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Prof. Emílio Figueira TEOLOGIA DA INCLUSÃO A TRAJETÓRIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO Considerando ser uma obra de cunho e importância social que pode beneficiar muitas pessoas nos meios religiosos e na sociedade em geral, por vontade do autor, esta versão digital passa a ser distribuída gratuitamente para todas as pessoas interessadas, independente de qual seja a dominação religiosa. É livre o seu uso para estudos, preparações de materiais religiosos e estudos teológicos, desde que citada a fonte. 1 EMÍLIO FIGUEIRA Doutor em Teologia Histórica pelo Instituto de Ensino Teológico de São Paulo TEOLOGIA DA INCLUSÃO: A trajetória das pessoas com deficiência na história do Cristianismo FIGUEIRA DIGITAL SÃO PAULO 2015 2 Edição e capa: Emilio Figueira Revisão: ANA SESSO REVISÃO LTDA. www.anasessorevisao.com.br FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL AGÊNCIA BRASILEIRA DE ISBN © 2015– Emílio Carlos Figueira da Silva TEOLOGIA DA INCLUSÃO – A trajetória das pessoas com deficiência na história do Cristianismo. Emilio Figueira. – São Paulo : Figueira Digital, 2015. ISBN: 978-85-911079-8-8 1. Teologia. 2. Cristianismo. 3. Inclusão. 4. Pessoas com deficiência É PROIBIDA A REPRODUÇÃO Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida, sem permissão, por escrito, do autor. Os infratores serão punidos pela Lei no. 9.610/98. 3 SOBRE O AUTOR Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Mas nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo e personal coach com formação em Programão Neurolinguística . Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de cinquenta títulos lançados. Ator e autor de teatro. Várias entrevistas na mídia e em jornais. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira é professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Em seu site há vários artigos, crônicas, cursos e materiais gratuitos. acesse: www.emiliofigueira.com.br 4 “Deus me enviou ao mundo com uma deficiência já escalado para pesquisar, produzir conhecimento e ajudar na transformação de vidas de tantas outras pessoas com as mais variadas deficiências. Mas o que Deus não me contou é que eu iria de coadjuvante e espectador de tantas coisas positivas. De mudanças de mentalidades e atitudes. De ver crianças que hoje, mesmo com algum tipo de deficiência, estão começando a sua jornada neste mundo em uma realidade muito melhor do que aquela de quando comecei há quatro décadas”. A Deus, o principal motivo de ter nascido este trabalho! 5 AGRADECIMENTO A Deus, pela presença maravilhosa em todos os momentos da minha existência, pela força que tem me concedido, pela inteligência para terminar esta tese de Doutorado em Teologia, primeiros passos de uma longa caminhada. À minha família, presença sempre constante na minha vida. À minha grande amiga, Aninha Pina, que desde o começo me incentivou e acompanhou o processo deste estudo. Aos amigos e irmãos Helton Luiz Tavoni e Alan Rogério Moreli, por todos os nossos papos abertos. À amiga de infância e dos nossos primeiros de reabilitação na AACD, Deise Tomazin Barbosa, pelo prefácio desta obra. À amiga Ana Lúcia Sesso de Cerqueira César, pela revisão Ao querido amigo Joaquim Teles, companheiro de psicologia e psicanálise, troca de materiais e de tantas ideias e conselhos profissionais. Aos amigos Pr. Silas Costa e Pr. Rodnei Francisco Teixeira Ao historiador Otto Marques da Silva, que foi pioneiro em dar uma história oficial às pessoas com deficiência. À equipe da Rede Saci, em especial à amiga Ana Maria Barbosa e ao estagiário Felipe Salles Silva, por indicação de bibliografias. A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram na realização desta obra. Os meus sinceros agradecimentos. 6 SUMÁRIO AGRADECIMENTO ......................................................................................... 5 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 15 I – O ANTIGO TESTAMENTO: AS QUESTÕES DAS DEFICIÊNCIAS NO PRÉ- CRISTIANISMO ............................................................................................ 23 NOÉ: O PRIMEIRO REGISTRO BÍBLICO DE UMA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ........... 24 A CEGUEIRA DE ISAQUE POR 80 ANOS ........................................................... 27 A DEFICIÊNCIA TEMPORÁRIA DE JACÓ EM DECORRÊNCIA DE UMA LUTA ESPIRITUAL ................................................................................................................. 31 LIA, DESPREZADA, MAS RECOMPENSADA POR DEUS ........................................ 34 MOISÉS: PROBLEMAS DE FALA E AUTOESTIMA ................................................ 36 AS CAUSAS DAS DEFICIÊNCIAS ORIUNDAS DE CASTIGOS ENTRE OS HEBREUS ....... 46 O MONTE SINAI E A QUESTÃO DA HANSENÍASE NA BÍBLIA ............................... 52 O CÓDIGO DE HAMURÁBI E A SEVERIDADE QUE INSPIROU OS HEBREUS ............. 58 REI ZEDEQUIAS, MAIS UM CASO DE CEGUEIRA COMO PUNIÇÃO .......................... 61 OLHOS DIREITOS FURADOS DOS HABITANTES DE JABES ................................... 69 ZACARIAS CASTIGADO POR NÃO TER ACREDITADO EM GABRIEL ........................ 71 MEFIBOSETE: O PRIMEIRO CASO DE INCLUSÃO VEM DA BÍBLIA ......................... 74 OS ESMOLANTES DA ANTIGA JUDEIA .............................................................. 79 A BUSCA DA CURA ........................................................................................ 80 A HANSENÍASE NO NOVO TESTAMENTO ......................................................... 86 A BAIXA ESTRUTURA DE ZAQUEU .................................................................. 92 III – CASTIGO E PECADO: PRINCIPAIS CONCEITOS BÍBLICOS SOBRE PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS E MUDANÇAS DE MENTALIDADES ......... 98 DEFICIÊNCIA É FRUTO DO PECADO? ............................................................... 99 JESUS E O INÍCIO DA INCLUSÃO .................................................................... 106 O INCONSCIENTE COLETIVO E A DESCONSTRUÇÃO DOS ESTIGMAS RELIGIOSOS 112 A HISTORIOGRAFIA DE OTTO MARQUES DA SILVA......................................... 118 AS DEFICIÊNCIAS FÍSICAS COMO IMPEDIMENTO AO SACERDÓCIO CRISTÃO ........ 124 SACERDOTES QUE QUEBRARAM A REGRA ...................................................... 130 NICOLAU, AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS INTELECTUAIS E A INQUISIÇÃO ........ 133 7 RICHARD BAXTER, UM PASTOR ENTRE O MINISTÉRIO E SUAS ENFERMIDADES .. 144 O ASSISTENCIALISMO DOS JESUÍTAS EM TERRAS BRASILEIRAS ........................ 148 CATÓLICOS E PROTESTANTES SE UNEM CONTRA UMA “INQUISIÇÃO NAZISTA” NO SÉCULO XX ............................................................................................... 155 A IGREJA CATÓLICA E SUAS POSSIBILIDADES DE INCLUSÃO ............................. 158 V – CAMINHOS PARA A INCLUSÃO RELIGIOSA HOJE ............................. 168 O PROTESTANTISMOPRECISA DESPERTAR PARA A QUESTÃO .......................... 168 IGUALDADE DE OPORTUNIDADES, INCLUSIVE NA RELIGIÃO ............................. 173 BARREIRAS ARQUITETÔNICAS ERAM MOTIVOS DE EXCLUSÃO .......................... 176 “UMA TEOLOGIA DA DEFICIÊNCIA” .............................................................. 179 REFLEXÕES SOBRE A CONVIVÊNCIA PLENA NA RELIGIOSIDADE........................ 181 CONCLUSÕES ............................................................................................. 185 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................... 189 8 PREFÁCIO Deise Tomazin Barbosa* alar de Emilio Figueira sem tecer uma rede de elogios sobre seu trabalho é tarefa impossível de ser realizada. Grande mestre, brilhante doutor, amigo e companheiro desde a nossa infância na AACD, faz com que pessoas que estejam ao seu redor sintam orgulho em tê-lo como parceiro de luta. Eclético e muito perspicaz, Emilio Figueira impressiona com sua peculiaridade. Sua sapiência se traduz em seus escritos e seu legado está marcado em suas obras publicadas como “O Que é Educação Inclusiva”, “Conversando sobre Educação Inclusiva com a Família”, ”Caminhando em Silêncio”, “Introdução à Psicologia e Pessoas com Deficiência”, e mais de cinquenta títulos. ________________________ *Licenciada em Matemática e Pedagogia, Pós graduação lato sensu em Inteligência Multifocal e Psicanálise da Educação, Educação Especial Áreas da Deficiência intelectual, física, visual e auditiva (UNESP), Tecnologias da Informação e Comunicação Acessíveis (UFRGS), Psicopedagogia e MBA em Gerenciamento de Projetos (FGV). Mestre em Psicanálise e Educação Especial - UNESP. Aperfeiçoamento em Atendimento Educacional Especializado, Libras, Braille e Sorobã. Tutora em curso de Pós graduação no curso de AEE (UNESP) e Tecnologia Assistiva (UFRGS). Assistente de Direção e Docente em Universidades públicas e particulares. Assessora e Consultora Pedagógica. Atuou na AACD como pedagoga e na Secretaria Municipal de São Paulo como professora itinerante de alunos com deficiência e formadora. F 9 A relação íntima com Deus e sua deficiência, fez com que o autor mantivesse o foco de seus estudos voltado ao desenvolvimento de uma sociedade humanitária e cristã. Não que fosse diferente se a deficiência não estivesse presente em sua vida, mas talvez a plenitude de suas obras não seria tão lógica não fosse sua trajetória humana. Sua deficiência fez com que passasse por momentos preconceituosos, porém, isso só o tornou mais convicto e determinado a buscar soluções para o trato com as pessoas com deficiência. Dotado de inteligência e capacidades que fogem ao nosso entendimento, Emílio sempre demonstrou grande paixão pelos estudos mantendo seu foco nas investigações históricas da pessoa com deficiência. Participar de alguns momentos formativos ao seu lado me deixa a vontade para tecer algumas linhas sobre essa grandiosa obra. A pesquisa se desenvolve em cinco partes, trazendo questões que tratam das deficiências do antigo ao novo testamento. Interessante reconhecer a visão de estudo que Emílio traz sobre a relação de castigo e pecado e do desenvolvimento da pessoa com deficiência no catolicismo, percorrendo caminhos que chegam à inclusão religiosa nos dias de hoje. Tais questões intensificaram o estudo por pesquisa bibliográfica baseada em referencial teórico demonstrando práticas transformatórias da evolução do ser humano com registros que contextualizam as passagens bíblicas, enaltecendo e abominando a deficiência e o impacto que o mundo cristão demonstra em relação à cura, pecado e castigo quebrando a prepotência e arrogância da divindade sobre o homem e tudo 10 mais que seja obscuro na visão histórica da passagem do deficiente pelo mundo cristão. Encontra-se nessa excelente obra, registros bíblicos de sacrifício e sacerdócio, impureza e pecado, pureza e castidade, defeito e perfeição. Partindo do pressuposto de que a linguagem do evangelho é uma fonte de referência na pacificação entre as pessoas e entre os povos, é possível se pensar na espiritualidade como um fator que promova a inclusão e não a exclusão, abrindo uma questão fundamental entre as comunidades religiosas que é a permissão da transformação de suas neuroses em direito à existência. Várias são as releituras realizadas sobre as escrituras sagradas, porém os critérios para sua interpretação são definidos por duas ciências: a Hermenêutica e a Exegese. Para que tal interpretação se torne correta é preciso que se apliquem essas “ferramentas” de forma consistente, diluindo os malefícios que uma má interpretação bíblica pode causar: discriminação, exclusão, preconceito. O preconceito é um juízo preconcebido, um desconhecimento pejorativo de uma pessoa ou grupo social e a discriminação é um comportamento de não aceitação. O preconceito para com as pessoas com deficiência vai desde acreditar que necessitam ser dependentes dos outros, são maus ajustados e infelizes, são "marcados" e menos inteligentes, são improdutivos, merecem compaixão e piedade, até acharem que estes estão sendo "punidos" por algum pecado. Se existe um lugar onde esse comportamento não deve ser aceito é a igreja, pois esta não deve estar alienada da sociedade e é o lugar onde a real prática dos princípios bíblicos como "Amar a 11 Deus de todo coração... amar ao próximo como a si mesmo..." (Marcos, 12:33) deve ser exercida. Ora, se a palavra de Deus deve estar ao alcance a todas as pessoas e Jesus foi inclusivo o tempo todo, constatação escrita no evangelho, por que então continuar pensando que a deficiência é uma doença e não uma condição? Coisa rara encontrar um deficiente que se lamente por causa da sua condição física. A limitação física, o estigma, a discriminação ao longo do tempo torna as pessoas resilientes. Sendo assim, natural se pensar que todos os cristãos são pessoas inclusivas, ou pelo menos, deveriam ser, porém não é o que se vê na sociedade contemporânea. Na obra Teologia da Inclusão, é possível se encontrar o processo religioso das pessoas com deficiência e a evolução da política inclusiva. A obra traz a interpretação bíblica através da Hermenêutica com o método analítico sintético a partir de uma consciência crítica dialética demonstrando as transformações reais da sociedade. Em termos metodológicos, foi desenvolvida uma pesquisa documental das escrituras e bibliográfica de textos que abordam o fenômeno apontado. O capítulo de abertura – O Antigo Testamento: As Questões das Deficiências no Pré-Cristianismo mostra a saga histórica do percurso do deficiente pela história da humanidade, fazendo um estudo sobre os registros de Noé, mostrando a cegueira de Isaac, a luta de Jacó, o desprezo de Lia e, pasmem com os problemas de fala de Moisés que afetaram por tempos sua autoestima. Em meio atos severos, punição, maldição, encontram- se pessoas que exercitam a justiça e a bondade de forma amorosa, sem se incomodar com valores e preconceitos determinados por seu tempo, sem se omitir de tal sentimento de nobreza. 12 No Seu Capítulo – milagres e uma nova visão da pessoa com deficiência no novo testamento, Emílio Figueira analisa e debate a visão transformadora de Paulo e a busca da cura através da fé. Estudiosos dos usos e costumes dos povos afirmavam que a medicina contida nos evangelhos e mesmo nos atos dos apóstolos aceitavam três tipos de causas para as doençase para as muitas limitações e deficiências que afligiam os homens: o castigo pelos pecados, a interferência dos maus espíritos e as forças más da natureza, contra os quais o poder divino era o único remédio. Está em pauta, agora, a identificação dos possíveis caminhos da cura dos deficientes: os milagres realizados por Jesus. De sua pesquisa, o autor conclui que o melhor é se tomar a mensagem de fundo: não estigmatizar e deixar de lado a questão da plausibilidade do fato. O autor em seu capítulo III – Castigo e Pecado: Principais Conceitos Bíblicos sobre Pessoas com Deficiências e Mudanças de Mentalidades deu destaque ao debate incansável sobre a deficiência como fruto do pecado. A deficiência era atribuída a uma magia hostil ou à violação de um tabu e era tarefa do sacerdote descobrir as causas e estabelecer a magia certa para eliminar o mal. A causa podia ser interpretada por erro ou pecado cometido pela pessoa contra a divindade e era exigida reparação adequada. A pesquisa confirma que as ações e percepções praticadas de maneira incorreta, desobediente, era considerada violação de mandamento divino, ou seja, pecado. O autor faz ainda realiza um estudo sobre a terminologia “Pecado”, nos mais diversos segmentos: Judaico, Cristã, Católico, Protestante (evangélico), atribuindo a deficiência, as doenças, as fatalidades como consequências diretas de pecados cometidos, como se fossem castigo. 13 Referindo-se a planejamento de estudo sobre as deficiências ao longo dos tempos, é preciso manter o foco sobre as igrejas que lutam para manter a fé cristã, o que Emílio Figueira faz brilhantemente em seu IV capítulo - O “Caminhar” da Pessoa com Deficiência dentro do Catolicismo. O “castigo de Deus” era decorrente de sua ira, enviando sinais ao povo como os problemas mentais e as malformações congênitas, o que na realidade, era consequência de uma sociedade sem conhecimentos científicos e medicinais. A falta de planejamento urbano abriu caminho para epidemias e doenças mais graves. Mas a visão do povo voltada à ira celeste entendia a deficiência como uma falta de capacidade para a vida, devendo ser excluído de tudo, pois não poderiam realizar nada com dignidade. Fechando a Coletânea, o capítulo V - Caminhos para a Inclusão Religiosa hoje - mostra a igualdade de oportunidade, até mesmo na religião. O autor dá conta de resultados de sua pesquisa sobre a passagem do deficiente nos atos religiosos indagando agora sobre outro problema contemporâneo: as barreiras arquitetônicas dos templos religiosos. No espaço de inovações/resistências às mudanças propostas/impostas, o autor rediscute o sentido de se manter pessoas com deficiências em nossos círculos de amizade a fim de quebrar mitos e preconceitos. Mostra que, ao ressignificar os laços de afetividade, paradigmas são quebrados permitindo que se possam ver as reais habilidades e capacidades das pessoas com deficiência, refletindo mais sobre a (re)construção de sua identidade nesse espaço de múltiplas tensões, e assim, compreender melhor, sua vida pessoal. Os leitores que compartilham preocupações relacionadas aos grandes desafios da inclusão, encontrarão na obra Teologia 14 da Inclusão, elementos significativos para a retomada e a discussão dos problemas em pauta. O autor, por sua vez, disponibiliza sua ferramenta investigativa e sua conclusão, abrindo-se ao debate, reequacionando as questões e adiantando hipóteses fecundas, aptas a sustentar novas buscas e novos projetos, de modo que a produção do conhecimento, nessa área, possa ter a necessária continuidade em busca de uma qualificada consolidação. 15 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br INTRODUÇÃO A TEOLOGIA DA INCLUSÃO COMO UM NOVO MINISTÉRIO “Persiste em ler, exortar e ensinar, até que eu vá.” 1 Timóteo 4:13 osso dizer que, mesmo antes de eu nascer, já tinha uma relação muito íntima com Deus. O primeiro grande milagre Dele na minha vida foi no meu nascimento. Foi um parto muito difícil, passaram-se muitas horas do momento de nascer, fui tirado à força. Mesmo assim, passei horas no balão de oxigênio lutando para viver. Deus me deu a vitória, mas deixou uma marca: paralisia cerebral, comprometendo minha fala e movimentos. Meus primeiros anos foram de inúmeros tratamentos e, por onze anos, praticamente todos eles dentro de uma instituição fechada. Quase ninguém acreditava em um futuro para uma pessoa nas minhas condições físicas. Deus decretou o contrário. Aos cinco anos de idade eu já estava alfabetizado. Recebi Dele o dom da escrita. Ainda muito novo nasceram os meus primeiros textos que deram origem a uma vasta e variada produção literária. P 16 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Deus me dotou também de uma paixão grande pelos estudos. Muitos cursos, descobertas em diversas áreas, desenvolvimento no jornalismo, na psicologia e na psicanálise. Toda essa minha inquietação levou-me para o universo das pesquisas, atuando em instituições renomadas e escrevendo quase noventa trabalhos científicos publicados no mundo todo. Foi uma caminhada de muitos obstáculos, de gigantescas montanhas, as quais Deus foi eliminando uma a uma. O meu principal foco sempre foram as questões das pessoas com deficiência, melhor qualidade de vida e sociedade humanitária que abrace a todos. Hoje, consideram-me uma das principais referências em Educação Inclusiva no Brasil. Deus me deu a graça de ser testemunha ocular, eu, que sou de uma época em que pessoas com deficiência viviam isoladas em instituições, assisto e contribuo com o meu trabalho, pesquisas e escrita para tantas mudanças positivas. Apaixonado principalmente pelas investigações históricas, já há uns vinte anos eu queria pesquisar sobre as pessoas com deficiência no Cristianismo. Minha intenção inicial era escrever um artigo de nove páginas. Só que eu era membro de uma igreja com bases fundamentalistas que não nos permitia estudar quaisquer outros livros religiosos, senão a Bíblia. Eu, mesmo tendo vontade de estudar mais sobre religião, respeitava os ensinamentos da igreja. Independente de ser certo ou errado, os 18 anos que permaneci ali foram fundamentais para o meu nascimento, desenvolvimento e aprendizagem espiritual. Pude participar de incontáveis momentos maravilhosos na presença de 17 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Deus. Assisti obras e milagres na vida de muitos e na minha própria vida. Eu continuava a guardar anotações e materiais sobre as pessoas com deficiência e o Cristianismo. Sabia que um dia teria que escrever algo a respeito. Até que, em 2010, sofri uma grande discriminação por minha deficiência dentro da igreja onde eu estava, inclusive por pessoas do alto ministério. Não cabe narrar esse triste fato aqui. Só que minha permanência naquela igreja se tornou insustentável. Saí de lá com ainda mais certeza de que teria que fazer alguma coisa para que outras pessoas com as mais variadas deficiências não sofressem discriminações nos meios cristãos, como eu sofri. Passei meses sem congregar em qualquer igreja. Até que, em 10 de abril de 2011, manhã de um domingo ensolarado, entrei pela primeira vez em uma Igreja Batista, vindo de uma denominação predominantemente fechada em si mesma. Estava com a cabeça cheia de dúvidas, inseguranças, coração machucado por discriminações religiosas sofridas. Mesmo machucado, eu tinha certezade que era exatamente como fui concebido por Deus e Ele me amava, apesar da minha deficiência motora. E, ao entrar por aquelas portas, sabia que jamais poderia me afastar daquele amor! Na Igreja Batista percebi logo de início que tudo era diferente. Senti amor, vi o sorriso no rosto das pessoas. Fui acolhido. Com humildade. Uma semana se passou e no outro domingo foi muito forte a vontade de voltar. A mesma vontade que começou a me mover naturalmente, cada vez mais, sendo envolvido, acolhido e fazendo parte dessa comunidade cristã. Ali 18 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br descobri um Deus amoroso, bondoso, Pai paciente... Um Deus como sempre procurei e no qual acreditei. Foi morrendo dentro de mim o Deus autoritário e punidor, com o qual convivi por muitos anos. Fui percebendo que a liberdade e expressão religiosa que eu procurava realmente existem. Que posso falar ou escrever abertamente as coisas de Deus, manifestar o meu amor por Ele. Crescia em mim a cada dia a vontade de estudar mais no campo teológico. Usar as linguagens de expressões que recebi como dom dos céus para escrever livros, contos, romances, teatro evangélico ou textos didáticos. Fascinou-me o modo de se pregar o evangelho em uma Igreja Batista tradicional. Eu, que vinha de uma igreja onde éramos até proibidos de ler livros religiosos, na Igreja Batista conheci a Bíblia empregada de forma didática, ensinada, estudada, discutida. Aulas aos domingos. Irmãos lendo outros autores e teólogos. Estudando, surpreendeu-me ver como o Novo Testamento fala de ensino, doutrina e exemplo. Jesus é chamado de mestre 42 vezes. As palavras relacionadas com ensino repetem-se mais de 175 vezes, quase sempre no sentido positivo. Só em 1 e 2 de Timóteo vemos mais de 50 referências de ensino, instrução, doutrina e exemplo, visando vidas mais consagradas e firmes no Senhor. A aprendizagem é o que orienta e motiva as outras três funções vitais e comunitárias da igreja local: Adoração, Comunhão e Evangelização. Enquanto na outra igreja era apenas mais um membro no banco, na Igreja batista eu fui incluído de imediato e, tempos depois, já tinha ministérios. Quis cada vez mais estudar e me aperfeiçoar como um Educador Cristão. Ao mesmo tempo, quis 19 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br estar cada vez mais preparado, orando continuamente para que o Senhor Jesus ilumine minha mente e eu possa dar sempre o melhor nos Ministérios e cargos que Ele tem confiado em minhas mãos para o crescimento de Sua igreja, honra e glória. Graças a essa abertura, em 2012, bacharelei-me em Teologia pela Instituto de Educação Teológica de São Paulo, com a monografia: Entre a cruz e a clínica: Do aconselhamento pastoral ao atendimento psicológico nas igrejas evangélicas como uma nova proposta de ministério. Intensifiquei minhas pesquisas e análises sobre as pessoas com deficiência no Cristianismo. Por já ter mestrado em Educação Inclusiva e doutorado em Psicanálise, essa mesma instituição aceitou-me em seu Doutorado em Teologia e, o que era para ser um artigo de nove páginas, hoje se materializa em uma tese, apontando para uma nova caminhada e ministério nas comunidades cristãs. Hoje entendo que Deus me dotou de inteligência, inúmeras capacidades e permitiu aquela discriminação na minha vida para me libertar, me capacitar teologicamente e me usar como um instrumento em Sua obra. Peço a Deus que o meu amor e relacionamento com todos os meus irmãos cresça cada vez mais e que eu esteja sempre preparado para atendê-los em suas necessidades. Sobretudo, peço principalmente ao Senhor Jesus que multiplique minha saúde e capacitação para que eu possa trabalhar pela Sua obra até meus últimos dias, convicto de que, tudo o que eu fizer, ainda será muito pouco diante de todo o bem que Ele sempre fez e fará por mim. E posso testificar esse amor. 20 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br *** Cabe aqui uma rápida explicação teórica e metodológica que foi utilizada na construção desta obra, fruto de minha tese de Doutorado em Teologia pela Instituto de Ensino Teológico de São Paulo, defendida em 27 de outubro de 2014. Sendo a função dos teólogos cristãos recorrer à exegese bíblica e à análise racional para entender, explicar, testar, criticar e defender o Cristianismo, testando a sua veracidade, comparando-o a outras tradições ou religiões, defendendo-o de críticos, corroborando qualquer reforma cristã, esta tese teve como base teórica a Teologia Histórica. Também conhecida como história da teologia ou história da doutrina, trata-se do ramo da teologia que busca investigar as circunstâncias históricas em que as ideias teológicas se desenvolveram ou foram especialmente formuladas. Uma investigação teológica que objetiva explorar o desenvolvimento histórico das doutrinas cristãs e identificar os fatores que influenciaram sua formulação, documenta as respostas às grandes questões do pensamento cristão e ao mesmo tempo procura explicar os fatores que contribuíram para a elaboração dessas respostas. Por um lado, é uma ferramenta pedagógica, tendo em vista que oferece informações sobre o desenvolvimento dos grandes temas teológicos, os pontos fortes e fracos das diferentes abordagens e os marcos mais notáveis do pensamento cristão, em termos de autores e documentos. Por outro lado, é uma ferramenta crítica, pois permite ver as falhas, as limitações e os condicionamentos de certas formulações doutrinárias, o que possibilita seu contínuo aperfeiçoamento. 21 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Junto com a Teologia Histórica, utilizei a Hermenêutica Bíblica, que estuda os princípios da interpretação da Bíblia como uma coleção de livros sagrados e divinamente inspirados, abrangendo a relação dialética que visa substancializar os significados dos textos bíblicos. A hermenêutica bíblica não deve se afastar do texto bíblico, bem como não se abstém da problemática inicial do hermeneuta. Seu principal objetivo é o de descobrir a intenção original do autor bíblico. No caso dos textos da Bíblia, o leitor, ao menos racionalmente, não tem acesso direto ao autor original. Por isso é necessário aplicar princípios da hermenêutica (a ciência da interpretação) ao texto bíblico. No Cristianismo, essa interpretação é estudada e obtida através da Exegese, também utilizada nesta tese. A exegese tem práticas implícitas e intuitivas, sendo os textos sagrados os primeiros dos quais se ocuparam os exegetas na tarefa de interpretar e dar seu significado. Por isso, o termo “exegese” significa, como interpretação, revelar o sentido de algo ligado ao mundo do humano, mas a prática se orientou no sentido de reservar a palavra para a interpretação dos textos bíblicos. Como metodologia, trabalhei com a pesquisa bibliográfica, que permite ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar diretamente. Sua vantagem aumenta ainda mais quando o problema da pesquisa requer dados muito dispersos pelo espaço, sendo indispensável nos estudos históricos; em muitas situações, não há outra maneira de conhecer os fatos passados senão com base em dados bibliográficos. 22 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Esta pesquisa de caráter bibliográfico reuniu materiais (livros, artigos científicos, periódicos), obtidos já em um levantamentopreliminar em bibliotecas públicas e universitárias, em sítios científicos, por meio do meu acervo pessoal. Vale acentuar que, assim como qualquer outra modalidade de pesquisa, esta se desenvolveu ao longo de uma série de etapas. Na primeira fase, realizei a organização do material, já olhando para o conjunto de documentos de forma analítica, buscando averiguar trechos significativos dos documentos de acordo com o objetivo de investigação com leituras e fichamentos, ocorrendo algumas transcrições de trechos/dados utilizados posteriormente. Organizando o material e processando a leitura segundo critérios, utilizei o método analítico-sintético, unindo os anunciados do contexto principal referencial teórico (exposto no final desta obra) aos meus conhecimentos pessoais e observações. Na segunda fase, visando à compreensão do material coletado, trabalhei com o modo dialético, visando ser o ato de se conhecer a análise do processo de fenômeno um processo do conhecimento, realizada aquela a partir de uma consciência crítica, permitindo a elaboração de conceitos relativos às atividades do individuo e, portanto, estabelecendo previsões a respeito da transformação da realidade e da sociedade. 23 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br I – O ANTIGO TESTAMENTO: AS QUESTÕES DAS DEFICIÊNCIAS NO PRÉ-CRISTIANISMO Antigo Testamento é composto de 46 livros e constitui a primeira grande parte da Bíblia cristã e a totalidade da Bíblia hebraica, os primeiros cinco livros – os Livros da Lei (ou Torá). Entretanto, a tradição cristã divide o Antigo Testamento em outras partes e reordena os livros dividindo-os em categorias; Lei, história, poesia (ou livros de sabedoria) e Profecias. Muitos séculos antes de Cristo, escribas, sacerdotes, profetas, reis e poetas do povo hebreu mantiveram registros de sua história e de seu relacionamento com Deus. Esses registros tinham grande significado e importância em suas vidas e, por isso, foram copiados muitas e muitas vezes e passados de geração em geração. A Lei compreende os primeiros cinco livros. Já os Profetas incluem: Isaías, Jeremias, Ezequiel, os Doze Profetas Menores, Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. Os escritos reúnem o grande livro de poesia, os Salmos, além de Provérbios, Jó, Ester, Cantares de Salomão, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Daniel, Esdras, Neemias e 1 e 2 Crônicas. Os livros do Antigo Testamento foram escritos em longos pergaminhos confeccionados em pele de cabra e copiados cuidadosamente pelos escribas. Geralmente, cada um desses O 24 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br livros era escrito em um pergaminho separado; como a Lei ocupava espaço maior, foi escrita em dois grandes pergaminhos. O aramaico foi a língua original de algumas partes dos livros de Daniel e de Esdras. Hoje se tem conhecimento de que o pergaminho de Isaías é o mais remoto trecho do Antigo Testamento em hebraico. Estima-se que foi escrito durante o século II a.C. e, por isso, se assemelha muito ao pergaminho utilizado por Jesus na sinagoga, em Nazaré. Foi descoberto em 1947, juntamente com outros documentos, em uma caverna próxima ao Mar Morto. É no Antigo Testamento que iniciaremos a nossa saga de contar a história das pessoas com deficiência ao longo do Cristianismo! Noé: o primeiro registro bíblico de uma pessoa com deficiência Os primeiros cinco livros do Antigo Testamento estão repletos de regras e histórias. Inicia-se a Bíblia por Gênesis (nome que significa começo, origem ou criação), formando cinco pensamentos principais: 1 – O começo do mundo criado por Deus; 2 – O começo do homem como criatura de Deus; 3 – O começo do pecado, que entrou no mundo através da desobediência do homem; 4 – O começo da redenção, vista nas promessas e tipos do livro e da família escolhida; e 5 – O começo da condenação, vista na destruição e punição de indivíduos, cidades e mundos. 