 2, observa-se na árvore filogenética que dois táxons (A e B) possuem características compartilhadas ausentes em C. Assim, é possível construir a hipótese de que esses dois táxons (A e B) sejam mais aparentados entre si do que qualquer um dos dois em relação a C. Com isso, é possível também deduzir que os caráteres compartilhados exclusivamente por A e B são um indício de que eles estavam presentes no ancestral de AB (Figura2). No exemplo apresentado, os caráteres observados nos três táxons são "círculo" e "retângulo". Os estados 23 de caráter são, respectivamente, círculo branco, círculo azul e retângulo branco, retângulo vermelho. Os componentes e a leitura apropriada de uma árvore filogenética serão apresentados na próxima seção, “Anatomia da árvore filogenética” (pág. 23). Na prática, são considerados caráteres potencialmente informativos para estudos filogenéticos, quaisquer características herdáveis e que apresentem variação no grupo estudado. Considerando que os seres vivos apresentam um fenótipo que é resultado da expressão da informação contida no DNA, e que esses são transferidos hereditariamente, todos os diversos aspectos de um organismo podem ser empregados nas análises. Desse modo, podem ser utilizados caráteres das mais diversas naturezas e escalas como os macromoleculares (DNA, RNA), citogenéticos, fisiológicos, morfológicos, comportamentais, entre outros. O aspecto essencial é que esses caráteres compartilhados pelos organismos em estudo indiquem que alguns deles tiveram uma história em comum e exclusiva. Não são válidos, portanto, caráteres que sofrem modificação a partir da interação com o ambiente e que não sejam transmitidos hereditariamente. Importante ressaltar que essas semelhanças não são a priori evidências comprovadas de origem comum, mas sim são uma hipótese de que esses caráteres tiveram origem no mesmo ancestral e que os organismos compartilham uma mesma história evolutiva. Essa hipótese deverá, então, ser testada com a inferência de uma filogenia. Ou seja, a árvore filogenética é o teste das hipóteses criadas inicialmente com os caráteres utilizados. Aqueles caráteres que foram verificados como tendo origem única do ancestral de um grupo é denominado de homologia (veja detalhes deste conceito na seção “Os blocos de construção de uma árvore filogenética: homologia, caráteres e relações hierárquicas” (pág. 25). Os diferentes tipos de dados utilizados na inferência de uma filogenia são em potencial igualmente úteis. Não há diferenças qualitativas, ou seja, caráteres melhores ou piores do que outros. Mas, diferentes fontes de dados possuem características diversas, sofrem pressões seletivas diferentes e, por isso, devem ser analisados sob diferentes perspectivas e abordados considerando-se suas particularidades. Com isso, independente da natureza da fonte de dados, é essencial que os caráteres sejam estudados cuidadosamente antes de serem empregados no levantamento de hipóteses de parentesco. Nesse contexto, caráteres moleculares, por exemplo, devido à sua universalidade, permitem a comparação entre organismos muito diversos, como um peixe e uma planta, o que seria difícil com base em sua morfologia. Isso favorece seu emprego em estudos de maior abrangência, isto é, com organismos mais heterogêneos. No entanto, a evolução dos caráteres moleculares não é tão simples quanto pode parecer em um primeiro momento e é necessário que a biologia dessas moléculas seja bem conhecida e considerada nas análises. Ao mesmo tempo, grande parte do conhecimento que temos, foi obtido a partir de estudos morfológicos e os espécimes precisam ser bem identificados para serem corretamente posicionados na árvore filogenética. Desta forma, estudos utilizando dados moleculares e morfológicos são igualmente essenciais, assim como o emprego de caráteres fitoquímicos, anatômicos, comportamentais, fisiológicos, por exemplo, podem fornecer evidências de parentesco. Anatomia da árvore filogenética Para uma leitura apropriada de uma árvore filogenética é necessário entender elementos fundamentais que a compõem. Nela, os representantes utilizados para o estudo de uma parcela da diversidade biológica são chamados de terminais (Figura 3a). Esses terminais são representados por diferentes táxons. Os terminais se conectam por nós, formando o que chamamos de clados. Os nós representam o ancestral comum hipotético mais recente compartilhado por entidades presentes nos clados. As conexões entre terminais e entre clados são chamadas de ramos (Figura 3a). Tendo em vista que o acúmulo de variação ocorre continuamente, os terminais também representam ramos, os quais chamamos de ramos terminais (Figura 3a). O nó mais externo de uma árvore filogenética que conecta todos os ramos desta é chamado de raiz (Figura 3a). Quando mostramos apenas o padrão da relação entre os terminais, temos um diagrama que chamamos de cladograma (Figura 3c). Essa relação entre os terminais também é conhecida como topologia. Contudo, os ramos podem ser informativos e terem diferentes tamanhos, representando uma proporção entre o tamanho do ramo e o número de mudanças 24 estados de caráter acumuladas por uma linhagem (ou a chance de mudança de estado no ramo). O diagrama que mostra a relação entre os terminais e comprimentos de ramos proporcionais a chance de alteração dos estados é conhecido como filograma (Figura 3d). Uma árvore filogenética também pode conter informação temporal. Neste caso, o comprimento dos ramos é proporcional ao tempo transcorrido. Quando a informação temporal é apresentada temos um cronograma (Figura 3e). Além de conter informações distintas em determinados casos, uma árvore filogenética pode ser apresentada de diferentes formas, como pode ser visto na Figura 3b. Para exemplificar a leitura de uma árvore filogenética, vamos utilizar a Figura 2. Nela podemos estabelecer que A e B são mais relacionados entre si do que com C, porque A e B compartilham um ancestral comum hipotético e exclusivo (x). Dizemos que A é grupo- irmão de B, e C é grupo-irmão de A + B, ou seja, compartilham um ancestral comum hipotético e exclusivo entre si (y). Figura 3. Representação esquemática de elementos que constituem uma árvore filogenética. (a) Árvore filogenética dos grandes grupos de Angiospermas com cada elemento de uma árvore filogenética indicado. (b) As diferentes formas possíveis de se representar uma filogenia. (c) Esquema de um cladograma. (d) Esquema de um filograma. (e) Esquema de um cronograma. Figura de Frazão & Fonseca (2015). A sistemática filogenética procura estabelecer uma classificação que seja natural, ou seja, ela procura reconhecer grupos cujas semelhanças e diferenças sejam todas explicadas pelo mesmo tipo de causas e que representem grupos que, de fato, existem na natureza, além dos pressupostos dos pesquisadores. Como vimos anteriormente, a evolução explica, graças a premissa da ancestralidade comum entre organismos, as semelhanças e as diferenças entre eles. Assim, um grupo natural é reconhecido quando o grupo reconstruído é composto de todas as espécies descendentes de um ancestral. No contexto de uma árvore filogenética, um clado, ou todos os terminais conectados pelo mesmo nó, representam um grupo natural ou um grupo monofilético (Figura 4a). Descobrir esses grupos é um dos objetivos principais da sistemática filogenética. Por outro lado, dois agrupamentos artificias podem ser definidos: o grupo parafilético, o qual contém a espécie ancestral comum, mas não a totalidade dos descendentes (Figura 4b); e o grupo polifilético, o qual não contém o ancestral comum mais recente entre todos os indivíduos do grupo, mas sim vários ancestrais (Figura 4c). Com base no estabelecimento de relações entre terminais e entre clados, o objetivo da inferência filogenética é de apresentar hipóteses de relações hierárquicas e dicotômicas entre as entidades biológicas estudadas e reconhecer como grupos taxonômicos válidos são apenas aqueles monofiléticos, representados por clados na árvore filogenética. 25 Figura 4. Os três diferentes tipos de grupos possíveis em um cladograma: (a) monofilético, (b) parafilético e (c) polifilético. Os blocos de construção de uma árvore filogenética: homologia, caráteres e relaçõeshierárquicas Uma característica é tida como homóloga quando suas semelhanças e diferenças podem ser consideradas como um mesmo tipo de atributo biológico. O estabelecimento inicial de caráteres homólogos é dado quando suspeitamos que semelhanças ou similaridades entre eles podem ser causadas pela herança a partir de um ancestral comum entre as espécies que os apresentam, e a diferença entre eles como produto da transformação evolutiva do caráter a partir desse ancestral comum. Dizemos que um caráter é um atributo biológico variável que tem ao menos dois estados de caráter discretos e mutuamente exclusivos que distinguem os organismos que os apresentam. Um caráter é, então, uma representação de uma série de transformação evolutiva entre os seus estados. Em outras palavras, o caráter representa uma hipótese de homologia. Em termos mais gerais podemos dizer que a homologia se refere à similaridade entre atributos biológicos causada pela ancestralidade comum entre as espécies. As homologias representam, então, caráteres que tem uma origem única na história evolutiva das espécies. Como vimos anteriormente, descobrir quais caráteres originam-se e transformam-se paralelamente aos processos de diversificação das espécies podem nos ajudar a identificar relações filogenéticas e definir grupos (Figura 5). A ideia básica é que os caráteres, os quais são utilizados como evidência da inferência das relações filogenéticas, evoluem paralelamente à diversificação (=surgimento) das espécies. Por isso, é esperado que cada caráter deverá, em consequência, recuperar independentemente padrões hierárquicos da relação entre espécies irmãs. Portanto, uma árvore filogenética é um diagrama que melhor representa a possível filogenia de um grupo estudado. Quando consideramos uma série de transformação de um dado caráter, podemos verificar que alguns caráteres surgem primeiro do que outros, ou seja, são modificações de caráteres mais antigos. Deste modo, a similaridade entre as espécies surge de uma combinação de caráteres que teriam evoluído cedo na história e outros que têm evoluído tardiamente. Chamamos de apomorfias aos caráteres modificados ou “derivados” ou mais recentes na série de transformação; e de plesiomorfias aos caráteres ancestrais ou mais antigos na série de transformação. 26 Figura 5. Relação entre a evolução de caráteres e a diversificação das espécies. (a) Matriz de caráteres das espécies A, B e C com os seus respectivos estados. (b) Cladograma mostrando as relações entre as espécies e exibindo as mudanças entre estados do caráter que suportam as relações entre elas: α(1) é uma sinapomorfia do grupo A, B e C; β (1) e γ(1) são sinapomorfias o grupo B e C; δ é um caráter que é único da espécie B; ε é um caráter que entra em conflito com o padrão descrito pelos outros caráteres com respeito ao relacionamento entre as espécies. (c) Representação do que provavelmente teria acontecido na evolução dos caráteres nas espécies A, B e C. A construção de uma árvore filogenética é realizada a partir da identificação das apomorfias que distinguem clados. Chamamos de sinapomorfias aos caráteres “derivados” ou mais recentes (=apomorfia) que são compartilhados por todas as espécies ou táxons de um clado particular. As sinapomorfias definem os grupos monofiléticos. Em outras palavras, elas são caráteres com uma origem evolutiva única que são compartilhados pela espécie ancestral hipotética e todas as espécies descendentes. Já aos caráteres ancestrais ou mais antigos (=plesiomorfias) que são compartilhados por todas as espécies ou táxons, tanto do clado particular analisado quanto com os táxons fora dele são denominados simplesiomorfías. Em outras palavras, simplesiomorfias são sinapomorfias em um nível hierárquico maior o qual inclui o clado de interesse e que, não necessariamente, são apresentadas por todos os táxons pertencentes a ele. Quando as simplesiomorfias são utilizadas para criar grupos, é comum que sejam definidos tanto grupos parafiléticos como polifiléticos. Finalmente, podemos dizer que homologias cuja relação hierárquica estabelece as relações filogenéticas são aquelas que, como sinapomorfias, permitem descobrir e identificar os grupos monofiléticos. O resultado que a análise filogenética pretende obter é a congruência entre caráteres no contexto hierárquico da topologia de uma árvore filogenética. Um sinal filogenético é atribuído aos caráteres e sua hipótese de homologia confirmada quando há congruência destes com outros caráteres. 27 Nas análises filogenéticas, porém, é comum que exista conflito entre os caráteres, pois nem sempre eles são congruentes uns com os outros e, em alguns casos, seus estados surgem múltiplas vezes na árvore filogenética. Quando isso acontece o mesmo caráter aparece na análise como suportando diferentes clados não relacionados impedindo, desta forma, uma avaliação correta tanto das sinapomorfias como dos grupos monofiléticos. Quando um caráter não é congruente com os outros na filogenia e aparece, portanto, duplicado em diversos ramos da topologia este é tido como uma homoplasia. Tendo em vista essas precisões terminológicas, podemos dizer agora que o processo de inferência filogenética abrange dois passos metodologicamente diferentes. O primeiro passo consiste na procura das evidências a partir de características biológicas, estabelecendo uma lógica sobre a possível transformação evolutiva entre elas e codificar essa informação numa linguagem apropriada para a análise filogenética a fim se obter os dados a serem comparados. Esse passo é conhecido como Análise de Caráteres, e tem como objetivo a construção de uma matriz de caráteres onde a variação é codificada numericamente. O segundo passo consiste em unir essas lógicas inicias de homologia e testar se elas recuperam o padrão hierárquico de relações filogenéticas entre as espécies. Esse passo é conhecido como Inferência Filogenética e estima a topologia que representa as relações filogenéticas a partir da aplicação de diversos métodos à matriz de caráteres, os quais buscam distinguir o sinal filogenético das homoplasias. Homologia em dados morfológicos de plantas A análise de caráteres morfológicos consiste em responder à pergunta: no corpo das plantas o que observar, o que identificar, o que nomear, o que medir para propor hipóteses de homologia entre atributos e descobrir as relações filogenéticas entre as espécies? O problema indicado por essas perguntas é como podemos representar adequadamente a variação das características morfológicas em caráteres para resgatar o sinal filogenético que se encontra neles. Para responder essa pergunta é necessário enxergar como é o processo de produção e coleção dos dados morfológicos e como é feita a comparação entre esses atributos. Vamos supor que um botânico está trabalhando com um grupo de três espécies de plantas X, Y e Z (Figura 6). Num primeiro momento, o botânico enxerga o corpo dos espécimes das diferentes espécies separadamente e descreve a suas proporções, orientação, conexões topológicas (localização no ramo da planta), geometria, composição material, textura e consistência. Todas essas propriedades são estudadas aplicando uma série de tratamentos específicos aos espécimes que permitem obter essas informações. Por exemplo, se quisermos estudar a anatomia desses espécimes seria necessário seccionar a parte do corpo do espécime de interesse, aplicar corantes específicos e preparar lâminas para enxergar através do microscópio. As diferentes combinações dessas propriedades estruturais definem uma parte da planta à qual é atribuída um nome, permitindo que partes equivalentes possam ser reconhecidas em plantas diferentes. Esse nome faz parte dos vocabulários técnicos botânicos. Deste modo, a descrição verbal dessas partes, conjuntamente com as suas propriedades usando termostécnicos botânicos é conhecida como dado morfológico. Esse dado resume os limites estruturais, correlações e conexões com outras partes e formas repetidas no gradiente contínuo de variação morfológica da planta que é percebido visualmente pelo botânico. Suponha-se que nos espécimes das três espécies de plantas encontrarmos uma estrutura com as seguintes propriedades: (i) A posição dela é lateral ao eixo principal da planta; (ii) ela tem uma simetria dorsiventral; (iii) ela tem crescimento determinado; (iv) ela apresenta um meristema no ponto de conexão com o caule; (v) ela tem uma função fotossintética. Encontramos que essas propriedades definem o que é uma folha e cada uma delas constitui um dado morfológico. 28 Figura 6. Processo de análise de caráteres morfológicos desde a coleção dos espécimes até a codificação destes caráteres. Lembre-se que os caráteres morfológicos são dados de natureza verbal: a sua qualidade depende da rigorosidade e objetividade com que são feitas as descrições. O uso de vocabulários técnicos botânicos e o seu exame crítico são fundamentais para potencializar a produção de caráteres morfológicos com sinal filogenético. Por outro lado, o conceito de caráter em sistemática filogenética implica que ele é independente de outros caráteres e que os seus estados de caráter são mutuamente exclusivos. Entramos aqui no problema de avaliar quais características morfológicas são homólogas. Esse processo implica no uso do método comparativo com o qual avaliamos as semelhanças e as diferenças entre as diferentes partes do corpo da planta entre espécimes de espécies diferentes. Existe um conjunto de regras chamadas de critérios de homologia que permitem identificar quais estruturas são comparáveis e poderiam, portanto, ser homólogas: (1) o critério de topologia, o qual diz que caráteres homólogos geralmente conservam a mesma posição e conexão com outras partes no corpo das plantas; (2) o critério de qualidade especial, o qual diz que os caráteres homólogos exibem propriedades estruturais similares; e (3) o critério das formas transicionais, o qual assume que duas características que não são necessariamente similares em sua estrutura podem ser homólogas se, durante a ontogenia, os passos intermediários entre os primórdios no desenvolvimento e as estruturas adultas são similares. Suponha-se que efetivamente as folhas das espécies de plantas X, Y e Z todas sejam laterais ao caule da planta (critério topológico), dorsiventrais e fotossintéticas (critério de qualidade especial), o que permite um botânico assumir que são estruturas homólogas. Contudo, vemos que a complexidade é variável: a espécie X tem folhas com uma única lâmina, ou simples; a espécie Y tem folhas compostas, ou com várias divisões formando folíolos (pinada); e que a espécie Z tem folhas compostas, mas com a lâmina dos folíolos também divididas (duas vezes pinada). Ao examinar a complexidade estrutural das folhas, encontramos um grupo de propriedades que se mantêm constantes e outras propriedades variáveis. A aplicação dos critérios de homologia é conhecida como um teste de similaridade. Outro teste importante é a conjunção, o qual indica que para serem estruturas homólogas, os caráteres analisados não podem ocorrer juntos no mesmo organismo. No exemplo das folhas entre as plantas X, Y e Z, vemos que nenhuma delas apresenta ao mesmo tempo folhas simples e compostas. Se acontecer que tanto as folhas simples como compostas estivessem num mesmo espécime dessas plantas, então, teríamos que rejeitar a hipótese inicial de homologia. No entanto, embora as folhas passem no teste de similaridade e de 29 conjunção, ainda fica o último teste, o teste de congruência entre as homologias iniciais no contexto da árvore filogenética, o qual será tratado com mais detalhes posteriormente na seção “Os métodos de inferência filogenética” (pág. 32). Os caráteres (=hipóteses de homologia) são séries de transformação independentes e únicas evolutivamente cujos estados são modificações a partir de condições ancestrais da estrutura. Um caráter é, então, uma descrição que codifica a informação evolutiva das características morfológicas examinadas. Por exemplo, o caráter que representa a transformação das folhas das espécies X, Y e Z poderia ser codificado segundo sua complexidade da seguinte forma: 1. Folhas, complexidade: (0). Simples; (1). Compostas pinada; (2) Compostas duas vezes pinada. Essa apresentação do caráter tem uma estrutura lógica básica, onde a primeira parte indica estrutura analisada e a o atributo específico de interesse, enquanto a segunda parte indica os estados do caráter definindo, quais propriedades dessa estrutura variam e em quais condições. Na prática, o raciocínio é similar para todos os atributos morfológicos: descrevem-se as propriedades estruturais das partes do organismo; identificam-se partes comparáveis a partir da aplicação dos critérios de homologia para propor hipóteses de homologia; e codificam-se as informações num enunciado de caráter que logo será incluído na matriz de caráteres. A matriz de caráteres é composta por linhas que representam os táxons, colunas que representam os caráteres, e em cada célula se preenche o número que codifica o estado de caráter particular que apresenta o táxon específico (Figura 6). Entre os múltiplos tipos básicos de codificação, dois tipos básicos são os mais comuns. O primeiro chamado de transformacional ou convencional exibe múltiplos estados de caráter que se assumem como transformações evolutivas desde um atributo ancestral. Um exemplo dele é o caráter descrito acima sobre a variação das folhas. O outro tipo de caráter é chamado de variável nominal ou neomórfico o qual indica o surgimento ou perda de uma estrutura. Por isso é um caráter binário com os seus únicos estados sendo „ausente‟ ou „presente‟. Um exemplo desse tipo de caráter pode ser: 2. Eixo caulinar reprodutivo, carpelo: (0) Ausente; (1) Presente. Apesar da maioria dos caráteres morfológicos utilizados serem codificados de forma qualitativa, os caráteres também podem ser codificados de forma quantitativa. Neste caso, a variação contínua deve ser segmentada e codificada como variáveis discretas. Assim, um caráter do tipo quantitativo como o comprimento do pecíolo das folhas, por exemplo, poderia ser assim codificado: 3. Folhas, comprimento do pecíolo: (0) curto, entre 0-1cm; (1) mediano, entre 1,1-2cm; (2) comprido, entre 2,1-3cm. As séries de transformação representadas por esses diferentes tipos de caráteres devem ser ordenadas para que as apomorfias e as plesiomorfias possam ser identificadas. Para saber quais estados entre as folhas examinadas já estavam presentes no ancestral hipotético e quais mais recentes, é necessário realizar a polarização dos caráteres. Esse processo permite determinar qual é a direção das transformações ou mudanças entre os estados de caráter. As informações necessárias para descobrir essa ordem podem ser obtidas antes ou depois da análise filogenética. Para definir esta ordem antes da análise filogenética, podem ser utilizadas informações acerca do conhecimento sobre a biologia do desenvolvimento dos caráteres analisados, já que permite verificar quais estados surgem primeiro na ontogenia. Quando não há informação de desenvolvimento, a seleção de um grupo externo é necessária. O grupo externo pode ser fóssil, sendo que as informações nele contidas podem ser examinadas para investigar se, entre os táxons extintos, sabidamente ou supostamente aparentados com as espécies das plantas estudadas, um dos estados de caráter estava presente. Se sim, este é escolhido como o estado de caráter plesiomórfico. O grupo externo também pode ser composto por espécies que a princípio não façam parte do grupo estudado, mas que podem ser aparentadas com as espécies analisadas, sendo que o estadodo caráter presente nesse grupo externo será interpretado como plesiomórfico. Assim, assume-se como pressuposto que o estado de caráter presente nos primeiros estágios do desenvolvimento ou no fóssil é o estado plesiomórfico, ou ainda que o grupo externo é composto por organismos aparentados, porém, ausentes do grupo estudado. 30 Homologia em dados moleculares O uso de dados de sequências de DNA em análises filogenéticas está amplamente disseminado nos dias atuais. A popularização do uso de sequências nucleotídicas em inferência filogenética ocorreu na década de 1990, principalmente, pela facilidade da obtenção de sequências devido à técnica de PCR (Polimerase Chain Reaction) e pela quantidade de dados disponíveis para análise. Essa quantidade de dados é atualmente ainda maior com a crescente facilidade de acesso a dados de sequenciamento de segunda geração (também conhecidos como sequenciamentos de próxima geração ou Next Generation Sequencing). O número de caráteres a serem analisados é, em geral, muito maior para dados genéticos se comparado aos dados fenotípicos comumente utilizados (morfológicos, comportamentais, químicos, entre outros). Mesmo o eucarioto com o menor genoma conhecido, o microsporídio Encephalitozoon intestinalis, possui 150 Gpb de material genético, o que significa um número de potencias caráteres muitas vezes maior se comparado aos caráteres fenotípicos comumente utilizados. Figura 7. Tipos de mutação em sequências de DNA: substituições de bases nucleotídicas. A análise filogenética utilizando dados de DNA possui como fonte de evidência o genoma mitocondrial, cloroplastidial ou nuclear. As espécies (ou outros tipos de terminais, como por exemplo genes) são comparadas segundo diferenças no tipo de base nucleotídica, inserção ou deleção das mesmas em posições específicas nos três genomas. O acúmulo dessas diferenças é resultado da evolução molecular que cada linhagem de organismos está sujeita. Entre os mecanismos de evolução molecular mais importantes na geração de diferenças moleculares entre espécies (ou outros tipos de terminais) estão as mutações pontuais, ou substituições de bases (Figura 7). Essas substituições podem ocasionar danos na molécula de DNA ou erros de replicação desta molécula. Inserções ou deleções de bases na sequência também podem ocorrer e são coletivamente conhecidas como indels (Figura 7). Nesse caso, a mutação ocorre tanto por erros na inserção de bases nucleotídicas pela enzima DNA polimerase durante a replicação quanto são causadas por danos ao DNA por agentes externos. Outras importantes fontes de variação molecular são a recombinação cromossômica, a troca de éxons entre genes ou de genes completos e a migração dos elementos de transposição. Nestes casos, as mutações como substituições (Figura 7), inserções, deleções ou inversões (Figura 8) podem ser observadas. 31 Figura 8. Tipos de mutação em sequências de DNA: inserção, deleção e inversão. Figura 9. Alinhamento de sequências de seis espécies diferentes. As linhas representam as espécies, as colunas os caráteres e cada um dos nucleotídeos possíveis são os estados dos caráteres. As barras (–) representam a manutenção de espaços devido à ocorrência de indels. Essa variação gerada por mutações, entre outros processos moleculares, é o dado utilizado para a inferência filogenética. Para que isso seja possível, é preciso inicialmente estabelecer a homologia dos resíduos nucleotídicos nas sequências de DNA. Duas sequências serão homólogas se elas descenderem de uma sequência ancestral e, igualmente, seus resíduos serão homólogos se tais descenderem de um resíduo precursor dentro dessa mesma sequência homóloga. Durante o estudo comparativo de sequências de DNA, as homologias são representadas por alinhamentos múltiplos de sequências. Assim como nas matrizes morfológicas, as linhas em um alinhamento são os terminais e as colunas os caráteres, neste caso, os potenciais nucleotídeos homólogos (Figura 9). No caso de moléculas de DNA, os estados possíveis dos caráteres (=colunas) são os quatro nucleotídeos, Adenina, Guanina, Timina ou Citosina (Figura 9.). A árvore filogenética será, então, uma representação gráfica da informação contida nesse alinhamento. Sendo assim, a topologia e comprimento de ramos da árvore filogenética são totalmente dependentes do alinhamento utilizado na busca da árvore. A árvore filogenética obtida só terá significado e poderá ser utilizada em outras análises se o alinhamento representar com acurácia as homologias entre as bases. A composição das sequências é a única evidência de homologia utilizada em alinhamentos automatizados sendo, justamente, sua principal limitação. A evolução gera diversidade, assim como mantém a coesão e uniformidade. Dessa forma, como reconhecer a semelhança e definir os caráteres se a informação a ser recuperada está justamente na mudança das bases ao longo do tempo? 32 O principal critério para obtenção de alinhamentos de sequências de DNA é o de similaridade. A grande maioria dos algoritmos utiliza o critério de similaridade aliado a uma função de otimização para acessar a homologia das bases e propor os caráteres e seus estados. Algoritmos são importantes nas ciências em geral e, particularmente, para alinhamentos de sequências de DNA, já que transformam observações empíricas em dados objetivos e reproduzíveis. Em alinhamentos múltiplos, a maioria das implementações possuem algoritmos de dois passos: (1) no primeiro deles é feito a maximização da similaridade entre pares de sequências utilizando, em geral, programação dinâmica; e (2) no segundo é realizado um alinhamento progressivo guiado por uma árvore guia, sendo dessa forma um algoritmo heurístico, ou seja, apenas uma parte das soluções é observada na busca da resposta. O primeiro e principal algoritmo para maximizar a similaridade entre pares de sequências foi proposto por Needleman e Wunsch e leva seus nomes. O algoritmo calcula a distância mínima, ou seja, o número mínimo de transformações para que uma sequência se torne idêntica a outra. Durante a rotina de programação dois processos básicos são levados em consideração. A proposição de alterações de bases, representando mutações pontuais, e a inserção de gaps, representando os eventos de indel. O alinhamento de pares de sequências é feito com (1) a atribuição de pesos para abertura de gaps, (2) substituição e (3) a atualização de uma matriz a partir desses pesos, além (4) da proposição do alinhamento do par de sequências otimizando esses valores em uma matriz. O algoritmo de Needleman e Wunsch funciona bem para pares de sequências ou um pequeno número delas. Contudo, o problema de alinhamento de sequências se torna computacionalmente intratável quando envolve dezenas ou centenas de sequências. Uma solução exata e elegante para o problema é obtida com o conhecimento de uma hipótese filogenética para os táxons em análise, utilizando da estrutura desta como guia para inclusão dos pares de sequência. Não obstante, na maioria dos casos é justamente a obtenção da árvore filogenética o objetivo da análise. Nesses casos, é necessário o uso de algoritmos heurísticos, onde somente uma parcela das respostas é acessada. Para solucionar esse problema são empregadas árvores obtidas por métodos de distância, onde um alinhamento não é necessário para se obter a topologia. Nesses casos, a árvore de distância é utilizada como uma aproximação à filogenia e o uso de apenas uma ou um conjunto delas para se obter o alinhamento é o que caracteriza a busca heurística. Os métodos de inferência filogenética Os métodos de inferência filogenética são divididos em métodos baseados em distância e baseados em caráter. Métodos baseados em distância utilizam uma matriz construída a partir do número de diferenças entre pares de táxons e, geralmente,são análises realizadas com dados genéticos. Os baseados em caráter utilizam características diretas dos táxons e podem ser utilizados com qualquer tipo de dado sobre o grupo estudado. Há muitos algoritmos disponíveis para inferir filogenias e, por isso, não temos a pretensão de abordar aqui pormenores de cada método. Assim, apresentaremos os fundamentos básicos do funcionamento de cada método e das diferentes escolas atribuídas a estes. Métodos baseados em distância Análises de distância foram muito aplicadas na segunda metade do século XX com dados genéticos. Esses métodos foram utilizados pelos cientistas da chamada escola fenética e ainda são empregados em estudos de genômica. A ideia dessa escola era estabelecer o relacionamento de organismos com base apenas em similaridade. Quanto menor a distância genética entre os táxons, mais próximos eles seriam. Esta forma de pensar o relacionamento evolutivo entre os organismos é muito criticada, já que nem sempre organismos que apresentam pouca diferença entre si compartilham uma história evolutiva em comum. Desta forma, é possível que o estabelecimento de alguns grupos não represente uma hipótese provável da história evolutiva do grupo estudado. Por este motivo os métodos baseados em caráter são os mais aceitos para estudos evolutivos. Neighbor-Joining (agrupamento de vizinhos) e UPGMA (Unweighted Pair Group Method using Arithmetic average) são os métodos baseados em distância mais utilizados. 33 A distância genética é a divergência entre duas sequências derivadas de um ancestral em comum. Na lógica de um método baseado em distância, se as sequências evoluíram como um diagrama dicotômico e se conhecemos as distâncias entre as sequências, seria possível reconstruir a árvore filogenética. Para calcular distâncias genéticas é preciso ter um modelo de substituição de nucleotídeos que forneça uma descrição estatística das substituições de um nucleotídeo para outro. A partir desta probabilidade, calcula-se a distância genética esperada entre os táxons estudados. Métodos baseados em caráter Os métodos baseados em caráter possuem duas escolas, a parcimônia e a probabilística ou paramétrica. Na escola da parcimônia, a melhor hipótese filogenética será aquela que assumir um menor número de pressupostos, ou seja, um menor número de mudanças dos caráteres e seus estados melhor explicaria a história evolutiva de um grupo. Na parcimônia, as mudanças dos caráteres são chamadas de passos evolutivos. Quanto mais mudanças detectadas em uma hipótese filogenética, menos parcimoniosa é a hipótese filogenética e vice-versa. Já a probabilística leva em consideração a probabilidade de uma hipótese filogenética ser mais próxima da verdadeira uma vez que temos os dados e um modelo de substituição nucleotídica (=descrição estatística das mudanças de um nucleotídeo para outro) que explique esses dados. A probabilidade de uma hipótese filogenética pode ser inferida com base em máxima verossimilhança ou por inferência Bayesiana. Parcimônia (Figura 10) A busca da árvore mais parcimoniosa (com o menor número de passos) é feita entre árvores não enraizadas (sem direção de transformação dos caráteres). O número de árvores possíveis aumenta exponencialmente com o aumento do número de terminais. Por exemplo, para três terminais existem três árvores possíveis, para quatro terminais existem 15 e para 20 terminais existem 2.10 20 árvores possíveis. Dessa forma, existem dois grupos de métodos utilizados para a busca da melhor árvore (ou melhores árvores). Os métodos exatos buscam em todo o universo amostral de possibilidades de árvores a árvore que minimiza o critério de otimização (Figura 10a). Já os métodos heurísticos exploram apenas uma parcela do universo de árvores possíveis, não incluindo todas as possibilidades existentes para um conjunto de dados. Métodos heurísticos foram adotados como critério para busca de árvores filogenéticas porque o número de árvores possíveis, a medida que aumentamos a amostragem de táxons, aumenta muito o tempo computacional da análise de busca de árvores, o que torna o trabalho do sistemata quase impossível de ser realizado. Há diversas estratégias de busca de árvores disponíveis, as quais foram desenvolvidas para otimizar o processo e tornar a inferência filogenética mais confiável, como é o caso do algoritmo de Wagner, rearranjo dos ramos, Ratchet, dentre outros. Como mencionado anteriormente, a ordem para as transformações dos estados dos caráteres deve ser estabelecida para permitir que possamos distinguir estados apomórficos de estados plesiomórficos. Para isso, é necessária a seleção de um grupo externo. Como dito anteriormente, o grupo externo corresponde a um ou vários táxons relacionados ao grupo de interesse, contudo existem evidências indicando que não pertencem a tal grupo. A escolha é facilitada caso uma hipótese filogenética prévia já esteja disponível. Não é recomendável restringir as comparações de caráteres a um único táxon externo. Isso porque o grupo escolhido como externo pode apresentar estados apomórficos para os caráteres em análise, dessa forma enviesando as conclusões possíveis sobre a evolução do grupo estudado. Diferente da abordagem apresentada na seção de homologia morfológica, o ordenamento das transformações se dá no momento do enraizamento da árvore, o qual é efetuado no ramo do grupo selecionado como grupo externo (Figura 10b). O próximo passo na inferência por parcimônia é a etapa de otimização. É nesta etapa que os caráteres utilizados na análise são associados à árvore filogenética (Figura 10c). Neste passo, as hipóteses de homologia apresentadas na matriz de caráteres são testadas, ou seja, se o caráter utilizado para a análise é ou não de fato uma homologia. Se a hipótese for aceita, o caráter utilizado é uma homologia, a qual poderá ser uma novidade evolutiva (apomorfia) ou não (plesiomorfia). Caso seja um caráter que 34 apareceu mais de uma vez de forma independente nos diferentes táxons estudados, este não é considerado homólogo e sim uma homoplasia e, portanto, a hipótese de homologia inicial é rejeitada. Na Figura 10, os caráteres 1, 2 e 3 são homólogos e o caráteres 4 é uma homoplasia. Diferente dos outros métodos baseados em caráter, a parcimônia não utiliza modelos de substituição de nucleotídeos. Como já mencionado na seção de métodos de distância, os nucleotídeos podem mudar em diferentes taxas dependendo da região do genoma dos organismos. Então como a parcimônia lida com essa variação se os dados utilizados na matriz de caráteres forem informações genéticas? Neste caso, existe a possibilidade de atribuir custos para as mudanças dos nucleotídeos. Quanto mais custo for dado a uma mudança, um maior número de passos será necessário para que tal mudança ocorra e, portanto, menos parcimoniosa será esta possibilidade de mudança. Essa atribuição de custos deve ser muito criteriosa, já que pode trazer ruído para a análise e influenciar o algoritmo a encontrar uma árvore subótima. Existem índices que mensuram o quanto os caráteres utilizados para a inferência da filogenia representaram ou não homologias para o grupo estudado (Figura 10d). O índice de consistência (CI) mede o quanto das hipóteses de homologia criadas para a construção da matriz de caráteres representaram realmente uma homologia ou não. Já o índice de retenção (RI) mede a proporção de autapomorfias (estado presente em apenas um táxon) e homoplasias em relação ao número total de passos. Quanto maior for o valor do RI mais apomorfias compartilhadas (=sinapomorfias) não estão sujeitas a homoplasia, ou seja, de não ter aparecido mais de uma vez de forma independente no grupo de estudo. Já quando o RI tende a zero, existem muitas apomorfias não compartilhadas (autapomorfias) e homoplasias. Mas o que fazer quando mais de uma árvore mais parcimoniosaé obtida? Para sumariar essa informação, são empregados os métodos de consenso. A árvore de consenso estrito elimina qualquer clado que não tenha sido reconstruído em todas as hipóteses filogenéticas igualmente parcimoniosas. Porém, parte da informação presente nas árvores é perdida, como no caso dos clados não conflitantes entre si, mas não presentes em todas às árvores. A árvore de consenso de maioria inclui os grupos monofiléticos presentes na maioria das árvores obtidas na análise, haja ou não conflitos entre eles. As estimativas de suporte trazem uma mensuração da robustez de um clado e indicam o quanto os dados disponíveis sustentam a existência do clado, ou seja, esse tipo de análise demonstra o quanto os caráteres de uma matriz contam uma mesma história proporcionalmente. As estimativas de suporte mais usadas são baseadas na reamostragem dos caráteres, sendo o bootstrap (Figura 10e) o mais utilizado. O método de bootstrap é de reamostragem não paramétrica, ou seja, não dependem de parâmetros previamente definidos e atribuição de valores de probabilidades. O bootstrap reamostra os caráteres da matriz com reposição e constrói novas matrizes com o mesmo tamanho original. Na descrição original do método a existência de um clado seria estatisticamente significativa se o valor de suporte obtido seja superior ou igual a 95%, significando que de todas as reamostragens de caráteres, um determinado clado foi recuperado em 95% das réplicas. A interpretação dos valores de bootstrap é difícil devido a grande variação nos resultados e valores inferiores a 95% foram posteriormente propostos como aceita (p.e. 70%). Uma outra forma de se interpretar os resultados de bootstrap seria a de que o resultado obtido indicaria que os dados existentes não seriam capazes de contar uma história bem resolvida para o grupo estudado e que caráteres com mais variações informativas seriam necessárias para auxiliar na melhor compreensão da história evolutiva do grupo. 