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CURSO DE PSICOLOGIA ESTÁGIO BÁSICO I- OBSERVAÇÃO O Simbolismo Junguiano na prática Arteterapêutica Aluno: Gabriel Born Orientadora: Bruna Larissa Seibel (CRP 07/19056) CESUCA CACHOEIRINHA, 2019 Síntese das cinco observações Minha primeira observação foi feita na clínica psiquiátrica Libertad. Além de observar a atuação do psicólogo, meu objetivo era aprender sobre o funcionamento da clínica: sua organização, rotina e atividades. A recepção — com móveis bonitos, plantas e luminárias — era bem diferente do restante da clínica — cercada de paredes brancas, grades e portas trancadas —, como se fosse um lugar à parte. Mas, mesmo com esse ambiente não tão terapêutico, os pacientes me pareceram estar bem; talvez pela organização, pela limpeza, pela atenção dos profissionais, pelas medicações — ou por uma soma disso tudo. Estavam sempre rindo, tinham amizades (entre eles e com os psicólogos do local), tinham seus quartos, suas próprias roupas e mantinham certa identidade. Enfim, fora o ambiente — que já o esperava —, saí de lá impressionado, de certa forma. Uma semana depois fui ao SAJUG da CESUCA. Nessa observação o foco era notar a inserção do psicólogo no meio jurídico, principalmente a dinâmica entre ele e o cliente. O ambiente nada terapêutico me desagradou, os assuntos tratados foram bem densos, e aqui encontrei minha primeira dificuldade, que se apresentou de forma parecida em outra observação. Ao final, fiquei bem decepcionado, principalmente por perceber que em vários casos não há nada que se possa fazer para ajudar quem nos procura, não por nossa culpa, mas por um sistema jurídico falho e pouquíssimo humanizado. Após isso fui ao CPIP, observar uma sessão de arteterapia chamada oficina de criatividade. Ao contrário dos outros dois locais, o ambiente era bem terapêutico: colorido, repleto de pinturas, desenhos e artesanatos. Meu objetivo lá foi observar o papel da arte como terapia e qual o tipo de abordagem utilizada com pacientes esquizofrênicos. O método, a princípio, me pareceu simples: enquanto se conversa, se produz. As psicólogas estagiárias iniciavam os assuntos, e os dois pacientes — de personalidades quase opostas — conversavam com elas e entre si enquanto produziam suas artes. Conforme uma das estagiárias me contou, esse método trouxe bons resultados, e a liberdade que os pacientes têm os fazem retornar todas as semanas. Até então foi a observação que mais gostei. A quarta observação foi feita no Instituto da Família (INFAPA), numa sessão de terapia familiar. Meu objetivo, além de analisar a sessão, era ter um primeiro contato com uma sala de espelhos. Na sala havia vários estudantes de diversas áreas. Alguns deles ajudaram o psicólogo responsável na consulta, enquanto os outros davam sugestões. Achei isso ótimo, além dos casos serem resolvidos no inteiramente INFAPA, há certa transdisciplinaridade nesse sistema, o que ajuda os estudantes e profissionais que participam. Aqui, lembrei-me da observação no SAJUG, por ser um caso parecido: uma criança sofrendo violência. Embora o tema difícil, a observação foi mais agradável. Acredito que isso se deva ao ambiente da sala de espelhos e ao desfecho da consulta, no qual foi oferecida uma solução concreta ao caso. Minha quinta observação foi realizada num residencial do Hospital Psiquiátrico São Pedro, localizado em frente à Praça Alfred Sehbe. Foi minha segunda observação de arteterapia, e, embora eu tivesse ido até lá focado em observar as arteterapia em si, acabei fazendo muito mais. A relação das estagiárias com os pacientes é bem diferentes — muito mais próxima e carinhosa, em parte por eles terem pouca autonomia, em parte por elas fazerem isso por amor —, e o método da oficina é diferente: enquanto no CPIP a arte é um caminho para a conversa, aqui ela é um fim em si mesmo. Através da observação da arte, se avalia o estado do