25 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br No contexto do livro de Gênesis encontraremos o nosso primeiro personagem: Noé ou Noach (do hebraico, “descanso, alívio, conforto”). De acordo com Moisés, autor desses primeiros cinco livros, Noé era filho de Lameque, que era filho de Matusalém, que era filho de Enoque, que era filho de Jarede, que era filho de Malalel, que era filho de Cainã ou Quenã, que era filho de Enos, que era filho de Sete, que era filho de Adão, que era filho de Deus. Era casado Noéma (ou Namá – Na’amah – cheia de beleza) com uma mulher cananita e seus três filhos mais conhecidos foram Sem, Cam (ou Cã) e Jafé. Noé é mencionado pela primeira vez no capítulo 5, versículo 29, encerrando com sua morte, capítulo 9, versículo 29, com 950 anos. O relato conta que Noé viveu em uma época em que as outras linhagens humanas (a partir dos descendentes de Caim e dos próprios parentes de Noé, provavelmente) mostraram-se corrompidas. O nascimento de Noé é descrito pela Bíblia em palavras muito breves. Seu pai Lameque já sentia que Noé veio ao mundo com uma missão especial dada por Deus, pois, por ocasião do nascimento do filho, declarou: “29A quem chamou Noé, dizendo: Este nos consolará acerca de nossas obras e do trabalho de nossas mãos, por causa da terra que o Senhor amaldiçoou.” (Gn 5:29). A Bíblia não oferece mais detalhes sobre o nascimento e características físicas de Noé. No entanto, recorrendo a um documento escrito em linguagem “apocalíptica” (repleta de sinais) conhecido como “Livro de Enoque, O Profeta”, um trecho da obra diz: “Depois de algum tempo meu filho Matusalém escolheu uma esposa para seu filho Lameque. Ela engravidou e deu à luz uma criança cuja pele era branca como a neve e vermelha como rosa; 26 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br cujo cabelo era comprido e alvo como a lã e cujos olhos eram lindos. Quando os abriu iluminou toda a casa, como o sol; a casa ficou cheia de luz”. Enoque diz que Lameque, pai de Noé, ficou intrigado com a aparência do recém-nascido. Talvez até tenha duvidado da fidelidade de sua esposa. Foi procurar seu pai, Matusalém, a quem descreveu o menino, informando dentre outras coisas: “Parece o fruto dos anjos do céu; é de natureza diferente da nossa, sendo no todo diferente de nós”. (...) “Ele parece não ser meu, mas dos anjos”. Pelos relatos históricos, hoje podemos dizer que essas são características básicas de um albino. Noé devia realmente ser muito diferente dos primos, tios, avós e demais parentes, todos morenos e de olhos escuros. Foi uma diferença considerada problemática o suficiente para levar o avô Matusalém, já com 369 anos de idade, a empreender uma viagem longa e cansativa para procurar seu pai, o patriarca Enoque, bisavô do recém-nascido, retirado do mundo “nas extremidades da terra”. Enoque diz em seu livro que analisou a questão com a sabedoria de seus muitos anos de vidas. Possuidor de um misticismo nato e informado por seus alegados contatos diretos com Deus, tranquilizou Matusalém, que voltou sabendo que o bebê era, de fato, filho de Lameque, que ele deveria ser chamado de Noé (consolo da Terra) e, com isso, ser preparado para eventos que culminaram com o dilúvio, 600 anos após. 27 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br A obra Livro de Enoque, O Profeta1 comenta ainda que Lameque e sua esposa eram primos em primeiro grau, sendo “o tipo comum de consanguinidade em albinismo”.A cegueira de Isaque por 80 anos O grande patriarca hebreu Isaque talvez seja o homem que mais tempo viveu nessa deficiência. Seu nome é de origem hebraica e significa “ele sorri” ou “ele ri”. Descendente de Abraão e Sara, Isaque foi um dos três patriarcas do povo de Israel, junto com seu pai Abraão e seu filho Jacó. A história de Isaque começa a ser contada no capítulo 15 de Gênesis, quando, mesmo em idade avançada, o Senhor promete 1 Embora considerados uma obra apócrifa (do grego Apokryphos, significando oculto ou não autêntico), os escritos deste livro foram encontrados na primavera de 1947, quando um pastor árabe deixou cair um objeto perto das ruínas de Qumrán. Ao tentar recuperar o artefato, o religioso ficou surpreso ao se deparar com 20 grandes vasos dentro de uma espécie de câmara. Logo ele notou que seu objeto tinha quebrado um desses vasos, descobrindo que dentro deles havia vários rolos de pergaminho que traziam o conteúdo deste livro; assim eram descobertos os Manuscritos do Mar Morto. Eles apresentavam escrituras muito bem conservadas que, além de registrar todos os rituais e informações a respeito de um povo até então desconhecido, os essênios, traziam também vários evangelhos escritos por apóstolos que não tinham sido incluídos na Bíblia. Um desses pergaminhos guardava um texto incrivelmente interessante e revelador: O Livro de Enoque, o Profeta. Essa obra é de grande importância não somente em virtude da sua menção aos versículos 14 e 15 da epístola de Judas, mas também por ter sido citada por vários padres da Igreja Católica primitiva. Sabe-se que mais de 70 textos do livro de Enoque influenciaram não somente os diversos escritos do Novo Testamento como também as obras de Clemente de Alexandria, Tertuliano e Jerônimo. 28 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br um filho a Abrão. Sarai, sua esposa, não lhe dera filhos e, por isso, pediu que Abrão possuísse sua serva egípcia Agar, a fim de terem filhos por esse meio, nascendo uma criança de nome Ismael. A convivência entre eles não era agradável, o que ocasionou a partida de Agar e Ismael para outras terras. Ismael, embora filho de Abrão, não era o filho da promessa do Senhor. Quando Abrão atingiu 99 anos, apareceu o Senhor e mudou seu nome para Abraão e o de Sarai para Sara. Quando o Senhor disse que dentro de um ano lhe daria um filho, Abraão riu. O mesmo ocorreu com Sara quando recebeu a notícia, por estarem em idade avançada. O nascimento de Isaque está ligado ao riso e não apenas faz alusão ao sorriso de Abraão e de Sara, mas também pode ser uma oração implícita de que Deus sorrirá para o filho deles e será generoso com ele. Isaque protagonizou momentos marcantes do Antigo Testamento. Seu pai Abraão foi provado pelo Senhor quando Isaque ainda era criança, pedindo-lhe a sua vida como sacrifício: “E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi.” (Gn 22:2). Tendo feito de acordo com o que o Senhor ordenou, pouco antes de sacrificar seu filho, um anjo bradou do céu e lhe disse: “Então disse: Não estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único filho.” (Gn 22:12). Mais tarde, casou-se com uma linda jovem mesopotâmia, Rebeca, que lhe gerou dois filhos do sexo masculino somente 20 anos depois do casamento: Esaú e Jacó. Eram gêmeos, sendo Esaú o primogênito. Um homem rude, cheio de pelos no corpo e nas 29 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br mãos, tornou-se caçador, dedicado às atividades do campo e da guerra, enquanto Jacó era um homem simples e, como diz Gênesis, “habitante de tendas”. O pai preferia seu primogênito pelo que era e pelo que trazia das caçadas; Rebeca dedicava sua atenção e carinho a Jacó, protegendo-o sempre e mal imaginando que ele se transformaria no maior patriarca hebreu e que um dia receberia de Deus o nome de Israel (“o que luta com Deus”). Ao envelhecer e ficar cego, certamente isso foi peça fundamental para outra passagem bíblica. Sem enxergar, idoso, com suas faculdades debilitadas e preocupado com a possibilidade de morte iminente, Isaque chamou seu filho Esaú para ele apanhar alguma caça, a fim de receber sua bênção. “E aconteceu que, como Isaque envelheceu, e os seus olhos se escureceram, de maneira que não podia ver, chamou a Esaú, seu filho mais velho, e disse-lhe: Meu filho. E ele lhe disse: Eis-me aqui. E ele disse: Eis que já agora estou velho, e não sei o dia da minha morte; Agora, pois, toma as tuas armas, a tua aljava e o teu arco, e sai ao campo, e apanha para mim alguma caça. E faze-me um guisado saboroso, como eu gosto, e traze-mo, para que eu coma; para que minha alma te abençoe, antes que morra.” (Gn 27:1-4) 30 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Para entender a densidade desse fato é preciso entender que essa bênção paterna não era um mero palavrório, mas um ato de peso que conferia a herança de um clã ao abençoado pelo pai. E os envolvidos sabiam muito bem que, uma vez dada, essa bênção não poderia ser retirada nem transferida a outrem, pois vinha de Deus! Enquanto Esaú estava caçando, Jacó, depois de ouvir o conselho de sua mãe, enganou seu pai cego propositadamente, passando-se por Esaú, obtendo assim, a bênção de seu pai, de tal forma que Jacó tornou-se herdeiro principal de Isaque e Esaú foi deixado numa posição inferior. Isaque enviou Jacó à Mesopotâmia para escolher uma mulher de sua própria família. Depois de 20 anos trabalhando para Labão, Jacó voltou para casa e reconciliou- se com seu irmão gêmeo. Mais tarde Isaque explicaria a Esaú o engano e daria o veredito final: “Então respondeu Isaque a Esaú dizendo: Eis que o tenho posto por senhor sobre ti, e todos os seus irmãos lhe tenho dado por servos; e de trigo e de mosto o tenho fortalecido; que te farei, pois, agora, meu filho?” (Gn 27:37). Nem o fato de ser cego e de ter-se enganado devido à deficiência visual levou Isaque a mudar sua posição anteriormente assumida. Isaque viveu até os 180 anos de idade e dessa vida toda passou 80 anos na dependência de Rebeca e de seus criados. Ele foi o único patriarca bíblico que não deixou Canaã, o único que não teve o nome mudado e o patriarca de vida mais longa. 31 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br A deficiência temporária de Jacó em decorrência de uma luta espiritual Já vimos que Jacó, ao se passar pelo irmão para obter a bênção do pai, Isaque, entrou em pé de guerra com Esaú. Sua mãe o aconselhou a sair de casa, prometendo chamá-lo de volta quando o irmão se acalmasse. Jacó, com idade entre 76 e 78 anos aproximadamente, foi para Padã-Arã, região da atual Síria. Como um homem muito errado na fé, traiu seu irmão (Gênesis, 25:33), enganou o pai (Gênesis, 27:23), fugiu da ira do seu irmão (Gênesis, 27:41-44) e não teve boas relações com o sogro (Gênesis, 31). Mas Jacó tinha só um pensamento: vencer a qualquer custo, conseguir tudo que desejava. Morando em Padã-Arã, casou-se com duas jovens, Lia e Raquel. Após trabalhar 14 anos pelas esposas e mais seis anos pela família, Deus diz para retornar à sua terra. Ele parte com suas duas esposas, duas criadas, onze filhos, seus criados e respectivos rebanhos. Após fazer um pacto com Deus,que o ajudaria a voltar para a Terra Prometida são e salvo, já em viagem e rumando sul ao longo de uma rota que ficaria a leste do rio Jordão, a caravana chegou ao vale de Jaboque, um afluente do rio maior. Jacó tomou ciência de que o irmão estaria a caminho com um exército de 400 homens e resolveu então mandar a família atravessar o rio para ali ficar em comunhão com Deus e passar a noite à margem norte do afluente. Mais tarde, naquela mesma noite, sozinho na margem meridional do Jaboque, em meio a essa crise aparentemente 32 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br grave, Jacó demonstrou coragem em um dos episódios mais enigmáticos da Bíblia. Sozinho e na escuridão, viu-se lutando com um estranho misterioso (Gn 32:22-32): “E levantou-se aquela mesma noite, e tomou as suas duas mulheres, e as suas duas servas, e os seus onze filhos, e passou o vau de Jaboque. E tomou-os e fê-los passar o ribeiro; e fez passar tudo o que tinha. Jacó, porém, ficou só; e lutou com ele um homem, até que a alva subiu. E vendo este que não prevalecia contra ele, tocou a juntura de sua coxa, e se deslocou a juntura da coxa de Jacó, lutando com ele. E disse: Deixa-me ir, porque já a alva subiu. Porém ele disse: Não te deixarei ir, se não me abençoares. E disse-lhe: Qual é o teu nome? E ele disse: Jacó. Então disse: Não te chamarás mais Jacó, mas Israel; pois como príncipe lutaste com Deus e com os homens, e prevaleceste. E Jacó lhe perguntou, e disse: Dá-me, peço-te, a saber o teu nome. E disse: Por que perguntas pelo meu nome? E abençoou-o ali. E chamou Jacó o nome daquele lugar Peniel, porque dizia: Tenho visto a Deus face a face, e a minha alma foi salva. 33 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br E saiu-lhe o sol, quando passou a Peniel; e manquejava da sua coxa. Por isso os filhos de Israel não comem o nervo encolhido, que está sobre a juntura da coxa, até o dia de hoje; porquanto tocara a juntura da coxa de Jacó no nervo encolhido.” (Gn 32:22-32) Enquanto, no versículo 24, Jacó identifica a criatura como “um homem”, no versículo 28 fica claro que ele lutou com o próprio Deus. Jacó precisava dessa experiência marcante com Deus que o fizesse mudar radicalmente, para demovê-lo de seu orgulho e quebrar sua prepotência e hipocrisia. Podemos deduzir que o objetivo da luta era quebrantar Jacó, mostrando-lhe ser uma criatura sem forças em si mesma. Jacó tinha um “eu” muito forte que demandou de uma luta de uma noite inteira, quando ele se recusava a ceder. Essa experiência com Deus, Ranauro e Limeira da Sá (1999) assim analisam: “Isto é muito sério, pois muitos entendem que Deus não pode servir-se de coisas dessa natureza no trato com as pessoas. Mas Deus usou uma ‘deficiência’ para marcar Jacó, para mudar sua história, para lembrá-lo constantemente de que ele não deveria sentir-se autossuficiente. Pode Jacó sentir vitória e derrota numa única situação. Dessa vez a bênção era dele mesmo, não precisou ser roubada nem tramada, mas houve um preço: a luta e um sinal, a deficiência na coxa. Quando se agarrou desamparado, recebeu o direito que havia tentado comprar (Gn 27:23) e a bênção que havia tentado (Gn 27:23). De fato sua vida mudou a partir daí e 34 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br veio ele a constituir uma grande nação. Seu novo nome – Israel – significa “príncipe”. Príncipe não por sua força, mas por sua fraqueza, como também por sua perseverança. Parece que, tocando em sua aparência, em sua força física, Deus conseguiu tocar em seu ‘eu’ mais profundo. Crer na existência de um Deus-Pessoa, em um Deus pessoal, não implica crer que Ele pode, ainda hoje, agir assim com determinadas pessoas?” (pp. 72-73). Essa história fascinou gerações de judeus e cristãos. Matreiro, dúbio e às vezes amedrontado, o segundo filho de Isaque parecia um candidato improvável para incorporar e realização da promessa de Deus à nação de Israel. Notaremos, no Antigo Testamento e na tradição rabínica, que sua falibilidade humana foi, precisamente, o que ajudou a provar que a vontade de Deus, e não a iniciativa humana ou o mérito individual, foi a responsável por estabelecer os israelitas na Terra Prometida e moldar o destino da nação. Jacó retornou à terra de seus pais com 98 anos e ainda viu seu pai durante mais 22 anos, que morreu com 180 anos de idade, dez anos antes de Jacó ir ao Egito encontrar seu filho José. Jacó viveu 17 anos no Egito (Gn 47:28) e morreu com 147 anos. Lia, desprezada, mas recompensada por Deus Lia fora a primeira esposa de Jacó. A mais velha das duas filhas de Labão, ela não tinha a mesma beleza que sua irmã 35 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Raquel. Por isso, fora uma mulher que sentiu o desprezo do pai ao ser usada em benefício dele. Esse foi só o início do seu sofrimento. Lia era desprovida de beleza. Em versões mais recentes da Bíblia, ela é descrita como tendo um “olhar terno” e nenhum outro detalhe sobre sua aparência física, quando é apresentada em Gênesis 29:16-17. Entre teóricos e historiadores é debatido se o adjetivo “terno” foi usado para significar “delicado e suave” ou “fraco”. Algumas traduções indicam que “olhar terno” pode significar que Lia possuía olhos azuis ou claros. Na Bíblia vulgata essa dúvida se acentua ainda mais em Gênesis 29:17: “Lia tinha os olhos defeituosos e Raquel era bela de talhe e rosto”. Olhos defeituosos? A história dela é marcada pela falta de consideração, de amor, de apreço. Seu pai a usou para ter mais dinheiro. Lia se tornou esposa de Jacó através de uma artimanha de Labão, que a colocou no lugar de Raquel na noite de núpcias. Ao se casar, tinha um marido que não a amava. Depois, sua irmã casou-se com seu esposo, cujo amor era maior por essa (Gn 29:30). O desprezo era tanto que Deus teve compaixão de Lia e a fez mãe antes de Raquel. Gerou seis filhos e uma filha para Jacó, enquanto sua criada Zilpa deu-lhe mais dois filhos, que também eram contados como de Lia, antes que Raquel fosso capaz de ter seus próprios filhos. Essa é a prova de que Deus sabia do sofrimento de Lia e a colocou em posição de vantagem em relação a Raquel. O Senhor se mostrou no controle de todas as coisas ao conceder filhos a Lia, deixou claro que, mesmo que Jacó não a amasse, Ele a amava, cuidava e ajudava a passar pelos sofrimentos. 36 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Moisés: problemas de fala e autoestima O segundo livro da Bíblia, Êxodo, significando saída, ou partida, tem como palavra-chave a redenção demonstrada pela libertação do um povo escolhido, liberto de uma situação angustiante, a escravidão egípcia. O interessante é que o autor e personagem principal de Êxodo era Moisés, vítima de um sério e perturbador distúrbio da comunicação, que alguns estudos históricos apontam como uma acentuada gagueira, que afetou profundamente sua autoestima. No começo de sua história, Moisés, personagem predominante do Antigo Testamento, era tímido, humilde, buscando ficar na obscuridade. Mas foi justamente uma pessoa com essas características que Deus escolheu para uma grande obra. O problema de sua fala deve ter-se agravado em um momento de forte tensão em que ele, morando no deserto por muitos anos, decidiu levar seu rebanho ao monte Horeb para pastar. No meio da noite calma viu uma grande touceira de sarçapegando fogo, mas sem queimar. Aproximando-se com cautela, ouviu uma voz. Era o próprio Deus, chamando-o para a grande missão de vida: tirar os hebreus do Egito e conduzi-los à Terra Prometida. Parte desse diálogo, em Êxodo 4, acentua bem a sua deficiência e como Deus começou a instruir Moisés em sua futura missão: 37 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br “Então disse Moisés ao Senhor: Ah, meu Senhor! eu não sou homem eloquente, nem de ontem nem de anteontem, nem ainda desde que tens falado ao teu servo; porque sou pesado de boca e pesado de língua. E disse-lhe o Senhor: Quem fez a boca do homem? ou quem fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu, o Senhor? Vai, pois, agora, e eu serei com a tua boca e te ensinarei o que hás de falar. Ele, porém, disse: Ah, meu Senhor! Envia pela mão daquele a quem tu hás de enviar. Então se acendeu a ira do Senhor contra Moisés, e disse: Não é Arão, o levita, teu irmão? Eu sei que ele falará muito bem; e eis que ele também sai ao teu encontro; e, vendo-te, se alegrará em seu coração. E tu lhe falarás, e porás as palavras na sua boca; e eu serei com a tua boca, e com a dele, ensinando-vos o que haveis de fazer. E ele falará por ti ao povo; e acontecerá que ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus. Toma, pois, esta vara na tua mão, com que farás os sinais.” (Ex 4:10-17) A reação de Moisés, naquele momento, foi no mínimo cuidadosa ao dizer: “Ele, porém, disse: Ah, meu Senhor! Envia pela 38 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br mão daquele a quem tu hás de enviar.” (Ex 4:13), sendo o verdadeiro sentido dessa frase no hebraico “envia outra pessoa”. Ele preferiu enfatizar a sua deficiência, não se atentando ao poder de Deus. Quando o Senhor disse em “ser a sua boca”, poderia livrá- lo da sua dificuldade de dicção ou mesmo usá-lo, a despeito dela. As desculpas de Moisés nos demonstram, a princípio, sua falta de autoconfiança e uma fé momentânea. Ranauro e Lima de Sá (1999) acentuam que, “quando Deus comprometeu-se a ser com sua boca, não estava assumindo a responsabilidade de livrá-lo da dificuldade. Apesar dela, ressaltaríamos, Deus o havia escolhido. Na perspectiva de Deus, essa deficiência poderia até mesmo ter um propósito, ou simplesmente não interferiria naquilo a que Ele o destinara. Na narrativa bíblica, encontramos Deus tentando fazer com que Moisés levantasse seus olhos para ver a amplitude do significado de existência de pessoas com dificuldades semelhantes, e até maiores, o que está dentro da administração do Deus-Criador” (pp. 75-76). Deus contra-argumentou com o seguinte e forte questionamento: “E disse-lhe o Senhor: Quem fez a boca do homem? ou quem fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu, o Senhor?” (Ex 4:11). O Senhor procurou encorajá-lo também por outros meios para enfrentar os desafios que se punham à sua frente, ou seja, os líderes hebreus e a corte do faraó, chegando a demonstrar que Ele estaria efetivamente ao seu lado. Moisés, cônscio de suas limitações quanto à desenvoltura em falar, levou Deus a indicar uma solução: o irmão de Moisés, Arão, seria seu companheiro de todas as horas, tanto para convencer os líderes hebreus quanto para falar ao faraó nas horas 39 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br aprazadas. Arão foi vital para o sucesso de todo o ambicioso projeto, uma vez que os planos, os comentários, as novas ações e providências, e mesmo os novos argumentos diferentes eram transmitidos por Deus a Moisés e este os repassava a Arão. Por sua vez, este não dispensava nunca a carismática presença de Moisés e tudo transmitia ao faraó e sua corte, aos líderes hebreus e ao povo, tendo desempenhado essa missão por muitos anos. Foram várias as tentativas frustradas de tirar o povo de uma escravidão cada vez mais opressora, levando Moisés a se queixar com Deus: “Moisés, porém, falou perante o Senhor, dizendo: Eis que os filhos de Israel não me têm ouvido; como, pois, Faraó me ouvirá? Também eu sou incircunciso de lábios.” (Ex 6:12). Deus continuou com a mesma orientação operacional até então adotada, indicando Arão mais uma vez como o seu porta-voz. Tudo o que se sabe a seu respeito está na Torá, ou Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia), e em algumas referências espalhadas pelo Antigo Testamento, sem nenhum registro primário fora das escrituras. Foi a personalidade de Moisés que uniu Israel através de sua história, exercendo uma variedade única de papéis: legislador, chefe militar e político, profeta e fundador de uma religião de estado. Ele é o profeta mais importante do Judaísmo, igualmente reconhecido pelo Cristianismo e Islamismo, assim como em outras religiões, sendo considerado um grande profeta pelos muçulmanos. É o grande libertador dos hebreus, tido por eles como seu principal legislador e mais importante líder religioso. A Bíblia também o destaca: “E era o homem Moisés mui manso, mais do que todos os homens que havia sobre a terra.” (Nm 12:3). 40 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Mesmo com sua deficiência funcional de ordem bastante grave, Moisés assumiu o papel que foi a ele indicado e conseguiu sair-se bem da missão, com a ajuda permanente de seu irmão Arão e foi, sem dúvida, uma das mais fortes figuras de toda a história dos hebreus. Pessoas excluídas dos sacrifícios ou sacerdócio Os antigos hebreus (etnônimo possivelmente oriundo do termo hebraico Éber, significando “descendentes do patriarca bíblico Éber”) foram um povo semítico da região do antigo corredor sírio-palestino, localizado no Oriente Médio. O etnônimo também foi utilizado a partir do período romano para se referir aos judeus, um grupo étnico e religioso de ascendência hebraica. Acredita-se que, originalmente, os hebreus chamavam a si mesmos de israelitas, embora esse termo tenha caído em desuso após a segunda metade do século X a.C. Os hebreus falavam uma língua semítica da família cananeia, à qual se referiam pelo nome de “língua de Canaã” (Isaías 19:18). Esse povo, apagado pela grandeza de estados muito maiores, tecnologicamente avançados e mais importantes politicamente, foi responsável, contudo, pela composição de alguns dos livros que compõem a Bíblia, obra considerada sagrada por religiões ocidentais e orientais. Será no contexto desse povo antigo que descobriremos os primeiros registros de um olhar diferenciado no qual tanto a doença crônica quanto a deficiência física ou intelectual, e mesmo qualquer deformação, por menor que fosse, indicavam um grau de 41 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br impureza ou de pecado. Início de uma visão cultural que ainda ressoa nos dias atuais. Em Levítico, terceiro livro da Bíblia, parte do Pentateuco, sua autoria, tradicionalmente atribuída a Moisés, contém a Lei dos sacerdotes da Tribo de Levi, a tribo de Israel que foi escolhida para exercer a função sacerdotal no meio do seu povo. Nesse conjunto de normas e orientações para os sacerdotes, chegou a ser determinado por Moisés, capítulo 21: “Falou mais o Senhor a Moisés, dizendo: Fala a Arão, dizendo: Ninguém da tua descendência, nas suas gerações, em que houver algum defeito, se chegará a oferecer o pão do seu Deus. Pois nenhum homem em quem houver alguma deformidade se chegará; como homem cego, ou coxo, ou de nariz chato, ou de membrosdemasiadamente compridos, Ou homem que tiver quebrado o pé, ou a mão quebrada, Ou corcunda, ou anão, ou que tiver defeito no olho, ou sarna, ou impigem, ou que tiver testículo mutilado. Nenhum homem da descendência de Arão, o sacerdote, em quem houver alguma deformidade, se chegará para oferecer as ofertas queimadas do Senhor; defeito nele há; não se chegará para oferecer o pão do seu Deus. Ele comerá do pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do santo. 42 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Porém até ao véu não entrará, nem se chegará ao altar, porquanto defeito há nele, para que não profane os meus santuários; porque eu sou o Senhor que os santifico.” (Lv 21:16-23) Imediatamente após o êxodo do Egito, foi dada essa ordem a Moisés: “Santifica-me todo o primogênito, o que abrir toda a madre entre os filhos de Israel, de homens e de animais; porque meu é.” (Ex 13:2). Endossando isso, no tratado de Bechorot – a terceira mais longa das seis Ordens da Mishná, que aborda na sua maioria o serviço religioso no Templo de Jerusalém, os Korbanot ou “oferendas sacrificiais” e outros assuntos considerados ou relacionados a essas “Coisas Sagradas” –, são citados oito tipos de defeitos, inclusive a falta de orelhas, seu tamanho ou formato defeituoso, como impedimento para os serviços do templo. Uma importante obra paralela à Bíblia, História dos Hebreus2, do historiador Flávio Josefo, confirma essa 2 A obra História dos Hebreus é outra fonte segura de pesquisa que temos paralela à Bíblia. Tendo atravessado séculos até os nossos dias, a história do povo judeu permanece como um fiel relato dos acontecimentos contidos nas escrituras. Esse livro traz a história de personagens dos evangelhos e de Atos dos Apóstolos, tais como Pilatos, os Agripas e os Herodes, e inúmeros pormenores do mundo greco-romano. Seu autor, Flávio Josefo, foi um historiador e apologista judaico-romano, descendente de uma linhagem de importantes sacerdotes e reis, que registrou in loco a destruição de Jerusalém, pelas tropas do imperador romano Vespasiano, comandadas por seu filho Tito, futuro imperador. As obras de Josefo fornecem um importante panorama, abordando a história judaica, principalmente o período que marcou a segunda maior tragédia dos filhos de Abraão – a destruição do santo templo no ano 70 de nossa era. Uma confirmação das promessas de Deus para o seu povo e o cumprimento de sua palavra em todos os fatos registrados em suas páginas. 43 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br determinação. No capítulo 10, sobre a lei que se refere aos sacrifícios, aos sacerdotes, às festas e outras solenidades, tanto civis quanto políticas, ele destaca: “Se entre os sacerdotes houvesse algum defeito corporal, ser-lhe-ia permitido estar com os demais, mas não poderia subir ao altar ou entrar no Templo. Eram obrigados a ser puros e castos não somente quando celebravam o serviço divino, mas em todo o resto de sua vida” (2004, p. 140). Mais adiante, capítulo 15, sobre as diversas outras observações legais do sumo sacerdote, Josefo revela como deveriam ser tratados aqueles que não podiam exercer tais cargos por terem deficiência: “Os que eram de família sacerdotal e não podiam exercer o sacerdócio, porque eram cegos, ficavam com os que estavam puros e não tinham nenhum defeito corporal. Recebiam a mesma porção que os levitas, que serviam no altar, mas estavam vestidos como os leigos, porque só aos que exerciam o serviço divino era permitido usar o hábito sacerdotal” (2004, p. 1.340). Muitas vezes era até providencial uma deformidade para que a pessoa não viesse a ter um sacerdócio no futuro, conforme se encontra no livro décimo quarto, capítulos 23, 24, 25 e 26, Antiguidades judaicas, Parte I: “Esses bárbaros não se contentaram de saquear a cidade, devastaram também os campos, destruíram Marissa e não somente fizeram Antígono rei, mas entregaram-lhe Hircano e Fazael, acorrentados. Ele mandou cortar as orelhas ao primeiro, a fim de que, sobrevindo alguma mudança, ele fosse tido como incapaz de exercer o sumo sacerdócio, porque nossas leis proíbem conceder-se essa honra aos que têm algum defeito corporal” (JOSEFO, 2004, p. 1044). 44 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Vemos na Bíblia que existem doze defeitos físicos aparentes, qualquer um dos quais desqualifica um sacerdote para o desempenho de suas funções (Lev. 21:16-23). Só que a “Halachá” (nome do conjunto de leis da religião judaica, incluindo os 613 mandamentos que constam na Torá e os posteriores mandamentos rabínicos e talmúdicos relacionados aos costumes e tradições, servindo como guia do modo de viver judaico) aumenta essa lista para 142, o que achamos desnecessário reproduzir aqui. Os defeitos físicos que desqualificam um animal para o sacrifício também são enumerados em Levítico, 22: “Nenhuma coisa em que haja defeito oferecereis, porque não seria aceita em vosso favor. E, quando alguém oferecer sacrifício pacífico ao Senhor, separando dos bois ou das ovelhas um voto, ou oferta voluntária, sem defeito será, para que seja aceito; nenhum defeito haverá nele. O cego, ou quebrado, ou aleijado, o verrugoso, ou sarnoso, ou cheio de impigens, estes não oferecereis ao Senhor, e deles não poreis oferta queimada ao Senhor sobre o altar. Porém boi, ou gado miúdo, comprido ou curto de membros, poderás oferecer por oferta voluntária, mas por voto não será aceito. O machucado, ou moído, ou despedaçado, ou cortado, não oferecereis ao Senhor; não fareis isto na vossa terra. 45 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Também da mão do estrangeiro nenhum alimento oferecereis ao vosso Deus, de todas estas coisas, pois a sua corrupção está nelas; defeito nelas há; não serão aceitas em vosso favor.” (Lv 22:20-25) Tais defeitos são aumentados para 73 na Lei Rabínica, escritos rabínicos ao longo da história do Judaísmo, literatura da era talmúdica, em oposição à literatura rabínica medieval e moderna. Um defeito temporário desqualifica um sacerdote para sua função e um animal, para o sacrifício, apenas pelo tempo que durar. Consultando o verbete “defeito” da Enciclopédia Judaica (Jewish Encyclopedia, publicada entre 1901 e 1906 por Funk e Wagnalls, contendo cerca de 15.000 artigos em 12 volumes sobre a história dos judeus e do Judaísmo, hoje de domínio público), lemos o seguinte: “Defeito (Heb. mum) – Termo bíblico referente a um defeito físico ou ritual, que excluía uma pessoa do serviço do templo e tornava um animal impróprio para ser sacrificado”. Segundo a Lei Rabínica, por exemplo, um defeito físico do marido ou da mulher pode, em certas circunstâncias, até invalidar um contrato de casamento. De volta à Bíblia, o livro Levítico é contundente quanto aos homens com deficiências físicas, afirmando isso taxativamente, conforme destaque do capítulo 21: “Nenhum homem da descendência de Arão, o sacerdote, em quem houver alguma deformidade, se chegará para oferecer as ofertas queimadas do Senhor; defeito nele há; não se chegará para oferecer o pão do seu Deus. 46 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Ele comerá do pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do santo. Porém até ao véu não entrará, nem se chegará ao altar, porquanto defeito há nele, para que não profane os meus santuários; porqueeu sou o Senhor que os santifico.” (Lv 21:21-23) As causas das deficiências oriundas de castigos entre os hebreus No contexto da história do povo hebreu, além das deficiências ou das deformações consideradas como consequências diretas de pecados ou de crimes, tais como a cegueira, a surdez, a paralisia, por exemplo, havia aquelas provenientes de acidentes, de agressões, de participação em lutas armadas contra inimigos do povo e as punições previstas em lei. Outras eram provenientes de marcas da própria escravidão: orelha ou nariz cortado, dedos ou a mão, olhos vazados. No quinto livro da Bíblia, Deuteronômio (palavra grega que significa “segunda lei” ou “lei repetida”), Moisés escreve as últimas palavras semelhantemente entregues durante os últimos sete dias de sua vida, não uma repetição da lei, mas sim uma aplicação dela em vista das novas condições que Israel encontraria em Canaã e devido à sua desobediência anterior. Moisés tinha nesses escritos o objetivo de levar Israel à 47 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br obediência, encorajamento e advertência. Deuteronômio é uma espécie de testamento do velho Moisés às bordas da Terra Prometida. Nele, capítulo 25, encontramos um castigo severo (amputação da mão) para um procedimento considerado altamente pecaminoso por parte da mulher: “Quando pelejarem dois homens, um contra o outro, e a mulher de um chegar para livrar a seu marido da mão do que o fere, e ela estender a sua mão, e lhe pegar pelas suas vergonhas, Então cortar-lhe-ás a mão; não a poupará o teu olho.” (Dt 25:11-12) Os castigos ou penas por faltas contra as leis de Deus e mesmo de Israel eram por vezes muito cruéis e de caráter extremo. Eles correspondiam a alguma necessidade da época em que foram estabelecidos. O próprio Moisés elaborou muitos deles; no capítulo 13 do livro que disserta sobre os adoradores de outros deuses, “Para que todo o Israel o ouça e o tema, e não torne a fazer semelhante maldade no meio de ti.” (Dt 13:11). Dureza que também é repetida nas palavras de Moisés com relação à criação de filhos em Deuteronômio, 21: “Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedecer à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e, castigando- o eles, lhes não der ouvidos, 48 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Então seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar; E dirão aos anciãos da cidade: Este nosso filho é rebelde e contumaz, não dá ouvidos à nossa voz; é um comilão e um beberrão. Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão, até que morra; e tirarás o mal do meio de ti, e todo o Israel ouvirá e temerá.” (Dt 21:18-21) Maldições sem fim são indicadas para os que não seguiam os preceitos e uma delas está em Deuteronômio, 28: “Será, porém, que, se não deres ouvidos à voz do Senhor teu Deus, para não cuidares em cumprir todos os seus mandamentos e os seus estatutos, que hoje te ordeno, então virão sobre ti todas estas maldições, e te alcançarão: (Dt 28:15) (...) O Senhor te ferirá com loucura, e com cegueira, e com pasmo de coração; E apalparás ao meio-dia, como o cego apalpa na escuridão, e não prosperarás nos teus caminhos; porém somente serás oprimido e roubado todos os dias, e não haverá quem te salve.” (Dt 28:28-29). 