35 Figura 10. Esquema geral mostrando as etapas de uma inferência filogenética hipotética por parcimônia. Figura modificada de Frazão & Fonseca (2015). Máxima Verossimilhança (Figura 11) A ideia da máxima verossimilhança (Maximum likelihood - ML) está associada a um valor que maximiza a verossimilhança de algo acontecer ou ter acontecido. Assim, a aplicação da máxima verossimilhança na inferência filogenética implica na busca pela árvore que tem a maior probabilidade de ter originado os dados observados. O objetivo é avaliar, assumindo um modelo de substituição de nucleotídeos, a probabilidade condicionada (P) de ter uma árvore específica (T), sabendo que observamos os dados da matriz (D). A notação matemática da probabilidade é P(D|T), a qual lê-se “qual a probabilidade de uma árvore específica ter gerado os dados utilizados?”. Na análise filogenética pelo método de ML é realizado o cálculo do valor de verossimilhança de cada caráter da matriz em uma dada árvore (Figura 11). Os logaritmos das verossimilhanças de cada caráter da matriz são, então, multiplicados para se obter o valor de verossimilhança global da árvore analisada. Na estimativa de verossimilhança, os valores de base ancestrais são feitas levando em consideração os comprimentos dos ramos da árvore analisada. Dessa forma, não é apenas a topologia que é confrontada com os dados, mas também o comprimento dos ramos. A forma como o universo de árvores possíveis é explorado é similar ao realizado para a parcimônia, com alguns dos algoritmos de busca heurísticas. Como o comprimento dos ramos também é incluído no cálculo e as árvores precisam estar enraizadas para o cálculo da verossimilhança, o universo de árvores possíveis é maior e o cálculo de verossimilhança mais complexo, fazendo as buscas de árvores mais demoradas. Os algoritmos de ML calculam o valor que maximiza a probabilidade de uma árvore filogenética existir a medida que amostram as possibilidades de árvores. O algoritmo para de calcular as verossimilhanças quando ele não encontra mais nenhuma árvore que tenha a verossimilhança maior do que a uma árvore competente. Na Figura 11, box 2, há um exemplo de como funciona basicamente a seleção de árvores por verossimilhança. Uma árvore A é inferida e tem o valor de verossimilhança igual a 0,888. Uma segunda árvore possível é inferida com o valor de verossimilhança igual a 0,889. O algoritmo pergunta “Qual é a melhor árvore, A ou B?”, sendo B a melhor. O algoritmo calcula uma nova árvore C com o valor de verossimilhança igual a 0,750, faz a mesma pergunta ao final do cálculo e verifica que B permanece a melhor árvore e continua 36 comparando outra árvore com B. Com o cálculo da nova árvore D, o algoritmo verifica que B ainda permanece com a maior verossimilhança. Portanto, assume que B é a árvore com o valor de verossimilhança que maximiza a probabilidade dos dados da matriz utilizada ter sido gerada. Inferência Bayesiana (Figura 12) A ideia da estatística bayesiana é a de ser possível calcular a probabilidade de algo acontecer ou ter acontecido, sabendo alguma informação a priori. Por exemplo, imagine que um dia você acordou e viu que o gramado de sua casa estava molhado. Você pode criar inúmeras hipóteses acerca do que deve ter acontecido para que a grama esteja molhada, como ter chovido durante a noite ou que seu vizinho molhou a grama. No entanto, você tem uma informação a priori, notou que na noite anterior o céu estava nublado. Dada esta informação, qual seria a hipótese mais provável dentre as que você criou? A de que choveu, correto? Mesmo que essa não seja a hipótese correta, ela terá, em sua inferência mental, uma maior probabilidade de explicar o evento. É basicamente assim que a estatística Bayesiana funciona. Num contexto de inferência filogenética, enquanto a verossimilhança avalia uma árvore com base em quão provável é que a evolução teria produzido os dados observados, a inferência bayesiana avalia uma árvore com base em sua probabilidade posterior, P(T|D). A probabilidade posterior (P) representa a probabilidade de uma árvore específica (T) ser verdadeira, ou seja, de representar a história evolutiva de um grupo, dada uma matriz de caráteres (D). Além disso, são embutidas no cálculo informações tidas a priori sobre a evolução dos caráteres utilizados e a verossimilhança dos dados dependendo da árvore hipotética. O prior de uma árvore nos algoritmos tradicionalmente usados, como o MrBayes, por exemplo, é a probabilidade de uma árvore dependente do número de táxons na análise. Na Figura 12, por exemplo a probabilidade de uma árvore com quatro terminais com grupo externo fixado existir é 1/3 (=0,333). Este é o valor de probabilidade automático que o algoritmo embutirá na análise. Agora, se não há um grupo externo a probabilidade inicial ou prior para a árvore será 1/12 (=0,083). A probabilidade posterior em quase todos os casos é maior do que o prior. Isso acontece porque os dados utilizados para um determinado grupo de estudo sempre terão alguma informação com sinal filogenético, o que conferirá mais evidências que sustentem uma hipótese testada. O resultado da análise bayesiana é um conjunto de árvores (em geral centenas ou mesmo milhares) que foram amostradas durante a análise. Portanto, esse tipo de inferência é frequentista e não chega a apenas uma árvore final, como é o caso da ML. Uma árvore de consenso de maioria, entre outras opções, é construída para sintetizar os resultados da amostragem. A probabilidade posterior de cada clado é estimada e é utilizada para a sustentação, onde quanto maior é o valor, maior a probabilidade daquele clado existir, dados os dados e informações a priori. A interpretação estatística da probabilidade posterior na árvore final é muito complexa matematicamente. Apesar disso, esta é mais uma característica interessante da análise bayesiana, jáque sua árvore filogenética é uma árvore de consenso de maioria representando um conjunto de árvores possíveis, e não apenas uma única árvore como acontece com a inferência por ML. Desta forma, a análise bayesiana é um método de aproximação da resposta e incorpora incerteza à inferência, o que se assemelha mais com a forma com que a história evolutiva dos organismos é acessada por nós humanos. Uma vez que história evolutiva não pode ser conhecida, uma distribuição de probabilidade com possíveis cenários parece ser o método de inferência mais razoável. 37 Figura 11. Resumo ilustrando o funcionamento da Inferência por Máxima Verossimilhança. Com adaptações de Herron & Freeman (2014, p. 128). 38 Figura 12. Resumo ilustrando o funcionamento da Inferência Bayesiana. Referências Amorin, DS (2000). Fundamentos de sistemática filogenética. 3. ed. Holos Editora e Sociedade Brasileira de Entomologia. Assis LCS. 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Com base em sua coloração, as algas são tipicamente divididas em três grandes grupos: algas vermelhas, verdes e pardas (Tabela 1). Com base no tamanho do talo, as algas podem ser diferenciadas em dois grupos: micro e macroalgas. As macroalgas são macroscópicas, multicelulares e habitam ambientes aquáticos marinhos e continentais. As algas vermelhas (filo Rhodophyta) são abundantes em águas tropicais e quentes, porém algumas espécies também podem ser encontradas em regiões mais frias do mundo. Existem, aproximadamente, 6.000 espécies descritas, distribuídas em 680 gêneros. Dentre as características apresentadas pelas algas vermelhas, podemos citar: amido das florídeas como produto de reserva, presença dos polissacarídeos ágar ou carragenana na composição da parede celular, presença em grande quantidade do pigmento acessório ficoeritrina, que mascara a coloração da clorofila a e ausência de centríolos ou flagelos em qualquer fase deseu ciclo de vida. Exemplos destas algas e suas estruturas estão representadas nas figuras 17 a 24. As algas verdes (filo Chlorophyta) incluem cerca de 3.500 espécies, distribuídas em uma ampla variedade de habitats, aquáticos, terrestres e inclusive em associações simbióticas com fungos, formando líquens. As algas verdes também apresentam uma grande variação de formas e tamanhos, podendo ser unicelulares flageladas, coloniais, filamentosas e cenocíticas. Algas verdes também possuem íntima relação com briófitas e plantas vasculares, sendo os únicos grupos de organismos fotossintetizantes a possuírem clorofilas a e b e armazenarem amido no interior dos plastos. Outros pigmentos acessórios que estão presentes são luteína e beta-caroteno, não possuindo ficobilinas. As figuras 1 a 8 representam exemplos destas algas As algas pardas (filo Ochrophyta) incluem cerca de 1.500 espécies distribuídas em 250 gêneros, sendo predominantemente marinhos e abundantes em regiões mais frias do globo. Com base no tamanho, as algas pardas podem variar de formas microscópicas à formas macroscópicas de até 60 metros de comprimento, conhecidas como kelps. Grandes kelps podem formar verdadeiras florestas subaquáticas, abrigando diversas espécies de organismos marinhos de importância ecológica e econômica. De modo geral, o talo das kelps pode ser subdivido em uma lâmina fotossintetizante, um estipe altamente especializado e um apressorio de ancoramento. A parede celular das algas pardas possui três componentes: ácido algínico, celulose e polissacarídeos sulfatados. Além da clorofila a os cloroplastos dessas algas possuem clorofila c, beta-caroteno, violoxantina e grandes quantidades de fucoxantina, que mascara a coloração da clorofila a e confere as algas pardas sua coloração marrom típica. Exemplos destas algas e suas estruturas estão representadas nas figuras 9 a 16. 42 Tabela 1. Principais características dos três grandes grupos de algas, modificado de Graham & Graham (2009). Característica Rhodophyta Chlorophyta Ochrophyta Clorofilas a a, b a, c1, c2 Ficobilinas b-ficocianina b-ficoeritrina c-ficocianina c-aloficocianina c-ficoeritrina Carotenoides β-caroteno β-caroteno β-caroteno Zeaxantina Luteína Fucoxantina Antheraxantina Violaxantina Violaxantina Luteína Zeaxantina Zeaxantina Substância de Amido das florídeas Amido Laminarina reserva Manitol Parede celular Celulose Celulose Celulose Agar Ácido Algínico Carragenana Flagelos Ausentes Presentes em algumas fases; Presente em gametas e/ou esporos; Cloroplastos Número variável; Número variável; Número variável Ovais, discóides ou Discóides, reticulados, Estrelados, cilíndricos ou estrelados; estrelados, laminares, lenticulados. em forma de fita etc. O talo, o corpo vegetativo simples, das algas, variam em complexidade e forma, tais como: Aspecto de rede: talos cujos filamentos se desenvolvem formando estruturas semelhantes a redes. Ex.: Microdyction; Calcário: talos com presença de carbonato de cálcio. Ex.: Corallina e Halimeda; Cenocíticos: talo onde não há divisão de células, ou talo acelular, onde ocorre um aglomerado de núcleos e cloroplastos. Ex.: Codium e Caulerpa. Cilíndricos: talos de forma cilíndrica, com medula e córtex diferenciados. Ex.: Gracilaria e Gelidium; Crostosos: talos com aspecto de crosta, que recobre o substrato. Ex.: Hildenbrandia e Ralfsia; Filamentosos: talos compostos por uma única fileira de células. Ex.: Chaetomorpha e Feldmannia; 43 Filamentosos corticados: talos filamentosos que apresentam córtex diferenciado. Ex.: Ceramium e Centroceras. Foliáceos laminares: constituídos por algumas camadas de células, não há divisão em córtex e medula medula nem córtex. Ex.: Ulva e Porphyra; Foliáceos corticados: apresentam medula e córtex diferenciados. Ex.: Canistrocarpus e Padina; Globosos: talos de formato esférico. Ex.: Ventricaria e Valonia; As macroalgas habitam as zonas costeiras rochosas tanto em ambientes tropicais quanto temperados, e são os principais componentes das comunidades de meso e infralitoral de costões rochosos, manguezais, atóis, bancos arenosos, bancos de rodolitos, bancos de fanerógamas, recifes de coral, recifes de arenito, estuários e substratos artificiais. Na região do mesolitoral, as algas são expostas a diversos fatores que influenciam sua distribuição e sobrevivência, esses fatores, por sua vez, podem ser divididos em fatores abióticos e fatores bióticos. Fatores abióticos são fatores ausentes da presença de seres vivos, mas influenciados pelas propriedades físicas e químicas da biosfera (fatores ambientais). Para as algas marinhas, o fator abiótico mais importante é a variação da maré, bem como a irradiância, a temperatura, o hidrodinamismo e a dessecação. Dessecação: perda de líquidos devido à prolongada exposição ao ar durante a baixa maré; Hidrodinamismo: ação das ondas e o movimento da água; Irradiância: por serem fotossintetizantes, a ocorrência e distribuição das algas está diretamente relacionada com a distribuição de luz; Temperatura: influencia diretamente no metabolismo das algas, como a fotossíntese e a respiração. Fatores bióticos são fatores ocasionados pela presença de seres vivos ou suas relações. Entre as relações que existem entre os organismos que vivem ou visitam a região do mesolitoral, podemos citar a competição, a herbivoria e as interações simbióticas. Competição: resultado da escassez de algum recurso, como espaço para fixação e crescimento; Herbivoria: por serem organismos sésseis, as algas desenvolveram outras formas de evitar a predação, como viver em locais de maior estresse nas partes superiores de costões rochosos, por exemplo; Interações simbióticas: espécies podem apresentar relações ecológicas como o comensalismo, o mutualismo e o parasitismo. Assim como as plantas terrestres, as algas possuem grande importância ecológica por serem organismos fotossintetizantes. Além disso, são fontes de alimentos para diversos animais aquáticos, como crustáceos, peixes e tartarugas. Algumas algas ainda servem de hábitat para espécies de animais que utilizam a estrutura do talo, ou mesmo o próprio banco de algas, como locais de abrigo e reprodução. Algas também são largamente utilizadas em diversas atividades humanas. Em muitos países, principalmente no Oriente, as algas fazem parte da alimentação diária. São fontes de proteínas, vitaminas e sais minerais. Dentre as mais conhecidas, destaca-se o nori, utilizado pelos japoneses no preparo do sushi. Além disso, o ágar, os alginatos e os carragenanos presentes na parede celular das algas são largamente utilizados na indústria, nas áreas de biologia molecular e biotecnologia, bem como na fabricação de alimentos, bebidas e cosméticos. E por fim, pesquisas vêm sendo realizadas para analisar a eficácia das algas no tratamento de diversas doenças, tais como asma, bronquite, verminoses, artrite e hipertensão. 44 Figuras 1-8. Exemplos de Algas Verdes. Figura 1. Ulva rigida, aspecto geral do talo foliáceo. Figura 2. Detalhe do talo formado por duas camadas de células. Figura 3. Chaetomorpha antennina, aspecto geral do talo filamentoso. Figura 4. Detalhe dos filamentos unisseriados, não ramificados. Figura 5. Caulerpa sertularioides, aspecto geral do talo cenocítico. Figura 6. Detalhe do talo cenocítico, sem divisão de células. Figura 7. Halimeda sp., aspecto geral do talo, evidenciando as porções calcificadas da planta. Figura 8. Detalhe da região de ligação não calcificada das porções articuladas do talo. 1 2 3 4 5 6 7 8 1 1 2 2 3 4 5 6 7 8 45 Figuras 9-16. Exemplos de Algas Pardas. Figura 9. Padina gymnospora,aspecto geral do talo foliáceo cortiçado, em forma de ventarola. Figura 10. Corte transversal do talo. Figura 11. Spatoglossum schroederi, aspecto geral do talo. Figura 12. Corte transversal do talo, mostrando as células do córtex pigmentadas e as células da medula incolores. Figura 13. Canistrocarpus cervicornis, aspecto geral do talo. Figura 14. Detalhe da ramificação dicotômica do talo. Figura 15. Feldmannia indica, aspecto geral do talo filamentoso. Figura 16. Detalhe do filamento unisseriado, evidenciado os cloroplastos estrelados. 1 6 1 5 1 4 1 3 1 2 1 1 1 0 9 9 10 11 12 13 14 15 16 46 Figuras 17-20. Exemplos de Algas Vermelhas. Figura 17. Vidalia obtusiloba, aspecto geral do talo achatado. Figura 18. Corte transversal do talo, evidenciando o córtex pigmentado e a medula incolor. Figura 19. Ceramium flaccidum, aspecto geral do talo filamentoso. Figura 20. Detalhe dos filamentos, com o córtex formando-se nas regiões dos nós do talo. 1 7 1 8 1 9 2 0 1 2 1 2 2 2 3 2 4 17 18 19 20 47 Figura 21-24. Exemplos de Algas Vermelhas. Figura 21. Gracilaria caudata, aspecto geral do talo cilíndrico. Figura 22. Corte transversal do talo, evidenciando o córtex pigmentado e a medula incolor. Figura 23. Corallina officinalis, aspecto geral do calcário articulado. Figura 24. Detalhe das porções do talo com depósito de carbonato de cálcio (intergenículos) e porções de sem depósito (genículos). Referências Graham, L.E.; Graham, J.M. & Wilcox, L.W. (2009) Algae. 2. ed. Pearson Benjamin Cummings, 616 p. Guimarães, S.M.P.B. (1990) Rodofíceas marinhas bentônicas do Estado do Espírito Santo: ordem Cryptonemiales. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 275 p. 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Para os seres vivos não é diferente: as características contidas no genoma de um organismo são transmitidas de geração para geração. Este processo não consiste apenas na divisão de células e na reprodução dos organismos, mas também nos processos capazes de transmitir as informações contidas em um indivíduo para as gerações seguintes. Históricos de vida O conjunto dos eventos de desenvolvimento e reprodução que são contemplados durante a vida de um indivíduo, população ou espécie é conhecido como histórico de vida. Ciclo de vida é o termo mais conhecido quando nos referimos ao conjunto destes processos, entretanto é conveniente salientar que histórico é um termo mais apropriado uma vez que nem sempre um ciclo completo ocorre e desvios são também comuns. Os processos de meiose e fecundação são essenciais para compreensão dos históricos de vida. As algas se reproduzem por uma variedade de métodos, assexuadamente e sexuadamente. Enquanto a reprodução sexuada envolve a fusão de gametas, a cariogamia e a meiose, esses processos não ocorrem na reprodução assexuada. Alguns organismos podem se reproduzir exclusivamente de maneira assexuada, entretanto a maioria das algas se reproduz de maneira sexuada e assexuada. A reprodução assexuada permite crescimento populacional rápido em condições favoráveis, uma vez que não existe o custo energético associado a produção de gametas e a necessidade de se encontrar parceiros. Em contraste, a reprodução sexuada pode conferir como vantagem o aumento da variabilidade genética de uma população, fomentando a habilidade de resposta a mudanças ambientais por processos evolutivos. Além disso, muitas algas que realizam reprodução sexuada possuem mecanismos de resistência no histórico de vida, que podem permitir a sobrevivência em condições desfavoráveis ao crescimento. Os históricos de vida são classificados de acordo com o número de gerações (fases) e a ploidia dessas fases. Os históricos de vida haplobiontes apresentam apenas uma geração duradoura. Nesse caso, os organismos podem ser haploides (n) ou diploides (2n), dependendo da espécie. O histórico de vida diplobionte apresenta duas gerações duradouras distintas, uma diploide e outra haploide. Reprodução assexuada Muitas espécies de algas que podem se reproduzir assexuadamente, o fazem por esporulação. A partir do citoplasma de uma célula, uma ou mais células reprodutivas são produzidas, e estas são capazes de originar novos indivíduos uni ou pluricelulares. Estas células reprodutivas (esporos) diferem em mobilidade e capacidade de produzir flagelos, ainda que sejam capazes de serem dispersadas além da célula parental: Zoósporos: possuem flagelos que os conferem mobilidade em ambientes aquáticos. Aplanósporos: Não possuem flagelos. Outros mecanismos de reprodução assexuada ou vegetativa são também encontrados em algas. Espécies coloniais de forma e número de células definido são capazes de se reproduzir por autocolonização, onde cada célula da colônia se divide e dá origem a uma versão miniaturizada do organismo. Algas filamentosas ou parenquimatosas podem se reproduzir assexuadamente por 49 fragmentação do talo. Acinetos são estruturas especiais de resistência de cianobactérias, que podem se formar quando as condições do meio em que se encontram não são favoráveis à reprodução vegetativa. Reprodução sexuada A reprodução sexual é encontrada na maioria das linhagens de algas. Ainda que as cianobactérias (algas azuis) apresente alguns mecanismos de troca de genes, muitos dos processos típicos da reprodução das linhagens eucarióticas estão ausentes. A reprodução sexuada em eucariotos envolve a produção de gametas, a fusão de gametas e a meiose. Os gametas são haploides e têm como função principal a fecundação. Os indivíduos que, os produzem são denominados de gametófitos, e as estruturas onde são diferenciados são chamadas gametângios. Os gametas produzidos podem ser mais ou menos diferenciados entre si (Quadro 1): Isogamia: os gametas são estruturalmente semelhantes, entretanto podem ser distintos bioquimicamente. Os símbolos + ou – podem ser atribuídos para cada um dos gametas. Heterogamia - anisogamia: os gametas são diferentes em tamanho. O feminino é ligeiramente maior que o masculino e ambos podem apresentar mobilidade. Heterogamia - oogamia: um gameta masculino (flagelado ou aflagelado) e um gameta feminino maior e imóvel. Quadro 1. Ilustrações representando gametas encontrados em alguns dos históricos de vida presentes nas algas. Três principais históricos de vida são contemplados na reprodução sexual das algas: Haplobionte diplonte (meiose gamética): os gametas masculinos e femininos são haploides, enquanto o estádio vegetativo é diploide. Os gametas se fundem para formar um zigoto, que por diversas divisões mitóticas forma um corpo multicelular diploide. A possibilidade de mascarar mutações deletérias é uma das possíveis vantagens do histórico de vida em que a fase diploide é a dominante. A geração dominantecarrega também duas vezes as mutações benéficas. Entretanto, o genoma da fase diploide, pode mascarar mutações benéficas, o que pode comprometer a eficácia de resposta a mudanças ambientais (Figura 1). 50 Figura 1. Histórico de vida incluindo meiose gamética. As fases representadas no fundo branco são haploides (n), enquanto as fases representadas no fundo cinza são diploides (2n). Células reprodutivas no estádio vegetativo dão origem a gametas femininos ou masculinos, haploides. Estes se fundem na fecundação e formam o zigoto (diploide) que por sucessivas divisões mitóticas dá origem ao estádio vegetativo duradouro. Modificado de Graham et al., 2009. Haplobionte haplonte (meiose zigótica): apenas as células zigóticas são diploides, e a fase vegetativa é, portanto, haploide. Durante a meiose do zigoto, genes relacionados à reprodução dão origem a dois tipos de fases vegetativas, um positivo e um negativo. Estas por sua vez dão origem a gametas + e – (também referidos por x e y) que formarão o zigoto. A expressão do tipo (+ ou −) é controlada pelo ambiente. No histórico de vida em que a fase haploide é a dominante, mutações deletérias tendem a sumir nas populações, enquanto as benéficas respondem de maneira mais eficiente às mudanças do ambiente (Figura 2). 51 Figura 2. Histórico de vida incluindo meiose zigótica. As fases representadas no fundo branco são haploides (n), enquanto as fases representadas no fundo cinza são diploides (2n). O zigoto (diploide) dá origem a gametas + ou – , que originam fases vegetativas + ou –, respectivamente. A geração dominante, + ou –, dará origem a gametas + ou –, respectivamente, que se fundem, originando o zigoto, fechando o histórico. Modificado de Graham et al., 2009. Diplobionte (meiose espórica): o histórico de vida que contempla a meiose espórica é conhecido pela alternância de gerações. Essa característica evoluiu independemente em várias linhagens de algas e no ancestral comum das plantas terrestres. Este histórico contempla duas fases multicelulares: os gametófitos (haploides) e os esporófitos (diploides). Os gametófitos, em condições favoráveis, produzem gametas que quando fundidos formam um zigoto, diploide. Este zigoto sofre divisões mitóticas e origina o esporófito, multicelular. Nessa geração, ocorre a produção de esporângios, nos quais ocorre a meiose. Após a liberação, esses esporos podem germinar e dar origem aos gametófitos, restaurando o ciclo (Figura 3). A alternância de gerações pode ser dividida em duas categorias, baseadas nas diferenças morfológicas entre as fases gametofíticas e esporofíticas: o Alternância de gerações isomórfica: os estádios gametofíticos e esporofíticos são morfologicamente semelhantes. o Alternância de gerações heteromórfica: os estádios gametofíticos e esporofíticos são morfologicamente diferentes. No passado, diferentes estádios do histórico de vida de uma mesma espécie já foram classificados como espécies ou gêneros distintos. Atualmente, o cultivo em laboratório e testes de biologia molecular, por exemplo, permitem entender melhor a alternância de gerações heteromórfica. 52 Figura 3. Histórico de vida incluindo meiose espórica e alternância de gerações. As fases representadas no fundo branco são haploides (n), enquanto as fases representadas no fundo cinza são diploides (2n). O zigoto (diploide) dá origem a um esporófito. Células reprodutivas do esporófito, por meiose, dão origem à gametas + ou –. Estes dão origem a gametófitos + ou –, respectivamente. Os gametófitos + ou – dão origem a gametas + ou –, respectivamente que se fundem dando origem ao zigoto, fechando o histórico. Modificado de Graham et al., 2009. Exemplos de ciclos em algas multicelulares Na natureza nem sempre o que está contemplado no histórico de vida acontecerá com os indivíduos de forma cíclica, seguindo as setas propostas em um esquema simplificado. Muitas vezes mais um modo de reprodução poderá ocorrer: algas que são capazes de se reproduzir sexuadamente, também podem se reproduzir por fragmentação, por exemplo. Para contextualização, abaixo temos alguns exemplos de históricos de vida dos principais grupos de algas verdes, pardas e vermelhas, todos multicelulares: Algas verdes Neste grupo ocorrem reprodução vegetativa, espórica e gamética. A reprodução vegetativa ocorre por divisão celular simples ou fragmentação e também podem se reproduzir pela formação de esporos. O histórico de vida pode ser do tipo haplobionte diplonte, haplobionte haplonte ou diplobionte com gerações isomórficas ou heteromóficas: Spirogyra sp. Esta é uma alga comum em lagos e poças temporárias, que apresenta o citoplasma espiralado. Uma das maneiras pelas quais Sporogyra sp. pode se reproduzir envolve um tubo de conjugação (conjugação lateral) (Figura 4). 53 Figura 4. Histórico de vida simplificado de Spirogyra sp. Modificado de Lee (1989). Ulva sp. Também conhecida como alface do mar, esta alga apresenta alternância de gerações onde os estádios adultos são isomórficos (Figura 5). Figura 5. Histórico de vida simplificado de Ulva sp. Modificado de Raven et al. (2007). 54 Algas pardas Neste grupo é possível observar reprodução do tipo vegetativa, espórica e gamética. As algas pardas possuem uma nomenclatura específica para as células reprodutivas: Órgão plurilocular: produz células por mitose. As células produzidas por esta estrutura apresentam mobilidade. É possível observar o aparecimento do órgão plurilocular tanto no gametófito quanto no esporófito. No gametófito (n), o órgão funciona como um gametângio, produzindo gametas (que podem se desenvolver por partenogênese também). No esporófito (2n), o órgão funciona como um esporângio, produzindo esporos. Órgão unilocular: produz células por meiose e ocorre apenas no esporófito. É uma célula grande e esférica que após a meiose forma esporos em múltiplos de quatro. Fucus sp. É um gênero de algas pardas de distribuição cosmopolita. O histórico de vida apresenta reprodução sexuada com meiose gamética que se assemelha à encontrada nos seres humanos (Figura 6). Figura 6. Histórico de vida simplificado de Fucus sp. Modificado de Graham et al. (2009). Ectocarpus sp. É um gênero de alga filamentosa que tem sido utilizada como modelo de estudos para a genômica. Os esporângios pluricelulares deste órgão permitem restaurar a geração esporofítica (Figura 7). 55 Figura 7. Histórico de vida simplificado de Ectocarpus sp. Modificado de Graham et al. (2009). Algas vermelhas Apresentam reprodução vegetativa, espórica e gamética. Enquanto a reprodução vegetativa ocorre através da fragmentação do talo, a reprodução sexuada envolve a formação de esporos. Os esporos formados pela meiose são sempre em número de 4, de onde deriva o nome tetrasporângio. Os esporos produzidos dentro dos tetrasporângios são chamados de tetrásporos e se desenvolvem em três arranjos distintos: cruciados, zonados ou tetraédricos O gameta masculino não apresenta flagelos e é denominado de espermácio, enquanto o feminino é denominado de carpogônio. Gracilaria sp. Neste gênero o histórico de vida é trifásico, com duas fases diploides e uma haploide. As três fases contempladas nesse histórico de vida são a gametofítica (n), a carposporofítica (2n) e tetrasporofítica (2n). A alternância de gerações encontrada é do tipo isomórfica: o tetrasporófito e o gametófito são semelhantes. A geração carposporofítica é parasita do gametófito feminino. Os espermácios produzidos pelo gametófito masculino são carregados pela água até as estruturas de reprodução dos gametófitos femininos, os carpogônios. A fusão destes gametas forma a geração carposporofítica, no talo do gametófito feminino. Esta geração é protegida poruma série de camada de células do gametófito feminino. O conjunto formado pelas células do gametófito feminino e o carposporófito é chamado de cistocarpo. Os esporos produzidos pelo carposporófito são chamados de carpósporos (2n) e dão origem a geração tetrasporofítica, também diploide. Os tetrasporófitos adultos dão origem a tetrásporos (n), por meiose, que restauram a geração gametofítica (n) (Figura 8). 56 Figura 8. Histórico de vida trifásico de Gracilaria sp. Note a geração carposporofítica, parasita da geração gametofítica. Modificado de Graham et al. (2009). Referências: Graham, L. E., Lee, W. W. & Graham, J. (2009) Algae. 2. Ed. Pearson Education Inc., San Francisco. Lee, R. E. (1989). Phycology. 2. Ed. Cambridge University Press, Cambridge. Paula, E. J., Plastino, E. M., Oliveira, E. C., Berchez, F., Chow, F. & Oliveira, M. C. (2007). Introdução à biologia das criptógamas. São Paulo : Instituto de Biociências da Universidade de Saõ Paulo , Departamento de Botânica Raven, P. H., Evert, R. F. & Eichhorn, S. E. (2007) Biologia Vegetal. 7. Ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro. Santos, D. Y. A. C., Chow, F. & Furlan, C. M. (2012) A botânica no cotidiano. 1. Ed. Holos Editora, Ribeirão Preto. 57 CAPÍTULO 05 Diversidade intraespecífica: modificações do talo em algas vermelhas (Rhodophyta) Fabiana Marchi dos Santos Introdução As algas vermelhas partilham entre si uma série de características, como por exemplo: células eucarióticas, ausência de flagelos, amido das florídeas armazenado no citoplasma, tilacoides livres no cloroplasto, ficocoloides (agar ou carragenana) presentes na perede celular, ficobiliproteínas (ficoeritrina, ficocianina e aloficocianina) dispostas em agregados chamados ficobilissomos, localizados nas membranas dos tilacoides, associados ao fotossistema II. As ficobiliproteínas são pigmentos solúveis em água, de coloração azul ou vermelha que possuem um cromóforo (ficobilina) e uma parte proteica, tais pigmentos mascaram a presença da clorofila a, proporcionando colorações azuladas ou avermelhadas as algas. A clorofila a é considerada o principal pigmento fotossintetizante, e os carotenoides juntamente com as ficobiliproteínas funcionam como pigmentos acessórios capazes de ampliar o espectro de absorção da energia luminosa em comprimentos de onda em que a absorção da clorofila a é baixa. O histórico de vida na maioria das espécies é constituído por três fases, caracterizado por uma alternância de fases haploide (gametofítica) e diploide (tetrasporofítica e carposporofítica). O gametófito é dióico e isomórfico ao tetrasporófito, ambos são de vida livre, enquanto que o carposporófíto é microscópico e parasita do gametófito feminino (Figura 1). O gametófito masculino libera na coluna d‟ água numerosos espermácios (gametas masculinos não flagelados) produzidos nos espermatângios. Esses são conduzidos pela coluna d‟água até o gametófito feminino, aderindo-se a tricogine, que é uma porção alongada do carpogônio (gameta feminino) projetada para o meio. Após a fertilização, o zigoto resultante passa por sucessivas divisões mitóticas, que dão origem a uma nova fase do histórico de vida, o carposporófito (2n), que se desenvolve superficialmente ao talo do gametófito feminino. Esse é protegido por células do próprio gametófito, chamada pericarpo, formando uma estrutura denominada de cistocarpo. Nas porções apicais do carposporófito são produzidos espóros diploides, denominados de carpósporos, e após a sua liberação e germinação dão origem aos tetrasporófitos (2n). Nesses desenvolvem-se tetrasporângios que por meio de meiose dão origem a espóros haploides, em número de quatro, denominados de tetrásporos. Após serem liberados na coluna d‟água, esses tetrásporos germinam e originam os gametófitos (n). 58 Figura 1. Histórico de vida trifásico de Gracilaria sp. As algas vermelhas possuem muitos representantes de importância econômica tendo em vista a presença de ficocoloides como ágar e carragenana na parede celular. Estes ficocoloides são de muita valia para a indústria alimentícia, têxtil e biotecnológica, pois possuem propriedades estabilizante, emulsificante e gelificante. No Brasil a exploração dos recursos naturais para a exploração de ágar teve início na década de 60, no entanto, as populações naturais exploradas se mostraram insuficientes para atender as demandas comerciais. Sendo assim, foi possível a observação de um declínio populacional, resultante da super-explotação. A decisão de como preservar ou manejar uma espécie depende, dentre outros aspectos, do conhecimento da diversidade intraespecífica. A diversidade intraespecífica pode ser caracterizada por alterações fenotípicas (plasticidade fenotípica) dentro de uma mesma espécie, que por sua vez pode ter diferentes expressões dependendo do ambiente onde a população ou o indivíduo ocorra. Essa plasticidade fenotípica pode ser decorrente de processos de aclimatação e adaptação. Processos de aclimatação correspondem a diferentes expressões de ajustamento ao ambiente que um organismo pode sofrer dentro dos limites do seu genótipo, proporcionando plasticidade fenotípica. Já os processos adaptativos correspondem à expressão de ajustamento ao ambiente decorrente de alteração no genótipo. Em algas vermelhas é muito comum a ocorrência de variações cromáticas intraespecíficas, a coloração pode variar de vermelho escuro até esverdeada, passando pelos tons vináceos, rosados, alaranjados e amarelados. Esse fenômeno é muitas vezes decorrente da capacidade de aclimatação do organismo frente a diferentes fatores ambientais, promovendo um rearranjo e/ou alterações nas concentrações dos pigmentos em quantidades variáveis, possibilitando dessa forma, numerosas combinações de cores. Os processos de adaptação decorrentes de alterações no genótipo também podem ser responsáveis pela variação cromática intraespecífica. Cabe ressaltar que, em campo é possível obter indícios para diferenciação entre os dois processos, como por exemplo, quando indivíduos de colorações distintas crescem em locais diferentes, podendo ser um ambiente sombreado e outro iluminado. Nessa situação a coloração distinta pode ser apenas uma resposta às condições ambientais e representa um indicativo de processo aclimatativo. No entanto, a ocorrência de algas com colorações distintas crescendo lado a lado na natureza é um indicativo da existência de variantes pigmentares genotípicas, especialmente se as condições do local forem muito 59 homogêneas. De qualquer forma, em ambas situações, é necessário levar essas algas para um laboratório e mantê-las sob condições controladas e semelhantes, a fim de verificar a estabilidade do carácter cor. Caso as algas sofram modificações na coloração do talo após algumas semanas de cultivo em laboratório, e adquiram colorações semelhantes, o resultado será interpretado como uma consequência da aclimatação às condições de laboratório, e as diferentes colorações em campo seriam resultantes de um processo de aclimatação as condições ambientais. Caso as diferentes colorações sejam mantidas, mesmo após um longo período de cultivo, se interpretará a cor como uma característica determinada geneticamente (Figura 2). Figura 2. Ápices em estado vegetativo de gametófitos femininos de coloração vermelha (a esquerda) e de coloração marrom-esverdeada (a direita) de Gracilaria caudata cultivados in vivo, sob condições semelhantes. O modo como o caracter cor é transmitido pode ser conhecido por meio do acompanhamento de sua herança em condições de laboratório. No entanto, a herança de cor somente poderá ser estudada quando houver um conhecimento prévio do histórico de vida da espécie selecionada. Em algas vermelhas a segregaçãogenética ocorre geralmente na fase gametofítica (haploide), em que mutações recessivas não são mascaradas por alelos dominantes, assim simplificam a análise genética. Entretanto, para tetrasporófitos (diploides), é necessário induzir a fertilidade e somente após a liberação de espóros e formação dos gametófitos, é possível realizar testes de cruzamentos adicionais para determinar se um indivíduo em particular apresenta genes dominantes ou carrega mutações recessivas. Os estudos de herança de cor em uma espécie são iniciados a partir da seleção de indivíduos femininos e masculinos das diferentes colorações. Essas algas podem ser obtidas do campo com posterior isolamento unialgáceo ou a partir do cultivo de esporos provenientes de algas de diferentes colorações coletadas do ambiente. O experimento consiste na manutenção de ápices femininos: i) cultivados isoladamente, para assegurar a ausência de partenogênese ou hermafroditismo; ii) cultivados em conjunto com ápices masculinos de mesma coloração, e iii) cultivados em conjunto com ápices masculinos de coloração diferente. Esse experimento deverá ser realizado respeitando um número mínimo de repetições para cada cruzamento (Figura 3). 