morador. Essa observação foi a que mais gostei, porque mudou minha visão sobre a relação entre psicólogo- paciente. Resumo Visando explorar a temática simbólica na arteterapia — com foco em clientes esquizofrênicos —, serão definidos alguns conceitos, fundamentados na obra de C. Jung, são eles: inconsciente coletivo, símbolos e mandalas. Após a exploração de tais conceitos, serão apresentados dados empíricos, coletados em duas observações de arteterapia. Uma das observações, realizada no Centro de Prevenção e Intervenção nas Psicoses (CPIP), e outra no residencial Alfred Sehbe, ambos os lugares localizados em Porto Alegre. Relacionando as observações à teoria, se criará hipóteses sobre as produções artísticas dos pacientes, bem como sua evolução e possível significado simbólico da obra. Palavras-chave: Arteterapia. Jung. Psicologia Analítica. Símbolos. Depois que a cortina se fecha e se apaga todo o brilho É quando começo a me rastejar pelas ruas sozinho Ninguém pode assistir meu choro, meu pranto, minha dor Tiro o lenço do bolso e falsifico mais um sorriso Sonhei com palmeiras e redes sob um calor fake Estendidas na sombra entre quatro paredes Deve ser um pesadelo Dizem que os sonhos eliminam o que polui o subconsciente Eu só espero que seja Quarta marcha pela rua esquecida O abandono é uma palheta cheia pra quem pinta Makalister & Beli Remour Índice 1 Introdução 2 Fundamentação teórica 2.1 O Universo Junguiano 2.1.1 O Inconsciente Coletivo 2.1.2 Os Símbolos 2.1.3 Mandalas 3 Reflexão teórico- prática 3.1 As árvores 3.2 A expressão dos Símbolos 3.3 Os arquétipos necessários para a análise 3.3.1 Sombra 3.3.2 Anima e Animus 3.4 Os Símbolos como o Símbolo da dicotomia: as árvores 3.5 Os Símbolos como o Símbolo da cura: as mandalas 4 Avaliação de estágio 5 Autoavaliação 6 Considerações finais 7 Referências 8 Anexos 8.1 Primeira Observação: Clínica Libertad 8.2 Segunda Observação: Serviço de Assistência Jurídica Gratuita (SAJUG) CESUCA 8.3 Terceira Observação: Centro de Prevenção e Intervenção nas Psicoses (CPIP) 8.4 Quarta Observação: Instituto da Família (INFAPA) 8.5 Quinta Observação: Residencial HPSP Alfred Sehbe Introdução Há diversas formas de se definir arteterapia, mas será utilizada a definição dada por Philippini (1998): modalidades expressivas e terapêuticas que materializam símbolos. Através desse conceito, o trabalho objetiva expor a relação simbólica- terapêutica da arteterapia, traçando paralelos com alguns conceitos da psicologia analítica. A arteterapia busca, através da expressão dos inconscientes (pessoal e coletivo), transformar conteúdos inconscientes em símbolos, visando atingir a cura (Silveira, 2001, citado por Reis, 2014) e auxiliar o cliente na sua individuação (Philippini, 1998). O presente trabalho tem seu enfoque no desenho e pintura, pois se entende que além de mais acessível — por questões de autonomia corporal dos clientes —, a produção imagética e simbólica criada em papel/tela tem um tempo de vida maior, o que permite análises e possíveis interpretações. Através dessas análises busca-se captar o estado mental do cliente, bem como seu desenvolvimento ao longo das sessões de arteterapia. O Universo Junguiano A arteterapia de abordagem analítica é um processo predominantemente não verbal. Segundo Phlippini (1998), caso usada com muita frequência, a palavra impede o alcance de níveis mais profundos da psique. Esse ruído entre palavra-psique ocorre porque o discurso verbal passa por um crivo racional, algo inexistente no universo emocional e artístico (Reis, 2014). Em resumo, Reis (2014, p. 144) afirma que a ideia central da arteterapia é: ‘’a atividade criadora como um instrumento e a arte como um caminho de transformação subjetiva’’. Corroborando com tal ideia, Silveira (como citado em Reis, 2014) afirma que o importante no processo arteterapêutico é dar forma àquilo indizível através de palavras, mesmo que de forma