49 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br O livro de Juízes, que trata da história dos israelitas entre a conquista da terra de Canaã no final da vida de Josué até o estabelecimento do primeiro reinado, em seu contexto procurava levar o povo hebreu a melhor conhecer seus grandes heróis, tais como Otoniel, Aod, Baraque, Débora, Gideão, Jefté e Sansão, personagens que libertaram o povo da opressão constante dos inimigos e tentaram fazer com que esse mesmo povo observasse as leis estabelecidas. Juízes nos relata fatos que demonstram claramente que, na luta pela segurança do povo hebreu, às vezes era indispensável “passar a fio de espada” todos os homens aprisionados. No entanto, em Juízes 1, existe o relato de um caso de evidente “desencorajamento” permanente aos ataques aos hebreus, num severo castigo aplicado a um líder cananeu por uma das tribos de Judá: “E sucedeu, depois da morte de Josué, que os filhos de Israel perguntaram ao Senhor, dizendo: Quem dentre nós primeiro subirá aos cananeus, para pelejar contra eles? E disse o Senhor: Judá subirá; eis que entreguei esta terra na sua mão. Então disse Judá a Simeão, seu irmão: Sobe comigo à minha herança. E pelejemos contra os cananeus, e também eu contigo subirei à tua herança. E Simeão partiu com ele. E subiu Judá, e o Senhor lhe entregou na sua mão os cananeus e os perizeus; e feriram deles, em Bezeque, a dez mil homens. 50 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br E acharam Adoni-Bezeque em Bezeque, e pelejaram contra ele; e feriram aos cananeus e aos perizeus. Porém Adoni-Bezeque fugiu, mas o seguiram, e prenderam- no e cortaram-lhe os dedos polegares das mãos e dos pés. Então disse Adoni-Bezeque: Setenta reis, com os dedos polegares das mãos e dos pés cortados, apanhavam as migalhas debaixo da minha mesa; assim como eu fiz, assim Deus me pagou. E levaram-no a Jerusalém, e morreu ali. E os filhos de Judá pelejaram contra Jerusalém, e tomando- a, feriram-na ao fio da espada; e puseram fogo na cidade.” (Jz 1:1-8) Castigo violento também ocorreu com Sansão. Sua descrição na Bíblia hebraica corresponde a um homem nazireu, filho de Manoá, nascido de mãe estéril (Juízes 13:2) e que liderou os israelitas contra os filisteus. Ele era da tribo de Dã e foi o décimo terceiro juiz de Israel, sucedendo a Abdon. Sansão foi juiz do povo de Israel por vinte anos, aproximadamente de 1177 a.C. a 1157 a.C. Distinguia-se por ter uma força sobre-humana que, segundo a Bíblia, era-lhe fornecida pelo Espírito do Senhor enquanto se mantivesse obediente ao senhor dos Exércitos. Subjugava facilmente seus inimigos e produzia feitos inalcançáveis por homens comuns, como rasgar um leão novo ao meio, enfrentar um exército inteiro e matar uma multidão de filisteus (depois de descobrir que foi enganado) para pegar suas roupas, pagando uma aposta. De acordo com Juízes 16, Sansão apaixonou-se por Dalila, uma mulher do povo filisteu, a qual o traiu entregando-o aos chefes de sua nação: 51 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br “E descobriu-lhe todo o seu coração, e disse-lhe: Nunca passou navalha pela minha cabeça, porque sou nazireu de Deus desde o ventre de minha mãe; se viesse a ser rapado, ir- se-ia de mim a minha força, e me enfraqueceria, e seria como qualquer outro homem. Vendo, pois, Dalila que já lhe descobrira todo o seu coração, mandou chamar os príncipes dos filisteus, dizendo: Subi esta vez, porque agora me descobriu ele todo o seu coração. E os príncipes dos filisteus subiram a ter com ela, trazendo com eles o dinheiro. Então ela o fez dormir sobre os seus joelhos, e chamou a um homem, e rapou-lhe as sete tranças do cabelo de sua cabeça; e começou a afligi-lo, e retirou-se dele a sua força. E disse ela: Os filisteus vêm sobre ti, Sansão. E despertou ele do seu sono, e disse: Sairei ainda esta vez como dantes, e me sacudirei. Porque ele não sabia que já o Senhor se tinha retirado dele. Então os filisteus pegaram nele, e arrancaram-lheos olhos, e fizeram-no descer a Gaza, e amarraram-no com duas cadeias de bronze, e girava ele um moinho no cárcere.” (Jz 16:17-21) Após ser cegado pelos filisteus, Sansão passou à condição de escravo. Morreu sacrificando-se para se vingar de seus 52 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br inimigos, após ter clamado a Deus pela restituição de sua força para um último e definitivo ato. O vazamento dos olhos era um castigo severo, um tanto em moda naquelas regiões. Existe um baixo relevo da cultura assíria, muito conhecido, que nos mostra um soberano vazando os olhos de três prisioneiros, um deles ajoelhado e os outros dois em pé, puxados pelo próprio rei para perto de si por meio de um fio preso aos lábios dos infelizes por argolas. Esse castigo desencorajava as fugas, sem causar maiores limitações ou dificuldades para trabalhos pesados. O Monte Sinai e a questão da hanseníase na Bíblia No livro de Êxodo, durante a épica migração de todo o povo hebreu do Egito para a Terra Prometida, que ficou estacionado por anos a fio na base do monte Sinai, Moisés elaborou não apenas o Decálogo (ou Os Dez Mandamentos), mas muitas outras determinações, regulamentos adicionais e códigos de conduta ao seu povo que ele estava guiando: leis e normas a respeito de escravos, de conflitos e suas soluções, de homicídios e seus castigos, de roubos, de seduções, de magia, a respeito de diversos assuntos de medicina, muitos cuidados e preceitos relacionados à higiene e à saúde de seu povo, no cenário grandioso do deserto, lembrando várias daquelas normas que ele conhecia muito bem no Egito, onde havia sido educado bem próximo à nobreza e aos sacerdotes. Não é, portanto, de espantar que apenas sobre a hanseníase haja capítulos inteiros e extensos 53 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br no livro de Levítico. E exatamente como no Egito e outros países da Mesopotâmia, Moisés deixou a responsabilidade da medicina sob os cuidados dos sacerdotes, que eram os levitas. A Bíblia, especialmente no Antigo Testamento, fala muitas vezes sobre o problema da hanseníase. A antiga e condenada expressão “pessoas leprosas” referia-se a uma doença da pele, abrangendo tipos diferentes de doenças. Uma pessoa com hanseníase era considerada imunda, conforme vemos nestes dois versos de Levítico 13, embora todo o capítulo só trate desse assunto: “Falou mais o Senhor a Moisés e a Arão, dizendo: Quando um homem tiver na pele da sua carne, inchação, ou pústula, ou mancha lustrosa, na pele de sua carne como praga da lepra, então será levado a Arão, o sacerdote, ou a um de seus filhos, os sacerdotes. E o sacerdote examinará a praga na pele da carne; se o pelo na praga se tornou branco, e a praga parecer mais profunda do que a pele da sua carne, é praga de lepra; o sacerdote o examinará, e o declarará por imundo.” (Lv 13:1-3) A doença era vista tal qual uma praga, descrita como enviada por Deus para repreender o povo desobediente: “Quando tiverdes entrado na terra de Canaã que vos hei de dar por 54 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br possessão, e eu enviar a praga da lepra em alguma casa da terra da vossa possessão,” (Lv 14:34). Os extensos capítulos com as instruções sobre a hanseníase, obviamente, serviam para conter uma doença considerada maligna, mesmo séculos antes de cientistas compreenderem como doenças se propagam. Sobretudo, concluímos hoje que o motivo para falar tanto sobre a hanseníase no Antigo Testamento trazia duas lições espirituais: 1. A importância da obediência. Entre as últimas orientações dadas por Moisés ao povo de Israel encontram-se estas palavras: “Guarda-te da praga da lepra, e tenhas grande cuidado de fazer conforme a tudo o que te ensinarem os sacerdotes levitas; como lhes tenho ordenado, terás cuidado de o fazer.” (Dt 24:8). 2. A necessidade de distinguir entre o limpo e o imundo. A chave ao entendimento desse significado da lepra aparece em Levítico 14:54-57: “54Esta é a lei de toda a praga da lepra, e da tinha, E da lepra das roupas, e das casas, E da inchação, e das pústulas, e das manchas lustrosas; Para ensinar quando alguma coisa será imunda, e quando será limpa. Esta é a lei da lepra.” Muitos estudos teológicos apontam que Deus usou coisas físicas – sejam doenças, questões de higiene, sejam diferenças entre animais – para ensinar princípios espirituais. Ao ser 55 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br descoberta a “imundícia da lepra”, não mediam esforço para se livrarem dela. Pessoas leprosas foram publicamente identificadas e afastadas da congregação para não contaminarem outros. Quando as tentativas de purificar as casas não foram bem- sucedidas, foi necessário derrubar casas inteiras para não deixar a praga se espalhar, como lemos nestes versos de Levítico 14: “Porém, se a praga tornar a brotar na casa, depois de arrancadas as pedras e raspada a casa, e de novo rebocada, Então o sacerdote entrará e examinará, se a praga na casa se tem estendido, lepra roedora há na casa; imunda está. Portanto se derribará a casa, as suas pedras, e a sua madeira, como também todo o barro da casa; e se levará para fora da cidade a um lugar imundo.” Nesse contexto também há o caso de Naamã, um comandante dos exércitos de Ben-Hadade II, no tempo de Jorão, rei de Israel. Ele é mencionado em Tanakh (um acrônimo utilizado dentro do Judaísmo para denominar seu conjunto principal de livros sagrados, cujo conteúdo é equivalente ao Antigo Testamento, porém com outra divisão, consistindo em 24 livros). Em nossa Bíblia sua história é narrada em 2 Reis 5: “E Naamã, capitão do exército do rei da Síria, era um grande homem diante do seu Senhor, e de muito respeito; porque por ele o Senhor dera livramento aos sírios; e era este homem herói valoroso, porém leproso. E saíram tropas da Síria, da terra de Israel, e levaram presa uma menina que ficou ao serviço da mulher de Naamã. E disse esta à sua senhora: Antes o meu senhor estivesse diante do profeta que está em Samaria; ele o restauraria da sua lepra. Então foi 56 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Naamã e notificou ao seu senhor, dizendo: Assim e assim falou a menina que é da terra de Israel. Então disse o rei da Síria: Vai, anda, e enviarei uma carta ao rei de Israel. E foi, e tomou na sua mão dez talentos de prata, seis mil siclos de ouro e dez mudas de roupas. E levou a carta ao rei de Israel, dizendo: Logo, em chegando a ti esta carta, saibas que eu te enviei Naamã, meu servo, para que o cures da sua lepra. E sucedeu que, lendo o rei de Israel a carta, rasgou as suas vestes, e disse: Sou eu Deus, para matar e para vivificar, para que este envie a mim um homem, para que eu o cure da sua lepra? Pelo que deveras notai, peço-vos, e vede que busca ocasião contra mim. Sucedeu, porém, que, ouvindo Eliseu, homem de Deus, que o rei de Israel rasgara as suas vestes, mandou dizer ao rei: Por que rasgaste as tuas vestes? Deixa-o vir a mim, e saberá que há profeta em Israel. Veio, pois, Naamã com os seus cavalos, e com o seu carro, e parou à porta da casa de Eliseu. Então Eliseu lhe mandou um mensageiro, dizendo: Vai, e lava-te sete vezes no Jordão, e a tua carne será curada e ficarás purificado. Porém, Naamã muito se indignou, e se foi, dizendo: Eis que eu dizia comigo: Certamente ele sairá, pôr-se-áem pé, invocará o nome do Senhor seu Deus, e passará a sua mão sobre o lugar, e restaurará o leproso. Não são porventura Abana e Farpar, rios de Damasco, melhores do que todas as águas de Israel? Não me poderia eu lavar neles, e ficar purificado? E voltou-se, e se foi com indignação. Então chegaram-se a ele os seus servos, e lhe falaram, e disseram: 57 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Meu pai, se o profeta te dissesse alguma grande coisa, porventura não a farias? Quanto mais, dizendo-te ele: Lava- te, e ficarás purificado. Então desceu, e mergulhou no Jordão sete vezes, conforme a palavra do homem de Deus; e a sua carne tornou-se como a carne de um menino, e ficou purificado. Então voltou ao homem de Deus, ele e toda a sua comitiva, e chegando, pôs- se diante dele, e disse: Eis que agora sei que em toda a terra não há Deus senão em Israel; agora, pois, peço-te que aceites uma bênção do teu servo.” (2 Reis 5:1-15). Dois pontos de destaques. Naamã volta a Eliseu com presentes caros, e Eliseu se recusa a aceitar. Naamã também renuncia ao seu ex-deus Rimom depois de ser curado por Eliseu e aceitar o Deus de Israel. Posteriormente, Naamã é mencionado em Lucas 4:27, no Novo Testamento, como um exemplo da vontade de Deus para salvar as pessoas que são consideradas pelos homens como menos piedosas e indignas da salvação. Como a Septuaginta (a Bíblia hebraica para o grego koiné, traduzida em etapas entre o III e o I século a.C. em Alexandria), o Antigo Testamento em grego usa a palavra baptizein para a imersão que cura o pagão Naamã, o que também ocorre no rio Jordão, onde Jesus Cristo foi batizado vários séculos depois. Os cristãos muitas vezes interpretam a história de Naamã como uma prefiguração do batismo cristão das nações pagãs. 58 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Voltando a Moisés e ao Monte Sinai, a legislação dos hebreus da época era violenta, visando manter o povo unido, disciplinado, com argumentos relacionados à vontade expressa de Deus com expressões como “...temerás o Senhor o teu Deus, porque sou o Senhor”. Mas muitas dessas leis e ordens não surtiram os efeitos esperados. A lei de talião, reinante em alguns países então, foi também introduzida pelo líder maior, Moisés, que certamente já conhecia o Código de Hamurábi. Algumas dessas severas normas lavradas em pedra muitos anos antes de Moisés existir passaram para o código dos hebreus quase com as mesmas palavras. O Código de Hamurábi e a severidade que inspirou os hebreus O Código de Hamurábi representa o conjunto de leis escritas, sendo um dos exemplos mais bem preservados desse tipo de texto oriundo da Mesopotâmia. Acredita-se que tenha sido escrito pelo rei Hamurábi, aproximadamente em 1700 a.C. Foi encontrado por uma expedição francesa em 1901 na região da antiga Mesopotâmia, correspondente à cidade de Susa, atual Irã. É um monumento monolítico talhado em rocha de diorito, sobre o qual se dispõem 46 colunas de escrita cuneiforme acádica, com 282 leis em 3.600 linhas. A numeração vai até 282, mas a cláusula 13 foi excluída por superstições da época. A peça tem 2,25 m de altura, 1,50 m de circunferência na parte superior e 1,90 m na 59 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br base. Hoje ele encontra-se preservado no Museu do Louve, em Paris. A sociedade era dividida em três classes, que também pesavam na aplicação do código: Awilum, homens livres, proprietários de terras, que não dependiam do palácio nem do templo; Muskênum, camada intermediária, funcionários públicos, que tinham certas regalias no uso de terras; Wardum, escravos, que podiam ser comprados e vendidos até que conseguissem comprar sua liberdade. Os pontos principais do código de Hamurábi eram: lei de talião (olho por olho, dente por dente), falso testemunho, roubo e receptação, estupro, família, escravos, ajuda de fugitivos. O objetivo desse código era homogeneizar juridicamente o reino e garantir uma cultura comum. No seu epílogo, Hamurábi afirma que elaborou o conjunto de leis “para que o forte não prejudique o mais fraco, a fim de proteger as viúvas e os órfãos” e “para resolver todas as disputas e sanar quaisquer ofensas”. É a coleção mais antiga de leis que se conhece, bem mais antiga que o Decálogo de Moisés e que as normas por ele traçadas no livro de Levítico, com o qual existem pontos de similaridade eventual. Há semelhanças também no Deuteronômio. Vejamos alguns pontos que indicam, como punição, amputações: Eu, Hamurábi, chefe designado pelos deuses, Rei dos Reis, que conquistei as cidades do Eufrates, introduzi a verdade e a equidade por todo o país e dei prosperidade ao povo. De hoje em diante: 60 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br “Se alguém apagar a marca de ferro em brasa de um escravo, terá seus dedos cortados” “Se um médico operar um patrício com faca de bronze e causou-lhe a morte, ou abriu-lhe a órbita do olho e causou- lhe a destruição, terá sua mão cortada” “Se um escravo disser ao seu dono: ‘Tu não és meu Senhor’, seu senhor provará que o é e cortará sua orelha” “Se um homem bater em seu pai, terá as mãos cortadas”... “Um olho por um olho, um dente por um dente. Trata-se de justiça sem piedade. Se um homem tira um olho de um patrício, também seu olho será tirado; se ele quebrou o osso de um patrício, seu braço será quebrado. As classes inferiores da sociedade também merecem compensações. Se ele tirou o olho ou quebrou o osso de um plebeu, ele deverá pagar uma mina de prata; se foi de um escravo, pagará metade de seu preço”... Nos cinco livros bíblicos escritos por Moisés há textos e palavras tão semelhantes que parecem pura cópia do Código de Hamurábi. Eis um deles em uma livre citação: “Se alguém ferir o olho de seu escravo ou de sua escrava e os deixar cegos de um olho, deixá-los-á ir livres pelo olho que lhes tirou”. “O que ferir qualquer de seus compatriotas, assim como fez, assim se lhe fará a ele; quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; qual for o mal que tiver feito, tal será o que há de sofrer”. A mesma linha de pensamentos encontramos no Êxodo 21:24: “Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé,". 61 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Vemos que tanto entre os babilônios como entre os antigos hebreus sempre houve muitas pessoas marcadas por crimes cometidos. No entanto, nem sempre a deficiência ou deformação física ou sensorial correspondiam a uma demonstração de castigo por feitos delituosos ou à “troca” por males cometidos a outrem. Reis, generais, líderes, soldados eram por vezes castigados por combaterem os grandes poderosos e levavam consigo pelo resto de seus dias as marcas impostas pelos vencedores, como aconteceu com Zedequias. Rei Zedequias, mais um caso de cegueira como punição Os livros Primeiro e Segundo de Reis relatam de forma contínua relatos de reis, a história de Israel, a morte de Davi, o reinado de Salomão, os reinos divididos e o cativeiro. Narram muitas histórias políticas e religiosas, incidentes que são evidenciados, mas pelo modo com que julgam os vários reis como maus e bons. Um deles é Zedequias (ou Sedecias), vigésimo e último rei de Judá, terceiro filho de Josias, cuja mãe era Hamutal. Quando foi constituído em rei vassalo, o rei babilônio Nabucodonosor mudou-lhe o nome deMatanias para Zedequias, tendo 11 anos o seu reinado, substituto ao destronado Joaquim, refém mantido na capital do reino babilônico. Além de mencionado na Bíblia (2 Reis, Crônicas e Jeremias), Zedequias é também citado em diversos documentos e crônicas da Babilônia que relatam os principais acontecimentos políticos, religiosos e guerreiros dos séculos VII e VI a.C. sob o ponto de vista babilônio. 62 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Mesmo sendo indicado e empossado por Nabucodonosor, porém, Zedequias, tempos depois, começou a conspirar contra o poderoso rei, fazendo contatos pessoais com diversos monarcas dos minúsculos países e também com o faraó egípcio. Após ter governado nove anos quebrou o juramento e, contrário à palavra de Deus por meio do profeta Jeremias, rebelou-se contra Nabucodonosor, encorajado pelo novo faraó egípcio Apries, que organizava uma expedição militar contra a Babilônia. Em 2 Crônicas 36 também dá destaque a isso: “Tinha Zedequias a idade de vinte e um anos, quando começou a reinar; e onze anos reinou em Jerusalém. E fez o que era mau aos olhos do Senhor seu Deus; nem se humilhou perante o profeta Jeremias, que falava da parte do Senhor. Além disto, também se rebelou contra o rei Nabucodonosor, que o tinha ajuramentado por Deus. Mas endureceu a sua cerviz, e tanto se obstinou no seu coração, que não se converteu ao Senhor Deus de Israel. Também todos os chefes dos sacerdotes e o povo aumentavam de mais em mais as transgressões, segundo todas as abominações dos gentios; e contaminaram a casa do Senhor, que ele tinha santificado em Jerusalém.” (2 Cr 36:11-14). 63 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br O rei Nabuconosor, bem informado das pequenas conspirações e traições, tomou providências enérgicas. Mandou todo o seu exército cercar Jerusalém e lá se plantou durante dois anos. Ocorrido em 586 a.C., está relatado em 2 Reis: “E sucedeu que, no nono ano do seu reinado, no mês décimo, aos dez do mês, Nabucodonosor, rei de babilônia, veio contra Jerusalém, ele e todo o seu exército, e se acampou contra ela, e levantaram contra ela trincheiras em redor. E a cidade foi sitiada até ao undécimo ano do rei Zedequias. Aos nove do mês quarto, quando a cidade se via apertada pela fome, nem havia pão para o povo da terra, Então a cidade foi invadida, e todos os homens de guerra fugiram de noite pelo caminho da porta, entre os dois muros que estavam junto ao jardim do rei (porque os caldeus estavam contra a cidade em redor), e o rei se foi pelo caminho da campina. Porém o exército dos caldeus perseguiu o rei, e o alcançou nas campinas de Jericó; e todo o seu exército se dispersou. E tomaram o rei, e o fizeram subir ao rei de babilônia, a Ribla; e foi-lhe pronunciada a sentença. E aos filhos de Zedequias mataram diante dos seus olhos; e vazaram os olhos de Zedequias, e o ataram com duas cadeias de bronze, e o levaram a babilônia.” (2 Reis 25:1-7). 64 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br A cidade fora toda destruída. Zedequias, ciente do perigo, fugiu pelos jardins dos palácios, mas foi preso e levado à presença do temido rei da Babilônia, em Ribla, ao lado de Jerusalém. Seus filhos ainda novos foram mortos em sua presença. Segundo todos os documentos, Zedequias teve seus olhos vazados ali mesmo. E quando o enorme exército movimentou-se de volta à Babilônia, levando as últimas levas de prisioneiros de Judá, Zedequias, carregado de ferros, cego e amargurado, empreendeu a mesma caminhada. O livro de Jeremias, 52, assim relata o fim de Zedequias: “E o rei de babilônia degolou os filhos de Zedequias à sua vista, e também degolou a todos os príncipes de Judá em Ribla. E cegou os olhos a Zedequias, e o atou com cadeias; e o rei de babilônia o levou para babilônia, e o conservou na prisão até o dia da sua morte.” (Jr 52:10-11). A medicina dos hebreus Pouco nos é relatado pelos diversos livros da Bíblia a respeito da medicina. Sabemos, sim, que a cirurgia ocorria basicamente para a circunstância da circuncisão, com uma lâmina 65 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br de sílex. Entre os hebreus, problemas ortopédicos sempre receberam tratamentos caseiros com bons resultados. Há uma citação em Ezequiel, capítulo 30, mostrando na cultura hebreia antiga plenos conhecimentos dos tratamentos indispensáveis para pernas ou braços quebrados: “Filho do homem, eu quebrei o braço de Faraó, rei do Egito, e eis que não foi atado para se lhe aplicar remédios, nem lhe colocarão ligaduras para o atar, a fim de torná-lo forte, para pegar na espada.” (Ez 30:21). Um dos juízes da tribo de Neftali, Tobias viveu no século VII a.C. Sua história nos é narrada pelo livro da Bíblia que leva o seu próprio nome, embora esse volume só se encontre hoje nas versões católicas – a Vulgata. Ele era um dos muitos hebreus desterrados em Nínive e procurava dedicar todos os seus dias à misericórdia, a fim de minorar os sofrimentos dos seus compatriotas; “alimentava os famintos, vestia os nus, e, com uma solicitude toda particular, sepultava os mortos e os que tinham perecido pela espada” (Tobias, 1:20). Fora denunciado ao rei, que o condenou à morte por causa desse ato. Tobias fugiu da cidade com sua família, mas após 45 dias da morte do rei, pôde retornar. Certa noite resolveu oferecer um banquete em sua casa aos homens piedosos de sua tribo. No meio do jantar, ao ficar sabendo de um hebreu morto à espada, correu e recolheu-o, para sepultá- lo secretamente na madrugada. Voltou a cear, mas com pranto e temor, lembrando-se de um oráculo que o Senhor tinha pronunciado pela boca do profeta Amós: “E tornarei as vossas festas em luto, e todos os vossos cânticos em lamentações; e porei pano de saco sobre todos os lombos, e calva sobre toda cabeça; e farei que isso seja como luto por um filho único, e o seu fim como dia de amarguras.” (Am 8:10) 66 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Criticado por seus vizinhos por manter aquela prática mesmo depois de condenado à morte, Tobias, temendo mais a Deus que ao rei, continuava a levar para sua casa os corpos daqueles que eram assassinados, que escondia e sepultava durante a noite. Assim está narrado em Tobias 2: 10. Ora, aconteceu que um dia, cansado desse trabalho, voltou para a sua casa e deitou-se ao pé do muro onde adormeceu. 11. Enquanto dormia, caiu-lhe dum ninho de andorinhas esterco quente nos olhos, e ele tornou-se cego. 12. Deus permitiu que lhe acontecesse essa prova, para que a sua paciência, como a do santo homem Jó, servisse de exemplo à posteridade. 13. Como havia sempre temido a Deus, desde a sua infância, e guardado seus mandamentos, ele não se afligiu (nem murmurou) contra Deus por ter sido atingido pela cegueira. 14. Mas perseverou firme no temor de Deus e continuou a dar-lhe graças em todos os dias de sua vida. Temendo estar próxima sua morte, mandou seu filho, que também se chamava Tobias, resgatar o pagamento de uma dívida na cidade de Ragés, no reino dos medos. Em sua viagem, ao lado de Azarias, que na verdade era o anjo Rafael disfarçado, Tobias 67 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br aprendeu dele que o fel de peixe poderia ser usado com sucesso como ingrediente para remédios – Tobias 11: 13.Tobias tomou então o fel do peixe e pô-lo nos olhos de seu pai. 14. Depois de ter esperado cerca de meia hora, começou a sair-lhe dos olhos uma belida branca como a membrana de um ovo. 15. Tobias tomou-a e a arrancou dos olhos de seu pai, o qual recobrou instantaneamente a vista. 16. E louvaram a Deus, ele, sua mulher e todos os que o conheciam. 17. “Bendigo-vos, Senhor Deus de Israel, dizia ele, porque depois de me terdes provado, me curastes: – eis que vejo o meu filho Tobias!” Cientificamente, Tobias pode ter sofrido de glaucoma, uma doença ocular causada principalmente pela elevação da pressão intraocular que provoca lesões no nervo ótico e, como consequência, comprometimento visual, podendo levar à cegueira. Mas fato é que o velho Tobias viveu até a idade de 102 anos sem maiores problemas com a vista. 68 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Em contrapartida, a cultura hebreia antiga, principalmente no livro de Levítico, com suas normas e leis relativas à santidade, à caridade e à justiça, recomendava a todo o povo hebreu não apenas respeitar os pais, guardar o sábado, evitar a idolatria, a vingança, o ódio, o furto, mas também que fossem respeitados os surdos e os cegos. Moisés, em suas orientações, recomenda no capítulo 19 desse livro: “Não amaldiçoarás ao surdo, nem porás tropeço diante do cego; mas temerás o teu Deus. Eu sou o Senhor.” (Lv 19:14) Recomendação repetida também no livro de Deuteronômio, dirigida aos hebreus, que garantissem a proteção e o bom tratamento aos cegos, colocando essas atitudes positivas diretamente ao lado e em pé de igualdade com o amor aos pais, a certeza da justiça, a condenação da idolatria, a garantia da propriedade e algumas outras práticas relacionadas a sexo e também a traições. Diz: “Maldito aquele que fizer que o cego erre de caminho. E todo o povo dirá: Amém.” (Dt 27:18). Apesar dessa forte ênfase nas várias normas de conduta do povo hebreu, o cego viveu praticamente por muitos séculos em absoluta degradação social, que só começou a ser combatida sob o reinado do príncipe Judah-ha-Nasin (135 a 217 d.C.), rabino redator e editor da Mishná, líder chave da comunidade judia durante a ocupação romana da Judeia. De acordo com o Talmude – um registro central das discussões rabínicas que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo –, Judah-ha-Nasin era da linhagem de Davi, daí o título nasi, o que significa príncipe. Confirmando a Bíblia, o Talmude narra a sabedoria de alguns mestres e mesmo de alguns juízes cegos, aos quais, dentre 69 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br as limitações de atuação a eles impostas, não era permitido ler o Torá (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), nem oficiar serviços religiosos públicos. Não tinham também nenhuma obrigação de ir até Jerusalém para suas orações, nem de cumprir obrigações religiosas que demandassem o uso da visão. O Talmude referia-se a esses sábios mestres e juízes cegos por meio de um apelido afetuoso, ou seja, de “sagui Nehor” (ricos em luz, ou videntes). Olhos direitos furados dos habitantes de Jabes Os hebreus compunham as tribos de Israel e as tribos de Judá. Israel especificamente controlava os amonitas, povo habitante a leste do rio Jordão, constantes inimigos em épocas bem anteriores aos anos de problemas com o cativeiro da Babilônia, ou seja, em épocas que beiram um milênio antes da Era Cristã. Naás (que na língua original significa “serpente”), rei de Amom, da antiga nação de Israel, entrou em batalha contra os israelitas no território de Jabes, ao sitiar a vila de Jabes-Gileade, e enviou pelos anciãos da vila uma séria proposta para que a população sitiada não fosse dizimada. Vejamos primeiro o que narra a Bíblia sobre esse fato. Sobretudo, recorremos à versão Vulgata, I Samuel, 11: 70 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br “1. Naás, o amonita, pôs-se em campanha e combateu contra Jabes, em Galaad. Os habitantes de Jabes disseram- lhe: Façamos aliança, e nós te serviremos. 2. Mas Naás, o amonita, respondeu-lhes: Só farei aliança convosco com a condição de vos furar a todos o olho direito, para impor assim um opróbrio a todo o Israel. 3. Concede-nos sete dias, disseram-lhe os anciãos de Jabes, para que enviemos mensageiros por toda a terra de Israel; se não houver quem nos ajude, entregar-nos-emos a ti. 4. Foram os mensageiros a Gabaa, cidade de Saul, e contaram isso ao povo, e todo o povo pôs-se a chorar em alta voz.” Os anciãos da vila sitiada conseguiram, no entanto, o apoio de um famoso herói da Bíblia, Saul, que conseguiu juntar, com base em violentas ameaças àqueles que não aderissem, um exército com 300 mil homens das tribos próximas de Israel e mais 30 mil das tribos de Judá. Com esse impressionante contingente bateu decisivamente o exército inimigo que apavorava aquele pacato povo. Tendo sido anteriormente ungido por Samuel como primeiro rei de Israel, foi nessa oportunidade que Saul foi confirmado como tal. A Bíblia não deixa claro se a ameaça de furar o olho direito das pessoas chegou a ser cumprida. Mas duas respeitadas fontes paralelas afirmam que sim. 71 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Em um dos Manuscritos do Mar Morto, que se acredita ser do século I a.C., há uma inserção logo antes de I Samuel 11:1: “Naás, rei dos filhos de Amom, oprimiu severamente os filhos de Gades e os filhos de Rubem, e ele furou todos os seus olhos direitos e lançou terror e pavor em Israel. Não sobrou nenhum dos filhos de Israel além do Jordão cujo olho direito não fosse furado por Naás, rei dos filhos de Amom; exceto que sete mil homens fugiram dos filhos de Amom e entraram em Jabes-Gileade”. (Bíblia Revista, 1985, volume 1, nº 3, p. 28). Essa mesma informação é validada na obra História dos Hebreus, de Flávio Josefo: “Um mês após Saul ser elevado ao trono, a guerra em que se encontrou empenhado, contra Naás, rei dos amonitas, conquistou- lhe grande fama. Esse príncipe, que havia muito causava grandes males aos israelitas que moravam além do Jordão, entrou no país deles com um poderoso exército, atacando várias cidades. Para tirar-lhes de vez a esperança de uma revolta, mandou vazar o olho direito de cada um, tanto os que fizera prisioneiros quanto os que se haviam entregado a ele voluntariamente. Fez isso porque os escudos cobriam a visão do olho esquerdo, e assim, nesse estado, não podiam mais servir-se das armas e tornavam-se incapazes de guerrear” (2004, pp. 249-250). Zacarias castigado por não ter acreditado em Gabriel Ainda no Antigo Testamento, mas já relacionado com o Novo, a primeira testemunha do Messias foi Zacarias, sacerdote 72 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br casado com Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus. Eram os dois considerados justos e harmoniosos em seu modo de viver e não tinham filhos, pois Isabel era estéril. Lucas 1 conta-nos: “E aconteceu que, exercendo ele o sacerdócio diante de Deus, na ordem da sua turma, Segundo o costume sacerdotal, coube-lhe em sorte entrar no templo do Senhor para oferecer o incenso. E toda a multidão do povo estava fora, orando, à hora do incenso. E um anjo do Senhor lhe apareceu, posto em pé, à direita do altar do incenso. E Zacarias, vendo-o, turbou-se, e caiu temor sobre ele. Mas o anjo lhe disse: Zacarias,não temas, porque a tua oração foi ouvida, e Isabel, tua mulher, dará à luz um filho, e lhe porás o nome de João. E terás prazer e alegria, e muitos se alegrarão no seu nascimento, Porque será grande diante do Senhor, e não beberá vinho, nem bebida forte, e será cheio do Espírito Santo, já desde o ventre de sua mãe. E converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor seu Deus, E irá adiante dele no espírito e virtude de Elias, para converter os corações dos pais aos filhos, e os rebeldes à 73 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br prudência dos justos, com o fim de preparar ao Senhor u)m povo bem disposto. Disse então Zacarias ao anjo: Como saberei isto? pois eu já sou velho, e minha mulher avançada em idade. E, respondendo o anjo, disse-lhe: Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado a falar-te e dar-te estas alegres novas. E eis que ficarás mudo, e não poderás falar até ao dia em que estas coisas aconteçam; porquanto não creste nas minhas palavras, que a seu tempo se hão de cumprir. E o povo estava esperando a Zacarias, e maravilhava-se de que tanto se demorasse no templo. E, saindo ele, não lhes podia falar; e entenderam que tinha tido uma visão no templo. E falava por acenos, e ficou mudo.” (Lc 1:8-22) Por ter duvidado do anjo Gabriel, Zacarias ficou mudo até o dia que tudo se cumprisse. Ele, um parente de Jesus, foi vítima de uma deficiência passageira. Segundo o evangelista Lucas, na verdade foi por castigo, corroborando a ideia de que as doenças e as deficiências estavam fortemente relacionadas a castigos ou penitências para pagamento de faltas ou pecados. Nove meses depois, nasceu João Batista, primo de Jesus e um dos personagens principais do Novo Testamento. Zacarias indicou numa tabuinha o nome que o menino deveria ter, tendo 74 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br suas primeiras palavras ouvidas novamente na circuncisão da criança, oito dias após o nascimento. Mefibosete: O primeiro caso de inclusão vem da Bíblia Optamos por encerrar este capítulo com a história de Mefibosete, filho de Jônatas e neto do rei Saul, que foi levado, pela babá, a uma cidade chamada Lo Debar (sem pasto), onde havia sequidão e miséria, e cujos habitantes eram todos mendigos ou doentes. Isso ocorreu após o atentado contra o reino de Saul, por parte dos filisteus, na sangrenta batalha no monte Gilboa, o que resultou na morte de Saul e seus três filhos. Sua história está registrada no livro bíblico 2 Samuel 9: “E disse Davi: Há ainda alguém que tenha ficado da casa de Saul, para que lhe faça benevolência por amor de Jônatas? E havia um servo na casa de Saul cujo nome era Ziba; e o chamaram à presença de Davi. Disse-lhe o rei: És tu Ziba? E ele disse: Servo teu. E disse o rei: Não há ainda alguém da casa de Saul para que eu use com ele da benevolência de Deus? Então disse Ziba ao rei: Ainda há um filho de Jônatas, aleijado de ambos os pés. E disse-lhe o rei: Onde está? E disse Ziba ao rei: Eis que está em casa de Maquir, filho de Amiel, em Lo-Debar. 