60 Figura 3. Esquema básico para ensaios de cruzamento entre variantes de cor de uma mesma espécie, utilizando indivíduos dioicos. vm = vermelho, me = marrom-esverdeado. O padrão de herança de cor varia de acordo com a espécie ou de acordo com as linhagens dentro de uma mesma espécie. Na maioria dos casos com variantes de cor naturais (obtidas em campo ou espontaneamente em laboratório), essas apresentam uma herança nuclear (mendeliana) recessiva, sendo o fenótipo selvagem dominante, ou herança citoplasmática (materna) em que a coloração variante só é passada aos descendentes quando o gametófito feminino possui o fenótipo alterado. No Brasil, o estudo de variantes cor naturais tem sido realizado principalmente nas espécies pertencentes ao gênero Gracilaria. Dentre essas destacam-se G. birdiae, G. dominguensis, que são espécies exploradas no nordeste do país como fonte de ágar. A caracterização genética de suas variantes foi realizada e indicou que G. birdiae apresenta herança nuclear recessiva para os fenótipos marrom esverdeado e verde claro, e herança citoplasmática para o fenótipo verde. G. dominguensis apresenta herança nuclear codominante para o fenótipo verde, que quando em heterozigose com o fenótipo selvagem (vermelho), expressa o fenótipo marrom (Figura 4). Figura 4. Ápices de Gracilaria domingensis de coloração vermelha (a esquerda) e de coloração verde (a direita) cultivados in vivo, sob condições semelhantes. É importante salientar que variantes de cor também podem ser induzidas em laboratório com o auxílio de agentes mutagênicos, podendo ser estáveis ou não, quando estáveis a sua herança também pode ser estudada. A indução de variantes de cor tem sido realizada tendo em vista o potencial que essas, assim como variantes naturais, podem ter em estudos genéticos funcionando como marcadores visuais por apresentarem um fenótipo facilmente detectável. E dessa forma, os padrões de herdabilidade dos fenótipos alterados podem possibilitar o rastreamento da transmissão de gens nucleares e/ou organelares. Alguns autores, com auxílio de variantes de cor das mais diferentes espécies puderam realizar a distinção entre processos de autofecundação e fecundação cruzadas em espécies monóicas (Gelidium sp.), distinção entre processos sexuados e assexuados (Gracilaria tikvahie), elucidar aspectos desconhecidos no 61 histórico de vida de algumas algas, como por exemplo, inexistência de gametófitos femininos (Palmaria palmata), identificação de germinação de tetrásporos in situ (Gracilaria sp.), falhas durante a citocinese de tetrasporângios (Gracilaria sp.). O estudo de variantes de cor evidenciou que essas podem apresentar desempenho fisiológico distinto das algas com fenótipo selvagem, o que pode trazer benefícios para a espécie em ambiente natural e contribuir para a seleção de linhagens mais adequadas à maricultura. Com relação aos pigmentos, variantes de cor apresentam conteúdo pigmentar diferente às algas da mesma espécie com fenótipo selvagem, como por exemplo, em Gracilaria caudata em que a variante natural marrom-esverdeada possui maiores quantidades do pigmento aloficianina em relação ao tipo selvagem (vermelho). Tal pigmento possui aplicações biotecnológicas, e pode ser utilizado como marcador fluorescente em estudos que utilizam citometria de fluxo. Dessa forma, o conhecimento da composição pigmentar é fundamental em estudos de variantes pigmentares, pois permite caracterizar quantitativa e qualitativamente esses compostos que denotam as diferentes colorações. A quantificação desses pigmentos possibilita a determinação das extensões das colorações alcançadas por cada tipo de variante, indicando possíveis diferenças, que se refletem na capacidade competitiva de uma variante em ocupar determinado nicho. A diversidade pigmentar, entre outros aspectos, confere à espécie diferentes estratégias de captação e aproveitamento da energia luminosa, bem como representa uma vantagem na ocupação de ambientes onde a radiação é qualitativa e quantitativamente heterogênea, como a região do entre-marés. Portanto, se faz necessário uma melhor compreensão das causas que levam plasticidade fenotípica em uma espécie. Tais esclarecimentos podem evidenciar uma diversidade ainda não estimada, e chamar atenção para a sua preservação. Referências Câmara-Neto (1987) Seaweed culture in Rio Grande do Norte, Brazil. Hydrobiologia 151/152: 363– 367. Carneiro M.A.A.; Marinho-Soriano E. Plastino. E.M. (2011). Phenology of an agarophyte Gracilaria birdiae Plastino and E.C. Oliveira (Gracilariales, Rhodophyta) in Northeastern Brazil. Brazilian Journal of Pharmacognosy 21(2): 317-322 Costa V.L.; Plastino E.M. (2001). Histórico de vida de espécimens selvagens e variantes cromáticas de Gracilaria birdiae (Gracilariales, Rhodophyta). Revista Brasileira de Botânica 24: 491-500. Costa V.L.; Plastino E.M. (2011). Color inheritance and pigment characterization of red (wild-type), greenish-brown, and green strains of Gracilaria birdiae (Gracilariales, Rhodophyta). Journal of Applied Phycology 23: 599-605. Faria A.V.F & Plastino E.M. (2015). Physiological assessment of the mariculture potential of a Gracilaria caudata (Gracilariales, Rhodophyta) variant. Journal of Applied Psychology DOI 10.1007/s10811- 015-0761-8 Ferreira L.B.; Barufi J.B.; Plastino E.M. (2006). Growth of red and green strains of the tropical agarophyte Gracilaria cornea J. Agardh (Gracilariales/Rhodophyta) in laboratory. Revista Brasileira de Botânica 29: 187-192. Gantt E. (1990). Pigmentation and photoacclimation. In: Cole KM, Sheath RG (eds) Biology of the red algae. Cambridge University Press. 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Press, Cambridge, UK, 1-6. 63 CAPÍTULO 06 Aquecimento global: os efeitos sobre macroalgas marinhas Nuno Tavares Martins Mudanças climáticas se refere a variações do clima em escala global ao longo do tempo. Essas variações abrangem diversas alterações, como mudanças de temperatura, precipitação, umidade relativa do ar, aumento do nível dos oceanos, derretimento das calotas polares e outras. As mudanças climáticas são fenômenos naturais que ocorrem na Terra. Contudo, com o aumento de gases de efeito estufa na atmosfera, ocorrido desde a revolução industrial, as mudanças climáticas se acentuaram devido às ações antropogênicas. As mudanças climáticas antropogênicas referem-se a qualquer mudança no clima causada pelo efeito cumulativo da atividade humana. A magnitude da mudança climática global antropogênica é atualmente considerada irreversível em escalas de tempo humanas. Para o ano de 2100 é especulado um aumento de temperatura média da Terra em 2 a 4C, uma diminuição do pH de 0,3 até 0,5 e um aumento dos índices de UV entre 12-17%. Um dos principais processos resultantes de mudanças climáticas antropogênicas no ambiente marinho é o aumento da temperatura . Esse aquecimento vem sendo confirmado por dados de temperatura dos oceanos registrados nos últimos anos. O aumento da temperatura nos oceanos tem diversas consequências, como aumento de eventos extremos, alterações nos padrões de ocorrência de tempestades e secas, aumento da umidade relativa do ar entre outras (Figura 1). Em comparação com a atmosfera, os oceanos aquecem três vezes mais devagar, apesar de absorverem 80% do calor incidente na Terra. As linhas de temperatura nos oceanos (isotermas) migram mais rápido, o que leva a comunidades marinhas inteiras a migrarem mais rapidamente (alterando sua distribuição). Figura 1. Alguns eventos alterados em consequência do aumento da temperatura nos oceanos. Dessa forma , o aquecimento global deverá produzir grandes mudanças no ambiente marinho , como na distribuição e abundancia de espécies além de mudança na estrutura de comunidades , incluindo extinções locais . Nesse aspecto , estudos recentes reforçam que as mudanças climáticas é uma grande ameaça à macroalgas marinhas. Macroalgas marinhas são as bases ecológicas da maioria dos ecossistemas marinhos costeiros, e sua diversidade tem implicações fundamentais para a vida e os serviços ecossistêmicos na zona costeira. Apesar de algumas espécies de macroalgas terem mostrado alta tolerância, ou até mesmo se beneficiarem de mudanças climáticas , o aumento na temperatura tende a trazer mudanças drásticas para comunidades bentônicas . Há diversos estudos acerca dos processos 64 ecológicos em macroalgas, contudo, poucos abordam aclimatação/adaptação e a distribuição de espécies, principalmente associadas ao aumento de temperatura. A temperatura influencia drasticamente processos biológicos, atuando em diversas escalas: desde moléculas a biotas inteiras (Figura 2). Os efeitos da temperatura em reações químicas, estruturas moleculares e fisiologia das algas são bem documentados , apesar de não tão bem elucidados . Essas lacunas no conhecimento são atribuídas à grande dificuldade em isolar o fator temperatura de outros em ambiente natural. Em teoria, por efeitos que ocorrem nos níveis químicos e moleculares, as algas são beneficiadas com o aumento da temperatura. Contudo, alteração da temperatura pode ser fatal para macroalgas que possuem seu rendimento máximo próximo ao seu limite fisiológico. O aumento de temperatura observado na natureza nos dias de hoje pode não evidenciar nenhuma diferença fisiológica nesses indivíduos, muitas vezes levando a uma falsa interpretação de que toleram tal situação. Por esse motivo, experimentos laboratoriais se fazem necessários. Figura 2. Consequências do aumento da temperatura nos oceanos em diversas escalas. Diversos estudos analisam os efeitos da temperatura em experimentos laboratoriais em que o material é exposto a um aumento brusco de temperatura (geralmente de 10°C). No entanto, os modelos mais pessimistas de aquecimento global estipulam um aumento de 4°C para o ano de 2100 (poucos estudos analisarem nessa faixa). Dessa forma, compreender como o aumento de 2-4°C terão impacto nas macroalgas marinhas tornou-se uma forte linha de pesquisa mundial, no entanto, a costa brasileira é pouquíssima estudada nesse aspecto, quando comparada outras regiões. Prever quais espécies são mais vulneráveis a mudanças de temperatura local produzidas pela mudança climática global também se tornou uma forte linha de pesquisa. No entanto, esses objetivos não são simples. Estudos anteriores apontam que indivíduos naturalmente expostos a diferenças de temperatura mais amplas entre o verão e o inverno (temperadas), geralmente apresentam maior tolerância térmica, quando comparados a indivíduos oriundos de ambientes com menor amplitude térmica anual (tropicais). Box 1: Serviços ecossistêmicos São benefícios que podemos obter a partir dos ecossistemas de forma direta ou indireta. Exemplos: proteção contra desastres, controle da erosão, alimentos, manutenção do clima, purificação da água, controle de inundações, além do uso recreativo. 65 Numa escala menor , as espécies marinhas típicas de habitats caracterizados por grandes variações de temperatura (por exemplo , supra e médiolitoral ) costumam viver mais próximas de seus limites fisiológicos de temperatura, portanto, podem ser mais vulneráveis à mudanças climáticas do que espécies menos tolerantes à temperatura (como as presentes no infra-litoral). Em um panorama de mudança climática, os seres que vivem próximos aos seus limites fisiológicos, provavelmente serão os primeiros a serem afetados. Devido a isto, essas espéciesdevem ser estudadas para melhor compreensão dos efeitos da temperatura na sua fisiologia. Possíveis respostas fisiológicas de uma espécie e de suas populações podem decorrer de processos de aclimatação e/ou adaptação. Estudos fisiológicos em populações naturais, não permitem a distinção entre esses processos, pois as variáveis ambientais são distintas e mascaram possíveis conclusões sobre os efeitos de determinados fatores abióticos . É importante, portanto, realizar estudos de variação de temperatura em condições controladas e determinar o padrão de variação fisiológica em condições laboratoriais em associação com dados de campo. Esses dados devem possibilitar uma melhor previsão dos efeitos do aumento da temperatura em comunidades marinhas futuras, num panorama de mudanças climáticas. Todo esse aspecto promissor mencionado faz com que os estudos acerca da fisiologia e ecologia sejam de extrema importância para o conhecimento dos ecossistemas marinhos num cenário especulado para o futuro de aumento de temperatura média dos oceanos. Referências Burrows MT, Schoeman DS, Buckley LB, Moore P, Poloczanska ES, Brander KM, Brown C, Bruno JF, Duarte CM, Halpern BS, Holding J, Kappel C V., Kiessling W, O‟Connor MI, Pandolfi JM, Parmesan C, Schwing FB, Sydeman WJ, Richardson a. J (2011) The Pace of Shifting Climate in Marine and Terrestrial Ecosystems. Science 334:652–655 Cheung WWL, Lam VWY, Sarmiento JL, Kearney K, Watson R, Pauly D (2009) Projecting global marine biodiversity impacts under climate change scenarios. Fish and Fisheries 10:235–251 Field CB, Barros VR, Dokken DJ, Mach KJ, Mastrandrea MD, Bilir TE, Chatterjee M, Ebi KL, Estrada YO, Genova RC, others (2014) IPCC, 2014: Climate Change 2014: Impacts, Adaptation, and Vulnerability. Part A: Global and Sectoral Aspects. Contribution of Working Group II to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Harley CDG, Anderson KM, Demes KW, Jorve JP, Kordas RL, Coyle TA, Graham MH (2012) EFfects Of Climate Change On Global Seaweed Communities. Journal of Phycology 48:1064–1078 Hobday A, Alexander LV, Perkins, SE, Smale DA, Straub SC, Oliver E, Benthuysen J, Burrows MT, Donat MG, Feng M, Holbrook NJ, Moore PJ, Scannell HA, Sen Gupta A, Wernberg T (2016) A hierarchical approach to defining marine heatwaves. Progress in Oceanography 141:227-238 Poloczanska ES, Brown CJ, Sydeman WJ, Kiessling W, Schoeman DS, Moore PJ, Brander K, et al. (2013) Global Imprint of Climate Change on Marine Life. Nature Climate Change 3: 919–25 Trenberth KE (2012) Framing the way to relate climate extremes to climate change. Climatic Change 115:283–290 Box 2: Adaptação e aclimatação De forma extremamente resumida: Adaptação é alteração no genoma e ocorre ao longo de gerações. Aclimatação é ajuste fenotípico e ocorre no indivíduo. 66 CAPÍTULO 07 Ecologia de costões rochosos e metodologias e amostragem Sabrina Gonçalves Raimundo Gabriela Carvalho Lourenço da Silva Introdução Os oceanos cobrem aproximadamente 71% de sua superfície terrestre e ainda pouco conhecida. De maneira geral, conhecemos mais a superfície da lua do que o fundo do mar. Contudo, este ambiente tem grande importância em nossas vidas, indo muito além de um prazeroso banho de mar. A maior parte da população mundial vive junto à costa, o que se relaciona diretamente com os inúmeros serviços que o oceano nos proporciona, como o fornecimento de alimentos e a extração de petróleo. Porém, esta proximidade e relações estreitas tornam este ambiente muito vulnerável, em parte pelo desconhecimento deste e seus ecossistemas. Com fronteiras sutis, os ecossistemas estão todos ligados, de forma que eventos ocorridos no continente influenciam o oceano, como o aporte de nutrientes e água doce, por exemplo. Assim, podemos influenciar o ambiente marinho com nossas atividades. Por exemplo, a queima de combustíveis fósseis libera gás carbônico (CO2) na atmosfera, que ao se dissolver no oceano acidifica a água, dificultando a formação de conchas e estruturas calcárias por moluscos (como o mexilhão), algas e corais. Sabemos hoje que a profundidade média dos oceanos é 3800 mestros, mas partes mais profundas atingem quase 11000 metros e possui cerca de 300 vezes mais espaço para a ocupação dos seres vivos do que os ambientes terrestres e de água doce combinados. De tal forma que existem mais filos de animais no oceano do que em água doce ou em terra, embora cerca de 80% das espécies animais sejam não marinhas devido à grande diferença de habitats em terra. No entanto, o ambiente marinho possui dois grandes domínios: a região pelágica, (a coluna d‟água) e a região bentônica (o assoalho marinho). Os organismos marinhos, nestes domínios, compõem três grandes grupos. O plâncton, o nécton e o bentos (Figura 1). Figura 1. Domínios Marinhos (Plâncton, Nécton e Bentos). 67 O plâncton agrupa os organismos da coluna d‟água que vivem à deriva, ou seja, com poder limitado de locomoção, sendo transportados passivamente por correntes e massas d‟água. Os organismos do plâncton são classificados em dois grandes grupos principais: zooplâncton (pequenos animais, animais de baixa mobilidade e larvas de peixes e organismos bentônicos e etc) fitoplâncton (organismos fotossintetizantes do plâncton, como as microalgas) (Figura 2a). Embora muito pequenas, as microalgas do fitoplâncton são responsáveis pela produção de aproximadamente 50% do oxigênio disponível na atmosfera, devido ao processo da fotossíntese. O oxigênio liberado neste processo vem da quebra da molécula de água e a matéria orgânica resultante é construída a partir do dióxido de carbono (CO2). Além de liberar oxigênio, organismos fotossintetizantes também produzem matéria orgânica (alimento, na forma de glicose) a partir de gás carbônico (CO2), utilizando a energia do sol. Por isso, são considerados produtores primários, que compõem a base da cadeia alimentar de quase todos os ecossistemas do planeta. O nécton marinho é composto por organismos que vivem na coluna d‟água, que possuem órgãos eficientes para natação. Portanto, com capacidade de locomoção, podendo nadar distâncias longas, independente de correntes e movimentos de massas d‟água (Figura 2b). Por fim, os bentos são organismos que vivem junto ao fundo oceânico de diversas naturezas, sejam eles sésseis (fixos) ou móveis (Figura 2c-f). Os habitats costeiros bentônicos estão entre os ambientes marinhos mais produtivos do planeta. Além disso, existe uma grande diversidade de habitats marinhos e costeiros, resultando em um grande mosaico de diferentes tipos de ambientes. Assim, de forma geral, os ambientes marinhos são regiões sobre a influência do mar, cada qual com uma condição de pressão, salinidade, profundidade, temperatura, luminosidade e diversidade biológica. Entre os diversos ecossistemas marinhos e costeiros podemos destacar os recifes de corais, as fontes hidrotermais, os mangues e marismas, as praias arenosas, os costões rochosos, ambientes de mar profundo e etc. Embora existam vários ecossistemas que estão presentes na região entre-marés e nas zonas costeiras, os costões rochosos são considerados muito importantes por apresentar alta riqueza de espécies de importância ecológica e econômica, por exemplo mexilhões, ostras, algas, crustáceos e uma variedade de peixes. Além disso, por receber grande quantidade de nutrientes proveniente dos sistemas terrestres, estes ecossistemas apresentam uma grande biomassa e produção primária de microfitobentos e de macroalgas. Como resultado, os costões rochosos são locais de alimentação, crescimento e reprodução de um grande número de espécies. Entre outras características, existe limitação de substrato ao longo de um gradiente existente entre o habitat terrestre e o marinho, favorecendo a ocorrênciade fortes interações biológicas entre a grande diversidade de espécies presentes nos costões rochosos. A grande variedade de organismos e o fácil acesso tornaram os costões rochosos uns dos mais populares e bem estudados ecossistemas marinhos. 68 Figura 2. Biodiversidade presente nos Domínios Marinhos. (a) Plâncton: fitoplâncton e zooplancton (b) Nécton, (c) Bentos: ouriço-do-mar; (d) Bentos: Mexilhoes, (e) Bentos: Ulva, (f) Bentos: estrela-do-mar. Costões Rochosos Os costões rochosos são afloramentos de rochas cristalinas que em geral estão situadas na transição entre os meios terrestres e aquáticos e por isso sofrem influência da maré e da temperatura da água. Desta forma, muitas são as possibilidades de regiões rochosas, como por exemplo, as falésias, os matacões e os costões rochosos verdadeiros. Estas áreas atuam como substrato para comunidades biológicas, e é considerado como um ambiente muito mais marinho que terrestre já que as espécies que o habitam estão muito mais relacionadas ao mar. No Brasil, as rochas possuem origem vulcânica e estão estruturadas de diversas formas, desde paredões verticais bastante uniformes (ex. a Ilha de Trindade) ou matacões de rocha (ex. a costa de Ubatuba/SP). Assim, encontramos ambientes de costa rochosa em quase toda costa brasileira. No entanto, a maior concentração dos verdadeiros costões rochosos na região Sul e Sudeste entre Cabo Frio (RJ) e o Cabo de Santa Marta (SC) (Figura 3). Os costões rochosos podem apresentar muitas características complexas, mas de forma geral quanto maior sua complexidade maior a diversidade de organismo ali encontrada. Por exemplo, existem costões rochosos expostos e outros protegidos que compreendem uma variação biológica distinta entre eles. Os costões expostos são aqueles que recebem impactos de ondas com frequência e por isso são pouco fragmentados, aparentando-se a um paredão liso. Assim, possuem menor quantidade de habitats comparados aos costões protegidos, além disso, por ser um ambiente que sofre com o alto hidrodinamismo (locais onde o embate de ondas é mais forte), não favorece a existência de organismos mais frágeis. No entanto, possuem alta produção primária devido ao fluxo de nutrientes que chega pela Foto: Mariana Mello A B C D E F 69 água, de modo que as algas (em geral de talos ramificados) se utilizam desta energia para realização da fotossíntese. Já os costões protegidos estão localizados em áreas em que o hidrodinamismo é menor, como por exemplo áreas no qual aconteceram rolamentos de matacões formando piscinas naturais. Assim, esses lugares apresentam alto nível de complexidade biológica, resultando numa grande riqueza de espécies associadas. Nessas áreas podemos encontrar organismos maiores que os de costão exposto, como algas com talos bem desenvolvidos e com abundante biota associada à essas algas (algas, briozoários, esponjas, vermes, etc.) conseguem viver ali. Figura 3. Distribuição dos Ambientes de Costa Rochosa no Brasil. Zonação Ao observar um costão rochoso desde sua porção submersa até a porção rochosa exposta pela primeira vez, um dos fatores mais notáveis é a disposição dos seres vivos em faixas ao longo do perfil vertical deste ecossistema (Figura 4). A esta distribuição vertical chamamos zonação que resulta da influência de diversos fatores físicos e biológicos, como por exemplo, a variação das marés e a predação, respectivamente. No costão rochoso é possível observar três zonas distintas: 1. Supralitoral: Área na qual podemos encontrar aqueles organismos que nunca ficam submersos, mesmo na maré alta. Esta zona está sujeita apenas a borrifos de água e abriga uma comunidade de líquens, cianobactérias (algas azuis) e de alguns animais móveis, como pequenos moluscos (como a Littorina) e artrópodes (como a Lygia, a baratinha-do-mar); 2. Mesolitoral ou zona “entre-marés”: Nesta região estão aqueles organismos que estão sujeitos à variação da maré, ficando expostos durante a maré baixa e submersos durante a maré alta. No mesolitoral alto podemos observar cracas e mexilhões, que possuem adaptações à dessecação, enquanto na parte inferior, já ocorrem macroalgas, que ressecam durante o período de exposição e são reidratadas durante a maré alta. 70 3. Infralitoral: Nesta faixa encontramos aqueles organismos que ficam sempre submersos, mesmo durante a maré baixa. Neste ambiente encontram-se todos os peixes e organismos que não são adaptados à perda d‟água e altas temperaturas, como ouriços-do-mar, estrelas-do-mar e anêmonas. Influências para formação da zonação em costões rochosos Muitos dos organismos do costão são fixos ou de baixa mobilidade, o que faz com que eles dependam muito das condições da água para sua reprodução, dispersão (através de larvas planctônicas) e para sua alimentação (por serem fixos, portanto filtradores). Desta forma, a zonação observada na composição predominante de alguns organismos em cada faixa do costão rochoso é resultante de fatores físicos e biológicos que atuam como fatores seletivos de organismos aptos à ocuparem cada zona (infralitoral, mesolitoral e supralitoral). Entre esses fatores estão: as marés, a temperatura, radiação solar, hidrodinamismo, as interações biológicas, entre outros. Por muito tempo acreditou-se que a maré era o único fator responsável pela zonação que observamos no costão, hoje já sabemos que este é mais um dos fatores que atuam sobre esse ela, embora seja um dos mais relevantes. Durante a maré baixa, muitos organismos ficam emersos e expostos à condições adversas como dessecação e altas temperaturas (Figura 5). Os organismos que se fixam nas porções mais altas do costão são os primeiros a ficarem expostos e os últimos a serem novamente submersos. Por isso, conseguimos observar uma clara divisão vertical entre as faixas de exposição, já que os organismos que se distribuem de acordo com suas adaptações para estas condições extremas. Outros fatores físicos importantes são a radiação solar e a temperatura. Por exemplo, os cirripédios (cracas) que são crustáceos que ocupam a região do me possuem envoltório resistente que abrem e fecham mantendo uma quantidade adequada de água para manter a temperatura do organismo, além de contribuir para que não se exponham à radiação solar. Um outro exemplo são as baratinhas-da- praia que também são animais que ocupam a zona de supralitoral, neste caso além de possuírem exoesqueleto quitinoso que diminui o contato com a radiação solar, ela também se locomove muito bem o que facilitar que possa transitar neste ambiente. Figura 4. Zonação em Costões Rochosos. Ao lado esquerdo, foto representativa de Costão Rochoso no Parque Estadual da Ilha Anchieta, Ubatuba/SP. Ao lado direto, esquema didático mostrando zonas de supra, médio e infralitoral. 71 Figura 5. Exposição de Organismos na maré baixa. Ao lado esquerdoa: Aquário Natural, Parque Estadual da Ilha Anchieta. Ao lado direto organismos de costão rochoso expostos durante a maré baixa. Também o hidrodinamismo pode ser um fator importante para a predominância de algumas espécies, em particular no mesolitoral. Neste caso, um bom exemplo são as diferentes algas que podem ocupar essa região. Em áreas de alto hidrodinamismo observamos a predominância de algas com talos ramificados pela movimentação das águas que impede a superposição, que causaria sombreamento dos talos inferiores. Em ambientes com baixo hidrodinamismo, o baixo hidrodinamismo favorece que haja fixação e estabelecimento de organismos, principalmente esporos e propágulos, proporcionando a existência de algas com talos não ramificados e outros organismos mais frágeis. Somado a esses fatores, as interações existentes entre os organismos também ajudam a determinar o padrão observado na zonação dos costões rochosos. Destemodo, competição por espaço, predação e a herbivora podem ser cruciais na zonação. Alguns estudos mostram que alguns gastrópodes predadores estendem-se desde a zona do médiolitoral até o infralitoral, dependendo do batimento das ondas ou da disponibilidade das presas. Essas interações biológicas têm relevância particular para a determinação da distribuição dos organismos na região do supralitoral, onde fatores abióticos são mais estáveis. Além destes fatores descritos, outros muitos podem atuar como limitadores da distribuição dos organismos. Águas com alta turbidez por exemplo, podem reduzir a presença de algas na região do infralitoral. Assim, a zonação dos organismos bentônicos num costão rochoso, reflete a interação de vários fatores físicos e biológicos estabelecendo limites precisos de distribuição. Cada costão possui características próprias que vão definir a importância relativa dos fatores abióticos e bióticos na estrutura das comunidades bentônicas dos costões rochosos. De todo modo, este padrão de zonação é comum nos costões rochosos do mundo inteiro. As espécies que ocorrem em cada zona podem variar em função das diferentes latitudes, níveis de maré e exposição ao ar, entre outros, porém mostram adaptações especiais para viverem nesta área, sendo a zonação, a estrutura básica reconhecida na maior parte dos ambientes de costões rochoso. Ameaças aos Costões Rochosos Atualmente, os costões rochosos sofrem diversos impactos antropogênicos, por exemplo, a poluição desses ambientes por poluição orgânica, industrial, derramamento de óleo, sedimentação em áreas portuárias, captura excessiva, introdução de espécies exóticas, turismo descontrolado, desmatamento das matas de encosta e até mesmo efeitos das mudanças climáticas. Nesse ultimo caso, temos efeitos diversos, incluindo aumento da temperatura, resultando em perda de diferentes espécies como, por exemplo, o branqueamento de corais (fenômeno que acontece com a perda de algas que vivem em simbiose com estes organismos e morrem pelo aumento da temperatura ou contaminação de 72 patógenos). Um outro efeito importante das mudanças climáticas sobre todo o oceano é a acidificação dessas águas, podendo ocasionar, entre outros impactos, a não calcificação de estruturas duras de diferentes espécies. Este fenômeno acontece quando a água (H2O) e o gás se encontram, é formado o ácido carbônico (H2CO3) que se dissocia no mar, formando íons carbonato (CO3² - ) e hidrogênio (H + ). O nível de acidez se dá através da quantidade de íons H + presentes em uma solução – nesse caso, a água do mar. Quanto maior as emissões, maior a quantidade de íons H + e mais ácido os oceanos ficam. Em quantidades normais de absorção de CO2 pelo oceano, as reações químicas favorecem a utilização do carbono na formação de carbonato de cálcio (CaCO3), utilizado por diversos organismos marinhos na calcificação. O aumento intenso das concentrações de CO2 na atmosfera, e consequente diminuição de pH das águas oceânicas acaba por alterar o sentido destas reações, fazendo com que o carbonato dos ambientes marinhos se ligue com os íons H + , ficando menos disponível para a formação do carbonato de cálcio, essencial para o desenvolvimento de organismos calcificadores. As diminuições das taxas de calcificação afetam por exemplo o estágio de vida inicial destes organismos, bem como sua fisiologia, reprodução, sua distribuição geográfica, morfologia, crescimento, desenvolvimento e tempo de vida. Além disso, afeta também a tolerância a mudanças na temperatura das águas oceânicas, tornando-os mais sensíveis, interferindo na distribuição de espécies mais sensíveis. Somado a todos esses impactos que foram superficialmente citados, ainda contamos com a falta de conhecimento que temos destes ecossistemas. De forma geral, conhecemos pouco os costões rochosos brasileiros, tendo mais informações ecológicas de curto prazo dos no Litoral Norte de São Paulo, alguns pontos da Baía de Guanabara, a Costa Norte do Rio de Janeiro e em Cabo Frio (RJ). De modo que expandir a pesquisa para outras áreas, considerar monitoramentos e estudos de longo prazo ainda é uma necessidade. Além disso, é igualmente importante que conheçamos melhor as espécies que aí habitam, tendo em vista que o conhecimento é mais aprofundado quando consideramos as macroalgas bentônicas. Pesquisa em Ecologia de Costões Rochosos Realizar estudos ecológicos em costões rochosos apresenta muitos desafios. O próprio ambiente, em si, já é um fator limitante para o pesquisador. A maioria dos estudos em costões rochosos no mundo foi feita na zona entre-marés. Estudos nesta área devem ser planejados para serem executados durante as poucas horas do dia em que a maré está baixa, quando a região está acessível. Estudar o infralitoral também tem suas complicações. Como a amostragem nesta região é feita, geralmente, com mergulho autônomo, o tempo de amostragem é limitado pelo consumo de ar do mergulhador-pesquisador. A grande complexidade física e biológica destes ambientes resulta em uma grande variabilidade em quase todos os parâmetros medidos, mesmo numa pequena escala, seja ela vertical ou horizontal. Por isso, as características únicas deste ambiente devem ser levadas em consideração antes de definir um desenho amostral, para então selecionar os procedimentos mais adequados. Diversos parâmetros contribuem para a alta variabilidade na distribuição dos organismos de costão rochoso. São muitos os gradientes afetando as comunidades, como grau de exposição a ondas e correntes, proximidade de rios, a própria flutuação da maré e uma variação topográfica muito alta. A paisagem do costão rochoso é muito heterogênea, compondo diversos micro-habitats. Por exemplo, fendas, matacões, paredões ou poças de maré. Fatores como inclinação e rugosidade do substrato e incidência de luz também contribuem para uma grande variabilidade espacial. Além de variar em diversas escalas espaciais, os organismos de costão rochoso também apresentam uma considerável variação temporal, que pode levar de anos a décadas. Estas fontes de variabilidade devem ser cuidadosamente analisadas e levadas em conta antes de selecionar os métodos de coleta e desenho amostral. Se a variabilidade natural do sistema não for corretamente avaliada, esta pode gerar um ruído na interpretação dos dados, confundindo os resultados. Isto impede o pesquisador de detectar causas alternativas de variação na estrutura das comunidades, como por exemplo as resultantes de impactos antrópicos. 