rudimentar, pois a abordagem junguiana não busca interpretações a posteriori — o que necessitaria a verbalização e conhecimento extensos do cliente. Pelo olhar da psicologia analítica, nas produções artísticas sãoencontrados dois tipos de imagens, que Silveira (segundo Reis, 2014) descreve como: as imagens originadas no inconsciente pessoal, ou seja, aquelas vivenciadas pelo próprio indivíduo, e as imagens originadas no inconsciente coletivo. O Inconsciente Coletivo O inconsciente coletivo abrange experiências além do indivíduo, e serve como um reservatório de imagens primordiais arquetípicas. Essas imagens são latentes, herdadas de tempos longínquos. (Hall e Nordby, 2000). Como exemplo: antes de nascer, a criança já possui uma imagem virtual e inconsciente do mundo. Conforme nasce e se desenvolve, as imagens virtuais (e latentes) se tornam reais e conscientes na medida em que são identificadas. O bebê tem uma imagem arquetípica inconsciente da mãe que se tornará consciente no momento em que ele ver um símbolo equivalente, no caso, sua própria mãe. (Hall e Nordby, 2000). Conforme Silveira (citado por Reis, 2014), as imagens arquetípicas “configuram vivências primordiais da humanidade, semelhantes nos seus traços fundamentais” (2001, p.86). Posto isso, o entendimento dos mitos se torna relevante para a compreensão dos arquétipos (Reis, 2014), e os símbolos para o entendimento das obras. Os Símbolos Silveira compreendia o estado psicótico como uma inundação de imagens arquetípicas no consciente, que era expressa através da arte de seus pacientes (Reis, 2014). Por se tratar de imagens arquetípicas, essas artes muitas vezes retomavam alguns mitos. A imagem a seguir mostra uma planta metamorfoseada, que Silveira interpretou como uma evocação do mito de Dafne. Figura 1. Dafne Metamorfoseada Nesse mito, a ninfa grega Dafne foi transformada numa árvore, para assim evitar o assédio de Apolo. (Reis, 2014) Ela [Silveira] entende que, na linguagem mítica, própria do inconsciente, esse tema estaria vinculado ao temor da mulher acerca da realização completa de seu ser feminino, representando, no caso da autora da imagem acima ilustrada, a sua dificuldade em estruturar-se subjetivamente como mulher. (Reis, 2014, p.11) Para Jung, ‘’uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato’’ (1977, p. 20), sendo assim, as artes ficam abertas a diferentes interpretações. E, conforme prossegue, essas imagens possuem aspectos inconscientes que dificilmente serão de todo explicados e precisamente definidos. (Jung, 1977). Mandalas Na arteterapia junguiana, as mandalas (palavra hindu para círculo mágico e sânscrito para círculo) representam o arquétipo de Self (Dibo, 2006). Esse é o principal arquétipo do inconsciente coletivo, porque é o responsável por atrair os outros arquétipos e dar um senso de unidade e firmeza à personalidade, unificando-a. (Hall e Nordby, 2000). Conforme citado por Dibo (2006), Moacanin (1999) observou que para Jung as mandalas são uma tentativa de autocura. Elas surgem espontaneamente, após momentos de desorientação psíquica, como função reunificadora da psique. As mandalas, embora usadas em diversas culturas, citando Dibo (2006), para Green (2005) elas também são aqueles desenhos abstratos, que muitas vezes são traçadas de forma distraída, enquanto fazemos outras coisas em paralelo. Quando produzidas dessa forma, aparentemente despretensiosa, elas intentam evitar uma maior dispersão. Conforme o autor, caso analisados, se comprovará que esses desenhos são feitos a partir de figuras geométricas simples, como quadrados e círculos. Chevalier e Gheerbrant (2001) afirmam que as formas arredondadas de mandalas representam a integridade natural, enquanto a forma quadrada representa a consciência de tal integridade (Dibo, p.6, 2006). Reflexão teórico prática As árvores A partir da observação de alguns trabalhos (desenho e pintura) observados em campo, serão