75 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Então mandou o rei Davi, e o tomou da casa de Maquir, filho de Amiel, de Lo-Debar. E Mefibosete, filho de Jônatas, o filho de Saul, veio a Davi, e se prostrou com o rosto por terra e inclinou-se; e disse Davi: Mefibosete! E ele disse: Eis aqui teu servo. E disse-lhe Davi: Não temas, porque decerto usarei contigo de benevolência por amor de Jônatas, teu pai, e te restituirei todas as terras de Saul, teu pai, e tu sempre comerás pão à minha mesa. Então se inclinou, e disse: Quem é teu servo, para teres olhado para um cão morto tal como eu? Então chamou Davi a Ziba, moço de Saul, e disse-lhe: Tudo o que pertencia a Saul, e a toda a sua casa, tenho dado ao filho de teu senhor. Trabalhar-lhe-ás, pois, a terra, tu e teus filhos, e teus servos, e recolherás os frutos, para que o filho de teu senhor tenha pão para comer; mas Mefibosete, filho de teu senhor, sempre comerá pão à minha mesa. E tinha Ziba quinze filhos e vinte servos. E disse Ziba ao rei: Conforme a tudo quanto meu senhor, o rei, manda a seu servo, assim fará teu servo. Quanto a Mefibosete, disse o rei, comerá à minha mesa como um dos filhos do rei. E tinha Mefibosete um filho pequeno, cujo nome era Mica; e todos quantos moravam em casa de Ziba eram servos de Mefibosete. 76 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Morava, pois, Mefibosete em Jerusalém, porquanto sempre comia à mesa do rei, e era coxo de ambos os pés.” (2 Sm 9:1- 13) Sua história também está detalhadamente registrada no livro História dos Hebreus. No capítulo 6, Flávio Josefo, após contar que Davi derrotou Hadadezer, rei de Damasco e da Síria, em grande batalha, o rei dos bamatenianos procura a sua aliança e Davi subjuga os idumeus. Josefo descreve: “Depois de ajustar todas as coisas, Davi lembrou-se da aliança que fizera com Jônatas e das muitas provas que recebera de sua amizade, pois dentre outras excelentes qualidades tinha extrema gratidão. Indagou então se não restava algum filho de Jônatas, para com o qual pudesse mostrar a gratidão de que era devedor. Levaram-lhe um dos libertos de Saul, de nome Ziba, que sabia existir ainda um dos filhos desse príncipe, de nome Mefibosete, que era coxo porque a sua ama, ao saber da derrota na batalha e da morte de Saul e de Jônatas, ficara tão assustada que o deixara cair. Davi mandou procurá-lo com todo empenho. Pouco tempo depois, informaram-lhe que Maquir o educava na cidade de Labate, e mandou buscá-lo imediatamente. Quando Mefibosete chegou, prostrou-se diante do rei. Davi disse-lhe que nada temesse e esperasse dele um tratamento muito favorável: dar-lhe-ia de novo a posse de todos os bens que 77 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br pertenciam ao seu pai e ao rei Saul, seu avô, e queria que viesse sempre tomar as suas refeições com ele. Mefibosete, fora de si diante de tantas gentilezas, prostrou- se outra vez diante do rei, para humildemente agradecer- lhe. Davi ordenou a Ziba que fizesse chegar às mãos de Mefibosete os bens que lhe restituíra, que lhe trouxesse todos os anos a renda a Jerusalém e que o servisse com os quinze filhos e os vinte servidores que possuía. Assim, Davi tratou o filho de Jônatas como se fosse seu próprio filho, deu o nome de Mica a um dos filhos desse príncipe e tomou cuidado particular de todos os outros parentes de Saul e de Jônatas” (2004, pp. 304-305). Davi deu-lhe os pertences que um dia foram de Saul; apesar de neto de seu inimigo (Saul), era o filho de seu amigo (Jônatas) e Davi o tinha por comensal – que frequentava assiduamente sua casa e ali tomava suas refeições. Mefibosete foi o único a não ser enforcado, junto com outros sete descendentes de Saul (entre os quais estava seu tio, também chamado Mefibosete) por causa da promessa que Davi fez a Jônatas, seu amigo, de que suas sementes cresceriam juntas. 78 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br II – MILAGRES E UMA NOVA VISÃO DA PESSOA COM DEFICÊNCIA NO NOVO TESTAMENTO Novo Testamento é coleção de livros que compõem a segunda parte da Bíblia cristã, cujo conteúdo foi escrito após a morte de Jesus Cristo. Dirigido explicitamente aos cristãos, embora dentro da religião cristãtanto o Antigo Testamento (a primeira parte) quanto o Novo Testamento são considerados, em conjunto, Escrituras Sagradas. Os livros que compõem essa segunda parte da Bíblia foram escritos à medida que o Cristianismo era difundido no mundo antigo, refletindo e servindo como fonte para a teologia cristã. Essa coleção de 27 livros influenciou não apenas a religião, a política e a filosofia, mas também deixou sua marca permanente na literatura, na arte e na música. Entre eles estão os Evangelhos, um gênero de literatura do Cristianismo primitivo que conta a vida de Jesus, a fim de preservar seus ensinamentos ou revelar aspectos da natureza de Deus. O desenvolvimento do cânon do Novo Testamento deixou quatro evangelhos canônicos. Literalmente, Evangelho significa “boa mensagem”, “boa notícia” ou “boas novas”, derivando da palavra grega euangelion (eu, bom, angelion, mensagem), que também deu origem ao termo “evangelista” para a língua portuguesa. O 79 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Os livros de Mateus, Marcos, Lucas e João são os Evangelhos canônicos por serem os únicos que o Cristianismo primitivo admitiu como legítimos e hoje integram o Novo Testamento da Bíblia, sendo também os únicos aceitos pelos grupos que sucederam, como os evangélicos. As igrejas cristãs só aceitam esses quatro evangelhos como tendo sido inspirados e fazendo parte do Cânon. As igrejas cristãs, católica, ortodoxa e protestantes têm na Bíblia, incluindo os evangelhos, a base de sua fé e de sua prática. Os esmolantes da antiga Judeia Contextualizando geográfica e historicamente, a cidade da Judeia era a parte montanhosa do sul da Palestina, entre a margem oeste do mar Morto e o mar Mediterrâneo. Estende-se, ao norte, até as colinas de Golan e, ao sul, até a Faixa de Gaza, correspondendo aproximadamente à parte sul da Cisjordânia. Atualmente, os termos Judeia e Samaria são usados pelo governo israelense para designar a Cisjordânia, excluindo Jerusalém Oriental. A Organização das Nações Unidas utilizou-os em 1948 para se referir à parte sul da atual Cisjordânia. O Novo Testamento retrata uma Judeia muito viva, muito real, com seus costumes, atitudes, onde encontramos diversas considerações sobre pessoas com deficiências ou doenças muito sérias. Ainda eram fortes e enraizadas as crenças populares de que a maioria dos males era consequência da interferência de 80 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br maus espíritos ou como um castigo para pagamento de pecados antigos. Silva (1987) diz que “na Judeia Antiga, inclusive no tempo de Jesus Cristo, o destino dos deficientes era esmolar para conseguir sobreviver. Os cegos, os amputados, os paralíticos pelas mais variadas causas ficavam expostos nos caminhos, ruas e praças. E pelo que se lê, deviam ser apenas tolerados. Depreendemos isso das parábolas de Jesus, ou mesmo das atitudes do próprio Jesus para com eles, demonstrando que estava errada a forma como eram tratados, mesmo sem expressar esse modo de pensar” (p. 112). O Evangelho de Mateus, escrito para convencer os judeus de que Jesus era mesmo o Messias que estava por vir, enfatizando o Antigo Testamento e as profecias a respeito desse ungido, no capítulo 20, versículo 30, descreve a existência de dois desses pedintes: “E eis que dois cegos, assentados junto do caminho, ouvindo que Jesus passava, clamaram, dizendo: Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de nós!”. O Evangelho de Lucas, escrito para os gentios (não judeus), enfatizando a misericórdia de Deus através da salvação por Jesus Cristo, principalmente para os pobres e humildes de coração, também no capítulo 14, versículo 21, fica comprovado que o ambiente de exposição da pessoa para esmolar era um fato concreto: “E, voltando aquele servo, anunciou estas coisas ao seu senhor. Então o pai de família, indignado, disse ao seu servo: Sai depressa pelas ruas e bairros da cidade, e traze aqui os pobres, e aleijados, e mancos e cegos.” (Lc 14:21). A busca da cura 81 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Naquela época remota, sem o avanço da medicina ou ciência, os poucos recursos de cura eram a fé. Tudo era dramaticamente mais difícil. Podemos imaginar a aflição de parentes e amigos desses doentes ou de pessoas com deficiência que, ao saberem da existência ou da presença de um rabino, um sacerdote, um profeta com dom de cura nos arredores, procuravam alcançá-los por todos os meios. O Evangelho de Marcos (discípulo de Pedro) foi escrito para evangelizar principalmente os romanos e relata somente quatro das parábolas de Jesus, enfatizando principalmente suas ações. Nele, temos um registro no capítulo 2 quanto a isso: “E alguns dias depois entrou outra vez em Cafarnaum, e soube-se que estava em casa. E logo se ajuntaram tantos, que nem ainda nos lugares junto à porta cabiam; e anunciava-lhes a palavra. E vieram ter com ele conduzindo um paralítico, trazido por quatro. E, não podendo aproximar-se dele, por causa da multidão, descobriram o telhado onde estava, e, fazendo um buraco, baixaram o leito em que jazia o paralítico. E Jesus, vendo a fé deles, disse ao paralítico: Filho, perdoados estão os teus pecados. E estavam ali assentados alguns dos escribas, que arrazoavam em seus corações, dizendo: 82 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Por que diz este assim blasfêmias? Quem pode perdoar pecados, senão Deus? E Jesus, conhecendo logo em seu espírito que assim arrazoavam entre si, lhes disse: Por que arrazoais sobre estas coisas em vossos corações? Qual é mais fácil? dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus pecados; ou dizer-lhe: Levanta-te, e toma o teu leito, e anda? Ora, para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder para perdoar pecados (disse ao paralítico), A ti te digo: Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa. E levantou-se e, tomando logo o leito, saiu em presença de todos, de sorte que todos se admiraram e glorificaram a Deus, dizendo: Nunca tal vimos. E tornou a sair para o mar, e toda a multidão ia ter com ele, e ele os ensinava. E, passando, viu Levi, filho de Alfeu, sentado na alfândega, e disse-lhe: Segue-me. E, levantando-se, o seguiu.” (Mc 2:1- 14). Outro exemplo da busca de cura e sua realização por meio de um milagre de Jesus ocorreu em Jerusalém, onde havia bem ao lado do templo uma piscina ou tanque destinado à purificação de animais que eram sacrificados e que era por esse motivo conhecida como “piscina probática” (do grego probatikón, ou seja, 83 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br carneiro ou relativo a ovinos em geral). O Evangelho de João 5 narra: “Depois disto havia uma festa entre os judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. Ora, em Jerusalém há, próximo à porta das ovelhas, um tanque, chamado em hebreu Betesda, o qual tem cinco alpendres. Nestes jazia grande multidão de enfermos, cegos, mancos e ressicados, esperando o movimento da água. Porquanto um anjo descia em certo tempo ao tanque, e agitava a água; e o primeiro que ali descia, depois do movimento da água, sarava de qualquer enfermidade que tivesse. E estava ali um homem que, havia trinta e oito anos, se achava enfermo. E Jesus, vendo este deitado, e sabendo que estava neste estado havia muito tempo, disse-lhe: Queres ficar são? O enfermo respondeu-lhe: Senhor,não tenho homem algum que, quando a água é agitada, me ponha no tanque; mas, enquanto eu vou, desce outro antes de mim. Jesus disse-lhe: Levanta-te, toma o teu leito, e anda. Logo aquele homem ficou são; e tomou o seu leito, e andava. E aquele dia era sábado.” (Jo 5:1-9). 84 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Elgood (1951), estudioso dos usos e costumes dos povos do Oriente Médio, afirma que a medicina contida nos Evangelhos e mesmo nos Atos dos Apóstolos aceitava basicamente três tipos de causas para as doenças e para as muitas limitações e deficiências que afligiam os homens: o castigo pelos pecados; a interferência dos maus espíritos; as forças más da natureza, contra as quais o poder divino era o único remédio – ou pelo menos era assim considerado. Eis alguns pontos destacados dos Evangelhos que ilustram isso: João 5:14: “Depois Jesus encontrou-o no templo, e disse-lhe: Eis que já estás são; não peques mais, para que não te suceda alguma coisa pior.” João 9:2-3: “E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus.” Lucas 9:38-39: “E eis que um homem da multidão clamou, dizendo: Mestre, peço-te que olhes para meu filho, porque é o único que eu tenho. Eis que um espírito o toma e de repente clama, e o despedaça até espumar; e só o larga depois de o ter quebrantado.” A Bíblia é a fonte documental que mais revela a existência e como viviam as pessoas com deficiência naquela época. Por meio dos Evangelhos vemos “que o povo hebreu – e com ele quase todos os povos ao seu redor – estava acostumado não apenas à existência 85 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br das doenças e das deficiências que levavam o homem a uma vida de quase certa indigência ou total dependência, mas também à busca de soluções naturais e sobrenaturais, quando possível, para sua eliminação” (SILVA, 1987, p. 140). Os escritos dos evangelistas registram que Jesus fez mais de 40 milagres notórios, sendo pelo menos 21 deles relacionados a pessoas com deficiências físicas ou sensoriais. Optamos por não reproduzir todos aqui, mas si destacá-los como uma forma de registro: cego de nascimento (João 9:1-7), cego em Betsada (Marcos 8:22-26), cego Bartimeu de Jericó (Marcos 10:46 e Lucas 8:35-43), dois cegos de Jericó (Mateus 20:29-34), dois cegos de Cafarnaum (Mateus 9:27-31), cegos na Galileia (Mateus 15:29-31), cego e mudo (Mateus 12:22), mudo de Cafarnaum (Mateus 9:32- 34), mudos na Galileia, (Mateus 15:29-31), surdo-mudo na Decápole (Marcos 7:31-37), surdo-mudo de Cesareia, (Marcos 9:16-26 e Lucas 9:37-43), coxos na Galileia (Mateus 15:29-31), leprosos de Cafarnaum (Mateus 8:1-4, Marcos 1:40-45 e Lucas 5:12-14), dez leprosos (Lucas 17:13-19), hidrópico (Lucas 14:1- 6), mulher com espinha curvada (Lucas 13:11-13), homem de “mão seca” (Mateus 12:9-13, Marcos 3:1-6 e Lucas 6:6-11), paralítico servo do centurião (Mateus 8:5-13), paralítico em Betsaida (João 5:5-9), paralítico de Cafarnaum (Mateus 9:1-8, Marcos 2:1-12 e Lucas 5:17-26). Não é possível ter os registros estatísticos de quantas pessoas com deficiência existiam naquele período. Mas sabemos que eram muitas. Na região da Galileia, o lar de Jesus durante pelo menos 30 anos de sua vida, o Evangelho de Mateus, capítulo 15, 86 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br traz um relato que confirma essa grande quantidade de pessoas e os milagres de Jesus: “Partindo Jesus dali, chegou ao pé do mar da Galileia, e, subindo a um monte, assentou-se lá. E veio ter com ele grandes multidões, que traziam coxos, cegos, mudos, aleijados, e outros muitos, e os puseram aos pés de Jesus, e ele os sarou, De tal sorte, que a multidão se maravilhou vendo os mudos a falar, os aleijados sãos, os coxos a andar, e os cegos a ver; e glorificava o Deus de Israel. E Jesus, chamando os seus discípulos, disse: Tenho compaixão da multidão, porque já está comigo há três dias, e não tem o que comer; e não quero despedi-la em jejum, para que não desfaleça no caminho.” (Mt 15:29-32). A hanseníase no Novo Testamento Nas Escrituras, “lepra” não se restringe à doença conhecida hoje por esse nome, pois ela podia atingir não só os humanos, mas também roupas e casas (Le 14:55). No Antigo Testamento, principalmente em Levítico, há uma ampla descrição da lepra que, à medida que progride para seu estágio avançado, as lesões que inicialmente se desenvolveram soltavam pus, faziam cair os cabelos e as sobrancelhas, as unhas soltavam-se, 87 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br decompunham-se e caíam. Daí, os dedos, os membros, o nariz ou os olhos da vítima iam lentamente se consumindo. Por fim, nos casos mais graves, seguiam-se de morte. Que a “lepra” bíblica certamente incluía tal doença grave é evidente na referência feita por Arão a ela como sendo um mal em que a carne é “metade consumida” (Nm, 12:12). Nos dias de Eliseu, Naamã, o sírio, era “capitão do exército do rei da Síria, era um grande homem diante do seu SENHOR, e de muito respeito; porque por ele o SENHOR dera livramento aos sírios; e era este homem herói valoroso, porém leproso.” (2 Rs 5:1). Seu orgulho quase o fez perder a oportunidade de ser curado, mas, por fim, ele fez conforme Eliseu o instruíra, mergulhando no Jordão sete vezes, e “mergulhou no Jordão sete vezes, conforme a palavra do homem de Deus; e a sua carne tornou-se como a carne de um menino, e ficou purificado.” (2 Rs 5:14). Como resultado disso, tornou-se adorador de Deus. Não obstante, Geazi, ajudante de Eliseu, obteve gananciosamente um presente de Naamã em nome do profeta, representando assim mal a seu amo, transformando, na verdade, a benignidade imerecida de Deus em meio de ganho material. Por esse erro, Geazi foi afligido de lepra por Deus e tornou-se “leproso tão branco como a neve” (2 Rs 5:20- 27). Havia vários leprosos em Israel nos dias de Eliseu, registrados por quatro leprosos israelitas do lado de fora dos portões de Samaria, enquanto Eliseu estava na cidade. Nesse registro fica claro que Deus utilizou-se deles para fazer um milagre e expulsar o exército inimigo da cidade (2 Reis, 7): 88 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br “Então disse Eliseu: Ouvi a palavra do SENHOR; assim diz o SENHOR: Amanhã, quase a este tempo, haverá uma medida de farinha por um siclo, e duas medidas de cevada por um siclo, à porta de Samaria. Porém um senhor, em cuja mão o rei se encostava, respondeu ao homem de Deus e disse: Eis que ainda que o SENHOR fizesse janelas no céu, poder-se-ia fazer isso? E ele disse: Eis que o verás com os teus olhos, porém disso não comerás. E quatro homens leprosos estavam à entrada da porta, os quais disseram uns aos outros: Para que estaremos nós aqui até morrermos? Se dissermos: Entremos na cidade, há fome na cidade, e morreremos aí; e se ficarmos aqui, também morreremos. Vamos nós, pois, agora, e passemos para o arraial dos sírios; se nos deixarem viver, viveremos, e se nos matarem, tão- somente morreremos. E levantaram-se ao crepúsculo, para irem ao arraial dos sírios; e, chegando à entrada do arraial dos sírios, eis que não havia ali ninguém. Porque o Senhor fizera ouvir no arraial dos sírios ruído de carrose ruído de cavalos, como o ruído de um grande exército; de maneira que disseram uns aos outros: Eis que o rei de Israel alugou contra nós os reis dos heteus e os reis dos egípcios, para virem contra nós. Por isso se levantaram, e fugiram no crepúsculo, e deixaram as suas tendas, os seus cavalos, os seus jumentos e o arraial 89 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br como estava; e fugiram para salvarem a sua vida.” (2 Rs 7:1-7) Nesse episódio, havia da parte dos israelitas uma generalizada falta de fé nesse homem do verdadeiro Deus, assim como os judeus no território de Jesus não o queriam aceitar. Por isso, Cristo disse, em Lucas, 4:27: “E muitos leprosos havia em Israel no tempo do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado, senão Naamã, o siro.”. No Novo Testamento, muitos leprosos foram curados por Jesus e seus discípulos. Jesus, durante seu ministério galileu, curou um leproso, descrito em Lucas 5: “E aconteceu que, quando estava numa daquelas cidades, eis que um homem cheio de lepra, vendo a Jesus, prostrou-se sobre o rosto, e rogou-lhe, dizendo: Senhor, se quiseres, bem podes limpar-me. E ele, estendendo a mão, tocou-lhe, dizendo: Quero, sê limpo. E logo a lepra desapareceu dele. E ordenou-lhe que a ninguém o dissesse. Mas vai, disse, mostra-te ao sacerdote, e oferece pela tua purificação, o que Moisés determinou para que lhes sirva de testemunho. A sua fama, porém, se propagava ainda mais, e ajuntava-se muita gente para o ouvir e para ser por ele curada das suas enfermidades. 90 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Ele, porém, retirava-se para os desertos, e ali orava.” (Lc 5:12-16) Essa mesma passagem é descrita em Mateus 8:2-4 e em Marcos 1:40-45. Quando Jesus enviou os 12 apóstolos, Ele lhes disse, entre outras coisas: “Curai os enfermos, limpai os leprosos, ressuscitai os mortos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de graça dai.” (Mt 10:8). Mais tarde, quando percorria a Samaria e a Galileia, Jesus realizou outra grande cura registrada em Lucas 17: “E aconteceu que, indo ele a Jerusalém, passou pelo meio de Samaria e da Galileia; E, entrando numa certa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez homens leprosos, os quais pararam de longe; E levantaram a voz, dizendo: Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós. E ele, vendo-os, disse-lhes: Ide, e mostrai-vos aos sacerdotes. E aconteceu que, indo eles, ficaram limpos. E um deles, vendo que estava são, voltou glorificando a Deus em alta voz; E caiu aos seus pés, com o rosto em terra, dando-lhe graças; e este era samaritano. E, respondendo Jesus, disse: Não foram dez os limpos? E onde estão os nove? 91 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Não houve quem voltasse para dar glória a Deus senão este estrangeiro? E disse-lhe: Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou.” (Lc 17:11- 19). Vimos que, dos dez, apenas um deles, um samaritano, “voltou, glorificando a Deus com voz alta”, e se lançou ao solo diante dos pés de Jesus, agradecendo o que Ele tinha feito em seu favor. Vale lembrar que Cristo estava em Betânia, na casa de Simão, o leproso (Mt 26:6-13; Mr 14:3-9; Jo 12:1-8), quando Maria ungiu Jesus com o custoso óleo perfumado. Esse Simão era pai de três amigos próximos do Mestre, Lázaro, Marta e Maria. Não nos fica claro, mas certamente Simão fora curado por Jesus, pois os leprosos eram proibidos de se aproximar das pessoas saudáveis. Era a última Páscoa de Cristo aqui na terra, poucos dias antes de Sua morte. A ação de Jesus é demonstração exata de que um doente não deve ser estigmatizado pela sociedade, apesar dos costumes da época. Jesus fez várias demonstrações contrárias às leis judaicas, e essa foi uma das razões pelas quais os líderes judeus fizeram tanta questão que ele fosse condenado. Como muitas outras coisas na Bíblia, o melhor é tomarmos a mensagem de fundo – a de não estigmatizar – e deixarmos de lado a questão da plausibilidade do fato. 92 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br A baixa estrutura de Zaqueu Conhecido apenas por um episódio narrado no Evangelho de Lucas, Zaqueu era o responsável pela coleta de impostos em Jericó durante o jugo romano. Os coletores de impostos eram odiados pelos seus compatriotas judeus, que os viam como traidores trabalhando para o império romano. Em função de a lucrativa produção e exportação do bálsamo estar centralizada em Jericó, a posição de Zaqueu era muito cobiçada pelas riquezas que prometia. Essa é sua história, registrada em Lucas, 19: “E, tendo Jesus entrado em Jericó, ia passando. E eis que havia ali um homem chamado Zaqueu; e era este um chefe dos publicanos, e era rico. E procurava ver quem era Jesus, e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura, correndo adiante, subiu a uma figueira brava para o ver; porque havia de passar por ali. E quando Jesus chegou àquele lugar, olhando para cima, viu-o e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, porque hoje me convém pousar em tua casa. E, apressando-se, desceu, e recebeu-o alegremente. E, vendo todos isto, murmuravam, dizendo que entrara para ser hóspede de um homem pecador. 93 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br E, levantando-se Zaqueu, disse ao Senhor: Senhor, eis que eu dou aos pobres metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, o restituo quadruplicado. E disse-lhe Jesus: Hoje veio a salvação a esta casa, pois também este é filho de Abraão. Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido.” (Lc 19:1-10). Nos versículos iniciais, vê-se que Zaqueu chegou antes da multidão que estava ali para se encontrar com Jesus, o qual passava por Jericó a caminho de Jerusalém. Descrito como um homem de baixa estatura, o que costuma ser considerado “deficiência”, quando bastante fora da média, isso nos leva a acreditar que era tão evidente que chegou a ser registrado na Bíblia. Zaqueu então subiu num sicômoro para que pudesse ver Jesus. Quando Ele chegou ao lugar, olhou para os ramos e chamou Zaqueu pelo nome, pedindo-lhe que descesse, pois pretendia visitar a sua casa. “Dentre as possíveis coisas que se pode depreender dessa passagem bíblica está a de se considerar que foi graças à sua pequena estrutura que Zaqueu pôde vir a chamar a atenção de Jesus, posto que, ao subir num sicômoro (espécie de figueira, de oito a quinze metros de altura), veio ele a destacar-se dos demais. O fato de buscar superar uma ‘desvantagem’, digamos assim, uma ‘deficiência’, poderão dizer alguns, fez com que ele se destacasse e chegasse mais próximo até do que ousou almejar: até Jesus” (RANAURO e LIMA DE SÁ, 1999, p. 70). 94 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Paulo: Uma visão transformadora Por volta de 35 a.C., aproximadamente cinco anos após a crucificação de Jesus Cristo, Saulo, talvez com 30 anos, estava caminhando rumo a Damasco, levando as cartas do sumo sacerdote. Deus escolheu aquele momento para promover grande mudança em sua vida. Anos mais tarde, Saulo descreveria o acontecimento calmamente, dizendo apenas que Deus “Revelar seu Filho em mim, para que o pregasse entre os gentios, não consultei a carne nem o sangue,” (Gl 1:16). Nos Atos dos Apóstolos, o episódio é contado no mínimo três vezes em detalhes. Saulo estavase aproximando de Damasco quando uma luz brilhante vinda dos céus o envolveu e uma voz se dirigiu a ele, usando seu nome hebraico. Vejamos a narrativa bíblica em Atos 9: “E Saulo, respirando ainda ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote. E pediu-lhe cartas para Damasco, para as sinagogas, a fim de que, se encontrasse alguns deste Caminho, quer homens quer mulheres, os conduzisse presos a Jerusalém. E, indo no caminho, aconteceu que, chegando perto de Damasco, subitamente o cercou um resplendor de luz do céu. E, caindo em terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? 95 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br E ele disse: Quem és, Senhor? E disse o Senhor: Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões. E ele, tremendo e atônito, disse: Senhor, que queres que eu faça? E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e entra na cidade, e lá te será dito o que te convém fazer. E os homens, que iam com ele, pararam espantados, ouvindo a voz, mas não vendo ninguém. E Saulo levantou-se da terra, e, abrindo os olhos, não via a ninguém. E, guiando-o pela mão, o conduziram a Damasco. E esteve três dias sem ver, e não comeu nem bebeu. E havia em Damasco um certo discípulo chamado Ananias; e disse-lhe o Senhor em visão: Ananias! E ele respondeu: Eis- me aqui, Senhor. E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e vai à rua chamada Direita, e pergunta em casa de Judas por um homem de Tarso chamado Saulo; pois eis que ele está orando; E numa visão ele viu que entrava um homem chamado Ananias, e punha sobre ele a mão, para que tornasse a ver. E respondeu Ananias: Senhor, a muitos ouvi acerca deste homem, quantos males tem feito aos teus santos em Jerusalém; E aqui tem poder dos principais dos sacerdotes para prender a todos os que invocam o teu nome. 96 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Disse-lhe, porém, o Senhor: Vai, porque este é para mim um vaso escolhido, para levar o meu nome diante dos gentios, e dos reis e dos filhos de Israel. E eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome. E Ananias foi, e entrou na casa e, impondo-lhe as mãos, disse: Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, me enviou, para que tornes a ver e sejas cheio do Espírito Santo. E logo lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e recuperou a vista; e, levantando-se, foi batizado. E, tendo comido, ficou confortado. E esteve Saulo alguns dias com os discípulos que estavam em Damasco. E logo nas sinagogas pregava a Cristo, que este é o Filho de Deus.” (At 9:1-20) Em um primeiro momento, aquela voz parecia impossível. Jesus fora crucificado, amaldiçoado, não podia ser o Messias, e muito menos lhe falar em uma visão dos céus. No entanto, como ele mesmo estava tendo aquela visão, Saulo não tinha como negá- la. Fora uma experiência tão impactante que ele teve a absoluta certeza de que era uma “visão celeste” (Atos, 26:19) do verdadeiro Deus que ele vinha servindo, mas o qual tinha entendido de forma totalmente equivocada. Para Saulo, o impossível tornara-se realidade. A luz ofuscante tinha cegado Saulo, talvez para lhe mostrar a cegueira da violenta perseguição que ele tinha instigado. Mas, ao 97 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br lado de seus companheiros, Saulo seguiu viagem para Damasco, onde passou três dias orando naquela estranha escuridão – jejuando, separado de seu passado, sem saber o que o futuro lhe reservava. Finalmente, aproximou-se o cristão Ananias, um judeu devoto que também tinha aderido à nova fé, impôs as mãos sobre ele e escamas caíram de seus olhos, curando milagrosamente a sua cegueira. Saulo foi batizado e teve o seu nome trocado para Paulo, experimentando o poder do Espírito Santo que tinha encorajado Estêvão – o primeiro mártir cristão, cuja história fora ponto crucial de desenvolvimento dos primórdios da Igreja, cuja morte marcou o início de uma violenta perseguição, principalmente contra os fiéis helenistas, uma rebelião encabeçada por Paulo que fora consciente da execução de Estêvão. Agora chamado por Deus este mesmo Saulo se torna um apóstolo da nova fé para continuar e concluir o trabalho iniciado por Estêvão. Paulo de Tarso foi um dos mais influentes escritores do Cristianismo primitivo, cujas obras compõem parte significativa do Novo Testamento. A influência que exerceu no pensamento cristão, chamada de “paulinismo”, foi fundamental por causa do seu papel como proeminente apóstolo do Cristianismo durante a propagação inicial do Evangelho pelo império romano. A principal fonte para informações históricas sobre a vida de Paulo são as pistas encontradas em suas epístolas e nos Atos dos Apóstolos. Os Atos recontam a carreira de Paulo, mas deixam de fora diversas partes de sua vida, como a sua alegada execução em Roma. 98 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br III – CASTIGO E PECADO: PRINCIPAIS CONCEITOS BÍBLICOS SOBRE PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS E MUDANÇAS DE MENTALIDADES os relatos dos capítulos anteriores vimos que a discriminação contra pessoas com qualquer deficiência era aberta e manifesta nas próprias leis. Certos livros bíblicos, principalmente do Antigo Testamento, dão-nos algumas indicações de costumes ou de ambientes, além de apresentarem relatos – às vezes elaborados na própria época – sobre os preconceitos contra pessoas e mesmo contra animais defeituosos. Queremos fazer alguns questionamentos. Será que tais determinações vieram realmente da parte de Deus, pois, se tudo que há na face da terra é criação/permissão Dele, iria se contradizer, criando pessoas com deficiência para depois discriminá-las? Ou tais restrições partiram da própria mente humana? Ou seja, pautadas por costumes culturais e a falta de conhecimentos, principalmente científicos e teológicos, sobre as pessoas com deficiência? N 99 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Deficiência é fruto do pecado? Vimos ao longo do Antigo Testamento que por inúmeras vezes a deficiência está associada ao pecado. Deixando o contexto bíblico e mergulhando ainda mais na história, descobriremos que essa tendência de interpretação tem suas raízes nas religiões de Israel, quando nas sociedades primitivas era comum uma doença ou deficiência ser atribuída ou a uma magia hostil ou à violação de um tabu. Era tarefa do homem de Deus ou do sacerdote (também o médico da tribo) descobrir as causas (diagnose) e estabelecer o encaminhamento ou a magia certa para eliminar o mal (prognose). A diagnose podia ser interpretada por erro ou pecado cometido pela pessoa contra as normas sociais ou divindades e exigia uma reparação adequada. Essa visão se manteve no Antigo Testamento, além de uma segunda raiz da tendência teológica de atribuir a doença a um pecado humano, assim explicada por Kilpp (1990): “É a conhecida visão assim chamada Sabedoria israelita que vê uma intrínseca relação entre agir (causa) e acontecer (‘destino’; consequência), ou seja: os justos terão sucesso enquanto os ímpios, desgosto e infelicidade. Essa Sabedoria israelita, que, sem dúvida, está baseada em observações do povo, quer dar lições de vida. Ela tem, pois, função didática. Essa é, parece-me também a intenção de maldição condicional de Deuteronômio 28, quando anuncia quea desobediência aos mandamentos de Deus acarretará, entre outros males, também ‘loucura, cegueira e demência’. Nesses textos não se inverte, no entanto, a perspectiva, ou seja, não se afirma (ainda) que qualquer cego ou demente é um amaldiçoado por Deus ou, então, 100 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br um ímpio. Há reservas, nesses textos, em tirar essa conclusão – e com razão. Todo o livro de Jó (em parte também Eclesiastes) nos ensina que não é possível julgar doença e sofrimento como castigo de Deus por pecado cometido” (p. 43). Mesmo assim, no Antigo Testamento o conceito de puro e impuro tinha uma importância extraordinária na vida do fiel e chegava a ser causa de grande sofrimento por parte do povo simples, que não conhecia a Lei e devia seguir os rígidos ensinamentos e interpretações dos escribas e fariseus da cultura judaica. O conceito de impureza estava ligado a tudo que pertencia ao mundo dos falsos deuses e dos demônios, em oposição radical ao Deus verdadeiro, o único santo, contaminando pessoas e coisas, tornando-as inadequadas para o culto e mesmo para a vida social com o povo santo de Deus. Vendrame (2001) lembra que o livro de Levítico “consagra diversos capítulos para declarar o que é puro ou o que é impuro e ditar normas de purificação. As doenças (de modo todo particular as doenças de pele), os defeitos físicos, tudo o que se relaciona com a vida sexual (menstruação, esperma, nascimento), com o sangue e com a morte, contamina as pessoas; e, por sua vez, as pessoas, os animais e objetos contaminados contaminam tudo o que tocam. Quem se contamina, não importa se por sua culpa ou não, entra na área das potências maléficas, dos espíritos imundos, e não pode entrar em contato com Deus santo sem antes se purificar com abluções, banhos e mesmo com sacrifícios, conforme a gravidade da contaminação. Daí não haver muita diferença entre pecador, doente ou endemoninhado. Todos os impuros eram excluídos sem misericórdia do culto e da convivência na sociedade, o que equivalia a serem condenados à morte social e por vezes à morte física” (p. 112). 