73 Estudos de campo podem ser classificados de diferentes formas. Entre eles estão: Estudos de base, que tem como objetivo definir o status presente de alguma condição biológica; Estudos de impacto, que incluem detectar e relacionar alterações biológicas com perturbações; Monitoramentos, que consistem em acompanhar determinados parâmetros ao longo do tempo para detectar mudanças; e Estudos ecológicos, que avaliam padrões e processos, onde padrões biológicos são descritos para determinar os fatores que os causam. A pesquisa em ecologia de costão rochoso, hoje em dia, frequentemente envolve experimentos controlados. Entretanto, amostrar padrões de distribuição e abundância por si só ou em conjunto com experimentos é ainda muito importante. Amostragem em Costão Rochoso Para desenhar um método de amostragem em campo adequado, o pesquisador deve ter claro os objetivos e perguntas do estudo. Isso permitirá uma melhor definição das hipóteses a serem testadas e dos parâmetros que devem ser medidos, para assim definir o local de estudo, posicionamento de unidades amostrais e unidades biológicas utilizadas. Desta forma, o desenho amostral pode ser definido de maneira eficaz, com poder estatístico suficiente para responder às perguntas em questão. Independente dos objetivos do estudo, um desenho amostraldeve incluir controles tanto no tempo quanto no espaço, replicação de todos os níveis de amostragem, múltiplos locais de amostragem, garantia de réplicas independentes e preferencialmente aleatórias e os resultados devem ser expressos em medidas de variabilidade estatística. A análise, para ser considerada válida, deve possuir poder estatístico. Este diminui à medida que aumenta a variabilidade intrínseca do sistema. Isto reflete diretamente no número de réplicas a serem amostradas no estudo. Seleção dos locais de estudo Os locais de coleta de dados ecológicos devem ser cuidadosamente selecionados. Para que possam ser considerados réplicas, os locais devem possuir características parecidas quanto ao maior número de parâmetros possíveis. Assim, variações nos parâmetros medidos podem ser detectadas sem que sejam confundidas com a variabilidade natural devido a diferenças geofísicas, por exemplo. Se estas características não forem semelhantes, elas devem ao menos ser registradas. As seleções dos locais de coleta devem, portanto, seguir algumas diretrizes, dentre elas: locais com características geofísicas semelhantes; seleção de pontos aleatórios dentre os possíveis locais, para que os dados possam ser extrapolados para toda a área. Dependendo dos objetivos do estudo e dos recursos disponíveis, cabe ao pesquisador definir se a amostragem será feita de forma mais abrangente, em muitos locais, se em poucos locais com um maior esforço de coleta, ou se unirá ambas as estratégias. Unidades Biológicas No ambiente de costão rochoso há uma diversidade muito alta de filos e espécies, o que exige um nível alto de conhecimentos taxonômicos do pesquisador em estudos que envolvem comunidades. Uma estratégia muito adotada é utilizar níveis taxonômicos mais altos ou grupos morfofuncionais como alternativa a espécies, dependendo da pergunta a ser respondida. A estes diferentes tipos de classificação adotados se dá o nome de unidades biológicas. A amostragem de populações, utilizando-se uma única espécie-alvo, ainda é a mais comum em estudos ecológicos. Nestes casos são utilizadas espécies bioindicadoras, mas a seleção de uma determinada espécie vai depender dos objetivos do estudo. Não há regras a priori para definir um modelo biológico, estas são geralmente espécies conspícuas e abundantes. Outro desafio em utilizar uma só espécie é a grande variabilidade no espaço e tempo que estas geralmente apresentam. Categorias taxonômicas mais altas, como família ou gênero, também são utilizadas. Esta estratégia pode ser utilizada quando a resposta da comunidade neste nível é semelhante à nível de espécie, simplificando a coleta e análise de dados. Morfoespécies também são consideradas e já apresentaram, 74 também, resultados semelhantes aos de espécies. Entretanto, estes tipos de unidades biológicas devem ser utilizados com cautela. É necessário um estudo prévio para detectar se os níveis considerados possuem mesmo respostas semelhantes para não gerar resultados equivocados. Outro tipo de agrupamento utilizado como substituto de espécies é o de grupos funcionais. Estes são espécies que compartilham características semelhantes como forma do corpo, posição trófica, ou ciclo biológico. Estes casos são geralmente aplicados para se detectar respostas ambientais mais amplas e abrangentes, mas podem não ser sensíveis o suficiente para detectar alterações mais sutis. Amostragem aleatória Este tipo de amostragem é uma das mais comuns, tanto para a seleção dos locais de coleta, quanto para o posicionamento das unidades amostrais. Amostras aleatórias permitem que o pesquisador extrapole os dados obtidos e faça inferências válidas sobre o universo amostral selecionado, a partir dos dados coletados desta forma. São raros os casos em que é possível determinar a abundância de uma determinada população contando todos os indivíduos. Por isso, uma amostra é utilizada para que se possa estimar a abundância ou parâmetro de interesse. Estas estimativas devem seguir os pressupostos exigidos pelos testes estatísticos selecionados, além de evitar vieses. Para serem consideradas réplicas, amostras individuais devem ser coletadas aleatoriamente, garantindo a independência entre elas e evitando pseudoreplicação. Distribuição de Elementos Amostrais A localização dos elementos amostrais vai determinar a natureza da informação coletada, bem como a precisão dos dados e inferências que podem ser extraídas destes. Há muitas maneiras de se distribuir os elementos amostrais em campo. A Figura 6 ilustra algumas delas. A amostragem aleatória é a mais comum e estatisticamente aceita. Esta é geralmente feita determinando-se dois eixos imaginários na área de estudo e sorteando coordenadas. Cabe ao pesquisador definir como serão realocadas as amostras, caso elas caiam em ambientes particulares, como fendas. Nestes casos, o pesquisador deverá seguir sempre o mesmo padrão para evitar viés na coleta. A amostragem sistemática consiste em distribuir os elementos amostrais uniformemente, como em uma grade. Este tipo é relativamente mais simples do que a amostragem aleatória. É vantajoso, pois amostra toda uma área por igual, enquanto aleatoriamente uma área pode ser amostrada mais intensivamente do que outra somente devido ao acaso. Porém, não garante independência entre as amostras, por isso possui um menor poder estatístico. Este tipo de coleta não é recomendado caso haja algum padrão de distribuição espacial da biota que siga um espaçamento semelhante ao da amostragem. Cabe ao pesquisador analisar esta comunidade previamente para definir se esta amostragem é aplicável. Na amostragem direcionada, o pesquisador define os locais onde são posicionados os elementos amostrais. Neste caso, não há como evitar viés por parte do pesquisador e o pressuposto de independência de erros entre as amostras é violado. Há poucos casos em que este tipo de amostragem pode ser utilizada, como quando há algum habitat ou espécie alvo que só ocorre em algum determinado local. Então o pesquisador deverá direcionar os esforços de coleta para onde esteja o objeto de estudo. Outro método de amostragem é a estratificada. Como os organismos não se distribuem uniformemente no costão rochoso, a estratificação pode ser utilizada para diminuir a influência da variabilidade espacial, aumentando a precisão da amostragem. Uma vez definidos os estratos de acordo com a fisionomia da área, a distribuição pode ser simples, com o mesmo número de elementos amostrais por estrato; proporcional, com mais elementos amostrais em áreas maiores; ou ótima, com mais elementos amostrais onde há uma maior concentração da espécie ou comunidade alvo. A Figura 6 ilustra este método. 75 Figura 6. Tipos de disposição de elementos amostrais. Esquerda: (a) Aleatória; (b) Sistemática; (c) Direcionada. Direita: (a) Estratificação simples; (b) Estratificação Proporcional; (c) Estratificação ótima. Adaptado de Murray et al. (2002). Tipos de amostradores O tipo de unidade amostral também depende dos objetivos de estudo e das espécies a serem estudadas. Os tipos mais comuns são quadrados e transectos de linha. Transectos de linha são plotagens de uma dimensão, utilizados para estimar a cobertura de organismos sésseis. Uma vantagem de se utilizar transectos é que estes englobam uma grande área. Há duas maneiras de estimar dados de cobertura com transectos, uma delas é a de intersecção, onde a distância a qual cada unidade biológica ocupa na linha é registrada. Ou seja, a intersecção entre unidades biológicas no transecto, o que reflete a área que estas ocupam, portanto, seu recobrimento. Esta abordagem é precisa, porém trabalhosa. Isto faz com que a segunda estratégia seja mais comum no campo, a de pontos de contato. Pontosde contato são distâncias pré-determinadas pelo pesquisador, podendo variar de poucos centímetros a um metro, geralmente, dependendo da resolução necessária e do tamanho do transecto. Neste método, a unidade biológica exatamente abaixo de cada ponto é registrada. No fim, estes valores são convertidos em porcentagens, estimando a cobertura de cada unidade biológica. Estes pontos podem ser distâncias homogêneas pré-definidas ou pontos aleatórios sorteados no transecto. Quadrados, por sua vez, são amostradores de duas dimensões que cobrem uma área do substrato. São utilizados para estimar cobertura, densidade ou biomassa de organismos tanto sésseis quanto móveis. O tamanho do quadrado também depende da resolução e alvo de estudo. No geral, quadrados são utilizados para delimitar uma área onde os organismos serão contados, raspados, ou terão sua cobertura estimada. Para estimar cobertura, assim como no transecto, pontos de contato são utilizados, seja aleatoriamente ou sistematicamente numa grade dentro do quadrado. Outro método, muito utilizado hoje em dia, é o de foto-quadrados. O mesmo princípio é seguido, onde a cobertura das unidades biológicas é estimada a partir de pontos plotados na imagem. Este método é vantajoso, uma vez que reduz muito o tempo de amostragem em campo, permitindo um melhor aproveitamento da coleta, uma vez que tempo é um fator limitante tanto no médio quanto no infralitoral, como já mencionado. Uma desvantagem desta abordagem é que a identificação de espécies é dificultada. 76 Neste caso é muito comum a utilização de substitutos como grupos funcionais ou níveis taxonômicos mais altos. Referências Coutinho, R.; Zalmon, I.R. (Ed.). (2009). O bentos dos costões rochosos. In: Pereira, R. C.P; Soares- Gomes, A. Biologia Marinha; 281-297p.4 Ghilardi-Lopes, N.P; Hadel, V.F.; Berchez, F. (2012) Guia para educação ambiental em costões rochosos. Porto Alegre: Artmed, 200p. Murray, S.T; Ambrose, R. F; Deither, M. (2002) Methods for Performing Monitoring Impact and Ecological Studies Rock Shories. 77 PARTE II ENSINO DE BOTÂNICA 78 CAPÍTULO 08 Formação de professores de botânica: bases teóricas e dificuldades na formação Luis Carlos Saito Introdução Atualmente, a importância de discutir a formação de um professor é consenso entre os pesquisadores da área da educação, não apenas em relação a quantidade e qualidade de informações sobre o assunto a ser ensinado, mas também sobre o conhecimento metodológico e o processo de autorreflexão da prática docente. Isso porque sabemos que quando tal formação é negligenciada os professores conservam as formas de ensino tradicionais, ou seja, tendem a reproduzir a forma de ensino que experimentaram durante a própria formação básica. Estas formas de ensino tradicional se focam na memorização de conceitos como última finalidade, criando uma distância entre o que atualmente se pretende na educação: desenvolvendo habilidades e competências, além do conteúdo enciclopédico. A profissão de professor se diferencia das outras profissões pela quantidade de experiência prévia que todos temos, pois, nosso sistema de ensino prevê um mínimo de 12 anos na escola. Assim, todos temos um contato prolongado com a profissão, porém numa visão de aluno. Tal contato faz com que criemos um pré-julgamento sobre a profissão docente antes mesmo de nos especializarmos. Ou seja, através dos nossos 12 anos na escola, nos sentimos capazes de opinar, criticar, julgar e exercer a função de professor, sem nenhum estudo mais sistematizado e aprofundado sobre o processo de ensino- aprendizagem. Outra concepção equivocada da profissão docente é que ela, diferente das outras profissões, está associada a um “dom” e que apenas algumas pessoas tem a capacidade de exercer tal profissão. As consequências deste preconceito são a associação do professorado com uma espécie de sacerdócio e que a recompensa do trabalho do professor está no ato de ensinar, criando um impedimento para a valorização da profissão. Julgamos que se existe um talento nato para a docência, ele é similar ao talento para qualquer outra profissão. No presente capítulo, vamos abordar ideias de alguns autores que tentam elucidar e discutir aspectos da formação de professores. Tardiff, Shulman e Shön são os três autores que abordaremos neste texto, as três linhas de pensamento concordam que existe um conhecimento exclusivo dos profissionais do ensino. Entretanto, qual é este conhecimento e como ele se desenvolve não são consenso entre os mesmos. Além disso, neste capitulo vamos abordar, segundo uma perspectiva de Shulman (cuja obra representa atualmente o principal referencial teórico do Grupo de Pesquisa Botânica na Educação, do Departamento de Botânica do IBUSP), algumas dificuldades do ensino de Botânica no Ensino Básico. Formação Docente A licenciatura e a formação profissional de um professor ainda assumem um caráter de complementação a formação. Primeiro você é biólogo e depois você é professor de biologia. Nesta perspectiva, a formação de um professor é meramente a sobreposição das áreas específicas e das áreas pedagógicas. Muitas vezes, os próprios alunos de licenciatura percebem seu curso como um apêndice do bacharelado. Os docentes universitários, por sua vez, se veem como pesquisadores ou bacharéis e não como professores, pois deles é exigido um conhecimento profundo da área e do conteúdo a ser ensinado e não que ele saiba ensinar o conteúdo. Mas, apesar deste paradigma se manter por muito tempo, a ineficiência destes formadores de professores é uma das grandes queixas dos universitários, e voltando a ideia de que professores com formação precária acabam por repetir suas experiências pessoais, podemos deduzir as consequências de não se pensar na formação dos professores. 79 Por muito tempo se tentou entender o que seria um “bom professor”, para que pudesse se pensar como formar bons profissionais de ensino. Sabemos que, como qualquer profissional, os professores apresentam características que são exclusivas de sua prática, e os seguintes autores são algumas das referências mais influentes dentro do ensino de ciências, sendo que todos tentam estabelecer quais são estas características e, principalmente, como elas se desenvolvem. Shön Donald Shön começou a desenvolver suas ideias sobre formação de professores e principalmente sobre o papel dos formadores de professores durante a década de 70, ele baseava seu trabalho na comparação da formação de professores com a de Arquitetos e de artistas, como músicos e pintores. Shön trouxe de volta uma concepção, de forma mais explícita, de profissional reflexivo, onde o desenvolvimento profissional do professor se dá através da reflexão sobre a própria atuação, que o próprio autor separou como Reflexão-na-ação, Reflexão-sobre-a-ação e Reflexão-sobre-a-reflexão-na- ação. A formação de um professor reflexivo se dá sobre a tentativa de solucionar conflitos sofridos pelo próprio docente, refletir sobre sua prática durante a ação, após a ação e refletir sobre a própria reflexão. Shön estabelece que a formação docente está intimamente ligada a prática docente e a uma característica dos profissionais denominada “Artistry”. Para Shön, Artistry é a capacidade de delimitar um problema e aplicar uma solução, improvisando as relações entre prática e teoria ou ciência e técnica. Um professor reflexivo estaria em um patamar de Artistry que permitiria articular suas aulas com o domínio do conhecimento, o domínio dos propósitos do conhecimento. Mais importante para Shön foi estabelecer como se formam estes profissionais reflexivos e, principalmente, como desenvolvero Artistry. Este Autor afirma que o papel do formador de professores é similar ao de um “coach”, que para os estudiosos desta linha não pode ser traduzido como treinador ou técnico pois assume parcialmente os dois papéis. O formador deveria atuar sobre os problemas aparentes que os professores trazem de suas práticas (reais ou simuladas) e ajudá-los a desconstruir o problema até encontrar um problema real, e por fim auxiliar o professor na escolha de estratégias para solucionar o problema real, por exemplo: “Um professor relata que seu problema é que os alunos não vão bem na prova de botânica (problema aparente), o formador pergunta sobre o assunto da prova, os pesos das perguntas, sobre as aulas dos assuntos, fazendo com que o professor perceba que existe um problema em um dos temas, vamos imaginar que os alunos não entenderam os conceitos de fotossíntese (ainda um problema aparente), o formador então pergunta sobre quais são as concepções dos alunos sobre fotossíntese ou sobre nutrição, o professor retoma este assunto com a classe e percebe que os alunos achavam que as plantas se alimentam pela raiz (problema aparente). O formador pergunta o que os alunos entendem por alimentar-se, buscando neles o conceito de nutrição, e percebe que eles fazem uma correlação direta entre a nutrição da planta com a nutrição de animais (problema real), o formador pede para os outros professores do curso elaborarem um exercício que compare a nutrição de uma planta com a de um humano, e o professor faz concessões sobre a realidade de seus alunos até atingir uma estratégia aplicável” Shön ancorou suas teorias de Artistry e profissional reflexivo na prática docente, ou seja, o desenvolvimento de um bom professor está associado aos problemas que ele próprio vivência na sua sala de aula. Ao aproximar a formação de professores com a formação de artesões ele explicita a necessidade de uma relação formador/professor semelhante à de um mestre com seu aprendiz. O próximo autor que veremos, assim como Shön, valoriza muito a prática na formação de professores. Mas Tardiff se foca em tentar entender as características de um bom professor. 80 Tardiff Para Tardiff, um repertório de conhecimentos, práticas, competências e habilidades que são mobilizados para a resolução das tarefas de um profissional são denominados Saberes. Os saberes podem ser desenvolvidos através de um ensino formal, de experiências durante a prática profissional ao longo dos anos. Para este autor cada profissão demanda um saber específico para desenvolver melhor suas práticas, tal saber não é compartilhado com pessoas que não praticam tal profissão. Nesta linha de pensamento podemos afirmar que os saberes são plurais e heterogêneos em três sentidos: 1. Eles advêm de várias fontes. Durante a prática docente, o professor pode usar como referência sua cultura pessoal, de sua escola anterior, de sua universidade e assim sucessivamente. 2. Eles não se restringem a uma disciplina, ao contrário, são altamente ecléticos e sincréticos (sistemas filosóficos que combinam com princípios de diferentes linhas de pensamento). 3. Eles procuram atingir simultaneamente vários objetivos. Para este autor os Saberes apresentam um sentido amplo, que engloba conhecimentos, competências e habilidades, construídas ao longo de uma trajetória e proveniente de diversas fontes. Ou seja, nós adquirimos saberes muito antes de assumirmos uma posição profissional, muito antes mesmo de começarmos nosso processo de profissionalização, que no caso dos professores é a licenciatura ou a pedagogia, e desenvolvemos estes saberes ao longo do nosso desenvolvimento profissional. Mas afinal quais são estes saberes estipulados por Tardiff na profissão de professor? Este autor separa os saberes docentes em 4 tipos principais: -Saberes da Formação Profissional: são aqueles desenvolvidos nas instituições de formação, focadas principalmente na Ciência da Educação e da Pedagogia, são saberes que procuram articular as pesquisas sobre ensino e pedagogia às práticas docentes, como por exemplo Teorias de Aprendizagem, Neurociência e Psicopedagogia. -Saberes Disciplinares: São aqueles referentes ao conteúdo disciplinar a ser ensinado nas escolas, transmitidos pela academia, como Matemática, Química, Biologia e Literatura, por exemplo. -Saberes curriculares: São os saberes referentes ao conhecimento dos programas, conteúdos e métodos a serem utilizados pelo professor, esses conhecimentos são selecionados pela instituição na qual o professor leciona, ou seja, é o conhecimento e a aplicação dos programas de ensino estipulados pela escola. -Saberes experienciais: São saberes obtidos através da prática do próprio professor, como um saber-fazer, estes saberes são desenvolvidos e validados na própria prática do professor, se incorporando à experiência do professor modificando seus hábitos e habilidades. Tardiff aborda de forma abrangente os saberes docentes, para o autor um professor com os saberes bem desenvolvidos seria capaz de ensinar em qualquer situação, nosso próximo autor assume uma posição mais focada em situações de ensino particulares. E também reavalia o papel do conteúdo a ser ensinado na prática docente. Shulman Shulman, além de tentar traçar panoramas mais gerais sobre os conhecimentos necessários à docência, como os dois autores anteriormente abordados, também focou parte importante de suas ideias na tentativa de entender a situação de um professor ensinando um assunto específico em um certo contexto. Pode-se dizer que Shulman valoriza especialmente o papel do conteúdo específico na atuação do professor. Podemos evidenciar isso no fato de Shulman inicialmente ter postulado que a profissão docente apresentava três Conhecimentos Base: Conhecimento do conteúdo específico. Conhecimento pedagógico do conteúdo. Conhecimento curricular. 81 Podemos perceber que inicialmente o conhecimento do conteúdo tinha peso em dois conhecimentos bases e muito pouco para a pedagogia. Entretanto o conhecimento base que mais chamou a atenção foi o Conhecimento Pedagógico do Conteúdo ou PCK na sigla em inglês. Segundo o próprio autor, o PCK: “... vai além do conhecimento da matéria por si só, mas o conhecimento da matéria para o ensino, eu ainda falo sobre o conhecimento do conteúdo aqui, mas uma forma particular do conhecimento do conteúdo que incorpora os aspectos mais pertinentes do conteúdo no seu potencial para ser ensinado” O PCK é um conhecimento acessado pelo professor durante o preparo e durante a aula propriamente dita, dentro deste conhecimento temos ações como: seleção do conteúdo; forma com que ele vai ser ensinado; profundidade com que ele será abordado; como este conteúdo será avaliado entre outras. Posteriormente, novos Conhecimentos Base foram adicionados pelo próprio Shulman a sua lista inicial, totalizando sete conhecimentos base para a profissão docente: Conhecimento do conteúdo Conhecimento pedagógico geral Conhecimento curricular Conhecimento pedagógico do conteúdo Conhecimento dos aprendizes e suas características Conhecimento do contexto educativo Conhecimento dos fins, propósitos e valores educacionais e suas bases filosóficas e históricas Repare que o conhecimento pedagógico ganhou importância nesta versão e os três últimos conhecimentos vieram de uma reavaliação do conhecimento curricular, que jutos formam um agrupamento estabelecido por outros autores como conhecimento do contexto. Em todas as versões dos conhecimentos base de Shulman não existe uma hierarquização do conhecimento, ou seja, nenhum conhecimento é mais ou menos importante que o outro, porém, as relações entre tais conhecimentos também não foram abertamente discutidas pelo autor. Shulman abandonou esta linha de pesquisa para se dedicara outras áreas do ensino. Entretanto seus alunos continuaram a pesquisar os Conhecimentos Base e principalmente o PCK. Além de inúmeros modelos novos conhecimentos foram apontados por estes teóricos, entretanto dois pontos são constantes: O primeiro é a afirmação da importância do PCK como conhecimento exclusivo dos professores; E o Segundo é a discussão da relação entre os conhecimentos. Um dos modelos mais influentes foi proposto por Grossman e colaboradores (Figura 1), pois determina apenas seis conhecimentos, mas destrincha melhor cada um destes, e coloca as relações entre si. 82 Figura 1. Modelo de conhecimentos base segundo Grossman e colaboradores (Goes, 2014). Podemos perceber neste modelo que, apesar de serem conhecimentos separados, os seus respectivos desenvolvimentos são influenciados uns pelos outros, ou seja quando estudamos o PCK de um professor, através de entrevistas, questionários e observações de aula, temos que considerar os outros conhecimentos como moduladores do próprio PCK, e vice e versa. O PCK, como o próprio nome já diz, está ancorado em um conteúdo e é importante salientar a profundidade deste conteúdo, não podemos dizer que um professor apresenta um PCK de Biologia, pois podemos facilmente perceber que ensinar Genética e ensinar Botânica requerem diferentes abordagens, da mesma forma não podemos afirmar que existe um PCK de Botânica, pois ensinar classificação vegetal requer uma metodologia diferente de ensinar Fotossíntese. Podemos extrapolar esta especificidade do PCK para os outros conhecimentos base que o influenciam (de contexto, pedagógico, curricular e etc.), por isso só podemos afirmar que aferimos o PCK de um indivíduo em uma situação de ensino específica. Os estudos do PCK, bem como os saberes docente de Tardiff, se fazem importantes, pois nos ajudam a definir e avaliar a profissão docente. Aferindo o PCK de um indivíduo podemos apontar quais são os conhecimentos base que precisam ser revisados na sua prática, e o conhecimento do próprio PCK pode auxiliar na sua Autorreflexão. A busca pelo PCK de vários licenciandos de um mesmo curso pode auxiliar na estruturação do próprio curso. As pesquisas sobre características dos professores (Artistry, Saberes docentes e Conhecimentos base) são geralmente qualitativas. Nesses casos, isso implica que conclusões muito genéricas, e generalizações, são possíveis geralmente a partir de avaliações mais amplas que envolvem muitos estudos de caso. Dentro da área de formação de professores, desenvolvemos uma linha de investigação relacionada à formação de professores de biologia e focamos especificamente na abordagem de temas da Botânica. Trataremos a seguir desse assunto. Formação de professores de botânica Uma etapa importante ao pensarmos na formação do professor que ensina sobre botânica é entender quais os principais problemas atualmente detectados nesse ensino. Desafios no ensino de botânica A descontextualização do tema é a desassociação dos conteúdos disciplinares com o cotidiano do estudante. Isso, infelizmente, é muito comum no ensino de botânica. O conteúdo geralmente está associado a “palavras difíceis”, processos complicados e cheios de conceitos soltos, ou seja, o estudante não vê finalidade no assunto, não faz relações entre os vegetais e seu cotidiano. A descontextualização 83 está intimamente associada ao segundo problema a reprodução de um ensino formal, que já discutimos neste capítulo Outro grande obstáculo é a chamada Cegueira Botânica. Em todos os níveis de ensino os estudantes lembram mais e preferem estudar os animais, mais do que as plantas. Não só no âmbito escolar, mas as pessoas em geral tendem a ver as plantas como parte exclusiva da paisagem, esquecendo- se inclusive de que plantas são seres vivos. Essa incapacidade de perceber os vegetais no ambiente e a falha em reconhecer e apreciar o papel das plantas para a conservação da vida na terra associada à crença de que animais são superiores as plantas é justamente o que se denomina como Cegueira Botânica. Existem, a priori, duas causas para a cegueira botânica: A primeira é a tendência de se usar exemplos animais nos livros didáticos e em aulas ao invés de plantas, essa tendência é conhecida como zoocentrismo, mas possivelmente o zoocentrismo é fruto indireto da nossa segunda causa para a Cegueira Botânica; Os humanos foram evolutivamente selecionados para perceber mais animais do que plantas, alguns estudos confirmam que existe uma diferença significativa na percepção de plantas e de animais, e que pode ter sido selecionada pois perceber predadores em detrimento de plantas garantia uma chance maior de sobrevivência. Formação de professores de botânica: superandos os desafios A descontextualização Podemos perceber que para resolver este problema, na sua situação de ensino, o professor deveria ter seu conhecimento do contexto desenvolvido, mas principalmente um conhecimento dos propósitos de se ensinar vegetais, o que é parte integrante do PCK de qualquer assunto de botânica. A descontextualização também está relacionada ao contato com as plantas, ao uso da vegetação local, a quais plantas o professor escolhe como exemplo, o conhecimento do conteúdo e da pedagogia também tem que ser desenvolvido durante a formação. Vale a pena lembrar que este professor precisa entrar em contato com este problema para que, junto com seu formador, ele aprenda a resolvê-lo na sua prática. A reestruturação das estratégias para combater este problema nos alunos existe e vem avançando cada vez mais (Vide capitulo 9), cabe aos cursos de formação de professores apresentar estas formas de ensinar aos professores em formação e permitir que estes professores testem e observem. E isso também é parte da solução do nosso segundo problema A reprodução de um ensino formal Em um processo semelhante a um ciclo vicioso a descontextualização e a falta de formadores capacitados gerou um problema no Ensino de Botânica, a reprodução de um ensino formal. Ou seja, um professor que teve uma formação como aquela descrita no começo deste capítulo, com o conteúdo específico totalmente afastado da pedagogia, tende a reproduzir as estratégias que ele experimentou quando era aluno, deixando de lado o que aprendeu durante a sua formação docente, inclusive ensinando conceitos ultrapassados que vão de encontro ao que ele aprendeu nas aulas de conteúdo específico. Por exemplo, apesar dos professores saberem que o agrupamento das algas é polifilético eles ainda ensinam o assunto junto com protozoários no antigo grupo Protista, ou se um professor memorizou a fotossíntese com uma música, ele vai utilizar a mesma música. Esta conduta dos professores afeta diretamente seus alunos, e se este aluno porventura vir a se tornar um professor de botânica ele irá repetir a mesma música e a mesma aula teórica de Protista. O Problema pode ser causado pela falta de relação entre o conteúdo, o conteúdo a ser ensinado e as estratégias de ensino, a falta de contato com novas formas de ensinar (conhecimento pedagógico) impede o ensino do conteúdo aprendido na universidade (Conhecimento do conteúdo) e vice e versa. Novamente o desenvolvimento do PCK pode ser uma estratégia para criar estas conexões e permitir que, mesmo através de simulações ou do próprio exemplo do professor, ele experimente novas metodologias. Este problema não é exclusivo da Botânica, é um problema que pode ser encontrado em quase todo o Ensino de ciências, mas nosso último problema é exclusivo dos Vegetais. 84 A Cegueira Botânica Acreditamos, porém, é possível sobrepujar a Cegueira Botânica, pois ela tem um componente cultural que reforça a nossa fisiologia, agindo sobre este componente cultural podemos fazer com que o estudante mude seu padrão de percepção, reconhecendo as plantas no ambiente.Os Professores precisariam atuar diretamente sobre a Cegueira Botânica, e novamente isso só é possível quando ele próprio superou a Cegueira e quando ele entende quais são os processos de aprendizagem dos alunos, inclusive processos fisiológicos de aprendizagem (conhecimento pedagógico), e que eles podem ser conteúdo específico. Conclusão Os três problemas que apontamos no ensino de botânica estão fortemente associados a formação dos próprios professores de botânica, não por causa da origem dos problemas, mas por que a solução, ou pelo menos a diminuição destes problemas está em professores bem formados. Tais profissionais atuam como mediadores que instigam os estudantes a perceber os vegetais como seres vivos integrados ao ambiente e como agentes essenciais para seu equilíbrio, ao mesmo tempo estes professores aproximam o conteúdo da botânica com o cotidiano. A formação de professores, inicial ou continuada, e a reflexão ativa e contínua da própria prática são essenciais para quebrar com um ciclo vicioso, e perigoso, de se pensar em ensino como apenas transmissão de conteúdo acumulado, formar um professor significa capacitá-lo a agir sobre situações adversas de ensino, dar importância a aquilo que deve ser ensinado, e, a cima de tudo, formar um profissional crítico capaz de formar cidadãos críticos, não importando a área de ensino, mas em todas elas, e assim criar professores capazes de agir sobre as dificuldades de se ensinar um conteúdo tão subestimado como a botânica. Para formar estes professores precisamos de bons formadores, e tais formadores surgem não somente de bons professores, eles precisam de um respaldo teórico sobre como se desenvolve um profissional, quais são os fatores que dificultam ou facilitam o ensino, o modo que as pessoas aprendem. É através de pesquisa que dá ao formador de professores este respaldo. A pesquisa em Ensino de Botânica e de formação de professores lança uma luz sobre os processos de ensino, sobre a origem e as possíveis soluções dos problemas encontrados no ensino de botânica, e sobre como um professor se torna um profissional. Ao desenvolver pesquisas na área de ensino podemos modificar a forma tradicional de ensino descobrindo quais são as falhas e consequências deste ensino. Por estes e outros motivos a pesquisa em ensino botânica, que é uma área nova, tem galgando espaço aos poucos dentro da comunidade de ciências biológicas, e se diferencia por fazer a ponte entre a pedagogia e o conteúdo específico. Referências Anefalos L. C; Guilhoto, J. J. M. (2003). Estrutura do mercado brasileiro de flores e plantas ornamentais. Agricultura em São Paulo 50: 41-63. Balas, B., & Momsen, J. L. (2014). Attention “blinks” Differently for Plants and Animals. Life Sciences Education, 13, 437–443. Goes, L. F. de. (2014). Conhecimento Pedagógico do Conteúdo: Estado da Arte no campo da Educação e no Ensino de Química. Universidade de São Paulo. Nóvoa, A. (2002). Formação de professores e trabalho pedagógico. Educa. Perrenoud, P. (2002). Prática reflexiva no ofício do professor: profissionalização e razão pedagógica. Artmed. Schön, D. (1992). Formar professores como profissionais reflexivos. Os professores e a sua formação, 3, 77-91. Shulman, L. (1987). Knowledge and teaching: Foundations of the new reform. Harvard educational review, 57(1), 1-23. 85 Tardiff, M. (2014). Saberes docentes e formação profissional. Editora Vozes Limitada. Wandersee, J. H.; Schussler, E. E. (1999). Preventing plant blindness. American Biology Teacher, 61(2):84-86. Wandersee, J. H.; Schussler, E. E. (2001). Towards a theory of plant blindness. Plant Science Bulletin, 47(1):2-9. 86 CAPÍTULO 09 Por que a botânica é tão chata? Geisly França Katon Naomi Towata Opa, muita calma com o título! Talvez você esteja se perguntando o porquê dessa pergunta em um material que aborda apenas conteúdos relacionados à Botânica. Acredito que, se você está com este material, você tenha interesse nessa área e não ache que a Botânica é chata. Mas venho aqui, questioná- lo: será que todos gostam da Botânica? Vamos fazer um exercício rápido: lembre-se das suas aulas na escola e na faculdade, será que todos da sala gostavam das aulas de Botânica? Provavelmente não. Pois é, infelizmente a Botânica é tida como uma matéria chata, uma ciência normalmente considerada pouco interessante pelo público em geral e, especialmente, por estudantes. Grande parte das pessoas apresentam certa dificuldade para perceber as plantas no seu próprio ambiente, o que leva a uma certa incapacidade de reconhecer a importância das plantas não só para os humanos, como para a biosfera, além de algumas pessoas apresentarem certa dificuldade até mesmo para apreciar a beleza e as características peculiares das plantas, e não apenas chamá-las de “mato”, considerando-as como inferiores aos animais. Pensando na realidade brasileira, será que existe alguma preocupação com o ensino de Botânica na forma como ela é ensinada e o que fazer para melhorá-la? No contexto brasileiro, a preocupação com o ensino de Botânica também é antiga. Em 1937, o pesquisador Rawitscher já atentava para o desafio de tornar a Botânica no ensino secundário uma disciplina menos “enfadonha”. Atualmente, a Botânica permanece como um tema subestimado da Biologia. Sua abordagem nos diversos níveis de ensino é tradicionalmente descontextualizada, excessivamente teórica e descritiva e pouco relacional, o que, obviamente, há de provocar baixo interesse e motivação nos estudantes. Por exemplo, em um estudo sobre a percepção de licenciandos acerca do ensino de Botânica na Educação Básica no Brasil, apurou-se que a maioria dos julgamentos positivos sobre a Botânica fazia referência ao Ensino Fundamental e que a pressão que os exames vestibulares exercem sobre a educação no Ensino Médio contribui para tornar as aulas conteudistas e desinteressantes. Neste estudo, a maioria dos estudantes participantes, todos licenciandos em Biologia, alegou ter sua opinião sobre o ensino de Botânica positivamente transformada após terem conhecido novas estratégias didáticas. Se pensarmos que as pessoas tendem a elaborar o novo conhecimento com base no que já sabem e naquilo que acreditam, e sabendo-se que este conceito é amplamente aceito entre os pesquisadores das áreas de neurociência, psicologia e pedagogia, podemos dizer que uma boa maneira para o professor iniciar o ensino de um novo tema é levantando os chamados conhecimentos prévios dos estudantes, ou seja, o que eles já sabem sobre o tema. Pesquisas mostram que é mais eficiente partir desses conhecimentos prévios e tentar compará-los e ampliá-los ao invés de iniciar um novo tema apresentando-o de forma totalmente independente. A partir da compreensão da importância de se ancorar à aprendizagem nos conhecimentos que os estudantes já possuem sobre um determinado tema, devemos ressaltar a importância de um ensino contextualizado. Mas, afinal de contas, o que é contextualizar? Contextualizar, de maneira geral, é o ato de vincular o conhecimento à sua origem e à sua aplicação. Esta ideia está presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, que orienta para a compreensão dos conhecimentos para uso cotidiano e está pautada nas diretrizes presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que são guias para orientar a escola e os professores na aplicação do novo modelo. Devemos considerar também que, geralmente, os saberes científicos sofrem transformações nos diferentes espaços sociais desde sua origem na esfera científica até sua inserção no contexto de 87 ensino, ou seja, passa de um objeto de estudo para um objeto de ensino. Vistoque as relações existentes na sala de aula não estão restritas a relação que existe entre o aluno e o professor, mas esta relação didática também é constituída pelo saber ensinado. Mas esta relação professor-aluno-conhecimento não pode ser isolada do contexto político, social e histórico no qual estão inseridos, pois isto influencia na maneira como os conhecimentos são reconstruídos em sala de aula, em um processo que conhecemos como transposição didática, momento no qual o professor não pode deixar de estabelecer uma relação didática, na qual existe uma intenção de ensinar o outro. Logo, temos que a transformação de um conhecimento considerado como ferramenta a ser usada, para um conhecimento como algo a ser ensinado e aprendido é o que Chevallard chama de transposição didática do conhecimento. De alguma maneira, o “saber sábio”, que são aqueles produtos ou processos das práticas humanas, deve ser selecionado, extraído de um recorte da realidade que atenda às necessidades dos atores relacionados ao sistema educacional de determinado local, levando este a ser um “saber a ensinar”, o qual posteriormente transforma-se no “saber ensinado” dentro da sala de aula. Neste processo de transformação dos saberes, que é essencial para que eles fiquem em melhores condições de serem ensinados e aprendidos, podem acontecer algumas simplificações distorcidas ao longo do caminho, mas se esta transformação for feita de maneira consciente, ela pode levar a uma transformação necessária e bem feita do saber científico. Relembre as suas aulas de Botânica, como ela foi trabalhada em aula? Será que é fácil fazer essa transposição didática? Uma outra questão, que não pode ser descartada pelos professores, são as características particulares de cada estudante e suas motivações. Algumas teorias afirmam que somos diferentes nas maneiras em que preferencialmente percebemos o mundo. Nesse caso, o professor que vê o processo de ensino-aprendizagem sob esta perspectiva, deve ter em mente que os estudantes possuem suas individualidades e, em uma mesma sala de aula, existem pessoas que preferem e aprendem melhor de diferentes formas, alguns alunos são mais auditivos, ou seja, preferem escutar explicações, outros são predominantemente visuais, o que faz com que estímulos visuais sejam os mais efetivos para sua aprendizagem ou ainda alunos que são sinestésicos, que são aqueles que gostam de experimentar e aprendem