criadas algumas hipóteses e análises sobre os clientes, partindo da interpretação dos símbolos nas obras. Conforme Philippini: O universo junguiano em arteterapia fornece uma bússola, que orienta no entendimento universal da produção simbólica, cabendo ao arteterapeuta junto com o criador do símbolo, contextualizar seus significados pertinentes à singularidade e historicidade de cada um. (p. 3, 1995) Ou seja, o símbolo deve ser entendido não como algo individual, completo em si, mas sim contextualizado com seu criador. Uma das clientes do CPIP, Sandra (nome fictício), desenhava só árvores. Elas eram pouco coloridas (figura 2). No residencial Alfred Sehbe, a moradora Jussara (nome fictício) também só desenhava árvores (figura 3) que, embora feitas com outros materiais artísticos, possuem cores semelhantes, apagadas e escuras. Ambas as pacientes são diagnosticadas com esquizofrenia, e eu as observei uma única vez. A árvore marca sua presença em diversas culturas e mitologias de diferentes épocas. Para citar alguns exemplos: a Yggdrasil, da mitologia nórdica, a Árvore da Vida, da mitologia cristã, e mesmo a árvore de natal da nossa cultura. A expressão dos símbolos Na simbologia junguiana, Navratil (p. 124), citado por Gomes (p.20, 2017), afirma que alguns símbolos antigos possuem ‘’significados múltiplos, que abraçam também o contrário. [...]”. Talvez a contradição do conteúdo significativo — traço essencial do símbolo primitivo — seja também a chave para sua compreensão’’. Afirma, em seguida, que o homem primitivo experimentava com mais força a dicotomia entre a esfera erótica-sexual e religiosa. O homem primitivo, por ser primitivo, possuía em sua psique imagens arquetípicas, simbólicas e, consequentemente, primitivas. Como exemplo dessas imagens, Navratil (citado por Gomes, 2017), cita a serpente, o dragão, a caverna, a cruz, a fonte e a árvore da vida. Ainda segundo Navratil, reviver os símbolos antigos é uma característica do transtorno esquizofrênico, porque isso está ligado à repressão dos instintos. (Gomes, 2017) Assim, retorna-se a ideia de Silveira, na qual se compreende o estado psicótico como uma inundação de imagens arquetípicas no consciente, que era expressa através da arte de seus pacientes (Reis, 2014). Ou seja, o cliente esquizofrênico tem sua psique inundada de imagens arquetípicas que são revividas através da arte. Essa arte, que é uma expressão dos símbolos arquetípicos, tem como função (além das funções terapêuticas já citadas) reprimir seus instintos. Os arquétipos necessários para a análise Sombra O arquétipo sombra se projeta no próprio sexo, e costuma representar os instintos básicos. É a parte mais dicotômica, porque é a fonte do melhor e do pior do homem (Hall & Nordby, 2000). Caso as obras sejam consideradas uma expressão do arquétipo sombra, pode-se afirmar que os instintos reprimidos por tais obras são instintos primitivos e animalescos. Esse arquétipo, conforme Hall & Nordby (2000), tem grande utilidade em períodos de privação. Num contexto manicomial/ psiquiátrico, expressar tal arquétipo faz sentido, principalmente se considerada as questões envolvidas na discussão da saúde mental: a perda da personalidade, os ambientes pouco terapêuticos, o caráter prisional, etc. Anima e Animus Anima é lado feminino na psique do homem, enquanto Animus é o lado masculino na psique feminina. Esses dois arquétipos estão presentes em todos, e devem coexistir em equilíbrio (JUNG, 1987, citado por CRUZ, 2013). Esses dois arquétipos são opostos, e caso ocorra desequilíbrio e a mulher seja tomada pelo Animus, por exemplo, ela pode perder sua feminilidade. Segundo Cruz (2013), outros exemplos da aplicação desse arquétipo são no mito de Caim e Abel e no símbolo de Yin-Yang. Essa polaridade se apresentou, em diversos momentos, no comportamento de Jussara. Talvez, desenhar árvores seja uma das formas que ela tenha encontrado de equilibrar