101 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br A lei do puro ou do impuro afastava o povo das práticas do ambiente pagão circundante, enquanto os profetas pregavam a pureza interior, afirmando que a beleza exterior não tinha valor. “Mas com o tempo as normas foram crescendo e as autoridades religiosas foram se tornando mais rígidas em sua aplicação. Precisou vir o Cristo para acabar com toda essa carga de normas e prescrições que infernizavam a vida, excluíam pessoas e desviavam a atenção dos verdadeiros valores e justiça de misericórdia. A palavra libertadora e sanante do Cristo purifica todas as coisas, restituindo ao ser humano a possibilidade de vê-las com o olhar de Deus Criador. Cristo disse que não é o que toca ou entra no homem, vindo de fora, que contamina, mas as intenções perversas que nascem em seu interior, que saem do coração do homem” (VENDRAME, 2001, pp. 112-113). Faremos uma contextualização geral do pecado, termo comumente utilizado em contexto religioso, descrevendo qualquer desobediência à vontade de Deus, às Leis Divinas. No hebraico e no grego comum, as formas verbais significam “errar”, no sentido de errar ou não atingir um alvo, ideal ou padrão. Em latim, o termo é vertido por peccátu. A perspectiva judaica considera a violação de um mandamento divino como um pecado, destacando-o como um ato e não um estado do ser. A humanidade encontra-se num estado de inclinação para fazer o mal (Gênesis 8:21) e de incapacidade para escolher o Bem em vez do Mal (Salmo 37:17). O Judaísmo usa o termo “pecado” para incluir violações à lei judaica que não são necessariamente uma falta moral. Por isso, Deus na sua misericórdia permitiu ao homem arrepender-se e ser perdoado. O 102 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Judaísmo defende que todo homem nasce sem pecado, pois a culpa de Adão não recai sobre os outros homens. Na visão católica, o pecado é uma palavra, um ato ou um desejo contrários à Lei eterna, causando por isso ofensa a Deus e ao seu amor. Essa Lei eterna, ou Lei de Deus, é expressa na lei natural, nos Dez Mandamentos, nos mandamentos de amor, entre outros. Logo, o pecado é um ato mal e “abuso da liberdade”, ferindo assim a natureza humana. Cristo, na sua morte na cruz, revela plenamente a gravidade do pecado e vence-o com a sua misericórdia. Há uma grande variedade de pecados e a repetição gera vícios, que são hábitos perversos que obscurecem a consciência e inclinam para o mal. Os vícios podem estar ligados aos chamados sete pecados capitais: soberba, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e preguiça. A doutrina católica ensina também que temos responsabilidade “nos pecados cometidos por outros, quando culpavelmente neles cooperamos”, distinguindo o pecado em três categorias: o pecado original, que é transmitido a todos os homens, sem culpa própria, devido à sua unidade de origem, que é Adão e Eva; o pecado mortal, que é cometido quando, ao mesmo tempo, há matéria grave, plena consciência e deliberado consentimento; além de destruir a caridade, priva-nos da graça santificante e conduz-nos à morte eterna do inferno, se dele não nos arrependermos sinceramente; o pecado venial, que, diferente em essência do pecado mortal, se comete quando se trata de matéria leve, ou mesmo grave, mas sem pleno conhecimento ou sem total consentimento, não quebrando a aliança com Deus, mas enfraquece a caridade, manifesta um afeto desordenado pelos bens criados, impede o progresso da alma no exercício das 103 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br virtudes e na prática do bem moral, merecendo penas purificatórias temporais no purgatório. O segmento protestante (ou evangélico) não crê em purgatório nem classifica os pecados como venial, mortal ou capital. Seguindo os preceitos bíblicos, o pecado está em todos os homens, pois “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus;” (Rm 3:23). A separação está entre o pecado cometido contra a carne (pode ser perdoado) e contra o Espírito Santo de Deus (o qual não pode ser perdoado – Lc 12:10). O pecado nada mais é do que a transgressão aos mandamentos de Deus. Pecado é um ato, pois “cada um é tentado, quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência. Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte.” (Tiago 1:14-15). Para que tenhamos salvação e desfrutemos da vida eterna, devemos tão somente crer e confessar Jesus Cristo como único e suficiente Salvador e Senhor, sendo necessário arrependimento, e não remorso (que nos leva a cometer novamente os mesmos erros). Vimos que nas três visões – judaica, católica e evangélica – nenhuma cita que uma deficiência é causa ou castigo por algum pecado. Também no próprio Antigo Testamento há em Deuteronômio 24:16 um versículo que desmistifica isso: “Os pais não morrerão pelos filhos, nem os filhos pelos pais; cada um morrerá pelo seu pecado.”. Flávio Josefo, em seu conceituado livro História dos Hebreus (2007), reforça isso: “As crianças não devem ser castigadas pelos pecados dos pais porque, sendo elas virtuosas, são dignas de serem lamentadas por terem nascido de pessoas viciadas 104 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br e não devem ser odiadas em razão das faltas cometidaspor seus genitores. Não se deve, do mesmo modo, imputar aos pais os defeitos dos filhos, e sim atribuí-los à má natureza destes, que os fez desprezar as boas lições que lhes deram aqueles e os impediu de aproveitá-las” (p. 187). Vendrame (2001) reforça o conceito de que pecado não tem relação com deficiência como uma forma de castigo ou punição: “O caso do rei Ezequias, mais vezes reportado e proposto à reflexão no AT, parece contradizer a convicção comum a respeito da relação entre pecado e doença, pois não se diz que ele tenha pecado para merecer aquela doença tão grave que o levara à morte, nem que ele se tenha reconhecido culpado. Aliás, a cura não veio pela oração ou pela palavra do profeta, mas pela aplicação de um emplastro de figos (Is 38:21). O mesmo se diga do pequeno Merib- baal, que ficou aleijado por uma queda (2 Sm 4:4), e do justo Tobias, que ficou cego apesar de toda a sua bondade (Tb 2:10). Mas também nesses casos se reconhece que tudo vem de Deus, bom e justo, que tem suas razões para permitir o mal e depois o curar, quer diretamente, quer pelos meios que ele mesmo criou e ensina como usar, para recuperar a saúde” (pp. 28-29). No Novo Testamento, em João 9, Jesus dá a palavra final, atestando que as deficiências não são fruto do pecado. “E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença. E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? 105 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus. Convém que eu faça as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. Tendo dito isto, cuspiu na terra, e com a saliva fez lodo, e untou com o lodo os olhos do cego. E disse-lhe: Vai, lava-te no tanque de Siloé (que significa o Enviado). Foi, pois, e lavou-se, e voltou vendo.” (Jo 9:1-7). Como a pessoa poderia ter pecado para originar uma cegueira se já nasceu com ela? Seria a cegueira, em si mesma, um castigo por pecados cometidos por seus pais ou pela própria pessoa em vidas passadas? A ideia de várias vidas, de várias encarnações era a crença de alguns de muitos daqueles povos primitivos que começavam a conhecer o Cristianismo. Só que, ainda hoje, muita gente, até mesmo cristãos, atribuem deficiências, doenças, fatalidades, mazelas a consequências de pecados dos antepassados, pautados por algumas passagens do Antigo Testamento, consequências diretas de pecados cometidos, como se fosse castigo. Conforme observam Ranauro e Lima de Sá (1999), “é bastante divulgada entre nós a visão de diversas religiões de influência oriental que sofrimentos, fatalidades são castigos, punições, ou situações a que se estaria exposto para purgação de culpas, da própria pessoa ou dos que a 106 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br cercam. As deficiências são encaradas, muitas das vezes, como uma cruz a ser carregada pelos que ‘as merecem’. O discurso bíblico, porém, não dá base para que se o afirme. É importante que se deixe claro que, com base na narrativa bíblica, existem deficiências e doenças que nenhuma relação têm com pecados cometidos” (p. 54). Jesus e o início da inclusão A vinda de Jesus foi o início de uma mudança geral de mentalidade pautada pela inclusão dos menos favorecidos ao Cristianismo. Logo de início, Jesus não aceitou pacificamente as leis do Antigo Testamento como a vontade de Deus, questionando- as por servirem para organizar a vida em sociedade, sendo também a Constituição do país. Jesus rejeitou as leis orais dos escribas, bem como as leis sobre pureza e impureza. Rejeitou-as porque elas estavam sendo usadas pelas elites dominantes (escribas, fariseus, sacerdotes) para explorar a população. Isso Jesus mostrou claramente em sua visita ao templo de Jerusalém, como vemos em Marcos 11: “E vieram a Jerusalém; e Jesus, entrando no templo, começou a expulsar os que vendiam e compravam no templo; e derrubou as mesas dos cambiadores e as cadeiras dos que vendiam pombas. E não consentia que alguém levasse algum vaso pelo templo. 107 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br E os ensinava, dizendo: Não está escrito: A minha casa será chamada, por todas as nações, casa de oração? Mas vós a tendes feito covil de ladrões. E os escribas e príncipes dos sacerdotes, tendo ouvido isto, buscavam ocasião para o matar; pois eles o temiam, porque toda a multidão estava admirada acerca da sua doutrina. E, sendo já tarde, saiu para fora da cidade.” (Mc 11:15-19). Segundo as leis da época, era por ali que pecadores e impuros teriam que passar se quisessem encontrar novamente Deus, pois a reconciliação com Deus só seria alcançada com a oferta regular de sacrifícios, dízimos e taxa ao templo, cujo montante chagava a quase um quarto da população. Mesmo que os sacerdotes jamais admitissem isso (já que se sentiam amparados pela lei, pela constituição), a verdade é que o perdão e a reconciliação com Deus estavam sendo usados como fonte de exploração. Jesus protesta contra isso, porque entende que a lei, se quer ser expressão da vontade de Deus, deve ajudar a promover uma vida plena para todos, e não servir como fonte legitimadora de exploração. Hofelmann (1990) observa que “Jesus denuncia o uso ideológico da lei. Os considerados justos e puros diante de Deus não raramente coincidiam com os representantes da elite dominante da sociedade. Os pobres e doentes, em compensação, faziam parte da categoria dos pecadores e impuros, ou seja, daquelas pessoas que estariam em situação irregular perante Deus. Mera coincidência? Certamente não! Dessa maneira a elite dominante procurava justificar a sociedade dividida entre 108 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br empobrecidos e privilegiados. Acompanharemos sua argumentação: os pobres seriam culpados de sua própria pobreza porque desobedecem às leis, ou seja, à vontade de Deus. Quanto às elites dominantes, elas estariam em situação privilegiada porque viviam numa relação correta da lei, ou seja, com a vontade de Deus. Jesus desarma esse raciocínio. Ao questionar a lei e escolher em nome de Deus os que viviam à margem, ele coloca o relacionamento das pessoas com Deus sobre outras bases e tira da elite dominante a possibilidade de legitimar a sociedade dividida em nome de Deus. Assim a divisão da sociedade pode ser percebida em suas verdadeiras causas, que são a exploração econômica e a opressão de alguns sobre os outros” (p. 61). Na Bíblia, as duas doenças mais frequentemente lembradas, a ponto de merecerem o nome de doenças bíblicas, com sentido próprio de males físicos, e terem uma conotação religiosa e simbólica, são a lepra, que era considerada o castigo de Deus por excelência, e a cegueira, que significava, muitas vezes, a incapacidade de perceber as maravilhas de Deus. Em especial a questão da cegueira, para entendermos melhor, Kilpp (1990) traz um bom esclarecimento histórico: “A velhice e a guerra, no entanto, não eram as causas principais de cegueira. Geralmente esta era consequência de oftalmias. Comum, na época, era uma espécie de conjuntivite grave, transmitida por moscas e agravada pela poeira e pela luz solar, que geralmente levava à perda da visão. Bastante frequente parece ter sido também o tracoma. A cegueirade recém-nascidos (cegos de nascenças) era comumente provocada por infecção gonocócica da mãe. Apesar de termos notícias de que, já no segundo milênio a.C., se fizessem na 109 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Mesopotâmia e no Egito operações na vista (talvez de cataratas) e se usassem substâncias antissépticas e adstringentes nos olhos para evitar cegueiras, verdade é que esta era considerada incurável. Uma eventual cura era tida por milagre, intervenção divina” (p. 40). É precisamente em favor dos leprosos e dos cegos que Jesus realiza o maior número de curas, logo no início de seu ministério, conforme narrado em Lucas 7: “E de todos se apoderou o temor, e glorificavam a Deus, dizendo: Um grande profeta se levantou entre nós, e Deus visitou o seu povo. E correu dele esta fama por toda a Judéia e por toda a terra circunvizinha. E os discípulos de João anunciaram-lhe todas estas coisas. E João, chamando dois dos seus discípulos, enviou-os a Jesus, dizendo: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro? E, quando aqueles homens chegaram junto dele, disseram: João o Batista enviou-nos a perguntar-te: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro? E, na mesma hora, curou muitos de enfermidades, e males, e espíritos maus, e deu vista a muitos cegos. Respondendo, então, Jesus, disse-lhes: Ide, e anunciai a João o que tendes visto e ouvido: que os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o evangelho. 110 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br E bem-aventurado é aquele que em mim se não escandalizar.” (Lc 7:16-23). Nos três anos de ministério, Jesus teve uma atenção toda particular para com aqueles que, seja pelo tipo de doença ou deficiência, seja por sua condição social, eram os mais abandonados, excluídos do convívio social e da participação no culto. Ele mesmo foi um excluído desde o primeiro dia de sua vida, quando seus pais não puderam encontrar lugar decente para seu nascimento (Lucas 2:7): “E deu à luz a seu filho primogênito, e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem.” (Lc 2:7). Em seguida teve de refugiar-se no Egito: “E, levantando-se, o expulsaram da cidade, e o levaram até ao cume do monte em que a cidade deles estava edificada, para dali o precipitarem.” (Lucas 4:29). Considerado perigoso e vigiado pelos responsáveis da ortodoxia, era excluído da sinagoga até por quem o defendesse. Caminhando para cumprir sua missão, Jesus não tinha onde reclinar a cabeça. Perseguido por ameaças de autoridades locais, foi expedida ordem de captura contra ele, que teve que se refugiar nas proximidades de Jerusalém e em Jericó. Ao ser preso e condenado pelas autoridades religiosas e civis, Jesus foi crucificado como um criminoso, junto com dois marginais, como indigno de viver, ele, autor da vida e que veio proclamar as boas novas, morreu na cruz sem ter quem o defendesse. Em seus 33 anos de vida em um corpo humano, Jesus se fez pobre, teve um amor todo especial pelos empobrecidos e excluídos, proclamando a bem-aventurança deles, não por serem 111 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br pobres e miseráveis, mas porque – com a vinda do reino de Deus, reino de justiça e solidariedade, onde todos possam sentir-se filhos de Deus, cidadãos livres e responsáveis – chegou para eles a hora da libertação: “E, levantando ele os olhos para os seus discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.” (Lc 6:20). Jesus já promovia a inclusão, ensinando pela palavra e pelo exemplo que não basta torcer pelos excluídos, é preciso ser solidário com eles. Temos aqui o primeiro grande rompimento histórico/religioso. Com a vinda de Jesus houve uma mudança profunda no conceito de Deus e do homem e do mútuo relacionamento entre eles. Se no Antigo Testamento eram intuições de místicos e profetas, muitas vezes consideradas utopia, concretizaram-se com a vinda de Jesus Cristo. Nele, Deus se manifestou não só como o Criador e soberano, mas, principalmente, como Pai misericordioso, chamando-nos para viver em comunhão com Ele e, entre nós, no amor e a solidariedade. Vendrame (2001) diz que “por isso não é de estranhar que os doentes ocupam um espaço privilegiado nos Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos. Cerca de uma quinta parte dos Evangelhos e dedicada à atividade de Jesus em favor deles e às discussões que se originavam a partir das curas que ele realizava. Dos 3.779 versículos dos quatros Evangelhos, 727 referem-se especificamente à cura de doenças físicas ou mentais e à ressurreição dos mortos. Além disso, há 165 versículos que tratam em geral a vida eterna e 31 referências gerais a milagres que incluem cura” (pp. 45-46). 112 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br O inconsciente coletivo e a desconstrução dos estigmas religiosos Voltando àquela época, no Antigo Oriente Médio e no Israel onde viveram os povos narrados no Antigo Testamento, as doenças e deficiências físicas eram bem mais frequentes do que imaginamos. Precárias condições higiênicas, sanitárias e medicinais eram causas de pestes, que reduziam drasticamente a população, e de doenças, que levavam a lesões físicas permanentes. As constantes guerras por conquista e retaliação por parte dos impérios mutilavam milhares de soldados e inocentes. Uma crônica alimentação pobre e deficiente que minava a resistência de grande parte da população. Quando, pois, se fala de doentes e pessoas com deficiência no contexto bíblico, não estamos lidando com casos isolados, mas com um problema social geral daqueles tempos difíceis. E, pelas condições de uma vida praticamente miserável, pessoas naquele estado estavam sempre destinadas à pobreza e à mendicância. Conceitos de que pessoas com deficiência são frutos de castigos, de pecados, de pessoas que precisam viver à base de caridade viajaram ao longo do tempo e dos séculos e chegaram até nós quase intocados. Como observam Ranauro e Lima de Sá, “muitas vezes, doenças ou deficiências são tratadas como advindas de uma ou outra procedência, considerando-se os espectadores capazes de julgar, ou pré-julgar, as situações como se fossem de todo o conhecimento sobre os casos. Muita confusão ou tristeza é 113 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br gerada na vida de pessoas deficientes ou doentes, cujas dificuldades têm outras origens que não são as ‘interpretadas’ por pessoas não conhecedoras de toda a situação” (p. 83). Esses pré-julgamentos que temos com relação às pessoas com deficiência viajam pelo nosso inconsciente coletivo, conceito criado pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung, que colaborou com Freud, escrevendo diversos artigos e livros de psicanálise, vindo, posteriormente, a discordar de algumas ideias de Freud e a criar sua própria abordagem, chamada Psicologia Analítica ou Psicologia Profunda ou Arquetípica. Inconsciente coletivo é o nível mais profundo da psique, que contém o acúmulo de experiências herdadas de espécies humanas e pré-humanas. Todas as experiências são universais – aquelas que são repetidas relativamente inalteradas por todas as gerações –, tornam-se parte da nossa personalidade. O nosso passado primitivo é a base da psique humana, dirigindo e influenciando o comportamento presente.Para Jung, o inconsciente coletivo era o repositório de experiências ancestrais poderosas e controladoras. Consequentemente, Jung ligava a personalidade de cada pessoa ao passado, não só à infância, mas também à história da espécie. Não herdamos essas experiências coletivas diretamente. Pegando um exemplo bíblico, não herdamos o medo de cobras, mas sim o potencial para temê-las. Estamos predispostos a nos comportar e a sentir como as pessoas sempre se comportaram e sentiram. Essa predisposição pode se tornar ou não uma realidade, dependendo das experiências específicas com as quais cada um de nós se depara na vida. 114 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Vale ressaltar que as experiências antigas contidas no inconsciente coletivo manifestam-se por temas ou padrões recorrentes que Jung chamou de arquétipos. Ele também utilizou o termo imagens primordiais. Existem muitas dessas imagens de experiências universais, tantas experiências humanas que são comuns a todos. Repetindo-se na vida de várias gerações subsequentes, os arquétipos são gravados na nossa psique e expressos nos nossos sonhos e fantasias. Trazendo isso para o nosso estudo, não podemos fugir da questão do preconceito que algumas vezes se instala como fruto de interpretações do discurso religioso, que também são raízes de nosso inconsciente coletivo, que apontaram para tempos remotos de origens do nosso imaginário cultural-religioso, o que, muitas vezes, influencia nossos conceitos e preconceitos com relação à doença e às pessoas com deficiência, estabelecendo ligações inconscientes com o castigo e com o pecado divinamente punido. Cabe a nós hoje, como seres capazes de refletir, com muito mais conhecimentos científicos, humanitários e religiosos acumulados, compreender a influência dessas construções históricas em nosso imaginário religioso, discernir seu reflexo nos nossos julgamentos e em nossas atitudes com relação a essas pessoas. Ranauro e Lima de Sá (1999) observam que “há, em determinadas comunidades cristãs, muita ênfase na divulgação de episódios em que as pessoas conseguiram alterar circunstâncias negativas, difíceis, pelo tanto que exerceram ou exercem sua fé. A ocorrência dessas possibilidades não implica que todas as circunstâncias negativas ou difíceis devam ou possam ser alteradas, pois, a ser assim, deixariam de existir” (p. 86). 115 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Muitas vezes, ao vermos uma pessoa com deficiência em nossas comunidades cristãs, já vamos “profetizando” que Deus pode fazer uma grande obra na vida dela, como se a exigência da cura ou milagre em relação a determinadas deficiências ou doenças, no fundo, pudesse esconder uma discriminação e a nossa dificuldade em aceitar o outro como ele é. Mas esquecemos que cada um é exatamente como Deus criou. Que, como cristãos, temos que receber, acolher e integrar nossos irmãos como eles são. Não podemos esquecer que qualquer pessoa, tendo uma doença, uma deficiência, ou seja, o problema que for, é uma pessoa possuidora de uma alma a alcançar a Salvação em Cristo Jesus! O primeiro passo para termos uma Teologia da Inclusão será rever nossos próprios conceitos. Rever a visão que temos das pessoas com deficiência, abandonando conceitos de coitadinhos, vítimas, a deficiência como consequência de castigos ou pecados. Abandonar a posição que nós cristãos sempre tivemos de assistencialistas ou piedade para com essas pessoas, apoiados em nossas caridades, trazendo-as para serem parte de nossas comunidades cristãs em total igualdade. Sobretudo, temos que cada vez mais identificar e eliminar do nosso meio os estigmas religiosos! 116 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br IV – O “CAMINHAR” DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA DENTRO DO CATOLICISMO uando planejamos realizar um estudo sobre as pessoas com deficiência ao longo do Cristianismo, entendemos que, para um trabalho histórico perto do completo, precisaríamos focar em todas as igrejas que mantêm a fé cristã, ou seja, o protestantismo e o catolicismo, que abordaremos neste capítulo. A história da Igreja católica remonta ao início do Cristianismo, cerca de dois mil anos atrás. Depois da morte de Jesus, o Cristianismo se disseminou pelo Oriente Médio e pela Europa. Naquela época, o império romano dominava aquelas regiões. Inicialmente os romanos tinham a sua própria religião e com frequência perseguiam os cristãos, que usavam as catacumbas como ponto de encontro para seus rituais. Com sua expansão, no século IV o Cristianismo já tinha conquistado tantos adeptos que passou a ser a principal religião romana. A parte ocidental do império romano se desintegrou no século V, mas o Cristianismo permaneceu forte ali. Os bispos (dirigentes da Igreja) de Roma adquiriram poder cada vez maior e se tornaram conhecidos como papas. Contudo, os bispos da parte oriental do império (chamada império bizantino) discordaram desses papas. As metades oriental e ocidental da Igreja cristã acabaram por se separar em 1054. A metade oriental tornou-se a Q 117 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Igreja ortodoxa e a metade ocidental tornou-se a Igreja católica apostólica romana. Comandada por Roma, a Igreja católica foi a mais poderosa organização da Europa ocidental durante séculos. No século XVI, no entanto, diversas pessoas começaram a se afastar dela para formar novas Igrejas cristãs. Esse movimento, chamado Reforma, gerou o protestantismo. Os países do norte da Europa tornaram- se predominantemente protestantes, mas o sul do continente continuou católico na maior parte. Para evitar que o protestantismo se espalhasse, surgiu o movimento da Contrarreforma, ou Reforma católica. Enquanto isso, os colonizadores europeus, principalmente espanhóis e portugueses, levaram o catolicismo para a América. Os missionários (pessoas que trabalham para disseminar sua religião) também ajudaram a espalhar o catolicismo pelo mundo. O catolicismo é o ramo mais antigo e maior do Cristianismo. Existem mais de um bilhão de católicos no mundo inteiro. A Igreja católica apostólica romana é representada pelo papa, que a dirige a partir do Vaticano, um país que fica dentro da cidade de Roma, na Itália. Essa Igreja tem uma grande estrutura espalhada pelo mundo, organizada com cardeais, patriarcas, arcebispos, bispos, presbíteros ou padres e diáconos, que formam o clero. Os praticantes da religião são chamados fiéis. Como todos os cristãos, os católicos baseiam suas crenças na Bíblia, um livro sagrado que engloba a Torá dos judeus e começa com a história da criação do mundo por Deus. A Bíblia cristã tem uma segunda parte, chamada Novo Testamento, escrita 118 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br por cristãos. Os católicos acreditam que Jesus é o Filho de Deus e também atribuem grande importância à virgem Maria, mãe de Jesus. Ao contrário dos protestantes, os católicos rezam para Maria e também para vários santos — homens e mulheres que eles consideram ter proximidade especial com Deus. A historiografia de Otto Marques da Silva Quem quer ingressar ou já atua com pessoas com deficiência (ou é uma delas!), tem de, obrigatoriamente, ler A Epopeia Ignorada – A pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de hoje, de autoria de Otto Marques da Silva. Impressa em 1986, publicada pelo Centro São Camilo de Desenvolvimentoem Administração de Saúde – CEDAS, é uma leitura obrigatória, mas, infelizmente, o livro não teve novas edições. O interessado precisará procurá-lo em bibliotecas ou com amigos que disponham da obra. Com 470 páginas, cinco anexos, dezessete ilustrações, o livro está dividido em duas partes. A primeira foca a visão, conceitos das deficiências e das pessoas com deficiência ao longo da Pré-História, História Antiga (egípcios, hebreus, gregos e romanos), advento do Cristianismo, Império Bizantino, Idade Média, História Moderna e História Contemporânea, chegando a 1981 – Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Na segunda parte, Silva escreve sobre as causas de marginalizações das pessoas com deficiência, o significado da integração social (política em voga na época!), a questão da adequação pessoal como objetivo último da 119 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br reabilitação, o preparo para a vida de trabalho, as equipes de reabilitação, a avaliação e o controle das atividades dos centros e programas de reabilitação. E tudo isso ele escreve com muita propriedade, pois, há mais de cinco décadas, Otto é especialista em inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Já foi diretor e/ou membro de várias instituições e entidades nacionais e internacionais. Dessa obra queremos destacar o terceiro capítulo, “O Cristianismo, o Império Bizantino e a Idade Média em face das pessoas deficientes”. Em 80 páginas, Silva traz informações detalhadas das relações entre a Igreja católica e as pessoas com deficiência. Logo na introdução, ele observa: “Houve, com a implantação e solidificação do Cristianismo, um novo e mais justo posicionamento quanto ao ser humano em geral, ressaltando a importância devida a cada criatura como um ser individual e criado por Deus, com um destino imortal – o que, sem dúvida, muito beneficiou os escravos e todos os grupos de pessoas sempre colocadas de lado e menosprezadas na sociedade romana, tais como os portadores de deficiências físicas e mentais, antes considerados como meros pecadores ou pagadores de malefícios feitos em vidas passadas, inúteis, possuídos por maus espíritos, ou simplesmente como seres que, em muitos casos, deveriam continuar sendo eliminados ao nascer, segundo as leis e costumes de Roma recomendavam havia séculos. No entanto, a História nos conta que as conquistas do Cristianismo não aconteceram nem com facilidade nem com tranquilidade. Problemas graves e muito sérios surgiram desde os primeiros anos e mantiveram-se por três séculos” (p. 154). 