melhor tocando em objetos, fazendo construções. Quando estamos em uma sala de aula, o que fazer para lidar com uma situação tão diversa? Uma opção é utilizar diferentes estratégias de ensino. Utilizando uma maior variedade, o professor aumenta as chances de atingir um maior número de estudantes. Então, se pensarmos em um planejamento de aula anual, a melhor estratégia de ensino, não é uma só, mas sim utilizar um vasto repertório de estratégias ao longo das aulas. Uma estratégia de ensino é um modo de manipular os recursos disponíveis no ambiente para torná-lo mais favorável ao processo de aprendizagem. Cada estratégia tem um objetivo específico, ou seja, apresentam pré-requisitos, pontos de vista e favorecem conhecimentos não conceituais de forma distintos entre si. A utilização de apenas uma estratégia de ensino pode ser feita para sanar uma dificuldade específica de um estudante, entretanto para um grupo de estudantes e múltiplos assuntos recomenda-se o uso de múltiplas estratégias ao longo do curso. As possibilidades de estratégias de ensino são muito variadas, algumas atividades como leitura de texto e tempestade cerebral (brainstorm) promovem uma atividade mais individual, exercícios de debate e estudos de caso estimulam cooperação, jogos ajudam nos processos de resolução de problemas, mapas de conceito trabalham a capacidade de síntese. A escolha de uma estratégia não deve ser leviana, ela depende de um planejamento a longo prazo levando em consideração os alunos e o projeto político- pedagógico da instituição. Um excesso de aulas apenas expositivas pode gerar um desgaste no processo de ensino e aprendizagem de Botânica. Uma abordagem descontextualizada, com excesso de teoria, extremamente descritiva e focada em conhecimento conteudista (por exemplo, centrado na memorização de nomes complicados) pode levar a perda do entusiasmo dos estudantes, onde o estímulo para a aprendizagem fica cada vez mais diminuto. Observa-se assim a origem de um “ciclo vicioso”, uma vez que os professores reclamam e usam tal falta de interesse observado nos estudantes para justificar sua própria falta de entusiasmo. Por outro lado, as aulas consideradas “pouco entusiasmantes” são apontadas pelos 88 estudantes como fatores de seu próprio desinteresse. Vejam só a necessidade de quebrar tal ciclo no processo de ensino-aprendizagem. Dentre as modalidades didáticas existentes, destacamos as aulas práticas e projetos como formas muito interessantes para propiciar aos estudantes a experiência de vivenciar o método científico. Entre as principais funções das aulas práticas pode-se citar: despertar e manter o interesse dos alunos; envolver os estudantes em investigações científicas; desenvolver a capacidade de resolver problemas; compreender conceitos básicos; e desenvolver habilidades. As aulas práticas são muito importantes também para a aprendizagem do aluno nas aulas de Botânica, pois são uma oportunidade de relacionar os conteúdos teóricos com o seu dia-a-dia e perceber que a matéria aprendida nos livros não está distante do seu cotidiano. O professor pode explorar temas mais relevantes ao cotidiano do aluno. Temos ainda outros tipos de instrumentos, que também são importantes para a aprendizagem, como jogos, discussões, debates, modelos e as próprias aulas expositivas. Mas uma atividade que explicitem o estudante como integrante da natureza, que possibilite que ele interaja com ela, faz com que o aluno perceba através dos sentidos e também através da emoção ao relacionar-se com o meio. Atividades que são desenvolvidas no ambiente natural possibilitam que o aluno se sensibilize com o ambiente ao seu redor, proporcionando, muitas vezes, que eles tenham o primeiro contato verdadeiro com o ambiente onde mora. A utilização desse tipo de atividade permite o contato com outras formas de conhecimentos não conteudistas, como por exemplo, como proceder em um ambiente de laboratório ou como agir ao lidar com competição, ao escolher e efetivar uma atividade, o professor propõe aos alunos a realização de diversas operações mentais em um processo de crescente complexidade do pensamento. Uma outra estratégia didática, que, de acordo com as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, “oferece o estímulo e o ambiente propícios que favorecem o desenvolvimento espontâneo e criativo dos alunos e permite ao professor ampliar seu conhecimento de técnicas ativas de ensino, desenvolver capacidades pessoais e profissionais para estimular nos alunos a capacidade de comunicação e expressão, mostrando-lhes uma nova maneira, lúdica, prazerosa e participativa de relacionar-se com o conteúdo escolar, levando a uma maior apropriação dos conhecimentos envolvidos” é o jogo. Os usos de atividades lúdicas, como as brincadeiras, os brinquedos e os jogos, são reconhecidos pela sociedade como meio de fornecer ao indivíduo um ambiente agradável, motivador, prazeroso, planejado e enriquecido, que possibilita a aprendizagem de várias habilidades. Outra importante vantagem, no uso de atividades lúdicas, é a tendência em motivar o aluno a participar espontaneamente na aula. Acrescenta-se a isso, o auxílio do caráter lúdico no desenvolvimento da cooperação, da socialização e das relações afetivas e, a possibilidade de utilizar jogos didáticos, de modo a auxiliar os alunos na construção do conhecimento em qualquer área, pois o jogo alia aspectos lúdicos aos cognitivos e enquanto joga, o alunodesenvolve a iniciativa, a imaginação, o raciocínio, a memória, a atenção, a curiosidade e o interesse, concentrando-se por longo tempo em uma atividade. No entanto, ao utilizar os jogos como estratégias didáticas, os professores devem estabelecer bem os objetivos educativos desta atividade, pois a atividade “jogo” pode ser interpretada como “brincadeira” pelos alunos. A produção de ferramentas alternativas, como multimídias em geral e jogos, tem se revelado um facilitador interessante no processo de ensino-aprendizagem da Botânica, uma vez que tais ferramentas são capazes de elevar o interesse e a motivação de professores e estudantes sobre as plantas. Devido ao cenário apresentado e à grande demanda atual pela conservação ambiental, fica evidente a relevância de pesquisas que enfoquem novas estratégias para ensinar botânica, levando a população em geral, incluindo os estudantes de diferentes níveis de ensino, a superar a “cegueira botânica” (vide capítulo 08). A Botânica é uma matéria que, além de ser cheia de nomes difíceis, muitas vezes é apresentada aos alunos de maneira descontextualizada, já que muitas vezes, as aulas são ministradas sem que os alunos compreendam a importância dos organismos vegetais, e os vejam apenas como estruturas e palavras complicadas que devem ser “decoradas” para a prova. Por exemplo, qual a relação entre o xilema, o floema, os estômatos, a fotossíntese e o ciclo do carbono? Pensou? Você é capaz de 89 estabelecer esta relação? Será que a maioria da população conseguiria estabelecer esta relação? Provavelmente não. E isso não necessariamente está relacionado ao interesse das pessoas pelos vegetais, mas sim com a forma como esses conteúdos são apresentados para as pessoas durante sua vida escolar. Vamos parar para pensar um pouco, como esses conteúdos foram abordados na sua escola/faculdade? Eles foram trabalhados separados ou buscando uma compreensão do processo como um todo? Em geral, as escolas adotam uma forma de ensino na qual os conteúdos são vistos de forma segregada, cada um na sua caixinha, sem uma conexão entre eles. Sendo assim, a maioria das pessoas não conseguiria perceber que o xilema, vaso condutor de seiva bruta, ou seja, essencialmente de água e sais minerais, é o responsável por levar a água da fotossíntese para as folhas, e que isso só acontece devido ao sistema de abertura e fechamento dos estômatos ali presentes. Além disso, as pessoas não percebem que durante a reação de fotossíntese, a planta tem a capacidade de transformar a energia luminosa (proveniente da luz solar) em energia química processando o dióxido de carbono (presente na atmosfera), água (trazida pelo xilema) em glicose, gás oxigênio e água. Neste processo a glicose (seiva elaborada) é transportada através do floema para as outras partes do vegetal. Já o gás oxigênio é liberado na atmosfera. Além deste exemplo, o qual aborda a importância central das plantas para os ciclos biogeoquímicos, temos muitos outros que representam a dificuldade que as pessoas têm de perceber as plantas no seu cotidiano, para além do seu uso como recurso alimentício ou ornamental. Muitos dos medicamentos que utilizamos apresentam como base compostos extraídos de vegetais. As plantas são vistas apenas como cenários para a vida dos animais, sem que as pessoas compreendam suas necessidades vitais, ignorando a importância das plantas nas suas atividades diárias (como a presença de uma refrescante sombra de uma árvore em um dia de verão tropical). Também devemos notar a dificuldade das pessoas para perceber as diferenças de tempo entre as atividades dos animais e das plantas, como o crescimento, respiração, ciclo de vida e movimento. Sem contar que poucas pessoas vivenciam experiências com as plantas da sua região, e não frequentam parques ou reservas e por isso acabam não sabendo explicar o básico sobre as tais plantas. Isso acaba gerando uma incapacidade das pessoas para perceber características que são únicas das plantas, tais como adaptações, coevolução, cores, dispersão, diversidade, perfumes etc. Um outro ponto da Botânica que pode ser considerado um dos pontos mais desafiadores são os ciclos de vida dos vegetais. Você deve ter pensado em vários nomes complicados e setas neste momento, correto? Pois é, quando se trata de sua transposição didática, esse não é dos saberes mais simples de ser abordado em sala de aula. Tanto professores como alunos costumam manifestar grandes dificuldades em perceber que os ciclos dos mais variados exemplares de plantas seguem todos um padrão geral de funcionamento que, uma vez compreendido, torna fluente o entendimento das peculiaridades que cada grupo vegetal apresenta. Podemos destacar três aspectos que se revelam como complicadores do tema em questão: muitas das estruturas estudadas são microscópicas e, portanto, de difícil domínio pelos estudantes; muitos dos conceitos genéticos requisitados são abstratos; e, por último, frequentemente, os estudantes não estão familiarizados com a terminologia específica utilizada. Como forma de aproximação entre o tema e os estudantes, podemos lançar mão de um recurso tecnológico que ilustre o tema de modo a torná-lo menos abstrato para os estudantes uma vez que este será facilmente visualizado utilizando-se de um programa de animação computacional para representar alguns ciclos de vida dos vegetais. Podemos ver que o ensino de Botânica tem muitos pontos a melhorar. Devemos pensar nos recortes dos conteúdos que devem ser trabalhados e em sala, na linguagem e no contexto que eles devem ser apresentados aos estudantes, nas estratégias didáticas que queremos usar para alcançarmos nossos objetivos e também conseguir cativar o estudante. Agora você deve estar se perguntando como fazer tudo isso? Será que existem materiais/sites disponíveis para me ajudar? Pois sim, existem! Como por exemplo, o site do grupo de pesquisa que participamos, o BOTED. O BOTED (Grupo de Pesquisa Botânica na Educação) tem como objetivo, dentre outros, contribuir para ampliar os conhecimentos sobre ensino-aprendizagem de Botânica e fazer com que esse 90 ramo da ciência tão encantadora e importante deixe de ser vista como “chata”. O desenvolvimento de estratégias didáticas é um de seus focos. A seguir mostraremos alguns materiais didáticos disponíveis na internet e deixamos o convite para uma visita ao site www.botanicaonline.com.br para conhecer mais sobre o trabalho do grupo: Material 1. Jogo - Que caule é este? Material elaborado por membros do BOTED para o Ensino Básico. Aborda a morfologia dos tipos básicos de caule por meio de um jogo de cartas colaborativo de correlação entre os tipos de caule e seus exemplos, a descrição e o desenho esquemático. Disponível em www.botanicaonline.com.br, Materiais didáticos. Material 2. Aprendendo sobre Algas: Jogo Algazarra Material elaborado por membros do BOTED para o Ensino Básico. O jogo foi desenvolvido para computadores e aborda a diversidade de algas e suas características de maneira interativa disponibilizando gabarito para conferir as respostas. Disponível em www.botanicaonline.com.br, Materiais didáticos. Material 3. Animação sobre fotossíntese Material elaborado por membros do BOTED para a formação continuada de professores. Aborda o processo de fotossíntese em detalhes e pode ser utilizado para dar uma visão geral do processo também para alunos do ensino médio. http://www.youtube.com/watch?v=mUwUHgPpiF0 Referências Anastasiou, Lea G. C. (2006) Estratégias de ensinagem., in: Anastasiou, L. G. C., Alves, L. P. Processos de ensinagem na Universidade. 6ª ed. Joinvile (SC): Univille, p.68-100. Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. (2006) Orientações curriculares para o ensino médio: ciências da natureza, matemática e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB. Chevallard, Y. OnDidactic Transposition Theory: Some Introductory Notes. 1989. Disponível em : <http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip/rubrique.php3?id_rubrique=6> Acessado em 23 de abril de 2016. Chevallard, Y. La Transposition Didactique: Du Savoir Savant au Savoir Ensigné. Grenoble, La pensée Sauvage, 1991. Chevallard, Y. Readjusting didactics to a changing epistemology. European Educational Research Journal, v. 06, n. 02, 2007. Fortuna, T. R. (2003) Jogo em aula. Revista do professor, Porto Alegre, 19: 75 pp. 15-19. Huang, Yueh-Min; Lin, Yen-Ting; Cheng, Shu-Chen. (2010). Effectiveness of a mobile plant learning system in a science curriculum in taiwanese elementary education. Computers & Education, 54: 47- 58. Kinoshita, L. S. et al. (2006). A Botânica no Ensino Básico: relatos de uma experiência transformadora. São Carlos: Rima. Krasilchik, M.(2008) Prática de Ensino de Biologia. São Paulo: Edusp. Sanders, M. et al.(1997) First-year university students‟ problems in understanding basic concepts of plant reproduction. South African Journal of Botany, 63:6. Silva, L.M.; Cavallet, V.J.; Aalquini, Y.(2006) O professor, o aluno e o conteúdo no ensino de botânica. Revista do Centro de Educação, 31: 1. Silva, P.G. P. (2008). O ensino da botânica no nível fundamental: um enfoque nos procedimentos metodológicos (Tese), UNESP, Bauru,146 p. Spiro, M.D.; Knisely, K.I.(2008) Alternation of generations and experimental design: a guided-inquiry lab exploring the nature of the her1 developmental mutant Ceratopteris richardii (C-fern). CBE–Life Sciences Education, 7. http://yves.chevallard.free.fr/spip/spip/rubrique.php3?id_rubrique=6 91 Towata, N.; Ursi, S.; Santos, D.Y. A. C.( 2010) Análise da percepção de licenciandos sobre o ensino de botânica na educação básica. Revista da SBenBio, 3:1063-1612. Wandersee, J. H.; Schussler, E. E. (1999). Preventing plant blindness. American Biology Teacher, 61(2):84-86. Wandersee, J. H.; Schussler, E. E. (2001).Towards a theory of plant blindness. Plant Science Bulletin, 47(1):2-9. 92 PARTE III RECURSOS ECONÔMICOS VEGETAIS 93 CAPÍTULO 10 Vias de síntese de metabólitos secundários em plantas Fernanda Mendes de Rezende Daniele Rosado Fernanda Anselmo Moreira Wilton Ricardo Sala de Carvalho Introdução O metabolismo vegetal pode ser dividido em primário e secundário. Caracteriza-se como metabolismo primário os processos comuns e pouco variáveis à grande parte dos vegetais, e que levam à síntese de carboidratos, proteínas, lipídios e ácidos nucleicos. Tais sínteses ocorrem por vias conhecidas como glicólise e ciclo de Krebs (ciclo do ácido carboxílico) que, além de sintetizar intermediários para outras vias metabólicas, geram energia e poder redutor a partir de reações de oxido-redução de compostos orgânicos. Além destas vias, pode-se obter energia através da β-oxidação de ácidos graxos e degradação de produtos que não são essenciais para a planta. Esses processos compõem a unidade fundamental de toda a matéria viva. A distinção entre metabolismo primário e secundário (ou especial) se dá pelo conceito de que metabólitos secundários não estão envolvidos em processos geradores de energia e/ou de constituição do protoplasto. Outro ponto é que os metabólitos secundários não estão presentes ubíquamente entre as plantas, expressando a individualidade de famílias, gêneros e, até mesmo, espécies. A característica inerente do metabolismo secundário é a sua elevada plasticidade genética e diversidade que garante adaptações flexíveis à mediação de fatores bióticos e abióticos. Apesar do nome, as substâncias oriundas de vias “secundárias” são vitais para as plantas, atuando como atrativos ou repelentes de polinizadores, dissuasores de herbivoria, na proteção contra radiação UV e poluição, estresse hídrico, na sinalização intraespecífica, na alelopatia, dentre outras funções. Essas substâncias secundárias são os chamados princípios ativos vegetais comumente encontrados em diversos produtos e terapias, mas o que de fato são esses princípios ativos presentes nos vegetais? São substâncias formadas a partir de produtos da fotossíntese com a função de defesa para a planta. Para nós, humanos, são essas as substâncias responsáveis pelo efeito medicinal de uma planta, porém dependendo da dose administrada, o efeito deixa de ser terapêutico e passa a ser tóxico. O princípio ativo é uma mistura de substâncias que proporciona a ação farmacológica e difere de fármaco à medida que o termo designa uma substância química conhecida e de estrutura química definida. Diversas plantas apresentam uso medicinal milenar e nos extratos destas plantas, a ação conjunta ou isolada de certas substâncias é responsável pela atividade biológica. Este efeito difere de acordo com a dose e pode ser exemplificado com os glicosídeos cardioativos, encontrados nas espécies Digitalis lanata e Digitalis purpurea, quando em pequenas doses são amplamente utilizados para o controle de problemas relacionados ao baixo débito cardíaco, entretanto, em doses maiores são tóxicos, paralisando o coração na fase de sístole. Outro exemplo é o alcaloide tubocurarina, principal constituinte do curare (Chondrodendron tomentosum, Menispermaceae). Essa substância, embora tenha sido usada pelos índios para fabricar flechas envenenadas, tem valor medicinal, visto que ela é um relaxante da musculatura lisa. Os metabólitos secundários de plantas têm um grande valor agregado do ponto de vista econômico. Primeiramente, porque de todos os compostos identificados, poucos são aqueles que são utilizados como drogas, saborizantes, fragrâncias, inseticidas ou corantes. De todas as drogas usadas na medicina ocidental cerca de 25% são derivadas de plantas, quer como um composto puro (fármaco) ou como derivado de um produto de síntese natural. Além deste valor econômico real e efetivo, eles também 94 apresentam grande potencial como modelos para o desenvolvimento de novos medicamentos, uma vez que a enorme biodiversidade da natureza é uma fonte de recursos para o desenvolvimento de medicamentos. Mas como substâncias com propriedades e ações tão diversas são sintetizadas pelas plantas? Os metabólitos secundários são muito diversos, mais de 50 mil já foram identificados em espécies de angiospermas, e são sintetizados em diferentes compartimentos celulares, por quatro vias de biossíntese, são elas: via do acetato malonato, do ácido mevalônico (MEV), do metileritritol fosfato (MEP) e do ácido chiquímico. Através dessas vias são formados os três principais grupos de metabólitos secundários: terpenos, substâncias fenólicas e substâncias nitrogenadas (Figura 1). Além destes grupos, também merecem destaque os derivados de ácidos graxos e os policetídeos aromáticos. Interessantemente, para classificação em cada grupo as características estruturais e propriedades químicas são mais importantes do que o compartilhamento de uma mesma via de síntese. Por exemplo, os alcaloides são agrupados por apresentarem um caráter básico, conferido pela presença de um ou mais átomos de nitrogênio, dentro de um ou mais anéis heterocíclicos. Os compostos fenólicos, por sua vez, são caracterizados por apresentarem uma hidroxila funcional ligada a um anel aromático, porém podem ser sintetizados por vias distintas. Outros grupos ou subgrupos são baseados na presença de certos tipos de esqueletos básicos em suas estruturas. Alguns detalhes sobre as rotas biossintéticas, sua importância para a sobrevivência das plantas e utilização serão expostos a seguir. Figura 1. Esquema geral das vias de biosíntese do metabolismo vegetal secundário (retângulos rosas) e suas conexõescom o metabolismo primário (retângulos vermelhos), em detalhe os metabólitos primários (verde) e os secundários (azul). Figura de Moreira (2015). Derivados de ácidos graxos São compostos sintetizados pela via do acetato malonato e o início da síntese ocorre no plastídio, onde serão formados ácidos graxos C16 e C18 a partir de condensação de unidades de malonil-CoA e acetil- CoA. Essas reações são intermediadas por um conjunto de enzimas, codificadas por sete genes diferentes, denominado FAS II (type II Fatty Acid Synthase). Esses ácidos graxos são transportados para o retículo endoplasmático, onde sofrem diversas reações de alongamento pela ação do complexo enzimático FAE (Fatty Acid Elongation) formando ácidos graxos de cadeia longa (C20-C40), precursores dos demais compostos da cera - os derivados de ácidos graxos. Reações de descarboxilação levam à formação de alcanos, álcoois secundários e cetonas (Figura 2). Ainda é obscura a síntese dos aldeídos, entretanto, acredita-se que possam surgir de reações enzimáticas com os alcanos ou diretamente pela perda de hidroxilas dos ácidos graxos. A partir dos ácidos graxos de cadeia longa também podem ser formados, por reações de redução, os álcoois primários 95 e os ésteres (Figura 2). Os mecanismos de transporte dessas substâncias ainda não são claros, podendo ocorrer por proximidade, vesículas, transportadores específicos e proteínas transportadoras de lipídios. O papel dessas substâncias para as plantas é de extrema importância, pois são constituintes da cera cuticular. As ceras são misturas complexas de hidrocarbonetos alifáticos de cadeia longa com série homóloga (por exemplo, n-alcanos, álcoois, aldeídos, ácidos graxos e ésteres) que podem apresentar pequenas quantidades de terpenoides. Juntamente com a cutina e a suberina, as ceras constituem o conjunto de substâncias hidrofóbicas que mantêm as superfícies impermeáveis e restringem a perda de água dos tecidos através da transpiração. Além disto, ao revestir os órgãos aéreos, ela atua como uma barreira entre o meio interno e externo, conferindo proteção contra os raios UV, entrada de patógenos e poluição. O surgimento desta camada protetora foi um dos fatores importantes para a conquista do ambiente terrestre há 400 milhões de anos. Figura 2. Esquema da via acetato malonato, em verde as principais classes formadas. Em algumas espécies, principalmente de Asteraceae e Apiaceae, os ácidos graxos insaturados podem sofrer sucessivas desnaturações originando os poliacetilenos. Essa classe de compostos atua como um sistema de defesa contra insetos e herbívoros, além de atuarem como fitoalexinas (substâncias que combatem a infecção por patógenos invasores de plantas). A cicutoxina, encontrada na cicuta aquática (Cicuta virosa, Apiaceae), é um exemplo de poliacetileno tóxico a mamíferos, causando vômitos, convulsões e paralisia respiratória, podendo levar a morte. O falcarinol, outro poliacetileno, é encontrado em Falcaris vulgaris (Apiaceae) e causa dermatite quando a planta é manuseada sem o devido cuidado. Curiosamente, esse composto é encontrado nas raízes de uma das plantas medicinais mais utilizadas mundialmente, o Ginseng (Panax ginseng, Araliaceae). Dentro do grupo dos derivados de ácidos graxos há as acetogeninas, compostos C35 e C37 sintetizados a partir de ácidos graxos C32 e C34, no qual, através da adição de uma molécula de propano-2- ol, há a formação de um anel lactônico que caracteriza as acetogeninas. Geralmente são encontradas em espécies pertencentes à Magnoliales, mais comumente nas Annonaceae. Essa classe de substâncias é produzida pelas plantas para suprimir a alimentação de insetos, além disso, já foi demonstrado que elas apresentam um grande potencial para a utilização em humanos como substâncias com propriedades antitumoral, antimicrobiana, anti-helmíntica e antiprotozoário. Policetídeos aromáticos Os policetídeos aromáticos também são formados pela via do acetato-malonato. A partir da cadeia carbônica denominada poli-β-cetoéster diversas ciclizações formam os policetídeos aromáticos (Figura 2). Todas essas reações de biossíntese desses metabólitos são intermediadas por proteínas homodiméricas com dois sítios ativos denominadas Policetídeos Sintases do tipo III (PKS III). 96 As diferentes subclasses de policetídeos aromáticos dependem do tipo de molécula utilizada como iniciadora da extensão da cadeia carbônica pela malonil-CoA. A seguir sao apresentados alguns exemplos dessas subclasses com a suas respectivas unidades iniciadoras (Tabela 1). Caso a unidade iniciadora for a acetil-CoA ocorrerá a biossíntese das cromonas e das antraquinonas. As cromonas possuem ampla distribuição nos diferentes clados do APG III, dentre esses compostos pode-se citar a visnagina, encontrada em frutos de Amni visnaga (Apiaceae), que é utilizada medicinalmente como agente antiasmático. As antraquinonas possuem uma distribuição mais restrita no APG III, sendo encontrado nas Fabaceae, Rhamnaceae, Rubiaceae, Polygonaceae e Xanthorrhoeaceae. Um exemplo dessas substâncias são as emodinas, encontradas no gênero Cassia. Essas substâncias são utilizadas medicinalmente como estimuladores do movimento peristáltico do intestino. Por outro lado, se a unidade iniciadora for um ácido graxo haverá a biossíntese dos ácidos anarcádicos. Estes compostos estão presentes em espécies de Anacardiaceae e são substâncias extremamente alergênicas. Utilizando como unidade iniciadora o hexanoil-CoA haverá a produção de canabinoides, que são encontrados em espécies do gênero Cannabis e possuem diversos efeitos sobre o sistema nervoso central de humanos. Quando o precursor é o benzoil-CoA há a biossíntese das bifenilas, dibenzofuranos, benzofenonas e xantonas. As bifenilas e dibenzofuranos são fitoalexinas encontradas em espécies pertencentes às Rosaceae, enquanto as benzofenonas e xantonas são encontradas em espécies pertencentes às Clusiaceae e Gentianaceae e possuem um alto potencial antioxidante e antitumoral. Utilizando como precursor o p-cumaroil-CoA haverá a biossíntese dos flavonoides e estilbenos, que serão detalhados posteriormente nesse capítulo. As bifenilas, dibenzofuranos, benzofenonas, xantonas, flavonoides e estilbenos são considerados compostos de biossíntese mista por utilizarem como precursores compostos provenientes da via do ácido chiquímico (benzoil-CoA e p-cumaroil-CoA) e sofrerem extensão da cadeia carbônica através da via do acetato-malonato. Tabela 1. Policetídeos aromáticos e seus respectivos precursores, unidades de extensão, vias de síntese, classes e exemplos. 97 Compostos fenólicos O grupo dos compostos fenólicos incluem substâncias com ao menos um anel aromático no qual houve a substituição de ao menos um hidrogênio por um grupo hidroxila, sendo que estas substâncias podem ser simples ou com diversos graus de polimerização. Podem ocorrer naturalmente na forma livre (agliconas), ligados a açúcares (glicosídeos), ou ainda, ligados a proteínas, terpenos, entre outros. Ácidos fenólicos, quinonas, fenilpropanoides, cumarinas, flavonoides e as substâncias poliméricas (taninos e ligninas) são exemplos de substâncias fenólicas. A eritrose 4-fosfato e o fosfoenolpiruvato são intermediários glicolíticos que se unem e sofrem reações que levam a formação do ácido 3-dehidrochiquímico que formará as estruturas C6-C1. Um exemplo é o ácido gálico que originará a classe dos taninos hidrolisáveis. Os taninos hidrolisáveis são polímeros de ácido gálico e elágico (dímero de ácido gálico) esterificados com açúcares. Esses fenólicos são substâncias adstringentes (precipitam proteínas transformando-as em derivados insolúveis) e essa propriedade é muito importante na proteção contra herbivoria, uma vez que torna o material vegetal pouco palatável e com menor valor nutricional. O ácido 3-dehidrochiquímicoformará o ácido chiquímico que após diversas reações sintetiza os aminoácidos aromáticos (fenilalanina, tirosina e triptofano). A fenilalanina, quando desaminada pela ação da PAL (fenilalanina amônia liase), origina o ácido cinâmico, o primeiro fenilpropanoide (C6-C3) formado. Os fenilpropanoides subsequentes podem sofrer diversas alterações mediadas por enzimas que levarão a formação de outras classes de substâncias fenólicas, como as lignanas e as ligninas. Este complexo polimérico (lignanas e ligninas) confere rigidez e resistência mecânica à parte aérea das plantas, característica que conferiu uma melhor sustentação e possibilitou maior transporte de água e minerais a partir das raízes, permitindo a conquista do ambiente terrestre. Para a síntese de flavonoides e estilbenos, substâncias com 15 átomos de carbono, são combinados esqueletos carbônicos provenientes de duas vias: a via do ácido chiquímico e a via do acetato-malonato, portanto, são de biossíntese mista (Figura 3). Após a fenilalanina ser desaminada, hidroxilada e ligada a uma coenzima-A (CoA) ocorre a formação de uma molécula de coumaroil-CoA. Essa estrutura liga-se a três unidades de malonil-CoA, levando a formação de uma chalcona, após algumas reações mediadas pela chalcona sintase, essa é a primeira classe de flavonoides formada. A mesma estrutura que origina a chalcona sofre uma série de reações mediadas pela estilbeno sintase, culminando com a formação das diversas substâncias pertencentes à classe dos estilbenos, dentre elas o resveratrol. A chalcona, por sua vez, pode isomerizar-se em uma flavanona e a partir dela são formadas as demais classes de flavonoides. Dessa forma, flavonoides são substâncias que possuem, em geral, um esqueleto C6-C3-C6, onde C6-C3 é proveniente do chiquimato e ele está ligado a um anel C6, proveniente da via do malonato. As diferentes classes de flavonoides diferem uma das outras devido a pequenas variações nessa estrutura básica de 15 carbonos. As flavanonas, por exemplo, têm o anel B ligado ao carbono 2, enquanto que as isoflavonas têm o anel B ligado à posição 3. Flavonas e flavonóis são muito semelhantes entre si, a única diferença é que os flavonóis apresentam um grupo hidroxila (OH) na posição 3. As antocianidinas, que são a forma aglicona e os cromóforos de antocianinas, apresentam um oxigênio catiônico. Por fim, as proantocianidinas (PAS ou taninos condensados), formadas pelo ramo terminal da via dos flavonoides, apresentam as mesmas propriedades dos taninos hidrolisáveis, apesar de serem polímeros de catequinas. Os flavonoides atuam na proteção dos tecidos vegetais da ação mutagênica dos raios UV e participam da atração de polinizadores e dispersores de sementes. Antocianinas propiciam uma vasta gama de tonalidades (diferentes tons de vermelho, púrpura e azul). A diversidade de cores encontrada deve-se primeiramente ao padrão de hidroxilações, glicosilações, acilações e metilações de suas estruturas básicas, e aliado a isso, há outros fatores que podem influenciar nas cores encontradas como: copigmentação (flavonoides, fenilpropanoides, aminoácidos, carotenoides, dentre outros), pH vacuolar e complexação com metais. Alguns compostos fenólicos, como fenilpopanoides e flavonóis, além de atuarem como copigmentos podem conferir a cor branca. 98 Os processos biossintéticos que levam a formação da fenilalanina ocorrem nos plastídios e a síntese dos fenilpropanoides e flavonoides prossegue na parte citossólica do retículo endoplasmático, sendo que essas substâncias são armazenadas nos vacúolos. Elas também podem ser encontradas em outros compartimentos celulares como parede celular, núcleo, cloroplastos e, até mesmo, no espaço extracelular dependendo da espécie, do tecido ou do estágio de desenvolvimento da planta. Os flavonoides são sintetizados principalmente no citosol, em complexos multienzimáticos ligados às membranas do retículo endoplasmático (RE), e de lá são transportados para seus destinos subcelulares. As cumarinas, furanocumarinas e estilbenos, exemplos de classes de substâncias fenólicas, protegem as plantas contra patógenos (bactérias e fungos) e herbívoros, além de inibirem a germinação de sementes de plantas adjacentes impedindo a competição destas pelos mesmos recursos (alelopatia). Os compostos fenólicos têm recebido crescente atenção por parte da indústria alimentícia, cosmética e farmacêutica. A eles são atribuídos uma vasta gama de efeitos fisiológicos como: antialérgicos, anti-inflamatórios, antimicrobianos, antitrombóticos, antioxidantes, cardioprotetores e vasodilatadores. Por estes efeitos, este grupo de substâncias, as quais são presentes em altos níveis em frutas e vegetais, são consideradas benéficas à saúde humana, especialmente pelo potencial antioxidante. Figura 3. Esquema da via de síntese dos compostos fenólicos. 99 Terpenos Os terpenos formam o maior grupo de produtos naturais, apresentando uma grande diversidade estrutural, com mais de 35 mil substâncias identificadas. Eles são derivados teóricos do isopreno, uma estrutura de 5 carbonos, sendo o número dessa unidade presente na molécula utilizado para a classificação, podendo existir: monoterpenos (C10), sesquiterpenos (C15), diterpenos (C20), triterpenos (C30), tetraterpenos (C40) e politerpenos (mais de 40 carbonos). Os terpenos são tidos como derivados teóricos do isopreno pelo fato desta molécula não estar envolvida na síntese dos terpenos, os precursores são o isopentenil difosfato (IPP) e o dimetilalil difosfato (DMAPP). A síntese deste grupo de metabólitos secundários se dá a partir de duas vias, a do MEV (que tem como precursor acetil-CoA) que ocorre no citossol, e a do MEP (derivado de intermediários glicolíticos) a qual é uma rota plastidial. Atualmente sabe-se que há uma comunicação entre estas duas vias podendo haver trocas dos componentes formados por cada uma, assim ambas levarão a formação do IPP que pode se converter em seu isômero DMAPP. A ligação do IPP e DMAPP forma o geranildifosfato (GPP), uma molécula de 10 carbonos, a partir da qual são formados os monoterpenos. O GPP pode se ligar a outra molécula de IPP, formando um composto de 15 carbonos, o farnesil difosfato (FPP), precursor da maioria dos sesquiterpenos. A adição de outra molécula de IPP ao FPP forma o geranilgeranil difosfato (GGPP), um composto de 20 carbonos, precursor dos diterpenos. Por último, dímeros de FPP e GGPP são precurosres dos triterpenos (C30) e tetraterpenos (C40), respectivamente (Figura 4). Cada uma destas classes de terpenos possuem uma ampla gama de funções nas plantas e alguns exemplos serão abordados a seguir. Os monoterpenos e os sesquiterpenos são substâncias presentes nos óleos voláteis e conferem a determinadas plantas seu aroma característico (como as Lamiaceae, Ocimum sp., por exemplo). Os óleos voláteis também possuem compostos provenientes de outras vias como, por exemplo, os fenilpropanoides. Os óleos voláteis estão associados à defesa (repelindo ou atraindo insetos) e sinalização molecular nas plantas, além disso, exibem atividades antimicrobianas e têm sido amplamente utilizados na indústria cosmética, farmacêutica e alimentícia. Há diterpenos essenciais como o fitol, que faz parte de várias moléculas como, por exemplo, a clorofila, e é um dos mais simples e abundantes diterpenos. Outra molécula essencial dentro desta classe é a giberelina. As giberelinas compõem um grupo de hormônios vegetais envolvidos na regulação de diversos processos como o alongamento celular e a senescência. No caso dos triterpenos, atividades anticancerígenas foram relatadas para os tipos ursano, lupano e oleanano, substâncias encontradas em diversas plantas. Os triterpenos também são frequentemente encontrados na forma de saponinas (do latim: sapo = sabão) que possuem propriedades surfactantes. Limonoides, que são triterpenosmodificados, têm reconhecida atividade inseticida como, por exemplo, no óleo de Neem (Azadirachta indica, Meliaceae). Triterpenos, tais como, os esteroides sitosterol, estigmasterol e campesterol, são frequentemente encontrados como parte estrutural da membrana celular. Esteroides também são de interesse nutricional pela sua capacidade de reduzir os níveis de colesterol absorvido. Os carotenoides ou tetraterpenoides (C40) são sintetizados no plastídio via 2-metileritritol 4- fosfato (MEP). Esses terpenos são substâncias lipossolúveis, amplamente distribuídas no reino vegetal, em geral atuam como pigmentos relacionados à fotoproteção e atração de polinizadores nas plantas, além de serem precursores da vitamina A cuja deficiência em humanos pode causar problemas de visão. Como pigmentos conferem colorações amareladas e alaranjadas, e podem coexistir com as antocianinas resultando assim em tonalidades marrons e bronze. 