esses dois arquétipos. Os símbolos como o símbolo da dicotomia: as árvores Silveira interpretou o desenho de Maria (figura 1) como uma releitura do mito de Dafne. Sandra e Jussara são mulheres com personalidades intrigantes; a primeira possui em torno de 60 anos, nunca beijou, é bem tímida, retraída. Observei-a uma vez; falou bem pouco,não tirou os olhos de seu desenho, me pareceu muito focada. Figura 2. A Árvore de Sandra Pintura realizada dia 1° de outubro Jussara, em torno de 70-80 anos, é cega, não tem tanta autonomia, namora outro morador do residencial e tem uma personalidade bem extrema: enquanto sorri para as estagiárias e elogia a beleza das crianças nas revistas, xinga e grita com os outros moradores (sempre homens). Na observação que realizei, comentou abertamente sobre homens, mas, ao beijar na boca (sem querer, em decorrência da falta de visão) seu namorado, não gostou. Começou a limpar a boca e logo queria lavá-la. Disse que, quando namorava em sua juventude, também não gostava de beijar, por achar nojento. Embora as árvores dessas duas artistas não estejam metamorfoseadas, como a de Maria, o contexto da feminilidade é semelhante e, por isso, acaba por aproximar as obras. Essa oposição entre as esferas erótica-sexual-religiosa (erótico-sexual-religiosa pelos impulsos relacionados ao sexo oposto, embora eles se mantenham platônicos, como se a religião, simbolizando a repressão, a estivesse impedindo de realizar por completo tais impulsos), por parte de Jussara, e a religiosa, por parte de Sandra, embora parta de caminhos distintos, se encontram no fim: as pinturas de árvores. Citando novamente Silveira, quando se referiu à Dafne Metamorfoseada (figura 1), ‘’esse tema estaria vinculado ao temor da mulher acerca da realização completa de seu ser feminino, representando [...] a sua dificuldade em estruturar-se subjetivamente como mulher’’. (Reis, 2014, p.11) Figura 3. As árvores de Jussara Em resumo, embora com personalidades, contextos e historicidades distintas, a inundação de imagens arquetípicas na psique faz com que, através da arteterapia, essas clientes encontrem seu ser mulher, suas estruturas subjetivas de feminino. Os símbolos como o símbolo da cura: As Mandalas No dia em que fiz a observação, Sandra estava fazendo um desenho abstrato (figura 4), que mais tarde se mostrou uma mandala. Nesse dia, a estagiária presente comentou que Sandra havia mostrado uma grande evolução, tanto no comportamento — porque ela tinha se comunicado mais —, quanto nas obras, porque usou mais cores e fez algo diferente do que estava fazendo há um bom tempo (as árvores quase monocromáticas). Isso mostra um pouco do teor de autocura e expressão do self das mandalas. Figura 4. A Mandala de Sandra Pintura realizada dia 15 de outubro No residencial, outra moradora, chamada Senhora D. (nome fictício) retratou, com tinta guache, o próprio residencial (figuras 5 e 6). Conforme Jung (2012), citado por Thereza (2017), uma mandala pode ser uma cidade, castelo, ou pátio, quadrado ou circular. O fator mais relevante é o centro, o ponto responsável pela ordenação. Figura 5. Mandala de um pátio. Pintura realizada dia 3 de outubro Figura 6. Mandala de um pátio 2. Pintura realizada dia 18 de outubro A questão a ser analisada nessas mandalas é o estado mental do paciente. Na primeira pintura, além de não serem monocromáticos, os elementos estão dispostos com certa lógica. Numa estrutura de mandala, tal obra possui um centro, formas e traços definidos, com elementos que de fato existem no residencial (afinal, era esse o foco da pintura: retratar o residencial). Na segunda pintura (figura 6), não há forma definida, os traços da casa se misturam com elementos externos (como o sol) e é mais difícil distinguir os elementos que antes eram fáceis, como a rampa de acesso à casa, a porta, o telhado e a janela. De forma geral, os traços que antes se mostraram precisos