120 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br As pessoas com deficiência recebiam dois tipos de tratamento quando se observa a História Antiga e a Medieval: a rejeição e eliminação sumária, de um lado, e a proteção assistencialista e piedosa, de outro. Já no período da Idade Média, entre os séculos V e XV, encontramos algumas informações e registros sobre pessoas com deficiência. No Império Bizantino, uma das mais surpreendentes características da vida em Constantinopla foi a aplicação prática que sua população deu à caridade cristã, insistente e aguerridamente defendida pela Igreja católica. Hussey, em sua obra Cambridge Medieval History, descreve sobre os miseráveis no “Reino de Deus”: “Os benefícios espirituais da prestação da caridade naturalmente dependiam da existência de uma classe à qual essa caridade poderia ser dedicada. Os ‘’pobres’, portanto, eram uma parte integrante da sociedade. Ao pedirem esmolas os mendigos gritavam: ‘O paraíso bate à sua porta’ ... e esmolas eram dadas com liberalidade. Mendigar era uma profissão reconhecida, da qual, como de outras profissões, os intrusos eram expulsos. Os pontos mais valiosos eram preservados ciumentamente. Cada átrio de igreja era cercado por mendigos, cuja inoportunidade garantiria um suprimento liberal para seu pão de cada dia. Mas a caridade organizada transcendia de longe os limites da ajuda meramente casual. A cidade era com justiça famosa pelos seus hospitais, seus orfanatos e seus abrigos para idosos e para carentes”. A coisa era tão bem organizada nessas instituições que a família imperial e a nobreza mais refinada tomavam parte ativa. As mulheres dedicavam-se ativamente à ajuda aos doentes, inclusive algumas delas chegaram mesmo a adquirir o hábito de visitar as prisões, que eram os ambientes mais degradantes da 121 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br miséria humana na esplendorosa capital. Como auxiliadora cabia à Igreja católica a principal responsabilidade por essas organizações várias que, segundo Silva (1986), “ressalte-se que somas fabulosas, levantadas em banquetes ou por meio de doações e legados, eram continuamente destinadas aos cofres da Igreja para distribuição aos pobres e, segundo os historiadores, essa distribuição era sempre feita com justiça, conhecimento de causa e pontualidade dignos de nota” (p. 172). As relações históricas da Igreja católica com os pobres, os doentes e as pessoas com as mais variadas deficiências foram objeto de uma norma em pleno século VI, norma essa que pretendia assisti-los e ao mesmo tempo circunscrever seus movimentos a um determinado território. Um documento escrito por P. Guérin, Les Conciles Généraux et Particuliers (Savaète, Paris, 1868), destaca que foi o concílio de Tours, realizado nos anos 566 e 567, que decretou pelo seu cânone quinto o seguinte: “Cada cidade alimentará os seus pobres. Os sacerdotes da zona rural e os habitantes também alimentarão seus pobres, a fim de impedir os mendigos vagabundos de correr as cidades e as províncias”. Posteriormente no concílio de Lyon, no ano de 583, aprovou-se, em seu último cânone, a seguinte medida relacionada aos hansenianos: “Os leprosos de cada cidade e de seu território serão alimentados e abrigados às expensas da Igreja, aos cuidados do bispo, a fim de lhes impedir a liberdade para serem vagabundos em outras cidades”. As relações entre pecado, doenças, deficiências como consequência de punição vinda da parte de Deus continuaram a existir após o Antigo Testamento. Alguns registros entre os anos 122 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br 500 até o século XVI, durante toda a Idade Média, o mundo europeu perdeu muito dos cuidados básicos com a saúde e com a higiene na imensa maioria das cidades, um pouco em decorrência do seu contínuo crescimento. A explosão demográfica fez surgirem aglomerados urbanos, sem qualquer infraestrutura ou recurso voltado para a saúde de sua população. Por séculos, os habitantes das cidades medievais viveram sob o permanente receio das epidemias ou das doenças mais sérias. A falta de conhecimentos científicos, medicinais, sanitários, planejamento urbano, dentre outros motivos, abriu caminhos para as epidemias, as doenças mais graves, as incapacidades físicas, os sérios problemas mentais e as malformações congênitas serem considerados como verdadeiros sinais da ira celeste e taxados como “castigos de Deus”. Eram diversas epidemias de gravíssimas consequências, grandes incidências de males não controlados pelos médicos com quase nenhum recurso. Hanseníase, peste bubônica, difteria, influenza e outros males devastaram diversas vezes a Europa durante os vários séculos da Idade Média e deixaram um significativo saldo de pessoas que sobreviveram. Muitas delas conseguiram sobreviver, mas com sérias sequelas, para verem o resto de seus dias passaremem situações de extrema privação e quase absoluta marginalidade. Fazendo suas observações sobre os hospitais em face das pessoas com deficiência nos séculos XIV e XV, Silva (1986) considera que, apesar dos tropeços sem fim e da heterogeneidade das situações encontradas nos diversos países europeus que se formavam com o gradativo esfacelamento do sistema feudal, o 123 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br atendimento médico de um modo geral progredia – o que seguramente muito significou para pessoas que sofriam as consequências de males limitantes. Os hospitais da Idade Média existiam mais para o cuidado do que para a cura das pessoas. Menos para alívio do corpo e de suas dores do que para assistência da alma e sua preparação, considerada indispensável pelas religiosas que dentro deles trabalhavam, para a vida futura. Silva (1986) conclui que, “na verdade, não havia na quase totalidade dos hospitais medievais qualquer conhecimento científico ou preparo técnico, mas outros ingredientes, tais como o amor ao próximo e a fé na outra vida, na vida após a morte. Parece, todavia, que médicos treinados em universidades, principalmente as inglesas, eram muito mais comuns de se encontrar nos hospitais da época do que se poderia supor. Dessa forma podemos também imaginar que, apesar dos relatos transmitidos pelos historiadores menos avisados, todos os pacientes internados em hospitais europeus de certa qualidade, seja por doença, seja por pobreza atroz, seja por deficiências muito graves, recebiam mais cuidado profissional do que o imaginado. De outra parte pode-se também afirmar que ao final da Idade Média as sociedades existentes na Europa deram seus primeiros passos no sentido do reconhecimento de sua responsabilidade em face dos pobres em geral. Inseridos no contexto estavam todos aqueles que eram, além de pobres, deficientes e impossibilitados de se sustentar” (SILVA, 1986, p, 221). Ao final da Idade Média, século XV, os problemas específicos das pessoas com deficiência ainda não eram nem entendidos nem atendidos com propriedade, uma vez que elas faziam parte de um grupo bem maior e de uma problemática mais 124 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br séria ainda, ou seja, aquela representada pelos pobres, pelos enfermos, pelos mendigos. Para o historiador Otto Marques da Silva, “na penosa história do homem com deficiência começava a findar uma longa e muito obscura etapa. Iniciava a humanidade mais esclarecida, os tempos conhecidos como ‘Renascimento’ – época dos primeiros direitos dos homens postos à margem da sociedade, dos passos decisivos da medicina na área de cirurgia ortopédica e outras, do estabelecimento de uma filosofia humanista e mais voltada para o homem, e também da sedimentação de atendimento mais científico ao ser humano em geral. A Igreja católica dos primeiros cinco séculos sempre procurou demonstrar pelos mais diversos meios que essas restrições ao sacerdócio davam- se para benefício maior da Igreja e não por considerar as pessoas deficientes como indignas ou manchadas pelo pecado. Ressalte-se também que quando as deficiências ou males incapacitantes ocorriam "após a ordenação sacerdotal", a Igreja usava do máximo de benevolência e em geral não impedia o sacerdote de suas funções básicas” (SILVA, 1986, pg. 167). As deficiências físicas como impedimento ao sacerdócio cristão Existem os documentos intitulados “Cânones Apostólicos”, um conjunto de decretos eclesiásticos antigos relativos ao governo e à disciplina da Igreja Cristã Primitiva, encontrados pela primeira vez como último capítulo do oitavo livro das Constituições Apostólicas e pertencentes ao gênero das Ordens da 125 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Igreja Católica. Elaborados no correr dos três primeiros séculos da Era Cristã, existem restrições claras ao sacerdócio para aqueles candidatos que tinham certas mutilações. Para a Igreja surgiam problemas sérios, durante esses três ou quatro primeiros séculos, principalmente com mutilações de ordem sexual. Na verdade, mutilações sexuais eram muito comuns, seja como pretexto para “fuga do pecado”, seja por castigos impostos pelos tiranos daqueles distantes séculos. Recorrendo novamente ao documento Les Conciles Généraux et Particuliers (Savaète, Paris, 1868), seu autor, P. Guérin, diz que, tentando disciplinar a questão e esclarecer os bispos quanto à seriedade do problema, o cânone 21º ao 24º indica: “Que não se coloque dificuldade em sagrar como bispo, se o candidato for considerado capaz, aquele que for eunuco por natureza, ou que se tornou eunuco por malícia dos homens ou por crueldade dos tiranos”. Segundo Silva (1986), logo a seguir o cânone 22º declara como “irregulares” os casos de sacerdotes que se automutilavam, porque “eles são homicidas de si mesmos”. Para casos de sacerdotes que tomavam essas medidas, o cânone 23º castiga com sua deposição, seu afastamento das funções sacerdotais. Finalmente o cânone 24º “priva da comunhão pelo período de três anos o leigo que fez a automutilação sexual” (p. 166). Outro historiador católico destacado na obra de Otto Marques da Silva é o padre Louis Thomassin (1619 a 1695), que em sua obra Ancienne et Nouvelle Discipline de l'Église analisa em muitos pormenores diversas situações relacionadas aos bloqueios que as deficiências físicas ou sensoriais significavam para um homem ser aceito como sacerdote da Igreja católica desde o início 126 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br de sua criação até o final do século V. Segundo Thomassin, um dos primeiros papas a se manifestar abertamente a esse respeito foi Hilário, que reinou entre 461 e 468. De acordo com as próprias palavras do papa, na Igreja católica não deveria haver dois tipos de sacerdotes: nem o analfabeto nem o que não tivesse alguma parte de seus membros. No século V houve posicionamentos de dois concílios, confirmando inclusive a posição do papa Hilário, citada no documento de Guérin: o concílio realizado em Angers, em 453, estabeleceu em seu cânone terceiro uma forte medida contra sacerdotes que adotavam procedimentos cruéis, muito generalizados no seio da população, acostumada com barbáries sem conta: “São proibidas as violências e as mutilações de membros”. O concílio realizado em Roma no ano 465, reunido sob a autoridade do papa Hilário, aprovou por aclamação cinco cânones. Um deles, o de número três, diz com clareza: “Deve-se também excluir das ordens aqueles que não sabem ler, ou que deceparam algum membro”. Voltando à obra de Thomassin, veremos que Gelásio I, papa que reinou de 492 a 496, reafirmou a mesma orientação de Hilário e do Concílio de Roma contra a aceitação de sacerdotes com deficiências, afirmando em uma carta ao bispo de Lucânia que candidatos ao sacerdócio não poderiam ser nem analfabetos nem “ter alguma parte do corpo incompleta”. Esse mesmo papa afirmava ainda, muito convicto dessas justificativas para essa atitude de bloqueio a pessoas com defeitos ou problemas físicos, que “se trata de uma antiga tradição e um costume observado 127 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br desde muito tempo em Roma; mais do que isso, que se trata de um desses louváveis costumes que a Igreja emprestou da Sinagoga”. Em suas observações, Silva (1986) diz que “existem histórias até de automutilação, destinada a caracterizar umairregularidade, como no caso de Amônio, um santo eremita que, ao se perceber praticamente ‘ameaçado’ pelo povo de ser elevado à dignidade do bispado, tomou uma providência extrema: cortou uma de suas orelhas. Todavia, as pessoas que o haviam procurado na tentativa de fazê-lo bispo ficaram sabendo posteriormente que aquela mutilação seria apenas válida dentro da religião judaica e não para os cristãos. Assim sendo, voltaram a insistir com o mesmo propósito. Tiveram, todavia, uma surpreendente decepção, pois o eremita, muito resoluto em sua posição de humildade, de faca em punho ameaçou cortar a própria língua na frente deles, conseguindo dessa forma dissuadi-los. Caso tivesse efetivado sua ameaça, Amônio estaria incapacitado inclusive para ser sacerdote” (pp. 167-168). Avançando na história, veremos que os bloqueios interpostos pela Igreja católica para pessoas com deficiência se tornarem sacerdotes continuavam inabaláveis durante o século XVIII. Exemplos práticos nos são relatados por M. André, doutor em direito canônico e membro de diversas sociedades de sábios do final do século XIX, em adição à obra de Thomassin (Ancienne & Nouvelle Discipline de l'Église) que fora escrita ao final do século XVII. Silva (1986, p. 259) destaca alguns dos mais significativos, citados ao final do capítulo sobre as irregularidades relacionadas aos defeitos de nascimento, mostrando a posição quase inalterada 128 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br da Igreja católica na aceitação de pessoas com deficiência para o exercício do sacerdócio até o século XVIII: no dia 20 de janeiro de 1789 a Sagrada Congregação recusou concordar com a ascensão às santas ordens de um clérigo “manco” da diocese de Albenga, na Ligúria; o padre François Pujol, da diocese de Vincennes, na França, tendo sofrido um acidente vascular cerebral, perdeu o uso do braço e da mão esquerdos; solicitou ao bispo a dispensa da irregularidade para exercício das funções sacerdotais e para celebrar a missa numa capela privada. Embora seu bispo tenha apoiado sua consulta, a Sagrada Congregação recusou o pedido no dia 19 de agosto de 1797; o seminarista Ambroise Lamberti, da diocese de Albenga, tinha um problema de movimentação da perna esquerda, de tal forma que precisava andar com o apoio contínuo de uma bengala. O bispo da Diocese foi consultado a respeito e opinou que haveria graves inconvenientes em promovê- lo às sagradas ordens, no que foi apoiado pela Sagrada Congregação no dia 20 de janeiro de 1798; o sacerdote Philippe Maggiorani, da diocese de Borgo San- Sepolcro, na Toscana, teve sua mão esquerda de tal forma mutilada pela acidental explosão de espingarda excessivamente carregada, durante uma caçada, que foi necessário amputar parte do braço para evitar sua morte. Solicitou dispensa da irregularidade para prosseguimento de seus trabalhos como sacerdote e esta lhe foi negada em 129 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br 18 de junho de 1785. No ano de 1787 apresentou uma nova e humilde solicitação, acompanhada do parecer favorável de seu bispo e do total apoio de seus paroquianos. No entanto, a Sagrada Congregação, depois de haver submetido o assunto à consideração pessoal do papa, manteve a recusa à dispensa de irregularidade por um decreto de 7 de julho de 1787. Essa é uma questão permanentemente discutida por autoridades eclesiásticas, tendo já merecido o posicionamento de papas e concílios e um lugar permanente no Código de Direito Canônico; o problema das deficiências físicas e sensoriais nos sacerdotes ou nos bispos ao longo da história da Igreja católica chega ao século XX, quando esse Código continuou impedindo candidatos ao sacerdócio católico que apresentassem defeitos. Nos chamados “defeitos corporais”, segundo a disciplina da Igreja católica, a irregularidade não é um castigo, mas um dos meios encontrados através dos séculos para preservar a dignidade do estado sacerdotal e para a exclusão daqueles que não têm capacidade para essas funções. Ou seja, como irregulares, são “corporalmente defeituosos que por fraqueza não podem exercer as funções do altar com segurança ou que por deformidade não o puderem fazer com dignidade. Quem se torna defeituoso depois de legitimamente ordenado, só pode ser impedido no exercício de suas funções se o defeito for notável. Não se proíbem, porém, atos que, apesar dos defeitos, puderem ser exercidos convenientemente”, explica Jone-Fox no texto Compêndio de Moral Católica. 130 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Se a deficiência ocorresse após a ordenação, as normas eram bastante condescendentes: quem estivesse quase cego, poderia obter do papa dispensa para celebrar a chamada missa “de beata”, ou a missa cotidiana dos defuntos; se um sacerdote ficasse completamente cego, só poderia rezar a missa com a assistência de outro sacerdote. O sacerdote que não conseguisse ficar em pé junto ao altar, ou que pudesse assim permanecer apenas com o uso de muletas ou apoio especial, só poderia celebrar missa privadamente e nunca em público. Isso também era verdadeiro para o sacerdote que sofresse de hanseníase ou doença grave. Nos casos de epilepsia e de psicopatias ocorria também a irregularidade, dependendo do bispo local ou das autoridades eclesiásticas constituídas a permissão do exercício de suas funções sacerdotais, depois de curados ou de terem o mal sob controle. Conforme observa Silva (1986), “é evidente que existe nesses regulamentos da Igreja católica grande preocupação pela aparência física de seus ministros, mas, muito mais do que isso, o firme propósito de não levar os fiéis a se distrair ou a desconsiderar seus serviços, sua palavra e os atos litúrgicos. Em diversas cerimônias litúrgicas da Igreja católica é fundamental ao sacerdote poder ajoelhar-se e levantar-se diversas vezes, em atos de adoração; é básico também que tenha a mão direita para distribuir a comunhão ou para dar a bênção” (p. 307). Sacerdotes que quebraram a regra 131 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Mesmo com restrições não permitindo a pessoas com deficiência exercer o sacerdócio, sempre houve casos que quebraram as regras, até mesmo em outras denominações cristãs. É o caso de Dídimo, o Cego (ca. 313 d.C.-ca. 398 d.C.), um teólogo da Igreja Copta de Alexandria, cuja famosa escola catequética dirigiu por meio século. Diversas Igrejas ortodoxas se referem a ele como “São Dídimo, o Cego”. Mesmo perdendo a visão aos quatro ou cinco anos de idade, quando iniciava seus estudos, graças a sua grande vontade de aprender, gravou o alfabeto em madeira e depois aprendeu pelo tato as letras, as sílabas, as palavras e depois frases inteiras. Ouvia professores célebres, quando já era moço. Pessoas se prontificavam a ler para ele, a fim de tomar conhecimento dos melhores livros. Quando seus leitores, cansados, adormeciam, ele meditava muito sobre o que acabara de ouvir e assim gravava o assunto em sua memória, acumulando conhecimentos em regras de linguagem e da gramática, belos trechos dos poetas e dos oradores, bem como noções de retórica. Tornou-se um ótimo conhecedor de assuntos humanos, das Sagradas Escrituras, do Antigo e do Novo Testamento. Dídimo começou a explicar a Bíblia, trecho por trecho, das mais variadas maneiras. Dominava a dogmática da Igreja católica, discutindo-a com precisão e muita propriedade. Conheciaa filosofia de Platão e de Aristóteles, a geometria, a música, a astronomia e as diferentes opiniões dos filósofos. Quando chegou à Alexandria, atraiu muito a atenção e recebia várias visitas de pessoas que queriam ouvi-lo. Ao ingressar no serviço para a Igreja, foi colocado como líder da 132 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Escola Catequética de Alexandria, onde vivia e trabalhou do ano 345 até 395. Dídimo pregava a salvação universal, escrevendo que, “na liberação de todos, ninguém permanece cativo” e acreditando que o castigo divino tem natureza corretiva e educativa. Jerônimo, que se referia a Dídimo não como “cego”, mas como “vidente”, escreveu que ele “ultrapassava todos de seu tempo em conhecimento das escrituras”; Sócrates Escolástico depois o chamou de “o grande bastião da verdadeira fé”. Dídimo era visto como um professor cristão ortodoxo, sendo muito admirado e respeitado até o fatídico ano de 553 d.C., pelo menos. Certa vez, Dídimo recebeu a visita de Santo Antão – santo cristão do Egito, líder de destaque entre os padres do deserto, cultuado em muitas igrejas –, que lhe perguntou se a cegueira o incomodava. Dídimo teve vergonha de responder e de confessar sua fraqueza. Mas Santo Antão repetiu a pergunta uma segunda vez, e à falta da resposta perguntou uma terceira. Dídimo confessou que sim, a cegueira o afligia, o bloqueava. Santo Antão lhe disse naquela oportunidade: “Admiro-me muito que um homem sábio como você se aflija de haver perdido aquilo que as formigas e as moscas possuem, em vez de se alegrar de ter o que os santos e os apóstolos tinham. É mais importante preocupar-se com a alma do que com esses olhos dos quais um só olhar poderá perder o homem eternamente”. De acordo com Paládio, bispo e historiador do século V d.C., Dídimo continuou leigo toda sua vida e se tornou um dos mais cultos ascetas de seu tempo. 133 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Dentro da Igreja católica também houve um bonito registro, referente ao padre Lejeune, considerado o maior pregador do século XVII. Nascido em Poligny (França), Lejeune perdeu a visão aos 43 anos de idade, quando pregava durante a quaresma na cidade de Rouen. A cegueira não diminuiu sua competência de grande orador nem sua alegria sempre muito natural. Há muito poucos dados biográficos sobre esse padre. Mas sabemos que ele morreu aos 80 anos de idade, muito ativo e vivaz. A solidez de suas ideias e o seu estilo levaram o prelado e ao mesmo tempo grande pregador das cortes de Luís XIV e Luís XV, Massillon, a recomendar a muitos seminaristas e jovens sacerdotes o estudo de seus maravilhosos sermões publicados em dez volumes sob o título de Le Missionaire de l'Oratoire, entre 1662 e 1676. Nicolau, as pessoas com deficiências intelectuais e a Inquisição São raras as fontes documentais sobre pessoas com deficiencias físicas ou intelectuais em épocas anteriores à Idade Média. Sabemos que elas eram consideradas subumanas, o que legitimava sua eliminação ou abandono, prática perfeitamente coerente com os ideais atléticos e clássicos, além de classistas, que serviam de base à organização sociocultural de Esparta e Grécia. Com o Cristianismo, quando Jesus Cristo pregou o amor e a 134 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br necessidade de se cuidar dos excluídos, na Europa, as pessoas com deficiência, inclusive as deficiências intelectuais, ganharam status de pessoa, no plano civil, e alma, no plano teológico, após a difusão europeia da ética cristã. Exemplo da influência dos ideais cristãos de vida sobre a sorte das pessoas com deficiência foi a de Nicolau, bispo de Myra, nascido na segunda metade do século III e falecido no dia 6 de dezembro de 342. Tido como acolhedor dos pobres e principalmente das crianças carentes, preocupava-se com a educação e a moral tanto das crianças como de suas mães. Conhecido por inspirar a figura do “Papai Noel” e considerado como o primeiro santo da igreja, já no século IV da era cristã se notabilizou por acolher e alimentar crianças com deficiência abandonadas. Com a iniciativa de Sao Nicolau e com o advento do Cristianismo, pessoas com deficiência “ganham almas” que, segundo Pessotti (1984), “graças à doutrina cristã os deficientes começam a escapar do abandono ou da ‘exposição’, uma vez que, donos de uma alma, tornam-se pessoas e filhos de Deus, como os demais seres humanos. É assim que passam a ser, ao longo da Idade Média, les enfants du bon Dieu, numa expressão que tanto implica a tolerância e a aceitação caritativa quanto encobre a omissão e o desencanto de quem delega à divindade a responsabilidade de prover e manter suas criaturas deficitárias” (p. 8). Essa igualdade de status moral ou teológico não corresponderá, até a época do iluminismo, a uma igualdade civil, de direitos. Dotado de alma e beneficiado pela redenção de Cristo, o deficiente mental passa a ser acolhido caritativamente em 135 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br conventos ou igrejas, onde ganha a sobrevivência, possivelmente em troca de pequenos serviços à instituição ou à pessoa “benemérita” que o abriga. Isso porque as pessoas com deficiência e os pobres passaram ao longo dos séculos por assistência suscitando atitudes que vão desde a piedade até o desprezo. Mas, segundo Walber e Silva (2004), muitas vezes, pela própria condição de pobreza, ou pelas condições físicas de deficiência e doença, recebiam comiseração, já que eram “alvo” da boa ação de outras pessoas, “nos modos específicos da ‘gestão da pobreza’, na economia da salvação: mesmo desprezado, o pobre pode, aceitando sua condição de pobreza, auxiliar os ricos para que esses pratiquem a caridade – a ‘suprema virtude cristã’ – e obtenham assim a salvação. Dessa forma, os pobres também obteriam a sua própria salvação. A pobreza torna-se, portanto, um valor de troca na economia da salvação, assim como a doença e o sofrimento, prova inconteste da pobreza não só econômica, mas física. Doença e deficiência tornam- se também um valor de troca nessa economia de salvação e na possibilidade de obter auxílio da comunidade. Observa-se assim que pessoas doentes e com deficiência devem permanecer na condição de pessoas de segunda classe para continuar recebendo auxílio. Por outro lado, a prática assistencialista que valoriza esse tipo de relação mantém e fixa as pessoas na posição de subalternas”. Só que surgem as variações da noção teológica de cristão implicando uma doutrina do pecado e da expiação, correspondendo a condutas clericais diversas, diante das pessoas com deficiências intelectuais, segundo a teologia da culpa que cada corrente do Cristianismo, ortodoxa ou herética, adotará. Se, 136 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br de um lado, como enfant du bon Dieu essas pessoas ganham abrigo, alimentação e conforto em conventos ou asilos, de outro, como cristão, é passível de alguma exigência ética ou de alguma responsabilidade moral e a ter exigências éticas e religiosas. Ou seja, era como se, enquanto o teto protege o cristão, as paredes escondessem e isolassem o incômodo ou inútil. Surge o capítulo sombrio da Inquisição. Em nossas revisões históricas não temos como não abordar o assunto da Inquisição, referente às várias instituições dedicadas à supressão da heresia no seio da Igreja católica. A Inquisição medieval,da qual derivam todas as demais, foi fundada durante os séculos XII e XIII para preservar a disciplina eclesiástica internamente. Visava inicialmente combater o sincretismo entre alguns grupos religiosos, que praticavam a adoração de plantas e animais e utilizavam mantras. No século XIX os tribunais da Inquisição foram suprimidos pelos Estados europeus, mas foram mantidos pelo Estado pontifício. Em 1908, sob o papa Pio X, a instituição foi renomeada “Sacra Congregação do Santo Ofício”. Em 1965, durante o pontificado de Paulo VI e em clima de grandes transformações na Igreja após o papado de João XXIII, por ocasião do Concílio Vaticano II, assumiu seu nome atual – “Congregação para a doutrina da Fé”. No século XV, a Inquisição mandou para a fogueira os hereges, que eram considerados loucos, feiticeiras, adivinhos, criaturas bizarras ou de hábitos estranhos ou pessoas com algum tipo de deficiência, principalmente intelectuais, por serem vistas como possuídas por espíritos malignos ou loucas. Em cartas papais daquele período podem ser encontradas orientações de 137 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br como identificar e tratar tais pessoas: “A estes, se recomendava uma ardilosa inquisição, para obtenção de confissão de ‘heresia’, torturas, açoites, outras punições severas, até a fogueira”. Até o século XVI, crianças com deficiência intelectual grave eram consideradas como possuídas por seres demoníacos. Mesmo renomados intelectuais, até fora da Igreja católica, acreditavam que era o demônio que estava ali presente. Importantes figuras da Reforma protestante também a perfilharam, como Lutero, Melanchthon e, notoriamente, Calvino, que comandou pessoalmente a caça às bruxas em Genebra, no ano de 1545, da qual resultou a execução de 31 pessoas, o que é um total até reduzido à vista dos milhões ou do meio milhão de pessoas queimadas, na Europa, entre os séculos XIV e XVII, por acusação de intercâmbio com demônios ou forças do mal. A rigidez luterana, que encontra em Calvino seu “cruzado”, não permite que se trate sem castigo quem é objeto eletivo da cólera justiceira e justa de Deus ou, pior ainda, presa de Satanás. Não é difícil inferir o tratamento dado a idiotas, imbecis e loucos durante a Reforma. A rigidez ética carregada da noção de culpa e responsabilidade pessoal conduziu a uma marcada intolerância cuja explicação última reside na visão pessimista do homem, entendido como uma besta demoníaca quando lhe venham a faltar a razão ou a ajuda divina. É o que Pintner (1933) chamou de “época dos açoites e das algemas” na história da deficiência mental. O homem é o próprio mal quando lhe faleça a razão ou lhe falte a graça celeste a iluminar-lhe o intelecto; assim, dementes e amentes são, em essência, seres diabólicos. 138 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Martinho Lutero, um monge agostiniano germânico e professor de teologia que se tornou uma das figuras centrais da Reforma Protestante, em um de seus escritos, negou a própria natureza humana de uma criança com retardo mental de alguma seriedade: “Há oito anos vivia em Dessau um ser que eu, Martinho Lutero, vi e contra o qual lutei. Há doze anos, possuía vista e todos os outros sentidos, de forma que se podia tomar por uma criança normal. Mas ele não fazia outra coisa senão comer, tanto como quatro camponeses na ceifa. Comia e defecava, babava-se, e quando se lhe tocava, gritava. Quando as coisas não corriam como queria, chorava. Então, eu disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosse o príncipe, levaria essa criança ao Moldau que corre perto de Dessau e a afogaria. Mas o príncipe de Anhalt e o príncipe de Saxe, que se achava presente, recusaram seguir o meu conselho. Então eu disse: pois bem, os cristãos farão orações divinas na igreja, a fim de que Nosso Senhor expulse o demônio. Isso se fez diariamente em Dessau, e o ser sobrenatural morreu nesse mesmo ano...” (apud PESSOTTI, 1984, p. 11). Para Martinho Lutero, essa criança de doze anos era apenas uma massa de carne sem alma, que “o demônio possui esses retardados e fica onde suas almas deveriam estar”. A confusão entre ser humano tomado pelo demônio e ao mesmo tempo “sobrenatural”, que “morre”, por efeito de preces que se destinavam a salvá-lo pela “expulsão do demônio”, revela a curiosa natureza do deficiente mental na teologia de Lutero. Em verdade, trata-se de uma concepção primária e tendenciosa, a misturar a fúria depuradora à oração caritativa, um purismo mórbido a uma concepção mitológica e fanática do deficiente 139 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br mental: afogá-lo ou orar por ele são práticas igualmente eficazes e igualmente morais. A caracterização do conceito luterano de deficiência intelectual nos serve mais que tudo, aqui, como o modelo inteiro e definitivo de visão medieval do problema. A identidade sobrenatural dos amentes (e também dos dementes, em alguns aspectos) é a marca da superstição, a caracterizar toda a “teoria” e prática medieval em relação ao deficiente mental de qualquer tipo ou nível. Não fogem a essa marca os promotores da contrarreforma católica, como não lhe escapava a hierarquia eclesiástica pré-reforma. A reação contra a crueldade católica e luterana no trato dos dementes e amentes começou a mudar, mesmo ainda pautada por superstição, pela obra de duas figuras típicas da cultura do início do século XVI: os alquimistas Paracelso Philipus Aureolus (1493-1541) e Jerônimo Cardano (1501-1576). Paracelso rejeitava as obras ditas diabólicas, embora acreditasse na magia, na astrologia e na alquimia como recursos para conhecer desígnios extranaturais ou, de todo modo, sobre- humanos, e para utilizar propriedades ocultas das substâncias e dos astros. Mesmo sendo um alquimista, como médico, Paracelso não podia ignorar que demência e amência podiam também resultar de traumatismos e doença. Ao escrever a obra Sobre as doenças que privam os homens da razão, em 1526, ele também foi vítima da intolerância eclesiástica, na reformulação da visão medieval da deficiência mental. Essa obra foi publicada em edição póstuma em 1567, mostrando pela primeira vez uma autoridade 140 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br da medicina, reconhecida por numerosas universidades, em uma visão ainda supersticiosa, mas não teológica. As pessoas com deficiência ou doenças mentais deixaram de serem consideradas perversas, criaturas tomadas pelo diabo e dignas de tortura e fogueira por sua impiedade ou obscenidade, passando a ser consideradas doentes ou vítimas de forças sobre-humanas, cósmicas ou não, e dignas de tratamento e complacência. Não é muito diversa a contribuição de Jerônimo Cardano, unindo ao misticismo neoplatônico a magia, a astrologia e a cabala, professando também sua crença em poderes especiais e em forças cósmicas que podem ser responsáveis por comportamentos inadequados. Para ele loucos e deficientes eram vítimas de tais poderes e, por vezes, até dotados de poderes mágicos desordenados, o que os tornava merecedores de atenção médica. Além dessa postura enriquecida pela preocupação pedagógica com a instrução das pessoas com deficiências mentais, graças a Paracelso Cardano a insensatez começa a ceder terreno ao bom senso. Os leprosários da Idade Média e o novo destino de pessoas com deficiências intelectuais A hanseníase no pós-Bíblia continuou causando muitas mutilações, outrostipos de deficiências e, consequentemente, muito estigma, devido à periculosidade que apresentava e ao pavor de suas consequências. Popularmente conhecida como 141 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br “lepra”, já existia no Egito e na Índia muitos séculos antes da Era Cristã e foi diagnosticada por gregos e árabes. Levada para toda a Europa pelos soldados romanos, espalhou-se mais ainda durante a época das Cruzadas. Desde os tempos mais remotos existiu uma variedade de males dermatológicos considerados como contagiosos. Dentre eles destacava-se evidentemente a hanseníase, mas com ela confundiam-se a psoríase, a escabiose e o ergotismo. Na Idade Média, quando um homem era declarado “leproso” tinha apenas um destino: banimento da sociedade e do convívio de seus familiares pelo resto da vida. Para tal fim a sociedade armava-se de certas cautelas, sendo uma delas o estabelecimento de uma comissão responsável pelo reconhecimento do mal. Nessa comissão estavam obrigatoriamente incluídos um médico e um hanseniano. Silva (1986) observa que em “muitos casos foram vítimas de diagnósticos mal formulados. Os casos de ergotismo, por exemplo, apresentavam mutilações seríssimas nos dedos devido à gangrena. Era um mal causado pelo uso continuado de farinha de centeio com fungos venenosos e que em sua forma gangrenosa levava a amputações muito sérias dos dedos. Se o resultado do exame do doente suspeito de ‘lepra’ fosse positivo, rezava-se uma missa de Réquiem sobre o doente, o que correspondia a um sepultamento simbólico. Era então conduzido para fora da cidade e no caminho o sacerdote, acompanhado de um acólito que tocava uma matraca, dava orientações básicas ao doente, repassando as proibições que iriam marcar sua vida futura” (p. 211). 