100 Figura 4. Esquema da síntese de terpenos pelas vias MEV e MEP. Compostos nitrogenados Compostos nitrogenados são defesas químicas anti-herbivoria e, quando pigmentos, atrativos de polinizadores. As quatro classes mais importantes são: alcaloides, betalaínas, glicosídeos cianogênicos e glucosinolatos. Essas substâncias são formadas a partir de aminoácidos aromáticos e alifáticos. Alcaloide é o nome dado a um grupo de substâncias bastante heterogêneo, predominantemente sintetizado por plantas (dos 27 mil alcaloides conhecidos no momento, 21 mil são de origem vegetal). Eles têm em comum o caráter alcalino, conferido pela presença de um ou mais átomos de nitrogênio, e podem ter um ou mais anéis heterocíclicos. Essa classe de compostos nitrogenados é reconhecida pelo seu amplo espectro de atividades biológicas, por isso correspondem a princípios ativos comuns em plantas medicinais e tóxicas. Alguns exemplos são a papoula (Papaver somniferum, Papaveraceae), que contém morfina, codeína e papaverina; o café (Coffea arabica, Rubiaceae), que contém cafeína; a espécie Chondodendron tomentosum (Menispermaceae), da qual se extrai o curare, potente relaxante muscular com atividade anestésica, utilizado como veneno de flecha por indígenas sul-americanos. Outro alcaloide muito conhecido é a nicotina (presente no fumo, Nicotiana tabacum, Solanaceae). Os diferentes tipos de alcaloides são classificados de acordo com o aminoácido precursor utilizado para a formação de sua estrutura e o anel nitrogenado formado a partir deste, sendo que os aminoácidos mais comuns são os alifáticos, como a lisina e a ornitina, e os aromáticos, como a tirosina e o triptofano (Tabela 2). A partir da lisina são biossintetizados os alcaloides quinolizidínicos, compostos tóxicos para herbívoros, encontrados em Berberidaceae, Ranunculaceae, Solanaceae e em Fabaceae, como a Lupinus sp., que contém a lupinina; os alcaloides indolizidínicos, comuns em Fabaceae, possuem alta atividade 101 anti-HIV; os alcaloides piperidínicos, distribuídos em diversas famílias do APG III, alguns compostos dessa classe são utilizados em preparações para pessoas que querem para de fumar, como é o caso da lobenina, encontrada na Lobélia (Lobelia inflata, Campanulaceae), que estimula os mesmos receptores da nicotina, simulando o efeito dessa substância. A ornitina, por sua vez, é precursora dos alcaloides tropânicos, como a atropina e a cocaína, cuja a distribuição se concentra em espécies pertencentes às Malpighiales e às Solanales; dos alcaloides pirrolidínicos, como a higrina, encontrada em folhas de coca (Erythroxylum coca, Erythroxylaceae); e dos alcaloides pirrolizidínicos, mais comumente encontrados nas ordens Asparagales, Fabales, Asterales e na família Boraginaceae, que são compostos hepatotóxicos, portanto, inibidores de herbivoria. A tirosina é precursora dos alcaloides pertencentes às classes dos aporfínicos, tetraidroisoquinolínicos, isoquinolínicos, benziltetraidroisoquinolínicos, morfinanos e protoberberínicos. Dentre os alcaloides pertencentes a essas classes podemos citar como destaque os alcaloides encontrados na papoula, são eles: a morfina, um potente anestésico; a codeína, utilizada em formulações de xaropes antitussígenos; e a papaverina, utilizada em medicamentos contra cólicas pelo seu efeito anestésico da musculatura lisa. A partir do triptofano são sintetizados os alcaloides pertencentes às classes dos quinolínicos, β- carbonílicos, pirroloindólicos, indólicos e pirroloquinolínicos. Dentre os alcaloides pertencentes a essas classes podemos citar como destaque a vincristina, extraída da vinca-de-Madagáscar (Catharanthus roseus, Apocynaceae), que é muito utilizada como agente quimioterápico, principalmente no combate a leucemia. As betalaínas são alcaloides indólicos que atuam como pigmentos em algumas espécies de Caryophyllales. Elas conferem colorações avermelhadas a violetas (betacianinas) ou amareladas a tons de laranja (betaxantinas). A presença de antocianinas e betalaínas são excludentes, não há uma espécie se quer descrita com a síntese das duas classes. Glicosídeos cianogênicos possuem um resíduo de açúcar e um grupamento nitrila. Eles são armazenados em vacúolos e, quando a planta é atacada, são hidrolisados pela enzima que se encontra no citoplasma gerando cianeto, substância altamente tóxica. A mandioca (Manihot esculenta, Euphorbiaceae) possui concentrações altas de um glicosídeo cianogênico chamado linamarina, por isso antes de seu consumo é necessário um preparo prévio afim de evitar a intoxicação por esse composto. Glucosinolatos são substâncias que contêm enxofre, nitrogênio e açúcar em sua molécula. Eles ocorrem em quase todas as espécies de Brassicaceae e são responsáveis pelo sabor picante do agrião, rabanete e pelo gosto característico dos brócolis, repolho, mostarda, etc. Quando a planta é atacada, os glucosinolatos são hidrolisados pela enzima mirosinase, produzindo isotiocianatos e nitrilas que agem na defesa da planta como toxinas e repelentes contra herbívoros. 102 Tabela 2 Alguns exemplos de classes de alcaloides, seus respectivos precursores, fonte e uso por humanos. Engenharia metabólica de substâncias secundárias A Engenharia Metabólica é a manipulação de funções celulares, através da tecnologia do DNA recombinante, para melhoria direcionada de uma característica. Os progressos na aplicação de técnicas moleculares para alterar a produção de determinadas substâncias trazem inúmeras abordagens interessantes como: melhorar a produção de metabólitos secundários utilizados como produtos químicos (fármacos, inseticidas, corantes, aromas e fragrâncias); introduzir a produção de um composto de interesse em outras espécies de plantas (ex. mais adequada para o cultivo); alterar características de plantas alimentícias e ornamentais (ex. alterando cores de flores, ressaltando sabores, cheiros ou aspecto de alimentos, reduzindo nível de compostos tóxicos ou indesejáveis em fábricas de alimentos ou forragem); aumentar a resistência contra pragas e doenças. O arroz-dourado, ou “golden-rice”, ilustra a importância da tecnologia do DNA recombinante para a produção de metabólitos secundários de interesse agronômico e nutricional. Este transgênico foi gerado para produzir betacaroteno, precursor da vitamina A, que confere a coloração amarelada e dá nome à linhagem. Para a obtenção destas plantas transgênicas foram inseridos dois genes exógenos sob controle de um promotor de endosperma, de modo que os transgenes se expressam somente nos grãos. O primeiro transgene codifica a fitoeno sintase de milho, que utiliza GGPP como substrato para a produção de fitoeno. O segundo gene (CRTI), codifica uma fitoeno desaturase bacteriana responsável pela síntese de 103 licopeno. Ciclases do próprio endosperma, como a licopeno isomerase e α,β-licopeno ciclase, catalisam as reações de síntese de betacaroteno a partir do licopeno, de modo que os níveis desta substância chegam a 35 µg por grama de arroz seco. Devido à facilidade de produção, baixo custo no mercado e amplo consumo do arroz, a variedade transgênica aparece como uma das promessas para combater a deficiência de vitamina A, especialmente em populações pobres asiáticas que tem o arroz como base da alimentação. Outro exemplo de engenharia do metabolismo secundário em favor da agricultura é o caso do combate à mariposa Plutella xylostella. A traça-das-crucíferas causada por esta espécie é uma das principais pestes que atacam as plantações de Brassicaceae, como brócolis, repolho, couve e mostarda, em todo o mundo. As fêmeas de P. xylostella são atraídas por glucosinolatos, que estimulam também a ovoposição nas folhas das plantas hospedeiras, provocando enormes prejuízos às plantações. Como forma de prevenir infestações e proteger as culturas, tem sido estudado o emprego de outros cultivares mais atrativos aos herbívoros especialistas, mas que não provém as condições ideais para o desenvolvimento das larvas. Neste contexto, foi desenvolvido o tabaco transgênico que produz benzilglucosinolato, um alcaloide característico das brassicáceas, através da inserção de seis enzimas que catalisam reações consecutivas da biossíntese do benzilglucosinolato a partir da fenilalanina. O tabaco transgênico é mais atrativo para oviposição do que a variedade selvagem e também é um hospedeiro que permite menor taxa de sobrevivência das traças, protegendo as culturas e evitando o uso de defensivos agrícolas. Avanços na biotecnologia dos metabólitos secundários são também possíveis ferramentas para reverter um grande gargalo na produção de biocombustíveis. A obtenção de celulose com esse fim é limitada pela presença da lignina, portanto, é de interesse industrial a obtenção de plantas com níveis reduzidos de lignina, mas que não apresentem desenvolvimento comprometido, baixo vigor ou inferioridade agronômica. Como alternativa, é possível modificar a estrutura química deste polímero de modo a torná-lo mais acessível aos métodos de extração de biomassa. Uma das estratégias para isso é a construção da chamada “zip-lignina”, que se baseia na incorporação de conjugados de monolignol e ferulatos na estrutura do polímero. Foi produzido com este fim um choupo transgênico, no qual foi introduzida uma feruloil-CoA: monolignol transferase de Angelica sinensis. Essa transferase introduz ligações do tipo éster, quimicamente instáveis em comparação às ligações éter, normalmente presentes no esqueleto da lignina. Desta forma, são obtidos polímeros que necessitam de menos energia para serem degradados, facilitando a obtenção de açúcares para fins industriais. O conhecimento detalhado das estruturas químicas e vias de síntese de substâncias secundárias pode proporcionar diversas aplicações biotecnológicas de interesse econômico em processos agrícolas, industriais e biotecnológicos. Referências Buchanan, B. B.; Gruissem, W.; Jones, R. L. (Ed). (2015). Biochemistry & Molecular Biology of Plants. Chichester: John Wiley & Sons, 1264p. Dewick, P.M. (2009). Medicinal Natural Products – A biosynthetic approach. Third edition. John Wiley and Sons. West Sussex. UK. Maeda, H & Dudavera, N. (2012). The Shikimate pathway and aromatic amino acid biosynthesis in plants. Annual reviews of plant biology, v. 63, p. 73-105. Møldrup, M. E.; Geu‐Flores, F.; de Vos, M.; Olsen, C. E.; Sun, J.; Jander, G. & Halkier, B. A. (2012). Engineering of benzylglucosinolate in tobacco provides proof‐of‐concept for dead‐end trap crops genetically modified to attract Plutella xylostella (diamondback moth). Plant biotechnology journal, v. 10, n. 4, p. 435-442. Moreira, F. A. (2015). Perfil da alteração na produção de substâncias fenólicas e açúcares livres na interação entre Tapirira guianensis Aubl. (Anacardiaceae) parasitada por Phoradendron crassifolium (Pohl ex DC.) Eichler (Santalaceae). Dissertação de Mestrado. Insituto de Biociências, São Paulo. Universidade de São Paulo. 104 Paine, J. A.; Shipton, C. A.; Chaggar, S.; Howells, R. M.; Kennedy, M. J.; Vernon, G.; Wright, S. Y.; Hinchliffe, E.; Adams, J. L.; Silverstone, A. L. & Drake, R. (2005). Improving the nutritional value of Golden Rice through increased pro-vitamin A content. Nature Biotechnology, v. 23, p. 482 - 487. Simões, C. M. O.; Schenkel, E. P.; Gosmann, G.; Mello, J. C. P.; Mentz, L. A.; Petrovick, P. R. (Orgs.). (2010). Farmacognosia: da planta ao medicamento. 6 ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS; Florianópolis: Editora da UFSC, 1104p. Taiz, L. & Zeiger, E. (2010). Plant Physiology. 5ª edição, Artmed, 782p. Verpoter, R. & Alfermann, A.W. (2000). Metabolic Engineering of Plant Secondary Metabolism. Kluwer Academic Publishers, 297p. Wilkerson, C. G.; Mansfield, S. D.; Lu, F.; Withers, S.; Park, J.-Y.; Karlen, S. D.; Gonzales-Vigil, E.; Padmakshan, D.; Unda, F.; Rencoret, J.; Ralph, J. (2014). Monolignol Ferulate Transferase Introduces Chemically Labile Linkages into the Lignin Backbone. Science, v. 344, n. 6179, p. 90-93. 105 CAPÍTULO 11 Ensaios in vitro para determinação do potencial medicinal de extratos de plantas Wilton Ricardo Sala de Carvalho Ensaios Ensaios são definidos como procedimentos laboratoriais de investigação analítica utilizado para avaliar quantitativamente e qualitativamente a atividade de uma determinada amostra frente a algum alvo, são muito usados por laboratórios farmacêuticos para determinar a atividade de alguma substância frente a alguma doença. Dentre os tipos diferentes de ensaios nós temos os denominados ensaios In vivo, que são aqueles realizados com organismos vivos e os ensaios In vitro, que são aqueles realizados em equipamentos laboratoriais, como placas de petri e microplacas. Geralmente os ensaios In vitro são realizados preliminarmente, como uma forma de se verificar se determinada amostra possui atividade para depois se realizar os ensaios In vivo para verificar se a amostra continua possuindo atividade em organismos vivos. Plantas Medicinais As plantas são uma ótima fonte de matéria-prima quando se pensa em novas substâncias para realização de ensaios vizando a cura de uma determinada enfermidade, tanto que desde os primórdios da civilização eram registrados os usos terapêuticos de espécies vegetais. Temos como grandes exemplos a civilização chinesa, com o livro “Prescrições para 52 doenças”, escrito durante a Dinastia Han, cujo o conteúdo trazia a descrição de cerca de 208 plantas para o tratamento de diversas doenças, entre elas a descrição dos benefícios da Artemisia annua para o tratamento de “febres”; O Egito, com os papiros de Ebers que descreviam a utilização de diversos medicamentos baseados em plantas, tendo em seu conteúdo as propriedades sedativas do ópio (Papaver somniferum), digestivas do rícino (Ricinus communis), da alcaravia (Carum carvi) e da hortelã pimenta (Mentha piperita); A Índia, com um tratado médico com mais de 500 plantas denominado Caraka, baseado na medicina Ayurvédica; e os Romanos, com o livro De Materia Medica, escrito pelo grego Pendamius Dioscorides, que trazia a descrição de cerca de 600 plantas para uso terapêutico. Essa propriedade fascinante que as plantas possuem de serem utilizadas para fins medicinais se deve à presença de substâncias produzidas pelo seu metabolismo, principalmente o metabolismo secundário. Este é definido como o conjunto de reações que levam a formação de produtos necessários como interface de interação entre o corpo da planta e o ambiente em que ela vive, seja esse abiótico, como a radiação Ultravioleta, temperaturas extremas e estresse hídrico, ou biótico,representado pela proteção contra herbivoria, atração de polinizadores e dispersores de sementes e pela defesa de patógenos. Justamente por essa propriedade que substâncias sintetizadas pelo metabolismo secundário possuem de defesa contra fatores bióticos que se imaginou o seu potencial para serem utilizadas como medicamentos. Os Metabólitos secundários, também conhecidos como produtos naturais, são sintetizados utilizando produtos provenientes de vias do metabolismo primário, a partir dos quais, através de 4 vias principais (Ácido Mevalônico, Metileritritolfosfato, Acetato-Malonato e Ácido Chiquímico), são sintetizadas todas as classes de produtos naturais. A via do Ácido Mevalônico (MEV) ocorre preferencialmente no citoplasma das células vegetais e se inicia com a reação de três moléculas de Acetil-CoA proveniente de vias do metabolismo primário, que através de diversos processos, culminará com a produção do ácido mevalônico a partir do qual serão produzidos dois isômeros com 5 átomos de carbono em sua estrutura, conhecidos como Isoprenos, que originarão as diversas classes de terpenoides e os esteroides. 106 Os terpenoides também são sintetizados a partir da via do Metileritritolfosfato (MEP), a qual formará o Metileritritol 4-Fosfato a partir da reação entre o Gliceraldeido 3-Fosfato e o ácido pirúvico, provenientes de vias do metabolismo primário. A partir do Metileritritol 4-Fosfato também serão produzidos os dois Isoprenos que originarão as diversas classes de terpenoides e esteroides. Essa via ocorre preferencialmente no cloroplasto das células. Essas duas vias irão produzir as diversas substâncias pertencentes às classes dos monoterpenoides com 10 átomos de carbonos, dos sesquiterpenoides com 15 átomos de carbono, dos diterpenoides com 20 átomos de carbono, dos triterpenoides com 30 átomos de carbono e dos carotenoides com 40 átomos de carbono (Figura 1). A via do Acetato-Malonato tem início utilizando como precursor uma molécula de Acetil-CoA que através da adição de moléculas de Malonil-CoA sofrerá um aumento em sua estrutura carbônica originando a cadeia de poli-β-ceto-éster, a partir da qual será formada diversas substâncias pertencente às classes de compostos fenólicos, de policetídeos aromáticos, de poliacetilenos e acetogeninas (Figura 2). Figura 1. Terpenoides produzidos pelo metabolismo secundário de plantas. 107 Figura 2. Produtos da via do acetato-malonato. A via do Ácido Chiquímico utiliza como precursores a Eritrose 4-Fosfato e o fosfoenolpiruvato, cuja a reação culmina com a produção do ácido 3-dehidrochiquímico que formará, através de uma série de reações, diversas substâncias pertencentes às classes dos compostos fenólicos (Figura 3). Os compostos nitrogenados (Figura 4), são produzidos utilizando como precursores os aminoácidos aromáticos produzidos pela via do ácido chiquímico ou os aminoácidos alifáticos produzidos pelo ciclo de Krebs, dentre esses compostos está inserido a classe dos alcaloides, um dos metabólitos mais utilizados medicinalmente. Com essa imensa variedade de substâncias produzidas pelas plantas, extratos vegetais podem ser usados para se verificar o potencial medicinal através de diversos ensaios que serão descritos nesse capítulo. 108 Figura 3. Produtos da via do ácido chiquímico. 109 Figura 4. Exemplos de compostos nitrogenados. Ensaios Antioxidantes. Evidências demonstram que as Espécies Reativas de Oxigênio (EROs) e de Nitrogênio (ERNs), associadas com baixos níveis de vitaminas A, C, E e de enzimas que capturam e eliminam essas espécies, causam um aumento no estresse oxidativo do corpo humano, culminando com o surgimento de diversas doenças degenerativas associadas ao envelhecimento, como câncer, doenças cardiovasculares, catarata, declínio do sistema imune e disfunções cerebrais. Dentre as espécies reativas há os radicais livres, que são quaisquer átomos ou moléculas contendo um ou mais elétrons não pareados nos orbitais externos, tornando-os altamente reativos e capazes de reagirem com qualquer substrato, assumindo uma função oxidante ou redutora de elétrons, os mais comuns são o ânion superóxido (O2 •- ), a hidroxila (OH • ), o hidroperóxido (LOOH); e as Espécies Reativas de Nitrogênio, como o Óxido Nítrico (NO) e o Dióxido de Nitrogênio (NO2), sendo a hidroxila o mais reativo na indução de lesões nas moléculas celulares. Apesar de serem causadores de diversas doenças, a formação de radicais livres é um processo fisiológico normal em organismos de metabolismo aeróbico que cumpre funções biológicas importantes, é através de sua produção que são eliminadas células defeituosas e microorganismos invasores, dentre eles os patogênicos. Apesar de ser um processo natural, alguns fatores exógenos podem aumentar a produção dessas Espécies Reativas, tais como os xenobióticos, radiações ionizantes, metais pesados, tabagismo e ingestão de álcool. 110 Como forma de proteção e redução dos seus efeitos existem substâncias denominadas antioxidantes, que são classificadas em dois tipos, as enzimáticas, produzidas pelo nosso organismo e as não enzimáticas. Essas substâncias podem agir de três formas diferentes, a preventiva, se caracterizando pela proteção contra a formação de substâncias agressoras; a de interceptação, caracterizada pela sua captura; e a de reparo. Os antioxidantes não enzimáticos são adquiridos através da alimentação, principalmente de verduras, frutas e legumes, e entre eles podemos citar as vitaminas C, A e E, os flavonoides e os carotenoides. Ensaios In vitro têm demonstrado a importância de dietas ricas em frutas e vegetais pela presença de antioxidantes que ajudam no combate aos radicais livres, que em consumo moderado, são benéficos à saúde humana. Em contrapartida alguns testes In vitro e In vivo demonstram que, em certas condições e concentrações erradas, algumas das substâncias com efeitos antioxidantes podem apresentar o efeito contrário, de pró-oxidante, sendo necessários mais estudos para estabelecer o papel desses compostos na prevenção de doenças. Com base no que foi dito muitos ensaios In vitro são utilizados para determinar o potencial antioxidante de determinada amostra. Ensaio antirradicalar de sequestro do radical DPPH (1,1-difenil-2-picril-hidrazil) O ensaio da atividade de sequestro do radical DPPH é um dos preferidos a ser utilizado por ser relativamente simples de reproduzir e utilizar um radical estável, ele é usado para definir a capacidade que determinada substância tem em transferir elétrons ou doar átomos de Hidrogênio para estabilizar o radical livre (Figura 5), dessa forma fazendo com que o radical, que possui uma coloração roxa com absorção máxima em 515 nm, adquira uma coloração amarelada. A atividade é dada pela perda da absorbância em 515 nm, quanto maior a perda, maior será a atividade antioxidante da amostra. O ponto negativo em relação a esse ensaio se deve ao fato de ele avaliar a capacidade de sequestro de um radical sintético, que não é produzido no nosso organismo. Figura 5. Reação de estabilização do Radical DPPH frente a um composto fenólico doador de hidrogênio. Adaptado de Texeira et al. 2013. 111 Teste antirradicalar de sequestro do radical ABTS (2,2’-azino-bis-3-etilbenzotiazolina-6-ácido sulfônico) O ensaio da atividade de sequestro do radical ABTS segue um princípio semelhante ao do DPPH, no qual um radical sintético é usado para medir a capacidade de determinada amostra tem em estabilizar o radical livre através da transferência de elétrons, da doação de átomos de hidrogênio ou até mesmo através da combinação dos dois mecanismos. O ABTS, quando na sua forma radicalar, possui uma coloração azul/verde com absorção máxima em 734 nm, a partir do momento em que é estabilizado, perde a coloraçãose tornando incolor (Figura 6), dessa forma a sua atividade é fornecida pela perda de absorção em 734 nm, quanto maior a perda, mais ativa é a amostra. Assim como o ensaio Baseado no radical DPPH, esse ensaio possui o ponto negativo de utilizar um radical não presente no nosso organismo. Figura 6. Reação de estabilização do Radical ABTS •+ frente a um composto fenólico doador de elétrons. Adaptado de Rufino et al. 2007. Atividade Quelante de Ferro O ensaio da atividade quelante de ferro analisa a capacidade de determinada amostra em formar quelatos com íons Ferro. Essa propriedade é importante pois os íons metálicos, quando em excesso no nosso organismo, causam efeitos deletérios através da capacidade de transferirem elétrons para moléculas não radicalares, assim intermediando a formação de muitas espécies reativas de oxigênio (ERO‟s), ao serem quelados eles não se tornam mais disponíveis para a consequente produção de radicais livres. A atividade nessa metodologia é dada pela capacidade que determinada amostra tem de quelar os íons Fe 2+ existentes no complexo com a Ferrozine. Quando o íon está presente a Ferrozine possui uma coloração avermelhada com absorbância máxima em 562 nm, ao perder o íon para alguma substância quelante ocorre a perda da coloração e, consequentemente, a perda da absorbância em 562 nm, com isso a atividade é dada pela perda de absorção, quanto maior a perda, mais eficiente é a amostra (Figura 7). 112 Figura 7. Reação de quelação do íon Ferro presente na ferrozine por uma molécula de quercetina. Atividade redutora do íon férrico (Fe 3+ ) a íon ferroso (Fe 2+ ) O ensaio da atividade redutora do íon Fe 3+ a Fe 2+ , analisa a capacidade que determinada amostra tem de transferir elétrons e, consequentemente, reduzir íons metálicos ou radicais livres, medindo assim a sua capacidade redutora. Para esse teste utiliza-se um complexo incolor de TPTZ com íon Fe 3+ , que ao ser reduzido a Fe 2+ ganha uma coloração azul intensa com absorção máxima em 593 nm, portanto, a atividade redutora de determinada amostra é proporcional ao ganho de absorção, quanto maior o ganho mais eficiente é a amostra (Figura 8). Figura 8. Reação da atividade redutora do íon Fe 3+ a íon Fe 2+ . Adaptado de Kesic et al. 2015. ORAC (Oxygen Radiance Absorbance Capacity) Esse ensaio é baseado na capacidade que o radical peroxila, gerado pela decomposição térmica do 2,2‟-azobis (2-Metilpropionamidina) dihidrocloridrico (AAPH), tem em oxidar a fluoresceína, capturando um hidrogênio da sua estrutura, fazendo com que ela perca a capacidade de emitir fluorescência ao longo de um determinado tempo. Ao ser adicionada uma amostra antioxidante, ela irá doar hidrogênios aos radicais peroxilas de forma a estabilizá-los e impedir que oxidem a fluoresceína, 113 mantendo a emissão de fluorescência por um período maior de tempo, de forma que quanto maior esse período, maior a atividade antioxidante de determinada amostra. A vantagem da realização desse ensaio se deve ao fato de que ele simula as condições presentes no nosso organismo, como a temperatura em 37ºC, a presença de oxigênio para a formação do radical peroxíla e o próprio radical que é uma espécie reativa de oxigênio existente no nosso organismo. TBARS (Thiobarbituric Acid Reactive Substance) Esse ensaio é baseado na capacidade que determinada amostra possui em proteger os lipídios da reação em cadeia de peroxidação lipídica. Essa reação tem início quando um determinado radical livre abstrai um Hidrogênio de um lipídeo, fazendo com que ele mesmo se torne um radical, após o qual formará o radical peroxila através da incorporação de uma molécula de oxigênio, esse radical continua sendo reativo e para se estabilizar irá abstrair um hidrogênio de outro lipídio, reiniciando o ciclo de peroxidação e formando hidroperóxidos que são decompostos em diversos produtos, entre eles o malonaldeído (MDA). Ao se adicionar ácido tiobarbitúrico (TBA) no meio em que ocorreu peroxidação lipídica ele irá reagir com o MDA e formará um composto de coloração roxa com absorbância máxima em 535 nm (Figura 9), portanto, quanto menor a absorbância nesse comprimento de onda, menor foi a formação de MDA e, consequentemente, maior o potencial antioxidante da amostra em proteger contra a peroxidação lipídica. Figura 9. Reação de peroxidação lipídica de um ácido graxo e consequente reação com ácido tiobarbitúrico, caracterizando o teste de TBARS. Adaptado de Mafra et al. 1999 e Antolovich et al. 2002. 114 Ensaio antibacteriano Segundo o Centro de Controle e Prevenção de doenças (CDC), localizado em Atlanta, E.U.A, agentes antimicrobianos têm sido usados desde a década de 1940 para o tratamento de doenças infecciosas e, quando usados de maneira correta, trazem enormes benefícios. Contudo, o seu uso intensivo, indiscriminado e sem conhecimento associado ao uso dessas substâncias em animais para o abate, fez com que os microrganismos patogênicos adquirissem resistência a uma ou diversas classes de agentes antimicrobianos. Situação agravada pelo fato que nesse último século poucos novos antibióticos foram lançados no mercado, levando a uma urgência de se descobrir novas substâncias com potêncial antimicrobiano. Para o uso como potenciais antibióticos se procuram substâncias que ajam em diversas etapas do ciclo de reprodução da bactéria ou do microrganismo, como inibidores da síntese de ácidos nucleicos (Quinolonas), inibidores da síntese de proteínas (Macrolídeos), inibidores da RNA polimerase (Rifamicina), inibidores da síntese normal da parede celular (Penicilinas) e disruptores da membrana plasmática (Polimixinas). Para a realização do ensaio são utilizadas culturas de bactérias provenientes de duas cepas diferentes, uma cepa gram-positiva e uma gram-negativa, pois nem sempre uma amostra que tenha ação em bactérias de um tipo terá sobre o outro, devido a constituição da parede celular de ambas serem diferentes, essa medida é tomada devido a dificuldade de se realizar ensaios com as próprias bactérias patogênicas que necessitam de um ambiente laboratorial controlado para evitar surtos de infecções. Um dos ensaios em microplacas mais utilizados para definir o potencial antibacteriano de determinada amostra é o citotóxico que utiliza resazurina. Ensaio da redução da resazurina Esse ensaio consiste em se incubar a resazurina, um pigmento azul intenso, em uma cultura de células bacterianas que irão reduzi-lo metabolicamente, através de enzimas mitocondriais, em resofurina, um composto rosa que emite fluorescência em 590 nm ao ser excitado em um comprimento de onda de 560 nm, quanto maior o número de bactérias vivas na cultura, maior será a emissão de fluorescência (Figura 10). Ao se adicionar uma amostra antibacteriana no meio de cultura, ela irá matar as bactérias e não haverá a conversão da resazurina em resofurina, portanto não haverá detecção de fluorescência em 590 nm, consequentemente mais tóxica será a amostra para as bactérias. O ponto negativo desse ensaio se deve ao fato de que resazurina é um composto tóxico que pode causar alterações metabólicas nas bactérias, dessa forma, afim de se evitar resultados falso positivo, não é recomendável a incubação por um período maior que 4 horas. Em equipamentos que não conseguem realizar leituras de fluorescência há a alternativa de se avaliar a redução da resazurina através da leitura de absorbância, porém de ser uma avaliação menos precisa do que por fluorescência. Uma outra alternativa seria realizar a leitura de absorbância em 595 nm do meio de cultura da microplaca no início do ensaio, analisando a turbidez do poço que é proporcional ao número de bactérias presente nele, sejam elas vivas ou mortas. Após o período de incubação com a amostra seria realizado novamente a leiturade absorbância em 595 nm, se o valor aumentou é um indicativo de que a amostra não teve efeito, pois o número de bactérias naquele determinado poço aumentou, se a amostra continua com o mesmo valor de absorbância significa que o número de bactérias continuou o mesmo, demonstrando que a amostra ou é bacteriostática (impediu a proliferação das bactérias) ou bactericida (matou as bactérias), para verificar se é uma alternativa ou outra seria utilizada a resazurina, se os poços ficarem rosa houve a redução metabólica em resofurina, portanto a amostra teve efeito bacteriostático, se continuar azul a amostra teve efeito bactericida. 115 Figura 10. Redução da resazurina na presença de bactérias metabolicamente ativas. Adaptado de Riss et al. 2015. Ensaios anti-HIV A AIDS (Acquired Immune Deficiency Syndrome) é uma patologia que afeta o mundo inteiro, segundo estimativas da UNAIDS cerca de 35,3 milhões de pessoas vivem com essa doença, demonstrando um incremento em relação aos anos anteriores, desses casos 2,3 milhões são recentes, um declínio de 33%, e 1,6 milhões de portadores faleceram em decorrência de doenças oportunistas. O Brasil não demonstra um quadro muito diferente, segundo o Ministério da Saúde, de 1980 a 2012, foi notificado um total de 656.701 casos de AIDS, nesse mesmo período o caso de óbitos por doenças oportunistas foram de 253.706. A AIDS é causada por um vírus, com genoma de RNA, denominado HIV, pertencente à família Retroviridae e gênero Lentivirus. A infecção se inicia com o retrovírus se ligando a receptores presentes na superfície dos linfócitos T e liberando o seu conteúdo genético dentro da célula hospedeira, após essa etapa se tem o início da fase da replicação viral, caracterizada pela transcrição do RNA viral em DNA viral e sua consequente integração ao DNA da célula hospedeira através da enzima integrase, por fim se tem a produção dos polipeptídeos virais que sofrem ação da enzima protease e são clivados em polipeptídeos menores e funcionais, sendo esses importantes para a produção de virions infecciosos. A maior parte dos fármacos antivirais usados contra o HIV agem sobre essas quatro etapas: nos receptores celulares, na inibição da transcriptase reversa, na inibição da integrase e na inibição da protease. Atualmente, a terapia inicial consiste em uma combinação de pelo menos três medicamentos: dois Inibidores Nucleosídeos da Transcriptase Reversa (INTR), associados com uma terceira droga, que pode ser um Inibidor Não Nucleosídeo da Transcriptase Reversa (INNTR), um Inibidor de Protease (IP) ou um Inibidor da Integrase. Apesar dos resultados positivos do tratamento, a cura da AIDS não foi atingida, devido aos vírus residentes nos Linfócitos T de memória não serem erradicados, além disso, os medicamentos atuais apresentam um alto índice de resistência, necessitando a descoberta e desenvolvimento de potenciais novos fármacos. Nesse cenário, substâncias provenientes de produtos naturais se tornam uma grande fonte de pesquisas, alguns extratos e substâncias isoladas de plantas apresentam eficiência clínica comprovada na inibição das diversas fases de entrada e replicação do vírus, entre essas substâncias podemos citar os terpenos e os polifenóis (taninos, cumarinas e flavonoides). 116 Ensaio inibidor de transcriptase reversa Esse ensaio se baseia na capacidade que a ezima transcriptase reversa do vírus HIV-1 tem em sintetizar DNA, a partir de um iniciador, utilizando nucleotídeos marcados com digoxigenina e com biotina. O DNA recém-sintetizado e marcado com biotina e digoxigenina se liga, através da biotina, à estreptavidina presente na parede dos poços da microplaca. Ao adicionar um anticorpo de digoxigenina conjugado com peroxidase ele se liga ao DNA preso na parede e acaba por reagir com o ABTS adicionado, produzindo um produto com coloração verde intensa com absorbância máxima em 490 nm. Para esse ensaio se deve realizar a leitura de absorbância em 405 nm e em 490 nm e subtrair as duas para se ter a absorbância proporcional real do composto formado. Ao ser adicionado uma amostra inibidora da transcriptase reversa ela não irá sintetizar o DNA marcado, não havendo a formação do complexo com o conjugado do anticorpo de digoxigenina com a peroxidase, assim não havendo a reação com o ABTS e a consequente formação da cor verde, portanto, quanto menor a absorbância do meio, maior a atividade inibidora de transcriptase reversa e maior o seu efeito anti-HIV. Ensaio inibidor de protease Esse ensaio se baseia na afinidade que dois fragmentos de proteína verde fluorescente (GFP) tem de se unir quando em uma mesma solução, assim emitindo fluorescência. Para evitar essa união um dos fragmentos tem a sua conformação estrutural alterada e mantida dessa forma por um sítio de quebra pela enzima protease HIV-1, dessa forma não conseguindo se unir ao outro fragmento e consequentemente não emitindo fluorescência. Ao ser adicionado a protease do HIV-1, esse sítio do fragmento menor será clivado fazendo com que ele retorne à sua conformação original e se reúna com o outro fragmento, reconstituindo a proteína funcional. O ensaio se baseia na capacidade que determinada amostra possui de inibir a protease de HIV-1 impedindo-a de clivar o sítio, com isso não haverá a reunião e consequentemente não haverá a emissão de fluorescência, portanto, quanto menor a fluorescência detectada em 540 nm de emissão com 485 nm de excitação, maior a atividade inibidora de protease do retrovírus HIV-1. Ensaio antitumoral O câncer é definido como uma série de alterações genéticas e epigenéticas em células, fazendo com que elas se tornem anormais, percam a sua função, se multipliquem e propaguem descontroladamente, podendo invadir a corrente sanguínea onde as células defeituosas serão transportadas a locais distantes, originando novos tumores em um processo conhecido como metástase. Esse processo é demorado, podendo levar vários anos até que uma célula cancerosa se prolifere e forme um tumor, por isso é uma doença mais comum em pessoas idosas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 8,2 milhões de pessoas morrem de câncer todos os anos, sendo que cerca de 70% dessas mortes ocorrem nos continentes Africano, Asiático e Americano Central e do Sul, este número tende a aumentar pois é previsto que nas próximas 2 décadas o número de pessoas que possuem câncer suba em 70%. Existem mais de 100 tipos diferentes de câncer, sendo que para os homens o mais comum é o de pulmão e para as mulheres o de mama, e cada um desses possui um tratamento específico, por isso há a necessidade de se pesquisar novas substâncias que possam agir em diferentes etapas do ciclo de multiplicação descontrolada dessas células defeituosas. Dentre os medicamentos utilizados atualmente para o tratamento do câncer podemos destacar dois provenientes do metabolismo secundário de plantas, a camptotecina que inibe a função das topoisomerases e a vincristina que inibe o funcionamento dos microtúbulos. Ensaio de redução dos Sais de Tetrazolium Esse ensaio se baseia na incubação de algum sal de tetrazolium (MTT, MTS, XTT e WTS-1) com uma cultura de células tumorais do tipo de câncer que se quer estudar (Mama, pulmão, útero, próstata...), quando as células estão vivas o Sal de tetrazolium é metabolicamente reduzido, através de 117 enzimas mitocondriais, em um composto cromogênico, o Formazan, assim podendo ser medida a sua absorbância, sendo esta proporcional ao número de células vivas no meio de cultura (Figura 11). A cor emitida pelo formazan dependerá de qual sal de tetrazolium foi usado no teste, portanto o comprimento de onda no qual será analisado o ensaio será diferente para cada um dos tipos. Ao ser adicionada uma amostra com um potencial antitumoral (citotóxica para determinada linhagemde célula tumoral), as células irão morrer e a conversão em formazan não será possível, não produzindo cor, portanto quanto menor a absorbância medida, maior a atividade de determinada amostra. Assim como a resazurina, os sais de tetrazolium são tóxicos, não podendo ficar incubados por um período maior do que 4 horas, pois poderá alterar o metabolismo das células, causando um resultado falso positivo. Figura 11. Redução do MTT (3-(4,5-dimetiltiazol-2-il)-2,5-difeniltetrazolium) na presença de células tumorais metabolicamente ativas. Adaptado de Riss et al. 2015. Referências Alves, L.F. (2013). Produção de Fitoterápicos no Brasil: História, Problemas e Perspectivas. Rev. Virtual Quim. 5 (3): 450-513. Antolovich, M.; Prenzler, P.D.; Patsalides, M.; Mcdonald, S.; Robards, K. (2002). Methods for testing antioxidante activity. The Analyst 127: 183-198. Callahan, B.P.; Stanger, M.J.; Belfort, M. (2010). Protease activation of split green fluorescence protein. Chem. Bio. Chem. 11: 2259-2263. Dewick, P.M. (2009). Medicinal Natural Products: A Biosynthetic Approach. 3ed. John Wiley & Sons. United Kingdon. Ferreira, R.C.S.; Riffel, A.; Sant‟ana, A.E.G. (2010). 