e limpos, agora estão mais sujos e confusos. Conforme relatado pela estagiária local, essa moradora teve uma interrupção no consumo de seus medicamentos antipsicóticos durante uma pintura e outra. O que explica — pelo menos em parte — a diferença entre uma obra e outra. Avaliação de Estágio Admito que não sei muito o que escrever aqui. Eu acho que, assim como eu, a cadeira de estágio básico foi a preferida de muitos protótipos — assim como eu, assim espero — de psicólogos. Ter experiências de campo é inegavelmente um dos motivos para isso. Mas as aulas é outro, importantíssimo, que não vou desconsiderar. O sistema, embora simples, é totalmente funcional. Caso fosse necessária uma apresentação — ao contrário da leitura — das observações, o aluno responsável por isso não teria tanto contato consigo mesmo. Sua verbalização passaria pelo crivo racional — e, em alguns casos, como o meu, ficaria presa lá. Com essa forma de supervisão, pude reviver as observações todas as vezes que li os relatórios, e, melhor que isso, viver as observações dos colegas. Eu acho isso interessante especificamente por um ponto: ter contato com coisas que, caso contrário, eu nunca teria. Quando estamos muito focados numa obra artística, normalmente erramos coisas básicas, como proporções, no caso do desenho, ou vírgulas, no caso de textos. Não sei a ciência por trás, mas esses pequenos erros técnicos costumam ocorrer enquanto se está mergulhado — se afogando, muitas vezes — na obra, e ser percebidos logo após se tomar distância dela, olhá-la depois de um tempo, com outros olhos. Enfim, nesse contexto que entra o feedback instantâneo, escrito nos relatórios, e verbalizado após as leituras. Acho que essa é a melhor e mais importante parte da supervisão. Aqui, consigo criar certa distância do meu texto, e enxergá-lo como os outros talvez o estejam enxergando: como pessoas que só estão me escutando, e que não vivenciaram aquilo. Por isso, ter as análises da professora e dos colegas é tão essencial. Elas são meu olhar distante, após um tempo, com meus outros olhos. Autoavaliação Sei muito menos o que escrever aqui, mas eu acredito que minha maior qualidade seja o interesse. Com isso eu quero dizer que se eu me interesso por algo, eu realmente me interesso por algo. Lembro-me da aula sobre a ficha de leitura, que a turma estava na sala de informática. No mesmo dia, eu estava lendo um livro do Sartre e havia acabado de ler um livro do Fromm, no qual o último capítulo falava sobre determinismo. Na Netflix, há pouco havia estreado a segunda temporada da série Mindhunter. A primeira coisa que me veio à cabeça foi: ‘’ok, vou falar sobre psicologia criminal... mas o Sartre é tão legal...mas o Fromm é tão fofo...ok, é isso mesmo’’, no mesmo segundo comecei a procurar alguma relação entre os temas e...achei. Acabei fazendo a ficha de leitura sobre outro tema, mas meu ponto é: se eu tenho interesse genuíno por algo, eu pesquiso, falo e escrevo — demais, inclusive — sobre isso, mesmo que exija algum esforço extra. Desde sempre foi assim. E essa cadeira me deu a liberdade enorme de trabalhar com qualquer tema que eu quisesse: das mônadas leibnizianas à psicologia jurídica, da psicologia familiar à arteterapia junguiana. Acredito que essa liberdade me fez ter ido bem. Sempre gostei de escrever, e poder escrever sobre uma variedade tão ampla de temas, com um prazo tão grande de tempo e com tão poucas regras me fez repensar várias vezes sobre se realmente estava num curso de psicologia — e isso é maravilhoso, em muitos níveis e sentidos. Eu acho que minha evolução nos relatórios não é muito perceptível pra quem lê, mas sim pra mim, que sinto maior facilidade na escrita. Antes mesmo de começar o relatório, já o tenho todo montado, com os diálogos e hipóteses, mesmo que eu não tenha feito anotações. Conforme realizava as observações, descobria o que era ou não importante incluir, e isso explica