142 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Para essas pessoas eram impostas tais proibições: entrar em igrejas, mercados, moinhos, padarias ou qualquer lugar público; lavar as mãos ou o corpo em qualquer riacho ou fonte (devia saciar sua sede usando uma caneca de sua propriedade exclusiva); sair às ruas sem as vestes identificadoras do leproso e sem calçados; tocar em objetos que desejava comprar (devia apontar com um bastão); tocar os beirais das pontes ou batentes de portas (devia ter as mãos cobertas); tocar ou ter relações sexuais com qualquer pessoa, inclusive sua própria esposa; comer ou beber na companhia de qualquer pessoa que não fosse leprosa. Existiam os “lazaretos” ou “leprosários”, onde alguns conseguiam vaga. Outros passariam o resto de seus dias “espalhando o terror da doença, mendigando por comida e por bebida. Muitas vezes identificado por roucos gritos de ‘impuro, impuro’, o temido ‘leproso’ era também reconhecido por sinetas, matracas ou pequenas cornetas. A esmola a eles destinada era colocada às carreiras no meio das vielas ou dos campos. Foram por séculos marcados e a marca mais forte e evidente ficava nas roupas que eram obrigados a usar, nas cores cinza ou preta. Deviam usar chapéus ou capuzes e às vezes faixas vermelhas. Épocas houve na Europa durante as quais eles eram obrigados a levar ao peito um tecido vermelho com desenhos característicos” (SILVA, 1986, p. 211). Só na França dos séculos XII e XIII havia em torno de dois mil “lazaretos” que se destinavam apenas à segregação e nunca ao tratamento dos doentes, enquanto na Europa inteira, devido à extensão do problema, havia aproximadamente 19 mil desses 143 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br abrigos, todos separando duramente seus doentes da sociedade e deixando que morressem sem qualquer assistência. Muitos desses locais abrigavam não só os ditos “leprosos”, mas também outras pessoas indesejadas da sociedade. Entre elas estavam pessoas com deficiências intelectuais que, mesmo livres da sanha inquisitorial e da intolerância religiosa, continuavam sem atendimento educacional. Consideradas inútis para a lavoura e o artesanato e consumidoras improdutivas da renda familiar, essas pessoas não tinham outro destino senão o asilo, onde eram protegidas dos raios e das chuvas, ganhavam alguma alimentação e deixavam em santa paz a família e a sociedade. Era o caminho mais cômodo para se livrar do “problema”, mesmo com as afirmações de homens como Paracelso, Cardano e John Locke (1632-1704), dizendo que as pessoas com deficiências intelectuais poderiam ser treinadas ou educadas para várias atividades. Após a abolição da Inquisição, a opção intermediária foi a segregação, não punindo nem abandonando essas crianças e pessoas, mas também não se sobrecarregava o governo e a família com sua incômoda presença. Pessotti (1984) observa que “o apego residual do século XVIII a uma noção fatalista da deficiência parece uma desesperada tentativa de isentar a família e o poder público do dever de educar os amentes e criar instituições adequadas para isso. Já não se pode, justificadamente, delegar à divindade o cuidado de suas criaturas deficitárias, nem se pode, em nome da fé e da moral, levá-las à fogueira ou às galés. Não há mais lugar para a irresponsabilidade social e política diante da deficiência mental, mas, ao mesmo tempo, não há vantagens, para o 144 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br poder político e para o comodismo da família, em assumir a tarefa ingrata e dispendiosa de educá-lo” (p. 26). A Europa na Idade Média enfrentou devastadoras epidemias de lepra. Inúmeros hospitais ou leprosários, também chamados hospícios, foram construídos pela nobreza, às vezes com uma suntuosidade que pareceria irônica. Obras-primas da arquitetura ou meros casarões, sua função era abrigar e alimentar o cristão enfermo e, ao mesmo tempo, afastá-lo do convívio social. Era preciso, mesmo com esse dilema social, respeitar e socorrer o cristão marginal ou aberrante e, em contrapartida, livrar-se do inútil, incômodo ou antissocial. Surgiram grandes hospitais, como o de Bicêtre e a Salpêtrière em Paris, Bethleheni na Inglaterra, e muitos outros no resto da Europa se abriram para acolher piedosa e cinicamente, em total promiscuidade, prostitutas, idiotas, loucos, "libertinos", delinquentes, mutilados e "possessos" que só na Salpêtríêre perfaziam, em 1778, um total de oito mil pessoas. Richard Baxter, um pastor entre o ministério e suas enfermidades Richard Baxter nasceu no dia 12 de novembro de 1615, na casa do avô materno, no vilarejo rural de Rowton, e logo foi batizado na paróquia Saint Michael. Os primeiros dez anos da sua vida foram gastos nesse campo inglês, na casa dos avós, pois seu pai era viciado tanto em bebida quanto em jogos de azar e vivia 145 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br acompanhado de dívidas. Onze anos após o nascimento do jovem Baxter, seu pai se converteu através da leitura particular da Palavra de Deus e o chamou para morar com ele. Mais tarde, Baxter lembrava que as conversas sérias, sobre Deus e a eternidade, direcionadas a ele pelo pai, foram os primeiros instrumentos que Deus usou para despertar nele a convicção. Ao se iniciar no ensino formal, dos quatro instrutores que tivera em seis anos, dois levavam vidas imorais, outro era beberrão e todos eram ignorantes. Mesmo assim Baxter tinha uma mente ágil e, através da leitura e estudo próprio, avançou em sua educação autodidata. Durante uma longa doença, pela influência de vários livros, ele se sentiu chamadoao ministério. Pouco depois, com quinze anos de idade, foi profundamente influenciado pelas obras de Richard Sibbes, que o fez entender como era precioso a Jesus Cristo. Aos 16 anos de idade, ele se transferiu para a escola em Wroxeter e estudou ali por três anos. Foi então que o pregador erudito Francis Garbet realmente tomou interesse no seu jovem aluno e ajudou-o grandemente a avançar em sua educação. Ao sair de Wroxeter, teve a oportunidade de estudar em Oxford, mas não o fez, pois o diretor da escola em que estudava o persuadiu a continuar a educação com um amigo, o capelão Richard Wickstead. Wickstead o ensinou com muita má vontade por 18 meses. Até o seu último dia, Richard Baxter se arrependia dessa decisão de deixar Oxford a favor do Wickstead. Em 1633 se deslocou para Londres com o pretexto de iniciar estudos, a fim de se tornar um advogado, permanecendo apenas quatro semanas. Tanto a vida frívola em Londres como o 146 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br enfraquecimento da sua mãe o levaram de volta à cidade em que morava com os pais, inteiramente certo de que um dia seria pastor. A doença da mãe continuou por pouco tempo; ela faleceu, menos de um ano depois da volta de Richard. Os próximos quatro anos foram dedicados ao estudo particular de teologia. Aos 23 anos de idade, Richard Baxter foi consagrado. Por nove meses, trabalhou como diretor da escola em Dudley e depois se tornou pastor assistente em Bridgenorth, não muito longe da casa dos avós maternos. Aos 25 anos, teve início seu ministério mais famoso, que duraria 20 anos, em Kidderminster. Foi ali também que começou a produzir livros. Certa vez ele comentou: “Meus escritos são a minha maior obra diária”. Ele trabalhou arduamente, mesmo com as dores crônicas que o acompanharam desde os 21 anos. Duas vezes por semana, ele ensinava o catecismo e ia de casa em casa visitando os membros da sua igreja, uma hora por semana. Essas visitas domiciliares deram frutos e foram raros os membros que não foram comovidos a serem mais fiéis através do aconselhamento pastoral do Richard Baxter. Ao sair de Kidderminster, comentou que, dos 600 membros da igreja, tinha dúvidas acerca da salvação de apenas 12. A sua carreira em Kidderminster findou-se abruptamente em 1661, quando foi expulso da Igreja da Inglaterra por não se conformar às regras. Foi nesse período, depois de sua expulsão, que se casou com Margaret Charlton, uma jovem de 20 e poucos anos. Com quase 30 anos de diferença, Richard Baxter descobriu que não havia outra igual a ela em questão da santidade. Ele relatava todos os casos que pesavam no seu coração e consciência, e ela o confortava. O 147 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br casamento durou 20 anos e chegou ao fim com a morte de Margaret. Nos 10 anos anteriores a sua morte, Richard Baxter pregava e escrevia muito, mas nunca mais assumiu uma congregação. Três vezes foi preso por pregar e enfrentava perseguição constante do Supremo Magistrado Jeffreys – o mesmo que cerrou Bunyan na prisão durante 16 anos por dissensão. Durante os anos de perseguição e doenças crônicas, Baxter produziu a maior parte dos 168 impressos religiosos de sua vida, dos quais 141 são livros. Dizem seus biógrafos que, como muitos outros gigantes espirituais, Baxter foi marcado pela doença. Desde a mocidade até o fim de seus dias ele foi afligido por constantes e variadas enfermidades, um homem literalmente enfermo da cabeça aos pés. Padeceu com dores reumáticas, tinha problemas estomacais, frequentes hemorragias no nariz, dentre outras manifestações. Baxter foi tratado por mais de 35 médicos, sem muito resultado, o que o levou a evitá-los. Suas muitas enfermidades, entretanto, não o impediram de ser um servo reconhecidamente mais útil e produtivo do que milhares que desfrutam de perfeita saúde. Em 1689, o Ato de Tolerância permitiu que Baxter pregasse e escrevesse com liberdade. Naquela ocasião, ele se deslocou para Charterhouse Square e logo após faleceu, no dia 8 de dezembro de 1691. 148 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br O assistencialismo dos jesuítas em terras brasileiras A Companhia de Jesus, em linhas gerais, era uma sociedade missionária fundada em 1534 por Santo Inácio de Loyola (1491-1556) com o objetivo de defender o catolicismo contra a Reforma Protestante na Europa e difundi-lo nas novas terras do Ocidente e do Oriente. Obteve um rápido crescimento, alcançando grande prestígio e poder, tornando-se a instituição religiosa mais influente em Portugal e nas colônias portuguesas. Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil em 1549, comandados pelo padre Manuel da Nóbrega (1517-1570), e dedicaram-se à catequese indígena e à educação dos colonos. Entre os séculos XVII e XVIII, construíram igrejas e fundaram colégios, organizaram a estrutura de ensino, baseada em currículos e graus acadêmicos, e estabeleceram as primeiras “reduções” ou “missões” - aldeamentos onde os nativos eram aculturados, cristianizados e preservados da escravização colonial. A maioria dessas missões foram criadas na região Sul, próximo aos rios Paraná e Uruguai, onde se reuniam dezenas de milhares de índios, sendo grande também o número de missões instaladas pelos jesuítas na região amazônica. Naquele período, tivemos a chamada medicina jesuítica, a partir da segunda metade do século XVI, onde padres e irmãos da Companhia de Jesus foram de fato os médicos, os enfermeiros e os boticários dos indígenas, dos povoadores, dos colonizadores. Surgiam os primeiros hospitais das irmandades de misericórdia que, com poucos recursos, não supriam as necessidades da época. Locais onde pobres e obscuros habitantes, brancos, mestiços e 149 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br negros, buscaram o socorro, transformando enfermarias e as boticas dos estabelecimentos da Companhia em hospitais da população e farmácias dos doentes necessitados. Embora não tendo registros oficiais da época, pelas descrições das doenças, podemos presumir a existência de pessoas com deficiências congênitas ou adquiridas entre os assistidos pelos jesuítas. Feridas nas pernas, na cabeça; mortalidade infantil; doenças de pele; males venéreos, como a sífilis; verminoses variadas; problemas oculares; anemia; febres; chagas; tumores; dores de cabeça; paralisias; cólicas; males do estômago, do coração e dos ossos; mordidas de cobra; insônias; sem contar, é claro, as enfermidades epidêmicas, como varíola e outras. O Brasil foi muitas vezes fustigado por grandes pestes, epidemias, doenças gerais, bexigas, priorizes, tabardilho, câmaras de sangue, tosse e catarro. De todas as epidemias, a que causou maior estrago, e cuja existência é assinalada várias vezes, foi a varíola. Agravou-se de forma violenta em 1563. Morreram 30.000 no período de dois ou três meses. Através desses trabalhos dos jesuítas dirigidos aos doentes, seja o clínico, o cirúrgico, o obstétrico, seja o farmacêutico, é que foram escritos os primeiros capítulos da Medicina brasileira. Eles assistiram, examinaram, operaram, sangraram e medicaram, em um período em que predominou realmente a medicina jesuítica. A Companhia de Jesus teve uma grande importância para o desenvolvimento da medicina brasileira, pois se pode afirmar que a medicina predominante no Brasil no século XVI foi a dos jesuítas. Rareando, então, os físicos, os cirurgiões e os hospitais,os filhos de Santo Inácio supriram a 150 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br alta e assistiram ao índio e ao provedor como médicos, enfermeiros e boticários. Deve-se-lhes, além de tudo, o conhecimento da patologia e da terapêutica indígenas. Dentre esses primeiros “médicos” a atuarem em terras brasileiras, destaca-se o trabalho de José de Anchieta (1534- 1597), jesuíta e escritor espanhol que nasceu nas ilhas Canárias e estudou em Coimbra, Portugal. Entrou para a Companhia de Jesus em 1551, emigrando dois anos depois para o Brasil na comitiva de Duarte da Costa, com o intuito de catequizar os índios. Anchieta destacou-se, dentre outros feitos, por sua assistência a enfermos, doentes crônicos e enjeitados. Foi um grande escritor de cartas que, como as dos demais jesuítas da época, hoje são uma importante fonte documental do desvendamento da patologia no Brasil colonial. Nelas, esse jesuíta revela-se um médico dedicado, um piedoso enfermeiro, conquistando a estima de todos, índios e colonos, aos quais procurou servir sem esmorecer. Em uma de suas correspondências, publicada em Cartas inéditas: centenário da descoberta do Brasil, Anchieta relatou: “Quão raras são entre os indígenas as deformidades e os monstros. Em último lugar tratarei destes Brasis, porque ninguém encontrará entre eles qualquer pessoa afetada de alguma deformidade natural, raramente aparece um cego, surdo, mudo, ou coxo, nenhum monstruosamente nascido. (...) Rarissimamente se acha entre eles torto, cego, aleijado, surdo, mudo, corcovado, outro gênero de monstruosidade: coisa tão comum em outras partes do mundo. Têm os olhos pretos, narizes compressos, boca grande, cabelos corredios, barba nenhuma, ou mui rara, são vividouros e passam muitos de 151 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br cem anos, e cento e vinte, nem entram em cãs, senão depois de decrépita idade” (apud LOBO, 2008, p. 32). Diante de tais afirmações, Anchieta leva-nos a pressupor que, talvez como consequência cultural da política de exclusão dos índios, a sociedade colonial continuasse a segregar, a esconder essas pessoas. Até mesmo por motivos de vergonha ou de um completo desconhecimento, não saber lidar com elas. Outro motivo para que pessoas com deficiência fossem excluídas da sociedade pode ser encontrado no campo da superstição. Naqueles tempos de geral ignorância, apontava-se a doença como castigo da divindade. Os males sexuais eram devidos aos hábitos pecaminosos, impulsionados pelo demônio. Os loucos eram possessos. A lepra, então incurável e de origem não sabida, causava horror e excluía os seus portadores do convívio social. Tais conceitos, em verdade, chegam a ser compreensíveis, pois datam de época anterior às investigações sobre os seres microscópios e aos estudos sobre as reais causas das doenças. Como sucedia no resto do mundo, enxotava-se o leproso para fora das povoações, ou então era preso e internado o infeliz nos lazaretos ou gafarias, pequenas casas-hospitais situadas nos arredores das principais cidades. Havendo poucos lazaretos, os leprosos tiveram mesmo que vagar pelas estradas, esmolando o alimento e esperando a morte. Surgiam as “Casas de Muchachos” e as “Rodas dos Expostos”. Havia as crianças indígenas, os curumins e os chamados “órphãos da terra”, crianças oriundas das ligações entre os brancos ou negros e mulheres índias, que normalmente eram abandonadas por suas mães, pois os índios acreditavam que o 152 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br parentesco verdadeiro só vinha pela parte dos pais; por isso, não faziam parte do seu povo, uma vez que não foram gerados por um homem da tribo. Esses órfãos passaram a ser recolhidos em lugares denominados “Casas de Muchachos”, com o objetivo de educá-los dentro dos preceitos da Igreja. Nascia assim a primeira medida de afastamento da criança de seu convívio sociofamiliar praticada no Brasil. Em 1585 já existiam no país cinco “casas” de acolhimento, situadas em Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, São Vicente e São Paulo. Outro capítulo marcante e triste de nossa história foram as chamadas “Rodas dos Expostos”, que no Brasil funcionaram de 1726 a 1950. Tiveram origem na Itália durante a Idade Média a partir do trabalho de uma irmandade de caridade e da preocupação com o grande número de bebês encontrados mortos. Tal irmandade organizou em um hospital em Roma um sistema de proteção à criança exposta ou abandonada. O nome da roda provém do dispositivo onde se colocavam os bebês que se queria abandonar. Sua forma cilíndrica, dividida ao meio por uma divisória, era fixada no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior e em sua abertura externa, o expositor depositava a criancinha que enjeitava. A seguir, ele girava a roda e a criança já estava do outro lado do muro. Puxava-se uma cordinha com uma sineta, para avisar a vigilante ou rodeira que um bebê acabava de ser abandonado e o expositor furtivamente retirava-se do local, sem ser identificado. Podemos dizer que dessas duas ações nasceu a ideia de tutela no Brasil pelas mãos dos jesuítas. Essa opção – que mais tarde se refletiria também no assistencialismo às pessoas com 153 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br deficiência –, perdurou ao longo de cinco séculos da nossa história e ainda perdura como forma de ação de atendimento à infância em nosso país. Com o nascimento dos primeiros hospitais brasileiros, as santas casas de misericórdia surgiram a partir das duas grandes instituições operantes ligadas à Igreja católica, que quase sempre nasciam como instituições destinadas a apoiar uma ampla variedade de excluídos: órfãos, mães solteiras, velhos, pobres e, claro, doentes, já estabelecendo uma cultura assistencialista. E o que não faltaram foram doenças, epidemias e males incapacitantes no Brasil Colônia. Era o estreitamento da cultura deficiência como doença! Se a associação de deficiência correspondia à doença veio sendo construída ao longo de nossa história como uma questão sempre tratada em ambientes hospitalares e assistenciais, outros fatores também reforçaram essa cultura. Em terras brasileiras, principalmente no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, foi bem considerável o número de médicos que pesquisaram, escreveram e publicaram trabalhos científicos sobre pessoas com deficiências, sobretudo as mentais, preocupados com a aprendizagem dessas crianças. “O despertar dos médicos nesse campo educacional pode ser interpretado como procura de respostas ao desafio apresentado pelos casos mais graves, resistentes ao tratamento exclusivamente terapêutico, quer no atendimento clínico particular, quer no, muitas vezes, encontro doloroso de crianças misturadas às diversas anomalias nos locais que abrigavam todo tipo de doença, inclusive os loucos” (JANNUZZI, 2006, p. 31). 154 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br A medicina passou a influenciar as propostas educacionais para essas pessoas, principalmente por ser, na área do ensino superior, uma das mais antigas no Brasil, junto com o ensino militar, tendo, desde o começo, formado profissionais. Temos como exemplo a criação das escolas de cirurgia e academia em 1808 na Bahia e Rio de Janeiro, a Faculdade de Medicina da Bahia, em 1832, a primeira do País, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, dentre outras. Além de vários médicosque tiveram atuação direta como diretores ou professores das primeiras instituições brasileiras voltadas para esse público. Foi na segunda metade do século XIX, em paralelo à implantação de hospitais públicos, que o Estado passou a intervir também na área de doenças mentais – tratadas então em rigoroso isolamento. Surgiu o Hospício D. Pedro II em 1852, no Rio de Janeiro. Em 1898 era aberto o Hospital Psiquiátrico do Juquery, no atual município de Franco da Rocha (Grande S. Paulo), nome do médico que organizou a instituição, enquanto Porto Alegre ganhava o Hospital S. Pedro. O importante Instituto Philippe Pinel, do Rio de Janeiro, nasceria em 1937 com o nome de Instituto de Neurossífilis. Um número muito considerável de pessoas com deficiências mentais, até mesmo por falta de exames e diagnósticos mais precisos na época, era confundido com doentes mentais e internados injustamente nessas instituições. Juliano Moreira, médico e nome importante da história da psiquiatria brasileira, chegou a ser fundador de uma instituição para pessoas com deficiências mentais. Franco da Rocha, no ano de 1921, em São Paulo, construiu um pavilhão para crianças no Hospital de Juquery. Mas já eram iniciativas que visavam ao lado pedagógico dessas crianças, que, segundo Jannuzzi (2006), já apontavam algo 155 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br positivo: “Percebo que esses pavilhões anexos aos hospitais psiquiátricos, nascidos sob a preocupação médico-pedagógica, mantêm a segregação desses deficientes, continuando pois a patentear, a institucionalizar a segregação social, mas não apenas isso. Há a apresentação de algo esperançoso, de algo diferente, alguma tentativa de não limitar o auxílio a essas crianças apenas ao campo médico, à aplicação de fórmulas químicas ou outros tratamentos mais dramáticos. Já era a percepção da importância de educação; era já o desafio trazido ao campo pedagógico, em sistematizar conhecimentos que fizessem dessas crianças participantes de alguma forma da vida de grupo social de então. Daí as viabilizações possíveis, desde a formação dos hábitos de higiene, de alimentação, de tentar se vestir etc. necessários ao convívio social. Elas colocam de forma dramática o que se vai estabelecendo na educação do deficiente: segregação versus integração na prática social mais ampla” (p. 38). Entre os primeiros médicos que se dedicaram à questão, havia uma preocupação de estabelecer uma catalogação de anormalidade. Pessoas com dificuldades pedagógicas seriam os dotados de inteligência e instrução em grau inferior à sua idade. E, visando completar os exames precários das chamadas “crianças com defeitos pedagógicos”, acrescentava-se como modelo do exame médico uma ficha contendo itens em relação a observações do físico do aluno. Católicos e protestantes se unem contra uma “Inquisição Nazista” no século XX 156 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Ao longo da história humana temos inúmeros relatos de discriminações e execução de pessoas com algum tipo de deficiência. Mas nesse percurso não precisamos ir muitos séculos atrás, a exemplo da Inquisição. Há pouco mais de 70 anos, durante a Segunda Guerra Mundial, Hitler foi denunciado por programa de extermínio de pessoas com deficiências físicas e intelectuais. Essas mortes representavam uma antecipação das câmaras de gás de Auschwitz. Alegando os altos gastos com essas pessoas, uma propaganda nazista em favor do extermínio dizia: “60.000 marcos é o que essas pessoas com defeitos hereditários custam ao povo durante sua vida. Companheiro, o seu dinheiro também”. No dia 3 de agosto de 1941, um domingo, algumas semanas após Alemanha e União Soviética entrarem em guerra, o bispo de Münster, na Renânia, denunciou publicamente esses atos praticados pelos nazistas. O monsenhor Clemens-August von Galen exclamava: “É uma doutrina tenebrosa aquela que busca justificar a morte de inocentes, que autoriza o extermínio daqueles que não são mais capazes de trabalhar, dos enfermos, daqueles que soçobraram na senilidade… Será que temos o direito de viver só enquanto pudermos ser produtivos?”. Percebemos que, no começo do século XX, parecia legítimo que os seres humanos mais frágeis desaparecessem e abrissem espaço a seres mais bem preparados para sobreviver, em nome da seleção natural pregada pelos nazistas. É desse modo que foram editadas em determinados Estados leis que permitiam esterilizar pessoas dadas como fracas de espírito ou com deficiências. Em 14 de julho de 1933, Hitler publicou uma lei sobre a esterilização de 157 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br pessoas com deficiências intelectuais. Protestos houve somente do clero. Um decreto datado de 1º de setembro de 1939, exatamente no dia da deflagração da Segunda Guerra Mundial, prescrevia não mais somente esterilizar, mas também levar à morte os deficientes, os marginais e os que apresentavam tendência permanente para a depressão. O pretexto era de liberar os leitos hospitalares para os futuros feridos de guerra. Esse “decreto da eutanásia” com a data retroativa a 1º de setembro de 1939, que autorizava a missão do programa, dizia: “O líder do Reich Philipp Bouhler e Dr. Brandt estão encarregados da responsabilidade de ampliar a competência de certos médicos, designados pelo nome, de modo que os pacientes, baseando-se no julgamento humano, que forem considerados incuráveis, pode ser- lhes concedida a morte de misericórdia após exigente diagnóstico”. Hitler confiou toda a operação a Karl Brandt, seu médico pessoal, e a Philip Bouhler, médico-chefe da chancelaria. Eles se instalaram sob o nome codificado “Aktion T4”. Os funcionários do T4 experimentaram diferentes meios de extermínio, começando com o veneno e depois descobrindo o gás. Num primeiro momento, encerravam suas vítimas num local fechado, injetando o gás do escapamento de um caminhão. Muito rapidamente, os procedimentos foram aperfeiçoados. Em janeiro de 1940, quinze dessas pessoas foram conduzidas para uma falsa ducha de chuveiro e asfixiados com o monóxido de carbono. Seus cadáveres foram em seguida incinerados. Seus familiares avisados por carta da morte acidental do parente e convidados a recuperar as cinzas. Era uma antecipação das câmaras de gás de Auschwitz. 158 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Em torno de 70 mil a 100 mil pessoas com deficiência seriam assassinadas em menos de dois anos. Porém, malgrado todos os esforços da administração, o segredo foi descoberto e a inquietação crescendo. Até dentro do próprio exército cresceu a preocupação quanto ao destino dos feridos de guerra. Pastores protestantes começaram a reagir. O papa Pio XII interveio na questão em 15 de dezembro de 1940, condenando firmemente a eutanásia. Por fim, em 9 de março de 1941, o bispo católico de Berlim, von Preysing, denunciou “mortes batizadas de eutanásia”. Joseph Goebbels, chefe da propaganda, convenceu Hitler de não determinar a execução do bispo para evitar um conflito aberto com os cristãos de Münster. Finalmente, três semanas após o golpe de efeito do monsenhor von Galen, em 24 de agosto de 1941, Hitler decidiu suspender a “Aktion T4”. Os mais de cem funcionários do T4, contudo, não ficaram sem funções. Algumas semanas mais tarde, Heinrich Himmler, ministro do Interior e chefe supremo da SS, usou de sua expertise para colocar de pé o plano de eliminação física dos judeus.A Igreja católica e suas possibilidades de inclusão A Igreja católica, em 1995, colocou nas ruas a sua tradicional Campanha da Fraternidade, uma prática anual desde 1964, sempre abordando assuntos de interesse social. O tema daquele ano foi “A Fraternidade dos Excluídos”, trazendo em seu contexto a lembrança de milhares de pessoas marginalizadas, 159 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br compondo uma enorme lista de segregados, sendo prostitutas, aidéticos, moradores de ruas, idosos, pessoas com deficiência, desempregados, drogados, presidiários e outras realidades vítimas de um apartheid social invisível que prevalece sobre a nossa pátria. Todas vítimas de um capitalismo selvagem, pois, segundo a revista Família Cristã (fevereiro, 1995), “é simples demonstrar o grau de iniquidade e hipocrisia de uma sociedade. Basta verificar quantas e quais as categorias de seres humanos marcadas pela brecha da exclusão”. Diante desse quadro poderíamos abordar outros inúmeros aspectos referentes aos “excluídos”; mas vamos nos limitar a uma classe do nosso estudo: as pessoas com deficiência! Podemos pegar como ponto de partida para a nossa reflexão o “Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência”, o PAM, parágrafos 72 e 73, onde se destaca que, “com frequência, as atitudes e os hábitos levam à exclusão das pessoas com deficiência da vida social e cultural. As pessoas tendem a evitar o contato e o relacionamento pessoal com elas. Para um número significativo de pessoas com deficiência, os preconceitos e a discriminação de que geralmente são vítimas e a consciência de que em grande parte são excluídas das relações sociais normais causam problemas psicológicos”. Isto, de certa forma, é o retrato de mão dupla da deficiência, pois, segundo o PAM, “é muito frequente que o pessoal, profissional ou não, que atende as pessoas com deficiência não se dê conta de que elas podem participar da vida social normal e, por conseguinte, não facilita a sua integração em outros grupos sociais”. Mas é possível reverter essa situação? Quais os caminhos e qual a colaboração que a Igreja católica, baseada em suas 160 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br campanhas da fraternidade e suas pastorais, poderá continuar dando à inclusão social e religiosa dessas pessoas? Sobre a “Campanha da Fraternidade dos Excluídos” de 1996, um trecho de seu texto-base dizia: “No Brasil temos 7 milhões de portadores de doenças físicas e mentais. No modelo de desenvolvimento competitivo não há espaço para os que têm algum tipo de limitação física ou mental. Cultua-se o corpo humano que se apresenta como uma máquina saudável, produtiva, dentro dos padrões convencionais de estética e eficiência. Nessa situação, os deficientes, além de terem que lidar com a própria deficiência, sofrem um processo de rejeição por serem ‘diferentes’. Isso tem reflexos na vida emocional, afetiva e na formação da autoimagem”. Todavia, pedimos licença à Igreja católica, para fazermos algumas reflexões referentes ao seu parágrafo. No que diz respeito à inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho competitivo, isso ainda se constitui em um grande desafio, mas muita coisa já mudou. Muitas dessas pessoas estão conquistando o seu emprego e, segundo registros, os empregadores estão satisfeitos com elas. A contratação de mão de obra das pessoas especiais só não é mais bem aproveitada por falta de informações e esclarecimentos nos meios empresariais. Achamos também que é de certa forma errado usar o termo “doenças físicas ou mentais”; temos que ter bem definida em mente a diferença entre deficiência e doença, pois muitas vezes, não esclarecidas, podem reforçar preconceitos. Concordamos plenamente que, ao serem rejeitadas, muitas pessoas apresentam prejuízos emocionais, afetivos e na formação de sua autoimagem, mas esse processo de rejeição analisaremos mais adiante. 161 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Além dos problemas sociais e emocionais (as “barreiras invisíveis”) enfrentados pela classe, existe a questão dos obstáculos materiais, as chamadas “barreiras arquitetônicas”; portas estreitas impedindo o tráfego de cadeiras de rodas; escadas e degraus inacessíveis em edifícios, ônibus coletivos, trens, aviões; telefones públicos, interruptores de luz e botões de elevadores colocados fora de seu alcance e sanitários que não podem utilizar, dentre outros pontos menos comuns. Também há a exclusão quando não se leva a sério a adoção de linguagem de sinais para quem tem deficiências auditivas e leitura em braile para pessoas com deficiências visuais. Mas como mudar tudo isso? Infelizmente, essas barreiras existem alicerçadas na ignorância e indiferença dos povos devido à falta de informações corretas. Em nosso ponto de vista, muitos desses problemas poderão ser evitados, com poucos gastos, mediante um planejamento cuidadoso. Acreditamos como sempre, que o problema da deficiência é muito mais social do que psicológico, e a solução muito mais simples que possa parecer. Todo encargo e dificuldades que se despejam sobre essas pessoas estão diretamente ligados à imagem negativa que essas pessoas têm perante a sociedade, como serem inferiores, coitadinhos, eternos dependentes e outros conceitos errôneos dessa natureza, que também foram alimentados pelos estigmas religiosos ao longo dos séculos e hoje repousam em nossos inconscientes coletivos. Quem tem uma deficiência não é um rejeitado; é, sim, um desconhecido. O lado positivo da deficiência, ou seja, o verdadeiro, do que são capazes, suas potencialidades e os benefícios que, se incluídos, poderão 162 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br trazer para o contexto social, estão quase todos ocultos da sociedade e das comunidades cristãs, o que impede a construção de uma real cidadania. Assim, se for explorado esse ponto, a divulgação do lado positivo, grande parte dos problemas dessa classe estará com os dias contatos. A Igreja, no tocante às pessoas com deficiência, poderá explorar esse ponto, mostrando sempre aos seus fiéis do que essas pessoas são capazes; focalizar aqueles que estão atuando no mercado de trabalho e outros tantos exemplos positivos, abordando-os sempre de maneira natural e tentando retirar toda a carga de piedade e/ou sensacionalismo que o tema suscita. Muitas vezes a sociedade impede ou dificulta o exercício pleno da cidadania, não por maldade, mas sim por desconhecer o que realmente é alguém com deficiência e suas potencialidades. Aliás, que sejam incentivados a participar mais nas atividades da Igreja, dando sempre voz aos menos, pois assim a inter-relação e a quebra de mitos e receios entre eles e os demais fiéis ocorrerão naturalmente. As pessoas com deficiência não precisam de piedade; precisam de oportunidade! A Igreja poderá incentivar o nascimento de novas associações, como a já existente “Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes – FDC”, organizada e fundada por um grupo com deficiência e que está aberta a todos, tendo como lema “nossas capacidades superam as nossas deficiências”. A proposta da FCD é lutar e defender os direitos da classe. É importante que os próprios interessados se reúnam para discutir seus problemas e brigar pelos seus direitos, desde que estejam apoiados em leis especiais existentes no país. É preciso que a pessoa com 163 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.brdeficiência tenha a sua consciência despertada a respeito de seus direitos e obrigações, pois acreditamos que toda mudança precisa vir de dentro para fora e de baixo para cima. Sobretudo, propostas e soluções existem. Só é preciso que não fiquem no papel e em discussões de grupos limitados, mas partam para a prática, para as ruas, nas realizações de campanhas de educação do público, visando à eliminação de tais barreiras e à inclusão concreta dessas pessoas no contexto social. O padre Luiz Carlos Dutra, em sua obra Pastoral da Inclusão – Pessoas com deficiência na comunidade cristã (Loyola, 2005), aponta que são três as áreas em que a Igreja católica poderá trabalhar a inclusão das pessoas com deficiência, constituindo praticamente sua integridade: NA CATEQUESE – No passado usávamos a expressão “catecismo” para indicar em aulas que, com perguntas e respostas fixas, decoradas, introduziam-se as crianças às verdades da fé católica. Hoje o termo em uso é “catequese”, que cobre todas as faixas etárias com suas questões e problemas específicos. Catequese é a jornada espiritual de cada pessoa inteirando-se da vontade e doutrina de Deus a nosso respeito. Os assuntos são tratados em encontros periódicos liderados por pessoas formadas na doutrina da Igreja, segundo as fontes da Escritura, Tradição e dentro da vivência dos nossos tempos modernos. NA LITURGIA – Nossa comunidade cristã precisa se acostumar a ver pessoas que, do púlpito, leem a Bíblia em 164 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br braile, pessoas que comunicam a mensagem evangélica em língua de sinais, pessoas que na condição de leitores têm a autonomia de chegar em sua cadeira de rodas até o microfone (adaptável à sua altura) graças a alguma solução para os tradicionais degraus do presbitério. Essas pessoas são ministros do altar, na hora mais solene de nossa fé, a Eucaristia. Têm eles tal amor a Cristo que desafiam a deficiência a ponto de quererem participar ativamente da liturgia. São jovens com deficiência intelectual, por exemplo, que, orientados, podem tirar a coleta, levar as ofertas do pão e vinho em procissão e ofertório. Nada de medo. Nada de idiossincrasias ou temor irracional. São pessoas com deficiência de algum tipo, mas com voz boa ou que tocam bem algum instrumento e que querem fazer parte do coral, da música. Liturgia é a família de Deus toda em prece, cada um fazendo oferta de seus dons, sem discriminação. NA VIDA DA COMUNIDADE – Conforme a Sagrada Escritura, desde os primórdios do Cristianismo, a força da fé se expressou na união e amor entre os cristãos. Trabalhando cada um na própria santificação, todos trabalhavam também para formar uma comunidade que atendia às necessidades e aos interesses espirituais e materiais. (...) A comunidade cristã hoje, pelo amor e exemplo de Cristo, e a sociedade em geral, pela obrigação de promover o bem comum e defender os direitos de cada um, devem ambas abraçar o ideal da inclusão das pessoas com deficiência (pp. 29-31). 