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Metabolismo é o conjunto de reações químicas de degradação e síntese de substâncias químicas que ocorrem por meio de caminhos chamados de rotas ou vias metabólicas. Nas rotas metabólicas o produto de uma reação pode ser o substrato de uma reação subsequente, sendo que os reagentes, os intermediários e os produtos das reações são chamados de metabólitos. Os metabólitos primários são compostos essenciais para o crescimento, desenvolvimento e reprodução dos organismos, como ácidos graxos, aminoácidos e polissacarídeos. Já os metabólitos secundários são substâncias que não estão envolvidas diretamente na manutenção do organismo, mas são importantes mediadores de interações ecológicas, como terpenos, alcaloides e compostos fenólicos. Compostos bioativos marinhos Os organismos marinhos são uma fonte promissora de produtos naturais. Os oceanos representam mais de 70% da superfície terrestre e abrigam uma grande diversidade de organismos, que por sofrerem pressões ambientais diferentes dos organismos terrestres, apresentam compostos com características únicas. A química de produtos naturais marinhos teve início na década de 1950 com o isolamento dos nucleosídeos (base nitrogenada ligada a uma pentose) espongotimidina e espongouridina da esponja Tethya crypta, que apresentam atividade antiviral, ao atuarem na enzima transcriptase reversa. No entanto, somente a partir da década de 1970, com o desenvolvimento de equipamentos de mergulho modernos, que as pesquisas com compostos bioativos de organismos marinhos foram impulsionadas. Desde então, estima-se que cerca de 20.000 compostos foram descobertos em organismos marinhos, como bactérias, fungos, algas e animais. Compostos bioativos de macroalgas As macroalgas são divididas em três grandes grupos: algas vermelhas (Filo Rhodophyta), algas pardas (Filo Ochrophyta – Classe Phaeophyceae) e algas verdes (Filo Chlorophyta). A maioria de seus representantes habita o ecossistema marinho e constitui parte fundamental desse ambiente, sendo o principal alimento de alguns animais, fonte de matéria orgânica para bactérias heterotróficas e indicadores de alterações ambientais. Tradicionalmente, são utilizadas na alimentação, sobretudo em países asiáticos, e, atualmente, têm sido exploradas como alimentos funcionais, devido ao seu teor de fibras, vitaminas e minerais. Industrialmente, são utilizadas, principalmente, como fonte de ágar, carragenanas e alginato, polissacarídeos presentes na parede celular de algumas macroalgas. Além disso, produzem compostos que 120 apresentam diversas atividades biológicas e podem ser aplicados em indústrias químicas, alimentícias e farmacêuticas. Nas macroalgas, esses compostos estão envolvidos em interações ecológicas e na defesa contra variações ambientais (salinidade, radiação, dessecação) e podem ser provenientes do metabolismo primário ou do metabolismo secundário. De modo geral, os metabólitos secundários produzidos pelas algas ocorrem em grupos específicos, e por isso apresentam importância ecológica e evolutiva, sendo estudados como marcadores taxonômicos, filogenéticos e biogeográficos. Além dos estudos que envolvem o isolamento e obtenção de novas moléculas com atividade biológica. Estima-se que são conhecidos cerca de 3000 metabólitos secundários em macroalgas, representando 15% dos compostos encontrados em organismos marinhos. Em algas vermelhas são conhecidos cerca de 1500 metabólitos secundários, principalmente compostos halogenados. Os compostos halogenados apresentam pelo menos um átomo de halogênio, sendo o bromo o mais frequente em algas. Esses compostos podem pertencer a diferentes classes químicas, como terpenos, acetogeninase compostos fenólicos. Em algas vermelhas, os compostos halogenados representam 70% dos metabólitos secundários. Em contrapartida, apenas 11% e 4% dos compostos de algas verdes e pardas, respectivamente, são halogenados. Nas algas verdes são conhecidos aproximadamente 300 metabólitos secundários, principalmente da classe dos terpenos. Já em algas pardas foram encontrados cerca de 1140 metabólitos secundários, dos quais a maioria faz parte das classes dos terpenos e dos compostos fenólicos. Os metabólitos secundários isolados em macroalgas apresentam atividades biológicas já comprovadas, como: antioxidante, antibacteriana, antiviral e anticâncer. Atividade antioxidante As macroalgas, assim como outros organismos aeróbios, produzem normalmente espécies reativas de oxigênio (EROs) durante os processos de respiração celular e fotossíntese. No entanto, alguns fatores externos também podem estimular a produção de EROs, o que pode levar ao estresse oxidativo, e à degradação de moléculas orgânicas, como lipídeos, proteínas, carboidratos e DNA. Como o ambiente aquático está sujeito à variação de nutrientes, luminosidade, concentração de CO2 e O2, temperatura e salinidade, as macroalgas estão propensas a sofrer com o estresse oxidativo. Desse modo, para garantir sua sobrevivência, as macroalgas desenvolveram mecanismos eficientes de resposta ao estresse, apresentando uma alta capacidade antioxidante. Os principais compostos com capacidade antioxidante encontrados em algas são das classes dos terpenos e dos compostos fenólicos. Os carotenoides, que são tetraterpenos (terpenos de 40 carbonos), são pigmentos alaranjados que ocorrem em diversos organismos. Estão presentes em todos os organismos fotossintetizantes, atuando como pigmentos acessórios da fotossíntese e também na fotoproteção, devido a sua propriedade antioxidante. Os compostos fenólicos, caracterizados pela presença de pelo menos um grupo fenol, são uma classe diversa de metabólitos secundários encontrados em algas e plantas terrestres. Esses compostos podem apresentar diferentes mecanismos antioxidantes: como doadores de hidrogênio e quelante de metais. Ao doar hidrogênio às espécies reativas, os antioxidantes impedem a oxidação de moléculas orgânicas e a formação de novas EROs. Já ao atuar como agentes quelantes, esses compostos anitoxidantes sequestram e “aprisionam” íons metálicos que catalisam reações de oxidação lipídica e, assim, impedem a formação de EROs. As algas pardas, de modo geral, apresentam alta capacidade antioxidante, devido à presença de um tipo de composto fenólico, os florotaninos, que são polifenóis derivados do floroglucinol e não ocorrem em algas verdes e vermelhas. Os aminoácidos tipo micosporinas são moléculas polares que absorvem no comprimento de onda UVA e UVB, sua absorção máxima ocorre entre 310 a 360 nm dependendo da sua estrutura molecular. 121 Esses compostos estão amplamente distribuídos na natureza e encontrados tipicamente em organismos que estão expostos a alta intensidade de luz, tais como cianobactérias e outros procariotas, eucariotas (e.g., fungos e microalgas), macroalgas marinhas (algas verdes e vermelhas), corais, líquens terrestres e outros organismos marinhos, que acumulam micosporinas através da dieta. A proteção contra danos causados pela radiação solar em organismos aquáticos sugere que esse grupo de substâncias pode atuar também como antioxidantes. Os precursores das micosporinas tais como o 4-deoxygadusol possui forte atividade antioxidante. Por outro lado, as micosporinas Porphyra-334 (P-334) e Shinorina, isoladas de algas vermelhas, não apresentaram potencial antioxidante direto. Por outro lado, as micosporinas possuem capacidade de bloquear os danos causados pela fotodegradação e têm sido exploradas comercialmente na busca de produtos para proteção solar. Também têm sido utilizadas na indústria de cosméticos sob a forma de cremes anti-idade para mulheres de 36 aos 54 anos no combate a danos causados pela radiação UVA, e bons resultados como melhora no tônus da pele e maciez têm sido observados como benefícios da adição das micosporinas a esses produtos. Atividade antibacteriana O uso indiscriminado de antibióticos nos últimos anos levou a resistência de agentes patogênicos, por esse motivo, estudos têm procurado novas fontes de substâncias com atividade antibacteriana. Em macroalgas, os principais compostos que apresentam atividade antibacteriana são compostos halogenados, terpenos e substâncias fenólicas. Furanonas halogenadas, ou fimbrolídeos, isoladas da alga vermelha Delisia pulchra, têm se mostrado promissores compostos antibacterianos. Furanonas são um tipo de lactona, ou seja, um éster cíclico, e nesse caso estão ligadas a pelo menos um átomo de bromo. Na alga, esses compostos têm ação anti-incrustante, impedindo a formação de biofilmes, que são comunidades de microrganismos envoltos por uma matriz extracelular de polissacarídeos, que os mantém unidos entre si e a uma superfície sólida. Nessa matriz, além dos microrganismos que a produziram, podem estar aderidos outros microrganismos e partículas sólidas. Por esse motivo, furanonas halogenadas têm sido estudadas como um potencial tratamento para infecções causadas por Pseudomonas aeruginosa, uma bactéria Gram-negativa que pode formar biofilmes nos aparelhos respiratório e urinário. Além de P. aeruginosa, as furanonas halogenadas apresentam atividade antibacteriana contra outras espécies de bactérias Gram-negativas, como Escherichia coli, Serratia liquefaciens, Proteus mirabilis e espécies do gênero Vibrio. Em algas vermelhas os terpenos halogenados também apresentam atividade antimicrobiana. No gênero Laurencia já foram isolados diversos sesquiterpenos (terpenos de 15 carbonos) halogenados, os quais têm mostrado potencial antibacteriano. Por exemplo, o laurinterol isolado de Laurencia okamurae apresenta atividade bactericida contra cepas de Staphylococcus aureus (Gram-positiva) resistente ao antibiótico meticilina. Na alga verde Ulva fasciata foram isolados sesquiterpenos guaianos, que apresentam atividade contra espécies do gênero Vibrio. Em algas pardas, os florotaninos (polifenóis) são os principais responsáveis pela atividade antibacteriana. O eckol e o dieckol isolados de algas dos gêneros Ecklonia e Eisenia, por exemplo, inibem o crescimento de S. aureus. A atividade antibacteriana dos florotaninos se dá pela inibição da fosforilação oxidativa e pela capacidade de se ligar às proteínas da membrana bacteriana, causando lise celular. Florotaninos de baixo peso molecular extraídos de Sargassum thunbergii causaram danos à membrana e à parede celular de V. parahaemolyticus, bactéria Gram-negativa que causa gastroenterite principalmente pela ingestão de peixes e frutos do mar mal cozidos. 122 Atividade antiviral Doenças virais há muito tempo são assuntos com grande relevância e importância médica, pois os vírus são organismos com alta taxa de mutação e resistência a fármacos e terapias. Entre as doenças virais com grande repercussão encontra-se a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) que é considerado um grande problema de saúde pública mundial. Além dela, a herpes também é uma doença que atinge mais de 80% da população mundial, porém a maioria não demonstra as manifestações clinicas (erupções com inflamação em mucosas), o que facilita muito a dispersão do vírus. Desta forma, a descoberta de novas substâncias e/ou terapias que apresentem alta eficiência e baixa toxicidade ou efeitos colaterais têm sido alvo de grande interesse nas pesquisas de bioprospecção. As microalgas e macroalgas constituem um importante recurso na produção de metabólitos secundários com importância biotecnológica, e esses dois grupos foram um dos primeiros a apresentar atividade antiviral in vitro. Os florotaninosapresentam atividade antiviral e atuam em diferentes fases da infecção, podendo inibir a adsorção, a transcriptase reversa e a transcrição. Na alga parda E. cava foram isolados quatro derivados do floroglucinol, dos quais o bieckol e o dieckol inibiram a transcriptase reversa do HIV (RT- HIV). Essas substâncias apresentaram capacidade de inibição comparável a nevirapina, um fármaco usado no tratamento da AIDS. Diterpenos isolados da alga parda Dictyota menstrualis apresentam forte atividade inibitória da enzima RT-HIV e contra o vírus da herpes. Terpenos do tipo dolabelano isolados da alga Dictyota pfaffi, desempenham importante papel na inibição da RT-HIV in vitro. O Dolabelladienetriol outro diterpeno isolado de D. pfaffi além de inibir a RT-HIV também bloqueia a síntese/integração do DNA viral em células infectadas. Atualmente um promissor gel ginecológico está sendo desenvolvido por institutos de pesquisas brasileiros e já é considerada mais uma forma de proteção para a mulher, porém é importante salientar que o seu uso deve ser aliado ao uso da camisinha. Segundo a Dra. Valéria Teixeira da Universidade Fluminense, responsável pelo isolamento da substância e pela condução das pesquisas, o composto é promissor, pois age nas células, possui baixa toxicidade e é capaz de permanecer nas células por até dez dias. Mesmo que o tempo seja curto, os pesquisadores defendem a utilização preventiva do gel, que está na fase clínica de testes, pois o seu mecanismo de ação não impede que o vírus entre na célula, mas em contato com a substância o HIV não consegue se multiplicar. Atividade anticâncer O Kahalalide F é um depsipeptideo (peptídeos formados por aminoácidos intercalados por ácidos carboxílicos) com ação citotóxica, inicialmente isolado na lesma-do-mar Elysia rufescens. Posteriormente verificou-se que esse molusco ao se alimentar da alga verde do gênero Bryopsis sequestra o Kahalalide. Esse composto atualmente se encontra na fase II de testes clínicos para o tratamento de melanoma, carcinoma hepatocelular e câncer de pulmão. Além disso, essa substância também apresenta atividade antiviral. O Dactilone é um novo grupo de substâncias que vem sendo utilizado como agente anticâncer. Essa substância, isolada da alga vermelha do gênero Laurencia, possui estrutura química muito próxima a dos sesquiterpenos e apresenta forte atividade antitumoral frente a diversas linhagens celulares incluindo células cancerígenas no cólon. Meroditerpenos isolados de algas pardas apresentaram interessante supressão no desenvolvimento de linhagens celulares de neuroblastoma humano (SH-SY5Y), leucemia basofílica em ratos (RBL-2H3), fibroblastos de hamster chinês (V79) e células de adenocarcinoma do cólon humano (Caco-2). Extratos metanólicos bruto da alga parda Sargassum muticum inibiram a proliferação de duas linhagens celulares de câncer de mama MCF-7 e MDA-MB-231 e agem estimulando o processo de apoptose das células cancerígenas. 123 A fração de esteróis da alga vermelha Porphyra dentata apresenta atividade sobre células supressoras derivadas de linhagens mielóides e essa atividade está associada à presença de β-sitoesterol e o campesterol que reduz a atividade dessa linhagem celular, por conseguinte, diminuindo o tamanho do tumor. As macroalgas representam um importante recurso marinho como pôde ser observado no breve panorama apresentado. Esses organismos produzem metabólitos secundários das mais diversas classes químicas e com estruturas peculiares, como no caso das substâncias halogenadas. Alguns desses metabólitos já apresentam reconhecida atividade biológica contra patologias de grande interesse médico, porém este ainda é um recurso pouco investigado quanto ao seu potencial biotecnológico no mundo. Referências Ahn, M.-J. et al. (2004). Inhibition of HIV-1 reverse transcriptase and protease by phlorotannins from the brown alga Ecklonia cava. Biological & Pharmaceutical Bulletin, 27(4), pp.544–547. Cragg, G. M.; Newmann, D. J. Natural products: A continuing source of novel drug leads. Biochimica et Biophysica Acta, 1830(6), pp. 3670-3695. Chakraborty K.; Lipton, A.P.; Paulraj, R.; Chakraborty, R. D. (2010). Guaiane sesquiterpenes from seaweed Ulva fasciata Delile and their antibacterial properties. Eur. J Med. Chem, 45 (6), pp. 2237- 44. De Clercq, E., (2000). Current lead natural products for the chemotherapy of human immunodeficiency virus (HIV) infection. Medicinal research reviews, 20(5), pp.323–349. Eom, S. H.; Kim, Y. M.; Kim, S. K., (2012). 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Springer-Verlag Berlin Heidelberg, p. 439. 124 CAPÍTULO 13 Algas marinhas como fonte de polissacárideos: ficocoloides Janaína Pires Santos Vanessa Urrea-Victoria As algas, junto com um pequeno grupo de angiospermas aquáticas, apresentam um papel ecológico fundamental na manutenção dos ecossistemas aquáticos por serem produtores primários. A partir dessa produção primária, ou seja, transformação de energia luminosa em energia química, esse processo gera inúmeros produtos, entre eles estão os carboidratos (polissacarídeos), de interesse biotecnológico aplicados nas indústrias farmacêutica, cosmecéutica e alimentícia. O uso das algas marinhas como fonte de ficocoloides data de 1968, quando as propriedades emulsificantes e estabilizantes do ágar extraído com água quente de uma alga vermelha foram descobertas no Japão. Posteriormente outros extratos foram obtidos das algas pardas, em escala comercial devido à sua ação gelificante. No entanto, foi a partir da Segunda Guerra Mundial que o uso industrial dos extratos de algas marinhas se expandiu largamente, sendo algumas vezes limitado devido à falta de disponibilidade de matéria prima. Os países que cultivam macroalgas para fins comerciais somam trinta e um, sendo que 99,6% dessa produção mundial é restrita a apenas oito países, dentre eles: China (58,4%: 11,1 milhões de toneladas), Indonésia (20,6%: 3,9 milhões de toneladas), Filipinas (9,5%: 1,8 milhões de toneladas); Coréia do Sul (4,7%: 901.700 toneladas), Coréia do Norte (2,3%: 444.300 toneladas),Japão (2,3%: 432.800 toneladas), Malásia (1,1%: 207.900 toneladas) e República Unida da Tanzânia (0,7%: 132.000 toneladas) (Figura 1a e b). a b Figura 1. Panorama da produção mundial de macroalgas marinhas referentes a dados da FAO do ano 2010. Sendo (a) porcentagem da produção mundial e (b) produção mundial em milhões de toneladas. Segundo a FAO, no relatório de 2012 sobre “O estado mundial da pesca e da aquicultura”, até esta data, apenas as algas marinhas foram registradas nas estatísticas de produção de plantas aquáticas a nível mundial. O volume de produção de algas aumentou em taxas anuais médias de 9,5% em 1990 e 7,4% na década de 2000 quando comparado com as taxas de crescimento na produção de animais aquáticos de aquicultura, o que é equivalente à produção de 3,8 milhões de toneladas em 1990 e de 19 milhões de toneladas em 2010. Algumas espécies como Kappaphycus alvarezii e as grandes algas pardas (também conhecidas como “kelps”) foram responsáveis por aproximadamente 98% da produção mundial de algas em 2010 sendo a grande parte desta, voltada para alimentação e extração de ficocoloides. Apesar de possuírem uma grande quantidade de polissacarídeos que de modo geral não são digeridas pelos seres humanos, é comprovado que o consumo regular de algas proporciona maior capacidade de digestabilidade. Nos países orientais o uso das algas no consumo direto pelo homem é uma A 125 prática bastante antiga, com evidências de seu uso no Japão há mais de 10.000 anos. Hoje em dia, esse uso é bastante difundido, sendo alguns gêneros mais amplamente utilizados, por exemplo: Porphyra sp., Eucheuma sp., Laminaria sp. e Undaria sp., oriundas de cultivo e bancos naturais. As algas vermelhas se caracterizam pelo conteúdo de polissacarídeos complexos, denominados carragenanas cujas propriedades dependem de cátions associados, podendo formar géis rígidos na presença de K + (kappa-carragenana), géis elásticos na presença de sais de cálcio (iota-carragenana) ou frações não gelificantes devido ao alto grau de sulfatação (lambda-carragenana) (Figura 2). De acordo com suas propriedades físicas (gelificantes, estabilizantes e emulsificantes) e composição química, esses polissacarídeos extraídos da parede celular das algas vermelhas terão diferentes tipos de emprego. kappa-carragenana iota-carragenana lambda-carragenana Figura 2. Esquema da estrutura química das carragenanas. A Tabela 1 lista algumas das espécies de macroalga produtoras da carragenana tipo kappa, iota e lambda. Entre as amostras listadas, as únicas que vem sendo cultivadas comercialmente são Eucheuma sp. e Kappaphycus sp. Tabela 1. Lista de algumas espécies de macroalgas vermelhas produtoras de carragenana. Tipo de carragenana Espécies de macroalgas produtoras kappa Chondrus crispus Eucheuma cottonii Gigartina stellata Hypnea musciformis Iridaea sp. Iota Eucheuma spinosum Gigartina sp. lambda Gigartina sp. O conteúdo de carragenana nas algas varia de 30% a 60% do peso seco, dependendo da espécie e das condições marinhas, tais como luminosidade, variação de nutrientes, temperatura e oxigenação da água. A carragenana possui a habilidade exclusiva de formar ampla variedade de texturas de gel em temperatura ambiente: gel firme ou elástico; transparente ou turvo; forte ou débil; termo-reversível ou estável ao calor; alta ou baixa temperatura de fusão/gelificação. Algumas espécies de algas podem produzir carragenanas de composição mista, como kappa/iota, kappa/lambda ou iota/lambda. As carragenanas podem ser utilizadas também como agentes de suspensão, retenção de água, gelificação, emulsificação e estabilização em outras diversas aplicações industriais. 126 O primeiro registro do uso de carragenana na indústria alimentar foi em meados do século XIX, como agente clarificante da cerveja. A extensa lista de características que as carragenanas apresentam, levaram à expansão na indústria de derivados lácteos, por produzirem soluções de alta viscosidade e géis na presença de água, devido à sua reatividade com o leite (especialmente com a proteína caseína), resulta em um gel suave e agradável às papilas, portanto, 52% das aplicações das carragenanas são referentes à indústria de laticínios (indústria do leite e seus derivados). Em produtos lácteos, o agente gelificante normalmente usado é a kappa carragenana, devido ao seu baixo custo e por reagir com a caseína que é a proteína do leite, é utilizada em sorvetes, achocolatados, flans, pudins, creme de leite, iogurtes, queijos, sobremesas em pó e leite de coco. Em doces e confeitos, a utilização da iota carragenana oferece vantagem de produzir um gel de estrutura comparável à da gelatina, mas com um ponto de fusão mais elevado, sua aplicação inclui sobremesas tipo geleias, doces em pasta, confeitos e merengues. Nos produtos cárneos, a carragenana é aplicada em presunto, mortadela, hambúrguer, patês, aves e carnes processadas. Nas bebidas, é aplicada para clarificação e refinação de sucos, cervejas, vinhos e vinagres, achocolatados, xaropes, suco de frutas em pó e diet shakes. Em panificação é utilizada para cobertura de bolos, recheio de tortas e massas de pão. A carragenana é utilizada, também, em molhos para salada, sopas em pó, mostarda, molhos brancos e molhos para massas. Na indústria de cosméticos tem ocorrido o uso crescente das carragenanas na fabricação de loções, cremes e géis perfumados. A aptidão para formar finas películas torna a carragenana um excelente acondicionador, além de cremes de beleza, pois a rápida evaporação da fase aquosa da emulsão liberada sobre a pele forma um microfilme oleoso protetor e medicinal. Além disso, podem ser usadas na estabilização de cremes dentários, devido à sua capacidade de formar géis aquosos altamente estáveis contra a degradação enzimática, tornando a carragenana única como agente espessante nesse tipo de pastas. A sua estrutura permite, nestas circunstâncias, a liberação dos sabores e aromas durante a lavagem dos dentes. Outro tipo de ficocoloide produzido pelas algas vermelhas é denominado ágar-ágar, também conhecido como ágar ou agarose. É um hidrocolóide extraído de diversos gêneros de algas vermelhas. O ágar é resultado da mistura heterogênea de dois polissacarídeos: agarose e agaropectina, encontrados na parede celular. A agarose é o componente gelificante enquanto a agaropectina tem apenas uma baixa capacidade de formar gel. É uma família de polissacarídeos que apresenta estruturas de D-galactose (Figura 3). Figura 3. Esquema da estrutura química do ágar-ágar. A quantificação dos teores de sulfato na molécula de ágar fornece um dos parâmetros de qualificação deste ficocoloide, a retirada de sulfato e a sua transformação em 3,6 anidrogalactose aumentam a qualidade do gel. Contudo, o ágar que é utilizado na bacteriologia (e.g. meios de cultura) deve ter alguns pré-requisitos, como ser resistente às hidrólises enzimáticas, possuir uma alta força do gel e ausência de cargas. 127 O ágar na forma pura para análise é suplementado com uma mistura de nutrientes, usado em biologia vegetal para auxiliar a germinação no cultivo in vitro, sob condições estéreis e com o meio de cultura variando de acordo com cada espécie vegetal. Este tipo de meio é particularmente útil no controle de concentrações exógenas específicas de certas biomoléculas, como por exemplo, os hormônios vegetais, que podem induzir determinados padrões de crescimento de acordo com a concentração aplicada. O ágar é um polissacarídeo que possui muitas aplicações, sendo utilizado principalmente na indústria alimentícia e na área de pesquisas, devido às suas aplicações biotecnológicas. Nas indústrias alimentícias o ágar tem uso generalizado, onde se aproveitam suas propriedades emulsificantes, estabilizantes e gelificantes,assim como sua alta resistência ao calor. Em virtude do seu baixo valor energético é empregado na elaboração de alimentos dietéticos. O ágar destinado à alimentação é considerado de boa qualidade, quando possui baixos teores de sulfato. Além da grande utilidade na área de biotecnologia, sendo empregado em géis utilizados na separação de eletrólitos em eletroforese, na separação de moléculas, em técnicas de imunodifusão, em meios de cultivo microbiológico. A utilização do ágar para preparação desses meios deve-se principalmente: A formação de gel em baixas concentrações; baixa reatividade com outras moléculas e resistência à degradação pelos microrganismos mais comuns. Preparações comerciais de ágar em escala mundial são obtidas principalmente por espécies pertencentes às ordens Gelidiales e Gracilariales. As formas de extração deste ficocoloide podem variar de acordo com o gênero escolhido (Figura 4). Figura 4. Esquema de extração do ágar com modificações de acordo com o gênero escolhido. Por fim, o alginato é um termo usado para os sais de ácido algínico, encontrados nas paredes celulares das algas pardas e constitui outro grupo de ficocoloides. São polímeros formados por cadeias longas dos ácidos L-glururônico e D-manurônico, podendo variar de acordo com a espécie (Figura 5). Alginatos associados a sódio, cálcio, potássio ou magnésio são solúveis em soluções aquosas em pH acima de 3,5. Dessa forma os alginatos não são necessariamente os mesmos, podendo ser encontrados 128 alginatos com alta viscosidade quando dissolvido em água (por exemplo: Macrocystis sp.) ou baixa viscosidade (e.g. Sargassum sp.). Figura 5. Esquema da estrutura química do alginato. Os alginatos são utilizados em indústrias têxteis, devido à alta qualidade do gel produzido e por não reagirem com os corantes, dessa forma são os melhores espessantes para tais corantes, tornando-se mais caros do que os demais encontrados no mercado. São também utilizados na indústria alimentícia, devido à sua capacidade estabilizante, reduzindo a formação de cristais de gelo mesmo quando submetidos a temperaturas muito baixas, além de proporcionarem o aspecto macio. Outra aplicação importante é na indústria de cervejas por formar uma película que não permite a formação de bolhas, mesmo diante da agitação do líquido. A importância dos alginatos como insumo para as indústrias alimentícia, farmacêutica e química, é devido às suas propriedades hidrocolóides, ou seja, sua capacidade de hidratar-se em água quente ou fria para formar soluções viscosas, dispersões ou géis. Os alginatos possuem propriedades espessantes, estabilizantes, gelificantes e formadoras de películas, resultando em uma ampla gama de aplicações. Os principais gêneros de macroalgas utilizados para produção de alginato são: Macrocystis sp., Laminaria sp. e Ascophyllum sp., todos característicos de águas frias. O gênero Macrocystis é coletado de populações naturais na costa oeste dos EUA, enquanto o gênero Laminaria vem sendo cultivado intensamente na China, onde a produção ultrapassou 200.000 toneladas de algas secas por ano. Uma significante parcela desse material é utilizada nas indústrias de alginato da própria China. Aproximadamente 27.000 toneladas de alginatos com valores de US$ 230 milhões foram comercializados em 1990. A produção comercial de alginatos teve início em 1929 e, em 1934, em escala limitada na Grã- Bretanha e, mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, surgiu a indústria de alginatos na Noruega, França e Japão. De forma geral, o interesse e a busca pela aplicabilidade dos polissacarídeos das algas têm aumentado consideravelmente nos últimos anos, devido aos estudos fitoquímicos na procura de bioatividade destes polissacarídeos. Atualmente, já são reconhecidas importantes atividades biológicas para os ficocoloides como: 1) Atividade antiviral especificamente lambda e iota carragenana, pois em pequenas concentrações provocam simulação linfocitária capaz de inibir em 80% (iota carragenana) e 100% (lambda carragenana) o desenvolvimento do vírus do herpes simplex (HSV). Gigartina skottsbergii tem potenciais efeitos antivirais contra o HSV (tipo I e II) durante a etapa de adsorção do vírus. Também interferem na fusão das células infectadas com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) e inibem a enzima retroviral específica “transcriptase reversa”. Outros estudos sugerem que as moléculas de carragenana inibem as infecções por DNA- e RNA-vírus. A atividade antiviral atribuída aos polissacarídeos está relacionada com o grau de sulfatação destas moléculas, no qual quanto maior for o grau de sufatação do polissacarídeo maior será a atividade antiviral; 2) anticoagulante, pelas semelhanças estruturais com heparina, tem sido reportada a bioatividade da alga verde Codium cuneatum 129 e na alga vermelha Euchema sp. As propriedades anticoagulantes e hipocolesterolêmicas das lambda- carragenanas apresentam uma atividade significativamente maior que o tipo kappa e tipo iota; 3) antitumorais: Aumento do tempo médio de sobrevivência, redução do volume do tumor, e contagem de células viáveis. Esta atividade está reportada nas espécies Gigartina intermedia e Chondrus ocellatus, obtidas mediante o teste de inibição do “Ehrlich carcinoma”; e 4) anti-inflamatórias produzindo efeitos prolongados no sistema imunológico. Estas atividades foram efetivamente comprovadas e podem garantir o desenvolvimento de novos fármacos, representando um grande ganho para o conhecimento e para setores importantes da indústria farmacêutica. As macroalgas nas últimas décadas têm ocupado importante papel no setor industrial, devido à produção de ficocoloides e de substâncias bioativas. De acordo com o panorama apresentado, esses organismos representam uma potencial fonte comercial e biotecnológica que ainda tem sido pouco explorada, principalmente no Brasil. Referências FAO (2012). The state of world fisheries and aquaculture. Food and Agriculture Organization of the United Nations. 230p. McCandless E (1981). Polysaccharides of the Seaweeds. Cap. 16. The Biology of Seaweeds. Blackwel Scientific Publications: 559-588. Mchugh D (2003). A guide to seaweed industry. FAO Fisheries Technical Paper. 105p. Pereira L & Van de Velde F (2011). Portuguese carrageenophytes: Carrageenan composition and geographic distribution of eight species (Gigartinales, Rhodophyta). Carbohydrate Polymers. 84(1): 614-623. Se-Kwon K (2012). Handbook of marine macroalgae biotechnology and applied phycology. John Wiley & Sons Inc. 567p. 130 PARTE IV ESTRUTURA E DESENVOLVIMENTO 131 CAPÍTULO 14 Plantas parasitas Luíza Teixeira-Costa Introdução Plantas parasitas sempre despertaram a curiosidade de observadores e estudiosos, sendo conhecidas e descritas pela humanidade desde a antiguidade clássica. Entretanto, ainda hoje algumas observações incorretas são feitas a respeito dessas plantas. As confusões mais comuns envolvem plantas epífitas e lianas, além de plantas saprófitas, e até mesmo as plantas carnívoras. O Quadro 1 lista as principais diferenças entre essas diferentes formas de vida das plantas. Quadro 1. Comparação entre plantas frequentemente confundidas com parasitas. Forma de vida Exemplos Localização das raízes 1 Forma de obtenção de energia Dependência nutricional em relação à outra planta Parasitária Ervas-de- passarinho; Cipó-chumbo; Sândalo Em contato com tecidos da planta hospedeira Total ou parcialmente Heterótrofa Total, parcial ou facultativa Lianescente Cipós;Vinhas Solo Autótrofa Não Epifítica Orquídeas; Bromélias; Líquens Fora do solo (sobre plantas,rochas, etc.) Autótrofa Não Saprofítica Planta-fantasma Em contato com alimento Saprofítica (alimentam-se de matéria em decomposição) Não Carnívora Copo-de- macaco; Drósera Solo Autótrofa (pequenos invertebrados apenas complementam a nutrição) Não É importante notar que a raiz de plantas que apresentam a forma de vida epifítica pode eventualmente localizar-se sobre o caule de outras plantas, entretanto, não há penetração da raiz dessas plantas no corpo das espécies que as servem como suporte. Tendo em vista esse tipo de confusão, Job Kuijt, em seu livro The Biology of Parasitic Flowering Plants, define as plantas parasitas como aquelas que apresentam órgão denominado haustório, responsável pela conexão entre a parasita e sua hospedeira. Esse órgão atua como uma espécie de ponte fisiológica entre parasita e hospedeira, permitindo o fluxo de água, nutrientes, hormônios, etc. Assim como outros órgãos das plantas – caule, raiz, folha, flor, semente e fruto – o haustório é uma estrutura complexa que apresenta diferentes tecidos. É interessante mencionar que, embora o primeiro registro de uso deste termo seja atribuído à descrição da conexão entre uma parasita (Cuscuta sp.) e sua hospedeira, é importante mencionar que o 1 O haustório, órgão intrusivo das plantas parasitas, é considerado como sendo uma raiz modificada (ver Kuijt 1969). 132 termo haustório é também empregado para outras estruturas como, por exemplo, o tubo polínico (haustorial) presente em Ginkgophyta. Classificação, Diversidade e Evolução A primeira classificação das plantas parasitas foi proposta por Pfeiffer (1789), que as dividiu em três grupos, utilizando características relacionadas ao hábito da parasita e à morfologia da hospedeira. Atualmente, embora não haja uma classificação formal para essas plantas, costuma-se dividi-las de acordo com três principais critérios, resumidos no Quadro 2. Quadro 2. Resumo das principais classificações de plantas parasitas. Critério de classificação Classes Exemplos Status fotossintético Hemiparasitas Holoparasitas Viscum spp. Orobanche spp. Grau de dependência em relação à hospedeira Facultativo Obrigatório Triphysaria spp. Striga spp. Órgão parasitado na hospedeira Caule Raiz Ambos Psittacanthus spp. Rafflesia spp. Tripodanthus acutifolius Dentre os critérios apresentados na tabela acima, é importante notar que o “status fotossintético” não se refere apenas à presença/ausência de clorofila ou de atividade fotossintética. Um dos mais conhecidos grupos de holoparasitas, o gênero Cuscuta, apresenta espécies nas quais já foi observada presença de clorofila funcional em plastídeos. Entretanto, embora seja capaz de produzir fotoasssimilados, tal produção ocorre em quantidade insuficiente para sua sobrevivência. Uma definição mais assertiva dos termos “hemiparasita” e “holoparasita” leva em consideração as conexões estabelecidas pela parasita com os tecidos condutores da hospedeira. Assim, enquadram-se no primeiro grupo as parasitas que se conectam anatomicamente apenas ao xilema de suas hospedeiras, enquanto que o segundo grupo abarca as espécies que se conectam tanto ao xilema quanto ao floema das hospedeiras. Quanto ao grau de especificidade, certas parasitas são conhecidas por sua ampla gama de hospedeiras, como Dendrophthoe falcata, com 343 hospedeiras listadas; enquanto outras são notáveis por sua especificidade de hospedeiros, como Psittacanthus sonorae, observada apenas sobre espécies dos gêneros Bursera e Elaphrium (ambas da família Burseraceae). Em relação ao órgão da hospedeira que é infestado, algumas poucas espécies de parasita conseguem conectar-se tanto ao caule, quanto às raízes de suas hospedeiras. Em alguns casos, como para espécie Tripodanthus acutifolius mencionada no Quadro 2, é até mesmo possível que a parasita se conecte aos dois órgãos da hospedeira simultaneamente. Parasitas que eventualmente formam haustórios nas folhas de suas hospedeiras são consideradas como parasitas de caule. Por fim, outro tipo menos comum de classificação para plantas parasitas é de acordo com o hábito que apresentam. Nesse quesito, diversos hábitos são observados, desde ervas (ex. Rhinanthus spp.) e trepadeiras (ex. Cassytha spp.), até arbustos (ex. Olax spp.) e árvores (Santalum spp.). Independentemente da classificação adotada, é notável a grande diversidade apresentada pelas plantas parasitas, que podem ser encontradas em praticamente todos os locais do globo. Entretanto, é importante notar que as plantas parasitas não formam um grupo monofilético. Acredita-se atualmente que o hábito parasitário tenha evoluído independentemente 12 vezes. É importante mencionar que todos os clados de plantas parasitas atualmente conhecidos estão classificados dentro das Angiospermas, mais especificamente apenas entre as Eudicotiledôneas, não se conhecendo, até o presente momento, espécies de plantas parasitas pertencentes a outros grupos vegetais. Embora a conífera denominada Parasitaxus usta (Podocarpaceae) tenha sido anteriormente considerada como uma parasita, atualmente sabe-se que esta espécie não apresenta formação de haustórios, 133 conectando-se às raízes de outras espécies de Podocarpaceae por meio de estruturas que se assemelham a enxertos. Baseando-se na classificação atualizada do sistema APG, as plantas parasitas estão distribuídas em 23 famílias, com um total de aproximadamente 270 gêneros. Este elevado número representa cerca de 1% de todas as espécies de Angiospermas viventes atualmente. No Brasil, Santalaceae e Loranthaceae são os dois clados mais importantes e numerosos. Merece destaque ainda as famílias Balanophoraceae, Apodanthaceae, Convolvulaceae (Cuscuta spp.) e Lauraceae (Cassytha ssp.), com espécies também nativas no Brasil. Relações ecológicas Plantas parasitas apresentam reconhecida importância em comunidades naturais, podendo atuar como espécies chave em diversos níveis de interações específicas e de dinâmicas populacionais. Um dos efeitos mais notados refere-se à promoção de ciclos de extinção e reaparecimento local de espécies, o que pode favorecer o aparecimento, crescimento ou a disseminação de outra espécie na comunidade. Outro efeito, que vem sendo apontado em trabalhos recentes, relaciona-se ao papel das parasitas na ciclagem de nutrientes da comunidade. Durante seu ciclo de vida, uma planta parasita utiliza-se dos recursos captados pela hospedeira, sejam eles recursos minerais ou fotoassimilados. Quando ocorre queda das folhas da parasita, parte desses nutrientes é então transferida para o solo por sua decomposição, tornando-se disponível para plantas do extrato herbáceo. Este efeito ressalta o papel positivo que estas plantas podem apresentar no nível de comunidades vegetais. Quanto às relações que apresentam com a fauna, muitas espécies de plantas parasitas constituem uma importante fonte de recursos, fornecendo alimento para animais desde insetos até pequenos mamíferos. Além dos frutos e do pólen das flores, consumidos por dispersores e polinizadores, as folhas, ricas em nitrogênio, também podem ser consumidas por alguns insetos. No caso particular do consumo de frutos, as ervas-de-passarinho produzem frutos consumidos em larga escala por pequenos pássaros que, ao defecarem ou limparem o bico, depositam as sementes da parasita sobre os galhos de uma potencial hospedeira. As sementes, que desde o interior do fruto encontram-se envoltas em uma substância mucilaginosa denominada viscina, ao serem depositadas nos galhos ficam firmemente aderidas, permitindo o desenvolvimento inicial da parasita. Curiosamente, alguns estudos atuais envolvendo a avifauna dispersora das “ervas-de-passarinho” têm apontado um possível efeito mutualístico narelação parasita-hospedeira. Em casos que parasita e hospedeira apresentam dispersão de frutos realizada pela mesma espécie, a parasita pode atuar aumentando o fitness reprodutivo de sua hospedeira, atraindo um maior número de dispersores para ambas as plantas. Outro tipo interessante interações de espécies envolvem duas plantas parasitas, que podem ser da mesma família e, até mesmo, do mesmo gênero. São os casos de hiperparasitismo (ou epiparasitismo), que geralmente envolvem espécies bastante especialistas (baixa diversidade de hospedeiras), que utilizam outra parasita como sua hospedeira. Os exemplos concentram-se em membros da família Santalaceae, como Viscum loranthi (sobre espécies de Loranthaceae), Dendrophtora epiviscum (sobre outras espécies do mesmo gênero) e Phoradendron falcatum (sobre outras espécies do mesmo gênero). Por fim, há ainda casos não raros de autoparasitimo, que pode ocorrer devido ao brotamento de um novo indivíduo sobre os ramos da planta mãe, como observado em Viscum monoicum, ou devido à simples conexão entre ramos do mesmo indivíduo, como observado em Cuscuta reflexa e Struthanthus flexicaulis. Este último caso é particularmente comum em parasitas com hábito lianescente, embora não se tenha certeza quanto à funcionalidade destas conexões autoparasitárias. 