os diferentes focos em diferentes ambientes: os monólogos de Carlos no INFAPA, o clima descontraído e cômico no CPIP e no residencial, o clima tenso e de ‘’terror’’ na clínica Libertad. Considerações Finais No meu primeiro semestre, na cadeira de história da psicologia, a professora nos pediu para ler um artigo sobre o que levava os estudantes de psicologia a terem escolhido o curso. Bom, os motivos para tal escolha são irrelevantes aqui, mas de todos os dados que me chamaram atenção, um deles vou destacar: obaixíssimo número de estudantes que pretendiam trabalhar com clientes esquizofrênicos. Segundo esse estudo, os estudantes se diziam incapacitados, como se, mesmo depois de formados, não fossem conseguir ajudar eles. Eu me identifiquei, pensei que era muito pra mim, que não teria tato e sensibilidade o suficiente para me aproximar desses clientes. Acredito que a falta de interesse pelas psicoses por parte dos estudantes seja um tanto pelo medo, e outro tanto por esses clientes terem seu ‘próprio mundo’, o que acaba os afastando da ‘nossa realidade’. Não sei, digo isso pelo que vejo dos estudantes e pelo que percebi nas observações. Mas as observações me mostraram que há uma falha nessa ‘lógica dos dois mundos’. O que faz o ‘mundo deles’ ser ‘pior’? E por que, logo que cheguei ao residencial, eu tive medo dos moradores, mas não tive dos funcionários, que vivem no ‘meu mundo’? Enfim. A estagiária Isabella me ensinou que é possível tratar os moradores com carinho, como se fossem parte da família. Ela mudou minha visão sobre a relação psicóloga- paciente, principalmente porque o lugar de atuação dela é um residencial. Um residencial do São Pedro. Essa observação me ensinou que não é porque se está cercado, num sistema podre, que também precise se apodrecer. Covardia. Isso retornou diversas vezes nas observações, e sempre me incomodou. Na observação do SAJUG foi quando eu descobri que covardia, especificamente de figuras paternas contra crianças é meu ponto fraco. Talvez seja por isso que o relatório sobre essa observação tinha ficado tão ruim. No INFAPA, embora o tema tenha sido mais ou menos esse, eu não me senti tão mal. Talvez pelo ambiente, talvez pelo desfecho, talvez porque eu estava acompanhado de pessoas que compartilhavam minha indignação, talvez porque quem estava relatando tivesse certo controle sobre a situação, não sei. No residencial a covardia se apresentou novamente, não contra crianças, mas contra pessoas indefesas. Isabella me contou, após a observação, dos maus- tratos de alguns funcionários aos moradores. O que faz o ‘mundo deles’ ser ‘pior’? E por que, logo que cheguei ao residencial, eu tive medo dos moradores, mas não tive dos funcionários, que vivem no ‘meu mundo’? Enfim. Das áreas que coloquei no plano de observação, consegui observar todas. Querendo ou não, os imprevistos, observações canceladas de última hora e correrias são inevitáveis, porém minha única decepção foi não ter conseguido entrevistar um logoterapeuta — que cancelou o encontro diversas vezes. Mas consegui uma observação — que por ser a sexta, acabou não sendo transformada num relatório- quase- crônica — de abordagem semelhante no Serviço Escola da CESUCA, com o grupo terapêutico Ser Pessoa. Referências Almanak. (2019, maio 23). Makalister & Beli Remour - Todo Mar [Arquivo de vídeo]. https://www.youtube.com/watch?v=LGcAOKoFlVI Cruz, C. H. (2013). Os Arquétipos Junguianos Anima e Animus e seu balanceamento através da Arte. Recuperado de http://artpsi.com.br/wp-content/uploads/2016/09/Os- arque%CC%81tipos-junguianos-a%CC%82nima-e-a%CC%82nimus-e-seu- balanceamento- atrave%CC%81s-da-arte-comentado.pdf Dibo, M. (2006). Mandala: um estudo na obra de C. G. Jung. Último Andar, (15), 109-120. 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Mandala de um Pátio 2, guache sobre papel, arte feita por uma moradora do residencial Alfred Sehbe, dia 18 de outubro.