165 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Segundo o padre, “escolas, centros de trabalhos, programas biopsicossociais e profissionais surgiram e agora adotam a filosofia e prática da inclusão. A Igreja tem razões bem mais profundas para viver o ideal e a prática da inclusão. O chamado para promover inclusão não é somente das autoridades eclesiásticas. O chamado é do próprio Deus, que revelou o mandamento do amor, e do próprio Cristo, que deu o exemplo em palavras e obras. E Deus chama a todos” (DUTRA, 2005, p. 22). Façamos nossas as palavras de Elizabete Cristina Costa- Rendens, as quais cabem não só à Igreja católica, como também às demais comunidades cristãs: “Se no decorrer da história, especialmente até a Idade Média, elas atuaram junto às pessoas com deficiência em perspectiva assistencialista e segregacionista, em tempos contemporâneos, o tema inclusão desafia essas mesmas Igrejas cristãs a novas práticas pastorais e ao regaste de discursos teológicos inclusivos – na perspectiva do Evangelho de Jesus Cristo. Evangelho este que não faz acepção de pessoas e que propõe a diaconia como uma forma de convivência social pautada pelo reconhecimento recíproco. Nessa perspectiva, foi possível aproximarmos o paradigma educacional da inclusão com a espiritualidade cristã. A Teologia, pelo papel crítico-profético que lhe é conferido, tem a tarefa de construir uma antropologia que diminua (ou hierarquize) o ser humano em função de suas deficiências, mas que o acolha em sua dignidade humana. A educação pode beber das águas teológicas, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento da dignidade humana como um bem 166 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br inviolável e, por conseguinte, da demanda ética que se coloca em termos de justiça social” (2009, pp. 149-150). 167 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br 168 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br V – CAMINHOS PARA A INCLUSÃO RELIGIOSA HOJE O Protestantismo precisa despertar para a questão ssim como no capítulo anterior falamos sobre a atuação histórica da Igreja católica junto às pessoas com deficiência, gostaríamos de ter escrito também um longo capítulo sobre a atuação do Protestantismo. Só que, em nossa investigação história, não encontramos nenhum registro. Nem na vasta historiografia de Otto Marques da Silva há sequer pistas sobre isso. A não ser a condenação feita pelos principais nomes da Reforma, considerando as pessoas com deficiência (principalmente as deficiências intelectuais) como demoníacas, apoiando as eliminações delas pela Inquisição. Historiadores apontam que essas pessoas sempre passaram despercebidas pelas correntes protestantes. Acreditamos que possa até ter ocorrido ações deles nesse sentido, mas por terem se dividido em várias vertentes ou seitas, onde cada uma defende seus pontos teológicos/ideológicos, tais registros não ficaram para a história, não chegando até nós. O mesmo não aconteceu com a Igreja católica, que, talvez por ser uma unidade, foi capaz de preservar os seus registros históricos. Alguns estudiosos dizem que as ações da Igreja foram A 169 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br puramente assistencialistas e colaboram para a segregação de pessoas com deficiência ao longo dos séculos. Só que preferimos focar em outro aspecto. Mesmo sendo assistencialismo, ou pautados pela cultura da caridade, o importante foi que a Igreja reconheceu a existência e as necessidades dessas pessoas naqueles momentos históricos, abrigando-as com a visão e conceitos que tinham na época. Pela falta de mais conhecimentos médicos/científicos e de uma filosofia humanista, era o que tinham a oferecer. Do mesmo jeito que não podemos condenar os protestantes que apoiaram a eliminação das pessoas com deficiência na Inquisição, pois também faltavam-lhes conhecimento cientifico e uma teologia mais humanitária com relação a elas. No Protestantismo tudo ainda era muito novo e a noção do bem (Deus) e do mal (diabo) ainda era muito acentuada, não dando margem para outras análises teológicas e/ou humanitárias. Não é nossa intenção ficar fazendo julgamento das ações passadas, seja dos católicos, seja dos protestantes. Mas, sim, trazer por meio deste estudo dados históricos paraque, a partir deles, possamos rever nossas ações e conceitos referentes às pessoas com deficiência e ter base para a construção de uma real TEOLOGIA DA INCLUSÃO. Uma Teologia da Inclusão que contemple um novo momento histórico, onde tanto os católicos como os protestantes reavaliem e reconstruam seus conceitos e ações no sentido da inclusão das pessoas com deficiência. Se, por um lado, a Igreja católica continua intensificando suas ações em prol da inclusão social e religiosa das pessoas com deficiência, sabemos que várias 170 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br igrejas protestantes estão também realizando ações nesse sentido, mas de forma simples e isolada, não havendo união, planejamento nem trabalhos entre elas. Segundo Costa-Renders (2009), “faz-se necessária, portanto, a construção de uma Teologia onde também caibam as pessoas com deficiência. Ou seja, uma Teologia que inclua e dê visibilidade às expectativas e desafios vividos por essas pessoas, tais como: as imposições de uma antropologia hegemônica, os desafios da cura (seja pela religião, seja pela ciência), a percepção da vulnerabilidade humana e da inegociável dignidade de todos os seres humanos. Entendemos que, a partir das pessoas com deficiência, brotam perguntas importantes para a espiritualidade: sobre a existência, sobre a condição humana, sobre as concepções a respeito da deficiência e dos limites humanos, etc. são perguntas provocativas, não tivemos (ou não temos) a intenção, nem a possibilidade, de responder a elas categoricamente” (p. 149). Uma sociedade inclusiva Como nas religiões, na sociedade em geral, as pessoas com deficiência ficaram por muito tempo escondidas do convívio social muitas vezes dentro de instituições especializadas. Nos anos 1970 e 1980, vivemos o conceito de integração social. Surgiram, por exemplo, entidades, centros de reabilitação, clubes sociais especiais, associações desportivas, todas dedicadas a essas pessoas com deficiências. A intenção principal era preparar essas pessoas para ingressar e conviver em sociedade com todos nós. 171 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Só que, nos últimos vinte anos, um novo conceito surgiu: a inclusão social, tomando forma e espaço na sociedade, focando a equiparação de igualdades como tema do milênio. Antes pessoas com deficiências eram habilitadas ou reabilitadas para fazer todas as coisas que as demais e, através da integração social, passavam a conviver em sociedade. Agora, na inclusão social, as iniciativas são da sociedade, que passou a se preparar, criando caminhos e permitindo que eles venham conviver com todos. Por esse motivo, cada vez mais estamos vendo crianças e pessoas com necessidades especiais em nossas escolas, no lazer e em todos os lugares da vida diária. E devemos estar preparados para essa convivência, aceitando as diferenças e a individualidade de cada pessoa, uma vez que o conceito de inclusão mantém este lema: Todas as pessoas têm o mesmo valor. Inclusão Social, um tema explorado em várias partes do mundo, tendo ampla preocupação internacional, foi explicitado pela primeira vez em 1990 pela Resolução 45/91, da Assembleia Geral das Nações Unidas e, cerca de cinco anos depois, começou a chamar a atenção aqui no Brasil. Formada de uma resolução e regras bem definidas de uma sociedade para todos, consiste da diversidade da raça humana, estando estruturada para atender às necessidades de cada cidadão, das maiorias às minorias, dos privilegiados aos marginalizados. Nesse contexto estão incluídos crianças, jovens e adultos com deficiência, os quais serão naturalmente incorporados à sociedade inclusiva, e onde todos trabalharão juntos, com papéis diferenciados, dividindo iguais 172 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br responsabilidades por mudanças desejadas para atingir o bem comum. Tudo consiste no processo ao qual a sociedade se adapta para poder incluir em seu contexto as pessoas com deficiência. Mas, por outro lado, essas mesmas pessoas precisam ser preparadas para assumir seus papéis na sociedade. Será uma forma de parceria entre ambas – sociedade e pessoas especiais –, visando equacionar problemas, decidindo sobre soluções, efetuando equiparações para todos. Na prática, a inclusão social tem como princípios básicos incomuns: a aceitação das diferenças individuais; a valorização de cada pessoa; a convivência dentro da diversidade humana; a aprendizagem através da cooperação. O que talvez possa parecer uma utopia, poderá ser na realidade a construção de um novo tipo de sociedade, mediante transformações, pequenas ou grandes, dos meios físicos (através de adaptações), ou das mentalidades (através de conscientização da população). Em várias partes do mundo, relata Sassaki (1997), “o processo de inclusão vem sendo aplicado em cada sistema social. Assim, existe a inclusão na educação, na saúde, na assistência, no lazer, no transporte, etc. Quando isso acontece, podemos falar em 173 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br educação inclusiva, na saúde inclusiva, na assistência inclusiva, no lazer inclusivo, no transporte inclusivo e assim por diante. Uma outra forma de referência consiste em dizermos, por exemplo, educação para todos, lazer para todos, transporte para todos" (p. 22). Igualdade de oportunidades, inclusive na religião Essa tendência de Inclusão iniciada no campo educacional, refletindo na sociedade como um todo, também deve ser realizada nas comunidades cristãs, independente de denominação. É direito das pessoas com deficiência o livre exercício de sua religiosidade. Está no “Programa de Ação Mundial Para as Pessoas com Deficiência“, o PAM (ONU, 1992), parágrafo 136: “Devem-se adotar medidas para que as pessoas com deficiência tenham a oportunidade de se beneficiar plenamente das atividades religiosas que estejam à disposição da comunidade. Para tal, deve-se tornar possível a participação das pessoas com deficiência nas referidas atividades!”. Podemos tirar do próprio PAM noções de Igualdade de Oportunidades na sociedade em geral que devam refletir nas comunidades cristãs. Estes parágrafos selecionados dão uma visão geral dessas mudanças: 174 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br 21. Para se alcançar os objetivos de “igualdade” e “participação plena”, não bastam medidas de reabilitação voltadas para o indivíduo com deficiência. A experiência tem demonstrado que, em grande medida, é o meio que determina o efeito de uma deficiência ou de uma incapacidade sobre a vida cotidiana da pessoa. A pessoa vê- se relegada à invalidez quando lhe são negadas as oportunidades de que dispõe, em geral, a comunidade, e que são necessárias aos aspectos fundamentais da vida, inclusive a vida familiar, a educação, o trabalho, a habitação, a segurança econômica e pessoal, a participação em grupos sociais e políticos, as atividades religiosas, os relacionamentos afetivos e sexuais, o acesso às instalações públicas, a liberdade de movimentação e o estilo geral da vida diária. 25. O princípio da igualdade de direitos entre pessoas com e sem deficiência significa que as necessidades de todo indivíduo são de igual importância, e que estas necessidades devem constituir a base do planejamento social, e todos os recursos devem ser empregados de forma agarantir uma oportunidade igual de participação a cada indivíduo. Todas as políticas referentes à deficiência devem assegurar o acesso das pessoas com deficiência a todos os serviços da comunidade. 27. Das pessoas com deficiência, deve-se esperar que desempenhem o seu papel na sociedade e cumpram as suas obrigações como adultos. A imagem das pessoas com deficiência depende de atitudes sociais baseadas em 175 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br diversos fatores, que podem constituir a maior barreira para a participação e a igualdade. É costume ver a deficiência como a bengala branca, as muletas, os aparelhos auditivos e as cadeiras de rodas, sem se ver a pessoa. É necessário focalizar a capacidade da pessoa deficiência, e não as suas limitações. Transportando essa visão e apontamentos do PAM para o nível espiritual, podemos dizer que o conceito e a prática de inclusão encontram eco favorável em verdades básicas de nossa fé; segundo Dutra (2005, p. 18), a inclusão, espiritualmente, é: colocar em prática, em relação à pessoa com deficiência, o amor ensinado por Deus; viver na prática a universidade da Igreja, sem distinção ou discriminação; ver Cristo na pessoa com deficiência. Em uma comunidade cristã, por meio da fé e batismo comum, estamos todos inseridos como ramos de videira, ramos vivos e produtivos, graças a essa inserção na fonte da vida que é Jesus Cristo. “Assim, a inclusão passa a ser o fato de viver a fé e o amor que nos fazem um no Senhor, sem exceção, a grande família de Deus. As aparências contam, mas não decidem nossas preferências e aberturas de coração” (DUTRA, 2005, p. 19). Com ou sem deficiência, somos todos possuidores de dignidade humana e filhos do Deus, o primeiro a não fazer 176 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br acepção de pessoa, como está em I Samuel 16:7: “Porém o Senhor disse a Samuel: Não atentes para a sua aparência, nem para a grandeza da sua estatura, porque o tenho rejeitado; porque o Senhor não vê como vê o homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos, porém o Senhor olha para o coração.”. Como uma missão cristã, as comunidades religiosas precisam convidar as pessoas com deficiência a expressar seus sonhos e realidades, facilitando sua participação de forma irrestrita. Como as demais, elas procuram independência e autonomia, o que significa participar do processo, das soluções e implementações e usufruir os resultados. Incluir essas pessoas na vida da comunidade cristã será como trazer Cristo a elas e levá-las a Cristo de maneira condizente com as necessidades pessoais e em comunhão com todos e com tudo o que Deus criou e reuniu. Barreiras arquitetônicas eram motivos de exclusão Parece que não, mas, por muitos séculos, um dos principais motivos que impediram pessoas com deficiência de ter acesso às religiões foram as barreiras arquitetônicas. Em 1999, Ranauro e Lima de Sá já questionavam esse fato: “As igrejas costumam primar pela importância dos templos e escadarias. O templo suntuoso, no alto, se destaca. Mas quantos sequer podem se beneficiar deles pelas dificuldades de acesso impostas às pessoas. Não se atenta, sequer, no mais das vezes, para a largura e altura dos degraus. E o corrimão nos degraus e escadarias, quem se lembra deles?” (p. 105). 177 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Somavam-se as grandes escadarias na entrada de igrejas, além de barreiras físicas no interior de suas instalações, as atitudes paternalistas e piedosas em relação à deficiência. Essas barreiras são todas as limitações com que as pessoas com deficiência se deparam no seu dia a dia e que as impedem de realizar o mais básico direito de qualquer cidadão: IR e VIR. Existem diversos tipos de barreiras arquitetônicas, como as escadas, os elevadores e portas muito estreitos, buracos no passeio, casas de banho mal equipadas, transportes públicos mal preparados, as edificações, os espaços urbanos, os equipamentos urbanos, o mobiliário, os aparelhos assistivos, os utensílios. Só que é um quadro que começa a mudar, conforme observa Sassaki (1997): “Hoje, é comum vermos igrejas e sinagogas dotadas de acessibilidade arquitetônica, o que permite aos seus fiéis com deficiência frequentarem-nas com autonomia e, mais do que isso, tomarem parte na administração dos ministérios. São conhecidas as atividades desempenhadas por pessoas com deficiência intelectual ou física auxiliando os celebrantes de missa ou culto. Intérpretes de línguas de sinais fazem parte do pessoal que acompanham os eclesianos com deficiência auditiva. Os próprios sacerdotes acabam aprendendo a usar os sinais durante a celebração de missas. Tudo isso, além de ser um direito das pessoas com deficiência, acaba funcionando como recurso de conscientização dos frequentadores sem deficiência, o que é muito educativo para toda a comunidade que se reúne em torno da religião” (p. 108). Em tempos de Inclusão Social – e também por que não dizer Religiosa! –, uma questão que merece uma profunda 178 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br reavaliação de conceito é com relação às pessoas com deficiência que se utilizam de cadeiras de rodas para a sua locomoção. Aqui encontraremos um dos maiores erros de visão cometidos pela sociedade. E também a falta de atenção dos profissionais de comunicação colabora para uma visão errônea, quando reproduzem exaustivamente a imagem da pessoa em cadeira de rodas, usando um “cobertor xadrez” sobre as pernas. Essa imagem é transmitida historicamente, tendo como base as primeiras imagens vindas da fria Europa, onde, no pós- guerra, alguns militares combatentes adquiriram deficiências e consequentemente passaram a utilizar cadeiras de rodas para sua locomoção. Nos países europeus o clima gelado é constante na maior parte do ano e, uma vez que a pessoa na cadeira de rodas tem pouca circulação sanguínea nas pernas, tendo uma sensibilidade ainda maior ao frio, justifica-se o uso desses cobertores. Mas no Brasil, um país tropical e praticamente quente durante todo o ano, nada justifica que perdure a utilização do “cobertor xadrez” sobre as pernas dessas pessoas, o que também pode significar uma conotação negativa da intenção de esconder a parte paralisada do corpo. Essa imagem, reproduzida sem qualquer critério ou avaliação, é constante na mídia, nas telenovelas, em peças de teatro, nos cinemas e em campanhas de utilidade pública, sem uma percepção crítica em relação a esse estereótipo que reforça, principalmente em países quentes como o Brasil, a ideia de vergonha do corpo, deformação, feiura e depressão. 179 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Outro erro que também cometemos e precisamos corrigir é com relação às expressões que usamos ao nos referirmos a essas pessoas. Expressões como “condenados”, “confinados”, “presos” a uma cadeira de rodas refletem totalmente o contrário do verdadeiro significado de uma cadeira de rodas, sendo um instrumento para suprir a dificuldade de locomoção de seu usuário, tornando-se um instrumento para a sua independência, para sua libertação, para a vida! Por isso, além de acabarmos com a estereotipada imagem do “cobertor xadrez”, troquemos essas ultrapassadas expressões por “pessoas que se utilizam de cadeiras de rodas para sua locomoção”, “usuários de cadeiras de rodas”, ou simplesmente“cadeirantes”. O que deve ser feito está previsto no Decreto Federal 5296/2004, conhecido como Lei de Acessibilidade, e em muitas outras normas. Mas a lei nem sempre é cumprida; na realidade uma parte significativa da população ainda vive à margem. “Uma teologia da deficiência” Esse subtítulo acima é de um artigo escrito por John Swinton, diretor de Teologia Prática da Universidade de Aberdeen, Escócia. Traduzido e publicado pelo O Jornal Batista em 29 de fevereiro de /2012, Swinton faz algumas observações – citando Gênesis 1:27: “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” –, como ser criado por Deus é refletir a Sua glória e ser amado pelo Criador. 180 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br De todo o artigo, queremos reproduzir este trecho final, por ele ser rico em reflexões: Ser humano é um ato poderoso e misterioso. Não existe nenhum ser “normal”. Claramente todos os seres humanos são anormais, já que “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus (Romanos 3:23). Todos nós nos distanciamos de Deus, e assim somos profundamente deficientes. Devemos tomar cuidado quando chamamos outros de deficientes e tratamos como se o rótulo realmente explicasse qualquer coisa. Deficiência é apenas uma das maneiras de ser humano diante de Deus. Não há nada na deficiência que nos separe do outro. Não é o nosso corpo, nem o nosso intelecto, nem as nossas capacidades que nos fazem aceitáveis a Deus. Nenhuma dessas coisas nos torna humanos. O amor interminável de Deus por cada ser humano é o que cria e sustenta-nos em nossa humanidade. Deficiência é simplesmente uma variação sobre um tema comum. De acordo com essa compreensão da questão, a igreja (o Corpo de Cristo) é chamada a ser um lugar onde a discriminação e o preconceito são abandonados e o amor incondicional é abraçado. Somente se cumprimos esse chamado teremos o tipo de comunidade que Paulo previu, onde não há “nem judeu, nem grego, nem escravo livre, nem homem, nem mulher” ...nem preto, nem branco, nem pessoas 181 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br “normais”, nem pessoas “deficientes” (Gálatas 3:28). Em meio à deficiência é que percebemos essas verdades, e ao percebê-las aprendemos a viver de forma diferente. Somos, acima de tudo, conhecidos e lembrados por Deus, tenhamos uma deficiência ou não, desde mesmo antes do nosso nascimento, como diz o Salmo 139. Deus não nos vê com distinção. Mas nós, sim, olhamos os nossos semelhantes com distinção. Infelizmente o preconceito e estigmas religiosos ainda existem, conforme esse caso narrado por Pauli (2010): “Em certa igreja, um homem tentou entrar no templo para o culto de domingo. Ele não podia andar, era muito pobre e não tinha cadeira de rodas; por isso, se arrastava pelo chão. Quando ele finalmente chegou à porta da igreja, depois de uma dolorosa e desgastante jornada partindo de seu pequeno quarto, os porteiros da igreja negaram sua entrada sob o argumento de que ele não era digno de entrar daquele jeito. Ele voltou para casa com o coração triste e nunca mais tentou entrar numa igreja novamente. Ele morreu pouco tempo depois. Talvez nunca saberemos a diferença que faria se ele tivesse sido bem recebido na igreja naquele dia, em vez de ser rejeitado. Porém quando a igreja age de forma indiferente e não faz nenhum esforço para receber essas pessoas de braços abertos, também está agindo com discriminação” (p. 76). Reflexões sobre a convivência plena na religiosidade 182 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br Uma grande forma de inclusão social, religiosa e conhecimento da realidade, é termos e mantermos pessoas com deficiências em nossos círculos de irmandade e amizade. Será uma forma de ambos se conheceram como de fato são, quebrando, assim, muitos mitos e os tradicionais preconceitos. Viver em grupo é uma necessidade de nós, seres humanos. E nada expressa melhor isso do que a amizade. Durante todos os períodos de nossas vidas, temos amigos: infância, adolescência, idade adulta e velhice. Poderá haver uma ciranda, principalmente em cidades grandes, onde conhecemos inúmeras pessoas que entram e saem de nossas vidas de maneira mágica, se assim se pode dizer; alguns até por interesses profissionais. Embora nem sempre sejam os mesmos, mas sempre é importante a figura dos amigos. Todavia, há aqueles amigos, geralmente constituídos nas duas primeiras fases de nossas vidas, que, entra ano e sai ano, estão sempre presentes em todos os momentos de nossas vidas. E como é boa essa presença! Pois, para uma pessoa com deficiência, esse círculo de amizade torna-se ainda mais valioso, uma ajuda inevitável... Duas reflexões podem ser feitas nesse sentido. Há aquelas pessoas que nascem ou adquirem uma deficiência no início de suas vidas e há aquelas que adquirem ao longo do percurso, principalmente por acidentes. No primeiro caso, a pessoa já cresce consciente de sua limitação, desafiando seus próprios limites; realiza tudo com naturalidade, escola, brincadeiras, crescendo entre a sua turma e participando normalmente de todas as atividades de acordo com sua condição. Já aquele que adquiriu uma deficiência terá que passar por um longo processo, começando pela aceitação de sua nova condição, como lidar com isso, “reaprendendo” a viver com sua nova realidade e dentro de 183 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br suas possibilidades. Esse notará naturalmente o afastamento de seus amigos comuns, não por maldade, mas por estarem dando prosseguimento em suas vidas rotineiras. Sobrarão, sim, alguns poucos e sinceros amigos, que o acompanharão em seu processo de reabilitação e, mesmo sem saberem, terão uma participação praticamente invisível, porém fundamental. Serão eles os principais responsáveis na reintegração social dessa pessoa, a partir do momento que passarem a aceitá-lo e incentivá-lo a participar em suas atividades, mesmo as mais simples, como passeios, por exemplo. Pode parecer fácil ter e manter laços de amizade com alguém com deficiência, mas acredito que não é tão simples assim. Geralmente, uma pessoa que tem alguma limitação, dependendo o grau e tipo, ao sair em público torna-se o centro das atenções, motivo de curiosidade natural de todos. Dessa maneira, aquele que o acompanha também será o centro de muitos olhares. Em alguns casos, a pessoa poderá precisar de auxílio para realizar algo, ao entrar em algum lugar, e certamente os irmãos e amigos não medirão esforços, tendo boa vontade para tal. Importante também respeitar as suas limitações, como, por exemplo, numa caminhada, andar dentro do seu ritmo. Para ser amigo de alguém com deficiência, deve-se ter muito discernimento, livre de preconceitos, além de ser algo de enriquecimento e conhecimento à convivência e a alma humana, exatamente o que se espera de um comportamento cristão! Nessas convivências dentro e fora da igreja, descobriremos inúmeras qualidades e potencialidades; com isso desaparecerão as diferenças provocadas pelas limitações, pois 184 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br você aprenderá a respeitá-las. Será um mundo completando outro. Assim a inclusão e a aceitação ocorrerão naturalmente. Tudo depende de cada um e da união coletiva, e, sobretudo, que a sociedade respeite e ajude na concretização dessa INCLUSÃO SOCIAL eRELIGIOSA, para que ocorra, enfim, a CONVIVÊNCIA PLENA. 185 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br CONCLUSÕES sociedade como um todo se uniu nos mais diversos segmentos para promover a inclusão das pessoas com deficiência. Infelizmente, as comunidades cristãs – sejam católicas, sejam protestantes – estão muito atrasadas para esse despertar, ou promovendo ações tímidas. Como observa Costa- Renders (2009), “a Teologia tem fundamental importância na construção de uma estrutura inclusiva em nossa sociedade. Como um instrumental de reflexão sobre a condição humana e de promoção da dignidade de todas as pessoas, a espiritualidade cristã forma opinião – a começar, de forma assistemática, em nossas comunidades, até chegar, de forma sistemática, às instituições educacionais. A espiritualidade é um dos modos de produção de sentido para o caminho da existência humana; portanto, uma teologia inclusiva pode ser educativa – formar pessoas. Nesse sentido, uma teologia inclusiva pode ser elucidativa no caminho de construção de uma sociedade e uma educação para todos!” (p. 145). Na verdade, este estudo teve por objetivo uma revisão histórica e reflexiva sobre o assunto, como uma forma de introdução a essa questão. Muita coisa ainda há por se pesquisar e se escrever como uma forma de orientação para fortalecer essa TEOLOGIA DA INCLUSÃO, focalizando vários outros aspectos que envolvem as pessoas com deficiências, sobretudo apontando para A 186 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br as possibilidades de inclusão social e religiosa. Tanto para os católicos em suas pastorais quanto para os protestantes em missões, evangelizações, nas escolas bíblicas dominicais, aconselhamentos, dentre outras ações. Como já enfatizado, o primeiro passo para termos uma Teologia da Inclusão será rever nossos próprios conceitos. Rever a visão que temos das pessoas com deficiência, abandonando conceitos de coitadinhos, vítimas, a deficiência como consequência de castigos ou pecados. Abandonar a posição que nós, cristãos, sempre tivemos de assistencialistas e piedade para com essas pessoas, apoiados em nossas caridades, trazendo-as para serem parte de nossas comunidades cristãs em total igualdade. Sobretudo, temos que cada vez mais identificar e eliminar do nosso meio os estigmas religiosos. Isso constitui um grande desafio, uma vez em que vivemos em um mundo praticamente “moldado”, que quase nunca aceita o que sai do convencional, inclusive nas comunidades cristãs, pois Deus, segundo I Timóteo, 2:4, “Que quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade.”. Geralmente, associa-se a imagem de uma pessoa com deficiência como um ser “totalmente diferente”, “estranho” ou até mesmo “alvo de gozação”. É normal muitos referirem-se a eles – ou essas próprias pessoas sentirem-se – como seres “rejeitados”. Mas preferimos não enfocá-los dessa forma, apontando-os como seres “desconhecidos”. O que falta, na realidade, é um processo de convivência para que todos – sociedade, comunidades cristãs e pessoa com deficiência – se conheçam. Nasce aqui a verdadeira 187 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br importância de uma boa inclusão nas comunidades cristãs. Mesmo com algum tipo de limitação, essas pessoas devem participar do processo de inclusão, no seu sentido mais amplo, tendo acesso a oportunidades e condições adequadas ao desenvolvimento de suas potencialidades, não apenas como membros de comunidades cristãs, mas também de todas as atividades, incluindo todos os ministérios dentro da Igreja. É importante ainda que essas pessoas não se autolimitem, lembrando-se sempre de que não são doentes, mas apenas pessoas com algumas limitações, e que mesmo com elas, ou apesar delas, podem conviver na sociedade e em comunhão com os irmãos em Cristo, desde que haja adaptação necessária a essa convivência. Não podem ficar à mercê dos acontecimentos, precisam fazer com que as coisas aconteçam. Ao longo dos anos, muitos dos direitos das pessoas com deficiência foram reconhecidos pelos poderes governamentais e pela sociedade em geral. É preciso agora que os envolvidos – principalmente quem tem deficiência – usem a força de suas vozes para reivindicá-los e lutar por sonhos e desejos, não esquecendo jamais do que são capazes. E incluir na Igreja também é incentivar as pessoas com deficiência a descobrir, desenvolver-se e fortalecer na fé em JESUS CRISTO! Na própria história do Antigo Testamento vimos que muitos dos grandes personagens bíblicos usados por Deus de alguma forma estavam ligados com algum tipo de deficiência. Já o Novo Testamento, com a vinda de Jesus ao mundo e sua opção pelos excluídos, faz com que as pessoas com deficiência “ganhem” almas, respeito, por meio das quais Ele realiza muitas obras. Isso 188 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br nos faz acreditar com segurança que as pessoas com deficiência sempre foram canais de bênçãos entre Deus e a humanidade, como o próprio Jesus Cristo testificou em João 9:3: “Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus.”. Este estudo histórico, que lançou luz a tantos personagens e fatos bíblicos e pós-bíblicos, prova como pessoas com deficiência e/ou circunstâncias que as envolvem são amadas e usadas por Deus. Não existem deficiências diante dos olhos de Deus, como diz I Samuel 16:7: “Porém o Senhor disse a Samuel: Não atentes para a sua aparência, nem para a grandeza da sua estatura, porque o tenho rejeitado; porque o Senhor não vê como vê o homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos, porém o Senhor olha para o coração.”. Uma doença ou uma deficiência apontam para a finitude do homem e podem conduzi-lo à sensibilidade necessária para a comunhão com Deus e com o próximo. Incluir não é ser bom ou um ato de caridade. Incluir é ser realmente cristão!!! 189 TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br BIBLIOGRAFIA BÍBLIA SAGRADA – Traduzida por João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida. Rio de Janeiro; Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. ______________ – Vulgata, traduzida do hebraico, aramaico e grego, mediante a versão dos Monges Beneditinos de Maredsous, Bélgica. São Paulo; Centro Bíblico Católico de São Paulo, 1959. COSTA-RENDERS, E.C. Educação e espiritualidade: Pessoas com deficiência, sua invisibilidade e emergência. São Paulo; Paulus, 2009. DUTRA, L.C. Pastoral da inclusão: Pessoas com deficiência na comunidade cristã. Loyola, São Paulo, 2005. ELGOOD, C. A Medical History of Persia and the Eastern Caliphate. University Press; Cambridge, 1951. FIGUEIRA, E. 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