134 Anatomia Como mencionado anteriormente, a existência de conexão entre uma planta e sua hospedeira através do haustório é o que define o parasitismo entre as plantas. Embora apresente grande variação entre espécies, o haustório é composto por uma parte externa aos tecidos da hospedeira, denominada apressório, e uma parte interna, imersa em tecidos da hospedeira, denominada endofito. A Figura 1 ilustra as diferentes partes deste órgão. Figura 1. Haustório de Tripodanthus acutifolius sobre o caule de Tapirira guianensis, indicando a região externa do órgão, denominada “apressório”, e a região interna, denominada “endofito”. Dois tipos de haustórios são mencionados na literatura, sendo sua classificação baseada na origem morfológica do órgão. A vasta maioria das parasitas de caule apresenta a formação de um haustório denominado que é primário por formar-se a partir do meristema apical radicular, sendo originário, portanto, do embrião da planta. Por outro lado, muitas das espécies parasitas de raiz apresentam uma germinação semelhante àquela das plantas de vida livre. Nesses casos, o (s) haustório (s) é (são) formado (s) num segundo momento, a partir de outras estruturas da planta, sendo, por tanto, denominados haustórios secundários, uma vez que não se originam diretamente do embrião da planta. Em espécies que formam tanto haustórios primários quanto secundários, não há diferenças significativas quanto à morfologia e à anatomia do órgão. Muitas das espécies parasitas de caule capazes de formar haustórios secundários o fazem através de estruturas conhecidas como raízes epicorticais – exemplo: Struthanthus martianus (Figura 2 a-c). Trata-se de ramificações do sistema de conexão da parasita que crescem externamente e paralelamente por sobre os galhos da hospedeira. A partir dessas extensões surgem os novos haustórios (secundários) em locais mais afastados do haustório primário. Ap ressório En dofito Ha ustório 135 Figura 2. Exemplos de conexão parasita-hospedeira. (a) Struthanthus martianus (circulada em vermelho) formando múltiplas conxões sobre Erithrina speciosa. (b) e (c) detalhe das raízes epicorticais formadas por espécies de Struthanthus em diferentes hospedeiras. (d) Phoradendron perrottetii formando galha (conexão única; circulada em vermelho) sobre Tapirira guianensis. (e) botões florais da endoparasita Pilostyles blanchetii emergindo do caule da hospedeira Mimosa sp. Já outras espécies de parasitas formam apenas haustórios primários. Em alguns destes casos a penetração dos haustórios provoca um intumescimento do órgão parasitado devido à hipertrofia e à hiperplasia de células hospedeiras. Estas estruturas são conhecidas como galhas – exemplo: Phoradendron perrottetii (Figura 2d). Algumas holoparasitas passam a maior parte de seu ciclo de vida no interior do corpo de suas hospedeiras, sendo observadas externamente apenas durante seu período reprodutivo, quando as flores e A B C D E P P P P H H P H (a) (b) (c) (d) (e) 136 frutos emergem através do caule ou da raiz da planta hospedeira – exemplo: Pilostyles banchetii (Figura 2e). Estas espécies são denominadas endoparasitas, uma vez que apresentam apenas tecidos no interior do corpo de suas hospedeiras (endofito), à exceção das estruturas reprodutivas. A estrutura geral dessas plantas, resumida ao endofito, costuma ser bastante simples, sendo constituída apenas por massas de células parenquimáticas instaladas no interior dos tecidos das hospedeiras. Até hoje o conhecimento quanto ao ciclo de vida destas plantas é relativamente precário, não sendo conhecido, para muitas das espécies endofíticas, o modo como a parasita penetra o corpo da hospedeira inicialmente. Considerando as espécies ectoparasitas – parasitas cujos tecidos encontram-se no exterior do corpo da hospedeira – o endófito pode apresentar diferentes graus de complexidade. O tipo mais simples de endofito compreende apenas o tecido que penetra o xilema da hospedeira, conectando-se a ele. Esse tecido é denominado extensor (ou sinker). Endófitos mais complexos podem incluir estruturas acessórias ao extensor, como os cordões corticais apresentados por algumas espécies das famílias Santalaceae e Loranthaceae. As plantas parasitas consomem recursos das hospedeiras de diversas formas, o que pode significar prejuízos variados. Ervas de passarinho transpiram em geral mais do que suas hospedeiras, levando à competição por água. Por causa dessa demanda por água, o sistema hidráulico é submetido a condições mais extremas e, em alguns casos, pode sofrer alterações anatômicas para que o sistema vascular continue funcional. Podem ocorrer também mudanças na densidade de vasos, no diâmetro dos elementos condutores e no comprimento das fibras. Impactos Econômicos e Controle Embora as plantas parasitas apresentem importantes papéis em comunidades naturais, como já mencionado, é necessário lembrar os impactos negativos que essas plantas podem causar à agricultura e à economia. Dados de diversos anos apontam perdas massivas de produção agrícola em países dos Estados Unidos e da África, podendo chegar a cerca de 90% de perda, causada principalmente por espécies dos gêneros Orobanche, Phelipanche e Striga. Outros efeitos deletérios frequentemente mencionados incluem impactos causados ao crescimento e à arquitetura hidráulica das hospedeiras. Tendo em vista as perdas mencionadas, diversas metodologias de controle e de erradicação de plantas parasitas vêm sendo propostas e testadas, sendo que as mais simples incluem a poda seletiva de ramos parasitados e a remoção individual da parasita. Entretanto, tais metodologias apresentam baixa eficácia devido à relação parasita-hospedeira, especialmente no que diz respeito aos fatores metabólicos. Metodologias mais elaboradas procuram focar-se em características individuais da espécie parasita e, em alguns casos, da hospedeira, uma vez que a relação entre essas plantas pode variar amplamente entre um caso e outro. Dentre essas metodologias é possível mencionar o controle biológico, utilizando fungos, bactérias e alguns artrópodes. Ainda dentro dessa temática, pesquisas atuais, especialmente em Agricultura, têm se focado na elaboração de técnicas de manejo baseadas no ciclo de vida das parasitas, utilizando-se de substâncias químicas sintetizadas a partir de hormônios vegetais. Uma melhor compreensão dos processos envolvidos nos estágios desde a germinação até o estabelecimento daparasita possibilita saber o melhor momento para que se empreguem técnicas de controle. 137 Referências Aukema, J. E. (2003). Vectors, Viscin, and Viscaceae: Mistletoes as Parasites, Mutualists, and Resources. Frontiers in Ecology and the Environment. v. 1(4). p. 212 – 219. Heide-Jorgensen HS. (2008). Parasitic Flowering Plants. Ed. Brill, Leiden, Boston – USA. Kuijt, J. (1969). The biology of parasitic flowering plants. University of California Press; Berkeley. Nickrent DL. 1997 – 2016. http://www.parasiticplants.siu.edu/. Westwood, J. H.; Yoder, J. I.; Timko, M. P.; de Pamphilis, C. D. (2010). The evolution of parasitism in plants. Trends in Plant Science. v.15(4). p. 227-235. 138 CAPÍTULO 15 Metabolismo ácido das crassuláceas: considerações ecofisiológicas e evolutivas Filipe Christian Pikart Paulo Tamaso Mioto Introdução O metabolismo ácido das Crassuláceas (CAM – Crassulacean acid metabolism) é classicamente caracterizado por apresentar um comportamento estomático (Capítulo 17) inverso ao visto em plantas C3 e C4, ou seja, nesse tipo de metabolismo fotossintético as plantas mantêm os estômatos fechados durante o dia e os abrem durante a noite. Adicionalmente, durante a noite, também ocorre um aumento nos níveis endógenos de ácidos orgânicos, resultante da fixação do CO2 obtido através da abertura dos estômatos. Esse evento se dá pela carboxilação de moléculas de fosfoenolpiruvato (PEP) pela ação da enzima FOSFOENOLPIRUVATO CARBOXILASE (PEPC), resultando na formação de oxaloacetato (OAA). O OAA, por sua vez, pode ser utilizado para a formação de malato pela MALATO DESIDROGENASE (MDH). O malato é uma das formas mais comum de ácido orgânico entre as espécies que apresentam o CAM. Poteriormente, os ácidos orgânicos são armazenados no vacúolo. Durante o dia ocorre a descarboxilação dos ácidos orgânicos resultando no aumento da concentração interna de CO2, que pode então ser utilizado normalmente no ciclo de Calvin, pela RIBULOSE 1,5-BISFOSFATO CARBOXILASE/OXIGENASE (RUBISCO), para a formação de esqueletos carbônicos. A principal vantagem desse tipo de metabolismo para a planta é uma grande economia na quantidade de CO2 assimilado da atmosfera em relação à perda de água. Uma planta CAM pode ser capaz de perder 5 vezes menos água por CO2 fixado. Outras vantagens podem existir, mas são ainda um pouco controversas. Por exemplo, sabe-se que a afinidade da PEPC pelo carbonato (que é gerado a partir do CO2) é maior do que a da RUBISCO pelo CO2. Assim, a PEPC trabalha em uma faixa menor de concentração de CO2. Mais ainda, a RUBISCO também possui uma atividade de oxigenase, que compete com a atividade carboxilase. Ou seja, quanto menor a relação CO2/O2, menos eficiente a RUBISCO se torna. A atividade oxigenase da RUBISCO também é bastante aumentada em altas temperaturas. Quando a RUBISCO funciona como oxigenase, ocorre o que chamamos de fotorrespiração, um processo que resulta em perda de CO2 pela planta. Como as plantas CAM fazem uma fixação prévia de CO2 via uma enzima com maior afinidade pelo substrato, isso pode resultar em uma concentração muito alta de CO2 em torno da RUBISCO no dia seguinte, decorrente da descarboxilação dos ácidos quando a planta está com os estômatos fechados. Isso pode reduzir a taxa de fotorrespiração, mas ainda existe alguma discussão a respeito disso, como será visto adiante. Didaticamente, esse metabolismo fotossintético é divido em quatro fases ao longo do dia/noite (Figura 1). A fase I compreende a noite, período em que os estômatos estão abertos e ocorre a formação de ácidos orgânicos. No final da noite e início do dia ocorre a fase II. Nessa fase, os estômatos ainda estão abertos, ocorrendo uma redução na atividade da PEPC e aumento na atividade da RUBISCO, podendo então o CO2 ser fixado por meio dessas duas enzimas (observar as barras que indicam a assimilação do CO2 na Figura 1). A fase III acontece durante o dia com a descarboxilação dos ácidos orgânicos e a fixação do CO2 pela ação da RUBISCO. Sobre a enzima de descarboxilação, sabe-se que esse processo pode ser realizado por três enzimas, dependedo da espécie, sendo elas: FOSFOENOLPIRUVATO CARBOXIQUINASE (PEPCK), ENZIMA MÁLICA-NAD (ME- NAD) e ENZIMA MÁLICA-NADP (ME-NADP). Por fim, na transição do dia para a noite (fase IV) ocorre uma redução na atividade da RUBISCO e o contrário ocorre com a atividade da PEPC. Nesse ponto do dia os estômatos retornam a abrir permitindo a obtenção de CO2 atmosférico. Na fase IV a maior 139 parte dos ácidos orgânicos formados na noite anterior já foram descarboxilados e novas moléculas de PEP começam a ser carboxiladas. Figura 1. Representação do comportamento da atividade da RUBISCO, PEPC, conteúdo de malato e da assimilação de CO2 atmosférico nas quatro fases do CAM. Variações do CAM O CAM pode também apresentar algumas variações no padrão de abertura estomática, o que resultou na classificação desse metabolismo fotossintético em três diferentes formas. O tipo de CAM descrito anteriormente é conhecido como CAM clássico, porém existem também o tipo cycling e o idling. O CAM cycling é caracterizado pelo fato da planta apresentar um comportamento de abertura e fechamento estomático semelhante a uma espécie C3. Esse tipo de CAM difere de uma C3 por apresentar acúmulo noturno de ácidos orgânicos, porém em menor intensidade quando comparado com uma espécie que realiza o CAM clássico. Já as espécies que apresentam o CAM idling mantem seus estômatos fechados tanto durante o dia como durante a noite, acompanhado de uma pequena variação dia/noite no conteúdo de ácidos orgânicos. Na Figura 2 estão ilustrados os três tipos de CAM quanto a sua abertura estomática, assimilação de CO2 atmosférico e variação no conteúdo de ácidos orgânicos. 140 Figura 2. Representação esquemática da abertura estomática, assimilção de CO2 atmosférico e variação no conteúdo de ácidos orgânicos para os três tipos de CAM e C3. Faixas claras e escuras representam o dia e a noite, respectivamente. Plasticidade fotossintética Algumas espécies ainda apresentam a capacidade de alternar entre os tipos de CAM e até mesmo de um metabolismo C3 ou C4 para o CAM. Estudos indicam que essa alternância entre os tipos de metabolismo fotossintético é influenciada por fatores ambientais e/ou de desenvolvimento da própria planta. Clusia rosea é um exemplo de espécie que apresenta o CAM altamente influenciado pelo desenvolvimento, ou seja, durante sua fase jovem apresenta um metabolismo C3 e após determinado período de desenvolvimento passa a apresentar o CAM de forma irreversível. Por outro lado, algumas plantas apresentam o CAM durante todo o seu ciclo de vida ou ao menos em seus tecidos maduros, sem apresentar a capacidade de alternar esse metabolismo para algum outro tipo de fotossíntese. Exemplos dessas espécies são Kalanchoe daigremontiana e K. pinnata. Como foi dito anteriormente, a expressão do CAM em algumas espécies também pode ser influenciada por variações ambientais como, por exemplo, salinidade, intensidade luminosa, variação de temperatura e disponibilidade hídrica. Mesembryanthemum crystallinum é exemplo de uma espécie que apresenta uma mudança de um metabolismo fotossintético C3 para o CAM como uma resposta à salinidade. Já a espécie Portulaca oleracea pode apresentar alteração do C4 para o CAM em resposta a um período de déficit hídrico. Outras espécies podem ainda transitar entre os tipos de CAM, como é o caso de Guzmania monostachia, uma bromélia epífita que apresenta um CAM do tipo cycling quando bem hidratada e passa a expressar o CAM idling após um período sem água. Considerações ecofisiológicassobre o CAM Como vimos anteriormente, a abertura de estômatos durante a noite, característica do CAM, permite um uso mais eficiente da água. De fato, ao avaliarmos o habitat das espécies CAM é possível observar que a maioria ocupa ambientes de baixa disponibilidade hídrica, demostrando que o CAM pode ter sido uma vantagem adaptativa para esse tipo de ambiente. Outro ponto a ser destacado referente ao CAM para o metabolismo de carbono das espécies que o apresentam é o fato de atuar como um mecanismo concentrador de CO2. Como a descarboxilação ocorre quando os estômatos estão fechados, muito pouco CO2 liberado é perdido para a atmosfera, resultando em um aumento da disponibilidade interna desse gás em relação ao O2. Isso acaba aumentando a eficiência da RUBISCO na sua atividade de carboxilação, consequentemente reduzindo a perda de carbono através da fotorrespiração. Vale destacar que esse mecanismo de concentração de CO2 é mais evidente no final da fase II e durante parte da fase III. Como os estômatos permanecem fechados durante toda a fase III, o O2 proveniente da respiração também acaba se acumulando nos tecidos, além de uma diminuição nos 141 estoques de ácidos. Como consequência, ocorre um aumento da concentração interna desse gás em relação ao CO2 podendo então resultar em aumento na atividade oxigenase da RUBISCO no final do dia. Estudos também indicam importância do CAM para a manutenção da integridade fotossintética, já que a descarboxilação dos ácidos orgânicos resulta na manutenção da disponibilidade interna de CO2, consequentemente, permitindo o funcionamento do ciclo de Calvin. Nesse ciclo é consumido NADPH para redução do carbono, resultando na disponibilidade de NADP + para ser reduzido de maneira dependente da luz pela cadeia de transporte de elétrons. Dessa forma, como existe um aceptor final de elétrons, no caso o NADP + , há uma redução da produção de compostos reativos de oxigênio. Esses compostos, por sua vez, podem gerar danos, como a degradação da SUBUNIDADE A DO FOTOSSISTEMA II, proteína importante para o funcionamento do fotossistema II, reduzindo a eficiência fotossintética. Notadamente o CAM clássico apresenta vantagens para as espécies que o apresentam, já que nesse tipo é que são vistos os maiores níveis de acúmulo noturno de ácidos, mas e quanto às espécies que apresentam os outros tipos mais “fracos” de CAM? Recentemente, foi demostrado em um estudo, utilizando a espécie G. monostachia, a contribuição do malato acumulado durante a noite para o total de carbono assimilado pela planta em uma situação de boa disponibilidade hídrica e em uma condição de deficiência hídrica. Quando essa espécie apresenta o CAM cycling, o malato contribui pouquíssimo para o total de carbono assimilado. Quando em déficit hídrico, por outro lado, o CAM idling teve uma contribuição muito mais relevante para o metabolismo de carbono. Porém, é necessário lembrar que o idling é caracterizado pelo total fechamento estomático tanto durante o dia como durante a noite. Dessa forma, o malato acumulado nesse tipo de CAM deve ser proveniente da refixação do CO2 respirado. Considerando isso, o CAM idling certamente não contribui para o incremento de biomassa no vegetal, mas, por outro lado, permite uma redução da perda de carbono pela respiração e até mesmo para a manutenção de um balanço positivo de carbono devido a aberturas pontuais dos estômatos. Mais ainda, esse tipo de CAM teria um papel importante na manutenção da integridade fotossintética, por possibilitar o consumo de NADPH e reduzir a formação de compostos reativos de oxigênio, conforme já visto neste capítulo. Como G. monostachia habita o dossel de florestas e, consequentemente, não tem acesso à água presente no solo, acaba ficando dependente da água armazenada no seu tanque (estrutura formada pela sobreposição da base das folhas), que é mantida/reposta por chuvas que podem ser intermitentes. Tendo em vista essas informações, é sugerido que, para essas espécies, o CAM idling atuaria como um mecanismo para reduzir a perda de água, por causa do total fechamento estomático, e auxiliaria na manutenção de um balanço positivo de carbono entre os períodos de falta de água no tanque, sendo uma estratégia metabólica para sobrevivência entre períodos de chuva. De forma geral, a plasticidade fotossintética parece estar muito ligada ao sucesso no estabelecimento dessas espécies no ambiente em que são encontradas atualmente. Considerações evolutivas sobre o CAM É muito difícil trabalhar com CAM em termos de evolução, uma vez que não é possível dizer com certeza se uma planta é ou não CAM com base no registro fóssil. Nesse ponto, os pesquisadores se baseiam em características anatômicas que são comuns em plantas CAM (como a suculência, por exemplo) para sugerir que dado fóssil poderia apresentar esse tipo de metabolismo. Outra estratégia usada é comparar o fóssil com o grupo de plantas atuais ao qual ele pertence. O gênero Isoetes, por exemplo, é exclusivamente CAM e apresenta registros fósseis mais antigos do que qualquer outro gênero com esse metabolismo. Por essa razão, acredita-se que Isoetes seja um dos primeiros gêneros a apresentar o CAM. Outra estratégia para avaliar as informações disponíveis sobre evolução do CAM vem da comparação entre grupos taxonômicos que apresentam um ou outro tipo de CAM e da suposição de que o ancestral comum entre eles também seria capaz de realizar esse metabolismo. Com base em estudos desse tipo, é bem aceito que o CAM teria surgido muitas vezes ao longo da evolução, partindo de ancestrais C3. Esse fato pode levar à ideia de que a transição evolutiva C3-CAM tenha sido relativamente simples, já que 142 aconteceu tantas vezes em linhagens independentes. De fato, uma planta C3 apresenta todos os componentes bioquímicos e estruturais necessários para realizar o CAM (enzimas, transportadores, metabólitos, etc.), de forma que seria necessária somente uma reorganização desses componentes. As plantas CAM facultativas também são um exemplo de que essa mudança pode ocorrer mesmo dentro de um mesmo indivíduo. No aspecto bioquímico, não seriam necessárias mudanças na estrutura das enzimas. Até hoje não foram identificadas mudanças em enzimas que sejam características do CAM. De maneira diferente, as isoformas de PEPC responsáveis pelo metabolismo C4 possuem uma “assinatura” na sua sequência de aminoácidos. Ou seja, alguns aminoácidos em posições-chave da proteína da PEPC permitem identificar isoformas C4, mas essa abordagem não permite a diferenciação entre isoformas C3 ou CAM. O que faz as plantas CAM diferentes, então? O único requerimento seria a existência de algum tipo de ciclagem dia/noite, o que poderia se dar facilmente devido a alguma mudança na região promotora de genes que codificam para essas enzimas. É interessante que essas mudanças bastariam para gerar o CAM cycling e o idling. No CAM cycling, o padrão de abertura estomática é o mesmo de plantas C3. O CAM idling, por sua vez, ocorre em resposta a condições ambientais que também provocariam o fechamento de estômatos em plantas C3. Assim, pequenas diferenças no momento de expressão de alguns genes, ou de atividade de algumas enzimas, bastariam para possibilitar esses tipos de CAM. O CAM clássico, por sua vez, precisaria de mudanças um pouco mais complexas, que envolveriam o controle dos estômatos. Sabe-se que fatores como luz, CO2 e ritmo circadiano são capazes de controlar a abertura estomática. Para uma planta inverter o padrão de abertura dos estômatos ela precisaria inverter também a resposta dos estômatos em relação ao ritmo circadiano e parar de responder à luz ou, no mínimo, diminuir muito a influência desses fatores. O controle de abertura estomática influenciado pelo CO2, por outro lado, poderia ser um fator que auxiliaria o estabelecimento e manutençãodo CAM. Sabe-se que altas concentrações de CO2 no tecido promovem o fechamento estomático, enquanto baixas concentrações causam o efeito oposto. Nesse caso, durante a descarboxilação de ácidos ao longo do dia, as concentrações internas de CO2 seriam altas e os estômatos tenderiam a se fechar. Durante a noite, no entanto, o alto consumo de CO2 resultante da alta produção de malato geraria uma queda nas concentrações desse gás, promovendo a abertura estomática. Ainda não se tem uma resposta definitiva de quais desses mecanismos seriam responsáveis pela inversão do padrão de abertura estomática, sendo que isso ainda pode ser particular em cada uma das linhagens que apresentam CAM. Parece estranho, mas atualmente acredita-se que a pressão seletiva que levou ao surgimento das linhagens CAM seja não a falta de água, mas sim a de CO2. Em teoria, durante o início do mioceno, a relação entre a concentração de CO2 e a de O2 eram mais baixas do que atualmente. Uma relação CO2/O2 mais baixa aumenta a fotorrespiração em espécies C3. Uma vez que o CAM (assim como outros metabolismos como o C4) usam a PEPC como enzima principal de fixação do CO2 atmosférico, esses metabolismos seriam favorecidos nessas condições. Posteriormente, o CAM teria sido mantido em plantas que têm pouco acesso à água. Perspectivas e aplicações do estudo do CAM Hoje em dia o interesse em estudar espécies CAM está crescendo. Embora sejam poucas as espécies de interesse comercial que apresentam esse tipo de metabolismo (principalmente alguns agaves e o abacaxi), o CAM é uma estratégia interessante para aumentar a eficiência do uso da água. Existem grupos que estão tentando introduzir algumas características do CAM em plantas C3, visando possibilitar o cultivo de plantas em regiões com menor disponibilidade de água. Tendo em vista as projeções de aquecimento global e de desertificação de algumas áreas do planeta, esse tipo de estratégia pode se mostrar bastante vantajosa a longo prazo. 143 Referências Borland AM; Hartwell J; Weston DJ; Schlauch KA; Tschaplinski TJ; Tuskan GA; Yang X & Cushman J. (2014) Engineering Crassulacean acid metabolism to improve water-use efficiency. Trends in Plant Science 19: 327-338. Herrera A. (2009). Crassulacean acid metabolism and fitness under water deficit stress: if not for carbon gain, what is facultative CAM good for? Annals of Botany 103: 645-653. Matiz A; Mioto PT; Mayorga AY; Freschi L & Mercier H. (2013). CAM photosynthesis in bromeliads and agaves: what can we learn from these plants? In: Zvy Dubinsky ed. Photosynthesis: InThec, 91- 134. Mazen AMA. (1996). Changes in levels of phosphoenolpyruvate carboxylase with induction of Crassulacean acid metabolism (CAM)-like behavior in the C4 plant Portulaca oleraceae. Physiologia plantarum 98: 111-116. Mioto PT; Rodrigues MA; Matiz A & Mercier H. (2015). CAM-like traits in C3 plants: biochemistry and stomatal behavior. In: Lüttge U, Beyschlag W, eds. Progress in Botany. Progress in Botany 76: 195- 209. Pikart FC. (2014). Heterogeneidade fotossintética em folhas de Guzmania monostachia (L.) Rusby ex Mez (Bromeliaceae). Dissertação de mestrado, Instituto de Biologia, UNICAMP. Winter K; Garcia M & Holtum JAM. (2008). On the nature of facultative and constitutive CAM: environmental and developmental control of CAM expression during early growth of Clusia, Kalanchoe and Opuntia. Journal of Experimental Botany 59: 1829-1840. 144 CAPÍTULO 16 Nitrogênio: um dos elementos essenciais para as plantas Antônio Azeredo Coutinho Neto Priscila Primo Andrade Silva A história do nitrogênio O nitrogênio foi descoberto como elemento químico por volta de 1770, em pesquisas independentes realizadas pelo professor Daniel Rutherford, que ministrava aulas de botânica na Universidade de Edimburgo; pelo farmacêutico e pesquisador Carl Wilhelm Scheele que era membro da Academia Real Sueca de Ciências e pelo farmacêutico Antoine Laurent Lavoisier em pesquisas conduzidas na França. As características descritas ao nitrogênio por esses pesquisadores eram que ele era um gás não reativo, não combustível e não constituinte da vida. O nome do elemento químico nitrogênio foi sugerido por Jean-Antoine duas décadas após as descrições do gás, a partir da observação que este era constituinte do ácido nítrico (HNO3) e do nitrato (NO3 - ). O químico e pesquisador Jean Baptiste Boussingault, por volta de 1834, foi um dos primeiros que realizou pesquisas no campo com intuito de analisar questões sobre fertilidade do solo, rotação de culturas, fixação nitrogenada, entre outras questões. Em seus resultados ele sugere que as plantas leguminosas podem fixar o nitrogênio a partir de nitrogênio atmosférico (N2), as outras plantas que não são leguminosas podem fixar o nitrogênio orgânico e os animais (carnívoros e herbívoros) obtêm o nitrogênio a partir da ingestão de plantas. Outro químico que realizou estudos com fertilizantes foi o professor Justus Von Liebig, que aproximadamente em 1840, postulou que as plantas contêm compostos a partir de carbono da atmosfera e minerais provenientes do solo. Em sua pesquisa afirma que as plantas são constituídas de mais de 95% de compostos carbônicos e de aproximadamente 2% de elementos minerais do solo e dentre estes o nitrogênio. Von Liebig ainda publicou sobre o uso dos elementos, criando a lei do mínimo em que o crescimento da planta é dependente e pode ser limitado pelo nutriente que estiver em menor quantidade disponível, limitando a produtividade da planta. As observações e suposições feitas por Von Liebig em suas pesquisas perduram até os dias atuais; essas observações afirmam a existência de elementos essenciais ao desenvolvimento e crescimento vegetal. Esses elementos seriam o nitrogênio (N), fósforo (P), potássio (K), enxofre (S), cálcio (Ca), magnésio (Mg), silício (Si), sódio (Na) e o ferro (Fe). As plantas então teriam necessidade desses elementos essenciais em uma concentração mínima necessária para crescerem, se desenvolverem e realizarem a reprodução. Alguns anos depois estas suposições seriam comprovadas por outros pesquisadores com o uso de equipamentos e técnicas mais sofisticadas. Em 1908 um químico chamado Fritz Haber postulou uma forma de fixar o N2 sem a necessidade de quaisquer organismos vivos, apenas usando um processo não biológico. De acordo com Haber o N2 reage com o H2 quando o Fe está disponível em altas temperaturas e pressões. O químico Carl Bosch, em 1918, tornou a reação de Fritz Haber possível em escala industrial. Essa reação para a produção de amônia (NH3) industrialmente ficou conhecida como reação de Haber-Bosch. Esse acontecimento foi muito importante para produção agrícola, visto que a alta produtividade das culturas de plantas depende da fertilização com nutrientes minerais. Para atender a demanda de produção de alimentos, são utilizados anualmente cerca de 170 milhões de toneladas métricas de fertilizantes pela agricultura mundial, cujo os principais componentes são N, P e K. Sendo assim, a área do conhecimento científico que estuda o modo como as plantas obtêm e utilizam os nutrientes minerais é denominado nutrição mineral. Dentre os elementos minerais que foram 145 classificados como essenciais para as plantas, através dos estudos de nutrição mineral, o nitrogênio pode ser destacado como o elemento mineral requerido em maior quantidade. O nitrogênio é componente estrutural de diversas moléculas, como, por exemplo, as bases nitrogenadas, que são constituintes dos nucleotídeos, como a adenosina trifosfato (ATP), alguns desses nucleotídeos quando polimerizados, formam os ácidos nucleicos (DNA e RNAs); os aminoácidos, que também são polimerizados, para formarem as proteínas, que podem ounão ter atividade enzimática; as coenzimas nicotinamida adenina dinucleotídeo (NAD + ) e nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (NADP + ), cujas as formas reduzidas (NADH e NADPH) são importantes fornecedores de energia para diversas reações do metabolismo celular (assim com o ATP); as clorofilas (a e b), que são as moléculas chaves da fotossíntese e, essenciais para os organismos fotossintetizantes; além destes compostos, o nitrogênio faz parte de muitos outros que também são fundamentais para o metabolismo das plantas. No decorrer desse capítulo será abordado como o nitrogênio está disponível no ambiente, quais são suas formas, sua importância, as formas de absorção, transporte e assimilação, as novas pesquisas com relação às diferentes formas nitrogenadas e algumas pesquisas no âmbito molecular. Disponibilidade do nitrogênio no ambiente Cerca de 78% do volume da atmosfera é composto por nitrogênio, que se encontra na forma de moléculas de N2, um gás inerte, formado por dois átomos de N ligados por uma tripla ligação covalente extremamente estável. Nessa forma, o nitrogênio não está disponível para a maioria dos seres vivos, sendo necessário uma grande entrada de energia para que seja quebrada essa ligação, gerando as formas inorgânicas de amônia (NH3) e nitrato (NO3 - ). O processo no qual ocorre essas reações químicas é chamado fixação de nitrogênio e pode acontecer de forma natural ou industrial. As formas naturais de fixação do nitrogênio podem ser através de relâmpagos, onde vapor d'água e oxigênio são convertidos em radicais hidroxilas (OH - ) livres que reagem com o nitrogênio molecular (N2), formando ácido nítrico (HNO3), ou por meio de reação fotoquímica entre óxido nítrico (NO) e o ozônio (O3), que, do mesmo modo, produz HNO3 que posteriormente será precipitado com a chuva ou neve, sendo essas duas formas de fixação (também denominada como fixação atmosférica), responsáveis respectivamente, por 8% e 2% do total de fixação natural de nitrogênio, que anualmente é de 190 x 10 12 gramas de N por ano. Os 90% restantes são fixados através da fixação biológica de nitrogênio (FBN), por meio de microrganismos procariontes (proteobactérias, actinomicetos e cianobactérias) que convertem o N2 em NH4. A maioria destes procariontes são microrganismos de vida livre, todavia, alguns formam associações simbiontes com plantas superiores e são chamados coletivamente de rizóbios, cujo os gêneros são: Rhizobium, Bradyrhizobium, Azorhizobium, Sinorhizobium, Photorhizobium, Frankia, Nostoc e Anabaena. Esse tipo de associação simbiótica é muito comum entre membros da família Fabaceae (Leguminosas), no entanto, existem membros de outras famílias que também fazem associações com procariotos e, são chamadas de plantas actinorrizas, como por exemplo, representantes do gênero Gunnera e Azolla. Os rizóbios infectam as raízes das plantas hospedeiras e induzem a formação de nódulos, onde será fixado o N2 que suprirá a necessidade da planta (de nitrogênio) e em troca os procariotos receberão outros nutrientes, carboidratos, água e um local seguro da hostilidade biótica e abiótica do ambiente. Já na fixação industrial, como foi mencionado anteriormente, o N2 e o hidrogênio atmosférico (H2) são submetidos a altas pressões (20 - 40 MPa) e elevadas temperaturas (400°C - 650ºC) na presença de um catalisador metálico (Fe), tendo como produto a NH3, processo chamado Haber-Bosch. Estima-se que mais de 80 x 10 12 gramas de nitrogênio por ano são produzidos de forma industrial. Além dos processos de fixação supracitados, o nitrogênio também pode se tornar disponível no ambiente através da decomposição de matéria orgânica e por meio de excretas dos animais, liberando as formas orgânicas de nitrogênio (peptídios, proteínas, aminoácidos e ureia) no solo. Algumas espécies de plantas, como a Arabidopsis ssp., possuem transportadores de membrana específicos para captação de 146 aminoácidos e ureia, um mecanismo importante para o incremento da captação de nitrogênio, visto que essas formas são algumas das principais fontes de nitrogênio orgânico presentes no solo. Os processos de fixação anteriormente descritos dão início ao ciclo biogeoquímico do nitrogênio (Figura 1), que será transformado em formas inorgânicas e orgânicas (como mencionado anteriormente), até finalmente voltar para atmosfera na forma de N2, todavia, enquanto permanecer na solução do solo, essas formas de nitrogênio estarão sob intensa disputa entre microrganismos e plantas, que ao longo da evolução desenvolveram mecanismos para rapidamente captarem o nitrogênio disponível no ambiente, por exemplo, através de transportadores de membrana (de alta ou baixa afinidade), ingestão de pequenos insetos (plantas carnívoras) e associação simbiótica com algumas bactérias fixadoras de nitrogênio (rizóbios). Figura 1. Ciclo do nitrogênio terrestre: o nitrogênio atmosférico (N2) é transformado em amônio (NH4 + ) através da fixação industrial, fixadores de N2 de vida livre e fixadores simbióticos de N2. O N2 também pode ser convertido em nitrato (NO3 - ) por meio da fixação atmosférica. Microrganismos do solo podem transformar NH4 + em NO3 - através da nitrificação. Plantas e microrganismos absorvem o NH4 + e o NO3 - . Herbívoros (na figura representada pelo bovino) comem as plantas, para obter os nutrientes e dentre estes o nitrogênio e, posteriormente, os carnívoros (na figura representado pelo felino), comem os herbívoros. A matéria orgânica é constituída por excretas e resíduos (cadáveres) de todos os seres vivos (vegetal ou animal), que através da ação de microrganismos, são decompostos para produzir NH4 + , processo denominado amonificação. O NO3 - possui alta mobilidade no solo e com isso, pode sofrer lixiviação para corpos d'águas e águas subterrâneas. Alguns microrganismos sob condições anaeróbicas, convertem parte do NO3 - , que está livre na solução do solo, novamente em N2, processo chamado de desnitrificação, fechando o ciclo do nitrogênio. Modificado: Taiz & Zeiger, 2013. Carência de nitrogênio nas plantas A ausência de qualquer nutriente que cause anormalidades no crescimento e desenvolvimento (vegetativo e reprodutivo) das plantas, com a presença de sintomas ou características de deficiência relacionada ao nutriente em questão, é um fator que determina que esse elemento seja essencial às plantas. A lista de elementos essenciais inclui 17 elementos indispensáveis para as plantas (Tabela 1). Esses nutrientes são classificados de acordo com três critérios de essencialidade, o primeiro critério determina que a ausência do elemento pode impedir a planta de completar seu ciclo de vida (por exemplo: não produz sementes ou esporos viáveis); o segundo critério determina que o elemento essencial não 147 possa ser substituído por outro e que este constituí compostos importantes para as plantas como, por exemplo, o nitrogênio usado para produzir clorofilas, proteínas e ácidos nucleicos; já o terceiro critério utilizado como forma de observar a essencialidade é o aparecimento de sintomas de deficiência do elemento que possa estar ausente para a planta. Os elementos ainda podem ser classificados de acordo com a origem da fonte e a concentração relativa no tecido vegetal. Aqueles obtidos da água e do dióxido de carbono são ditos elementos não mineral, do qual fazem parte o hidrogênio (H), o carbono (C) e oxigênio (O). Já os elementos minerais são obtidos do solo e são subdivididos em macronutrientes quando requeridos em grandes quantidades e micronutriente quando exigidos em menores quantidades. Tabela 1. Concentrações dos elementos que foram classificados como essenciais para a maioria das plantas Elemento essencial Símbolo químico Concentração média nas plantas (% ou ppm)* Obtidos da água ou dióxido de carbono Hidrogênio H 6